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História e Cinema
Mercadoria visual, historiador-consumidor e o sujeito-historiador.
por
Gledson Ribeiro de Oliveira, prof. Ms. do Departamento de História – UECE
Dentre as artes visuais nenhuma se realizou com tanta magnitude como o cinema. Como
um tipo de gênero visual, o cinema continua sendo o mais forte mediador entre o indivíduo
coletivo e o fantástico, o indizível e o inimaginável. De um “espetáculo de parias”, mais propenso
aos desocupados e iletrados (FERRO, 1992: p. 83), o cinema se confirmaria nos anos gloriosos
do capitalismo pós-grande guerra como um espetacular espetáculo capaz de movimentar
sentimentos, desejos e capital por todo o mundo.
Do mero desejo de ver a imagem fotográfica mover-se à arte cinematográfica, houve um
salto estético profundo, principalmente quando se percebe que um filme não é apenas captação e
projeção de imagens como trabalhavam os Lumières e Georges Méiliès, mas a construção de
imagens por meio de várias linguagens. Afinal, cinema não é só imagem, é também ruído,
montagem, planos, enquadramento, cores, representação verbal e corpórea dos atores, música...
Cada uma dessas é uma linguagem aglutinada à imagem que, uma vez em sincronia, cria o
produto final: o texto visual (filme).
O desenvolvimento do audiovisual a partir da arte cinematográfica e seus vários usos
sociais e políticos alcançou níveis tão impressionantes no tempo presente que as inquietações
diante de seu poder de encanto e mobilização massificada prescreveram o desafio de estudá-lo
como agente histórico criador de ideologia política associada à moderna indústria cultural e como
uma nova estética a ser estudada pela Sociologia e Filosofia da Arte. Entre as ciências sociais,
parece-nos terem sido estes os eixos de pesquisa sobre o cinema durante seus anos de
amadurecimento. No caso particular da historiografia, os historiadores empreenderam o estudo e
registro da História do cinema juntamente com a reflexão estética. Contudo, nas três últimas
décadas, ao se colocar a imagem como problema central da investigação histórica – em vez do
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Segundo Marc Ferro: “Chegando tarde ao discurso do historiador, a imagem desempenha aí um papel comparável
àquele do neurótico na ordem médica. Em vez de reportar-se aos conceitos e às categorias que a ordem histórica
construiu, a imagem reporta-se, igualmente, a outras imagens: ela formula assim, um tipo autônomo de discurso.
Nesse sentido, seja ela fotografia ou filme, reportagem ou ficção, a imagem coloca ao mesmo tempo em questão o
dispositivo e o conteúdo do discurso histórico. Dupla impertinência.” Apud Anne Marie Granet-Abisset “O
historiador e a fotografia”. In: Projeto História. SP: EDUC, nº 24, p. 09-26, jun/2002.
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São elas: a História da imagem (História do cinema, História da pintura, História da televisão...); a imagem como
agente da história (relação indústria cultural e poder ideológico e político das imagens); a imagem como documento
do presente (revela aspectos sobre o período histórico em que foi produzido); como modalidade do discurso sobre o
passado; o discurso audiovisual como meio de expressão dos saberes do historiador; e o uso das imagens no ensino
de história (NOVA, 2000, p. 145-146).
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Um exemplo brasileiro citado por Michèle Lagny é o de Glauber Rocha que extrai o potencial poético e mítico de
alguns fenômenos históricos nacionais (1995, p. 33). Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe são bons
exemplos daquilo que Ismail Xavier chama de “movimento do mundo em metáforas capazes de fornecer a imagem
simultânea, global, unificadora da experiência social.” cf. Glauber Rocha: o desejo da História. In: O Cinema
Brasileiro Moderno. RJ: Paz e Terra, 2001. p. 127-155, (Coleção Leitura).
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É preciso estar de atalaia ao uso do filme como fonte, ou mesmo como apoio didático. Os
historiadores menos avisados ainda podem fazer das imagens um representante ideal do
fenômeno histórico, sendo induzidos “a se posicionar pelo olho da câmara” (SAMUEL, 2000, p.
33). Quando Raphael Samuel escreve essa afirmativa, ele usa a palavra espectador e não
historiador. Mas o historiador também é um espectador! E para além de espectador é um
consumidor de um tipo especial de mercadoria: a mercadoria visual, que , em verdade, é objeto
de estudos do historiador e possui o poder de seduzir quem a vê, de propor uma nova realidade e
sensações fantásticas, de nos por nus perante a tela. Ao desenvolver a categoria escopofilia em
sua reflexão sobre a imagem fotográfica, Raphael Samuel considera o imagético um instrumento
capaz de criar sensações fantásticas em quem vê. Destarte, ao tornar-se compulsivo o ato de ver,
podemos explicar e interpretar a onda cinéfila e o voyeurismo imagético, por exemplo, dos reality
shows, como algo inerente a todos os gêneros visuais (SAMUEL, 2000, p. 33).
As imagens pressionam gostos, atitudes, prazeres e comportamentos que, por mais
efêmeros que sejam, são produtos de sua força social. As imagens com seu poder de criação e
satisfação de necessidades, além de serem carregadas de representações sociais, são mercadorias
visuais que medeiam as trocas entre os indivíduos. Parecer ou sonhar por meio das imagens é um
dos resultados do capitalismo tardio. No mundo reificado, o indivíduo singular ou o indivíduo
coletivo acaba sendo reificado no interior das relações de produção e sociais sendo na alquimia
social que as mercadorias visuais (e em geral) aparecem dotadas de autonomia, passando a
governar as relações sociais de acordo com as leis do mundo das coisas. Desaparecem as relações
sociais e surgem as relações entre coisas. Desta forma, e como lembra Guy Debord, no mundo
coisificado as imagens se tornam motivações, e induzem a comportamentos hipnóticos em seus
consumidores (1997, p. 18), pois a sociedade do espetáculo ou de mercado “não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (1997, p. 14) que, em
última instância, são mercadorias visuais. Isso sugere que por meio das mercadorias visuais mais
vale a representação social comunicada que a mercadoria em si. Mais vale o espírito de beleza e
juventude nas imagens de refrigerante que a própria mercadoria. Com efeito, e para Fredric
Jameson, mais vale consumir a idéia abstrata oferecida pela mercadoria visual que sua
materialidade (1995, p. 12). Invertendo a lógica comercial de um determinado refrigerante:
Imagem é tudo, sede é nada., na sociedade do espetáculo.
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Para Cannevacci o sistema da comunicação “não se situa na tradição mecanicista do século XIX (um emissor que
remete uma mensagem a um destinatário) e talvez nem na tradição cibernética (na qual através do feedback ou
retroatividade – o sistema se torna complexo e circular). O texto visual deve ser visto como o resultado de um
contexto inquieto que envolve sempre esses três participantes, cada qual com seus papéis duplos de observados e
observadores: autor, informante e espectador são atores do processo comunicativo” (2001 p. 08).
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acontece à transmutação do fazer ver para o fazer-se ver, desnudando a mercadoria visual de
seus fetiches imagéticos. “Fazer-se ver significa desafiar a fantasmagoria das mercadorias
visuais, tornando-se ‘coisa’ vidente, fetiche em visão e ‘da’ visão” (p. 15). Desnudar o texto
visual de um filme é ao mesmo tempo, transformar a deformação social de seu audiovisual,
penetrando suas estruturas íntimas de composição, na sua biografia cultural. 6
Para Canevacci, o consumidor de imagens deve transmutar-se em sujeito-pesquisador, no
caso, em sujeito-historiador, rompendo com o binômio historiador-consumidor, transformando-
se em “coisa-que-vê e que-se-vê”. Treinar a auto-observação enquanto observa um filme é
descoisificar o social do texto visual a partir do processo comunicativo. Afinal, se o “visual é
essencialmente pornográfico” (JAMESON, 1995, p. 01), observar-se enquanto se observa
(metaobservação) é romper com a empatia da mercadoria visual, tornando-a estranha ao sujeito-
historiador. Nesse momento as mercadorias visuais desnudam seus códigos, tornando aquilo que
era familiar estranho a quem se observa ao observar.
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Toda imagem traz em si o germe do exibicionismo. Para Guy Debord, o espetáculo é a necessidade do fazer ver por
meio das imagens, e o fazer ver é a ausência do diálogo entre quem vê e o que se vê (1997, p. 18).
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É fundamental nesse processo o que Canevacci chama de biografia cultural das mercadorias visuais, ou seja, que
as mercadorias não são apenas coisas, mas “como os homens, têm ciclos de vida, problemas de identidade, modelos
classificatórios” (p. 27). Possuem uma biografia como os seres humanos e são influenciadas em sua feitura e
consumo por estes. Deixam nela uma marca do trabalho e indivíduo coletivo. Isso nos leva a penetrar o reino da
valorização das mercadorias visuais (ou em geral) não a partir da quantidade de trabalho abstrato indiferente
socialmente necessário para produzi-las, mas do trabalho imaterial, ou seja, da comunicação e ciência como forças
de organização produtiva e de produção de valor das mercadorias. Esse é um debate de profunda e longa envergadura
iniciado pela corrente neomarxista italiana conhecida como operaismo; o limite de espaço não nos permite aqui
desenvolver suas reflexões. Para uma boa introdução à categoria Cf. LAZZARATO, Maurizio, NEGRI, Antonio.
Trabalho imaterial: as formas de vida e produção de subjetividade. Trad. Mônica Jesus. RJ: DP&A, 2001.
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Uma vez desnudadas, o ato de ver se torna menos sedutor e mais estranho, e as imagens
podem emergir em sua forma ontológica: como espaços para disputas sociais. Se o caminho para
a empatia da mercadoria visual é o da construção de fetiches por meio de códigos negociados
entre autor, informante e espectador; ler o texto visual das mercadorias é penetrar em seu mundo,
é desconstruir sua empatia e fetiches que reforçam a reificação social.
Destarte, o sujeito-historiador, ao manusear o objeto de pesquisa fílmico, deve se
perguntar tanto pelo texto visual como por si mesmo. Portanto, transmutar-se em coisa-que-vê e
que-se-vê aponta a ruptura nas qualidades de encantamento e empatia das mercadorias visuais
criando o diálogo adequado entre sujeito-historiador e suas fontes visuais.
Finalizamos lembrando uma afirmação do cineasta Jean-Marie Straub sobre a possível
função da mercadoria visual fílmica: a função do filme “é abrir os olhos e ouvidos das pessoas” e
“surpreende-las no sentido em que não vejam as coisas com óculos”. 7 Certamente não se trata
disso. Politizar um filme ou tornar seu conteúdo engajado do ponto de vista revolucionário não
faz com que esse deixe de ser mercadoria visual dotada de qualidades de sedução e
representações sociais; nem os priva de imposturas interpretativas do real. Os óculos
permanecem. O processo de enxergar o mundo sob novo prisma por meio do imagético só é
possível ao desconstruirmos seus fetiches visuais. Só depois dessa nova alquimia é que o
historiador pode finalmente retirar seus óculos.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. In: O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz,
Lisboa: Bertrand Brasil. 1989, p. 11. (Coleção Memória e Sociedade).
BURKE, Peter. Como confiar em fotografias. In: Jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais!. SP,
04.02.2001.
CANEVACCI, Massimo. Antropologia da Comunicação Visual. Trad. Alba Olmi, RJ: DP&A,
2001.
DEBORD, Guy A Sociedade do Espetáculo.Trad. Estela dos Santos Abreu. RJ: Contraponto,
1997.
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Apud CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 139, 167.
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