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A SIDA E AS SUAS

ARRITMIA
METÁFORAS
I II III IV V VI VI I

A peça Still/Here, de 1994, é um marco na


história recente da dança contemporânea.
Principalmente, pelas reacções extremadas
que causou. Em particular, a da crítica norte-
americana Arlene Croce que, recusando-se a
ver a peça, acusou Bill T. Jones de promover
uma arte vitimizadora. No estudo que fez à
obra do coreógrafo, publicado recentemente
no livro Dança Teatral – Ideias, Experiências,
Acções, a antropóloga Maria José Fazenda
contextualiza a peça no percurso de Jones,
recordando ainda os efeitos da sua apresen-
tação e recepção. >>

Fotografias © Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company

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Em 1994 é estreada Still/Here, uma obra em que Jones / O encontro marcado. / Vamos lá saber a verdade... Sim
confronta o pro-blema da sobrevivência das pessoas ou Não. / Fiquei ali sentado [...]”. [3] Sobre este cântico
em perigo de vida [1]. Still/Here não é uma peça sobre a pungente, há duetos em que os corpos, rápidos e agita-
morte, mas antes sobre uma questão existencial fulcral: dos, rebolam uns sobre os outros ou se agarram com
como viver? A resposta é dada num espectáculo atra- tensão; movimentos de sustentação, como quando um
vessado por fortes sentimentos de esperança e soli- dos bailarinos é segurado e projectado no espaço pelos
dariedade entre os indivíduos e em que as experiências restantes; movimentos que exprimem sentimentos con-
das pessoas directamente implicadas são verbalmente traditórios como num trio em que dois dos bailarinos
expressas. Estas experiências são, num segundo nível puxam o terceiro em direcções opostas; solos ensimes-
de representação, o do discurso coreográfico, simboli- mados em que os corpos revelam hesitação, como se
zadas pelo movimento dos dez bailarinos. não soubessem para onde ir ou o que fazer. Três baila-
Para coligir material para a peça, o coreógrafo promoveu, rinas, com movimentos ondulantes, colocam uma das
ao longo de cerca de dois anos (entre Novembro de 1992 mãos num dos peitos e a outra no sexo. É quando se
e Abril de 1994), a realização de diversos “workshops ouve “[...] Ainda sou uma mulher / Mas parte de mim já
de sobrevivência” (Survival Workshops: Talking and Mo- partiu. / Em pedaços. / Corte, veneno ou queimadura /
ving about Life and Death, assim foram designados) em Quase como enterrar uma criança. Parte de mim mor-
que participaram cerca de 80 doentes (crianças, jovens reu [...]”.
e adultos) com cancro e SIDA, em tratamento em hospi- Em três ecrãs gigantes (dispositivo cénico criado por
tais de várias cidades dos Estados Unidos da América. A Gretchen Bender) são projectadas imagens dos rostos
questão colocada como ponto de partida para os work- dos participantes nos workshops: crianças, adoles-
shops foi: o que é que significa para alguém saber que centes e velhos que sorriem, que esboçam gestos ou
tem uma doença mortal? Pouco interessa a natureza movimentos. Num dos ecrãs, vê-se um jovem a execu-
da doença, pois a questão coloca-se a todos os sobrevi- tar movimentos de uma arte marcial. O bailarino Gor-
ventes. Durante os workshops, Bill T. Jones perguntava don F. White faz um dueto com ele, reproduzindo-lhe os
aos participantes se podiam exprimir através de gestos movimentos. Seguem-se danças de grupo que lembram
os seus sentimentos perante a doença. As sessões fo- os movimentos enérgicos da capoeira, um género per-
ram registadas em vídeo e, posteriormente, os bailari- formativo brasileiro.
nos aprenderam os movimentos registados, fixaram os Depois, Lawrence Goldhuber dança um solo ao mesmo 27
nomes de cada doente, as palavras pronunciadas e as tempo que exprime verbalmente a sua experiência pe-
histórias pessoais narradas. rante a evolução da doença e a morte da própria mãe
Foram depois integrados no espectáculo elementos de — o único momento em que um bailarino narra uma
realidade e elementos de representação que ora ex- história pessoal: “[...] Lembro-me de uma noite de
primem dor e nostalgia, ora esperança, a saber: frag- sábado em que os meus / pais estavam a arranjar-se
mentos de experiências e emoções corporizadas e para ir jantar, quando a minha mãe começou a ter / di-
verbalizadas pelos participantes nos workshops (ima- ficuldade em chegar com a mão ao nariz. Bom, / quando
gens em vídeo dos rostos dos participantes e som das cheguei ao hospital, ela já estava com convulsões. Foi
suas vozes gravadas); secções coreográficas que ora então / que me apercebi pela primeira vez que ela ia
traduzem, simbolicamente, os elementos de realidade morrer / Ultimamente tenho visto muito este género /
incorporados pelos bailarinos, ora criam atmosferas de morte. Sabes, aquele género lento, / a pouco e pouco.
mais abstractas. Posso simplesmente continuar / a fingir que é normal,
A peça dura cerca de duas horas e divide-se em duas porque / se tornou normal. Desde que / vi Arnie morrer
partes [2]. A primeira parte, Still, é uma dança meditati- há seis anos, bom, / tem sido sem parar [...]” [4].
va, calma, sobre música original do compositor Kenneth Goldhuber fala e dança em simultâneo. O seu movimen-
Frazelle, interpretada pelo The Lark Quartet, com Bill to ora pontua o ritmo das palavras, ora interpreta-as,
Finizio (percussão), e as letras, constituídas por textos mimando o seu sentido, como quando, ao dizer que a
recolhidos nos “workshops de sobrevivência”, são in- mãe estava careca, o bailarino passa as duas mãos pela
terpretadas pela cantora Odetta. O espectáculo começa cabeça, unindo-as depois por baixo do queixo, ou quan-
com todos os bailarinos da Bill T. Jones/Arnie Zane do pantomima o fingimento, simulando andar descon-
Dance Company em cena: deslocam-se lentamente, traidamente, com os braços caídos ao lado do corpo,
com movimentos suaves e controlados, estabelecendo balouçando, pesados.
ainda uma “tímida” comunicação entre si, quer através No final da primeira parte são retomados os temas co-
do olhar quer do contacto físico. Mais adiante, começa a reográficos dos duetos e do entrelaçamento dos corpos
ouvir-se o canto de Odetta: “Os olhos dela / Os olhos dela uns nos outros. Os bailarinos dão as mãos, desenhando
/ Lembro-me dos olhos dela / Ela chamou-me para den- frisos; estas linhas podem ser quebradas quando um
tro da sala / Percebi nos olhos dela. / O desapontamento bailarino as atravessa correndo ou saltando; há várias
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>> soluções coreográficas, em duetos, de sustentação e o outro é, na dança a intensificação coreográfica, ao


suporte dos corpos uns nos outros. nível do movimento e da comunicação, de uma relação
A encerrar Still os bailarinos dispõem-se escultural- solidária entre as pessoas.
mente, formando uma sólida e firme pirâmide. Na se- Still/Here é uma obra que parte de elementos de reali-
gunda parte, Here, predominam as dinâmicas coreográ- dade, ou seja da expressão de experiências vividas. Es-
ficas enérgicas — porque esta é uma obra voltada para tas experiências são sonora e coreograficamente trans-
o lado da vida. Os textos aludem à esperança e a dança formadas por via das convenções da arte: as vozes dos
reforça a expressão deste sentimento. Os figurinos (de participantes nos “workshops de sobrevivência” foram
Liz Prince) são vermelhos (na primeira parte eram de absorvidas no canto de Odetta, e as descrições gestuais
cores claras); nos ecrãs, são projectadas imagens gi- de intervenções cirúrgicas, as emoções e os sentimen-
gantes de corações a palpitar — cores e elementos vi- tos estão destilados nas formas abstractas e simbólicas
suais que reforçam a atmosfera enérgica desta segunda da coreografia. Não está em Still/Here ninguém visivel-
parte. Uma energia esfuziante invade os corpos dos mente doente ou a morrer. Still/Here é uma obra de um
bailarinos que se unem em círculos, formando cordões grande vigor, é sobre a esperança e, portanto, voltada
ondulantes de onde se soltam solos ou duetos. Os baila- para o lado da vida.
rinos dão as mãos e correm, em roda; largam as mãos Anotei estas observações, na sua maior parte relativas
e, aproveitando a energia da corrida, giram sobre si à composição coreográfica e ao simbolismo do movi-
próprios; ainda de mãos dadas formam linhas rectas e mento, quando assisti à estreia da obra, na Biennale
entrelaçam-se uns nos outros, formando filigranas; no de Ia Danse de Lyon, em Setembro de 1994. A obra foi
fim, formam uma figura em seta, em cuja ponta está bem recebi-da, não tendo suscitado outros comentários
sustido um bailarino. públicos (críticos) para além dos de carácter artístico,
A dança, de novo mais suave e contemplativa, flui sobre que contextualizavam naturalmente a peça numa época
as vozes dos participantes nos workshops, gravadas e particularmente marcada pelas trágicas consequências
processadas num sampler pelo compositor de rock Ver- da SIDA, quer sociais, quer na vida das pessoas directa-
non Reid: “[...] Toda a gente está ligada a alguém. / Diz- mente implicadas. As ciências, os media, as várias lin-
28 -me como lutar. / Diz-me como lutar contra esta doença guagens artísticas (literatura, cinema, teatro,
/ porque vou vencer”. Sobre estas vozes os corpos en- performance e também a dança),
tregam-se a solos mais ensimesmados comunicativos associações e organizações
com o exterior. mobilizavam-se para re-
Perto do final da peça, a esperança é inequivocamente flectir, divulgar, infor-
tematizada. O estímulo é desencadeado pelo próprio mar sobre esta nova re-
nome de uma das participantes nos workshops: Hope alidade [6].
[Esperança], e desenvolve-se, metaforicamente, pela Depois da estreia de Still/
sugestões coreográficas. A voz-off é de Bill T. Jones: “[…] Here na Europa, a Bill T.
Há Esperança. A Esperança está nas / riscas [da bandei- Jones/Arnie Zane Dance
ra americana]. Podes levantar a mão, / Esperança? Diz a Company regressa aos
voz. Diz o teu / nome, Esperança. Que felicidade... temos Estados Unidos da Améri-
/ aqui hoje a deusa da esperança. / Tê-lo-ei planeado? ca para uma digressão
Está bem / Esperança, inclina-te para este lado. Inclina- com a nova criação. Mas
-te / um pouco para o David, está bem. Agora Esperança antes mesmo de o espec-
/ permite-te seres passada de mão em mão. Deixem- táculo aí ser apresentado,
-na... / Desculpa se estou muito poético, hoje. Tenta / Bill T. Jones e a Compa-
outra vez, Esperança. Inclina-te, apenas. Deixa que / o nhia são surpreendidos por
grupo te transporte. Aí vai / ela. Não a deixem cair. Não um texto brutal da crítica
percam a / Esperança. Está bem. Óptimo [...]” [5]. de dança americana, Arlene
Por trás da voz de Jones, ouvem-se risos dos partici- Croce, sob o título Discus-
pantes que, imaginamos, reagem, com júbilo, às situ- sing the undiscussable [7].
ações coreográficas que vão sendo sugeridas pelo Croce começa por anunciar que
coreógrafo. Entretanto, no palco, uma bailarina é sus- não tinha visto o espectáculo e não
tida no ar, conservando o corpo horizontalmente, com o tinha intenções de escrever sobre ele uma
auxílio de dois bailarinos; sucedem-se mais dois duetos recensão crítica porque, argumentava, referindo-
em que um dos elementos do par segura e transporta -se aos participantes: “Não posso criticar alguém por
o outro, alternadamente. Um corpo que suporta e apoia quem sinto pena ou sobre quem sinto não ter espe-
rança”. E, referindo-se ao próprio Bill T. Jones: “Consi- mente Roger Copeland, num texto em que o autor
dera-o literalmente indiscutível — o caso mais extremo analisa pormenorizada e criticamente a ideologia e os
entre os muitos que agora se apresentam desoladora- preconceitos inerentes aos argumentos de Croce: “É
mente ao público não como artistas, mas como vítimas como se ela tivesse por acaso ouvido à distância uma
e mártires” (Croce, 1994:55). Still/Here, um espectáculo conversa sobre Rimbaud, a tivesse confundido com uma
que Croce não chegou sequer a ver, era um exemplo do sobre o Rambo e depois se queixasse prolongadamente
que a crítica de dança designava por “victim art”. da performance de Sylvester Stallone. Mas esse é, claro,
Este texto desencadearia uma série de respostas por o risco que se corre quando Não se Está/Lá” (1995:15).
parte de críticos, teóricos da dança e artistas. Discutiu- Marcia Siegel, crítica de dança norte-americana, num
-se as responsabilidades da crítica, no que diz respeito texto sobre os argumentos de Croce e o seu impacte
às reacções que pode desencadear (cf. Siegel, 1996) junto do público, também destaca o espírito positivo de
– Still/Here foi objecto de vários protestos e boicotes em Still/Here: “O tom da peça, longe de ser sombrio ou in-
várias partes dos Estados Unidos da América. Alguns descritível, evoca uma espécie de positivismo dos anos
artistas também reagiram, reafirmando categorica- 70 [...]. Ninguém na dança está visivelmente doente, de-
mente o seu espaço de liberdade e recusando qualquer formado ou em qualquer outra condição que perturbe
atitude que visasse controlá-los politicamente [8]. Rea- a pessoa mais susceptível. [...] Na realidade, não é o
cendeu-se o debate sobre as fronteiras entre a arte e seu estado de saúde que aborreceu Croce, mas a ideia
a vida, defendendo-se que estas não são definitivas e de Jones nos pedir que prestemos atenção à morte”
são, pelo contrário, objecto de uma análise constante (Siegel, 1996: 61).
por parte dos próprios criadores que reflectem perma- O coreógrafo não passou incólume no meio da contro-
nentemente sobre a sua relação com o mundo e se ca- vérsia que Still/Here suscitou, e, em 1996, quando lhe
pacidade de expressão dos cânones artísticos herdados perguntaram como se sentia em relação à polémica
(cf. Copeland, 1995) [9]. gerada, desabafou: “É difícil continuar a fazer arte”
Independentemente das posições tomadas e da pers- [10].
pectiva sobre a existência de limites entre a represen-
tação e a experiência vivida, o que é brutal no texto Uma resposta a si próprio
de Arlene Croce é que, sem ter visto o espectáculo, a Bill T. Jones não esperava que Still/Here pudesse de-
crítica parta do pressuposto de que nele se apre- sencadear reacções negativas ou que a legitimidade de 29
sentavam pessoas doentes ou a morrer, abordar coreograficamente uma experiência que é co-
o que na realidade não aconte- mum a todos os seres humanos pudesse ser posta em
cia. Pelo contrário. Como diz causa: “Still/Here fala de algo que todos partilhamos.
Randy Martin: “Ironicamente, Não é uma peça que transporte fúria. Pelo contrário.
ela perdeu um trabalho que As pessoas que reagiram negativamente a Still/Here
dançava exuberantemente não entenderam que eu procurava algo que ninguém
contra a morte” (2004: 57). pudesse negar que todos partilhamos. As pessoas ain-
Ou, como observa da não estão seguras de que homens e mulheres são
s a rca st i ca - iguais. As pessoas ainda não estão seguras de que ne-
gros e brancos têm a mesma inteligência. Mas ninguém
pode negar que temos um corpo com uma trajectória,
que nasce, cresce e morre. A mortalidade, que faz de
nós seres vulneráveis, é o que une a experiência hu-
mana, mais do que qualquer outra coisa” [11].
Jones reafirma que as representações da raça e dos
géneros separam e hierarquizam pessoas e grupos. Al-
gumas das suas obras, como se viu anteriormente, são
denunciadoras e críticas em relação às ideologias dis-
criminatórias, propondo, em contraponto, um universo
onde as relações entre as pessoas sejam pautadas por
valores de igualdade e de respeito pelas diferenças e
escolhas individuais. Em Still/Here, foi seu objectivo
abordar temas com forte componente emocional – a
doença, a dor, a mortalidade e a esperança – partilhados
por todos, e que foram tratados não como uma catarse,
mas coreograficamente, ou seja, de um modo reflexivo
e recorrendo a materiais da própria dança e a outros
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>> elementos do espectáculo: “Para Still/Here construí aparência de que as partes do corpo, autónomas umas
muitas frases de movimento e quando as fiz não estava em relação às outras, dialogam entre si de forma lúdi-
a chorar [12]. Estava a fazer movimento que depois pus ca [15]. Os bailarinos atravessam o palco transportando
num contexto como o vídeo, o ambiente. Foi uma experi- colchões insufláveis, objectos banais que Bill T. Jones e
ência formal com material emocional; uma experiência Gregory Bain conceberam evocando a classe de objectos
em que tive de aprender muito. Sou um coreógrafo: para que poderiam ser usados nas construções dadaístas.
mim, as questões colocam-se A criação de Ursonate, em 1995, tem um significado na
sempre em torno da escolha vida e no percurso criativo de Jones. Por um lado, porque,
de movimentos. Em Still/ ao trabalhar a partir da obra de Schwitters, artista fili-
Here queria que os baila- ado numa escola que no início do século quebrou os
rinos mostrassem uma cânones estéticos vigentes, rompendo com o conceito
espécie de solidez, como tradicional de objecto estético, Jones responde de for-
uma arquitectura, e, de- ma indirecta, mas “combativa”, às críticas dos sectores
pois, as emoções seriam conservadores de que foi alvo. Por outro lado, ter como
como o ar que circula à ponto de partida um material abstracto – o poema can-
volta do edifício. Mas o pú- tado –, permitiu ao coreógrafo, seguindo os propósitos
blico lê as coisas de forma de um projecto modernista, centrar-se no movimento
extremamente forte. enquanto matéria, sem motivações
Por isso quero afas- exteriores. Jones con-
tar-me daquilo corda com esta
que é literal, interpretação: “É
que é dema- absolutamente
siado claro, e aí verdade. Fui ca-
talvez o público paz de dar uma
não se sinta tão resposta ao mun-
30 confrontado. do porque dei uma
Veremos” [13]. resposta a mim
No ano seguin- próprio. No meio
te à estreia de da confusão que
Sill/Here, Bill Still/Here gerou,
T. Jones parece p e rg u n t a v a - m e
responder à contro- o que é que havia de
vérsia suscitada por esta fazer, questionava-me so-
obra, que tinha na sua base um bre aquilo em que ainda acredi-
tema existencial e fortemente emocional, com uma co- tava. Resolvi dizer a mim mesmo o que me disseram
reografia mais abstracta, desconstrutivista e apoiada quando o Arnie [Zane] morreu: ‘Ou continuas a tua vida
num poema dadaísta. A dança é Ursonate (1995), sobre com o teu sofrimento e castigo, ou encontras aquilo
um poema de Kurt Schwitters, cantado por Christopher que amas e a que podes dar tudo o que tens.’ Eu amo
Butterfield, entre os ritmos sonoros e os ritmos cinéti- a dança, amo a arte. Então, fui buscar a obra de Kurt
cos produzem sentidos provisórios, desenham arqui- Schwitters, uma espécie de modelo do século XX que
tecturas fugazes, em permanente construção, descons- no seu método e espírito se antecipou ao tempo. Decidi
trução e reconfiguração: as pessoas ora se agrupam, entregar-me àquela peça e ver o que é que descobria.
formando desenhos geométricos, ora se dispersam de Encontrei nela uma protecção, mas foi aí que descobri
forma aparentemente desordenada. muito sobre mim próprio Nesse sentido tem razão. Fui
Para o coreógrafo, construir Ursonate correspondeu a capaz de dar uma resposta ao mundo, porque dei uma
uma necessidade diferente da que sentiu quando criou resposta a mim próprio” [16].
Still/Here: “Fiz esta obra depois de Still/Here, que trata-
va um tema emocional — a vida e a morte —, mas agora
não tenho mais necessidade de o fazer” [14]. Ursonate,
“uma das coreografias mais formais que já fiz”, é uma
peça estruturalmente construída como um jogo: o fra- Excertos de Dança Teatral – Ideias, Experiências,
seamento da dança parece ser o eco dos sons ritmados Acções, de Maria José Fazenda, Celta Editora, Outubro
do poema, os movimentos são fragmentados, criando a 2007, pp. 137-140.
Sobre Bill T. Jones
Last Night on Earth, de Bill T. Jones e Peggy Gillespie,
Pantheon Books, 1995

Leia na OBSCENA #4 o dossier que dedicámos ao coreó-


grafo com textos e depoimentos de André Lepecki,
Helmut Ploebst e Martin Nachbar.

[1]
Na presente descrição e análise de Still/Here incluo excertos, reformulados, das críticas de dança que assinei no Público, suplemento Zoom,
sob os títulos “Corpos em luta” (23 de Setembro, 1994: 17-18) e “A vida na morte anunciada” (5 de Maio, 1995: 10-11)
[2]
A versão realizada para televisão por Bill T. Jones e Gretchen Ben-der tem apenas a duração de 60 minutos. 31
[3]
Excertos da versão portuguesa do texto incluído no programa do espectáculo Still/Here quando da sua
apresentação na Culturgest, em Lisboa, de 11 a 13 de Maio de 1995.
[4]
ibid.
[5]
ibid.
[6]
É também neste contexto que, em Portugal, é publicada uma colectânea de textos sobre a forma como as expressões artísticas es-
tavam a incorporar no seu discurso reflexivo esta nova realidade. O livro intitulado Quando o Mundo nos Cai em Cima: artes no tem-
po da Sida foi organizado pelo crítico de arte Alexandre Melo e editado, em 1994, em Lisboa, pela Associação Abraço, uma organização não
governamental de apoio a pessoas infectadas e afectadas pelo VIH/SIDA.
[7]
Na edição do The New Yorker, de 26 de Dezembro de 1994.
[8]
“Temos o direito de escolher as nossas formas de expressão, de tratar os temas que escolhemos e até mesmo de quebrar as próprias leis
que criámos”, afirma Trisha Brown. “A direita regressa com uma mentalidade cristã e puritana, uma visão exclusiva da arte e uma ideologia que
afirma: vocês não têm sexo, não existem pobres […]”, critica Stephen Petronio. “O artista pode fazer o que entender, só depende da sua escolha.
A nossa história não é uma ficção e eu não quero ser controlada politicamente”, declara Lucinda Childs. Os depoimentos foram recolhidos pela
crítica de dança francesa Marie-Christine Vernay e publicados no Libération (4 de Abril de 1995).
[9]
Este foi também um dos aspectos analisados no capítulo 1, nomeadamente no que diz respeito à instabilidade do conceito de dança e ao valor
expressivo e comunicativo atribuído aos seus materiais.
[10]
Numa conferência de imprensa que Bill T. Jones deu no Festival d’Avignon, em Agosto de 1996, no âmbito do qual a sua companhia dançou.
[11]
Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Londres, publicada no Público, no suplemento Artes e Ócios (13 de Novembro, 1998: 4).
[12]
A expressão “frase de movimento” é frequentemente usada pelos bailarinos e criadores para se referirem ao encadeamento sequencial e à
articulação simultânea das várias unidades de movimento. Bill T. Jones define de forma precisa uma frase de movimento e explica a analogia
linguística implícita: “Uma frase de movimento é uma série de gestos criados por um coreógrafo, usando elementos de tempo e espaço. O coreó-
grafo pensa sobre as frases de movimento da mesma forma que os escritores pensam sobre as palavras e as frases. Onde uma série de palavras
forma uma frase e as frases constroem um parágrafo, as frases de movimento representam os blocos com que se constrói um trabalho de dança”
(Jones, 2000).
[13]
Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Avignon, publicada no Público (9 de Novembro, 1996: 30).
[14]
Explicou Bill T. Jones numa conferência de imprensa que deu em Avignon, França, onde a sua companhia dançou, em Agosto de 1996, no âmbito
do Festival d’Avignon.
[15]
ibid. A expressão “coreografia formal” é frequentemente utilizada por coreógrafos e bailarinos para se referirem a um estilo coreográfico em
que não perpassa intencionalmente a expressão de emoções, ou em que não estão presentes outros elementos de teatralidade, como a narração,
a voz, a construção de personagens ou a gestualidade simbólica.
[16]
Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Londres, publicada no Público, no suplemento Artes e Ócios (13 de Novembro, 1998: 4).

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