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Índice

Agradecimentos 5 ii. Idade 63


Nota de apresentação 7 iii. Consumo de substâncias 63
Lista de abreviaturas 9 iv. Características emocionais 63
v. Falta de informação 64
PARTE I – COMPREENDER 11 vi. Crianças com necessidades especiais 64
b. Fatores de risco relacionais 64
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens 13 i. Estatuto socioeconómico 64
1. Compreender para depois proceder 13 ii. Isolamento 64
2. O conceito de violência sexual contra crianças e jovens 14 iii. Constelação familiar 65
3. Contextos de vitimação 15 c. Fatores de risco comunitários 65
a. Contexto Intrafamiliar 15 i. Características do contexto comunitário 65
i. Incidência 15 d. Fatores de risco sociais 66
ii. Consequências para a vítima 15 i. Normas sociais 66
iii. Agravantes do contexto intrafamiliar 16 3. Fatores de proteção e resiliência da vítima 67
iv. Relação entre violência doméstica e violência sexual 17 4. O processo de revelação da vitimação 69
intrafamiliar contra crianças e jovens a. As dificuldades na revelação 69
v. Características da família incestuosa 17 b. Fatores que poderão influenciar o processo de revelação 70
b. Contexto Extrafamiliar 18 i. Relação da vítima com a pessoa a quem revela 70
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens 19 ii. Crenças e perceções da vítima 71
5. A necessária distinção entre pedofilia e violência sexual contra 28 iii. Proximidade do/a autor/a do crime 71
crianças e jovens iv. Outros fatores 71
6. Enquadramento jurídico atual 30 c. Etapas do processo de revelação 72
a. A natureza dos crimes, a responsabilidade penal e a 31 d. Reações à revelação 72
competência para investigação criminal i. Drama e negação 73
b. Crimes contra a liberdade sexual 32 ii. Sentimentos de fracasso, culpa, vergonha, incapacidade e 73
i. Coação sexual 32 estigmatização
ii. Violação 33 iii. Raiva, ressentimento e desejos de vingança 74
iii. Importunação sexual 34 iv. Desconforto, ansiedade e sentimento de insegurança 75
iv. Outros Crimes 35 v. Sentimento de abandono e desamparo 75
c. Crimes contra a autodeterminação sexual 37 vi. Desespero 76
i. Abuso sexual de crianças 38 vii. “Desconfiança” relativamente à intervenção 77
ii. Abuso sexual de menores dependentes 39 viii. Desconforto e constrangimento ao falar da situação 77
iii. Atos sexuais com adolescentes 40 ix. Lembrança persistente 77
iv. Recurso à prostituição de menores 41 x. Projeção de si na vítima 78
v. Lenocínio de menores 42 xi. Luto 78
vi. Pornografia de menores 43 xii. Perturbação de várias áreas da vida familiar 79
vii. Aliciamento de menores para fins sexuais 44 xiii. Maior união familiar 80
d. Outros fenómenos que poderão estar associados 45 xiv. Mudança relacional pais/educadores – criança 80
i. Tráfico de pessoas e turismo sexual infantil 45 5. Reações e consequências experienciadas 82
1. Contextualização do fenómeno de Tráfico de Seres Humanos (TSH) 45 a. Reações durante o episódio violento 82
2. TSH vs. auxílio à imigração ilegal 45 b. Sinais e sintomas 83
3. Caracterização e abordagem ao tipo legal 46 c. Ausência de sinais e/ou sintomas 85
4. A especificidade do TSH de crianças e jovens com vista à 48 d. Variáveis que poderão influenciar as consequências experienciadas 85
exploração sexual i. Características da criança ou jovem 85
5. Indicadores da existência de TSH 49 ii. Relação prévia com o/a autor/a do crime 86
ii. Casamento forçado 51 iii. Reação do/a autor/a do crime após a revelação 86
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e 52 iv. Duração e intensidade da violência sexual perpetuada 86
jovens em Portugal v. Contexto cultural 87
a. Cifras negras 53 vi. Manutenção da situação de vitimação em segredo 87
vii. A demora na revelação 87
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual 57 viii. Reação de quem recebeu o pedido de ajuda 87
1. O desenvolvimento da criança 57 ix. Reação dos pais e a qualidade do apoio familiar recebido 88
a. Estádios-chave no processo de desenvolvimento da criança 57 x. Apoio recebido 88
b. Linguagem e desenvolvimento de crianças e adolescentes 58 xi. Qualidade do apoio especializado prestado 88
i. Crianças em idade pré-escolar (3 aos 5 anos) 58 xii. Condições da vida futura da vítima 89
ii. Crianças em idade escolar (6 aos 11 anos de idade) 59 6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária 90
iii. Adolescentes (12 aos 17 anos de idade) 60 a. Padrões de comunicação clara e aberta 90
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados 62 b. Rede familiar coesa, mas flexível 90
a. Fatores de risco individuais 62 c. Padrões de vinculação segura 91
i. Género 62 d. Limites entre os subsistemas claros, bem definidos, mas permeáveis 91

3
Índice

e. Supervisão atenta, sem recurso a um controlo excessivo 91 iii. Situação escolar 152
f. Existência de uma adequada rede social de apoio 92 iv. Saúde 153
g. Inexistência de comportamentos aditivos ou psicopatologia 92 d. Finalização do apoio prestado 153

Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens 93 Capítulo III – A prevenção 155

1. Caracterização 93 1. Programas de prevenção da violência sexual contra 155


2. Agressores sexuais em contexto online 96 crianças e jovens
a. Agressores sexuais online e parafilias 98 a. A prevenção da violência sexual 155
b. Como se caracterizam então os agressores sexuais online 99 i. Modelo de saúde pública 156
3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as 101 ii. Modelo ecológico 157
b. Programas de Prevenção 158
c. Exemplos de Programas de Prevenção 160
PARTE II – PROCEDER 103 i. Programa “CAP – Child Abuse Prevention”/ ESCAPE 160
ii. Programa “Who Do You Tell?” 161
Capítulo I – O/a profissional que intervém com crianças e jovens 105 iii. Programa “Red Flag, Green Flag People” 162
vítimas de violência sexual iv. Programa – “Stop It Now!” 163
d. O que torna um programa de prevenção eficaz? 164
Capítulo II – A intervenção 109
Conclusão 165
1. O dever de denúncia e a confidencialidade 109 Glossário 167
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de 110 Bibliografia 169
violência sexual, seus familiares e amigos/as Anexos 177
a. Apoio presencial 110
i. Sala de atendimento para crianças e jovens vítimas de crime 111
ii. Princípios-base dos atendimentos presenciais 112
iii. Entrevista com a criança ou jovem vítima de violência 114
sexual, no contexto de apoio à vítima
b. Apoio à distância 117
i. Apoio telefónico 117
ii. Apoio por escrito 118
iii. Apoio online 118
3. Informação a aferir 121
i. O primeiro contacto – recolha de informação e apoio emocional 121
ii. Avaliação de risco 122
iii. Avaliação das necessidades dos/as utentes 123
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual 125
a. O papel da vítima no processo penal 125
i. Interações da vítima com o processo penal em fase de inquérito 125
1. Obtenção de prova pericial – a Perícia Médico-Legal 126
2. Obtenção de prova testemunhal – as Declarações para 129
Memória Futura
3. Direito à proteção jurídica 131
4. Direito à proteção 133
5. Direito à indemnização 136
ii. Necessidade de preparar a ida a julgamento 141
1. A sala de audiências 142
2. A resposta às questões colocadas no Tribunal 142
3. Medo de retaliação 143
4. O medo de se encontrar com o/a autor/a do crime 143
5. A gestão de expetativas 143
6. A exposição da vitimação 144
7. Sentimento de culpa das crianças e jovens em relação às 144
perdas financeiras
iii. As dificuldades que crianças e jovens podem sentir no 144
contacto com os Tribunais
b. Apoio psicológico 145
c. Apoio prático – necessidades decorrentes do crime 151
i. Necessidade de segurança – o acolhimento de emergência 151
ii. Alimentação 152

4
Agradecimentos

Agradecimentos
À Fundação Calouste Gulbenkian por acreditar e apoiar o Projeto CARE

Aos parceiros do Projeto CARE:


Polícia Judiciária
Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses
Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Porto
Associação Portuguesa para os Direitos do Menor e da Família – Casa da Ameixoeira
Casa Pia de Lisboa
Associação de Amigos da Criança e da Família “Chão dos Meninos”
Centro Social e Paroquial do Alandroal – “Projeto Spin”

À APAV, nomeadamente a João Lázaro, Carmen Rasquete, Frederico Marques e Sónia Reis, bem como a todos/as os
gestores/as e elementos dos Gabinetes de Apoio à Vítima, Linha de Apoio à Vítima, Casas de Abrigo, UAVM e UAVMD, por
acolherem também o desenvolvimento do Projeto e da rede CARE.

Aos membros da equipa da Rede CARE e aos/às voluntários/as, pelo empenho diário no apoio a crianças e jovens vítimas de
violência sexual, suas famílias e amigos/as.

A equipa do Manual CARE


Bruno Brito
Carla Ferreira
Marta Mendes
Goreti Cardoso
Sofia Nunes
Andreia Silvestre
Cristina Soeiro

5
Nota de apresentação

Nota de apresentação
A violência sexual contra crianças e jovens apresenta-se como sendo um flagelo que tem
prevalecido na nossa sociedade, e que acarreta implicações profundas na saúde física e
psicológica das vítimas, suas famílias e amigos/as, não só no momento dos atos abusivos,
mas com potencial para afetar todo o seu processo de vida.

Só em 2014, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) aponta para a existência de cerca
de 1011 crimes de violência sexual contra crianças, adolescentes e menores dependentes.
Destes, a faixa etária com maior prevalência apresenta-se como sendo a dos 8 aos 13 anos de
idade. Segundo o site da Direção-Geral da Política da Justiça1, em 2015 houve 1044 crimes
registados pelas autoridades policiais de abuso sexual de crianças, adolescentes e menores
dependentes, ao que se deve somar os 134 crimes de lenocínio e pornografia de menores.

Com efeito, o mesmo documento permite-nos concluir que mais de metade dos crimes
sexuais perpetrados em Portugal são-no contra crianças e jovens. Mais ainda, sabe-se
também que os/as autores/as dos crimes são pessoas conhecidas das vítimas e, em grande
parte das vezes, elementos das suas famílias nucleares. Daqui decorre uma possível
explicação para o silenciamento dos crimes perpetrados contra as crianças e jovens e a
dificuldade em denunciar a situação aos órgãos de polícia criminal e/ou às autoridades
judiciárias, bem como a resistência em pedir apoio junto de instituições como a Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).

A APAV, na sua missão diária de apoiar as vítimas de crime, suas famílias e amigos,
prestando-lhes serviços de qualidade, gratuitos e confidenciais, e de contribuir para o
aperfeiçoamento das políticas públicas, sociais e privadas centradas no estatuto da vítima,
tem mantido como um dos seus baluartes o apoio a crianças e jovens vítimas de qualquer
tipo de violência.

São exemplo disso a dedicação a projetos como o “Manual CORE – para o atendimento de
crianças vítimas de violência sexual” ou o “Manual - crianças e jovens vítimas de violência:
compreender, intervir e prevenir”.

A experiência da APAV, juntamente com a atualidade e a pertinência de qualificar o apoio a


estas vítimas, fez com que o projeto CARE – apoio a crianças e jovens vítimas de violência
sexual – fosse aprovado e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Este tem como
objetivos a produção de conhecimento e a implementação da rede CARE, que visa a 1. Crimes registados pelas
operacionalização de um apoio especializado. autoridades policiais, por tipo
de crime, http://www.siej.dgpj.
mj.pt, consultado em 23 de janeiro
de 2017

7
Nota de apresentação

Este manual é, portanto, a concretização de um dos objetivos do projeto CARE –


compreender para depois (melhor) proceder; esperamos e acreditamos que este produto
seja uma mais-valia para os que diariamente se deparam, nos mais variados contextos, com
crianças e jovens vítimas de violência sexual.

8
Lista de abreviaturas

Lista de abreviaturas
Ac. - Acórdão
APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
Art.º - Artigo
CP - Código Penal
CPA – Código de Processo Administrativo
CPP - Código de Processo Penal
DGPJ – Direção-Geral de Política da Justiça
IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social
IST – Infeção Sexualmente Transmissível
LTE – Lei Tutelar Educativa
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
NSVRC - National Sexual Violence Resource Center
RASI – Relatório Anual de Segurança Interna
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TRC – Tribunal da Relação de Coimbra
TRE – Tribunal da Relação de Évora
TRP – Tribunal da Relação do Porto
TSH – Tráfico de Seres Humanos

9
Parte I

Compreender
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Compreender para depois proceder

1. Compreender para depois proceder


Como já vem sendo apanágio da APAV, qualquer intervenção com vítimas de crime
necessita de uma prévia fundamentação teórica profunda, atual e adequada. Esta constitui-
se numa constante pesquisa daquelas que são as boas práticas e o estado-da-arte, quer no
que possa emanar da literatura, quer também analisando o que outros serviços de apoio à
vítima e/ou instituições fazem, nacional ou internacionalmente.

Só assim o saber-fazer é suportado com o saber-saber, isto é, com o conhecimento adequado – e,


não obstante o facto de a APAV existir há 26 anos, a busca pelo saber é uma atividade que não cessa.

Como foi referido na Nota de Apresentação, a violência sexual contra crianças e jovens não
é uma área nova para a APAV. Em 2002, com apoio de várias organizações de referência
em Portugal, a APAV publicou o Manual CORE – para o atendimento a crianças vítimas de
violência sexual. Este Manual foi desenvolvido no âmbito do Projeto CORE, com o apoio da
Comissão Europeia através do Programa STOP II – prevenção e combate ao tráfico de seres
humanos e todas as formas de exploração sexual.

Ainda que volvidos 14 anos, o manual CORE constitui uma base importante para este que é
agora apresentado.

Na intervenção com crianças e jovens vítimas de violência sexual, a adoção de


procedimentos adequados assume um papel determinante. Com efeito, uma ação bem-
sucedida dos técnicos pode fomentar uma eficaz colaboração da criança/jovem e da sua
rede de suporte primária com o sistema judicial, no que respeita à prova testemunhal, mas
evitando ao máximo a vitimação secundária. Deste modo, o apoio, se bem conduzido,
poderá assumir uma enorme importância para evitar que o impacto do crime altere
significativamente o desenvolvimento e o estado emocional da criança/jovem, minimizando
também o impacto da vitimação, que pode acontecer a curto e a longo prazo.

Mais ainda, afigura-se como essencial que o apoio prestado não se afaste de procurar
assegurar ativamente os direitos das vítimas, pelas próprias, seus familiares e/ou
representantes legais, mas também pelos serviços de apoio e outras instituições e organismos
que intervenham direta e indiretamente no processo judicial.

Assim, a estrutura deste manual divide-se em dois grandes campos: compreender o


fenómeno e como proceder e intervir com as crianças e jovens, seus familiares e amigos/as.
Tentamos, desta forma, apresentar alguns as boas práticas – melhores e mais eficazes – de
apoiar crianças e jovens vítimas de violência sexual, suas famílias e amigos/as.

13
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
2. O conceito de violência sexual contra crianças e jovens

2. O conceito de violência sexual contra crianças e jovens

Nem sempre é fácil definir violência sexual contra crianças e jovens sem que se recorra aos
conceitos jurídicos, dado que tais atos e práticas são puníveis por lei, previstos em diferentes
artigos do Código Penal. Com efeito, tais crimes podem estar associados a diversas
práticas sexuais, mais ou menos intrusivas, com ou sem recurso a estratégias violentas ou
coercivas, com ocorrência pontual ou reiterada e contra crianças e jovens em distintas fases
do desenvolvimento. Assim, os atos de que aqui falamos revestem-se de contornos muito
específicos, acerca dos quais os técnicos que intervêm com crianças e jovens devem ter
particular atenção, para que procurem perceber que crime se poderá verificar e que fatores
devem ser tidos em conta na intervenção a realizar.

Assim, dentro do conceito de violência sexual contra crianças e jovens, que irá ser explorado
neste manual, pretende englobar-se tanto os crimes contra a liberdade como contra a
autodeterminação sexual que sejam perpetrados contra menores de idade, isto é, todas as
pessoas entre os 0 e os 18 anos de idade (exclusive)2.

Ainda que a literatura não seja consensual sobre a definição do conceito de violência sexual
contra crianças e jovens, é comum verificarem-se as seguintes premissas:

t Existência de contactos ou interações sexuais entre um/a adulto/a e um menor de 18


anos, ou entre duas crianças, quando existe uma posição/atitude de poder de uma
sobre a outra;
t Postura de controlo do/a autor/a do crime sobre a vítima;
t A vítima é utilizada pelo/a autor/a do crime para o/a estimular sexualmente ou a
outra pessoa.

2. A este propósito, ver Parte


I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 6. Enquadramento
jurídico atual > b. Crimes contra a
liberdade sexual e c. Crimes contra
a autodeterminação sexual

14
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Contextos de vitimação

3. Contextos de vitimação
Apesar de ainda poderem subsistir alguns preconceitos relativamente aos contextos onde a
violência sexual possa acontecer, importa salientar que estes crimes podem acontecer em
qualquer espaço e contexto de que a criança faça parte, ou que frequente.

Genericamente, os contextos de vitimação dividem-se em dois grandes grupos que irão ser
agora especificados.

a. Contexto Intrafamiliar
Este contexto refere-se aos crimes praticados por pessoas que tenham uma relação familiar
com a criança ou jovem vítima – por exemplo: progenitores/as, figura parental substituta ou
de referência, avós, tios/as, primos/as, entre outros.

Ainda que a vítima e o/a autor/a do crime possam não coabitar, a vitimação tende a ocorrer na
habitação da criança ou jovem, dos/as familiares, ou noutros espaços frequentados pela família.

Dado que a maioria dos crimes sexuais contra crianças e jovens reportados é perpetrado por
elementos da família da vítima, será pertinente aprofundar as especificidades deste fenómeno.

i. Incidência
Vários estudos indicam que a violência sexual ocorrida em contexto intrafamiliar apresenta
maior prevalência em crianças do sexo feminino (as mais comuns são o incesto pai-filha
ou padrasto-enteada) e, no que respeita à idade, com as crianças que têm entre 8 e 10 anos.
Porém, em vários casos, a violência tende a iniciar-se mais cedo, através de comportamentos
mais subtis, e que a vítima dificilmente identifica como intrusivos (ex.º: toques disfarçados
de demonstrações de afeto, exibicionismo aparentemente involuntário).

ii. Consequências para a vítima


No que respeita ao impacto psicológico da violência sexual em contexto intrafamiliar, este
poderá ser mais gravoso do que quando o/a autor/a do crime não é um membro da família.
Relativamente ao impacto físico, poderá existir em menor grau, uma vez que é menos
frequente que a violência sexual seja acompanhada de violência física; com efeito, é menos

15
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
3. Contextos de vitimação

provável que a criança ou jovem ofereça resistência, uma vez que conhece o/a autor/a do
crime e aquele/a desempenha um papel na sua vida. A ausência de sinais físicos de violência
poderá dificultar a identificação da situação de vitimação por outras pessoas, e tal facto, em
última instância, facilitará a perpetração do crime por um maior período de tempo, o que
está normalmente associado a um impacto psicológico mais nefasto para a vítima.

iii. Agravantes do contexto intrafamiliar


A violência sexual que ocorre num ambiente relacional que é suposto ser de confiança e
proteção, poderá condicionar a forma como a criança ou jovem se estrutura afetivamente e
tenderá a provocar mais impacto na evolução da personalidade daquela e no tipo de relações
que estabelecerá com as outras pessoas ao longo da vida.

Uma vez que o/a autor/a do crime é alguém da confiança da vítima e, muitas vezes, detém
sobre esta algum tipo de autoridade, pode ser frequente que a criança ou jovem sinta
ambivalência ou medo que, por seu turno, tenderão a dificultar a revelação do crime.

É comum que a criança ou jovem inicialmente não identifique os comportamentos de


abuso por parte do/a autor/a do crime, considerando-os uma simples manifestação afetiva.
Com a continuação da vitimação, as abordagens do/a autor/a do crime poderão tornar-se
mais frequentes e despoletar na vítima sentimentos de insegurança e dúvida relativamente
à normalidade desses atos. Estes sentimentos poderão fazer com que o/a autor/a do crime
atribua a culpa dos seus atos à criança ou jovem por ter, de alguma forma, colaborado, por
não ter resistido às suas investidas iniciais, ou levar a que a vítima acredite que seduziu o/a
autor/a do crime.

A culpa, o medo da desintegração familiar, os sentimentos de ambivalência relativamente


ao/à autor/a do crime, a vontade que este/a não seja castigado ou de que não se separem
poderão fomentar a ocultação da perpetração do crime pela vítima durante longos períodos
de tempo ou, nalguns casos, a não existir qualquer revelação.

Também os/as autores/as do crime poderão manter a situação violenta através de estratégias
mais ou menos violentas, ou de ameaças (ex.º: que praticará atos mais severos contra a
vítima ou contra pessoas de quem aquela gosta).3

3. A este propósito, ver Parte


I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 4. O processo de
revelação da vitimação

16
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Contextos de vitimação

iv. Relação entre violência doméstica e violência sexual


intrafamiliar contra crianças e jovens

A violência sexual em contexto intrafamiliar estará correlacionada com maiores padrões


de disfunção familiar. Mais especificamente, em grande parte das famílias onde se verificou
existir violência sexual contra crianças e jovens, também se observou a ocorrência de
violência doméstica entre os/as adultos/as que compunham o agregado familiar.

Por vezes, os atos sexuais contra crianças e jovens são perpetrados apenas contra estes e com
a conivência dos/as adultos/as que coabitam, em muitos casos por receio de denunciar e/ou
enfrentar o/a autor/a do crime.

Outros casos existem em que a violência doméstica é exercida apenas de um/a adulto/a contra
outro/a (ex.º: cônjuges ou uniões análogas a esta), mantendo-se uma aparente atitude de afeto
para com os/as descendentes (biológicos ou não), que tende a encobrir a violência sexual.

Em situações mais patológicas ou estimuladas por culturas específicas, o conflito ou


afastamento do relacionamento entre os/as adultos/as leva a que um destes elementos procure
num dos filhos uma espécie de “substituto” a nível romântico ou sexual, fazendo com que
o outro elemento, mesmo tendo conhecimento da existência da violência sexual, por vezes
desvalorize a situação, manifeste ciúme da vítima e/ou a culpabilize pelo crime de que é alvo.

v. Características da família incestuosa


Apesar de não seguirem um perfil específico, existem algumas características mais comuns
às famílias no seio das quais acontecem as situações de violência sexual contra crianças e
jovens, como sendo:

t Modelo familiar patriarcal


t Presença de um substituto paterno
t Escasso afeto físico e emocional em relação à criança/jovem
t Pobreza no relacionamento pais-criança/jovem
t Padrões de vinculação insegura
t Repetição geracional do abuso infantil
t Relacionamento conjugal/marital difícil
t Existência de limites muito rígidos de delimitação da família face à comunidade

O/a autor/a do crime sexual, neste tipo de contexto, apresenta frequentemente:

17
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
3. Contextos de vitimação

t Elevada imaturidade afetiva


t Passado de carências afetivas e separações, sendo frequente ter sido vítima de
violência (física e sexual) durante a própria infância
t Ausência de culpa relativamente ao ato incestuoso
t Crença de que tem direito de posse sobre a criança/jovem ou de iniciador da criança/
jovem na vida sexual

O/A(s) outro/a(s) adulto/a(s) coabitante(s) poderá(ão) manifestar:


t Passado de abusos sexuais ou violência
t Personalidade passiva e dependente
t Traços depressivos frequentes
t Tendência para ser negligente ou delegar os cuidados da criança/jovem noutros
t Acomodação de forma passiva à situação, “sacrificando” a vítima, de modo a manter
a família unida
t Resistência à mudança e consequente medo da desorganização familiar

A criança ou jovem abusada em contexto intrafamiliar tende a adotar uma atitude de:
t Passividade e dificuldade de resistência aos comportamentos do/a autor/a do crime
t Não incitamento das investidas do/a autor/a do crime
t Culpabilidade

b. Contexto Extrafamiliar
O contexto extrafamiliar refere-se a situações em que a violência sexual é cometida por
autores/as que não fazem parte do sistema familiar da criança ou jovem.

Grande parte destas situações são perpetradas por pessoas conhecidas da criança (ex.º:
amigos da família, vizinhos, prestadores de serviços) e que, muitas vezes, participam nas
rotinas desta (ex.º: professor, ama, tutor de uma atividade extra curricular, etc.), podendo
os atos ocorrer na habitação da vítima ou do/a autor/a do crime, na escola, na viatura
automóvel do/a autor/a do crime, numa loja ou no caminho para casa.

Importa, portanto, destacar, que são raras as ocorrências perpetradas por pessoas
desconhecidas da vítima.

18
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens


Ao falar-se sobre violência sexual contra crianças e jovens, é igualmente imperativo abordar
alguns mitos ainda alimentados pela sociedade. Estes poderão surgir pela generalização de casos
específicos (a parte como um todo), sob a forma de falácias ou ideias vagas baseadas no senso
comum, que tomam muitas vezes a forma de conceitos distorcidos, ou criados por estereótipos,
mantidos, na maioria das vezes, com recurso a preconceitos e atos discriminatórios.

Assim, torna-se necessário clarificar alguns dos mitos mais comummente partilhados, sendo
que os profissionais que intervêm com crianças e jovens vítimas de violência sexual deverão
afastá-los das suas conceções e contribuir para a sua dissolução junto das pessoas com quem
contactam diariamente.

- “A violência sexual contra crianças ou jovens é um


acontecimento raro e pouco frequente.”

A sociedade tenderá a assumir que os casos existentes são raros, e que serão essencialmente
os divulgados pelos meios de comunicação social. Por outro lado, perante os casos tidos
como “mediáticos”, que são amplamente difundidos e explorados, poder-se-á assumir que,
em determinados contextos (ex.º: institucionalização) ocorrem muito frequentemente4.

- “Isso é coisa de antigamente.”

A existência de teorias que indicam que a par de todo o processo evolutivo, acontece sempre
um movimento contrário de involução, muitas vezes baseado na tendência natural do
homem para se sentir insatisfeito, leva à reflexão sobre a presença de crimes desta natureza
transversalmente no tempo.

Por outro lado, os esforços feitos com vista a um crescente respeito pelos direitos das
crianças ter-se-ão refletido numa maior sensibilização da população para este tipo de
problemáticas, o que resultará numa mais frequente revelação de casos de violência sexual
contra crianças e jovens. 4. Conquanto que os conceitos
de “raro” ou “pouco frequente”
sejam quase tão ambíguos em
termos quantitativos quanto os de
“abundante” ou “muito frequente”,
a verdade é que, tal como se
- “Isso só acontece em ambientes socioeconómicos desfavorecidos.” pode conferir no Capítulo I > 7.
Prevalência dos atos de violência
sexual contra crianças e jovens em
Portugal, os dados estatísticos
Alguns estudos indicam que crianças e jovens com diferentes tipos de carências poderão demonstram-nos que a prevalência
dos crimes é elevada.

19
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

ser alvos mais prováveis para a vitimação sexual. Tais carências poderão não ser apenas de
índole socio-económica, mas também afetivas, de supervisão ou educação sexual. Estas
últimas poderão verificar-se em famílias de qualquer nível económico.

Concomitantemente é importante salientar que os fatores de risco não são apenas relativos
às possíveis vítimas, pelo que a vitimação poderá depender igualmente de fatores associados
ao/à autor/a do crime ou ao contexto em que se inserem.

- “Só as crianças do sexo feminino podem ser vítimas de violência sexual.”

Este mito poderá já ser muito pouco partilhado na sua base, em parte devido aos casos que têm
vindo a ser mediatizados, relativos a violência sexual contra crianças e jovens do sexo masculino.

Assim, tanto crianças do sexo feminino como masculino poderão ser vítimas de violência
sexual, ainda que as preferências dos/as autores/as dos crimes possam incidir sobre um ou
outro sexo, ou mesmo ambos. Além disso, os/as autores/as poderão não atuar consoante
as suas preferências, mas sim de acordo com a facilidade que terão em aceder a algumas
crianças ou jovens.

- “Quando a criança é vitimada, conta logo a alguém.”

Existem vários fatores que poderão ter impacto na propensão da criança ou jovem para
revelar a situação de que foi vítima. As estratégias do/a autor/a do crime, a relação deste/a
com a vítima, a antevisão das possíveis consequências da revelação, as características da
personalidade da vítima, a fase do desenvolvimento em que se encontra, a forma como
esta lida com a situação, os sentimentos de culpa, vergonha e medo, o tipo, severidade
e consequências da vitimação, são algumas das particularidades a ter em conta na
compreensão do processo de revelação.

Tudo isto pode influenciar o tempo decorrido entre o(s) acontecimento(s) e a revelação,
bem como o momento em que esta acontece, a forma como é feita e a quem a vítima se
dirige para este efeito.

É importante lembrar que a revelação pode não ser feita de forma verbal, mas também por
meio de desenhos ou manifestação de sintomas, e que a mesma pode não transmitir uma
informação clara, uma vez que depende da compreensão da vítima sobre o que aconteceu.
Nalguns casos é mais tarde, quando a vítima inicia a sua vida sexual, ou quando outro

20
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

acontecimento a faz reviver essas memórias, que surgem alguns sintomas ou a necessidade
de revelar a situação de violência sexual na infância ou adolescência.5

- “Quando a criança não mostra resistência, é porque quer e gosta.”

Em geral podem apontar-se três possíveis reações das crianças ou jovens no decurso da
vitimação: passividade, agressividade e atividade. O facto de a vítima não resistir aos atos
contra si perpetrados não significa que os esteja a apreciar ou a gostar.

Assim, a forma como irá reagir à situação de violência sexual dependerá em grande parte
das estratégias de coping que a criança ou jovem detém, independentemente de aquelas
serem mais ou menos adaptativas.

Como já enumerado anteriormente, as estratégias do/a autor/a do crime para controlar


a criança, as características de personalidade de cada um dos intervenientes, o tipo de
relação existente entre estes, a perceção que a criança ou jovem tem do acontecimento, os
sentimentos de culpa e medo associados, poderão influenciar a forma como a vítima reage à
situação e fazer com que não mostre resistência, apesar de a situação não lhe ser agradável.

Não obstante, a criança/jovem poderá sentir prazer na relação sexual com o/a adulto/a,
uma vez que, (e principalmente se já tiver passado a fase da puberdade), tem a capacidade
de sentir-se estimulada sexualmente. Contudo, a vítima poderá não estar preparada, nem
física, nem psicologicamente, para ter relações sexuais, principalmente com alguém numa
fase de desenvolvimento desfasada da sua. Por outro lado, o prazer sexual na criança ou
jovem está muitas vezes associado à perceção de afeto, especialmente se a interpretação do
comportamento sexual for distorcida pelo/a autor/a do crime nesse sentido.

- “Algumas crianças são sedutoras e de alguma forma provocam


o comportamento sexual por parte do/a adulto/a.”

Ainda que se tenha em conta que uma atitude de curiosidade relativamente à sexualidade faz
parte do processo normal de desenvolvimento de uma criança, isso não quer dizer que tenha
intenção clara e consciente de se envolver sexualmente com um/a adulto/a ou alguém mais velho.

Por vezes, mesmo que verbalize essa vontade, esta pode assentar em expectativas irrealistas
5. A este propósito, ver Parte
acerca da relação sexual ou consistir na reprodução de comportamentos observados. I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 4. O processo de
revelação da vitimação

21
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

Deste modo, cabe ao/à adulto/a ou à pessoa mais velha declinar o comportamento
sexualizado da criança ou jovem, tomando em consideração que esta pode ainda não deter
completa consciência do teor e consequências do seu comportamento.

Por outro lado, este é um argumento frequentemente utilizado pelos/as autores/as dos
crimes de natureza sexual para justificar os seus atos, com vista a descredibilizar a vítima,
dividir o eventual sentimento de culpa com aquela ou mesmo porque, em alguns casos,
interpretam de uma forma distorcida os comportamentos das crianças ou jovens, podendo
perceber um gesto de carinho ou procura de afeto, como uma atitude de insinuação e desejo
de estimulação sexual.

- “Os crimes sexuais contra crianças envolvem sempre violência física,


ameaças ou coação.”

Nem sempre a perpetração dos crimes sexuais está associada a violência física, ameaças ou
coação, podendo o/a autor/a do crime recorrer a estratégias de sedução e manipulação, e a
aproveitar-se, por vezes, da inexperiência das crianças ou jovens para as levar a colaborar
nas práticas sexuais ou para camuflar os comportamentos sexualizados, o que poderá
dificultar a recolha de vestígios físicos da prática dos atos. Noutros casos, o/a autor/a do
crime poderá confabular um relacionamento de reciprocidade com a vítima, fazendo com
que seja cuidadoso/a nos seus comportamentos.

- “Agressão sexual implica sempre penetração vaginal ou anal.”

Para algumas pessoas a relação sexual é conceptualizada apenas dentro do conceito da


penetração vaginal ou anal, pelo que poderão ver a possibilidade de ocorrência de crimes
sexuais contra crianças e jovens da mesma forma.

No entanto, existe um outro conjunto de comportamentos a que o/a autor/a do crime pode
recorrer para retirar prazer do contato com a vítima, que poderão passar pela penetração
com outras partes do corpo ou objetos, toques, carícias, masturbação, exibicionismo,
recurso a fotografias ou vídeos, ou quaisquer outros comportamentos que propiciem a
excitação sexual. Não raras vezes, os/as autores/as dos crimes podem recorrer a este tipo de
atos com o objetivo de não deixarem vestígios, de forma a diminuírem a probabilidade de
serem descobertos.

22
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

- “Os bebés e as crianças muito pequenas não podem ser vítimas.”

Ainda que estatisticamente a maioria dos crimes ocorram contra crianças entre os 8 e os
13 anos, crianças mais pequenas poderão igualmente ser alvos preferenciais por estarem
mais próximas dos/as autores/as dos crimes, ou porque é mais fácil manter a perpetração do
crime tendo em conta o menor desenvolvimento da linguagem das crianças.

- “Quem ouve os relatos de uma situação de abuso denuncia sempre a situação.”

Os crimes sexuais contra crianças e jovens, pela sua natureza, tendem a gerar maior sensibilidade
junto de quem deles tem conhecimento. Todavia, tal não significa que exista uma maior
propensão para que sejam denunciados, por vezes devido ao pudor, ao receio de represálias, ou
ao facto de não acreditarem que são verdadeiras as situações de que tomam conhecimento.

Mesmo quando a revelação do crime pela criança ou jovem acontece junto dos seus progenitores,
representantes legais ou de um/a adulto/a da sua confiança (ex.º: familiar, professor), a denúncia
pode tardar ou nunca acontecer, por vergonha, culpa, receio das implicações dentro do sistema
em que a criança/jovem se insere (ex.º: família, instituição de acolhimento, escola, sociedade em
geral), ou mesmo pela crença de que o processo-crime poderá ser nocivo para a vítima.

Também é de lembrar que alguns crimes acontecem com a conivência dos/as cuidadores/
as da vítima, podendo até estes/as retirar benefícios da situação de abuso. Outras vezes, a
criança ou jovem poderá ser alvo de negligência, quando quem cuida de si não valoriza o
impacto que a vitimação pode ter no seu desenvolvimento.

- “O/a autor/a do crime é um desconhecido com aspeto duvidoso.”

A conceção idealizada da família como o grupo que acolhe, protege e acarinha a criança/
jovem em primeira instância, pode originar que se creia que os crimes sexuais contra
crianças em contexto intrafamiliar serão os menos frequentes.

Neste sentido, poderá pensar-se que o/a autor/a do crime será uma pessoa com aspeto
duvidoso/desviante e de fácil identificação.

Todavia, vários estudos e estatísticas indicam que os crimes sexuais contra crianças e jovens
são cometidos na sua maioria por pessoas conhecidas destes, que tenham com a vítima
maior ou menor proximidade.

23
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

Mesmo que os/as autores/as dos crimes sejam desconhecidos/as das vítimas, tendem a estar
integrados na sociedade e junto de uma estrutura familiar normativa, podendo ser conhecidos
pelo seu afeto junto das crianças ou jovens, sendo esta uma potencial estratégia para a aproximação
bem-sucedida junto daqueles e consequente perpetração dos atos de violência sexual.

- “O agressor sexual de crianças padece de patologia mental.”6

Este mito, que poderá estar relacionado com o anterior, no sentido da crença de que o/a
autor/a do crime é facilmente identificável pela exclusão social que o caracteriza, consiste na
generalização abusiva da ideia de que uma grande parte dos/as autores/as dos crimes têm
uma perturbação mental diagnosticada.

Todavia, tal não se verifica; portanto, importa não fazer uso desta premissa para
desculpabilizar o comportamento do/a autor/a do crime, uma vez que, na maior parte dos
casos, os atos são cometidos de forma consciente e lúcida.

- “A vítima é uma criança bonita, com ar angelical.”

Tal como o aspeto exterior do/a autor/a do crime não segue um padrão, o mesmo acontece
com o das vítimas. As preferências dos/as autores/as dos crimes, no que diz respeito ao
aspeto físico das crianças e jovens nem sempre correspondem a um padrão de beleza ou
harmonia (ainda que estes conceitos sejam interpretados de forma subjetiva).

Por outro lado, e como já foi referido anteriormente, os/as autores/as dos crimes poderão
escolher vitimar uma criança/jovem que lhes esteja mais acessível ou que detenha uma
maior vulnerabilidade.

- “Se isso acontecesse ao meu filho, eu perceberia.”


6. A propósito da destrinça pedófilo
vs. autor/a de crime de natureza A violência sexual poderá ser difícil de detetar, dada a inexistência de vestígios físicos na
sexual, ver Parte I – Compreender
> Capítulo I – A violência sexual maioria dos casos, pela adoção de estratégias de dissimulação pelo/a autor/a do crime,
contra crianças e jovens > 5. A
necessária distinção entre pedofilia
ou pela ambiguidade dos sinais e sintomas7 manifestados pelas vítimas – com efeito, estes
e violência sexual contra crianças
e jovens
podem ser comuns a outro tipo de problemáticas, pelo que diversos casos poderão ser
7. A este propósito, ver Parte desvalorizados ou mal interpretados.
I – Compreender > Capítulo
II – A criança e o jovem vítimas de
violência sexual > 5. Reações e
consequências experienciadas >
b. Sinais e sintomas

24
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

- “As crianças não mentem.”

É pouco comum que as crianças/jovens mintam deliberadamente e consigam manter uma


história, com detalhes, de forma consistente, especialmente as crianças mais novas. Ainda
assim, não pode deixar-se de mencionar que as crianças/jovens podem, por vezes, confundir
a realidade com as fantasias que criam, pela forma como integram os diversos estímulos
que lhes chegam (ex.º: televisão, revistas, eventos que observam acontecer com outras
pessoas). Além disso, é possível que, pela influência de outras pessoas, as crianças ou jovens
verbalizem recordações falsas que podem ser formadas com um propósito voluntário, por
parte de alguém que poderá pretender usar a criança/jovem para desencadear uma acusação
falsa contra o/a alegado/a autor/a do crime (ex.º: conflitos em processos de regulação das
responsabilidades parentais, vinganças pessoais).

Contudo, a introdução de memórias falsas também pode ser desencadeada por outras
pessoas que, ao interpretar erradamente uma determinada situação, poderão fazer questões
sugestivas à criança ou dar-lhe pistas sugestionadas para recordarem algo que acreditam ter
acontecido, levando a criança/jovem a crer que vivenciou o que lhe foi descrito.

Além disso, em jovens mais velhos, nomeadamente adolescentes, existem casos em que
estes poderão criar histórias de violência sexual com objetivos secundários (ex.º: justificar
ausências de casa, tentativas de manipulação da atenção dos adultos).

De qualquer forma, o/a técnico/a que venha a intervir com a criança/jovem ou a pessoa a
quem é revelada a situação de vitimação deverá transmitir que acreditam no que a vítima
está a relatar e não deixar que eventuais dúvidas sobre a veracidade dos factos obstem a uma
denúncia e/ou pedido de apoio.

Ou seja, a investigação acerca da veracidade e validade do testemunho da vítima é


competência reservada aos Órgãos de Polícia Criminal e Autoridades Judiciárias, pelo que os
restantes intervenientes (ex.º: familiares, técnicos/as) deverão zelar pela proteção da vítima
e do seu testemunho, nomeadamente evitando o questionamento à criança/jovem sobre os
factos, sob risco de se colocar em causa a produção de prova em sede de processo-crime.

- “Quando a criança tem dúvidas,


não se recorda de algum aspeto, ou se recusa a falar, é porque está a mentir.”

As crianças e jovens nem sempre conseguem verbalizar a vitimação de que foram alvo com
precisão, não porque estejam a mentir, mas por outros motivos, como pelo normal desgaste

25
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

mnésico provocado pelo tempo decorrido entre o momento do abuso e aquele em que a
vítima o revela. Crianças mais novas poderão experienciar dificuldades em verbalizar ou
expressar o que aconteceu, especialmente pelo seu vocabulário, geralmente muito reduzido.
Outros motivos subjacentes às possíveis lacunas, inseguranças e incongruências de alguns
relatos poderão advir das circunstâncias do crime e da forma como a vítima integra tais
informações. Com efeito, as ameaças, subjugação, manipulação ou distorção dos factos
provocadas pelo/a autor/a do crime poderão fazer com que a vítima se sinta culpada ou que
acredite que os factos aconteceram de forma diferente, gerando dúvidas, medo ou vergonha
que se podem vir a refletir no discurso da criança ou jovem.

Por outro lado, os próprios mecanismos de defesa da criança ou jovem poderão desencadear
uma clivagem ou recalcamento da informação que a mente terá dificuldade em processar,
tornando as memórias difusas e de difícil recuperação.

Concomitantemente, a especificidade íntima da vitimação poderá fazer com que a criança


ou jovem se retraia ao relatar os factos, tendo em conta os contextos onde isso lhe poderá ser
pedido (ex.º: perante desconhecidos, nos Órgãos de Polícia Criminal, no Tribunal), levando
a que sinta ansiedade, vergonha ou receio, que poderão ter impacto no seu discurso e na
forma como vai conseguir aceder às suas memórias.

- “É melhor não denunciar, pois a exposição inerente ao


processo-crime vai ser ainda mais nociva para a vítima e para a sua família.”

É frequente que a rede de suporte familiar da vítima tenha dificuldade em aceitar o


acontecimento que aquela revelou; assim, poderá acontecer que esta dificuldade seja
projetada na criança/jovem, pelo receio em falar sobre o ocorrido e pelo medo do impacto
social que a denúncia possa ter no meio social envolvente.

Contudo, a omissão de denúncia poderá potenciar o impacto da vitimação na criança ou


jovem - o evitamento em abordar a situação e/ou denunciá-la poderá ser entendido como
uma descredibilização ou desvalorização da violência sofrida pela vítima, podendo esta
interiorizar e assimilar sentimentos de culpa.

Ainda que nalguns casos a condução do processo-crime possa gerar na criança ou jovem
vitimação secundária, existe a possibilidade de que este possa igualmente funcionar como
uma catarse, no sentido em que a vítima se poderá libertar daquele segredo, percecionar que
a culpa não lhe é atribuída e que algo está a ser feito para que outras crianças e jovens não
sejam vítimas de violência sexual.

26
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
4. Mitos sobre a violência sexual contra crianças e jovens

- “A criança vai ficar marcada para toda a vida.”

Apesar da violência sexual ser um acontecimento muito poderoso na vida de uma criança
ou jovem, o impacto e repercussões que aquele episódio pode vir a ter dependerá de vários
fatores. A proximidade sistémica e emocional do/a autor/a do crime relativamente à vítima,
a intensidade e duração da vitimação, as estratégias utilizadas por quem perpetrou os atos, a
idade da vítima aquando do abuso, a existência de acontecimentos traumáticos anteriores, as
reações aquando da revelação e o tempo decorrido entre a vitimação e a revelação, a forma
como o processo-crime foi conduzido e o seu desfecho, são algumas variáveis que poderão
ter influência no impacto da vitimação.

É fulcral também ter em conta os fatores de proteção e resiliência8 presentes na vida da criança/
jovem, como por exemplo a existência de uma personalidade mais adaptativa, ou a presença
de uma eficaz rede de suporte primária, que poderão ser determinantes no desenrolar de um
processo de apoio e que, por conseguinte, poderão diminuir o impacto da vitimação.

- “A criança necessita sempre de psicoterapia.”

É importante que à vítima seja disponibilizado apoio psicoterapêutico ou pedopsiquiátrico.


Todavia, nem sempre este se afigura necessário – a vitimação pode ficar integrada nas
memórias da criança ou jovem de forma adaptativa, e alguns tipos de terapia podem reativar
algumas vivências. O importante é que, no normal desenvolvimento da criança ou jovem,
caso existam reativações dos acontecimentos, as vítimas tenham um elemento de referência
a quem poderão pedir ajuda.

8. A este propósito, ver Parte


I – Compreender > Capítulo
II – A criança e o jovem vítimas de
violência sexual > 3. Fatores de
proteção e resiliência da vítima

27
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
5. A necessária distinção entre pedofilia e violência sexual contra crianças e jovens

5. A necessária distinção entre pedofilia e violência


sexual contra crianças e jovens
O termo “pedófilo” é muitas vezes associado pela sociedade ao conceito mais abrangente
de “agressor sexual” (neste caso de crianças e jovens). Contudo, é imperativo que os/as
técnicos/as que trabalham diretamente com esta temática, consigam distinguir e clarificar
quais os termos adequados à situação que se está a abordar.

A distinção entre ambos os conceitos advém, desde logo, da ciência a que estão associados.
Se a pedofilia é uma classificação relativa à Psiquiatria, os crimes sexuais pertencem ao
âmbito do Direito Penal.

Os critérios diagnósticos, segundo o DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders – Fifth Edition), para “Perturbação de Pedofilia” são os seguintes:

Critérios de diagnóstico:

" Fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos, recorrentes


e intensos, envolvendo atividade sexual com uma criança ou crianças pré-púberes
(geralmente com 13 anos ou menos), por um período de pelo menos 6 meses
# O indivíduo atuou de acordo com estes impulsos sexuais, ou os impulsos sexuais ou
as fantasias provocam intenso mal-estar ou dificuldades interpessoais.
$ O indivíduo tem pelo menos 16 anos e é pelo menos 5 anos mais velho do que a
criança ou crianças do Critério A
Nota: Não incluir um indivíduo no final da adolescência envolvido num
relacionamento sexual continuado com uma criança de 12 ou 13 anos.
Especificar se:
Tipo exclusivo (atraído apenas por crianças)
Tipo não exclusivo
Especificar se:
Sexualmente atraído pelo sexo masculino
Sexualmente atraído pelo sexo feminino
Sexualmente atraído por ambos os sexos
Especificar se:
Limitada ao incesto

Assim, importa salientar que um/a autor/a de violência sexual contra crianças ou jovens
pode não ter como diagnóstico a perturbação de pedofilia; com efeito, existe uma
prevalência baixa de pedófilos entre autores/as de violência sexual contra crianças e jovens.

28
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
5. A necessária distinção entre pedofilia e violência sexual contra crianças e jovens

Da mesma forma, uma pessoa que venha a ser diagnosticada com pedofilia poderá nunca
cometer qualquer crime sexual.

Ainda que o diagnóstico de pedofilia seja um fator de risco para a prática de crimes sexuais,
este não tem fiabilidade suficiente para prever, por si só, a existência dos mesmos. Por outro
lado, este transtorno, em conjunto com outras patologias (ex.º: Transtorno da Personalidade
Antissocial) poderá aumentar exponencialmente a probabilidade do seu portador agir
criminalmente por intermédio de violência sexual contra crianças e jovens.

Portanto, é importante não negligenciar o facto de existirem autores/as dos crimes que não
têm patologia psiquiátrica; além disso, estes/as autores/as podem nunca ter manifestado
interesse sexual por vítimas menores de idade e, a dado momento, cometer um crime dessa
natureza, de forma pontual e/ou direcionada apenas para uma criança ou jovem em específico.

Mais ainda é de salientar o facto de a pedofilia não ser, por si só, critério para a
fundamentação de inimputabilidade do/a autor/a do crime.

29
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

6. Enquadramento jurídico atual

O crime é um comportamento que viola a lei e, nessa medida, é punido com uma pena. Para
efeitos do Código de Processo Penal (CPP), o crime é o conjunto de pressupostos de que
depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida de segurança criminais.

Em matéria de violência sexual contra crianças e jovens, importa desde já realizar uma breve
introdução sobre os crimes contra as pessoas, nomeadamente os crimes contra a liberdade
sexual e contra a autodeterminação sexual (APAV, 2013).

Neste conspecto, o Código Penal (CP) distingue estes dois grupos de crimes sexuais9
no capítulo V, Secções I e II. Os “crimes contra a liberdade sexual têm como bem jurídico
a proteção da liberdade e autodeterminação sexual de todas as pessoas, sem aceção de
idade” (Ribeiro, 2014, p. 16), penalizando todas as atividades sexuais cometidas sem o
consentimento da vítima. Por seu turno, os crimes contra a autodeterminação sexual visam
a proteção da autodeterminação sexual das crianças ou jovens, intrinsecamente conexionada
com o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual (Dias, 1999).

Deste modo, percebe-se que os crimes contra a autodeterminação sexual oferecem uma
proteção mais ampla das crianças e jovens (em regra, dizem respeito a crianças com idade
inferior a 14 anos e, em alguns tipos legais, os jovens com idades compreendidas entre 16
e 18 anos), protegendo-os de contactos sexuais precoces (APAV, 2013), pois o legislador
pressupõe que certos comportamentos sexuais, ainda que livres de ameaça grave, coação
ou violência, poderão prejudicar o desenvolvimento da personalidade do menor (Cunha,
2003; Sousa, 2015), dado que “a vítima não tem ainda capacidade para formar livremente a
sua vontade – ou para compreender o significado global (implicações) do seu comportamento”
(Cunha, 2003, p. 354).

Nos últimos anos, diversos instrumentos jurídicos internacionais têm sido elaborados
9. Segundo o Ac. do TRP de
04.06.2014, “os crimes sexuais
com vista a prevenir e sancionar a criminalidade sexual. Destes, são exemplo as Diretivas
protegem, por um lado, a liberdade 2011/92/UE e 2012/29/UE, bem como as Convenções de Lanzarote e de Istambul. O
sexual dos adultos; e, por outro,
o livre desenvolvimento dos legislador português tem dado resposta a estes apelos, com a criação, por exemplo, da Lei n.º
menores no campo da sexualidade,
considerando-se aqui que, 83/2015, de 5 de agosto (que procede à 38.ª alteração do CP).
determinados atos ou condutas de
natureza sexual podem, mesmo
sem violência, em razão da
pouca idade da vítima prejudicar
De facto, verifica-se uma crescente preocupação em torno dos crimes desta natureza, pelo
gravemente o seu crescimento
harmonioso e, por consequência,
que os avanços nesta temática são tidos como “passos de gigante invocando a proteção penal
o livre desenvolvimento da sua da liberdade e da autodeterminação sexual dos menores”10 (Antunes, 2010, p. 153).
personalidade”.
10. Esses avanços materializam-se,
entre outros, pelo disposto no
Art.º 118.º, n.º 5, do CP ou no artigo
178.º do CP.

30
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender

a. A natureza dos crimes, a responsabilidade penal e a


competência para investigação criminal
Importa neste tópico estabelecer a destrinça entre crimes públicos, semipúblicos e
particulares. O Código Penal opera esta distinção com base, essencialmente, na gravidade
dos ilícitos, tendo por base o maior ou menor desvalor que o comportamento do agente
assume face aos valores sociais vigentes (APAV, 2013).

Esta distinção não é meramente teórica, tendo consequências práticas no processo criminal.
Assim, nos crimes públicos, o início e o desenrolar do procedimento não está dependente
da vontade da vítima, bastando a sua notícia pelos Órgãos de Polícia Criminal e/ou
Autoridades Judiciárias ou a denúncia por qualquer pessoa. Mais ainda, dado que está em
causa a proteção de toda a comunidade, sempre que um funcionário (segundo a definição
do Art.º 386.º do CP) tenha conhecimento, no exercício das suas funções, de um crime de
natureza pública, está obrigado a denunciá-lo.

No Código Penal, os crimes públicos são identificáveis pelo facto de nada ser dito no
preceito legal ou em artigos seguintes, sobre a necessidade de ser feita queixa e/ou deduzir
acusação particular.

Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores são de natureza


pública, sendo a única exceção o crime de atos sexuais com adolescentes, constante do Art.º
173.º do CP, que é de natureza semipública.

Relativamente a esta classificação (crimes semipúblicos), é necessária a queixa da pessoa


com legitimidade para a exercer – em regra, o/a ofendido/a, o/a seu/sua representante legal
ou sucessor/a (Art.º 113.º do CP). Sempre que o/a ofendido/a for menor de 16 anos ou não
possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de
queixa, este pertence ao/à representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas naquele
mesmo preceito legal. Todavia, os Órgãos de Polícia Criminal, Autoridades Judiciárias e/
ou funcionários (segundo a definição do Art.º 386.º do CP) são obrigados a denunciar
estes crimes, sendo necessário o exercício tempestivo do direito de queixa, no prazo de seis
meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos/as seus/
suas autores/as, ou a partir da data da morte do/a ofendido/a, ou da data em que ele se tiver
tornado incapaz – Art.º 114.º do CP).

Os crimes semipúblicos indicam nos preceitos legais a necessidade de queixa (usualmente


com a expressão “depende de queixa”), sendo que o/a ofendido/a pode desistir do
procedimento criminal (APAV, 2013).

31
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

Nos crimes de natureza particular está em causa a violação de bens de natureza pessoal
(ex.º: crimes contra a honra e alguns crimes contra a propriedade, entre pessoas com
laços de parentesco próximo). Nestes crimes, o papel da vítima é crucial para o desenrolar
do procedimento criminal, dependendo não só de queixa mas também da constituição
como assistente e dedução da acusação particular. Um crime desta natureza é facilmente
identificável no Código Penal, estando patente no preceito legal (ou num artigo posterior) a
referência à dependência de queixa e à dedução de acusação particular.

Importa salientar que a prescrição do procedimento penal, relativamente aos crimes contra
a liberdade e autodeterminação sexual de menores, não acontece antes de o/a ofendido/a
perfazer 23 anos. Embora este facto possa conduzir a um “risco de estigmatização processual
da vítima”, tal lapso temporal permite que a vítima não esteja impossibilitada, por via legal,
de instaurar ou prosseguir o processo penal (Antunes, 2010, pp.159-160).

Merecedor igualmente de análise é o tema da responsabilidade penal. De acordo com


o nosso sistema, o ilícito praticado por um menor entre os 12 e 16 anos não imputará a
aplicação de medidas de natureza criminal, mas antes de medidas tutelares educativas (Art.º
1.º da LTE). Desta forma, a responsabilização penal ocorre a partir dos 16 anos (Art.º 19.º
do CP) (Ribeiro, 2014). Apesar do agora mencionado ser a regra geral, cumpre dar nota que
relativamente a alguns crimes contra a autodeterminação sexual, exige-se que o agente seja
maior, isto é, tenha 18 ou mais anos11.

No que concerne à competência da investigação em matéria de crimes contra a liberdade


e autodeterminação sexual de menores, ou incapazes (bem como os demais a que
corresponda, em abstrato, pena superior a 5 anos de prisão), esta recai, exclusivamente,
de acordo com a Lei de Organização e Investigação Criminal, na Polícia Judiciária (Lei
49/2008, de 27 de Agosto, Art.º 7.º, n.º 3, al. a)).

De seguida, analisar-se-ão, mais detalhadamente, os preceitos legais dos crimes contra a


liberdade e autodeterminação sexual de menores.

11. Este tópico será aprofundado na b. Crimes contra a liberdade sexual


Parte I – Compreender > Capítulo
I – A violência sexual contra crianças
e jovens > 6. Enquadramento
jurídico atual > c. Crimes contra a i. Coação sexual
autodeterminação sexual, acerca
do crime de atos sexuais com
adolescentes (art. 173.º do CP),
recurso à prostituição de menores 1. Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente
(art. 174.º do CP) e aliciamento de ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou
menores para fins sexuais (art.
176.º-A do CP). com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.

32
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

2. Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a
praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.

O crime de coação sexual (Art.º 163.º do CP) existe sempre que a vítima é constrangida,
obrigada, coagida através de violência ou ameaça grave, ou, depois de, para esse fim, o
agente a ter tornado inconsciente, ou posto na impossibilidade de resistir, a sofrer ou a
praticar, com o agente do crime ou com outrem, um ato sexual de relevo12. A pena de prisão
pode ir de 1 a 8 anos, sendo a moldura penal diminuída para de 1 mês13 a 5 anos caso não
seja usada violência ou ameaça grave.

Este tipo legal protege a liberdade sexual de uma qualquer pessoa, independentemente da
idade, podendo tratar-se de um menor ou um/a adulto/a (Ribeiro, 2014).

Um dos pressupostos para preencher o tipo legal é que tenha ocorrido um ato sexual de
relevo. Embora, não exista uma definição unívoca para tal, certo é que todo o ato que “pela sua
natureza, conteúdo ou significado se relacionar com a esfera sexual, constituindo um ‘entrave’ à
liberdade sexual da vítima” (Cunha, 2003, pp.197-198), deve ser enquadrável em tal conceito.

Ademais, exige-se um ato de constranger, podendo para tal ser usados distintos meios,
nomeadamente a violência, ameaça grave, colocação em estado de inconsciência ou na
impossibilidade de resistir ou abuso de autoridade (por exemplo, resultante de uma relação
de dependência hierárquica, económica ou de trabalho) (Ribeiro, 2014).

Além do disposto no Art.º 163.º do CP, são aplicáveis a este crime as agravações previstas
no Art.º 177.º do CP, especificamente as relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do
crime, à hipótese do agente ser portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto
de o crime ter sido cometido conjuntamente, com duas ou mais pessoas, à possibilidade
de resultar do crime gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente
patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte, ou à idade da vítima (menor de 14
e 16 anos – uma vez que este crime é igualmente aplicável a maiores de idade).

ii. Violação

1. Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente
ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: 12. V. Glossário
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 13. É utilizada a expressão “1 mês”
porque, quando nada é dito no
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; preceito legal, este corresponde ao
é punido com pena de prisão de três a dez anos. tempo de prisão mínimo, de acordo
com o Art. 41.º n.º1 do CP.

33
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

2. Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.

Estamos perante um crime de violação (Art.º 164.º do CP) sempre que, através de um ato de
violência (física ou psíquica), ameaça grave, ou, porque tornada inconsciente e incapacitada
de resistir, a vítima é forçada a praticar cópula, coito anal ou oral com o agente ou outrem,
ou a sofrer a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos14, sendo que a pena
de prisão se situa entre os 3 e os 10 anos.

O preceito legal impõe a utilização de meios de constrangimento, à semelhança do que


acontece no crime de coação sexual.

O crime de violação inclui também as situações em que, não tendo sido usada violência ou
ameaça grave, o agente pratica ou deixa que a vítima sofra os comportamentos descritos,
sendo este ato punível com pena de prisão de 1 até 6 anos.

Neste crime, o bem jurídico continua a ser a liberdade sexual. Todavia, tendo por base o
crime de coação sexual, este é um crime de maior gravidade, pois visa punir a prática de atos
sexuais de relevo qualificados (Ribeiro, 2014).

Ao crime de violação poderão ser aplicadas as agravações previstas no Art.º 177.º do


CP relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à hipótese do agente ser
portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto de o crime ter sido cometido
conjuntamente, com duas ou mais pessoas, à possibilidade de resultar do crime gravidez,
ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente patogénico que crie perigo para
a vida, suicídio ou morte, ou a idade da vítima (menor de 14 e 16 anos – uma vez que este
crime prevê igualmente atos praticados contra maiores de idade).

iii. Importunação sexual

“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando
propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão
até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra
disposição legal.”

14. V. Glossário

34
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

O crime de importunação sexual (Art.º. 170.º do CP) acontece sempre que o agente
importunar outra pessoa formulando propostas de teor sexual, praticando atos de carácter
exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual. Este comportamento,
punível com pena de prisão de 1 mês até 1 ano ou pena de multa até 120 dias – se pena mais
grave lhe não couber –, é suscetível de abranger o assédio sexual perpetrado em qualquer
local público, ainda que as propostas de teor sexual formuladas ou o constrangimento de
que a vítima é alvo, não consubstanciem atos sexuais de relevo15.

É de evidenciar que até à entrada em vigor da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, o ilícito
consistia única e exclusivamente na importunação sexual cometida através de dois tipos de
conduta: o caráter exibicionista ou o constrangimento da vítima a ter contacto sexual com
o agente. Porém, com a alteração introduzida no Código Penal, o âmbito de punibilidade –
isto é, os comportamentos que são criminalizados –, alargou-se substancialmente, estando
também incluída a formulação de propostas de teor sexual.

Pela menção de prática de “atos de carácter exibicionista” dever-se-á entender a “prática


de atos - ou gestos - relacionados com o sexo” (Rodrigues, 1999, p. 533). O crime de
importunação sexual pode ser praticado contra vítimas de maior ou menor idade. Todavia,
este fator é fulcral para determinar se se tratará de um crime de importunação sexual ou
de abuso sexual de menor (Art.º 171.º do CP), ou ainda de um crime de abuso sexual de
menores dependentes (Art.º 172.º do CP). De facto, “quem importunar menor de 14 anos
de idade, praticando ato previsto no artigo 170.º” ou “quem praticar tal comportamento face
a um menor (entre 14 e 18 anos) que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência”
pratica, respetivamente, o crime de abuso sexual de crianças e o crime de abuso sexual de
menores dependentes16.

Tal como já foi abordado anteriormente, também para o crime de importunação sexual está
prevista a aplicação das agravações constantes do Art.º 177.º do CP, mas agora apenas as
referentes a certos circunstancialismos, nomeadamente a relação da vítima com o/a autor/a
do crime (Art.º 177.º, n.º 1 do CP).

iv. Outros Crimes 15. Segundo o ac. do TRE de 15.05.2012,


“a conduta típica do crime de
importunação sexual é um ato de
natureza sexual (que não tenha a
Não obstante os crimes já referidos, importa ainda dar conta dos crimes de abuso sexual de gravidade de ato sexual de relevo)
praticado contra a vontade da
pessoa incapaz de resistência, abuso sexual de pessoa internada e lenocínio. vítima e na presença da mesma ou
sobre esta (que seja constrangida
a presenciar ou suportar) e, em tal
medida, seja importunada”.
O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência previsto no Art.º 165.º do CP, 16. Tal destrinça efetuada pelo ac. do
TRE de 14.01.2014

35
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

pune o agente que pratica um ato sexual de relevo com uma pessoa inconsciente ou incapaz
de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, com uma pena de
prisão de seis meses a oito anos. Ademais, sempre que se tratar de um ato sexual de relevo
qualificado o agente será punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

Dito isto, este crime “tutela a liberdade e autodeterminação de pessoas inconscientes ou


incapazes de formularem a sua vontade para a prática de atos com relevo sexual” (ac. TRP
10.04.2013). Assim, este tipo legal parece proteger a pessoa inconsciente (aquela que não
consentiu) ou incapaz (aquela que não tinha capacidade para consentir), de uma ação capaz
de condicionar a sua liberdade e/ou autodeterminação sexual.

Este é um crime semipúblico, isto é, depende de queixa, salvo se forem praticados contra
menor, ou se do crime resultar a morte ou suicídio da vítima (Art.º 178.º, n.º 1 do CP). Está
ainda sujeito às agravações constantes do Art.º 177.º do CP, especificamente as relativas
à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à hipótese do agente ser portador de uma
infeção sexualmente transmissível, ao facto de o crime ter sido cometido conjuntamente,
com duas ou mais pessoas, à possibilidade de resultar do crime gravidez, ofensa à
integridade física grave ou transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida,
suicídio ou morte, e à idade da vítima (menor de 14 e 16 anos – uma vez que este crime é
igualmente aplicável a maiores de idade).

O crime de abuso sexual de pessoa internada (Art.º 166.º do CP) visa punir quem,
aproveitando-se das funções que exerce ou do lugar que detém - estabelecimento onde
se executem reações criminais privativas da liberdade, hospital, hospício, asilo, clínica de
convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento,
ou estabelecimento de educação ou correção - praticar ato sexual com pessoa que aí se
encontre internada e que de qualquer modo lhe esteja confiada ou se encontre ao seu
cuidado. A pena de prisão para este tipo de crime varia entre os 6 meses a 5 anos, caso se
tratem de atos sexuais de relevo simples, ou de 1 a 8 anos, nos casos em que existam atos
sexuais de relevo qualificado.

O crime de abuso sexual de pessoa internada é um crime público, estando sujeito às agravações
do Art.º 177.º do CP, nomeadamente a hipótese do agente ser portador de uma infeção
sexualmente transmissível; o facto de o crime ter sido cometido conjuntamente, com duas ou
mais pessoas e a possibilidade de resultar do crime gravidez, ofensa à integridade física grave ou
transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte.

Por último, o crime de lenocínio (Art.º 169.º do CP) visa punir o agente que fomente,
favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa (com 18 ou mais anos) de prostituição,

36
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

praticando tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa, prevendo-se, neste


caso, uma pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

Se o agente cometer o crime por meio de violência ou ameaça grave, através de ardil ou
manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela
ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se
de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, será punido
com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Importa salientar que o tipo legal visa proteger a liberdade sexual da vítima, punindo “o
aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente,
não é reconhecida como plenamente lícita” (ac. TRC de 10.07.2013).

O crime de lenocínio é um crime público, estando sujeito à agravação constante do Art.º


177.º CP, relativa à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime (com exceção da situação do
Art. 169.º, n.º 2, al. c) do CP).

Por último, este crime distingue-se do crime de lenocínio de menores (Art.º 175.º CP), por
causa das idades das vítimas – maioridade ou menoridade.

c. Crimes contra a autodeterminação sexual

Antes de se proceder à explicação dos crimes contra a autodeterminação sexual é


importante explicar que o legislador, não raras vezes, estabeleceu uma proteção escalonada
em razão da idade.

No abuso sexual de crianças (Art.º 171.º do CP), a faixa etária protegida são os menores
de 14 anos. Por outro lado, no crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º 173.º do CP)
confere-se proteção aos menores entre os 14 e os 16 anos, relativamente a atos sexuais de
relevo. Nos crimes de abuso sexual de menores dependentes (Art.º 172.º do CP) e recurso
a prostituição de menores (Art.º 174.º do CP) atribui-se proteção a menores com idades
compreendidas entre os 14 e os 18 anos.

Se nas duas últimas formulações (Arts.º 172.º a 174.º do CP) existe um limite temporal
mínimo (14 anos) e diferentes limites superiores (16 e 18 anos), no primeiro crime elencado
(abuso sexual de crianças) não se vislumbra limite mínimo – sendo que existe um limite
superior (14 anos)17. 17. Para acompanhar tal explicação
atentar no ac. TRP de 04.06.2014.

37
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

Por último, os crimes de lenocínio de menores (Art.º 175.º do CP), pornografia de menores
(Art.º 176.º do CP) e aliciamento de menores para fins sexuais (Art.º176.º-A do CP)
conferem proteção a todos os menores de idade (entre 0 e 18 anos).

Em todos os tipos legais desta secção (crimes contra a autodeterminação sexual) a tentativa
é punível, com exceção do aliciamento de menores para fins sexuais (Art.º 176.º-A do CP).

i. Abuso sexual de crianças

1. Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra
pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de
partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3. Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º; ou
b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto
pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4. Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de
prisão de seis meses a cinco anos.
5. A tentativa é punível.

O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo Art.º 171.º do CP, pressupõe
“o contacto sexual de uma criança com um adulto ou com uma criança mais velha, que
tem, em regra, pelo menos uma diferença de cinco anos e uma diferença significativa no
desenvolvimento cognitivo-afetivo” (Ribeiro, 2014, p. 25).

Neste tipo legal, o bem jurídico protegido é a autodeterminação sexual, associada ao livre
desenvolvimento da personalidade do menor no contexto sexual. Com efeito, as condutas
do agente, ainda que não tenha recorrido a meios de constrangimento, são punidas dada
a vulnerabilidade, dependência da vítima e a falta de capacidade para expressar, de forma
consciente e livre a sua vontade (Cunha, 2003).

Deste modo, “o consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da
responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural,
que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender
as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o

38
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspeto do livre desenvolvimento da


personalidade na esfera sexual” (ac. do STJ de 22.05.2013).

Este crime comporta várias ações, dispersas pelos distintos números do Art.º 171.º do CP,
nomeadamente praticar ou levar a que outra pessoa pratique ato sexual de relevo (n.º 1) ou ato
sexual de relevo qualificado (n.º 2)18 com ou em menor de 14 anos, praticar os atos previstos
no Art. 170.º do CP (n.º 3 al. a)), atuar por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto
pornográfico (n.º 3 al. b)) ou aliciar para assistir a abusos ou atividades sexuais (n.º3 al. c)).

Seguindo o disposto nos crimes abordados anteriormente, também para o abuso sexual de
crianças se preveem as agravações dispostas no Art.º 177.º do CP, nomeadamente as relativas
à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à hipótese do agente ser portador de uma
infeção sexualmente transmissível, ao facto de o crime ter sido cometido conjuntamente
com duas ou mais pessoas, à possibilidade de, pela perpetração do crime, resultar gravidez,
ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente patogénico que crie perigo para a
vida, suicídio ou morte da vítima.

ii. Abuso sexual de menores dependentes

1. Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.os 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a
menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com
pena de prisão de um a oito anos.
2. Quem praticar ato descrito nas alíneas do n.º 3 do artigo anterior, relativamente a menor
compreendido no número anterior deste artigo e nas condições aí descritas, é punido com pena de
prisão até um ano.
3. Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de
prisão até 5 anos.
4. A tentativa é punível.

O crime de abuso sexual de menores dependentes (Art.º 172.º do CP) contempla cinco
modalidades de ação: a prática de ato sexual de relevo, a prática de ato sexual de relevo
qualificado, a prática, perante o menor, de atos de carácter exibicionista ou constrangendo-o
a contacto de natureza sexual, a atuação sobre o jovem por meio de conversa, escrito,
espetáculo ou objeto pornográfico ou o aliciamento de jovem com vista a assistir a
abusos sexuais ou a atividades sexuais. As penas de prisão previstas diferem consoante o
comportamento exercido, sendo a moldura penal mais baixa de 1 mês a 1 ano de prisão e a
mais elevada de 1 a 8 anos de prisão.
18. V. Glossário

39
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

Este crime, que visa proteger a autodeterminação sexual de menores entre os 14 e os 18


anos, confiados a outrem para educação ou assistência é, devido à especial relação de
dependência (entre agente e vítima), alvo de uma tutela particular.

Todavia, a redação deste tipo legal encerra a expressão “confiado para educação ou
assistência”, que não gera um entendimento unânime. Ainda assim, poder-se-á considerar
que os agentes, neste caso, sejam os que exercem as responsabilidades parentais, pese
embora sejam as relações de facto19 ou seja, a confiança a um terceiro (familiar ou não) que
levantam maiores problemas de concretização.

Com efeito, neste tipo legal exige-se a verificação de um dever especial, relacionado com
a relação de dependência (Sousa, 2015), podendo estar a falar-se dos progenitores, outros
familiares, tutores, assim como todas aquelas pessoas a quem o menor possa ser entregue
para educação ou assistência, desde que não haja internamento do menor (neste caso,
aplicar-se-ia o Art.º 166.º do CP). Mais ainda é de salientar que o (eventual) consentimento
prestado pelo jovem, entre os 14 e 18 anos, se torna totalmente irrelevante, “face ao
ascendente de uma das partes sobre a outra” (Sousa, 2015, p. 22; Albuquerque, 2008).

O crime de abuso sexual de menores dependentes está sujeito às agravações previstas no


Art.º 177.º do CP, nomeadamente as relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime,
à hipótese do agente ser portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto de o
crime ter sido cometido conjuntamente com duas ou mais pessoas, à possibilidade de, pela
perpetração do crime, resultar gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de
agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.

Em suma, o crime de abuso sexual de menores dependentes pode ser cometido contra um
jovem, entre os 14 e os 18 anos. Este acarreta várias dificuldades interpretativas, pelo que se
afigura de extrema importância a menção de que o crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º
173.º CP) é aplicado, não raras vezes, pela jurisprudência, em detrimento do agora analisado.

iii. Atos sexuais com adolescentes

1. Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja
praticado por este com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de
partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A tentativa é punível.

19. Atentar no ac. do TRC de 21.05.2014

40
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

No crime de atos sexuais com adolescentes, previsto e punível pelo Art.º 173.º do CP,
criminalizam-se os atos sexuais de relevo, sendo que estes têm de envolver um agente maior
(isto é, com 18 ou mais anos) e um jovem entre os 14 e 16 anos, sendo que o primeiro abusa
da inexperiência do segundo. Para este crime a pena de prisão prevista é de 1 mês até 2 anos.

Se os atos sexuais de relevo consistirem em cópula, coito oral, coito anal ou introdução
vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, a pena de prisão prevista de 1 mês até 3 anos.

A génese deste tipo legal emerge da assimetria de poder entre o agente e a vítima, estando
aquela intrinsecamente conexionada com múltiplos aspetos de que são exemplo a diferença de
idades, a maturidade ou a experiência (Sousa, 2015). Deste modo, o legislador parte da premissa
de que “o jovem, apesar de ter mais de 14 anos, não possui condições para formar livremente a
sua vontade no domínio sexual, porque o agente abusa da sua inexperiência” (Sousa, 2015, p. 31).
A concretização do conceito de “inexperiência” poderá gerar algumas dúvidas, mas tem sido
entendimento que não se enquadrará aqui apenas a inexperiência sexual20.

O crime de atos sexuais com adolescentes está sujeito às agravações previstas no Art.º
177.º do CP, nomeadamente as relativas à relação entre a vítima e o/a autor/a do crime, à
hipótese do agente ser portador de uma infeção sexualmente transmissível, ao facto de o
crime ter sido cometido conjuntamente com duas ou mais pessoas, à possibilidade de, pela
perpetração do crime, resultar gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de
agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.

Tal como já foi abordado anteriormente, importa relembrar que este é o único crime contra
a liberdade e autodeterminação sexual relativo a menores que reveste natureza semipública:
ou seja, o seu procedimento criminal depende de queixa, salvo se dele resultar suicídio ou a
morte do jovem (Art.º 178.º, n.º 3 do CP).

iv. Recurso à prostituição de menores

1. Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 18 anos, mediante pagamento ou
outra contrapartida, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes
do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A tentativa é punível.
20. Certo é que o próprio preceito
legal abandonou a expressão
“inexperiência sexual”, passando
a figurar única e exclusivamente
O crime de recurso à prostituição de menores (Art.º 174.º do CP) é um ilícito criminal o termo inexperiência. Todavia,
existem diversas opiniões díspares.

41
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

conexionado com o favorecimento da prostituição de crianças e jovens. Enquadrável nos crimes


contra a autodeterminação sexual do menor, o legislador pretendeu criminalizar o cliente (agente
com 18 ou mais anos), como forma de proteção do menor que tenha entre os 14 e os 18 anos21.

Deste modo o agente que praticar ato sexual de relevo com um menor entre 14 e 18 anos,
mediante pagamento ou outra contrapartida é punido com pena de prisão de 1 mês até 2 anos.
Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de 1 mês a 3 anos.

A este tipo legal poderão ser aplicadas as agravações do Art.º 177.º do CP, nomeadamente
as relativas à relação entre o agente e o/a menor, à hipótese de o agente ser portador de
uma infeção sexualmente transmissível, à possibilidade de o crime ter sido cometido
conjuntamente, com duas ou mais pessoas, à eventualidade de existirem resultados da
perpetração do crime (gravidez, ofensa à integridade física grave ou transmissão de agente
patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte) ou relativas à idade do menor.

v. Lenocínio de menores

1. Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor ou aliciar menor para
esse fim é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. Se o agente cometer o crime previsto no número anterior:
a) Por meio de violência ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de
dependência hierárquica, económica ou de trabalho;
d) Atuando profissionalmente ou com intenção lucrativa; ou
e) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima;
é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

O crime de lenocínio de menores (Art.º 175.º do CP) visa criminalizar o favorecimento da


prostituição. Para que o agente preencha o tipo de ilícito, este tem de fomentar, favorecer ou facilitar
o exercício da prostituição de um menor (entre os 0 e os 18 anos) ou aliciá-lo para esse fim.

Se um agente praticar um dos atos anteriormente referidos poderá ser punido com pena
de prisão de 1 a 8 anos. Caso seja utilizada violência ou ameaça grave, ardil ou manobra
fraudulenta, abuso de autoridade, ou se o agente atuar profissionalmente ou com intenção
lucrativa, se se aproveitar da incapacidade psíquica ou da especial vulnerabilidade do menor,
21. Se for menor de 14 anos, o ilícito
enquadrar-se-á no crime de abuso será aplicada pena de prisão de 2 a 10 anos.
sexual de crianças.

42
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

Embora pareça clara a interpretação dos conceitos de fomento, favorecimento, e facilitação,


é importante esclarecer que enquanto o primeiro (fomento) incide sobre a determinação da
vontade do menor à prática da prostituição, os restantes centram-se na disponibilização de
meios para o seu exercício22.

Importa igualmente atentar no Art.º 177.º do CP, especificamente para as agravações


previstas sobre a relação entre agente e menor (não aplicável quando o crime de lenocínio
tiver sido perpetrado com abuso de autoridade – Art.º 175.º, n.º 2, al. c) do CP), o facto de
o crime ter sido cometido conjuntamente, com duas ou mais pessoas ou a idade da vítima,
menor de 14 ou 16 anos.

vi. Pornografia de menores

1. Quem:
a) Utilizar menor em espetáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu
suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por
qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir,
importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2. Quem praticar os atos descritos no número anterior profissionalmente ou com intenção lucrativa é
punido com pena de prisão de um a oito anos.
3. Quem praticar os atos descritos nas alíneas a) e b) do n.º 1 recorrendo a violência ou ameaça grave é
punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
4. Quem praticar os atos descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com
representação realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.
5. Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena
de prisão até 2 anos.
6. Quem, presencialmente ou através de sistema informático ou qualquer outro meio, sendo maior,
assistir ou facilitar acesso a espetáculo pornográfico envolvendo a participação de menores de 16
anos de idade é punido com pena de prisão até 3 anos.
7. Quem praticar os atos descritos nos n.os 5 e 6 com intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.
8. A tentativa é punível.

O crime de pornografia de menores (Art.º 176.º do CP) criminaliza a utilização de menor


(entre os 0 e 18 anos) em espetáculo pornográfico ou o seu aliciamento para esse fim. De
facto, todo o agente que utiliza ou alicia menor para participar em fotografia, filme ou
22. V. ac. do STJ de 14.05.2009.

43
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

gravação pornográficos, independentemente do seu suporte (ex.º: digital, em papel), verá


o seu comportamento enquadrado neste tipo legal. Mais ainda, são criminalizados por
este tipo legal a produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição ou
cedência de material pornográfico a qualquer título ou por qualquer meio, assim como a
aquisição ou detenção de tais materiais com o propósito de os distribuir, importar, exportar,
divulgar, exibir ou ceder (Feitor, 2013). Para estes comportamentos o legislador previu
a pena de prisão de 1 a 5 anos; todavia, quando alguns desses comportamentos forem
cometidos com intenção lucrativa ou de modo profissional, ou com recurso a violência ou
ameaça grave, a pena de prisão aplicada será de 1 até 8 anos.

Importa salientar que, recentemente, foi criminalizado o comportamento do agente que,


intencionalmente, adquire, detém, acede, obtém ou facilita o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio a materiais como fotografias, filmes ou gravações
pornográficas (pena de prisão até 2 anos) (Feitor, 2013; Patto, 2010; Alfaiate, 2009)23. Ademais,
também o agente com 18 ou mais anos que, presencialmente ou através de sistema informático
ou qualquer outro meio, assistir ou facilitar acesso a espetáculo pornográfico envolvendo a
participação de menores de 16 anos de idade é punido com pena de prisão de 1 mês até 3 anos.

Este crime está sujeito às agravações patentes no Art.º 177.º do CP, relativas à relação entre
agente e vítima e ao facto do crime ser cometido, conjuntamente por duas ou mais pessoas.

vii. Aliciamento de menores para fins sexuais


23. Urge evidenciar que alguns
comportamentos não denotam
dificuldade de enquadramento – o
ac. TRC de 02.04.2014, conclui que
1. Quem, sendo maior, por meio de tecnologias de informação e de comunicação, aliciar menor, para
“preenche o crime de pornografia encontro visando a prática de quaisquer dos atos compreendidos nos n.os 1 e 2 do artigo 171.º e nas
de menores o arguido que guarda
no seu computador imagens de alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo anterior, é punido com pena de prisão até 1 ano.
crianças do sexo masculino, nuas 2. Se esse aliciamento for seguido de atos materiais conducentes ao encontro, o agente é punido com
e em poses de exibição dos órgãos
sexuais”. Porém, outros poderão pena de prisão até 2 anos.
levantar sérias dificuldades.
Segundo o ac. TRC de 11.11.2015,
“não integra o conceito normativo
de detenção (…) o acesso do agente
a um site de pornografia infantil, O ilícito penal do art. 176.º-A do CP – aliciamento de menores para fins sexuais – foi,
com subsequente ampliação e
visualização de uma fotografia recentemente, contemplado pelo legislador pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto (39.ª
de uma criança do sexo feminino
exibindo a sua vagina, e de uma alteração ao Código Penal). Deste modo, cumprindo os ensejos da Diretiva 2011/93/
fotografia de outra menor em ato
de sexo oral”. Todavia, dadas as
EU, passam a ser “criminalizadas novas formas de abuso e de exploração sexual facilitadas
recentes alterações legislativas,
em princípio, situações como
pela utilização das tecnologias da informação, como por exemplo o aliciamento de menor
as agora relatadas passarão a através da internet, os espetáculos pornográficos em tempo real na internet, ou o acesso, com
constituir o crime de pornografia
de menores. conhecimento de causa e intencionalidade, à pornografia infantil alojada em determinados
24. Proposta de Lei n.º 305/XII, da
Presidência do Conselho de sítios Internet”24.
Ministros – exposição de motivos.

44
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

Neste caso, o agente (que tem de ter 18 ou mais anos) que, por intermédio do uso das
tecnologias de informação e de comunicação, alicie menor (até aos 18 anos) para encontro
que vise a prática de atos sexuais de relevo (simples ou qualificados) ou para a utilização do
menor em espetáculo pornográfico, fotografia, filme ou gravação pornográfica, é punido
com pena de prisão de 1 mês até 1 ano. No entanto, as penas previstas para este crime
são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido
conjuntamente por duas ou mais pessoas.

d. Outros fenómenos que poderão estar associados

i. Tráfico de pessoas e turismo sexual infantil

1. Contextualização do fenómeno de Tráfico de Seres


Humanos (TSH)25

O crime de tráfico de pessoas constitui um grave atentado à dignidade e à autodeterminação


humana. Pela sua natureza oculta, sigilosa e clandestina, este invisibiliza forçosamente a
existência das suas vítimas.

O TSH é um fenómeno que atinge milhares de pessoas em todo o mundo. Muito associado,
durante os anos 90, a situações de prostituição forçada e exploração sexual, é hoje
interpretado de uma forma mais abrangente, no qual se incluem outros tipos de exploração.
O TSH sustenta-se no aproveitamento das fragilidades e da vulnerabilidade das suas vítimas,
não sendo um fenómeno exclusivo de um determinado setor populacional, ou de uma
região geográfica específica. Ainda que o termo “vulnerabilidade” possa ser interpretado de
formas diferentes, por entre a legislação de vários países, é possível considerar que tal, em
regra, se relaciona com o ambiente onde as potenciais vítimas residem e também a fatores
pessoais que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa se tornar vítima de TSH.

2. TSH vs. auxílio à imigração ilegal


25. Falar-se-á de “tráfico de pessoas”
sempre que for feita referência ao
Importa distinguir, ainda, os ilícitos de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal preceito legal do art. 160.º do CP e
de tráfico de seres humanos (TSH)
(smulling). Esta distinção reveste importância prática dado que não só os “elementos para abordar o fenómeno na sua
generalidade.

45
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

constitutivos dos diferentes crimes são diferentes”, como também “a resposta exigida às
autoridades irá variar, dependendo do crime em causa” (Costa, 2011, p.8). De forma breve,
o crime de auxílio à imigração ilegal26 “envolve geralmente o consentimento das pessoas que
são objeto dessa introdução clandestina” e o smulling necessita que se verifique o critério da
transnacionalidade, pois facilita-se a “passagem ilegal por uma fronteira e a sua entrada ilegal
noutro país” e denota uma relação entre o facilitador e o imigrante, na medida em que o
primeiro não tem “intenção de explorar a pessoa objeto de introdução clandestina após a sua
chegada” (Costa, 2011, p. 10).

Tráfico de Pessoas Tráfico de Pessoas Auxílio à imigração ilegal


(adultos) (menores) (smulling)
Idade da vítima Todos os maiores de 18 anos Todos os menores de 18 anos Irrelevante
Elemento Subjetivo Dolo Dolo Dolo
Elemento Material Condutas descritas Condutas descritas Facilitação da entrada ilegal
Meios Objetivo de exploração Objetivo: benefícios financeiros
Objetivo de exploração ou outros benefícios materiais
Consentimento Irrelevante, sempre que Irrelevante, independentemente A pessoa consente na ação
forem usados os meios dos meios utilizados
previstos no tipo
Transnacionalidade Não exigido Não exigido Exigido
Envolvimento de Não exigido Não exigido Não exigido
um grupo de crime
organizado

Tabela - Distinção entre os crimes de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal (smulling)

Os casos de TSH importam a prática de outras condutas, como casamento forçado,


aborto forçado, extorsão, injúrias, violação, abuso sexual de crianças, ofensa à integridade
física simples ou qualificada, homicídio ou rapto, quer na preparação quer na sua
execução. Segundo as Nações Unidas (2009), quando existam provas, dever-se-á proceder
criminalmente contra os agentes perpetradores do crime de tráfico de pessoas. Todavia,
os demais crimes que sejam cometidos de forma conexa ao tráfico de pessoas deverão
constituir processos autónomos, para aumentar as hipóteses de obter uma condenação.

3. Caracterização e abordagem ao tipo legal

O crime de tráfico de pessoas (Art.º 160.º do CP), enquadrado nos crimes contra a liberdade
26. Art. 183.º da Lei n.º 23/2007 de 4 de
pessoal, pressupõe determinadas ações como o recrutamento, aliciamento, transporte,
julho – Regime Jurídico de Entrada, transferência, alojamento ou acolhimento de uma pessoa (Costa, 2011; Nações Unidas, 2009).
Permanência, Saída e Afastamento
de Estrangeiros do Território
Nacional.

46
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

Tais ações deverão ser acompanhadas pela utilização de pelo menos um meio, como por exemplo
força, ameaça, coação, sequestro, fraude, engano ou abuso de autoridade (Costa, 2011).

A existência de consentimento da vítima não exclui a ilicitude dos atos praticados, porque
não releva, tal como previsto no Art.º 160.º n.º 8 do CP.

Ainda que existam diferentes ações, meios, e agentes, para estarmos perante uma situação
de TSH é necessária a verificação da existência do objetivo de exploração, seja esta de
exploração sexual, exploração laboral, com vista à mendicidade, escravidão, extração de
órgãos ou à prática de outras atividades criminosas.

Nos termos do Art.º 160.º n.º 1 do CP, a pena de prisão prevista para esta prática é de 3 a 10 anos.

Canalizando a atenção para as crianças e jovens que poderão ser vítimas de TSH, é
importante lembrar que estes são “alvo preferencial de tráfico dada a sua inerente fragilidade,
o que faz com que sejam mais fáceis de manipular e podem ser exploradas de formas mais
variadas como na indústria do sexo, nos mercados de trabalho ilegais, para mendicidade e
furto de carteiras, como «escravos» domésticos e para remoção de órgãos” (Costa, 2011, p. 14).

No caso do tráfico de crianças e jovens, a configuração do crime exige apenas a verificação de um


ou mais elementos da ação visando um dos objetivos de exploração, dado que não é necessário
o emprego de nenhum meio que envolva coação, fraude, engano ou outras formas de violência.
Esta situação acontece na medida em que o grau de desenvolvimento físico e intelectual das
crianças e jovens ainda não atingiu a sua plenitude e os mesmos são vítimas especialmente
vulneráveis, face a uma situação de exploração, mesmo que não haja violência ou engano. A pena
de prisão prevista é também de 3 a 10 anos, nos termos do Art.º 160.º n.º 2 do CP.

Recrutamento Exploração sexual Violência

Aliciamento Rapto
Exploração do trabalho
(menores) qualificado

Ameaça grave
Tráfico de Pessoas

Tráfico de Pessoas

Transporte
Mendicidade
Ardil
(menores)

Alojamento
Menor

Escravidão = Manobra fraudulenta =


+

Acolhimento
Abuso de autoridade
Extração de orgãos
Entrega
Incapacidade psíquica
Oferta Adoção
Especial vulnerabilidade

Aceitação Exploração de outras atividades Consentimento da pessoa que controla

Figura 1 - Explicação acerca das condutas, objetivos e meios constituintes do crime de tráfico de pessoas, sempre que as vítimas são menores

47
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

Quando se tratem de vítimas menores, a pena poderá ser agravada para 3 a 12 anos de
prisão, nos termos do Art.º 160.º n.º 3 do CP se, para a execução do crime, for utilizado um
dos seguintes meios27: violência, ameaça grave, rapto, ardil/manobra fraudulenta, abuso de
autoridade, ou aproveitamento de incapacidade física ou especial vulnerabilidade da vítima,
ou quando o agente tenha atuação profissional ou aja com intenção lucrativa. Mais ainda,
estas penas de prisão previstas poderão agravar-se de um terço nos seus limites mínimo
e máximo se o crime tiver sido cometido com especial violência, se do crime resultarem
danos particularmente graves para a vítima28, se o delito tiver sido praticado por funcionário
no exercício das suas funções, no quadro de uma associação criminosa ou, ainda, se tiver
como resultado o suicídio da vítima.

Por último, e nos termos deste mesmo ilícito, será ainda punido quem, mediante pagamento
ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar
consentimento na sua adoção – trata-se do tráfico de menor para adoção, sendo que se
exige, neste caso, a presença de uma contrapartida patrimonial (pena de 1 a 5 anos de prisão,
nos termos do Art.º 160.º n.º 5 do CP); quem, tendo conhecimento da prática de crime,
utilizar os serviços ou órgãos da vítima (1 a 5 anos de prisão, nos termos do Art.º 160.º n.º
6 do CP); e quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de
viagem de pessoa vítima de crime (Art.º 160.º n.º 7 do CP).

O crime de tráfico de pessoas está inserido no conceito de “criminalidade altamente


organizada” (Simões, 2009) e afigura-se como crime público, dado que não existe qualquer
menção à dependência de queixa e/ou acusação particular no texto legal.

4. A especificidade do TSH de crianças e jovens com vista à


exploração sexual

O tráfico de crianças e jovens para fins de exploração sexual, enquadrável no conceito de


criminalidade violenta, visa a deslocação de crianças e jovens dos seus meios de origem,
por rapto, sequestro, violência, ameaça grave, abuso de autoridade e/ou compra e venda,
para outras regiões geográficas, com vista à sua exploração sexual, designadamente pela
prostituição e pela produção de material pornográfico.

27.
28.
V. Glossário
Por esta expressão entende-
As formas de recrutamento mais utilizadas com a finalidade de angariar pessoas para
se “que a intensidade dos
atos provocados na vítima são
a exploração sexual, para além das falsas propostas de trabalho, são as promessas de
suscetíveis de provocar lesões participação em concursos de beleza, de trabalhos como modelo, de férias a baixo custo, de
graves, duradouras ou até que
resultem em incapacidades estudos em programas internacionais ou de serviços de casamento.
permanentes” (Silva, 2013).

48
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

A exploração sexual pode ser entendida como qualquer abuso da vulnerabilidade de outra
pessoa, mediante abuso de poder ou de confiança, para fins sexuais, incluindo, mas não
exclusivamente, a obtenção de benefícios financeiros. Pode trazer diversas consequências
às suas vítimas, tanto a nível físico como psicológico, tendo em conta que envolve contatos
sexuais muitas vezes sem proteção, falta de cuidados de higiene e de saúde, ameaças, agressões
físicas, falta de alimentação adequada, permanência em locais insalubres, entre outros.

A exploração sexual praticada contra menores pode assumir diferentes formas, nomeadamente:

• Exploração da prostituição: a vítima é induzida ou forçada a prostituir-se contra a


sua vontade, não ficando com o dinheiro que recebe em contrapartida, ou ficando
apenas com uma parte.
• Turismo sexual infantil: é uma atividade criminosa que visa o acesso de crianças ou
jovens através de deslocações de veraneio de um/a adulto/a do seu local de residência
para outro local, dentro ou fora do seu país, com vista à realização de atividades
sexuais com aqueles.
• Pornografia: a vítima é coagida a participar em filmes, fotografias ou outros materiais
com conteúdos pornográficos.
• Outras práticas sexuais: qualquer ato que envolva forçar ou coagir a vítima à prática de atos
sexuais ou à exposição da sua sexualidade contra a sua vontade ou recorrendo a fraude.

5. Indicadores da existência de TSH

Ainda que o fenómeno do TSH se paute pelo sigilo, existem alguns indicadores que poderão
ajudar a que se perceba se se está perante uma potencial vítima:

Indicadores Indicadores do Tráfico para Indicadores do Tráfico de


Gerais Exploração Sexual Crianças e Jovens

- Mostrar sinais de que os seus - Serem transportadas de um local para - Não ter contato com a sua família ou
movimentos estão a ser controlados; o outro e serem obrigadas a trabalhar em com as pessoas que detém legalmente
- Sentir que não podem sair ou deixar a diferentes bordéis ou casas de alterne; a sua guarda;
situação em que se encontram; - Ter tatuagens ou outros indicativos de - Parecerem intimidadas e adotar
- Demonstrar medo e ansiedade quando “propriedade” dos exploradores; comportamentos incompatíveis com a
contatados; - Morar ou viajar com outras pessoas sua faixa etária;
- Estar a ser sujeito à violência ou que não falam a mesma língua; - Não ter amigos da sua faixa etária;
ameaça de violência contra ela própria, - Ter poucas peças de roupa; - Não frequentar a escola;
sua família ou entes próximos; - Saber falar apenas palavras ligadas ao - Não ter tempo ou autorização para
- Apresentar lesões que indiquem ser trabalho sexual na língua local; brincar e jogar com outras crianças;
resultado de uma agressão; - Não ter nenhum dinheiro consigo; - Viver em habitações precárias;
- Não confiar nas autoridades; - Serem submetidas a práticas sexuais sem - Viver com um grupo de crianças e

49
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
6. Enquadramento jurídico atual

- Sofrer ameaças de ser entregue às proteção ou com emprego de violência; jovens com apenas um guardião legal;
autoridades; - Trabalharem em bordéis com - Realizar as refeições separadas de
- Ter o seu passaporte e outros propagandas que ofereçam mulheres de outros membros da família ou do grupo
documentos de identificação em posse diferentes etnias e nacionalidades; de pertença;
de outra pessoa; - Não demonstrar sentimentos para os - Comer apenas restos;
- Ter documentos de viagem ou de clientes que atendem. - Realizar trabalhos incompatíveis com a
identificação falsos; sua idade e estrutura física;
- Desconhecer a língua local e a morada - Viajar desacompanhadas ou com um
de onde está a viver e/ou a trabalhar; grupo de pessoas que não são os seus
- Ter terceiras pessoas que falem por si familiares;
quando lhe fazem perguntas diretamente; - Usar roupas incompatíveis com a sua
- Ser disciplinada através de castigos idade e o grau de desenvolvimento
corporais; (por exemplo, roupas utilizadas por
- Receber pouco ou nenhum pagamento trabalhadores do sexo).
pelo trabalho;
- Viver/dormir em acomodações precárias;
- Não ter acesso a cuidados de saúde
bem como aos seus pertences pessoais;
- Não poder, livremente, contatar amigos
e familiares;
- Encontrar-se numa situação de
dependência de outras pessoas;
- Ter agido com base em mentiras ou
situações enganosas que lhe foram
transmitidas;
- Ter tido as despesas de viagem pagas
por intermediários, aos quais devem
reembolsar através do trabalho ou de
outros serviços.

Tabela 2 - Indicadores de Tráfico de Seres Humanos (APAV, 2013)

Estes indicadores poderão ser facilitadores para identificar uma situação de tráfico.
Frequentemente podemos deparar-nos com outros crimes associados ao tráfico de seres
humanos, tornando-se difícil identificar a situação de tráfico propriamente dita.

• O país de origem - as vítimas provenientes de países em vias de desenvolvimento ou de


países em transição apresentam uma maior vulnerabilidade, uma vez que a busca por
uma vida melhor as poderá tornar mais suscetíveis às redes de tráfico (Costa, 2011).
• A apresentação, nas fronteiras, de documento de identificação/viagem de uma outra pessoa
• O local de permanência até à data da denúncia às autoridades - se tal consistir
num estabelecimento de diversão noturna, uma agência de acompanhantes, uma
exploração agrícola ou uma unidade fabril onde as pessoas aufiram baixos salários e
permaneçam em condições de higiene e segurança precárias, poder-se-á suspeitar de
potencial exploração (Costa, 2011).
• O transporte, especialmente se realizado sem condições de higiene e/ou conforto ou,
por outro lado, com o controlo de alguém (Costa, 2011).

50
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
6. Enquadramento jurídico atual

Todavia, não deverá encarar-se a presença destes indicadores como uma fatalidade que
afirma a presença de TSH. Com efeito, e à medida que os meios acessíveis aos exploradores
se vão refinando, o próprio fenómeno poderá ficar mais oculto, uma vez que as vítimas
são transportadas em condições ditas comuns (ex.º: comboio, avião), tendo em sua posse
documentos de identificação legais, e fazendo percursos que, além dos países de origem
e destino, envolvem de igual modo rotas e países de passagem, que visam despistar as
autoridades. Desta forma, não existe uma “imagem-padrão” das vítimas de TSH nem um
comportamento padronizado dos agentes na prática destes atos.

Não obstante, por todos os motivos expostos, conclui-se que a vítima de TSH é
especialmente vulnerável, exigindo, portanto, de todos os que com elas intervêm, um
especial dever de cuidado29.

ii. Casamento forçado

O crime de casamento forçado (Art.º 154.º-B do CP) foi recentemente introduzido no


nosso ordenamento jurídico, dando expressão às imposições da Convenção de Istambul
do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e
a Violência Doméstica. No essencial, esta visa a “criação de um quadro normativo global,
pensado de forma holística para a prevenção e proteção” às mulheres vítimas de violência
(APAV, 2014, p. 5).

Nos termos do Art.º 37.º daquela Convenção, exige-se que os “Estados signatários adotem
as medidas necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem forçar um adulto
ou uma criança a contrair matrimónio, bem como de quem atrair uma criança ou um adulto
para o território de outra Parte ou de outro Estado que não aquele onde residam, com o
intuito de os forçar a contrair matrimónio” (APAV, 2014, pp. 9-10). Neste conspecto, o nosso
legislador consagrou tal criminalização, em diferentes artigos, punindo quer o casamento
forçado, quer os atos preparatórios a este30.

Cumpre expressar que a pena prevista para o crime de casamento forçado, que é de natureza
pública, será agravada, nos termos do Art.º 155.º do CP, mediante a verificação de certos
condicionalismos.
29. A título de exemplo deve salientar-
se a Convenção das Nações Unidas
contra a Criminalidade Organizada
Transnacional e o Protocolo contra
o Tráfico de Pessoas.
30. Arts. 154.º-B e 154.º-C, do CP –
aditados pela Lei n.º 83/2015, de 05
de agosto (38.ª alteração ao CP)

51
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal

7. Prevalência dos atos de violência sexual contra


crianças e jovens em Portugal
Após uma análise geral do fenómeno da violência sexual contra crianças e jovens e da sua
criminalização, importa agora perceber a sua expressão em Portugal.

Através da leitura dos Relatórios Anuais de Segurança Interna de 2012, 2013, 2014 e 2015,
podemos verificar que em nenhum destes períodos os crimes sexuais, contra adultos ou
crianças e jovens, foram dos crimes mais registados (isto é, com um peso igual ou superior a
2% no total das participações registadas nos Órgãos de Polícia Criminal).

Não obstante, tendo em consideração que os crimes que aqui se tratam consubstanciam o
ataque à liberdade e autodeterminação sexual de crianças e jovens, e que este fenómeno é
gerador de preocupação entre a sociedade, afigura-se necessário o contínuo investimento
em programas específicos de apoio e, sobretudo, de prevenção de futuras ocorrências, sendo
que, para ambos os casos, se torna primordial a análise da prevalência destes crimes.

2010 2011 2012 2013 2014 2015

Abuso Sexual de Crianças / adolescentes / 778 784 779 859 1013 1044
menores dependentes

Lenocínio e Pornografia de Menores 66 91 105 102 144 134

TOTAL 844 875 884 961 1157 1178

Tabela 3 - Dados relativos à prevalência de atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal, Crimes registados pelas autoridades
policiais, por tipo de crime, http://www.siej.dgpj.mj.pt, consultado em 23 de janeiro de 2017

Assim, e iniciando pelo total de crimes reportados, tem existido uma constância entre os
valores dos anos 2010 a 2013, ocorrendo apenas pontuais aumentos. Todavia, na passagem de
2013 para 2014 verifica-se um aumento de 196 inquéritos iniciados, para um total de 1157.

O crime de abuso sexual de crianças tem totalizado entre 88,6% dos casos reportados em
2015. A explicar a dominância deste crime em concreto, poderá estar presente o facto de
abranger uma extensa faixa etária, entre os 0 e os 14 anos, exclusive, e que criminaliza, no
seu preceito legal, um conjunto amplo de atos ilícitos.

Com menos representatividade encontramos os crimes de lenocínio e pornografia de


menores que entre 2010 e 2015 apresentam registos em subida, sendo em 2015 mais do

52
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal

dobro do que os registados em 2010.

No ano de 2015 a tendência é de manutenção, com uma ligeira diminuição dos casos de abuso
sexual de crianças, atos sexuais com adolescentes e abuso sexual de menor dependente. As
estatísticas oficiais da justiça relatam a existência de 1044 inquéritos iniciados.

a. Cifras negras

Todavia, estas estatísticas representam os crimes que são comunicados aos Órgãos de Polícia
Criminal e Autoridades Judiciárias, e que na verdade correspondem a uma pequena parte
dos crimes sexuais que realmente aconteceram. Ainda que para a realidade portuguesa
não existam dados que indiquem qual é a diferença entre os crimes revelados e os que
efetivamente aconteceram, estima-se que, em geral, apenas cerca de um terço dos crimes
sexuais perpetrados contra crianças ou jovens sejam denunciados (Darkness to Light, 2015).

A este fenómeno da discrepância entre os factos que aconteceram e os relatados, a Criminologia


dá o nome de “cifras negras” do crime (do inglês dark figures of crime). O esquema que se segue
pode ajudar a perceber não só este fenómeno como a diferença entre os crimes que aconteceram
e, em última instância, aqueles sobre os quais existiu uma condenação.

Crimes que acontecem

Crimes relatados em
inquéritos de vitimação

Crimes reportados e
registados na polícia

Acusações

Condenações

Figura 2 - Pirâmide invertida dos crimes existentes vs. condenações

Assim, no topo da pirâmide invertida estão os crimes que efetivamente aconteceram,

53
Parte I - Compreender Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal

cuja quantidade dificilmente é mensurável na sua totalidade. De seguida, encontramos os


crimes reportados em inquéritos de vitimação31, e só depois desta fase da pirâmide é que
encontramos os crimes que foram reportados às autoridades. Todavia, por várias razões nem
todos se convertem em acusações formais (ex.º: falta de provas, incapacidade de identificar o/a
autor/a do crime, entre outros); e, destes, apenas uma parte resulta em condenações efetivas,
independentemente da pena (ao contrário de outros, que resultam na absolvição dos acusados).

De certa forma poderá afirmar-se que as razões que levam uma criança ou jovem a não
revelar os crimes sexuais de que terá sido vítima32 se cruzam com os motivos que, uma vez
revelado o abuso a uma pessoa adulta da sua confiança, o mesmo não chegue à polícia.

De acordo com Ullman (2007), o tempo que passa entre a perpetração do abuso à revelação
pode variar em função do impacto que o crime teve na criança/jovem. Ainda segundo o estudo
da autora, a revelação, na maioria dos casos (87,9%) acontece de forma propositada, ao invés das
revelações feitas de forma acidental ou da descoberta por outras pessoas, acrescentando que em
63,6% dos casos, acontece um ano ou mais depois do abuso ter acontecido, sendo que em 27,4%
dos casos acontece imediatamente após o crime ter sido perpetrado.

De acordo com Lievore (2003) e London et al. (2005), a não revelação do abuso e
consequente inexistência de denúncia às autoridades competentes pode acontecer por
diversas razões, a saber:

• Relação vítima-autor/a: quanto mais próxima a relação entre a vítima e o/a autor/a
do crime maior a dificuldade em revelar o abuso e reportá-lo, quer por receio de
represálias contra si quer contra o/a autor/a do crime (ex.º: ser punido). Isto é
particularmente importante considerando que uma grande maioria dos crimes são
perpetrados por pessoas próximas às vítimas.
• Os factos não são percebidos como crime e/ou dizem respeito à vida privada: por
vezes existem reservas sobre a revelação e denúncia porque as crianças ou jovens
e/ou representantes legais encaram o abuso como um problema da esfera privada,
e que nesta se resolverá. Noutras vezes a prática abusiva pode não ser entendida
31. “Os inquéritos de vitimação
são instrumentos alternativos e como tal pelas vítimas e/ou pela rede de suporte primária (ex.º: práticas que já vêm
complementares de medição do
crime, procurando detetar todos os acontecendo na família) ou então é desvalorizada.
casos ocorridos na população. Estes
inquéritos questionam amostrar • Auto-culpabilização: algumas vítimas entendem que o crime de que foram alvo
significativas da população sobre
determinados tipos de ofensas que
aconteceu apenas por sua culpa, levando a que não o denunciem, com receio de
as mesmas experienciaram durante
um determinado período de tempo”.
serem vistas como causadoras dos atos e de serem socialmente julgadas.
(APAV, 2015) • Falta de provas: o facto de, nalgumas formas de abuso, não existir contato físico e/ou
32. A este propósito, ver Parte
I – Compreender > Capítulo ato sexual de relevo pode levar a que algumas vítimas e/ou representantes legais optem
II – A criança e o jovem vítimas de
violência sexual > 4. O processo de por não denunciar os crimes, crendo que não se poderá produzir prova por outro meio.
revelação da vitimação

54
Capítulo I – A violência sexual contra crianças e jovens Parte I - Compreender
7. Prevalência dos atos de violência sexual contra crianças e jovens em Portugal

• Descrença na justiça/atuação policial: a criança ou jovem e/ou as pessoas da sua rede


de suporte poderão escolher não denunciar o crime, por não acreditarem que se
possa fazer justiça e que possa existir uma punição que considerem adequada.
• Síndrome da acomodação da criança vítima de abuso sexual (Summit, 1983,
cit. in London et al., 2005): segundo este autor, as vítimas podem, de alguma
forma, acomodar-se ao abuso de que foram alvo – para “sobreviverem” no seio
de uma família segura ao crime perpetrado, as vítimas fazem um esforço para se
acomodarem aos factos e mantê-los em segredo.

Assim, será importante que regularmente se encetem inquéritos de vitimação – que, em


Portugal, são esporádicos – e, simultaneamente, se invista num esclarecimento junto das
crianças e jovens e/ou representantes legais sobre a importância da revelação do abuso, de
forma que se minimizem as cifras negras no que respeita a estes crimes.

55
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança

1. O desenvolvimento da criança
a. Estádios-chave no processo de desenvolvimento
da criança
Alguns autores como Jean Piaget ou Sigmund Freud descrevem o desenvolvimento da
criança por estádios sucessivos, ordenados de maneira imutável e necessária; outros, por seu
lado, consideram-no como um processo contínuo. Efetivamente, o desenvolvimento é lógico
e progressivo, isto é, uma fase deve ser transposta para que um novo nível (físico, cognitivo
ou afetivo) possa ser atingido.

Não obstante, falar-se do desenvolvimento da criança de forma sucinta é complexo e redutor,


pois não podemos ignorar a “incrível fluidez e variabilidade do seu desenvolvimento individual”
(Gueniche, 2005, p.17). Contudo, dado os objetivos deste manual de apoio, serão suficientes
algumas noções básicas do processo de desenvolvimento da criança, que possam ser utilizadas
enquanto linhas orientadoras no apoio a crianças e jovens sexualmente vitimadas.

Idade Desenvolvimento Emocional/Cognitivo/ Comportamento/Desenvolvimento


Físico Linguagem social /Personalidade

3-6 - Corre, salta - Lembra-se de experiências familiares - É capaz de interpretar, prever e


anos - É capaz de utilizar uma tesoura e faz - Possui um vocabulário de cerca de influenciar as reações de outras pessoas
o seu primeiro desenho 10.000 palavras - Estabelece as primeiras amizades
- O corpo desenvolve-se, assumindo - É capaz de ajustar o discurso - Surgem as emoções autoconscientes
as formas do corpo adulto de acordo com a idade, o género (ex.º: vergonha, culpa)
- A destreza e capacidade de (masculino ou feminino) e o estatuto - Tem um controlo relativo sobre as
coordenação aumentam social do/a interlocutor/a suas emoções
- É capaz de escrever o seu próprio nome

6-11 - Aumenta progressivamente de peso - Os pensamentos e a capacidade de - Torna-se mais independente e mais
anos e de altura estar atento são mais focalizados responsável
- A caligrafia torna-se mais pequena e - Bom raciocínio indutivo - Faz a distinção entre ser bem-
mais legível - É capaz de estabelecer a relação entre sucedido e ter falhado
- Os desenhos são mais estruturados experiências e ocorrências específicas - Tem consciência dos seus esforços
- Os jogos e brincadeiras que - Há um aumento de vocabulário versus acaso ou sorte na obtenção de
envolvam correrias, confusão e um dado resultado
competição são comuns - É capaz de se “pôr no lugar do outro”
- Desenvolve-se a capacidade - Aumenta a rivalidade com os irmãos
de resposta rápida em termos de e irmãs
destreza motora
- Nas raparigas, os sinais de entrada
no período de adolescência começam
2 anos mais cedo do que nos rapazes

11-18 - Menstruação - É capaz de discutir eficazmente - As birras e os conflitos com os pais


anos - Saltos de crescimento - É mais autoconsciente e concentrado aumentam
- A voz dos rapazes torna-se mais grave - Compreende a ironia e o sarcasmo - Passa menos tempo com os pais e

57
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
1. O desenvolvimento da criança

- Podem ocorrer relações sexuais - Desenvolvimento do raciocínio com os irmãos/irmãs


- As raparigas ganham mais tecido hipotético-dedutivo - Grupo de pares organizado, cliques
adiposo do que massa muscular – - É capaz de ajustes subtis no discurso e aparecimento das situações de
com os rapazes, passa-se exatamente - É capaz de fazer planos e de tomar pressão de pares
contrário decisões. - Procura da identidade própria
- Puberdade - O jovem pode envolver-se numa
relação de natureza mais íntima
- Pode ter desenvolvido um código
ético-moral

Tabela 4 - Estádios-chave no processo de desenvolvimento da criança (APAV, 2007)

b. Linguagem e desenvolvimento de crianças e


adolescentes
Tal como foi referido anteriormente, o atendimento a crianças e jovens vítimas de
violência sexual exige do/a profissional o conhecimento dos principais marcos no processo
desenvolvimento, nomeadamente ao nível da linguagem, de forma a possibilitar uma adequação
do seu discurso às diferentes faixas etárias. Deste modo, na condução da entrevista à criança
ou jovem o/a profissional deve ter em consideração as capacidades e limitações presentes nas
diferentes etapas do desenvolvimento (Gonçalves & Agulhas, 2014), exploradas em seguida.

i. Crianças em idade pré-escolar (3 aos 5 anos)

t Poderão ser capazes de dizer:

t Primeiro nome, idade e membros da família;


t Quem tocou ou magoou;
t Onde dói ou onde foi tocado;
t Onde se encontravam quando foram magoadas ou tocadas;
t Se o evento ocorreu uma vez ou mais que uma vez;
t Nomear algumas partes do corpo;
t Detalhes de experiências pessoais;

t No que diz respeito à quantidade de informação recordada, após uma a três


semanas do sucedido, numa criança de 3 anos de idade diminui significativamente a
capacidade de recuperação da mesma;
t As descrições das experiências são mais breves quando comparadas com crianças mais velhas;
t Tendem a fornecer explicações breves, com escassa informação, sem adjetivos e

58
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança

com poucos ou nenhuns advérbios. Utilizam a linguagem de modo bastante literal e


relacionada com o seu meio familiar, as suas respostas estão ligadas ao seu contexto
experiencial e relacionadas com o “aqui e agora”;
t Aos cinco anos de idade é quando adquirem a compreensão dos termos ‘nunca’, ‘sempre’ e
‘algumas vezes’. Antes dos seis anos de idade têm mais dificuldade em compreender o conceito
de ‘mais’ (maior quantidade), pelo que é preferível utilizá-lo acompanhado de ‘mais uma vez’.

t Normalmente não conseguem relatar:

t Todas as cores ou nomear todas as partes do corpo;


t Quantas vezes ocorreu o evento;
t Relatar com precisão eventos sequenciais ou dizer quando o evento ocorreu
(noção temporal limitada);

t Dificuldades com a conceptualização de acontecimentos complexos, a identificação


de relações, o reconhecimento de sentimentos, atribuição de intenções e o relato de
recordações e descrições verbais;
t Tendem a responder negativamente quando se introduzem pronomes, tais como
‘alguém’ ou ‘algo’;
t Tendem a confundir os termos ‘entre’ e ‘dentro’.

t Desafios específicos para esta faixa etária:

t Capacidades linguísticas variam bastante e são adquiridas rapidamente;


t Capacidade reduzida em manter a atenção, pelo que as entrevistas devem ser de
curta duração;
t Centrados no “aqui e agora”, sendo que o ‘ontem’ é percebido como ‘há muito tempo’;
t Demonstração por gestos é frequente e por vezes mais detalhada do que a
informação fornecida verbalmente;
t Dificuldades em verbalizar ‘não sei’ e ‘não entendo a pergunta’;
t Capacidade para reconhecer perguntas de resposta do tipo ‘sim’ ou ‘não’, e por vezes tentam
adivinhar a resposta que consideram correta, pelo que se deve evitar este tipo de perguntas;
t O discurso pode não ser compreensível;

ii. Crianças em idade escolar (6 aos 11 anos de idade)

t Devem ser capazes de tudo o que as criança em idade pré-escolar são, e ainda capazes de:

59
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
1. O desenvolvimento da criança

t Dizer o nome completo, idades e membros da família;


t Dizer as cores e nomear as partes do corpo;
t Fornecer maior quantidade de detalhes do tipo de contato abusivo;
t Ter capacidade para responder sobre a hora e dia aos 7 ou 8 anos de idade;
t Referir detalhes idiossincráticos: o quão abusivos lhe pareceram (as conversas,
sabores, cheiros…);
t Indicar a frequência relativa dos eventos abusivos (diariamente, semanalmente,
mensalmente…);
t Indicar a idade que tinham quando se iniciaram os eventos e quando terminaram;
t Reportar sintomas físicos e comportamentais

t Podem não ser capazes de relatar ou compreender:

t Datas exatas dos eventos numa sequência correta mesmo que crónica;
t Precisão dos tempos em que surgiram os sintomas físicos ou comportamentais;
t Conceitos abstratos como – ‘o que é verdade?’, relações de tempo, velocidade,
tamanho, duração.

t Desafios específicos desta faixa etária:

t As reações de pessoas que lhes são familiares, nomeadamente, sentirem-se


acreditadas, são muito importantes e podem modificar a disponibilidade da
criança para falar;
t Podem não entender por que é que não são culpados pelos eventos ou reações das
pessoas familiares perante os mesmos.

iii. Adolescentes (12 aos 17 anos de idade)

t Devem ser capazes de relatar o mesmo que as crianças em idade escolar, e ainda:

t Mais detalhes idiossincráticos/experienciados;


t Normalmente compreendem as relações temporais, de velocidade, tamanho e duração;
t Podem não compreender consistentemente conceitos abstratos.

t Desafios específicos desta faixa etária:

t Por vezes fornecem detalhes em excesso;

60
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
1. O desenvolvimento da criança

t Manter no concreto: os termos como, por exemplo, ‘espancar’, devem ser clarificados;
t Muito focados na aprovação pelos pares e de que forma são ou não normais;
t Preocupados com as repercussões parentais, pelo que o historial de atividade
sexual pode ficar comprometido.

61
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados

2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados


Não existe propriamente um perfil da criança ou jovem vítima de violência sexual, pelo
que não é possível indicar um conjunto rígido de características que permitam dizer que
aquele menino ou aquela menina, aquele rapaz ou aquela rapariga é ou poderá vir a ser
vítima de violência sexual. Assim, importa considerar a universalidade e transversalidade
deste fenómeno, pelo que qualquer criança ou jovem podem ser vítimas de violência sexual,
independentemente do seu contexto social, politico, religioso, moral ou educacional. De
igual forma, a violência sexual atravessa gerações e está presente em todas as civilizações e
países, em todo o tempo, e na vida de muitas crianças e jovens. Portanto, pode afirmar-se
que esta é uma realidade constante e transversal no Tempo e na História (APAV, 2011).

No entanto, existem alguns aspetos gerais que possibilitam uma melhor compreensão, no
que diz respeito às características das crianças e jovens vítimas de violência sexual. Neste
sentido, a literatura evidencia um conjunto de fatores de risco que poderão potenciar a
probabilidade de vivência desta forma de violência. Estes fatores de risco podem agrupar-
se, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2006) e o seu modelo ecológico
explicativo da violência, em quatro grandes categorias: os fatores de risco individuais,
relacionais, comunitários e sociais.

a. Fatores de risco individuais

i. Género

O risco de vivência de uma situação de vitimação sexual na infância e na adolescência


revela-se indiferenciado em função do género - ou seja, rapazes e raparigas apresentam
propensão semelhante. Com efeito, estudos neste âmbito estimam que 1 em 3 raparigas
e 1 em 5 rapazes poderão ser vítimas de alguma forma de violência sexual, durante a sua
infância ou adolescência, quer em contexto intrafamiliar, quer em contexto extrafamiliar.
Neste sentido, estudos mais recentes evidenciam que os rapazes poderão estar mais
vulneráveis a situações de abuso sexual ocorridas em contexto extrafamiliar do que as
raparigas (Global Children’s Fund, 2007). Por outro lado, em contexto intrafamiliar a maior
incidência acontece entre vítimas do sexo feminino, sendo as mais comuns o incesto pai-
filha ou padrasto-enteada.

62
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados

ii. Idade

Todas as crianças e jovens, independentemente da sua idade, poderão ser vítimas de violência
sexual (dos 0 aos 18 anos). Ainda assim, existirá um maior risco de vitimação para as
crianças mais novas, na medida em que, com o aumento da idade da vítima, é reforçada a
sua capacidade de resistência às estratégias do/a autor/a do crime. Com o avanço da faixa
etária, também é incrementada a probabilidade de a criança/jovem procurar ajuda junto da
sua rede de suporte (ex.º: pais, família alargada, amigos) ou denunciar a situação de vitimação
junto das entidades competentes (ex.º: Órgãos de Polícia Criminal, APAV). Outro dos fatores
prende-se com a possibilidade de, nas raparigas, a partir da puberdade (especificamente com
a menarca), poder surgir uma gravidez indesejada, sendo esta uma condição que poderá
dissuadir o/a potencial autor/a do crime em concretizar atos de violência sexual.

iii. Consumo de substâncias

O consumo de álcool e drogas pode constituir um fator de risco para a vivência de violência sexual, dados
os efeitos deste tipo de substâncias no funcionamento do sistema nervoso, que poderão colocar a vítima
numa posição de vulnerabilidade em relação ao/a autor/a do crime, pela maior dificuldade de aquela se
proteger eficazmente às investidas ou de ser capaz de identificar antecipadamente sinais de alarme.

iv. Características emocionais

A vulnerabilidade emocional, associada a uma carência relacional, poderá aumentar o risco


de as crianças/jovens serem vítimas de violência sexual, uma vez que poderão ser, com maior
facilidade, seduzidas pela atenção e carinho dado pelo/a autor/a do crime. Crianças com auto-
estima diminuída também se poderão encontrar numa posição de maior vulnerabilidade.

A dificuldade da criança em identificar as suas emoções e a dos outros, assim como as formas
de manifestação de afeto e carinho consideradas como adequadas/inadequadas, constituem
fatores de risco para a vitimação sexual. Neste sentido, a criança/jovem poderá percecionar os
atos de violência sexual como uma expressão adequada e normativa de afeto (APAV, 2011).

Importa ainda referir que crianças muito tímidas e reservadas poderão, na ótica dos/as
potenciais autores/as dos crimes, ter as características consideradas necessárias para que o
abuso seja mantido em segredo (Global Children’s Fund, 2007).

63
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados

v. Falta de informação

A falta de informação relativamente às diferentes formas de violência sexual, aliada à falta


de conhecimento sobre a forma de atuação dos/as autores/as dos crimes e das estratégias de
autoproteção que podem ser utilizadas, pode constituir um fator de risco para a vivência de
situações de vitimação sexual na infância e na adolescência (APAV, 2011).

vi. Crianças com necessidades especiais

A existência de handicaps físicos, particularmente aqueles que dificultam a perceção de


credibilidade da criança/jovem, nomeadamente a cegueira, surdez ou défices cognitivos,
poderão constituir fatores de risco aumentado (Westcott and Jones, 1999, cit. in Putnam,
2003). Outros fatores parecem também contribuir para o aumento desta vulnerabilidade,
designadamente a dependência, institucionalização e dificuldades comunicacionais
(Putnam, 2003). É de salientar igualmente que as crianças com necessidades especiais
poderão ser especialmente dependentes dos seus cuidadores, o que dificulta a revelação de
uma eventual situação de crime sexual.

b. Fatores de risco relacionais

i. Estatuto socioeconómico

Apesar de o maior número de denúncias de situações de violência sexual contra crianças e


jovens surgir em famílias de meios socioeconómicos desfavorecidos, estudos revelam que
esta forma de violência é um fenómeno transversal aos diferentes estratos socioeconómicos
(Finkelhor, 1993, cit. in Putnam, 2003).

ii. Isolamento

O isolamento social de algumas crianças/jovens que, pelas suas dificuldades no relacionamento


interpessoal, não são capazes de estabelecer relações sociais fortes e sustentadas com os seus
pares e/ou com os adultos mais significativos (ex.º: pais, professores) poderá influenciar a

64
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados

vulnerabilidade daquelas às investidas de autores/as de violência sexual. O isolamento da criança/


jovem face às principais estruturas de socialização aumenta também o risco de a experiência de
violência sexual persistir no tempo e de esta ser mantida em segredo (APAV, 2011).

iii. Constelação familiar

A constelação familiar, particularmente a ausência de uma ou ambas figuras parentais,


poderá constituir um fator de risco significativo (Finkelhor, 1993, cit. in Putnam, 2003). A
presença de um padrasto no agregado familiar duplica o nível de risco para as raparigas.
Esse risco refere-se não só à probabilidade de ser vitimada pelo padrasto, mas também à
probabilidade de ser abusada por outros homens (de relacionamentos anteriores da mãe)
antes da chegada do padrasto ao meio familiar (Mullen et. al., 1993, cit. in Putnam, 2003).

Estudos revelam também que outras características do seio familiar, nomeadamente a presença
de consumos de álcool e abuso de substâncias, a ausência prolongada da mãe, a existência
de conflitos conjugais graves, o isolamento social e a presença de estilos parentais punitivos
poderão estar associadas a um risco aumentado de violência sexual na infância e adolescência
(Fergusson et. al., 1996b; Mullen et. al., 1993; Nelson et. al., 2002, cit. in. Putnam, 2003).

Crianças ou jovens que provenham de famílias monoparentais também poderão encontrar-


se em maior risco, na medida em que frequentemente poderão procurar, em contexto
extrafamiliar, substitutos para a figura parental ausente (Global Children’s Fund, 2007).
A existência de violência na família de origem, diretamente dirigida à criança/jovem ou
a exposição à mesma, a ausência de afetividade e comunicação, assim como a falta de
privacidade, não existindo fronteiras claramente definidas entre os diferentes subsistemas
familiares (ex.º: entre pais e filhos), poderão ser também fatores de risco para a vivência de
situações de violência sexual (APAV, 2011).

c. Fatores de risco comunitários

i. Características do contexto comunitário

A pobreza e desorganização da comunidade e das suas principais estruturas (ex.º: escola)


podem apresentar-se como fatores de risco para a vitimação sexual das crianças e jovens aí

65
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
2. Caraterização da vítima e fatores de risco associados

residentes, na medida em que a comunidade poderá ficar desprovida de meios e recursos que
assegurem melhor proteção e supervisão sobre as suas crianças e jovens. Deste modo, quando
numa comunidade predomina a desorganização social, o sentido de competência coletiva
partilhada pelos indivíduos é diminuto, e como tal não é alcançada a devida coordenação e
integração dos recursos existentes para a supervisão e educação das crianças e jovens.

Outros fatores de risco comunitários que podem ser considerados são: a presença de
violência e criminalidade na comunidade e a degradação física das estruturas existentes
(Organização Mundial de Saúde, 2006).

d. Fatores de risco sociais

i. Normas sociais

A inércia social e mesmo legal sobre casos de violência sexual contra crianças e jovens
também pode constituir um fator de risco para que os crimes não sejam reportados, e
deste modo, sejam perpetuados no tempo (APAV, 2011). Fatores socioeconómicos como a
pobreza, o desemprego e níveis baixos de capital social, parecem contribuir para o aumento
do risco de situações de abuso (Organização Mundial de Saúde, 2006).

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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
3. Fatores de proteção e resiliência da vítima

3. Fatores de proteção e resiliência da vítima


Estudos neste âmbito centram-se essencialmente em fatores de resiliência, isto é, fatores que
diminuem o impacto do abuso sexual na vítima, que podem ser agrupados em diferentes
níveis: individuais, familiares e ambientais/sociais (Organização Mundial de Saúde, 2006).

A tabela seguinte apresenta uma listagem dos principais recursos internos e externos
que podem contribuir para resultados adaptativos na sequência da situação traumática
vivenciada pela criança ou jovem:

Individuais Fatores protetores Ambientais


Familiares

- Competências verbais e - Ambiente familiar positivo - Presença de adulto no contexto


comunicacionais - Família organizada e estruturada extrafamiliar (professores,
- Competência auto- regulação (horários e rotinas) treinadores, profissionais de saúde)
emocional - Vinculação segura com cuidador - Relação positiva com os pares
- Competências de resoluções de primário - Presença de pares pró-sociais na
problemas e de coping - Estilos parentais positivos e não rede de suporte
- Elevada autoestima autoritários/punitivos - Envolvimento numa relação de
- Perceção autoeficácia - Suporte e supervisão parental namoro positiva e saudável
- Empatia consistentes - Ambiente escolar positivo
- Motivação - Estabilidade económica - Rendimento/sucesso escolar
- Sentido de humor - Pais profissionalmente ativos - Ambiente comunitário promotor de
- Atitudes positivas face à escola - Saúde e bem-estar dos pais segurança e saúde
- Capacidade para pedir ajuda -Recursos comunitários para
intervenção precoce
- Coesão social

Tabela - Fatores protetores do envolvimento em situações de violência (APAV, 2011)

No plano individual, a investigação tem-se centrado essencialmente na exploração das


competências de coping das crianças ou jovens perante uma situação de vitimação sexual.
Numa revisão recente de estudos sobre esta temática, verificou-se que as vítimas tendem
a recorrer a várias estratégias cognitivas e comportamentais para lidar com a experiência
abusiva (Walsh, Fortier & Dillilo, 2010, cit. in Antunes & Machado, 2012):

t Evitamento: enquanto mecanismo que visa diminuir o impacto emocional de um


acontecimento, tem sido apontado como uma estratégia frequente em situações de
vitimação sexual, e que inclui comportamentos de evitar pensar, lembrar ou falar
sobre o problema. Esta estratégia poderá apresentar um efeito protetor no imediato
de sentimentos de ansiedade e pensamentos desorganizadores; contudo, tende a
aumentar a sintomatologia clínica na adolescência ou na vida adulta, nomeadamente

67
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
3. Fatores de proteção e resiliência da vítima

sob a forma de pensamentos e afetos intrusivos e perturbadores.


t Procura de suporte, revelação e denúncia: a procura ativa de suporte por parte da
criança ou jovem parece estar relacionada com uma diminuição da sintomatologia
na infância e na idade adulta, a uma maior autoconfiança percebida e a uma menor
probabilidade de revitimação sexual na vida adulta. A criança ou jovem que revela a
situação de abuso poderá experienciar sentimentos de autocontrolo e empowerment.
No entanto, é de salientar que o efeito positivo da revelação está fortemente associado
à forma como esta é recebida pelo contexto familiar e/ou social da criança. Assim, uma
atitude de apoio, credibilização e valorização potencia este efeito protetor, e, por seu
lado, uma postura de hostilidade, incredulidade e culpabilização, tende a minimizar o
efeito positivo da revelação. Quanto à denúncia e à participação da criança ou jovem
no processo-crime, denota-se que a morosidade na resolução do processo, bem como
a possível abordagem inadequada à criança pelos seus vários intervenientes (policia,
juízes, peritos), pode colocar em causa o potencial efeito positivo.
t Estilos atribucionais: a presença de uma atribuição causal externa da culpa tende a
corresponder a uma estratégia de resposta adaptativa, enquanto que uma atribuição
causal interna pode constituir um fator de risco, pelo que estudos neste âmbito
revelam que este estilo de atribuição está fortemente associado ao surgimento de uma
autoestima mais reduzida, mais depressão, estigmatização e culpa.

No que concerne aos fatores do contexto familiar e social, estudos realizados neste
âmbito revelam que a existência de um suporte familiar, sobretudo, o suporte parental,
pré e pós revelação são variáveis determinantes na recuperação da situação traumática
experienciada. Desta forma, a existência de uma boa comunicação entre a criança e os seus
pais pode apresentar efetivamente um efeito protetor, na medida em que estas podem ser
percecionadas pelo/a autor/a do crime, como um alvo de maior risco, pois a probabilidade
do abuso ser revelado será maior (Global Children’s Fund, 2007).

Alguns estudos revelam, também, que viver em comunidades com uma forte coesão social,
constitui um fator protetor e pode reduzir o risco de violência, mesmo quando fatores de
risco ao nível familiar estão presentes (Organização Mundial de Saúde, 2006).

68
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

4. O processo de revelação da vitimação


A revelação é o primeiro e decisivo passo para a tomada de conhecimento de uma situação
de violência sexual contra uma criança ou jovem, quando estes a relatam a alguém da
sua confiança (ex.º: pais, irmãos, professores). Esta informação pode permanecer na
esfera privada ou tornar-se pública, a partir do momento em que exista uma denúncia às
autoridades competentes.

A comunicação da situação de violência às autoridades origina a intervenção de diferentes


instituições e de diferentes profissionais, cujos objetivos devem pautar-se pela proteção da
vítima e pela responsabilização do/a autor/a do crime (Pisa & Stein, 2007). Ainda assim, a
complexidade das situações e as dificuldades associadas à articulação interinstitucional para
o encaminhamento destes casos para as entidades mais adequadas, especialmente quando
não existe uma rede local estabelecida ou uma rotina nesse sentido, poderão obstar a que
estes objetivos sejam atingidos.

De acordo com Plummer (2006) e Kristensen et al. (2001), existem cinco formas ou
indícios pelas quais se torna possível a identificação da violência sexual33: relato da vítima
(o principal meio de recolha de informação), presença de sinais físicos, absentismo escolar,
alteração do comportamento e comportamento sexual inadequado.

a. As dificuldades na revelação

A criança ou jovem que foi ou é vítima de violência sexual remete-se, não raras vezes, ao
silêncio sobre o seu problema. Isto poderá acontecer em virtude da relação que mantém
com o/a autor/a do crime, que poderá utilizar estratégias concretas para conseguir manter a
vítima silenciada e acessível aos seus intentos.

A descoberta da vitimação pode arrastar-se no tempo, sendo por vezes difícil a interrupção
do silêncio e da violência sexual exercida. As dificuldades de descoberta devem-se,
sobretudo, a alguns aspetos, tais como:

t Nem sempre a violência deixa vestígios físicos/biológicos: em alguns casos, em especial


quando as vítimas são crianças muito pequenas, não chega a haver penetração; noutros,
quando há penetração, a ejaculação dá-se fora do corpo da criança. O facto de as 33. Á este propósito, ver Parte
I – Compreender > Capítulo
vítimas serem lavadas, bem como as roupas, e a recolha de vestígios ser protelada para II – A criança e o jovem vítimas de
violência sexual > 5. Reações e
lá de 48 a 72 horas após o crime, pode condicionar a preservação de vestígios. consequências experienciadas >
b. Sinais e sintomas

69
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

t A criança ou jovem pode sentir vergonha, pelo que pode não verbalizar que foi ou tem
sido vítima. Para além de apresentar sentimentos de culpa pelo seu envolvimento com
o/a autor/a do crime, pode manter algum sentimento de lealdade para com o mesmo.
t A criança ou jovem pode ter medo de:

t Sofrer represálias por parte do/ autor/a do crime ou de ser punido pelos pais ou
por quem descobrir;
t Que não acreditem na sua história;
t Ser separada da sua família;
t Ser o causador da separação dos pais (no caso do/a autor/a do crime ser o pai ou a mãe);
t Perder algumas recompensas que recebe do/a autor/a do crime (ex.º: doces,
dinheiro, brinquedos, entre outros).

t A vítima pode achar “normal” a relação existente com o/a autor/a do crime e
confundir os seus atos como sendo uma relação de afeto normal. Pode ainda, e caso
não se sinta amada pelos pais, sentir-se dependente da relação que tem com o/a
autor/a do crime, confundindo-a com uma relação normal de afeto.

b. Fatores que poderão influenciar o processo de revelação

i. Relação da vítima com a pessoa a quem revela

A iniciativa de revelar a violência sexual poderá estar associada à qualidade da relação que a criança
tem relativamente à pessoa a quem contou, e, ao mesmo tempo, à interpretação que a criança supõe
que a pessoa faria (Berliner & Conte, 1995). É neste sentido que a perceção que as vítimas têm sobre
as suas mães e sobre o contexto familiar em que estão inseridas, influencia a disponibilidade das
vítimas para revelar o que aconteceu (Plummer, 2006). A mãe tem sido apontada como uma figura
importante nesses processos, já que na maioria dos casos a violência lhe é revelada (Berliner & Conte,
1995). O facto de uma mãe acreditar no relato do/a filho/a e tomar medidas de proteção, poderá ter
repercussões positivas na forma como a vítima consegue ultrapassar a experiência traumática.

Independentemente da relação da criança ou jovem com a mãe, a revelação poderá ser


feita junto de uma pessoa de confiança da vítima, e quando esta última percebe que existe a
possibilidade para estabelecer uma conversa em privado. A mesma pode acontecer de uma
forma tranquila, quando a pessoa confidente se mostra preparada para ouvir a criança ou
jovem sem expressar sinais de desespero, condenação moral ou repúdio.

70
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

ii. Crenças e perceções da vítima

Entre os fatores que influenciam o processo de revelação pela vítima, as crenças e as


perceções desta sobre a sua experiência de violência sexual têm um significado importante.
O sentimento de culpa poderá contribuir para que a criança ou jovem sinta mais medo
e vergonha de revelar a situação. Outras perceções distorcidas, mas comuns em crianças
e jovens vítimas de violência sexual, são a perda de confiança nas pessoas, em geral, e
a descredibilização dos outros. Quanto maior for a desconfiança e a perceção de não
credibilidade, mais difícil é para a criança ou jovem revelar a violência (Haugaard, 2003;
Jonzon & Lindblad, 2004; Mannarino, Cohen & Berman, 1994).

iii. Proximidade do/a autor/a do crime

Os/as autores/as dos crimes que têm uma relação de confiança ou familiar com as crianças
poderão fazer com que elas passem de vivenciar uma relação afetiva para experienciar uma
realidade dolorosa. Com efeito, o receio de provocar danos na estrutura familiar poderá ser
outro importante aspeto que influencia a revelação da vitimação. Em geral, este fator poderá
ser fruto da intimidação feita pelos/as autores/as dos crimes, que poderão chantagear e
ameaçar a vítima para que esta mantenha o segredo.

iv. Outros fatores

A idade, o tipo de abuso (intrafamiliar ou extrafamiliar), o medo de consequências negativas


e a responsabilidade face à violência sexual estão relacionados com o hiato temporal que pode
decorrer até que as vítimas revelem a violência de que são alvo (Goodman-Brown et al., 2003).

As crianças e jovens usam as reações dos adultos como ponto de referência para o que
podem ou não contar. O receio em contar as experiências de violência pode dever-se
ao medo da rejeição familiar, ao facto de a família não acreditar no seu relato, ao medo
de perder os pais ou de ser expulso/a de casa, ao medo de ser considerado/a como o/a
causador/a da discórdia familiar, ou mesmo à falta de informação sobre a violência sexual.

71
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

c. Etapas do processo de revelação

O processo de revelação compreende três etapas (Staller & Nelson-Gardell, 2005):

t A primeira etapa refere-se à pré-revelação: o processo de revelação não compreende


apenas o momento em que a criança ou jovem quebra o silêncio, contando à família
ou alguém em quem confia a violência experienciada, mas também tudo o que lhe
antecede, incluindo as fantasias e expetativas quanto às consequências da revelação,
já que as vítimas assumem que vivenciaram uma experiência abusiva.
t A segunda etapa refere-se à revelação propriamente dita e inclui a escolha do momento
(momento escolhido ou oportunidade para revelar), do contexto (local onde ocorre a
revelação) e da pessoa de confiança a quem fez a revelação (disponibilidade para ouvir e
reação face à revelação). Esta envolve uma interação dinâmica entre a criança ou jovem
e o/a seu/sua confidente que, em simultâneo recebem, processam, avaliam e reagem
às informações, influenciando-se mutuamente. É de referir que as revelações iniciais
feitas pelas crianças ou jovens são, muitas vezes, apenas revelações parciais. A criança
ou jovem pode começar por revelar apenas uma pequena parte da situação de violência
e, dependendo do comportamento do/a seu/sua interlocutor/a, a mesma pode sentir-se
segura ou não para continuar com a revelação até que a história inteira seja contada.
t A terceira etapa refere-se às consequências que advêm do facto de a criança ou jovem ter
contado o segredo, nomeadamente a exposição face aos familiares, amigos e vizinhos,
mudanças nas relações com alguns membros da família e também da comunidade.

É importante ter em conta que a reação dos familiares/amigos perante a revelação da


vitimação pode vir a ser mais intensa do que a da própria criança ou jovem, sobretudo
nos casos em que a mãe é confrontada com o facto de o seu companheiro/marido que, em
muitos casos, é também pai da vítima, ser o autor do crime. Nesta situação, podem gerar-
se sentimentos de culpa, vergonha e medo que potencialmente afetarão negativamente a
criança ou jovem e que poderão impedir a sua eficaz proteção e recuperação no futuro.

Cabe, portanto, aos profissionais e às instituições que constituem a rede de apoio social de
crianças e jovens vítimas de violência sexual e seus familiares e amigos, planear intervenções que
minimizem o impacto da violência sofrida e que protejam efetivamente a criança ou jovem.

d. Reações à revelação

Após a descoberta poderão surgir reações muito diversas, que dependem, sobretudo, das condições

72
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

em que a mesma ocorreu. No entanto, deverão ser considerados alguns aspetos, especialmente
aqueles que possam influenciar a conjuntura e a organização pessoal, conjugal e familiar.

i. Drama e negação

A tomada de conhecimento desta situação poderá constituir-se como algo aterrador


para a rede de suporte primária da vítima, podendo os momentos seguintes ser de crise
e dramáticos. Assim, é importante que os profissionais que prestam apoio, tanto à vítima
como àqueles que mais próximos estão dela, compreendam, aceitem e normalizem as
emoções e sentimentos manifestados.

Por sua vez, a negação da vitimação por parte dos familiares poderá estar ligada ao sentimento
de culpa por terem falhado na proteção da criança ou jovem e da necessidade de separação
do/a autor/a do crime (nem sempre desejada), assim como da vergonha social experienciada.

Em alguns casos, a culpa poderá ser de tal forma insuportável, que o caminho mais fácil
se torna a negação. Noutros, a ausência de estratégias de coping para lidar com todas as
implicações que a revelação do crime acarreta, em conformidade com uma profunda
resistência à mudança que tal acontecimento impõe, poderá fazer com que a rede de suporte
da vítima se recuse a acreditar no relato desta.

Todavia, a negação não significa que as famílias recusem ajuda; pode indicar que estão
assustadas ou que não se sentem capazes de lidar com a situação, pelo que será necessário
que os profissionais compreendam a natureza da violência sexual e tenham as competências
para poderem identificar e gerir a dinâmica que envolve essa revelação (Furniss, 1993).

Assim, sempre que exista essa necessidade, os profissionais deverão providenciar apoio
adequado junto da rede de suporte familiar para que se redirecione e reintegre o sentimento
de culpa e a negação que aquela pode estar a experienciar.

ii. Sentimentos de fracasso, culpa, vergonha,


incapacidade e estigmatização

A culpa surge como sentimento predominante nos casos de violência sexual contra
crianças e jovens, quer nestas, quer na sua rede de suporte. Esta última poderá evocar um

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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

conjunto de fórmulas “mágicas” que poderiam ter evitado o(s) crime(s), ou recordar-se
de um conjunto de sinais dados pelos/as autores/as dos atos, que não eram entendidos ou
valorizados e que, depois da descoberta, passaram a ser demasiado óbvios.

A vítima poderá sentir culpa pelos conselhos que não seguiu, por sinais que acha que
deu ao/à autor/a do crime ou por ter denunciado esta situação. Este sentimento poderá
surgir espontaneamente ou poderá ser-lhe dirigido por terceiros, especialmente no caso de
adolescentes/jovens.

O sentimento de fracasso na proteção da vítima menor de idade pelos seus representantes


legais ou outras entidades que cuidam das crianças ou jovens poderá gerar nestes mal-estar
emocional e perceção de incapacidade. O sentimento de culpa pode, de igual modo, surgir,
na medida em que os cuidadores não aceitam que não tenham descoberto ou suspeitado que
a criança ou jovem estava a ser ou tinha sido vítima de violência sexual.

Importa então que o/a técnico/a que apoia tente criar, em conjunto com a vítima e a sua
rede de suporte, perspetivas alternativas que permitem a aceitação do inevitável, daquilo que
não é passível de controlo. Pretende-se, deste modo, que a culpa seja redirecionada apenas
para quem perpetrou os atos, conduzindo à libertação desses pensamentos persistentes por
parte das vítimas, para que não venham a comprometer a sua autoestima.

iii. Raiva, ressentimento e desejos de vingança

O desejo de vingança poderá surgir, quer na própria vítima, quer junto dos seus elementos
de suporte. Está normalmente associado a um sentimento de revolta muito intenso e à
vontade de fazer “justiça pelas próprias mãos”, pela expressão de vontade de ferir, castrar ou
mesmo matar o/a autor/a do crime.

Tal desejo poderá entender-se como uma manifestação menos adaptativa de sentimentos de
revolta, de impotência perante o sofrimento causado, de receio que o/a autor/a do crime possa vir a
repetir o crime contra esta ou outras vítimas e de falta de confiança no sistema de justiça criminal.

Desta forma, o/a profissional que presta apoio não deverá julgar este ímpeto, ainda que
não o deva reforçar ou estimular, tentando, pelo contrário, refreá-lo. Por vezes poderá ser
importante redirecionar o foco para perspetivas alternativas, mas não proibindo o tema,
uma vez que este tipo de pensamentos pode tornar-se obsessivo, e ativar formas diferentes
de exteriorização e demonstração da raiva.

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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

iv. Desconforto, ansiedade e sentimento de insegurança

Vítimas diretas e indiretas poderão experienciar frequentemente este tipo de sentimentos,


especialmente nos casos em que o/a autor/a do crime lhes seja uma pessoa próxima, ou
que frequenta habitualmente locais por onde também se movimenta a vítima, uma vez
que poderá cruzar-se com ela a qualquer momento, por força da eventual não aplicação de
medidas que proíbam o contacto entre o/a autor/a do crime e a vítima.

Nos casos em que o/a autor/a do crime seja desconhecido/a da vítima, tais sentimentos de
insegurança e desconfiança generalizados poderão surgir, uma vez que poderá proliferar a
sensação de que aquele/a está em qualquer parte.

Mais ainda, quando a violência sexual é cometida por alguém que era próximo da vítima, poderá
estar presente a sensação de defraudamento. Assim, a insegurança e a desconfiança poderão ser
extrapoladas para todas as pessoas que contactem com a criança ou jovem, uma vez que este/a
poderá sentir-se inseguro/a em locais onde isso anteriormente não acontecia e perante pessoas
em quem antes confiava. É possível, portanto, que as vítimas experienciem ansiedade de forma
bastante intensa e generalizada, que poderá desencadear ataques de pânico, a sensação de ver
o/a autor/a do crime em toda a parte, gerando comportamentos compulsivos de segurança, o
evitamento de alguns espaços, pessoas, eventos e estímulos (ex.º: cheiros, programas de televisão
ou a própria casa, especialmente se tiver sido o cenário de vitimação) que poderão conduzir ao
isolamento social ou à adoção de comportamentos de consumos aditivos.

Relativamente à rede de suporte da vítima, tais sentimentos poderão manifestar-se por meio
de uma excessiva preocupação e ímpeto constante de perguntar como é que a vítima se
sente, se viu o/a autor/a do crime ou por intermédio de pedidos insistentes de detalhes que
possam ajudar a prever algumas reações e/ou comportamentos por parte de quem praticou
o crime. Tal ansiedade poderá ser direcionada para os técnicos de apoio, questionando-os
sobre o que virá a seguir, qual a pena que será aplicada ao/à autor/a do crime, ou se estão
a cumprir todos os passos para que o processo-crime decorra dentro da normalidade,
procurando assegurar-se repetidamente que estão a fazer o melhor que podem.

v. Sentimento de abandono e desamparo

Por motivos como os referidos no ponto anterior, na sequência da quebra de confiança em


relação aos outros, do receio de encontrar o/a autor/a do crime, de ser questionado por
outras pessoas acerca do crime, a vítima poderá adotar comportamentos destinados ao seu

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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

isolamento, que poderão culminar numa sensação de abandono e de não ter ninguém com
quem partilhar a situação.

Este desamparo poderá ser mais frequente nos casos em que a rede de suporte da vítima não
acredita no testemunho desta, acusando-a de falsas denúncias e enumerando um conjunto
de razões para fundamentar essa ideia. Com efeito, o poder de manipulação do/a autor/a
do crime poderá sobrepor-se e conseguir mobilizar grande parte da rede de suporte, que
poderá afastar e/ou fustigar aqueles que acreditam e ajudam a vítima no processo-crime.

Por outro lado, os familiares e amigos poderão também manifestar sentimento de abandono,
de solidão e desamparo, que poderá ser agravado pela desconfiança que sentem em relação
às pessoas com que se relacionam habitualmente (familiares, amigos, vizinhos, conhecidos)
especialmente se a criança ou jovem tiver sido vítima de uma pessoa tida como afetuosa ou
socialmente próxima.

vi. Desespero

Não raras vezes a rede de suporte primária poderá sentir desespero por acreditar que não
consegue fazer mais nada para suprimir o sofrimento da vítima que surgiu na sequência do
crime. A rede de suporte poderá ainda sentir-se frustrada por não conseguir retroceder o
tempo para mudar o curso dos factos praticados; tal turbilhão de sentimentos poderá acabar
por potenciar uma afetação geral do estado de humor de todos, que poderá trazer consigo
uma espiral de sentimentos de valência emocional negativa. Poderão ser, por vezes, reativadas
outras dificuldades, revividos problemas passados e colocados em causa princípios que não
eram antes questionados, ainda que não tenham uma relação direta com o crime praticado.

Quando a criança ou jovem tem clara perceção deste desespero, poderá sentir que aquilo
que partilhou é demasiado intenso para aqueles que o escutam e que estes não estão
aptos para lidar com a situação. Tal pode potenciar na vítima a necessidade de proteger
aqueles por quem deveria ser protegida, gerando-se aqui uma inversão de papéis (ex.º:
parentificação). Por outro lado, a criança ou jovem poderá sentir que o melhor será
omitir alguns detalhes acerca do crime, alterá-los ou mesmo dissimular as suas emoções e
sentimentos relativamente à situação, de modo a evitar impressionar ou preocupar aqueles
que lhe são próximos. Neste sentido, é importante que a rede de suporte não deixe de
manifestar as suas emoções, para não turvar a perceção de empatia por parte da criança,
mas deverá fazê-lo com cuidado e contenção para que a criança não sinta que, com a
revelação, criou um novo problema.

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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

vii. “Desconfiança” relativamente à intervenção

Esta desconfiança gera-se relativamente aos vários elementos do sistema judicial, às


instituições envolvidas e ao próprio processo de apoio. Resulta, na maior parte das vezes,
de uma discrepância entre as expectativas sobre o que será possível e o que é realmente
concretizável, bem como relativamente aos timings de cada fase.

Portanto, importa ajudar a dissipar esta desconfiança, normalizando-a, sem cair na tentação
de a alimentar, explicando como se desenrolam todos os procedimentos necessários,
ajudando e acompanhando na sua prossecução e facilitando a comunicação entre os vários
sistemas (ex.º: familiar, judicial, social). Deste modo, o/a profissional contribuirá para
dissipar as dúvidas e a ansiedade, criando sintonia e colaboração profícuas.

viii. Desconforto e constrangimento ao falar da situação

É expectável que acontecimentos desta natureza, que atentam contra a sexualidade de uma criança
ou jovem, gerem desconforto e constrangimento quando têm de ser abordados. Contudo, tal
desconforto dependerá da idade da vítima, do pudor que esta possa ter em falar sobre a sexualidade
e da facilidade em expressar sentimentos e emoções, por parte dos seus elementos de suporte.

Por vezes, vítima e rede de suporte poderão evitar falar sobre o assunto, criando uma
espécie de proibição implícita, que poderá funcionar como uma prisão de emoções. Outras
vezes as conversas poderão estabelecer-se por uma espécie de código, tentando contornar o
assunto, mas sem conseguir deixar de fazer sentir a sua presença. Este evitamento alimenta-
se muitas vezes da crença de que aquilo de que não se fala, não nos afeta, ou nos afeta
menos. Contudo, essa proibição implícita pode tornar o assunto ainda mais presente na
vida de todos e complexificá-lo. As palavras que ficam por dizer, as emoções que se tentam
aprisionar, acabam quase sempre por se manifestar de outras formas, criando confusões,
minando relações ou até alimentando patologias.

ix. Lembrança persistente

É relativamente comum que, nos primeiros tempos após a tomada de conhecimento do


crime, ou no decurso do processo judicial, os elementos mais próximos da vítima tenham
pensamentos recorrentes e persistentes de tal acontecimento.

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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

Por vezes, perante algum comportamento da criança ou jovem interpretado como


sexualizado, a rede de suporte poderá recriminar a vítima ou não saber qual a forma mais
adequada de reagir.

Várias emoções podem surgir associadas a estas lembranças persistentes; por norma, quanto
mais se tentam controlar os pensamentos para evitar a emocionalidade associada, maior
será a perceção de “invasão”. Por outro lado, quando estas lembranças não são filtradas
nem redirecionadas para momentos onde possam ser expressas adequadamente, e quando
não existe um envolvimento das vítimas ou da rede de suporte em atividades que ajudem a
dispersá-las, as lembranças poderão contaminar todos os contextos, conversas e relações.

Por vezes, a vítima poderá ser interpelada repetidamente com perguntas ou alusões ao crime,
dado que a rede de suporte se deixa absorver pela sua curiosidade ou incredulidade. Por detrás
desta atitude está muitas vezes a crença de que quanto mais se fala do assunto melhor ele se
esclarece, integra e resolve. Contudo, é importante não permitir que este problema contagie
tudo em seu redor e que assuma o espaço dedicado a outras atividades e temas.

x. Projeção de si na vítima

Em algumas situações, as pessoas mais próximas da criança ou jovem tendem a projetar nela
os seus próprios pensamentos, emoções, dúvidas, medos ou ansiedades. Poderão induzir,
percecionar sugestionadamente ou referir mesmo conscientemente que a vítima manifestou
ou verbalizou sintomas que, na realidade, foram os seus entes mais próximos a experienciar.

Esta indução surge muitas vezes da lacuna entre aquilo que a vítima manifesta sentir e aquilo
que os seus elementos de suporte entendem que ela sofre, ou que experimentariam caso
tivessem vivenciado a situação pela qual ela passou. Será de igual modo frequente quando
uma destas pessoas já passou por algum crime semelhante ao da vítima atual, partindo do
pressuposto de que esta está ou tem de passar por aquilo que a primeira vivenciou.

xi. Luto

Perante a tomada de conhecimento de um crime de natureza sexual que é cometido contra


uma criança ou jovem, poderá existir um luto de reparação a processar, relativamente à
inocência e intimidade que foi lacerada.

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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

Nos casos de morte da criança ou jovem em consequência da violência sexual de que sofreu,
a revolta tende a ser incomensurável, pela dificuldade em processar o luto que, em última
instância poderá conduzir à desintegração familiar, quer porque se torna difícil lidar com a
dor uns dos outros, quer porque a lembrança parece mais presente e poderá fazer com que
se sinta que o propósito da união familiar tenha desaparecido.

Quando se dá o desaparecimento da criança ou jovem, há um luto a fazer que dificilmente


se vai processar, pela ausência de elementos que permitam ajudar a fechar este ciclo. Com
o desaparecimento e ainda que as probabilidades apontem para o falecimento da criança
ou jovem, uma ínfima possibilidade do contrário poderá ser suficiente para alimentar a
esperança constante de que aquela criança ou jovem venha a aparecer. Grande parte da
vida familiar poderá, inclusivamente, estagnar-se, funcionando em função dessa procura.
É frequente, nestas situações, os familiares ou amigos se encontrarem permanentemente
aterrorizados com fantasias de que a criança está a ser violentada, submetida a um
sofrimento atroz, o que faz com que vivam em estado permanente de vigília.

Nos casos em que a vítima é encontrada alguns anos mais tarde, poderá não ser reconhecido como
“o/a filho/a desaparecido/a”, uma vez que as lembranças dos familiares e amigos se cristalizaram
naquilo que a criança ou jovem era na fase em que desapareceu. Além disso, todo o sofrimento
a que poderá ter sido submetido, é suscetível de gerar grandes alterações na estrutura mental da
criança ou jovem, porque é perpetrado na fase em que se processava a formação da personalidade.

Neste processo de luto, seja pela vitimação sexual, pela morte ou pelo desaparecimento,
é muito importante que seja providenciado aos familiares mais próximos, especialmente
a possíveis irmãos da criança ou jovem, porque não raras vezes serão negligenciados
emocionalmente pelo resto da família que, involuntariamente, se rende ao sofrimento, e tende
a esquecer-se que os outros membros da família, especialmente se forem crianças ou jovens,
necessitam de alguma harmonia e nutrição afetiva para um desenvolvimento mental saudável.

De igual modo, é necessário ter atenção a indicadores de ideação suicida evidenciados pelos
elementos mais próximos da vítima, uma vez que esta solução poderá surgir como estratégia
de fuga a uma realidade e sofrimento que não conseguem suportar.

xii. Perturbação de várias áreas da vida familiar

A existência de um crime de natureza sexual poderá afigurar-se como um desafio que põe
à prova as capacidades de adaptação da família no que respeita à gestão de emoções, ao

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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
4. O processo de revelação da vitimação

estabelecimento de prioridades, levando a que, por vezes, toda a dinâmica familiar seja afetada.

Quando mais próximo o/a autor/a do crime for da rede de suporte, maior será o impacto no
sistema familiar e nas áreas de vida afetadas. Tal implicará a passagem por um processo de
rutura com o/a autor/a do crime, ao qual será inerente uma mudança em todas as áreas da
vida nas quais aquele/a tinha influência (ex.º: questões económicas, divórcio, evitamento de
convívios familiares, mudança de residência).

É portanto pertinente que os técnicos avaliem a capacidade da família em reestabelecer as


suas rotinas que eram habituais e que foram diretamente afetadas pela prática do crime.

xiii. Maior união familiar

Nem sempre a situação de vitimação desagrega a família; com efeito, por vezes esta
poderá unir-se para a prestação de suporte mútuo perante o sofrimento despertado por
esta descoberta, ou juntam esforços pelo objetivo comum de dar suporte à criança ou
jovem (ex.º: protegendo-a, apoiando-a, pesquisando outros meios de ajuda, ou mesmo
procurando-a, em casos de desaparecimento).

Por outro lado, a excessiva preocupação e desejo de proteção absoluta pode gerar um
aglutinamento, controlo excessivo, que faz com que esta união se torne nociva. É importante
que a família se una para que viabilizem esforços que lhes permitam ultrapassar esta
situação de forma adaptativa. Contudo é importante tentarem não permitir que este
problema se torne o centro das suas vidas e que não incorram na tentação de privar a
criança ou jovem da liberdade e intimidade que tinha, com o objetivo de a protegerem, sob
o risco de, dissimuladamente, a vitimarem de outra forma.

xiv. Mudança relacional pais/educadores – criança

Por vezes, os elementos de suporte da vítima poderão manifestar ora distanciamento, ora
agressividade, pena, controlo desadaptado, excessiva permissividade como tentativa de
compensar o sofrimento que a vítima possa estar a passar.

Nalguns casos, a mudança também poderá ser positiva, no sentido do estabelecimento de


uma maior confiança, de uma relacionamento mais transparente, de uma maior entreajuda, de

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Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
4. O processo de revelação da vitimação

maior fluidez na comunicação e expressão de sentimentos. Não se pode esquecer que para se
dar uma grande mudança estrutural num sistema familiar, geralmente é necessário passar por
uma fase de crise. Ora, essa crise poderá trazer à tona outras questões por resolver no seio da
família, que encontram naquele momento a sua oportunidade de serem trabalhadas.

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Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas

5. Reações e consequências experienciadas


A reação da criança ou jovem, no imediato ou após a violência contra si dirigida poderá
ser diversificada atendendo à singularidade de cada uma das vítimas, nomeadamente tendo
em conta as caraterísticas individuais e da personalidade e os contornos da violência sexual
perpetrada, como sejam o tipo de atos sexualmente abusivos, o grau de segredo e de ameaça
contra a vítima, a frequência dos atos, a sua duração e a continuidade dos episódios.

Para além disso, as diferenças nas reações das vítimas poderá depender da proximidade
entre a vítima e o/a autor/a do crime – com efeito, uma maior proximidade poderá acarretar
consequências mais gravosas para as crianças (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004).

Durante o crime, ou depois de este ter acontecido, a criança ou jovem poderá apresentar
reações muito variadas, tanto ao nível das emoções e dos pensamentos, como dos seus
comportamentos, que podem surgir logo após o abuso e estender-se pela vida adulta (Boney-
McCoy & Finkelhor, 1995; Finkelhor & Tackett, 1997), com mais ou menos intensidade.

a. Reações durante o episódio violento

Em relação à violência sexual exercida contra crianças e jovens, podem ser apontadas
algumas reações que poderão estar presentes durante o ato violento (APAV, 2011):

t Reação passiva, apática e ausente de resistência: durante a agressão, algumas crianças


optam por uma postura passiva e inclusive apática relativamente aos atos perpetrados
pelo/a autor/a do crime: não tentam fugir, não se defendem da agressão e não gritam.
O facto de as vítimas não tomarem nenhuma das atitudes anteriormente descritas
não significa que as mesmas sejam responsáveis, coniventes ou que consintam os atos
perpetrados pela pessoa que cometeu o crime sexual. A tomada desta atitude por
parte das vítimas pode significar a adoção de uma estratégia de proteção da própria
vítima com o intuito de prevenir o recurso à violência física por parte do/a autor/a do
crime. A passividade apresentada pela vítima pode ser atribuída ao medo intenso que
a vítima experienciou durante a agressão, dada a possibilidade de a sua vida estar a
ser colocada em risco. A passividade pode, igualmente, ser justificada pelo medo que
a criança tem de ser morta, pela vergonha que sente, ou ainda pelo facto de estar sob
ameaça de ser revelada a situação aos seus pais ou outros familiares.
t Reação agressiva: durante a violência sexual algumas vítimas reagem com
agressividade face ao/à autor/a do crime, gritando, tentando fugir ou tentando

82
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas

bater-lhe. Este tipo de resistência poderá ser mais frequente no início da vitimação,
ou seja, nos primeiros episódios de violência sexual, reduzindo-se ou anulando-se
posteriormente, dada a relação de forças em presença, vencendo o poder físico e
psicológico do/a autor/a do crime. Esta reação violenta por parte da vítima pode, de
alguma forma, contribuir para o agravamento da violência física praticada contra si,
para conseguir concretizar os atos sexualmente violentos e simultaneamente reduzir
esta reação até à sua nulidade.
t A participação ativa na agressão sexual: algumas crianças participam ativamente
na situação de agressão sexual contra si concretizada, não revelando resistência,
consentindo os atos abusivos, aceitando os benefícios resultantes do facto de manter
uma relação especial e chegando a incitar o/a autor/a do crime. Estas situações em
nada são atenuantes da responsabilidade, que está sempre nas mãos de quem pratica
o crime, na medida em que a criança ou jovem (pela sua incipiente maturidade
cognitiva e sócio-emocional) não está, nesta fase de desenvolvimento, capaz de
decidir conscientemente relativamente à sua sexualidade. A suposta perceção tida
por parte do/a autor/a do crime em relação ao consentimento que a vítima fornece
não invalida a responsabilidade do/a primeiro/a, apesar de contribuir para a adoção
de uma postura que minimize a sua responsabilidade pelos atos e para a atribuição
dos mesmos à sedução ou ao comprazimento da criança ou jovem.

b. Sinais e sintomas

Em regra, as crianças e jovens vítimas de violência sexual poderão evidenciar a presença de


sinais34 e sintomas35 como consequência dos episódios violentos, sendo alguns facilmente
identificáveis (ex.º: alterações na saúde física e reprodutiva), sobretudo para os profissionais
de saúde; outros, contudo, podem ser difíceis de identificar enquanto indicadores de
vitimação sexual, dado que poderão estar relacionados com outros problemas existentes na
criança ou jovem, e não exclusivamente com a situação de violência sexual.

Tal como já foi abordado antes, o aparecimento de sinais ou sintomas poderá não se dar no
imediato, e acontecer algum tempo após e, por vezes, já passados alguns anos ou na vida
adulta. Assim, a manifestação de sintomas poderá apresentar-se como um processo gradual,
no qual a ausência inicial de sintomas é, posteriormente, substituída por uma manifestação
reativa e sintomática (APAV, 2011).

Algumas das consequências frequentemente observáveis em crianças e jovens sexualmente


vitimados são o medo, ansiedade, agressividade e irritabilidade. Dependendo da gravidade 34. V. Glossário
35. V. Glossário

83
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas

da vitimação sexual experienciada, podem também surgir perturbações ao nível do sono,


enurese, diminuição do rendimento escolar e absentismo escolar. Este tipo de vitimação
poderá também levar a um aumento da atividade sexual e à presença de comportamentos
sexuais desadequados (Roopesh, 2016).

Relativamente aos efeitos a longo prazo, estudos empíricos evidenciam a presença


de consequências fisiológicas, nomeadamente dor crónica (ex.º: enxaquecas, dores
abdominais), perturbações do sono e do comportamento alimentar (Kendall-Tackett,
Marshall & Ness, 2003). Verifica-se, também, que vítimas de violência sexual apresentam
uma maior probabilidade de adotarem comportamentos de risco para a saúde,
designadamente o consumo de álcool e estupefacientes e a prática de relações sexuais
desprotegidas (Kendall-Tackett, 2003).

Quanto às consequências a nível psicológico, destaca-se a depressão, ansiedade, Perturbação


de Stress Pós Traumático (PSPT), baixa autoestima e autoeficácia e a presença de
sentimentos de culpa (Kendall-Tackett, 2012). As distorções cognitivas podem, também,
constituir outra consequência a longo prazo, através da hostilidade, que se poderá
manifestar pela dificuldade em estabelecer relações de confiança, presença de sentimentos
de insegurança em relação aos outros e perceção do mundo como perigoso (Smith, 1992, cit.
in Kendall-Tackett, 2012).

No que diz respeito às consequências sociais e relacionais, estudos e observações clínicas


têm vindo a apontar para uma associação entre a violência sexual na infância e adolescência
e alterações a curto e longo prazo no funcionamento social. As dificuldades nos
relacionamentos interpessoais surgem das respostas cognitivas imediatas e condicionadas ao
abuso, que se estendem a longo prazo, como por exemplo sentimentos de desconfiança em
relação aos outros, raiva e/ou medo dirigido às pessoas sentidas como detentoras de poder,
receio de abandono ou perceção de injustiça. Estas dificuldades podem também surgir
das respostas de acomodação adotadas pela criança ou jovem durante a experiência de
vitimação, nomeadamente o evitamento, a passividade e sexualização dos comportamentos.
(Briere & Elliott, 1994). Pode, também, ser observada uma dificuldade no estabelecimento
de relações afetivas e estáveis, bem como um aumento do conflito e tensões nas relações
interpessoais. Salienta-se ainda a possibilidade de surgir o envolvimento em condutas anti-
sociais, e até mesmo delinquentes, bem como dificuldades escolares (ex.º: problemas de
atenção e concentração, descida das notas, absentismo escolar (APAV, 2011).

84
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas

c. Ausência de sinais e/ou sintomas

É de salientar que existem crianças que não manifestam quaisquer sintomas ou sinais
de vitimação, e tal não contraria a existência de uma experiência sexualmente abusiva.
Ademais, algumas revisões de estudos realizados neste âmbito concluíram que um número
significativo de crianças vítimas de violência sexual não manifestava sintomatologia
(Kendall-Tackett, Williams & Finkelhor, 1993; Saywitz, Mannarino, Berliner & Cohen,
2000). Com efeito, Kendall-Tackett, Williams & Finkelhor (1993) fizeram uma revisão de 45
estudos e verificaram que aproximadamente um terço das crianças vítimas de abuso sexual
não apresentava quaisquer sintomas.

Neste sentido, esta ausência de sintomas pode estar relacionada com as características da
violência sexual exercida (ex.º: impulsividade dos atos, tipo de relação com o/a autor/a do
crime), as características individuais da criança ou jovem (ex.º: desenvolvimento cognitivo,
atribuição causal da violência sexual sofrida), e a qualidade do apoio recebido pela sua rede
de suporte informal (ex.º: pais, familiares, amigos ou outras figuras de referência).

d. Variáveis que poderão influenciar as consequências


experienciadas
Pelo que até aqui vem sendo dito, pode concluir-se que a violência sexual poderá
efetivamente trazer consequências negativas para o presente e futuro da criança ou jovem.
No entanto, importa considerar a existência de recursos internos (ex.º: resiliência) e externos
(ex.º: suporte familiar), que permitem à criança lidar com experiências traumáticas. Assim,
diferentes variáveis podem moderar a gravidade e o tipo de consequências sentidas pela
vítima (APAV, 2011).

i. Características da criança ou jovem

As características individuais da criança ou jovem desempenham um papel fundamental


no desenvolvimento ou de não desajustamento emocional e psicológico associado à
vitimação sexual. Entre várias podemos salientar a atribuição causal e o locus de controlo,
ou seja, a atribuição que a criança ou jovem formula quanto às causas que expliquem o
que lhe aconteceu, bem como o seu papel na situação violenta. Salienta-se, que quando
estas atribuições são internas (a criança ou jovem atribuiu a responsabilidade pelos atos

85
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas

a si mesmo/a) estão presentes níveis mais intensos de sintomatologia, sentimentos de


culpabilização, diminuição do autoconceito e da autoeficácia.

Outros recursos internos podem, por sua vez, podem minimizar os efeitos negativos perante
uma experiência de vida adversa, nomeadamente o desenvolvimento cognitivo e a presença
de competências de resolução de problemas e conflitos de procura de solução alternativas.

ii. Relação prévia com o/a autor/a do crime

Em situações em que o/a autor/a do crime é desconhecido/a, a criança ou jovem poderá


sentir uma maior facilidade em lidar com os efeitos adversos da situação de vitimação
sexual experienciada, dada a inexistência de um laço afetivo ou familiar para com o mesmo.
No entanto, se o/a autor/a do crime for alguém próximo da vítima (ex.º: familiar, amigo)
ou alguém com quem estabeleceu primeiramente laços de afeto, poderá revelar-se mais
difícil superar os efeitos negativos da situação violenta vivenciada, dado que existia uma
relação de confiança e proximidade com quem praticou o crime. Assim, a vítima poderá
experienciar sentimentos ambivalentes face à relação com o/ autor/a do crime – por um
lado, o afeto naturalmente sentido por este/a; por outro, os sentimentos de confusão e
traição face à violência exercida contra si, por uma pessoa da sua confiança e com quem
tinha estabelecido uma relação de afetividade.

iii. Reação do/a autor/a do crime após a revelação

O medo que a criança ou jovem sente do/a autor/a do crime, associado à possibilidade
(real ou percecionada como tal pelo vítima) de vir a ser vítima de ameaças, chantagens e/
ou perseguições após a revelação da situação de abuso, poderá potenciar o sofrimento
psicológico e desânimo na vítima.

iv. Duração e intensidade da violência sexual perpetuada

Quanto mais duradora e/ou grave a violência sexual exercida (ex.º: quando os atos violentos
são mais intrusivos) contra a criança ou jovem, maiores poderão ser as consequências ao
nível psicológico e físico, e mais dificuldades poderão existir na recuperação.

86
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas

v. Contexto cultural

A intervenção na área da violência sexual envolve um conjunto de questões sensíveis, as quais


são fortemente influenciadas pela etnia e crenças religiosas, nomeadamente no que respeita à
sexualidade, virgindade, nudez, disciplina, família e limites na relação pais-filhos. A forma como
crianças e jovens experienciam sentimentos relacionados com a vivência sexualmente violenta, e o
modo como a revelação desta situação é recebida pela sua rede de suporte variam de acordo com
o contexto cultural em que se inserem. Por exemplo, algumas culturas asiáticas podem acreditar
no abuso sexual como forma de ‘karma’ (ou punição por transgressões cometidas no passado) ou
mostrarem-se especialmente sensíveis ao estigma social associado. Como tal, as diferenças culturais
devem ser abordadas com conhecimento e sensibilidade, devendo ser adotada pelo/a profissional
uma postura livre de julgamentos, evitando estereótipos, de forma a prevenir a uma análise
desadequada das necessidades da criança ou jovem sexualmente vitimados (Allnock & Hynes, 2012).

vi. Manutenção da situação de vitimação em segredo

A criança ou jovem vítima de violência sexual pode não revelar a situação de vitimação
por vários motivos e pelas estratégias utilizadas pelo/a autor/a do crime nesse sentido.
Nestes casos, as consequências negativas da vitimação são potenciadas, sobretudo no plano
psicológico, pelo facto de a violência persistir no tempo, expondo continuamente a criança
ou jovem à situação violenta.

vii. A demora na revelação

A criança ou jovem pode, efetivamente, pedir ajuda a alguém, denunciando também o/a
autor/a do crime, mas pode fazê-lo muito tempo depois do primeiro episódio de violência.
Este período de segredo e de persistência da situação violenta poderá ser especialmente
prejudicial para o bem-estar psicológico e emocional da vítima.

viii. Reação de quem recebeu o pedido de ajuda

A reação da pessoa a quem a criança ou jovem decide revelar a sua experiência de violência
sexual poderá ter um duplo efeito. Assim, esta pessoa pode não acreditar na experiência

87
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
5. Reações e consequências experienciadas

revelada, desvalorizando o que é contado pela criança ou jovem, ou até afirmando que tais
relatos são mentira. A pessoa a quem é pedida ajuda pode atribuir a responsabilidade da
experiência de violência à própria vítima, culpando-a pelos atos do/a autor/a do crime.
Tal poderá desencadear um forte sofrimento psicológico na vítima de violência e levar à
dissuasão de novos pedidos de ajuda, mantendo a criança ou jovem na situação abusiva,
provavelmente, cada vez mais gravosa, tanto física como sexualmente. Por sua vez, uma
postura de escuta, compreensão, serenidade e reforço pela coragem em ter pedido ajuda
contribui positivamente para a segurança da criança ou jovem, para o seu empoderamento e
para a normalização e tentativa de resolução da situação violenta vivenciada.

ix. Reação dos pais e a qualidade do apoio familiar recebido

O apoio prestado pelos pais, pela família alargada e pelos amigos é essencial para a
superação da vivência sexualmente violenta, pois poderá ser potencializada uma maior
estabilidade emocional, segurança, confiança, afetividade e carinho à criança ou jovem.

x. Apoio recebido

A ajuda inicialmente recebida, se rápida e eficaz, é crucial para que eventuais efeitos
negativos surgidos imediatamente após a vitimação sexual sejam minimizados. A qualidade
desta ajuda inicial é particularmente determinante para que sejam evitados fenómenos de
vitimação secundária, que geralmente, ocorrem pela forma como a vítima é tratada quando
recorre aos vários serviços de ajuda/apoio disponíveis, (ex.º: relatar por diversas vezes
a situação de vitimação; encaminhamento para diferentes instituições; inadequação no
atendimento providenciado) e que poderão agravar os efeitos da situação de violência.

xi. Qualidade do apoio especializado prestado

A qualidade do apoio especializado recebido pode ser um fator importante na minimização


do impacto negativo (sobretudo ao nível psicológico) da violência sexual sofrida, ao
facilitar a recuperação e superação da experiência negativa vivenciada, promovendo o
restabelecimento do bem-estar psicológico e emocional da criança ou jovem.

88
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
5. Reações e consequências experienciadas

xii. Condições da vida futura da vítima

O percurso de vida da criança ou jovem é pautado por vários desafios e acontecimentos,


sejam estes previsíveis (ex.º: crescimento físico, envelhecimento, entrada da idade adulta)
ou imprevisíveis (ex.º: vivência de acontecimentos traumáticos, morte de um ente querido).
A vivência no passado de uma situação de vitimação sexual poderá apresentar um efeito
nocivo na forma como estas adversidades e desafios são enfrentados, podendo levar ao
surgimento de sintomatologia que até então estaria (aparentemente) resolvida.

O percurso de vida é também marcado pelo estabelecimento de relações interpessoais


distintas mediante a fase de desenvolvimento em que se encontra (ex.º: relação com os pares,
relações de intimidade, relação com os filhos). Estas relações poderão desempenhar um
efeito protetor, na medida em que potenciam a autoestima e a criação de laços afetivos e de
vinculação, os quais podem promover uma diminuição dos efeitos negativos da experiência
sexualmente traumática vivenciada na infância ou na adolescência. Pelo contrário, as
relações de afeto pautadas pela instabilidade e insegurança podem contribuir para o
desajustamento emocional, e assim potenciar os efeitos negativos da vitimação sofrida na
infância ou adolescência.

89
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária

6. Fatores de proteção e resiliência da rede de


suporte primária36
Alguns estudos têm vindo a demonstrar que os efeitos da violência sexual nas crianças ou
jovens vítimas terão um menor impacto nas suas vidas se aquelas estiverem inseridas em
famílias consideradas mais funcionais (Briere & Elliott, 1993). Isto verifica-se através da
manifestação menos intensa de sintomatologia psicológica por parte da vítima após o crime
e por uma melhoria significativa a este nível quando é trabalhado o funcionamento da sua
rede de suporte primária, aumentando o seu nível de funcionalidade. Contudo, uma vez
que a funcionalidade das famílias é um constructo bastante difícil de avaliar em termos
quantitativos e é influenciado por múltiplos fatores difíceis de controlar em contexto de
investigação, os estudos existentes poderão ainda não refletir o seu verdadeiro impacto. De
qualquer forma, uma vez que a rede de suporte primária tende a ser, na maior parte dos
casos, a família ou a instituição onde a criança está acolhida, importa abordar os pontos
positivos a estimular e reforçar.

a. Padrões de comunicação clara e aberta

Quando a comunicação é estimulada com clareza, de uma forma bidirecional, genuína,


transparente, verdadeira e espontânea, mas ponderada, os seus membros sentem-se mais
motivados a expressar as suas emoções e sentimentos. Isto permite à vítima conversar sobre
aquilo que a faz sofrer quando se sentir preparada, sem que esteja inibida de falar ou se sinta
coagida a abordar algo que se refere à sua intimidade.

b. Rede familiar coesa, mas flexível

É importante que a família ou instituição que presta o suporte à criança ou jovem vítima de
um crime sexual detenha um nível substancial de conexão, colaboração e solidariedade entre
si, para que não se desintegre perante as adversidades. Contudo, é igualmente importante
que esta conexão encontre um ponto de equilíbrio com alguma flexibilidade que lhe permita
adaptar-se à mudança, ajustando-se com celeridade e consistência. Ou seja, é importante que
a estrutura da rede de suporte primária ceda a algumas mutações com vista à acomodação das
necessidades que vão surgindo, resistindo, contudo, a que estas mudanças possam alterar por
completo os seus costumes, a sua identidade e a ligação entre os seus membros.
36. V. Glossário

90
Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual Parte I - Compreender
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária

c. Padrões de vinculação segura

Estes encontram-se normalmente associados a um reforço da autoestima dos membros


da rede de suporte, à gestão mais equilibrada das emoções e à adoção de estratégias de
resolução de problemas de forma mais adaptativa e eficaz. Tudo isto mune os membros da
rede de suporte de uma maior resistência às adversidades e uma aumentada autoconfiança
na sua própria capacidade de resistir às adversidades, o que antevê um melhor resultado no
processo de apoio do crime sexual.

d. Limites entre os subsistemas claros, bem definidos,


mas permeáveis
A clareza na definição dos papéis dos adultos e das crianças confere à criança ou jovem
a capacidade de os compreender melhor, permitindo-se viver a sua infância sem arcar
com responsabilidades ou informação que poderão perturbar o curso normal do seu
desenvolvimento. Por outro lado, a consistente delimitação entre aquilo que é permitido
aos adultos e crianças poderá, em algumas situações, funcionar como elemento
preventivo de uma eventual situação de abuso ou mais facilmente motivar a sua revelação.
Concomitantemente, uma certa permeabilidade, sem intrusão, entre os subsistemas, permite
à criança/jovem eliminar alguma curiosidade sobre o mundo dos adultos, acalmando a sua
necessidade de o viver, vendo respeitada a sua identidade com os seus pares.

e. Supervisão atenta, sem recurso a um controlo excessivo

Por um lado, o facto da criança ou jovem ser adequadamente supervisionado pelos adultos
que por ela são responsáveis, assegura, à partida, que percecionará maior segurança e que
terá menos probabilidade de poder vir a ser revitimizada. No entanto, quando a ansiedade e
medo por parte da sua rede de suporte primária se traduz em padrões de controlo excessivo,
esta instabilidade emocional tenderá a refletir-se na vítima, o que poderá condicionar a
sua reestruturação após o crime. Além disso, a limitação exacerbada da liberdade que seria
adequada para a idade daquela criança ou jovem, especialmente quando é fundamentada
pela ocorrência do crime, poderá desencadear nesta a sensação de poder estar sofrer algum
tipo de castigo pelo crime que sofreu, traduzindo-se isto numa nova vitimação.

91
Parte I - Compreender Capítulo II – A criança e o jovem vítimas de violência sexual
6. Fatores de proteção e resiliência da rede de suporte primária

f. Existência de uma adequada rede social de apoio

Afigura-se como positivo que a vítima e os seus elementos de suporte mais próximos
disponham de uma rede social de apoio adequada, com a qual tenham a capacidade de
comunicar eficazmente, permitindo que usufruam do seu apoio sempre que necessitem.
Contudo, é conveniente que a família da vítima tenha expectativas claras acerca da sua
rede social e não permita que esta a substitua ou se sobreponha às suas funções (salvo
exceções em que tal seja necessário), sob o risco de a rede social poder intensificar alguma
desresponsabilização ou confusão.

g. Inexistência de comportamentos aditivos ou


psicopatologia
A presença de psicopatologia ou comportamentos aditivos na família de origem de uma
criança ou jovem, não só a poderá predispor ao risco de vir a sofrer um crime sexual, como
poderá ditar um pior prognóstico na sua recuperação a nível psicológico após a situação de
vitimação. Desta forma, perante a presença de comportamentos aditivos ou psicopatologia
por parte de algum dos elementos da família da vítima, deverá fomentar-se que este seja
resolvido, com o objetivo de melhor se contribuir para o bem-estar de todos os elementos da
rede de suporte primária.

92
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Caracterização

1. Caracterização

As pessoas que abusam sexualmente de crianças e jovens constituem um grupo muito


diverso, não sendo possível descrever um único perfil. Myers et al. (1989, p.142, cit. in Itzin,
2000) propõem a seguinte definição: “um grupo heterógeno com algumas características em
comum para além do comportamento sexualmente desviante. Ademais, não existe nenhum teste
psicológico ou instrumento que permita uma deteção fiável de pessoas que abusam ou poderão
abusar sexualmente uma criança…não existe um perfil do ‘típico’ abusador de crianças”.

Como tal, estes/as autores/as apresentam diferentes motivações, personalidades, competências


sociais, antecedentes criminais e estratégias de atuação. No entanto, sabe-se que na maioria das
situações este crime ocorre na relação que o/a autor/a do crime estabelece com a criança, com
o intuito de conseguir a sua complacência e prevenir a relevação do abuso (Eldridge, 2000).
Em termos estatísticos, de acordo com os dados do Sistema de Informação Criminal da Polícia
Judiciária de 2012, os/as autores/as dos crimes são maioritariamente do sexo masculino, com
idades entre os 31 e os 50 anos, e mantêm um relacionamento familiar com as suas vítimas.

Na década de 70, os investigadores começaram a classificar este tipo de agressores/as, tendo


por base a sua motivação para a perpetração do comportamento sexual desviante. Um dos
esquemas básicos de classificação foi proposto por Groth et al. (1982, cit. in Terry & Tallon,
2004), o qual introduziu dois tipos de agressores/as: de regressão e fixação.

Na tipologia de fixação, o/a agressor/a revela uma preferência sexual por crianças de forma
persistente, contínua e compulsiva. Neste grupo é frequente o diagnóstico de pedofilia ou a
presença recorrente e intensa de fantasias sexuais, envolvendo crianças na pré-puberdade,
durante um período de pelo menos seis meses. Estes/as agressores/as normalmente não
têm qualquer relação com a vítima, e o abuso é perpetrado de forma premeditada. Os
comportamentos sexualmente violentos tendem a surgir na adolescência, e uma das
principais estratégias utilizadas pelo/a agressor/a consiste no estabelecimento de uma
relação de proximidade e confiança com a criança, de forma a garantir a continuação
do comportamento abusivo. Estes/as agressores/as tendem a escolher vítimas do sexo
masculino, com as quais não existe qualquer grau de relacionamento familiar (American
Psychiatric Association, 1999; Conte, 1991, cit. in Terry & Tallon, 2004). É de referir que
nestes/as agressores/as o risco de reincidência é elevado, e quanto maior o número de
vítimas, maior será o risco.

Por sua vez, no perfil de regressão os comportamentos sexualmente violentos têm início na
idade adulta, e normalmente são precipitados por fatores de stress. Estes fatores podem ser
situacionais, como por exemplo o desemprego, problemas conjugais e abuso de substâncias,

93
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
1. Caracterização

ou podem estar relacionados com determinados estados emocionais negativos, como a


solidão, stress, isolamento ou ansiedade. Neste perfil, os/as agressores/as possuem algum
grau de proximidade ou de parentesco com as vítimas. Uma vez que nestes/as agressores/as
não está presente uma fixação sexual por crianças/jovens, o risco de reincidência é menor,
sobretudo se tiver sido realizado algum programa de reabilitação (Terry & Tallon, 2004).

Outra tipologia amplamente divulgada sobre a violência sexual contra crianças e jovens foi criada
no final da década de 70, por Burgess, Groth e Holmstrom, que diferencia os/as agressores/as
situacionais dos/as agressores/as preferenciais (Holmes & Holmes, 1996, cit in. Soeiro, 2009).

No grupo dos/as agressores/as situacionais não está presente um verdadeiro interesse sexual
por crianças/jovens, e os crimes são desencadeados quando determinados fatores de stress
estão presentes (Dunaigre, 2001, cit. in Soeiro, 2009). Como tal, verifica-se que neste grupo
os comportamentos sexualmente violentos não são apenas direcionados a crianças/jovens,
mas também a pessoas que se encontram numa situação de maior vulnerabilidade (por
exemplo, idosos, pessoas com défices cognitivos, entre outros). É portanto, um tipo de abuso
cuja motivação não é de cariz sexual (Salter, 2003, cit. in Soeiro, 2009).

Por seu lado, o grupo dos/as agressores/as preferenciais, é aquele cujo comportamento abusivo
tende a provocar os danos mais graves nas suas vítimas. Neste grupo, os comportamentos
inserem-se no âmbito da pedofilia, estando presente um comportamento sexualmente
desviante, o qual pode surgir durante a adolescência. Estes/as agressores/as manifestam um
interesse sexual por crianças, as quais são percecionadas como objeto de prazer, e o abuso em si
é um estilo de vida e a pornografia infantil integra a fantasia (Salter, 2003, cit. in Soeiro, 2009).

Danni et al. (2002, cit. in Deb, S & Mukherjee, A., 2009) realizaram um estudo com
o intuito de diferenciar três tipos de agressores que abusam sexualmente de crianças/
jovens: pedófilos, hebofilos e agressores/as incestuosos/as. Neste estudo participaram 168
agressores/as, com condenação, e dos resultados obtidos verificou-se que os pedófilos
revelam um maior interesse sexual por vítimas na pré-puberdade, e normalmente recorrem
à estratégia de sedução, quando comparados com os/as agressores/as não pedófilos. Os/
as autores/as verificaram, também, que nos/as agressores/as hebofilos os atos sexualmente
violentos tendem a ser desencadeados por fatores de stress. Quanto aos agressores
incestuosos, verificou-se que os comportamentos tendem a surgir devido a sentimentos de
revolta e raiva, que podem estar relacionados com outros relacionamentos, designadamente
com a companheira ou com a figura materna (Terry & Tallon, 2004).

Considerando a literatura supramencionada, num estudo realizado por Soeiro (2009) foi
possível identificar uma tipologia dos abusadores sexuais de crianças para a população

94
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
1. Caracterização

portuguesa, através da análise de 131 casos de abuso sexual de crianças, investigados pela
Policia Judiciária, na área dos Crimes Sexuais. Neste sentido, da análise estatística efetuada
foram identificados quatros perfis:

t Intrafamiliar Inadequado: engloba pais e padrastos, com idades compreendidas


entre os 26 e os 55 anos de idade. Apresentam habilitações baixas, e podem
apresentar antecedentes criminais por outro tipo de crimes. O comportamento
criminal caracteriza-se pela premeditação e grau de gravidade elevado ao nível das
consequências da vitimação (penetração vaginal e anal). Os abusos ocorrem na casa
do agressor/vítima. Na sua maioria, a vítima é do sexo feminino e tem entre os 8 e 12
anos, sendo frequente também terem mais de 13 anos, e são de famílias biparentais.
t Extrafamiliar Regressivo: estão presentes agressores que fazem parte do círculo de
pessoas conhecidas da vítima (ex.º: vizinhos, conhecidos). As estratégias de atuação
mais utilizadas são a manipulação e sedução, e o comportamento sexualmente
violento consiste em atos exibicionistas associados a outro tipo de toques de natureza
sexual. O abuso ocorre quando o agressor tem acesso à vítima, nomeadamente
quando vai passear com a vítima. Quanto às características da vítima, destaca-se a
sua estrutura familiar: crianças institucionalizadas ou de famílias reconstruidas.
t Intrafamiliar Agressivo: integra pais e padrastos, alguns com quadros
psicopatológicos diversos (ex.º: depressão, perturbações da personalidade) e
possuem antecedentes criminais pelo mesmo tipo de crime. Estes agressores revelam
comportamentos de ameaça e força, mesmo quando a vítima revela resistência. O
abuso ocorre na casa onde vivem, e as vítimas apresentam vários tipos de lesões
(genitais e anais). Neste perfil, as vítimas são mais jovens – até aos 7 anos de idade,
e a estrutura familiar que predomina é nuclear. Estas crianças são de famílias
monoparentais ou estão institucionalizadas.
t Extrafamiliar Sedução: engloba agressores vizinhos/amigos da família, professores
e desconhecidos, na sua maioria solteiros. Estes agressores são qualificados, com
idades entre os 18 e 25 anos, e mais de 55 anos. Ao nível das habilitações, este é
o grupo que revela um índice mais elevado (secundário e ensino superior). Não
apresentam antecedentes criminais, nem quadros psicopatológicos. O comportamento
sexualmente violento não é premeditado, e geralmente consiste em toques sexuais
variados. Estes agressores não ameaçam a vítima, revelam uma postura amável, e
perante a resistência da vítima, o abuso cessa. As agressões ocorrem num espaço
público, na escola ou nas imediações. A vítima não apresenta lesões físicas. Na sua
maioria, as vítimas são do sexo masculino e têm entre 2 e 7 anos de idade.

95
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online

2. Agressores sexuais em contexto online

A internet, pelo seu baixo preço, pela fácil acessibilidade e pelo sentido de anonimato que
produz nos utilizadores (Young, 2000), constitui uma ferramenta utilizada na agressão sexual.

A internet permite um conjunto variado de comportamentos no que se refere à agressão


sexual, que integram não só o consumo e partilha, mas também permite a criação de redes
de indivíduos para troca de experiências e interesses, e a utilização de salas de chat legítimas
(Drukin,1997) ou grupos sociais (ex.º: Facebook) para recrutar potenciais vítimas.

Aproximadamente 3/4 dos homens e 1/2 das mulheres visualizam de forma intencional
pornografia através da internet (Albright, 2008). Para alguns indivíduos a utilização da
internet, de forma aditiva (Young, 2001), ou com propósitos sexuais interfere com aspetos-
chave da sua vida, como a carreira, o bem-estar psicológico e sexual e as relações íntimas
offline (Brand et. al 2011; Green, Carnes, Carnes, & Weinman, 2012; Levin Lillis, & Hayes,
2012; Putman, 2000).

A prevalência de comportamentos sexuais problemáticos online na população geral varia


de 1 a 6,5% (Cooper, Delmonico, & Burg, 2000; Cooper, Griffin-Shelley, Delmonico, &
Mathy, 2001; Daneback, Cooper, & Mansson, 2005). A expressão mais preocupante de
comportamentos sexuais problemáticos na internet é considerada aquela da qual resulta a
vitimização de crianças ou adolescentes, sendo que 13% dos que foram classificados com
comportamentos de utilização problemática da internet viram pornografia infantil e 6%
tinham sido acusados de ter agredido sexualmente uma criança (Mitchell & Wells, 2007).

Os agressores sexuais online podem assim, utilizar a internet para facilmente aceder a
conteúdos de pornografia de crianças e adolescentes, transmitir e partilhar esses conteúdos
com outros indivíduos e produzir os próprios conteúdos. Esta partilha pode ser feita com
objetivos pessoais, como aumentar a sua coleção de pornografia infantil ou satisfazer a sua
própria libido, como pode ter objetivos comerciais e financeiros. A internet permite ainda
a utilização da pornografia de crianças e adolescentes, a par da agressão sexual presencial
no chamado processo de “grooming”, de modo a dessensibilizar o menor e normalizar
o comportamento sexual pretendido (Lanning, 2001). O risco de vitimização também
aumenta com o contacto facilitado das crianças com o meio informático, que ocorre cada
vez mais cedo na infância (ex.º: cerca de 42% das crianças de 9 aos 12 anos têm perfis em
redes sociais [EU Kids, 2013]), de forma pouco supervisionada, relativamente ao conteúdo a
que estas acedem ou com quem comunicam.

A internet possui, assim, um duplo impacto na agressão sexual: facilita a expressão de

96
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
2. Agressores sexuais em contexto online

interesses sexuais patológicos ou desviantes (Taylor & Quayle, 2003; Young, 2001) através do
reforço intermitente que é potenciado pelas características da internet (Greendfield, 2010)
e providencia novos fóruns de contacto com potenciais vítimas de abuso sexual, tal como
a oportunidade de estabelecer redes entre indivíduos que partilhem um interesse sexual
prolífero em crianças (Beech, Elliott, Brigden & Findlater, 2008; Burke, Sowerbutts & Sherry,
2002; O’Connell, 2001; Taylor & Quayle, 2003).

A investigação acerca das características dos agressores sexuais online é ainda escassa,
inconsistente e em desenvolvimento. Só recentemente, os investigadores começaram a
desenvolver tipologias que caracterizem diferentes motivações e comportamentos da
agressão sexual online (ex.º: Krone, 2004; Lanning, 2010; Seto, Cantor, & Blanchard, 2006;
Seto, Wood, Babchishin, & Flynn, 2012).

Seto, Cantor e Blanchard (2006) verificaram que a agressão sexual online pode ser melhor
indicador de pedofilia do que a agressão sexual contra criança por contacto, já que os
agressores online apresentam maiores níveis de excitação sexual em resposta a imagens de
crianças, quando comparados com os agressores sexuais por contacto. Apesar de terem
verificado um maior interesse sexual por crianças, os autores também demonstraram que
o consumo de pornografia por si só, não é um bom preditor de passagem à agressão sexual
por contacto, pois os utilizadores de pornografia de crianças e adolescentes apresentavam
menores taxas de reincidência (Babchinshin, Hanson & Chantal, 2010) quando comparados
com agressores sexuais por contacto. Estes dados parecem ser algo paradoxais, visto que
o interesse sexual da criança é um dos fatores altamente associados à agressão sexual de
crianças e adolescentes (ex.º: Hanson & Morton-Bourgon, 2005).

Os estudos com agressores sexuais online que os comparam com agressores sexuais offline
referem diferenças ao nível das características de personalidade (traços antissociais), na
excitação sexual, empatia e identificação com a criança, na auto-regulação emocional, na
solidão emocional e no risco de reincidência destes indivíduos, o que permite inferir que
existe também diferente organização ao nível cognitivo. Estas diferenças serão abordadas
mais a fundo posteriormente na investigação atual sobre a temática. Em termos de
características sócio-demográficas parece haver bastante acordo na investigação atual (ex.º:
McCarthy, 2010 [Tab1]; Babchinsin et. al., 2013 [tab2]): os consumidores de pornografia
infantil aparecem como mais jovens (idade média de 37 anos) do que outros agressores, com
nível de educação secundário ou superior (64 a 68%), maioritariamente caucasianos (82%) e
sem antecedentes criminais (86%).

97
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online

a. Agressores sexuais online e parafilias

Devido à grande correlação apontada por Seto et al. (2010) entre o consumo de pornografia
de crianças e adolescentes e a presença de parafilias, algumas dimensões do interesse sexual
desviante devem ser tidas em mente:

t Autorregulação sexual: A autorregulação sexual pode ser definida como a capacidade


de gerir pensamentos sexuais, sentimentos e comportamentos de maneira a ser
consistente com o interesse próprio, e de maneira a que proteja os direitos dos outros
(critério mínimo de pró-socialismo). O nível mais baixo de autorregulação sexual
envolve comportamentos sexuais indiscriminados e desorganizados (Hanson, R.
K., 2009). O nível seguinte envolve falta de eficácia na regulação do comportamento
sexual, estádio em que o paciente identifica problemas associados ao comportamento
sexual, o que não é necessariamente percebido nos casos de maior desorganização.
O polo positivo deste contínuo expressa-se pelos indivíduos que se sentem satisfeitos
com o seu comportamento sexual, que respeita os direitos dos outros e as suas
estratégias de autocontrolo são suficientemente bem desenvolvidas para serem
percebidas como fáceis de aplicar. Existem algumas escalas de autoregulação sexual
que estão disponíveis (ex.º: Carnes, 1989; Coleman, Miner, Ohlerking, & Raymond,
2001; Kalichman & Rompa, 1995) que incluem itens relacionados com as dificuldades
auto-identificadas nos impulsos sexuais, atividades sexuais como resposta a
sentimentos negativos e uma história de comportamentos sexuais de alto risco.
t Interesses sexuais atípicos: A segunda dimensão diz respeito à extensão dos interesses
sexuais atípicos. Definir tais interesses sempre se revelou um tópico sensível.
Apesar de homens heterossexuais e homossexuais terem interesse sexual exclusivo,
é bastante comum para aqueles que se envolvem em comportamentos parafílicos
reportarem outros comportamentos parafílicos também (Abel et al., 1988; Heil &
English, 2009). Consequentemente, é possível criar uma dimensão que varia de
diversas parafilias a um interesse sexual exclusivo em comportamentos sexuais
ditos “normais”, com adultos e consentidos. Existem várias medidas para medir os
interesses sexuais incluindo o Clarke Sex History Questionnaire (Langevin & Paintich,
2002) e Wilson Sex Fantasy Questionnaire (Wilson, 1978).
t Intensidade da sexualidade: Por último, esta dimensão é a mais fácil de avaliar, tendo
em conta o grau de interesse sexual e atividade de muito baixo para muito alto. A
melhor abordagem a esta medida centra-se na avaliação dos recursos consumidos
pela atividade sexual, que poderiam ser dedicados a outras atividades mais
produtivas (família, trabalho).

98
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
2. Agressores sexuais em contexto online

b. Como se caracterizam então os agressores sexuais online

De um modo geral os agressores sexuais online acedem a pornografia infantil como


curiosidade ou integrada numa pesquisa mais ampla de pornografia e imagens; vitimizam
crianças e utilizam a pornografia infantil para alimentar as fantasias pré-abusos, localizar e
seduzir vítimas potenciais; traficam e produzem imagem de pornografia infantil de modo
a obter lucro. Apresentam-se, tal como outro tipo de agressores, como um grupo de grande
heterogeneidade. Atualmente, Merdian et al (2013), propõem um modelo baseado em três
dimensões que, quando combinadas, permitem a definição de três subgrupos de agressores
sexuais, especificamente online, ou seja, utilizadores de pornografia infantil, e auxiliam na
descrição de diferentes grupos de risco:

%JNFOTÍP"HSFTTÍPDPNCBTFFNGBOUBTJBPVBHSFTTÍPDPNCBTFOPDPOUBDUP UJQPEFBHSFTTÍP

Nesta dimensão são referidos dois extremos de um contínuo onde é colocado o agressor
sexual, sendo os pólos referidos a fantasia e o contacto. Os agressores sexuais online guiados
pela fantasia são maioritariamente motivados por interesses parafílicos (Elliot & Bleech,
2009). Nos estudos efetuados pela autora, 81% dos agressores exclusivamente online referem
a fantasia como tendo um papel central na sua vida, contra 50% dos agressores mistos e
40% nos agressores sexuais por contacto (Sheldon & Howitt, 2008). Neste pólo, os sujeitos
geralmente admitem um interesse sexual fixado em crianças, são caracterizados por baixas
competências sociais, níveis altos de solidão emocional e maior empatia com as vítimas.
Predominantemente apresentam distorções cognitivas no grupo de “a criança como ser
sexuais” e “natureza do dano”, sendo as crianças vistas como tendo autonomia sexual
própria e o sexo como incapaz de produzir danos ou consequências negativas. Este tipo
de indivíduos sente maior atração por menores em tempos de grande solidão ou de maior
insatisfação na sua relação adulta.

No pólo oposto, os indivíduos guiados pelo contacto utilizam a internet e a pornografia


infantil a par de um padrão mais amplo de agressão sexual. A internet constitui uma
ferramenta ativa na sua procura de potenciais vítimas e no processo de “grooming” já referido.

%JNFOTÍP.PUJWBÎÍPEBBHSFTTÍPTFYVBMJOGBOUJMonline

A motivação é colocada num contínuo entre situacional e preferencial em que os últimos


denotam técnicas bem desenvolvidas de agressão (Lanning, 2001). A importância de
estabelecer a motivação para o uso da pornografia passa pela possibilidade de estabelecer
tipologias que elucidem do envolvimento que o sujeito tem com o material.

99
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
2. Agressores sexuais em contexto online

Nesta dimensão são referidas 3 motivações fulcrais na utilização da pornografia infantil:

t Motivação parafílica: estes agressores tem uma preferência sexual exclusiva em


crianças, quer em fantasia, quer na vida real.
t Padrão de interesse sexual desviante: este tipo de agressores acede à pornografia
infantil como parte de um padrão de interesse sexual desviante amplo; nas suas
coleções ou históricos de procura de pornografia podem ser encontrados diferentes
tópicas, desde sadismo e bestialidade a pornografia de adultos, não tendo uma
preferência sexual exclusiva.
t Motivação económica/financeira: podem ter ou não interesse sexual exclusivo
na criança; no entanto estes sujeitos verificaram o lucro que poderiam obter pela
comercialização do material pornográfico envolvendo menores. Geralmente tornam-
se produtores do próprio material na procura de maior fonte de lucro.

%JNFOTÍP$PNQPOFOUFTPDJBMEBBHSFTTÍPTFYVBMJOGBOUJM 'BUPSFTTJUVBDJPOBJTF
FOWPMWJNFOUPTPDJBM

A dimensão social da agressão sexual infantil refere-se ao grau de partilha e/ou secretismo
associado à utilização deste tipo de material. Os agressores sexuais online podem utilizar o
material de forma isolada, apenas para si mesmos, ou podem pertencer a redes de partilha e
comercialização deste material. O perigo de passagem ao ato torna-se maior quanto maior é
o envolvimento do sujeito com outros indivíduos com os mesmos interesses parafílicos, pois
a maioria das redes exige partilha de um certo número de imagens de pornografia infantil e
algumas vezes a produção das mesmas.

100
Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens Parte I - Compreender
3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as

3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as

Na maioria das situações, os comportamentos sexualmente violentos são premeditados,


e o/a agressor/a tem plena consciência dos seus atos. As estratégias utilizadas pelos/as
agressores/as são variadas, e segundo Sgroi (1982, cit. in Silva, 1998) podem ser divididas
em cinco fases: envolvimento, interação sexual, segredo, revelação e repressão.

Na fase do envolvimento, os dois fatores principais são o acesso e a oportunidade. Num


primeiro contacto, este acesso à criança/jovem pode ser acidental, mas posteriormente o/a
agressor/a tende a criar oportunidades para estar a sós com a mesma. O/a agressor/a pode
tentar que a vítima participe no abuso, o qual é apresentado como um jogo ou algo especial
e divertido. Desta forma, o/a agressor/a pretende transmitir à vítima que o comportamento
proposto é aceitável e normativo. Na maioria das situações, a coação exercida sobre a
criança/jovem é subtil, pelo que o recurso à ameaça ou força física raramente se verifica.

A fase de interação sexual pode corresponder a atos exibicionistas por parte do/a
agressor/a, o qual poderá pedir à criança/jovem para que faça o mesmo. Com o tempo, os
comportamentos sexualmente violentos tendem a progredir. Segue-se a fase do segredo,
com vista a manter a perpetuação do abuso, evitando a sua revelação por parte da criança/
jovem. A manutenção do segredo pela criança/jovem pode estar relacionada com vários
fatores, nomeadamente, devido a sentimentos de lealdade e proteção pelo/a agressor/a,
às recompensas que são dadas ou devido a sentimentos de medo e receio, quando estão
presentes ameaças ou violência física.

No que diz respeito à revelação do segredo, esta pode ocorrer de forma acidental ou
propositada, sendo que a última geralmente é feita pela criança/jovem. Por último, a fase
de supressão ocorre quando existe uma tentativa de suprimir as informações sobre o abuso
ou a intervenção de terceiros. Esta supressão pode estar relacionada com o medo por parte
da vítima de sofrer represálias, medo da exposição pública ou de não se conseguir provar
o abuso. Pode, também, estar relacionada com questões culturais, sociais ou da própria
dinâmica familiar, por exemplo, em contextos de negligência.

Posto isto, passamos a enumerar algumas das estratégias mais utilizadas por estes/as
agressores/as (APAV, 2011):

t Criação de uma relação de confiança e/ou de amizade/familiaridade com a


criança, com vista a tranquilizar e convencer da normalidade do comportamento
sexualmente violento (ex.º: gosto muito de ti, não te vou fazer mal… ou somos amigos,
podes confiar em mim!)

101
Parte I - Compreender Capítulo III – Os/as autores/as de crimes sexuais contra crianças e jovens
3. Estratégias utilizadas pelos/as agressores/as

t Criação de uma relação afetiva com a criança ou jovem, pelo que o ato sexual é
percecionado enquanto uma demonstração de carinho e afeto (ex.º: conversar e
ajudar a criança quando esta tem um problema; fazer com que a criança se sinta
especial e amada com recurso a elogios)
t Disponibilizar à criança o acesso a bens materiais (ex.º: jogos, roupa, brinquedos, doces,
etc.), como forma de garantir a não revelação do abuso e a manutenção do mesmo.

As estratégias supramencionadas são frequentemente utilizadas por agressores/as cujos


crimes são perpetrados no contexto intrafamiliar.

t Recurso à surpresa, através de comportamentos inesperados, perante os quais a


criança não tem tempo para reagir ou para se defender (ex.º: introduzir-se na cama
da criança durante a noite, pedindo para esta não fazer barulho)
t Recurso a estratégias de confusão que dificultam a identificação e atribuição de um
significado ao abuso por parte da criança (ex.º: quando o/a agressor/a manifesta
toques de afeto normativos, juntamente com toques de teor sexual)
t Recurso à ameaça para coagir a criança ou jovem a colaborar com o crime sexual
(ex.º: Se não fizeres o que eu quero faço mal à tua família! ou Não te dou de comer se
não fizeres o que estou a mandar…)
t Recurso à agressão verbal e psicológica, com o intuito de mais uma vez coagir a
criança/jovem a participar nos atos sexualmente violentos (ex.º: Não vales nada! ou
Ninguém se preocupa contigo!)
t Uso de força e violência física para obrigar a criança/jovem a participar no abuso
(ex.º: amarrar, amordaçar a criança para que esta não consiga resistir; agredir com
violência a criança com recurso a bofetadas ou pontapés)
t Recurso ao rapto e/ou sequestro da criança/jovem do meio onde vive e das pessoas
com quem se relaciona (ex.º: pais, familiares, amigos), mantendo-a detida em
locais estranhos, privada da sua liberdade, a fim de ser vítima de atos sexualmente
violentos. Ao utilizar esta estratégia, o/a agressor/a consegue com que a vítima esteja
completamente acessível e dominada, podendo existir a intervenção de terceiros
quando, por exemplo, estamos perante situações de TSH para fins de exploração sexual.

102
Parte II

Proceder
Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual Parte II - Proceder

Para que possam apoiar crianças e jovens vítimas de violência sexual, bem como os seus
familiares e amigos, de forma qualificada, é importante que os/as profissionais detenham
conhecimento profundo e claro sobre os procedimentos mais adequados a adotar, as
ações e estratégias de intervenção que devem ser desenvolvidas e a organização e gestão
de um processo de apoio. Assim, tais profissionais deverão ser técnicos/as habilitados/
as e encontrarem-se devidamente enquadrados/as numa instituição pública ou privada,
governamental ou não-governamental, de voluntariado social ou não, podendo nestas
exercer funções de jurista, psicólogo/a, médico, entre outras.

A atuação do/a profissional deve reger-se por princípios37 orientadores da intervenção,


nomeadamente:

t Superior interesse da criança - a intervenção no processo de apoio deve atender em


primeiro lugar os interesses e direitos da criança/jovem;
t Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e jovem deve ser
efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
t Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada a partir do momento em que
exista a suspeita de uma situação de perigo/risco para a criança ou jovem ou logo que
a mesma seja conhecida;
t Intervenção mínima - a intervenção deve ser realizada exclusivamente pelas
entidades e instituições cuja ação seja indispensável à promoção e proteção dos
direitos da criança e jovem;
t Proporcionalidade e atualidade - o processo de apoio deve desenvolver uma
intervenção necessária e adequada à situação de perigo/risco em que a criança ou
jovem se encontra no momento atual;
t Responsabilidade parental - a intervenção deve ser realizada com os progenitores,
devendo estes assumir os seus deveres para com a criança ou jovem;
t Primado da continuidade das relações psicológicas profundas – a intervenção deve
respeitar o direito da criança/jovem à preservação das relações afetivas estruturantes
e significativas para o seu saudável desenvolvimento;
t Prevalência na família - devem prevalecer as medidas que integrem a criança ou
jovem na sua família ou outras que promovam a sua adoção, no que respeita à
promoção dos seus direitos e à sua proteção;
t Obrigatoriedade de informação - os pais, o/a representante legal ou a pessoa que
tenha a guarda de facto da criança ou jovem, bem como esta última, têm direito a ser
informados acerca dos seus direitos, motivos que determinaram a intervenção e a
forma como esta se processa;
t Audição obrigatória e participação - a criança ou jovem, isoladamente ou na 37. Promoção dos direitos e proteção
da criança e do jovem em perigo,
companhia dos pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de segundo a Lei 142/2015, de 8 de
Setembro.

105
Parte II - Proceder Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual

facto, devem ser ouvidos e convidados a participar nos atendimentos, diligências e


desenvolvimento do processo de apoio;
t Subsidiariedade - a intervenção deve ser realizada em primeiro lugar pelas entidades
que tenham competências em matéria de infância e juventude, num nível seguinte pelas
Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e, em última instância, pelos Tribunais.

Os/as profissionais que intervenham com crianças e jovens vítimas de violência sexual
deverão deter competências pessoais e técnicas para o efeito.

As competências pessoais dizem respeito às características intrínsecas do/a profissional


e à adequação da sua personalidade para que possa vir a desenvolver um processo de
apoio. São, portanto, traços da personalidade resultantes do processo de desenvolvimento
desde a infância. Estas aptidões centram-se na capacidade que o/a profissional possui ao
nível da autoconsciência (ex.º: autoestima e autoconsciência emocional), da autogestão
(ex.º: capacidade de adaptação, iniciativa, otimismo), da consciência social (ex.º: empatia,
assertividade) e da gestão das relações (ex.º: espírito de equipa, liderança, influência).

Todos/as os/as profissionais envolvidos/as num processo de assistência e apoio a vítimas de crime
devem saber estar próximos de outras pessoas em estado de sofrimento, sob pena de o processo
não ser bem-sucedido. Esta competência poderá desdobrar-se em diversas dimensões:

t Relacional - a capacidade de gerir de forma adequada as relações humanas,


especificamente a capacidade de manter um comportamento relacional pacífico e
apaziguador, uma vez que, frequentemente, os/as profissionais terão de trabalhar
de forma articulada com outros/as técnicos/as e entidades e, de igual modo, com as
crianças e jovens (e seus familiares e amigos) a quem se destina o processo de apoio;
t Tolerância e respeito do/a profissional para com os valores e costumes culturais das
vítimas e dos seus familiares e amigos, sem impor os que julga corretos, desde que
tais valores não colidam com as normas institucionais ou com as leis vigentes;
t Autogestão emocional das vivências do/a profissional, bem como do stress e da
tolerância à frustração, uma vez que poderá ser confrontado/a com situações e
circunstâncias de elevado grau de exigência, caracterizadas pelo drama e pela
vulnerabilidade dos seus intervenientes;
t Vocação e disponibilidade para trabalhar com crianças e jovens, nomeadamente
competências que permitam uma interação adaptada com as crianças e jovens e o
devido distanciamento da postura de adulto/a, para que as suas intervenções sejam
facilitadas. Assim, deverá saber brincar, usar uma linguagem simples e compreensível
tendo em atenção a faixa etária das crianças ou jovens e usar simpatia e humor para
colocar o/a utente à vontade em todos os momentos do processo de apoio. Deve,

106
Capítulo I – O/a O/a profissional que intervém com crianças e jovens vítimas de violência sexual Parte II - Proceder

contudo, ser capaz de imprimir momentos de seriedade, de modo a que as crianças


ou jovens sintam que estão diante de um/a adulto/a responsável e em quem podem
confiar;
t Compaixão e empatia pelo sofrimento da criança ou jovem, sendo sensível à
situação relatada pela vítima, seus familiares e amigos e imaginar-se a si próprio/a
naquela situação. O/a profissional deve ainda ser capaz de intuir e compreender
os significados e sentimentos dos utentes relativamente à situação experienciada,
bem como empatizar com o desconforto e mal-estar que aqueles provocam. Ser
empático/a e compassivo/a, no entanto, não pode significar que o/a profissional
tenha pena ou se descontrole e chore com a criança ou jovem; caso isso aconteça, a
vítima deixará de o percecionar como um/a adulto/a seguro que poderá ajudá-lo/a,
mas como uma pessoa a quem o seu problema também está a causar mal-estar. Com
efeito, tal conduta ou reação poderá provocar, ainda que inadvertidamente, um
impacto negativo na vítima e na qualidade do processo de apoio, dado que aquela
poderá deixar de conceber o/a profissional como alguém qualificado/a e preparado/a
para a prestação do apoio, e, ao invés, percecionar responsabilização ou culpa pelo
desconforto causado, podendo, em última instância, evitar determinados assuntos
que sente que poderão transtornar aquele/a profissional.

Por outro lado, a competência técnica diz respeito à combinação de conhecimentos,


habilidades e atitudes, e que abrange, essencialmente, duas áreas:

t Académica (e/ou experiência profissional e/ou as suas aptidões) - o/a profissional


deve ser detentor/a de um curso superior numa área relacionada com as necessidades
de intervenção. A interdisciplinaridade de formação académica está subjacente
ao desenvolvimento de um salutar processo de apoio e possibilita uma maior
complexidade da interação e da intervenção necessária neste tipo de violência. O
trabalho realizado em rede, com diferentes conhecimentos e em distintos âmbitos de
intervenção, permite aos/às profissionais envolvidos/as neste processo usufruir dos
benefícios da troca de informações e de outras partilhas;
t Formação específica sobre vítimas de crime - o/a profissional deverá ser detentor/a
de formação específica sobre os pressupostos teóricos, os recursos sociais, as boas
práticas no apoio a vítimas de crime e as questões éticas exigíveis, nomeadamente no
âmbito do apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, para que esteja apto a
desenvolver de forma adequada o processo de apoio.

107
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
1. O dever de denúncia e a confidencialidade

1. O dever de denúncia e a confidencialidade

O/A profissional que intervém com crianças e jovens, não raras vezes, questionar-se-á
sobre como poderá ser cumprido o dever de denúncia dos crimes públicos38 de que tem
conhecimento no exercício das suas funções sem que a garantia da confidencialidade do
contacto estabelecido com o/a utente seja quebrada.

A garantia da confidencialidade ao/à utente sobre os contactos que estabelece com o/a
profissional deve ser transmitida àquele/a, pois tal poderá ser fundamental para que se estabeleça
a relação de confiança com o/a técnico/a; dessa forma, poderá proceder-se a uma boa recolha de
informação, numa fase inicial, e ao desenvolvimento salutar de um processo de apoio.

No entanto, o papel do/a profissional deverá respeitar um princípio ainda mais importante:
o amplamente mencionado “superior interesse da criança”. De acordo com a Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989, na redação do seu artigo 3º, “todas as decisões relativas
a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais,
autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse
superior da criança”.

De acordo com Manata (2008), “(…) ainda que reconhecendo o seu carácter indeterminado,
todos concordaremos que esse princípio orientador – facilmente compreensível mas de difícil
explicação - constitui um instrumento fundamental para a adequada promoção e proteção dos
direitos dos menores. Aliás, sendo o interesse destes a força motriz e a luz que há-de iluminar
toda a problemática dos seus direitos, é esse o critério prioritário e prevalente quanto à adoção
de medidas que visam permitir que a criança ou jovem em situação de lhe ser causado dano no
plano físico, intelectual, moral ou social seja afastado desse perigo”.

Em suma, pode referir-se que, não obstante ser importante a garantia da confidencialidade
na relação com o/a utente, deverá prevalecer no/a profissional sempre a obrigatoriedade
de denunciar o(s) crime(s) de que a criança ou jovem estará a ser alvo, uma vez que tal
forma constitui o meio mais idóneo para salvaguardar a integridade física e psíquica da
vítima. Concomitantemente e, de forma a preservar esta relação de confiança com a criança/
jovem, deverá ser-lhe explicado o motivo e a necessidade de denúncia, garantindo que será
informado/a de tudo o que for transmitido para o exterior, na medida em que a idade da
criança/jovem possibilite essa compreensão. Por outro lado, a confidencialidade deverá
manter-se para tudo o que não releve para a denúncia e para a salvaguarda da criança ou jovem. 38. A este propósito, ver Parte
I – Compreender > Capítulo I – A
violência sexual contra crianças
e jovens > 6. Enquadramento
jurídico atual > a. A natureza dos
crimes, a responsabilidade penal e
a competência para a investigação
criminal.

109
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens


vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as
As crianças e jovens vítimas de violência sexual, bem como os seus familiares e amigos/as,
poderão vir a necessitar de diferentes tipos de apoio, de forma mais ou menos prolongada
no tempo, em função de variáveis como:

t As consequências experienciadas, que poderão ser diferentes conforme o tipo de


vitimação, a duração da mesma, entre outros fatores;
t As características pessoais dos/as utentes;
t As características do meio social em que os/as utentes estão envolvidos.

Assim, os serviços de apoio deverão, em primeira instância estar preparados para ouvir,
presencialmente ou à distância, de forma atenta e empática, os/as utentes, reconhecê-los/as como
vítimas (diretas ou indiretas) e, dentro do que lhes é possível, ajudarem a lidar com o impacto
decorrente da vitimação, seja ele de ordem emocional, psicológico, físico, financeiro ou outro.

Bem assim, os serviços de apoio deverão ter em mente a necessidade de promover o


pleno exercício dos direitos das crianças e jovens, seus familiares e amigos, bem como a
articulação interinstitucional que seja mais adequada para cada caso em concreto.
Caso venha a ser necessário, deverá ser providenciado aos/às utentes apoio emocional,
prático, jurídico, psicológico e/ou social, tendo em mente que a resposta deverá ser
personalizada de acordo com a avaliação realizada.

a. Apoio presencial

O recurso de uma criança ou jovem, dos seus representantes legais e/ou familiares e amigos/
as pode ocorrer de forma presencial junto de um serviço de apoio.

Todavia, para a realização de um atendimento presencial bem-sucedido não bastará apenas


a presença de um/a técnico/a qualificado/a e habilitado/a para o efeito, mas também um
espaço e tratamento adequados a estas vítimas de crime em particular.

As crianças e jovens deverão ser acolhidos/as e encaminhados/as para a sala de espera ou, se tal
for imediatamente possível, para as salas de atendimento. Para evitar impaciência e ansiedade,
especialmente das crianças mais novas, a espera não deverá ser superior a quinze minutos e, se tal for
inevitável, a criança ou jovem e quem o/a acompanha deverão ser avisados dessa impossibilidade.

110
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

O/a profissional deverá ceder o espaço mais confortável da sala aos/às utentes, e adotar
as mais elementares regras de boas-maneiras, eliminando na totalidade comportamentos
deselegantes (ex.º: comer, mastigar pastilha elástica, atender o telemóvel ou enviar SMS).

No final do atendimento, os/as utentes deverão ser acompanhados até à saída pelo/a profissional.

i. Sala de atendimento para crianças e jovens vítimas de crime

As crianças e jovens vítimas de violência sexual que recorram a um serviço de apoio deverão
ter ao seu dispor uma sala devidamente equipada e adequada às suas idades.

A sala de atendimento deve respeitar cinco vetores essenciais: conforto e segurança, cor e
decoração, privacidade, adequabilidade e materiais de apoio.

t Conforto e segurança – a sala de atendimento deverá ser confortável,


providenciando, sobretudo, segurança. Assim, o/a profissional deverá manter
afastados das crianças mais novas objetos que as possam pôr em perigo (ex.º: peças
de jogos) e procurar ter materiais para os atendimentos que, pela sua forma, textura
ou caraterísticas, não ponham em causa a segurança das crianças e jovens, bem como
proteger tomadas que estejam acessíveis às crianças;
t Cor e decoração – A sala deve se apresentar em tonalidades neutras ou suaves.
Devem ser privilegiado os tons pastel como o verde-claro, pois é conhecido o seu
efeito menos ansiogénico. A decoração deve ter em conta o conforto da vítima,
devendo, no entanto, manter a funcionalidade da sala;
t Privacidade – a sala deverá estar num local em que não haja a possibilidade de o
atendimento ser ouvido ou visto por terceiros.
t Adequabilidade – a sala deverá estar dotada de mobiliário e material de trabalho
(ex.º: jogos, livros, brinquedos) adequados às diferentes idades das crianças ou
jovens que poderão ali ser atendidos. Assim, o espaço deverá ter uma mesa e bancos
adequados a crianças mais novas, e simultaneamente, um espaço com mesa e
cadeiras adequados a crianças mais velhas e jovens.
t Materiais de apoio – A sala deve estar equipada com jogos, livros e brinquedos que,
para além de ajudarem a criança ou jovem a sentir-se num ambiente mais confortável
e empático, devem também ajudar a potenciar o relato sobre a sua experiência de
crime. Materiais como casas, bonecos, entre outros, podem ajudar, através do jogo, a
narrar a experiência da vitimação.

111
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

Figura 3 - Salas de atendimento de um Gabinete de Apoio à Vítima da APAV

ii. Princípios-base dos atendimentos presenciais

No atendimento presencial, por excelência, o/a profissional e os/as interlocutores/as


comunicam não só verbalmente, mas também por sinais não-verbais. O/a técnico/a deverá
assegurar que as mensagens que transmite são totalmente compreendidas, para que se
evitem mal-entendidos que possam pôr em causa o processo de apoio.

Assim, existem algumas premissas que o/a técnico/a deverá aplicar em contexto de

112
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

atendimento presencial:

t Apresentação, identificando-se, se for a primeira vez que contacta com o/a utente.
O/a profissional deverá ainda esclarecer com a criança ou jovem qual o seu papel, e o
que poderá fazer para o/a ajudar;
t Escuta ativa: o/a profissional deverá ouvir atentamente a criança ou jovem, e dar-lhe
indicações, sejam elas verbais (através de expressões como “compreendo”, “entendo”)
ou não-verbais (ex.º: acenar a cabeça em sinal de aprovação, manter contacto ocular)
de que está a apreender o que se encontra a ser transmitido, e procurando não
interromper o discurso do/a utente;
t Atenção à linguagem não-verbal: a atenção ao discurso da criança ou jovem deve ser
complementada com a observação dos sinais não-verbais. Por exemplo, se o/a utente
hesitar no discurso, poderá ter uma informação que teme revelar. Por outro lado, se
uma criança ou jovem relatar um grande episódio de violência de que foi alvo alguns
dias antes e não tiver sequelas do mesmo, provavelmente existirá alguma incoerência
no discurso. Mais ainda, a linguagem não-verbal poderá ser indicadora de patologias
psiquiátricas da criança ou jovem (ex.º: balançar-se compulsivamente);
t Reformulação: o/a técnico/a deverá assegurar-se que entendeu na íntegra a
mensagem que a criança ou jovem queria transmitir; para esse efeito, poderá
reformular o que foi dito, expondo ou devolvendo o que foi relatado.
t Questionar: o/a técnico/a deverá questionar a criança ou jovem sempre que a
informação transmitida por aquele/a seja pouco clara ou não seja suficiente para o
desenrolar do processo de apoio. O/a técnico/a poderá utilizar questões abertas (ex.º:
“como te sentes?”) ou fechadas, que visem uma resposta simples, curta e inequívoca
(ex.º: “que dia era quando isso te aconteceu?”);
t Encorajar a expressão de emoções e/ou sentimentos: o/a profissional deve mostrar
total disponibilidade para que a criança ou jovem se expresse de forma espontânea,
dizendo, por exemplo: “É natural que sintas vontade de chorar”. Todavia, a expressão
de emoções não deverá ser vista pelo/a técnico/a como uma obrigatoriedade, não
a devendo impor, pois, pese embora a sua utilidade especialmente nas situações de
crise emocional, a decisão de o fazer (ou não) caberá à criança ou jovem;
t Não julgar – este será, porventura, o pilar mais importante em qualquer modalidade
de atendimento com crianças e jovens. O/a profissional deverá redobrar atenções
para não o fazer, especialmente em contexto de atendimento presencial, em que
cuja ocorrência poderá ser não só mais provável como mais nociva, especialmente
se se associar a expressões não-verbais que transmitam, por exemplo, choque
ou ansiedade. Sobre este assunto, existem duas preocupações que devem estar
na mente do/a profissional que intervém com crianças e jovens: o/a utente não
deverá ser questionado/a de forma sistemática, para que não se sinta interrogado/a

113
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

ou pressionado/a, e em momento algum deverão ser colocadas questões que


demonstrem censura sobre qualquer conduta da criança ou jovem, como por
exemplo: “porque é que fizeste isso?” ou “porque é que não pediste ajuda?”. Caso a
criança ou jovem se sinta interrogado/a ou desconfortável com as considerações
que o/a técnico/a faça, em jeito de julgamento, poderá verificar-se uma panóplia de
consequências, das quais se destacam a inviabilização do processo de apoio, porque
poderá deixar de se sentir confortável com aquele/a profissional, e a contaminação
das entrevistas para produção de prova testemunhal;
t Não fazer promessas irrealistas – o/a técnico/a deverá abster-se de fazer qualquer
tipo de promessa ou compromisso com a criança ou jovem que não poderá cumprir,
como por exemplo prometer que lhe vai ligar todos os dias e não o fazer, ou prometer
que o/a autor/a do crime vai ficar preso de imediato ou muito em breve;
t Resumir a informação recebida, para que o/a profissional se certifique que a criança
ou jovem percebeu e assimilou o que lhe foi transmitido;
t Finalizar o atendimento e acompanhar a criança ou jovem à saída.

Os representantes legais e/ou familiares e amigos que necessitem de acompanhamento e


apoio deverão ter ao seu dispor uma sala de atendimento distinta da destinada às crianças. As
premissas supramencionadas deverão ser observadas com adultos, com as devidas adaptações.

iii. Entrevista com a criança ou jovem vítima de violência


sexual, no contexto de apoio à vítima

A entrevista com a criança ou jovem vítima de violência sexual é, normalmente, um


momento vivido com expectativa por parte do/a profissional. É esperado que nesse
momento, o/a técnico/a seja confrontado/a com o relato da situação que aconteceu, pela voz
da criança ou jovem que vivenciou o crime. No entanto, este facto não é linear. A entrevista
com a criança ou jovem é condicionada por um conjunto de variáveis, que a diferenciam ao
ponto de tornarem cada entrevista e estratégia a seguir únicas. Entre outros, os fatores que a
podem influenciar são:

t A idade da vítima;
t Quem acompanha a criança ou jovem;
t O tempo que decorre entre o crime e a entrevista;
t O facto de a entrevista ocorrer antes ou depois da audição da criança ou jovem pelas
autoridades judiciárias, nomeadamente para declarações para memória futura;
t O contexto do próprio crime.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

Algo que interessa esclarecer são os objetivos da entrevista à criança ou jovem no contexto
de apoio à vítima. Estes objetivos podem ser enquadrados nos objetivos da função do
“técnico especialmente habilitado” para o acompanhamento da criança ou jovem junto
às diligências judiciais, pois esta função pode ser desempenhada pelo/a profissional, que
será o/a técnico/a que deverá ter uma ligação prévia à criança antes da diligência (por ter
iniciado um processo de apoio à vítima anteriormente). Segundo Rui do Carmo (2013),
“[a] nomeação e funções deste técnico não podem deixar de ser ponderadas tomando em
consideração não apenas o processo-crime mas também o procedimento, que na maioria dos
casos corre paralelamente àquele, de proteção da criança e promoção dos seus direitos (…) [A]
atuação do/a técnico/a (nomeado para acompanhar a criança nas declarações para memória
futura) deve estar em harmonia com o sentido da ação protetiva que está a ser desenvolvida,
deve ser o seu prolongamento (…)” (p.134). Ou seja, os objetivos da entrevista são:

t Ouvir a história, respeitando o tempo e o relato que a criança ou jovem quiser partilhar;
t Perceber quais as suas dúvidas e necessidades mais imediatas, para tentar dar uma
resposta honesta e possível;
t Preparar a criança ou jovem para o seu contacto com o sistema judicial e para todas
as medidas protetivas que venham ser verificadas como necessárias a tomar;
t Preparar a criança ou jovem para o processo de apoio à vítima e para a sua
recuperação do crime de que foi vítima.

É necessário deixar bem claro que a entrevista à criança ou jovem vítima de violência sexual,
no contexto de apoio à vítima não deve ter características de interrogatório policial ou de
apuramento dos factos. A forma como ocorre esta entrevista tem especial relevância antes
da recolha das declarações para memória futura, pois pode haver o risco de “contaminar” o
relato da criança com suposições erradas ou subjetivas do entrevistador, que a criança pode
assumir como “sua verdade”. Se nas declarações para memória futura o/a magistrado/a tenta
chegar ao apuramento dos factos, com técnicas de entrevista própria, no apoio à criança e
jovem, nem sempre a exatidão dos factos é o mais relevante para o processo de apoio e deve
ser distinguido se a criança ou jovem realmente necessita de contar com detalhe o que lhe
aconteceu ou se isso se deve à curiosidade do/a técnico/a.

'BTFTEBFOUSFWJTUBËDSJBOÎBPVKPWFNWÓUJNBEFWJPMÐODJBTFYVBM

É aconselhado que o/a técnico/a recolha as informações gerais do crime (o que aconteceu
e quando aconteceu) com o/a familiar ou representante legal, antes de falar com a
criança/jovem. É igualmente importante que o/a técnico/a averigue junto do/a familiar
ou representante legal se a criança ou jovem sabe ou tem consciência da dimensão e
implicações do crime.

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Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

Quando em contacto com a criança ou jovem, deve ser criado um ambiente que seja
confortável e informal para permitir a criança ou jovem estabelecer uma relação de
confiança com o/a profissional. Pode ser necessário mais do que uma sessão até esta
confiança estar estabelecida, mas é um tempo em que deve haver investimento, pois irá
condicionar todo o trabalho futuro com a criança ou jovem. Com crianças muito novas,
o apoio pode implicar a presença do/a familiar ou representante legal, até à criança se
habituar à presença do/a técnico/a e confiar em ficar com este/a, sem a presença do/a
familiar ou representante legal. Devem ser usadas expressões simples. A entrevista pode ser
desenvolvida durante atividades que se podem propor à criança ou jovem, como brincar
com jogos ou brinquedos ou através da realização de desenhos livres.

A criança ou jovem pode saber porque está naquele espaço e ter uma expectativa sobre
o que é esperado dele/a. Sem lhe ser questionado, a criança ou jovem pode revelar a
ocorrência do crime, de acordo com o que lhe parece a sua experiência. A situação não deve
ser explorada de imediato, especialmente se ainda não tiverem ocorrido as declarações para
memória futura. Neste caso, deve dar-se espaço para a criança ou jovem falar, reconhecendo
o seu sofrimento e perguntando se a criança ou jovem tem alguma dúvida ou preocupação
naquele momento. As questões levantadas pela criança ou jovem devem ser respondidas
com simplicidade e honestidade. Podem ser levantadas questões como “mas o que vai
acontecer ao meu familiar (caso seja o agressor) se eu contar à polícia?”. Nestes casos, deve ser
tranquilizada a criança ou jovem que o que vier a acontecer, é sempre para a proteger e que
todos estão empenhados no seu bem-estar.

No caso da criança ou jovem não direcionar o discurso para o crime pode ser perguntada
à criança se sabe porque está naquele espaço, ou porque está a falar com o/a técnico/a.
Mediante a fase do processo judicial que estiver em curso, deve iniciar-se com a criança
ou jovem a preparação para as ações que doravante irão acontecer. Tal pode ser feito com
recurso a desenhos, maquetes, etc. que expliquem, de forma simples, por exemplo, como
funciona um tribunal e o que é esperado que aconteça neste espaço.

É muito importante que na entrevista da criança ou jovem sejam avaliadas as necessidades


e vulnerabilidades que foram criadas pela ocorrência do crime. Isto pode ser averiguado
com questões como “mudou alguma coisa na tua vida depois do que aconteceu?”; “se tivesses
a possibilidade de mudar alguma coisa na tua vida, que tenha ficado diferente, o que seria?”.
O levantamento destas necessidades e vulnerabilidades irá reforçar as informações do
processo conseguidas pelas autoridades policiais e judiciárias, assim como as obtidas junto
de familiares ou representantes legais, podendo então depois ser elaborada uma estratégia de
apoio a médio ou longo prazo.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

b. Apoio à distância

Para efeitos do presente Manual, iremos considerar apoio à distância todo aquele que não
acontece presencialmente com os/as utentes, dando enfoque ao apoio prestado por telefone,
por escrito e o apoio online.

i. Apoio telefónico

Embora seja expectável que as crianças ou jovens possam chegar ao contacto dos serviços de
apoio por iniciativa de um/a adulto/a (ex.º: representante legal, professor/a, funcionário/a da
escola), poderá acontecer que os próprios decidam pedir ajuda. Independentemente de quem faz
o contacto telefónico, deverão ser seguidos os mesmos princípios referidos no apoio presencial,
tendo em especial consideração que a escuta deverá ser particularmente atenta, uma vez que
neste tipo de contacto não é possível aferir os sinais não-verbais do/a interlocutor/a.

Assim, após atender a chamada tão rapidamente quanto possível, o/a profissional deverá
identificar-se, dando seguimento ao apoio telefónico, sem distrações e com a adoção de uma
linguagem adequada à idade e compreensão da pessoa com quem está a falar.

Mais ainda, o/a profissional deverá mostrar disponibilidade para prosseguir a conversa, não
só de forma expressa, mas também através de outros sinais, como “sim, percebo”. Com efeito, o
silêncio poderá ser interpretado como desinteresse em relação ao que está a ser relatado.

Bem assim, deverão ser recolhidas as informações essenciais para a melhor prossecução
do processo de apoio (ex.º: identificação da criança ou jovem) e deverá ser reforçada a
importância do pedido de apoio.

Caso o primeiro contacto para pedido de apoio seja feito por este meio, deverá sensibilizar-
se o/a utente para a importância de um atendimento presencial; com efeito, este poderá
permitir uma avaliação mais completa da problemática, uma vez que, telefonicamente,
poderão não ser transmitidas todas as informações necessárias para este efeito (ex.º: o/a
utente pode estar a telefonar num local público e sentir-se menos à-vontade).

Se o/a utente não manifestar vontade de se deslocar a um atendimento presencial, deverá ser
informado da disponibilidade do/a profissional para contactos de follow-up.

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Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

ii. Apoio por escrito

Esta forma de contacto com as instituições de apoio a crianças e jovens reveste-se de muita
importância. Com efeito, por vezes o atendimento telefónico ou presencial pode causar
alguma intimidação a quem pede apoio, levando a que, numa fase inicial, contacte a instituição
apenas por escrito, com especial incidência para os contactos realizados por e-mail. Quando
assim é, na maioria das vezes responde-se à correspondência remetida pelo mesmo meio, a
menos que nela conste expressa menção de que outro meio poderá ser utilizado.

Na resposta por escrito, o/a técnico/a deverá observar algumas premissas já analisadas
anteriormente, e acrescentar as especificidades devidas ao atendimento por escrito:

t Princípio da intervenção precoce: responder com a máxima brevidade, uma vez que
tal atuação deve ser considerada muito urgente.
t Acusar a receção da informação e indicar a data em que tal aconteceu.
t Agradecer, desde logo, o contacto.
t Nos casos em que a intervenção não é do âmbito da instituição, o/a utente deverá ser
encaminhado/a para a que mais se adeque à problemática.
t Utilizar linguagem com palavras do léxico corrente e frases curtas.
t Reforçar o pedido de ajuda, evitando, desta forma, o arrependimento do/a utente, e
incentivando a novos contactos.
t Clarificar que a criança ou jovem se encontra a vivenciar uma situação de violência,
e explicar-lhe que esse comportamento não é aceitável, que não é culpa sua e que
existem mecanismos para o/a ajudar.
t Caso seja aplicável, procurar que a criança ou jovem reporte a situação a um/a
adulto/a que seja da sua confiança, para que possa ser mais eficazmente ajudada.
t Propor que se realize um atendimento presencial e, caso se adeque e seja viável, o/a
profissional disponibilizar-se para que o mesmo aconteça num local que seja mais
adequado para a criança ou jovem (ex.º: escola).
t Assinar a resposta, com indicação do nome e do cargo, e disponibilizar-se para
futuros contactos.

iii. Apoio online

As tecnologias de informação e comunicação têm-se revelado ferramentas fulcrais para a


comunicação no dia-a-dia. O mesmo se aplica no âmbito do apoio e/ou informação em
situações de violência ou crime, inclusivamente no que respeita às situações de violência

118
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

sexual. Canais de informação e comunicação online, como os websites, o e-mail e/ou as


redes sociais, surgem, cada vez mais, como métodos válidos para acesso ao mais variado
tipo de serviços. Desta forma, várias ferramentas e respostas têm vindo a ser desenvolvidas
para que o apoio e informação online para as vítimas de crime sejam cada vez mais
qualificadas e diversificadas (ex.º: app infovítimas39, da APAV).

Por apoio online, entende-se a prestação de apoio e/ou informação a determinado/a utente, no qual:

t A comunicação é efetuada utilizando tecnologias da informação e comunicação;


t O apoio e/ou informação são prestados remotamente, encontrando-se o/a
profissional e o/a utente em espaços físicos diferentes;
t A comunicação é efetuada de forma síncrona (em tempo real, como é o caso
dos serviços de chat) ou assíncrona (em que existe um hiato temporal entre a
comunicação efetuada pelo/a utente e a resposta do/a profissional, como é o caso das
mensagens de e-mail).

A comunicação síncrona poderá realizar-se recorrendo a ferramentas para esse efeito (ex.º:
softwares como o Skype®, Whatsapp®) ou outras especificamente desenvolvidas pela entidade
para a prestação de apoio e/ou informação online a vítimas de crime/violência.

Pode também incluir-se no apoio online as ferramentas online autoadministradas, isto é, os


recursos e/ou ferramentas para obtenção de apoio e/ou informação que não pressupõem o
contacto/interação entre o/a utente e um/a determinado/a profissional. Deste domínio fazem
parte, por exemplo, os websites informativos (ex.º: www.infovitimas.pt e www.abcjustica.pt) nos
quais as vítimas de crime/violência, inclusivamente as crianças e jovens vítimas de violência sexual,
podem obter informação relevante para a sua situação e eventual atuação/procura de apoio.

São diversas as vantagens apontadas ao apoio online, como a acessibilidade, nomeadamente


para grupos populacionais que normalmente não recorrem aos serviços de apoio (como
é o caso das crianças e jovens), a conveniência e flexibilidade no acesso ao apoio e a maior
sensação de privacidade e anonimato por parte da vítima. Diga-se, a este respeito, que as
crianças e jovens surgem apontadas como um grupo relativamente ao qual as metodologias
de apoio online podem ser especialmente atrativas, podendo promover a maior utilização dos
serviços e/ou respostas de apoio existentes e facilitando a procura de apoio e/ou informação.

Todavia, independentemente da ferramenta utilizada para o apoio online a crianças e jovens,


importa que o/a profissional acautele previamente alguns aspetos na prestação de apoio
online, de entre os quais salientamos:
39. Mais informação em http://www.
infovitimas.pt/pt/app/

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Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
2. Formas de prestação de apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, seus familiares e amigos/as

t que a criança ou jovem se encontra em segurança e privacidade para a obtenção de


apoio online;
t que o dispositivo utilizado pela criança ou jovem para a obtenção de apoio online
pode ser utlizado em segurança, sem que a comunicação e/ou informação seja
intercetada por terceiros (inclusivamente pelo/a autor/a do crime);
t que a criança ou jovem tem consciência de eventuais riscos associados à procura de
apoio e/ou informação online;
t que a criança ou jovem é informada antecipadamente das limitações associadas à
prestação de apoio online (ex.º: que o apoio online pode não ser adequado perante
uma situação de emergência);
t que a criança ou jovem é devidamente informada acerca de serviços e respostas de
apoio alternativas (como linhas de emergência; contactos telefónicos para apoio;
morada do serviço de apoio mais próximo do local em que se encontra).

Mais ainda, deve o/a profissional assegurar que o apoio online a crianças e jovens respeita os
princípios e práticas da entidade no que respeita à intervenção com menores, bem como a
legislação aplicável.

Pelo acima exposto, deve salientar-se que o recurso ao apoio online deverá ser ponderado de
forma individualizada, em função da análise de cada situação, sobretudo quando se fala de
crianças ou jovens.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
3. Informação a aferir

3. Informação a aferir

Independentemente do meio utilizado para o contacto entre as vítimas/familiares e amigos/


as, a intervenção com crianças e jovens carece de uma avaliação pelos/as profissionais da
situação que é relatada, em diversas dimensões que serão de seguida exploradas.

i. O primeiro contacto – recolha de informação e apoio emocional

Este apresenta-se como um momento crucial tanto para o/a utente como para o/a profissional:
o primeiro recorre ao serviço num momento de fragilidade, para pedir ajuda; o segundo tem
sobre si as expectativas geradas pelos/as utentes sobre como poderão ser apoiados.

É comum que no primeiro atendimento os utentes se apresentem mais frágeis


emocionalmente, especialmente considerando a proximidade temporal entre os factos e o
pedido de apoio. Assim, é primordial que o/a profissional demonstre empatia, reconheça
a vítima e/ou os seus/suas familiares/amigos/as enquanto tal, pondo em prática as suas
competências pessoais e profissionais que melhor possam dar resposta à necessidade de
apoio emocional veiculada pelo/a utente.

O/a profissional deverá procurar proceder à recolha de informação com a vítima e/ou
representantes legais, em três vetores: história pessoal e de pré-vitimação, vitimação, e história
pós-vitimação. Todavia, a recolha de informação deve ser ajustada ao estado emocional do/a
interlocutor/a, isto é, caso o/a utente não esteja capaz de devolver toda a informação, o/a
profissional deverá cingir-se à recolha possível, e, em caso de necessidade, deverá promover a
existência de atendimentos posteriores para continuar a recolha de informação.

Relativamente à história pessoal e de pré-vitimação, o/a profissional deverá procurar


recolher informação sobre o contexto familiar, escolar e social da criança ou jovem. Deverá
tentar avaliar possíveis episódios de vitimação anteriores (ex.º: bullying, exposição a
violência interparental), e recolher ainda elementos relativos à sua rede de suporte primária.

Sobre a história de vitimação, o/a profissional deverá procurar reunir o máximo de dados
possíveis sobre os factos, nomeadamente:

t Informação sobre a dinâmica violenta e estratégias do/a autor/a do crime para


manter a situação;
t Detalhes (ex.º: locais, datas, atos praticados) e padrões de severidade e frequência dos

121
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
3. Informação a aferir

atos (ex.º: escalada da violência dos comportamentos);


t Existência de antecedentes criminais, bem como posse de armas, psicopatologias e/
ou dependências do/a autor/a do crime;
t Iniciativas de resolução do problema adotadas pela criança ou jovem e/ou pela sua
rede de suporte primária.

Acerca da história pós-vitimação, o/a profissional deverá procurar aferir as consequências


da vitimação experienciadas pela criança ou jovem, representantes legais e/ou familiares e
amigos (ex.º: sinais e sintomas físicos, psicológicos e sociais decorrentes da vitimação), bem
como as estratégias de coping dos utentes.

ii. Avaliação de risco

Avaliação
de risco = Recolha de
informação + Análise dos
fatores de risco + Juízo do
profissional

Figura 4 - Avaliação do grau de risco

Após a recolha de informação, o/a profissional/a deverá avaliá-la conjuntamente com os


fatores de risco mais comumente associados à problemática dos crimes sexuais praticados
contra crianças e jovens40. Com efeito, a avaliação do grau de risco procura que se afira
sobre a probabilidade da ocorrência de um determinado acontecimento – neste caso, a
probabilidade de episódios reiterados e/ou mais severos acontecerem, pelo que o/a técnico/a
deverá estar atento a diferentes variáveis:

t Tipo de vitimação: o risco tenderá a ser mais elevado se a violência ocorrer de forma continuada;
t Relação vítima/autor/a do crime: as vítimas que coabitem com o/a autor/a do crime
ou que tenham uma relação de grande proximidade (ex.º: não coabitem mas estejam
todos os dias juntos) poderão estar em maior risco. Neste sentido, o risco aumentará
40. Já devidamente explanados
na Parte I – Compreender >
se, concomitantemente, não tiver sido promovido o afastamento entre ambas as
Capítulo II – A criança e o jovem partes, quer por iniciativa da vítima e/ou representante legal, quer por imposição
vítimas de violência sexual > 2.
Caracterização da vítima e fatores legal, através da aplicação de uma ou mais medidas de coação;
de risco associados

122
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
3. Informação a aferir

t Posse de armas do/a autor/a do crime e ameaças: se o/a autor/a do crime tiver em sua
posse armas de fogo e/ou brancas, bem como se as já tiver utilizado para ameaçar ou
intimidar a vítima, o risco de vitimação mais severa poderá existir, quer as ameaças
tenham ocorrido no período pré-revelação ou pós-revelação;
t Perseguição/assédio do/a autor/a do crime: o/a técnico/a deverá ter em conta que o
risco de revitimação ou de vitimação mais severa poderá acontecer no caso de o/a
autor/a do crime continuar a assediar ou a perseguir a vítima;
t Recurso ao “segredo”: enquanto estratégia de manutenção da dinâmica violenta, o
“segredo” poderá atrasar a revelação da violência e, portanto, nesse período, a vítima
poderá estar em risco de ocorrências mais violentas e/ou severas;
t Idade da vítima: as crianças mais novas poderão encontrar-se em maior risco de
violência mais frequente e/ou severa. Com efeito, crianças e jovens mais velhas têm
mais recursos que poderão não só ser facilitadores da revelação, como de defesa
perante uma investida violenta;
t Antecedentes criminais do/a autor/a do crime: o facto de o/a autor/a do crime ter
antecedentes criminais, especialmente por crimes da mesma natureza ou similares,
poderá colocar a criança ou jovem em maior risco.

É importante que não se entendam estes fatores de risco e outros como uma “fatalidade”: a
existência de um conjunto de fatores não é significado de que aquela criança ou jovem vá de
facto ser vítima de atos contínuos, ou mais severos - o risco deve ser visto numa perspetiva
probabilística e não tido como uma certeza absoluta. O/a técnico/a deverá gerir e conduzir
o processo de apoio consoante o risco que perceciona, e igualmente de acordo com as
necessidades de intervenção identificadas por si e pelos/as utentes.

iii. Avaliação das necessidades dos/as utentes

= + +
Necessidades Necessidades
Avaliação das Avaliação
identificadas expressas
necessidades de risco
pelo técnico pelo utente

Figura 5 - Avaliação das necessidades

123
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
3. Informação a aferir

Nesta fase, o/a técnico/a deverá procurar conduzir a sua atenção para as necessidades
veiculadas pelos utentes. Todavia, é expectável que estes nem sempre o façam de forma
direta; com efeito, por vezes apenas solicitam “apoio”, sem especificarem exatamente de que
tipo. Não obstante, existem pessoas que, ao recorrerem aos serviços, fazem-no com objetivos
muito claros (ex.º: apoio jurídico, apoio psicológico, afastamento do/a autor/a do crime).

Ainda assim, o/a técnico/a, na sequência da informação que recolheu, bem como pela
avaliação de risco que realizou, poderá identificar ele próprio necessidades, em várias
dimensões, de que a vítima, representantes legais e/ou familiares e amigos possam carecer.

No entanto, é importante salientar que nem sempre as necessidades veiculadas pelos/as utentes
são as mesmas que o/a técnico/a identifica e, bem assim, as necessidades percebidas pelos/as
utentes como sendo prioritárias podem não ser as mesmas pensadas pelo/a técnico/a.

124
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de


violência sexual

a. O papel da vítima no processo penal

De acordo com a Diretiva 2012/29/EU41, pela redação do seu Art.º 9.º, um dos apoios
mínimos que os serviços devem garantir às vítimas é que as mesmas saibam qual o seu papel
em sede de processo penal. Nesse sentido, de seguida irá explanar-se, de forma articulada, as
interações da vítima (no caso, das crianças e jovens vítimas e seus representantes legais) com
o processo penal e os seus direitos que daí emergem42.

i. Interações da vítima com o processo penal em fase de


inquérito

Após ser dada a notícia do crime – por meio de denúncia ou queixa - junto dos Órgãos de
Polícia Criminal ou do Ministério Público, inicia-se a fase de inquérito.

Por regra, os crimes de natureza sexual perpetrados contra crianças ou jovem são de
natureza pública, pelo que qualquer pessoa pode dar início ao processo-crime denunciando
a situação de que tem conhecimento.
41. Diretiva 2012/29/EU, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 25 de
Relativamente ao crime de atos sexuais com adolescentes (Art.º 173.º CP) é importante outubro de 2012, que estabelece
normas mínimas relativas aos
salientar que é de natureza semipública, isto é, o seu procedimento criminal depende de direitos, ao apoio e à proteção
das vítimas de criminalidade e
queixa. Na medida em que estamos perante um crime contra menores de idade, sempre que que substitui a Decisão-Quadro

o/a ofendido/a for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance 2001/220/JAI do Conselho. Foi
transporta para o ordenamento
e o significado do exercício do direito de queixa, cabe aos titulares deste direito (ou seja, jurídico português com a criação
da Lei n.º 130/2015, de 04 de
ao seu representante legal43), a formalização da mesma, no prazo de seis meses a contar da 42.
setembro – Estatuto de Vítima.
Complementarmente, consultar
prática dos factos. documento n.º 2 dos anexos
43. Art.º113.º n.º4 do CP,, ou na sua falta
as restantes pessoas elencadas no
n.º 2, do mesmo artigo.
Ainda assim, se tal direito de queixa não for exercido, nem for dado início ao procedimento 44. No caso dos crimes contra a

criminal nesse prazo, o/a ofendido/a pode exercer esse direito a partir da data em que liberdade e autodeterminação
sexual de menor, o único Órgão

perfizer 16 anos até seis meses após completar 18 anos. de Polícia Criminal competente
para a investigação é a Polícia
Judiciária (Lei 49/2008, de 27 de
Agosto, Art.º 7.º, n.º 3, al. a)), como
A fase de inquérito carateriza-se por ser uma fase de investigação, dirigida pelo Ministério já visto em Parte I – Compreender
> Capítulo I > 6. Enquadramento
Público, que é assistido pelos Órgãos de Polícia Criminal44 (PJ, PSP, GNR e SEF), que visa jurídico atual > a. A natureza dos
crimes, a responsabilidade penal e
averiguar a prática ou não de um crime, bem como a autoria do ilícito. a competência para investigação
criminal

125
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

A lei deixa ao critério do Ministério Público quais as diligências que devem ser realizadas – e que,
não raras vezes, são efetuadas pelos Órgãos de Polícia Criminal - sendo, contudo, obrigatórias
quer a audição do/a arguido/a, quer a realização das declarações para a memória futura.

1. Obtenção de prova pericial – a Perícia Médico-Legal

As perícias médico-legais são de caráter obrigatório, face à suspeita de agressão sexual,


tendo em vista a obtenção de uma prova científica através da descoberta de vestígios físicos
ou biológicos, bem como de lesões ou suas sequelas (Arts.º 151.º e 159.º do CPP, e Acórdão
do STJ de 9 de maio de 1990). A produção da prova médico-legal e forense, de acordo com
a Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, compete aos peritos médicos do Instituto Nacional de
Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (INMLCF).

Este exame pericial é sempre urgente, quer por questões ligadas à prova e à proteção
da criança/jovem vítima, quer por questões de ordem clínica. Mas nos casos em que o
intervalo entre o contacto sexual e o exame médico-legal é igual ou inferior a 72 horas (valor
orientador, a avaliar em cada caso), considera-se que se trata de um contacto recente ou
agudo, pelo que havendo possibilidade de encontrar vestígios biológicos e físicos, a perícia é
emergente ou seja, deve ser realizada sem delongas (Magalhães et. al., 2013).

As vítimas podem ser orientadas para os serviços médico-legais pelas entidades judiciais
ou judiciárias, unidades de saúde, CPCJ ou escolas, entre outras. A vítima ou o/a seu/sua
representante legal podem também requerer a realização de exame pericial, uma vez que
os serviços médico-legais, de acordo com a lei, podem receber a denúncia e proceder de
imediato ao exame (Art.º 4.º, n.º 1 da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto).

Estas perícias têm lugar, geralmente, numa delegação ou num gabinete médico-legal e
forense do INMLCF da área de residência da vítima. Contudo, quando o INMLCF não está
em funcionamento e para garantir a realização atempada destes exames, existe um serviço
de perícias urgentes deste Instituto que funciona durante 24 horas por dia e todos os dias
da semana, sendo os exames realizados em serviços de urgência hospitalares. Para alargar
este serviço a toda a área de Portugal Continental existe um protocolo, desde junho de 2011,
celebrado entre os Ministérios da Justiça e da Saúde, e a Comissão Nacional de Promoção
dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens, que permite que as crianças/jovens possam ser
transferidas de hospitais mais periféricos para outros onde este serviço esteja assegurado -
apenas nos casos em que motivos de saúde contraindiquem a transferência serão os médicos
hospitalares a realizar a colheita de vestígios (Magalhães & Vieira, 2011).

126
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Este exame pericial tem valor probatório, mesmo sabendo-se que muitas das lesões
encontradas são inespecíficas e que em cerca de 60% dos casos não se encontrem lesões
ou vestígios (Heger et. al., 2002; Pillai, 2008). Algumas das razões que podem explicar a
negatividade deste exame são: (1) a revelação ou denúncia não atempada (em geral depois de
72 horas após o contacto); (2) a destruição dos vestígios (ex.º: lavagens); (3) o facto de grande
número de contactos sexuais não deixarem vestígios, seja porque a cicatrização das lesões é
geralmente rápida e completa, seja porque em muitos casos não há penetração de cavidades
corporais nem ejaculação no corpo, ou ainda em virtude da elasticidade dos tecidos (nos
adolescentes) e do uso de lubrificantes. Mas o facto de não se encontrarem vestígios ou lesões/
sequelas, não permite, por si só, excluir a hipótese de contacto sexual (Heger et. al., 2002).

Entre os indicadores do contacto sexual destacam-se (Jardim & Magalhães, 2010): (1)
certas lesões ou sequelas de natureza traumática; (2) vestígios biológicos no corpo ou
roupa (ex.º: esperma, pêlos, cabelos, saliva, sangue), importantes por provarem o contacto
físico e revelarem a identificação do agressor; (3) vestígios físicos no corpo ou na roupa
(ex.º: lubrificantes, terra, folhagem, fibras), relevantes para informar sobre o local onde o
contacto abusivo teve lugar; (4) infeções sexualmente transmissíveis (IST) (ex.º: Neisseria
gonorrhoeae, Chlamydia trachomatis, Treponema pallidum, Vírus da Imunodeficiência
Humana, Trichomonas vaginalis) (Oral et. al., 2011); (5) gravidez.

Estes indicadores têm diferentes graus de especificidade, a saber (WHO, 2003; Adams et. al.,
2007): (1) indicadores diagnósticos (ex.º: gravidez, presença de esperma no corpo ou roupa
da vítima ou certas IST como gonorreia, sífilis ou infeção por Chlamydia); (2) indicadores
sugestivos - “altamente suspeitos” e “suspeitos” (ex.º: certas lesões traumáticas anogenitais
recentes ou não recentes); (3) indicadores inespecíficos - inconclusivos (ex.º: certos achados
na membrana himenial ou ânus, ou certas IST).

Os indicadores psicológicos deste tipo de contactos são especialmente importantes e devem ser
avaliados por psicologia forense e, por vezes, por psiquiatria forense (Peixoto & Ribeiro, 2010).

O/A primeiro/a profissional que aborda ou é abordado pela vítima, sobre o contacto sexual,
deve evitar abordagens que sejam causa de vitimação secundária ou de contaminação do seu
relato (por vezes a única evidência do abuso). Deve, também, se o caso for recente, prestar
informações sobre a preservação de eventuais vestígios, designadamente (Magalhães et. al.,
2013): (1) não comer, beber ou fumar; (2) não lavar a boca nem os dentes; (3) não tomar
banho nem lavar os órgãos genitais; (4) não lavar as mãos, não limpar nem cortar as unhas;
(5) não se pentear; (6) não mudar de roupa e, se já o tiver feito, preservar a que usava à data
da ocorrência (incluindo absorventes), se possível seca e em sacos de papel; (7) não urinar
ou defecar e, caso o tenha de fazer, conservar esses produtos numa embalagem adequada

127
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

(ex.º: contentor limpo para exame bacteriológico de urina, com tampa); (8) não tocar no
local onde decorreu a agressão, não limpar ou arrumar esse local, não esvaziar baldes do lixo
nem puxar o autoclismo.

Este/a profissional, face à suspeita do abuso, deve denunciar e sinalizar o caso, nos termos da
lei, sem o qual os exames médico-legais e forenses não terão lugar.

Os objetivos de um exame médico-legal nestes casos são: (1) identificar vestígios, lesões e/
ou sequelas, e interpretá-los no contexto do alegado contacto sexual; (2) obter amostras
biológicas para estudos de ADN, de microbiologia (pesquisa de IST) ou de toxicologia, entre
outros; (3) obter outras amostras não biológicas que possam ter utilidade em termos da
investigação criminal.

A adequação e a eficácia da atitude destes/as profissionais forenses é fundamental, delas


dependendo a forma como a vítima vai colaborar e participar no processo judicial
(Finkelhor et. al., 2005), pelo que o modelo de abordagem deverá ser o que se preconiza
para a entrevista forense (Peixoto & Ribeiro, 2010).

O exame médico-legal compreende: (1) colheita da história forense; (2) obtenção do


consentimento informado (quando for caso disso); (3) colheita de vestígios e de amostras de
referência, e exame físico; e (4) colheita de amostras biológicas para exames complementares
de diagnóstico.

A história forense deve incluir a informação já transmitida ao perito por outros/as


profissionais que tiveram contacto com o caso, sendo que os médicos necessitam de
informação, sempre que possível sobre (Magalhães et. al., 2011): (1) data, hora e local
da ocorrência; (2) tipo de práticas sexuais (incluindo introdução de corpos estranhos,
existência de ejaculação, uso de preservativo); (3) frequência (única ou reiterada); (4)
circunstâncias (violência física e/ou emocional - ameaças verbais ou com armas); (5)
consequências (ex.º: dores, sangramento); (6) caraterização da vítima (sexo, idade,
antecedentes patológicos e traumáticos, antecedentes ginecológicos e obstétricos, abuso
de substâncias, comportamentos desviantes, história de contactos sexuais anteriores); (7)
caraterização do(s) alegado(s) agressor(es) (ex.º: número, sexo, idade, abuso de substâncias,
antecedentes patológicos, designadamente IST -, comportamentos desviantes, história de
práticas de agressões sexuais); (8) relação entre a vítima e alegado/a(s) agressor(es/as);
(9) comportamento da vítima após o contacto sexual (ex.º: lavagens, mudança de roupa,
procura de cuidados médicos); (10) data da última menstruação. Também pode ser colhida
informação relativa à sintomatologia apresentada pela vítima e que seja resultante do
contacto sexual (ex.º: dores, prurido, perturbações psicológicas diversas).

128
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Antes de iniciar o exame, deverá ser obtido o consentimento informado da vítima, a partir
dos 16 anos de idade, e depois de explicados claramente todos os procedimentos que terão
lugar às crianças mais novas deve ser sempre requerida a sua concordância para a realização
do exame. Este poderá ser feito na presença de uma pessoa representativa para a criança, se
esta assim o desejar.

A colheita de vestígios e de amostras de referência, bem como o exame físico, realizam-


se em simultâneo para cada região corporal em avaliação, devendo obedecer à seguinte
sequência (Magalhães et. al., 2013): (1) inspeção visual e descrição dos achados; (2) foto-
documentação; (3) colheita de vestígios para estudos de ADN (ex.º: manchas biológicas como
esperma, sangue ou saliva, cabelos, pêlos, fibras, no corpo ou roupa da vítima); (4) colheita
de vestígios físicos para estudos de criminalística; (5) exame físico detalhado, incluindo a
palpação. Este exame implica a concretização de diversos passos, os quais estão definidos em
guidelines (Magalhães & Vieira, 2013), que devem ser respeitados para garantir que o exame
é sistematizado e rigoroso, não se esquecendo ou repetindo procedimentos, o que contribuirá
para a credibilidade do mesmo junto do sistema judicial e para o conforto da vítima.

2. Obtenção de prova testemunhal – as Declarações para


Memória Futura

Ao contrário da prova material, a prova pessoal “trata-se de uma tarefa árdua e difícil, pelos
elevados níveis de instabilidade e de subjectividade que a comunicação humana de per se
encerra, contrapostos os exigentes requisitos de certeza, rigor e fiabilidade que o processo penal
exige para o reconhecimento e validação da prova” (Braz, 2010, p. 68).

Atualmente, o testemunho da criança/jovem vítima é tido como relevante, estando


inclusivamente contemplado na redação do Art.º 22.º n.º 1 do Estatuto de Vítima; todavia,
nem sempre assim aconteceu. Ao longo do tempo, foram sendo vistos como incapazes de
testemunhar ou considerados altamente sugestionáveis pela sua idade e vulnerabilidade
(Caridade, Ferreira e Carmo, 2011). No entanto, não raras vezes, o seu testemunho constitui
o principal meio de prova, na ausência de evidência física ou de outras testemunhas que
possam sustentar o relato do menor (idem).

No caso das crianças/jovens vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação


sexual, presume-se que estes são capazes de testemunhar, ainda que o Art.º 131.º n.º 3 do
CPP preveja que estes possam ser sujeitos a perícia sobre a personalidade (Braz, 2010). Em
relação à suposta sugestionabilidade do discurso do menor, especialmente em relação às

129
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

crianças mais novas, esta não é tão elevada como se considerava anteriormente. Contudo,
pode aumentar se o entrevistador adotar uma atitude de intimidação, coerção, intolerância,
utilizar linguagem demasiado técnica ou colocar questões que nada têm a ver com a situação
de vitimação (Caridade, Ferreira e Carmo, 2011).

Seguindo as considerações anteriores sobre a prova testemunhal, importa analisar o


mecanismo das declarações para memória futura, previsto no Art.º 271.º do CPP.

Quando esta exceção foi pensada e criada, dirigia-se essencialmente a situações especiais
de impossibilidade de uma das partes estar fisicamente em tribunal. Apenas em 1998 é que,
no ordenamento jurídico português, a possibilidade de prestar declarações para memória
futura foi alargada para as vítimas de crimes sexuais. No ano de 1999, pela Lei de Proteção
de Testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de Julho), considerou-se que tais declarações deveriam
ser tomadas o mais brevemente possível após a notícia do crime. De acordo com Alberto
(2006, cit in Caridade, Ferreira e Carmo, 2011, p.68), “o abuso sexual, mais do que outras
formas de violência contra crianças, suscita debates e polémicas acesas em torno da memória,
do discurso e da sugestionabilidade”, sendo que a investigação demonstra que “a entrevista
mais exata é a primeira”.

O Art.º 271.º n.º 2 do CPP prevê que estas declarações aconteçam, nos casos de crimes contra
a liberdade e autodeterminação sexual de menor, sempre durante a fase de inquérito, desde
que, à data, a vítima ainda não tenha completado 18 anos de idade. Ainda no mesmo artigo,
no n.º 4, prevê-se que tal diligência aconteça em ambiente informal e reservado e na presença
de um técnico especialmente habilitado que acompanhe a criança/jovem. Todavia, o n.º 7
não inviabiliza que, em contexto de julgamento, as crianças ou jovens tenham de repetir o
depoimento, a menos que tal ponha em causa a saúde física ou psíquica das vítimas.

No entanto, é possível perceber que a prática não está uniformizada em relação ao que a
lei concetualiza. Em relação ao momento exato em que têm de ocorrer as declarações para
memória futura, a lei apenas refere que terão de acontecer na fase de inquérito, que, na
verdade, poderá demorar vários meses até ser concluída.

De igual modo, não é claro o papel do/a técnico/a especialmente habilitado, de que entidade
provém e em que medida pode ou não intervir. Já em 2010 a APAV se pronunciou sobre a
possibilidade de as vítimas escolherem quem as acompanharia neste momento.45

Não é igualmente clarificado o local em que as declarações deverão acontecer, dado que o Art.º
45. Num parecer acerca de vítimas de 271.º do CPP apenas faz menção a um “ambiente informal e reservado” (Caridade, Ferreira
Violência Doméstica que tenham
de prestar declarações para e Carmo, 2011), nem o mecanismo de preservação das declarações. Todavia, reduzir pura
memória futura.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

e simplesmente as declarações das vítimas menores a escrito poderá ser prejudicial para a
espontaneidade das declarações, uma vez que não permite uma análise da entrevista na sua
globalidade, com por exemplo, as correspondentes expressões corporais (Martins, 2013).

Ainda que as declarações para memória futura possam ter como intuito a diminuição da
vitimação secundária, nem sempre tal é garantido, porque o sistema judicial português
poderá não ter ao seu dispor os meios (humanos e materiais) mais adequados a lidar com
crianças e jovens vítimas de crime.

3. Direito à proteção jurídica

Este direito das vítimas de crime, plasmado no Art.º 13.º do Estatuto de Vítima, consagra que:

Artigo 13.º
Assistência específica à vítima
O Estado assegura, gratuitamente nos casos estabelecidos na Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, alterada
pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, que a vítima tenha acesso a consulta jurídica e, se necessário, o
subsequente apoio judiciário.

Com efeito, nenhuma vítima deverá ser impedida ou dificultada de aceder ao pleno
exercício dos seus direitos em razão da sua condição social ou cultural ou por insuficiência
de meios económicos.

Caso se verifique aquela insuficiência, a vítima (ou o/a representante legal) poderá pedir
apoio judiciário junto do Instituto de Segurança Social (por meio de requerimento de
proteção jurídica de pessoa singular) para a sua representação no processo.

O apoio judiciário pode consistir em:

t Dispensa total ou parcial do pagamento da taxa de justiça;


t Nomeação e pagamento de honorários de advogado/a; ou
t Pagamento faseado da taxa de justiça ou dos honorários de advogado/a.

O requerimento de proteção jurídica deve ser apresentado em impressos disponibilizados


gratuitamente pelos serviços do Instituto de Segurança Social, podendo ser apresentado
nos balcões de atendimento da Segurança Social, por fax, correio ou através da Internet,
neste caso através do preenchimento do respetivo formulário digital. O pedido deverá

131
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

ser acompanhado dos comprovativos de carência económica (ex.º: comprovativos dos


rendimentos, da composição do agregado familiar e das despesas correntes) e não tem
quaisquer custos para o/a requerente.

No decurso do processo-crime, e logo desde a fase de inquérito, a vítima (se maior de 16 anos
ou o/a seu representante legal) poderá manifestar vontade de se constituir como assistente.

O assistente é a pessoa ofendida que assume a posição de colaborador do Ministério Público,


dados os seus específicos interesses processuais a efetivar no processo penal.
No essencial, compete ao assistente: i) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo
provas e/ou requerendo as diligências tidas por necessárias; ii) deduzir acusação
independente da do Ministério Público; e iii) recorrer das decisões (mesmo quando o
Ministério Público não o entenda por conveniente).

O assistente é obrigatoriamente representado por advogado/a. Caso a vítima e/ou


representante legal tenham insuficiência económica para o efeito, deverão requerê-lo ao
Instituto de Segurança Social, como mencionado supra. Complementarmente, deverá ser
entregue a manifestação de vontade de constituição como assistente junto do Tribunal,
com cópia do comprovativo de entrega e cópia do requerimento de proteção jurídica
apresentado, protelando-se, assim, a eventual necessidade de pagamento de taxa de justiça
até à decisão de (in)deferimento.

É de salientar que a pessoa que se constituiu como assistente não pode ser ouvida como testemunha,
embora possa prestar declarações perante o Tribunal, ficando sujeita ao dever de verdade.

Caso a vítima assuma o papel de testemunha no processo, poderá fazer-se representar


por advogado/a, nos termos do Código de Processo Penal, que a poderá acompanhar na
diligência e a informar dos direitos que lhe assistem. De igual forma, caso se verifique
carência económica, a vítima poderá solicitar apoio judiciário nos termos já abordados.

Nos termos do Art.º 22.º n.º3 do Estatuto de Vítima, é obrigatória a nomeação de


advogado/a à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos seus pais, dos da(s)
pessoa(s) que tenha(m) a sua representação legal ou por quem tenha a guarda de facto
sejam conflituantes, e/ou quando a idade da criança ou jovem seja adequada para o solicitar
diretamente ao Tribunal, sendo para o efeito aplicável as regras do apoio judiciário.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

4. Direito à proteção

As vítimas e os/as familiares46 têm direito a proteção no que respeita à sua segurança e
salvaguarda da vida privada, sempre que as autoridades considerem que existe uma séria
probabilidade de serem alvo de represálias, intimidação ou continuação da atividade
criminosa, ou fortes indícios que a privacidade das vítimas/familiares possa ser perturbada,
nos termos do Art.º 15.º n.º 1 do Estatuto de Vítima.

Essa proteção pode ser acautelada pelos seguintes meios:

"QMJDBÎÍPEFNFEJEB T
EFDPBÎÍP

Uma medida de coação é uma restrição à liberdade do/a arguido/a, que pode ser aplicada no
decurso do processo-crime caso se verifique perigo de fuga, perigo para a obtenção e conservação
da prova do crime, perigo para a ordem pública e/ou perigo de continuação da atividade criminosa.

Qualquer medida deve ser proporcional e adequada à situação concreta. O Código de


Processo Penal prevê diversas medidas de coação, a saber: termo de identidade e residência;
caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções, de profissão
e de direitos; proibição e imposição de condutas; obrigação de permanência na habitação e
prisão preventiva (Arts.º 196.º a 202.º do CPP). Estas medidas, elencadas da menos para a mais
grave, terão de ser aplicadas por juiz, com exceção do termo de identidade e residência.

Caso considere que a aplicação de uma medida de coação é a forma adequada de garantir a
sua proteção, deve a vítima ou quem tem a sua representação legal expor a situação e solicitar a
aplicação daquela. Durante a fase de inquérito, tal exposição deve ser realizada perante o Ministério
Público (na fase de instrução será ao juiz de instrução e no julgamento, ao juiz de julgamento).

De igual forma, caso a vítima ou quem tem a sua representação legal considere que a
medida aplicada não a protege eficazmente, poderá expor os seus argumentos, requerendo a
alteração da medida de coação.

Importa salientar que sempre que o juiz o considere necessário, a vítima deve ser ouvida em
caso de revogação ou substituição das medidas de coação.

/ÍPDPOUBDUPDPNPBBVUPSBEPDSJNF 46. Segundo a definição do Art.º 67.º-A


n.º1 al. c) do CPP, “o cônjuge da
vítima ou a pessoa que convivesse
com a vítima em condições
A vítima e os/as familiares têm o direito de não ter de se encontrar ou contactar com o/a análogas às dos cônjuges, os seus
parentes em linha reta, os irmãos
autor/a do crime, nomeadamente nos edifícios dos Tribunais (Art.º 15.º n.º 2 do Estatuto e as pessoas economicamente
dependentes da vítima”.

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Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

de Vítima). Este poderá ser assegurado pela existência, sempre que possível, de portas
de entrada e saída e de espaços de espera para a vítima diferentes dos utilizados pelo/a
arguido/a e seus familiares ou outras pessoas próximas deste/a.

Ainda que se saiba que muitos daqueles espaços não estão preparados fisicamente para o pleno
exercício deste direito, sempre que a vítima e os/as familiares o pretenderem exercer poderão solicitar
que, dentro do possível, lhes seja disponibilizado um espaço alternativo de espera e de entrada/saída.

"USJCVJÎÍPEP&TUBUVUPEF7ÓUJNB&TQFDJBMNFOUF7VMOFSÈWFM

A figura da vítima especialmente vulnerável foi introduzida no ordenamento jurídico


português pelos Arts.º 20.º e seguintes do Estatuto de Vítima. Este prevê que, após a
formalização de denúncia, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal façam
uma avaliação individual da vítima que lhes permita atribuir tal estatuto. Essa avaliação, nos
termos do Art.º 21.º n.º1 do Estatuto de Vítima, poderá também permitir aferir se as vítimas
especialmente vulneráveis necessitarão de medidas especiais de proteção.

Desta forma, as crianças e jovens vítimas de violência sexual, pela sua idade, vulnerabilidade
ou tipo de violência contra si exercida poderão ser consideradas vítimas especialmente
vulneráveis e, portanto, beneficiar de algumas medidas de proteção no que concerne à sua
segurança, mas também procurando evitar que sejam revitimizadas.

Estas medidas são as seguintes:

t As inquirições deverão ser realizadas pela mesma pessoa, se a vítima o desejar, desde
que a tramitação do processo penal não seja prejudicada;
t A inquirição/audição deverá ser realizada por pessoa do mesmo sexo (quando se
tratem de vítimas de violência sexual, de violência de género ou de violência nas
relações de intimidade), se a vítima assim o desejar, e salvo se se tratar de magistrado
do Ministério Público ou por juiz;
t Medidas para evitar o contacto visual entre as vítimas e os arguidos, nomeadamente durante
a prestação de depoimento, através de meios como a videoconferência ou teleconferência.

t Podem ser acionadas oficiosamente ou a requerimento da vítima, durante a fase


de inquérito;
t Podem ser acionadas por determinação do Tribunal oficiosamente ou a requerimento
do Ministério Público ou da vítima, nas fases de instrução ou de julgamento;
t A vítima é acompanhada por técnico especialmente habilitado, designado pelo
Ministério Público ou tribunal.

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

t Prestação de declarações para memória futura;


t Exclusão da publicidade das audiências, nos termos do Art.º 87.º n.º 3 do CPP.

.FJPTFYDFDJPOBJTEFQSPUFÎÍPo-FJEF1SPUFÎÍPEF5FTUFNVOIBT

Sempre que a vida da vítima ou de outra testemunha, a sua integridade física ou psíquica, a
sua liberdade ou bens patrimoniais seus de valor consideravelmente elevado sejam postos
em perigo por causa do seu contributo para a investigação e prova do crime, aquelas podem
requerer a aplicação de meios de proteção, como os seguintes:

t Ocultação de imagem/distorção de voz: pode o Tribunal decidir, com base em circunstâncias


que indiciem elevado risco de intimidação da testemunha, que a prestação de declarações que
deva ter lugar em ato processual público decorra com ocultação da imagem, cumulativamente
ou não com distorção da voz, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha.
t Teleconferência: relativamente aos crimes mais graves, e sempre que fortes razões de proteção
o justifiquem, é admissível a utilização da teleconferência, isto é, a testemunha não vai prestar
o seu depoimento na sala de audiências mas sim a partir de um outro edifício público, de
preferência em instalações judiciárias, policiais ou prisionais, e na presença de um juiz. Este
depoimento pode ser efetuado com ocultação da imagem e com distorção da voz.
t Reserva do conhecimento da identidade da vítima ou outra testemunha: a não
revelação da identidade da vítima ou outra testemunha pode ter lugar durante
alguma ou em todas fases do processo. A vítima ou testemunha cuja identidade
não seja revelada pode prestar depoimento com recurso à ocultação de imagem
(cumulativamente ou não com a distorção de voz) ou à teleconferência.
t Medidas pontuais de segurança: relativamente aos crimes mais graves, e sempre que
fortes razões de proteção o justifiquem, pode a vítima ou outra testemunha beneficiar
de medidas pontuais de segurança, nomeadamente transporte em viatura fornecida
pelo Estado para poder intervir em ato processual, proteção policial ou alteração do
local físico de residência habitual, entre outras.
t Programa especial de segurança: relativamente a certos crimes de entre os mais
graves, a testemunha, o seu cônjuge, ascendentes, irmãos ou outras pessoas que lhe
sejam próximas podem beneficiar, se assim pretenderem, de um programa especial
de segurança, durante ou após a pendência do processo, se estiverem preenchidas
determinadas condições. O programa especial de segurança inclui a aplicação de
uma ou várias medidas administrativas de proteção e apoio, nomeadamente o
fornecimento de documentos que atribuam à vítima ou testemunha uma “nova
identidade”, a alteração do aspeto fisionómico ou da aparência do corpo desta,
a concessão de nova habitação, no país ou no estrangeiro, pelo tempo que for
determinado ou a concessão de um subsídio de subsistência por um período limitado.

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Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

5. Direito à indemnização

Quem sofre danos resultantes da prática de um crime deverá ser indemnizado. Em princípio,
este dever de indemnizar recai sobre o autor do crime – pedido de indemnização civil.

Todavia, em alguns casos, face às dificuldades económicas em que a vítima ficou em


resultado do crime, à perturbação do nível e qualidade de vida desta e à impossibilidade de
receber em tempo útil uma compensação por parte do/a autor/a do crime, o Estado pode
adiantar uma indemnização – pedido de adiantamento pelo Estado da indemnização devida
às vítimas de crimes violentos (Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro).

0QFEJEPEFJOEFNOJ[BÎÍPDJWJM

No que concerne ao pedido de indemnização civil, cumpre expressar que a vítima tem o
direito de ser indemnizada pelo/a autor/a do crime, pelos danos materiais e morais que este/a
lhe causou. Em regra, tal indemnização deve ser requerida através da formulação de um
pedido, no decurso do processo-crime, podendo, contudo ser feita em processo separado.

Recai sobre o Ministério Público, assim como sobre os Órgãos de Polícia Criminal o dever
de informar os eventuais lesados da possibilidade de solicitarem aquela indemnização, as
suas formalidades, prazo e provas a apresentar (Art.º 75.º do CPP).

A vítima pode manifestar, junto dos Órgãos de Polícia Criminal ou do Ministério Público,
até ao final da fase de inquérito, a sua intenção em deduzir o pedido de indemnização civil.
Posteriormente, aquando da notificação do despacho de acusação a vítima será informada de
que tem um prazo de 20 dias para deduzir o pedido, caso não o tenha feito anteriormente.

O pedido de indemnização civil não está sujeito a formalidades especiais, apresentando-se


como um requerimento de onde deverá constar uma breve descrição dos factos, a indicação
dos danos (patrimoniais e morais) e os seus correspondentes valores. Quando o pedido de
indemnização civil totalize um valor igual ou inferior a 5.000 euros, poderá ser elaborado
pela própria vítima. Contudo, sempre que o montante peticionado ultrapasse 5.000 euros,
tal pedido deverá ser apresentado por um/a advogado/a em representação da vítima.

Este pedido engloba danos patrimoniais que poderão consubstanciar-se em i) danos


emergentes, isto é os prejuízos diretamente causados pelo crime (por exemplo, os custos
com tratamentos hospitalares, as despesas com medicamentos, deslocações a consultas
médicas, roupas danificadas, etc.) e ii) lucros cessantes, ou seja, os benefícios que a vítima
deixou de obter devido ao crime que sofreu (ex.º: salários que a vítima deixou de receber

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Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

enquanto esteve incapacitada para o trabalho) (APAV, 2013).

Para além dos danos patrimoniais, este pedido também comportará os danos morais (ou
não patrimoniais), ou seja os prejuízos não passíveis de avaliação económica, dado estar
em causa a saúde, o bem-estar, a honra e o bom nome da vítima (são a título de exemplo a
dor física, perturbações psíquicas, sofrimento emocional, perda do prestígio ou reputação,
entre outros). Apesar de insuscetíveis de avaliação pecuniária, estes danos poderão ser
compensados através de uma obrigação imposta ao/à autor/a do crime, que importa o
pagamento de um determinado montante à vítima.

Aquando da apresentação do pedido de indemnização civil, é relevante que as vítimas


apresentem ou indiquem as provas (por exemplo faturas hospitalares, testemunhas que a
tenham acompanhado no decorrer do processo-crime) que permitam sustentar o seu pedido.

Se a vítima não se opuser, pode o juiz, por sua própria iniciativa e tendo em conta a situação
da vítima, condenar o/a arguido/a a pagar àquela uma determinada indemnização pelos
prejuízos sofridos, nos termos do Art.º 82º-A do CPP.

Caso o/a autor/a do crime condenado/a a pagar a indemnização não o faça voluntariamente,
a vítima terá de apresentar uma ação executiva contra aquele/a, isto é pedir a um tribunal
que proceda à penhora do património do/a condenado/a (ex.º: contas bancárias, imóveis,
viaturas ou outros bens), por forma a assegurar o pagamento do valor da indemnização.

0QFEJEPEFBEJBOUBNFOUPQFMP&TUBEPEBJOEFNOJ[BÎÍPEFWJEBËTWÓUJNBTEFDSJNFTWJPMFOUPT

Para uma melhor compreensão do pedido de adiantamento pelo Estado da indemnização


devida às vítimas de crimes violentos, aplicável no caso de crianças e jovens vítimas de
violência sexual, propomos uma visão global através de um esquema.

137
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

X Fim do processo
Crime contra a liberdade ou Requisitos
autodeterminação sexual de menor Art. 2º n.º 1, b) e c) da lei n.º 104/2009
√ Prazo
Art. 11.º da Lei n.º 104/2009

Fim do processo Aprovado


Entrega de Pedido de
Indemnização pelo Estado

à Comissão de Proteção de
Elegível para Vítimas de Crime
Não Aprovado
impugnação judicial
X

√ X Fim do processo

Fim do processo
Fim do processo

√ X

X
Já existe Pedido Elegível para
Aprovado
à Comissão impugnação judicial
A Comissão decide
√ sobre o pedido

Não Aprovado Fim do processo


X

A Vítima recebeu Possível ajuste de contas, caso tenha sido


√ Fim do processo
a indemnização dada indemnização pela Comissão

Processo Civil
Execução da Condenação com Pedido de indemnização
Setença/Acórdão indemnização (em Tribunal)

Processo Penal

Figura 6 - Esquema do pedido de adiantamento pelo Estado da indemnização devida às vítimas de crimes violentos

O regime jurídico de proteção às vítimas de crimes violentos consta da Lei n.º 104/2009,
de 14 de setembro. A proteção destas vítimas consiste na atribuição de um adiantamento
de uma indemnização, quando a mesma não possa ser satisfeita pelo/a autor/a do crime

138
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

(desde que preencha os requisitos legais). Neste horizonte, foi criada a Comissão de
Proteção às Vítimas de Crimes, inserida no Ministério da Justiça, que instrui os pedidos de
adiantamento de indemnização e decide sobre os mesmos.

Uma vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual poderá beneficiar desta
indemnização se preencher cumulativamente os pressupostos legais, isto é, as exigências
colocadas pelo legislador para aferir da necessidade da atribuição.

No caso específico dos menores de idade, poderá estar dispensada a verificação da


incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte.
Todavia, impõe-se a verificação de uma perturbação considerável do nível e da qualidade de
vida e não uma simples perturbação. Assim, devem ser avaliados dois fatores: o nível de vida
e a qualidade de vida.

O nível de vida refere-se a uma questão económica, material. Na medida em que a vítima é
menor de idade, tal requisito tem forte probabilidade de não preenchimento. Contudo da
análise do diploma legal, parece depreender-se a necessária verificação cumulativa dos dois
segmentos – nível de vida e qualidade de vida. No entanto, dado que nas vítimas de menor
idade este primeiro segmento, relativo ao nível de vida, pode não existir, porque, em regra,
uma criança/jovem depende (em princípio), do ponto de vista material, unicamente dos pais/
representantes legais, a situação não deve ser descurada aquando da formalização do pedido.

Quanto à qualidade de vida, trata-se de um conceito claramente moral ou psicológico.


Neste, importa demonstrar os graves problemas sofridos pelo requerente com este crime,
nomeadamente o impacto psicológico, com, por exemplo, a rutura da relação de confiança
que poderia existir com o/a autor/a do crime. Assim, aquando da apresentação de um
pedido à Comissão, importa demonstrar com clareza os danos psicológicos e sociais que
aconteceram em consequência do crime.

Para além deste requisito, exige-se ainda a não reparação do dano em execução de sentença
condenatória relativa ao pedido de indemnização civil, ou que seja razoavelmente de prever que
o autor do crime não venha a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma
reparação efetiva e suficiente. Importa salientar que este pedido pode ser solicitado ainda que não
se conheça a identidade do autor do crime ou quando aquele, por uma outra razão não possa ser
condenado ou acusado (ex.º: falecimento) – nos termos do art.º 2.º, n.º 3 da Lei n.º 104/2009.

O pedido de concessão do adiantamento da indemnização por parte do Estado deve ser


apresentado à Comissão no prazo de um ano a contar da data do facto. Porém, tal prazo
poderá começar a contar a partir da maioridade ou emancipação. O pedido poderá ainda ser

139
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

deduzido até um ano após a decisão que põe termo ao processo-crime. Sobre os prazos de
apresentação do pedido, torna-se importante ressalvar que o não cumprimento dos mesmos
não invalida totalmente que o pedido seja apresentado, desde que o requerente alegue razões
que, justificadamente, tenham obstado à apresentação do pedido em tempo útil.

Para uma melhor compreensão da contagem dos prazos, apresentamos um pequeno


exemplo prático:

Uma menor com 12 anos (data de nascimento: 08/01/2004) [1] foi vítima de violência sexual perpetrada durante vários anos, tendo o
último ato acontecido a 14/09/2014 [2]. O acórdão do processo-crime data de 15/11/2015 [3].

[2] 14/09/2015 [3] 15/11/2016 [1] 08/01/2023

Nascimento [2] Último ato [1] maioridade


08/01/2004 08/01/2022

[3] Acórdão

Figura 7 - Representação esquemática da contagem dos prazos para pedidos de indemnização à Comissão

A concessão de adiantamento de indemnização por parte do Estado depende de


requerimento apresentado à Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, pelas vítimas que
tenham sofrido danos graves para a respetiva saúde física ou mental diretamente resultantes
de atos de violência – ainda que não se tenham constituído ou não possam constituir-
se assistentes no processo penal. Também poderá ser apresentado pelas associações ou
outras entidades privadas que prestem apoio às vítimas de crimes (por solicitação e em
representação destas) e pelas entidades públicas, incluindo o Ministério Público.

O modelo de requerimento foi aprovado pela Portaria n.º 403/2012 de 7 de Dezembro e


está disponível, por exemplo, nos Gabinetes de Apoio à Vítima da APAV. O mesmo pedido
pode ser formulado diretamente no site da Comissão de Proteção às Vítimas de Crime, em
https://cpvc.mj.pt/.

O pedido está isento do pagamento de quaisquer custas ou encargos para a vítima, podendo
inclusivamente os documentos e certidões necessárias para este pedido ser obtidos gratuitamente.

140
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Depois de apresentado o pedido, a Comissão instrui e analisa o pedido, que pode ser deferido
ou indeferido. Caso se verifique esta última proposição, a vítima pode dizer o que tiver por
conveniente com o intuito de recorrer da decisão nos quinze dias úteis seguintes à notificação.

Quem obtiver ou tentar obter uma indemnização nos termos deste regime com base em
informações falsas ou inexatas pode ser punido nos termos do Código Penal.

Por último, a vítima de um crime violento cometido no território de outro Estado Membro
da União Europeia, que tenha a sua residência habitual em Portugal, pode apresentar pedido
de indemnização perante a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes Violentos. Caberá
a esta Comissão apoiar a vítima na dedução deste pedido (por exemplo, fornecendo-lhe
os formulários adequados, ajudando-a no seu preenchimento e informando-a acerca dos
documentos necessários), transmitir o pedido à autoridade competente do Estado Membro
em que o crime foi consumado e auxiliar na instrução do mesmo. Ao invés, a vítima de um
crime violento praticado em território português que tenha a sua residência habitual noutro
Estado Membro poderá apresentar o seu pedido de indemnização perante a autoridade
competente do seu Estado de residência. Esta autoridade deverá transmitir o pedido à
Comissão portuguesa, que fará a instrução do pedido e determinará a eventual quantia a
pagar pelo Estado Português (APAV, 2013a).

ii. Necessidade de preparar a ida a julgamento

Após o término do inquérito, poderá seguir-se a fase de instrução.

A instrução é uma fase facultativa, isto é, só existe se for requerida pelo/a arguido/a e/ou
pelo assistente. Se tal não suceder, findo o inquérito o processo segue diretamente para
julgamento (se tiver havido acusação) ou é arquivado – poderá ainda ocorrer a suspensão
provisória do processo ou a arquivamento em caso de dispensa de pena.

Esta fase visa a comprovação judicial da decisão final da fase de inquérito, sendo
dirigida pelo juiz de instrução, que apreciará os indícios probatórios recolhidos durante
o inquérito e poderá iniciar atos de instrução, isto é, realizar outras diligências, com
a colaboração dos Órgãos de Polícia Criminal. Quer o/a arguido/a, quer o assistente
podem requerer a realização de outras diligências probatórias, mas o juiz só as realizará se
considerar relevantes (a não ser o interrogatório do/a arguido/a que, uma vez requerido, é
obrigatoriamente realizado).

141
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Nesta fase realiza-se um debate instrutório, no qual participam o Ministério Público, o/a
arguido/a, o/a defensor/a, o assistente e o seu/sua advogado/a. No final desta fase, o juiz
profere despacho de pronúncia (caso tenham sido recolhidos indícios suficientes que
justifiquem a ida a julgamento) ou despacho de não pronúncia.

Independentemente da fase que antecede o julgamento (inquérito ou instrução), torna-


se importante o papel do/a profissional na preparação da criança para a sua eventual ida
ao julgamento. Com efeito, apesar de o mecanismo de declarações para memória futura
ser obrigatório nos casos de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de
menor, as crianças/jovens poderão ser novamente chamadas à fase de julgamento, para
testemunharem sobre o que lhes aconteceu. Assim, importa saber como se poderá preparar
a ida a Tribunal com as crianças e jovens47.

1. A sala de audiências

A criança e/ou jovem tem o direito de previamente visitar a sala de audiências ou de


videoconferências, mediante pedido de autorização ao tribunal. Na sala de audiências,
onde decorrerá o julgamento (ou uma outra semelhante), o/a profissional deverá apresentar
o espaço, assim como explicar onde estarão sentados os diversos intervenientes. Pelo
contrário, se no julgamento for utilizado equipamento de videoconferência – a fim de ser
possível à criança e/ou jovem a resposta às perguntas a partir de uma sala separada, em
contacto por imagem direta –, o/a profissional deverá solicitar ao Tribunal que, uns dias
antes, a vítima possa visitar essa sala (ou uma semelhante) e testar o sistema. Ao ter este
contacto prévio, a criança e/ou jovem tenderá a sentir-se mais ambientada e serena.

2. A resposta às questões colocadas no Tribunal

O/a técnico/a que acompanhe a criança ou jovem deverá esclarecê-la de que, quando
for questionado/a, deve responder sempre com a verdade, sem medo e com todos os
47. A este propósito, salienta-se
ainda um recurso que pode ser pormenores de que se lembrar. Na mesma linha, o/a utente deverá saber que se não
utilizado pelos profissionais –
Livro “O dia que a Mariana não entender uma determinada questão poderá pedir que a reformulem. Mais ainda, a criança
queria/O João vai ao Tribunal”
(2016), de Eunice Guerreiro,
ou jovem deverá ser alertada de que deverá utilizar as palavras tal e qual elas são, mesmo
com coordenação científica de
Rute Agulhas e Joana Alexandre,
que sejam “palavras feias”. No entanto, deverá ficar claro que também tem o direito de não
disponível gratuitamente em: se lembrar de todos os factos, e que, apesar da sobriedade do momento, pode chorar, pedir
http://crlisboa.org/2016/docs/
Livro_AudicaodaCrianca.pdf (ISBN: lenços, um copo de água ou ir à casa de banho.
978-989-97103-2-0).

142
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

3. Medo de retaliação

As crianças/jovens vítimas e as famílias podem ter receio de retaliações, não só diretamente


perpetradas pelo/a autor/a do crime, mas também por apoiantes daquele. Assim, neste
caso, poderá ser importante acionar medidas de proteção, tendo em conta a especial
vulnerabilidade das crianças e jovens e criar-se um plano de segurança com e para estes
últimos, com medidas como avisar a escola sobre as pessoas que não poderão contactar
com a criança/jovem, disponibilizar um número de emergência para utilizarem se existirem
ameaças ou aproximação do/a autor/a do crime, e dar conhecimento ao processo-crime
sempre que possíveis medidas de afastamento possam ser violadas (NCTSN, 2009).

4. O medo de se encontrar com o/a autor/a do crime

Apesar da criança e/ou jovem vítima de um crime contra a liberdade e autodeterminação


sexual, em regra, não ter de se confrontar com o/a autor/a do crime, certo é que tal poderá
acontecer. Assim, o/a profissional deve explicar à criança ou jovem que, na eventualidade
de contactar com a pessoa que a agrediu, não deve ter medo dela ou sentir-se inibida pela
sua presença. Na verdade, a vergonha deve residir, única e exclusivamente, no/a autor/a
do crime, dado o crime que praticou. Deste modo, o/a profissional poderá focar no seu
discurso a premissa de que o/a autor/a do crime ao ser apresentado à justiça, poderá ficar
impedido de fazer a outras crianças e/ou jovens o que a si fez.

5. A gestão de expetativas

Não raras vezes é depositado nas diligências judiciais e, sobretudo no julgamento, que
daí advenha uma pena que a vítima e os seus apoiantes considerem justa em relação ao
sofrimento da primeira.

No entanto, é importante que o/a técnico/a faça a gestão dos resultados do julgamento
e que prepare a vítima e os seus representantes legais para a possibilidade de a sentença/
acórdão não corresponder aos seus desejos. Este apoio emocional deve ser realizado antes
do julgamento e após o mesmo.

143
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

6. A exposição da vitimação

A notícia de um crime sexual contra crianças/jovens, seja junto da comunidade onde


ocorreu ou dos órgãos de comunicação social, poderá ser geradora de alarme social.
Não raras vezes, assiste-se a uma total exposição da identificação da vítima, bem como
de outros envolvidos, e do contexto de vitimação nos media que poderá funcionar como
julgamento social dos envolvidos e gerar tensão pela mediatização não solicitada por aqueles
(NCTSN, 2009).

Em processos por crimes sexuais ou por tráfico de pessoas, o público não pode assistir
aos atos processuais. Bem assim, os meios de comunicação social não podem publicar a
identidade das vítimas.

No caso de um órgão de comunicação social desrespeitar alguma destas normas, a vítima


deverá apresentar queixa pelo crime de desobediência. Deverá ainda comunicar a situação à
Entidade Reguladora da Comunicação.

7. Sentimento de culpa das crianças e jovens em relação às


perdas financeiras

Algumas crianças ou jovens, especialmente os mais crescidos, poderão sentir-se culpados


pelos gastos dos seus representantes legais advindos da participação num processo-crime,
tendo receio que este cause um decréscimo do nível de vida do agregado familiar (NCTSN,
2009). É importante tranquilizar as crianças ou jovens que o Estado poderá protegê-los
ainda que exista carência económica por parte da família, através de mecanismos como o
apoio judiciário, apoio psicológico gratuito, o direito a serem ressarcidos pelas despesas de
participação no processo penal e por intermédio de um pedido de indemnização ao autor
do crime e/ou ao Estado.

iii. As dificuldades que crianças e jovens podem sentir no


contacto com os Tribunais

Como já foi visto anteriormente, percebe-se que as deslocações ao Tribunal podem ser
entendidas pelas crianças e jovens, e/ou pelos seus representantes legais, como um momento
de grande tensão e ansiedade.

144
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Tendo em consideração o funcionamento atual dos Tribunais em Portugal, podemos constatar


que os espaços dos Tribunais nem sempre são os mais adequados para as crianças e jovens,
por serem excessivamente sóbrios, sendo que é muitas vezes exigido às vítimas uma série de
formalismos desadequados quer ao seu estado emocional, quer à sua idade e capacidade de
compreensão, que poderão interferir diretamente nos seus relatos enquanto testemunhas.

Mais é de ressalvar que existem dificuldades em promover as medidas de proteção


designadas na lei, quer devido a questões de natureza técnica, quer porque os Tribunais não
dispõem de espaços adequados para separar vítimas e autores/as dos crimes (Ribeiro, 2009,
cit in Caridade, Ferreira e Carmo, 2011).

Assim, o sistema judicial poderá necessitar de preparar regularmente os seus intervenientes


para que adotem as melhores práticas relativas à participação de crianças e jovens
nos processos, isto é, para que exista uma abordagem especializada e se desenvolvam
procedimentos menos atemorizadores para estas e para que se envidem esforços no sentido
de compatibilizar e conciliar o tempo da justiça com o tempo das vítimas.

b. Apoio psicológico

O direito a que todas as vítimas possam beneficiar de apoio psicológico consta igualmente
da Diretiva 2012/29/EU, no seu Art.º 9.º, n.º 1, al. c).

No caso em concreto das crianças e jovens, a intervenção psicológica é complexa e precisa


de ser planeada considerando o impacto desta experiência para o desenvolvimento da
vítima e da sua família, mudanças no ambiente imediato destas, disponibilidade da rede de
apoio social e afetiva e fatores de risco e proteção associados.

A maior parte das crianças/jovens vítimas de violência sexual sofre um impacto psicológico
e emocional negativo decorrente da vitimação e, por essa razão, vêm a beneficiar de apoio
psicológico especializado.

Os primeiros contactos com a criança/jovem e a família constituem momentos de


sensibilidade extrema, que podem ser cruciais na determinação da direção da intervenção
(Everstine & Everstine, 1989).

Clarificar os objetivos da intervenção e informar as vítimas e/ou seus familiares sobre este
processo, sobre o fenómeno de que são ou foram alvo, procedimentos a adotar, os direitos

145
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

que lhes assistem e sobre os recursos de que dispõem é, seguramente, uma forma de
aumentar o seu controlo sobre a situação (empowerment) e, em consequência, de diminuir a
sua ansiedade e medo. Já que muitas vezes as vítimas de crimes sexuais experimentam culpa
pelo sucedido, a informação sobre o processo de vitimação pode ajudá-las a direcionar a
responsabilidade para quem efetivamente a tem.

Espera-se que, com um plano interventivo estruturado e a longo prazo, as vítimas


potenciem o seu bem-estar psicológico e desenvolvam competências de autonomização. Se
num primeiro momento a intervenção psicológica deverá ir no sentido da resolução dos
problemas, numa fase mais avançada do processo a intervenção deverá assumir um cariz
psicoeducativo e de desenvolvimento.

Em termos de intervenção psicológica são especialmente relevantes as questões da


autoestima e da imagem corporal, áreas habitualmente afetadas em processos de vitimação
sexual. Em suma, a intervenção psicológica deve orientar-se para a promoção de estratégias
de resolução de problemas, para a (re)ativação de estratégias de adaptação e para a
rentabilização dos recursos internos e externos, com o intuito de restaurar a estabilidade
física e psicológica, a segurança e controlo.

Numa outra dimensão da intervenção, os/as psicólogos/as procuram apoiar os pais na


adaptação à situação, otimizando o suporte que podem prestar à criança/jovem, uma vez
que o nível de perturbação familiar nesta situação é muito elevado.

Os progenitores que não sejam autores/as do crime desempenham um importante papel:


influenciam o ajustamento dos filhos após a violência sexual, assim como sua resposta à
intervenção psicológica (Habigzang et al., 2005).

Diferentes intervenções têm sido propostas para o atendimento de vítimas de crime sexual
(Padilha & Gomide, 2004). De acordo com Habigzang e Caminha (2004), a intervenção
cognitivo-comportamental tem apresentado resultados superiores ao de outras abordagens
não focais no tratamento da violência sexual; porém, mais importante que a teoria subjacente
ao atendimento é proporcionar um ambiente em que a vítima se sinta acolhida e segura.

O apoio psicológico permite desenvolver as capacidades necessárias para uma mudança que
possibilite atingir objetivos pessoais e ficar melhor preparado para enfrentar as situações
que a vida coloca aos/às utentes, aprendendo a forma mais eficiente de pensar, sentir e
atuar. Este tem como objetivo promover, em conjunto com a criança ou jovem, a mudança
no pensamento, sentimentos e comportamentos necessários para resolver as situações que
até esse momento provocaram o desconforto e sofrimento caracterizado pela perda da

146
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

autoestima, sentimentos de incompetência, desamparo e falta de esperança.

Assim, o apoio psicológico deverá centrar-se no alívio e melhoria dos sintomas, no reforço
dos mecanismos de defesa adaptativos, na melhoria da sua adaptação ao meio, na melhoria
das capacidades de julgamento da realidade, no reforço da autoestima, na maximização da
autonomia, no encorajamento à expressão livre de emoções, sentimentos e pensamentos,
no restabelecimento do equilíbrio psicológico, na redução/minimização dos sintomas e
indicadores de desajustamento psicológico, emocional e comportamental identificados.

No início do processo de apoio devemos realizar uma entrevista com os pais e/ou
representantes legais, para obter informação acerca da história de vida da criança ou jovem
(entrevista de anamnese).

Morgan (1995) refere que o objetivo da entrevista é criar oportunidade de falar e obter
informação, com o mínimo trauma para a criança/jovem. Assim, é importante estabelecer
por parte do/a técnico/a, um nível de confiança e comunicação, devendo começar por revelar
a sua identidade, qual o seu trabalho e perguntar à criança/jovem se sabe porque está ali.

Importa ficar com uma ideia do mundo da criança/jovem, das pessoas que fazem parte da
sua vida, dos interesses da criança, das atitudes e comportamentos da família, entre outras
informações psicossociais.

A recolha de informação pelo/a profissional, deverá ter como referência diversos aspetos:

t Dados de história de vida: entre outros, deve obter informação sobre o local do
nascimento da criança (se nasceu num hospital, numa clínica, ou em casa), se a
gravidez foi assistida por um médico como decorreu (se foi normal, se surgiram
complicações); qual era o sexo da criança desejado pelos pais; se o parto foi normal;
qual era o seu peso à nascença; se surgiram dificuldades ou complicações durante
as duas primeiras semanas de vida; sobre a alimentação (se tem sempre apetite, falta
esporádica de apetite);
t Dados sobre a psicomotricidade: como por exemplo com que idade começou a andar
sem ajuda, ou se distingue a mão direita da mão esquerda;
t Dados sobre a psicolinguística: como era o seu choro, com que idade disse a primeira
palavra com significado, quando começou a construir frases, se apresenta alguma
dificuldade na comunicação – gaguez, dificuldades de articulação, troca de palavras;
t Dados sobre o desenvolvimento psicoafetivo: Em que altura começou a sorrir, com
que idade deixou de usar fraldas durante o dia e durante a noite, como tem sido o
sono, se tem tido medos, quem se ocupou de si até ao terceiro mês de idade, quem

147
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

se ocupou depois do terceiro mês, se frequentou alguma creche durante os três


primeiros anos de vida, se manifestou algumas dificuldades de adaptação à creche,
como passa habitualmente os fins-de-semana, qual é a sua brincadeira preferida, o
que faz quando está sozinho/a, em termos de relacionamento com outras crianças/
jovens ou adultos/as quais são as suas preferências, se há algumas crianças/jovens
de quem não gosta, se existem alguns/algumas adultos/as de quem não gosta, se se
separa facilmente dos pais, consegue partilhar e esperar pela sua vez, como reage
quando é contrariado/a, qual é o seu objeto preferido, como se entretém, quanto
tempo costuma dispor para estar com a criança ou jovem, que caraterísticas que
definem a criança ou jovem;
t Dados sobre a saúde no geral: se costuma ter consultas com um pediatra, se vê bem,
se ouve bem, quanto pesa, quanto mede, se tem tido doenças;
t Dados sobre a educação: obter dados sobre a educação que tem recebido a criança
ou jovem desde o seu nascimento, sobre a frequência escolar (estabelecimentos de
ensino, em que ano letivo está matriculada e qual o seu aproveitamento escolar,
dificuldades de aprendizagem, se repetiu algum ano).

Por outro lado, não devemos desprezar a observação do desenvolvimento físico e


neurológico da criança ou jovem. Podemos começar a observar a criança ou jovem logo
a partir da própria sala de espera, onde são cumprimentados. Ter atenção a aspetos como
a sua postura, marcha, equilíbrio, coordenação motora fina e grossa (através do seu
desempenho no manuseamento dos brinquedos e jogos), bem como a fala e a qualidade
da voz. É também importante apercebermo-nos de eventuais dificuldades que a criança ou
jovem manifeste ao nível do sistema sensorial (ex.º: visão; audição), as suas variações de
humor, a ansiedade, as suas emoções e afetos ao longo do atendimento e a forma como se
relaciona com os outros e com o/a profissional.

Deve também observar os comportamentos sexualizados da criança ou jovem, nomeadamente na


relação com o/a profissional (ex.º: dar beijos na boca, roçar-se levantando as saias, entre outros).

Importa também avaliar os estilos atribucionais da criança ou jovem, de forma a identificar


possíveis mecanismos de auto-culpabilização, que poderão ser trabalhados através de
estratégias de reestruturação cognitiva.

Com efeito, as estratégias terapêuticas a utilizar devem ser direcionadas para a


sintomatologia que a criança apresenta e para as preocupações que tanto esta, como os pais/
representantes legais manifestam. Isto porque, em diversas situações, tanto para a criança
como para a família, a situação de vitimação veio acrescentar problemas a outros que já
existiam e complexificar ou rigidificar sintomas pré-existentes.

148
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Como referência, salienta-se a evidência empírica que as terapias cognitivo-


comportamentais, narrativas e psicodinâmicas têm demonstrado na obtenção de resultados
positivos com vítimas de violência sexual.

A qualidade da fase inicial é vista como essencial no processo de apoio psicológico, pelo que,
por um lado, consideramos a empatia, a confiança e a disponibilidade para a mudança como
dimensões centrais no estabelecimento da relação e, por outro lado, a recolha e análise da
informação e a definição da estratégia de intervenção psicológica.

Ao contrário de um/a adulto/a, a criança ou jovem, por questões associadas ao seu


desenvolvimento global e à sua idade, é menos de capaz de transmitir os seus sentimentos
e pensamentos em relação à experiência de vitimação. Como tal é importante a capacidade
de o/a psicólogo/a desenvolver uma empatia rigorosa com a criança ou jovem, que exigirá
que o/a profissional possua conhecimentos acerca dos estádios e tarefas de desenvolvimento
(desenvolvimento cognitivo; desenvolvimento social; desenvolvimento emocional)
associadas à infância e adolescência.

Dado que as crianças muito pequenas não conseguem fornecer relatos precisos da história da
sua vida, é fundamental que através dos seus pais ou responsáveis pela mesma se faça a recolha
da informação pertinente. Nesta circunstância, o/a psicólogo/a deverá receber em primeiro lugar
quem acompanha a criança, e só depois a criança, transmitindo-lhe o que foi relatado por aqueles.

Tratando-se de um jovem que se apresente acompanhado, deve-se em primeiro lugar


receber o jovem, e, a posteriori, pedir-lhe autorização para falar com o(s) acompanhante(s).

Uma das tarefas do/a técnico/a é clarificar com a criança ou jovem o porquê da sua
vinda, qual o problema e o que podemos fazer para o/a ajudar. Não deverão ser efetuadas
perguntas diretas, de modo a que a criança ou jovem responda de uma forma mais aberta e
de acordo com os seus sentimentos.

Cabe ao/à técnico/a a adoção de uma linguagem simples, clara e compreensível que seja
adequada ao estádio de desenvolvimento da criança ou jovem, para que estes sejam capazes
de entender o que lhes está a ser transmitido. O/A técnico/a deverá promover o bem-estar
da criança ou jovem, contribuindo para que se sinta ouvida, compreendida e segura.

A criança ou jovem deve, desde logo, ser informada de que o objetivo do apoio psicológico
é ajudá-la a compreender melhor o que está a preocupá-lo/a. O/A técnico/a deve também
informar de que nada do que contar será transmitido à sua família ou a outros sem o seu
consentimento ou autorização.

149
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

A criança ou jovem deve ser estimulada a exprimir as suas emoções e sentimentos


sem limites de conteúdo e de forma: a intervenção é efetuada no sentido de ajudar a
compreender, tolerar e dominar os seus sentimentos.

Embora esteja aberto à expressão de sentimentos e desejos, o/a psicólogo/a assume a total
responsabilidade pela manutenção da segurança, sem transmitir que espera da criança ou
jovem mais autocontrolo do que aquele que ela é capaz em determinado momento. Muitas
vezes, comentários simples sobre os sentimentos da criança ou jovem e o reconhecimento
da sua validade são o suficiente para evitar uma reação negativa. Noutras ocasiões, o/a
psicólogo/a terá que intervir de forma mais ativa, por vezes, aproximando-se fisicamente
da criança ou jovem, para que o controlo emocional seja restabelecido. Esta estratégia
do/a profissional alivia a ansiedade da criança ou jovem e, ao mesmo tempo, reduz a
probabilidade de ocorrerem sentimentos de culpa ou vergonha.

Na intervenção junto da família o/a profissional deverá compreender o que sente um pai ou
uma mãe quando descobre ou lhe é revelado que o seu filho ou filha foi vítima de violência.
As famílias são parte diretamente envolvidas, seja enquanto elementos protetores ou
enquanto alegados/as autores/as do crime, e a descoberta da experiência de vitimação dos
filhos contribui para modificações na conjuntura e organização pessoal, conjugal e familiar.

Quando as famílias procuram proteger as crianças ou jovens, é necessário que o/a técnico/a
estabeleça com elas uma relação mais ou menos estreita, pois possuem um papel importante
no relato da história de vida da criança ou jovem.

Convém ainda acrescentar que, apesar de em alguns casos a criança ou jovem poder não
apresentar sintomas diretamente ligados à situação de vitimação sexual, importa que
seja criada uma relação de suporte com uma entidade de apoio, para possa funcionar
como recurso futuro, caso os efeitos da vitimação se venham a revelar tardiamente. Com
efeito, em diversos casos os sintomas mais evidentes da situação de vitimação despertam
quando a criança atinge a adolescência, a idade adulta, quando inicia a sua vida sexual
voluntariamente ou quando esta passa por uma fase de sofrimento intenso, eventualmente
provocada por outro tipo de trauma posterior. Nestes casos, o apoio psicológico à vítima
não deve ser descurado, assentando no pressuposto de que cada vítima tem um timing
específico para integrar a situação que sofreu, contextualizá-la e eventualmente confrontar-
se com ela e com os sintomas que lhe são associados.

150
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

c. Apoio prático – necessidades decorrentes do crime

A satisfação das necessidades básicas das crianças e jovens é da maior importância para se
tentar assegurar um processo de apoio bem-sucedido. Com efeito, se necessidades como
alimentação, bem-estar físico e psicológico, ou segurança não estiverem asseguradas,
poderão comprometer todo o envolvimento da criança/jovem e da sua rede de suporte
primária. Nesse sentido, importa analisar alguns aspetos que devem ser avaliados e
assegurados pelos serviços que possam vir a prestar apoio a estes/as utentes.

i. Necessidade de segurança – o acolhimento de


emergência

Caso não seja possível aplicar imediatamente quaisquer medidas de proteção como já elencadas
anteriormente, e porque se verifica uma situação de perigo ao abrigo do Art.º 91.º da Lei de
Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de setembro), pode ser feita a
retirada da criança/jovem e o seu acolhimento de emergência em instituição adequada ao efeito:

Artigo 91.º
Procedimentos urgentes na ausência do consentimento
1. Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade
física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das
responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas
no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção
imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais.
2. A entidade que intervém nos termos do número anterior dá conhecimento imediato das situações a que aí
se alude ao Ministério Público ou, quando tal não seja possível, logo que cesse a causa da impossibilidade.
3. Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança
ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de
acolhimento, nas instalações das entidades referidas no artigo 7.º ou em outro local adequado.
4. O Ministério Público, recebida a comunicação efetuada por qualquer das entidades referidas nos
números anteriores, requer imediatamente ao tribunal competente procedimento judicial urgente
nos termos do artigo seguinte.

Esta retirada pode ser feita a pedido de qualquer entidade com competência em matéria de
infância e juventude (Art.º 7.º da mesma Lei) ou pelas comissões de proteção (Art.º 8.º da mesma
Lei) solicitando para o efeito a colaboração do Tribunal ou dos Órgãos de Polícia Criminal. 48. A linha é acionada pelo número
144, sendo este, um serviço
telefónico gratuito que funciona
ininterruptamente, e que tem como
Em situações de emergência, a Linha Nacional de Emergência Social48 encontra-se objetivo garantir resposta imediata
a situações que necessitem de
habilitada a dar resposta de acolhimento às crianças e jovens. atuação emergente e urgente no
âmbito da proteção social.

151
Parte II - Proceder Capítulo II – A intervenção
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

Esta solução poderá afigurar-se como necessária para o afastamento imediato da situação
de violência sexual que a criança/jovem possa estar a vivenciar, especialmente nos casos em
que a mesma ocorre em contexto intrafamiliar.

No entanto, o/a profissional não deve descurar a possibilidade de avaliar, previamente


à retirada de emergência, a rede de suporte primária para acolhimento urgente daquela
criança/jovem. Porém, deve assegurar que o/a eventual autor/a do crime não tem
conhecimento do local para onde a criança/jovem vai.

ii. Alimentação

Nalgumas situações, as crianças e jovens, bem como os/as seus familiares e amigos/as que
constituem a sua rede de suporte primária, poderão encontrar-se numa situação de grave
carência económica; portanto, é igualmente primordial suprir as necessidades alimentares.
Numa primeira linha, os/as profissionais poderão articular com a Ação Social da Segurança
Social da zona de residência, que poderão proporcionar respostas imediatas, de forma a
garantir a satisfação esta necessidade básica.

Não obstante, poderá ser solicitado apoio a diversas IPSS49 que possam dar resposta às
necessidades, ora pontualmente, ora de forma mais continuada, até que aquele agregado
familiar reorganize o seu projeto de vida.

iii. Situação escolar

Por vezes a reorganização do projeto de vida, implica o afastamento geográfico das crianças
ou jovens e da sua rede de suporte primária.

Assim sendo, e promovendo a discrição necessária para que a criança ou jovem vítima de
49. Existem algumas instituições violência sexual não seja revitimizada, os/as profissionais deverão encetar todos os esforços
nacionais ou locais, como o
Banco Alimentar Contra a Fome, a com as instituições escolares50 (de origem e de destino) para proceder à transferência, com
Amnistia Médica Internacional (AMI)
ou a Cruz Vermelha, que visam
vista à continuidade do processo escolar daquele/a utente.
a prestação de apoio em bens
alimentares a cidadãos que se
encontrem em situação de grave
carência económica temporária ou
Se necessário, o/a profissional deverá zelar para que a morada do agregado seja
de longa duração. salvaguardada, providenciando um endereço de uma instituição, por exemplo, para que a
50. O/a profissional deverá articular
com ambas as escolas, bem como transferência do processo seja sigilosa, de forma a garantir a segurança do/a utente.
com a Direção Geral de Educação.

152
Capítulo II – A intervenção Parte II - Proceder
4. Apoio especializado às crianças e jovens vítimas de violência sexual

iv. Saúde

Concomitantemente, os técnicos deverão assegurar-se que as crianças e jovens vítimas se encontram


a ter o necessário acompanhamento clínico. Para o efeito poderão articular-se diretamente com os
Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco51 da instituição de saúde mais próxima.

Estes núcleos têm como missão apoiar e orientar a intervenção da saúde nas crianças e
jovens em risco, com vista a uma mais efetiva prevenção do fenómeno e a uma significativa
melhoria da qualidade das respostas do Serviço Nacional de Saúde a esta problemática. Os
objetivos da Ação de Saúde para Crianças e Jovens em Risco são: promover os direitos das
crianças e jovens, em particular a saúde, através da prevenção da ocorrência de maus tratos,
da deteção precoce de contextos, fatores de risco e sinais de alarme; acompanhamento e
prestação de cuidados e da sinalização e/ou encaminhamento dos casos identificados; e
adequação dos modelos organizativos dos serviços, pela incrementação da preparação
técnica dos profissionais, pela concertação dos mecanismos de resposta e pela promoção da
circulação atempada de informação pertinente.

Estes núcleos são constituídos por médicos/pediatras, enfermeiros, técnicos de serviço


social e outros profissionais competentes e habilitados para intervir nesta área.

d. Finalização do apoio prestado

O processo de apoio pode acontecer por um período mais ou menos longo no tempo –
intervenção em crise ou intervenção continuada - dependendo das necessidades identificadas,
da vontade dos utentes e da avaliação da pertinência da manutenção (ou não) do apoio.

O apoio pode cessar logo com o primeiro contacto, se apenas for feito um pedido de
esclarecimentos sem que exista vontade de continuar o processo.

Mesmo quando se identifica a necessidade de contactos posteriores, nem sempre o processo de


apoio se desenvolve, ora por não voltar a ser possível o contacto com o/a utente ou intermediário/a 51. A “Acção de Saúde para Crianças e
Jovens em Risco” (ASCJR) foi criada
(ex.º: mudar de número de telemóvel e não avisar o/a técnico/a), ou por inteira responsabilidade e pelo Despacho nº 31292 de 5 de

vontade deste (ex.º: não querer mais falar com a instituição, não fornecer dados para contacto). Dezembro, que visava a criação de
uma resposta no Serviço Nacional
de Saúde ao fenómeno dos maus-
tratos, pelo desenvolvimento da
O processo de apoio pode também cessar nas situações em que o/a utente não crê existir “Rede Nacional de Núcleos de
Apoio às Crianças e Jovens em
necessidade de intervenção posterior, ou porque a situação inicial foi devidamente ultrapassada e Risco” quer ao nível dos Cuidados
de Saúde Primários, quer ao nível
ajustada na experiência de vida do/a utente e este se autonomizou do processo de apoio. dos Hospitais com atendimento
Pediátrico.

153
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

1. Programas de prevenção da violência sexual contra


crianças e jovens

a. A prevenção da violência sexual

Considerando a sua magnitude e impacto ao nível da saúde, a violência sexual contra


crianças e jovens tem sido identificada enquanto uma questão de saúde pública (Hammond,
2003, cit. in Wurtele e Kenny, 2012).

As intervenções de Saúde Pública são, tradicionalmente, caracterizadas em três níveis de


prevenção, que se definem pelo seu aspeto temporal - a intervenção antes de a violência
ocorrer e a intervenção depois de a violência ocorrer:

t Prevenção Primária: intervenção anterior ao problema de forma e evitar o seu


aparecimento.
t Prevenção Secundária: abordagens centradas nas reações imediatas à violência (ex.º:
cuidados médicos; serviços de emergência; tratamento de infeções sexualmente
transmissíveis depois de uma violação).
t Prevenção Terciária: abordagens centradas nos cuidados prolongados após a
violência, como a reabilitação e a reintegração, e nos esforços para diminuir o trauma
ou reduzir a deficiência prolongada ligada à violência.

Apesar de tradicionalmente serem utilizados junto de vítimas de violência e no âmbito


da assistência à saúde, os esforços de prevenção secundários e terciários também são
considerados relevantes para os perpetradores da violência e são aplicados no âmbito
judiciário como resposta à violência (APAV, 2011).

É de referir, que a prevenção da violência também tem sido pensada e delineada de acordo
com o público-alvo, estando categorizada do seguinte modo:

t Abordagem universal: ações de prevenção centradas na população, sem considerar


o risco individual. (ex.º: ação de prevenção contra a violência, dirigida a todos os
alunos de uma escola).
t Abordagem selecionada: ações de prevenção direcionadas a indivíduos ou grupos que
apresentam um ou mais fatores de risco de vitimação (ex.º: curso de treino de competências
parentais dirigido a pais solteiros, de níveis socioeconómicos desfavorecidos).
t Abordagem indicada: ações de prevenção dirigidas a indivíduos que já manifestaram
comportamentos violentos e/ou vivenciaram experiências de vitimação (ex.º:

155
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

conjunto de sessões de aconselhamento para agressores perpetradores de violência


doméstica; intervenção junto de crianças e jovens vítimas de violência sexual)

i. Modelo de saúde pública

Vários especialistas com experiência nesta problemática têm recomendado a utilização


do Modelo de Saúde Pública no desenvolvimento de atividades de prevenção da violência
sexual na infância e adolescência. Kenny e Wurtele (2012) defendem que este modelo retrata
a violência sexual como uma ‘doença’, tentando alterar a interação entre o agente (autor/a do
crime), o hospedeiro (vítima), e o ambiente (comunidade, sociedade). Com esta abordagem
são tidos em conta quatro processos essenciais (OMS, 2006):

t Definir o problema ao nível conceptual e numérico, através do uso de estatísticas que


descrevem a magnitude do problema e as características da população em risco.
t Identificar as causas e os fatores de risco que contribuem para o aumento da
vulnerabilidade face à violência – por exemplo, os fatores de risco aumento para o
abuso sexual ou os obstáculos subjacentes à implementação de serviços eficazes de
apoio e proteção para crianças.
t Com base nos fatores de risco e protetores, desenhar intervenções e programas,
que tenham uma elevada probabilidade de eficácia face à redução dos fatores de
risco. Independentemente do foco destas intervenções ser ao nível individual ou
comunitário, é sempre necessário avaliar a sua eficácia.
t Divulgar a informação sobre a eficácia das intervenções implementadas, quer ao nível da
prevenção da violência, quer ao melhoramento das respostas, é necessário informação
com um elevado nível de qualidade e de confiança. O sucesso de uma abordagem
sistemática da violência contra crianças e jovens é determinada pela existência de
pesquisa, recolha de dados, monitorização e avaliação dos programas de prevenção.

Existe evidência científica em grande escala que possibilita afirmar que a violência sexual
contra crianças e jovens pode ser prevenida (OMS, 2006).

A maioria do trabalho que tem sido efetuado na área da prevenção consiste na identificação
precoce de casos de violência sexual e nas intervenções com vista a proteger as vítimas.
Com efeito, esta abordagem corresponde a um tipo de prevenção que será benéfico para
as crianças e jovens e as suas famílias. No entanto, não possibilita uma redução em grande
escala da incidência de atos violentos, dado que tal redução apenas será possível através da
utilização de estratégias dirigidas às causas subjacentes e fatores responsáveis (OMS, 2006).

156
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

ii. Modelo ecológico

O Modelo ecológico tem sido utilizado desde o final da década de 70 para explicar diversos
problemas ao nível da saúde, mas também para a violência. Este modelo permite explorar
as diferentes dinâmicas relacionais entre as pessoas e o meio onde se inserem. No campo
da prevenção da violência, o modelo ecológico apresenta essencialmente dois objetivos:
ajudar na compreensão dos fatores de risco e protetores da violência e permitir a criação de
uma estrutura para a prevenção da violência. Este modelo encontra-se organizado segundo
diferentes níveis:

Social Comunitário Relacional Individual

Figura 8 - Modelo ecológico da violência (OMS, 2006)

t Individual: neste nível estão incluídas as características individuais, os fatores biológicos,


os comportamentos e experiências pessoais da criança ou jovem. A prevenção ao nível
individual pode consistir no treino de competências para a resolução de conflitos, de
gestão de stress ou aumento do rendimento escolar da criança.
t Relacional: este nível refere-se às relações interpessoais da criança ou jovem, isto é, a sua
relação com os pares e com a família. Aqui incluem-se, como estratégias, a realização de visitas
domiciliárias, com vista a promoção de competências parentais ou o desenvolvimento de
campanhas de sensibilização e informação sobre a violência em contexto escolar.
t Comunitário: este nível inclui os contextos comunitários onde as interações sociais
ocorrem (ex.º: escolas, associações, vizinhança). A prevenção ao nível comunitário
pode consistir no estabelecimento de parcerias com outras entidades que também
intervêm no âmbito da violência ou a criação e distribuição de materiais de
informação sobre esta problemática.
t Social: inclui os fatores sociais, tais como as condições económicas, normas culturais,
políticas e leis. Neste nível são estudados os fatores que criam um nível de aceitação
e tolerância da violência, os fatores que criam ou mantêm falhas entre diferentes
segmentos da sociedade ou normas que valorizam os direitos dos/as adultos/as face
às crianças. Exemplos de estratégias de intervenção neste âmbito são a criação de
políticas de prevenção e proteção ou a promoção de campanhas de prevenção da
violência junto dos meios de comunicação.

157
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

b. Programas de Prevenção

Tal como foi referido anteriormente, a prevenção na área da violência sexual contra crianças
e jovens requer o uso de estratégias contínuas a nível individual, relacional, comunitário e
social. Um dos aspetos chave para potenciar o êxito de um programa de prevenção é a sua
capacidade para fornecer serviços de apoio e informação sustentados na evidência científica
(Child Welfare Information Gateway, 2013).

Os programas de prevenção destinados a crianças e jovens são parte fundamental de uma


estratégia multifacetada, com vista a criar esforços a nível comunitário na prevenção da
violência sexual contra crianças e jovens. Assim, a comunidade deve estar ativamente
envolvida na prevenção e na salvaguarda da segurança e bem-estar das crianças e jovens
(National Sexual Violence Resource Center, 2011).

No geral, as crianças e jovens revelam um conhecimento deficitário sobre a violência


sexual e estratégias de autoproteção que podem adotar (Wurtele, 1998, cit. in Kenny &
Wurtele, 2012). Estudos neste âmbito mostram que as crianças, sobretudo as mais novas,
revelam dificuldades no reconhecimento de potenciais perpetradores de violência sexual.
Num estudo realizado com 406 crianças, com idades entre os 3 e 5 anos, verificou-se que
apenas 38% das crianças reconheceram corretamente os pedidos de toques inapropriados,
e, portanto, a maioria percecionou os toques de cariz sexual como aceitáveis (Wurtele &
Owens, 1997, cit. in Kenny & Wurtele, 2012). Outras investigações mostraram também
que a maioria das crianças em idade pré-escolar conhecem os termos corretos para as
várias zonas do corpo, mas poucas sabem os termos corretos dos órgãos genitais (Kenny &
Wurtele, 2008; Wurtele, 1993, Wurtele, Melzer & Kast, 1992, cit. in Kenny & Wurtele, 2012).

Com efeito, a maioria dos programas de prevenção da violência sexual contra crianças e
jovens apresentam três objetivos principais, também conhecida como a teoria dos três R’s:

t Ensinar a criança a reconhecer uma situação de abuso, designadamente potenciais


agressores e situações de perigo.
t Desenvolvimento de competências que permitam às crianças resistir a uma tentativa
de abuso, dizendo “não” ou afastando-se do potencial agressor.
t Encorajar a revelação de uma situação abuso que possam ter vivenciado, que estejam
a vivenciar ou que possam vir a vivenciar no futuro (NSVRC, 2011).

Nestes programas podem ser abordados os seguintes conteúdos:

t O conceito de “partes privadas” e quais as partes do corpo que são consideradas “privadas”.

158
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

t Ensinar os nomes corretos para as partes do corpo (ex.º: pénis, vagina, peito) para
que a criança consiga reportar corretamente e com precisão o que lhe aconteceu.
t Falar sobre o desenvolvimento sexual saudável.
t Distinguir os diferentes tipos de toques que podem experienciar (“mau toque” vs.
“bom toque”).
t Distinguir entre o bom e o mau segredo.
t Reforçar a importância de confiarem na sua intuição sobre as pessoas e situações.
t Transmitir que têm o direito de decidir quem pode e quem não pode tocar no seu corpo.
t Explicar que numa situação em que alguém as toca contra a sua vontade ou de uma
forma que as deixa desconfortáveis podem dizer “NÃO!” ou sair/fugir e relatar o
sucedido a um/a adulto/a de confiança.
t Reforçar que o abuso sexual nunca é culpa da criança/jovem.
t Saber identificar adultos/as de confiança.

Os programas de prevenção de violência sexual para crianças/jovens podem ser delineados


de variadas formas. Estes programas podem ser compostos por uma única sessão ou
por múltiplas sessões, cuja duração pode variar entre 30 minutos ou inúmeras horas
de atividades, e podem ser apresentados por professores, psicólogos ou técnicos com
experiência nesta área.

Uma vez que a maioria das crianças/jovens passa grande parte do seu tempo na escola, a
implementação de programas de prevenção em contexto escolar irá possibilitar o acesso
a um elevado número de crianças/jovens. As escolas são tradicionalmente um local
seguro para aqueles/as serem informados sobre a violência sexual, e com o devido treino
e competências, os professores e psicólogos podem ser percecionados como adultos/as de
confiança, a quem pode ser denunciada uma situação de abuso (NSVRC, 2011).

No delineamento de programas de prevenção sobre esta problemática podem surgir vários


desafios, nomeadamente a dificuldade em apresentar conceitos de prevenção complexos de
forma percetível e de fácil compreensão para crianças mais novas (Finkelhor, 2007; Repucci
& Herman, 1991, cit. in NSVRC, 2011).

Existem vários métodos de transmissão de informação que podem ser utilizados em


programas de prevenção da violência sexual para crianças e jovens. Segundo alguns
métodos, a criança/jovem assume um papel ativo, estando envolvida no processo
de aprendizagem, quer física, verbalmente ou em ambas. São exemplos, o treino de
competências ou o role-play que providenciam um ambiente não ameaçador, no qual a
criança/jovem pode praticar o reconhecimento de possíveis sinais de perigo e as respetivas
estratégias de segurança que podem ser utilizadas.

159
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

Por sua vez, podem também ser utilizados métodos nos quais a criança/jovem é um participante
passivo, pelo que a sua participação verbal e/ou física é inexistente. São exemplos a apresentação
de uma situação de perigo e como responder perante a mesma, através de uma dramatização,
bem como a utilização de filmes ou livros infantis sobre esta temática (NSVRC, 2011).

c. Exemplos de Programas de Prevenção

Seguindo o modelo de prevenção primária foram criados, essencialmente no Canadá e nos


Estados Unidos da América, vários programas de prevenção de violência sexual contra
crianças. Neste sentido, passamos a apresentar alguns dos principais programas que têm
sido implementados neste âmbito (Maria & Ornelas, 2010):

i. Programa “CAP – Child Abuse Prevention”/ ESCAPE

O programa CAP, um dos primeiros programa cuja implementação se encontra referenciada


na literatura, encontra-se disseminado por vários estados Norte Americanos e por vários
países, tendo já sofrido algumas adaptações e novas designações, como por exemplo o
programa ESCAPE do Canadá. O CAP tem como contexto de intervenção as escolas, sendo
destinado a crianças (entre o 1º ano, do 1º ciclo e o 6º ano, do 2º ciclo), pais, educadores ou
outros familiares, professores ou outros profissionais do contexto escolar. Este programa
assenta no pressuposto que as crianças precisam de ter informação sobre prevenção para
conseguirem reconhecer uma situação potencialmente perigosa, pelo que, um dos seus
objetivos principais é munir as crianças de estratégias de prevenção contra a violência
sexual, bem como os pais, educadores, professores e outros profissionais do contexto escolar,
de conhecimentos e estratégias de forma a conseguirem colaborar na segurança das crianças
com quem contactam (Cooper, 1995, cit. in Maria & Ornelas, 2010).

Neste programa também é considerada a possibilidade de já terem ocorrido algumas


situações de violência sexual, e, como tal, é dada relevância à transmissão de informação
acerca de como identificar situações abusivas e de como lidar com as mesmas. Deste modo,
outro dos objetivos do programa é dotar os intervenientes de conhecimentos e estratégias de
como intervir em diferentes situações de abuso (Cooper, 1995, cit. in Maria & Ornelas, 2010).

O CAP desenvolve-se através de workshops com os pais, professores e com as crianças (em
contexto sala de aula). Os workshops contêm uma única sessão para cada um dos grupos

160
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

referidos. No que concerne aos profissionais de educação, e considerando que qualquer


profissional pode ser abordado por um pedido de ajuda por parte de uma criança, é importante
que os mesmos tenham informação neste domínio O workshop com os profissionais tem uma
duração aproximada de duas horas e ocorre antes dos workshops desenvolvidos com as crianças.

No que se refere ao workshop com os pais e outros familiares, o material apresentado é


semelhante ao apresentado junto dos profissionais. São apresentadas estratégias para iniciarem
e reconhecerem oportunidades para conversarem com as crianças sobre este tópico.

A sessão com as crianças é desenvolvida por três facilitadores e são usadas técnicas de role-
play e discussão grupal orientada. Pretende-se ensinar as crianças a reconhecerem potenciais
situações de perigo e a usarem eficazmente as suas opções para se manterem em segurança.
Existe uma discussão inicial sobre os direitos das crianças e, posteriormente, seguem-se três
role-plays. Estes representam as experiências de abuso mais comuns que uma criança poderá
vivenciar: o abuso por outra criança, o abuso perpetrado por um/a estranho/a; e o abuso
perpetrado por um/a conhecido/a da criança. Os role-plays são usados de forma a recriar
várias situações sobre as quais as crianças podem pensar, criar ou imaginar estratégias
eficazes e seguras. Procura-se, assim, desenvolver assertividade, autodefesa, ajuda-mútua
entre os pares, apoio de adultos/as e comunicação com adultos/as de confiança. Existe um
role-play final no qual um professor da turma participa desempenhado o papel do/a adulto/a
a quem a criança pede ajuda. Tal possibilita às crianças visualizarem o que pode acontecer
caso peçam ajuda ou recorram a alguém (Maria & Ornelas, 2010).

Os resultados do programa CAP demonstram o aumento de conhecimentos e das


competências de prevenção. Dois meses após o programa, apenas os indicadores de aumento
de conhecimento se mantiveram. Não obstante, as crianças apresentaram competências mais
adequadas do que as que possuíam antes da participação no programa (Maria & Ornelas, 2010).

Considera-se que a mais-valia do programa CAP está no facto de as crianças poderem ter um
papel mais ativo na reflexão e partilha das soluções para a resolução das problemáticas abordadas,
bem como a sua aplicação prática através de participação em role-plays. A proatividade permite a
aquisição de conhecimentos sobre a prevenção de forma mais consolidada.

ii. Programa “Who Do You Tell?”

Este programa foi criado em 1983 e tem sido desenvolvido e adaptado pela Calgary
Communities Against Sexual Abuse, uma organização sem fins lucrativos, sediada no

161
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

Canadá. Este programa é composto por duas sessões de 60 minutos com as crianças/jovens,
uma sessão de 60 minutos com os professores e uma sessão de 90 minutos com os pais.

Na sessão com os professores pretende-se apresentar o trabalho que será desenvolvido


com as crianças, disponibilizar informação sobre como identificar sinais e ou sintomas que
podem estar presentes em crianças vítimas deste tipo de violência, e como agir perante
uma denúncia. Na abordagem com os pais, o objetivo é prepará-los para o envolvimento
das crianças no programa e disponibilizar-lhes informação sobre a violência sexual contra
crianças e como atuar face a uma denúncia. Com as crianças, pretende-se abordar o conceito
de violência sexual, a identificação das suas partes privadas, a aprendizagem de respostas
assertivas a toques indesejados e a identificação de adultos/as de confiança, a quem possa
ser denunciada uma situação de violência sexual. De forma a alcançar os objetivos supra
mencionados, são utilizados diversos materiais: histórias, canções, vídeos e role-plays, com
vista a transmitir a seguintes mensagens: “dizer não”; “contar a um/a adulto/a de confiança”;
“os abusos sexuais nunca são culpa da criança”.

No que diz respeito à avaliação deste programa, Tutti (1997, 2000, citado por Maria
e Ornelas, 2010), realizou um estudo com 261 crianças, utilizando um grupo de
controlo, e constatou que as crianças que participaram no programa revelaram ganhos
significativos relativamente aos seus conhecimentos sobre “toque bom” vs. “toque mau”,
comparativamente com as crianças do grupo de controlo. A autora verificou também que
as crianças do 3º ano de escolaridade são aquelas que mais beneficiam do programa de
prevenção, no que diz respeito aos ganhos ao nível dos conhecimentos.

iii. Programa “Red Flag, Green Flag People”

O programa “Red Flag, Green Flag People”, foi criado em 1986 pela Associação Rape and
Abuse Crisis Center, situada nos EUA. Este programa apresenta diferentes modalidades de
acordo com a faixa etária das crianças: para as crianças no ensino pré-primário “T is for
Touching”; para as crianças do 1º e 2 ano “Red Flag, Green Flag People” e “Red Flag, Green
Flag People II”, para as crianças do 3º e 4º ano.

O objetivo deste programa é auxiliar as crianças a identificar os atos de violência sexual


cometidos por pessoas conhecidas. Foi inicialmente desenvolvido para ser aplicado em
contexto escolar mas, atualmente, é utilizado noutros contextos – serviços sociais, para
profissionais médicos e juristas, e ainda como instrumento para investigar e intervir na área
da violência sexual contra crianças. Este programa tem como principais objetivos: ensinar as

162
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

crianças a identificarem situações de violência sexual; demonstrar às crianças como podem


responder assertivamente nestas situações; transmitir às crianças que devem contar a um/a
adulto/a de confiança a situação de violência sexual para que sejam ouvidas.

A aplicação deste programa é realizada através de um livro com exercícios, de cerca de


30 páginas, sendo este auxiliado por um guia para o facilitador (pais ou professores), que
deve ir acompanhando cada parte do livro com exercícios e perguntas de reflexão e role-
plays. O programa para as crianças mais novas é composto por três vídeos, de cerca de
seis minutos, nos quais estão representados episódios sobre: “toque bom” vs. “toque mau”;
dizer “não” aos toques maus; sair de situações abusivas e identificá-las e contar a um/a
adulto/a de confiança. Este programa tem ainda previsto a realização de duas sessões, para
que os professores e outros funcionários recebam formação sobre os objetivos e conceitos
abordados no programa. Num estudo realizado por Kolko, Moser e Hugher (1989, citado
por Maria & Ornelas, 2010), verificou-se que as crianças que participaram no programa
revelaram ganhos estatisticamente significativos ao nível dos conhecimentos, respostas
preventivas adequadas e conceitos/competências, quando comparadas com as crianças
do grupo de controlo. Salienta-se, também, que os pais e professores que participaram
no programa revelam um aumento de conhecimento sobre como prevenir situações de
violência sexual na infância, do que os pais e professores do grupo de controlo.

iv. Programa – “Stop It Now!”

Este programa foi criado em 1992, por Fran Henry, uma sobrevivente de violência sexual,
que constatou que, à data, a informação disponível ao nível da prevenção da violência sexual
contra crianças e jovens era insuficiente. Este programa visa a prevenção da violência sexual,
mobilizando adultos/as, famílias e comunidades para intervirem na proteção das crianças/
jovens, antes que estas possam ser vitimadas. Este é talvez dos poucos programas, ou mesmo
o único, que apela a todos os adultos/as a assumirem responsabilidade de acabar com os atos
de violência sexual contra crianças/jovens.

Com este propósito, foram desenvolvidos materiais para educar para a prevenção da
violência sexual, mensagens para os meios de comunicação social, instrumentos e recursos
de formação para a prevenção e estratégias de base comunitária. Este programa baseia-se
nos seguintes pressupostos: as mudanças das atitudes sociais e das políticas governamentais
são da responsabilidade de todos os adultos/as e que implicam o envolvimento das famílias
e comunidades. O programa assenta num conjunto de medidas que devem estar presentes
nas comunidades para a prevenção da violência sexual contra crianças e jovens: promover

163
Parte II - Proceder Capítulo III – A prevenção
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

informação correta e verdadeira sobre o conceito; melhorar os serviços de apoio às crianças


e jovens vítimas de violência sexual; criar serviços especializados para os/as autores/as dos
crimes; disponibilizar programas de educação sexual adaptados às idades das crianças/
jovens e melhorar os conhecimentos sobre os comportamentos que podem colocar as
crianças/jovens em situações de maior vulnerabilidade a estes tipos de crimes.

d. O que torna um programa de prevenção eficaz?

Estudos na área da prevenção também têm analisado o impacto dos programas de


prevenção da violência sexual contra crianças e jovens, nos quais é explorada a eficácia, os
custos e os benefícios dos mesmos. Deste modo, Finkelhor, Asdigian e Dziuba-Leatherman
(1995), identificaram alguns elementos considerados essenciais para que um programa de
prevenção seja eficaz:

t Abordar conteúdos sobre: a violência sexual contra crianças e jovens, “toque bom” vs.
“toque mau”, gritar para pedir ajuda, pedir ajuda a um/a adulto/a de confiança e que
uma situação de abuso nunca é culpa da criança/jovem;
t Permitir a prática das competências adquiridas em contexto de sala de aula;
t Disponibilizar informação que poderá ser transmitida em casa;
t Reuniões com os pais;
t Repetição da informação transmitida em momentos subsequentes.

Outras investigações também identificaram que os programas de prevenção mais eficazes têm
em consideração os seguintes elementos (National Sexual Violence Resource Center, 2011):

t Incluir as crianças/jovens como participantes ativos (Davis e Gidycz, 2000);


t Combinar técnicas de modelagem, discussão em grupo e role-playing (Davis e
Gidycz, 2000; Topping e Barron, 2009);
t Dividir o programa em múltiplas sessões (Davis e Gidycz, 2000; Topping e Barron, 2009);
t Apresentar um público-alvo mais abrangente – ex.º: pais (Kenny et al., 2008; Topping
e Barron, 2009).

164
Capítulo III – A prevenção Parte II - Proceder
1. Programas de prevenção da violência sexual contra crianças e jovens

Conclusão

O apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual deve pautar-se por uma ação
integrada das diferentes dimensões que, ao longo deste manual, foram sendo desenvolvidas.
Com efeito, o fenómeno de violência sexual contra crianças e jovens apresenta-se como
sendo de extrema complexidade, quer no que respeita ao compreender, quer no que respeita
ao proceder, pelo que, cada vez mais, urge uma ação interdisciplinar e interinstitucional para
melhor se conhecer e intervir nesta matéria.

Espera-se que este manual seja uma ferramenta útil para todos os que regularmente se
debruçam sobre este tema, procurando-se ainda que contribua para uma melhor capacitação
de todos os profissionais cuja missão seja prestar o apoio que as crianças e jovens vítimas de
violência sexual necessitam, de forma eficiente.

Pretendeu-se fazer um exercício de uniformização de procedimentos e vocabulário utilizado


no apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. Não apenas no que consiste o apoio
específico à vítima, mas para que possa ser partilhado entre os diferentes intervenientes
do processo que surge desde a revelação do crime até à normalização da vida da criança,
passando pelo processo judicial.

O apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual não é algo específico de organizações
de apoio ou acolhimento de crianças e jovens, mas deve ser visto como uma preocupação
transversal. Só desta forma as crianças, jovens e suas famílias se sentirão próximas, acolhidas
e protegidas pela sociedade e pelos seus sistemas de apoio e justiça.

Temos a noção que o presente manual não é uma resposta única a todos os desafios que
se levantam no apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. É um fenómeno
cujas questões não se extinguem aqui, e muito menos ficarão todas as situações de apoio
respondidas. No entanto, esperamos que o conhecimento aqui partilhado ajude os
profissionais que lidam com esta problemática a providenciarem melhor conforto e ajuda
a estas crianças e jovens, assim como se constituam como facilitadores do sistema da
sociedade de justiça e apoio.

165
Glossário

Glossário
Abuso de autoridade - influência exercida por um agente sobre uma criança/jovem na sequência da pré-existência de uma relação de dependência
económica, hierárquica, de trabalho ou familiar.

Ameaça grave – coação exercida por um agente contra uma criança/jovem, que, dada a sua intensidade, provoca naquele um receio fundado de que venha
a ser concretizada.

Ardil ou manobra fraudulenta – utilização de meios que induzem uma criança/jovem em erro sobre os objetivos das ações (ex.º: “estratagemas”,
“enganos”) com vista a influenciar a sua decisão.

Ato sexual contra menor – todo o contacto de natureza sexual mantido com ou perante menor de idade, com vista à satisfação sexual do agente.

Ato sexual de relevo – contactos sexuais mantidos com uma criança/jovem que envolvam cópula vestibular, toques e/ou carícias no corpo de uma criança/
jovem, com vista à satisfação sexual do agente.

Ato sexual de relevo qualificado – contactos sexuais mantidos com uma criança/jovem, que incluem cópula, coito anal ou coito oral, ou a introdução vaginal
ou anal de qualquer parte do corpo ou qualquer objeto, tenha este ou não conotação sexual, com vista à satisfação sexual do agente.

Cópula – consiste na introdução do pénis na vagina de uma criança/jovem.

Cópula vestibular – consiste no contacto sexual entre o agente e uma criança/jovem, que não envolva penetração.

Coito anal – consiste na introdução do pénis no ânus de uma criança/jovem.

Coito oral – consiste na introdução do pénis na boca de uma criança/jovem.

Especial vulnerabilidade – incapacidade uma criança/jovem para avaliar as intenções do agente, o que, em última instância, pode conduzir a que a vítima
se submeta às propostas que lhe são dirigidas.

Facilitação (em contexto de TSH) – colocar à disposição os meios para a prostituição de uma criança/jovem.

Favorecimento (em contexto de TSH) – auxiliar o exercício da prostituição de uma criança/jovem.

Fomento (em contexto de TSH) – incitação de uma criança/jovem à prática da prostituição.

Rapto – A transferência de uma criança/jovem de um lugar para outro, por intermédio de violência ou ameaça.

Rede de Suporte Primária - A Rede de Suporte Primária é aquela que é constituída pelas pessoas que detêm a tutela legal da criança ou jovem e/ou que
têm a responsabilidade de garantir a satisfação das suas necessidades primárias (ex.º: alimentação, higiene, educação). Geralmente são os membros do
seu núcleo familiar, mas em alguns casos podem ser outros membros da família alargada ou outras figuras de substituição, como nos casos das crianças
institucionalizadas.

Sinais - Alterações orgânicas que podem resultar da violência, através de lesões no corpo. Estas alterações orgânicas são objetivas e/ou mensuráveis pelo
exame clínico e meios complementares de diagnóstico.

Sintomas - Alterações subjetivas do estado de saúde (queixas ou manifestações espontâneas de mal estar físico e/ou psicológico).

Violência - uso intencional da força física ou psicológica, na forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa, um grupo ou uma
comunidade, que resulte, ou possa resultar, em lesão, morte, dano psicológico, privação ou prejuízos ao desenvolvimento.

167
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175
Anexos

Documento n.º 1 – Quadro explicativo da tipologia de crimes contra a


liberdade e autodeterminação sexual de menores de idade
Crimes Coação sexual Manter ato sexual de relevo ou levar a que Todos os
contra a Art.º 163.º do CP Utilizar violência e/ou ameaça grave; seja praticado com outrem. menores
liberdade Constranger por qualquer meio; de 18 anos
sexual Violação Tornar a vítima em estado de incapacidade Manter cópula, coito anal ou coito oral
Art.º 164.º do CP de resistir ou a ter tornado inconsciente; consigo ou com outrem.

Importunação sexual Praticar atos de carácter exibicionista;


Art.º 170.º do CP Formular propostas de teor sexual;
Constranger a vítima a contacto de natureza sexual;

Crimes Lenocínio de menores Utilizar violência e/ou ameaça grave; Fomentar, favorecer, facilitar o exercício da
contra a Art.º 175.º do CP Abusar de autoridade sobre a vítima; prostituição de menor.
autodeter-
Utilizar manobra fraudulenta;
minação
Atuar com intenção lucrativa;
sexual
Aproveitar-se de incapacidade/
vulnerabilidade da vítima;

Pornografia de menores Utilizar, aliciar para espetáculo, filme, fotografia,


Art.º 176.º do CP gravação de cariz pornográfico para distribuir/divulgar;
Prática dos atos com intenção lucrativa;
Adquirir, deter, aceder a este tipo de materiais;

Aliciamento de menores para fins sexuais Aliciar menor, para encontro visando a prática de qualquer ato sexual de relevo ou de
Art.º 176.º-A do CP pornografia, com recurso a tecnologias de informação e de comunicação.

Abuso sexual de menores dependentes Coação sexual, violação ou importunação sexual de menor que tenha sido confiado para 14 a 18
Art.º 172.º do CP educação ou assistência. anos

Recurso à prostituição de menores Qualquer ato sexual de relevo, praticado com menor, mediante pagamento/outra contrapartida.
Art.º 174.º do CP

Atos sexuais com adolescentes Qualquer ato sexual de relevo, praticado por adulto com menor, abusando da sua inexperiência. 14 a 16
Art.º 173.º do CP
anos
Crime semi-público

Abuso sexual de crianças Coação sexual, violação ou importunação sexual; Todos os


Art.º 171.º do CP Atuar sobre o menor por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto pornográfico; menores
Aliciar menor a assistir a abusos/atividades sexuais; de 14 anos

177
Anexos

Documento n.º 2 – Esquema explicativo do processo penal, equacionando


algumas das interações com o Sistema Judicial

1. Notícias do Crime
Ťƈ Informar acerca dos direitos e procedimentos judiciais (Queixa e/ou Denúncia)
Ťƈ Sensibilizar os titulares do direito de queixa para a
importância de apresentar queixa-crime
Caso ainda não tenha sido efetuada:
obrigatoriedade de denúncia
2. Notícias do Crime
(Investigação)
Perícia Médico-legal — preparar a criança/acompanhamento
Declarações para memória futura
Constituição de assistente — apoio judiciário
Aplicação/alteração de medidas de coação
Aplicação de medidas de proteção de testemunhas — estatuto de vítima especialmente vulnerável
Pedido de Indemnização Civil
(manifestação de vontade)
Pedido de Indemnização à Comissão - ver esquema

3. Instrução
(Fase facultativa)

4. Julgamento
Preparação da criança para ida a Tribunal
Pedido de Indemnização à Comissão Acompanhamento da criança — caso se aplique
(caso ainda não tenha sido apresentado) Autor do crime não tem dinheiro para pagar indemnização

5. Recurso

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