Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
NOVO HAMBURGO
2016
UNIVERSIDADE FEEVALE
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profa. Dra. Marinês Andrea Kunz
(Orientadora)
________________________________________
Prof. Dr. Ernani Mügge (Universidade Feevale)
________________________________________
Profa. Dra. Roswithia Weber (Universidade Feevale)
Dedico este trabalho aos meus pais, que
me ensinaram a ver o outro como um
igual a mim.
AGRADECIMENTOS
O espaço urbano brasileiro contemporâneo tem sido tema de várias obras literárias
que representam uma realidade, em que os habitantes tiveram que se acostumar
com os problemas urbanísticos, sociais, políticos e de violência. Como a arte é
reflexo daquilo que está acontecendo na realidade, justifica-se o presente trabalho,
pois a partir do problema de como a favela carioca está representada na obra
Inferno, de Patrícia Melo, faz-se necessário refletir sobre a sociedade e o espaço
urbano no Brasil. A partir disso, pretende-se analisar a história do surgimento das
favelas no Rio de Janeiro desde o final da Monarquia, bem como estudar o conceito
de “representação”, para, desse modo, analisar esse espaço urbano – e sua
dinamicidade – retratado na obra Inferno. A metodologia é de cunho bibliográfico,
consistindo no estudo de obras teóricas sobre a história da favela, sobre o Rio de
Janeiro, sobre o conceito de “representação” e mímese, bem como pesquisa acerca
da violência urbana e, por fim, da análise da obra literária Inferno, de Patrícia Melo,
com base em estudos sobre a teoria da literatura. Quanto aos resultados do
trabalho, o que se pode afirmar é que a obra literária se aproxima muito da
realidade, pois muitos lugares apresentados existem na cidade do Rio de Janeiro,
deixando a história verossímil. O que acontece ao longo da história e o modo como
a diegese é organizada refletem a realidade: um espaço urbano esquecido pelas
autoridades; a polícia sobe o morro apenas para cobrar sua propina e quando
recebe ordens superiores durante as constantes lutas contra o tráfico, ou seja, um
lugar relegado ao descaso, como sempre foi desde o final do século XIX, e que
recebeu pessoas que estavam dispostas a trabalhar, mas também foi antro e
esconderijo para assaltantes e traficantes.
Palavras-chave: Favela. Representação. Mímese. Literatura. Teoria da Literatura.
ABSTRACT
The Brazilian contemporary urban space has been the theme of much literary work
representing a reality in which its inhabitants have had to live and adapt to urban,
social, political and violence-related problems. The fact that art is a reflex of reality
justifies the present study. We start by considering how the slums in Rio de Janeiro
are represented in the book Inferno, by Patricia Melo. We then reflect upon the
society and the urban spaces in Brazil. We analyze how the slums in Rio de Janeiro
have emerged since the end of monarchy in Brazil. We also study the concept of
“representation” in the urban space – and its dynamics – as portrayed in Inferno. The
methodology adopted consists of reading solid bibliography about the history of the
slums, about Rio de Janeiro, about the concept of “representation” and mimesis.
Within the urban violence scope, we analyze Inferno, by Patricia Melo. As to the
results obtained, it is possible to state that the book is very similar to reality, because
many spaces presented in it do exist in Rio de Janeiro. This makes the fictional story
highly verisimilar. What happens during the story and the way the diegesis is
organized reflects reality: an urban space forgotten by the authorities and the police
climbing up the slums only to get their share and eventually combating drug dealers;
in a nutshell, a space that is totally forgotten, as it has always been since the end of
the 19th century and that has hosted people who were looking for work, but also the
slum that was the den and hiding place to thieves and drug lords.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 81
8
INTRODUÇÃO
A violência discutida por Darcy Ribeiro, Alba Zaluar e outros teóricos também
está presente na Arte como um todo, e, mais especificamente, na literatura. Ao
mesmo tempo em que a sociedade percebe que há determinados problemas sociais,
a arte reflete e é reflexo daquilo que está acontecendo na realidade, indiferente do
tempo. Ao longo da história do Brasil, a literatura refletiu na ficção aspectos que
estavam presentes na realidade. Desse modo, a literatura, enquanto arte, vai
explorar as manifestações de violência no espaço urbano em diferentes tempos.
Quando estabelecemos uma relação entre a violência e as manifestações
culturais e artísticas é para sugerir que a representação da violência
manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira de interpretar a realidade
contemporânea e de se apropriar dela, artisticamente, de maneira mais
“real”, com o intuito de intervir nos processos culturais. (SCHOLLHAMMER,
2008, p. 58).
caracterizadas por ausência de título de moradia e por irregularidade nas vias de circulação e dos
tamanhos dos lotes e/ou pela falta de serviços públicos essenciais, tais como rede de esgoto, energia
elétrica, coleta de lixo, entre outros. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811202013480105748
802.pdf>. Acesso em: abr. 2016.
10
3 Quanto ao número exato de moradores, não há um consenso, pois o censo do IBGE de 2010 diz
que há 69.161 habitantes, já as lideranças comunitárias afirmam que há entre 180 mil e 220 mil
moradores. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/12/maior-favela-do-pais-
rocinha-discorda-de-dados-de-populacao-do-ibge.html> e <http://vivafavela.com.br/449-censo-nas-
favelas-e-controverso/>. Acesso em: abr. 2016.
11
4 Esta Lei mais privilegiou as elites do que os próprios negros, pois só seriam livres os negros
nascidos após a data da promulgação da Lei. No entanto, muitas datas de nascimento foram
alteradas, pois, segundo essa regulamentação, as crianças deveriam permanecer com suas mães até
os oito anos e, logo em seguida, receber a liberdade. Com isso, o dono do escravo ganhava do
governo 600 mil ou o jovem negro deveria trabalhar até os 21 anos de idade e aí seria libertado.
5 Segundo Lei de 1885, todo negro acima de sessenta e cinco anos seria livre, contudo, os que já
possuíssem sessenta anos deveriam trabalhar por mais três anos, como indenização ao seu senhor,
antes da tão sonhada liberdade. Ou seja, o negro deveria trabalhar por mais algum tempo para poder
comprar sua liberdade. Dessa forma, é possível perceber que essa Lei existiu para privilegiar os
senhores e não os escravos, mascarando a boa intenção de libertar os escravos.
14
No período que vai de 1872 a 1900, foi na Região Nordeste que houve
maior perda populacional, como consequência do comércio interno de
escravos que despovoou a economia do açúcar e do algodão, e reforçou a
densidade dos estados cafeeiros. Castigados pelas secas de 1870 e 1880,
grupos de migrantes dirigiram-se para o Rio de Janeiro, que funcionava
15
Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-historia-da-1-favela-
do-rio-criada-ha-quase-120-anos.html Acesso em setembro de 2015.
Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-historia-da-1-favela-
do-rio-criada-ha-quase-120-anos.html Acesso em: janeiro de 2016.
7 A Revolução de 1930 deu-se a partir do golpe de estado que depôs o então presidente da República
Washington Luís e, ao mesmo tempo, o seu sucessor Júlio Prestes e colocou no poder Getúlio
Vargas, marcando o fim da República Velha. No ano anterior, houve a queda da bolsa de Nova
Iorque, o que prejudicou a economia, tendo em vista que influenciou o comércio do café produzido no
Brasil, sendo que ocorreu, inclusive, queima de sacos de café para abaixar o preço. (SCHWARCZ;
STARLING, 2015).
23
Fonte: http://ashistoriasdosmonumentosdorio.blogspot.com.br/2011/08/a-estatua-da-liberdade-de-vila-
kennedy.html Acesso em janeiro de 2016.
A favela hoje não é mais a mesma do final do século XIX. Ela ganhou seu
espaço e, aos poucos, os moradores estão conquistando respeito e dignidade. No
entanto, o preconceito está longe de acabar, pois a favela foi e é local de pessoas
que estão envolvidas com o tráfico, crimes e demais tipos de violência. Entretanto, a
maioria das pessoas que habita esse local é composta de trabalhadores e pessoas
honestas que querem conquistar seu espaço e ser respeitadas. A visão mostrada
até aqui a respeito da favela não foi no sentido de mascarar ou negar a violência que
há, pois antes de os traficantes dominarem os morros e periferias, os bicheiros já o
faziam (ZALUAR; ALVITO, 2006), contudo, o que se pretendeu fazer foi mostrar o
percurso histórico-social da favela, que, a despeito de todos os impedimentos do
tempo e dos governos, soube se reconstruir e conseguiu sobreviver como
construção marginal sem a atenção devida de quem poderia fazer alguma coisa.
28
8 Será adotado ao longo do trabalho o termo mímese, conforme aparece no Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa (Disponível em: http://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-
vocabulario. Acesso em: 20 fev. 2016). É importante fazer essa ressalva, pois diversos autores usam
termos diferentes para falar dessa forma de imitação-representação: Antoine Compagnon (2012)
utiliza mimèsis; Enrico Berti (2010), mimesis; Hans Blumenberg (2010), Arbogast Schmitt (2010),
Jean-Pierre Vernant (2010) e Luiz Costa Lima (2014) utilizam o termo mímesis; e, por fim, Lígia Militz
da Costa (2001) prefere o uso de mímese. Como não há um consenso entre os autores, o termo que
será utilizado foi escolhido conforme a aceitação na Língua Portuguesa.
29
cama, única e universal, fabricada, se assim pode-se dizer, pelo “deus”, é mera
cópia imitativa. Entre essas três camas – a fabricada pelo deus, pelo carpinteiro e
pelo pintor – a única verdadeira seria a do deus, pois nela está a essência da cama,
o modelo de todas as outras. A fabricada pelo carpinteiro já é uma cama menos
verdadeira, já a do pintor é tudo menos uma cama. Desse modo, acontece a “[...]
fabricação de cópias, ou antes, de cópias de cópias, distantes duas vezes, portanto,
da verdadeira realidade, fabricação de aparências, de falsidade”. (BERTI, 2010, p.
247).
Quanto, ainda, a Platão, é mister dizer que ele faz uma distinção entre poesia
narrativa, poesia imitativa e poesia mista. A pura narrativa é aquela que conta ações
executadas por outros ou discursos feitos por outros, na forma de discurso indireto,
como o exemplo citado pelo próprio Platão: os ditirambos. Já a imitativa, ao
contrário, é aquela em que o poeta faz as suas personagens falar mediante discurso
direto, ou seja, mediante os diálogos: a tragédia e a comédia. Por fim, a poesia mista
é aquela que alterna entre a imitativa e a narrativa, como, por exemplo, a poesia
épica.
Pois bem, segundo Platão, a poesia imitativa deve ser quase toda
condenada, principalmente porque não está bem que os jovens destinados
a tornar-se guardiões aprendam a imitar mais pessoas. A razão para isso é
que a imitação de uma ação é ela mesma uma ação semelhante à imitada,
e não é possível fazer bem contemporaneamente muitas ações. A poesia
deve ser eliminada por outro motivo: os jovens não devem imitar pessoas
que se comportam mal, ou escravos, ou pessoas enlouquecidas, ou
pessoas indignas de algum modo. Ao contrário, pode-se admitir imitações
de homens de bem, ainda que – Platão o reconhece – sejam menos
agradáveis. Esse reconhecimento é importante, porque isso significa que a
poesia não edificante é com frequência a mais bela, a mais sugestiva, a que
produz maior prazer. Portanto, uma vez mais, Platão mostra-se
perfeitamente consciente do enorme poder emocional da poesia, e, no
entanto, ele a submete às exigências da moralidade. (BERTI, 2010, p. 245).
A partir disso, conforme já dito, imitação aqui não quer dizer apenas cópia
passiva do real, mas representação, ou seja, um processo de criação baseado nas
ações de homens valorosos ou incapazes, melhores ou piores do que os que são
encontrados na vida real. Assim, os objetos principais da Poética são a tragédia, que
coloca em cena homens de valor, e a comédia, que imita homens piores do que eles
ordinariamente são (cf. ARISTÓTELES, 2004, p. 202). Nas palavras de Compagnon,
“[...] a mimèsis seria a representação de ações humanas pela linguagem, ou é a isso
que Aristóteles a reduz, e o que lhe interessa é o arranjo narrativo dos fatos em
história: a poética seria, na verdade, uma narratologia” (2012, p. 102). Dessa forma,
conforme Compagnon (2012), o que interessa a Aristóteles não é o objeto imitado ou
representado, mas o objeto imitador ou representante, isto é, a técnica da
representação, a estrutura da história. Ainda, o que interessa ao Estagirita no texto
poético é a composição, “sua poièsis, isto é, a sintaxe que organiza os fatos em
história e ficção” (COMPAGNON, 2012, p. 102).
32
Isso posto, Aristóteles define os meios com que a poesia imita a realidade: o
ritmo, a palavra, a melodia, conjunta ou separadamente tomados. Todos esses
meios tomados em conjunto numa obra artística levam ao prazer. Mas um prazer
que nasce da imitação e do aprender, como consequência. “Se os homens por
natureza desejam conhecer, quando aprendem, ou seja, quando satisfazem tal
desejo, não podem senão experimentar prazer” (BERTI, 2010, p. 252). Platão
também afirmava haver prazer na poesia, mas de modo perverso, que seria melhor
evitá-lo, pois afastaria o homem da verdade, porque só comunica a aparência, o
falso. Destarte, os dois maiores filósofos da Antiguidade reconheceram o prazer
provindo da poesia, contudo um a rejeita por motivos epistemológicos e éticos, ao
passo que o outro a aceita e a defende com base nas mesmas motivações iguais e
contrárias.
Em vista disso, Aristóteles, conforme Lígia Militz da Costa (2001), desvincula
a arte da verdade, concedendo-lhe autonomia ao relacioná-la ao princípio de
verossimilhança. Em primeiro lugar, significa dizer que a obra de arte tem como
objeto de representação o possível e não o historicamente verdadeiro
(verossimilhança externa), isso fica claro quando, na Poética, Aristóteles usa o
exemplo entre o poeta e o historiador, pois este fala de coisas que aconteceram e
aquele das coisas que poderiam acontecer; e, em segundo lugar, com grau de
importância maior, o verossímil é “o princípio ordenador da construção mimética,
baseado nas relações de causa, lógica e necessidade, o qual faz da obra um todo
coeso, uno e exclusivo (verossimilhança ‘interna’)” (COSTA, 2001, p. 17).
Aristóteles ainda expõe o efeito da comédia: o ridículo, que não causaria dano
algum do ponto de vista moral (cf. ARISTÓTELES, 2004, p. 205). Também relaciona
a tragédia à poesia épica, porque ambas imitam homens de valor e usam versos,
contudo, a épica usa apenas o hexâmero9 e a tragédia usa versificação variada. A
tragédia é um discurso direto, ao contrário da epopeia, que é uma narração; as
ações ocorrem durante um dia ou pouco mais, já a epopeia refere-se a
acontecimentos que levam um tempo indeterminado.
Aristóteles, ainda, vai explicar algumas partes da tragédia, considerando o
objeto principal da mímese como uma ação “séria”, ou seja, realizada por homens
de valor, frequentemente por heróis; ela é realizada, quer dizer, perfeita, pois possui
modo que fale como fale, aja como aja, que seja feliz ou desgraçado, exatamente
como é” (p. 182). Assim, as leis objetivas (não empíricas) do que apresentam
estariam em desacordo com a leitura feita posteriormente no Renascimento, pois
estes olharam para a Poética como um manual de como bem escrever, ou seja, “o
poeta há de escolher ações e personagens que, em um sentido empírico (ou
segundo o juízo de alguém), são possíveis, que, portanto, `existam realmente´ no
mundo” (p. 183). Ora, representação, segundo Luiz Costa Lima (2014), não é nada
mais nada menos que re-presentar algo, ou seja, tornar algo presente mais uma vez.
Com isso, a obra não só apresenta algo, mas também, a partir da visão e da
subjetividade do artista, é capaz de produzir algo.
Segundo essa visão, a representação
nos dá a oportunidade de verificar o entrelaçamento entre a produção da
obra – como ela não apenas seleciona aspectos da realidade mas cria algo
que nela de antemão não se encontrava [...] – e a representação que
provoca. Representação, acrescente-se ainda, que, por seu caráter de
efeito, não é automática quanto à obra produzida. Assim, a recusa da
palavra exortada para uns provocará asco, para outros será apenas
intrigante, para outros ainda vista como marca de um lugar infernal, etc. Se
pensássemos que a representação-efeito é automática, estaríamos
mantendo uma das consequências, do ponto de vista da leitura, da
concepção tradicional do sujeito: à sua centralidade expressiva
corresponderia uma interpretação correta. É o contrário o que se diz: a
produção apenas começa na obra; a representação que ela suscitará
manterá seu caráter produtivo, portanto potencialmente divergente. Não é
que qualquer representação seja válida por ser um efeito. Mas tampouco
qualquer produção é válida porque é criação. (LIMA, 2014, p. 199).
10
Não será apresentada aqui uma definição extensa de “fantástico”, apenas a definir-se-á como Luiz
Costa Lima traz em seu livro Mímesis: desafio ao pensamento, conforme a definição de Sartre. “Para
Sartre, o fantástico se funda na apresentação do mundo pelo avesso, o qual, para que o leitor possa
aceitar, precisa ser visto de fora, i.e., como se fosse apresentado a partir de um ponto de vista fora do
mundo humano. Kafka teria feito o gênero do fantástico avançar porque, renunciando a esse olhar
não humano, adotara a posição de fora, a partir, portanto, de uma perspectiva puramente humana”.
(LIMA, 2014, p. 51).
37
Com isso, muda-se o olhar que o homem tem para a literatura, pois a mímese
é conhecimento e não cópia idêntica, ou seja, ressignifica a maneira pela qual o
homem constrói e habita o mundo. “Mesmo porque não mais amarrada à prenoção
do mundo como cosmo harmonioso, a mímesis tanto contém ecos do mundo das
coisas – a representação-efeito – como a ele se acrescenta” (LIMA, 2014, p. 233). A
mímese não revela a verdade, mas apresenta verdades baseadas no mundo do
autor. Assim, a mímese pode ser vista como uma via de mão dupla, pois não apenas
retira algo do mundo, como também lhe devolve algo que antes não tinha. “O sol da
38
pintura, já dizia Diderot, não é idêntico ao sol da terra. A maçã de Cézanne não é
idêntica à maçã que comemos. Mas, depois de sabermos o sol e a maçã da pintura,
já não os vemos como antes” (LIMA, 2014, p. 233).
Dessa forma, a atividade mimética não é vista apenas como uma atividade
passiva, associada à opinião. Mas associada ao muthos (história ou intriga),
“produção da intriga”, teria um começo, meio e fim. É a sucessão dos
acontecimentos que faz com que a narrativa seja inteligível.
Ao mesmo tempo, contudo, em que é representação ou imitação de ações, a
mímese também é criadora, “imitação criadora” (COMPAGNON, 2012, p. 127). Não
é simplesmente uma duplicação, mas algo que abre o espaço da ficção, permitindo
que haja essa possibilidade de criar. Na modernidade, conforme Hans Blumenberg
(2010), a relação entre arte e natureza não é mais obrigatória. O que se vê nas artes
é um distanciamento entre real e artístico. A imitação da natureza, presente em
Aristóteles, não está mais presente. O que acontece é um distanciamento, o homem
tornou-se criador e não mais imitador ou complementador da natureza. Com a
criação da obra, ele é o criador de um mundo novo com ou sem relação com o real.
Em consequência disso, Paul Ricouer apresenta os três níveis da mímese na
temporalidade:
o tempo prefigurado, que corresponde ao que ele [Paul Ricoeur] denomina
de mimese I, que é o tempo dos conhecimentos e das referências anteriores
à obra; o tempo configurado, que corresponde à mimese II, e que é o
tempo-ato da construção mimética ou elaboração da obra; e o tempo
refigurado, que é o tempo da leitura pelo receptor, o qual refigura, por sua
própria competência, o tempo configurado na obra. (COSTA, 2001, p. 44).
(COSTA, 2001, p. 78). Porque há, ainda, a valorização aos aspectos trabalhados por
Aristóteles, tais como: “o entendimento da arte como representação de emoções e
do efeito estético como experiência individualizada de prazer e de conhecimento do
mundo” (COSTA, 2001, p. 77). A partir dessa visão da literatura como
representação, faz-se necessário o estudo da teoria literária que apresenta um modo
de estudar a narrativa, pois a arte possui ao mesmo tempo, conforme Aristóteles,
duas funções: dar prazer e fazer aprender.
2.3 A NARRATIVA
compreender o seu papel enquanto pessoa, pois a partir da narrativa, que apresenta
um mundo diferente do real, o homem consegue olhar para a sua realidade e
responder às mais diversas inquietações cotidianas.
Consequentemente,
entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história
imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade de
personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num
espaço determinados. Nesse sentido amplo, o conceito de narrativa não se
restringe apenas ao romance, ao conto e à novela, mas abrange também o
poema épico e outras formas menores de literatura. (D’ONOFRIO, 2007, p.
46).
E é nessa história imaginária apresentada como se fosse real que a
representação está presente. Na relação entre realidade e ficcionalidade, o artifício
mimético, enquanto correspondência verossímil da realidade, relaciona personagens
que, no plano do crível e do possível, poderiam existir.
Nessa perspectiva, para o estudo da representação da favela na obra Inferno,
de Patrícia Melo, faz-se necessária a análise dessa narrativa a partir de dois planos
fundamentais de análise: o do discurso e o da história (cf. REIS; LOPES, 1988). Não
como conceitos separados, mas como níveis convergentes complementares.
Por isso, o estudo da significação da narrativa deve centrar-se na
convergência entre o que se narra e o como se narra, visto que a história só
se configura mediante o discurso, enquanto o discurso se realiza pela
apresentação da história. (SARAIVA, 2001, p. 53, grifo nosso).
de quem as executa, pois é através das ações que a personagem ganha “vida” na
narrativa.
A partir da análise das funções das personagens, é possível estudar a
personagem a partir de elementos invariáveis e comuns a todas as narrativas, que,
por sua vez, compõem o esquema actancial. Segundo Vítor Manuel de Aguiar e
Silva (2011), o esquema11 pode ser expresso da seguinte maneira:
o utópico, o lugar que não existe na realidade, o desejado. Este mesmo teórico
relaciona ainda a espacialidade com a temporalidade na narrativa:
Sua função é dúplice e antitética: de um lado, dão-nos a impressão de
naturalidade, pois as informações temporais e espaciais têm o papel de
enraizar a ficção na realidade, tornando-a inteligível; mas, do outro lado,
instauram o mundo do imaginário, suspendendo as leis do real.
(D’ONOFRIO, 2007, p. 82).
12A partir deste ponto, para a análise dos tipos de narrador, os termos utilizados nos estudos de Reis
e Lopes (1988) e Aguiar e Silva (2011) serão assumidos. Ambos os trabalhos teóricos se utilizam das
expressões: narrador autodiegético, narrador heterodiegético e narrador homodiegético, para
caracterizar e diferenciar as diferentes variedades de narradores que podem ser encontrados em
narrativas literárias.
13 Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2011), “a focalização compreende as relações que o narrador
mantém com o universo diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico), o que equivale a
dizer que representa um fator de relevância primordial na constituição do texto narrativo”. (p. 765).
47
3 A FAVELA NO INFERNO
A narrativa, para fins analíticos, foi dividida em seis partes, a fim de que o
trabalho ficasse estruturado e as ações estivessem expostas dentro de um plano
maior. A primeira parte, que vai do primeiro ao décimo capítulo, diz respeito a uma
visão geral da vida no morro e à descrição de alguns personagens, contudo, o foco é
apresentar a vida de Reizinho e como entrou, definitivamente, no tráfico de drogas.
Assim, a história começa com uma primeira visão da favela do Berimbau através do
olhar do jovem José Luís Reis, que enquanto sobe o morro interage com os
habitantes e tudo o que compõe aquele espaço. Nesse início, a vida do morro é
apresentada ao narratário, bem como a descrição de algumas personagens. O
narrador em terceira pessoa logo no início apresenta o garoto, diz que ele trabalha
como “olheiro” no Berimbau, cujo chefe do tráfico é Miltão. Um dia, enquanto
observa o movimento, Reizinho se distrai e não vê a polícia chegar; horas após o
confronto entre traficantes e policiais, já na casa do chefe do tráfico, por ter errado,
leva um tiro na mão. Mesmo não tendo cumprido seu papel de observador, Miltão
paga o que é devido ao jovem. Após horas sem saber o que fazer, José Luís resolve
dar o dinheiro para a mãe, Alzira, que trabalha como doméstica na casa de dona
Juliana, no Leblon. A mãe, contudo, não aceita o dinheiro e ainda espanca o menino
por estar envolvido com o tráfico.
Toda essa violência em sua casa faz com que José Luís entre para o mundo
das drogas e, pela primeira vez, aos onze anos de idade, após descobrir que sua
irmã, Carolaine, tem relações sexuais com outro homem, ele se droga. Além disso, a
49
irmã é a única que apoia Reizinho, em casa, a trabalhar no tráfico. O menino passa
a morar com a avó e, durante esse tempo, sempre está drogado e começa a vender
os bens que há na casa em troca de drogas. Quando a sua avó percebe, ameaça
Reizinho dizendo que vai devolvê-lo para a mãe, de modo que ele promete parar de
roubar. Contudo, começa a assaltar no trânsito. Certo dia, enquanto volta para casa,
no ônibus, conhece um de seus melhores amigos, Fake, e volta a fumar crack. Alzira
prepara uma festa de aniversário para Reizinho, que completa doze anos. A mãe diz
que terá uma surpresa para o filho, de modo que ele vai à festa, pois pensava que a
surpresa seria a visita do pai, a quem ele não conhece. Quando descobre que a
surpresa da mãe é um trabalho, ele fica com raiva dela e a ameaça com uma pedra.
Alzira e Reizinho vão, então, até a praça Argentina, onde o pai vive como mendigo.
Reizinho começa a trabalhar de boy na agência de turismo de Rodrigo,
marido de dona Juliana, onde faz pequenos furtos para trocar por drogas. Um dia ele
rouba um maço de dinheiro, mas não gasta tudo de uma vez e, mais tarde, é
roubado por policiais que o levam para um Centro de Recolhimento de Menores.
Após oito dias, a avó o busca. Quando retorna, após o desespero de todos de sua
família, Reizinho faz uma proposta para a sua mãe de que ele nunca mais usaria
drogas se ele pudesse voltar a trabalhar para Miltão, ao que a mãe cede, e o menino
volta a ser “olheiro” do traficante.
A segunda parte da história, do capítulo onze ao dezesseis, começa quando
Reizinho volta a trabalhar para Miltão, seu desenvolvimento no mundo do tráfico e
seu crescimento nesse trabalho. Logo no início dessa parte, Reizinho mata pela
primeira vez, ou como os traficantes dizem, foi “batizado”. Alzira, após perceber as
manchas de sangue na roupa do filho, começa a participar dos cultos de um templo
evangélico e fala para o pastor a respeito do filho. Reizinho cresce no esquema do
tráfico e passa a avião, ou seja, transporta ou faz “tele-entrega” da droga por todos
os cantos da cidade. Ao mesmo tempo, Alzira descobre que Carolaine está grávida.
José Luís namora Kelly, contudo, em um baile funk, conhece uma menina que
mudará sua vida, Marta. Nesse mesmo baile, Fake é preso por estar vendendo
cocaína. Suzana, amiga de infância de Reizinho, mulher de Miltão, larga o traficante
para morar com o chefe do tráfico do morro dos Marrecos, Zequinha Bigode. Com
isso, inicia uma guerra entre os dois morros. Logo que se torna soldado, Reizinho e
Miltão, com outros homens, invadem o morro dos Marrecos para resgatar Suzana,
50
mas isso não foi possível. Reizinho reencontra Marta na praia. Agora, oficialmente
os dois morros estão em guerra por causa de Suzana.
Leitor, um dos braços direitos de Miltão, começa a anunciar que eles
precisam de um novo líder, e esse líder deveria ser, segundo ele, Reizinho, pois
Miltão está fora de si, bate e mata quem ele quer, e, de sua casa no alto do morro,
derruba um helicóptero da Polícia Militar a tiros, o que leva a PM a cercar o morro do
Berimbau. A guerra entre os dois morros passa por uma trégua, mesmo assim,
Leitor insiste na ideia de que Reizinho deve assumir o tráfico na favela. Ao mesmo
tempo, Reizinho começa a se aproximar do pai.
Conforme a divisão estabelecida para a análise, a terceira parte diz respeito à
ascensão de Reizinho ao controle e ao domínio do tráfico no morro do Berimbau,
que inicia no capítulo dezessete e vai até o vinte. Miltão, fora de si, quer matar o
pastor da igreja, que o desafia em suas prédicas. Miltão, após saber da traição de
Fake, manda Reizinho matar o amigo, mas ele, pela primeira vez, pensa a respeito
das ideias de Leitor. Leitor e Reizinho, entretanto, contrariando as ordens do chefe,
não matam Fake. Reizinho encontra-se no shopping com o amigo, e este lhe faz a
proposta de se associar a Zequinha Bigode, para tirarem Miltão do poder. Carolaine
encontra o pastor, e pai do seu segundo filho, morto na igreja, e todos do morro do
Berimbau acusam Miltão. Com isso, Reizinho aceita a ajuda de Zequinha Bigode e
sobe o morro dos Marrecos para conversar com o chefe do tráfico. Faz acordo com
o líder do morro dos Marrecos e, nesse mesmo dia, descobre que Marta é filha dele.
A quarta parte da narrativa inicia quando Reizinho se torna líder do morro do
Berimbau, do capítulo vinte e um ao vinte e quatro. José Luís resolve todos os
problemas da favela, traz seu pai para morar ali e admite que não gosta da mãe. Ele
é visto como herói após salvar um garoto que fora sequestrado e estava no
Berimbau. Reizinho encontra-se com Nobre, antigo chefe do tráfico do Berimbau,
antes mesmo de Miltão, e faz alguns acordos. Reizinho ganha uma arma de
Zequinha e invade uma favela a pedido do líder do morro dos Marrecos. Ele e Marta
brigam. Reizinho é visto por todos como dono do Berimbau e se encontra com um
publicitário norte-americano, que quer gravar um comercial na favela. Reizinho
conhece Zé Gavião, um dos maiores traficantes de drogas do Rio de Janeiro.
Zequinha desconfia da relação de sua filha Marta com o líder do Berimbau.
51
uma vez, desequilíbrio. Isso pode ser percebido pelo final que não configura um
equilíbrio, mas uma situação que pode desencadear outras ações, pois o
protagonista recomeça a sua subida no morro após voltar de Roraima: “José Luís
subiu lentamente o morro, sem saber exatamente o que iria fazer, os cachorros na
frente, latindo” (MELO, 2010, p. 391). Ou seja, nem a personagem sabe o que faria
ali, pois ela se questiona em um parágrafo anterior se o novo líder do morro, Volnei,
já teria sido avisado pelos olheiros da sua chegada. Também ele não é esperado por
ninguém; apenas os cachorros Jaboti e Guliver o esperam.
Aqui há uma referência a dois cachorros que guardam a entrada do
Berimbau: Jaboti e Guliver, ou seja, dois cães que estão na entrada do inferno. Uma
clara referência ao cão infernal da mitologia grega, Cérbero, que possui três cabeças
e, em volta do pescoço, serpentes (cf. BULFINCH, 2006, p. 259). O inferno na
mitologia é o lugar para onde os mortos vão e de lá não têm mais volta, é o fim.
Assim também acontece para Reizinho, que retorna ao Berimbau, não possui o
mesmo poder de antes, não é reconhecido, pois caiu no esquecimento das pessoas,
ou seja, perdeu sua identidade (cf. WELFER; RODRIGUES, 2009, p. 138). No
entanto, não se sabe se é o fim dele ou o que vai acontecer com ele; como muitas
narrativas contemporâneas, fica para o leitor a questão aberta a respeito do que irá
acontecer.
Na análise, contudo, é possível delimitar uma microssequência apenas em
uma parte do texto, pois a situação inicial é exposta logo no início da narrativa,
quando apresenta o morro do Berimbau, a vida de Reizinho e de seu núcleo familiar.
A primeira perturbação acontece quando Reizinho para de trabalhar para o traficante
Miltão gerando, com isso, uma transformação na personagem, uma vez que
modifica seu modo de vida: deixa de morar com a mãe e entra para o mundo das
drogas. Contudo, a resolução que deveria acontecer, segundo a microssequência,
não aparece diretamente na história, e quando há alguma resolução ela não é única
e nem fecha a narrativa, deixando-a aberta. Por exemplo, quando volta a trabalhar
para Miltão, Reizinho também retorna a trabalhar para o tráfico de drogas e para o
crime organizado, e, a partir disso, passa durante toda a sua vida por outras
perturbações, transformações e resoluções. Ou seja, a narrativa não possui um
sistema fechado de macro e microssequência, mas apresenta várias perturbações,
transformações, equilíbrios e desequilíbrios, característica da complexidade do
53
Reizinho nega os avisos de Leitor, mas com o passar do tempo, ao ver as bobagens
que Miltão fazia, começa a se “conformar” com o que pode acontecer.
Seu nome diz muito sobre ele, tendo em vista que “José Luís Reis” é um
nome comum no Brasil, entretanto, naquela favela,
Excluindo Reizinho, ninguém ali é José, Luís, Pedro, Antônio, Joaquim,
Maria, Sebastiana. São Giseles, Alexis, Karinas, Washingtons, Christians,
Vans, Daianas, Klebers e Eltons, nomes retirados de novelas, programas de
televisão, do jet set internacional, das revistas de cabeleireiras e de
produtos importados que invadem a favela. (MELO, 2010, p. 9).
Naquele espaço, começando pelo nome, ele é diferente de todos, ele é único,
podendo-se inferir que, por essa diferença, ele seria o único a pertencer àquele
espaço. Da mesma forma, o seu apelido, Reizinho, já que todo rei possui um trono,
súditos e etc.. Entretanto, o apelido em diminutivo dá a atender que ele não chegará
a ser rei por completo, mas será em um grau menor. No entanto, quando José Luís
assume o domínio do morro, as pessoas reconhecem nele a sua majestade, e com
quase dezessete anos era verdadeiramente líder:
Mais gordo, mais alto, mais falante, e principalmente mais confiante,
sorrindo, sambando, acenando para os convidados, José Luís não guardava
nenhuma semelhança com o adolescente tímido que assumira o poder seis
meses antes. Com quase dezessete anos, era um líder, no sentido literal do
termo. (MELO, 2010, p. 260).
Inclusive, ele mudou, porque passa a ser ambicioso e a desejar o poder: “não
queria ser simplesmente mais um líder de morro do tráfico. Reizinho ambicionava
receber o título de o maior comerciante de drogas da América do Sul” (MELO, 2010,
p. 261). Com isso, é possível afirmar que Reizinho, enquanto sujeito da história que
possui por objeto de desejo o domínio do Morro do Berimbau, é uma personagem
redonda, por toda a sua complexidade e pela evolução ao longo da narrativa. É
importante destacar a idade desse jovem, já que a história inicia quando Reizinho
tem onze anos e termina quando tem dezessete, isto é, tudo se passa na
adolescência. Praticamente não teve infância, porque a história inicia e ele trabalha
com Miltão; entre um momento e outro do seu trabalho, ele brinca com seu pai
imaginário e ideal, diferente daquele que encontrará. Também a escola não era um
espaço que lhe agradava, frequentara até a quarta série e depois abandonara os
estudos.
A principal oponente de Reizinho ao longo de toda a história é Alzira, a
própria mãe, personagem que não muda sua posição ao longo da narrativa. Mesmo
quando pede ajuda a Miltão, é obrigada a ceder à chantagem do filho.
55
Eu paro, disse Reizinho, paro de bagulhar, juro aqui mesmo que nunca mais
fumo, nem cheiro, nem nada, nunca mais, com uma condição. Qual?,
perguntou Miltão. Volto a trabalhar com você. Pirou, disse Miltão, rindo.
Pirou total, o neguinho. Sua mãe, cara. Pirou. Sua mãe, esqueceu?
Neguinho me enche o saco, cara. Você me dá canseira. É minha condição,
disse o menino. Miltão coçou a cabeça, riu, e ao fazer isso, Reizinho notou
a arma, na cintura. Reizinho foi até a janela. Alzira conversava com Suzana.
Mãe, ele disse, vem cá. Alzira entrou, desconfortável com a situação, aflita.
Mãe, disse José Luís, a partir de hoje eu trabalho com o Miltão. Nunca mais,
na vida, a senhora vai me ver drogado. Alzira suspirou, agoniada. O que
mais poderia fazer? (MELO, 2010, p. 104-105).
Ao longo de toda essa cena, Alzira está fora da casa, não queria se meter na
conversa do bandido com o seu filho. Quando é chamada, fica desconfortável com
aquela situação: o filho lhe diz que volta a trabalhar com Miltão e faz a promessa de
nunca mais usar drogas. Em sua agonia e aflição, ela aceita a proposta, pois não
havia mais nada que pudesse fazer. Toda essa revolta contra o tráfico é própria de
uma mãe que vê crianças e jovens morrerem por causa da guerra no morro entre
traficantes e policiais, ou mesmo entre os traficantes que disputam bocas de fumo.
Ademais, Alzira é uma típica religiosa, acredita que tudo o que acontece na sua vida
e na dos filhos faz parte da tentação do Demônio, segundo as instruções da Igreja
Evangélica Rebanho do Puríssimo Amor do Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mãe de Reizinho trabalha na casa de Juliana e Rodrigo, que moram na
Zona Sul do Rio de Janeiro, mais propriamente no Leblon. Durante o tempo em que
trabalha nessa casa, Alzira a todo o momento é chamada de burra, sonsa, ignorante
e outros adjetivos pelos patrões:
Fale baixo, Rodrigo. Os amigos na sala, e Rodrigo contando, a Alzira é a
prova de que Deus, se existe, é um filho da puta: Alzira é feia, pobre, burra
e ignorante. Adoramos a Alzira, disseram. Mas ela é muito burra. Tão burra
que, outro dia, anotou um número de telefone assim: 5554477333333333,
querendo com isso escrever 35 24 27 93. (MELO, 2010, 188).
José Luís no seu aniversário de doze anos, dando-lhe o livro A ilha do tesouro14,
mesmo assim Reizinho recusa, pois não lhe interessa ler, na verdade, mal sabe ler.
A personagem de Stevenson, Jim Hawkins, aos doze anos conhece e recebe de um
capitão de um navio um mapa do tesouro, do qual vai em busca. Leitor, no
aniversário de doze anos de Reizinho, lhe dá o livro e, com esse ato, é capaz de
relacionar José Luís e Jim Hawkins, de Stevenson, ao perceber que ambos, com a
mesma idade, saem de seu espaço cômodo e devem conquistar um local, este
último a Ilha Perdida com o tesouro e Reizinho, o morro do Berimbau.
E antes de Reizinho assumir o controle do Berimbau, Leitor é a primeira
personagem a dizer que ele deve assumir o domínio da favela:
Não demorou muito para que Leitor, humilhado, começasse a falar no
“sucessor de Miltão”. Sempre em voz baixa, olhando para os lados. Na
maioria das vezes, seu interlocutor era Reizinho. Você é o único que pode
assumir o comando, dizia. Você tem liderança. É bravo. É inteligente. Sabe
o que quer. Com a guerra, Reizinho ganhara fama no morro. Fora ele quem
matara Branquelo, o braço direito de Zequinha Bigode. E o Capixaba
Corcunda. Matara também um pai de família, trinta e cinco anos, vítima de
uma bala perdida. Mas isso José Luís não sabia. Só sabia que estava cada
vez mais poderoso, e entrevia a vida na favela depois que assumisse a
liderança. No entanto, não admitia essa possibilidade para ninguém. Não
quero ser líder, respondia para Leitor, toda vez que o assunto vinha à tona.
Agora que se tornara o homem de confiança de Miltão, o único a ter
ascendência sobre ele, não iria trair o amigo. Sim, Mitlão era seu amigo.
Confiava nele. Não iria apunhala-lo pelas costas. Nunca. Jamais. E se
Miltão morresse? Sim, se Miltão morresse, eram outros quinhentos. Mas
matar Miltão, jamais. Nunca mais repita isso, Leitor. Para o teu próprio bem.
(MELO, 2010, p. 169-170).
14 A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, foi escrito em 1883 e conta a história de Jim
Hawkins, um menino que recebe de um marujo um mapa do tesouro. Após a morte do marujo, Jim
foge e vai atrás do tesouro que o mapa prometia.
59
e quero minha parte. Vou ser um rapper famoso. Contrato com a Coca-
Cola, me aguarde. Dinheiro. Nós, os negões, somos poderosos. Vou ser
rico. Fake levou Reizinho para a rádio do morro. Sou o deejay da nossa
rádio a cabo. Equipamentos eletrônicos novinhos. Sou mano do Miltão. Na
visão de Reizinho, aquele seria o único defeito de Fake, a amizade com
Miltão. É a irmandade negra, mano. É você quem coloca as músicas no
alto-falante da praça?, perguntou Reizinho. Fake, em pessoa. Eu mesmo.
Você gosta do som? Reizinho adorava. (MELO, 2010, p. 70-71).
Logo no primeiro encontro, Reizinho fica encantado por Fake, e a relação dos
dois cresce, pois quando voltava do trabalho, aquele ia direto para a rádio consumir
drogas com o novo amigo. O que Reizinho não sabia é que Fake trabalhava como
informante de Zequinha Bigode, até mesmo Leitor o aconselhou a se afastar do DJ
da favela. O nome “Fake”, em inglês, quer dizer “falso”, ou seja, o apelido do amigo
de José Luís corresponde a um significado que não é compreendido por grande
parte das personagens daquele espaço, talvez Leitor soubesse, mas não revela.
Mesmo assim, esse significado dá pistas do caráter da personagem. Por fim, quando
Marta ouve o pai conversando com alguém no quarto sobre matar Reizinho e
percebe que aquela voz é de Fake, ela avisa José Luís que o mata em um lixão.
José Luís, anos mais tarde, ainda se lembraria da atitude de Fake, não se
ajoelhe, ele ordenou, com raiva, eu te arrebento os miolos aqui mesmo,
cara. Levanta e corre. Porra. Fake implorava, brother, não faça isso, estou
limpo, cara. Corre, eu avisei. Fake correu, olhando para trás, José Luís
ainda esperou alguns segundos antes de começar a atirar. Três disparos.
No quarto, Fake caiu. Reizinho caminhou alguns metros, segurou o braço
de Fake para ver a pulsação. Nada. Porra. (MELO, 2010, p. 298).
Reizinho mata Fake com muita raiva, pois para ele traição era coisa grave, e
quando se lembra que o amigo havia traído e roubado Miltão, fica com mais raiva
ainda. Mesmo Fake dizendo que não havia feito nada, Reizinho o mata. Algum
tempo depois, Suzana vai revelar que quem traiu Reizinho fora Negaço e que Fake,
na verdade, estava limpo. O nome de Fake pode remeter à falsidade, mas ao longo
da história o DJ não fora falso com Reizinho. Antes de morrer, quando questionado
porque não havia incluído José Luís na sua banda, Fake responde que nunca
imaginou que o amigo quisesse participar, com um ar de ingenuidade e de
veracidade na sua fala. Fake é mais uma personagem redonda, que se torna
complexa a partir das suas principais experiências: no Centro de Recolhimento,
onde aprendeu a ser bandido, e quando se alia a Reizinho no tráfico.
Suzana é mais uma personagem que transita entre adjuvante, destinadora e,
por fim, oponente de Reizinho. Ela é a vizinha que acompanhou o crescimento de
José Luís: “Suzana, bonita, cabelos ondulados, calças justas, de boca larga, o
60
umbigo de fora, tamancos vermelhos, dezoito anos” (MELO, 2010 p. 36). Muitas
vezes, ela se meteu na casa para salvar o menino das surras da mãe: “[...] e muitas
vezes, quando o garoto estava sendo espancado, Suzana invadia a casa de Alzira,
esbaforida, arrancava o garoto da mãe, levava-o para casa” (MELO, 2010, p. 36).
Algum tempo mais tarde, ela também protege o garoto de Miltão e, por fim, quando
largou Miltão para ficar com Zequinha Bigode, foi Suzana quem apresentou e
introduziu Reizinho ao traficante do morro dos Marrecos.
A conversa foi objetiva. Fake contou que agora vivia sob a proteção de
Zequinha Bigode. Um preto sensacional. Muito dever. Humano para
caralho. E competente. Ele quer levar um lero contigo, brother. E isso não
tem nada a ver com tuas qualidades, Zé. É a Suzana mesmo, tua fada
madrinha, que está por trás de tudo. Suzana é uma fodona no morro dos
Marrecos. Manda e desmanda, a mulha. Sabe o que isso significa? Chegou
a tua vez, brother. Você está entendendo? Ser king, que tal? Hein? Captou
a ideia? É isso, brother. Se você não quer ser pau-mandado do Miltão o
resto da vida, pronto, chegou a hora. O homem está disposto a te ajudar.
Quer marcar um encontro. Que tal? Vai ficar mudo? Enguiçou? Decida,
brother. O que eu digo para eles? (MELO, 2010, p. 197).
Por fim, Suzana, por volta dos 24 anos, é morta por Marta, que nunca gostou
da madrasta e também porque, segundo a mãe de Suzana, Dirce, Marta a teria
matado porque ela sabia demais. Portanto, Suzana é mais uma personagem
redonda, complexa, pois seus atos, ao longo de toda a narrativa, mudam conforme
os atos das outras pessoas se modificam em relação a ela.
Zequinha Bigode aparece pela primeira vez na história como inimigo de Miltão
e, consequentemente, de Reizinho. Zequinha conhece Suzana e por ela se
apaixona. Pouco tempo depois, a garota vai morar com ele no Morro dos Marrecos.
Zequinha é viúvo e mora com sua mãe, suas filhas Marta e Priscila, e é o chefe do
tráfico no Morro dos Marrecos, vizinho do Berimbau. Primeiramente, de modo
indireto, Zequinha é oponente de Reizinho, em seguida, influenciado por Suzana,
61
Ou seja, quem planeja a prisão de José Luís é Marta. Após saber de tudo
isso, Onofre avisa Reizinho para não voltar para o Berimbau, pois tudo está muito
estranho, uma vez que ela quer matá-lo. Reizinho descobre, em Roraima, pela irmã,
que Marta foi metralhada na rua principal do Berimbau, pelos homens de Volnei, o
novo chefe do morro. Marta, de temperamento impulsivo e forte, oscila também entre
adjuvante, destinadora e oponente de Reizinho, sendo uma personagem complexa
que muda o seu comportamento conforme o espaço e os fatos.
Kelly é a primeira namorada de Reizinho, adjuvante que o apoia em tudo, no
entanto, quando os dois estão morando em Roraima ela perde o encanto por ele e
62
foge com Anderson, um baiano que possui uma lanchonete em Salvador e que é
cantor em churrascarias. Ela abandona José Luís, pois agora ele não é mais o
Reizinho, mas dono de uma lancheria em um lugar que nem parecia pertencer ao
Brasil.
Onofre é quem narra alguns fatos sobre a vida das pessoas na favela. Graças
ao seu bar, ele sabe de tudo e de todos. Ele no início da narrativa não é importante
para Reizinho, contudo, é ele quem o ajuda a sair da prisão e quem o avisa a não
voltar para o morro, após perceber que tudo está estranho por lá. Desse modo, ele é
um adjuvante na história, pois permanece em todos os momentos ao lado de
Reizinho.
Todas essas personagens influenciam e são influenciadas pelo espaço em
que estão, seja no morro do Berimbau ou dos Marrecos. A narrativa começa quando
Reizinho tem onze anos e termina quando ele tem mais de dezessete anos, ou seja,
todas as ações acontecem durante cerca de seis anos, durante a adolescência de
José Luís dos Reis.
Nesse ponto, há uma pausa na narração das ações, para que o narrador
explique o que de fato estava acontecendo com Fake. Como não participa da
história, o narrador sabe o que as personagens pensam e conhece todas as suas
ações antes e depois do tempo presente da narrativa.
O trecho citado comprova ainda a perspectiva narrativa que se dá através da
focalização onisciente, pois o narrador conhece a verdade em relação a Fake e sabe
quais serão os sentimentos dele horas mais tarde após o encontro com Reizinho. A
focalização onisciente ou zero pode ser entendida como
[...] toda a representação narrativa em que o narrador faz uso de uma
capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso,
facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento
minudente da história; colocado numa posição de transcendência em
relação ao universo diegético [...], o narrador comporta-se como entidade
demiúrgica, controlando e manipulando soberanamente os eventos
relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem,
os cenários em que se situam etc. (REIS; LOPES, 1988, p. 255).
Alzira quando vai à igreja encontra-se com o pastor e narra o que acontecera
na noite anterior quando Reizinho chegou a casa após ter matado um homem. O
narratário não sabia, até então, o que havia acontecido com José Luís, somente com
o relato da mãe ao pastor é que se sabe o que acontecera com o menino. O tempo
da narrativa apresenta uma pausa, para que pela memória e através do olhar de
Alzira se descubra qual era o estado emocional de Reizinho após ter tirado a vida de
um homem. Essa analepse permite recuperar um evento importante para a história,
pois confere coerência própria da descrição de Reizinho.
O discurso das personagens na obra está representado pelo discurso indireto
livre, segundo Reis e Lopes (1988, p. 277), “é um discurso híbrido, onde a voz da
personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos
falassem em uníssono fazendo emergir uma voz ‘dual’.” Com esse tipo de discurso,
a obra atinge um grau de complexidade igual ou maior àquele espaço em que está
representada, pois muitas vezes confunde-se a voz do narrador com a de algum
personagem.
Desde que chegara não dissera nenhuma vez obrigado. Ale-ale-Aleijadinho.
Marta se sentiu feliz por ter tomado certas atitudes. O rei da arte mulata.
Abrira uma conta em seu nome, e não dissera nada a José Luís. Ale-ale-
Aleijadinho. E também comprara dois terrenos em seu nome. Filho da
escrava Isabel. E nada dissera. Agira corretamente. E comprara também os
novos aliados. Brasil perfeito tesouro. Tudo vai dar certo. Seria a líder do
Berimbau em muito menos tempo do que aqueles bostas poderiam supor.
Ploc. (MELO, 2010, p. 362).
em muito menos tempo do que aqueles bostas poderiam supor”. Isso faz com que a
focalização, aqui múltipla, e o discurso indireto livre, contribuam para instaurar
complexidade e concordância entre as duas vozes. Além disso, a letra do samba-
enredo da escola de samba pode também auxiliar na representação de José Luís.
Ou seja, enquanto o narrador e Marta apresentam a sua visão sobre o retorno de
Reizinho ao Berimbau, a letra do samba também contribui, em alguns momentos,
para descrever quem é José Luís. Por exemplo, na parte “Filho da escrava Isabel”
para dizer sobre Aleijadinho, poder-se-ia dizer a respeito de Reizinho “Filho da
escrava Alzira”, devido à rotina de trabalho que a mãe de José Luís tem. Além disso,
Aleijadinho era um gênio da escultura nacional, apesar de suas limitações físicas em
decorrência da lepra. Na mesma medida, pode-se inferir que, apesar da pouca idade
e de suas limitações, Reizinho é um gênio daquela vida de tráfico no crime.
A pausa ao longo do Inferno não acontece, como já foi dito, já que a descrição
dos espaços está intercalada com as ações. Isso prova a interação e a importância
dos espaços descritos com o evento diegético narrado, pois são as informações
sobre os espaços que tornam a obra verossímil, que instalam a sensação de
realidade e fazem com que ela seja crível. A partir disso, os espaços fictícios
67
descritos ganham lugar no real, ou o contrário também é válido, pois muitos espaços
podem ser encontrados na realidade. Por exemplo, a rua Santa Clara, lugar do
encontro de Reizinho e a mãe de Suzana, ou a rua da casa da dona Juliana, a
General Artigas, no Leblon, ou até mesmo a cidade do Rio de Janeiro, que ganha
mais duas favelas durante a narração: o morro do Berimbau e o morro dos
Marrecos. Esses e outros espaços são indispensáveis para a caracterização das
personagens. Reizinho só é rei quando está no Berimbau. Quando parte para a
cidade de Depósito Novo, em Roraima, com Kelly, ele deixa de ser Reizinho e se
torna apenas José Luís. Ou seja, o espaço da favela é que configura a personagem
em sua principal característica identitária: ser líder. Esse espaço é inseparável da
personagem, e, por isso, a história precisa acabar com a volta dele ao Rio de
Janeiro: ele já não se reconhece mais, porque perdera sua identidade.
O processo mimético de representar na ficção o real não é a simples cópia,
mas a possibilidade de (re)criar uma cena segunda (ficção) baseada em uma cena
primeira (realidade) (cf. LIMA, 2014), que pode, conforme já dito, extrapolar o real. A
partir disso, a criação como uma concepção da mímese é uma via de mão dupla,
pois a narrativa é capaz, através do processo mimético, de alterar o modo como é
vista a realidade, conferindo novo sentido e significado ao que se lê e vê, e da
mesma forma que a realidade, pelo processo de mímese, pode ressignificar e
interferir no que é visto e lido.
A criação de verossimilhança é uma decorrência da circulação da obra. E
isso dentro de uma concepção de mímesis que, em sua relação com a
realidade, se vê como uma rua de mão dupla – ela não só recebe o que
vem da realidade mas é passível de modificar a própria visão da realidade.
Fenômeno existensivo que não se restringe à arte pois, em seu sentido
clássico, abrange toda a tekhné, a mímesis apresenta um desafio ao
pensamento. (LIMA, 2014, p. 27).
unidas, de modo que uma contribui para a significação da outra. “Lá do alto, veem-
se muitas parabólicas e telhas Eternit. Aviões voando baixo. Lixo. Cachorro
defecando no mato. Trens. Prédios de dois andares. Orelhões, filas. O vento está
forte.” (MELO, 201, p. 10). O narrador apresenta uma visão do alto do Berimbau, lá
de cima, Reizinho pode ver toda a favela e parte da cidade que está embaixo.
Quando desce o morro e vai para a praia, Reizinho concluiu que “o Rio de Janeiro
era uma cidade bonita de verdade” (MELO, 2010, p. 25), por mais que antes,
enquanto se dirigia para a praia, através da janela do ônibus, ele visse uma outra
cidade:
A cidade pela janela, indústrias, conjuntos habitacionais, depósitos,
empresas, terrenos, garagens, depósitos, demorou para aparecerem os
prédios, prédios, prédios, lojas, e o mar, mar, mar, muita gente correndo,
bicicleta, patins, caminhadas, sorvete, água de coco e saúde, Reizinho
desceu no Leblon. (MELO, 2010, p. 24).
Nesse trecho, o narrador indica o local exato da favela no Rio de Janeiro, pela
Epitácio Pessoa. Se o narrador se refere à Avenida Epitácio Pessoa, a que circunda
uma parte da Lagoa Rodrigo de Freitas, então a possível localização da favela do
Berimbau seria onde está o Parque Municipal José Guilherme Merquior (conforme
imagem abaixo, com o marcador vermelho).
69
Disponível em:
https://www.google.com/maps/d/edit?hl=en&authuser=0&mid=1ddDDYKpxmvmoTFmcP4UUH1m0H6
8 (Adaptado pelo autor, 2016).
Com isso, pode-se fazer uma relação com a realidade expressa na pesquisa
feita pelo Data Favela e a ficção que o livro Inferno apresenta. Ou seja, as atividades
empresariais apresentadas pela obra ficcional correspondem às encontradas na
realidade pelos pesquisadores Renato Meirelles e Celso Athayde em uma das
maiores favelas do Rio de Janeiro, a Rocinha. Portanto, as pessoas moradoras dos
morros se adaptaram às necessidades e viram que seria mais fácil ter certos
serviços próximos ao morro do que ir até o centro da cidade.
Quanto ao espaço, Salvatore D’Onofrio afirma que,
o espaço da ficção constitui o cenário da obra, onde as personagens vivem
seus atos e sentimentos. As descrições de cidades, ruas, casas, móveis etc.
funcionam como pano de fundo aos acontecimentos, constituindo índices da
condição social da personagem (rica ou pobre, nobre ou plebeia) e de seu
estado de espírito (ambiente fechado – angústia; paisagens abertas –
sensação de liberdade). A correspondência da isotopia espacial com o tema
geral da obra se dá particularmente na estética do realismo, que confere
extrema importância às influências do ambiente na constituição da psique
da personagem. Em certas obras literárias, como nas cenas de várias
categorias de filmes, um indisfarçado determinismo leva a prever com
exatidão quais são as ações e as reações das personagens, uma vez
descrito seu espaço vital. (2007, p. 83).
conhecer bem o espaço, cada canto, e para que, durante as lutas contra a polícia,
os traficantes tenham vantagem por conhecerem bem o espaço da favela. Com isso,
percebe-se que a animalização está presente no decorrer da obra, pois as pessoas
daquele espaço, em algumas vezes, são comparadas a animais, o que remete à
uma depreciação daquela vida, uma perda de humanidade.
Além do Berimbau, também o morro dos Marrecos é apresentado a partir da
situação das personagens, no caso aqui exemplificado, conforme Reizinho vive.
Quando sobe a favela vizinha para encontrar Zequinha Bigode, José Luís compara
os dois morros e percebe muitas melhorias no morro dos Marrecos e que antes,
durante os conflitos, não pode perceber, pois o motivo de sua subida era diferente.
Nesse momento, com mais calma, ele pode ver o morro com “outros olhos”, pois o
espaço também se lhe apresenta de outra forma, menos hostil.
José Luís já havia subido o morro dos Marrecos, várias vezes, sempre
guerreando. Como soldado, conhecia bem a entrada, e a ruela estreita que
levava até a padaria era, naquelas ocasiões, apenas mais um capo de
batalha. Na guerra, o importante é localizar o alvo, o inimigo, o abrigo, o
melhor ângulo de ataque. Naquela noite, porém, com céu estrelado e lua
cheia, subindo numa missão de paz, o local lhe parecia totalmente diferente,
muito acolhedor e organizado. Orelhões em vários locais, canaletes para o
escoamento do esgoto, pontos de luz em toda a favela, e boas casas. O
que mais lhe agradou foi ver, em muitos locais, plaquinhas com os nomes
das ruas. Uma ideia muito boa. José Luís sabia que um dos problemas do
favelado, na hora de procurar emprego, era não ter endereço. Dessa forma,
ficava melhor, rua da Paula, número 5. E pronto. (MELO, 2010, p. 212).
em que Reizinho encontra seu pai; a rua Barão de Capanema, local onde Reizinho
deve ir para entregar alguns documentos; a Central do Brasil, que aparece como
referência ao apartamento do amante de dona Juliana; o Hospital Miguel Couto,
onde Carolaine dá a luz a seus filhos; a praia do Pepino, onde Reizinho encontra
pela segunda vez Marta; o Catumbi, onde fica a casa do pastor Walmir; rua Nossa
Senhora da Paz, local de encontro entre Reizinho e Marta; a Avenida Brasil, onde
Reizinho joga uma granada dentro do carro dos policiais; a rua Santa Clara;
Rodoviária do Rio de Janeiro, de onde Reizinho e Kelly partem para Roraima. Todos
esses espaços são reais e aparecem ao longo da narrativa.
Por mais que prometesse não bater mais no filho, Alzira não conseguia deixar
de agredi-lo. Além disso, as agressões que Reizinho sofria não eram apenas físicas,
também eram de ordem psicológica. Segundo Alzira, essa era a única solução para
o menino aprender.
Reizinho, contudo, se revolta contra a mãe apenas uma vez, no dia do seu
aniversário ao perceber que a surpresa não era a visita do pai, mas o trabalho que
ela lhe arranjara.
Você vai aceitar o emprego, sim. Vai mesmo. E ai de você. Ai de você. Não
vou, respondeu Reizinho, interrompendo a mãe. Lembrou-se de Leitor.
Perdedor. Alzira tomou a resposta negativa como uma ofensa pessoal.
Levantou a mão, o menino se abaixou, pegando uma pedra. [...] Ah, é?
Você vai me jogar uma pedra?, perguntou a mãe, arregalando os olhos.
Não, ele disse. Vai, apedreja sua mãe. Seu idiota, imbecil, ela gritou,
entrando na casa para se atirar no colo da mãe, que via televisão. (MELO,
2010, p. 84).
O que não acontece na família é o diálogo, pois a mãe dita normas e diz o
que pode ou o que não pode ser feito, e os filhos, nem sempre por desejo, mas
instintivamente vão contra tudo o que ela lhes diz. Como o que acontece dentro de
casa não é o esperado, a única solução encontrada por Alzira e por Reizinho é a
violência.
Esse núcleo familiar está cercado por outras formas de violência que por
vezes acabam influenciando o convívio. Uma das primeiras surras narradas no texto
de Alzira para com Reizinho é impulsionada pelo tiro que o menino levou na mão. A
violência que está presente na favela extrapola as paredes da casa e entra naquele
espaço que deveria ser acolhedor.
Reizinho também tem contato com outras formas de violência enquanto
criança, pois ele assalta no centro da cidade (cf. MELO, 2010, p. 64) e com doze
anos mata pela primeira vez.
Uma sensação de desconforto tomou conta de Reizinho quando Miltão
colocou o revólver nas suas mãos. Era a primeira vez que segurava uma
arma. Sentiu o toque frio do metal nos seus dedos. Não havia muito o que
pensar. Eficácia. Matar um homem. Sabia que isso aconteceria, só não
imaginava que iria ser num dia em que seu estômago estava tão cheio.
Reizinho mirou na cabeça de Duque e disparou. Errou o primeiro tiro. Foi só
naquele momento que o garoto olhou de verdade para a sua vítima. Os
olhos gritavam, pedindo penico. Porra. Os homens de Miltão pareciam se
divertir com aquilo. Estreante é fogo, disseram. O segundo disparo acertou
na bochecha de Duque e fez um buraco do tamanho de um tomate. Pronto.
O negócio estava feito. Por alguns segundos, todos ficaram em silêncio,
ouvindo o som abafado dos soluços e engasgos da vítima, sangue saindo
pela boca e ouvidos. (MELO, 2010, p. 114-115).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
miméticas capazes de relacionar a ficção com o real, seja pela verossimilhança seja
pelas diferenças expostas, assim sendo, a mímese necessita de estruturas claras e
definidas:
A obra de arte circula porque a “outra natureza” que a enforma encontra um
parâmetro nem natural, nem consciente: a forma de classificação da
sociedade em que se elabora ou em que é recebida. A mímesis não tem
pois um modelo mas traz em si um outro que a alimenta, que o motiva, se
não o orienta. Neste sentido, a mímesis funciona como o análogo de uma
língua: a diferença que uma signature (Deleuze) nela introduz só é legível
em função das estruturas que a circundam. Sem visar imediatamente à
comunicação, a obra de arte traz em si aquilo de que a comunicação
depende: a comunidade de um código, mesmo que, na obra, haja do código
apenas restos, a exemplo de, em The unnamable, de Beckett, a cabeça e o
tronco enterrados em uma jarra, restos do código “sujeito psicológico”. A
mímesis é teorizável a partir do confronto (mental e inconsciente) do gesto,
da atitude, da inflexão da voz, da disposição do objeto, em suma, do
mímema, em que se perfaz, com a classificação com que eles são lidos. Por
isso o mesmo mímema, ao ser recebido por outra forma de classificação,
sofre inevitável mudança de leitura. É ingênuo pensar que a leitura
“estrangeira” seja necessariamente melhor ou pior que a nativa. (LIMA,
2014, p. 47).
Assim sendo, a narrativa Inferno cumpre com o seu papel de representar essa
realidade em contraste com o modo como é percebida na realidade. Ademais, a
obra é capaz de levar o leitor à reflexão, a se colocar no lugar das personagens que
ali estão, afinando, assim, as emoções, sem deixar de lado a beleza com que é
concebida, ou seja, cumpre o papel inerente da literatura, que é a capacidade de
desenvolver “em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO,
2004, p. 180).
81
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004.
(Coleção Os Pensadores).
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São
Paulo: Duas Cidades, 2004.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9. ed. São
Paulo: Editora UNESP, 2010.
COSTA, Lígia Militz da. Representação e teoria da literatura: dos gregos aos pós-
modernos. 2. ed. Cruz Alta: UNICRUZ, 2001.
D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.
KEHL, Luis. Breve história das favelas. São Paulo: Claridade, 2010.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Editora Ática, 1988.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
_____; ALVITO, Marcos. (Orgs.) Introdução. In: _____. Um século de favela. 5. ed.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2006.