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Índice
e. Supervisão atenta, sem recurso a um controlo excessivo 91 iii. Situação escolar 152
f. Existência de uma adequada rede social de apoio 92 iv. Saúde 153
g. Inexistência de comportamentos aditivos ou psicopatologia 92 d. Finalização do apoio prestado 153
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens 93 Capítulo III – A prevenção 155
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Agradecimentos
Agradecimentos
À Fundação Calouste Gulbenkian por acreditar e apoiar o Projeto CARE
À APAV, nomeadamente a João Lázaro, Carmen Rasquete, Frederico Marques e Sónia Reis, bem como a todos/as os
gestores/as e elementos dos Gabinetes de Apoio à Vítima, Linha de Apoio à Vítima, Casas de Abrigo, UAVM e UAVMD, por
acolherem também o desenvolvimento do Projeto e da rede CARE.
Aos membros da equipa da Rede CARE e aos/às voluntários/as, pelo empenho diário no apoio a crianças e jovens vítimas de
violência sexual, suas famílias e amigos/as.
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Nota de apresentação
Nota de apresentação
A violência sexual contra crianças e jovens apresenta-se como sendo um flagelo que tem
prevalecido na nossa sociedade, e que acarreta implicações profundas na saúde física e
psicológica das vítimas, suas famílias e amigos/as, não só no momento dos atos abusivos,
mas com potencial para afetar todo o seu processo de vida.
Só em 2014, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) aponta para a existência de cerca
de 1011 crimes de violência sexual contra crianças, adolescentes e menores dependentes.
Destes, a faixa etária com maior prevalência apresenta-se como sendo a dos 8 aos 13 anos de
idade. Segundo o site da Direção-Geral da Política da Justiça1, em 2015 houve 1044 crimes
registados pelas autoridades policiais de abuso sexual de crianças, adolescentes e menores
dependentes, ao que se deve somar os 134 crimes de lenocínio e pornografia de menores.
Com efeito, o mesmo documento permite-nos concluir que mais de metade dos crimes
sexuais perpetrados em Portugal são-no contra crianças e jovens. Mais ainda, sabe-se
também que os/as autores/as dos crimes são pessoas conhecidas das vítimas e, em grande
parte das vezes, elementos das suas famílias nucleares. Daqui decorre uma possível
explicação para o silenciamento dos crimes perpetrados contra as crianças e jovens e a
dificuldade em denunciar a situação aos órgãos de polícia criminal e/ou às autoridades
judiciárias, bem como a resistência em pedir apoio junto de instituições como a Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
A APAV, na sua missão diária de apoiar as vítimas de crime, suas famílias e amigos,
prestando-lhes serviços de qualidade, gratuitos e confidenciais, e de contribuir para o
aperfeiçoamento das políticas públicas, sociais e privadas centradas no estatuto da vítima,
tem mantido como um dos seus baluartes o apoio a crianças e jovens vítimas de qualquer
tipo de violência.
São exemplo disso a dedicação a projetos como o “Manual CORE – para o atendimento de
crianças vítimas de violência sexual” ou o “Manual - crianças e jovens vítimas de violência:
compreender, intervir e prevenir”.
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Nota de apresentação
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Lista de abreviaturas
Lista de abreviaturas
Ac. - Acórdão
APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
Art.º - Artigo
CP - Código Penal
CPA – Código de Processo Administrativo
CPP - Código de Processo Penal
DGPJ – Direção-Geral de Política da Justiça
IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social
IST – Infeção Sexualmente Transmissível
LTE – Lei Tutelar Educativa
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
NSVRC - National Sexual Violence Resource Center
RASI – Relatório Anual de Segurança Interna
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TRC – Tribunal da Relação de Coimbra
TRE – Tribunal da Relação de Évora
TRP – Tribunal da Relação do Porto
TSH – Tráfico de Seres Humanos
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Parte I
—
Compreender
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Compreender para depois proceder
Como foi referido na Nota de Apresentação, a violência sexual contra crianças e jovens não
é uma área nova para a APAV. Em 2002, com apoio de várias organizações de referência
em Portugal, a APAV publicou o Manual CORE – para o atendimento a crianças vítimas de
violência sexual. Este Manual foi desenvolvido no âmbito do Projeto CORE, com o apoio da
Comissão Europeia através do Programa STOP II – prevenção e combate ao tráfico de seres
humanos e todas as formas de exploração sexual.
Ainda que volvidos 14 anos, o manual CORE constitui uma base importante para este que é
agora apresentado.
Mais ainda, afigura-se como essencial que o apoio prestado não se afaste de procurar
assegurar ativamente os direitos das vítimas, pelas próprias, seus familiares e/ou
representantes legais, mas também pelos serviços de apoio e outras instituições e organismos
que intervenham direta e indiretamente no processo judicial.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
2. O conceito de violência sexual contra crianças e jovens
Nem sempre é fácil definir violência sexual contra crianças e jovens sem que se recorra aos
conceitos jurídicos, dado que tais atos e práticas são puníveis por lei, previstos em diferentes
artigos do Código Penal. Com efeito, tais crimes podem estar associados a diversas
práticas sexuais, mais ou menos intrusivas, com ou sem recurso a estratégias violentas ou
coercivas, com ocorrência pontual ou reiterada e contra crianças e jovens em distintas fases
do desenvolvimento. Assim, os atos de que aqui falamos revestem-se de contornos muito
específicos, acerca dos quais os técnicos que intervêm com crianças e jovens devem ter
particular atenção, para que procurem perceber que crime se poderá verificar e que fatores
devem ser tidos em conta na intervenção a realizar.
Assim, dentro do conceito de violência sexual contra crianças e jovens, que irá ser explorado
neste manual, pretende englobar-se tanto os crimes contra a liberdade como contra a
autodeterminação sexual que sejam perpetrados contra menores de idade, isto é, todas as
pessoas entre os 0 e os 18 anos de idade (exclusive)2.
Ainda que a literatura não seja consensual sobre a definição do conceito de violência sexual
contra crianças e jovens, é comum verificarem-se as seguintes premissas:
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Contextos de vitimação
3. Contextos de vitimação
Apesar de ainda poderem subsistir alguns preconceitos relativamente aos contextos onde a
violência sexual possa acontecer, importa salientar que estes crimes podem acontecer em
qualquer espaço e contexto de que a criança faça parte, ou que frequente.
Genericamente, os contextos de vitimação dividem-se em dois grandes grupos que irão ser
agora especificados.
a. Contexto Intrafamiliar
Este contexto refere-se aos crimes praticados por pessoas que tenham uma relação familiar
com a criança ou jovem vítima – por exemplo: progenitores/as, figura parental substituta ou
de referência, avós, tios/as, primos/as, entre outros.
Ainda que a vítima e o/a autor/a do crime possam não coabitar, a vitimação tende a ocorrer na
habitação da criança ou jovem, dos/as familiares, ou noutros espaços frequentados pela família.
Dado que a maioria dos crimes sexuais contra crianças e jovens reportados é perpetrado por
elementos da família da vítima, será pertinente aprofundar as especificidades deste fenómeno.
i. Incidência
Vários estudos indicam que a violência sexual ocorrida em contexto intrafamiliar apresenta
maior prevalência em crianças do sexo feminino (as mais comuns são o incesto pai-filha
ou padrasto-enteada) e, no que respeita à idade, com as crianças que têm entre 8 e 10 anos.
Porém, em vários casos, a violência tende a iniciar-se mais cedo, através de comportamentos
mais subtis, e que a vítima dificilmente identifica como intrusivos (ex.º: toques disfarçados
de demonstrações de afeto, exibicionismo aparentemente involuntário).
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
3. Contextos de vitimação
provável que a criança ou jovem ofereça resistência, uma vez que conhece o/a autor/a do
crime e aquele/a desempenha um papel na sua vida. A ausência de sinais físicos de violência
poderá dificultar a identificação da situação de vitimação por outras pessoas, e tal facto, em
última instância, facilitará a perpetração do crime por um maior período de tempo, o que
está normalmente associado a um impacto psicológico mais nefasto para a vítima.
Uma vez que o/a autor/a do crime é alguém da confiança da vítima e, muitas vezes, detém
sobre esta algum tipo de autoridade, pode ser frequente que a criança ou jovem sinta
ambivalência ou medo que, por seu turno, tenderão a dificultar a revelação do crime.
Também os/as autores/as do crime poderão manter a situação violenta através de estratégias
mais ou menos violentas, ou de ameaças (ex.º: que praticará atos mais severos contra a
vítima ou contra pessoas de quem aquela gosta).3
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Contextos de vitimação
Por vezes, os atos sexuais contra crianças e jovens são perpetrados apenas contra estes e com
a conivência dos/as adultos/as que coabitam, em muitos casos por receio de denunciar e/ou
enfrentar o/a autor/a do crime.
Outros casos existem em que a violência doméstica é exercida apenas de um/a adulto/a contra
outro/a (ex.º: cônjuges ou uniões análogas a esta), mantendo-se uma aparente atitude de afeto
para com os/as descendentes (biológicos ou não), que tende a encobrir a violência sexual.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
3. Contextos de vitimação
A criança ou jovem abusada em contexto intrafamiliar tende a adotar uma atitude de:
t Passividade e dificuldade de resistência aos comportamentos do/a autor/a do crime
t Não incitamento das investidas do/a autor/a do crime
t Culpabilidade
b. Contexto Extrafamiliar
O contexto extrafamiliar refere-se a situações em que a violência sexual é cometida por
autores/as que não fazem parte do sistema familiar da criança ou jovem.
Grande parte destas situações são perpetradas por pessoas conhecidas da criança (ex.º:
amigos da família, vizinhos, prestadores de serviços) e que, muitas vezes, participam nas
rotinas desta (ex.º: professor, ama, tutor de uma atividade extra curricular, etc.), podendo
os atos ocorrer na habitação da vítima ou do/a autor/a do crime, na escola, na viatura
automóvel do/a autor/a do crime, numa loja ou no caminho para casa.
Importa, portanto, destacar, que são raras as ocorrências perpetradas por pessoas
desconhecidas da vítima.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Assim, torna-se necessário clarificar alguns dos mitos mais comummente partilhados, sendo
que os profissionais que intervêm com crianças e jovens vítimas de violência sexual deverão
afastá-los das suas conceções e contribuir para a sua dissolução junto das pessoas com quem
contactam diariamente.
A sociedade tenderá a assumir que os casos existentes são raros, e que serão essencialmente
os divulgados pelos meios de comunicação social. Por outro lado, perante os casos tidos
como “mediáticos”, que são amplamente difundidos e explorados, poder-se-á assumir que,
em determinados contextos (ex.º: institucionalização) ocorrem muito frequentemente4.
A existência de teorias que indicam que a par de todo o processo evolutivo, acontece sempre
um movimento contrário de involução, muitas vezes baseado na tendência natural do
homem para se sentir insatisfeito, leva à reflexão sobre a presença de crimes desta natureza
transversalmente no tempo.
Por outro lado, os esforços feitos com vista a um crescente respeito pelos direitos das
crianças ter-se-ão refletido numa maior sensibilização da população para este tipo de
problemáticas, o que resultará numa mais frequente revelação de casos de violência sexual
contra crianças e jovens. 4. Conquanto que os conceitos
de “raro” ou “pouco frequente”
sejam quase tão ambíguos em
termos quantitativos quanto os de
“abundante” ou “muito frequente”,
a verdade é que, tal como se
- “Isso só acontece em ambientes socioeconómicos desfavorecidos.” pode conferir no Capítulo I > 7.
Prevalência dos atos de violência
sexual contra crianças e jovens em
Portugal, os dados estatísticos
Alguns estudos indicam que crianças e jovens com diferentes tipos de carências poderão demonstram-nos que a prevalência
dos crimes é elevada.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
ser alvos mais prováveis para a vitimação sexual. Tais carências poderão não ser apenas de
índole socio-económica, mas também afetivas, de supervisão ou educação sexual. Estas
últimas poderão verificar-se em famílias de qualquer nível económico.
Concomitantemente é importante salientar que os fatores de risco não são apenas relativos
às possíveis vítimas, pelo que a vitimação poderá depender igualmente de fatores associados
ao/à autor/a do crime ou ao contexto em que se inserem.
Este mito poderá já ser muito pouco partilhado na sua base, em parte devido aos casos que têm
vindo a ser mediatizados, relativos a violência sexual contra crianças e jovens do sexo masculino.
Assim, tanto crianças do sexo feminino como masculino poderão ser vítimas de violência
sexual, ainda que as preferências dos/as autores/as dos crimes possam incidir sobre um ou
outro sexo, ou mesmo ambos. Além disso, os/as autores/as poderão não atuar consoante
as suas preferências, mas sim de acordo com a facilidade que terão em aceder a algumas
crianças ou jovens.
Existem vários fatores que poderão ter impacto na propensão da criança ou jovem para
revelar a situação de que foi vítima. As estratégias do/a autor/a do crime, a relação deste/a
com a vítima, a antevisão das possíveis consequências da revelação, as características da
personalidade da vítima, a fase do desenvolvimento em que se encontra, a forma como
esta lida com a situação, os sentimentos de culpa, vergonha e medo, o tipo, severidade
e consequências da vitimação, são algumas das particularidades a ter em conta na
compreensão do processo de revelação.
Tudo isto pode influenciar o tempo decorrido entre o(s) acontecimento(s) e a revelação,
bem como o momento em que esta acontece, a forma como é feita e a quem a vítima se
dirige para este efeito.
É importante lembrar que a revelação pode não ser feita de forma verbal, mas também por
meio de desenhos ou manifestação de sintomas, e que a mesma pode não transmitir uma
informação clara, uma vez que depende da compreensão da vítima sobre o que aconteceu.
Nalguns casos é mais tarde, quando a vítima inicia a sua vida sexual, ou quando outro
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
acontecimento a faz reviver essas memórias, que surgem alguns sintomas ou a necessidade
de revelar a situação de violência sexual na infância ou adolescência.5
Em geral podem apontar-se três possíveis reações das crianças ou jovens no decurso da
vitimação: passividade, agressividade e atividade. O facto de a vítima não resistir aos atos
contra si perpetrados não significa que os esteja a apreciar ou a gostar.
Assim, a forma como irá reagir à situação de violência sexual dependerá em grande parte
das estratégias de coping que a criança ou jovem detém, independentemente de aquelas
serem mais ou menos adaptativas.
Não obstante, a criança/jovem poderá sentir prazer na relação sexual com o/a adulto/a,
uma vez que, (e principalmente se já tiver passado a fase da puberdade), tem a capacidade
de sentir-se estimulada sexualmente. Contudo, a vítima poderá não estar preparada, nem
física, nem psicologicamente, para ter relações sexuais, principalmente com alguém numa
fase de desenvolvimento desfasada da sua. Por outro lado, o prazer sexual na criança ou
jovem está muitas vezes associado à perceção de afeto, especialmente se a interpretação do
comportamento sexual for distorcida pelo/a autor/a do crime nesse sentido.
Ainda que se tenha em conta que uma atitude de curiosidade relativamente à sexualidade faz
parte do processo normal de desenvolvimento de uma criança, isso não quer dizer que tenha
intenção clara e consciente de se envolver sexualmente com um/a adulto/a ou alguém mais velho.
Por vezes, mesmo que verbalize essa vontade, esta pode assentar em expectativas irrealistas
5. A este propósito, ver Parte
acerca da relação sexual ou consistir na reprodução de comportamentos observados. I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 4. O processo de
revelação da vitimação
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Deste modo, cabe ao/à adulto/a ou à pessoa mais velha declinar o comportamento
sexualizado da criança ou jovem, tomando em consideração que esta pode ainda não deter
completa consciência do teor e consequências do seu comportamento.
Por outro lado, este é um argumento frequentemente utilizado pelos/as autores/as dos
crimes de natureza sexual para justificar os seus atos, com vista a descredibilizar a vítima,
dividir o eventual sentimento de culpa com aquela ou mesmo porque, em alguns casos,
interpretam de uma forma distorcida os comportamentos das crianças ou jovens, podendo
perceber um gesto de carinho ou procura de afeto, como uma atitude de insinuação e desejo
de estimulação sexual.
Nem sempre a perpetração dos crimes sexuais está associada a violência física, ameaças ou
coação, podendo o/a autor/a do crime recorrer a estratégias de sedução e manipulação, e a
aproveitar-se, por vezes, da inexperiência das crianças ou jovens para as levar a colaborar
nas práticas sexuais ou para camuflar os comportamentos sexualizados, o que poderá
dificultar a recolha de vestígios físicos da prática dos atos. Noutros casos, o/a autor/a do
crime poderá confabular um relacionamento de reciprocidade com a vítima, fazendo com
que seja cuidadoso/a nos seus comportamentos.
No entanto, existe um outro conjunto de comportamentos a que o/a autor/a do crime pode
recorrer para retirar prazer do contato com a vítima, que poderão passar pela penetração
com outras partes do corpo ou objetos, toques, carícias, masturbação, exibicionismo,
recurso a fotografias ou vídeos, ou quaisquer outros comportamentos que propiciem a
excitação sexual. Não raras vezes, os/as autores/as dos crimes podem recorrer a este tipo de
atos com o objetivo de não deixarem vestígios, de forma a diminuírem a probabilidade de
serem descobertos.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Ainda que estatisticamente a maioria dos crimes ocorram contra crianças entre os 8 e os
13 anos, crianças mais pequenas poderão igualmente ser alvos preferenciais por estarem
mais próximas dos/as autores/as dos crimes, ou porque é mais fácil manter a perpetração do
crime tendo em conta o menor desenvolvimento da linguagem das crianças.
Os crimes sexuais contra crianças e jovens, pela sua natureza, tendem a gerar maior sensibilidade
junto de quem deles tem conhecimento. Todavia, tal não significa que exista uma maior
propensão para que sejam denunciados, por vezes devido ao pudor, ao receio de represálias, ou
ao facto de não acreditarem que são verdadeiras as situações de que tomam conhecimento.
Mesmo quando a revelação do crime pela criança ou jovem acontece junto dos seus progenitores,
representantes legais ou de um/a adulto/a da sua confiança (ex.º: familiar, professor), a denúncia
pode tardar ou nunca acontecer, por vergonha, culpa, receio das implicações dentro do sistema
em que a criança/jovem se insere (ex.º: família, instituição de acolhimento, escola, sociedade em
geral), ou mesmo pela crença de que o processo-crime poderá ser nocivo para a vítima.
Também é de lembrar que alguns crimes acontecem com a conivência dos/as cuidadores/
as da vítima, podendo até estes/as retirar benefícios da situação de abuso. Outras vezes, a
criança ou jovem poderá ser alvo de negligência, quando quem cuida de si não valoriza o
impacto que a vitimação pode ter no seu desenvolvimento.
A conceção idealizada da família como o grupo que acolhe, protege e acarinha a criança/
jovem em primeira instância, pode originar que se creia que os crimes sexuais contra
crianças em contexto intrafamiliar serão os menos frequentes.
Neste sentido, poderá pensar-se que o/a autor/a do crime será uma pessoa com aspeto
duvidoso/desviante e de fácil identificação.
Todavia, vários estudos e estatísticas indicam que os crimes sexuais contra crianças e jovens
são cometidos na sua maioria por pessoas conhecidas destes, que tenham com a vítima
maior ou menor proximidade.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Mesmo que os/as autores/as dos crimes sejam desconhecidos/as das vítimas, tendem a estar
integrados na sociedade e junto de uma estrutura familiar normativa, podendo ser conhecidos
pelo seu afeto junto das crianças ou jovens, sendo esta uma potencial estratégia para a aproximação
bem-sucedida junto daqueles e consequente perpetração dos atos de violência sexual.
Este mito, que poderá estar relacionado com o anterior, no sentido da crença de que o/a
autor/a do crime é facilmente identificável pela exclusão social que o caracteriza, consiste na
generalização abusiva da ideia de que uma grande parte dos/as autores/as dos crimes têm
uma perturbação mental diagnosticada.
Todavia, tal não se verifica; portanto, importa não fazer uso desta premissa para
desculpabilizar o comportamento do/a autor/a do crime, uma vez que, na maior parte dos
casos, os atos são cometidos de forma consciente e lúcida.
Tal como o aspeto exterior do/a autor/a do crime não segue um padrão, o mesmo acontece
com o das vítimas. As preferências dos/as autores/as dos crimes, no que diz respeito ao
aspeto físico das crianças e jovens nem sempre correspondem a um padrão de beleza ou
harmonia (ainda que estes conceitos sejam interpretados de forma subjetiva).
Por outro lado, e como já foi referido anteriormente, os/as autores/as dos crimes poderão
escolher vitimar uma criança/jovem que lhes esteja mais acessível ou que detenha uma
maior vulnerabilidade.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Contudo, a introdução de memórias falsas também pode ser desencadeada por outras
pessoas que, ao interpretar erradamente uma determinada situação, poderão fazer questões
sugestivas à criança ou dar-lhe pistas sugestionadas para recordarem algo que acreditam ter
acontecido, levando a criança/jovem a crer que vivenciou o que lhe foi descrito.
Além disso, em jovens mais velhos, nomeadamente adolescentes, existem casos em que
estes poderão criar histórias de violência sexual com objetivos secundários (ex.º: justificar
ausências de casa, tentativas de manipulação da atenção dos adultos).
De qualquer forma, o/a técnico/a que venha a intervir com a criança/jovem ou a pessoa a
quem é revelada a situação de vitimação deverá transmitir que acreditam no que a vítima
está a relatar e não deixar que eventuais dúvidas sobre a veracidade dos factos obstem a uma
denúncia e/ou pedido de apoio.
As crianças e jovens nem sempre conseguem verbalizar a vitimação de que foram alvo com
precisão, não porque estejam a mentir, mas por outros motivos, como pelo normal desgaste
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
mnésico provocado pelo tempo decorrido entre o momento do abuso e aquele em que a
vítima o revela. Crianças mais novas poderão experienciar dificuldades em verbalizar ou
expressar o que aconteceu, especialmente pelo seu vocabulário, geralmente muito reduzido.
Outros motivos subjacentes às possíveis lacunas, inseguranças e incongruências de alguns
relatos poderão advir das circunstâncias do crime e da forma como a vítima integra tais
informações. Com efeito, as ameaças, subjugação, manipulação ou distorção dos factos
provocadas pelo/a autor/a do crime poderão fazer com que a vítima se sinta culpada ou que
acredite que os factos aconteceram de forma diferente, gerando dúvidas, medo ou vergonha
que se podem vir a refletir no discurso da criança ou jovem.
Por outro lado, os próprios mecanismos de defesa da criança ou jovem poderão desencadear
uma clivagem ou recalcamento da informação que a mente terá dificuldade em processar,
tornando as memórias difusas e de difícil recuperação.
Ainda que nalguns casos a condução do processo-crime possa gerar na criança ou jovem
vitimação secundária, existe a possibilidade de que este possa igualmente funcionar como
uma catarse, no sentido em que a vítima se poderá libertar daquele segredo, percecionar que
a culpa não lhe é atribuída e que algo está a ser feito para que outras crianças e jovens não
sejam vítimas de violência sexual.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens
Apesar da violência sexual ser um acontecimento muito poderoso na vida de uma criança
ou jovem, o impacto e repercussões que aquele episódio pode vir a ter dependerá de vários
fatores. A proximidade sistémica e emocional do/a autor/a do crime relativamente à vítima,
a intensidade e duração da vitimação, as estratégias utilizadas por quem perpetrou os atos, a
idade da vítima aquando do abuso, a existência de acontecimentos traumáticos anteriores, as
reações aquando da revelação e o tempo decorrido entre a vitimação e a revelação, a forma
como o processo-crime foi conduzido e o seu desfecho, são algumas variáveis que poderão
ter influência no impacto da vitimação.
É fulcral também ter em conta os fatores de proteção e resiliência8 presentes na vida da criança/
jovem, como por exemplo a existência de uma personalidade mais adaptativa, ou a presença
de uma eficaz rede de suporte primária, que poderão ser determinantes no desenrolar de um
processo de apoio e que, por conseguinte, poderão diminuir o impacto da vitimação.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
5. A necessária distinção entre pedofilia e violência sexual contra crianças e jovens
A distinção entre ambos os conceitos advém, desde logo, da ciência a que estão associados.
Se a pedofilia é uma classificação relativa à Psiquiatria, os crimes sexuais pertencem ao
âmbito do Direito Penal.
Critérios de diagnóstico:
Assim, importa salientar que um/a autor/a de violência sexual contra crianças ou jovens
pode não ter como diagnóstico a perturbação de pedofilia; com efeito, existe uma
prevalência baixa de pedófilos entre autores/as de violência sexual contra crianças e jovens.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
5. A necessária distinção entre pedofilia e violência sexual contra crianças e jovens
Da mesma forma, uma pessoa que venha a ser diagnosticada com pedofilia poderá nunca
cometer qualquer crime sexual.
Ainda que o diagnóstico de pedofilia seja um fator de risco para a prática de crimes sexuais,
este não tem fiabilidade suficiente para prever, por si só, a existência dos mesmos. Por outro
lado, este transtorno, em conjunto com outras patologias (ex.º: Transtorno da Personalidade
Antissocial) poderá aumentar exponencialmente a probabilidade do seu portador agir
criminalmente por intermédio de violência sexual contra crianças e jovens.
Portanto, é importante não negligenciar o facto de existirem autores/as dos crimes que não
têm patologia psiquiátrica; além disso, estes/as autores/as podem nunca ter manifestado
interesse sexual por vítimas menores de idade e, a dado momento, cometer um crime dessa
natureza, de forma pontual e/ou direcionada apenas para uma criança ou jovem em específico.
Mais ainda é de salientar o facto de a pedofilia não ser, por si só, critério para a
fundamentação de inimputabilidade do/a autor/a do crime.
29
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
O crime é um comportamento que viola a lei e, nessa medida, é punido com uma pena. Para
efeitos do Código de Processo Penal (CPP), o crime é o conjunto de pressupostos de que
depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida de segurança criminais.
Em matéria de violência sexual contra crianças e jovens, importa desde já realizar uma breve
introdução sobre os crimes contra as pessoas, nomeadamente os crimes contra a liberdade
sexual e contra a autodeterminação sexual (APAV, 2013).
Neste conspecto, o Código Penal (CP) distingue estes dois grupos de crimes sexuais9
no capítulo V, Secções I e II. Os “crimes contra a liberdade sexual têm como bem jurídico
a proteção da liberdade e autodeterminação sexual de todas as pessoas, sem aceção de
idade” (Ribeiro, 2014, p. 16), penalizando todas as atividades sexuais cometidas sem o
consentimento da vítima. Por seu turno, os crimes contra a autodeterminação sexual visam
a proteção da autodeterminação sexual das crianças ou jovens, intrinsecamente conexionada
com o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual (Dias, 1999).
Deste modo, percebe-se que os crimes contra a autodeterminação sexual oferecem uma
proteção mais ampla das crianças e jovens (em regra, dizem respeito a crianças com idade
inferior a 14 anos e, em alguns tipos legais, os jovens com idades compreendidas entre 16
e 18 anos), protegendo-os de contactos sexuais precoces (APAV, 2013), pois o legislador
pressupõe que certos comportamentos sexuais, ainda que livres de ameaça grave, coação
ou violência, poderão prejudicar o desenvolvimento da personalidade do menor (Cunha,
2003; Sousa, 2015), dado que “a vítima não tem ainda capacidade para formar livremente a
sua vontade – ou para compreender o significado global (implicações) do seu comportamento”
(Cunha, 2003, p. 354).
Nos últimos anos, diversos instrumentos jurídicos internacionais têm sido elaborados
9. Segundo o Ac. do TRP de
04.06.2014, “os crimes sexuais
com vista a prevenir e sancionar a criminalidade sexual. Destes, são exemplo as Diretivas
protegem, por um lado, a liberdade 2011/92/UE e 2012/29/UE, bem como as Convenções de Lanzarote e de Istambul. O
sexual dos adultos; e, por outro,
o livre desenvolvimento dos legislador português tem dado resposta a estes apelos, com a criação, por exemplo, da Lei n.º
menores no campo da sexualidade,
considerando-se aqui que, 83/2015, de 5 de agosto (que procede à 38.ª alteração do CP).
determinados atos ou condutas de
natureza sexual podem, mesmo
sem violência, em razão da
pouca idade da vítima prejudicar
De facto, verifica-se uma crescente preocupação em torno dos crimes desta natureza, pelo
gravemente o seu crescimento
harmonioso e, por consequência,
que os avanços nesta temática são tidos como “passos de gigante invocando a proteção penal
o livre desenvolvimento da sua da liberdade e da autodeterminação sexual dos menores”10 (Antunes, 2010, p. 153).
personalidade”.
10. Esses avanços materializam-se,
entre outros, pelo disposto no
Art.º 118.º, n.º 5, do CP ou no artigo
178.º do CP.
30
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
Esta distinção não é meramente teórica, tendo consequências práticas no processo criminal.
Assim, nos crimes públicos, o início e o desenrolar do procedimento não está dependente
da vontade da vítima, bastando a sua notícia pelos Órgãos de Polícia Criminal e/ou
Autoridades Judiciárias ou a denúncia por qualquer pessoa. Mais ainda, dado que está em
causa a proteção de toda a comunidade, sempre que um funcionário (segundo a definição
do Art.º 386.º do CP) tenha conhecimento, no exercício das suas funções, de um crime de
natureza pública, está obrigado a denunciá-lo.
No Código Penal, os crimes públicos são identificáveis pelo facto de nada ser dito no
preceito legal ou em artigos seguintes, sobre a necessidade de ser feita queixa e/ou deduzir
acusação particular.
31
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Nos crimes de natureza particular está em causa a violação de bens de natureza pessoal
(ex.º: crimes contra a honra e alguns crimes contra a propriedade, entre pessoas com
laços de parentesco próximo). Nestes crimes, o papel da vítima é crucial para o desenrolar
do procedimento criminal, dependendo não só de queixa mas também da constituição
como assistente e dedução da acusação particular. Um crime desta natureza é facilmente
identificável no Código Penal, estando patente no preceito legal (ou num artigo posterior) a
referência à dependência de queixa e à dedução de acusação particular.
Importa salientar que a prescrição do procedimento penal, relativamente aos crimes contra
a liberdade e autodeterminação sexual de menores, não acontece antes de o/a ofendido/a
perfazer 23 anos. Embora este facto possa conduzir a um “risco de estigmatização processual
da vítima”, tal lapso temporal permite que a vítima não esteja impossibilitada, por via legal,
de instaurar ou prosseguir o processo penal (Antunes, 2010, pp.159-160).
32
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
2. Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a
praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
O crime de coação sexual (Art.º 163.º do CP) existe sempre que a vítima é constrangida,
obrigada, coagida através de violência ou ameaça grave, ou, depois de, para esse fim, o
agente a ter tornado inconsciente, ou posto na impossibilidade de resistir, a sofrer ou a
praticar, com o agente do crime ou com outrem, um ato sexual de relevo12. A pena de prisão
pode ir de 1 a 8 anos, sendo a moldura penal diminuída para de 1 mês13 a 5 anos caso não
seja usada violência ou ameaça grave.
Este tipo legal protege a liberdade sexual de uma qualquer pessoa, independentemente da
idade, podendo tratar-se de um menor ou um/a adulto/a (Ribeiro, 2014).
Um dos pressupostos para preencher o tipo legal é que tenha ocorrido um ato sexual de
relevo. Embora, não exista uma definição unívoca para tal, certo é que todo o ato que “pela sua
natureza, conteúdo ou significado se relacionar com a esfera sexual, constituindo um ‘entrave’ à
liberdade sexual da vítima” (Cunha, 2003, pp.197-198), deve ser enquadrável em tal conceito.
Ademais, exige-se um ato de constranger, podendo para tal ser usados distintos meios,
nomeadamente a violência, ameaça grave, colocação em estado de inconsciência ou na
impossibilidade de resistir ou abuso de autoridade (por exemplo, resultante de uma relação
de dependência hierárquica, económica ou de trabalho) (Ribeiro, 2014).
Além do disposto no Art.º 163.º do CP, são aplicáveis a este crime as agravações previstas
no Art.º 177.º do CP, especificamente as relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do
crime, à hipótese do agente ser portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto
de o crime ter sido cometido conjuntamente, com duas ou mais pessoas, à possibilidade
de resultar do crime gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente
patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte, ou à idade da vítima (menor de 14
e 16 anos – uma vez que este crime é igualmente aplicável a maiores de idade).
ii. Violação
1. Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente
ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: 12. V. Glossário
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 13. É utilizada a expressão “1 mês”
porque, quando nada é dito no
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; preceito legal, este corresponde ao
é punido com pena de prisão de três a dez anos. tempo de prisão mínimo, de acordo
com o Art. 41.º n.º1 do CP.
33
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
2. Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.
Estamos perante um crime de violação (Art.º 164.º do CP) sempre que, através de um ato de
violência (física ou psíquica), ameaça grave, ou, porque tornada inconsciente e incapacitada
de resistir, a vítima é forçada a praticar cópula, coito anal ou oral com o agente ou outrem,
ou a sofrer a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos14, sendo que a pena
de prisão se situa entre os 3 e os 10 anos.
O crime de violação inclui também as situações em que, não tendo sido usada violência ou
ameaça grave, o agente pratica ou deixa que a vítima sofra os comportamentos descritos,
sendo este ato punível com pena de prisão de 1 até 6 anos.
Neste crime, o bem jurídico continua a ser a liberdade sexual. Todavia, tendo por base o
crime de coação sexual, este é um crime de maior gravidade, pois visa punir a prática de atos
sexuais de relevo qualificados (Ribeiro, 2014).
“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando
propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão
até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.”
14. V. Glossário
34
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
O crime de importunação sexual (Art.º. 170.º do CP) acontece sempre que o agente
importunar outra pessoa formulando propostas de teor sexual, praticando atos de carácter
exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual. Este comportamento,
punível com pena de prisão de 1 mês até 1 ano ou pena de multa até 120 dias – se pena mais
grave lhe não couber –, é suscetível de abranger o assédio sexual perpetrado em qualquer
local público, ainda que as propostas de teor sexual formuladas ou o constrangimento de
que a vítima é alvo, não consubstanciem atos sexuais de relevo15.
É de evidenciar que até à entrada em vigor da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, o ilícito
consistia única e exclusivamente na importunação sexual cometida através de dois tipos de
conduta: o caráter exibicionista ou o constrangimento da vítima a ter contacto sexual com
o agente. Porém, com a alteração introduzida no Código Penal, o âmbito de punibilidade –
isto é, os comportamentos que são criminalizados –, alargou-se substancialmente, estando
também incluída a formulação de propostas de teor sexual.
Tal como já foi abordado anteriormente, também para o crime de importunação sexual está
prevista a aplicação das agravações constantes do Art.º 177.º do CP, mas agora apenas as
referentes a certos circunstancialismos, nomeadamente a relação da vítima com o/a autor/a
do crime (Art.º 177.º, n.º 1 do CP).
35
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
pune o agente que pratica um ato sexual de relevo com uma pessoa inconsciente ou incapaz
de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, com uma pena de
prisão de seis meses a oito anos. Ademais, sempre que se tratar de um ato sexual de relevo
qualificado o agente será punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
Este é um crime semipúblico, isto é, depende de queixa, salvo se forem praticados contra
menor, ou se do crime resultar a morte ou suicídio da vítima (Art.º 178.º, n.º 1 do CP). Está
ainda sujeito às agravações constantes do Art.º 177.º do CP, especificamente as relativas
à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à hipótese do agente ser portador de uma
infeção sexualmente transmissível, ao facto de o crime ter sido cometido conjuntamente,
com duas ou mais pessoas, à possibilidade de resultar do crime gravidez, ofensa à
integridade física grave ou transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida,
suicídio ou morte, e à idade da vítima (menor de 14 e 16 anos – uma vez que este crime é
igualmente aplicável a maiores de idade).
O crime de abuso sexual de pessoa internada (Art.º 166.º do CP) visa punir quem,
aproveitando-se das funções que exerce ou do lugar que detém - estabelecimento onde
se executem reações criminais privativas da liberdade, hospital, hospício, asilo, clínica de
convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento,
ou estabelecimento de educação ou correção - praticar ato sexual com pessoa que aí se
encontre internada e que de qualquer modo lhe esteja confiada ou se encontre ao seu
cuidado. A pena de prisão para este tipo de crime varia entre os 6 meses a 5 anos, caso se
tratem de atos sexuais de relevo simples, ou de 1 a 8 anos, nos casos em que existam atos
sexuais de relevo qualificado.
O crime de abuso sexual de pessoa internada é um crime público, estando sujeito às agravações
do Art.º 177.º do CP, nomeadamente a hipótese do agente ser portador de uma infeção
sexualmente transmissível; o facto de o crime ter sido cometido conjuntamente, com duas ou
mais pessoas e a possibilidade de resultar do crime gravidez, ofensa à integridade física grave ou
transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte.
Por último, o crime de lenocínio (Art.º 169.º do CP) visa punir o agente que fomente,
favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa (com 18 ou mais anos) de prostituição,
36
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
Se o agente cometer o crime por meio de violência ou ameaça grave, através de ardil ou
manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela
ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se
de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, será punido
com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Importa salientar que o tipo legal visa proteger a liberdade sexual da vítima, punindo “o
aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente,
não é reconhecida como plenamente lícita” (ac. TRC de 10.07.2013).
Por último, este crime distingue-se do crime de lenocínio de menores (Art.º 175.º CP), por
causa das idades das vítimas – maioridade ou menoridade.
No abuso sexual de crianças (Art.º 171.º do CP), a faixa etária protegida são os menores
de 14 anos. Por outro lado, no crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º 173.º do CP)
confere-se proteção aos menores entre os 14 e os 16 anos, relativamente a atos sexuais de
relevo. Nos crimes de abuso sexual de menores dependentes (Art.º 172.º do CP) e recurso
a prostituição de menores (Art.º 174.º do CP) atribui-se proteção a menores com idades
compreendidas entre os 14 e os 18 anos.
Se nas duas últimas formulações (Arts.º 172.º a 174.º do CP) existe um limite temporal
mínimo (14 anos) e diferentes limites superiores (16 e 18 anos), no primeiro crime elencado
(abuso sexual de crianças) não se vislumbra limite mínimo – sendo que existe um limite
superior (14 anos)17. 17. Para acompanhar tal explicação
atentar no ac. TRP de 04.06.2014.
37
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Por último, os crimes de lenocínio de menores (Art.º 175.º do CP), pornografia de menores
(Art.º 176.º do CP) e aliciamento de menores para fins sexuais (Art.º176.º-A do CP)
conferem proteção a todos os menores de idade (entre 0 e 18 anos).
Em todos os tipos legais desta secção (crimes contra a autodeterminação sexual) a tentativa
é punível, com exceção do aliciamento de menores para fins sexuais (Art.º 176.º-A do CP).
1. Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra
pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de
partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3. Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º; ou
b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto
pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4. Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de
prisão de seis meses a cinco anos.
5. A tentativa é punível.
O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo Art.º 171.º do CP, pressupõe
“o contacto sexual de uma criança com um adulto ou com uma criança mais velha, que
tem, em regra, pelo menos uma diferença de cinco anos e uma diferença significativa no
desenvolvimento cognitivo-afetivo” (Ribeiro, 2014, p. 25).
Neste tipo legal, o bem jurídico protegido é a autodeterminação sexual, associada ao livre
desenvolvimento da personalidade do menor no contexto sexual. Com efeito, as condutas
do agente, ainda que não tenha recorrido a meios de constrangimento, são punidas dada
a vulnerabilidade, dependência da vítima e a falta de capacidade para expressar, de forma
consciente e livre a sua vontade (Cunha, 2003).
Deste modo, “o consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da
responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural,
que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender
as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o
38
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
Este crime comporta várias ações, dispersas pelos distintos números do Art.º 171.º do CP,
nomeadamente praticar ou levar a que outra pessoa pratique ato sexual de relevo (n.º 1) ou ato
sexual de relevo qualificado (n.º 2)18 com ou em menor de 14 anos, praticar os atos previstos
no Art. 170.º do CP (n.º 3 al. a)), atuar por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto
pornográfico (n.º 3 al. b)) ou aliciar para assistir a abusos ou atividades sexuais (n.º3 al. c)).
Seguindo o disposto nos crimes abordados anteriormente, também para o abuso sexual de
crianças se preveem as agravações dispostas no Art.º 177.º do CP, nomeadamente as relativas
à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à hipótese do agente ser portador de uma
infeção sexualmente transmissível, ao facto de o crime ter sido cometido conjuntamente
com duas ou mais pessoas, à possibilidade de, pela perpetração do crime, resultar gravidez,
ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente patogénico que crie perigo para a
vida, suicídio ou morte da vítima.
1. Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.os 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a
menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com
pena de prisão de um a oito anos.
2. Quem praticar ato descrito nas alíneas do n.º 3 do artigo anterior, relativamente a menor
compreendido no número anterior deste artigo e nas condições aí descritas, é punido com pena de
prisão até um ano.
3. Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de
prisão até 5 anos.
4. A tentativa é punível.
O crime de abuso sexual de menores dependentes (Art.º 172.º do CP) contempla cinco
modalidades de ação: a prática de ato sexual de relevo, a prática de ato sexual de relevo
qualificado, a prática, perante o menor, de atos de carácter exibicionista ou constrangendo-o
a contacto de natureza sexual, a atuação sobre o jovem por meio de conversa, escrito,
espetáculo ou objeto pornográfico ou o aliciamento de jovem com vista a assistir a
abusos sexuais ou a atividades sexuais. As penas de prisão previstas diferem consoante o
comportamento exercido, sendo a moldura penal mais baixa de 1 mês a 1 ano de prisão e a
mais elevada de 1 a 8 anos de prisão.
18. V. Glossário
39
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Todavia, a redação deste tipo legal encerra a expressão “confiado para educação ou
assistência”, que não gera um entendimento unânime. Ainda assim, poder-se-á considerar
que os agentes, neste caso, sejam os que exercem as responsabilidades parentais, pese
embora sejam as relações de facto19 ou seja, a confiança a um terceiro (familiar ou não) que
levantam maiores problemas de concretização.
Com efeito, neste tipo legal exige-se a verificação de um dever especial, relacionado com
a relação de dependência (Sousa, 2015), podendo estar a falar-se dos progenitores, outros
familiares, tutores, assim como todas aquelas pessoas a quem o menor possa ser entregue
para educação ou assistência, desde que não haja internamento do menor (neste caso,
aplicar-se-ia o Art.º 166.º do CP). Mais ainda é de salientar que o (eventual) consentimento
prestado pelo jovem, entre os 14 e 18 anos, se torna totalmente irrelevante, “face ao
ascendente de uma das partes sobre a outra” (Sousa, 2015, p. 22; Albuquerque, 2008).
Em suma, o crime de abuso sexual de menores dependentes pode ser cometido contra um
jovem, entre os 14 e os 18 anos. Este acarreta várias dificuldades interpretativas, pelo que se
afigura de extrema importância a menção de que o crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º
173.º CP) é aplicado, não raras vezes, pela jurisprudência, em detrimento do agora analisado.
1. Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja
praticado por este com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de
partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A tentativa é punível.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
No crime de atos sexuais com adolescentes, previsto e punível pelo Art.º 173.º do CP,
criminalizam-se os atos sexuais de relevo, sendo que estes têm de envolver um agente maior
(isto é, com 18 ou mais anos) e um jovem entre os 14 e 16 anos, sendo que o primeiro abusa
da inexperiência do segundo. Para este crime a pena de prisão prevista é de 1 mês até 2 anos.
Se os atos sexuais de relevo consistirem em cópula, coito oral, coito anal ou introdução
vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, a pena de prisão prevista de 1 mês até 3 anos.
A génese deste tipo legal emerge da assimetria de poder entre o agente e a vítima, estando
aquela intrinsecamente conexionada com múltiplos aspetos de que são exemplo a diferença de
idades, a maturidade ou a experiência (Sousa, 2015). Deste modo, o legislador parte da premissa
de que “o jovem, apesar de ter mais de 14 anos, não possui condições para formar livremente a
sua vontade no domínio sexual, porque o agente abusa da sua inexperiência” (Sousa, 2015, p. 31).
A concretização do conceito de “inexperiência” poderá gerar algumas dúvidas, mas tem sido
entendimento que não se enquadrará aqui apenas a inexperiência sexual20.
O crime de atos sexuais com adolescentes está sujeito às agravações previstas no Art.º
177.º do CP, nomeadamente as relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à
hipótese do agente ser portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto de o
crime ter sido cometido conjuntamente com duas ou mais pessoas, à possibilidade de, pela
perpetração do crime, resultar gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de
agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
Tal como já foi abordado anteriormente, importa relembrar que este é o único crime contra
a liberdade e autodeterminação sexual relativo a menores que reveste natureza semipública:
ou seja, o seu procedimento criminal depende de queixa, salvo se dele resultar suicídio ou a
morte do jovem (Art.º 178.º, n.º 3 do CP).
1. Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 18 anos, mediante pagamento ou
outra contrapartida, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes
do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A tentativa é punível.
20. Certo é que o próprio preceito
legal abandonou a expressão
“inexperiência sexual”, passando
a figurar única e exclusivamente
O crime de recurso à prostituição de menores (Art.º 174.º do CP) é um ilícito criminal o termo inexperiência. Todavia,
existem diversas opiniões díspares.
41
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Deste modo o agente que praticar ato sexual de relevo com um menor entre 14 e 18 anos,
mediante pagamento ou outra contrapartida é punido com pena de prisão de 1 mês até 2 anos.
Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de 1 mês a 3 anos.
A este tipo legal poderão ser aplicadas as agravações do Art.º 177.º do CP, nomeadamente
as relativas à relação entre o agente e o/a menor, à hipótese de o agente ser portador de
uma infeção sexualmente transmissível, à possibilidade de o crime ter sido cometido
conjuntamente, com duas ou mais pessoas, à eventualidade de existirem resultados da
perpetração do crime (gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente
patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte) ou relativas à idade do menor.
v. Lenocínio de menores
1. Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor ou aliciar menor para
esse fim é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. Se o agente cometer o crime previsto no número anterior:
a) Por meio de violência ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de
dependência hierárquica, económica ou de trabalho;
d) Atuando profissionalmente ou com intenção lucrativa; ou
e) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima;
é punido com pena de prisão de dois a dez anos.
Se um agente praticar um dos atos anteriormente referidos poderá ser punido com pena
de prisão de 1 a 8 anos. Caso seja utilizada violência ou ameaça grave, ardil ou manobra
fraudulenta, abuso de autoridade, ou se o agente atuar profissionalmente ou com intenção
lucrativa, se se aproveitar da incapacidade psíquica ou da especial vulnerabilidade do menor,
21. Se for menor de 14 anos, o ilícito
enquadrar-se-á no crime de abuso será aplicada pena de prisão de 2 a 10 anos.
sexual de crianças.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
1. Quem:
a) Utilizar menor em espetáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu
suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por
qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir,
importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2. Quem praticar os atos descritos no número anterior profissionalmente ou com intenção lucrativa é
punido com pena de prisão de um a oito anos.
3. Quem praticar os atos descritos nas alíneas a) e b) do n.º 1 recorrendo a violência ou ameaça grave é
punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
4. Quem praticar os atos descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com
representação realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.
5. Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena
de prisão até 2 anos.
6. Quem, presencialmente ou através de sistema informático ou qualquer outro meio, sendo maior,
assistir ou facilitar acesso a espetáculo pornográfico envolvendo a participação de menores de 16
anos de idade é punido com pena de prisão até 3 anos.
7. Quem praticar os atos descritos nos n.os 5 e 6 com intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.
8. A tentativa é punível.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Este crime está sujeito às agravações patentes no Art.º 177.º do CP, relativas à relação entre
agente e vítima e ao facto do crime ser cometido, conjuntamente por duas ou mais pessoas.
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Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
Neste caso, o agente (que tem de ter 18 ou mais anos) que, por intermédio do uso das
tecnologias de informação e de comunicação, alicie menor (até aos 18 anos) para encontro
que vise a prática de atos sexuais de relevo (simples ou qualificados) ou para a utilização do
menor em espetáculo pornográfico, fotografia, filme ou gravação pornográfica, é punido
com pena de prisão de 1 mês até 1 ano. No entanto, as penas previstas para este crime
são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido
conjuntamente por duas ou mais pessoas.
O TSH é um fenómeno que atinge milhares de pessoas em todo o mundo. Muito associado,
durante os anos 90, a situações de prostituição forçada e exploração sexual, é hoje
interpretado de uma forma mais abrangente, no qual se incluem outros tipos de exploração.
O TSH sustenta-se no aproveitamento das fragilidades e da vulnerabilidade das suas vítimas,
não sendo um fenómeno exclusivo de um determinado setor populacional, ou de uma
região geográfica específica. Ainda que o termo “vulnerabilidade” possa ser interpretado de
formas diferentes, por entre a legislação de vários países, é possível considerar que tal, em
regra, se relaciona com o ambiente onde as potenciais vítimas residem e também a fatores
pessoais que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa se tornar vítima de TSH.
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Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
constitutivos dos diferentes crimes são diferentes”, como também “a resposta exigida às
autoridades irá variar, dependendo do crime em causa” (Costa, 2011, p.8). De forma breve,
o crime de auxílio à imigração ilegal26 “envolve geralmente o consentimento das pessoas que
são objeto dessa introdução clandestina” e o smulling necessita que se verifique o critério da
transnacionalidade, pois facilita-se a “passagem ilegal por uma fronteira e a sua entrada ilegal
noutro país” e denota uma relação entre o facilitador e o imigrante, na medida em que o
primeiro não tem “intenção de explorar a pessoa objeto de introdução clandestina após a sua
chegada” (Costa, 2011, p. 10).
Tabela - Distinção entre os crimes de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal (smulling)
O crime de tráfico de pessoas (Art.º 160.º do CP), enquadrado nos crimes contra a liberdade
26. Art. 183.º da Lei n.º 23/2007 de 4 de
pessoal, pressupõe determinadas ações como o recrutamento, aliciamento, transporte,
julho – Regime Jurídico de Entrada, transferência, alojamento ou acolhimento de uma pessoa (Costa, 2011; Nações Unidas, 2009).
Permanência, Saída e Afastamento
de Estrangeiros do Território
Nacional.
46
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
Tais ações deverão ser acompanhadas pela utilização de pelo menos um meio, como por exemplo
força, ameaça, coação, sequestro, fraude, engano ou abuso de autoridade (Costa, 2011).
A existência de consentimento da vítima não exclui a ilicitude dos atos praticados, porque
não releva, tal como previsto no Art.º 160.º n.º 8 do CP.
Ainda que existam diferentes ações, meios, e agentes, para estarmos perante uma situação
de TSH é necessária a verificação da existência do objetivo de exploração, seja esta de
exploração sexual, exploração laboral, com vista à mendicidade, escravidão, extração de
órgãos ou à prática de outras atividades criminosas.
Nos termos do Art.º 160.º n.º 1 do CP, a pena de prisão prevista para esta prática é de 3 a 10 anos.
Canalizando a atenção para as crianças e jovens que poderão ser vítimas de TSH, é
importante lembrar que estes são “alvo preferencial de tráfico dada a sua inerente fragilidade,
o que faz com que sejam mais fáceis de manipular e podem ser exploradas de formas mais
variadas como na indústria do sexo, nos mercados de trabalho ilegais, para mendicidade e
furto de carteiras, como «escravos» domésticos e para remoção de órgãos” (Costa, 2011, p. 14).
Aliciamento Rapto
Exploração do trabalho
(menores) qualificado
Ameaça grave
Tráfico de Pessoas
Tráfico de Pessoas
Transporte
Mendicidade
Ardil
(menores)
Alojamento
Menor
Acolhimento
Abuso de autoridade
Extração de orgãos
Entrega
Incapacidade psíquica
Oferta Adoção
Especial vulnerabilidade
Figura 1 - Explicação acerca das condutas, objetivos e meios constituintes do crime de tráfico de pessoas, sempre que as vítimas são menores
47
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
Quando se tratem de vítimas menores, a pena poderá ser agravada para 3 a 12 anos de
prisão, nos termos do Art.º 160.º n.º 3 do CP se, para a execução do crime, for utilizado um
dos seguintes meios27: violência, ameaça grave, rapto, ardil/manobra fraudulenta, abuso de
autoridade, ou aproveitamento de incapacidade física ou especial vulnerabilidade da vítima,
ou quando o agente tenha atuação profissional ou aja com intenção lucrativa. Mais ainda,
estas penas de prisão previstas poderão agravar-se de um terço nos seus limites mínimo
e máximo se o crime tiver sido cometido com especial violência, se do crime resultarem
danos particularmente graves para a vítima28, se o delito tiver sido praticado por funcionário
no exercício das suas funções, no quadro de uma associação criminosa ou, ainda, se tiver
como resultado o suicídio da vítima.
Por último, e nos termos deste mesmo ilícito, será ainda punido quem, mediante pagamento
ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar
consentimento na sua adoção – trata-se do tráfico de menor para adoção, sendo que se
exige, neste caso, a presença de uma contrapartida patrimonial (pena de 1 a 5 anos de prisão,
nos termos do Art.º 160.º n.º 5 do CP); quem, tendo conhecimento da prática de crime,
utilizar os serviços ou órgãos da vítima (1 a 5 anos de prisão, nos termos do Art.º 160.º n.º
6 do CP); e quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de
viagem de pessoa vítima de crime (Art.º 160.º n.º 7 do CP).
27.
28.
V. Glossário
Por esta expressão entende-
As formas de recrutamento mais utilizadas com a finalidade de angariar pessoas para
se “que a intensidade dos
atos provocados na vítima são
a exploração sexual, para além das falsas propostas de trabalho, são as promessas de
suscetíveis de provocar lesões participação em concursos de beleza, de trabalhos como modelo, de férias a baixo custo, de
graves, duradouras ou até que
resultem em incapacidades estudos em programas internacionais ou de serviços de casamento.
permanentes” (Silva, 2013).
48
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
A exploração sexual pode ser entendida como qualquer abuso da vulnerabilidade de outra
pessoa, mediante abuso de poder ou de confiança, para fins sexuais, incluindo, mas não
exclusivamente, a obtenção de benefícios financeiros. Pode trazer diversas consequências
às suas vítimas, tanto a nível físico como psicológico, tendo em conta que envolve contatos
sexuais muitas vezes sem proteção, falta de cuidados de higiene e de saúde, ameaças, agressões
físicas, falta de alimentação adequada, permanência em locais insalubres, entre outros.
A exploração sexual praticada contra menores pode assumir diferentes formas, nomeadamente:
Ainda que o fenómeno do TSH se paute pelo sigilo, existem alguns indicadores que poderão
ajudar a que se perceba se se está perante uma potencial vítima:
- Mostrar sinais de que os seus - Serem transportadas de um local para - Não ter contato com a sua família ou
movimentos estão a ser controlados; o outro e serem obrigadas a trabalhar em com as pessoas que detém legalmente
- Sentir que não podem sair ou deixar a diferentes bordéis ou casas de alterne; a sua guarda;
situação em que se encontram; - Ter tatuagens ou outros indicativos de - Parecerem intimidadas e adotar
- Demonstrar medo e ansiedade quando “propriedade” dos exploradores; comportamentos incompatíveis com a
contatados; - Morar ou viajar com outras pessoas sua faixa etária;
- Estar a ser sujeito à violência ou que não falam a mesma língua; - Não ter amigos da sua faixa etária;
ameaça de violência contra ela própria, - Ter poucas peças de roupa; - Não frequentar a escola;
sua família ou entes próximos; - Saber falar apenas palavras ligadas ao - Não ter tempo ou autorização para
- Apresentar lesões que indiquem ser trabalho sexual na língua local; brincar e jogar com outras crianças;
resultado de uma agressão; - Não ter nenhum dinheiro consigo; - Viver em habitações precárias;
- Não confiar nas autoridades; - Serem submetidas a práticas sexuais sem - Viver com um grupo de crianças e
49
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual
- Sofrer ameaças de ser entregue às proteção ou com emprego de violência; jovens com apenas um guardião legal;
autoridades; - Trabalharem em bordéis com - Realizar as refeições separadas de
- Ter o seu passaporte e outros propagandas que ofereçam mulheres de outros membros da família ou do grupo
documentos de identificação em posse diferentes etnias e nacionalidades; de pertença;
de outra pessoa; - Não demonstrar sentimentos para os - Comer apenas restos;
- Ter documentos de viagem ou de clientes que atendem. - Realizar trabalhos incompatíveis com a
identificação falsos; sua idade e estrutura física;
- Desconhecer a língua local e a morada - Viajar desacompanhadas ou com um
de onde está a viver e/ou a trabalhar; grupo de pessoas que não são os seus
- Ter terceiras pessoas que falem por si familiares;
quando lhe fazem perguntas diretamente; - Usar roupas incompatíveis com a sua
- Ser disciplinada através de castigos idade e o grau de desenvolvimento
corporais; (por exemplo, roupas utilizadas por
- Receber pouco ou nenhum pagamento trabalhadores do sexo).
pelo trabalho;
- Viver/dormir em acomodações precárias;
- Não ter acesso a cuidados de saúde
bem como aos seus pertences pessoais;
- Não poder, livremente, contatar amigos
e familiares;
- Encontrar-se numa situação de
dependência de outras pessoas;
- Ter agido com base em mentiras ou
situações enganosas que lhe foram
transmitidas;
- Ter tido as despesas de viagem pagas
por intermediários, aos quais devem
reembolsar através do trabalho ou de
outros serviços.
Estes indicadores poderão ser facilitadores para identificar uma situação de tráfico.
Frequentemente podemos deparar-nos com outros crimes associados ao tráfico de seres
humanos, tornando-se difícil identificar a situação de tráfico propriamente dita.
50
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual
Todavia, não deverá encarar-se a presença destes indicadores como uma fatalidade que
afirma a presença de TSH. Com efeito, e à medida que os meios acessíveis aos exploradores
se vão refinando, o próprio fenómeno poderá ficar mais oculto, uma vez que as vítimas
são transportadas em condições ditas comuns (ex.º: comboio, avião), tendo em sua posse
documentos de identificação legais, e fazendo percursos que, além dos países de origem
e destino, envolvem de igual modo rotas e países de passagem, que visam despistar as
autoridades. Desta forma, não existe uma “imagem-padrão” das vítimas de TSH nem um
comportamento padronizado dos agentes na prática destes atos.
Não obstante, por todos os motivos expostos, conclui-se que a vítima de TSH é
especialmente vulnerável, exigindo, portanto, de todos os que com elas intervêm, um
especial dever de cuidado29.
Nos termos do Art.º 37.º daquela Convenção, exige-se que os “Estados signatários adotem
as medidas necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem forçar um adulto
ou uma criança a contrair matrimónio, bem como de quem atrair uma criança ou um adulto
para o território de outra Parte ou de outro Estado que não aquele onde residam, com o
intuito de os forçar a contrair matrimónio” (APAV, 2014, pp. 9-10). Neste conspecto, o nosso
legislador consagrou tal criminalização, em diferentes artigos, punindo quer o casamento
forçado, quer os atos preparatórios a este30.
Cumpre expressar que a pena prevista para o crime de casamento forçado, que é de natureza
pública, será agravada, nos termos do Art.º 155.º do CP, mediante a verificação de certos
condicionalismos.
29. A título de exemplo deve salientar-
se a Convenção das Nações Unidas
contra a Criminalidade Organizada
Transnacional e o Protocolo contra
o Tráfico de Pessoas.
30. Arts. 154.º-B e 154.º-C, do CP –
aditados pela Lei n.º 83/2015, de 05
de agosto (38.ª alteração ao CP)
51
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal
Através da leitura dos Relatórios Anuais de Segurança Interna de 2012, 2013, 2014 e 2015,
podemos verificar que em nenhum destes períodos os crimes sexuais, contra adultos ou
crianças e jovens, foram dos crimes mais registados (isto é, com um peso igual ou superior a
2% no total das participações registadas nos Órgãos de Polícia Criminal).
Não obstante, tendo em consideração que os crimes que aqui se tratam consubstanciam o
ataque à liberdade e autodeterminação sexual de crianças e jovens, e que este fenómeno é
gerador de preocupação entre a sociedade, afigura-se necessário o contínuo investimento
em programas específicos de apoio e, sobretudo, de prevenção de futuras ocorrências, sendo
que, para ambos os casos, se torna primordial a análise da prevalência destes crimes.
Abuso Sexual de Crianças / adolescentes / 778 784 779 859 1013 1044
menores dependentes
Tabela 3 - Dados relativos à prevalência de atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal, Crimes registados pelas autoridades
policiais, por tipo de crime, http://www.siej.dgpj.mj.pt, consultado em 23 de janeiro de 2017
Assim, e iniciando pelo total de crimes reportados, tem existido uma constância entre os
valores dos anos 2010 a 2013, ocorrendo apenas pontuais aumentos. Todavia, na passagem de
2013 para 2014 verifica-se um aumento de 196 inquéritos iniciados, para um total de 1157.
O crime de abuso sexual de crianças tem totalizado entre 88,6% dos casos reportados em
2015. A explicar a dominância deste crime em concreto, poderá estar presente o facto de
abranger uma extensa faixa etária, entre os 0 e os 14 anos, exclusive, e que criminaliza, no
seu preceito legal, um conjunto amplo de atos ilícitos.
52
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal
No ano de 2015 a tendência é de manutenção, com uma ligeira diminuição dos casos de abuso
sexual de crianças, atos sexuais com adolescentes e abuso sexual de menor dependente. As
estatísticas oficiais da justiça relatam a existência de 1044 inquéritos iniciados.
a. Cifras negras
Todavia, estas estatísticas representam os crimes que são comunicados aos Órgãos de Polícia
Criminal e Autoridades Judiciárias, e que na verdade correspondem a uma pequena parte
dos crimes sexuais que realmente aconteceram. Ainda que para a realidade portuguesa
não existam dados que indiquem qual é a diferença entre os crimes revelados e os que
efetivamente aconteceram, estima-se que, em geral, apenas cerca de um terço dos crimes
sexuais perpetrados contra crianças ou jovens sejam denunciados (Darkness to Light, 2015).
Crimes relatados em
inquéritos de vitimação
Crimes reportados e
registados na polícia
Acusações
Condenações
53
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal
De certa forma poderá afirmar-se que as razões que levam uma criança ou jovem a não
revelar os crimes sexuais de que terá sido vítima32 se cruzam com os motivos que, uma vez
revelado o abuso a uma pessoa adulta da sua confiança, o mesmo não chegue à polícia.
De acordo com Ullman (2007), o tempo que passa entre a perpetração do abuso à revelação
pode variar em função do impacto que o crime teve na criança/jovem. Ainda segundo o estudo
da autora, a revelação, na maioria dos casos (87,9%) acontece de forma propositada, ao invés das
revelações feitas de forma acidental ou da descoberta por outras pessoas, acrescentando que em
63,6% dos casos, acontece um ano ou mais depois do abuso ter acontecido, sendo que em 27,4%
dos casos acontece imediatamente após o crime ter sido perpetrado.
De acordo com Lievore (2003) e London et al. (2005), a não revelação do abuso e
consequente inexistência de denúncia às autoridades competentes pode acontecer por
diversas razões, a saber:
• Relação vítima-autor/a: quanto mais próxima a relação entre a vítima e o/a autor/a
do crime maior a dificuldade em revelar o abuso e reportá-lo, quer por receio de
represálias contra si quer contra o/a autor/a do crime (ex.º: ser punido). Isto é
particularmente importante considerando que uma grande maioria dos crimes são
perpetrados por pessoas próximas às vítimas.
• Os factos não são percebidos como crime e/ou dizem respeito à vida privada: por
vezes existem reservas sobre a revelação e denúncia porque as crianças ou jovens
e/ou representantes legais encaram o abuso como um problema da esfera privada,
e que nesta se resolverá. Noutras vezes a prática abusiva pode não ser entendida
31. “Os inquéritos de vitimação
são instrumentos alternativos e como tal pelas vítimas e/ou pela rede de suporte primária (ex.º: práticas que já vêm
complementares de medição do
crime, procurando detetar todos os acontecendo na família) ou então é desvalorizada.
casos ocorridos na população. Estes
inquéritos questionam amostrar • Auto-culpabilização: algumas vítimas entendem que o crime de que foram alvo
significativas da população sobre
determinados tipos de ofensas que
aconteceu apenas por sua culpa, levando a que não o denunciem, com receio de
as mesmas experienciaram durante
um determinado período de tempo”.
serem vistas como causadoras dos atos e de serem socialmente julgadas.
(APAV, 2015) • Falta de provas: o facto de, nalgumas formas de abuso, não existir contato físico e/ou
32. A este propósito, ver Parte
I – Compreender > Capítulo ato sexual de relevo pode levar a que algumas vítimas e/ou representantes legais optem
II – A criança e o jovem vítimas de
violência sexual > 4. O processo de por não denunciar os crimes, crendo que não se poderá produzir prova por outro meio.
revelação da vitimação
54
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal
55
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança
1. O desenvolvimento da criança
a. Estádios-chave no processo de desenvolvimento
da criança
Alguns autores como Jean Piaget ou Sigmund Freud descrevem o desenvolvimento da
criança por estádios sucessivos, ordenados de maneira imutável e necessária; outros, por seu
lado, consideram-no como um processo contínuo. Efetivamente, o desenvolvimento é lógico
e progressivo, isto é, uma fase deve ser transposta para que um novo nível (físico, cognitivo
ou afetivo) possa ser atingido.
6-11 - Aumenta progressivamente de peso - Os pensamentos e a capacidade de - Torna-se mais independente e mais
anos e de altura estar atento são mais focalizados responsável
- A caligrafia torna-se mais pequena e - Bom raciocínio indutivo - Faz a distinção entre ser bem-
mais legível - É capaz de estabelecer a relação entre sucedido e ter falhado
- Os desenhos são mais estruturados experiências e ocorrências específicas - Tem consciência dos seus esforços
- Os jogos e brincadeiras que - Há um aumento de vocabulário versus acaso ou sorte na obtenção de
envolvam correrias, confusão e um dado resultado
competição são comuns - É capaz de se “pôr no lugar do outro”
- Desenvolve-se a capacidade - Aumenta a rivalidade com os irmãos
de resposta rápida em termos de e irmãs
destreza motora
- Nas raparigas, os sinais de entrada
no período de adolescência começam
2 anos mais cedo do que nos rapazes
57
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
1. O desenvolvimento da criança
58
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança
t Devem ser capazes de tudo o que as criança em idade pré-escolar são, e ainda capazes de:
59
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
1. O desenvolvimento da criança
t Datas exatas dos eventos numa sequência correta mesmo que crónica;
t Precisão dos tempos em que surgiram os sintomas físicos ou comportamentais;
t Conceitos abstratos como – ‘o que é verdade?’, relações de tempo, velocidade,
tamanho, duração.
t Devem ser capazes de relatar o mesmo que as crianças em idade escolar, e ainda:
60
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança
t Manter no concreto: os termos como, por exemplo, ‘espancar’, devem ser clarificados;
t Muito focados na aprovação pelos pares e de que forma são ou não normais;
t Preocupados com as repercussões parentais, pelo que o historial de atividade
sexual pode ficar comprometido.
61
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados
No entanto, existem alguns aspetos gerais que possibilitam uma melhor compreensão, no
que diz respeito às características das crianças e jovens vítimas de violência sexual. Neste
sentido, a literatura evidencia um conjunto de fatores de risco que poderão potenciar a
probabilidade de vivência desta forma de violência. Estes fatores de risco podem agrupar-
se, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2006) e o seu modelo ecológico
explicativo da violência, em quatro grandes categorias: os fatores de risco individuais,
relacionais, comunitários e sociais.
i. Género
62
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados
ii. Idade
Todas as crianças e jovens, independentemente da sua idade, poderão ser vítimas de violência
sexual (dos 0 aos 18 anos). Ainda assim, existirá um maior risco de vitimação para as
crianças mais novas, na medida em que, com o aumento da idade da vítima, é reforçada a
sua capacidade de resistência às estratégias do/a autor/a do crime. Com o avanço da faixa
etária, também é incrementada a probabilidade de a criança/jovem procurar ajuda junto da
sua rede de suporte (ex.º: pais, família alargada, amigos) ou denunciar a situação de vitimação
junto das entidades competentes (ex.º: Órgãos de Polícia Criminal, APAV). Outro dos fatores
prende-se com a possibilidade de, nas raparigas, a partir da puberdade (especificamente com
a menarca), poder surgir uma gravidez indesejada, sendo esta uma condição que poderá
dissuadir o/a potencial autor/a do crime em concretizar atos de violência sexual.
O consumo de álcool e drogas pode constituir um fator de risco para a vivência de violência sexual, dados
os efeitos deste tipo de substâncias no funcionamento do sistema nervoso, que poderão colocar a vítima
numa posição de vulnerabilidade em relação ao/a autor/a do crime, pela maior dificuldade de aquela se
proteger eficazmente às investidas ou de ser capaz de identificar antecipadamente sinais de alarme.
A dificuldade da criança em identificar as suas emoções e a dos outros, assim como as formas
de manifestação de afeto e carinho consideradas como adequadas/inadequadas, constituem
fatores de risco para a vitimação sexual. Neste sentido, a criança/jovem poderá percecionar os
atos de violência sexual como uma expressão adequada e normativa de afeto (APAV, 2011).
Importa ainda referir que crianças muito tímidas e reservadas poderão, na ótica dos/as
potenciais autores/as dos crimes, ter as características consideradas necessárias para que o
abuso seja mantido em segredo (Global Children’s Fund, 2007).
63
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados
v. Falta de informação
i. Estatuto socioeconómico
ii. Isolamento
64
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados
Estudos revelam também que outras características do seio familiar, nomeadamente a presença
de consumos de álcool e abuso de substâncias, a ausência prolongada da mãe, a existência
de conflitos conjugais graves, o isolamento social e a presença de estilos parentais punitivos
poderão estar associadas a um risco aumentado de violência sexual na infância e adolescência
(Fergusson et. al., 1996b; Mullen et. al., 1993; Nelson et. al., 2002, cit. in. Putnam, 2003).
65
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados
residentes, na medida em que a comunidade poderá ficar desprovida de meios e recursos que
assegurem melhor proteção e supervisão sobre as suas crianças e jovens. Deste modo, quando
numa comunidade predomina a desorganização social, o sentido de competência coletiva
partilhada pelos indivíduos é diminuto, e como tal não é alcançada a devida coordenação e
integração dos recursos existentes para a supervisão e educação das crianças e jovens.
Outros fatores de risco comunitários que podem ser considerados são: a presença de
violência e criminalidade na comunidade e a degradação física das estruturas existentes
(Organização Mundial de Saúde, 2006).
i. Normas sociais
A inércia social e mesmo legal sobre casos de violência sexual contra crianças e jovens
também pode constituir um fator de risco para que os crimes não sejam reportados, e
deste modo, sejam perpetuados no tempo (APAV, 2011). Fatores socioeconómicos como a
pobreza, o desemprego e níveis baixos de capital social, parecem contribuir para o aumento
do risco de situações de abuso (Organização Mundial de Saúde, 2006).
66
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
3. Fatores de proteção e resiliência da vítima
A tabela seguinte apresenta uma listagem dos principais recursos internos e externos
que podem contribuir para resultados adaptativos na sequência da situação traumática
vivenciada pela criança ou jovem:
67
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
3. Fatores de proteção e resiliência da vítima
No que concerne aos fatores do contexto familiar e social, estudos realizados neste
âmbito revelam que a existência de um suporte familiar, sobretudo, o suporte parental,
pré e pós revelação são variáveis determinantes na recuperação da situação traumática
experienciada. Desta forma, a existência de uma boa comunicação entre a criança e os seus
pais pode apresentar efetivamente um efeito protetor, na medida em que estas podem ser
percecionadas pelo/a autor/a do crime, como um alvo de maior risco, pois a probabilidade
do abuso ser revelado será maior (Global Children’s Fund, 2007).
Alguns estudos revelam, também, que viver em comunidades com uma forte coesão social,
constitui um fator protetor e pode reduzir o risco de violência, mesmo quando fatores de
risco ao nível familiar estão presentes (Organização Mundial de Saúde, 2006).
68
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
De acordo com Plummer (2006) e Kristensen et al. (2001), existem cinco formas ou
indícios pelas quais se torna possível a identificação da violência sexual33: relato da vítima
(o principal meio de recolha de informação), presença de sinais físicos, absentismo escolar,
alteração do comportamento e comportamento sexual inadequado.
a. As dificuldades na revelação
A criança ou jovem que foi ou é vítima de violência sexual remete-se, não raras vezes, ao
silêncio sobre o seu problema. Isto poderá acontecer em virtude da relação que mantém
com o/a autor/a do crime, que poderá utilizar estratégias concretas para conseguir manter a
vítima silenciada e acessível aos seus intentos.
A descoberta da vitimação pode arrastar-se no tempo, sendo por vezes difícil a interrupção
do silêncio e da violência sexual exercida. As dificuldades de descoberta devem-se,
sobretudo, a alguns aspetos, tais como:
69
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
t A criança ou jovem pode sentir vergonha, pelo que pode não verbalizar que foi ou tem
sido vítima. Para além de apresentar sentimentos de culpa pelo seu envolvimento com
o/a autor/a do crime, pode manter algum sentimento de lealdade para com o mesmo.
t A criança ou jovem pode ter medo de:
t Sofrer represálias por parte do/ autor/a do crime ou de ser punido pelos pais ou
por quem descobrir;
t Que não acreditem na sua história;
t Ser separada da sua família;
t Ser o causador da separação dos pais (no caso do/a autor/a do crime ser o pai ou a mãe);
t Perder algumas recompensas que recebe do/a autor/a do crime (ex.º: doces,
dinheiro, brinquedos, entre outros).
t A vítima pode achar “normal” a relação existente com o/a autor/a do crime e
confundir os seus atos como sendo uma relação de afeto normal. Pode ainda, e caso
não se sinta amada pelos pais, sentir-se dependente da relação que tem com o/a
autor/a do crime, confundindo-a com uma relação normal de afeto.
A iniciativa de revelar a violência sexual poderá estar associada à qualidade da relação que a criança
tem relativamente à pessoa a quem contou, e, ao mesmo tempo, à interpretação que a criança supõe
que a pessoa faria (Berliner & Conte, 1995). É neste sentido que a perceção que as vítimas têm sobre
as suas mães e sobre o contexto familiar em que estão inseridas, influencia a disponibilidade das
vítimas para revelar o que aconteceu (Plummer, 2006). A mãe tem sido apontada como uma figura
importante nesses processos, já que na maioria dos casos a violência lhe é revelada (Berliner & Conte,
1995). O facto de uma mãe acreditar no relato do/a filho/a e tomar medidas de proteção, poderá ter
repercussões positivas na forma como a vítima consegue ultrapassar a experiência traumática.
70
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
Os/as autores/as dos crimes que têm uma relação de confiança ou familiar com as crianças
poderão fazer com que elas passem de vivenciar uma relação afetiva para experienciar uma
realidade dolorosa. Com efeito, o receio de provocar danos na estrutura familiar poderá ser
outro importante aspeto que influencia a revelação da vitimação. Em geral, este fator poderá
ser fruto da intimidação feita pelos/as autores/as dos crimes, que poderão chantagear e
ameaçar a vítima para que esta mantenha o segredo.
As crianças e jovens usam as reações dos adultos como ponto de referência para o que
podem ou não contar. O receio em contar as experiências de violência pode dever-se
ao medo da rejeição familiar, ao facto de a família não acreditar no seu relato, ao medo
de perder os pais ou de ser expulso/a de casa, ao medo de ser considerado/a como o/a
causador/a da discórdia familiar, ou mesmo à falta de informação sobre a violência sexual.
71
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
Cabe, portanto, aos profissionais e às instituições que constituem a rede de apoio social de
crianças e jovens vítimas de violência sexual e seus familiares e amigos, planear intervenções que
minimizem o impacto da violência sofrida e que protejam efetivamente a criança ou jovem.
d. Reações à revelação
Após a descoberta poderão surgir reações muito diversas, que dependem, sobretudo, das condições
72
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
em que a mesma ocorreu. No entanto, deverão ser considerados alguns aspetos, especialmente
aqueles que possam influenciar a conjuntura e a organização pessoal, conjugal e familiar.
i. Drama e negação
Por sua vez, a negação da vitimação por parte dos familiares poderá estar ligada ao sentimento
de culpa por terem falhado na proteção da criança ou jovem e da necessidade de separação
do/a autor/a do crime (nem sempre desejada), assim como da vergonha social experienciada.
Em alguns casos, a culpa poderá ser de tal forma insuportável, que o caminho mais fácil
se torna a negação. Noutros, a ausência de estratégias de coping para lidar com todas as
implicações que a revelação do crime acarreta, em conformidade com uma profunda
resistência à mudança que tal acontecimento impõe, poderá fazer com que a rede de suporte
da vítima se recuse a acreditar no relato desta.
Todavia, a negação não significa que as famílias recusem ajuda; pode indicar que estão
assustadas ou que não se sentem capazes de lidar com a situação, pelo que será necessário
que os profissionais compreendam a natureza da violência sexual e tenham as competências
para poderem identificar e gerir a dinâmica que envolve essa revelação (Furniss, 1993).
Assim, sempre que exista essa necessidade, os profissionais deverão providenciar apoio
adequado junto da rede de suporte familiar para que se redirecione e reintegre o sentimento
de culpa e a negação que aquela pode estar a experienciar.
A culpa surge como sentimento predominante nos casos de violência sexual contra
crianças e jovens, quer nestas, quer na sua rede de suporte. Esta última poderá evocar um
73
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
conjunto de fórmulas “mágicas” que poderiam ter evitado o(s) crime(s), ou recordar-se
de um conjunto de sinais dados pelos/as autores/as dos atos, que não eram entendidos ou
valorizados e que, depois da descoberta, passaram a ser demasiado óbvios.
A vítima poderá sentir culpa pelos conselhos que não seguiu, por sinais que acha que
deu ao/à autor/a do crime ou por ter denunciado esta situação. Este sentimento poderá
surgir espontaneamente ou poderá ser-lhe dirigido por terceiros, especialmente no caso de
adolescentes/jovens.
Importa então que o/a técnico/a que apoia tente criar, em conjunto com a vítima e a sua
rede de suporte, perspetivas alternativas que permitem a aceitação do inevitável, daquilo que
não é passível de controlo. Pretende-se, deste modo, que a culpa seja redirecionada apenas
para quem perpetrou os atos, conduzindo à libertação desses pensamentos persistentes por
parte das vítimas, para que não venham a comprometer a sua autoestima.
O desejo de vingança poderá surgir, quer na própria vítima, quer junto dos seus elementos
de suporte. Está normalmente associado a um sentimento de revolta muito intenso e à
vontade de fazer “justiça pelas próprias mãos”, pela expressão de vontade de ferir, castrar ou
mesmo matar o/a autor/a do crime.
Tal desejo poderá entender-se como uma manifestação menos adaptativa de sentimentos de
revolta, de impotência perante o sofrimento causado, de receio que o/a autor/a do crime possa vir a
repetir o crime contra esta ou outras vítimas e de falta de confiança no sistema de justiça criminal.
Desta forma, o/a profissional que presta apoio não deverá julgar este ímpeto, ainda que
não o deva reforçar ou estimular, tentando, pelo contrário, refreá-lo. Por vezes poderá ser
importante redirecionar o foco para perspetivas alternativas, mas não proibindo o tema,
uma vez que este tipo de pensamentos pode tornar-se obsessivo, e ativar formas diferentes
de exteriorização e demonstração da raiva.
74
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
Nos casos em que o/a autor/a do crime seja desconhecido/a da vítima, tais sentimentos de
insegurança e desconfiança generalizados poderão surgir, uma vez que poderá proliferar a
sensação de que aquele/a está em qualquer parte.
Mais ainda, quando a violência sexual é cometida por alguém que era próximo da vítima, poderá
estar presente a sensação de defraudamento. Assim, a insegurança e a desconfiança poderão ser
extrapoladas para todas as pessoas que contactem com a criança ou jovem, uma vez que este/a
poderá sentir-se inseguro/a em locais onde isso anteriormente não acontecia e perante pessoas
em quem antes confiava. É possível, portanto, que as vítimas experienciem ansiedade de forma
bastante intensa e generalizada, que poderá desencadear ataques de pânico, a sensação de ver
o/a autor/a do crime em toda a parte, gerando comportamentos compulsivos de segurança, o
evitamento de alguns espaços, pessoas, eventos e estímulos (ex.º: cheiros, programas de televisão
ou a própria casa, especialmente se tiver sido o cenário de vitimação) que poderão conduzir ao
isolamento social ou à adoção de comportamentos de consumos aditivos.
Relativamente à rede de suporte da vítima, tais sentimentos poderão manifestar-se por meio
de uma excessiva preocupação e ímpeto constante de perguntar como é que a vítima se
sente, se viu o/a autor/a do crime ou por intermédio de pedidos insistentes de detalhes que
possam ajudar a prever algumas reações e/ou comportamentos por parte de quem praticou
o crime. Tal ansiedade poderá ser direcionada para os técnicos de apoio, questionando-os
sobre o que virá a seguir, qual a pena que será aplicada ao/à autor/a do crime, ou se estão
a cumprir todos os passos para que o processo-crime decorra dentro da normalidade,
procurando assegurar-se repetidamente que estão a fazer o melhor que podem.
75
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
isolamento, que poderão culminar numa sensação de abandono e de não ter ninguém com
quem partilhar a situação.
Este desamparo poderá ser mais frequente nos casos em que a rede de suporte da vítima não
acredita no testemunho desta, acusando-a de falsas denúncias e enumerando um conjunto
de razões para fundamentar essa ideia. Com efeito, o poder de manipulação do/a autor/a
do crime poderá sobrepor-se e conseguir mobilizar grande parte da rede de suporte, que
poderá afastar e/ou fustigar aqueles que acreditam e ajudam a vítima no processo-crime.
Por outro lado, os familiares e amigos poderão também manifestar sentimento de abandono,
de solidão e desamparo, que poderá ser agravado pela desconfiança que sentem em relação
às pessoas com que se relacionam habitualmente (familiares, amigos, vizinhos, conhecidos)
especialmente se a criança ou jovem tiver sido vítima de uma pessoa tida como afetuosa ou
socialmente próxima.
vi. Desespero
Não raras vezes a rede de suporte primária poderá sentir desespero por acreditar que não
consegue fazer mais nada para suprimir o sofrimento da vítima que surgiu na sequência do
crime. A rede de suporte poderá ainda sentir-se frustrada por não conseguir retroceder o
tempo para mudar o curso dos factos praticados; tal turbilhão de sentimentos poderá acabar
por potenciar uma afetação geral do estado de humor de todos, que poderá trazer consigo
uma espiral de sentimentos de valência emocional negativa. Poderão ser, por vezes, reativadas
outras dificuldades, revividos problemas passados e colocados em causa princípios que não
eram antes questionados, ainda que não tenham uma relação direta com o crime praticado.
Quando a criança ou jovem tem clara perceção deste desespero, poderá sentir que aquilo
que partilhou é demasiado intenso para aqueles que o escutam e que estes não estão
aptos para lidar com a situação. Tal pode potenciar na vítima a necessidade de proteger
aqueles por quem deveria ser protegida, gerando-se aqui uma inversão de papéis (ex.º:
parentificação). Por outro lado, a criança ou jovem poderá sentir que o melhor será
omitir alguns detalhes acerca do crime, alterá-los ou mesmo dissimular as suas emoções e
sentimentos relativamente à situação, de modo a evitar impressionar ou preocupar aqueles
que lhe são próximos. Neste sentido, é importante que a rede de suporte não deixe de
manifestar as suas emoções, para não turvar a perceção de empatia por parte da criança,
mas deverá fazê-lo com cuidado e contenção para que a criança não sinta que, com a
revelação, criou um novo problema.
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
Portanto, importa ajudar a dissipar esta desconfiança, normalizando-a, sem cair na tentação
de a alimentar, explicando como se desenrolam todos os procedimentos necessários,
ajudando e acompanhando na sua prossecução e facilitando a comunicação entre os vários
sistemas (ex.º: familiar, judicial, social). Deste modo, o/a profissional contribuirá para
dissipar as dúvidas e a ansiedade, criando sintonia e colaboração profícuas.
É expectável que acontecimentos desta natureza, que atentam contra a sexualidade de uma criança
ou jovem, gerem desconforto e constrangimento quando têm de ser abordados. Contudo, tal
desconforto dependerá da idade da vítima, do pudor que esta possa ter em falar sobre a sexualidade
e da facilidade em expressar sentimentos e emoções, por parte dos seus elementos de suporte.
Por vezes, vítima e rede de suporte poderão evitar falar sobre o assunto, criando uma
espécie de proibição implícita, que poderá funcionar como uma prisão de emoções. Outras
vezes as conversas poderão estabelecer-se por uma espécie de código, tentando contornar o
assunto, mas sem conseguir deixar de fazer sentir a sua presença. Este evitamento alimenta-
se muitas vezes da crença de que aquilo de que não se fala, não nos afeta, ou nos afeta
menos. Contudo, essa proibição implícita pode tornar o assunto ainda mais presente na
vida de todos e complexificá-lo. As palavras que ficam por dizer, as emoções que se tentam
aprisionar, acabam quase sempre por se manifestar de outras formas, criando confusões,
minando relações ou até alimentando patologias.
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
Várias emoções podem surgir associadas a estas lembranças persistentes; por norma, quanto
mais se tentam controlar os pensamentos para evitar a emocionalidade associada, maior
será a perceção de “invasão”. Por outro lado, quando estas lembranças não são filtradas
nem redirecionadas para momentos onde possam ser expressas adequadamente, e quando
não existe um envolvimento das vítimas ou da rede de suporte em atividades que ajudem a
dispersá-las, as lembranças poderão contaminar todos os contextos, conversas e relações.
Por vezes, a vítima poderá ser interpelada repetidamente com perguntas ou alusões ao crime,
dado que a rede de suporte se deixa absorver pela sua curiosidade ou incredulidade. Por detrás
desta atitude está muitas vezes a crença de que quanto mais se fala do assunto melhor ele se
esclarece, integra e resolve. Contudo, é importante não permitir que este problema contagie
tudo em seu redor e que assuma o espaço dedicado a outras atividades e temas.
x. Projeção de si na vítima
Em algumas situações, as pessoas mais próximas da criança ou jovem tendem a projetar nela
os seus próprios pensamentos, emoções, dúvidas, medos ou ansiedades. Poderão induzir,
percecionar sugestionadamente ou referir mesmo conscientemente que a vítima manifestou
ou verbalizou sintomas que, na realidade, foram os seus entes mais próximos a experienciar.
Esta indução surge muitas vezes da lacuna entre aquilo que a vítima manifesta sentir e aquilo
que os seus elementos de suporte entendem que ela sofre, ou que experimentariam caso
tivessem vivenciado a situação pela qual ela passou. Será de igual modo frequente quando
uma destas pessoas já passou por algum crime semelhante ao da vítima atual, partindo do
pressuposto de que esta está ou tem de passar por aquilo que a primeira vivenciou.
xi. Luto
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
Nos casos de morte da criança ou jovem em consequência da violência sexual de que sofreu,
a revolta tende a ser incomensurável, pela dificuldade em processar o luto que, em última
instância poderá conduzir à desintegração familiar, quer porque se torna difícil lidar com a
dor uns dos outros, quer porque a lembrança parece mais presente e poderá fazer com que
se sinta que o propósito da união familiar tenha desaparecido.
Nos casos em que a vítima é encontrada alguns anos mais tarde, poderá não ser reconhecido como
“o/a filho/a desaparecido/a”, uma vez que as lembranças dos familiares e amigos se cristalizaram
naquilo que a criança ou jovem era na fase em que desapareceu. Além disso, todo o sofrimento
a que poderá ter sido submetido, é suscetível de gerar grandes alterações na estrutura mental da
criança ou jovem, porque é perpetrado na fase em que se processava a formação da personalidade.
Neste processo de luto, seja pela vitimação sexual, pela morte ou pelo desaparecimento,
é muito importante que seja providenciado aos familiares mais próximos, especialmente
a possíveis irmãos da criança ou jovem, porque não raras vezes serão negligenciados
emocionalmente pelo resto da família que, involuntariamente, se rende ao sofrimento, e tende
a esquecer-se que os outros membros da família, especialmente se forem crianças ou jovens,
necessitam de alguma harmonia e nutrição afetiva para um desenvolvimento mental saudável.
De igual modo, é necessário ter atenção a indicadores de ideação suicida evidenciados pelos
elementos mais próximos da vítima, uma vez que esta solução poderá surgir como estratégia
de fuga a uma realidade e sofrimento que não conseguem suportar.
A existência de um crime de natureza sexual poderá afigurar-se como um desafio que põe
à prova as capacidades de adaptação da família no que respeita à gestão de emoções, ao
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação
estabelecimento de prioridades, levando a que, por vezes, toda a dinâmica familiar seja afetada.
Quando mais próximo o/a autor/a do crime for da rede de suporte, maior será o impacto no
sistema familiar e nas áreas de vida afetadas. Tal implicará a passagem por um processo de
rutura com o/a autor/a do crime, ao qual será inerente uma mudança em todas as áreas da
vida nas quais aquele/a tinha influência (ex.º: questões económicas, divórcio, evitamento de
convívios familiares, mudança de residência).
Nem sempre a situação de vitimação desagrega a família; com efeito, por vezes esta
poderá unir-se para a prestação de suporte mútuo perante o sofrimento despertado por
esta descoberta, ou juntam esforços pelo objetivo comum de dar suporte à criança ou
jovem (ex.º: protegendo-a, apoiando-a, pesquisando outros meios de ajuda, ou mesmo
procurando-a, em casos de desaparecimento).
Por outro lado, a excessiva preocupação e desejo de proteção absoluta pode gerar um
aglutinamento, controlo excessivo, que faz com que esta união se torne nociva. É importante
que a família se una para que viabilizem esforços que lhes permitam ultrapassar esta
situação de forma adaptativa. Contudo é importante tentarem não permitir que este
problema se torne o centro das suas vidas e que não incorram na tentação de privar a
criança ou jovem da liberdade e intimidade que tinha, com o objetivo de a protegerem, sob
o risco de, dissimuladamente, a vitimarem de outra forma.
Por vezes, os elementos de suporte da vítima poderão manifestar ora distanciamento, ora
agressividade, pena, controlo desadaptado, excessiva permissividade como tentativa de
compensar o sofrimento que a vítima possa estar a passar.
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação
maior fluidez na comunicação e expressão de sentimentos. Não se pode esquecer que para se
dar uma grande mudança estrutural num sistema familiar, geralmente é necessário passar por
uma fase de crise. Ora, essa crise poderá trazer à tona outras questões por resolver no seio da
família, que encontram naquele momento a sua oportunidade de serem trabalhadas.
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas
Para além disso, as diferenças nas reações das vítimas poderá depender da proximidade
entre a vítima e o/a autor/a do crime – com efeito, uma maior proximidade poderá acarretar
consequências mais gravosas para as crianças (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004).
Durante o crime, ou depois de este ter acontecido, a criança ou jovem poderá apresentar
reações muito variadas, tanto ao nível das emoções e dos pensamentos, como dos seus
comportamentos, que podem surgir logo após o abuso e estender-se pela vida adulta (Boney-
McCoy & Finkelhor, 1995; Finkelhor & Tackett, 1997), com mais ou menos intensidade.
Em relação à violência sexual exercida contra crianças e jovens, podem ser apontadas
algumas reações que poderão estar presentes durante o ato violento (APAV, 2011):
82
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas
bater-lhe. Este tipo de resistência poderá ser mais frequente no início da vitimação,
ou seja, nos primeiros episódios de violência sexual, reduzindo-se ou anulando-se
posteriormente, dada a relação de forças em presença, vencendo o poder físico e
psicológico do/a autor/a do crime. Esta reação violenta por parte da vítima pode, de
alguma forma, contribuir para o agravamento da violência física praticada contra si,
para conseguir concretizar os atos sexualmente violentos e simultaneamente reduzir
esta reação até à sua nulidade.
t A participação ativa na agressão sexual: algumas crianças participam ativamente
na situação de agressão sexual contra si concretizada, não revelando resistência,
consentindo os atos abusivos, aceitando os benefícios resultantes do facto de manter
uma relação especial e chegando a incitar o/a autor/a do crime. Estas situações em
nada são atenuantes da responsabilidade, que está sempre nas mãos de quem pratica
o crime, na medida em que a criança ou jovem (pela sua incipiente maturidade
cognitiva e sócio-emocional) não está, nesta fase de desenvolvimento, capaz de
decidir conscientemente relativamente à sua sexualidade. A suposta perceção tida
por parte do/a autor/a do crime em relação ao consentimento que a vítima fornece
não invalida a responsabilidade do/a primeiro/a, apesar de contribuir para a adoção
de uma postura que minimize a sua responsabilidade pelos atos e para a atribuição
dos mesmos à sedução ou ao comprazimento da criança ou jovem.
b. Sinais e sintomas
Tal como já foi abordado antes, o aparecimento de sinais ou sintomas poderá não se dar no
imediato, e acontecer algum tempo após e, por vezes, já passados alguns anos ou na vida
adulta. Assim, a manifestação de sintomas poderá apresentar-se como um processo gradual,
no qual a ausência inicial de sintomas é, posteriormente, substituída por uma manifestação
reativa e sintomática (APAV, 2011).
83
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas
É de salientar que existem crianças que não manifestam quaisquer sintomas ou sinais
de vitimação, e tal não contraria a existência de uma experiência sexualmente abusiva.
Ademais, algumas revisões de estudos realizados neste âmbito concluíram que um número
significativo de crianças vítimas de violência sexual não manifestava sintomatologia
(Kendall-Tackett, Williams & Finkelhor, 1993; Saywitz, Mannarino, Berliner & Cohen,
2000). Com efeito, Kendall-Tackett, Williams & Finkelhor (1993) fizeram uma revisão de 45
estudos e verificaram que aproximadamente um terço das crianças vítimas de abuso sexual
não apresentava quaisquer sintomas.
Neste sentido, esta ausência de sintomas pode estar relacionada com as características da
violência sexual exercida (ex.º: impulsividade dos atos, tipo de relação com o/a autor/a do
crime), as características individuais da criança ou jovem (ex.º: desenvolvimento cognitivo,
atribuição causal da violência sexual sofrida), e a qualidade do apoio recebido pela sua rede
de suporte informal (ex.º: pais, familiares, amigos ou outras figuras de referência).
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas
Outros recursos internos podem, por sua vez, podem minimizar os efeitos negativos perante
uma experiência de vida adversa, nomeadamente o desenvolvimento cognitivo e a presença
de competências de resolução de problemas e conflitos de procura de solução alternativas.
O medo que a criança ou jovem sente do/a autor/a do crime, associado à possibilidade
(real ou percecionada como tal pelo vítima) de vir a ser vítima de ameaças, chantagens e/
ou perseguições após a revelação da situação de abuso, poderá potenciar o sofrimento
psicológico e desânimo na vítima.
Quanto mais duradora e/ou grave a violência sexual exercida (ex.º: quando os atos violentos
são mais intrusivos) contra a criança ou jovem, maiores poderão ser as consequências ao
nível psicológico e físico, e mais dificuldades poderão existir na recuperação.
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas
v. Contexto cultural
A criança ou jovem vítima de violência sexual pode não revelar a situação de vitimação
por vários motivos e pelas estratégias utilizadas pelo/a autor/a do crime nesse sentido.
Nestes casos, as consequências negativas da vitimação são potenciadas, sobretudo no plano
psicológico, pelo facto de a violência persistir no tempo, expondo continuamente a criança
ou jovem à situação violenta.
A criança ou jovem pode, efetivamente, pedir ajuda a alguém, denunciando também o/a
autor/a do crime, mas pode fazê-lo muito tempo depois do primeiro episódio de violência.
Este período de segredo e de persistência da situação violenta poderá ser especialmente
prejudicial para o bem-estar psicológico e emocional da vítima.
A reação da pessoa a quem a criança ou jovem decide revelar a sua experiência de violência
sexual poderá ter um duplo efeito. Assim, esta pessoa pode não acreditar na experiência
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas
revelada, desvalorizando o que é contado pela criança ou jovem, ou até afirmando que tais
relatos são mentira. A pessoa a quem é pedida ajuda pode atribuir a responsabilidade da
experiência de violência à própria vítima, culpando-a pelos atos do/a autor/a do crime.
Tal poderá desencadear um forte sofrimento psicológico na vítima de violência e levar à
dissuasão de novos pedidos de ajuda, mantendo a criança ou jovem na situação abusiva,
provavelmente, cada vez mais gravosa, tanto física como sexualmente. Por sua vez, uma
postura de escuta, compreensão, serenidade e reforço pela coragem em ter pedido ajuda
contribui positivamente para a segurança da criança ou jovem, para o seu empoderamento e
para a normalização e tentativa de resolução da situação violenta vivenciada.
O apoio prestado pelos pais, pela família alargada e pelos amigos é essencial para a
superação da vivência sexualmente violenta, pois poderá ser potencializada uma maior
estabilidade emocional, segurança, confiança, afetividade e carinho à criança ou jovem.
x. Apoio recebido
A ajuda inicialmente recebida, se rápida e eficaz, é crucial para que eventuais efeitos
negativos surgidos imediatamente após a vitimação sexual sejam minimizados. A qualidade
desta ajuda inicial é particularmente determinante para que sejam evitados fenómenos de
vitimação secundária, que geralmente, ocorrem pela forma como a vítima é tratada quando
recorre aos vários serviços de ajuda/apoio disponíveis, (ex.º: relatar por diversas vezes
a situação de vitimação; encaminhamento para diferentes instituições; inadequação no
atendimento providenciado) e que poderão agravar os efeitos da situação de violência.
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas
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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária
É importante que a família ou instituição que presta o suporte à criança ou jovem vítima de
um crime sexual detenha um nível substancial de conexão, colaboração e solidariedade entre
si, para que não se desintegre perante as adversidades. Contudo, é igualmente importante
que esta conexão encontre um ponto de equilíbrio com alguma flexibilidade que lhe permita
adaptar-se à mudança, ajustando-se com celeridade e consistência. Ou seja, é importante que
a estrutura da rede de suporte primária ceda a algumas mutações com vista à acomodação das
necessidades que vão surgindo, resistindo, contudo, a que estas mudanças possam alterar por
completo os seus costumes, a sua identidade e a ligação entre os seus membros.
36. V. Glossário
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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária
Por um lado, o facto da criança ou jovem ser adequadamente supervisionado pelos adultos
que por ela são responsáveis, assegura, à partida, que percecionará maior segurança e que
terá menos probabilidade de poder vir a ser revitimizada. No entanto, quando a ansiedade e
medo por parte da sua rede de suporte primária se traduz em padrões de controlo excessivo,
esta instabilidade emocional tenderá a refletir-se na vítima, o que poderá condicionar a
sua reestruturação após o crime. Além disso, a limitação exacerbada da liberdade que seria
adequada para a idade daquela criança ou jovem, especialmente quando é fundamentada
pela ocorrência do crime, poderá desencadear nesta a sensação de poder estar sofrer algum
tipo de castigo pelo crime que sofreu, traduzindo-se isto numa nova vitimação.
91
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária
Afigura-se como positivo que a vítima e os seus elementos de suporte mais próximos
disponham de uma rede social de apoio adequada, com a qual tenham a capacidade de
comunicar eficazmente, permitindo que usufruam do seu apoio sempre que necessitem.
Contudo, é conveniente que a família da vítima tenha expectativas claras acerca da sua
rede social e não permita que esta a substitua ou se sobreponha às suas funções (salvo
exceções em que tal seja necessário), sob o risco de a rede social poder intensificar alguma
desresponsabilização ou confusão.
92
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Caracterização
1. Caracterização
Na tipologia de fixação, o/a agressor/a revela uma preferência sexual por crianças de forma
persistente, contínua e compulsiva. Neste grupo é frequente o diagnóstico de pedofilia ou a
presença recorrente e intensa de fantasias sexuais, envolvendo crianças na pré-puberdade,
durante um período de pelo menos seis meses. Estes/as agressores/as normalmente não
têm qualquer relação com a vítima, e o abuso é perpetrado de forma premeditada. Os
comportamentos sexualmente violentos tendem a surgir na adolescência, e uma das
principais estratégias utilizadas pelo/a agressor/a consiste no estabelecimento de uma
relação de proximidade e confiança com a criança, de forma a garantir a continuação
do comportamento abusivo. Estes/as agressores/as tendem a escolher vítimas do sexo
masculino, com as quais não existe qualquer grau de relacionamento familiar (American
Psychiatric Association, 1999; Conte, 1991, cit. in Terry & Tallon, 2004). É de referir que
nestes/as agressores/as o risco de reincidência é elevado, e quanto maior o número de
vítimas, maior será o risco.
Por sua vez, no perfil de regressão os comportamentos sexualmente violentos têm início na
idade adulta, e normalmente são precipitados por fatores de stress. Estes fatores podem ser
situacionais, como por exemplo o desemprego, problemas conjugais e abuso de substâncias,
93
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
1. Caracterização
Outra tipologia amplamente divulgada sobre a violência sexual contra crianças e jovens foi criada
no final da década de 70, por Burgess, Groth e Holmstrom, que diferencia os/as agressores/as
situacionais dos/as agressores/as preferenciais (Holmes & Holmes, 1996, cit in. Soeiro, 2009).
No grupo dos/as agressores/as situacionais não está presente um verdadeiro interesse sexual
por crianças/jovens, e os crimes são desencadeados quando determinados fatores de stress
estão presentes (Dunaigre, 2001, cit. in Soeiro, 2009). Como tal, verifica-se que neste grupo
os comportamentos sexualmente violentos não são apenas direcionados a crianças/jovens,
mas também a pessoas que se encontram numa situação de maior vulnerabilidade (por
exemplo, idosos, pessoas com défices cognitivos, entre outros). É portanto, um tipo de abuso
cuja motivação não é de cariz sexual (Salter, 2003, cit. in Soeiro, 2009).
Por seu lado, o grupo dos/as agressores/as preferenciais, é aquele cujo comportamento abusivo
tende a provocar os danos mais graves nas suas vítimas. Neste grupo, os comportamentos
inserem-se no âmbito da pedofilia, estando presente um comportamento sexualmente
desviante, o qual pode surgir durante a adolescência. Estes/as agressores/as manifestam um
interesse sexual por crianças, as quais são percecionadas como objeto de prazer, e o abuso em si
é um estilo de vida e a pornografia infantil integra a fantasia (Salter, 2003, cit. in Soeiro, 2009).
Danni et al. (2002, cit. in Deb, S & Mukherjee, A., 2009) realizaram um estudo com
o intuito de diferenciar três tipos de agressores que abusam sexualmente de crianças/
jovens: pedófilos, hebofilos e agressores/as incestuosos/as. Neste estudo participaram 168
agressores/as, com condenação, e dos resultados obtidos verificou-se que os pedófilos
revelam um maior interesse sexual por vítimas na pré-puberdade, e normalmente recorrem
à estratégia de sedução, quando comparados com os/as agressores/as não pedófilos. Os/
as autores/as verificaram, também, que nos/as agressores/as hebofilos os atos sexualmente
violentos tendem a ser desencadeados por fatores de stress. Quanto aos agressores
incestuosos, verificou-se que os comportamentos tendem a surgir devido a sentimentos de
revolta e raiva, que podem estar relacionados com outros relacionamentos, designadamente
com a companheira ou com a figura materna (Terry & Tallon, 2004).
Considerando a literatura supramencionada, num estudo realizado por Soeiro (2009) foi
possível identificar uma tipologia dos abusadores sexuais de crianças para a população
94
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Caracterização
portuguesa, através da análise de 131 casos de abuso sexual de crianças, investigados pela
Policia Judiciária, na área dos Crimes Sexuais. Neste sentido, da análise estatística efetuada
foram identificados quatros perfis:
95
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online
A internet, pelo seu baixo preço, pela fácil acessibilidade e pelo sentido de anonimato que
produz nos utilizadores (Young, 2000), constitui uma ferramenta utilizada na agressão sexual.
Aproximadamente 3/4 dos homens e 1/2 das mulheres visualizam de forma intencional
pornografia através da internet (Albright, 2008). Para alguns indivíduos a utilização da
internet, de forma aditiva (Young, 2001), ou com propósitos sexuais interfere com aspetos-
chave da sua vida, como a carreira, o bem-estar psicológico e sexual e as relações íntimas
offline (Brand et. al 2011; Green, Carnes, Carnes, & Weinman, 2012; Levin Lillis, & Hayes,
2012; Putman, 2000).
Os agressores sexuais online podem assim, utilizar a internet para facilmente aceder a
conteúdos de pornografia de crianças e adolescentes, transmitir e partilhar esses conteúdos
com outros indivíduos e produzir os próprios conteúdos. Esta partilha pode ser feita com
objetivos pessoais, como aumentar a sua coleção de pornografia infantil ou satisfazer a sua
própria libido, como pode ter objetivos comerciais e financeiros. A internet permite ainda
a utilização da pornografia de crianças e adolescentes, a par da agressão sexual presencial
no chamado processo de “grooming”, de modo a dessensibilizar o menor e normalizar
o comportamento sexual pretendido (Lanning, 2001). O risco de vitimização também
aumenta com o contacto facilitado das crianças com o meio informático, que ocorre cada
vez mais cedo na infância (ex.º: cerca de 42% das crianças de 9 aos 12 anos têm perfis em
redes sociais [EU Kids, 2013]), de forma pouco supervisionada, relativamente ao conteúdo a
que estas acedem ou com quem comunicam.
96
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
2. Agressores sexuais em contexto online
interesses sexuais patológicos ou desviantes (Taylor & Quayle, 2003; Young, 2001) através do
reforço intermitente que é potenciado pelas características da internet (Greendfield, 2010)
e providencia novos fóruns de contacto com potenciais vítimas de abuso sexual, tal como
a oportunidade de estabelecer redes entre indivíduos que partilhem um interesse sexual
prolífero em crianças (Beech, Elliott, Brigden & Findlater, 2008; Burke, Sowerbutts & Sherry,
2002; O’Connell, 2001; Taylor & Quayle, 2003).
A investigação acerca das características dos agressores sexuais online é ainda escassa,
inconsistente e em desenvolvimento. Só recentemente, os investigadores começaram a
desenvolver tipologias que caracterizem diferentes motivações e comportamentos da
agressão sexual online (ex.º: Krone, 2004; Lanning, 2010; Seto, Cantor, & Blanchard, 2006;
Seto, Wood, Babchishin, & Flynn, 2012).
Seto, Cantor e Blanchard (2006) verificaram que a agressão sexual online pode ser melhor
indicador de pedofilia do que a agressão sexual contra criança por contacto, já que os
agressores online apresentam maiores níveis de excitação sexual em resposta a imagens de
crianças, quando comparados com os agressores sexuais por contacto. Apesar de terem
verificado um maior interesse sexual por crianças, os autores também demonstraram que
o consumo de pornografia por si só, não é um bom preditor de passagem à agressão sexual
por contacto, pois os utilizadores de pornografia de crianças e adolescentes apresentavam
menores taxas de reincidência (Babchinshin, Hanson & Chantal, 2010) quando comparados
com agressores sexuais por contacto. Estes dados parecem ser algo paradoxais, visto que
o interesse sexual da criança é um dos fatores altamente associados à agressão sexual de
crianças e adolescentes (ex.º: Hanson & Morton-Bourgon, 2005).
Os estudos com agressores sexuais online que os comparam com agressores sexuais offline
referem diferenças ao nível das características de personalidade (traços antissociais), na
excitação sexual, empatia e identificação com a criança, na auto-regulação emocional, na
solidão emocional e no risco de reincidência destes indivíduos, o que permite inferir que
existe também diferente organização ao nível cognitivo. Estas diferenças serão abordadas
mais a fundo posteriormente na investigação atual sobre a temática. Em termos de
características sócio-demográficas parece haver bastante acordo na investigação atual (ex.º:
McCarthy, 2010 [Tab1]; Babchinsin et. al., 2013 [tab2]): os consumidores de pornografia
infantil aparecem como mais jovens (idade média de 37 anos) do que outros agressores, com
nível de educação secundário ou superior (64 a 68%), maioritariamente caucasianos (82%) e
sem antecedentes criminais (86%).
97
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online
Devido à grande correlação apontada por Seto et al. (2010) entre o consumo de pornografia
de crianças e adolescentes e a presença de parafilias, algumas dimensões do interesse sexual
desviante devem ser tidas em mente:
98
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
2. Agressores sexuais em contexto online
%JNFOTÍP"HSFTTÍPDPNCBTFFNGBOUBTJBPVBHSFTTÍPDPNCBTFOPDPOUBDUP UJQPEFBHSFTTÍP
Nesta dimensão são referidos dois extremos de um contínuo onde é colocado o agressor
sexual, sendo os pólos referidos a fantasia e o contacto. Os agressores sexuais online guiados
pela fantasia são maioritariamente motivados por interesses parafílicos (Elliot & Bleech,
2009). Nos estudos efetuados pela autora, 81% dos agressores exclusivamente online referem
a fantasia como tendo um papel central na sua vida, contra 50% dos agressores mistos e
40% nos agressores sexuais por contacto (Sheldon & Howitt, 2008). Neste pólo, os sujeitos
geralmente admitem um interesse sexual fixado em crianças, são caracterizados por baixas
competências sociais, níveis altos de solidão emocional e maior empatia com as vítimas.
Predominantemente apresentam distorções cognitivas no grupo de “a criança como ser
sexuais” e “natureza do dano”, sendo as crianças vistas como tendo autonomia sexual
própria e o sexo como incapaz de produzir danos ou consequências negativas. Este tipo
de indivíduos sente maior atração por menores em tempos de grande solidão ou de maior
insatisfação na sua relação adulta.
%JNFOTÍP.PUJWBÎÍPEBBHSFTTÍPTFYVBMJOGBOUJMonline
99
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online
%JNFOTÍP$PNQPOFOUFTPDJBMEBBHSFTTÍPTFYVBMJOGBOUJM 'BUPSFTTJUVBDJPOBJTF
FOWPMWJNFOUPTPDJBM
A dimensão social da agressão sexual infantil refere-se ao grau de partilha e/ou secretismo
associado à utilização deste tipo de material. Os agressores sexuais online podem utilizar o
material de forma isolada, apenas para si mesmos, ou podem pertencer a redes de partilha e
comercialização deste material. O perigo de passagem ao ato torna-se maior quanto maior é
o envolvimento do sujeito com outros indivíduos com os mesmos interesses parafílicos, pois
a maioria das redes exige partilha de um certo número de imagens de pornografia infantil e
algumas vezes a produção das mesmas.
100
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as
A fase de interação sexual pode corresponder a atos exibicionistas por parte do/a
agressor/a, o qual poderá pedir à criança/jovem para que faça o mesmo. Com o tempo, os
comportamentos sexualmente violentos tendem a progredir. Segue-se a fase do segredo,
com vista a manter a perpetuação do abuso, evitando a sua revelação por parte da criança/
jovem. A manutenção do segredo pela criança/jovem pode estar relacionada com vários
fatores, nomeadamente, devido a sentimentos de lealdade e proteção pelo/a agressor/a,
às recompensas que são dadas ou devido a sentimentos de medo e receio, quando estão
presentes ameaças ou violência física.
No que diz respeito à revelação do segredo, esta pode ocorrer de forma acidental ou
propositada, sendo que a última geralmente é feita pela criança/jovem. Por último, a fase
de supressão ocorre quando existe uma tentativa de suprimir as informações sobre o abuso
ou a intervenção de terceiros. Esta supressão pode estar relacionada com o medo por parte
da vítima de sofrer represálias, medo da exposição pública ou de não se conseguir provar
o abuso. Pode, também, estar relacionada com questões culturais, sociais ou da própria
dinâmica familiar, por exemplo, em contextos de negligência.
Posto isto, passamos a enumerar algumas das estratégias mais utilizadas por estes/as
agressores/as (APAV, 2011):
101
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as
t Criação de uma relação afetiva com a criança ou jovem, pelo que o ato sexual é
percecionado enquanto uma demonstração de carinho e afeto (ex.º: conversar e
ajudar a criança quando esta tem um problema; fazer com que a criança se sinta
especial e amada com recurso a elogios)
t Disponibilizar à criança o acesso a bens materiais (ex.º: jogos, roupa, brinquedos, doces,
etc.), como forma de garantir a não revelação do abuso e a manutenção do mesmo.
102
Parte II
—
Proceder
Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual Parte II - Proceder
Para que possam apoiar crianças e jovens vítimas de violência sexual, bem como os seus
familiares e amigos, de forma qualificada, é importante que os/as profissionais detenham
conhecimento profundo e claro sobre os procedimentos mais adequados a adotar, as
ações e estratégias de intervenção que devem ser desenvolvidas e a organização e gestão
de um processo de apoio. Assim, tais profissionais deverão ser técnicos/as habilitados/
as e encontrarem-se devidamente enquadrados/as numa instituição pública ou privada,
governamental ou não-governamental, de voluntariado social ou não, podendo nestas
exercer funções de jurista, psicólogo/a, médico, entre outras.
105
Parte II - Proceder Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual
Os/as profissionais que intervenham com crianças e jovens vítimas de violência sexual
deverão deter competências pessoais e técnicas para o efeito.
Todos/as os/as profissionais envolvidos/as num processo de assistência e apoio a vítimas de crime
devem saber estar próximos de outras pessoas em estado de sofrimento, sob pena de o processo
não ser bem-sucedido. Esta competência poderá desdobrar-se em diversas dimensões:
106
Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual Parte II - Proceder
107
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
1. O dever de denúncia e a confidencialidade
O/A profissional que intervém com crianças e jovens, não raras vezes, questionar-se-á
sobre como poderá ser cumprido o dever de denúncia dos crimes públicos38 de que tem
conhecimento no exercício das suas funções sem que a garantia da confidencialidade do
contacto estabelecido com o/a utente seja quebrada.
A garantia da confidencialidade ao/à utente sobre os contactos que estabelece com o/a
profissional deve ser transmitida àquele/a, pois tal poderá ser fundamental para que se estabeleça
a relação de confiança com o/a técnico/a; dessa forma, poderá proceder-se a uma boa recolha de
informação, numa fase inicial, e ao desenvolvimento salutar de um processo de apoio.
No entanto, o papel do/a profissional deverá respeitar um princípio ainda mais importante:
o amplamente mencionado “superior interesse da criança”. De acordo com a Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989, na redação do seu artigo 3º, “todas as decisões relativas
a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais,
autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse
superior da criança”.
De acordo com Manata (2008), “(…) ainda que reconhecendo o seu carácter indeterminado,
todos concordaremos que esse princípio orientador – facilmente compreensível mas de difícil
explicação - constitui um instrumento fundamental para a adequada promoção e proteção dos
direitos dos menores. Aliás, sendo o interesse destes a força motriz e a luz que há-de iluminar
toda a problemática dos seus direitos, é esse o critério prioritário e prevalente quanto à adoção
de medidas que visam permitir que a criança ou jovem em situação de lhe ser causado dano no
plano físico, intelectual, moral ou social seja afastado desse perigo”.
Em suma, pode referir-se que, não obstante ser importante a garantia da confidencialidade
na relação com o/a utente, deverá prevalecer no/a profissional sempre a obrigatoriedade
de denunciar o(s) crime(s) de que a criança ou jovem estará a ser alvo, uma vez que tal
forma constitui o meio mais idóneo para salvaguardar a integridade física e psíquica da
vítima. Concomitantemente e, de forma a preservar esta relação de confiança com a criança/
jovem, deverá ser-lhe explicado o motivo e a necessidade de denúncia, garantindo que será
informado/a de tudo o que for transmitido para o exterior, na medida em que a idade da
criança/jovem possibilite essa compreensão. Por outro lado, a confidencialidade deverá
manter-se para tudo o que não releve para a denúncia e para a salvaguarda da criança ou jovem. 38. A este propósito, ver Parte
I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 6. Enquadramento
jurídico atual > a. A natureza dos
crimes, a responsabilidade penal e
a competência para a investigação
criminal.
109
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Assim, os serviços de apoio deverão, em primeira instância estar preparados para ouvir,
presencialmente ou à distância, de forma atenta e empática, os/as utentes, reconhecê-los/as como
vítimas (diretas ou indiretas) e, dentro do que lhes é possível, ajudarem a lidar com o impacto
decorrente da vitimação, seja ele de ordem emocional, psicológico, físico, financeiro ou outro.
a. Apoio presencial
O recurso de uma criança ou jovem, dos seus representantes legais e/ou familiares e amigos/
as pode ocorrer de forma presencial junto de um serviço de apoio.
As crianças e jovens deverão ser acolhidos/as e encaminhados/as para a sala de espera ou, se tal
for imediatamente possível, para as salas de atendimento. Para evitar impaciência e ansiedade,
especialmente das crianças mais novas, a espera não deverá ser superior a quinze minutos e, se tal for
inevitável, a criança ou jovem e quem o/a acompanha deverão ser avisados dessa impossibilidade.
110
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
O/a profissional deverá ceder o espaço mais confortável da sala aos/às utentes, e adotar
as mais elementares regras de boas-maneiras, eliminando na totalidade comportamentos
deselegantes (ex.º: comer, mastigar pastilha elástica, atender o telemóvel ou enviar SMS).
No final do atendimento, os/as utentes deverão ser acompanhados até à saída pelo/a profissional.
As crianças e jovens vítimas de violência sexual que recorram a um serviço de apoio deverão
ter ao seu dispor uma sala devidamente equipada e adequada às suas idades.
A sala de atendimento deve respeitar cinco vetores essenciais: conforto e segurança, cor e
decoração, privacidade, adequabilidade e materiais de apoio.
111
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Assim, existem algumas premissas que o/a técnico/a deverá aplicar em contexto de
112
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
atendimento presencial:
t Apresentação, identificando-se, se for a primeira vez que contacta com o/a utente.
O/a profissional deverá ainda esclarecer com a criança ou jovem qual o seu papel, e o
que poderá fazer para o/a ajudar;
t Escuta ativa: o/a profissional deverá ouvir atentamente a criança ou jovem, e dar-lhe
indicações, sejam elas verbais (através de expressões como “compreendo”, “entendo”)
ou não-verbais (ex.º: acenar a cabeça em sinal de aprovação, manter contacto ocular)
de que está a apreender o que se encontra a ser transmitido, e procurando não
interromper o discurso do/a utente;
t Atenção à linguagem não-verbal: a atenção ao discurso da criança ou jovem deve ser
complementada com a observação dos sinais não-verbais. Por exemplo, se o/a utente
hesitar no discurso, poderá ter uma informação que teme revelar. Por outro lado, se
uma criança ou jovem relatar um grande episódio de violência de que foi alvo alguns
dias antes e não tiver sequelas do mesmo, provavelmente existirá alguma incoerência
no discurso. Mais ainda, a linguagem não-verbal poderá ser indicadora de patologias
psiquiátricas da criança ou jovem (ex.º: balançar-se compulsivamente);
t Reformulação: o/a técnico/a deverá assegurar-se que entendeu na íntegra a
mensagem que a criança ou jovem queria transmitir; para esse efeito, poderá
reformular o que foi dito, expondo ou devolvendo o que foi relatado.
t Questionar: o/a técnico/a deverá questionar a criança ou jovem sempre que a
informação transmitida por aquele/a seja pouco clara ou não seja suficiente para o
desenrolar do processo de apoio. O/a técnico/a poderá utilizar questões abertas (ex.º:
“como te sentes?”) ou fechadas, que visem uma resposta simples, curta e inequívoca
(ex.º: “que dia era quando isso te aconteceu?”);
t Encorajar a expressão de emoções e/ou sentimentos: o/a profissional deve mostrar
total disponibilidade para que a criança ou jovem se expresse de forma espontânea,
dizendo, por exemplo: “É natural que sintas vontade de chorar”. Todavia, a expressão
de emoções não deverá ser vista pelo/a técnico/a como uma obrigatoriedade, não
a devendo impor, pois, pese embora a sua utilidade especialmente nas situações de
crise emocional, a decisão de o fazer (ou não) caberá à criança ou jovem;
t Não julgar – este será, porventura, o pilar mais importante em qualquer modalidade
de atendimento com crianças e jovens. O/a profissional deverá redobrar atenções
para não o fazer, especialmente em contexto de atendimento presencial, em que
cuja ocorrência poderá ser não só mais provável como mais nociva, especialmente
se se associar a expressões não-verbais que transmitam, por exemplo, choque
ou ansiedade. Sobre este assunto, existem duas preocupações que devem estar
na mente do/a profissional que intervém com crianças e jovens: o/a utente não
deverá ser questionado/a de forma sistemática, para que não se sinta interrogado/a
113
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
t A idade da vítima;
t Quem acompanha a criança ou jovem;
t O tempo que decorre entre o crime e a entrevista;
t O facto de a entrevista ocorrer antes ou depois da audição da criança ou jovem pelas
autoridades judiciárias, nomeadamente para declarações para memória futura;
t O contexto do próprio crime.
114
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Algo que interessa esclarecer são os objetivos da entrevista à criança ou jovem no contexto
de apoio à vítima. Estes objetivos podem ser enquadrados nos objetivos da função do
“técnico especialmente habilitado” para o acompanhamento da criança ou jovem junto
às diligências judiciais, pois esta função pode ser desempenhada pelo/a profissional, que
será o/a técnico/a que deverá ter uma ligação prévia à criança antes da diligência (por ter
iniciado um processo de apoio à vítima anteriormente). Segundo Rui do Carmo (2013),
“[a] nomeação e funções deste técnico não podem deixar de ser ponderadas tomando em
consideração não apenas o processo-crime mas também o procedimento, que na maioria dos
casos corre paralelamente àquele, de proteção da criança e promoção dos seus direitos (…) [A]
atuação do/a técnico/a (nomeado para acompanhar a criança nas declarações para memória
futura) deve estar em harmonia com o sentido da ação protetiva que está a ser desenvolvida,
deve ser o seu prolongamento (…)” (p.134). Ou seja, os objetivos da entrevista são:
t Ouvir a história, respeitando o tempo e o relato que a criança ou jovem quiser partilhar;
t Perceber quais as suas dúvidas e necessidades mais imediatas, para tentar dar uma
resposta honesta e possível;
t Preparar a criança ou jovem para o seu contacto com o sistema judicial e para todas
as medidas protetivas que venham ser verificadas como necessárias a tomar;
t Preparar a criança ou jovem para o processo de apoio à vítima e para a sua
recuperação do crime de que foi vítima.
É necessário deixar bem claro que a entrevista à criança ou jovem vítima de violência sexual,
no contexto de apoio à vítima não deve ter características de interrogatório policial ou de
apuramento dos factos. A forma como ocorre esta entrevista tem especial relevância antes
da recolha das declarações para memória futura, pois pode haver o risco de “contaminar” o
relato da criança com suposições erradas ou subjetivas do entrevistador, que a criança pode
assumir como “sua verdade”. Se nas declarações para memória futura o/a magistrado/a tenta
chegar ao apuramento dos factos, com técnicas de entrevista própria, no apoio à criança e
jovem, nem sempre a exatidão dos factos é o mais relevante para o processo de apoio e deve
ser distinguido se a criança ou jovem realmente necessita de contar com detalhe o que lhe
aconteceu ou se isso se deve à curiosidade do/a técnico/a.
'BTFTEBFOUSFWJTUBËDSJBOÎBPVKPWFNWÓUJNBEFWJPMÐODJBTFYVBM
É aconselhado que o/a técnico/a recolha as informações gerais do crime (o que aconteceu
e quando aconteceu) com o/a familiar ou representante legal, antes de falar com a
criança/jovem. É igualmente importante que o/a técnico/a averigue junto do/a familiar
ou representante legal se a criança ou jovem sabe ou tem consciência da dimensão e
implicações do crime.
115
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Quando em contacto com a criança ou jovem, deve ser criado um ambiente que seja
confortável e informal para permitir a criança ou jovem estabelecer uma relação de
confiança com o/a profissional. Pode ser necessário mais do que uma sessão até esta
confiança estar estabelecida, mas é um tempo em que deve haver investimento, pois irá
condicionar todo o trabalho futuro com a criança ou jovem. Com crianças muito novas,
o apoio pode implicar a presença do/a familiar ou representante legal, até à criança se
habituar à presença do/a técnico/a e confiar em ficar com este/a, sem a presença do/a
familiar ou representante legal. Devem ser usadas expressões simples. A entrevista pode ser
desenvolvida durante atividades que se podem propor à criança ou jovem, como brincar
com jogos ou brinquedos ou através da realização de desenhos livres.
A criança ou jovem pode saber porque está naquele espaço e ter uma expectativa sobre
o que é esperado dele/a. Sem lhe ser questionado, a criança ou jovem pode revelar a
ocorrência do crime, de acordo com o que lhe parece a sua experiência. A situação não deve
ser explorada de imediato, especialmente se ainda não tiverem ocorrido as declarações para
memória futura. Neste caso, deve dar-se espaço para a criança ou jovem falar, reconhecendo
o seu sofrimento e perguntando se a criança ou jovem tem alguma dúvida ou preocupação
naquele momento. As questões levantadas pela criança ou jovem devem ser respondidas
com simplicidade e honestidade. Podem ser levantadas questões como “mas o que vai
acontecer ao meu familiar (caso seja o agressor) se eu contar à polícia?”. Nestes casos, deve ser
tranquilizada a criança ou jovem que o que vier a acontecer, é sempre para a proteger e que
todos estão empenhados no seu bem-estar.
No caso da criança ou jovem não direcionar o discurso para o crime pode ser perguntada
à criança se sabe porque está naquele espaço, ou porque está a falar com o/a técnico/a.
Mediante a fase do processo judicial que estiver em curso, deve iniciar-se com a criança
ou jovem a preparação para as ações que doravante irão acontecer. Tal pode ser feito com
recurso a desenhos, maquetes, etc. que expliquem, de forma simples, por exemplo, como
funciona um tribunal e o que é esperado que aconteça neste espaço.
116
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
b. Apoio à distância
Para efeitos do presente Manual, iremos considerar apoio à distância todo aquele que não
acontece presencialmente com os/as utentes, dando enfoque ao apoio prestado por telefone,
por escrito e o apoio online.
i. Apoio telefónico
Embora seja expectável que as crianças ou jovens possam chegar ao contacto dos serviços de
apoio por iniciativa de um/a adulto/a (ex.º: representante legal, professor/a, funcionário/a da
escola), poderá acontecer que os próprios decidam pedir ajuda. Independentemente de quem faz
o contacto telefónico, deverão ser seguidos os mesmos princípios referidos no apoio presencial,
tendo em especial consideração que a escuta deverá ser particularmente atenta, uma vez que
neste tipo de contacto não é possível aferir os sinais não-verbais do/a interlocutor/a.
Assim, após atender a chamada tão rapidamente quanto possível, o/a profissional deverá
identificar-se, dando seguimento ao apoio telefónico, sem distrações e com a adoção de uma
linguagem adequada à idade e compreensão da pessoa com quem está a falar.
Mais ainda, o/a profissional deverá mostrar disponibilidade para prosseguir a conversa, não
só de forma expressa, mas também através de outros sinais, como “sim, percebo”. Com efeito, o
silêncio poderá ser interpretado como desinteresse em relação ao que está a ser relatado.
Bem assim, deverão ser recolhidas as informações essenciais para a melhor prossecução
do processo de apoio (ex.º: identificação da criança ou jovem) e deverá ser reforçada a
importância do pedido de apoio.
Caso o primeiro contacto para pedido de apoio seja feito por este meio, deverá sensibilizar-
se o/a utente para a importância de um atendimento presencial; com efeito, este poderá
permitir uma avaliação mais completa da problemática, uma vez que, telefonicamente,
poderão não ser transmitidas todas as informações necessárias para este efeito (ex.º: o/a
utente pode estar a telefonar num local público e sentir-se menos à-vontade).
Se o/a utente não manifestar vontade de se deslocar a um atendimento presencial, deverá ser
informado da disponibilidade do/a profissional para contactos de follow-up.
117
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Esta forma de contacto com as instituições de apoio a crianças e jovens reveste-se de muita
importância. Com efeito, por vezes o atendimento telefónico ou presencial pode causar
alguma intimidação a quem pede apoio, levando a que, numa fase inicial, contacte a instituição
apenas por escrito, com especial incidência para os contactos realizados por e-mail. Quando
assim é, na maioria das vezes responde-se à correspondência remetida pelo mesmo meio, a
menos que nela conste expressa menção de que outro meio poderá ser utilizado.
Na resposta por escrito, o/a técnico/a deverá observar algumas premissas já analisadas
anteriormente, e acrescentar as especificidades devidas ao atendimento por escrito:
t Princípio da intervenção precoce: responder com a máxima brevidade, uma vez que
tal atuação deve ser considerada muito urgente.
t Acusar a receção da informação e indicar a data em que tal aconteceu.
t Agradecer, desde logo, o contacto.
t Nos casos em que a intervenção não é do âmbito da instituição, o/a utente deverá ser
encaminhado/a para a que mais se adeque à problemática.
t Utilizar linguagem com palavras do léxico corrente e frases curtas.
t Reforçar o pedido de ajuda, evitando, desta forma, o arrependimento do/a utente, e
incentivando a novos contactos.
t Clarificar que a criança ou jovem se encontra a vivenciar uma situação de violência,
e explicar-lhe que esse comportamento não é aceitável, que não é culpa sua e que
existem mecanismos para o/a ajudar.
t Caso seja aplicável, procurar que a criança ou jovem reporte a situação a um/a
adulto/a que seja da sua confiança, para que possa ser mais eficazmente ajudada.
t Propor que se realize um atendimento presencial e, caso se adeque e seja viável, o/a
profissional disponibilizar-se para que o mesmo aconteça num local que seja mais
adequado para a criança ou jovem (ex.º: escola).
t Assinar a resposta, com indicação do nome e do cargo, e disponibilizar-se para
futuros contactos.
118
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Por apoio online, entende-se a prestação de apoio e/ou informação a determinado/a utente, no qual:
A comunicação síncrona poderá realizar-se recorrendo a ferramentas para esse efeito (ex.º:
softwares como o Skype®, Whatsapp®) ou outras especificamente desenvolvidas pela entidade
para a prestação de apoio e/ou informação online a vítimas de crime/violência.
119
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
Mais ainda, deve o/a profissional assegurar que o apoio online a crianças e jovens respeita os
princípios e práticas da entidade no que respeita à intervenção com menores, bem como a
legislação aplicável.
Pelo acima exposto, deve salientar-se que o recurso ao apoio online deverá ser ponderado de
forma individualizada, em função da análise de cada situação, sobretudo quando se fala de
crianças ou jovens.
120
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
3. Informação a aferir
3. Informação a aferir
Este apresenta-se como um momento crucial tanto para o/a utente como para o/a profissional:
o primeiro recorre ao serviço num momento de fragilidade, para pedir ajuda; o segundo tem
sobre si as expectativas geradas pelos/as utentes sobre como poderão ser apoiados.
O/a profissional deverá procurar proceder à recolha de informação com a vítima e/ou
representantes legais, em três vetores: história pessoal e de pré-vitimação, vitimação, e história
pós-vitimação. Todavia, a recolha de informação deve ser ajustada ao estado emocional do/a
interlocutor/a, isto é, caso o/a utente não esteja capaz de devolver toda a informação, o/a
profissional deverá cingir-se à recolha possível, e, em caso de necessidade, deverá promover a
existência de atendimentos posteriores para continuar a recolha de informação.
Sobre a história de vitimação, o/a profissional deverá procurar reunir o máximo de dados
possíveis sobre os factos, nomeadamente:
121
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
3. Informação a aferir
Avaliação
de risco = Recolha de
informação + Análise dos
fatores de risco + Juízo do
profissional
t Tipo de vitimação: o risco tenderá a ser mais elevado se a violência ocorrer de forma continuada;
t Relação vítima/autor/a do crime: as vítimas que coabitem com o/a autor/a do crime
ou que tenham uma relação de grande proximidade (ex.º: não coabitem mas estejam
todos os dias juntos) poderão estar em maior risco. Neste sentido, o risco aumentará
40. Já devidamente explanados
na Parte I – Compreender >
se, concomitantemente, não tiver sido promovido o afastamento entre ambas as
Capítulo II – A criança e o jovem partes, quer por iniciativa da vítima e/ou representante legal, quer por imposição
vítimas de violência sexual > 2.
Caracterização da vítima e fatores legal, através da aplicação de uma ou mais medidas de coação;
de risco associados
122
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
3. Informação a aferir
t Posse de armas do/a autor/a do crime e ameaças: se o/a autor/a do crime tiver em sua
posse armas de fogo e/ou brancas, bem como se as já tiver utilizado para ameaçar ou
intimidar a vítima, o risco de vitimação mais severa poderá existir, quer as ameaças
tenham ocorrido no período pré-revelação ou pós-revelação;
t Perseguição/assédio do/a autor/a do crime: o/a técnico/a deverá ter em conta que o
risco de revitimação ou de vitimação mais severa poderá acontecer no caso de o/a
autor/a do crime continuar a assediar ou a perseguir a vítima;
t Recurso ao “segredo”: enquanto estratégia de manutenção da dinâmica violenta, o
“segredo” poderá atrasar a revelação da violência e, portanto, nesse período, a vítima
poderá estar em risco de ocorrências mais violentas e/ou severas;
t Idade da vítima: as crianças mais novas poderão encontrar-se em maior risco de
violência mais frequente e/ou severa. Com efeito, crianças e jovens mais velhas têm
mais recursos que poderão não só ser facilitadores da revelação, como de defesa
perante uma investida violenta;
t Antecedentes criminais do/a autor/a do crime: o facto de o/a autor/a do crime ter
antecedentes criminais, especialmente por crimes da mesma natureza ou similares,
poderá colocar a criança ou jovem em maior risco.
É importante que não se entendam estes fatores de risco e outros como uma “fatalidade”: a
existência de um conjunto de fatores não é significado de que aquela criança ou jovem vá de
facto ser vítima de atos contínuos, ou mais severos - o risco deve ser visto numa perspetiva
probabilística e não tido como uma certeza absoluta. O/a técnico/a deverá gerir e conduzir
o processo de apoio consoante o risco que perceciona, e igualmente de acordo com as
necessidades de intervenção identificadas por si e pelos/as utentes.
= + +
Necessidades Necessidades
Avaliação das Avaliação
identificadas expressas
necessidades de risco
pelo técnico pelo utente
123
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
3. Informação a aferir
Nesta fase, o/a técnico/a deverá procurar conduzir a sua atenção para as necessidades
veiculadas pelos utentes. Todavia, é expectável que estes nem sempre o façam de forma
direta; com efeito, por vezes apenas solicitam “apoio”, sem especificarem exatamente de que
tipo. Não obstante, existem pessoas que, ao recorrerem aos serviços, fazem-no com objetivos
muito claros (ex.º: apoio jurídico, apoio psicológico, afastamento do/a autor/a do crime).
Ainda assim, o/a técnico/a, na sequência da informação que recolheu, bem como pela
avaliação de risco que realizou, poderá identificar ele próprio necessidades, em várias
dimensões, de que a vítima, representantes legais e/ou familiares e amigos possam carecer.
No entanto, é importante salientar que nem sempre as necessidades veiculadas pelos/as utentes
são as mesmas que o/a técnico/a identifica e, bem assim, as necessidades percebidas pelos/as
utentes como sendo prioritárias podem não ser as mesmas pensadas pelo/a técnico/a.
124
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
De acordo com a Diretiva 2012/29/EU41, pela redação do seu Art.º 9.º, um dos apoios
mínimos que os serviços devem garantir às vítimas é que as mesmas saibam qual o seu papel
em sede de processo penal. Nesse sentido, de seguida irá explanar-se, de forma articulada, as
interações da vítima (no caso, das crianças e jovens vítimas e seus representantes legais) com
o processo penal e os seus direitos que daí emergem42.
Após ser dada a notícia do crime – por meio de denúncia ou queixa - junto dos Órgãos de
Polícia Criminal ou do Ministério Público, inicia-se a fase de inquérito.
Por regra, os crimes de natureza sexual perpetrados contra crianças ou jovem são de
natureza pública, pelo que qualquer pessoa pode dar início ao processo-crime denunciando
a situação de que tem conhecimento.
41. Diretiva 2012/29/EU, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 25 de
Relativamente ao crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º 173.º CP) é importante outubro de 2012, que estabelece
normas mínimas relativas aos
salientar que é de natureza semipública, isto é, o seu procedimento criminal depende de direitos, ao apoio e à proteção
das vítimas de criminalidade e
queixa. Na medida em que estamos perante um crime contra menores de idade, sempre que que substitui a Decisão-Quadro
o/a ofendido/a for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance 2001/220/JAI do Conselho. Foi
transporta para o ordenamento
e o significado do exercício do direito de queixa, cabe aos titulares deste direito (ou seja, jurídico português com a criação
da Lei n.º 130/2015, de 04 de
ao seu representante legal43), a formalização da mesma, no prazo de seis meses a contar da 42.
setembro – Estatuto de Vítima.
Complementarmente, consultar
prática dos factos. documento n.º 2 dos anexos
43. Art.º113.º n.º4 do CP,, ou na sua falta
as restantes pessoas elencadas no
n.º 2, do mesmo artigo.
Ainda assim, se tal direito de queixa não for exercido, nem for dado início ao procedimento 44. No caso dos crimes contra a
criminal nesse prazo, o/a ofendido/a pode exercer esse direito a partir da data em que liberdade e autodeterminação
sexual de menor, o único Órgão
perfizer 16 anos até seis meses após completar 18 anos. de Polícia Criminal competente
para a investigação é a Polícia
Judiciária (Lei 49/2008, de 27 de
Agosto, Art.º 7.º, n.º 3, al. a)), como
A fase de inquérito carateriza-se por ser uma fase de investigação, dirigida pelo Ministério já visto em Parte I – Compreender
> Capítulo I > 6. Enquadramento
Público, que é assistido pelos Órgãos de Polícia Criminal44 (PJ, PSP, GNR e SEF), que visa jurídico atual > a. A natureza dos
crimes, a responsabilidade penal e
averiguar a prática ou não de um crime, bem como a autoria do ilícito. a competência para investigação
criminal
125
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
A lei deixa ao critério do Ministério Público quais as diligências que devem ser realizadas – e que,
não raras vezes, são efetuadas pelos Órgãos de Polícia Criminal - sendo, contudo, obrigatórias
quer a audição do/a arguido/a, quer a realização das declarações para a memória futura.
Este exame pericial é sempre urgente, quer por questões ligadas à prova e à proteção
da criança/jovem vítima, quer por questões de ordem clínica. Mas nos casos em que o
intervalo entre o contacto sexual e o exame médico-legal é igual ou inferior a 72 horas (valor
orientador, a avaliar em cada caso), considera-se que se trata de um contacto recente ou
agudo, pelo que havendo possibilidade de encontrar vestígios biológicos e físicos, a perícia é
emergente ou seja, deve ser realizada sem delongas (Magalhães et. al., 2013).
As vítimas podem ser orientadas para os serviços médico-legais pelas entidades judiciais
ou judiciárias, unidades de saúde, CPCJ ou escolas, entre outras. A vítima ou o/a seu/sua
representante legal podem também requerer a realização de exame pericial, uma vez que
os serviços médico-legais, de acordo com a lei, podem receber a denúncia e proceder de
imediato ao exame (Art.º 4.º, n.º 1 da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto).
Estas perícias têm lugar, geralmente, numa delegação ou num gabinete médico-legal e
forense do INMLCF da área de residência da vítima. Contudo, quando o INMLCF não está
em funcionamento e para garantir a realização atempada destes exames, existe um serviço
de perícias urgentes deste Instituto que funciona durante 24 horas por dia e todos os dias
da semana, sendo os exames realizados em serviços de urgência hospitalares. Para alargar
este serviço a toda a área de Portugal Continental existe um protocolo, desde junho de 2011,
celebrado entre os Ministérios da Justiça e da Saúde, e a Comissão Nacional de Promoção
dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens, que permite que as crianças/jovens possam ser
transferidas de hospitais mais periféricos para outros onde este serviço esteja assegurado -
apenas nos casos em que motivos de saúde contraindiquem a transferência serão os médicos
hospitalares a realizar a colheita de vestígios (Magalhães & Vieira, 2011).
126
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Este exame pericial tem valor probatório, mesmo sabendo-se que muitas das lesões
encontradas são inespecíficas e que em cerca de 60% dos casos não se encontrem lesões
ou vestígios (Heger et. al., 2002; Pillai, 2008). Algumas das razões que podem explicar a
negatividade deste exame são: (1) a revelação ou denúncia não atempada (em geral depois de
72 horas após o contacto); (2) a destruição dos vestígios (ex.º: lavagens); (3) o facto de grande
número de contactos sexuais não deixarem vestígios, seja porque a cicatrização das lesões é
geralmente rápida e completa, seja porque em muitos casos não há penetração de cavidades
corporais nem ejaculação no corpo, ou ainda em virtude da elasticidade dos tecidos (nos
adolescentes) e do uso de lubrificantes. Mas o facto de não se encontrarem vestígios ou lesões/
sequelas, não permite, por si só, excluir a hipótese de contacto sexual (Heger et. al., 2002).
Entre os indicadores do contacto sexual destacam-se (Jardim & Magalhães, 2010): (1)
certas lesões ou sequelas de natureza traumática; (2) vestígios biológicos no corpo ou
roupa (ex.º: esperma, pêlos, cabelos, saliva, sangue), importantes por provarem o contacto
físico e revelarem a identificação do agressor; (3) vestígios físicos no corpo ou na roupa
(ex.º: lubrificantes, terra, folhagem, fibras), relevantes para informar sobre o local onde o
contacto abusivo teve lugar; (4) infeções sexualmente transmissíveis (IST) (ex.º: Neisseria
gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, Treponema pallidum, Vírus da Imunodeficiência
Humana, Trichomonas vaginalis) (Oral et. al., 2011); (5) gravidez.
Estes indicadores têm diferentes graus de especificidade, a saber (WHO, 2003; Adams et. al.,
2007): (1) indicadores diagnósticos (ex.º: gravidez, presença de esperma no corpo ou roupa
da vítima ou certas IST como gonorreia, sífilis ou infeção por Chlamydia); (2) indicadores
sugestivos - “altamente suspeitos” e “suspeitos” (ex.º: certas lesões traumáticas anogenitais
recentes ou não recentes); (3) indicadores inespecíficos - inconclusivos (ex.º: certos achados
na membrana himenial ou ânus, ou certas IST).
Os indicadores psicológicos deste tipo de contactos são especialmente importantes e devem ser
avaliados por psicologia forense e, por vezes, por psiquiatria forense (Peixoto & Ribeiro, 2010).
O/A primeiro/a profissional que aborda ou é abordado pela vítima, sobre o contacto sexual,
deve evitar abordagens que sejam causa de vitimação secundária ou de contaminação do seu
relato (por vezes a única evidência do abuso). Deve, também, se o caso for recente, prestar
informações sobre a preservação de eventuais vestígios, designadamente (Magalhães et. al.,
2013): (1) não comer, beber ou fumar; (2) não lavar a boca nem os dentes; (3) não tomar
banho nem lavar os órgãos genitais; (4) não lavar as mãos, não limpar nem cortar as unhas;
(5) não se pentear; (6) não mudar de roupa e, se já o tiver feito, preservar a que usava à data
da ocorrência (incluindo absorventes), se possível seca e em sacos de papel; (7) não urinar
ou defecar e, caso o tenha de fazer, conservar esses produtos numa embalagem adequada
127
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
(ex.º: contentor limpo para exame bacteriológico de urina, com tampa); (8) não tocar no
local onde decorreu a agressão, não limpar ou arrumar esse local, não esvaziar baldes do lixo
nem puxar o autoclismo.
Este/a profissional, face à suspeita do abuso, deve denunciar e sinalizar o caso, nos termos da
lei, sem o qual os exames médico-legais e forenses não terão lugar.
Os objetivos de um exame médico-legal nestes casos são: (1) identificar vestígios, lesões e/
ou sequelas, e interpretá-los no contexto do alegado contacto sexual; (2) obter amostras
biológicas para estudos de ADN, de microbiologia (pesquisa de IST) ou de toxicologia, entre
outros; (3) obter outras amostras não biológicas que possam ter utilidade em termos da
investigação criminal.
128
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Antes de iniciar o exame, deverá ser obtido o consentimento informado da vítima, a partir
dos 16 anos de idade, e depois de explicados claramente todos os procedimentos que terão
lugar às crianças mais novas deve ser sempre requerida a sua concordância para a realização
do exame. Este poderá ser feito na presença de uma pessoa representativa para a criança, se
esta assim o desejar.
Ao contrário da prova material, a prova pessoal “trata-se de uma tarefa árdua e difícil, pelos
elevados níveis de instabilidade e de subjectividade que a comunicação humana de per se
encerra, contrapostos os exigentes requisitos de certeza, rigor e fiabilidade que o processo penal
exige para o reconhecimento e validação da prova” (Braz, 2010, p. 68).
129
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
crianças mais novas, esta não é tão elevada como se considerava anteriormente. Contudo,
pode aumentar se o entrevistador adotar uma atitude de intimidação, coerção, intolerância,
utilizar linguagem demasiado técnica ou colocar questões que nada têm a ver com a situação
de vitimação (Caridade, Ferreira e Carmo, 2011).
Quando esta exceção foi pensada e criada, dirigia-se essencialmente a situações especiais
de impossibilidade de uma das partes estar fisicamente em tribunal. Apenas em 1998 é que,
no ordenamento jurídico português, a possibilidade de prestar declarações para memória
futura foi alargada para as vítimas de crimes sexuais. No ano de 1999, pela Lei de Proteção
de Testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de Julho), considerou-se que tais declarações deveriam
ser tomadas o mais brevemente possível após a notícia do crime. De acordo com Alberto
(2006, cit in Caridade, Ferreira e Carmo, 2011, p.68), “o abuso sexual, mais do que outras
formas de violência contra crianças, suscita debates e polémicas acesas em torno da memória,
do discurso e da sugestionabilidade”, sendo que a investigação demonstra que “a entrevista
mais exata é a primeira”.
O Art.º 271.º n.º 2 do CPP prevê que estas declarações aconteçam, nos casos de crimes contra
a liberdade e autodeterminação sexual de menor, sempre durante a fase de inquérito, desde
que, à data, a vítima ainda não tenha completado 18 anos de idade. Ainda no mesmo artigo,
no n.º 4, prevê-se que tal diligência aconteça em ambiente informal e reservado e na presença
de um técnico especialmente habilitado que acompanhe a criança/jovem. Todavia, o n.º 7
não inviabiliza que, em contexto de julgamento, as crianças ou jovens tenham de repetir o
depoimento, a menos que tal ponha em causa a saúde física ou psíquica das vítimas.
No entanto, é possível perceber que a prática não está uniformizada em relação ao que a
lei concetualiza. Em relação ao momento exato em que têm de ocorrer as declarações para
memória futura, a lei apenas refere que terão de acontecer na fase de inquérito, que, na
verdade, poderá demorar vários meses até ser concluída.
De igual modo, não é claro o papel do/a técnico/a especialmente habilitado, de que entidade
provém e em que medida pode ou não intervir. Já em 2010 a APAV se pronunciou sobre a
possibilidade de as vítimas escolherem quem as acompanharia neste momento.45
Não é igualmente clarificado o local em que as declarações deverão acontecer, dado que o Art.º
45. Num parecer acerca de vítimas de 271.º do CPP apenas faz menção a um “ambiente informal e reservado” (Caridade, Ferreira
Violência Doméstica que tenham
de prestar declarações para e Carmo, 2011), nem o mecanismo de preservação das declarações. Todavia, reduzir pura
memória futura.
130
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
e simplesmente as declarações das vítimas menores a escrito poderá ser prejudicial para a
espontaneidade das declarações, uma vez que não permite uma análise da entrevista na sua
globalidade, com por exemplo, as correspondentes expressões corporais (Martins, 2013).
Ainda que as declarações para memória futura possam ter como intuito a diminuição da
vitimação secundária, nem sempre tal é garantido, porque o sistema judicial português
poderá não ter ao seu dispor os meios (humanos e materiais) mais adequados a lidar com
crianças e jovens vítimas de crime.
Este direito das vítimas de crime, plasmado no Art.º 13.º do Estatuto de Vítima, consagra que:
Artigo 13.º
Assistência específica à vítima
O Estado assegura, gratuitamente nos casos estabelecidos na Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, alterada
pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, que a vítima tenha acesso a consulta jurídica e, se necessário, o
subsequente apoio judiciário.
Com efeito, nenhuma vítima deverá ser impedida ou dificultada de aceder ao pleno
exercício dos seus direitos em razão da sua condição social ou cultural ou por insuficiência
de meios económicos.
Caso se verifique aquela insuficiência, a vítima (ou o/a representante legal) poderá pedir
apoio judiciário junto do Instituto de Segurança Social (por meio de requerimento de
proteção jurídica de pessoa singular) para a sua representação no processo.
131
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
No decurso do processo-crime, e logo desde a fase de inquérito, a vítima (se maior de 16 anos
ou o/a seu representante legal) poderá manifestar vontade de se constituir como assistente.
É de salientar que a pessoa que se constituiu como assistente não pode ser ouvida como testemunha,
embora possa prestar declarações perante o Tribunal, ficando sujeita ao dever de verdade.
132
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
4. Direito à proteção
As vítimas e os/as familiares46 têm direito a proteção no que respeita à sua segurança e
salvaguarda da vida privada, sempre que as autoridades considerem que existe uma séria
probabilidade de serem alvo de represálias, intimidação ou continuação da atividade
criminosa, ou fortes indícios que a privacidade das vítimas/familiares possa ser perturbada,
nos termos do Art.º 15.º n.º 1 do Estatuto de Vítima.
"QMJDBÎÍPEFNFEJEB T
EFDPBÎÍP
Uma medida de coação é uma restrição à liberdade do/a arguido/a, que pode ser aplicada no
decurso do processo-crime caso se verifique perigo de fuga, perigo para a obtenção e conservação
da prova do crime, perigo para a ordem pública e/ou perigo de continuação da atividade criminosa.
Caso considere que a aplicação de uma medida de coação é a forma adequada de garantir a
sua proteção, deve a vítima ou quem tem a sua representação legal expor a situação e solicitar a
aplicação daquela. Durante a fase de inquérito, tal exposição deve ser realizada perante o Ministério
Público (na fase de instrução será ao juiz de instrução e no julgamento, ao juiz de julgamento).
De igual forma, caso a vítima ou quem tem a sua representação legal considere que a
medida aplicada não a protege eficazmente, poderá expor os seus argumentos, requerendo a
alteração da medida de coação.
Importa salientar que sempre que o juiz o considere necessário, a vítima deve ser ouvida em
caso de revogação ou substituição das medidas de coação.
133
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
de Vítima). Este poderá ser assegurado pela existência, sempre que possível, de portas
de entrada e saída e de espaços de espera para a vítima diferentes dos utilizados pelo/a
arguido/a e seus familiares ou outras pessoas próximas deste/a.
Ainda que se saiba que muitos daqueles espaços não estão preparados fisicamente para o pleno
exercício deste direito, sempre que a vítima e os/as familiares o pretenderem exercer poderão solicitar
que, dentro do possível, lhes seja disponibilizado um espaço alternativo de espera e de entrada/saída.
"USJCVJÎÍPEP&TUBUVUPEF7ÓUJNB&TQFDJBMNFOUF7VMOFSÈWFM
Desta forma, as crianças e jovens vítimas de violência sexual, pela sua idade, vulnerabilidade
ou tipo de violência contra si exercida poderão ser consideradas vítimas especialmente
vulneráveis e, portanto, beneficiar de algumas medidas de proteção no que concerne à sua
segurança, mas também procurando evitar que sejam revitimizadas.
t As inquirições deverão ser realizadas pela mesma pessoa, se a vítima o desejar, desde
que a tramitação do processo penal não seja prejudicada;
t A inquirição/audição deverá ser realizada por pessoa do mesmo sexo (quando se
tratem de vítimas de violência sexual, de violência de género ou de violência nas
relações de intimidade), se a vítima assim o desejar, e salvo se se tratar de magistrado
do Ministério Público ou por juiz;
t Medidas para evitar o contacto visual entre as vítimas e os arguidos, nomeadamente durante
a prestação de depoimento, através de meios como a videoconferência ou teleconferência.
134
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
.FJPTFYDFDJPOBJTEFQSPUFÎÍPo-FJEF1SPUFÎÍPEF5FTUFNVOIBT
Sempre que a vida da vítima ou de outra testemunha, a sua integridade física ou psíquica, a
sua liberdade ou bens patrimoniais seus de valor consideravelmente elevado sejam postos
em perigo por causa do seu contributo para a investigação e prova do crime, aquelas podem
requerer a aplicação de meios de proteção, como os seguintes:
135
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
5. Direito à indemnização
Quem sofre danos resultantes da prática de um crime deverá ser indemnizado. Em princípio,
este dever de indemnizar recai sobre o autor do crime – pedido de indemnização civil.
0QFEJEPEFJOEFNOJ[BÎÍPDJWJM
No que concerne ao pedido de indemnização civil, cumpre expressar que a vítima tem o
direito de ser indemnizada pelo/a autor/a do crime, pelos danos materiais e morais que este/a
lhe causou. Em regra, tal indemnização deve ser requerida através da formulação de um
pedido, no decurso do processo-crime, podendo, contudo ser feita em processo separado.
Recai sobre o Ministério Público, assim como sobre os Órgãos de Polícia Criminal o dever
de informar os eventuais lesados da possibilidade de solicitarem aquela indemnização, as
suas formalidades, prazo e provas a apresentar (Art.º 75.º do CPP).
A vítima pode manifestar, junto dos Órgãos de Polícia Criminal ou do Ministério Público,
até ao final da fase de inquérito, a sua intenção em deduzir o pedido de indemnização civil.
Posteriormente, aquando da notificação do despacho de acusação a vítima será informada de
que tem um prazo de 20 dias para deduzir o pedido, caso não o tenha feito anteriormente.
136
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Para além dos danos patrimoniais, este pedido também comportará os danos morais (ou
não patrimoniais), ou seja os prejuízos não passíveis de avaliação económica, dado estar
em causa a saúde, o bem-estar, a honra e o bom nome da vítima (são a título de exemplo a
dor física, perturbações psíquicas, sofrimento emocional, perda do prestígio ou reputação,
entre outros). Apesar de insuscetíveis de avaliação pecuniária, estes danos poderão ser
compensados através de uma obrigação imposta ao/à autor/a do crime, que importa o
pagamento de um determinado montante à vítima.
Se a vítima não se opuser, pode o juiz, por sua própria iniciativa e tendo em conta a situação
da vítima, condenar o/a arguido/a a pagar àquela uma determinada indemnização pelos
prejuízos sofridos, nos termos do Art.º 82º-A do CPP.
Caso o/a autor/a do crime condenado/a a pagar a indemnização não o faça voluntariamente,
a vítima terá de apresentar uma ação executiva contra aquele/a, isto é pedir a um tribunal
que proceda à penhora do património do/a condenado/a (ex.º: contas bancárias, imóveis,
viaturas ou outros bens), por forma a assegurar o pagamento do valor da indemnização.
0QFEJEPEFBEJBOUBNFOUPQFMP&TUBEPEBJOEFNOJ[BÎÍPEFWJEBËTWÓUJNBTEFDSJNFTWJPMFOUPT
137
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
X Fim do processo
Crime contra a liberdade ou Requisitos
autodeterminação sexual de menor Art. 2º n.º 1, b) e c) da lei n.º 104/2009
√ Prazo
Art. 11.º da Lei n.º 104/2009
√ X Fim do processo
Fim do processo
Fim do processo
√ X
X
Já existe Pedido Elegível para
Aprovado
à Comissão impugnação judicial
A Comissão decide
√ sobre o pedido
Processo Civil
Execução da Condenação com Pedido de indemnização
Setença/Acórdão indemnização (em Tribunal)
Processo Penal
Figura 6 - Esquema do pedido de adiantamento pelo Estado da indemnização devida às vítimas de crimes violentos
O regime jurídico de proteção às vítimas de crimes violentos consta da Lei n.º 104/2009,
de 14 de setembro. A proteção destas vítimas consiste na atribuição de um adiantamento
de uma indemnização, quando a mesma não possa ser satisfeita pelo/a autor/a do crime
138
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
(desde que preencha os requisitos legais). Neste horizonte, foi criada a Comissão de
Proteção às Vítimas de Crimes, inserida no Ministério da Justiça, que instrui os pedidos de
adiantamento de indemnização e decide sobre os mesmos.
Uma vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual poderá beneficiar desta
indemnização se preencher cumulativamente os pressupostos legais, isto é, as exigências
colocadas pelo legislador para aferir da necessidade da atribuição.
O nível de vida refere-se a uma questão económica, material. Na medida em que a vítima é
menor de idade, tal requisito tem forte probabilidade de não preenchimento. Contudo da
análise do diploma legal, parece depreender-se a necessária verificação cumulativa dos dois
segmentos – nível de vida e qualidade de vida. No entanto, dado que nas vítimas de menor
idade este primeiro segmento, relativo ao nível de vida, pode não existir, porque, em regra,
uma criança/jovem depende (em princípio), do ponto de vista material, unicamente dos pais/
representantes legais, a situação não deve ser descurada aquando da formalização do pedido.
Para além deste requisito, exige-se ainda a não reparação do dano em execução de sentença
condenatória relativa ao pedido de indemnização civil, ou que seja razoavelmente de prever que
o autor do crime não venha a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma
reparação efetiva e suficiente. Importa salientar que este pedido pode ser solicitado ainda que não
se conheça a identidade do autor do crime ou quando aquele, por uma outra razão não possa ser
condenado ou acusado (ex.º: falecimento) – nos termos do art.º 2.º, n.º 3 da Lei n.º 104/2009.
139
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
deduzido até um ano após a decisão que põe termo ao processo-crime. Sobre os prazos de
apresentação do pedido, torna-se importante ressalvar que o não cumprimento dos mesmos
não invalida totalmente que o pedido seja apresentado, desde que o requerente alegue razões
que, justificadamente, tenham obstado à apresentação do pedido em tempo útil.
Uma menor com 12 anos (data de nascimento: 08/01/2004) [1] foi vítima de violência sexual perpetrada durante vários anos, tendo o
último ato acontecido a 14/09/2014 [2]. O acórdão do processo-crime data de 15/11/2015 [3].
[3] Acórdão
Figura 7 - Representação esquemática da contagem dos prazos para pedidos de indemnização à Comissão
O pedido está isento do pagamento de quaisquer custas ou encargos para a vítima, podendo
inclusivamente os documentos e certidões necessárias para este pedido ser obtidos gratuitamente.
140
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Depois de apresentado o pedido, a Comissão instrui e analisa o pedido, que pode ser deferido
ou indeferido. Caso se verifique esta última proposição, a vítima pode dizer o que tiver por
conveniente com o intuito de recorrer da decisão nos quinze dias úteis seguintes à notificação.
Quem obtiver ou tentar obter uma indemnização nos termos deste regime com base em
informações falsas ou inexatas pode ser punido nos termos do Código Penal.
Por último, a vítima de um crime violento cometido no território de outro Estado Membro
da União Europeia, que tenha a sua residência habitual em Portugal, pode apresentar pedido
de indemnização perante a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes Violentos. Caberá
a esta Comissão apoiar a vítima na dedução deste pedido (por exemplo, fornecendo-lhe
os formulários adequados, ajudando-a no seu preenchimento e informando-a acerca dos
documentos necessários), transmitir o pedido à autoridade competente do Estado Membro
em que o crime foi consumado e auxiliar na instrução do mesmo. Ao invés, a vítima de um
crime violento praticado em território português que tenha a sua residência habitual noutro
Estado Membro poderá apresentar o seu pedido de indemnização perante a autoridade
competente do seu Estado de residência. Esta autoridade deverá transmitir o pedido à
Comissão portuguesa, que fará a instrução do pedido e determinará a eventual quantia a
pagar pelo Estado Português (APAV, 2013a).
A instrução é uma fase facultativa, isto é, só existe se for requerida pelo/a arguido/a e/ou
pelo assistente. Se tal não suceder, findo o inquérito o processo segue diretamente para
julgamento (se tiver havido acusação) ou é arquivado – poderá ainda ocorrer a suspensão
provisória do processo ou a arquivamento em caso de dispensa de pena.
Esta fase visa a comprovação judicial da decisão final da fase de inquérito, sendo
dirigida pelo juiz de instrução, que apreciará os indícios probatórios recolhidos durante
o inquérito e poderá iniciar atos de instrução, isto é, realizar outras diligências, com
a colaboração dos Órgãos de Polícia Criminal. Quer o/a arguido/a, quer o assistente
podem requerer a realização de outras diligências probatórias, mas o juiz só as realizará se
considerar relevantes (a não ser o interrogatório do/a arguido/a que, uma vez requerido, é
obrigatoriamente realizado).
141
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Nesta fase realiza-se um debate instrutório, no qual participam o Ministério Público, o/a
arguido/a, o/a defensor/a, o assistente e o seu/sua advogado/a. No final desta fase, o juiz
profere despacho de pronúncia (caso tenham sido recolhidos indícios suficientes que
justifiquem a ida a julgamento) ou despacho de não pronúncia.
1. A sala de audiências
O/a técnico/a que acompanhe a criança ou jovem deverá esclarecê-la de que, quando
for questionado/a, deve responder sempre com a verdade, sem medo e com todos os
47. A este propósito, salienta-se
ainda um recurso que pode ser pormenores de que se lembrar. Na mesma linha, o/a utente deverá saber que se não
utilizado pelos profissionais –
Livro “O dia que a Mariana não entender uma determinada questão poderá pedir que a reformulem. Mais ainda, a criança
queria/O João vai ao Tribunal”
(2016), de Eunice Guerreiro,
ou jovem deverá ser alertada de que deverá utilizar as palavras tal e qual elas são, mesmo
com coordenação científica de
Rute Agulhas e Joana Alexandre,
que sejam “palavras feias”. No entanto, deverá ficar claro que também tem o direito de não
disponível gratuitamente em: se lembrar de todos os factos, e que, apesar da sobriedade do momento, pode chorar, pedir
http://crlisboa.org/2016/docs/
Livro_AudicaodaCrianca.pdf (ISBN: lenços, um copo de água ou ir à casa de banho.
978-989-97103-2-0).
142
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
3. Medo de retaliação
5. A gestão de expetativas
Não raras vezes é depositado nas diligências judiciais e, sobretudo no julgamento, que
daí advenha uma pena que a vítima e os seus apoiantes considerem justa em relação ao
sofrimento da primeira.
No entanto, é importante que o/a técnico/a faça a gestão dos resultados do julgamento
e que prepare a vítima e os seus representantes legais para a possibilidade de a sentença/
acórdão não corresponder aos seus desejos. Este apoio emocional deve ser realizado antes
do julgamento e após o mesmo.
143
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
6. A exposição da vitimação
Em processos por crimes sexuais ou por tráfico de pessoas, o público não pode assistir
aos atos processuais. Bem assim, os meios de comunicação social não podem publicar a
identidade das vítimas.
Como já foi visto anteriormente, percebe-se que as deslocações ao Tribunal podem ser
entendidas pelas crianças e jovens, e/ou pelos seus representantes legais, como um momento
de grande tensão e ansiedade.
144
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
b. Apoio psicológico
O direito a que todas as vítimas possam beneficiar de apoio psicológico consta igualmente
da Diretiva 2012/29/EU, no seu Art.º 9.º, n.º 1, al. c).
A maior parte das crianças/jovens vítimas de violência sexual sofre um impacto psicológico
e emocional negativo decorrente da vitimação e, por essa razão, vêm a beneficiar de apoio
psicológico especializado.
Clarificar os objetivos da intervenção e informar as vítimas e/ou seus familiares sobre este
processo, sobre o fenómeno de que são ou foram alvo, procedimentos a adotar, os direitos
145
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
que lhes assistem e sobre os recursos de que dispõem é, seguramente, uma forma de
aumentar o seu controlo sobre a situação (empowerment) e, em consequência, de diminuir a
sua ansiedade e medo. Já que muitas vezes as vítimas de crimes sexuais experimentam culpa
pelo sucedido, a informação sobre o processo de vitimação pode ajudá-las a direcionar a
responsabilidade para quem efetivamente a tem.
Diferentes intervenções têm sido propostas para o atendimento de vítimas de crime sexual
(Padilha & Gomide, 2004). De acordo com Habigzang e Caminha (2004), a intervenção
cognitivo-comportamental tem apresentado resultados superiores ao de outras abordagens
não focais no tratamento da violência sexual; porém, mais importante que a teoria subjacente
ao atendimento é proporcionar um ambiente em que a vítima se sinta acolhida e segura.
O apoio psicológico permite desenvolver as capacidades necessárias para uma mudança que
possibilite atingir objetivos pessoais e ficar melhor preparado para enfrentar as situações
que a vida coloca aos/às utentes, aprendendo a forma mais eficiente de pensar, sentir e
atuar. Este tem como objetivo promover, em conjunto com a criança ou jovem, a mudança
no pensamento, sentimentos e comportamentos necessários para resolver as situações que
até esse momento provocaram o desconforto e sofrimento caracterizado pela perda da
146
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Assim, o apoio psicológico deverá centrar-se no alívio e melhoria dos sintomas, no reforço
dos mecanismos de defesa adaptativos, na melhoria da sua adaptação ao meio, na melhoria
das capacidades de julgamento da realidade, no reforço da autoestima, na maximização da
autonomia, no encorajamento à expressão livre de emoções, sentimentos e pensamentos,
no restabelecimento do equilíbrio psicológico, na redução/minimização dos sintomas e
indicadores de desajustamento psicológico, emocional e comportamental identificados.
No início do processo de apoio devemos realizar uma entrevista com os pais e/ou
representantes legais, para obter informação acerca da história de vida da criança ou jovem
(entrevista de anamnese).
Morgan (1995) refere que o objetivo da entrevista é criar oportunidade de falar e obter
informação, com o mínimo trauma para a criança/jovem. Assim, é importante estabelecer
por parte do/a técnico/a, um nível de confiança e comunicação, devendo começar por revelar
a sua identidade, qual o seu trabalho e perguntar à criança/jovem se sabe porque está ali.
Importa ficar com uma ideia do mundo da criança/jovem, das pessoas que fazem parte da
sua vida, dos interesses da criança, das atitudes e comportamentos da família, entre outras
informações psicossociais.
A recolha de informação pelo/a profissional, deverá ter como referência diversos aspetos:
t Dados de história de vida: entre outros, deve obter informação sobre o local do
nascimento da criança (se nasceu num hospital, numa clínica, ou em casa), se a
gravidez foi assistida por um médico como decorreu (se foi normal, se surgiram
complicações); qual era o sexo da criança desejado pelos pais; se o parto foi normal;
qual era o seu peso à nascença; se surgiram dificuldades ou complicações durante
as duas primeiras semanas de vida; sobre a alimentação (se tem sempre apetite, falta
esporádica de apetite);
t Dados sobre a psicomotricidade: como por exemplo com que idade começou a andar
sem ajuda, ou se distingue a mão direita da mão esquerda;
t Dados sobre a psicolinguística: como era o seu choro, com que idade disse a primeira
palavra com significado, quando começou a construir frases, se apresenta alguma
dificuldade na comunicação – gaguez, dificuldades de articulação, troca de palavras;
t Dados sobre o desenvolvimento psicoafetivo: Em que altura começou a sorrir, com
que idade deixou de usar fraldas durante o dia e durante a noite, como tem sido o
sono, se tem tido medos, quem se ocupou de si até ao terceiro mês de idade, quem
147
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
148
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
A qualidade da fase inicial é vista como essencial no processo de apoio psicológico, pelo que,
por um lado, consideramos a empatia, a confiança e a disponibilidade para a mudança como
dimensões centrais no estabelecimento da relação e, por outro lado, a recolha e análise da
informação e a definição da estratégia de intervenção psicológica.
Dado que as crianças muito pequenas não conseguem fornecer relatos precisos da história da
sua vida, é fundamental que através dos seus pais ou responsáveis pela mesma se faça a recolha
da informação pertinente. Nesta circunstância, o/a psicólogo/a deverá receber em primeiro lugar
quem acompanha a criança, e só depois a criança, transmitindo-lhe o que foi relatado por aqueles.
Uma das tarefas do/a técnico/a é clarificar com a criança ou jovem o porquê da sua
vinda, qual o problema e o que podemos fazer para o/a ajudar. Não deverão ser efetuadas
perguntas diretas, de modo a que a criança ou jovem responda de uma forma mais aberta e
de acordo com os seus sentimentos.
Cabe ao/à técnico/a a adoção de uma linguagem simples, clara e compreensível que seja
adequada ao estádio de desenvolvimento da criança ou jovem, para que estes sejam capazes
de entender o que lhes está a ser transmitido. O/A técnico/a deverá promover o bem-estar
da criança ou jovem, contribuindo para que se sinta ouvida, compreendida e segura.
A criança ou jovem deve, desde logo, ser informada de que o objetivo do apoio psicológico
é ajudá-la a compreender melhor o que está a preocupá-lo/a. O/A técnico/a deve também
informar de que nada do que contar será transmitido à sua família ou a outros sem o seu
consentimento ou autorização.
149
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Embora esteja aberto à expressão de sentimentos e desejos, o/a psicólogo/a assume a total
responsabilidade pela manutenção da segurança, sem transmitir que espera da criança ou
jovem mais autocontrolo do que aquele que ela é capaz em determinado momento. Muitas
vezes, comentários simples sobre os sentimentos da criança ou jovem e o reconhecimento
da sua validade são o suficiente para evitar uma reação negativa. Noutras ocasiões, o/a
psicólogo/a terá que intervir de forma mais ativa, por vezes, aproximando-se fisicamente
da criança ou jovem, para que o controlo emocional seja restabelecido. Esta estratégia
do/a profissional alivia a ansiedade da criança ou jovem e, ao mesmo tempo, reduz a
probabilidade de ocorrerem sentimentos de culpa ou vergonha.
Na intervenção junto da família o/a profissional deverá compreender o que sente um pai ou
uma mãe quando descobre ou lhe é revelado que o seu filho ou filha foi vítima de violência.
As famílias são parte diretamente envolvidas, seja enquanto elementos protetores ou
enquanto alegados/as autores/as do crime, e a descoberta da experiência de vitimação dos
filhos contribui para modificações na conjuntura e organização pessoal, conjugal e familiar.
Quando as famílias procuram proteger as crianças ou jovens, é necessário que o/a técnico/a
estabeleça com elas uma relação mais ou menos estreita, pois possuem um papel importante
no relato da história de vida da criança ou jovem.
Convém ainda acrescentar que, apesar de em alguns casos a criança ou jovem poder não
apresentar sintomas diretamente ligados à situação de vitimação sexual, importa que
seja criada uma relação de suporte com uma entidade de apoio, para possa funcionar
como recurso futuro, caso os efeitos da vitimação se venham a revelar tardiamente. Com
efeito, em diversos casos os sintomas mais evidentes da situação de vitimação despertam
quando a criança atinge a adolescência, a idade adulta, quando inicia a sua vida sexual
voluntariamente ou quando esta passa por uma fase de sofrimento intenso, eventualmente
provocada por outro tipo de trauma posterior. Nestes casos, o apoio psicológico à vítima
não deve ser descurado, assentando no pressuposto de que cada vítima tem um timing
específico para integrar a situação que sofreu, contextualizá-la e eventualmente confrontar-
se com ela e com os sintomas que lhe são associados.
150
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
A satisfação das necessidades básicas das crianças e jovens é da maior importância para se
tentar assegurar um processo de apoio bem-sucedido. Com efeito, se necessidades como
alimentação, bem-estar físico e psicológico, ou segurança não estiverem asseguradas,
poderão comprometer todo o envolvimento da criança/jovem e da sua rede de suporte
primária. Nesse sentido, importa analisar alguns aspetos que devem ser avaliados e
assegurados pelos serviços que possam vir a prestar apoio a estes/as utentes.
Caso não seja possível aplicar imediatamente quaisquer medidas de proteção como já elencadas
anteriormente, e porque se verifica uma situação de perigo ao abrigo do Art.º 91.º da Lei de
Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de setembro), pode ser feita a
retirada da criança/jovem e o seu acolhimento de emergência em instituição adequada ao efeito:
Artigo 91.º
Procedimentos urgentes na ausência do consentimento
1. Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade
física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das
responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas
no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção
imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais.
2. A entidade que intervém nos termos do número anterior dá conhecimento imediato das situações a que aí
se alude ao Ministério Público ou, quando tal não seja possível, logo que cesse a causa da impossibilidade.
3. Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança
ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de
acolhimento, nas instalações das entidades referidas no artigo 7.º ou em outro local adequado.
4. O Ministério Público, recebida a comunicação efetuada por qualquer das entidades referidas nos
números anteriores, requer imediatamente ao tribunal competente procedimento judicial urgente
nos termos do artigo seguinte.
Esta retirada pode ser feita a pedido de qualquer entidade com competência em matéria de
infância e juventude (Art.º 7.º da mesma Lei) ou pelas comissões de proteção (Art.º 8.º da mesma
Lei) solicitando para o efeito a colaboração do Tribunal ou dos Órgãos de Polícia Criminal. 48. A linha é acionada pelo número
144, sendo este, um serviço
telefónico gratuito que funciona
ininterruptamente, e que tem como
Em situações de emergência, a Linha Nacional de Emergência Social48 encontra-se objetivo garantir resposta imediata
a situações que necessitem de
habilitada a dar resposta de acolhimento às crianças e jovens. atuação emergente e urgente no
âmbito da proteção social.
151
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
Esta solução poderá afigurar-se como necessária para o afastamento imediato da situação
de violência sexual que a criança/jovem possa estar a vivenciar, especialmente nos casos em
que a mesma ocorre em contexto intrafamiliar.
ii. Alimentação
Nalgumas situações, as crianças e jovens, bem como os/as seus familiares e amigos/as que
constituem a sua rede de suporte primária, poderão encontrar-se numa situação de grave
carência económica; portanto, é igualmente primordial suprir as necessidades alimentares.
Numa primeira linha, os/as profissionais poderão articular com a Ação Social da Segurança
Social da zona de residência, que poderão proporcionar respostas imediatas, de forma a
garantir a satisfação esta necessidade básica.
Não obstante, poderá ser solicitado apoio a diversas IPSS49 que possam dar resposta às
necessidades, ora pontualmente, ora de forma mais continuada, até que aquele agregado
familiar reorganize o seu projeto de vida.
Por vezes a reorganização do projeto de vida, implica o afastamento geográfico das crianças
ou jovens e da sua rede de suporte primária.
Assim sendo, e promovendo a discrição necessária para que a criança ou jovem vítima de
49. Existem algumas instituições violência sexual não seja revitimizada, os/as profissionais deverão encetar todos os esforços
nacionais ou locais, como o
Banco Alimentar Contra a Fome, a com as instituições escolares50 (de origem e de destino) para proceder à transferência, com
Amnistia Médica Internacional (AMI)
ou a Cruz Vermelha, que visam
vista à continuidade do processo escolar daquele/a utente.
a prestação de apoio em bens
alimentares a cidadãos que se
encontrem em situação de grave
carência económica temporária ou
Se necessário, o/a profissional deverá zelar para que a morada do agregado seja
de longa duração. salvaguardada, providenciando um endereço de uma instituição, por exemplo, para que a
50. O/a profissional deverá articular
com ambas as escolas, bem como transferência do processo seja sigilosa, de forma a garantir a segurança do/a utente.
com a Direção Geral de Educação.
152
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual
iv. Saúde
Estes núcleos têm como missão apoiar e orientar a intervenção da saúde nas crianças e
jovens em risco, com vista a uma mais efetiva prevenção do fenómeno e a uma significativa
melhoria da qualidade das respostas do Serviço Nacional de Saúde a esta problemática. Os
objetivos da Ação de Saúde para Crianças e Jovens em Risco são: promover os direitos das
crianças e jovens, em particular a saúde, através da prevenção da ocorrência de maus tratos,
da deteção precoce de contextos, fatores de risco e sinais de alarme; acompanhamento e
prestação de cuidados e da sinalização e/ou encaminhamento dos casos identificados; e
adequação dos modelos organizativos dos serviços, pela incrementação da preparação
técnica dos profissionais, pela concertação dos mecanismos de resposta e pela promoção da
circulação atempada de informação pertinente.
O processo de apoio pode acontecer por um período mais ou menos longo no tempo –
intervenção em crise ou intervenção continuada - dependendo das necessidades identificadas,
da vontade dos utentes e da avaliação da pertinência da manutenção (ou não) do apoio.
O apoio pode cessar logo com o primeiro contacto, se apenas for feito um pedido de
esclarecimentos sem que exista vontade de continuar o processo.
vontade deste (ex.º: não querer mais falar com a instituição, não fornecer dados para contacto). Dezembro, que visava a criação de
uma resposta no Serviço Nacional
de Saúde ao fenómeno dos maus-
tratos, pelo desenvolvimento da
O processo de apoio pode também cessar nas situações em que o/a utente não crê existir “Rede Nacional de Núcleos de
Apoio às Crianças e Jovens em
necessidade de intervenção posterior, ou porque a situação inicial foi devidamente ultrapassada e Risco” quer ao nível dos Cuidados
de Saúde Primários, quer ao nível
ajustada na experiência de vida do/a utente e este se autonomizou do processo de apoio. dos Hospitais com atendimento
Pediátrico.
153
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
É de referir, que a prevenção da violência também tem sido pensada e delineada de acordo
com o público-alvo, estando categorizada do seguinte modo:
155
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
Existe evidência científica em grande escala que possibilita afirmar que a violência sexual
contra crianças e jovens pode ser prevenida (OMS, 2006).
A maioria do trabalho que tem sido efetuado na área da prevenção consiste na identificação
precoce de casos de violência sexual e nas intervenções com vista a proteger as vítimas.
Com efeito, esta abordagem corresponde a um tipo de prevenção que será benéfico para
as crianças e jovens e as suas famílias. No entanto, não possibilita uma redução em grande
escala da incidência de atos violentos, dado que tal redução apenas será possível através da
utilização de estratégias dirigidas às causas subjacentes e fatores responsáveis (OMS, 2006).
156
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
O Modelo ecológico tem sido utilizado desde o final da década de 70 para explicar diversos
problemas ao nível da saúde, mas também para a violência. Este modelo permite explorar
as diferentes dinâmicas relacionais entre as pessoas e o meio onde se inserem. No campo
da prevenção da violência, o modelo ecológico apresenta essencialmente dois objetivos:
ajudar na compreensão dos fatores de risco e protetores da violência e permitir a criação de
uma estrutura para a prevenção da violência. Este modelo encontra-se organizado segundo
diferentes níveis:
157
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
b. Programas de Prevenção
Tal como foi referido anteriormente, a prevenção na área da violência sexual contra crianças
e jovens requer o uso de estratégias contínuas a nível individual, relacional, comunitário e
social. Um dos aspetos chave para potenciar o êxito de um programa de prevenção é a sua
capacidade para fornecer serviços de apoio e informação sustentados na evidência científica
(Child Welfare Information Gateway, 2013).
Com efeito, a maioria dos programas de prevenção da violência sexual contra crianças e
jovens apresentam três objetivos principais, também conhecida como a teoria dos três R’s:
t O conceito de “partes privadas” e quais as partes do corpo que são consideradas “privadas”.
158
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
t Ensinar os nomes corretos para as partes do corpo (ex.º: pénis, vagina, peito) para
que a criança consiga reportar corretamente e com precisão o que lhe aconteceu.
t Falar sobre o desenvolvimento sexual saudável.
t Distinguir os diferentes tipos de toques que podem experienciar (“mau toque” vs.
“bom toque”).
t Distinguir entre o bom e o mau segredo.
t Reforçar a importância de confiarem na sua intuição sobre as pessoas e situações.
t Transmitir que têm o direito de decidir quem pode e quem não pode tocar no seu corpo.
t Explicar que numa situação em que alguém as toca contra a sua vontade ou de uma
forma que as deixa desconfortáveis podem dizer “NÃO!” ou sair/fugir e relatar o
sucedido a um/a adulto/a de confiança.
t Reforçar que o abuso sexual nunca é culpa da criança/jovem.
t Saber identificar adultos/as de confiança.
Uma vez que a maioria das crianças/jovens passa grande parte do seu tempo na escola, a
implementação de programas de prevenção em contexto escolar irá possibilitar o acesso
a um elevado número de crianças/jovens. As escolas são tradicionalmente um local
seguro para aqueles/as serem informados sobre a violência sexual, e com o devido treino
e competências, os professores e psicólogos podem ser percecionados como adultos/as de
confiança, a quem pode ser denunciada uma situação de abuso (NSVRC, 2011).
159
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
Por sua vez, podem também ser utilizados métodos nos quais a criança/jovem é um participante
passivo, pelo que a sua participação verbal e/ou física é inexistente. São exemplos a apresentação
de uma situação de perigo e como responder perante a mesma, através de uma dramatização,
bem como a utilização de filmes ou livros infantis sobre esta temática (NSVRC, 2011).
O CAP desenvolve-se através de workshops com os pais, professores e com as crianças (em
contexto sala de aula). Os workshops contêm uma única sessão para cada um dos grupos
160
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
A sessão com as crianças é desenvolvida por três facilitadores e são usadas técnicas de role-
play e discussão grupal orientada. Pretende-se ensinar as crianças a reconhecerem potenciais
situações de perigo e a usarem eficazmente as suas opções para se manterem em segurança.
Existe uma discussão inicial sobre os direitos das crianças e, posteriormente, seguem-se três
role-plays. Estes representam as experiências de abuso mais comuns que uma criança poderá
vivenciar: o abuso por outra criança, o abuso perpetrado por um/a estranho/a; e o abuso
perpetrado por um/a conhecido/a da criança. Os role-plays são usados de forma a recriar
várias situações sobre as quais as crianças podem pensar, criar ou imaginar estratégias
eficazes e seguras. Procura-se, assim, desenvolver assertividade, autodefesa, ajuda-mútua
entre os pares, apoio de adultos/as e comunicação com adultos/as de confiança. Existe um
role-play final no qual um professor da turma participa desempenhado o papel do/a adulto/a
a quem a criança pede ajuda. Tal possibilita às crianças visualizarem o que pode acontecer
caso peçam ajuda ou recorram a alguém (Maria & Ornelas, 2010).
Considera-se que a mais-valia do programa CAP está no facto de as crianças poderem ter um
papel mais ativo na reflexão e partilha das soluções para a resolução das problemáticas abordadas,
bem como a sua aplicação prática através de participação em role-plays. A proatividade permite a
aquisição de conhecimentos sobre a prevenção de forma mais consolidada.
Este programa foi criado em 1983 e tem sido desenvolvido e adaptado pela Calgary
Communities Against Sexual Abuse, uma organização sem fins lucrativos, sediada no
161
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
Canadá. Este programa é composto por duas sessões de 60 minutos com as crianças/jovens,
uma sessão de 60 minutos com os professores e uma sessão de 90 minutos com os pais.
No que diz respeito à avaliação deste programa, Tutti (1997, 2000, citado por Maria
e Ornelas, 2010), realizou um estudo com 261 crianças, utilizando um grupo de
controlo, e constatou que as crianças que participaram no programa revelaram ganhos
significativos relativamente aos seus conhecimentos sobre “toque bom” vs. “toque mau”,
comparativamente com as crianças do grupo de controlo. A autora verificou também que
as crianças do 3º ano de escolaridade são aquelas que mais beneficiam do programa de
prevenção, no que diz respeito aos ganhos ao nível dos conhecimentos.
O programa “Red Flag, Green Flag People”, foi criado em 1986 pela Associação Rape and
Abuse Crisis Center, situada nos EUA. Este programa apresenta diferentes modalidades de
acordo com a faixa etária das crianças: para as crianças no ensino pré-primário “T is for
Touching”; para as crianças do 1º e 2 ano “Red Flag, Green Flag People” e “Red Flag, Green
Flag People II”, para as crianças do 3º e 4º ano.
162
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
Este programa foi criado em 1992, por Fran Henry, uma sobrevivente de violência sexual,
que constatou que, à data, a informação disponível ao nível da prevenção da violência sexual
contra crianças e jovens era insuficiente. Este programa visa a prevenção da violência sexual,
mobilizando adultos/as, famílias e comunidades para intervirem na proteção das crianças/
jovens, antes que estas possam ser vitimadas. Este é talvez dos poucos programas, ou mesmo
o único, que apela a todos os adultos/as a assumirem responsabilidade de acabar com os atos
de violência sexual contra crianças/jovens.
Com este propósito, foram desenvolvidos materiais para educar para a prevenção da
violência sexual, mensagens para os meios de comunicação social, instrumentos e recursos
de formação para a prevenção e estratégias de base comunitária. Este programa baseia-se
nos seguintes pressupostos: as mudanças das atitudes sociais e das políticas governamentais
são da responsabilidade de todos os adultos/as e que implicam o envolvimento das famílias
e comunidades. O programa assenta num conjunto de medidas que devem estar presentes
nas comunidades para a prevenção da violência sexual contra crianças e jovens: promover
163
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
t Abordar conteúdos sobre: a violência sexual contra crianças e jovens, “toque bom” vs.
“toque mau”, gritar para pedir ajuda, pedir ajuda a um/a adulto/a de confiança e que
uma situação de abuso nunca é culpa da criança/jovem;
t Permitir a prática das competências adquiridas em contexto de sala de aula;
t Disponibilizar informação que poderá ser transmitida em casa;
t Reuniões com os pais;
t Repetição da informação transmitida em momentos subsequentes.
Outras investigações também identificaram que os programas de prevenção mais eficazes têm
em consideração os seguintes elementos (National Sexual Violence Resource Center, 2011):
164
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens
Conclusão
O apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual deve pautar-se por uma ação
integrada das diferentes dimensões que, ao longo deste manual, foram sendo desenvolvidas.
Com efeito, o fenómeno de violência sexual contra crianças e jovens apresenta-se como
sendo de extrema complexidade, quer no que respeita ao compreender, quer no que respeita
ao proceder, pelo que, cada vez mais, urge uma ação interdisciplinar e interinstitucional para
melhor se conhecer e intervir nesta matéria.
Espera-se que este manual seja uma ferramenta útil para todos os que regularmente se
debruçam sobre este tema, procurando-se ainda que contribua para uma melhor capacitação
de todos os profissionais cuja missão seja prestar o apoio que as crianças e jovens vítimas de
violência sexual necessitam, de forma eficiente.
O apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual não é algo específico de organizações
de apoio ou acolhimento de crianças e jovens, mas deve ser visto como uma preocupação
transversal. Só desta forma as crianças, jovens e suas famílias se sentirão próximas, acolhidas
e protegidas pela sociedade e pelos seus sistemas de apoio e justiça.
Temos a noção que o presente manual não é uma resposta única a todos os desafios que
se levantam no apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. É um fenómeno
cujas questões não se extinguem aqui, e muito menos ficarão todas as situações de apoio
respondidas. No entanto, esperamos que o conhecimento aqui partilhado ajude os
profissionais que lidam com esta problemática a providenciarem melhor conforto e ajuda
a estas crianças e jovens, assim como se constituam como facilitadores do sistema da
sociedade de justiça e apoio.
165
Glossário
Glossário
Abuso de autoridade - influência exercida por um agente sobre uma criança/jovem na sequência da pré-existência de uma relação de dependência
económica, hierárquica, de trabalho ou familiar.
Ameaça grave – coação exercida por um agente contra uma criança/jovem, que, dada a sua intensidade, provoca naquele um receio fundado de que venha
a ser concretizada.
Ardil ou manobra fraudulenta – utilização de meios que induzem uma criança/jovem em erro sobre os objetivos das ações (ex.º: “estratagemas”,
“enganos”) com vista a influenciar a sua decisão.
Ato sexual contra menor – todo o contacto de natureza sexual mantido com ou perante menor de idade, com vista à satisfação sexual do agente.
Ato sexual de relevo – contactos sexuais mantidos com uma criança/jovem que envolvam cópula vestibular, toques e/ou carícias no corpo de uma criança/
jovem, com vista à satisfação sexual do agente.
Ato sexual de relevo qualificado – contactos sexuais mantidos com uma criança/jovem, que incluem cópula, coito anal ou coito oral, ou a introdução vaginal
ou anal de qualquer parte do corpo ou qualquer objeto, tenha este ou não conotação sexual, com vista à satisfação sexual do agente.
Cópula vestibular – consiste no contacto sexual entre o agente e uma criança/jovem, que não envolva penetração.
Especial vulnerabilidade – incapacidade uma criança/jovem para avaliar as intenções do agente, o que, em última instância, pode conduzir a que a vítima
se submeta às propostas que lhe são dirigidas.
Facilitação (em contexto de TSH) – colocar à disposição os meios para a prostituição de uma criança/jovem.
Rapto – A transferência de uma criança/jovem de um lugar para outro, por intermédio de violência ou ameaça.
Rede de Suporte Primária - A Rede de Suporte Primária é aquela que é constituída pelas pessoas que detêm a tutela legal da criança ou jovem e/ou que
têm a responsabilidade de garantir a satisfação das suas necessidades primárias (ex.º: alimentação, higiene, educação). Geralmente são os membros do
seu núcleo familiar, mas em alguns casos podem ser outros membros da família alargada ou outras figuras de substituição, como nos casos das crianças
institucionalizadas.
Sinais - Alterações orgânicas que podem resultar da violência, através de lesões no corpo. Estas alterações orgânicas são objetivas e/ou mensuráveis pelo
exame clínico e meios complementares de diagnóstico.
Sintomas - Alterações subjetivas do estado de saúde (queixas ou manifestações espontâneas de mal estar físico e/ou psicológico).
Violência - uso intencional da força física ou psicológica, na forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa, um grupo ou uma
comunidade, que resulte, ou possa resultar, em lesão, morte, dano psicológico, privação ou prejuízos ao desenvolvimento.
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21-10-2014.
175
Anexos
Crimes Lenocínio de menores Utilizar violência e/ou ameaça grave; Fomentar, favorecer, facilitar o exercício da
contra a Art.º 175.º do CP Abusar de autoridade sobre a vítima; prostituição de menor.
autodeter-
Utilizar manobra fraudulenta;
minação
Atuar com intenção lucrativa;
sexual
Aproveitar-se de incapacidade/
vulnerabilidade da vítima;
Aliciamento de menores para fins sexuais Aliciar menor, para encontro visando a prática de qualquer ato sexual de relevo ou de
Art.º 176.º-A do CP pornografia, com recurso a tecnologias de informação e de comunicação.
Abuso sexual de menores dependentes Coação sexual, violação ou importunação sexual de menor que tenha sido confiado para 14 a 18
Art.º 172.º do CP educação ou assistência. anos
Recurso à prostituição de menores Qualquer ato sexual de relevo, praticado com menor, mediante pagamento/outra contrapartida.
Art.º 174.º do CP
Atos sexuais com adolescentes Qualquer ato sexual de relevo, praticado por adulto com menor, abusando da sua inexperiência. 14 a 16
Art.º 173.º do CP
anos
Crime semi-público
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Anexos
1. Notícias do Crime
Ťƈ Informar acerca dos direitos e procedimentos judiciais (Queixa e/ou Denúncia)
Ťƈ Sensibilizar os titulares do direito de queixa para a
importância de apresentar queixa-crime
Caso ainda não tenha sido efetuada:
obrigatoriedade de denúncia
2. Notícias do Crime
(Investigação)
Perícia Médico-legal — preparar a criança/acompanhamento
Declarações para memória futura
Constituição de assistente — apoio judiciário
Aplicação/alteração de medidas de coação
Aplicação de medidas de proteção de testemunhas — estatuto de vítima especialmente vulnerável
Pedido de Indemnização Civil
(manifestação de vontade)
Pedido de Indemnização à Comissão - ver esquema
3. Instrução
(Fase facultativa)
4. Julgamento
Preparação da criança para ida a Tribunal
Pedido de Indemnização à Comissão Acompanhamento da criança — caso se aplique
(caso ainda não tenha sido apresentado) Autor do crime não tem dinheiro para pagar indemnização
5. Recurso
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