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PARTE I

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

1
1.
A Judicialização da Política no Brasil *

Luiz Werneck Vianna

O processo institucional que tem aproximado o Brasil de uma judicialização da


política, levando o Judiciário a exercer controle sobre a vontade do soberano, resulta, de se ter
adotado o modelo de controle abstrato da constitucionalidade das leis com a intermediação de
uma “comunidade de intérpretes” 1, e não, como em outros casos nacionais, da assunção de
novos papéis por parte de antigas instituições.
Na França, o Conselho Constitucional criado pela Carta de 1958, com a qual se inicia
o ciclo da V República, é bem um exemplo de como uma instituição pode se transformar e se
reconstruir a partir de alterações no seu corpo colegiado. Apesar de ter sido criado para
realizar a revisão constitucional das leis, o Conselho permaneceu, durante largo tempo, ao
menos até 1965, como uma instância de sustentação do Executivo. Como guardião das
liberdades e dos direitos fundamentais do cidadão, o nascimento real do Conselho
Constitucional vai ocorrer somente na presidência Roger Frey (1974-82), quando, por
proposta deste, se concede a grupos de parlamentares – 60 deputados ou 60 senadores – o
direito de apelar ao Conselho, admitindo-se, desde então, que a minoria possa questionar a
vontade do soberano expressa pela maioria parlamentar. Ao lado dessa reforma, que, segundo
Dominique Rousseau, representou o big bang do controle da constitucionalidade das leis, o
Conselho Constitucional decide que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, e o preâmbulo da Carta francesa, de 1946, têm valor constitucional e se impõem,
conseqüentemente, ao legislador na mesma medida em que os artigos da Constituição de
19582 . Assim, tem-se que o Conselho Constitucional, figura sem luz própria no momento
fundacional da V República, vai progressivamente assumindo papéis institucionais novos,
configurando, sob a presidência Robert Badinter (1986-95), uma agência efetiva de controle
das leis.

1
Pelo artigo 103 da Constituição Federal de 1988 podem propor a ação de inconstitucionalidade: o Presidente da
República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa, o
Governador de Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe
de âmbito nacional.
2
Dominique Rousseau, Sur le Conseil Constitutionnel: La Doctrine Badinter et la Démocratie, Paris,
Descartes e Cie, 1997.
* Agradeço aos colegas Maria Alice Rezende de Carvalho, Manoel Palacios Cunha Melo e Marcelo Burgos, a
permissão para a apresentação de parte do nosso trabalho comum.

2
No Brasil, o legislador constituinte confiou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o
controle abstrato da constitucionalidade das leis, mediante a provocação da chamada
comunidade de intérpretes da Constituição. E tal importante inovação não pode ser creditada
quer a uma expressão de vontade da sociedade civil organizada, antes, bem mais do que
agora, alheia às possibilidades democráticas da intervenção do Judiciário na arena pública,
quer a uma proposta amadurecida no interior do Poder Judiciário. Contudo, apesar das ações
diretas de inconstitucionalidade (Adins) terem caído como um raio em dia de céu azul no
cenário institucional brasileiro, desde logo elas foram reconhecidas como um instrumento de
significativa importância, não só para a defesa de direitos da cidadania, como também para a
racionalização da administração pública.
Nesta pesquisa, foram compulsadas todas as 1935 Adins ajuizadas até o final do ano
de 1998, atentando-se, em cada uma delas, para o ano de distribuição, os requerentes, os
requeridos, os dispositivos legais questionados, a fundamentação constitucional, o julgamento
quanto a pedidos de liminar e ao mérito da ação. Além da consolidação dessas informações,
originalmente disponíveis no banco de dados do STF, procedeu-se a uma classificação das
Adins, segundo a área de direitos afetada pelas leis supostamente inconstitucionais.
Essa pesquisa foi antecedida pelos trabalhos de Marcus Faro de Castro, Política e
Economia no Judiciário, e de Ariosto Teixeira, A Judicialização da Política no Brasil (1990-
1996)3. Castro estudou as Adins dos partidos políticos entre outubro de 1988 e fevereiro de
1993, comparando-as com as de iniciativa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e das
confederações sindicais. As diferenças encontradas entre o seu trabalho e o que agora se
apresenta decorrem, em parte, do curto período a que se dedicou Política e Economia no
Judiciário e do seu foco, restrito às ações dos partidos que tinham o “propósito de modificar
políticas econômicas adotadas pelo governo federal sob a Constituição de 1988” 4. Assim, a
seleção do material empírico é responsável por importantes discrepâncias nas conclusões
apresentadas pelos dois estudos, como se notará claramente quando forem abordadas as Adins
que se converteram em instrumento de racionalização da administração pública,
principalmente aquelas que, propostas por governadores, visavam impedir a afirmação de
interesses corporativos e de práticas patrimoniais predatórias – certamente um ângulo

3
Marcus Faro de Castro, “Política e Economia no Judiciário: As Ações Diretas de Inconstitucionalidade dos
Partidos Políticos”, Caderno de Ciência Política da UnB, no 7, Brasília, 1993; Ariosto Teixeira, “A
Judicialização da Política no Brasil (1990-1996)”, Dissertação de Mestrado, Brasília, UnB, 1997, mimeo.
4
Marcus Faro de Castro, “Política e Economia no Judiciário...”, op. cit., p.3.

3
inacessível para quem limitou a investigação ao âmbito dos partidos políticos e a questões
econômicas.
Também a pesquisa de Teixeira se restringiu às Adins propostas pelos partidos
políticos, confederações sindicais ou entidades de classe nacionais e OAB, estendendo-se o
período coberto pela análise até 1996. Com essa última pesquisa, o presente estudo
compartilha a percepção de que o STF tem sido muito cuidadoso ao administrar as suas
relações com os demais Poderes, evitando o comportamento que a bibliografia qualifica como
ativismo judicial. No entanto, é de se frisar que, na investigação ora apresentada, indica-se a
tendência, dada a pressão das ações interpostas por intérpretes da sociedade civil, a uma
adesão maior daquela Corte ao novo papel de guardiã dos direitos fundamentais que lhe foi
destinado pelo legislador constituinte.
A democratização do país, cujo desenlace político resultou na eleição de Tancredo
Neves para a presidência da República, em 1984, ainda no contexto de um colégio eleitoral
instituído pelo regime militar, foi o resultado da convergência da ação de duas grandes
matrizes presentes na cultura política brasileira: a que se orienta por uma razão republicana,
valorizadora da esfera pública e capaz de reconhecer no Estado a principal agência de
ordenamento da vida social; e uma outra, de raízes também longevas, que privilegia os
valores da livre iniciativa – concepções distintas de organização social, que, com a
aproximação da sucessão presidencial de 1989, aprofundaram as clivagens no interior do
amplo campo de forças políticas que derrotara o antigo regime e impedira a sua continuidade.
Por várias razões, inclusive aquelas que dizem respeito ao comportamento errático de
alguns atores políticos, o “partido do mercado” foi vitorioso eleitoralmente em 1989, sem que
isso importasse um deslocamento efetivo do campo que lhe era alternativo. A vitória dos
liberais não significou, portanto, a produção de um novo consenso, o que condenava o seu
impulso para a reforma das relações entre o Estado e a sociedade civil, entre a política e a
economia, a perseguir um caminho difícil: o Executivo reformador da perspectiva liberal não
tinha diante de si um parlamento que majoritariamente acolhesse as suas propostas e, menos
ainda, contava com a aprovação de algumas instituições-chave da sociedade civil e da própria
opinião pública. A utilização das medidas provisórias, instrumento concebido com a cláusula
restritiva de somente atender a situações de necessidade e urgência, como prática rotineira e
ordinária terá aí, nessa circunstância de desajuste entre os poderes Executivo e Legislativo,
seu momento de origem.
Os anos 90 trazem, então, a confirmação da supremacia eleitoral do “partido
neoliberal”, agora favorecida por uma importante alteração na composição da maioria
parlamentar, que passa a se alinhar em torno do caminho das reformas empreendidas pelo

4
Executivo, embora, no terreno da sociedade civil, especialmente no dos seus segmentos
organizados, não se tenha verificado uma adesão ao seu projeto.
Ademais, os índices dramáticos de inflação verificados ao longo de todo o período da
transição, qualificados pela falta de horizontes para a expansão econômica, tornavam a
sociedade extremamente vulnerável a soluções de laboratório, como as expressas nos
consecutivos programas de estabilização monetária e de recuperação econômica adotados
pelos governos a partir do Plano Cruzado. Destaque-se que a derrota do Plano Cruzado,
concebido e levado a cabo pelo que se vem chamando, aqui, de uma matriz republicana e
comunitarista, não só desorganizou esse campo, fazendo com que ele perdesse a confiança em
suas próprias possibilidades, como, sobretudo, o levou ao descrédito diante da opinião pública
em geral. Com isso, estava aberto o terreno para o aprofundamento da experimentação
neoliberal, o que implicava a reforma de algumas instituições da Carta de 1988.
Neste sentido, promover o Executivo a um ator capaz de agir de modo oportuno e
eficaz sobre a economia, pressupunha liberar a sua ação dos entraves contidos na
Constituição, inclusive daquilo que a fundamentava em termos de filosofia política e de
projeto de sociedade. A idéia de público devia dar lugar à de privado, a de nação à de
indivíduo, a do primado do direito à de eficiência econômica. O ativismo legislativo passou a
ter como fim uma nova ordenação da sociedade e do mercado, importando, de fato, uma
verdadeira ruptura com a tradição constitucional do país.
O ativismo legislativo do Executivo, por sua vez, encontrou no instituto das medidas
provisórias, criado, como notório, para ser exercido em um contexto de regime
parlamentarista, um dos seus mais poderosos instrumentos de regulação da sociedade,
principalmente em matérias de natureza econômica. Tiveram este objeto, 74 das 147 medidas
provisórias do governo Sarney (50,3%), 85 das 157 do governo Collor (54,1%), 275 das 508
do governo Itamar Franco (54,1%), 1096 das 1971 do primeiro governo Fernando Henrique
Cardoso (55,6%)5. Tal tipo de intervenção legislativa, como comprovado abundantemente na
bibliografia 6, reclama um conhecimento técnico e uma ação cujo tempo seja simultâneo à
produção do fato que se quer regular. 7

5
Octavio Amorim Neto e Paulo Tafner, “O Congresso e as Medidas Provisórias: Delegação, Coordenação e
Conflito”, texto apresentado no seminário O Congresso e as Medidas Provisórias, realizado no Iuperj, em 26 de
abril de 1999, mimeo, p.10.
6
Na bibliografia brasileira, um dos melhores exemplos é o trabalho de José Eduardo Faria, Direito e Economia
na Democratização Brasileira, São Paulo, Malheiros Editores, 1993
7
Segundo Fabiano Santos, entre 1988 e 1994, 85% das leis aprovadas tiveram a sua origem no Poder Executivo
– “Patronagem e Poder de Agenda na Política Brasileira”, Dados, vol.40, no 3, Iuperj, 1997, p. 480.

5
Essa delegação pode significar abdicação do Poder Legislativo diante do Poder
Executivo ou, alternativamente, uma efetiva cooperação entre esses dois Poderes, quando
expressa, de maneira exponencial, a vontade da maioria, em razão do caráter fulminante das
medidas provisórias. Salvo o período Collor, os governos da transição se têm caracterizado
por um presidencialismo de coalizão, importando formas de cooperação do Executivo com os
partidos majoritários representados nos ministérios. Como observam Octavio Amorim e Paulo
Tafner, sob essa modalidade de arranjo político, “ao participarem de coalizões governativas,
os partidos estabelecem mecanismos não institucionais de supervisão e controle sobre a ação
do Executivo, entre os quais o acesso e participação na formulação de políticas de governo” 8.
A percepção corrente quanto à relação entre Executivo e Legislativo, acrescentam esses
autores, ao não atentar para este tipo particular de interação existente entre eles, “tem levado
ao entendimento de que o Executivo, no Brasil, tem agido de modo a emascular o
Legislativo”9. Na conjuntura atual, as medidas provisórias não representariam uma imposição
unilateral da vontade do Executivo, resultando de uma cooperação deste com a maioria
parlamentar, freqüentemente induzida por pressão dos governadores sobre suas bancadas
federais, que as usariam como moeda de troca com o governo federal 10. Daí, como constatam
em seu influente estudo Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, “na prática, o Executivo
tem a grande maioria das matérias que submete ao Congresso aprovada em curto espaço de
tempo”11 .
Por outro lado, a delegação da iniciativa das leis exercitada pela maioria parlamentar
em favor do Executivo tem-se apresentado como um álibi perfeito para a sua atitude de
indiferença quanto à redução das minorias à impotência, no processo legislativo, e quanto à
desregulamentação dos direitos das maiorias reais, na sociedade. Mas é preciso não se tomar a
nuvem por Juno: se há vantagens estratégicas em favor do Executivo, resultantes da própria
ordem constitucional, como no caso do instituto das medidas provisórias, e vantagens, entre
outras, decorrentes de uma federação com baixo poder de autonomia diante da União, elas
podem ser suspensas, caso se perca a cooperação da maioria parlamentar e a base de apoio do
governo federal nos governos estaduais.

8
Octavio Amorim Neto e Paulo Tafner, “O Congresso ...”, op. cit., p.31
9
Idem, p.31
10
Maria Helena de Castro Santos, “Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de Capacidade
Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte”, Dados, vol. 40, no.3, Iuperj, 1997, p.
348.
11
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi, “Mudança Constitucional, Desempenho do Legislativo e
Consolidação Institucional”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, no. 29, 1995, p.197.

6
O cenário pós-constituinte, à exceção do governo Collor, tem sido o da expressão
concentrada da vontade da maioria, particularmente nesses dois governos de Fernando
12
Henrique, quando, pelo uso continuado e abusivo das medidas provisórias , provoca-se a
erosão das formas clássicas de controle parlamentar da produção da lei. Foi esse o contexto
que veio a favorecer a concretização dos partidos e dos sindicatos no exercício de intérpretes
da Constituição, convocando o Poder Judiciário ao desempenho do papel de um tertius capaz
de exercer funções de checks and balances no interior do sistema político, a fim de compensar
a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira de presidencialismo de coalizão 13.
Daí que, por provocação da sociedade civil, principalmente do mundo da opinião organizada
nos partidos e do mundo dos interesses, nos sindicatos, o Poder Judiciário se vem
consolidando “como ator político e importante parceiro no processo decisório” 14 ,
confirmando as hipóteses de Tate e Vallinder sobre a judicialização da política como um
15
recurso das minorias contra as maiorias parlamentares , a que ainda se agrega, no caso
brasileiro, suas atribuições de examinar, por iniciativa do sindicalismo, matérias de política
econômica e de justiça redistributiva.
De todo modo, já importa ressaltar que a mobilização das Adins não tem resultado,
como na França, de uma sinalização positiva por parte da Corte Constitucional aos agentes
legítimos da sociedade civil para a interpretação da Constituição. Menos ainda se assemelha
ao processo de invasão consciente do Poder Judiciário no campo da política, tal como ocorreu
na Itália.
A Gráfico 1 e a Tabela 1 apresentam a evolução anual das Adins, indicando que a
comunidade dos intérpretes descobriu precocemente o recurso a elas.

12

Ver Acir dos Santos Almeida, “A Escolha Constitucional dos Poderes do Presidente: O Caso da Medida
Provisória”, Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, Iuperj, 1998, mimeo. Charles Pessanha, “Medida por
Medida”, Inteligência, no. 5, dez 98 / jan 99, p.38.
13
Sergio Abranches, “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”, Dados, vol.31, no 1,
Iuperj, 1988.
14
Maria Helena Castro Santos, “Governabilidade, Governança e Democracia ....”, op. cit., p.348.
15
C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder (eds), The Global Expansion of Judicial Power, Nova Iorque, New York
University Press, 1995, especialmente os capítulos 2 e 3.

7
Gráfico 1: A Distribuição Anual das Adins
300

200
Número de Adins

100

0
88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Ano de Distribuição

Tabela 1: Distribuição Anual das Adins

Ano Número %
de Adins
1988 11 0,6
1989 159 8,2
1990 255 13,2
1991 233 12,0
1992 166 8,6
1993 162 8,4
1994 198 10,2
1995 210 10,9
1996 159 8,2
1997 205 10,6
1998 177 9,1
Total 1935 100

Vale notar que, em 1990 e 1991, o elevado número de Adins guarda forte relação com
o processo de elaboração das Constituições estaduais, que tiveram muitos de seus dispositivos

8
contestados junto ao Supremo, geralmente por iniciativa de governadores no exercício do seu
papel de intérprete constitucional – circunstância que singulariza o processo de judicialização
da política no Brasil, na medida em que, aqui, tal fenômeno não deriva apenas da ação dos
partidos políticos, das minorias parlamentares e das confederações de interesse.
Sendo assim, o ponto de partida desse trabalho é a sugestão de que o processo de
judicialização da política no Brasil tem sido o resultado de uma progressiva apropriação das
inovações da Carta de 88 por parte da sociedade e de agentes institucionais, inclusive
governadores e procuradores, dois importantes personagens dessa nova arena da política
brasileira16. Desse ponto de vista, suas conclusões não se afastam muito das de Castro e das de
Teixeira, que assinalam uma resistência do Judiciário ao desempenho de papéis que o
arrostem a se tornar um personagem central no processo de judicialização da política,
percepção que também parece encontrar amparo nos trabalhos de Oscar Vilhena Vieira e de
Rogério Bastos Arantes17.
Entretanto, se é certo que a judicialização da política se vem afirmando, entre nós, de
modo contrário a processos clássicos como o americano – no qual ela deriva da vontade dos
próprios fundadores das instituições republicanas – , o italiano e o francês, em que a iniciativa
do Judiciário em limitar o poder político foi determinante, não deixa também de ser
verdadeiro que tal resistência vem perdendo força. Em razão disso, a presente pesquisa
sustenta que a iniciativa dos intérpretes da Constituição, constante no recurso às Adins, estaria
induzindo uma atitude mais favorável por parte do STF no que se refere à assunção de novos
papéis. O Tribunal começa a migrar, silenciosamente, de uma posição de coadjuvante na
produção legislativa do poder soberano, de acordo com os cânones clássicos do
republicanismo jacobino, para uma de ativo guardião da carta constitucional e dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
Segundo o desenho constitucional, a comunidade dos intérpretes é heterogênea,
comportando desde o mundo do interesse e da opinião até os governadores e procuradores da

16
Apesar da sociedade argentina não dispor de instrumentos para o controle abstrato das normas, Catalina
Smulovitz demonstra que lá, a exemplo do que ocorre no Brasil, também está em curso o fenômeno da
judicialização da política, o que inclusive levaria o Poder Executivo a tomar uma série de iniciativas para
constranger o espaço de atuação do Judiciário, entre as quais a promulgação de decretos extraordinários (em
caráter de urgência), com o intuito de reverter decisões judiciais ou de limitar a capacidade de o Poder Judiciário
reconhecer direitos adquiridos. Além disso, Smulovitz considera que o aumento do número de componentes da
Suprema Corte foi uma das medidas tomadas pelo Executivo para inibir a capacidade de resposta do Judiciário.
Catalina Smulovitz, “The Discovery of Law. Political Consequences in the Argentine Case”, texto apresentado na
conferência New Challenges for the Rule of Law: Lawyers, Internationalization, and the Social Construction of
Legal Rules, California, 1997, pp. 8 – 11, mimeo.
17
Oscar Vilhena Vieira, “Redescobrindo a Constituição: Um Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de
Reforma”, Tese de Doutorado, USP, 1998, mimeo. Rogério Bastos Arantes, Judiciário e Política no Brasil, São
Paulo, Idesp, Sumaré, 1997.

9
República. Dessa natureza diversa dos atores, resulta uma motivação bastante variada para a
proposição das Adins, cujo caráter cobre desde a defesa do mais restrito e particular interesse
às ações de vocação universalista. Tal variação decorre, por certo, das suas diversas
identidades, embora, como sustenta Gilmar Ferreira Mendes, todos os membros da
comunidade de intérpretes devam ser entendidos, em princípio, como "advogados da
Constituição" não precisando haver, necessariamente, relação de pertinência entre o objeto da
ação de inconstitucionalidade e a natureza da sua representação de interesses 18. É a
jurisprudência do STF, porém, que, ao exigir tal relação de pertinência, vem obstando a esfera
dos interesses a participar de ações de inconstitucionalidade dotadas de um objeto
universalista, o que explicaria o fato, por exemplo, de o mundo do interesse não ser propositor
de Adins relativas à competição eleitoral ou referentes a procedimentos ou temas de alcance
geral, salvo em casos excepcionais.
De um ponto de vista mais geral, afigura-se que, no caso brasileiro, a convergência
entre os sistemas da common law e da civil law – processo de alcance universal, na
19
apreciação clássica de Mauro Cappelletti – estaria encontrando nos partidos e sindicatos,
assim como nos movimentos atuais de democratização do acesso à Justiça, mais um elemento
de propulsão para uma maior proximidade com as instituições e práticas próprias à cultura
jurídico-política anglo-saxã. Nesse sentido, procurou-se averiguar as repercussões da
descoberta do Poder Judiciário pelos partidos de esquerda que, no caso, estariam
surpreendentemente, mais próximos do argumento tocquevilleano quanto à necessidade de
limitar a vontade da maioria, do que da vontade geral rousseauneana, marca constitutiva do
que tem sido a cultura política daquelas organizações, aqui e alhures.
Tratou-se, em suma, de investigar as condições em que um personagem central à
democracia representativa – os partidos políticos – procura, fora do seu território de origem –
o espaço aberto da sociedade civil –, a defesa dos seus representados, como mais um recurso
para enfrentar o ativismo legislativo do Executivo. Além disso, em uma outra direção, teve-se
em vista esclarecer o papel desempenhado pelas Adins na democratização da Federação e da
administração pública.

O Duplo Caráter da Judicialização da Política no Brasil

18
Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional: o Controle Abstrato de Normas no Brasil e na
Alemanha, Rio de Janeiro, Saraiva, 1996, pp. 133 e segs.
19
Mauro Capelletti, Juízes Legisladores?, ed. cit., especialmente a parte IV. Sobre o mesmo tema, ver também
John Henry Merryman, The Civil Law Tradition, Stanford, Stanford University Press, 1985, especialmente o
cap. 20.

10
O Gráfico 2 apresenta a distribuição das Adins segundo os seus autores, revelando que
as associações de trabalhadores, de profissionais e de empresários representam, juntas, o
segmento que mais tem postulado Adins, em uma tendência que se afirma, sobretudo, nos
últimos anos.

Gráfico 2: Distribuição das Adins segundo o Autor

600

500

400

300
Número de Ações

200

100

0
Associações Procuradores OAB
Governadores Partidos Outros

Autor

A seqüência dos Gráficos 3, 4, 5 e 6 fornece uma perspectiva comparada da


distribuição anual das Adins segundo as principais categorias de autores: os governadores, o
Ministério Público, os partidos políticos e as organizações de trabalhadores, de profissionais e
de empresários. Os números e percentuais indicativos da produção de ações por diferentes
intérpretes da Constituição, entre 1988 e 1998, encontram-se reunidos na Tabela 2.

11
Gráfico 3 – Adins dos Governadores: Evolução Anual
120

100

80

Número de Adins
60

40

20

0
88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Ano de Distribuição

Gráfico 4 – Adins da Procuradoria: Evolução Anual


120
110
100
90
80
Número de Adins

70
60
50
40
30
20
10
0
89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Ano de Distribuição

12
Gráfico 5 – Adins dos Partidos: Evolução Anual
120
110
100
90
80

Número de Adins
70
60
50
40
30
20
10
0
88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Ano de Distribuição

Gráfico 6 – Adins das Organizações de Trabalhadores,


Profissionais e de Empresários: Evolução Anual
120

100

80
Número de Adins

60

40

20

0
88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Ano de Distribuição

Conforme se observa nos Gráficos 3 e 4, há um declínio relativo das Adins de autoria


de governadores e de procuradores se contrastadas com o avanço continuado das originárias
do mundo do interesse e dos partidos políticos. Ainda assim, governadores e Ministério
Público são responsáveis por 49,9% das Adins propostas entre 1988 e 1998, índice do qual se

13
aproxima o total das ações postuladas, no mesmo período, pelas associações nacionais
patronais e de trabalhadores e pelos partidos políticos (42,1%), revelando a progressiva
importância que vêm assumindo a sociedade civil na comunidade dos intérpretes da
Constituição. Vale notar, ainda, que, dentre os partidos, são os de esquerda os mais ativos
proponentes de Adins, cumprindo, nesse caso, o papel clássico das minorias parlamentares no
processo de judicialização da política.
Os Gráficos 5 e 6 ilustram, então, o movimento ascendente do número de Adins
propostas por partidos e associações, em uma clara indicação de que esses autores têm
procurado instituir no Judiciário uma arena alternativa à democracia representativa, tal como
ocorre em outros contextos nacionais onde a judicialização da política se encontra em curso. A
especificidade desse processo no caso brasileiro se verifica, pois, no elevado número de ações
postuladas por procuradores e governadores, o que decorre do papel desempenhado pelas
Adins na racionalização da administração pública, como se verá mais à frente.

Tabela 2: Distribuição Anual das Adins por Autores (1988 - 1998)

1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 Total
Governadores 2 58 100 57 47 40 32 61 26 59 25 507
18,2% 36,5% 39,2% 24,5% 28,3% 24,7% 16,2% 29,0% 16,4% 28,8% 14,1% 26,2%

Procuradores 22 64 67 63 49 69 47 12 40 26 459
13,8% 25,1% 28,8% 38,0% 30,2% 34,8% 22,4% 7,5% 19,5% 14,7% 23,7%

Associações de 1 12 24 39 14 29 33 27 38 31 48 296
Trabalhadores 9,1% 7,5% 9,4% 16,7% 8,4% 17,9% 16,7% 12,9% 23,9% 15,1% 27,1% 15,3%

Partidos de 1 9 20 32 17 10 20 41 34 35 31 250
Esquerda 9,1% 5,7% 7,8% 13,7% 10,2% 6,2% 10,1% 19,5% 21,4% 17,1% 17,5% 12,9%

Partidos de 1 2 11 7 9 2 6 2 4 3 7 54
Centro 9,1% 1,3% 4,3% 3,0% 5,4% 1,2% 3,0% 1,0% 2,5% 1,5% 4,0% 2,8%

Partidos de 4 2 3 4 10 7 4 34
Direita 2,5% 1,2% 1,5% 1,9% 6,3% 3,4% 2,3% 1,8%

Associações de 5 29 18 13 3 17 28 17 18 9 22 179
Empresários 45,5% 18,2% 7,1% 5,6% 1,8% 10,5% 14,1% 8,1% 11,3% 4,4% 12,4% 9,3%

Ordem dos 1 5 9 3 4 7 3 2 8 12 9 63
Adv. do Brasil 9,1% 3,1% 3,5% 1,3% 2,4% 4,3% 1,5% 1,0% 5,0% 5,9% 5,1% 3,3%

Ass. Magistra- 7 8 6 4 3 2 4 3 1 1 39
dos Brasileiros 4,4% 3,1% 2,6% 2,4% 1,9% 1,0% 1,9% 1,9% 0,5% 0,6% 2,0%

Legislativos 1 1 7 4 1 1 4 2 2 1 24
Estaduais 0,6% 0,4% 3,0% 2,4% 0,6% 0,5% 1,9% 1,3% 1,0% 0,6% 1,2%

Não válidos 4 2 1 1 1 1 4 2 3 19
2,5% 0,9% 0,6% 0,6% 0,5% 0,5% 2,5% 1,0% 1,7% 1,0%

Outros 6 1 4 11
3,8% 0,6% 2,0% 0,6%

Total 11 159 255 233 166 162 198 210 159 205 177 1935
100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

14
A Tabela 3 reúne os dados relativos à origem do diploma legal contestado e os autores
das ações de inconstitucionalidade, ilustrados, a seguir, pelos Gráficos 7, 8, 9, 10 e 11.
Observa-se, nesse caso, uma importante clivagem: o espaço onde procuradores e
governadores exercem o papel de “advogados da Constituição” é, fundamentalmente, o de
âmbito estadual, atingindo os índices de 78,9% e de 90,6% , respectivamente. O dos partidos
é o inverso, com 73,7% de contestação de diplomas legais originários do âmbito federal,
índice que, no caso dos partidos de esquerda, se eleva para 80,4%. No caso do mundo dos
interesses, verifica-se uma relação mais equilibrada: 53,9% dos diplomas contestados são de
âmbito federal.
A Tabela 3 revela ainda que as normas produzidas pelo Executivo Federal são objeto
de contestação por parte, principalmente, dos partidos de esquerda e das associações
empresariais e de trabalhadores, cujas ações, somadas, totalizam 263 Adins, correspondendo a
80% do total de contestações a diplomas legais com aquela origem.
Os intérpretes da Constituição oriundos do mundo jurídico –– a Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) –– atuam de
modo mais expressivo contestando normas estaduais: 57,2% das ações da OAB e 87,2% das
Adins postuladas pela AMB.

15
Tabela 3: Distribuição das Adins segundo o Autor e
a Origem do Diploma Legal Contestado *

Executivo Executivo Judiciário Judiciário Legislativo Legislativo Total


Estadual Federal Estadual e Federal Estadual Federal
Tribunais *** ***
Regionais**
Governadores 4 11 5 2 450 35 507
5,8% 3,4% 3,9% 6,3% 44,3% 9,8% 26,3%
Procuradoria 15 16 78 13 269 66 457
21,7% 4,9% 60,5% 40,6% 26,5% 18,5% 23,7%
Associações de 18 76 28 5 93 76 296
Trabalhadores 26,1% 23,2% 21,7% 15,6% 9,2% 21,3% 15,3%
Partidos de Esquerda 7 132 1 3 41 66 250
10,1% 40,4% 0,8% 9,4% 4,0% 18,5% 13,0%
Partidos de Centro 7 8 2 6 22 23 68
10,1% 2,4% 1,6% 18,8% 2,2% 6,4% 3,5%
Partidos de Direita 2 2 1 7 8 20
2,9% 0,6% 3,1% 0,7% 2,2% 1,0%
Organizações 12 55 50 60 177
Empresariais 17,4% 16,8% 4,9% 16,8% 9,2%
Ordem dos Advogados 1 17 10 25 10 63
do Brasil 1,4% 5,2% 7,8% 2,5% 2,8% 3,3%
Associação dos Magis- 2 2 32 3 39
trados Brasileiros 0,6% 1,6% 3,1% 0,8% 2,0%
Legislativos Estaduais 2 5 2 10 5 24
2,9% 1,5% 1,6% 1,0% 1,4% 1,2%
Não válido 2 1 2 10 3 18
0,6% 0,8% 6,3% 1,0% 0,8% 0,9%
Outros 1 1 7 2 11
1,4% 0,3% 0,7% 0,6% 0,6%
Total 69 327 129 32 1016 357 1930
100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
* Cinco Adins não foram incluídas nesta tabela, por falta de dados. Deve-se observar também que 38 ações de
inconstitucionalidade por omissão integram os dados apresentados, sendo que, nesses casos, o diploma legal ao
qual a Adin faz referência não está sendo propriamente contestado, reclamando-se quer a sua omissão em face de
preceito constitucional que deveria abrigar, quer a efetivação de algum dispositivo seu que demanda
regulamentação.
**Os diplomas legais originários dos Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Eleitorais e
Tribunais Regionais Federais estão agregados juntamente com o dos Tribunais de Justiça dos estados, na medida
em que suas resoluções não têm alcance nacional, correspondendo a unidades estaduais ou regiões.
***Nas categorias Legislativo Estadual e Legislativo Federal estão compreendidos, respectivamente, os
Tribunais de Contas dos estados e o Tribunal de Contas da União.

16
Gráfico 7 – Adins segundo a Origem do Diploma Contestado

Executivo Estadual
3,6%
Legislativo Federal
Executivo Federal
18,5%
16,9%

Judiciário Estadual
6,7%

Judiciário Federal
1,7%

Legislativo Estadual
52,6%

Gráfico 8 – Adins Requeridas por Governadores,


segundo a Origem do Diploma Contestado

Leg. Fed.
6,9%
88,8% Exec. Est.

Leg. Est. Exec. Fed.

Jud. Est.

Jud. Fed.

17
Gráfico 9 – Adins Requeridas por Procuradores,
segundo a Origem do Diploma Contestado

Legislativo Federal
Legislativo Estadual
14,4%
58,9%

Executivo Estadual

3,3%
Executivo Federal

3,5%
Judiciário Estadual
Judiciário Federal 17,1%
2,8%

Gráfico 10 – Adins Requeridas pelos Partidos,


segundo a Origem do Diploma Contestado

Executivo Estadual

4,7%
Legislativo Federal

28,7%

Executivo Federal

42,0%

Legislativo Estadual

20,7% Judiciário Estadual

,9%
Judiciário Federal

3,0%

18
Gráfico 11 – Adins Requeridas por Associações de Interesse,
segundo a Origem do Diploma Contestado

Executivo Estadual

5,9%
Legislativo Federal

27,1%
Executivo Federal

26,0%

Judiciário Estadual

5,9%
Legislativo Estadual Judiciário Federal
34,2% 1,0%

Com a intenção de classificar os diplomas contestados, tendo-se em vista o objeto da


norma, foram produzidas sete categorias, abrangendo diferentes instâncias da vida social:
(a) administração pública - reuniu a legislação que versa sobre carreiras, remuneração e
organização do serviço público, no âmbito dos três Poderes; também foram incluídos
nessa categoria os casos relativos à divisão de unidades político-administrativas, como a
criação de municípios e regiões administrativas, e conflitos de atribuições entre os
Poderes quando referentes a procedimentos de administração pública;
(b) política social - incluiu as normas que tratam dos sistemas de seguridade social não
afetos ao funcionalismo público, bem como a legislação reguladora do acesso a diferentes
benefícios sociais;
(c) regulação econômica - reuniu as normas de regulamentação da economia afetas à
política cambial, monetária, salarial e de preços, com exceção das medidas de natureza
tributária, tendo sido incluídas nesta categoria as normas concernentes aos programas de
privatização, reforma agrária e direito de greve;
(d) política tributária - reuniu as normas que tratam da definição da base de arrecadação e
da alíquota dos impostos, também tendo sido classificadas nessa categoria aquelas
referentes à concessão de incentivos fiscais e à regulação das zonas de tributação
especial;
(e) regulação da sociedade civil - incluiu as normas que ordenam as relações entre
particulares, a exemplo da regulamentação da cobrança de mensalidades escolares, as
19
relativas às corporações profissionais, tendo sido também classificadas nessa categoria a
produção legislativa referente ao meio ambiente e às populações indígenas;
(f) competição política - reuniu as normas relativas às eleições e aos partidos políticos;
(g) relações de trabalho - incluiu as normas que regulam o mundo trabalho, tais como
direitos do trabalhador e organização sindical, com a exceção das relativas às políticas
salariais e das afetas ao exercício do direito de greve.

A Tabela 4 apresenta o número de Adins segundo as classes temáticas acima definidas e a


origem da norma contestada, podendo-se constatar que 63,3% das Adins dizem respeito à
administração pública. Tem-se, então, que, na prática brasileira, o controle de
constitucionalidade das leis se acha predominantemente relacionado aos temas da construção
e da organização das funções da máquina estatal e do seu funcionalismo, o que, do ponto de
vista quantitativo, tem significado uma vinculação maior desse instrumento às questões do
Estado do que às da sociedade civil e dos direitos de indivíduos e grupos sociais. No contexto
institucional das Adins, a forte preponderância do tema da administração pública está
associada à reforma do Estado e à mudança de seu padrão de relacionamento com a sociedade
civil, processo que se torna mais visível no âmbito dos estados. Das Adins que se referem à
administração pública (1220), cerca de 80% (968) questionam diplomas legais de âmbito
estadual: 752 relativas aos Legislativos estaduais (o que equivale a nada menos que 41,5% do
total das Adins), 47 a normas geradas pelos Executivos estaduais (3,8%) e 105, pelos
Judiciários estaduais e Tribunais Regionais (9,8%).

Tabela 4: Distribuição das Adins, segundo a Origem da Norma e a Classe Temática *

Adm. Política Política Política Reg. Soc. Comp. Rel. Total


Pública Social Econômica Tributária Civil Política Trabalhistas
Executivo 43 2 1 14 9 69
Estadual 3,5% 2,5% 0,7% 6,7% 5,6% 3,6%
Executivo 98 24 69 57 44 1 32 325
Federal 8,1% 30,4% 48,9% 27,4% 27,3% 1,4% 68,1% 16,9%
Jud.Estadual e 119 5 1 2 1 128
Trib. Reg. 9,8% 6,3% 0,5% 1,2% 1,4% 6,7%
Judiciário 18 1 1 2 10 32
Federal 1,5% 1,3% 0,7% 1,2% 13,9% 1,7%
Legislativo 806 30 16 82 67 11 2 1014
Estadual 66,3% 38,0% 11,3% 39,4% 41,6% 15,3% 4,3% 52,7%
Legislativo 131 17 54 54 37 49 13 355
Federal 10,8% 21,5% 38,3% 26,0% 23,0% 68,1% 27,7% 18,5%
Total 1215 79 141 208 161 72 47 1923
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
* Doze Adins não foram incluídas nesta classificação

Assim é que, dada a natureza da modernização capitalista brasileira, resultado de um


esforço liderado pelo Estado, enlaçado à sociedade civil pela malha da estrutura corporativa, a

20
noção de direitos tornou-se mais prisioneira da concepção de funcionário do que da de
cidadão. Decerto que a ausência de direitos de cidadania para a maior parte da população
remonta a raízes profundas, em razão do peso histórico da escravidão, das relações seculares
de dependência pessoal impostas pelo estatuto do exclusivo agrário e da natural assimetria
típica de processos de construção nacional em que a formação do Estado é anterior à do povo.
Apor sobre essa base, como se fez a partir da Revolução de 30, um Estado convertido em
instrumento da industrialização e da incorporação dos trabalhadores urbanos ao mundo dos
direitos importou não somente uma estatalização da cidadania nos sindicatos corporativos,
como também da economia, que se torna o objeto principal da ação do Estado, estratega em
geral dos rumos da sociedade e único intérprete da sua vontade geral.
Nesse contexto de capitalismo autoritário, a administração pública, por definição, não
se esgota na prestação de serviços à sociedade, cuja economia, mercado de trabalho, vida
associativa, profissões, se encontram articulados, corporativamente, a um Estado ampliado
que a tudo ordena e superintende. A administração pública lhe é, portanto, essencial, pois é
dela que depende em seus menores movimentos. O administrador e os seus atos não são
extrínsecos à formação da vontade dos agentes sociais, que os têm, ao revés, como o seu
ponto de partida necessário. A figura central dessa engenharia reclama, por isso, uma
composição duradoura, constitucionalizando-se o contorno preciso de sua identidade, regras
de hierarquia, carreira, salários e procedimentos funcionais, a fim de que o seu
comportamento corresponda a critérios de racionalidade – burocracia de moldes hegelianos a
quem cabe zelar por um mundo que, além de destituído da capacidade de se elevar ao plano
do interesse geral, se encontraria permanentemente ameaçado pela colisão errática dos seus
múltiplos fragmentos, orientados apenas pelo interesse próprio.
O Estado e a sua organização interna são, assim, presentes no pacto social na medida
em que a própria animação da sociedade civil e o seu projeto de devir emanam dele. Daí
porque a institucionalização do Direito Administrativo no corpo da Constituição não veio a
exprimir a preservação de uma anacrônica prática patrimonial, e sim a natureza do projeto de
modernização autoritária vencedor na Revolução de 30, tendo início, não por acaso, com a
Carta de 1934, que já inclui um título dedicado aos funcionários públicos – arts. 54 e 168 a
173. Desde então, e mesmo sob a democratização do país, o Direito Administrativo tem
alargado a sua presença nos sucessivos textos constitucionais, chegando a contar, na Carta de
1988, com 65 dispositivos sobre a administração pública, somando, agora, 78, com os 13
introduzidos pelas Emendas Constitucionais no 18 e no 19 de 1998, um folgado recorde
mundial, na caracterização de Diogo de Figueiredo Moreira Neto20.
20
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Apontamentos sobre a Reforma Administrativa, Rio de Janeiro,
Renovar, 1999, p. 11.

21
A constitucionalização do Direito Administrativo traz consigo o resultado da
federalização da administração pública, obrigando à homogeneidade as normas de âmbito
federal e estadual, o que, especialmente em face do instituto do controle abstrato das leis,
acaba por converte as controvérsias em matéria de administração pública em questões
constitucionais. Daí que o STF como que incorpora às suas funções a de um órgão superior
da administração pública, racionalizando e homogeneizando as máquinas públicas estaduais,
segundo os novos princípios constitucionais, como estivesse desempenhando o papel de um
Conselho de Estado à francesa, um colégio altamente qualificado que delineia, em última
instância, a formatação institucional do Estado. As questões estaduais, portanto, que
comparecem ao escrutínio do controle constitucional das leis, se diferenciam, nesse sentido,
das controvérsias clássicas ao tema da federação, tal como se faz presente no contexto da
Suprema Corte norte-americana. Carp e Stidham, em Judicial Process in America21 acentuam
que, historicamente, a afirmação da Suprema Corte se fez em meio a uma acirrada
controvérsia acerca dos limites que se deveriam impor à intervenção do Judiciário Federal nos
negócios internos dos estados, enquanto, aqui, em um sentido claramente oposto, o judicial
review vem traduzindo, na maioria dos casos, uma motivação de realizar, no plano estadual, a
vontade do soberano que se afirmou no plano federal.
Desse modo, se na sua arquitetura de origem, de acordo com o primeiro constituinte
republicano de 1891, o STF foi criado para cumprir o papel de corte constitucional de tipo
americano e de corte de cassação, tendo incorporado, pelo exercício do controle em abstrato
da norma, as funções de tribunal constitucional de tipo europeu continental, agora, sob a
provocação das Adins, vem fazendo as vezes, como se sugeriu acima, de um órgão superior
da administração pública. O comprometimento da agenda das Adins com o tema da
administração pública, na escala em que se descreveu, provavelmente repercute
negativamente sobre as possibilidades de o STF se identificar mais claramente com a filosofia
da Carta de 1988, cuja intenção era a de favorecer a efetivação dos seus grandes princípios
programáticos, e não a de criar mais uma instância para as controvérsias das diferentes
corporações sobre questões de Direito Administrativo.
Ainda observando a Tabela 4, nota-se que entre as demais classes temáticas das
normas, diferentemente do que ocorre com a categoria administração pública, prevalecem as
Adins que contestam diplomas de origem federal, especialmente entre aquelas classificadas
como relações de trabalho, regulação da economia, competição política e política tributária.

21
Robert Carp e Ronald Stidham, Judicial Process in America, Congressional Quarterly, 1995. (3a edição).

22
Esses dados não supreendem, dado o monopólio normativo da União sobre os aspectos
centrais da vida social brasileira, apesar da natureza federativa do pacto republicano.
Os Gráficos 12 e 13, a seguir, ilustram a distribuição das Adins segundo a origem e o
objeto da norma contestada.

Gráfico 12: Adins de Âmbito Estadual, segundo o Objeto da Norma Contestada

Política Social

Política Econômica

Política Tributária

8,0% Reg. Soc. Civil

Comp. Política
6,4%

Rel. Trabalhistas

79,9%

Admin. Pública

Gráfico 13: Adins de Âmbito Federal, segundo o Objeto da Norma Contestada

Reg. Soc. Civil


Política Tributária
11,7%
15,6% Comp. Política
8,4%

Rel.Trabalho
6,3%
Pol. Econ. 17,4%

34,7%
Política Social

Admin. Pública

A Tabela 5 e os Gráficos 14, 15, 16 e 17 apresentam a distribuição das Adins segundo


o autor e as categorias temáticas em que foram classificados os objetos dos diplomas legais
contestados. Salvo as organizações empresariais (9,5%), todas as demais classes de autores
manifestam muito interesse na regulação da administração pública, que, no caso de
23
governadores e procuradores, torna-se claramente dominante (82,4% e 82,5%
respectivamente). De fato, governadores e procuradores se apresentam como intérpretes
especializados no tema da administração pública, sendo de sua autoria, e referentes a esta
classe de diploma legal, 41,3% do total de Adins. Não se pode entender, conseqüentemente, o
processo de judicialização da política no Brasil sem levar em conta a provocação efetivada
pelo Poder Executivo e pelo Ministério Público. Daí o caráter dúplice da judicialização da
política no Brasil, que, de um lado, apresenta um perfil que se identifica com o produzido pela
bibliografia sobre o assunto – as minorias parlamentares demandam a intervenção do
Judiciário contra a vontade da maioria – mas, de outro, se afasta dele, singularizando-se pela
ação dos Executivos estaduais e da Procuradoria da República contra a representação
parlamentar, em sua esmagadora maioria de âmbito estadual, em uma indicação de que não
apenas a sociedade, mas também a própria Federação, se encontra desajustada da vontade do
soberano e tem reclamado a presença de um tertius.
Tabela 5: Distribuição das Adins, segundo o Autor e a Classe Temática *

Adm. Política Política Política Reg. Soc. Comp. Rel. Total


Pública Social Econômica Tributária Civil Política Trabalhistas
Governadores 415 14 23 37 12 6 507
34,1% 17,7% 16,3% 17,7% 7,4% 8,3% 26,3%
Procuradores 378 9 6 26 33 4 2 458
31,1% 11,4% 4,3% 12,4% 20,2% 5,6% 4,3% 23,8%
Associação de 199 17 24 36 29 3 26 334
Trabalhadores 16,4% 21,5% 17,0% 17,2% 17,8% 4,2% 55,3% 17,3%
Partidos de 96 22 54 23 21 20 12 248
Esquerda 7,9% 27,8% 38,3% 11,0% 12,9% 27,8% 25,5% 12,9%
Partidos de 33 2 3 5 1 22 2 68
Centro 2,7% 2,5% 2,1% 2,4% 0,6% 30,6% 4,3% 3,5%
Partidos de 8 2 1 1 8 20
Direita 0,7% 2,5% 0,7% 0,6% 11,1% 1,0%
Organizações de 17 12 21 72 51 2 4 179
Empresariais 1,4% 15,2% 14,9% 34,4% 31,3% 2,8% 8,5% 9,3%
Outros 71 1 9 10 15 7 1 114
5,8% 1,3% 6,4% 4,8% 9,2% 9,7% 2,1% 5,9%
Total 1217 79 141 209 163 72 47 1928
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
* Sete Adins não foram incluídas na classificação.

Gráfico 14: Adins de Governadores e Objeto do Diploma Legal Contestado

24
Política Econômica

Política Tributária

Política Social
Reg. Soc. Civil

Comp. Política

81,9%

Admin. Pública

Gráfico 15: Adins de Procuradores e Objeto do Diploma Legal Contestado

Política Social

Política Econômica

Política Tributária

Reg. Soc. Civil

Comp. Política
7,2%

Rel. Trabalhistas

82,5%

Admin. Pública

Gráfico 16: Adins de Partidos Políticos e Objeto do Diploma Legal Contestado

25
Política Tributária Reg. Soc. Civil

6,8%
8,3%
Comp. Política

Pol.Econômica 14,9%

17,3%
Rel.Trabalho

7,7%
Política Social

40,8%

Admin. Pública

Gráfico 17: Adins de Associações de Trabalhadores e Empresários


e Objeto do Diploma Legal Contestado

Política Tributária
Reg. Soc. Civil

21,1%
15,6%
Comp. Política

Pol.Econ. Rel.Trabalho
8,8%

Pol. Social

42,1%

Admin. Pública

26

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