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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MAYRA CRISTINA SILVA FARO CAVALCANTE

A CURA QUE VEM DO FUNDO:


MULHER E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DO MARAJÓ/PA).

BELÉM
2012
2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MAYRA CRISTINA SILVA FARO CAVALCANTE

A CURA QUE VEM DO FUNDO:


MULHER E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DO MARAJÓ/PA).

BELÉM
2012
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MAYRA CRISTINA SILVA FARO CAVALCANTE

A CURA QUE VEM DO FUNDO:


MULHER E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DO MARAJÓ/PA).

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião da
Universidade do Estado do Pará, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências
da Religião.

Orientador(a): Daniela Cordovil Corrêa dos Santos.

BELÉM
2012
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Dados Internacionais de Catalogação na publicação


Biblioteca do Curso do Centro de Ciências Sociais e Educação- UEPA – Belém - Pá

C376 Cavalcante, Mayra Cristina Silva Faro


A Cura que vem do fundo: mulher e pajelança em Soure (Ilha do Marajó/PA) /Mayra
Cristina Silva Faro Cavalcante; Orientador: Daniela Cordovil Corrêa dos Santos - Belém,
2012.
148 f.; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará,


Belém, 2012.

1.Religião e cultura. 2 Mulheres – Aspectos religiosos. 3. Ilha do Marajó (PÁ) . I. Santos,


Daniela Cordovil Corrêa dos. (Orient.) II. Título.

CDD: 21 ed. 291.17


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MAYRA CRISTINA SILVA FARO CAVALCANTE

A CURA QUE VEM DO FUNDO:


MULHER E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DO MARAJÓ/PA).

Dissertação ou Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade do Estado do Pará, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre ou Doutor
em Ciências da Religião.

Dissertação aprovada em 18/12/2012 para obtenção do título de Mestre em Ciências da


Religião.

Banca Examinadora:

____________________________________________________

Daniela Cordovil Corrêa dos Santos – Presidente da Banca

_____________________________________________________

Taissa Tavernard de Luca

_____________________________________________________

Aldrin de Moura Figueiredo – Programa de Pós-Graduação em História/UFPA

BELÉM
2012
6

Agradecimentos

Agradeço profundamente todas as pessoas que me acolheram em Soure e Salvaterra e


possibilitaram a realização deste trabalho. São essas pessoas: D. Graça Goés, Joelma Goés, D.
Zenilde e família, e D. Merian.
À toda minha família, em especial à minha mãe, Rita, meu pai, Zeca, e meu marido,
Adriano, pelo amor incondicional, apoio e compreensão.
À Prof.ª Dr.ª Daniela Cordovil pelo imenso apoio, compreensão, conversas e magnífica
orientação.
À Prof.ª Dr.ª Maria Betânia Albuquerque pelas agradáveis conversas (quase sempre por
e-mail) e conselhos.
Ao Prof. Dr. Heraldo Maués por ter participado da banca de qualificação e pelas
maravilhosas considerações, críticas e sugestões ao meu trabalho.
À Prof.ª Dr.ª Taissa Tavernard por ter participado da banca de qualificação e defesa, e
por suas interessantes considerações ao trabalho.
Ao Prof. Dr. Aldrin Figueiredo por ter participado gentilmente da banda de defesa e por
suas grandes contribuições a este trabalho.
À todos os professores(as) e secretários(as) do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião (PPGCR) da UEPA pela luta, coragem e dedicação ao Programa e ao curso.
Aos colegas de turma, a primeira turma do PPGCR, e em especial à amiga Lucielma
Lobato. Foi uma honra e alegria tê-la como companheira na estrada do conhecimento.
À Capes pela bolsa de pesquisa, que possibilitou consideravelmente a realização desse
estudo.
E, finalmente, às pajés e curadoras de Soure, e também de Salvaterra, pela paciência,
gentileza e enorme contribuição a esta pesquisa. São elas: D. Flor, D. Roxita, D. Dica, D.
Olga (filha de um pajé) e D. Zeneida Lima.
Obrigada a todas as pessoas que acreditaram (e acreditam) em mim e torceram pelo
sucesso deste trabalho.
7

Conheça todas as teorias,


domine todas as técnicas,
mas ao tocar uma alma
humana, seja apenas outra
alma humana.

Carl Jung.
8

Resumo

Este estudo tem como tema a Pajelança Cabocla em Soure, na Ilha do Marajó/PA, e analisa
práticas e saberes de cura em Soure e o papel da mulher no contexto religioso e simbólico da
pajelança. Compreende-se pajelança cabocla como um conjunto de crenças e práticas de cura
bastante difundidas na Amazônia, em que se encontram mesclados em graus variados
elementos de diversas culturas e expressões religiosas, entre as quais o Catolicismo popular, a
Umbanda, Pajelança indígena, Espiritismo e Nova Era. Neste trabalho serão abordadas as
principais características da pajelança cabocla, e as práticas e saberes de cura de algumas
mulheres curadoras de Soure. A metodologia utilizada foi de pesquisa de campo e
bibliográfica, com abordagem qualitativa e fenomenológica, constando da análise de
entrevistas narrativas e observações em ritos de cura com mulheres pajés. Teoricamente, essa
pesquisa se baseia em estudos de Galvão (1955), Maués (1990; 1999; 2005), Salles (1988;
2004), Motta-Maués (1993), Cavalcante (2008), Villacorta (2000, 2011), Eliade (1998; 2001),
Montal (1986) e outros. Ao todo foram realizadas seis visitas de campo, em períodos curtos
(de três a sete dias), em que foram estabelecidas diversas entrevistas com pajés e outros
sujeitos do local, além de observações em práticas de cura. Estudos sobre as mulheres pajés
na Amazônia estão se ampliando cada vez mais e demonstram que elas participam do
universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja agindo efetivamente como pajés ou
xamãs, seja agindo como serventes ou assistentes de um pajé. O presente trabalho demonstra
como se apresentam as formas de pajelança em Soure e como ocorre a participação da mulher
neste universo. A partir desse estudo compreendemos que a pajelança cabocla é um fenômeno
dinâmico e complexo, com diversas faces e aspectos, alguns conhecidos outros ainda não.

Palavras-chave: Encantaria. Mulher. Pajelança Cabocla. Soure.


9

Abstract

This study has as object of search the Pajelança Cabocla in Soure, on Marajo Island/PA, and
analyze the practices and knowing of healing in Soure and the function of woman on religious
and symbolic context of pajelança. Pajelança cabocla is understood as a group of believes
and practices of healing quite widespread on Amazonia, that are mixed in varying degrees
elements of many cultures and religious expressions, including the popular Catholicism, the
Umbanda, indigenous Pajelança, Spiritism and New Age. This study will explain the main
characteristics of pajelança cabocla, and the practices and knowing of healing of some
women healers of Soure. The methodology used was the field and bibliographic search, with
qualitative and phenomenological approach, consisting in analyses of narrative interviews and
observations on rites of heal with pajés (shamans) women. Theoretically, this search is based
on studies of Galvão (1955), Maués (1990; 1999; 2005), Salles (1988; 2004), Motta-Maués
(1993), Cavalcante (2008), Villacorta (2000, 2011), Eliade (1998; 2001), Montal (1986) and
others. In general it was accomplished six visits in field, on short periods (from three to seven
days), in which was established many interviews with pajés and other local subjects, also
observations on healing practices. Studies about shamans women on Amazonia are growing
more and presenting that they participate on pajelança’s universe in many ways, acting as
pajés or shamans, or acting as servants or assistants of a pajé. The present study demonstrates
how are presented the forms of pajelança in Soure and how occurs the women’s participation
in this universe. From this study we understand the pajelança cabocla as a dynamic and
complex phenomenon, with many faces and aspects, some of them known and some of them
not known yet.

Key-words: Encantaria. Woman. Pajelança Cabocla. Soure.


10

Sumário

Introdução 10
Traçando uma trajetória da pesquisa 10
A estrutura da dissertação 12

1. Apresentando o campo: Soure 14


1.1. O Marajó e sua natureza 20
1.2. O espaço religioso em Soure 23

2. Pajelança, Xamanismo e Encantaria: discutindo categorias e conceitos nos estudos


sobre pajelança cabocla na Amazônia 33
2.1. O Pajé e a Pajelança 34
2.2. A pajelança cabocla: uma forma de Xamanismo na Amazônia 42
2.3. O Encante e os Encantados 46
2.4. A Mulher como Pajé na Amazônia 51
2.5. Pajelança e Modernidade 56
2.6. Encantaria Amazônica 58

3. A Pajelança em Soure e a Presença da Mulher na Encantaria 60


3.1. D. Flor 61
3.2. D. Roxita 64
3.2.1. Relato de um ritual de cura 72
3.3. D. Dica 78
3.4. Seu Zé Piranha, por D. Olga 83

4. A pajé Zeneida Lima: sua trajetória e relação com a mídia e a comunidade de


Soure 92
4.1. Trajetória e relação com o espaço público 93
4.2. A Instituição Caruanas do Marajó 102
4.3. Zeneida e a comunidade de Soure 110

5. O “Mundo Místico” de Zeneida Lima 113


5.1. A iniciação como pajé 113
5.2. A pajelança segundo Zeneida Lima 120
5.3. Os Caruanas 124
5.4. Os Rituais 137

Considerações Finais 142

Referências 144

Glossário 148

Introdução
11

Traçando uma trajetória da pesquisa

O interesse pelo estudo sobre pajelança cabocla remonta a 2008 quando ingressei no
grupo de pesquisa “Cultura e Sociabilidade na Amazônia” (hoje não mais ativo), sob a
coordenação do Prof. Dr. Maurício Costa. Os primeiros trabalhos que li sobre o tema foram o
de Eduardo Galvão, “Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá” (1955), e de
Heraldo Maués, “A Ilha Encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores”
(1990), a partir dos quais pude conhecer um pouco sobre o mundo dos pajés, dos encantados,
o conhecimento das ervas e plantas que curam, assim como os conflitos entre esses indivíduos
e a Igreja Católica, e entre eles mesmos por disputa de poder e autenticidade.
Essas características despertaram meu interesse e curiosidade em analisar mais
profundamente o que é chamado de Pajelança Cabocla 1, entendida como religiosidade
presente na região amazônica e marcada por elementos das culturas indígenas, dos cultos
afro-brasileiros e do catolicismo popular, principalmente, mas também de outros sistemas
religiosos, como o espiritismo e a Nova Era, mesclando-se em graus variáveis dependendo da
localidade e da “formação” do pajé.
A partir das leituras realizadas sobre o tema da pajelança, percebi que haviam dois
aspectos pouco contemplados por esses estudos. O primeiro é a localidade, a maioria dos
estudos se refere à região do salgado e bragantina, sendo poucos os trabalhos cujo locus da
pesquisa seja na região marajoara. O segundo aspecto refere-se à questão da mulher na
pajelança, pois como observou Galvão (1955), Maués (1990) e Motta-Maués (1993), por
exemplo, a pajelança em certas localidades é um campo quase que exclusivamente masculino.
Até mesmo em comunidades indígenas a maioria dos pajés são homens. Apesar de se ter o
conhecimento da existência de mulheres pajés, como na etnia Yawanawá, no Acre, que em
2006 duas índias foram iniciadas pajés 2.
Além disso, há registros em arquivos e documentos históricos de mulheres
conhecedoras de ervas, que faziam remédios caseiros ou naturais, banhos e “benzeções”.
Estudos recentes vêm demonstrando a recorrência de mulheres pajés em municípios do estado
do Pará, como apontam Villacorta (2000) e Cavalcante (2008), apesar destas pajés ou
curadoras enfrentarem constante discriminação por parte da população local. Portanto, esses

1
Apesar da problemática deste termo, em ser inicialmente utilizado em sentido pejorativo, como aponta Maués
(1990) e Figueiredo (2009), tornou-se bastante comum e usado em trabalhos científicos sobre o tema, e até
mesmo passou a ser usado pelos próprios curadores(as) de algumas cidades, como Soure. Por essa razão,
mantenho o uso deste termo neste estudo.
2
Folha do Meio Ambiente, abril de 2005.
12

aspectos me instigaram a estudar com mais detalhe as práticas e crenças da pajelança,


sobretudo no município de Soure, na Ilha de Marajó, e sobre a questão da mulher nesse
contexto mágico e religioso.
Esse estudo primeiramente culminou em meu trabalho de conclusão de curso em
Ciências da Religião (UEPA), defendido em 2010, intitulado “Mulheres que curam: um
estudo sobre mulher, natureza e pajelança em Soure (Ilha do Marajó/PA)”, no qual analisava
algumas crenças e práticas de cura de três mulheres curadoras. E neste momento, com a
dissertação de mestrado em Ciências da Religião, pretendo dar continuidade a esta pesquisa,
aprofundando o conhecimento sobre o universo da pajelança em Soure, no qual serão
apresentadas e analisadas práticas e crenças de cura de cinco pajés.
No início desse estudo de mestrado a intenção era analisar as práticas de apenas uma
pajé, D. Zeneida Lima, mas devido algumas dificuldades enfrentadas durante a pesquisa, em
razão desta pajé ser muito reservada e de difícil acesso, fizemos uma pequena mudança no
foco da pesquisa. Portanto, neste estudo serão abordados, além de Zeneida Lima, outros pajés,
sendo em sua maioria do sexo feminino.
As visitas de campo ocorreram em períodos de 2009 a 2011, ao longo do qual foram
estabelecidos contatos com alguns curadores e pajés locais, sendo ao todo seis (D. Flor, D.
Roxita, D. Zeneida, D. Dica, Sr. Lima, D. Madalena) 3. Foi observado que cada um exercia
seus ritos de cura e mantinham crenças diferentes entre si, apesar de também apresentarem
muitas semelhanças. Enquanto que na prática de um se sobressaía elementos do catolicismo
popular, em outro eram os elementos de cultos afro-brasileiros, e ainda em outro eram os
indígenas. Tal fato atesta a complexidade e diversidade das práticas de cura e pajelança
presentes em Soure e na Amazônia como um todo.
Com o intuito de compreender como e de que formas se manifesta a pajelança
cabocla em Soure, Marajó/PA, foi estabelecido o seguinte problema: como se apresentam as
práticas e crenças de cura e pajelança em Soure?
A fim de ampliar a análise dessa problemática, algumas questões norteadoras foram
levantadas, que são: como se apresenta a pajelança na cidade de Soure? Como se dá a atuação
da pajé Zeneida Lima na comunidade de Soure e como a comunidade se relaciona com ela?
Como se dá a participação das mulheres na pajelança em Soure?
Desta forma, o objetivo geral deste trabalho é analisar as práticas e crenças de
pajelança em Soure; e os objetivos específicos são analisar a pajelança praticada por D.

3
Além desses, conversei também com D. Olga, filha do pajé Zé Piranha (já falecido), que em seus depoimentos
nos revelou informações bastante interessantes sobre a prática de cura de seu pai.
13

Zeneida Lima, observar a atuação desta pajé na cidade de Soure e como a população se
relaciona com ela, e analisar as formas de participação das mulheres na pajelança em Soure.
Do ponto de vista metodológico, esta é uma pesquisa de campo e bibliográfica
pautada em uma abordagem qualitativa. De acordo com Minayo (2002) esta abordagem
trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,
correspondendo a um campo mais profundo das relações, dos processos e fenômenos que são
difíceis de serem reduzidos à operacionalização de variáveis.
O embasamento teórico desta pesquisa é a Fenomenologia, ou Hermenêutica, que
busca uma interpretação “na qual símbolos e metáforas se entrelaçam e a linguagem-ação se
desdobra em um sentido que pode ser retomado numa tradição, num testemunho, numa
elucidação reflexiva, e em múltiplas interpretações” (JOSGRILBERG, 2001, p.17), e onde o
fenômeno e os significados religiosos são tão importantes quanto os dados factuais e
históricos.
A primeira etapa da pesquisa consistiu no estudo bibliográfico sobre a pajelança
cabocla na Amazônia e a questão de gênero, em que os principais estudiosos consultados
foram: Galvão (1955), Maués (1990, 1999, 2005), Motta-Maués (1993), Cavalcante (2008),
Braga et al (2002, 2003), Figueiredo (1972, 1976), Villacorta (2000, 2011), Segato (1998),
Mead (1999), entre outros. A autobiografia escrita por Zeneida Lima (1991/2002) foi também
de grande importância neste trabalho.
E a segunda etapa consistiu na pesquisa de campo, composta por entrevistas de
perguntas semi-abertas, registros audiovisuais, observação em rituais de pajelança de D.
Roxita e em eventos sócio educacionais da escola “Zeneida Lima de Araújo”. As entrevistas
são de tipo narrativa, que permitem “ao pesquisador abordar o mundo experimental do
entrevistado, de modo mais abrangente, com a própria estruturação desse mundo” (FLICK,
2004, p.109).

A estrutura da dissertação
Este trabalho segue a seguinte estrutura: uma Introdução, em que constarão prévias
informações sobre o tema, as motivações da pesquisa, as questões norteadoras, os objetivos e
a metodologia; cinco capítulos e considerações finais.
No primeiro capítulo, Apresentando o Campo: Soure, serão apresentadas
informações sobre a cidade, para que o leitor ou a leitora compreenda e conheça um pouco
sobre o local onde foi realizada a pesquisa.
14

No segundo capítulo, Pajelança, xamanismo e encantaria: discutindo categorias e


conceitos nos estudos sobre a pajelança cabocla na Amazônia, serão abordados alguns dos
principais aspectos, características e conceitos acerca da pajelança cabocla na Amazônia, com
base em estudos de diversos pesquisadores, sobretudo da área da Antropologia, a fim de
melhor compreender esse universo da encantaria.
No terceiro capítulo, Cura e encantaria em Soure, será abordado com mais detalhes
a pesquisa de campo, as pajés analisadas (com exceção de Zeneida Lima, que será tratada com
mais ênfase a partir do capítulo seguinte), bem como algumas de suas práticas, ritos e crenças.
No quarto capítulo, A pajé Zeneida Lima: trajetória e relação com a mídia e a
comunidade de Soure, será apresentado com mais enfoque a pajé Zeneida Lima, sua
trajetória de vida, projetos sociais, atuação no espaço público e relação com a mídia e a
comunidade de Soure.
E no quinto capítulo, O “mundo místico” de Zeneida Lima, será abordada a
“pajelança marajoara”, ou seja, as práticas e crenças de cura que esta pajé afirma praticar. A
crença nos caruanas, no mundo encantado do Fundo e outros aspectos de sua prática serão
abordadas nesse capítulo, a partir das pesquisas de campo, entrevistas realizadas e análises
feitas sobre os livros desta pajé. Com essas informações serão estabelecidos pontos de análise
e comparação entre a pajelança de Zeneida Lima e a(s) pajelança(s) do(as) demais pajés aqui
estudados, para que observemos em quais aspectos essas “pajelanças” se aproximam e em
quais elas se afastam.
Nas Considerações Finais serão retomadas as principais afirmações e conclusões
obtidas nesta pesquisa, assim como relatos pessoais das dificuldades encontradas e reflexões
sobre o tema.
15

1. Apresentando o Campo: Soure

Soure é intitulada por seus moradores de a “Pérola” ou “Capital do Marajó”, um


título que além de fazer referência às suas belezas naturais, procura também beneficiar a
economia turística da cidade. Originou-se de uma antiga aldeia dos índios Maruianazes e
Mundis, tornando-se posteriormente freguesia. Em 1757, recebeu a condição de Vila e em
1959 foi elevada à categoria de cidade por decreto-lei.
Segundo, Silveira (2003, p.3):

Soure foi fundada na época dos jesuítas, tendo sido um aldeamento, com
fazendas administradas pela Ordem dos Capuchos, até a expulsão das ordens
religiosas, pelo Marquês de Pombal. Segundo Raiol (1992) a aldeia existente
na época, dedicada a São José do Mundi, foi posteriormente rebatizada como
freguesia do Menino Deus.

O município possui extensão territorial de 3.051 quilômetros quadrados, fica distante


87 quilômetros de Belém, e é a maior cidade da Ilha do Marajó, localizada no lado leste do
arquipélago4. Encontra-se às margens do rio Paracauari, de frente para o município de
Salvaterra.

Figura 1

Localização de Soure no mapa (Fonte: <www.farolcomunitario.com.br/turismo_marajo_000_0001.htm>.


Acesso em 19/10/2012).

Soure e Salvaterra são cidades “irmãs” e ficam de frente para a outra, como foi
mencionado, separadas apenas pelo rio Paracauari. Muitas pessoas que moram em Salvaterra
fazem constantemente a travessia para Soure, ou vice-versa, seja para estudar no campus da

4
“Soure: a Pérola do Marajó”. Disponível em: <http://www.paraturismo.pa.gov.br/?q=soure-destinos>. Acesso
em: 19/09/2012.
16

UEPA ou UFPA, trabalhar, ou ir à praça principal de cada cidade em dias de show ou outro
evento semelhante. A balsa cessa de fazer a travessia às 22:00 horas, mas botes continuam
fazendo esse trabalho até a madrugada. A passagem do bote é de R$ 1,35 durante o dia, e R$
2,00 à noite, e uma associação de trabalhadores de bote regulariza esse trabalho.
Foram realizadas seis viagens ao campo, desde o ano de 2009 (quando se iniciou a
pesquisa) até 2011, em períodos curtos, entre três a cinco dias. Nas primeiras vezes fiquei na
casa de um familiar, localizada na 3ª rua, em frente a Igreja Matriz, mas não foi mais possível
ficar alocada nessa casa, e então, nas vezes seguintes fiquei em Salvaterra, na casa de uma
pessoa conhecida de uma amiga da turma de mestrado. Durante a última pesquisa de campo
que realizei, em dezembro de 2011, fiquei em Soure, novamente, na casa de um conhecido de
um amigo meu.
O acesso à Soure é um pouco complicado, e a viagem consiste de três etapas,
podendo acontecer por meio de barco, que sai do Terminal Hidroviário nas Docas ou balsa,
saindo de Icoaraci 5. A viagem de barco dura cerca de três horas e meia. Isto seria o que
podemos chamar de primeira etapa. As duas formas de viagem destinam-se ao porto de
Camará, de onde quem chega de carro por meio de balsa deve seguir estrada por alguns
quilômetros até Salvaterra, ou então, quem vem de barco deve pegar um ônibus ou van que
seguirá o mesmo trajeto. Esta segunda etapa da viagem pela estrada dura cerca de 45 minutos.

Figura 2

Porto de Camará (Foto: Mayra Faro, 2009).

5
Anteriormente, até 2010 mais ou menos, era possível viajar a Soure também por meio de lancha, que saía da
Estação das Docas. Apesar de a passagem ser um pouco mais cara que a do barco, o transporte era bem mais
confortável e a viagem mais rápida. Era a preferência dos turistas. No entanto, por alguma razão, a lancha não
faz mais viagem a Soure.
17

Ao chegar em Salvaterra deve-se atravessar o rio Paracauari por meio da balsa, que faz
a travessia constante entre Soure e Salvaterra, concluindo, assim, a terceira etapa da viagem.

Figura 3

Entrada de Soure, escrito “Seja bem-vindo a Soure, Capital do Marajó” (Foto: Faro, 2009).

Atualmente há duas empresas de barcos que fazem a viagem de Belém-Camará e


vice-versa, e que se revezam durante a semana nos horários da manhã e da tarde. A passagem
custa em média R$ 15 na classe econômica, e R$ 26 na “vip”. É realmente muito complicado
aguentar uma viagem de mais de três horas na classe econômica, os bancos são
desconfortáveis e o espaço frequentemente se encontra sujo, sem mencionar os banheiros que
se encontram muitas vezes em condições precárias. Quem possui o mínimo de condições
financeiras geralmente compra a passagem “vip”, pois entende que é melhor pagar um custo
mais alto para ter o mínimo de conforto nos bancos e acesso a banheiros limpos, se
comparados com os da classe econômica. De qualquer forma, considero que ambas as
passagens são injustas para as condições de viagem que os barcos apresentam.
Além dos barcos, há duas vans, do mesmo proprietário, que fazem o transporte de
passageiros de Camará à Soure (e vice-versa), e especificamente, até onde a pessoa irá ficar
(casa ou hotel). Por ser a única van que faz esse trajeto o preço da passagem também é caro,
até dezembro de 2011 estava custando R$ 12 por pessoa.
Soure é uma das cidades do Marajó mais voltadas para o mercado turístico,
oferecendo uma variedade de hotéis, pousadas, e investindo no artesanato e na cultura local.
No entanto, a estrutura da cidade ainda não é a mais adequada tanto para receber turistas
quanto para suprir as próprias necessidades da população. O sistema de transporte público,
18

por exemplo, é precário, contando apenas com mototáxis, algumas kombis e pouquíssimos
ônibus (sendo que estes dois últimos ficam mais frequentes nos fins de semana e,
principalmente, em período de férias e feriados).
As ruas centrais da cidade são a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª ruas, onde se concentram diversas
atividades sociais, econômicas e religiosas, que ocorrem em diferentes períodos do ano. Na 1ª
rua localiza-se o trapiche de onde saem e chegam a balsa e pequenas embarcações, e também
a praça principal, chamada Independência, que no mês de julho fica bastante movimentada.

Figura 4

Palco de shows montado na praça Independência durante o mês de julho de 2010 (Foto: Faro, 2010).

Na 2ª rua, encontra-se o espaço em que ocorre a feira de exposições realizada


anualmente durante o evento chamado “Marajó Búfalo Fest”, e também é onde fica localizada
a residência da pajé Zeneida Lima. Na 3ª rua encontramos o Mercado Municipal, um dos
principais pontos de moto-táxi e ônibus, uma loja de artesanato e produtos regionais bastante
visitada por turistas, um dos hotéis mais antigos da cidade, a Igreja Matriz de N. S. de Nazaré,
e outros pontos sociais e econômicos.
19

Figura 5

Igreja Matriz (Foto: Faro, 2009).

Figura 6

Interior da Igreja Matriz (Foto: Faro, 2009).

Na 3a rua se localiza uma loja de artesanato bastante visitada, como mencionei acima,
onde são realizados nos fundos do estabelecimento cursos e oficinas de artesanato à
população.
20

Figura 7

Loja de artesanato bastante visitada por turistas (Foto: Faro, 2009).

Figura 8

Curso sobre artesanato em material reciclável sendo realizado nos fundos da loja de artesanato (Foto: Faro,
2011).

A 4ª rua é a mais extensa da cidade e leva às praias e fazendas, além de ser onde
acontecem festas de carnaval durante o mês de fevereiro. É pela 4ª rua também que se chega
à escola fundada por Zeneida Lima, que fica em uma área de sua fazenda.
A cidade é dividida em oito bairros: Tucumanduba, Centro, Pacoval, São Pedro,
Matinha, Bairro Novo, Macaxeira e Umirizal, e dispõe de quatro praias: Pesqueiro (a mais
conhecida e visitada), Araruna, Barra Velha e Garrote.
21

Figura 9

Praia de Araruna (Foto: Faro, 2009).

Ao caminhar pela cidade é comum ver búfalos nas ruas, soltos, andando, presos em
alguma árvore ou puxando uma carroça. A figura do búfalo é um dos símbolos da ilha, sendo
bastante produzido e vendido o “queijo do Marajó”, feito do leite do animal. Um dos queijos
mais conhecidos é o “Mironga”, produzido em uma fazenda e vendido em vários pontos da
cidade.

Figura 10

Búfalo puxando carroça, sob a chuva (Foto: Faro, 2009).

1.1. O Marajó e sua natureza

A região amazônica apresenta-se repleta de rios, densas florestas, diversas espécies


de animais e vegetais, e natureza de distinta beleza, o clima quente e bastante úmido. É
reconhecida a sua grande diversidade biológica. A paisagem exuberante e ao mesmo tempo
22

misteriosa, com seus rios de águas escuras e mata fechada, exerceu (e exerce) intensa
influência no imaginário e religiosidade local.
Na Amazônia, os domínios da floresta e da água, além de marcarem
caracteristicamente a religiosidade popular, marcam também o modo de vida da população.
De acordo com Diegues Jr., “a floresta e a água influíram na formação de mitos e crendices,
ao mesmo tempo em que contribuem ainda hoje para a rarefação demográfica” (1980, p. 38).
A forma de economia de diversas comunidades da região é baseada, sobretudo, na extração
vegetal e na pesca.
Pacheco (2009) escreve que o(s) Marajó(s) tem sua história e cultura profundamente
marcadas pela intensa presença da floresta e, sobretudo, das águas. De acordo com este autor:

Nestes ambientes, um mundo de saberes em sintonia com espaços de rios,


campos e florestas foi historicamente urdido, concomitantemente à produção
de um imaginário sócia talhado por universos reais e fantásticos, fortemente
bricolado com temporalidades de ser, fazer e acreditar, ali erigidas.
(PACHECO, 2009, p. 411).

Giovanni Gallo (1975) escreve que no Marajó o que reina na ilha, ou melhor, quem
comanda a dinâmica da vida social, cultural e econômica dos marajoaras é de fato a água,
caracterizando, segundo sua visão, um regime ditador da água. Nas palavras de Gallo (op. cit.,
p. 63):

Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na


Constituição ou nas Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a
água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao
desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a
voz, sem violência, mas implacável e total.

Relacionada profundamente a forma de vida dessas populações, a água também


participa do imaginário, o mítico e misterioso da religiosidade no Marajó, e na Amazônia
como um todo.
Nos mitos e lendas locais encontram-se indícios de uma profunda relação com o
meio natural, relação ora conflituosa ora harmoniosa, como mostram os trabalhos de Maués
(1990, 1999, 2005), Galvão (1955), Braga (2002, 2003) e mesmo Dalcídio Jurandir (1992).
Mãe d’água ou Iara (encantada que habita e protege rios e igarapés), a Cobra
Grande (relacionada a sucuriju, réptil muito comum na fauna amazônica), o Curupira
(espírito protetor dos animais da mata), o Boto (mamífero das águas doces), o Labisônio
(homem que se transforma em porco, lenda adaptada do imaginário europeu, em que o
23

homem se transforma em lobo, e neste caso chamado de Lobisomem), as Mães de Bichos


(seres geradores e protetores de animais ou ambientes naturais), os Cabocos (antepassados,
geralmente índios – muitas vezes em sua concepção idealizada - que se encantaram), além de
outros animais considerados visagentos, igualmente comuns ao meio natural, que
despertavam espanto, admiração ou temor nos indivíduos.
“Bichos visagentos” é uma expressão apresentada por Galvão (1955, p. 64 - 85) para
designar os encantados que se transformam em animais (boto, cobra, macaco, jacaré) e
possuem caráter malino, capazes de provocar sofrimento ou doenças de ordem não-natural ou
causa “sobrenatural”, nas pessoas. O que acontece geralmente em casos de desrespeito com o
ambiente natural, a não observação das horas “mágicas” (meio-dia e seis horas da tarde), em
que é proibido sair de casa, caçar, pescar ou nadar em igarapés encantados nesses momentos,
ou em caso de caça imprudente.
Sobre a relação do meio natural com o caboclo amazônico, Dalcídio Jurandir
escreve em “Marajó” (1992, p. 36) algumas características referentes ao imaginário
marajoara, visão de mundo e até nas relações sociais, como no trecho seguinte:

Seu Filipe em compensação contava de visagens. A lembrança dos mingaus


se misturava na correria dos bichos que malassombravam caminhos,
roçados, trapiches, as noites de pesca. Era lobisomen com botos
atravessando a floresta. Mundiadas com a serenata dos botos brancos,
fugiam mortas de amor e de feitiço as mulheres em tempo de lua e as moças
mal-a-mal nascendo os peitos. Catitus pulavam do mato saltando e
dançando. Irapuru vinha cantar nas bacadeiras e quem deixaria de acreditar
que a cobra grande encostava, meia-noite, no Porto Santo para carregar
lenha como um navio todo iluminado?

Em outro trecho, Jurandir (op. cit., p. 33-34) relaciona a natureza e a sensualidade


feminina, trazendo-nos a mente uma imagem que se confunde com o real e o mítico:
Levou-a uma noite para o igarapé. As folhas pingavam luar como sereno. A
maré vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alaíde,
como uma filha das águas brancas, os cabelos de prata, o corpo de peixe, o
cheiro de aninga.

Certamente que em muitas passagens do livro, como esta acima, apresenta uma ideia
romantizada do caboclo marajoara, no entanto, não podemos ignorar os aspectos
significativos da cultura, símbolos e religiosidade contidos nesta obra que é ao mesmo tempo
literária e etnográfica.
24

1.2. O espaço religioso em Soure

No âmbito religioso, além da presença da Igreja Católica, existem diversas igrejas


protestantes como Assembléia de Deus, Igreja Quadrangular e Universal do Reino de Deus,
espalhadas nos mais diferentes bairros. Há também uma loja maçônica situada na 3 a rua, e
Casas de culto afro, que embora não sendo de fácil identificação, relatos de informantes
apontam a existência de muitas casas de religiões afro-brasileiras. Foi possível identificar uma
dessas casas no Bairro Novo, um bairro afastado do centro e em que a maioria das ruas ainda
não é asfaltada. Essa casa é liderada pelo pai-de-santo Hilário, que tem um sobrinho, o senhor
Lima, o qual em uma entrevista realizada em fevereiro de 2009 me afirmou que era curador e
foi “tratado” pelo seu tio, que é “formado” no Maranhão. Conheci também, em dezembro de
2011, a D. Fátima, que é mãe-de-santo e dirige o terreiro de umbanda “Luz Divina”,
localizado nos fundos de sua casa, na 6ª rua. D. Fátima é mãe-de-santo há vinte e cinco anos
e, segundo ela, teria sido a primeira a organizar a festa de Iemanjá em Soure.

Figura 11

Terreiro de D. Fátima (Foto: Faro, 2011).

Depois de um desentendimento que teve com um pai-de-santo da Federação Espírita


e Umbandista de Soure, ela não organiza mais a festa, mas continua participando da mesma,
que é a principal festa de Iemanjá 6 em Soure, realizada no dia 8 ou 9 de dezembro.

6
Além dessa, outras festas dedicadas a Iemanjá são realizadas em Soure. A própria D. Fátima organiza há alguns
anos uma festa a rainha do mar no dia 02 de fevereiro (no calendário católico, data comemorativa a Nossa
Senhora da Candelária). Contudo, a que é organizada pela Federação Espírita e Umbandista de Soure em
25

A existência de pajés e curadores(as) em Soure é grande, e é realmente muito difícil


precisar quantos são na cidade. Até este momento conversei com cinco curadores, sendo duas
pajés, dois curadores7 e uma parteira. Além destes, conversei também com D. Dica, que é de
Salvaterra e se diz “curadora de nascença”. Mas com certeza o número de curadores(as), pajés
e parteiras deve ser bem superior a este.
A população costuma recorrer aos pajés e curadores(as) da cidade, sendo a D. Roxita
e D. Zeneida as mais citadas pelos indivíduos quando perguntei se conheciam algum
curador(a). Alguns mostraram certa antipatia por D. Zeneida, outros demonstravam
indiferença, e outros ainda criticavam os curadores que se utilizavam de “tambor”. Inclusive
as próprias pajés D. Roxita, D. Zeneida e a curadora D. Flor reprovaram em suas falas aqueles
que “batiam tambor” em curas, demonstrando certo preconceito contra as religiões afro-
brasileiras, além do que “não bater tambor” representa para elas um fator que indica “pureza”
nas práticas da pajelança. D. Roxita me informou, quando fui a campo em dezembro de 2011,
que costuma ajudar na arrumação do local onde é realizada a festa de Iemanjá, enfeitando o
espaço com flores e tecidos, mas que não gosta de participar da “corrente”, ou seja, do ritual.
Essa atitude pode revelar, no fundo, um desejo e uma necessidade de pertencimento a uma
comunidade ou instituição que tenha certo reconhecimento e legitimidade na sociedade, já que
a pajelança cabocla não possui uma organização civil e tem pouco reconhecimento social,
pois não é considerada uma religião, e sim uma prática ou conjunto de práticas de cura,
geralmente inserida (porém, não aceita pelo clérigo) no contexto do catolicismo popular.
O conhecimento ou saber popular relacionado às propriedades medicinais e curativas
das plantas é muito forte entre a população, já que eles mesmos se utilizam e recorrem a esta
prática “caseira” de curar, caso não seja possível um curador realizar o tratamento, o acesso
aos postos de saúde seja difícil ou simplesmente quando o problema for “fácil de cuidar”. D.
Graça, uma senhora que mora em Salvaterra (e que me abrigou em sua casa enquanto realizei
algumas pesquisas de campo) é uma mulher de quase sessenta anos, viúva, quatro filhos
(quase todos casados) e evangélica, e que muitas vezes me afirmou que preferia utilizar

dezembro é a principal, movimentando um grande número de pessoas, como pude constatar durante pesquisa de
campo realizada em dezembro de 2011.
7
Esses dois curadores, uma mulher (D. Flor) e um homem (Sr. Lima), não se autodenominam como pajés, e sim
como curadores. D. Flor acredita que hoje em dia não há mais pajés, pois em sua concepção “pajé mesmo só
quando tudo isso aqui era índio”, como ela se expressou durante a entrevista, associando, portanto, a pajelança às
culturas indígenas somete. E o Sr. Lima (que não é analisado neste estudo) demonstrou ser um curador que
exerce suas práticas dentro de um contexto religioso afro, ou seja, em entrevista ele afirmou ter sido iniciado por
seu tio, que é um sacerdote afro-religioso (possivelmente do Tambor-de-Mina, mas não ficou muito claro em seu
depoimento).
26

remédios naturais (chás, sumo, pomadas a base de ervas medicinais) do que os remédios de
farmácia. Além disso, sua própria mãe, também marajoara, foi curadora e parteira, mas
atualmente devido a idade avançada não realiza mais curas, apesar de muitas pessoas ainda
procurarem por ela, como relatou D. Graça em uma de nossas informais conversas. D. Graça
cultiva diversas plantas em seu próprio quintal, e quando precisa de alguma que não tem em
sua casa, pede a algum vizinho ou amigo que tenha. E é dessa forma que adquire os
conhecimentos sobre as ervas.

Figura 12

Pé de urucum, localizado na 6a rua de Salvaterra. Segundo D. Graça três sementes do fruto vermelho dissolvidas
em um copo de água é um ótimo remédio para baixar o nível de colesterol (Foto: Faro, 2010).

Observa-se na cidade de Soure algo que podemos chamar de “cultura” ou


“identidade marajoara”. A cultura local é utilizada, divulgada, reinventada pelo mercado e
indústria turística, ao passo que a cidade e sua população de alguma forma “reaproveitam”,
interpretam e produzem sua identidade. De acordo com Denise Schaan (2009, p. 89) “cultura
marajoara”:

(...) é um termo que vêm sendo utilizado para denominar indistintamente três
tipos de fenômenos: 1) uma cultura pré-colonial descoberta e estudada por
arqueólogos; 2) um estilo estético de inspiração arqueológica, representado
em produtos artesanais, principalmente cerâmica, e na arquitetura paraense;
3) a cultura do caboclo e vaqueiro habitantes da Ilha do Marajó. Em um
sentido mais amplo, “marajoara” refere-se simplesmente àquilo que vem da
Ilha do Marajó e a seus moradores.

Essa “cultura marajoara” está presente em diversas lojas, pequenas em sua maioria,
de artesanato, sendo a cerâmica a mais expressiva arte cultural, assim como o carimbó. Não é
27

difícil ver grupos de carimbó locais sendo contratados por donos de hotéis para realizarem
apresentações para seus hóspedes, ou até mesmo os restaurantes da praia do Pesqueiro
utilizarem essa mesma estratégia, como pude presenciar uma vez em julho de 2011, em uma
apresentação do grupo “Raízes do Mangue” de uma comunidade de pescadores. E isso é bom,
para o turismo na cidade, a economia local (restaurante, hotéis etc.) e para a comunidade 8 que
também tem um retorno econômico para si, além do reconhecimento cultural dos turistas para
com a população, e da população para com ela mesma.

Figura 13

Grupo de Carimbó “Raízes do Mangue” se apresentando na Praia do Pesqueiro (Foto: Faro, 2011).

8
Que no caso desta comunidade, desenvolvia um projeto de carimbó com as crianças, que eram as próprias
dançarinas do grupo “Raízes do Mangue”.
28

Figura 14

Músicos do “Raízes do Mangue” (Foto: Faro, 2011).

O governo também incentiva e se apropria dessa identidade e cultura marajoara,


trazendo, por exemplo, grupos de carimbó, lutas marajoaras9 e peças de teatro com temas da
cultura amazônica para o palco e anfiteatro da praça principal, a Praça da Independência, e
também patrocinando o “Marajó Búfalo Fest”, feira agropecuária de Soure e que se torna um
grande evento social na cidade, com feira de artesanato, de roupas e apresentações de bandas
musicais (locais ou de Belém), e outras atividades.
Restaurantes na cidade, hotéis, pousadas e outros estabelecimentos comerciais e sociais,
tanto em Soure quanto em Salvaterra, são caracterizados com temas da cultura do Marajó, e
entende-se essa cultura como sendo a “cultura indígena” do Marajó. Para exemplificar, há um
restaurante e pousada em Salvaterra, próximo a Praia Grande, chamado “Umuarama”, que
segundo informação da pousada é um termo do tupi-guarani que quer dizer “encontro de
amigos”.

9
A luta marajoara consiste em uma luta entre dois indivíduos (na categoria masculina ou feminina) e em que os
movimentos assemelham-se a luta dos búfalos, enquanto estes utilizam os chifres, os lutadores utilizam as mãos.
29

Figura 15

Pousada Umuarama, em Salvaterra (Foto: Faro, 2010).

Outro exemplo é uma réplica de uma grande urna de cerâmica marajoara posicionada
em frente, do outro lado da rua, de uma casa que é a residência, salão de beleza e ponto de
venda de perfumes e outros artigos artesanais de um morador de Salvaterra, e especificamente
da Praia Grande.

Figura 16

Réplica de uma urna marajoara, localizada em frente um local residencial e comercial, na Praia Grande,
Salvaterra (Foto: Faro, 2010).

Em Soure, duas coisas e lugares me chamaram bastante a atenção. Um deles é uma


pequena casa denominada “Mbarayo Cerâmica” onde são feitos e vendidos objetos de
cerâmica baseados na arte indígena marajoara, segundo informação do rapaz que me recebeu.
O artesão, infelizmente, não estava no local, segundo o rapaz ele havia saído para coletar
30

argila, e demoraria alguns dias para voltar. O artesão é Carlos Amaral, conhecido por ser filho
de mãe indígena, com quem teria aprendido a arte com cerâmica. Além da venda de
cerâmicas, o local também tem uma pequena exposição na parede esquerda interna de objetos
e vestígios aparentemente originais dos povos indígenas locais encontrados em fazendas e
outras áreas da região, além de fósseis de alguns animais (búfalo, jacaré, entre outros).

Figura 17

Mbarayo cerâmica (Foto: Faro, 2011).

Figura 18

Placa na lateral exterior da casa (Foto: Faro, 2011).


31

Figura 19

“Copo dos namorados”, um dos objetos que adquiri no local. Segundo D. Rosângela (esposa do artesão, Carlos
Amaral) que me vendeu a peça, este objeto representa um copo que deve ser usado pelo casal para trazer
felicidade. Os motivos desenhados simbolizariam a borboleta (felicidade), o sapo (fertilidade) e a vagina
(fecundidade). (Foto: Faro, 2012).

Figura 20

Pequena exposição de fragmentos de objetos arqueológicos encontrados em fazendas e outros locais da região
(Foto: Faro, 2011).

A outra coisa que me chamou atenção nesse aspecto em Soure foi um restaurante
situado na 2a rua, chamado “Restaurante Patu-Anu”, quando certa vez fui almoçar, depois de
uma tentativa frustrada de conversar com D. Zeneida Lima, com meu pai, me acompanhava
naquela pesquisa de campo, em setembro de 2011. Sentamos em uma das mesas, recebemos o
cardápio e qual não foi minha surpresa ao ler, entre diversas coisas escritas, uma nota no fim
do cardápio explicando sobre Patu-Anu.
32

Figura 21

A nota explicativa no cardápio (Foto: Faro, 2011).

O fato é que nas informações daquela nota reconheci minha própria escrita. Ou seja,
percebi que aquela nota havia sido tirada (quase na íntegra) muito provavelmente de um
artigo10 que escrevi e apresentei no III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, ocorrido em
2009 na cidade de Belém. Sem nenhuma referência à minha autoria, perguntei ao garçom se
ele sabia de onde provinha aquela informação. Ele respondeu que não sabia, e eu lhe disse,
então, que eu havia escrito aquilo, em algum trabalho ou artigo disponível na internet, pois a
pajelança cabocla em Soure era meu tema de pesquisa. A reação do rapaz foi de desconfiança,
pareceu não acreditar no que eu dissera, mas ele acenou com a cabeça dizendo “Ah tá...!” e se
retirou. Eu senti uma mistura de surpresa, com alegria (pelo “reconhecimento”) e um pouco
de indignação (por não ter meu nome naquela nota). Depois de rir um pouco com meu pai
naquela situação, refleti a respeito de como um grupo ou pessoa pode se apropriar de estudos
acadêmicos para legitimar de alguma forma a sua ação, prática ou crença. Isso também me fez
pensar sobre as influências que o trabalho de um pesquisador pode exercer em dada
comunidade ou sociedade. Schaan (2009, p. 95) ao escrever sobre a relação das pesquisas
arqueológicas na Ilha do Marajó com a população afirma que:

10
“Mistérios de Patu-Anu: um estudo sobre a pajelança e as mulheres pajés em Soure (Ilha de Marajó)”,
disponível em <http://www.wftl.org/pdf/054.pdf>. Acesso em 19/10/2012.
33

(...) inconscientemente ou não, o público absorve e veicula a informação


científica de acordo com suas necessidades e expectativas. Na medida em
que a cultura descrita pelos cientistas é considerada como o passado
regional, o público apodera-se da reconstituição deste passado agregando sua
própria interpretação.

Essa situação que vivi também me fez refletir sobre o mundo virtual, da internet, que
torna o mundo realmente uma “aldeia global” e proporciona enorme visibilidade,
sociabilidade e divulgação de informações, pessoas e coisas. Não somos ilhas. Nenhuma
comunidade, cidade ou povo está isolado, e o mundo inteiro conversa entre si.
A “cultura marajoara” que existe em Soure, e também em diversas outras cidades do
arquipélago, é incentivada, (re)produzida e vendida, configurando-se como uma “tradição
inventada”, portanto. Segundo Hobsbawm (1997), as tradições inventadas, usam as
referências ao passado com intuito de coesão social e legitimação de ações. Isso implica que a
busca do passado, das raízes ou origens culturais, étnicas, é sempre feita dentro das
expectativas e com propósitos políticos, religiosos e sociais desenhados no presente.
A “cultura marajoara”, tal como é amplamente divulgada e pensada no Marajó, e no
Pará, que a reivindica como parte da história local não é, conforme Hobsbawm (1997), aquela
que foi preservada inteiramente na memória popular, mas a que foi selecionada, escrita,
popularizada e institucionalizada. De acordo com Schaan (2008), o desejo da população em
pensar o presente como uma extensão e sobrevivência de um passado remoto, às vezes
idealizado, e em legitimar as produções contemporâneas a faz interpretar, criar e recriar (à
vontade de sua inspiração ou ideal regido pela política, economia ou religião) a sua história e
passado, desenhando assim sua própria identidade.
Soure e a Ilha do Marajó tornam-se cada vez mais conhecidas no Brasil e no mundo.
Os livros de Zeneida Lima sobre pajelança, o desfile da escola de samba Beija-Flor no
carnaval de 1998, o filme “Amazônia Caruana” em vias de estreia no cinema brasileiro, e a
novela “Amor eterno amor” (que teve cenas filmadas na região e que foi exibida na rede
Globo em meados de 2012), são fatores que lançam ao mundo o Marajó e sua cultura, ou o
que acreditam ser essa cultura. Em quase todos esses fatores a figura de Zeneida Lima está
presente. Não é errado pensar que ela é responsável em grande parte por essa visibilidade do
Marajó para o mundo. Ela lançou e continua a lançar uma imagem de Soure e sua cultura que
não necessariamente corresponde à realidade, mas que ao mesmo tempo desempenha um
papel importante na cidade com a escola que hoje leva seu nome.
34

A população de certa forma aprecia o interesse do mundo e da televisão sobre a


cidade, e a presença de atores brasileiros e figuras globais em Soure estimula nas pessoas uma
tímida, mas perceptível, empolgação. Toda essa situação está relacionada com a globalização,
que para Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 26) é um “fenômeno multifacetado com
dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo
complexo”. Para este autor, a globalização nas últimas décadas tem fugido claramente do
padrão moderno ocidental de um processo homogêneo, e tem se apresentado como um
fenômeno marcado pela universalização e eliminação das fronteiras nacionais por um lado, e
por outro o particularismo, a diversidade local e a identidade étnica. O local encontra-se no
global, e o global no local. As fronteiras entre as áreas de saber e conhecimento estão menos
fixas; ciência, religião, arte, medicina, magia, cinema, televisão, informática, música, o
moderno e o tradicional... Enfim, campos que num dado momento se excluíam, hoje
estabelecem pontes e diálogos em diversos graus e maneiras.
35

2. Pajelança, Xamanismo e Encantaria: discutindo categorias e conceitos nos estudos


sobre pajelança cabocla na Amazônia.

Alguns termos e conceitos são bastante utilizados nos estudos sobre pajelança cabocla,
sobretudo na área de antropologia. Adentrar neste campo de estudo sem conhecer essas
categorias e termos pode gerar confusão para aquele que se aventura a estudar o tema, e
principalmente para o leigo que deseja conhecer esse universo da encantaria.
Pajé, pajelança, xamanismo, encantaria, encantado, encante, bicho-do-fundo, corrente-
do-fundo, doença natural e não-natural ou doença enviada por Deus e doença de pajé, enfim,
uma imensidão de termos e conceitos (alguns criados por antropólogos, outros oriundos da
própria cultura ou população estudada), que agregam ideias, muito complexas até, a respeito
da doença e da cura, da relação entre ser humano e natureza, do pajé e encantado. Uma teia de
relações na qual a pajelança cabocla gira em torno e é, ao mesmo tempo, o seu próprio eixo.
Esses e outros conceitos serão abordados neste capítulo, em que serão apresentadas as
principais características da pajelança cabocla de acordo com estudos de diversos autores.
Alguns termos e ideias são bastante recorrentes nos estudos e coerentes com a realidade do
campo, outros, porém, são debatidos há tempos em seminários e artigos, como o próprio
termo “pajelança”, inicialmente usado em um sentido pejorativo, mas que acabou sendo
adquirido posteriormente por muitos curadores e hoje esse termo se encontra bastante
presente em seus discursos.

2.1. O Pajé e a Pajelança

É importante ressaltar que o termo “pajelança” e “pajé” possuíam a princípio um


sentido pejorativo, e em algumas situações não são utilizados por muitos dos que a praticam
nem pela população na qual estão inseridos. Essas pessoas preferem chamar a si próprios de
“curadores”, como aponta Maués (2005, p. 33). Entretanto, observa-se que em Soure, local
desta pesquisa, os pajés se definem como tais, sem nenhum sentido pejorativo atribuído ao
termo. Em outra situação eles são chamados de mestres, como aponta Patrícia Cavalcante
(2008) em sua dissertação de mestrado.
O termo pajelança foi utilizado por Galvão (1955), e outros autores, em seus livros,
e caracteriza-se por um conjunto de crenças e práticas de cura e feitiçaria, em que a figura
central se revela no pajé, e os seres que lhe auxiliam nos rituais são o eixo de comunicação
entre o mundo humano e o mundo dos encantados. A partir dessas considerações, este
36

trabalho também adota esta terminologia para se referir a estas práticas e crenças, bem como
ao iniciado na mesma.
Outra questão, igualmente relevante de ser ressaltada, é a diferença entre “pajelança
cabocla” e “pajelança indígena”. A primeira é resultado da relação entre diversas tradições
culturais e religiosas (sobretudo, indígena, cristã católica e africana) provocada a partir da
colonização, que no caso da Amazônia ocorreu a partir do século XVII (MAUÉS, 1990). E a
segunda refere-se às práticas e crenças restritas as aldeias e etnias indígenas, que não tenham
sofrido e adquirido consideráveis influências religiosas externas 11.

Figura 22

Pajé Kissibi Kumu, da etnia Dessana (Foto: Anne Vilela. Fonte:


<www.encontrodeculturas.com.br/2010/noticiasDetalhe.php?id=345>. Acesso em 19/10/2012).

O próprio termo pajé, segundo Miowa (2004), vem do tupi-guarani “payé” e quer
dizer pai ou senhor, e designa aquele que tem autoridade, respeito e cuidado com o povo.
Sobre os pajés caboclos, costuma-se observar a existência de dois tipos: o “de nascença” e o
“de agrado”. O pajé de nascença manifesta seu dom ainda no ventre da mãe, chorando ou
emitindo um som. Tal ocorrido não pode ser revelado publicamente antes do tempo, sob pena
de a pessoa perder seus poderes (MAUÉS, 2005). Ao alcançar certa idade, o jovem passa por
um processo chamado de corrente-do-fundo, de muito sofrimento, crises, doenças ou ataques
de violência ou possessão descontrolada de espíritos e caruanas. Ele deve, então, submeter-se
ao tratamento com um pajé experiente, que irá afastar os espíritos e os maus caruanas,
treinando o noviço para que ele possa controlar as incorporações. O pajé:

11
Como no caso da etnia Mura, no Amazonas, como podemos notar no documentário disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=KbnH4n5WSJg>. Acesso em 13/08/12.
37

Ao mesmo tempo, ensina-lhe os mitos, as técnicas, o conhecimento dos


remédios, as orações etc., de sua arte. Ao final do período de treinamento, o
novo pajé é “encruzado” numa cerimônia imponente, em que deve morrer
simbolicamente para renascer como xamã. A partir daí, estará pronto para
tratar seus próprios doentes e até formar seus próprios discípulos. Mas
nunca se cura inteiramente da “doença” (chamada de “corrente do fundo”)
que o acometeu: ele terá que manter permanentemente certos tabus
alimentares, sexuais e de outros tipos, bem como “chamar” regularmente
suas entidades, dedicando-se, sempre, à prática da “caridade”, isto é, à cura
das doenças, sem procurar fugir de suas “obrigações”, sob pena de ser
castigado por seus próprios caruanas (MAUÉS, 2005, p. 10).

Lewis apresenta interessantes considerações sobre a possessão e o transe, em seu


livro “Êxtase Religioso” (1971). O autor diferencia essas duas situações, embora elas possam
ocorrer juntas no xamanismo clássico. O transe seria como “um estado de dissociação,
caracterizado pela falta de movimento voluntário, e, frequentemente, por automatismo de ato
e pensamento, representados por estados hipnóticos e mediúnicos” (LEWIS, op. cit., p. 41). Já
na possessão, ocorre um desligamento do “eu”, isto é, a perda temporária da alma, havendo
vários graus de possessão.
Ainda sobre os pajés de nascença, existem aqueles que não aprenderam a cura com
nenhum outro pajé ou curador experiente. Seu aprendizado se deu no Fundo, com os próprios
encantados, ou foram ensinados por sua própria intuição. Eles simplesmente sabiam ou
ouviam quais plantas usar, como fazer o remédio e que oração proferir.
A maioria dos(as) pajés que conheci em Soure, Marajó/PA, relataram algo
semelhante nas entrevistas, afirmando que não foram “feitos” por outro pajé, e sim por Deus e
os encantados. Ou seja, eles afirmavam que adquiriam os conhecimentos de cura por meio de
experiências extramundanas, tendo contato com os encantados, indo ou sendo levados ao
Fundo das águas, e ouvindo vozes que lhes ensinavam como curar.
Galvão (1955) denomina esses pajés de sacaca, considerados os mais poderosos e
capazes de realizar incursões ao fundo dos rios, local de morada dos encantados. Este autor
também afirma, a partir dos relados coletados em Gurupá/PA, que em certos casos a iniciação
do pajé de nascença acontecia no próprio Encante, ao invés do auxílio de um pajé experiente.
Nesses casos, o futuro pajé chegava a passar meses desaparecido, imerso nas profundezas dos
rios, aprendendo diretamente com os Caruanas os segredos de sua arte. Este pajé seria
considerado um sacaca.
Os pajés de agrado ou de simpatia manifestam o dom apenas na maturidade.
Também são acometidos pela corrente-do-fundo e devem ser tratados e preparados por um
pajé experiente, que realizará sua iniciação. Os pajés de agrado são “escolhidos” pelos
38

encantados ao simpatizarem ou se afinarem com esses indivíduos. No entanto, essa categoria


de pajé não possui tanto prestígio quanto os de nascença, como afirma Cavalcante (2008, p.
53).
Sobre a iniciação do pajé, Mircea Eliade (2002) afirma que uma das principais
características do período iniciático é o seu caráter doutrinário e pedagógico sendo o processo
fortemente marcado por três estágios: sofrimento, morte e ressurreição.
Caso o pajé, especialmente o de nascença, se recuse a aceitar o dom e ser iniciado ou
se a família não permitir que ele seja “endireitado” por outro pajé ou pelos companheiros, o
indivíduo corre o risco de sofrer alguma consequência punitiva (principalmente a cegueira) ou
mesmo ser fatalmente levado à morte (desaparecer na mata ou no rio, ou adoecer e definhar
até a morte). Conforme afirma Cavalcante (2008, p. 56), “em Condeixa as pessoas relatam
que, quando não aceitam seu dom, passam a sofrer de alguma enfermidade, que a medicina
não consegue diagnosticar ou são marcados para sempre com doenças irreversíveis como a
cegueira”.
Maués (1990) conheceu um pajé cego em Itapuá e escreve sobre ele em seus
estudos, afirmando que era reconhecido pela população como um dos mais poderosos
curadores do local.
Há ainda uma terceira categoria de pajé, identificada por Cavalcante (2008, p. 73),
que é a dos meuan’s. Podem ser de nascença ou de simpatia, mas a diferença é que eles(as)
não atuam efetivamente como pajés, apenas como assistentes do pajé que o endireitou.
Cavalcante nota que a grande maioria dos meuans, se não todos, é composta por mulheres que
nasceram com o dom de curar, mas não tiveram permissão de sua família para serem pajés.
Encontra-se na pajelança elementos de culturas diversas, sendo as culturas
indígenas, portuguesa (cristã ou não-cristã) e africanas as que mais se destacam no conjunto
de crenças e práticas da encantaria. Sobre a influência de culturas pré-cristãs, Diégues Jr
(1980, p. 72 a 76) apresenta que no período pré-histórico, a Península Ibérica fora ocupada
por diversos povos e culturas, dentre eles os iberos, e posteriormente os lusitanos. Houve
levas de invasões germânicas e romanas, sendo a última definitiva para a formação do que
convém chamar de portugueses. Esses grupos e etnias imprimiram crenças e costumes na
população descendente, onde certas crenças e costumes sobreviventes foram transmitidos aos
povos colonizados (como os indígenas brasileiros).
De acordo com Galvão (1955, p. 66) algumas crenças presentes na pajelança
cabocla:
39

[...] derivam de tradições européias conservadas e transmitidas pelos


colonos dos primórdios do povoamento ou mesmo por imigrantes recentes,
outras trazidas pelos escravos africanos, finalmente, muitas que se atribuem
ao ancestral ameríndio. Essas crenças se modificaram e se fundiram ao
catolicismo constituindo a religião do caboclo.

A respeito da influência ameríndia na pajelança, Carmen Junqueira em seu artigo


“Pajés e Feiticeiros” (2004, p. 4), afirma que os pajés da aldeia dos Kamaiurá possuem uma
íntima relação com os animais, ou melhor, com o espírito dos animais, o que é característico
do Xamanismo e Totemismo.

A existência do próprio pajé, enquanto especialista em cura, deve-se à


ajuda que os bichos lhe concedem, ensinando-lhe como fumar, como lidar
com as doenças e curar. No mais das vezes, sem a ajuda do espírito do
animal protetor, é impossível ao pajé acabar com a doença, auxiliar um
parto complicado, localizar pessoas extraviadas na mata etc. E o pajé
experiente sabe que para contar com tão valiosa ajuda deve obedecer
rigorosamente às instruções que recebe e respeitar as interdições impostas,
por mais difíceis que possam parecer. Qualquer infração pode acarretar a
morte do aprendiz, como ensinam muitos relatos.

Observa-se aqui uma grande semelhança entre a “pajelança indígena” e a “pajelança


cabocla”, em que o poder dos pajés deriva quase que inteiramente dos espíritos dos animais
no primeiro caso, paralelamente ao dos encantados no segundo. Outra semelhança são as
consequências que podem cair sobre o pajé caso este não siga as instruções e interdições
adequadas.
A Natureza é um fator extremamente importante tanto para a pajelança indígena
quanto para a cabocla. Nas práticas de cura são utilizados muitos elementos do ambiente
natural, como o uso do cigarro de tauari12 nos rituais, os cânticos entoados pelo(a) pajé e a
presença da musicalidade como um forte mecanismo de cura, a presença do fogo (seja na
chama das velas ou em uma fogueira), o uso de ervas para banhos, beberagens, “garrafadas”,
etc. Além disso, a morada dos encantados é na própria natureza, ou seja, nos rios, igarapés,
olhos d’água, matas e árvores. A relação entre o pajé e o encantado, portanto, se desenvolve e
se estrutura a partir da natureza, sendo esta considerada a grande fonte de poder, cura e
sabedoria de ambos os sujeitos (pajé e encantado). A pajelança, então, consiste em um meio
para estabelecer essa relação através dos cantos, rezas, ritos e fórmulas mágicas para
finalidades diversas.

12
Feito da casca do tauarizeiro, vegetal comum da flora amazônica.
40

Contudo, é também nesse aspecto em comum entre a pajelança indígena e a cabocla


que podemos observar uma evidente diferença entre ambas. Para a pajelança indígena, Ser
Humano e Natureza estão profundamente interligados, são unos, como expressa a crença
indígena citada por Junqueira (2004, p. 4):

Quando a vida foi criada, todos os seres se comunicavam numa mesma língua, o
que facilitava a união entre espécies diferentes. E, mais ainda, por trás da
aparência diversa residia uma semelhança niveladora: todos eram uma
concretização do fenômeno da vida e, mais, eram mortais e possuíam uma alma.
O fundamento que os animava era o mesmo e a diferença de aspecto pouco
significava.

Já na pajelança cabocla como é analisada por Maués (1990) e Galvão (1955), essa
relação deve ser, de certa maneira, distante e cautelosa, pois o homem/mulher caboclo
acredita que alguns bichos ou encantados, que costumam assumir a forma animal, causam mal
e doenças nas pessoas comuns, e apenas o pajé é protegido desses ataques, pois ele(a) sabe
como lidar com esses seres.
Galvão (1955) cita vários relatos de pescadores que evitam ou ignoram o contato
com botos, ou de moças em dias de lua (menstruação) que são proibidas de saírem de casa,
com o risco de, ao lavarem-se nos rios, serem penetradas por bichos ou enfeitiçadas por botos.

Figura 23

Boto cor-de-rosa (Foto de Kevin Schafer. Fonte: <http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-


112/fotos/botos-amazonia-480039.shtml>. Acesso em 19/10/2012).

É evidentemente possível que tais crenças e atitudes perante a natureza sejam


consequência da mentalidade cristã sobre a sociedade ou populações onde exerceu
influências. Héctor Leis, em seu artigo “Ambientalismo e Religiosidade no mundo
41

globalizado” (1999, p. 69) cita Lynn White que afirma que o cristianismo foi responsável, em
grande parte, pela introdução no Ocidente de uma espiritualidade de novo tipo e efeitos
radicais.

O cristianismo se apresenta assim muito mais próximo da modernidade do que


normalmente se acredita, na medida em que as ideias de progresso e do tempo
histórico linear, tanto como as do homem amo e senhor da natureza, surgem na
Idade Média cristã. Antes do cristianismo, a natureza encontrava-se protegida
por diversos espíritos, os quais eram garantia de um certo equilíbrio entre esta e
os seres humanos. Mas a crença num homem feito à imagem e semelhança de
um único Deus retirou da natureza qualquer força espiritual e permitiu sua
exploração de forma quase ilimitada.

O cristianismo, portanto, modificou além da mentalidade da sociedade, a relação que


existia entre os seres humanos e o meio natural. O pensamento maniqueísta cristão modificou
a concepção de mundo existente em muitas sociedades e culturas, como as indígenas no
Brasil, onde a noção de bem e mal não era exatamente definida e separada, como é para o
cristianismo. Luz e escuridão, céu e terra, dia e noite, sagrado e profano, são “duas faces de
uma mesma moeda”, são elementos que se contrastam e se completam, e juntos representam a
plenitude. Dessa forma, o cristianismo foi responsável pela transfiguração de seres
originalmente considerados amigos, aliados ou até mesmo parentes, como coloca Junqueira
(2004), ou de seres de personalidade ambígua, em seres perigosos, malignos e malinos.
Atualmente observa-se uma nova perspectiva surgindo no campo da pajelança
cabocla, vivenciada por Zeneida Lima em Soure e Roseana Gil, já falecida, em Colares/PA
(VILLACORTA, 2000; 2011). Essas mulheres são pajés e apresentam um discurso
essencialmente ecológico, onde a natureza e o ser humano são interligados por uma “teia”
cósmica, sagrada, e o homem não poderia quebrar essa ligação, devendo respeitar e preservar
a natureza e seus recursos.
A esta “nova face” da pajelança, Maués e Villacorta (2004) denominam de
“pajelança ecológica”, em que é difícil afirmar, contudo, se seu discurso é efetivamente novo,
atual, influenciado talvez pela mídia ou pela evidente destruição da natureza, ou se é um
discurso originalmente antigo, mas reformulado e ressignificado, pois como vimos em
Junqueira (2004) a tradição dos Kamaiurá e da maioria das etnias indígenas possuem uma
relação de respeito com a natureza bastante antiga.
A respeito da influência das religiões de matriz africana sobre a pajelança, Galvão
(1955) afirma que nas áreas mais urbanizadas, como Belém e Manaus, a pajelança encontra-se
bastante intricada com a Umbanda, Tambor de Mina e o Espiritismo. Maués (1990) observa a
42

mesma coisa ao realizar sua pesquisa de campo em Itapuá, Vigia/PA, afirmando que há fortes
influências da Umbanda e Espiritismo na pajelança local. Decerto, essas influências
extrapolam as cidades e centros urbanizados e se estendem em menor ou maior grau para as
cidades do interior, como Soure, no Marajó.
Contudo, ambos os autores, Galvão (1955) e Maués (1990), atestam que o
catolicismo popular é o que exerce maior influência na pajelança cabocla, e não seria errado
até mesmo pensar que a pajelança cabocla seja uma faceta do catolicismo popular. Estes
autores nos contam que se perguntarmos a um pajé qual sua religião, prontamente ele
responderá que é católico. E tal fato foi possível de ser atestado em Soure durante as
pesquisas de campo, pois a maioria dos(as) pajés entrevistados afirmavam ser católicos ou
demonstravam ter uma prática religiosa muito próxima do catolicismo popular. A Igreja
Católica, entretanto, não reconhece as práticas de pajelança como católicas. Cria-se aqui um
conflito de visões de mundo diferentes entre o catolicismo popular e o oficial.
Em seu estudo realizado na cidade de Gurupá, Galvão (1955, p. 107) afirma que a
população local não encara:

[...] o catolicismo e a pajelança como cultos ou religiões antagônicas. O


último não é tido, aliás, como um culto propriamente dito. Não há a
intenção de propiciar o sobrenatural ou, de qualquer forma, obter sua boa
vontade. [...] A pajelança é uma pseudociência onde os elementos mágicos,
a posse do sobrenatural, o uso do fumo, a extração do objeto maligno,
misturam-se a outros frutos do conhecimento empírico da ação de ervas,
banhos e chás. [...] A pajelança, como as festas de santo, as novenas, as
promessas constituem parte integral da religião do caboclo. São aspectos ou
maneiras de encarar e explicar o seu universo.

Giovanni Gallo, em “A ditadura da Água” (1975), um livro que reúne artigos,


observações e experiências deste sacerdote católico enquanto viveu em Santa Cruz do Arari e
Jenipapo, no Marajó, observa que muitas pessoas que frequentam a missa, também
frequentavam rituais e sessões de cura, e recorriam aos pajés mais do que aos postos médicos.
Neste aspecto é possível observar uma divergência entre a pajelança praticada nos
locais estudados por autores como Maués (1990), Galvão (1955) e Cavalcante (2008), e a
pajelança praticada por Zeneida Lima. Esta pajé, em sua autobiografia (1991, 1ª ed.) nos
mostra uma pajelança relacionada “as energias da natureza” e afirma ser herdada dos antigos
índios marajoaras, portanto, não sendo uma religiosidade predominantemente católica. Nem
sequer apresenta culto aos santos católicos, como observou Maués, Galvão, Braga e outros
pesquisadores em seus estudos com outros pajés. Em uma passagem de seu livro, por
43

exemplo, em uma determinada situação difícil, sua irmã Teté recorre às graças de Santa
Terezinha, enquanto que Zeneida (ainda jovem e recém “sentada”) recorre às forças do Vento,
do Sol e do Bacurizeiro (1991, 1 ed., p. 176-177).
Outro aspecto de divergência marcante entre a pajelança de Zeneida Lima (que será
analisada com mais ênfase em outro capítulo) e a de outros pajés estudados por pesquisadores
já citados, está no fato de ser uma mulher a exercer a pajelança. Aliás, a maioria dos
curadores observados em Soure durante essa pesquisa é composta por mulheres. Na maioria
dos estudos e trabalhos publicados observa-se uma recorrência maior de homens pajés ou
curadores do que de mulheres pajés, pois estas em grande parte dos casos sofrem restrições
pela família e pela comunidade em exercerem seu dom de cura, mesmo que seja um dom de
nascença. Em algumas localidades da Amazônia encontra-se uma forte interdição relacionada
à prática da pajelança por mulheres. Em outras situações, é mais comum encontrar
benzedeiras e parteiras do que propriamente pajés.
A diferença entre benzedeira(o) e pajé é que a(o) primeira(o) não incorpora ou não é
possuída(o) por forças mágicas para curar, mas apenas receita banhos, garrafadas, chás,
defumações, e utiliza-se sobretudo de orações e rezas, e sua maior aliada é a intuição e
observação atenta para saber que mal aflige os que a procuram. Por sua vez o(a) pajé
incorpora e serve como instrumento (“ave” ou “cavalo” 13, termos que Zeneida Lima e D.
Dica, respectivamente, utilizaram em seus relatos) dos encantados para efetuar a cura, além de
ser capaz de visitar o fundo ou encante, e acredita ser detentor de maior poder de cura para
diversas doenças, seja de causa física ou de causa espiritual ou mágica (provocada por
encantados ou espíritos).

2.2. A pajelança cabocla: uma forma de Xamanismo na Amazônia

A cultura brasileira reúne elementos de diversas culturas e povos em que desde o


início do processo de colonização e exploração do território a relação entre as etnias
proporcionou a formação de nosso corpo cultural, intensamente diversificado. Além de
outros povos e culturas que participaram de certa forma na colonização do Brasil, os
indígenas, portugueses e africanos representaram presença marcante e nos legaram aspectos
de sua cultura e religião até hoje.

13
Por sinal, “cavalo” é um termo também utilizado em religiões afro-brasileiras, e possui basicamente o mesmo
sentido empregado por D. Dica, o de ser instrumento dos encantados ou “cabocos”, ou seja, de ser possuído por
eles.
44

A cultura amazônica, por sua vez, em suas múltiplas faces e aspectos é resultante da
“integração dos elementos culturais de que eram portadores os que participaram do processo
de colonização da região” (FIGUEIREDO, 1972, p. 35). A pajelança cabocla é um
significativo aspecto da cultura brasileira, e especificamente, da cultura amazônica.
A pajelança é uma religiosidade bastante presente em várias localidades da
Amazônia, apresentando suas particularidades dependendo do contexto histórico-social e da
localidade na qual está inserida. Podemos atribuir como característica geral da pajelança
cabocla a que foi definida por Heraldo Maués em “A Ilha Encantada” (1990), como sendo um
conjunto de práticas e crenças xamanísticas que tem em suas expressões culturais diversos
elementos da religiosidade indígena, africana e católica, mesclados em graus variáveis.
Portanto, para se compreender a cultura, religiosidade e história da região
amazônica, é fundamental conhecer a pajelança cabocla e o imaginário que envolve os
processos de cura e encantaria. O imaginário, para Laplantine e Trindade (2003), é como um
mobilizador e evocador de imagens, utilizando o simbólico para se expressar e existir, e o
simbólico, por sua vez, pressupõe a capacidade imaginária. Segundo Laplantine e Trindade
(2003, p. 79):

O imaginário possui um compromisso com o real e não com a realidade. A


realidade consiste nas coisas, na natureza, e em si mesmo o real é
interpretação, é a representação que os homens atribuem às coisas e à
natureza. Seria, portanto, a participação ou a intenção com as quais os
homens de maneira subjetiva ou objetiva se relacionam com a realidade,
atribuindo-lhe significados. Se o imaginário recria e reordena a realidade,
encontra-se no campo da interpretação e da representação, ou seja, do real.

A encantaria, portanto, participa do imaginário amazônico, que por sua vez


representa e interpreta a realidade por meio do simbólico, e ao compreendermos esse
imaginário será possível também compreendermos a realidade da(s) Amazônia(s).
Pajelança cabocla, assim como pajelança indígena, são formas de Xamanismo
características da Amazônia. Compreende-se Xamanismo como “um fenômeno religioso da
Ásia Central e Setentrional (povos altaicos, buriatas, samoiedos, iacutes, tungues, voguls etc.)
e das regiões árticas norte-europeias (lapões)” (MONTAL, 1986, p.13), que remonta sua
origem ao período Paleolítico, a mais de 25 mil anos a.C. Segundo Alix de Montal (op. cit., p.
15), em seu livro intitulado O Xamanismo, “a palavra xamã vem do tungue saman, aparentado
com o sânscrito sramana e com o pâli samana, que significa ‘homem inspirado pelos
espíritos’ ”, e afirma também que:
45

Encontram-se fenômenos xamânicos similares entre os esquimós, entre os


índios da América do Norte e da América do Sul; na Oceania, na Austrália,
no sudeste asiático; e enfim, na Índia, no Tibete e na China. Trata-se, aqui,
de um conjunto de práticas evidentemente adaptadas e amalgamadas a cada
cultura, a cada crença, mas que em toda parte apresenta o mesmo conteúdo
mágico-religioso e simbólico.

O xamanismo foi amplamente estudado por Mircea Eliade, em especial na obra


“Xamanismo e as técnicas arcaicas de êxtase” (1998), e apesar de não ter pesquisado o
fenômeno in loco, é um dos estudiosos mais conhecidos quando se trata de xamanismo.
Eliade (1998, p. 16) aponta uma primeira definição, e segundo ele “possivelmente a menos
arriscada”, de xamanismo como sendo fundamentalmente uma técnica do êxtase. Nesse
estudo, Eliade aborda com ênfase, entre outras práticas de cura e êxtase, o “voo mágico” ou
“voo xamânico”, que consiste na viagem mística da alma ou consciência do xamã a outros
mundos espirituais, superiores ou inferiores. Como Eliade (1998, p. 17) explica, o xamã é “o
especialista em um transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar
ascensões celestes ou descensões infernais”.
Na pajelança cabocla ao invés de voo xamânico poderíamos chamar de “mergulho
xamânico”, que consiste na viagem ou ida do(a) pajé ao Fundo ou Encante, que é o lugar
encantado no fundo das águas onde habitam os seres mágicos que auxiliam o pajé.
Este autor considera que o xamanismo teria se manifestado de forma mais completa e
“pura” na Ásia central e setentrional, de onde esse fenômeno teria se difundido para as outras
regiões. Contudo, tal afirmação vem sendo há algum tempo questionada por estudiosos
posteriores a Eliade, haja vista que propõe um tipo-ideal de xamanismo. Apesar disso, o
conceito de “xamanismo como técnica de êxtase” é largamente aceito na antropologia e outras
áreas de conhecimento, pois consegue sintetizar a característica básica do fenômeno, que é a
habilidade do xamã em controlar tecnicamente o seu êxtase e, comumente, o êxtase alheio. E
é essa capacidade que de fato caracteriza o xamã, não importa de qual cultura ele seja.
Tedlock (2008) descreve o xamanismo como uma prática e que raramente se
constituiu como uma instituição social formal, ou seja, em quase toda a parte “o xamanismo
foi no passado e ainda é nos dias de hoje mais um conjunto de atividades locais e
contingências do que uma instituição étnica ou nacional” (p. 29).
Esta autora aponta cinco características fundamentais que definem as atividades e
perspectivas xamânicas, que são: a) a convicção de que todas as entidades (inanimadas ou
não) estão imbuídas de uma força de vida holística, energia vital, consciência ou alma; b) a
crença em uma “teia de vida” em que todas as coisas são interdependentes e interconectadas;
46

c) a concepção de uma realidade complexa em que o mundo é construído em uma série de


níveis conectados por um eixo central, que pode assumir a forma de uma árvore ou montanha;
d) a capacidade do xamã em viajar por mundos espirituais, e de compreender e mudar eventos
do mundo comum, podendo realizar tais coisas durante seu período de consciência normal ou
em estados alternativos de consciência (por meio de jejum, alucinógenos, rituais e sonhos); e)
os xamãs reconhecem que forças extraordinárias, entidades ou seres cujo comportamento em
uma realidade ou mundo alternativo afetam os indivíduos e acontecimentos em nosso mundo
comum, e por outro lado compreendem que ações ou rituais realizados na realidade normal
podem afetar a esfera alternativa.
O xamã seria, então, o sacerdote deste culto, o mediador fundamental entre os
espíritos (de antepassados, de deuses e de animais) e os seres humanos. Dentre suas funções a
principal é a cura das mais diversas doenças e males, e que para Lévi-Strauss (2003) a cura
xamânica se processa por meio de uma manipulação psicológica na qual “a cura consistiria,
pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para
o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar” (p. 228).
Tedlock (2008, p. 24) esclarece que a cura xamânica se utiliza do poder da fé do
paciente e do restabelecimento da saúde, e que:

Como todos os curandeiros, os xamãs utilizam esperança, sugestão,


expectativa e rituais que produzem um efeito placebo poderoso. Esse efeito,
que tem sido chamado de “o doutor que reside dentro de nós”, surge de uma
conexão direta entre emoções positivas e a bioquímica do corpo. Ao
restabelecer o equilíbrio emocional e espiritual, o xamã fortalece as
capacidades inatas de uma paciente.

A ideia da cura xamânica explicada acima pôde ser encontrada de fato na fala da
pajé Zeneida Lima, em entrevista realizada em julho de 2010. Embora esta pajé não utilize as
mesmas palavras e nem encare da mesma forma a cura xamânica, a ideia intrínseca é a
mesma. Nessa entrevista, Zeneida Lima explica que “[...] o que eu transfiro [ou seja, a energia de
cura] à pessoa, com tudo que eu tô fazendo, ela tem que ter confiança em mim e acreditar que eu sinto
amor por ela e desejo que ela fique boa”.
A pajé explica em seu depoimento que a fé da pessoa é fundamental para que a cura
se realize, e que muitas vezes o pajé tem que primeiro “desbloquear” as energias da pessoa,
ou seja, acalmá-la, torna-la confiante no poder do pajé e que a pessoa deseje ser curada, para
que, somente então, a pajelança seja realizada e a cura tenha êxito.
47

O pajé, portanto, é aquela pessoa que tem o poder de curar doenças de causa física e
de causa espiritual ou mágica com o auxílio dos encantados. E os encantados ou caruanas, são
seres mágicos que vivem no fundo dos rios e florestas, e são detentores de poder e sabedoria.
Ambos são os eixos principais que compõem a Pajelança.
O xamã, de acordo com Ioan Lewis (1971, p. 58):

Pode ser uma pessoa de qualquer sexo, que dominou os espíritos e pode
controlar suas manifestações, caindo em estados controlados de transe em
circunstâncias apropriadas. (...) De fato, por seu poder sobre os espíritos que
encarna é que o xamã consegue tratar e controlar males causados por
espíritos patogênicos em terceiros.

A partir desta definição podemos denominar o pajé (tanto da pajelança cabocla como
da indígena) como um xamã, pois o mesmo possui a capacidade de controlar a possessão dos
espíritos ou forças mágicas em seu corpo com o intuito de curar os indivíduos que sofrem de
males causados por fatores mágicos ou não, além de ter a capacidade de ir a lugares onde
habitam os seres que o auxiliam em seus rituais.

2.3. O Encante e os Encantados

A crença nos encantados (também chamados caruanas ou companheiros-do-fundo) é


um dos pilares centrais da Encantaria ou Pajelança cabocla. São seres sobrenaturais, que
possuem poderes de cura ou maldição, vivem no fundo de rios ou no interior das matas.

São normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais; mas podem
manifestar-se de formas diversas. A partir dessas formas distintas de
manifestação, eles são pensados em três contextos, recebendo, por isso,
denominações diferentes. São chamados de bichos do fundo quando se
manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e
jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem
provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se
manifestem sob forma humana, nos manguezais ou nas praias, são
chamados de “oiaras”; neste caso, eles frequentemente aparecem como se
fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas
para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles,
permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas
que têm o dom “de nascença” para serem xamãs, quer sejam as de quem “se
agradam”, quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso,
são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-se nos
pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o
bem, sobretudo para curar doenças (MAUÉS, 2005, p. 7).

Sobre os companheiros do fundo, Galvão (1955, p. 94) explica que:


48

Companheiros são espíritos ou seres que se supõe habitar o fundo dos rios.
Descrevem-nos sob forma humana com a pele muito branca e os cabelos
louros. São conhecidos por nomes cristãos. Agem como espíritos familiares
dos pajés e são por estes “chamados” durante as sessões de cura. [...] O
companheiro se insinua a um noviço ‘entrando’ em seu corpo, seja durante
a gestação, nascimento ou mais tarde na vida, como foi o caso de Sátiro.
Como o indivíduo não sabe “ver” e lidar com esses familiares voluntários,
sofre cada vez que os companheiros se apossam dele. O iniciado depende de
um pajé experiente para “endireitar-lhe os companheiros no corpo”,
prepará-lo para receber os familiares, ensinar-lhe a “ver”. Entre os
companheiros que o iniciado recebe, um se destaca como o “chefe” dos
demais. A obtenção de novos companheiros é lenta e gradual. Além dos
companheiros do fundo acredita-se que o espírito de um índio pode
ocasionalmente tornar-se familiar de um pajé.

Sobre a crença no espírito de índio, Galvão observa que é provavelmente uma


influência dos cultos aos caboclos na umbanda, muito presente nos grandes centros urbanos.
Nas pajelanças onde se misturam elementos africanos e indígenas, os espíritos de “caboclos”
ou de “índios” têm função destacada. Viviane Barbosa, em “Maridos da Terra e Maridos do
Fundo: gênero, imaginário e sensibilidade no Tambor de Mina” (2008, p. 2), faz referência
aos seres chamados de marido do fundo, onde adotam o papel tanto de guias espirituais como
uma espécie de “parceiros conjugais”, além de representarem maior destaque dentre as outras
entidades.

O “marido do fundo” que aparece nas experiências de mulheres praticantes


do Tambor de Mina é uma entidade espiritual; pode tratar-se de um caboclo,
de um guia, de um encantado. Nos ritos celebrativos, sua presença se dá
como a de uma entidade comum e não propriamente como a de um “marido
do fundo”. Isto ocorre porque as obrigações para com ele diferem das
obrigações e rituais comuns empregados na religião. Trata-se de uma
entidade que diante de uma dada mãe ou filha-de-santo exerce também o
papel de marido.

Nesse caso, a mulher assume uma função imprescindível no sacerdócio, tão


importante quanto o homem, o inverso do que ocorre na pajelança exercida em alguns locais,
como Itapuá/PA.
Vicente Salles (1988, p. 191-193), ao citar Câmara Cascudo, aponta algumas
semelhanças entre contos africanos e indígenas, indicando influências da primeira cultura
sobre a segunda.

Hartt, contudo, chamou a atenção para semelhanças de alguns contos


indígenas, do ciclo do jabuti, com outros africanos. [...] (Cascudo) Notou
que a influência negra nesta mítica surge ainda no Mapinguari, duende
amazônico, recordando que entre os seres sobrenaturais das crendices
indígenas não há a menor notícia da antropofagia. Somente o Mapinguari,
49

como o Quibungo africano, afirma Cascudo, aparece comendo carne


humana. [...] Quanto ao Anhanga, mito zoomorfo, o mesmo autor julga-o de
influência aloctônica: “Esse nume, protetor, égide, guia e defensor da caça,
leva-me a suspeitar criação africana com adaptação posterior e confusão
natural com o preexistente Anhanga invisível”, e mostra, citando o
Vocabulário do idioma N’bunda, o substantivo caça, naquela língua
africana, que é n’hanga, e o verbo caçar, cu-nhanga, e caçador ri-nhangá.
[...] O bumba-meu-boi, na Amazônia boi-bumbá, não era um folguedo
comum, como tantos outros, profano-religiosos [...] era um folguedo
insólito, agressivo, que derivava frequentemente em baderna, com ação e
atuação de capoeiras.

E sublinha mais adiante afirmando que o mito da Iara e das mães d’água apresentam
influência preponderante da cultura africana. Salles (1988, p. 192) considera que:

[...] o modelo mais perfeito de convergências culturais na mítica amazônica


é provavelmente o da Iara: Sereia, Ondina, Loreley, Mãe d’Água, Iemanjá.
Iara é uma síntese. A influência indígena aparece fortemente apenas nos
seus desdobramentos colaterais: o Boto e certamente também a Cobra
Norato, Norato e Noratinho.

Figura 24

“Fascinação da Iara” (Pintura de Theodoro Braga, 1929. <Fonte:


www.dezenovevinte.net/bios/bio_tb_arquivos/tb_iara.jpg>. Acesso em 19/10/2012).
50

Salles (op. cit., p. 191) faz uma importante conclusão sobre a miscigenação e
influências culturais, sobretudo africanas, no universo mítico da Amazônia, afirmando que:

O processo de africanização em alguns mitos típicos não foi tão intenso na


Amazônia, como, por exemplo, na Bahia. Mas a mítica aborígine não ficou
isenta do contato e de convergências inevitáveis, sobretudo quando
verificamos certas analogias, uma soma de atributos semelhantes e que
muitas vezes resultaram na configuração de seres aparentemente distintos,
mas que se fundiram na mesma convergência.

Este processo ocorreu a partir de uma aproximação estabelecida entre o negro e o


caboclo que “solidários nas mesmas vicissitudes, nas mesmas lutas sociais, tenderiam a
aproximar seus deuses e dar certa unidade aos seus rituais” (SALLES, 2004, p. 20).
Muitas pessoas, incluindo pajés ou curadores, não reconhecem ou ignoram a
influência cultural africana sobre a cultura amazônica e a pajelança cabocla. Alguns pajés, que
conversei durante a pesquisa em Soure, afirmavam não “bater tambor” em seus rituais de
cura, apontando essa prática em outros indivíduos que também seriam curadores. A prática de
“bater tambor”, relacionada para esses curadores(as) à religiões de matriz africana, é algo
reprovado e criticado por eles. O fato do não reconhecimento da influência afro na pajelança
cabocla é paradoxal, pois mesmo que esses curadores afirmem não baterem tambor alguns
encantados, como José Tupinambá, Seu Tabajara e Mariana, que os auxiliam nos ritos de
cura, estão presentes também nas religiões afro-brasileiras, como Umbanda e Tambor de
Mina.
A respeito da cosmovisão na encantaria amazônica, Harris (2004) afirma que é
dividida em três mundos ou domínios: o Céu, habitação de Deus e dos santos, fica “em cima”;
o Intermediário, que é o mundo dos homens, do mundo material e profano, fica “no meio”; e
o Fundo, isto é, a profundeza dos rios, da terra ou das matas, é habitação dos encantados e
caruanas, fica “embaixo”. O mundo dos homens seria interligado pelo Céu e o Fundo, e os
pajés, xamãs, mestres ou sacerdotes são o eixo de comunicação entre essas esferas.
A Água possui uma singular importância na cultura e mitologia ameríndia. A partir
dos estudos de Junqueira na aldeia dos Kamaiurá, é possível compreender o papel que as
Águas (de caráter mítico) desempenham nas culturas indígenas e cabocla amazônica, haja
vista que as águas também exercem uma importante função biológica, econômica e social na
vida dessas sociedades. Em seu artigo, Junqueira (2004) cita uma passagem de Villas Bôas
acerca de um mito de criação do povo indígena:

Foi Mavutsinin quem esculpiu em madeira os primeiros homens


(Junqueira, 1979, p. 20); em outra versão, ele que vivia sozinho, sem
51

mulher, sem parente, resolveu se casar com uma concha. Quando o filho
nasceu ele o carregou consigo, largando a mulher que voltou para as águas
da lagoa. “Nós, dizem os índios, somos netos do filho de Mavutsinin”
(VILLAS BÔAS, 1970, p. 55 apud JUNQUEIRA, 2004, p. 4).

É possível perceber também uma interessante influência de culturas pré-históricas


portuguesa, na concepção sobre o encante e, principalmente, os encantados. Galvão (1955, p.
95) escreve um interessante relato de uma jovem que teria “viajado” para o fundo junto com o
pajé Lúcio, e em sua viagem ela:

[...] deparou-se em meio de uma cidade em que as casas brilhavam como se


fossem de ouro. A gente que andava nas ruas era muito “alva e bonita”.
Lúcio a conduziu até a casa da festa. Advertiu-a que nada aceitasse da
comida que iam lhe oferecer, pois se provasse um pedaço que fosse, ficaria
para sempre no “reino encantado”.

A aparência dos encantados, de pele alva (muito branca), bonita e às vezes


apresentando cabelos loiros, as casas brilhando a dourado e a fartura de comida e outros bens,
é uma evidente alusão à ideia da sociedade e mundo europeus que tinham (e em certo ponto
ainda tem) o caboclo amazônico.
É possível também estabelecer paralelos entre algumas lendas de origem pré-cristã
do imaginário europeu com a concepção do Encante na pajelança. Mulheres-fadas que se
apaixonam por homens mortais, homens que viajam a um mundo mágico além do mar onde
habita um povo feliz, belo, próspero e mágico, ilhas que existem sob o mar e que durante a
noite emergem à superfície, cidades que são tragadas pelas águas depois de transgredirem
alguma ordem social, natural ou cósmica (BARROS, 1994). Enfim, estes são pequenos
exemplos apenas para ilustrar que é muito provável que tenha ocorrido influência de
cultura(s) pré-cristã(s) da Europa, imprimindo alguns traços nos portugueses, estes por sua
vez nos indígenas, e finalmente no caboclo. Assim como as culturas africanas também
imprimiram traços culturais no universo simbólico da pajelança.
Toda esta amálgama de crenças, práticas e costumes, como bem escreveu Galvão
(1955), oriundos de religiões e culturas diferentes, são, sobretudo, maneiras de explicar e
enxergar o universo em que esses indivíduos estão inseridos. Em cada lugar ou comunidade a
pajelança se apresenta de formas distintas, embora também apresente aspectos comuns. À
medida que compreendemos como essas práticas e crenças da pajelança se revelam em várias
localidades da Amazônia, compreendemos também as múltiplas faces da cultura regional. E
ao conhecermos a cultura da qual fazemos parte, conhecemos a nós mesmos.
52

2.4. A Mulher como Pajé na Amazônia

Em alguns estudos (MOTTA-MAUÉS 1993; VILLACORTA, 2000;


CAVALCANTE, 2008) foi observado que em certas localidades amazônicas a mulher é
restrita de ser pajé, ou que no mínimo sofre interdições que geralmente o homem não sofre.
Em outras localidades, porém, encontram-se mulheres pajés consideradas mais poderosas até
que os homens pajés. E em outras situações, é mais comum encontrarmos curandeiras,
benzedeiras e parteiras, sendo esta última uma função exclusiva do sexo feminino.
As interdições relacionadas a restrição da mulher na pajelança giram, muitas vezes,
em torno dos ciclos fisiológicos femininos, e sobretudo, sobre o sangue menstrual e os
simbolismos a ele atribuídos. A população considera que a mulher não consegue controlar os
seus ciclos biológicos, e por essa razão não controlaria os seres e forças que nela atuariam. No
período em que a mulher se encontra menstruada, diz-se que ela está “fraca” e não pode
incorporar (CAVALCANTE, 2008). Deve aguardar que a menstruação pare, para voltar às
atividades normais da pajelança. Ou então, ela deve aguardar até a menopausa, quando se
“hominiza” (expressão empregada por MOTTA-MAUÉS, 1993), isto é, se assemelha ao
estado natural masculino, sem ciclos menstruais, para então exercer seu dom.
Koss (2004) escreve que a palavra menstruação quer dizer “mudança de lua”, o que
evidencia a relação da ciclicidade da natureza com o próprio corpo feminino, além de
observar um dado amplamente conhecido de que o ciclo menstrual dura em torno de 28 a 29
dias, o mesmo período do ciclo lunar. Koss (2004, p. 14) escreve que:

O que caracteriza o sangrar da mulher é a sua ciclicidade. Um conjunto de


eventos fisiológicos que iniciam e terminam em um mesmo acontecimento:
o fluxo sanguíneo, a menstruação retorna regularmente, como as estações.
Nessa sua regularidade, ela está associada com o primeiro contar do tempo,
seja o tempo da coleta e da caça, seja o tempo da semeadura e da colheita,
seja o tempo da procriação e da gestação. E assim como o tempo, está
também intimamente conectada com a lua, a cujo movimento cíclico
respondem os oceanos, o ritmo cardíaco e o próprio pulsar da vida, em seu
movimento de expansão e contração.

A autora defende que em algumas sociedades antigas, em que a mulher exercia certa
importância no contexto social e religioso, o sangue menstrual era símbolo de poder e no
momento em que a mulher encontrava-se menstruada era capaz de intermediar forças
diferentes ou conectar-se com mundos diferentes, pois a mesma estava em uma condição
liminar.
53

Seja no parto, seja na menstruação, é no momento da passagem, quando


deixa o interior do corpo da mulher e se manifesta no mundo exterior, que o
poder contido no fluxo sanguíneo lança a mulher numa condição liminar, em
que vida e morte, consciente e inconsciente se tocam. Nesses momentos, o
véu que separa os mundos é tênue, muito sutil, possibilitando sua
transposição. Por essa razão, as xamãs precipitam sua menstruação antes de
iniciar um trabalho poderoso. Pela mesma razão, as profetizas e sibilas da
Antiguidade Clássica eram jovens mulheres menstruando. [...] A habilidade
para mediar as forças entre os mundos está intimamente relacionada com o
menstruar (KOSS, 2004, p. 15).

Essa situação liminar é provocada em razão de serem atribuídos ao sangue menstrual


poderes mágicos ligados tanto à vida quanto à morte, e resulta geralmente em diversas
restrições sociais e religiosas para a mulher, que se diferenciam em cada sociedade.
A “ambiguidade feminina” criada pela liminaridade durante a menstruação se
encontra não apenas no Xamanismo e pajelança cabocla, mas em diversos outros contextos
religiosos, como no Judaísmo (com as intensas interdições à mulher menstruada expressas no
Levítico) e na tradição Mina Nagô, como atesta a fala de uma mãe-de-santo de
Abaetetuba/PA:

Na nossa religião o sangue menstrual é um sério problema! Ele pode acabar


com a força da entidade, pode acabar com ritual! Não, uma filha de santo
menstruada só prejudica, ela nessa condição não deve nem vir na casa !
(FARO & SILVA, 2011, p. 118).

Motta-Maués (1993) realizou um estudo em Itapuá, vila de pescadores em Vigia/PA,


acerca do papel da mulher na comunidade e na religião, e o quanto este papel está relacionado
simbolicamente à fisiologia e ao ciclo biológico da mulher. A autora afirma que a mulher é
vista como portadora da “desordem”, devido aos seus ciclos biológicos (confusos e
incompreendidos pela população masculina itapuaense), enquanto que o homem é o portador
da “ordem”. Motta-Maués verifica a existência de áreas definidas como de domínio feminino
(a ‘roça’ ou agricultura e a religião católica) e masculino (a pesca, a caça e o xamanismo).
Cavalcante (2008), por sua vez, aponta que em Condeixa (Ilha do Marajó) existe um
número considerável de mulheres trabalhando como meuans, categoria que exerce uma
assistência ao pajé que a “endireitou”, não atuando ativamente na pajelança. A maior
dificuldade de mulheres se tornarem pajés é a não aceitação por parte da família,
principalmente do marido, que não aceita a esposa se “libertar” durante os trabalhos, ou seja,
beber e fumar. Falar do feminino na concepção desses indivíduos é lembrar da ideia de
54

mulher enquanto um ser dócil, mãe dedicada e esposa recatada, indício de um forte sistema
patriarcal, em que a mãe e os filhos são figuras subordinadas e dependentes da figura do pai.
No município de Colares (PA), Villacorta (2000) observou que mesmo sendo
limitado o exercício do gênero feminino na pajelança, havia mulheres pajés. Porém, elas eram
discriminadas por parte da sociedade e chamadas de Matinta-Perera, feiticeiras do imaginário
amazônico que, segundo a autora, mescla elementos mitológicos da cultura africana (as
“mulheres do pássaro da noite”), pré-judaica (Lilith) e do cristianismo medieval (a bruxa).
Acredita-se que a matinta é uma mulher ora de aparência idosa e feia, ora jovem e bela, que
carrega consigo um fado, herdado de família (de avó para neta), e que se contrariada ou
desrespeitada pode lançar um feitiço, doença ou desgraça para um indivíduo. Anda sempre
acompanhada de um pássaro, que com seu assobio anuncia a presença da bruxa.
No estado do Acre em 2005 duas mulheres indígenas da etnia Yawanawá, foram
iniciadas pajés. Raimunda Putani Yawanawá e Kátia Hushahu Yawanawá, naquela época com
idades de 27 e 26 anos, respectivamente.

Figura 25

As pajés Yawanawás (Fonte: <http://erapanuy.blogspot.com.br/2011_07_01_archive.html>. Acesso em


19/10/2012).

A primeira foi uma das cinco mulheres premiadas pelo Senado Federal naquele ano,
na 5ª edição do Diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz, no Dia Internacional da Mulher. A
notícia saiu na Folha do Meio Ambiente, em abril de 2005, pelo jornalista Silvestre Gorgulho.
Ambas passaram por um período de iniciação, onde ficaram um ano isoladas na
mata, obrigadas a fazer abstinência sexual, comer apenas alimentos crus e beber apenas uma
bebida especial à base de milho. Segundo informações na reportagem, essas mulheres sabiam
das dificuldades e preconceito que enfrentariam, dentro e fora de sua aldeia, pois a tradição da
pajelança era reservada, até então, aos homens. Tinham consciência do paradigma que
55

estariam quebrando, e mesmo assim elas não temeram, como fala a pajé Raimunda
Yawanawá:

Não existe na história do nosso povo que uma mulher tenha mexido na
planta sagrada, o Rare. Nunca nenhuma mulher foi à luta para ser pajé.
Quem sempre era pajé eram os homens. A mulher é sempre a dona de casa,
faz a caiçuma, cria os filhos, está sempre do lado do esposo. Pra gente ir para
essa outra parte da nossa cultura, do nosso conhecimento, foi tipo quebrar
um tabu. Por isso que levamos ao pé da letra o cumprimento da dieta.
Muitos, quando fomos fazer a dieta, disseram que nós não aguentaríamos
com o argumento de que mulheres têm muitos desejos. Está com um ano e
dois meses que não temos relação com homem14.

O Rare é uma planta muito sagrada para os Yawanawá, e somente os pajés ou os que
pretendem se tornar pajés podem ter contato, a nível físico e espiritual, com a planta. Nas
experiências místicas que as pajés tiveram, a figura do feminino era marcante e representava o
espírito do Rare e da Jibóia, como explica Kátia Putani:

O Rare é uma planta muito sagrada. A partir do momento que a gente come,
a gente já planta ele dentro da gente. A partir desse momento, a gente já
passa a ter o conhecimento e o poder do Rare. [...] Podemos tocar numa
pessoa e dizer para ela que vai ficar boa. As nossas palavras são muito
sagradas. Ele é uma planta, mas é espírito. Ele também tem uma mulher.
Sempre é uma mulher tanto nele quanto na jibóia. Nos nossos sonhos é
sempre uma mulher que traz o conhecimento. Ele é muito poderoso 15.

Dessa forma, as visões e sonhos com a “mulher que traz o conhecimento” reforçam a
ideia (e a defesa) das pajés Yawanawá de que a mulher tem tanto poder e capacidade em ser
pajé quanto os homens, pois as próprias forças sagradas se manifestam na forma de uma
mulher.
Em algumas mitologias observa-se a existência de mitos que contam o surgimento do
xamanismo associado à mulher. Na América Central, há um mito que conta que a mulher
nasceu ao mesmo tempo em que o primeiro nagual (xamã), e por isso ela é considerada tão
capaz quanto ele, e às vezes até mais temível, no exercício do xamanismo. Sobre mulheres
xamãs, Montal (1986, p. 25) cita Dom Juan que diz que “de modo absoluto, elas levam ligeira
vantagem”. E o próprio processo de iniciação das mulheres segue as mesmas etapas que dos
homens no xamanismo.

14
A matéria sobre essas pajés Yawanawá e a entrevista com elas está disponível em
<http://altino.blogspot.com.br/2006/04/primeira-paj-brasileira.html>. Acesso em 15/08/2012.
15
Este relato, assim como a entrevista completa com as pajés pode ser encontrada no site referido na nota
anterior.
56

Retornando mais no tempo, Tedlock (2008) escreve que em diversas culturas da Era
do Gelo, a mulher exercia papel de grande importância, não de primazia, no xamanismo.
Escavações arqueológicas no sítio do Alto Paleolítico chamado Dolní Vestonice, na
República Tcheca, encontraram dois ossos da escápula de um mamute posicionados para
formar os dois lados de um teto de resina de pinheiro. Embaixo havia um esqueleto humano, e
na terra que o cobria, bem como nos ossos, viam-se traços de ocre vermelho, indicando que o
corpo fora pintado de vermelho antes de ser enterrado.
No entanto, esse túmulo não era de uma pessoa comum, pois encontraram também a
ponta de uma lança de sílex próxima a cabeça do cadáver e o corpo de uma raposa posto em
uma das mãos. Segundo a equipe de arqueólogos que estudaram o sítio, a raposa era um
indício claro de que a pessoa no túmulo fora um xamã. Contudo, foi uma surpresa quando a
análise do esqueleto revelou que o xamã em questão era uma mulher. Anos mais tarde, foi
descoberto próximo do túmulo da xamã uma cabana de terra batida contendo ossos estriados e
um forno grande com milhares de pedaços de argila cozida, alguns na forma de pés humanos,
mãos, cabeças, e outros eram fragmentos de figuras de animais.
A partir dessas escavações e estudos publicados por Bohuslav Kamí, o líder da
equipe de arqueólogos, Tedlock (2008, p. 14) defende que:

Além de o esqueleto mais antigo conhecido de um xamã ser o de uma


mulher, ela é também a primeira artesã de que se tem notícia que trabalhava
com argila e a endurecia com fogo. Não fazia utensílios para casa, e sim
talismãs ou figuras de algum tipo, talvez para usá-los em seus rituais e curas
espirituais.

Esta autora argumenta que apesar das evidências da linguagem, dos artefatos,
representações pictóricas, narrativas etnográficas e relatos de testemunhas, a significativa
função das mulheres nas tradições xamanísticas de diversas culturas e épocas foi obscurecida
e negada, e o fato de que “corpos e mentes femininos são especialmente dotados do poder de
transcendência foi ignorado” (TEDLOCK, 2008, p. 14).
Diante disso, então, como a mulher em várias sociedades teve sua participação
limitada e às vezes subjugada na vida religiosa? Alguns estudos na área da antropologia vêm
buscando solucionar essa questão. Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”
(1999) apresenta importantes considerações sobre a construção cultural dos comportamentos e
papéis femininos e masculinos (o termo gênero surge somente alguns anos depois do seu
estudo), a partir de sua etnografia em comunidades da Nova Guiné. Esta autora lança luzes no
caminho da pesquisa sobre gênero, demonstrando que este é muito mais um fator construído
57

pela cultura, logo é relativo e suas configurações mudam de acordo com a sociedade em foco,
do que um fator biológico, ou seja, universal, como alguns estudiosos afirmavam até o século
XIX.
Rita Segato (1998) retoma essa ideia e afirma que o gênero não é algo observável,
pois é abstrato, ou seja, sua construção encontra-se muito mais na mentalidade social do que
necessariamente no corpo humano. Para Segato (1998), o gênero se transpõe, é complexo, e o
sujeito deve ser considerado uma composição mista, plural e não um ser monolítico, definido
por características “femininas” ou “masculinas”, que na realidade variam conforme o contexto
histórico e cultural, ou seja, o que é considerado característica feminina numa sociedade pode
ser considerado masculina em outra. Nesse sentido, podemos perceber algumas razões
(construídas socialmente) que tornam ora a mulher restrita ora participativa na atuação do
xamanismo.
Em Soure, é possível observar que as mulheres não sofrem extremas restrições em
serem pajés e nem precisam esperar até a menopausa para atuarem na cura, no entanto, no
período em que estão menstruadas as mulheres não podem realizar rituais de pajelança, pois
acreditam que o corpo está “impuro” para receber os caruanas, como afirmou Zeneida Lima
em entrevista, ou que “as correntes estão quebradas”, segundo o relato de D. Roxita. Apesar
de alguns estudos demonstrarem a dualidade do poder da mulher, representado pelo sangue
menstrual, de caráter ora construtivo ora destrutivo, é o caráter negativo (destrutivo) que
geralmente prevalece na ideia do(a)s pajés.

2.5. Pajelança e Modernidade

Incensos, meditação, cromoterapia, cristais, música estilo nova era (new age),
alimentação natural, visão holística do mundo, atitude ecológica... Todos esses elementos são
conhecidos dentro de muitos dos novos movimentos religiosos e daquilo que se convencionou
chamar de Nova Era. Acontece que esses aspectos são apenas “a ponta da ponta de um
iceberg”, pois fazem parte de um fenômeno social, em todos os seus ângulos (cultural,
religioso, intelectual, econômico, artístico...), maior, complexo e que ainda se apresenta difícil
de ser compreendido em sua totalidade pelos estudiosos.
Estamos vivenciando a plena modernidade ou o que alguns estudiosos chamam de pós-
modernidade, e todos os prós e contras desencadeados por elas. Na verdade, estamos
presenciando embates entre a primeira e a segunda, pois de acordo com Marilena Chauí
(1992), ambas não podem ser entendidas separadamente, já que a pós-modernidade é uma
58

reação ou resposta a modernidade, e correspondem a processos sociais, políticos, econômicos


e culturais que se apresentam em nossa sociedade atual. Chauí (1992, p. 346) explica que a
modernidade:

[...] nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a racionalidade;


teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditado no progresso linear da
civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no
planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria
apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica
como sinais da universalidade. Em contrapartida, o pós-modernismo
privilegiaria a heterogeneidade e a diferença como forças liberadoras da
cultura; teria afirmado o pluralismo contra o fetichismo da totalidade e
enfatizado a fragmentação, a indeterminação, a descontinuidade e a
alteridade, recusando tanto as “metanarrativas”, isto é, filosofias e ciências
com pretensão de oferecer uma interpretação totalizante do real, quanto os
mitos totalizadores [...].

Chauí (1992) também afirma que a modernidade recusa ou afasta a perspectiva de um


mundo regido por forças espirituais e dessa forma dessacraliza o mundo. Em suas palavras:

A modernidade afasta a ideia (medieval e renascentista) de um universo


regido por forças espirituais secretas que precisariam ser decifradas para que
com elas entremos em comunhão. O mundo se desencanta – como escreveu
Weber – e passa a ser governado por leis naturais racionais e impessoais que
podem ser conhecidas por nossa razão e que permitirão aos homens o
domínio técnico sobre a Natureza (CHAUÍ, 1992, p. 350).

Se por um lado a modernidade desencanta o mundo, o teoriza, o simplifica e


racionaliza, por outro a pós-modernidade procura reencantá-lo, e nesse sentido encontramos a
profusão de expressões religiosas, tradicionais e modernas, que buscam nas culturas e
religiões do passado a “religação” da humanidade com a natureza, o divino ou outra
concepção semelhante do sagrado.
Guerriero (2006) aponta que nos últimos anos as fronteiras entre as áreas de saber
estão cada vez mais fluidas, ou seja, a ciência, a religião, a arte etc., trocam e compartilham
conhecimentos, discursos e ideias entre si. Dialogam, mas sem se confundirem.
Estamos diante de um fenômeno ou movimento que abala de alguma forma as bases
do paradigma vigente, de nossas concepções de mundo e valores estabelecidos sobre diversas
áreas e assuntos, como gênero, educação, religião, dinheiro, família, Estado etc. A influência
desse movimento se estende aos mais diversos setores da sociedade, e às vezes pode parecer
invisível, pequena, e outras vezes significativas e grandiosas. Uma das coisas que foi
alcançada pela influência desse movimento foi a pajelança cabocla, embora ainda não seja
59

uma influência em grandes proporções, pois se restringe a alguns casos ou pessoas, como
Zeneida Lima e mais evidentemente Roseana Gil, que atuou em Colares e Belém, como
Villacorta descreve em sua tese, “Rosa Azul: uma xamã urbana na metrópole da Amazônia”
(2011).
Os elementos citados no início deste tópico, comuns dos novos movimentos
religiosos e nova era, foram comuns também na prática da pajé Roseana, ou Rose, como era
mais conhecida. Somados a estes, a curadora se utilizava de defumação, banhos com ervas e
incorporação de encantados nos ritos de cura, além de apresentar crenças marcadamente
provenientes do espiritismo kardecista, expressão religiosa bastante difundida no Brasil.
Zeneida Lima, por sua vez, não apresenta com tanta evidência tais elementos, a não ser a
atitude ecológica e a concepção holística do mundo, que consiste na ideia de que tudo e todos
(ser humano, natureza, divindade) estão interligados. Além disso, o uso da tecnologia e outras
ferramentas de comunicação são presentes em sua atuação na pajelança, como a mídia e a
publicação de livros de sua autoria.
A quantidade de pesquisas sobre esse tema vem crescendo nos últimos anos, embora
ainda sejam poucas, visto que ainda não são muitos os pajés caboclos (e indígenas) que
tiveram suas práticas embebidas pela nova era. Mas o estudo de Villacorta (2011) e outros
que pesquisam esse tema, têm se mostrado bastante relevante e nos apontado a influência da
modernidade sobre as religiões, ou as facetas que as religiões adquirem a partir da
modernidade. Alguns estudiosos, como Guerriero (2006), afirmam que não estamos
testemunhando exatamente um surgimento de novas religiões, mas de novas maneiras de
vivenciar as religiões, e consequentemente o olhar dos estudiosos deve ser diferenciado e
atencioso sobre tal fenômeno, que nos surpreende a cada dia e toma as mais diversas e
complexas características.

2.6. Encantaria Amazônica

Após realizar esse percurso pelos conceitos, categorias, ideias e características da


religiosidade amazônica, especialmente no que se refere à pajelança, chegamos a um ponto
importante neste trabalho. Proponho aqui uma nova concepção de Encantaria, que entendo ser
um universo de mitos, símbolos, crenças, práticas, seres (ou seja, entidades, divindades,
encantados) que engloba diversos sistemas de crenças em si, entre eles a Pajelança, a
Umbanda e o Tambor de Mina, expressões religiosas fortemente presentes no território
amazônico e que, apesar das diferenças evidentes, compartilham alguns elementos, como a
60

crença nos encantados, práticas de cura (banhos, remédios a base de ervas) e a possessão
ritualística.
Além disso, o próprio termo, encantaria, é presente nessas e noutras expressões
religiosas, sendo bastante utilizado ao se referir principalmente ao mundo das entidades e
encantados, compreendido como uma esfera ou dimensão paralela ao mundo físico, onde não
há morte, doença nem medo, e a lógica do espaço-tempo não é a mesma que em nosso
mundo. Encantaria, portanto, é um termo e uma ideia bastante comum entre diversas religiões
e expressões culturais na Amazônia, entretanto, ainda é uma noção difusa e complexa para os
estudiosos dessas religiões. Não é meu intuito definir a Encantaria como uma religião que
engloba outras, tal como o cristianismo que abrange diversas vertentes e igrejas. E sim,
entender a Encantaria como um conjunto de crenças, práticas, mitos e ideias, não
institucionalizadas, porém comuns a várias manifestações religiosas e culturais, construídas
ao longo de toda uma história da região amazônica. A Encantaria, com seus encantados,
“cabocos”, mundos submersos ou escondidos na mata, o poder das plantas, a devoção aos
santos, a crença em Deus e nos mistérios do fundo das águas, torna-se a fonte cultural,
simbólica, ideológica de onde bebem as mais variadas expressões culturais e religiosas
presentes na região, tais como a Pajelança, a Umbanda, Tambor de Mina, o culto da Jurema,
Santo-Daime e demais religiões ayahuasqueiras. Portanto, falar de imaginário amazônico é
falar de Encantaria, e vice-versa.
Nessa concepção a Encantaria é algo extremamente fluido, que percorre diversas
expressões religiosas. Tão fluida como os próprios rios e igarapés do território amazônico,
que se estendem por vastas áreas e alcançam as mais inimagináveis regiões. Pensar a
Encantaria dessa forma é compreender a Amazônia e as religiões geradas ou acolhidas na
região com um olhar mais abrangente, contudo, sem ser limitado, pois nos revela a
complexidade do fenômeno que estamos lidando.
61

3. A Pajelança em Soure e a Presença da Mulher na Encantaria.

Em cada lugar, cidade ou comunidade amazônica, a pajelança apresenta


características peculiares. É possível observar várias semelhanças entre as práticas e crenças
de pajés de diferentes lugares, mas ainda assim perceberemos diferenças evidentes. Não
somente de um lugar para outro, mas também de pajé para pajé notam-se diferenças entre suas
práticas, pois a forma como um pajé realiza seus rituais de cura ou apresenta suas crenças
depende de vários fatores, como a sua formação na encantaria, seu contexto social, histórico,
religioso e a própria construção de suas práticas de cura.
Neste capítulo serão abordadas descrições e análises a respeito de três pajés
pesquisadas, que são D. Flor, D. Roxita e D. Dica (de Salvaterra). Além dessas, abordarei um
pouco sobre o já falecido curador Zé Piranha, a partir dos depoimentos de sua filha, D. Olga,
que assistia e auxiliava seu pai durante as curas, e é a pessoa que mantém atualmente a
memória deste curador, lembrado ainda hoje por muitos moradores como um famoso pajé de
Soure.
Os relatos e depoimentos dessas pajés são o principal material de análise, além de
observações realizadas em um rito de cura de D. Roxita e em eventos na escola de Zeneida
Lima (que será abordada com mais detalhes no capítulo seguinte), durante as pesquisas de
campo realizadas em períodos curtos entre os anos de 2009 e 2011.
As falas e relatos das mulheres curadoras serão constantes ao longo deste capítulo,
mais do que minhas interpretações e intervenções acadêmicas. Penso que deixar que suas
falas “falem” por si só e que suas memórias, vida e representações transpareçam por meio de
seus depoimentos nos proporcionam um melhor conhecimento acerca da pajelança do que
extensas análises que possamos realizar.
Dos relatos dessas pajés, emergem crenças e práticas de cura que nos fazem
compreender um pouco esse universo da encantaria amazônica, que abrange a pajelança
cabocla, e que ainda é pouco conhecida pela grande população da região e do país. Essas
mulheres, como veremos, contam-nos não só uma parte de sua trajetória de vida, mas também
suas crenças, saberes e conhecimentos da medicina tradicional, gerados nas imbricadas
relações entre o ser humano, cultura e natureza.
62

3.1. D. Flor

Conheci D. Flor durante a pesquisa realizada em abril de 2010, quando depois de


uma tentativa frustrada de entrevistar a pajé Zeneida Lima, minha tia Merian (que me recebeu
em sua casa durante aquela pesquisa) e algumas de suas amigas me disseram que havia uma
senhora que possuía um grande conhecimento de ervas, e talvez pudesse me ajudar no
trabalho.
Acompanhada de minha tia, fui à casa de D. Flor, cujo nome sugere curiosamente
sua relação com as plantas, para conhecê-la e marcar um horário para conversarmos. Sua casa
fica distante do centro da cidade, num bairro em que as ruas são de terra batida ou barro e o
mato é uma presença constante. D. Flor é uma senhora simpática entre os 60 e 70 anos de
idade, magra, cabelos ondulados e grisalhos abaixo dos ombros, altura mediana, mora com o
esposo e os filhos em uma casa simples e com terreno grande, repleta de plantas e flores que
ela própria cultiva.
Sua fonte de renda é, principalmente, vender plantas que são utilizadas tanto para
decoração quanto para fins medicinais (chás, banhos), e vender redes de pesca, que ela mesma
produz junto com seu esposo. Ela apresentou um pouco de resistência sobre eu tirar fotos
suas, o que me impediu de obter qualquer registro visual dela.
Em seu relato ela conta que aprendeu desde moça a lidar com as ervas e que sua mãe
a ensinava os mais variados tipos de plantas e suas funções curativas. Ela afirma que é um
dom de família, herdado de seus bisavós. Conta também que muito de seu conhecimento vem
da própria intuição, ela ouve ou de alguma forma sabe que tipo de erva serve para
determinada doença, e que procedimento deve ser feito. Quando se sente insegura ou não sabe
que planta utilizar para tratar uma doença, ela se “embrenha” no mato, caminha entre a
vegetação até que sinta ou intua que uma planta lhe “chama”.
Ao perguntar-lhe se ela trabalha com pajelança ou se define a si mesma como pajé,
ela responde que não, e aliás, nem acredita que existam mais pajés. Para D. Flor:

[...] antigamente eram os pajés, hoje em dia não são mais. Se você andar no
mundo todo é raro você encontrar um pajé, como de antigamente. Hoje em
dia é batuqueiro, pai de santo, pai disso, pai daquilo; então antigamente eram
os pajés, e aí o que acontece, tem muitos que passam o remédio até errado, é
mais pelo dinheiro, hoje em dia é mais pelo dinheiro (Entrevista em abril de
2010).
63

Ela afirma que o que ela faz são remédios naturais, que não incorpora encantado e
nem balança maracá. Contudo, admite que quando sente necessidade, recorre aos cabôcos ou
encantados e realiza alguns “trabalhos” a eles pedindo auxílio, mas de forma muito pessoal e
individual. Esse fato nos faz pensar sobre a própria concepção de pajé para os indivíduos de
Soure, ideia essa que varia de pessoa para pessoa. Para D. Flor, pajé existia entre os índios,
em tempos antigos, e não numa sociedade atual, urbanizada e cabocla, “sem índios”.
Entretanto, para D. Roxita, como veremos mais adiante, pajés existem sim e fazem parte de
um contexto não só indígena, pois ela mesma se considera pajé.
Seja qual for o termo utilizado por essas pessoas, a ideia essencial é a mesma: pajé
ou curador é aquele que possui o conhecimento e o dom da cura e o poder de se comunicar
com os encantados e espíritos. Curar é, portanto, a sua maior função; função esta cujo caráter
é mais social do que religioso (no sentido institucional, relacionado à religião), pois pajelança
cabocla não é considerada uma religião, e sim um complexo de práticas e crenças de cura.
D. Flor defende a importância da cura através das plantas, pois afirma que antes dos
médicos e cientistas, eram os curadores e as parteiras responsáveis pela saúde das pessoas. A
dificuldade de se locomover a um grande centro urbano, como Belém, em busca de
tratamento especializado faz com que muitas pessoas procurem o pajé ou curador, ao invés do
médico. Como explica D. Flor:

Então a gente vive aqui com as plantas naturais, com o remédio natural. E
aqui é um interior, se uma pessoa fica doente seja de pneumonia, de qualquer
problema sério, aí ele vai pro médico e o que o médico faz? Encaminha logo
pra Belém, e a gente, meu amor, não tem condições... Se for caso de vida ou
morte, vai morrer, porque nós não temos avião, o navio não pode chegar lá
dentro num piscar de olhos, e como já aconteceu, o paciente morre mesmo, é
melhor ficar em casa e morrer, porque não vai ter jeito. Então, a gente
prefere logo ir fazendo o tratamento. Olha, eu ponho a folha do limãozinho,
ou limãozinho na casca, tempera, faz o chá dele com alho e toma, fica uma
coisa relaxante, pode pegar o galho da cidreira, e fica uma coisa relaxante e
você pode tomar em qualquer mal estar, ou problema de pressão, aquilo vai
lhe dar um retorno. (Entrevista em abril de 2010).

D. Flor defende a importância de que qualquer pessoa deve ter o mínimo deste
conhecimento (dos remédios naturais, das plantas que curam), para em casos de emergência
ela saber o que deve fazer.

Então a gente tem que saber viver, sobreviver e conhecer, isso é muito
importante, porque se você não conhece nada, como é que você vai poder
reagir no ato que você se achar sozinho com seu amigo, com sua amiga, ou
mesmo com seu pai, mãe, irmão. Se der algum problema e você saber qual é
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o problema e não ter o remédio ali. Por exemplo, uma picada de cobra, a
japamela é muito boa, sim senhora. Se uma pessoa for picada por cobra e
chegar em casa, é só você pegar a japamela, você soca a japamela branca ou
qualquer uma, mas a branca ainda é superior, aí você bate bem batida ali,
pega a folha e senta em cima, ela puxa todo o veneno (idem).

Além dos chás e banhos, D. Flor também faz “óleo de bicho”, feito à base de um
bicho ou larva que dá no interior do caroço de tucumã 16 ou da andiroba, que alega ser eficaz
na cura de câncer, como o câncer do cólon do útero, como ela receita:

[...] Eu trabalho com óleo de bicho, que é do caroço do tucumã, andiroba...


Já tá chegando a época. É férias do meu marido eu vô pra praia juntar e vô
pra dentro da mata e vô montar os xaropes, agora é muito perigoso porque dá
muita cobra, muita cobra perigosa, mas só que a gente procura espantar elas,
sair fora. Então, o óleo de bicho no câncer, se for um câncer de útero, aqui
no cólo do útero, é só você pegar uma seringa, quando for à noite, seu último
banho, aí você pega, enche aquela seringa, aí você coloca aquele líquido,
você já deixa na calcinha, um paninho e você deixa ali, aplica e coloca as
pernas pra cima e deixa entrar pra dentro da sua vagina. Isso vai pra dentro
do cólo do útero, ele vai fazer o trabalho, você pode vestir sua calcinha que
depois ele vai descer. Quando for no outro dia pela manhã você toma uma
colher de chá, é uma maravilha, você toma, toma seu banho, uns 10 minutos
depois você toma seu café que é pra não cortar o efeito. Você pode fazer isso
uns oito dias, depois você vai e bate uma ultrassom e vê se tem alguma
coisa, se não tiver, mais uma semana você faz a mesma coisa (ibdem).

Outros tipos de problemas de causas mágicas ou “estranhas”, também podem ser


curados por meio das plantas, como a inveja ou mau-olhado. D. Flor relata que:

Não há feitiço pior no mundo do que o olho, é pior do mundo. Tem pessoas
assim, então a gente tem que de vez em quando fazer um banhinho, basta
você pegar um pau da angola, um puracá, um abre-caminho. Já teve gente
que matou minha pimenteira, limoeiro meu, matou um monte de coisa
(Entrevista em abril de 2010).

D. Flor afirma não cobrar pelos remédios que ensina, pois “quando você se oferece
de coração, você está fazendo muita coisa, você tá fazendo um bem que você não sabe o
tamanho que é. Se é de coração, é maravilhoso”, assim ela explica.
Quando lhe perguntei se havia alguém para quem ela estivesse transmitindo esses
conhecimentos ou saberes de cura, D. Flor lamentou, e respondeu que gostaria de repassar a
sua filha mais velha tal conhecimento, mas esta demonstrava pouco ou nenhum interesse. A

16
D. Flor não explicou com mais detalhes como e do quê seria feito o “óleo de bicho”, mas segundo uma
explicação da Prof.ª Dr.ª Taissa Tavernard durante a qualificação desta dissertação, realizada em junho de 2012,
o “óleo de bicho” seria feito a partir de um bicho, uma espécie de larva, que surge no interior do tucumã.
65

curadora teme que esse conhecimento se perca com ela, e não sobreviva nem mesmo para a
sua própria família.
Além de D. Flor, outra mulher também exerce práticas e rituais de cura em Soure,
que é D. Roxita.

3.2. D. Roxita

Tive a oportunidade de entrevistar duas vezes D. Roxita, a primeira vez em fevereiro


de 2009 e a segunda em abril de 2010. E numa terceira vez em que a encontrei, em dezembro
de 2011, pude observar um rito de cura realizado em sua casa. A princípio, tive conhecimento
sobre ela por meio do estudo de Paixão (2000), que desenvolveu pesquisas sobre pajelança
cabocla também em Soure. Ela também foi a pessoa que mais me indicaram quando
perguntava aos moradores se conheciam algum(a) pajé. Depois de um tempo, percebi que de
fato ela é bastante conhecida na cidade.
Sua casa fica situada no bairro Novo, um pouco afastado do Centro, em uma rua
larga não asfaltada e repleta de buracos (o que depois das chuvas, se tornam poças de lama),
mas bem arborizada. Reside em uma casa de altos e baixos, cuja frente possui uma árvore
mangueira, como guardiã.
D. Roxita, “nascida e se criada em Soure”, é uma senhora de 59 anos, robusta, de
pele negra, cabelos curtos e escuros, e muito simpática. Mostrou-se sempre muito acessível e
disponível em conversar comigo sobre o assunto. É divorciada e tem vinte e oito filhos, sendo
cinco biológicos e vinte e três adotivos, mora com dois dos filhos biológicos e os demais se
encontram casados, residem em Belém, em outros estados ou em outros países, segundo ela.
Em seu relato, ela afirma que nasceu com o dom, e sua mãe e seu pai teriam sido
“médiuns”, mas não aceitavam a própria “mediunidade” e nem a da filha. De acordo com D.
Roxita, ela e sua irmã gêmea nasceram juntas com o dom de ser pajé, mas, sem me explicar a
causa, sua irmã morreu aos sete anos, idade em que Roxita começou a curar. Sem ser ensinada
ou preparada por nenhum outro pajé ou curador, D. Roxita aprendeu seus saberes com Deus,
com os santos e os encantados. Ela afirma que tudo o que o pajé sabe é um dom de Deus, e
que ele sempre lhe orienta.
Em sua casa se encontram várias imagens de santos católicos espalhadas. Uma de N.
S. de Nazaré acima da televisão na sala, um pôster do Círio de Belém pregado na parede, e em
seu altar (que fica em um pequeno cômodo da casa, onde realiza as curas) vários outros
santos, dentre eles Santo Antônio e São Jorge, indicando claramente o catolicismo como uma
66

forte expressão de sua religiosidade, assim como elementos de outras religiões também
compõem o seu universo de crenças, como a ideia de reencarnação, espíritos perturbadores, e
outras provenientes do Espiritismo.

Figura 26

Imagens de santos no altar de D. Roxita (Foto: Faro, 2009).

D. Roxita relata que a primeira vez em que realizou uma cura foi com o seu pai que
estava doente há um certo tempo, sentindo dores na direção da costela, “sem que remédio
nenhum desse jeito”. De alguma maneira, D. Roxita soube ou intuiu o que fazer:

E eu com sete anos fui aí embaixo dessa mangueira e tirei um cabo de folha
dessa Tamarioba, e mandei a minha tia bater e botar duas colher daquele
suco da folha, mel de abelha e mamão e dar pro meu pai tomar. Minha mãe
não queria aí minha tia disse “não, quem sabe não é esse remédio que vai
curar ele”. E ele tomou... [...] Aí ele pôs nas fezes uma bola assim, que era só
pus com sangue. Que antigamente chamava-se pusteme, do baque ficou
aquilo dentro. Aí ele ficou curado. E daí de vez em quando eu tive visões,
além da visão eu oiço muita coisa (Entrevista em fevereiro de 2009).

O seu pai teria sofrido uma queda durante o trabalho nas obras de uma escola e o
“baque” ou batida provocou a dor e o ferimento interno.
Sobre as coisas que D. Roxita ouve, ela explica que são orientações e intuições do
que deve fazer para curar os que a procuram, além de lhe avisarem sobre acontecimentos
futuros, principalmente se alguém a irá lhe visitar ou solicitar seu auxílio.
67

Na hora eu recebo a intuição do que é que eu tenho que ensinar pra ele fazer
o remédio. Eu tenho muito assim que... nós curadores não temos imagens de
cabôco... temos imagens de santos pequenos... como na minha casinha de
trabalho aí. Eles [referindo-se aos santos e encantados] me iluminam muito
com remédio de ervas, quando eles veem que a cura não é pra nós, com
remédio caseiro que é de ervas, eles sempre encaminham pro “bata branca”.
O bata branca é o médico (Entrevista em fevereiro de 2009).

Interessante como ela denomina o médico, curador científico, como “bata branca”,
sendo que ela mesma, uma curadora tradicional, utiliza bata branca em suas curas.

Figura 27

D. Roxita vestindo sua “bata branca” (Foto: Faro, 2009).

A pajé explica que pode curar qualquer tipo de doença, quando é para ela, ou seja,
quando pode ser tratada com ervas, quando não, ela (e as entidades) recomendam que a
pessoa procure o “bata branca”. Com o auxílio dos seres que a guiam, ela pode curar tanto
doenças de causa espiritual (perturbação de espíritos, por exemplo) como de causa física
(“tocedura”, “quebradura”), embora no último caso ela aconselhe procurar o médico, como foi
mencionado. Entretanto, pessoas podem solicitar sua ajuda para diversas outras razões, como
encontrar um animal perdido 17, pedir para serem “benzidas” ou protegidas espiritualmente.

17
Como testemunhei certa vez um rapaz pedindo ajuda à D. Roxita para encontrar sua égua fugida.
68

Em abril de 2010, logo depois de conversar com dona Roxita em sua casa, uma
mulher veio a sua procura para pedir auxílio, alegando sentir dores de cabeça constantes e
insônia. D. Roxita a convidou para entrar e disse que ia lhe fazer um “passe”. Perguntei a pajé
se eu poderia assistir, e a mesma consentiu. Em seu “quartinho de trabalho”, D. Roxita
acendeu uma vela no altar e um incenso de defumação (daqueles comumente vendidos em
casas de produtos afro-religiosos) e o deixou em uma “fonte” artificial de água. Em seguida,
posicionou a mulher em pé de frente para o altar, enquanto que a pajé ficava de frente para
suas costas. Com um pano de cetim cor-de-rosa sobre seu ombro direito, a pajé recitava
orações chamando por Jesus, Virgem Maria, Santo Antônio, “Nosso Senhor e os Santos”, ao
mesmo tempo em que fazia levemente com o pano movimentos circulares sobre a cabeça da
mulher e sinais em forma de cruz na direção de suas costas.

Figura 28

Panos utilizados por D. Roxita em rituais de cura (Foto: Faro, 2009).

Ao finalizar o rito, a pajé afirmou ver, mentalmente, um espírito de uma mulher


branca entre os quarenta e cinquenta anos, usando vestido longo, e que provavelmente sua
influência ou “carga” espiritual provocavam as dores de cabeça e insônia sofridas pela
“paciente”. Este pequeno ritual evidencia a influência de outras tradições religiosas, nesse
caso o espiritismo, sobre a pajelança cabocla.
D. Roxita realiza suas curas em dois lugares, em períodos de muita chuva e quando o
ritual não precisar ser muito elaborado, ocorre no pequeno quarto próximo a sua sala de estar,
e em períodos de pouca chuva e quando os rituais são mais complexos, ocorre “na mata” em
uma área já especificada pela pajé, ou na praia do Pesqueiro. Ela prefere realizar as curas em
69

meio a natureza, pois afinal, é o meio natural dos encantados e onde a ligação com eles pode
ser melhor facilitada.
Ela afirma não cobrar das pessoas os ritos de cura ou remédios que realiza, pedindo
apenas o material que for necessário para o trabalho, caso ela própria não tenha esse material
em casa. D. Roxita diz que pajé não deve cobrar pelo seu trabalho, pois seria errado cobrar
por algo que foi dado por Deus, o dom de curar. Ela explica que:

O dia em que Deus me vender o meu dom, aí eu cobro pra vocês pra mim
pagar meu dom, mas ele ainda não me cobrou. [...] Porque tem muitos que
são escolhidos por Deus pra fazer caridade e eu tenho feito muita caridade, e
fico feliz (Entrevista em fevereiro de 2009).

O seu “quartinho de trabalho”, como ela denomina, é um pequeno cômodo com


paredes pintadas em cor azul e detalhes vermelhos, no lado esquerdo localiza-se um altar com
imagens de vários santos católicos e algumas velas, no centro uma “fonte” artificial de água,
que representa a ligação com o mundo dos encantados e no canto do lado direito há uma
vasilha de barro contendo água e conchas.

Figura 29

Vasilha de barro com água e conchas, ao lado um vaso com flores vermelhas artificiais (Foto: Faro, 2009).
70

Figura 30

“Fonte” artificial, no momento sem água, contendo velas, flores artificiais, entre as quais há uma imagem do
rosto de Jesus, e outros objetos (Foto: Faro, 2009).

O relato da pajé Roxita sobre como aconteceu seu primeiro contato com os
encantados e o mundo submerso é bastante interessante, foi a partir dessa experiência,
inclusive, que ela iniciou de fato o caminho da pajelança.
Ela conta que aos nove anos de idade, no dia 22 de setembro, ela foi à ponte onde
atracava algumas embarcações. Era no fim da manhã e a maré estava cheia, quando ela
avistou próximo à margem do rio o que parecia ser as costas de um animal. Entrou na água
para aproximar-se dele e jogou algumas pedras na direção do bicho para saber o que seria, na
segunda ou terceira tentativa a pedra espirrou água no animal que se assustou, abriu a boca e
espalhou água na direção dela, para então mergulhar nas águas. O animal era o mero, um
peixe de grande porte e muito comum nos rios amazônicos. Como já estava na água, a jovem
Roxita aproveitou para tomar um rápido banho de rio. Ela mergulhou e quando voltou à
superfície:

Eu vejo uma meninazinha, deste tamanhinho, cabelo liso, com a franjinha


bem reta e com uma fita vermelha na mão me dando, e eu fui pra pegar, aí
fui, fui... e parece que aquilo, assim, eu esqueci. Sabe quando tu tem um
sonho, que no outro dia tu amanheces que parece que aquilo foi vivido? Pra
mim foi assim, tipo um sonho. [...] Aí depois eu já vi essa menina junto
comigo e eu andando numa estrada com areia bem branquinha, agora árvore
71

de um lado e de outro e em cima as folhas, os galhos uniam e passavam por


baixo e iam embora [...]. Daí eu comecei a ver um bocado de índio, peixe
grande, eu vi um peixe que falava, aí eu quis ficar com medo e ela disse:
“não fica com medo não, que não mexe, não faz mal a ninguém”. Daí fomos
embora, chegou numa parte que tinha, duma arvore pra outra, tipo uma
estante feita de galho de pau, vara. Lá tinha cinta, tinha maracá, muito
colares, tinha pena, muita pena, saiote de todo jeito, tinha muita coisa bonita
e eu fiquei doidinha pra querer, e ela dizia: “não, isso ninguém pode te dar”.
Aí nós encontramos uma índia velha, aí ela me chamou e a menina dizia
assim: “não deixa ela pôr a mão na tua cabeça” [...]. Então nós andamos e
chegou lá bem numa parte bem grande, que a gente já tinha andado muito, aí
eu vi uma moça bonita, toda vestida de branco, os cabelos grandes, vestindo
tipo uma camisolinha de carimbó, toda de renda. A saia, me lembro até hoje,
era bem larga, e tinha uma lã antiga, do tamanho de um sofá, ela abria e me
dizia: “olha isso aqui tudo é pra ti”. Aí eu ficava alegre, eu queria, e a
mulher: “mas, pra isso, tu vai ter que morar comigo”, aí a menina me puxava
e dizia: “não, tu não vai morar, se tu ficar com ela, tu vai ficar pro resto da
vida”. Ela me dizia que eu não ia mais voltar, mas eu ficava com vontade,
porque era muita coisa bonita, era muita roupa branca, todos aqueles
bordados antigos, sabe? Mas muito mesmo, aí ela dizia: “olha, vamos, que a
tua mãe tá te esperando”. Quando eu dei conta de mim eu estava no mesmo
lugar, com a água bem aqui... A maré já tinha vazado, era 17:20 h
(Entrevista em fevereiro de 2009).

A indiazinha encantada chama-se Mayara, e auxilia até hoje D. Roxita em seus


trabalhos de cura. A experiência de D. Roxita no Fundo, ou Encante, marcou o momento em
que ela conheceu o mundo e os seres que fariam parte de sua vida a partir de então.
Em seu depoimento a pajé descreve uma crença muito observada por alguns
estudiosos da pajelança, e também presente em mitologias de várias culturas. Se aquele que
visita um mundo encantado comer, pegar para si ou aceitar algum presente oferecido por um
ser mágico, esse indivíduo permanecerá para sempre naquele mundo e se tornará também um
ser mágico ou encantado.
Nesse mundo submerso, descrito pela pajé, habitam índios e índias (que não
necessariamente usam vestes típicas indígenas), animais, como peixes, cobras, pássaros, que
falam, andam, nadam ou possuem qualidades humanas, além de uma vegetação diferente ou
desconhecida no mundo comum.
Após essa imersão ao fundo das águas, D. Roxita começou a sofrer de um processo
muito semelhante a corrente-do-fundo, descrito por Maués (1990). Ela conta que:

[...] quando cheguei [em casa], já cheguei com dor de cabeça e febre, febre,
febre... aí eu via tudo aquilo, tudo eu via e queria pular a janela e ir embora
pra lá, e nada. Então me seguravam e aí mandaram chamar o Seu Tuxico,
que já faleceu, ele era um curador. Foi então que ele disse: “Ah, isso é o
povo dela que tá mexendo com ela, a senhora faz esse banho” (idem).
72

O curador, então, recomendou que a mãe de D. Roxita fosse à igreja, levasse uma
garrafa cheia de água e pedisse ao padre para benzer. Feito isso, deveria levar a menina no
local em que foi levada pro Fundo, e dar um banho com a água benta em D. Roxita.
Em outra experiência, ela conta que passou quinze dias sem comer nada, apenas
bebia água e se alimentava de uma fruta, chamada Parurú, que os encantados ofereciam a ela
no Fundo. Apesar de muito magra, ela afirma não ter sentido nenhuma dor ou febre. Depois
desses quinze dias, D. Roxita começou a ouvir vozes e ter visões. Foi um período, na verdade,
de preparação para o ofício da cura. D. Roxita foi iniciada na pajelança pelos próprios
encantados, que lhe ensinaram os mistérios da encantaria e lhe instruíram a preparar e
confeccionar seus instrumentos, como as cintas e o maracá.

Figura 31

Maracá e cigarros de tauari de D. Roxita (Foto: Faro, 2009).

Os principais instrumentos da pajé são o maracá, as cintas (que coloca no corpo,


servem de proteção e concentração dos poderes dos encantados), os panos (que coloca no
ombro), os cigarros de tauari e a sua “bata branca”, que corresponde a uma vestimenta
ritualística.
Alguns dos seres encantados que a auxiliam são: a Mayara, que é sua chefe de cura,
isto é, quem ensina os remédios e as receitas, e a quem D. Roxita dedica um dia no ano para
celebrar seu aniversário, o dia 22 de setembro, quando a conheceu; o índio Tabajara, que é seu
chefe de cabeça; o Rei do Mar; o Seu Boa Ventura, um vaqueiro encantado de Soure; a
Jurema; o Ricardinho, entre outros. Sendo que os dois primeiros encantados são os principais
73

de sua corrente, composta, segundo a pajé, na maioria por índios. Alguns desses encantados,
como Tabajara e Jurema, estão presentes também no universo mítico das religiões afro-
brasileiras, como Umbanda e Tambor-de-Mina, mas D. Roxita não reconhece ou não dá muita
importância a este fato.
Atualmente, D. Roxita já entrou no período da menopausa, mas ela explica que
durante os dias em que estava menstruada não era permitido realizar curas, pois as suas
“correntes estavam quebradas”, e só deveria voltar a curar quando terminasse o sangramento.
Ela também explica que não deve ter relação sexual três dias antes de um ritual de cura.
Ao longo de sua fala, D. Roxita afirma que a pajelança é mais próxima do
catolicismo do que dos cultos afro-brasileiros, que denomina de “tambor”, e ela demonstra,
inclusive, certa reprovação ou discriminação sobre tais práticas.
Contudo, a pajelança cabocla se encontra bastante relacionada às religiões de matriz
africana, apesar de cada uma apresentar suas características próprias. Porém, tal fato não é
reconhecido por muitos pajés ou curadores de Soure, que negam ou não reconhecem uma
aproximação de suas práticas com os cultos afro-brasileiros.
A pajé também desenvolve um papel social em sua comunidade. Ela criou uma
creche que hoje é municipalizada, e atende centenas de crianças. Fica localizada próximo ao
quartel da polícia militar, no mesmo bairro em que D. Roxita reside. A princípio, obtinha
ajuda financeira de amigos e conhecidos para manter a creche e pagar as professoras e
monitoras, e atualmente, recebe a verba do município, mas reclama que até o ano retrasado
era em grande parte desviada pelo ex-prefeito.
D. Roxita representa, portanto, um importante papel social desenvolvido com a
creche e com as curas que realiza, abrangendo o campo da religiosidade, da saúde e da
educação. Além disso, a creche é uma forma de estabelecer um grau de legitimidade de D.
Roxita e suas práticas de cura na sociedade e representa uma intersecção de dois campos, o do
xamanismo/pajelança com o social.

3.2.1. Relato de um ritual de cura

Além da benzeção ou passe que presenciei realizado por D. Roxita, também observei
um rito de cura que foi realizado em 8 de dezembro de 2011 em sua casa. Quando visitei D.
Roxita no dia 8 de dezembro, durante a pesquisa de campo que realizei nesse mês, ela me
disse que faria uma cura naquele mesmo dia, à noite, e perguntei se eu poderia assistir. Ela
prontamente respondeu que sim e informou o horário do ritual que seria às 20:30 horas.
74

Cheguei na casa de D. Roxita às 20:15 h, a porta estava aberta e três pessoas já


aguardavam na sala para a cura que seria realizada. Sentei em uma cadeira ao lado de uma
senhora, Eli, prima de D. Roxita e que costumava participar das curas em busca de proteção,
limpeza e conselhos. Seu Enéas, um senhor magro, cabelo curto, bem liso e preto, não muito
alto e aparentando ter uns 40 e tantos anos, estava ali para pedir por boa sorte na vida, estava
triste, acabara de sair de um casamento ruim e queria que sua sorte e sua alegria melhorassem.
E finalmente D. Leonira e seu Arnaldo, seu marido, os solicitadores daquela pajelança,
estavam em busca de cura para uma dor de estômago que há certo tempo vinha incomodando
D. Leonira.
Enquanto D. Roxita se preparava dentro da casa para iniciar o rito, todos
conversavam descontraidamente. Perguntei inclusive a eles sobre a pajé Zeneida Lima e me
responderam que ela não era muito popular na cidade e que não a conheciam muito. Passados
alguns minutos foram chegando mais pessoas para participar da pajelança, e ao todo eram
nove pessoas na sala, a maioria mulheres, apenas seu Enéas e seu Arnaldo de homens.
D. Roxita adentrou no aposento em que seria realizada a pajelança por meio de uma
porta que ligava seu quarto a esse aposento. Antes de iniciar o rito a ajudante da pajé, que é
sua filha de criação, defumou o quarto. Em seguida, colocou uma vela acesa, um copo com
água e dois palitos de defumação atrás da porta da sala. Fechou as janelas e a porta da sala,
deixando apenas a janela lateral aberta, que ficava atrás de mim. Após isso, colocou um palito
de defumação aceso no chão de entrada do quartinho. Acendeu velas no altar, tragou
(invertidamente) o cigarro de tauari e com ele defumou o ambiente, em especial o altar.
Enquanto a ajudante fazia isso, D. Roxita se concentrava sentada na frente do altar e vestia
sua roupa própria para os trabalhos, uma bata branca, que lembra um pouco um jaleco. A
ajudante continuou o processo de preparação para a pajelança oferecendo a nós uma colônia
que deveríamos passar nas mãos. Tal colônia cheirosa é comprada em Belém, e chama-se
“Feitiço da Amazônia”. Após isso, a ajudante trouxe o defumador para a sala, caminhando
pelo ambiente entre nós segurando o defumador. Eli, prima de D. Roxita, pediu que todos
tirassem seus sapatos e sandálias e que as mulheres soltassem os cabelos.
Então, a ajudante nos disse para rezarmos um Pai-Nosso e três Ave Maria, o que
dava início, de fato, a pajelança. D. Roxita também rezava no quarto, sentada em um banco
diante do altar. Pegou uma cuia e colocou um pouco de cachaça dentro, ateou fogo e
depositou a cuia no chão em frente ao altar. O fogo azulado no quarto escuro em que apenas
algumas velas no altar o iluminavam, dava um ar de mistério ao ritual.
75

Depois de alguns minutos de concentração, D. Roxita começou a dar sinais de que


estava incorporando, recebendo os caruanas, e começou a cantar as cantigas ou doutrinas dos
encantados. A ajudante e Eli também cantavam as doutrinas acompanhando a pajé. A primeira
que cantou louvava Nossa Senhora da Conceição, e não pude identificar que caruana se
referia. Em seguida, cantou uma doutrina que chamava por um índio, pedindo que trouxesse
seus instrumentos de cura, primeiro foi o maracá (e foi o único momento em que o maracá foi
utilizado no trabalho), depois o contramestre e, por fim, a cinta-mestra. À medida que pedia o
objeto a ajudante o entregava a pajé. A doutrina era mais ou menos assim:

Vai índio, vai índio, vai índio


Vai aonde eu te mandar
Vai buscar o maracá (o contramestre, a cinta-mestra)
Pra mamãe trabalhar.

Dentre os caruanas que baixaram ao longo da pajelança, estavam o Seu Tabajara,


José Tupinambá, Bem-te-Vi e Vaqueiro Boa-Ventura. Alguns desses, como José Tupinambá e
Seu Tabajara, encontram-se também no panteão afro, sobretudo na Umbanda.
Com os caruanas atuando na cura, a pajé indicava ou falava para a ajudante quem
deveria entrar. E então, receitava banhos, chás, aconselhava, e a ajudante anotava todas as
recomendações em um papel, que no final do trabalho entregou a cada um a receita da pajé.
Primeiro a pajé chamou pelo “homem que chegara sozinho”, ou seja, seu Enéas. Ao
entrar, se posicionou sentado na frente da pajé, que solicitou que ele tirasse a camisa. D.
Roxita o defumou com o cigarro de tauari, enquanto cantava uma doutrina. Feito isso, pediu
para que ele sentasse em um banco envolto por velas no chão no outro canto do quartinho e o
cobriu com um pano de cetim. Em seguida, chamou por D. Leonira, que foi defumada,
aconselhada, e depois voltou a sentar-se no sofá.
E então, sem eu esperar por isso, ela me chamou. Entrei e sentei num banquinho em
frente a D. Roxita, também sentada em outro banco. A pajé, ou melhor, Seu Tabajara (que
estava incorporado na pajé), chamando-me de “minha branca”, com uma voz um pouco
grossa e rouca me disse para ficar a vontade, que a casa era nossa e que qualquer coisa que eu
precisasse poderia pedir a eles. Neste momento, não sabia se deveria dizer alguma coisa,
apenas consenti com a cabeça e agradeci. Seu Tabajara disse que iria me defumar para trazer
felicidade, me levantei e abri meus braços enquanto a pajé me defumava com o cigarro de
tauari. Feito isso, a pajé ou Seu Tabajara me disse que eu tenho um coração bom, mas que
devo ter cuidado com “muito rabo de saia que quer me prejudicar”, ou seja, que deveria ter
76

cuidado com a inveja de “amigas”. E disse também: “agora vá minha branca, mas ainda
vamos precisar muito de você”. Agradeci e retornei para onde estava sentada na sala.
Outra pessoa foi chamada para entrar, aconselhou, receitou alguns remédios e a
defumou, e a pessoa voltou para sala.
Chamou novamente seu Enéas, que ainda estava sentado no banco dentro do
quartinho. Ele sentou-se no banco em frente a pajé, e esta derramou um pouco de cachaça em
cima de uma pedra no chão e ateou fogo. Nesse momento a pajé se concentrou e cantou a
doutrina:

Sou eu Caiano verde, caião, caião


Sou eu filho (do) Maranhão, caião, caião
Sou eu Caiano verde, caião, caião
Sou eu filho (do) Maranhão, caião, caião

Com a pedra ainda em chamas, a pajé passou cachaça pelo peito, ombros, braços e
pernas de seu Enéas, e tirava o excesso com as mãos para então jogar os respingos no fogo
azul, enquanto cantava a doutrina:

E a pedra rolou, lá na pedreira


E a pedra rolou, lá na pedreira
Afirma teu ponto meu pai, na cachoeira
Só manda fogo quem pode mandar
Só manda fogo quem pode mandar
Teu ponto é seguro meu pai Oxalá.
E eu tirei feitiço, lá na pedreira
E eu tirei feitiço, lá na pedreira
Afirma teu ponto meu pai, na cachoeira
Só manda fogo quem pode mandar
Só manda fogo quem pode mandar
Teu ponto é seguro meu pai Oxalá

Ao terminar, disse para ele vestir a camisa e voltar para a sala. A pajé chamou de
novo D. Leonira e também seu Arnaldo. Depois de alguns segundos pediu que eu também
entrasse. Ao adentrar no quartinho ela me perguntou se eu já tinha ajudado um pajé antes.
Não entendi a pergunta e olhei para a ajudante, que percebeu minha incompreensão, e ela me
explicou que a pajé queria saber se eu já havia ajudado alguma vez um pajé a tirar malefício.
Respondi que não, e D. Roxita ou o caruana nela incorporado disse “então, vai ser agora”. Ela
me deu para segurar um prato branco onde derramou um pouco de vinho e cachaça, e disse
para eu olhar e ver se havia alguma coisa além do líquido. Eu disse que não havia nada. A
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ajudante me explicou para aproximar o prato da boca de D. Roxita quando fosse a hora certa.
A pajé então iniciou o canto do caruana Bem-te-Vi:

Eu nunca vi pássaro valente


Ah como o pássaro bem-te-vi
Eu nunca vi pássaro valente
Ah como o pássaro bem-te-vi
Ele está se vendo no perigo
Está dizendo deixa vir
Ele está se vendo no perigo
Está dizendo deixa vir

A pajé de pé cantava de forma extasiada e a ajudante e eu a acompanhávamos com o


canto. A pajé colocou um pouco de cachaça na boca, gargarejou e cuspiu fora. Virou-se para
mim e abriu a boca, mas não tanto, e colocou a língua para fora, a modo de me mostrar que
não haveria nada escondido em sua boca. A pajé cantou mais uma vez a cantiga do caruana
Bem-te-Vi. D. Leonira já estava com a blusa desabotoada de forma a deixar amostra a barriga
e então D. Roxita começou a sugar a doença ou o malefício da barriga de D. Leonira. Sugou
uma, duas, três vezes mais ou menos, afastou-se, colocou mais um pouco de cachaça na boca
e se aproximou de mim. Era a hora certa de aproximar o prato de D. Roxita, que então cuspiu
no prato um pequeno tufo de cabelo, que supostamente estava provocando a dor de estômago.
A pajé aproximou uma vela do prato para ver melhor o que havia tirado, e perguntou-me o
que achava que era. D. Leonira e seu Arnaldo também olharam para o prato para tentar
identificar o que acreditavam que a pajé havia tirado. Respondi que parecia ser um tufo de
cabelo, e D. Roxita ou o caruana nela incorporado afirmou que era um feitiço, e dos piores,
porque era cabelo de morto. “Gente que pega cabelo de morto, pra fazer outro morto”, ela
disse. Em seguida, tirou o prato de minha mão e derramou cachaça sobre minhas mãos e nas
de seu Arnaldo, e as enxugamos em pano de cetim verde claro que estava estendido ali
próximo. Depois defumou com o tauari nossas mãos e disse para nós três voltarmos para a
sala.
Após a cura de D. Leonira, a pajé foi chamando um por um dos presentes até que
todos fossem atendidos. Ao terminar de atender a todos, iniciou cantos de despedida aos
caruanas, indicando que a pajelança daquela noite chegava ao fim. Aos poucos a ajudante ia
retirando as cintas da pajé, que ia voltando ao estado normal. Quando tudo terminou, por volta
das 22:50 h, a ajudante entregou à cada pessoa pedaços de papel com as “receitas” dos
caruanas que ela havia anotado durante o trabalho. D. Roxita saiu do quartinho com a
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aparência cansada, mas não abatida, ainda vestindo a bata e sentou-se no sofá, conversando
descontraidamente com todos.

Figura 32

D. Roxita sentada no sofá conversando com as pessoas após realizar a pajelança. Ao fundo, do lado esquerdo,
encontra-se o quartinho onde os trabalhos de cura são realizados em sua casa (Foto: Faro, 2011).

As pessoas a agradeciam e aos poucos iam embora. Ficou apenas eu, seu Enéas, seu
Arnaldo, D. Leonira e Eli, mais a ajudante e D. Roxita, na sala. A pajé me disse, então, que
cada trabalho é diferente um do outro, que há trabalhos em que ela faz mais cura, outros que
ela tira malefício, outros afasta espíritos perturbadores etc. No trabalho ou pajelança dessa
noite, D. Roxita curou e tirou malefícios.
Antes de ir embora seu Enéas perguntou a D. Roxita quanto deveria lhe dar. D.
Roxita respondeu em tom irônico: “O quê? Dar o quê? Ah o senhor quer preço? É cinco
mil...!”. E disse a ele que não era preciso dar nada. Mas seu Enéas queria retribuir com algo e,
sendo ele pescador, disse que levaria a ela um quilo de camarão no sábado. Ela agradeceu,
disse para não se preocupar, mas que aceitaria o camarão. Confirmou a ele para voltar no
sábado, pois lhe entregaria uma garrafada, como continuação do tratamento de cura que
estava fazendo nele. Ele afirmou que retornaria, se despediu de todos e foi embora. Para a D.
Leonira a pajé recomendou que não comesse nada reimoso e disse para ela voltar na segunda-
feira, pois iria continuar o procedimento de cura. D. Leonira também se despediu e foi
embora. E por fim, eu agradeci a D. Roxita por ter permitido que eu participasse dessa
pajelança, me despedi de todos e fui embora.
79

A partir dessa experiência que participei em um trabalho de cura de D. Roxita, foi


possível perceber um pouco da popularidade desta pajé na cidade de Soure e da simpatia que
há na relação dela com as pessoas que a procuram. Situação um pouco diferente, como
veremos no capítulo seguinte sobre a pajé Zeneida Lima.
Outra coisa importante de ressaltar é sobre a típica ritualística da pajelança, ou seja,
um trabalho de cura no contexto da pajelança cabocla é discreto, não se ouve toques de
tambor, não se fuma cigarros comuns nem se bebem bebidas alcóolicas pelo(a) pajé e
tampouco pelas pessoas presentes, o(a) pajé não faz grandes performances, as doutrinas são
cantadas baixinhas, muitas vezes apenas pelo pajé e seu assistente, e o ritual raramente
demora a noite inteira. Mas essas características não são regras gerais, e podem variar
dependendo do contexto e do indivíduo. Em Soure certas características no ritual são
reprovadas pelos curadores que conversei, principalmente o ato de tocar tambor, beber
cachaça ou cerveja nos rituais e cobrar dinheiro pelos trabalhos de cura.
Essa necessidade de se diferenciar das práticas religiosas afro-brasileiras parece ser
uma tentativa de evitar ou minimizar que eles mesmos, os(as) curadores(as), sofram
preconceito e ataques de intolerância religiosa por parte da população e das igrejas, haja vista
que os adeptos de religiões de matriz africana ainda sofrem muita discriminação.

3.3. D. Dica

Conheci D. Dica por meio de D. Graça, uma senhora que conheci através de uma
amiga do mestrado e que me abrigou em sua casa, em Salvaterra, em algumas vezes durante o
trabalho de pesquisa.
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Figura 33

Praça principal de Salvaterra, destaque para a Igreja de N. Sra. Da Conceição, santa padroeira da cidade (Foto:
Faro, 2011).

Na pesquisa de campo que realizei em dezembro de 2011, fui até Salvaterra


conversar com D. Graça a fim de saber se ela conheceu o seu Mundico ou se conhecia alguém
que o conhecera. Seu Mundico teria sido o pajé que iniciara Zeneida Lima, segundo
informação contida em seu livro (“O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de sua ave”,
1991) e em entrevistas realizadas com esta pajé. Meu intuito era conversar com alguém que
teria conhecido seu Mundido e tentar descobrir um pouco como eram suas práticas e crenças
de cura, para saber se a pajelança praticada por Zeneida Lima já existia anteriormente e, logo,
se segue alguma tradição, como ela atesta.
Foi então que D. Graça me disse que não conheceu nenhum pajé chamado Mundico,
mas que talvez D. Dica tivesse conhecido, pois ela era “antiga” e pelo que D. Graça ouvia
falar, D. Dica fazia remédios caseiros, ou seja, era uma curadora. Então, D. Graça me levou
até a casa de D. Dica, que fica inclusive na mesma rua que a dela, a 6ª rua.
Era por volta das 14:00 horas do dia 9 de dezembro de 2011 quando conheci D. Dica,
uma senhora morena de aparentemente boa saúde e bem disposta, entre seus 70 anos. Ela
estava deitada na rede quando chegamos a sua casa e D. Graça me apresentou a ela, que
gentilmente nos convidou para entrar. Sentamos no sofá da pequena sala, eu e D. Graça em
um sofá e D. Dica em outro à nossa frente. Expliquei um pouco sobre meu trabalho e ela
então começou a me contar sobre sua vida.
81

Figura 34

D. Dica sentada em seu sofá durante uma entrevista informal, realizada em dezembro de 2011 (Foto: Faro,
2011).

D. Dica contou-me que nasceu com o dom de curar. Aos sete meses, ainda na barriga
de sua mãe, ela chorou. E nesse momento sua mãe ouviu uma voz lhe falar para nunca bater
nem maltratar aquela criança, pois “ela seria os olhos e alegria da família”.
D. Dica também contou que nunca “se fez”, se formou ou iniciou, com nenhum pajé.
Ela simplesmente sabia, ouvia ou via o que fazer e como, que ervas usar e como preparar os
remédios. Alguns dos encantados que a acompanham são Mariana, Tabajara, Tupiassú e
Herondina. Entidades presentes também em outras expressões religiosas, como o Tambor-de-
Mina, principalmente Herondina e Mariana, que segundo ela é “uma caboca boa, que quando
gosta de alguém ela gosta, mas quando não gosta... não quer ver nem pintada de ouro”. D.
Dica é uma senhora cristã e que demonstra muita devoção por Deus, Jesus e Nossa Senhora, e
para ela o dom de curar é “uma luz dada por Deus”.
Ela relatou-me uma das experiências que teve quando jovem, no início de sua
segunda gravidez, em que estava prestes a dormir, ouviu uma voz dizendo “escuta, senta e
bora conversar”, D. Dica abriu os olhos e viu uma freira (que alguns de seus familiares
acreditam ter sido uma santa) entrar em seu quarto, e ela retrucou “não, agora não quero
conversar”, e a freira respondeu, “não, senta, eu vim trazer os dois nenéns, que tu estás
grávida”. Segundo D. Dica, a figura segurava dois bebês, um branco e outro moreno, e a freira
dizia à D. Dica que aquelas crianças eram os filhos que ela estava esperando, e predisse
também que ela não sentiria dor no parto e que teria os filhos sozinha em casa com o “Pai” e a
82

“Mãe”, que ela entendeu como sendo Jesus e Maria Santíssima. D. Dica contou que tudo
aconteceu conforme a visão lhe mostrava.
Ao longo de seu relato ela contou alguns casos de cura que realizou (aliás, todas as
curadoras que conversei contaram ao longo da entrevista vários casos de cura que teriam
feito), e dentre os remédios que mais utilizava ela enfatizou o mastruz e o mel de abelha puro,
que segundo ela, juntos são um poderoso remédio para diversos problemas de saúde. Além
disso, D. Dica também era parteira. A propósito, quase sempre uma curadora também é
parteira, mas dificilmente um curador o é. Entende-se que somente uma mulher poderia ter o
devido conhecimento e competência em agir em dadas situações tão particularmente
femininas. D. Dica afirmou que nunca cobrou dinheiro em troca dos remédios ou curas que
fazia.
Perguntei a ela se conheceu um curador chamado Mundico. Ela pensou por um
tempo, buscando na memória por esse nome, e enfim respondeu que conhecera um curador
chamado Mundico, da região de Maroacá, em Salvaterra, que era muito bom e conhecido no
Marajó. Segundo D. Dica, ele era cego e nasceu com o dom. Mas afirmou que curador mais
conhecido ainda foi o pai de Mundico, o mestre Modesto, que ela também conheceu quando
era pequena.
Ela conta que aos oito anos de idade foi com sua mãe na casa de mestre Modesto, em
Maroacá, e o viu curando uma mulher espanhola, que teria vindo do exterior para se curar
com o pajé. D. Dica, criança, ficou no canto observando a cura e por alguma razão começou a
achar graça e riu. De repente, ela ouvi um “fiiiiiti, bem agudo”, um assobio, e ao olhar para o
lado viu um índio grande fumando cigarro de tauari. E ele disse a ela “para não rir dessas
coisas”, e disse também pra “nunca cortar aquele meu cabelo bonito que tinha”. Sua mãe ao
ouvir a filha falando perguntou com quem ela falava, e ela respondeu “aqui mamãe, não tá
vendo? E minha mãe olhou e viu o índio, viu que era um caboco” (entrevista em dezembro de
2011).
D. Dica me contou que seu Mundico deixara pessoas pajés, ou seja, que formou
outros pajés, mas que segundo ela, todos já faleceram. Questionei se ela conhecia a Zeneida
Lima, de Soure, que teria sido feita pajé por Mundico, mas D. Dica respondeu que não a
conhecia. Durante toda a conversa D. Dica não mencionou nenhum dos nomes dos caruanas
ou seres encantados reverenciados por Zeneida Lima (que veremos com mais detalhes no
capítulo cinco), nem quando falava a respeito de sua própria prática de cura, nem quando
falava sobre seu Mundico ou mestre Modesto. Mas por ela ser criança quando conhecera esses
curadores, é provável também que ela não se lembre muito bem dos detalhes da pajelança de
83

Mundico e Modesto, principalmente em se tratando dos encantados com os quais eles


trabalhavam e de como eram realizados os rituais.
Posso dizer que a entrevista com D. Dica foi informal, apesar de ter sido registrada
(por gravação e fotos), pois não segui um roteiro de perguntas já pensadas e estabelecidas, e
tudo se deu em forma de conversa. Às vezes fugíamos do foco da minha pesquisa e D. Dica
me falava de coisas de sua vida, da diferença que ela percebe entre a juventude do presente e
do passado, e ainda mais com D. Graça que vez ou outra fazia perguntas sobre outros assuntos
a D. Dica. No entanto, muitas informações interessantes me foram transmitidas nessa
conversa com esta curadora de Salvaterra, sobretudo no que diz respeito ao seu Mundico, e
mestre Modesto, e também ao imaginário daquela terra. Ouvi histórias sobre matintas e outras
visagens contadas naquela tarde de dezembro. D. Dica contou-me que existiam duas matintas
“perturbando a paz de Salvaterra”, uma era uma mulher nova e outra era velha. Uma delas, a
nova, morava ali naquela mesma rua. D. Dica enfatizou muito a ideia de que matinta era uma
feiticeira que fazia pacto com mal ou satanás. Também falou que elas fazem feitiços para
prejudicar as pessoas, que se transformam em figuras assustadoras e podem voar.
D. Dica contou algo curioso e novidade para mim, até aquele momento, sobre como
uma matinta sabe que a outra, sua “aprendiz”, está pronta para se tornar outra matinta. Em
uma história que ouviu de um conhecido seu, em que este teria visto no quintal de sua casa
sua comadre “virada” (transformada) em matinta-perera testando a capacidade de sua afilhada
em ser uma futura matinta. D. Dica conta que seu conhecido viu a moça engolindo a tia, e
explica que para ser matinta a pessoa tem que conseguir engolir inteiramente a outra matinta,
aquela que lhe ensinou. Isso parece se referir a algo semelhante a um processo de iniciação, a
iniciação das Matintas-Perera.
Toda essa concepção de matinta assemelha-se muito a da bruxa medieval, e sobre
isso Villacorta (2000) escreve um trabalho muito interessante, e que não me prolongarei sobre
essa análise nesse momento, para não fugir muito ao foco.
Depois dessa conversa com D. Dica, que durou em torno de uma hora, me despedi
dela e agradeci. Ao nos acompanhar até o portão de entrada de sua casa, D. Dica disse que eu
poderia voltar com ela caso eu retornasse a Salvaterra outro dia e desejou felicidades a mim,
minha casa e minha família dizendo, com a mão direita sobre minha cabeça, as palavras: “que
o sangue que Jesus derramou na cruz lave a sua casa e que você seja muito feliz”. Agradeci a
ela mais uma vez e segui meu rumo de volta a Soure.
84

3.4. Seu Zé Piranha, por D. Olga

Zeneida Lima não foi a única pajé de Soure a ser conhecida fora do Marajó e
noticiada em jornais. Antes dela, Soure teve um curador muito conhecido e lembrado ainda
hoje como um grande pajé. Refiro-me ao seu Zé Piranha, como era chamado o seu José do
Espírito Santo, falecido em 2001.

Figura 35

Jornal Diário do Pará, de 6 de março de 1999, com matéria sobre o curador Zé Piranha (Foto: Faro, 2011).

Tive conhecimento sobre esse curador por meio de alguns moradores de Soure,
especificamente uma senhora, D. Zenilde, que me abrigou em sua casa durante os dias em que
estive pesquisando na cidade em dezembro de 2011. Ele morava na 4ª rua, justamente onde
fica a casa de D. Zenilde, e por essa razão ela o conheceu pessoalmente. Alguns dos filhos e
netos de seu Zé Piranha ainda moram na mesma casa, e foi então que pude conhecer e
conversar com D. Olga, sua filha, que por ter assistido muitas, se não todas, as curas e
pajelanças de seu pai, apresenta uma memória vívida sobre ele e suas práticas, pois ela não só
assistia as pajelanças como, junto com sua irmã, ajudava a escrever no papel as receitas de
remédios que seu pai ensinava.
85

Figura 36

D. Olga (Foto: Faro, 2011).

Segundo D. Olga, seu Zé Piranha trabalhava como pescador e era “curandeiro de


Pena e Maracá, e só trabalhava com a linha do fundo”. Os trabalhos (de cura) só eram
realizados a noite, e de manhã ele ensinava às pessoas que o procuravam em sua casa banhos,
garrafadas, chás e outros tipos de remédios, inclusive receitava remédios de farmácia, exceto
injeções. Os trabalhos ou pajelanças poderiam ser feitos em qualquer lua e seu Zé Piranha era
auxiliado por diversos cabocos, entre eles o encantado Boa-Ventura, Norato Antônio e
Pretinho da Bacabeira. Há alguns encantados, porém, que D. Olga não sabe identificar,
simplesmente porque alguns cabocos não se identificavam nas doutrinas. O Pretinho da
Bacabeira, um dos encantados que guiavam seu Zé Piranha, é bastante conhecido em Soure.
Conta-se que ele costuma aparecer próximo ao Hotel Marajó, e caso não simpatize com a
pessoa que passar por ali lhe dá uma “peia”, e a pessoa se sente sob um ataque de pancadas
que muitas vezes não vê de onde vem, pois o Pretinho se torna invisível. D. Olga buscou na
memória e cantou para mim a doutrina de Pretinho da Bacabeira, conforme ouvia de seu pai:

A minha mãe quando me teve


Debaixo da Jurema
E para lá foi descoberta
Lançou meu corpo no mar
Eu sou menino, eu sou criança
Pretinho da bacabeira
Eu só queria que Deus me desse
O poder de governar
Meio sol e meia lua
Meia terra e meio mar
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Essa doutrina, que é cantada em um ritmo que lembra uma cantiga de ninar, conta a
história do Pretinho da Bacabeira, que segundo D. Olga:

A mãe dele estava grávida dele escondida da família, e ela teve ele
justamente debaixo de um juremár18 [jurema], que fica justamente aonde era
a Cohab, a árvore era lá perto da Cohab, e ela jogou ele justamente num
igarapé perto do Hotel Marajó. Só que ele não se afagou, ele se encantou.
[...] Aí ele começou a aparecer, depois de sete anos, ele começou a aparecer
por lá (Entrevista em dezembro de 2011).

D. Olga contou-me que seu pai nascera em Mangueiras, no interior do Marajó, e seu
dom de curar era de nascença. Com doze anos começou a desmaiar e “pegar caboco”, mas o
pai de seu Zé Piranha não acreditava no dom do filho e também não aceitava que fosse
curador, pois “ele dizia que todo pajé vivia de esmolas”. Anos depois se mudou para a
pequena cidade de Mucura e com 21 anos conheceu a mãe de D. Olga, com quem se casou,
teve oito filhos e com quem viveu até falecer.

Figura 37

D. Esmelinda e seu José do Espírito Santo, ou Zé Piranha, em um retrato na parede da casa de D. Olga (Foto:
Faro, 2011).

Em seguida se mudaram para Pau D’arco e depois para Soure, pois morando na
cidade ele acreditava que os cabocos não baixariam mais, pois pensava que eles teriam medo
da polícia19, entretanto, os encantados continuavam baixando nele, onde quer que fosse. Foi
então que seu Zé e sua esposa conheceram uma senhora em Soure em que seu marido,

18
Maneira como D. Olga fala “jurema”, e também como é cantada na doutrina.
19
Nessa época ainda ocorriam perseguições aos pajés e pais de santo pela polícia.
87

Francisco, mais conhecido como Tuxico 20 (já falecido), era curador. Ela sugeriu a esposa de
seu Zé que o levasse a um trabalho para “aprontá-lo” sem que ele soubesse, pois caso
soubesse ele poderia recusar. E foi o que fizeram, organizaram uma pajelança para “aprontar”
seu Zé e a partir de então ele tornou-se pajé, passando a realizar diversas curas.
Segundo D. Olga, os trabalhos que seu pai realizava eram durante a noite, não havia
toque de tambor, no máximo batiam palmas, e as doutrinas eram cantadas baixinhas, para não
incomodar vizinhos e, principalmente, não chamar a atenção da polícia. Seu Zé Piranha
trabalhava com duas categorias de encantados: os cabocos que vinham para curar e os que
vinham para tirar feitiço. Entre os que curavam estava o Doutor Bina, que D. Olga,
infelizmente, não lembra a história, mas lembra claramente da doutrina:

Doutor Bina vem do mar


Doutor de Minas Gerais
Sacode teu maracá
Doutor Bina quer brincar

Outro encantado de cura é Norato Antônio, cuja história D. Olga também não
recorda, mas contam as histórias que ouvi em Soure que Norato Antônio foi o primeiro pajé
caboclo, que aprendera dos índios a arte de curar e se tornou um pajé tão poderoso que se
encantou, e assumiu a forma de uma cobra, por isso também é chamado de Cobra Norato. Nos
relatos da pajé Zeneida Lima, ela explica que:

O Norato Antônio é uma energia, entendeu? Uma das primeiras... Foi o


primeiro caboclo que ficou com esse ritual dos índios, a pajelança. Por
exemplo, eu sou índio aqui, índio mesmo, mas aí já teve o índio que já
cruzou com outra pessoa e já formou o caboclo, esse primeiro caboclo que
virou pajé [ou seja, esse caboclo pajé foi Norato Antônio]. (Entrevista em
julho de 2010).

Maués (2005, p. 4) registra uma das versões da lenda de Norato Antônio que coletou
na região do salgado no Pará. A lenda conta que:

Uma mulher deu a luz à dois gêmeos de ambos os sexos, que foram
chamados de Maria Caninana e Norato Antônio. Logo ao nascer, as crianças
se transformaram em cobras e deslizaram, rapidamente, para o rio, onde
passaram a viver. Cresceram e se transformaram em cobras-grandes.

20
Pelo nome, talvez possa ser o mesmo curador que D. Roxita citou em seus relatos, mas não temos como
afirmar com certeza.
88

Affonso Sant’Anna, na apresentação da 26ª edição do belíssimo livro “Cobra


Norato” de Raul Bopp (2009), cita Câmara Cascudo e escreve sobre uma das mais conhecidas
versões desse ser mítico. Conta-se que uma índia se banhava nas águas entre o rio Amazonas
e o Trombetas quando foi engravidada magicamente pela Cobra Grande. Nasceu um casal de
gêmeos, que foram chamados de Norato e Maria Caninana. Escreve Sant’Anna (2009) que:

Maria era uma peste e vivia provocando naufrágios. Norato, que era bom, foi
obrigado a matá-la. Como penitência, Norato, à noite, passou a transformar-
se em um rapaz sedutor, deixando na beira do rio sua longa pele. Diz a lenda
que, se alguém conseguisse pingar leite na boca da cobra e ferir sua cabeça,
ela se desencantaria e se tornaria só rapaz. Tal façanha foi conseguida por
um soldado do rio Tocantins.

Mas existem diversas versões sobre Cobra Norato, sendo que uma variante foi criada
por Bopp em sua obra poética, acima citada, na qual um rapaz mata Cobra Norato, veste sua
pele, transforma-se em Cobra-Grande e segue em busca de sua amada, a filha da rainha Luzia,
no mundo encantado.
Uma outra versão é descrita no livro de Zeneida Lima (2002, 6 ed.), em que esta pajé
afirma ser Norato Antônio o contramestre de suas cordas. Esse caruana é conhecido por sua
sabedoria, e segundo Lima (op. cit., p. 85) quando ele vem ao nosso mundo realiza curas e
aconselha. Além disso, ele detém os segredos da “Fonte da sabedoria e da cura” no mundo
encantado, e por isso possui um posto de grande importância dentro da hierarquia encantada.
Diante de todos esses simbolismos e importância deste caruana, poderíamos mesmo inferir
que Norato Antônio ou Cobra Norato é um “patrono” dos pajés e da Encantaria.
Na história contada no livro de Zeneida Lima (op. cit.), nas proximidades do lago
Guajará, existia uma grande cidade à margem de um igarapé, lugar em que Norato Antônio
vivia. Em noites de lua cheia ele saía das águas e andava entre os humanos para se divertir e
prestar favores, sem que nunca ninguém desconfiasse de sua real natureza. Um dia, estava
acontecendo uma festa na cidade, e Norato saiu do fundo para também se divertir com os
mortais. Sua aparência e encanto chamava a atenção, principalmente das moças, entre elas a
filha do dono da casa, que caiu de amores por Norato. Ela cercava-o de agrados e tentava de
todos os jeitos conquistá-lo. Ao se aproximar da meia-noite Norato disse a moça que tinha de
ir, mas ela insistiu para que ficasse e lhe ofereceu, autorizada pelos pais, hospitalidade em sua
casa. Diante de tanta insistência, o rapaz aceitou, mas exigiu uma condição, que ninguém o
procurasse, nem mesmo olhasse onde ele estava, depois que se recolhesse. Antes da meia-
noite, Norato se despediu de todos, da moça, e entrou para o quarto. A moça remoendo a
89

exigência que ele fizera e sem conter a curiosidade aproximou-se do quarto em que Norato
estava, olhou cuidadosamente pela fresta da porta e viu então o moço deitado na rede nu,
transformando-se lentamente no exato momento que dava meia-noite. A moça espantou-se
horrivelmente com o que via, Norato transforma-se em uma enorme cobra, e em seu susto
lançou um grito de pavor. Então,

Norato Antônio descoberto em seu segredo, fazia vibrar suas energias com
outros encantados para proteger-se da curiosidade dos mortais. Tudo que era
fixo, mexeu-se, as casas desfizeram-se como papel. As águas tragaram a
cidade, derramaram-se sobre a planície formando o lago Guajará. Até hoje,
ao atravessá-lo, ouve-se os sons da festa inacabada. (LIMA, 2002, p. 86).

Pacheco (2009, p. 411) afirma que a presença da cobra no imaginário da Amazônia


marajoara,

[...] revela marcas próprias da cosmologia afroindígena inscrita nas


identidades da região. Se na mitologia cristã este ofídio é a representação do
pecado e destruição do homem, na concepção marajoara é símbolo de vida e
fertilidade. Sem as cobras os rios secam, os animais desaparecem e a floresta
morre. Em motivos marajoaras, traços sinuosos e circulares expõem ventres
maternos que resguardam cobras. No imaginário afro, cobras serpenteiam
rios e terras, interligando espaços separados [...].

A cobra, por sinal, é um símbolo praticamente universal e presente em várias


cosmovisões, e comumente representa o poder de auto-regeneração, cura e imortalidade,
devido a troca de pele. Também acredita-se que esse animal detêm conhecimentos ocultos,
pelo fato de viver tanto na água, como na terra e sob a terra, ou seja, nas profundezas, local de
mistérios e mundo dos mortos e antepassados (ELIADE, 2001).
Penso que exista ainda algo mais substancial nas lendas da cobra-grande, uma
herança cultural que remonte de fato à um universo mítico indígena amazônico. A tradição
dos Mawés conta que a Grande Serpente, Mói wató Mãgkarú-sése, mãe de todas as cobras-
grandes, teve que sacrificar seu corpo para ser transformado em nosso planeta. Assim, do
corpo da grande-cobra-mãe surgiram as florestas, rios e muitos dos seres que conhecemos
(YAMÃ, 2004).
Quando as pajés Raimunda e Kátia Yawanawá estavam em processo de iniciação,
tiveram de tomar o cuspe da jibóia, animal sagrado na cultura Yawanawá . Raimunda explica
que “[...] logo após dois meses da dieta, quando mexemos com a planta sagrada, o Rare, meu
90

pai trouxe a jibóia e nós tomamos o cuspe dela. Tomamos o cuspe e o conhecimento dela. A
gente não sentiu medo” 21.
Provavelmente, a Jibóia seja uma deidade ou força divina na espiritualidade do povo
Yawanawá, e estaria associada a sabedoria e ao poder de cura, virtudes que um pajé deve ter.
Na mitologia grega, Hermes porta um cajado envolto por serpentes, o caduceu,
símbolo do deus mensageiro, do comércio, das estradas, e tantos outros atributos. Por ser um
deus mensageiro, Hermes pode transitar e ter acesso aos mais diversos mundos e lugares. Na
América Central, a Serpente emplumada, representação do deus Quetzalcoatl dos nahualt, e
está relacionada ao céu, poder e sabedoria.
Seja qual for a mitologia, a cobra representa o poder, a cura e sabedoria, e além
disso, está ligada aos xamãs e sacerdotes, pessoas que fazem (e são, simbolicamente) a ponte
entre os deuses, os espíritos e o ser humano.
Na entrevista com D. Olga, esta relembra e canta a doutrina de Norato Antônio, que
é a seguinte:

Me chamou, Norato Antônio


Sou contramestre dessas cordas
Sou contramestre dessas cordas
Já venho ver os camaradas
Aqui tem remédio pra eu ensinar
Pra quem não tem, venho ensinar.

Nessa cantiga parece estar claro um dos atributos principais de Norato Antônio, o
grande conhecimento sobre as ervas e a pajelança, por isso ele é considerado o mestre e/ou
contramestre de muitos pajés e curadores.
Quando “trabalhava” (curava) seu Zé Piranha usava uma calça branca, de bainha
enrolada, e ficava sem camisa. Utilizava o maracá, cigarro de tauari e três cintas, uma
amarrada na cintura, outra amarrada na altura do peito, e a outra colocada inclinada no tronco
e com o nó para trás, chamada de cinta-mestra e, segundo D. Olga, representava a Cobra
Caninana, “uma das cobras mais brabas que tem” (D. Olga). A Cobra Caninana pode referir-
se à Maria Caninana, irmã do caruana Norato. Essas cintas e, sobretudo, a cinta-mestra,
servem para a proteção do pajé, para afastar os cabocos ruins. Além disso, a cachaça também
era presente nos rituais de cura e muitas vezes era bebida pelo encantado, e “depois que

21
Entrevista com as pajés Yawanawá disponível no site <http://altino.blogspot.com.br/2006/04/primeira-paj-
brasileira.html>. Acesso em 15/08/2012.
91

acabava o trabalho ele [o pajé] estava bom, quer dizer, não é ele quem bebe, é o caboco”,
como afirma D. Olga.
Seu Zé Piranha também utilizava vinho nos trabalhos, com o qual ele fazia uma
bebida, que D. Olga chama de “sangria”, em que misturava um pouco do vinho com água e
açúcar e era distribuída, moderadamente, às pessoas presentes. A roupa que ele utilizava nos
trabalhos só era lavada pelas mãos de sua esposa, e seus instrumentos também eram limpos e
guardados em uma maleta por ela, que só eram novamente utilizados quando houvesse outro
ritual de cura.
D. Olga conta que Zé Piranha era católico, devoto de Santo Antônio e mantinha um
pequeno altar (ainda existente) em sua casa. Ela conta também que seu pai costumava ir à
missa, até que o padre começou a criticar a prática dos pajés e, então, seu Zé sentindo-se
ofendido, parou de ir com tanta frequência à igreja. D. Olga, e também D. Zenilde e sua
filha 22, relatam que ele tinha o costume de todo fim de tarde sentar-se e ler a bíblia, e depois
que lia explicava tudo o que tinha entendido aos seus filhos. Na foto de seu altar ou oratório
abaixo, observa-se uma imagem de Iemanjá entre as imagens de santos católicos. Segundo D.
Olga, seu Zé Piranha não cultuava Iemanjá ou outros orixás, mas essa imagem teria sido um
presente de uma pessoa curada por ele, e sendo um presente, não poderia recusar.

Figura 38

Altar de seu Zé Piranha (Foto: Faro, 2011).

22
Pessoas que me abrigaram durante a pesquisa de campo realizada em dezembro 2011.
92

Seu Zé Piranha faleceu aos 77 anos devido a um infarto, e sua esposa viveu até os 90
anos de idade, falecendo em junho de 2011. E como deve ser feito quando morre um pajé,
seus instrumentos de cura foram lançados ao mar por alguns de seus filhos. Ele não deixou
nenhum pajé “formado”, mas D. Olga suspeita que sua neta, que está com dez anos, possa ter
nascido com o dom, pois ela teria tido uma visão de seu Zé Piranha, apesar de ter apenas
quatro meses de nascida quando ele faleceu. D. Olga afirma que se até os vinte e um anos a
menina não apresentar nenhum sinal de que tem realmente o dom de curar, ela não poderá
mais desenvolver esse dom. Por enquanto, as cantigas ou doutrinas dos encantados, o
chacoalhar do maracá, o cheiro de alecrim e a fumaça do tauari ficarão apenas nas lembranças
sobre o seu Zé Piranha, guardadas na memória de D. Olga e sua família.
Como é possível perceber, mesmo o pajé nesse caso sendo um homem, as mulheres
sempre estavam presentes e participando de uma forma ou de outra na pajelança. Se não fosse
a esposa de seu Zé Piranha, ele talvez jamais teria sido um pajé, e se não fossem as suas
filhas, dentre elas D. Olga, ele não teria tido apoio e assistência de pessoas confiáveis durante
os ritos de cura. E ainda, quem sabe, a neta de D. Olga (e bisneta de seu Zé Piranha), seja a
próxima pajé daquela família. A mulher, portanto, não sofre restrições em ser pajé em Soure,
pelo contrário, ela está presente, próxima e participativa de todos os processos de cura e
pajelança.
93

4. A Pajé Zeneida Lima: sua trajetória e relação com a mídia e a comunidade de Soure.

A mulher pajé que começou a ser conhecida no Brasil em 1998 e desperta hoje
admiração e também discussões polêmicas entre acadêmicos e leigos, é bastante reservada e
de difícil acesso. Consegui entrevistar, depois de muita persistência, Zeneida Lima três vezes,
em novembro de 2009, em julho de 2010 e julho de 2011, além de pequenas conversas
informais por telefone ou pessoalmente. Ainda assim restaram algumas lacunas na pesquisa,
pois não foi possível participar ou assistir a um ritual de pajelança realizado por D. Zeneida.
De certa forma, tive mais contato com seu neto, Raul Prazeres, do que com ela própria, pois
foi ele quem me levou e acompanhou três vezes ou mais na escola que hoje é chamada
“Zeneida Lima de Araújo”, e no espaço particular da pajé, onde se encontram estátuas de onze
caruanas reverenciados na pajelança de Zeneida Lima.

Figura 39

Raul me mostrando os trabalhos de cerâmica no barracão de artesanato na escola “Zeneida Lima de Araújo”, em
julho de 2011 (Foto: Adriano Cavalcante, 2011).

No início do trabalho de campo, tive impressão de que a filha mais velha de Zeneida
Lima demonstrava certa resistência para comigo, mais do que a própria Zeneida, que se
mostrou bastante simpática durante as conversas, apesar de ser um pouco impaciente em
alguns momentos, talvez devido ao cansaço de responder constantemente a entrevistas. Mas
essa resistência foi se dissipando a medida que me conheciam, e o que senti com o tempo não
fora mais resistência, mas um pouco de descaso, apesar de se mostrarem sempre simpáticos
quando os encontrava em Soure. Houve vários momentos em que fui à porta da casa de
Zeneida Lima para uma entrevista já agendada e tive a resposta de um de seus familiares ou
94

conhecidos de que naquele momento ela não poderia me atender, apesar de ter combinado
comigo tal horário.
Formalmente, foram três entrevistas que tive com esta pajé, que me recebeu na
varanda de sua casa para conversarmos sobre a “pajelança marajoara”, como ela define suas
práticas e que, segundo ela, se diferencia da que é praticada pelos demais pajés, cuja pajelança
seria da “linha do Maranhão e de São Sebastião" (entrevista em julho de 2010).

4.1. Trajetória e relação com o espaço público

Figura 40

Zeneida Lima após entrevista (Foto: Faro, 2009).

Sua casa em Soure se localiza no início da 2ª rua, é uma casa grande, possui varanda
em volta, um quintal, gramado em frente e ao redor da casa, e possui um muro branco
relativamente alto protegendo a privacidade. No alto, na fachada interior da casa, está escrito
“Chome Zomadonu”, referindo-se a principal entidade da Casa das Minas 23 no Maranhão.
Ferreti (2001, p. 02) cita um trecho do relatório do colóquio da UNESCO (1985, p. 41) em
São Luís que assinala sobre essa entidade o seguinte:

Segundo um chefe tradicional vindo da África, Zomadonu é considerado


como o culto mais importante no reino Fon. […] O nome de Zomadonu, que
significa "Não se põe o fogo na boca", traduz o poder excepcional deste
Vodum.

23
A mais antiga casa de culto afro-religioso do Tambor-de-Mina fundada em São Luís (MA).
95

Essa inscrição na casa de D. Zeneida indica uma relação existente entre ela, a Casa
das Minas e os cultos afro-religiosos. Um momento de sua vida ainda pouco relatada em seus
livros, salvo alguns trechos, em sua autobiografia, sobre sua amizade com o antropólogo
Nunes Pereira, que pesquisou a Casa das Minas. Em entrevista realizada em julho de 2011, D.
Zeneida contou-me sobre sua relação com a Casa das Minas no Maranhão e afirmou:

Eu fui no Maranhão. Conheci o Dr. Nunes Pereira, ele foi fazer um estudo lá
na Casa das Minas, e eu servi de fonte pro Dr. Manuel Nunes Pereira. Deixa
eu te dizer, porque a vovó, ela cultuava o povo da África, o candomblé, ela é
mina-jeje. Então a vovó, ela me contava muita coisa... E ela disse pra
mamãe, quando eu nasci, que se ela não fosse do santo de azeite ela me
tratava.

D. Zeneida explica em seguida que a expressão “santo de azeite” é:

[...] quando a pessoa é de candomblé, né? Que se ela não fosse do santo de
azeite ela me tratava, mas ela era do santo do azeite, e eu pertencia ao povo
das águas (entrevista de julho de 2011).

Esta pajé escreveu sete livros, sendo o mais famoso “O Mundo Místico dos Caruanas
da Ilha do Marajó”, atualmente em sua 6ª edição (2002), em que escreve sobre sua infância
em Soure, os conflitos familiares, alguns acontecimentos do cenário político da época, sua
iniciação na pajelança, alguns conhecimentos de cura, sua estada no Rio de Janeiro, e outros
eventos de sua vida até o início da idade adulta. Os livros mais recentes da pajé, como “O
Recado do Papagaio”, são voltados ao público infantil e tratam sobre a preservação da
natureza. Além disso, há um segundo volume, que dará continuidade ao “Mundo Místico...”,
já escrito pela pajé esperando ser publicado pela editora Dialeto de São Paulo (segundo o que
ela me informou durante a entrevista de julho de 2011), e há também um filme de longa-
metragem dirigido por Tizuka Yamazaki chamado “Amazônia Caruana”, baseado nesta obra
autobiográfica de Zeneida Lima, mas ainda sem previsão de lançamento no cinema.
Essa estreita relação da pajé com a mídia é um fator que incomoda muitas pessoas,
desde o simples morador de Soure, ao pajé ou curador(a) que vê a divulgação das práticas de
cura e de uma pajelança geralmente diferente ou desconhecida por ele(a), até o estudioso
acadêmico do tema que se sente intrigado ou mesmo desconfiado diante de um estilo de
pajelança, até então, pouco estudado. Somado a isto, parte da população de Soure tem
antipatia pela pessoa de Zeneida Lima devido a um acontecimento ocorrido há mais de vinte
anos atrás, quando a filha do prefeito da época misteriosamente desapareceu. A menina era
afilhada da pajé e sumiu quando saiu da casa desta. Algumas pessoas da cidade passaram a
96

acusar a pajé de ter feito um ritual de “magia negra” com a menina, mas nada foi provado pela
polícia que comprovasse o envolvimento da pajé com o sumiço da criança, e a acusação do
povo representava mais uma atitude de discriminação contra Zeneida Lima do que um
testemunho verídico. Não possuo muitas informações sobre esse acontecimento, que aliás, até
hoje algumas pessoas recordam, mas preferem não comentar muito, portanto, não me deterei
muito nesse assunto.
D. Zeneida Lima também possui um site, em que divulga as atividades referentes à
ONG que fundou em 2001, a “Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia”, que
abarca uma escola de ensino fundamental, hoje chamada “Zeneida Lima de Araújo”, criada
em 2003. Esta escola além de oferecer as disciplinas obrigatórias do currículo escolar, oferece
também aos estudantes cursos e oficinas (de cerâmica, crochê, capoeira, música),
desenvolvendo a ideia de formação integral do indivíduo. Além de informar sobre as
atividades da escola, o site apresenta algumas informações sobre a pajelança praticada por
Zeneida Lima, seus livros etc.
Nascida em 21 de julho de 1934 no município de Soure, do matrimônio entre
Angelino Rodrigues de Lima e Maria José de Andrade Figueira de Lima (sua segunda
esposa), sendo Zeneida Lima a terceira dos doze filhos. Seu pai teria sido um influente
político e advogado, que nos anos 30 e 40 atuou ao lado de Justo Chermont e Magalhães
Barata, sendo este último o padrinho de nascimento de Zeneida Lima (LIMA, 2002).
Sua relação com figuras do meio político não se limita apenas a isso. Em seu livro,
ainda na primeira edição (1991), ela dedica agradecimentos a diversas pessoas importantes do
ramo da política, como vereadores, deputados, ex-prefeitos, ex-vice-governador, do ramo
militar, do magistério, como desembargadores, da medicina, e também da antropologia (no
caso, Manuel Nunes Pereira).
A sua atuação ao lado de políticos pode ser bem exemplificada no fato ocorrido em
28 de abril de 2010, quando a Assembleia Legislativa do Estado do Pará aprovou em 1º turno
o Projeto de Lei Ordinária Nº 289 elaborado pela deputada estadual Ana Cunha, que declara a
Pajelança Cabocla do Marajó integrante do Patrimônio Cultural Imaterial do Pará 24. Outros
eventos também podem ser citados, como a sua manifestação em defesa da preservação da
Amazônia no Senado brasileiro em maio de 2009, onde fez um pronunciamento perante os
políticos e entregou-lhes um abaixo-assinado, contou com o apoio de artistas, ambientalistas e
demais pessoas que defendem a causa ambiental.

24
Informação obtida no site <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 19/09/2012.
97

Figura 41

Zeneida Lima durante o pronunciamento no senado em defesa da floresta amazônica (Fonte:


<http://rebeccagarcia.blogspot.com.br/2009/05/vigilia-pela-preservacao-da-amazonia.html>. Acesso em
19/10/2012).

Figura 42

Cumprimentando políticos após sua fala (Fonte: <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 19/10/2012).

Outro evento de grande importância ocorreu no ano anterior, em 2008, quando


recebeu o prêmio Imortal pela empresa Vale, como reconhecimento por sua luta pela
preservação ambiental. Paradoxalmente, a Vale é uma das empresas que mais explora e
exporta recursos naturais na região norte do Brasil.
98

Figura 43

Zeneida Lima recebendo o prêmio Imortal da Vale ao lado de outras figuras importantes, entre elas o ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso (Foto divulgada por Josie Prazeres, neta de Zeneida Lima, em sua página
pessoal numa rede social da internet).

Nesta premiação, D. Zeneida foi imortalizada na espécie vegetal Antúrio Quilhado


(reserva de Linhares), e agora a espécie chama-se “Zeneida Lima”, como mostra a foto
abaixo.
Figura 44

Zeneida Lima imortalizada na espécie Antúrio Quilhado (idem).

O leque de relações da pajé Zeneida Lima se estende também à área da música, do


cinema e teatro, da educação, da tecnologia, etc. Obtendo apoio de pessoas dessas diversas
áreas e também de instituições (Petrobras, FAO, Unesco) que financiam ou apoiam os
projetos sociais e educacionais do Instituto Caruanas do Marajó.
99

Entre o meio musical e artístico, Leila Pinheiro produziu recentemente um álbum


intitulado “Raiz” em que gravou algumas músicas de autoria da pajé Zeneida 25, pois esta
também compõe poemas e músicas. Uma dessas músicas se chama “Eu agradeço ao Céu”, e é
uma espécie de oração ou ode à natureza e, em especial, ao Beija-Flor (um caruana na
pajelança de D. Zeneida, como veremos mais adiante). Nesta canção/oração, D. Zeneida entoa
as seguintes palavras:

Eu agradeço ao Céu
Eu agradeço ao Mar
Eu agradeço a Terra
E agradeço ao Ar
Agradeço a natureza por tudo que ela criou
A coisa mais bonita pra mim é o Beija-Flor
Com sua fragilidade, com suas asas multicor
Ele voa na floresta a procura de uma flor
É o amor, é o amor
Como é lindo o Beija-Flor 26.

As quatro músicas (“A Lua”, “Olha o mar”, “Luar” e “Eu agradeço ao Céu”)
compostas por D. Zeneida e gravadas nesse álbum de Leila Pinheiro evocam claramente a
natureza, sua beleza e mistérios. Esta cantora, em um show aparentemente recente, também
declara ser amiga e grande admiradora de D. Zeneida 27.
No ano de 2008, na 17ª edição do Encontro para a Nova Consciência (ENC) em
Campina Grande/PB, a pajé Zeneida Lima participou do evento realizando uma palestra
intitulada “A criação do Mundo na visão dos índios marajoaras” 28, onde ela narrava o mito de
criação do mundo pelo Girador (a divindade primeira), o mesmo mito que é encontrado em
seu livro, “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” (2002, 6 ed.). Esse evento
acontece uma vez por ano durante o feriado do carnaval e reúne religiosos das mais diversas
vertentes que defendem a diversidade religiosa, o respeito ao outro e a preservação da
natureza. Sua participação nesse encontro evidencia, de certa forma, o ideal que norteia sua

25
Confira a matéria neste endereço: <http://www.youtube.com/watch?v=DlTQnqMoDyQ>. Acesso em
09/04/2012.
26
Esta música pode ser ouvida neste endereço: < http://www.youtube.com/watch?v=UkWpdvpF08k>. Acesso
em 18/10/2012.
27
Como mostra esse vídeo, trecho de um show de Leila Pinheiro em Belém:
<http://www.youtube.com/watch?v=RYCbxYJKEzo>. Acesso em 18/10/2012.
28
Até pouco tempo atrás havia no site do Youtube um vídeo mostrando a palestra na íntegra, mas por alguma
razão este vídeo foi retirado do site, e agora só há a primeira parte composta de uma palestra sobre ciganos
realizada por outro participante do Encontro, como podemos verificar aqui:
<http://www.youtube.com/watch?v=6X2QknQIles>. Acesso em 04/10/2012.
100

prática de pajelança e os projetos da ONG (Instituição Caruanas do Marajó). O ENC


relaciona-se com o que se chama de consciência planetária, e que segundo Oliveira & Souza
(2009) é um fenômeno recente, que começou a ganhar forma em meados do século XX e vai
além do movimento ecológico, propondo uma nova relação entre ser humano e planeta Terra,
e criando um novo modo de produção e consumo que seja mais harmônico com o meio
ambiente.
Oliveira (2009, p. 30) afirma que a consciência planetária:

[...] transcende a consciência ecológica, que suscita a responsabilidade


humana pela vida do planeta, na medida em que faz ver os humanos como
um componente entre outros no sistema de vida do planeta. Um componente
que pensa, fala e de diferentes modos expressa sua consciência – e que, ao
fazê-lo, distingue-se dos outros componentes –, mas que nem por isso pode
arrogar-se o direito de impor sua vontade sobre os demais.

Nesse sentido, D. Zeneida se destaca entre os outros pajés de Soure, do Pará ou


mesmo da Amazônia, pela relação que ela estabelece com o espaço público, artístico e
religioso - mesmo que de forma discreta, pois ela participou somente uma vez do ENC - e
pelo discurso e projetos que desenvolve em prol da educação e ecologia. A estes fatores,
soma-se ainda a pajelança “diferente” - se comparada aos outros pajés de Soure - que ela
apresenta.
Dois fatos lançaram Zeneida Lima no cenário nacional como uma figura que
simbolizava a cultura “original” brasileira, e mais particularmente, amazônica. O primeiro foi
a publicação de seu livro em 1991 (“O mundo místico dos caruanas e a revolta de sua ave”, 1
ed.), contando o início de sua trajetória na pajelança. E o segundo fato foi a criação em 1998
de um enredo29 de carnaval pela escola de samba “Beija-Flor” baseado neste referido livro de
Zeneida Lima. Vale lembrar que nesse ano, 1998, a escola de samba Beija-Flor foi vencedora
do carnaval do Rio de Janeiro. Mais tarde, com a produção do filme “Amazônia Caruana” a
popularidade e as relações de Zeneida com pessoas do meio artístico aumentaram. Além
disso, houve um estímulo no interesse (turístico, econômico e cultural) sobre o Marajó e suas
expressões culturais, em especial a pajelança, e particularmente a pajelança praticada por
Zeneida Lima.

29
O enredo é intitulado “Pará, o mundo místico dos caruanas, nas águas do Patu-Anu”, a letra pode ser conferida
neste endereço: <http://www.academiadosamba.com.br/passarela/beijaflor/ficha-1998.htm>. Acesso em
18/10/2012.
101

Figura 45

Zeneida Lima acompanhada por uma de suas filhas, atores e a cineasta Tizuka Yamazaki, durante as gravações
do filme “Amazônia Caruana” em Soure (foto divulgada por Josie Prazeres, em sua página pessoal numa rede
social da internet).

Figura 46

Bastidores da gravação do filme “Amazônia Caruana”, em destaque está D. Zeneida aparentemente dando
instruções aos atores para a cena (idem).

Tal interesse (e outros por trás deste) chegou a tal ponto que em 2012 a rede de
televisão Globo lançou uma novela (“Amor eterno amor”) em que alguns capítulos se
passavam em Belém e na Ilha do Marajó, nas proximidades de Soure. Alguns atores que
gravavam as cenas no local tiveram a oportunidade de conhecer a “última pajé mulher do
Brasil” 30, a escola e a sua fazenda31, como mostra a foto abaixo.

30
“A última pajé mulher do Brasil”, como se referiu uma neta de Zeneida Lima à esta em um comentário numa
rede social da internet. Sabemos, na verdade, que essa informação está equivocada, pois existem outras pajés
mulheres no Brasil, inclusive Hushahu e Raimunda Yawanawá, mencionadas no segundo capítulo deste trabalho.
102

Figura 47

D. Zeneida ao lado de alguns atores, que durante o período de gravação da novela visitaram a escola e fazenda
da pajé (idem).

Mesmo diante de tanta participação no espaço público e de estreitas relações com


pessoas famosas, conhecidas e mesmo respeitadas, ainda há pessoas da própria localidade de
Soure que não simpatizam com Zeneida, como o caso de uma senhora que conversei em
dezembro de 2011, esposa de um artesão, que disse que “Soure seria mais feliz se não fosse
essa mulher”, referindo-se a D. Zeneida e ao caso da menina que desapareceu há mais de
vinte anos. Em contrapartida, em setembro de 2011, quando fui a Soure participar de um
evento na escola “Zeneida Lima de Araújo”, conheci um rapaz, de aproximadamente trinta
anos, que trabalha como moto-taxista na cidade e enquanto me levava para a escola (local do
evento) me contou que conhecia D. Zeneida e seus familiares, pois sempre fazia serviços
(transportando alunos e pessoas para a escola), e que admirava muito seu trabalho com a
escola e a ONG. Contou também que quando as pessoas encontravam um animal, como cobra
ou macaco perdido na cidade, preferiam entrega-lo a pajé Zeneida e deixa-lo livre e vivo na
área verde da escola, a matá-lo.
Possivelmente a razão de algumas pessoas não aceitarem Zeneida Lima como pajé
seja por não (re)conhecerem suas práticas e crenças, pois divergem em grande parte das
práticas e crenças da religião cristã-católica32 e da própria pajelança cabocla, como é mais
conhecida pela maioria da população. Zeneida Lima não é considerada pela maioria da

31
Que demorou certo tempo para eu conhecer, e quando conheci, quem me acompanhou foi Raul, e não D.
Zeneida, como gostaria.
32
A qual a maioria da população de Soure é adepta.
103

população sourense uma pajé nativa de Soure, apesar de ter se criado e vivido boa parte de
sua vida lá, pois sua relação se dá de forma muito mais intensa com pessoas de fora do que
propriamente de dentro de Soure. Além do mais, é possível perceber que D. Zeneida é mais
reconhecida em Soure por meio da escola e seus projetos na ONG Caruanas do Marajó, do
que por sua atuação na pajelança. Em outras palavras, ela é mais reconhecida pela população
de Soure como diretora da ONG do que como Pajé.
Isso nos leva as seguintes reflexões: estaria D. Zeneida buscando na mídia e espaço
público o apoio e a legitimidade que não consegue da maioria da população de Soure? Ou
seria apenas sua forma de mostrar a sociedade uma pajelança cabocla ainda pouco conhecida?
Uma forma de ganhar espaço e voz, ao lado de outras expressões religiosas que também
buscam visibilidade e legitimidade à sua tradição, como o candomblé, umbanda, espiritismo e
protestantismo? Será essa “pajelança marajoara” algo construído e ressignificado para “turista
ver”, uma cultura de exportação, uma “pajelança de vitrine”, que não encontra de fato reflexo
na realidade de Soure? Ou devemos considerar que sabemos pouco ou quase nada sobre as
culturas indígenas antigas no Marajó, e por essa razão é possível que a pajelança praticada por
D. Zeneida tenha de fato uma herança cultural indígena, desconhecida? Questões como essas
foram levantadas ao longo dessa pesquisa e enquanto escrevia este trabalho, algumas, creio
que, foram respondidas, outras continuaram com lacunas. Veremos, pois, neste e no capítulo
seguinte as conclusões que obtivemos. Neste momento, abordaremos sobre a escola “Zeneida
Lima de Araújo” e a Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia, pois é de
fundamental importância conhece-las e entender de que forma estão relacionadas à pajelança
exercida por D. Zeneida.

4.2. A Instituição Caruanas do Marajó

A primeira vez em que visitei a escola "Zeneida Lima de Araújo” foi durante a
pesquisa de campo em novembro de 2009, guiada pelo neto de D. Zeneida, o Raul, e dois
colaboradores/professores que estavam desenvolvendo cursos de cerâmica e crochê. No
entanto, devido ao feriado de finados não foi possível observar naquele momento a escola em
plena atividade. A escola fica inserida na área da fazenda (patrimônio da família) de Zeneida
Lima, e constitui um espaço realmente extenso, com várias salas, refeitório, biblioteca, sala de
informática, espaço para atividades socioculturais, barracão de cerâmica etc. Uma grande
porteira com as inscrições “O Mundo Místico dos Caruanas” indica a entrada da escola. A
104

vegetação está presente em todo o local, o que torna o ambiente muito agradável e
proporciona o contato direto com a natureza.

Figura 48

Porteira da entrada da escola (Foto: Faro, 2011).

Figura 49

Salas da escola “Zeneida Lima de Araújo” (Foto: Faro, 2009).

De acordo com a explicação de Raul, as salas e os outros espaços foram projetados e


construídos de forma que fossem sustentados por algumas hastes embaixo do chão e fixadas
no solo, e com isso ficam quase que suspensos. O propósito disso, segundo Raul, era para que
105

a Mãe-Terra não fosse sufocada e nem muito machucada pelo cimento e concreto. E também
para amenizar os riscos de alagamento nas salas e espaços nos períodos de chuva.

Figura 50

Barracão de cerâmica (Foto: Faro, 2009).

A escola atende mais de trezentas crianças no ensino regular, ofertando as séries do


ensino fundamental, além de funcionar turmas de EJA da primeira e segunda etapa 33, e sua
proposta é desenvolver a educação aliada à ecologia e à valorização da cultura local.

Figura 51

Estátua baseada na antiga cerâmica marajoara, que fica em frente a entrada do barracão de cerâmica, e foi
confeccionada por um artesão de Icoaraci/PA (Foto: Faro, 2011).

33
Informação no site oficial da Instituição Caruanas do Marajó (<www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em
19/10/2012).
106

A escola atende principalmente crianças carentes, moradoras de diversos bairros de


Soure, em especial os mais afastados e precários. Dispõe de uma condução escolar, cedida
pela prefeitura, responsável pelo transporte dos alunos.
Em 2011 foi realizado na escola um evento intitulado “V Jornada de Oficinas e
Palestras”, com o tema “Um Jovem Verde para o Planeta”, e ocorreu entre os dias 21 e 25 de
setembro de 2011. Esta foi a quinta edição de um evento que vem sendo realizado pela
Instituição Caruanas a cada dois anos, embora o último tenha ocorrido em 2007.

Figura 52

Banner do evento exposto na área onde aconteciam as palestras. Está com um pequeno erro, indicando que é a
VI Jornada, mas na verdade é a V (Foto: Faro, 2011).

Recebi um e-mail de Raul informando sobre a Jornada e convidando-me a participar


da mesma. Seria um momento interessante para observar como a escola funciona e os alunos
que a frequentam. O evento constituiu de palestras, geralmente voltadas a comunidade escolar
(sobretudo, familiares), e oficinas, de música, informática, desenho etc., voltadas aos
estudantes daquela e de outras escolas.
Entre os palestrantes, estava o deputado federal Arnaldo Jordy, que falou sobre o
problema da exploração sexual infantil; funcionários do governo que atuavam no programa
Pro-Paz, para falar sobre este; e representantes da SEDUC, que falaram sobre educação
ambiental. Não participei de todas as palestras, mas uma das que assisti foi a de Arnaldo
107

Jordy, e o público presente era relativamente grande, em torno de cinquenta pessoas ou mais,
sendo a maioria mulheres.

Figura 53

Palestra “Violência contra o menor. O que temos feito?”, ministrada por Arnaldo Jordy, durante a V Jornada de
Oficinas e Palestras da escola “Zeneida Lima de Araújo” (Foto: Faro, 2011).

As oficinas foram ministradas por pessoas vindas de Soure, Belém e Rio de Janeiro
(onde Zeneida Lima morou alguns anos antes de retornar a Soure), e algumas dessas pessoas
atuam em órgãos ou entidades como a Fundação Carlos Gomes, Secretaria de Estado de
Comunicação e o Sindicato dos trabalhadores rurais de Soure.
A programação da Jornada constituía de palestras e oficinas durante a manhã e a
tarde no espaço da escola, e apresentações musicais durante a noite na praça principal de
Soure, durante todos os dias do evento (21 a 25 de setembro). Dentre as atrações artísticas
estavam Quinteto de Metais, da Fundação Carlos Gomes, Pedrinho Cavalero e Nazaré Pereira.
Esta última é natural do Acre (cidade de Xapuri), mas reside há mais de 28 anos na França e
canta músicas populares da Amazônia, num estilo próximo ao carimbó. Nazaré Pereira fez
duas apresentações em Soure, e uma em Belém, após a V Jornada.
108

Figura 54

Nazaré Pereira em seu show no palco montado na praça principal de Soure (Foto: Faro, 2011).

A temática da jornada era evidentemente a educação e a consciência ecológica,


embora nem todas as palestras e oficinas fossem voltadas a este tema. Contudo, a proposta, o
discurso e ações da Instituição Caruanas são quase sempre voltadas à preservação do meio-
ambiente.

Figura 55

Mural transmitindo a mensagem de preservação da natureza, exposto na grande área onde aconteceram as
palestras durante a V Jornada (Foto: Faro, 2011).
109

As crianças estudantes da escola “Zeneida Lima de Araújo” demonstravam estar


bastante animadas com o evento. Perguntei a algumas delas o que elas achavam da escola, e
todas disseram que adoravam estudar ali, que gostavam dos professores, das matérias e do
espaço da escola. Em um dado momento vi que algumas dessas crianças abraçavam Zeneida
Lima e a chamavam carinhosamente de “tia Zeneida”. A relação entre Zeneida e as crianças
estudantes da escola é visivelmente positiva.

Figura 56

Alunas da escola “Zeneida Lima de Araújo” no micro-ônibus que fez o trajeto de ida e volta dos alunos durante a
V Jornada (Foto: Faro, 2011).

Este evento teve apoio do Governo do Estado e de alguns órgãos e entidades, mas de
longe não foi um evento grandioso como foi a IV Jornada, que teve a presença de artistas
(como Fafá de Belém), músicos, produtores de cinema e animação vindos de São Paulo e Rio
de Janeiro, e professores (como o Dr. Ribamar Bessa, da UFAM). Mas, sem dúvida, a V
Jornada foi um evento grande, que chamou a atenção da população de Soure, embora não
tenha mobilizado um grande público. D. Eliana, filha de Zeneida Lima e uma das
organizadoras do evento, afirmou que não receberam apoio do prefeito de Soure e reclamou
que ele não divulgou a Jornada nas rádios locais, e segundo ela, isso teria prejudicado o
conhecimento e participação da população no evento.
110

Figura 57

Cartazes ao lado do palco na praça principal agradecendo aos colaboradores do evento, com os dizeres
“Obrigado superintendente Paulo José Campos de Mello, Fundação Carlos Gomes” e “Os caruanas agradece o
apoio da SEICON” (Foto: Faro, 2011).

Além disso, D. Eliana argumentou que a pouca participação da população de Soure


nas apresentações musicais foi devido a “cultura de brega” que impera na sociedade paraense
em geral. Ela me afirmou que “se fosse uma banda de brega que estivesse se apresentando,
todo mundo viria”, e quis dizer que o povo ou a grande massa valorizam mais a música brega
do que a música erudita ou o próprio carimbó.
Contudo, houve duas apresentações que aparentemente despertaram mais a atenção
do público, que foi o segundo show de Nazaré Pereira e a apresentação de música e dança das
crianças da escola, especificamente as crianças que fizeram a oficina de música, ministrada
por Igor Nicolai, músico formado pela UFRJ e amigo de Josie Prazeres (neta de Zeneida Lima
e atual diretora da escola). No primeiro momento da apresentação, as crianças tocaram junto
com os músicos no palco a música “Vatapá”, de Dorival Caymmi, e no segundo momento
dançaram duas danças de carimbó, sendo que a segunda era uma composição de Zeneida
Lima e falava sobre Soure, suas praias e belezas naturais.
111

Figura 58

Apresentação de música das crianças da escola “Zeneida Lima de Araújo” (Foto: Faro, 2011)

4.3. Zeneida e a comunidade de Soure

Esse evento teve um propósito maior, que vai além de promover um evento sócio-
educacional para a escola e a comunidade de Soure (que de fato carece de iniciativas e
projetos como este). Esse evento, de certa forma, também mostrou à cidade que Zeneida Lima
não mais se esconde nos muros de sua casa, apesar de ainda manter uma postura bem
reservada. Mesmo que existam muitas pessoas que não reconheçam ou mesmo conheçam a
pajé Zeneida Lima, ou ainda que algumas dessas pessoas demonstrem hostilidade para com a
pajé (sobretudo devido ao caso do desaparecimento da menina), ela não teme mais ser
acusada ou até mesmo ameaçada 34 pela população de Soure. Com esse evento, Zeneida Lima
mostrou a Soure que ela “continua de pé” e caminha livremente pelas ruas da cidade, embora
ainda timidamente e sempre rodeada de parentes e amigos. No entanto, como pude perceber
em diversas ocasiões durante a pesquisa de campo, a população de Soure (re)conhece Zeneida
Lima mais em sua face de diretora da Instituição Caruanas e promotora de projetos sociais do
que em sua face de Pajé.

34
Como ela me afirmou em entrevistas que fora diversas vezes ameaçada por pessoas da população e da Igreja.
112

Figura 59

D. Zeneida sentada ao centro, cercada por parentes e colaboradores do evento, durante uma apresentação musical
na praça de Soure (Foto: Faro, 2011).

A relação com outros(as) pajés de Soure, como foi possível notar durante a pesquisa,
é de conflito ou no mínimo de indiferença, pois enquanto alguns pajés criticam a sua forma de
pajelança, outros simplesmente não conhecem Zeneida Lima ou sequer ouviram seu nome
(como D. Dica).
Em um relato durante entrevista realizada em julho de 2011, Zeneida critica D.
Roxita, afirmando que esta a acusa de fazer “coisa feita” (feitiço ou malefício) contra as
pessoas que a procuram, como Zeneida diz em seu depoimento:

Aqui no Marajó, essa Roxita, todo mundo que vai lá ela diz que eu faço
“coisa feita”. Todo mundo que vai lá, diz que eu faço “coisa feita”.
Entendeu? Diz que eu que mando isso pros outros... Onde já se viu isso
menina?!

E D. Roxita por sua vez, contou-me, na primeira entrevista que fiz com ela (em
fevereiro de 2009), que não concordava com a pajelança de Zeneida, dizendo que “aquilo não
é pajelança”.
Zeneida Lima falou algumas vezes nas entrevistas sobre as perseguições que sofreu
anos atrás, comentando, inclusive, que descreveu tudo em seu próximo livro que será
publicado (a continuidade do “Mundo Místico...”). Ela conta o seguinte:
113

[...] menina foi 300 pessoas aqui na minha porta pra me matar, pra me matar
mesmo. Com tocha de fogo, terçado, machado. [...] tá tudinho no livro, veio
polícia, veio tudinho pra cá. Invadiram, quebraram meu quarto pra ver se
tinha alguma coisa subterrâneo... Daí eu quero que tu leia, porque tu vai
ver... E hoje em dia todo mundo diz “ah dona Zeneida...”, sabe? E eu não
tenho raiva de ninguém, não guardo ódio de ninguém, eu não guardo raiva,
sabe, eu não tenho esse negócio de guardar raiva... Cada um dá o que tem,
né? E eu digo assim, a pior coisa que tem é o cego. É aquele que tem olhos,
mas não enxerga. E essas pessoas que fazem isso é porque ainda não estão...
é.... evoluída né, pra enxergar como eu enxergo, o mundo né?

Ela conta que sofreu perseguições tanto de parte da população, como da polícia e das
igrejas (católica e protestante). Esse relato parece se referir ao período em que D. Zeneida foi
acusada por parte da população de Soure pelo desaparecimento da menina, filha do prefeito da
época, e como foi mencionado anteriormente, nada foi provado pelas investigações e o caso
foi encerrado. Provavelmente é em razão dessas perseguições que D. Zeneida seja uma pessoa
tão reservada.
Famosa em outros estados (sobretudo da região sudeste) e quase desconhecida na
própria cidade, D. Zeneida é uma figura contraditória, polêmica, mas ao mesmo tempo
intrigante e carismática. Apesar de dividida entre a hostilidade e a empatia da população de
Soure, esta pajé continua erguendo a bandeira da ecologia e de uma pajelança “marajoara”,
situada entre a tradição e a modernidade. Uma pajelança herdada, de culturas antigas, mas
também reinventada, como todas as demais pajelanças, e como todas as outras expressões
religiosas. Pois sem o constante processo de reinvenção e adaptação, não há cultura, e
tampouco religião.
114

5. O “Mundo Místico” de Zeneida Lima

5.1. A iniciação como pajé

Como anteriormente mencionado, Zeneida nasceu em 21 de julho de 1934 em Soure,


filha de Angelino Rodrigues de Lima e Maria José de Andrade Figueira de Lima, sendo
Zeneida a terceira de doze irmãos. Segundo sua autobiografia (“O Mundo Místico dos
Caruanas da Ilha do Marajó”, 2002), sua avó paterna, Rosa, era negra, descendente dos
africanos e contava a D. Zeneida Lima ainda pequena histórias de Agontime, sua suposta
tataravó que nascera na África e era rainha do Daomé, cujo dois filhos (Adandoza e Gezo)
com o rei Agongolo foram obrigados a deixar a terra africana e a viver no Brasil, e assim
constituindo a descendência de sua família. Sua avó Rosa além de apresentar uma vasta
memória das histórias do povo negro, demonstrava também possuir saberes ligados a cura e a
magia. Ela teria previsto e avisado a mãe de Zeneida que esta era acompanhada pelas
“energias da natureza”, e “pertencente ao Mundo das Águas” (LIMA, 2002, p.38).
Zeneida Lima alega em seu livro possuir também uma descendência europeia e
indígena. Sua avó materna, Leonora, seria de origem espanhola, que se uniu a um pajé
caboclo descendente da tribo Sacaca da Ilha do Marajó, e dessa união nascera sua mãe, Maria
José. Assim, Zeneida argumenta trazer em seu sangue o poder ancestral da magia e da cura,
através de seus antepassados que representam as vertentes culturais negra, indígena e
europeia.
O nascimento de Zeneida Lima foi precedido por diversos sinais que anunciavam seu
futuro como pajé. O primeiro sinal foi o choro no ventre da mãe:

No silêncio entre ambas, como se abafado e vindo de longe, ouviu-se um


vagido de criança. Otilia conseguiu dizer: É de seu filho... É... é claro, o
choro veio de sua barriga... Mamãe pôs a mão no ventre. Sentiu-me mover.
[...] Na voz do povo, criança que chora no ventre da mãe tem o Dom de
adivinhar (LIMA, 2002, p. 42).

Este prenúncio indica que um indivíduo possui o dom de ser pajé e é muito
conhecido e observado por vários pesquisadores, dentre eles Galvão (1955) e Maués (1990).
O segundo sinal ocorreu no sétimo mês de gravidez, durante uma viagem de barco
para Breves em que Maria José (ou Zezé, como também é chamada), Guiomar, Gumercindo e
Pedro (alguns conhecidos seus) pretendiam visitar um casal de amigos, cujo filho havia
115

falecido. Enquanto a embarcação percorria as águas do Paracauari, a mãe de Zeneida Lima se


surpreendeu com uma enorme borboleta azul que pousara em seu ventre, e transmitia-lhe a
sensação de que nenhum mal poderia lhe atingir (LIMA, 2002). Conforme a crença popular,
avistar próximo de si, tocar ou ser tocado por uma borboleta azul é indício de felicidade e boa
sorte.
Em seguida, ainda durante essa viagem, mas dessa vez em terra firme, quando Maria
José e os que a acompanhavam andavam pela mata outra borboleta azul, maior do que a
primeira, começou a sobrevoar sobre a mãe de Zeneida Lima, e parecia tentar pousar em sua
barriga. Irritada com isso, Maria José espantou o inseto com um galho de árvore, e assim
prosseguiram viagem a pé pela floresta. Algum tempo depois, quando pararam para descansar
e passar a noite numa casa abandonada, espantaram-se com três borboletas azuis voando em
volta da barriga de Maria José.
Em entrevista, em julho de 2010, Zeneida Lima explicou-me que a borboleta azul é
uma manifestação de Anhangá, um ser ambíguo da natureza que carrega forças ao mesmo
tempo positivas e negativas.
Mais tarde, durante a noite enquanto descansavam, Pedro foi assombrado por um
“bicho do fundo” que o derrubava da rede sempre que dormia, para depois fugir e mergulhar
no igarapé que existia nas proximidades. Guiomar, que era esposa de Pedro, sugeriu a Maria
José que isso seria “caruana mundiando esta criança que está no teu ventre” (LIMA, op. cit.,
p.50).
O quarto sinal ocorreu no dia em que Zeneida Lima nasceu, em Belém, com a ajuda
da parteira Luiza. Logo depois da menina Zeneida sair do ventre de sua mãe, esta continuou
em trabalho de parto, que expulsou não uma criança, mas um ser de “forma redonda que
possuía olhos, nariz, boca e todos os órgãos” (LIMA, 2002, p.52), uma criança mal formada,
que depois de alguns minutos veio a falecer. Em entrevista, realizada em julho de 2010,
Zeneida revelou que acredita que esse fora um sinal de seu destino como pajé, pois seu bisavô
teria dito a sua mãe que ela ao nascer viria com a lua. De alguma maneira Zeneida Lima
acredita que a lua corresponderia a essa irmã, que não se formou perfeitamente, e por essa
razão faleceu.
Por fim, o quinto sinal ocorreu algumas horas depois de seu nascimento, enquanto
sua mãe repousava e a pequena Zeneida dormia em uma rede, sendo vigiada pela parteira
Luiza, quando de repente um enxame de abelhas invadiu o quarto e pousaram sobre a criança,
envolvendo-a como um casulo. Subitamente, Luiza lembrou de fazer uma defumação com
uma brasa, um fogareiro e ervas de alecrim e alfazema. Assim que a fumaça se espalhou pelo
116

quarto as abelhas agitaram-se desfazendo o casulo, e de uma só vez levantaram voo pela
janela (LIMA, 2002). A parteira examinou a criança e constatou que as abelhas não a haviam
ferrado.
Posteriormente a isso, outros acontecimentos estranhos teriam ocorrido ao longo da
vida de Zeneida, ora com características amistosas e amigáveis ora perigosas e hostis, mas
sempre misteriosas. Ela relata que muitas vezes ficou seriamente doente, e apenas conseguia
melhorar com a ajuda de um curador ou pajé, que receitava banhos e outros remédios à base
de plantas.
Assim como aconteceu com a pajé Roxita, Zeneida Lima também foi levada por
encantados para o mundo que habitam. Entretanto, sua experiência foi bem diferente. Quando
tinha onze anos de idade, ela, acompanhada de seu irmão, sua mãe e a empregada foram na
mata, nas redondezas da fazenda que residiam para apanhar açaí. Quando estava um pouco
afastada dos demais, sentiu um vento frio soprar sobre ela, e subitamente viu diante de si três
seres semelhantes a humanos, que tinham a aparência de serem dois homens e uma mulher.
Zeneida descreve que:

Os três seres estavam nus. Entre os braços e o corpo possuíam fina


membrana, do mesmo tipo que ligava os dedos da mão. Os pés eram
palmiformes, achatados, como de patos. A pele era de um azul intenso,
brilhante. Ocorreu a mim que seriam seres da água. [...] Eles carregavam
longos canudos em forma de cigarros e cachos de um fruto de bagas
amarelas. Por gestos, ofereceram-me as frutas. Eu consegui balançar a
cabeça negativamente. Sem outra razão passaram a me agredir. Meu corpo
ardia com o castigo. Senti que desfalecia. (LIMA, 2002, p. 136).

Desmaiou por um momento e quando voltou a consciência estava em outro lugar,


ainda na floresta, mas na margem oposta do igarapé em que estava próxima. Sentia o corpo
dolorido e as roupas que vestia estavam rasgadas. Viu novamente os seres azuis, que lhe
ofereciam as frutas, e ela de novo negou. Eles continuaram a bater em Zeneida Lima, que
desmaiou profundamente e ficou inconsciente. Dezessete dias teriam se passado com Zeneida
desaparecida na floresta, quando finalmente a encontraram. Estava paralisada, enrolada em
um emaranhado de cipós, os cabelos completamente embaraçados e o corpo apresentava
manchas definidas com figuras de peixes, pássaros, cobras, flechas, máscaras primitivas.
Quando o pai lhe perguntou o que havia acontecido, ela soltou uma gargalhada, depois
pausava e emitia gritos, os olhos estavam arregalados, cheios de brilho e o rosto transfigurado,
seu estado lembrava a loucura e o pânico. Afirmava ver os seres azuis que a chamavam para a
mata, e não lembrava mais nada.
117

Começou a sofrer crises de choro, gritos, risos, debatia-se e queria sair correndo para
a floresta. Características do fenômeno conhecido em alguns lugares da Amazônia como
corrente-do-fundo, a qual todos os indivíduos que nascem com o dom sofrem antes de se
tornarem pajés. Zeneida Lima só melhorou quando levaram mestre Elpídio, um pajé, para vê-
la, que afirmou que a menina havia sofrido flechada de Anhangá. Ele também explicou que
Zeneida tinha o dom de ser “curandeira”, e não podia entrar na mata ou atravessar rios e
igarapés na lua minguante, pois “é nessa lua que as resmas [que podemos entender como
“energias negativas”] de Anhangá se espalham, ela tinha de fechar o corpo desde jitinha para
que não acontecesse isso” (LIMA, 2002, p. 145). Apenas um ritual de pajelança poderia livrar
Zeneida Lima da flechada de Anhangá, mas esse ritual só pôde ser realizado três dias depois,
pois era uma Sexta-Feira Santa, e em dias santos não se realiza pajelança.
A postura de respeito dos pajés perante os dias santos católicos pode ser uma
indicação de que a maioria dos curadores se declara católica, como observa Galvão (1955) e
Maués (1990), e como constatei também em Soure. Mas, além disso, pode ser entendido
como uma submissão culturalmente estabelecida, do catolicismo como sendo “superior” à
pajelança, e realizar rituais de cura ou encantaria em dias santos (como a Sexta-Feira Santa e
o Natal) pode ser considerado um desrespeito para com Deus, o que implicaria em grave
pecado.
Essa visão sacralizada dos dias santos é percebida também nas religiões afro-
brasileiras, como observou Vergolino (1987, p. 59) nos terreiros de Belém e afirma que “não
se trata apenas de uma justaposição [de religiões ou crenças religiosas], mas que, de fato, os
terreiros assimilaram e reinterpretaram esse calendário [cristão]”.
Maués (1990) afirma que os pajés caboclos costumam se definir religiosamente
como católicos, e não como seguidores ou líderes de uma religião ou culto de pajelança. Na
realidade, ser pajé é muito mais uma função social e espiritual do que uma devoção ou
pertença religiosa. Entretanto, observa-se que Zeneida Lima não se identifica como católica, e
sim como pajé, demonstrando uma intencionalidade de afirmar em si uma tradição cultural, de
acordo com ela, indígena marajoara. E mais do que isso, a pajé procura desvincular suas
práticas e crenças do catolicismo popular, reverenciando não Santo Antônio ou São Sebastião,
tão adorado e respeitado por diversas comunidades amazônicas, mas sim o Vento, os
Caruanas, o Girador, a Mãe Terra, dentre outras deidades (LIMA, 1991; 2002), e tudo dentro
de um discurso que defende a “pureza”, a autenticidade e a ancestralidade de sua pajelança.
118

Em entrevista realizada em julho de 2011, Zeneida Lima é enfática quanto ao seu


pensamento sobre os pajés caboclos que sincretizam suas práticas de pajelança com práticas
de outras religiões, em especial, afro-brasileiras:

Mas eu nunca misturei a pajelança sabe? O povo sabe pelo seguinte, porque
quando eu lancei o meu livro, ninguém falava de pajelança, e aqui no
Marajó, todo mundo tinha horror quando falava da pajelança, diziam que era
coisa de feiticeiro. Então eu fui e escrevi, mas eu não escrevi pra fazer
sucesso, eu escrevi pra deixar pras futuras gerações o que era a pajelança
cabocla. Ela só trata de cura... Não tem nada de negócio de macumba, não
tem nada de farofa... Não tem nada de nada. É tudo de ervas, de seiva... Só
isso, entendeu? Oito horas da manhã, a hora que o sol nasce, hora que o sol
senta, então nesses horários era tudo que a gente via as energias entendeu?
Sempre procurando pelo norte, sul, leste, oeste... Qual o vento que vem dali,
se vem detrás, do norte, ou do sul, entendeu? Então a gente está ligada
nessas coisas todas, a gente não tá ligada em coisa de macumba... de
frango... Mas não sou contra nada disso. Cada um tem o seu ponto de vista.
Agora eu sou contra deles fazerem uma salada, às vezes eles são pajé, daí
eles são umbanda com candomblé, e tudo isso pra quê? É pra ganhar
dinheiro. E na pajelança não tem dinheiro. Não cobra nada, não cobra, de
maneira nenhuma.

É possível reconhecer, de fato, aspectos em suas crenças que se aproximam da


pajelança indígena ou xamanismo, como a reverência ao sol (mencionada no depoimento
acima), o reconhecimento das quatro direções e dos ventos, e a ideia de integração entre ser
humano e natureza. Por outro lado, observam-se também aspectos e pensamentos recorrentes
do momento contemporâneo, como a ecologia desenvolvida conjuntamente à educação e a sua
intensa relação com a mídia e espaço público.
Em seu livro (2002, p.149-153), Zeneida Lima descreve o ritual de pajelança
realizado por mestre Elpídio para lhe curar da malineza de Anhangá. Este relato parece ser
entremeado com retalhos de sua memória e de seu próprio conhecimento sobre a pajelança. O
ritual segue sete etapas, que são descritas a seguir.
A primeira etapa é a preparação do pajé e começa na véspera do dia do ritual, em que
ele deve manter-se reservado, não receber estranhos e falar pouco. No dia anterior e no dia
exato da pajelança, ele deve jejuar ou alimentar-se regulamente, comendo apenas a parte do
rabo do peixe e quase sem sal. Deve recolher-se com o pôr-do-sol e levantar-se com o
primeiro raio de sol nascente. O local deve ser arrumado, os materiais a serem utilizados
durante o rito devem estar preparados e os serventes do pajé prontos para o auxiliarem.
No momento de iniciar a pajelança, deve ser feita uma purificação tanto do ambiente
onde será realizado o ritual, quanto do corpo do pajé, com defumações e fogo. A segunda
119

etapa é quando o pajé viaja, simbólica e misticamente, para o fundo das águas, como descreve
Zeneida Lima (2002, p. 150):

Ele parte ao encontro do peixe de sete asas para a troca de energias. Seus pés
são colocados sobre a areia molhada com água do mar. Ao retornar do
transe, sua cabeça é molhada com a mesma água, como símbolo de seu
retorno ao mundo dos mortais.

A terceira etapa do ritual se dá quando os serventes colocam as cintas no pajé, que


são basicamente três: uma amarrada no braço, que serve para proteger o corpo do pajé de
energias negativas; outra amarrada no peito, para dar força; e outra presa na cintura, que
representa o conjunto de caruanas que trabalham com o pajé e serve para chamá-los. Após
isso, o pajé solta um agudo e contínuo assobio, que segundo Zeneida Lima (2002), é para
ensurdecer Anhangá.
A quarta etapa consiste na incorporação, indicada quando o pajé bate suas costas
contra uma parede. A partir de então, o pajé é um instrumento, uma ave 35 dos caruanas. Estes,
por meio do pajé, começam a cantar suas cantigas e doutrinas reverenciando a natureza ou
contando a história de como se encantaram, e executam danças sagradas, que muitas vezes
lembram a personalidade ou característica do caruana. Por exemplo, se o caruana for um
peixe, o pajé, que está atuado (incorporado), dançará como um peixe, imitando movimentos
de nado. Esta, portanto, compõe a quinta etapa do ritual.
A sexta etapa consiste na consulta e cura das pessoas presentes. O pajé defuma o
doente com o cigarro de tauari, vibra o maracá sobre seu corpo e realiza outros procedimentos
de cura. Seguem-se recomendações dos caruanas às pessoas sobre o tratamento que devem
fazer e os conselhos que devem ouvir, às vezes, transmitem alguns ensinamentos e podem
também repreender alguém presente, por alguma atitude indevida que tenha tomado.
Por fim, a sétima etapa é a finalização da pajelança, quando o pajé atuado canta mais
uma vez as doutrinas dos encantados, pede que todos entoem a cantiga, ele vibra o corpo e
mais uma vez bate as costas na parede. Os caruanas voltam para seu mundo e o pajé retorna a
sua consciência.
Zeneida foi sentada pajé aos onze anos de idade, pelo mestre Mundico de Maroacá,
em Salvaterra. A preparação antes do ritual de cruzamento consistiu em algumas ações
35
A ave possui um simbolismo dentro da pajelança e é associada com o pajé ou xamã, que recebe os caruanas ou
espíritos da natureza, tornando-se um mensageiro, tal como a ave, que transita entre os mundos, pois locomove-
se por vários lugares conhecidos e desconhecidos pelos seres humanos. Na pajelança, a ave corresponde à arara
vermelha. Esse simbolismo está representado nas penas vermelhas de arara presas no maracá do pajé. Esse
termo, ave, é utilizado no livro de Zeneida Lima (1992; 2002) e tem significado semelhante ao termo “cavalo”,
utilizado nas religiões afro-brasileiras.
120

necessárias a serem feitas pela pajerana, ou seja, aquela que vai ser pajé (LIMA, 2002), que
deve seguir uma rigorosa alimentação, tomar nove banhos de ervas, sendo um a cada mês na
lua crescente, durante nove meses, e não deve olhar para a lua cheia, até o dia do ritual de
iniciação. O seu processo de formação como pajé teria durado um ano e dezessete dias,
durante o qual aprendeu com seu mestre sobre os rituais da pajelança (ou pajeísmo, como ela
também denomina), o mundo dos caruanas sob as águas, as sete cidades encantadas, as
divindades36, como o Girador, Patu-Anu, Auí, Anhangá, e outros conhecimentos.

Figura 60

A pajé Zeneida Lima com seus instrumentos de cura (Fonte: <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em
19/10/2012).

O pajé deve seguir diversos preceitos e interditos ao longo de sua vida. E quando o
pajé é do sexo feminino, mais interditos são somados as suas práticas de cura, principalmente
relacionados ao ciclo menstrual.
Zeneida afirmou em entrevistas não ter sofrido discriminação pelo fato de ser
mulher, mas pelo fato de ser pajé, tendo em vista que a pajelança ainda é uma prática
marginalizada em nossa sociedade. Em entrevista ela reclamou de ter sido alvo diversas vezes
de perseguição e preconceito, sobretudo em Soure, por parte da população e principalmente
das igrejas (católicas e protestantes). Como ela explica em seu depoimento:

36
Embora não sejam denominados dessa forma no livro e na fala de Zeneida, esses seres apresentam de fato
caráter e status de divindades.
121

Uma vez quase me mataram bem perto do mercado, foram três meninos me
jogando cada pedra enorme, me escondi atrás de uma árvore que tinha lá,
tava com a dona Dora, uma senhora, e ela começou a gritar, daí o pessoal
começou a chegar aí eles correram. Mas tudo mandado por outra pessoa. Eu
ia fazer pajelança, aí eles ficavam tudo escondidinhos no mato sentado pra
escutar, porque se cantasse alguma coisa que não falasse em santo aí eles
atacavam, então tinha que cantar e botar santo no meio, por exemplo, aquele
cântico em português que fala assim, é pra fechar até as cordas:

Papagaio é verdinho, canta, canta toda hora.


Papagaio puxa as linhas, fecha as cordas e vai embora.
Tô fechando as nossas cordas que a mamãe mandou fechar (a mamãe é o
dia).
Tô fechando as nossas cordas, já vamos voltar pro mar.

Daí eu tinha que cantar assim, porque eles queriam me apedrejar, me matar:

Tô fechando as nossas cordas, com Deus e Nossa Senhora,


O anjo da tua guarda te acompanhe nesta hora (Zeneida Lima em entrevista
de julho de 2010).

O preconceito que sofria, portanto, parece ser ou ter sido relacionado com a forma
em que ela praticava a pajelança. Para evitar que sofresse discriminação ou ataques de
intolerância, Zeneida “tinha que cantar e botar santo no meio”, ou seja, associar a pajelança ao
catolicismo, para que fosse aceito pela população.
Zeneida Lima também relata que durante o período em que estava menstruada não
poderia realizar pajelança, pois seu corpo estava impuro para receber os caruanas, sua
alimentação deveria se basear somente em peixe, e só poderia beber água três vezes no dia.
Ela também não poderia ter relação sexual durante a lua cheia. Caso ela não seguisse essas
regras, correria o risco de perder seu poder de cura, como ela explica:

Quando eu menstruava, quando eu tinha marido eu não podia fazer sexo com
o marido na lua cheia. Não podia fazer pajelança quando tava menstruada.
Meu corpo não estava puro para os caruanas. Então não tinha relação nem
fazia pajelança. Na lua cheia não tinha menstruação, mas se vinha na lua
cheia não podia também. Aí eu me alimentava só de peixe, mas só da parte
debaixo, não pode comer a parte da cabeça. Então tinha isso, e eu só bebia
água três vezes no dia. Quando passava aí acabava, fazia tudo dentro do que
o meu mestre me ensinou, pra mim não perder o meu poder de cura
(Entrevista em julho de 2010).

5.2. A pajelança segundo Zeneida Lima

A pajelança para Zeneida (2002) é um culto oriundo dos indígenas, repassado aos
caboclos e que hoje, em nossa civilização “são as últimas marcas de um culto em vias de
122

extinção” (LIMA, op. cit., p. 16), pois estaria cada vez mais difusa entre elementos de outras
religiões. Ela alega que seus saberes e práticas seriam a sobrevivência de um culto
originalmente indígena das tribos do Marajó. Em entrevista, realizada em julho de 2010, a
pajé argumenta que a pajelança exercida por ela consiste na “pajelança marajoara”, que difere
da pajelança cabocla, que para ela é provinda do Maranhão. Em sua concepção a pajelança:

[...] representa um encontro entre o homem e as energias da natureza, os


caruanas, companheiros do fundo, ou simplesmente, encantados. [...] Ainda
lhe digo mais, a natureza é a grande mãe, a origem e o fim de todas as
coisas. Não devemos violentá-la, porque estaremos violando a nós mesmos.
Os que violam a natureza são punidos por Anhangá. [...] O respeito à
natureza, a integridade e equilíbrio de seus elementos é a lei maior. Dentro
desse princípio de que se tratarmos bem a natureza, ela nos dá tudo. A
natureza possui energias insondáveis para os mortais. Essas energias se
manifestam no pajé que se torna seu instrumento (LIMA, 1991, p. 32).

O pajé é o eixo de ligação entre os caruanas e os seres humanos, intermediando


energias da natureza, formada basicamente pelos reinos animal, vegetal e mineral. Esses
reinos estão presentes também no ser humano e quando estão desequilibrados provocam
doenças e outros problemas de ordem emocional, mental ou mesmo econômico, conforme a
explicação de Zeneida Lima:

Todos nós, todos os viventes da Terra, tem de tá equilibrado dentro dos três
reinos da natureza, o vegetal, animal e mineral. Então quando ele passa de 1
a ponto 9... de 1 a 9, então se ele tiver no reino animal com 2, no outro 3, no
outro 5, ele tá desequilibrado, então perde dinheiro, perde emprego, briga
com a mulher, não há respeito e daí aquele rolo todo na família (Entrevista
de julho de 2010).

O pajé, portanto, é responsável por tratar deste desequilíbrio no indivíduo, por meio
de banhos e outros procedimentos. Para saber se as energias ou os reinos estão em equilíbrio
ou não, Zeneida realiza um pequeno ritual chamado de “conferência das energias”, que é
descrito com melhor detalhe mais adiante.
O pajé, para Zeneida Lima, não é somente o instrumento dos caruanas e a ponte de
ligação com o mundo dos encantados, mas também um defensor e guardião da natureza. Daí a
razão do trabalho que desenvolve com a educação e a ecologia.
No livro “O mundo místico dos caruanas da Ilha do Marajó” (2002), Zeneida Lima
descreve a criação do mundo, conforme teria ouvido de seu mestre. Segundo ela, o mundo dos
caruanas foi criado pelo Girador, a divindade primeva que possui a forma de uma grande
igaçaba ou pote. Sobre águas primordiais pairou o Girador, do qual surgiu Auí, um ser altivo
123

e luminoso, e seu povo, para o qual construiu sete cidades encantadas sobre as águas. Eles
viviam em harmonia com a Natureza, até que um dia Auí transgrediu uma regra ditada pelo
Girador, que não deveria se aproximar de lugares com desequilíbrios naturais. Auí avistou um
redemoinho nas águas, provocado por Anhangá, tido como o “resto da natureza”, e ao olhar
com mais atenção percebeu que o fundo das águas era feito do mesmo material que o Girador,
o barro. Mergulhou em direção ao centro das águas e isso provocou um desequilíbrio na
ordem natural. O que estava em cima foi para o fundo das águas, e o que estava embaixo
emergiu à superfície.
Assim criou-se a terra firme, e Auí e seu povo passaram a habitar o fundo. O Girador
então pairou no ar e lançou sobre a terra sementes da vida que originaram todos os seres
viventes. O corpo de Auí foi despedaçado pelo redemoinho, e deu origem a várias coisas na
natureza e também a seres mágicos, como o Peixe de Sete Asas coloridas, que conduz a alma
dos pajés aos mistérios das Sete Cidades Encantadas. Além destas deidades, existe também
Patu-Anu, criado pelo Girador para governar os caruanas e realizar transformações nas
cidades sob as águas, depois da imersão ao fundo.
Outros mitos como este são contados na autobiografia da pajé Zeneida Lima, e mais
especificamente em outro livro que ela escreveu, intitulado “Lendas da Amazônia” (2000).
Esses mitos são novos e desconhecidos na literatura mitológica da Amazônia, ao mesmo
tempo em que contêm, como no mito de criação, elementos padrões existentes em muitas
mitologias, como a água sendo o princípio de toda a existência, uma divindade primordial e
criadora do mundo, e ao mesmo tempo distante deste, que Eliade (2001) descreve como sendo
o deus “otiosus” (deus ocioso), a ordem ou harmonia natural, a transgressão dessa ordem, a
punição e “queda do paraíso”, o sacrifício do gigante ou de uma figura mítica que tem seu
corpo repartido, originando diversas coisas da natureza (ELIADE, 2001; CAMPBELL, 1990).
Segundo esse mito de criação (LIMA, 2002), Patu-Anu criou nas sete cidades
encantadas sob as águas algumas coisas para os caruanas, dentre elas estão a Escadinha de
Coral, a Casa de Espuma, a Fonte de Cura e Sabedoria, e a Lírica do Mar. Como Zeneida
Lima explicou, em entrevista de julho de 2010:

Quando o mundo... porque ficou dividido o mundo dos encantados, né, e o


mundo dos viventes. Então o Girador escolheu uma outra força menor para
que regesse esse mundo dos encantados, foi Patu-Anu. Patu-Anu gerador de
energia, e ele povoou esse mundo com coisas, é... diferentes, criou a Bolha
d’água, a Escadinha de Coral, o Peixe de Sete Asas, entendeu?
124

Na pajelança praticada por Zeneida Lima, essas coisas estão profundamente ligadas
aos caruanas e, de certa forma, também ao pajé. O Peixe de Sete Asas seria aquele que faz o
transporte da alma do pajé entre o mundo dos encantados e o mundo dos viventes. A Lírica do
Mar, por sua vez, é, nas palavras de Zeneida:

[...] uma correnteza espelhada, então é como se a energia estivesse lá


embaixo, vamos dizer, mas que ela atravessa essa correnteza espelhada e ela
vê aqui na terra o que é necessidade, que os seres viventes tem pra poder vir
auxiliar quando o pajé invoca, sabe? É como se fosse um espelho que ela
enxerga os viventes aqui em cima, [...] quando o pajé invoca, ela vem porque
ela tem esse poder desse espelho de ela enxergar toda a superfície da Terra
(Entrevista em julho de 2010).

Em outras palavras, a Lírica do Mar seria uma espécie de meio de comunicação entre
os caruanas e os “viventes”, e mais especificamente, o pajé.
A Escadinha de Coral está relacionada ao processo de evolução espiritual e de poder
do caruana. Ela possui dezesseis degraus, e em cada degrau se encontra um caruana, como
explicou Zeneida em entrevista. Nessa concepção de pajelança, quanto mais o caruana desce
um degrau, mais ele evolui, pois se aproxima das águas profundas, ou seja, se aproxima do
princípio criador da vida, a Fonte, o Girador. Como explica Zeneida Lima:

A Escadinha de Coral... é... tudo foge do entendimento do ser humano né?


Ela é uma escadinha que quanto mais o caruana vai descendo nesse degrau
da escadinha ele vai mais evoluindo, até se transformar em água, até não vim
mais, até essas energias não virem mais, ficarem nas águas. Pronto, daí
mesmo que o pajé invoque elas não vem mais (idem).

E ela complementa sua explicação cantando a doutrina de um caruana que se


encontra na Escadinha de Coral:

Mamãezinha... eu já vou descer,


Pela Escadinha de Coral
Que Papai mandou fazer.
Vou descer pras águas claras
Que estão no fundo do mar.
Eu vou ficar nas águas,
E água vou me tornar.

A Casa de Espuma é o lugar, segundo Zeneida, para onde os encantados são levados
quando acabam de se encantar, e:
125

Da Casa de Espuma eles vão pra Escadinha de Coral, daí tem todo um ciclo
que eles fazem ali pra poder, essas energias vão se perdendo, vão mudando
até eles chegarem em Caruanas, e se transformarem em energia. [...] é donde
eles vão perdendo as energias e vão passando, as espumas, passando, até eles
se aprontarem, entendeu? Perderem todas as energias humanas e ficar só
com um lado da energia, só uma parte que fica dele, daí eles são invocados
pelo pajé... Essas energias elas ficam em cima das águas (ibdem).

Por meio desse relato podemos entender que a Casa de Espuma é o lugar para onde
vão os seres humanos que acabam de se encantar, para que sejam purificados ou “aprontados”
e estejam aptos a tornarem-se caruanas, que ela define como “energias das águas”.
A Fonte da Sabedoria e Cura é guardada pelo caruana Norato Antônio, que a
circunda, e nas palavras de Zeneida, “é de lá que ele vem, ele é o mestre”. Sobre esse caruana,
ela explica que foi o primeiro pajé caboclo, o primeiro que herdou o conhecimento dos índios.
E acrescenta que “[...] ele é mestre e contra mestre, ele que vem na hora da pajelança, ensina,
sabe tudo quanto é ervas, todos os remédios que é feito com as ervas, é ele que passa as
receitas” (Entrevista em julho de 2010).
Há também o “Mistério de Assum”, que surgiu no tempo primordial, durante a
criação do cosmo, e Zeneida explica que está relacionado a Anhangá, como conta:

Ah, é Anhangá, que é o resto da natureza, por isso é o Mistério de Anhangá.


Ela tem duas, ela tem duplas energias, ela tanto protege a natureza como ela
pune os agressores da natureza. Foi o que o Girador deu esse título pra ela,
porque ela morava nesse mundo das águas, daí foi quando Auí tocou o fundo
das águas ela subiu e veio pra Terra e onde espalhou as energias, as energias
pesadas, mas ela ganhou essa dupla energia pra ser protetora da natureza e
ao mesmo tempo punir os agressores da natureza (idem).

Nessa cosmovisão, o pajé é visto como um parceiro dos caruanas e das divindades,
pois, assim como eles, o pajé é responsável por manter o equilíbrio no cosmos, harmonizando
o caos e a ordem, o ser humano e a natureza.

5.3. Os Caruanas

Os caruanas, de acordo com Zeneida Lima, são energias das águas. Ela explica que:

São energias do fundo, energias do meio das águas e as energias da


superfície, cada um tem, dentro da pajelança, tem um posto, cada um tem
uma hierarquia, [...] quer dizer, então, cada um tem um domínio (Entrevista
em julho de 2010).
126

O domínio que ela se refere é o local onde reside cada caruana, ou seja, cada praia,
rio, igarapé é habitado por um ou mais encantados. Os caruanas são os encantados das águas
doces, e possuem caráter “positivo”, enquanto que os encantados das águas salgadas são
denominados de caruás, possuem caráter “negativo” e geralmente efetuam malinezas, mas
também têm o poder de curar (LIMA, 2002).
Os caruanas podem ter a forma tanto de animais (como borboleta, jacaré, cobra)
quanto de seres humanos, que em determinado momento de sua vida se encantaram, ou seja,
não morreram, mas desapareceram em um rio ou mata, e integraram-se de uma forma
misteriosa àquele lugar ou à algum animal, associado a sua história de vida. Por exemplo, o
caruana Raimundo Pavão que se encantou nas proximidades da praia Cajuúna em Soure.
Zeneida Lima (2002) escreve que esse caruana era um pescador e que um dia enquanto estava
em sua embarcação nessa praia, provavelmente durante seu ofício de pesca, avistou um pavão
sobrevoando seu barco. A ave deu algumas voltas no ar e se afastou para pousar então em:

[...] um areal que aflorava das águas, surgido do nada. Tocando o pequeno
barco para o areal, Raimundo notou que lá estavam muitos índios. Remou
firme para lá e diante de seus olhos tudo desapareceu. A partir de então,
Raimundo encantou-se assumindo as características de seu último estágio,
ou seja, a de um pavão, tendo por missão proteger as três praias; Pesqueiro,
Araruna e Cajuúna (LIMA, 2002, p. 84).

De acordo com a concepção de Zeneida, a função dos caruanas é:

[...] em determinado tempo, preservar o equilíbrio natural, mas em sua


grande maioria dedicam-se à cura do vivente da Terra. [...] Finalmente, após
cumprir as tarefas impostas pela Natureza, os Caruanas descem por uma
Escadinha de Coral encantada, onde gradativamente são submetidos a uma
transformação decrescente. Quanto mais desenvolvido o Caruana, mais ele
percorre o caminho inverso para as profundezas. Sua aparência também vai
se modificando até atingir sua forma mais elementar. Torna-se água
novamente, a origem de tudo, o elemento principal e fundamental da vida, o
que nos sustenta, dá forças e energias37.

Em entrevista feita em julho de 2010, Zeneida Lima contou que é auxiliada por
diversos caruanas, entre eles estão Norato Antônio, Raimundo Pavão, Raimundo da Barca,
Raimundinho do Cajueiro e Pitanga Azul. Além desses existem um grupo de dezesseis
caruanas, que compõem a Escadinha de Coral, e que a auxiliam na pajelança de forma direta
ou indireta. Esses caruanas são considerados mais evoluídos, e alcançam um status
semelhante ao de divindades.
37
Extraído do site <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 19/10/2012.
127

Em um de seus relatos, durante entrevista feita em julho de 2011, Zeneida contou


que quando criança teve uma visão desses seres. Uma fumaça ou nuvem surgiu em seu quarto
e à medida que crescia ia formando as imagens dos caruanas. Posteriormente, ela desenhou
esses caruanas e também construiu pequenas imagens de barro dos mesmos. Anos depois, ela
teve a ideia de pedir a um artista que fizesse estátuas das imagens dos caruanas, e então foram
produzidas onze grandes estátuas representando esses seres, que se encontram atualmente na
fazenda de Zeneida Lima, em uma área particular.
Felizmente, foi possível conhecer essa área da fazenda acompanhada por Raul, neto
de Zeneida, em julho de 2011, e sobre as imagens desses caruanas posso afirmar que até o
momento não havia visto ou ouvido, nos estudos, livros e artigos sobre pajelança e
xamanismo, nada parecido com essas figuras, que possuem uma aparência mesclada de
animais e humanos, como veremos a seguir nas fotografias, entretanto, não foi possível
fotografar todas as estátuas, pois algumas estavam distantes e cercadas por mato alto,
dificultando uma melhor aproximação para registrá-las.
Para Zeneida Lima, os caruanas são energias das águas, mas não são estritamente
ligados às águas. Podemos compreendê-los como forças de determinados aspectos da
natureza, como o vento, as folhas, os rios, os insetos e as aves. Durante a visita na área
particular da fazenda de Zeneida, Raul explicou que uma pessoa pode se identificar ou sentir
afinidade com determinado caruana, e com isso utilizar alguns elementos associados a ele
para atrair a energia desse caruana em seu benefício. Em suas palavras,

[...] essa energia [caruana], ela tem um significado, ela tem um óleo, uma
casca ou alguma raiz que representa, então você pode utilizar na sua bolsa,
para trazer boas energias que tu desejas pra alguma coisa (Raul, em
entrevista realizada em julho de 2011).
.

Raul também revela que Zeneida pretende escrever um livro contendo essas
informações sobre os caruanas, suas funções e elementos relacionados, e também que ela e
seus familiares pretendem um dia transformar essa área da fazenda em um espaço de
exposição sobre os caruanas e a pajelança “marajoara”.
As onze estátuas ficam espalhadas pelo espaço da fazenda, sendo que as primeiras a
serem avistadas são a do caruana Beija-Flor e o caruana Churuíra. O primeiro é associado às
aves e, em especial, ao beija-flor, e parece ser um dos caruanas mais importantes na pajelança
de Zeneida. É a única figura que possui “pontos” no chão ao seu redor, e que segundo Raul
128

tem um significado, um “fundamento” na pajelança, no entanto, ele não soube explicar


melhor qual seria a função desses pontos.

Figura 61

Estátua do caruana Beija-Flor (Foto: Faro, 2011).

O segundo, Churuíra, é associado aos insetos da floresta e, segundo D. Zeneida, a


partir de seu relato em entrevista de julho de 2011, é um caruana alegre e responsável por
espalhar o verde nas florestas. Sua forma lembra a de um inseto, mais precisamente um
gafanhoto. Encontra-se com as palmas e o rosto voltados para cima, como se estivesse
lançando de suas mãos as “energias”, como mostra a foto abaixo.
129

Figura 62

Caruana Churuíra (Foto: Faro, 2011).

Em seguida, Raul mostrou-me as imagens dos caruanas Jacundá e Jandiá, que ficam
uma de frente para a outra, e segundo ele “são as primeiras energias que são recebidas no
fundo das águas (...), eles têm as chaves, eles que abrem, assim, as portas”. As duas estátuas
são semelhantes, e possuem a forma de peixes (e não poderia ser diferente, já que jacundá e
jandiá são tipos de peixes), e ambas têm as mãos elevadas para o alto, segurando uma esfera
com uma ponta em cima. Seu corpo é cercado por pontas, que parecem espinhos, e segundo
Raul essas pontas simbolizam a ligação entre o mundo das águas e mundo da superfície, ou
entre o mundo espiritual e o material.
130

Figura 63

Caruana Jacundá (Foto: Faro, 2011).

Outro caruana que exerce grande importância na pajelança de Zeneida Lima é o


Caruana da Lua ou Energia da Lua 38, e segundo Raul sua imagem representa as quatro fases
lunares e também o pajé, “porque o pajé, ele trabalha sobre a energia lunar, com as energias
das águas... é porque um faz um elo com o outro” (Raul em entrevista de julho de 2011). Esse
elo mencionado por Raul está relacionado a influência que a lua exerce sobre a água e as
marés, e sendo a água um dos (se não o principal) elementos centrais na pajelança, é atribuído
à lua grande destaque e poder.

38
Raul utiliza mais o termo energia do que caruana durante suas explicações.
131

Figura 64

Caruana da Lua (Foto: Faro, 2011).

Raul explica que esse caruana é o que mais está relacionado ou próximo ao pajé, no
caso a Zeneida Lima, e tem a função de indicar qual o melhor momento para “trabalhar”, isto
é, curar, realizar pajelanças. Segundo Raul, não é em toda fase lunar que Zeneida faz
pajelanças, e sim apenas no período da lua crescente até o primeiro dia da lua cheia.
A imagem do caruana da Lua, como se observa na foto, segura em seu único braço
uma esfera, que representa a lua cheia, e contém alguns símbolos, que são três traços curvados
e um círculo, que representam a energia caruana, segundo Raul, e um círculo com um traço no
interior, mas Raul não soube explicar o significado desse símbolo, assim como a alça que há
no topo da esfera. Ele afirma que há certos conhecimentos que Zeneida não transmite e que só
ela compreende essa simbologia. A face do caruana da Lua apresenta o desenho de uma
espiral e lembra um caracol, que em diversas mitologias está associado simbolicamente ao
mar ou a água primordial (ELIADE, 2002). A estátua é acompanhada por alguns objetos que
são identificados com os próprios objetos ou instrumentos de um pajé. Nas extremidades
seriam duas cuias, no meio um paneiro e ao lado um maracá. A figura entre o maracá e o
paneiro é chamada por Raul, e Zeneida, de Caruanaís, e na estátua do caruana da Lua essa
figura encontra-se em duas posições, uma com os “braços” voltados para cima e outra, para
baixo, sendo que esta última fica em frente ao caruana da Lua.
132

Figura 65

Caruanaís (Foto: Faro, 2011).

Raul explica que o Caruanaís representa o vivente, o ser humano, e essa figura
representaria uma cerimônia ou ritual realizado pelos antigos pajés indígenas do Marajó, mas
que hoje não é mais realizada. Raul conta que Zeneida teria ouvido de seu mestre a história
sobre o caruanaís, e relata que:

No ritual, na cerimônia eram os índios que faziam. (...) É, eles ficavam


assim, nessa posição, eles eram “afundiados”, e mandados pro Fundo, pra
virarem encantados. E como para eles não existia o fator morte, quando eles
eram “afundiados” eles ficavam em Auí, no mundo de Auí, no fundo das
águas. Quando um pajé fazia todo o ritual ele chamava essas energias e ele
voltava pra terra, pros parentes, e as pessoas participarem daquela cerimônia,
daquela festa (Raul, em entrevista de julho de 2011).

O símbolo do caruanaís parece estar relacionado com a imersão do pajé ao fundo, ao


mundo místico dos caruanas no fundo das águas. Essa imersão ao fundo é equivalente a
viagem ou voo xamânico que Eliade (1998) e Montal (1986) mencionam. Imagino que a
figura do caruanaís de cabeça para baixo possa representar o momento dessa imersão ao
fundo, enquanto que a figura dele em pé representaria o retorno a superfície, entretanto, essa é
uma interpretação pessoal desse símbolo, pois o próprio Raul não soube explicar o significado
133

exato do caruanaís, e infelizmente, não houve oportunidade depois para conversar com a pajé
Zeneida sobre isso.
Outra imagem de caruana que há na fazenda é a do caruana Papagaio, que, de acordo
com Raul, é o protetor da fala, da comunicação, do som e responsável por “espalhar as
informações”. Sua imagem é acompanhada por um objeto que parece ser um instrumento de
som, um tambor, talvez, e suas mãos estão posicionadas sobre esse “tambor”, como se ele
estivesse tocando tal instrumento.

Figura 66

Caruana Papagaio (Foto: Faro, 2011).

Na entrevista realizada com D. Zeneida em julho de 2010, ela cantou uma doutrina
que faz referência a este caruana, talvez seja a própria doutrina dele:

Papagaio é verdinho, canta, canta toda hora.


Papagaio puxa as linhas, fecha as cordas e vai embora.
Tô fechando as nossas cordas que a mamãe mandou fechar [a mamãe é o dia]
Tô fechando as nossas cordas
Já vamos voltar pro mar.

Essa doutrina indica que o caruana Papagaio também é responsável por fazer a ponte,
a comunicação, entre os caruanas e o pajé, entre o mundo encantado e o mundo humano.
Outro caruana é o Lírio do Mar, sobre o qual Raul explica que:
134

Quando se acorda, você já foi na beira da praia e você vê uma marquinha,


uma coisa em cima da água assim? Na praia, quando tá amanhecendo, tem
tipo uma nuvenzinha assim no meio da água, aquela aguazinha,
nuvenzinha... É feito por ele, ele que vem trazer assim a brisa, ele que vem
trazer o frescor, né? O vento que tu tá sentindo... Aí, te vem uma
tranquilidade, te traz conforto, te traz paz (idem).

Figura 67

Caruana Lírio do Mar (Foto: Faro, 2011).

A imagem deste caruana não lembra muito bem a de um lírio, mas se aproxima mais
a de um pássaro. Talvez ele esteja relacionado à Lírica do Mar, pois os termos são parecidos
(Lírio do Mar / Lírica do Mar), e nesse caso, é possível que esse caruana seja o responsável
pela Lírica do Mar. Se observarmos a foto acima, notaremos que o caruana parece estar
olhando fixamente para o objeto a sua frente, que pode ser a Lírica do Mar.
O caruana Iguacuí está relacionado com a linha do fundo, ou seja, com as curas. Sua
imagem possui um pote e acima deste, há um objeto, uma lua minguante ou lua nova.
Simbolicamente, a lua nova representa renovação, renascimento e cura (ELIADE, 2002). O
pote, fechado, talvez seja um símbolo de mistério e conhecimentos ocultos dos caruanas e dos
pajés.
135

Figura 68

Caruana Iguacuí (Foto: Faro, 2011).

O Caruana do Vento, também chamado de Ventania, é responsável por direcionar os


ventos. Sua aparência se assemelha a de um pássaro, e ele parece estar dançando. Seus braços
esticados dão a ideia de estar comandando o vento, que sai de sua boca. Em sua cabeça há
algo que parece ser um “chapéu”, cabelo ou penas avantajadas, lembrando até mesmo o
pássaro pica-pau. E atrás dele, na direção de seus pés, encontram-se duas elevações, que
possivelmente representam colinas ou montanhas, lugares onde o vento é mais forte.
136

Figura 69

Caruana do Vento (Foto: Faro, 2011).

A imagem do caruana Pingo D’água foi a mais difícil de fotografar, pois estava
distante e cercada pelo mato alto. Essa “energia”, como Raul define, está presente no orvalho
da manhã, contido nas flores e folhas da floresta, e nas pequenas gotas de chuva. Possui um
corpo mais ou menos humano, mas não tem braços e sim algumas pontas, insinuações, talvez
gotas ou pingos, saindo de seu tronco, e sua cabeça é esguia e fina, como de uma garça.

Figura 70

Caruana Pingo D’água (Foto: Faro, 2011).


137

E por fim, a última imagem de caruana que há na fazenda de Zeneida Lima é a do


Caruana das Direções, e está relacionado a todas as direções possíveis, como leste, oeste,
norte, sul, centro, baixo e cima, dentro e fora, e as qualidades de positivo e negativo. Segundo
Raul, é ele quem “dá a direção na vida do vivente”. Sua cabeça parece ser de pássaro e ao
invés de braços ele possui pontas que saem de seu tronco, indicando diversas direções. Entre
ele estão dois potes, um com a boca para cima e outro com a boca para baixo.

Figura 71

Caruana das Direções (Foto: Faro, 2011).

Esses caruanas, como vimos, possuem aparência e funções bem particulares e


diferenciadas das que estamos acostumados a ver nos estudos sobre pajelança de outros
pesquisadores, e mesmo nas práticas de cura de outros(as) pajés de Soure, como pude
observar e foi exposto nesse trabalho. Eles são mais que caruanas ou encantados, são
praticamente deidades, com poderes, símbolos e mitos, e estão próximos das grandes
divindades da pajelança “marajoara” de Zeneida, ou seja, Auí e o Girador, pois estão na
“Escadinha de Coral” em um processo evolutivo e em direção às Águas Primordiais, que
segundo a crença de Zeneida, é a essência do Girador, o deus criador. São esses seres,
portanto, encantados ou caruanas e divindades que a auxiliam nos rituais de cura e pajelança.
138

5.4. Os Rituais

Durante minhas pesquisas de campo, de 2009 a 2011, não foi possível presenciar
uma pajelança realizada por Zeneida Lima. Ficava sempre a espera de um telefonema ou e-
mail com uma notícia de que haveria uma pajelança, mas Zeneida ou seus familiares nunca
me ligaram ou responderam meus telefonemas e e-mails quando eu solicitava informação
sobre um ritual de pajelança. O mais próximo que consegui chegar foram descrições sobre os
rituais em relatos durante entrevistas realizadas em julho de 2010 e julho de 2011. É possível
que Zeneida nem realize mais rituais de pajelança, devido sua idade avançada, ou que ela
simplesmente estivesse evitando que eu presenciasse seus rituais.
Com base em seus depoimentos, Zeneida Lima afirma que ao longo do ano são
realizados alguns rituais, como o ritual da Mãe-Terra, para curá-la e alimentá-la; o ritual de
Anhangá, que ocorre geralmente em 24 de fevereiro ou mais precisamente na data em que
ocorre o alinhamento da Terra, do Sol e da Lua. Zeneida explicou-me que esse é um ritual
secreto, pois:

São rituais secretos porque o pajé... algumas pessoa veem, mas é com urtiga,
sabe? Então o pajé se rola por cima da urtiga todinha, o servente bate o
corpo do pajé tudo com urtiga. Então é um ritual, vamos dizer, pesado.
Porque Anhangá, a energia de Anhangá, é pesada. Ele faz isso, o servente do
pajé faz isso, bate no pajé, pra acalmar essas energias na Terra, entendeu?
Pra que essas energias, não haja tanto desgastes [desastres], tantas coisas
ruins, ele acalma as energias dela. Então ela só acalma com esses rituais
(Zeneida Lima, em entrevista de julho de 2010).

Há também o ritual de Auí, que supostamente acontece em 17 de dezembro, e é


quando “todo mundo toma um banho, entendeu? Tem um cântico e toma aquele banho, né?
Perto do rio, pro rio levar todos os descarregos” (entrevista de julho de 2011). Além desses,
haveria também rituais de passagem, como o ritual dos jovens, que segundo Zeneida:

[...] é um ritual de jovens, quando o jovem... por exemplo, todo adolescente


quando chega a época né, eles querem sair, e tal, então a gente faz um ritual
pra prender... por exemplo, a criança lá, os laços [familiares]... ele pode sair,
mas a cabeça dele não vai se misturar com drogas, com nada (entrevista em
julho de 2011).

E por fim os rituais de cura, chamados por ela de “pajelanças”, e só são realizados
em último caso, quando não consegue curar o doente por meio de outros procedimentos,
como banhos, chás, “transmissão de energias” etc. Antes de realizar uma pajelança, Zeneida
explica que precisa fazer um ritual de “conferência das energias” ou “ritual da cumbuca”,
como ela relata:
139

Daí eu vou e dou uns enrolados, com três elementos da natureza, é uma
pedra, um besouro e uma semente, aí você pega e depois fica dentro da
cumbuca; essa cumbuca é preparada para fazer esse tipo de conferência das
energias, depois disso eu pego os enrolados e abafo essa cumbuca com os
enrolados, numa folha sagrada que ela tem o poder de reter essas energias
ali. Daí eu levo pro tempo e deixo três dias, depois de três dias eu vô e tiro
do tempo a cumbuca, tiro todas as folhas que eu botei, os enrolados de folha
que eu botei, e pego os elementos e vô olhar e vejo a coloração. Às vezes
eles ficam vermelhos, tem outros que ficam esverdeados. Tem vezes que tá
tudo certo, você tá certa, suas energias estão certinhas. A partir daí é que eu
mando... eu vejo o reino que tava... porque um representa a terra... a partir
daí é que eu posso mandar as energias pra te curar (entrevista de julho de
2010).

A partir desse processo, Zeneida decide como será o tratamento de cura na pessoa:

Daí eu começo a mandar as energias pra você, às vezes eu mando um


pozinho da pedra pra você soprar tantas horas, entendeu? Às vezes eu mando
uma casca pra você soprar também tantas horas, se é do outro reino, o
vegetal... Então é assim meu tratamento, mando sete vezes pra todos eles, até
21 vezes. Daí eu vou olhar e se vejo que não deu certo esse tratamento eu
passo pra pajelança... Aí eu chamo o povo de Auí, que são as energias
poderosas do fundo das águas, pra daí dar aquele choque de energias, porque
não tem incorporação, é só vibração, pra dar aquele choque de energias, pra
que as suas energias também possam vibrar, em todo seu corpo, fluir em
todo seu corpo... E daí os remédios, o tratamento começam a surtir efeito.
Porque às vezes você mesmo... às vezes você tá doente, e tá tão descrente,
não tá boa, tá fraca, não tem até mesmo força pra se recuperar, aí depois que
faz essa vibração de energia, ela flui livremente pra que você fique boa
(Zeneida Lima, em entrevista de julho de 2011).

Caso o problema ainda persista e a pajé não o tenha conseguido identificar, é


realizado outro ritual, que ela descreve da seguinte forma:

Eu vou botar uma cumbuca toda furadinha assim na sua cabeça, adonde eu
deixo uma fumaça, boto uma fumaça com umas ervas propícias e daí você
começa a conversação, daí eu venho e converso com você também. Aí eu
converso sete vezes, quatorze vezes e vinte e uma vez com você, daí você se
solta até você contar o problema que você tem e fica boa.

Esse ritual é semelhante a uma sessão de psicoterapia, em que a catarse resultaria na


cura do paciente.
Sobre o ritual da pajelança, que parece ser mais elaborado e demorado, Zeneida
conta que ocorre da seguinte maneira:

Quando a gente faz a pajelança, quando a gente se reúne, a gente começa a


cantar as linhas do fundo, do meio e da superfície... E a gente começa a
cantar pelo meio, a cantar pelas energias do meio das águas. Daí vai
140

fazendo... você não enxerga, mas invisivelmente vai se fazendo uma roda,
um círculo, adonde vai esfumaçando, as energias. Aquela roda que vai se
fazendo ela vai protegendo as guias pra se fazer a cura. Daí a gente canta e
vai se fazendo um outro círculo fora daquele, protegendo também. Daí
quando chega a hora da cura quando vem as energias do povo de Auí, aí a
gente faz a vibração em cima do doente (entrevista em julho de 2010).

Nos rituais Zeneida utiliza alguns instrumentos sagrados, que são o maracá, que deve
ser de três tipos: o maracá da cura (que contém penas da asa da arara azul), o maracá para
marcar os ritmos da dança e dos cânticos (com penas do rabo da arara vermelha), e o maracá
de espinho (enfeitado com espinhos e penas amarelas) que serve para afastar Anhangá nos
rituais de cura, pois “quando ele bate esse maracá de espinho é como se formasse uma cerca
de espinho, impedindo a energia de Anhangá” (Zeneida Lima, em entrevista de julho de
2010). Os maracás, e em especial o da cura, deve ser preparado ritualisticamente antes de ser
utilizado. Segundo Zeneida:

[...] ele é envolvido todo na cera da abelha e ele fica ali, depois na outra lua é
que você tira pra consagrar ele na pajelança, daí passa ele na fumaça das
resinas sagradas e daí é que você vai bater ele na pajelança, depois que já
incorporou todas as pedrinhas, as sementes dentro dele. [...] É, são sementes
sagradas, é passado de um pajé pra outro pajé, entendeu? É pedrinhas do
leito do rio (idem).

Há também as cintas, amarradas no corpo da pajé; um cipó, que ela utiliza para
delimitar um círculo sagrado; um arco e flecha; cigarros de tauari; cuias ou cumbucas
contendo água e outras coisas (segundo o depoimento de Zeneida, em entrevista de julho de
2010).
As pajelanças seriam realizadas geralmente na fazenda de Zeneida, no espaço
particular onde fica uma casa (que estava em reforma) e algo semelhante a uma oca indígena,
na qual seriam realizados os rituais de pajelança.
141

Figura 72

Espaço onde seriam realizados os rituais de pajelança de Zeneida Lima (Foto: Faro, 2011).

Como foi mencionado anteriormente, não foi possível presenciar um ritual de


pajelança realizado por Zeneida, contudo, por meio de seus relatos podemos ter uma noção de
como ela realiza (se é que ainda realiza 39) esses rituais. E com base no que foi apresentado
neste tópico, é possível notar claramente as diferenças entre as práticas de cura de Zeneida e
das demais pajés de Soure apresentadas nesse trabalho. Os encantados, o discurso e a prática
ritual são diferentes entre essas pajés.
Pelas informações que foram apresentadas e analisadas nessa pesquisa, é possível
inferir que as práticas e crenças desta pajé são permeadas por saberes construídos a partir de
sua própria cultura local, por conhecimentos transmitidos por seu mestre (Mundico de
Maroacá), e por conhecimentos adquiridos ao longo de sua vida, como por exemplo por meio
de livros que tenha lido sobre o tema, como encantaria, mitologia, cultura amazônica e
ecologia.
Baseando-nos no estudo de Hobsbawn (1997) e na pesquisa aqui desenvolvida,
podemos afirmar que a pajelança de Zeneida Lima é uma tradição inventada, o que não quer
dizer que seja uma tradição sem significado ou sem importância, mas que, em primeira
instância, contrapõe-se à tradição genuína, a qual de acordo com Hobsbawn (op. cit.) não é
possível definir em que momento histórico surgiu. A pajelança apresentada por Zeneida Lima
parece ter sido criada ou intuída por ela própria, já que não encontramos em Soure outro(a)
pajé ou curador(a) que também praticasse as mesmas formas de cura e reverenciasse os

39
Em uma das entrevistas com Zeneida, ela me afirmou que já estava “se despedindo”, dando a entender que
estava parando aos poucos de realizar pajelanças, devido a sua idade avançada.
142

mesmos caruanas (Beija-Flor, Jacundá, Lua, Ventania etc.). A não ser que de fato as antigas
tribos marajoaras tivessem essa forma de xamanismo, o que não podemos afirmar, pois não há
registros suficientes sobre essas culturas, infelizmente, há anos desaparecidas.
Hobsbawn (op. cit) também afirma que só ocorre a necessidade de inventar tradições
quando sua forma genuína já está em processo de degeneração, e que “as tradições inventadas
são altamente aplicáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente recente” (p.
22). Essa “inovação histórica” pode ser entendida como o momento histórico, social e cultural
em que nossa sociedade está vivendo, isto é, a mudança de paradigma, a consciência
planetária, que envolve os mais diversos setores da sociedade, desde a ciência, arte, educação,
política, até a religião. Um momento histórico em que mais e mais expressões religiosas
surgem ou se renovam buscando inspiração nas tradições culturais antigas ou pré-cristãs da
humanidade, valorizando a relação harmoniosa entre ser humano e natureza. Nesse contexto,
a pajelança praticada por Zeneida Lima surge defendendo esta relação, e ao mesmo tempo
afirmando que o divino encontra-se na natureza. Com isso, esta pajé quer dizer que ao se
relacionar com a natureza, o ser humano estará se relacionando também com o divino. Tal
crença não se encontra muito forte na pajelança cabocla como um todo na Amazônia, como
podemos verificar em Capanema/PA, em um estudo de Silva & Pacheco (2011) sobre
encantaria nesse município. Os autores citam uma rezadeira (dona Deuza) que dedica muito
do seu ofício de cura para expulsar os encantados, em especial as Oiaras ou mães d’água. Em
um trecho de seu depoimento, ela afirma que certa vez derrubou ou matou os açaizeiros de
seu quintal depois de derramar uma mistura de cachaça e alho preto no solo, e segundo ela os
açaizeiros eram as casas das Oiaras ou a porta por onde elas transitavam do mundo encantado
(o Fundo) para o mundo humano. Como fica evidente no artigo desses autores, a relação entre
a curadora e os seres encantados se configura de forma bastante conflituosa, situação diferente
da que é apresentada por Zeneida Lima, que busca uma relação harmoniosa, ecológica, com a
natureza e os encantados.
O intuito deste estudo não é afirmar se Zeneida é ou não pajé, ou se sua pajelança é
tradicional ou não, mas demonstrar que a pajelança cabocla em Soure apresenta diversas
facetas e características, sendo todas válidas do ponto de vista cultural e religioso. E é
justamente isso que faz a diversidade da Amazônia ter sentido, a diversidade de saberes,
conhecimentos, culturas e expressões religiosas. Penso que o mais interessante (e desafiante)
a ser observado e analisado atualmente pelos estudiosos é como esses saberes, culturas e
expressões religiosas se relacionam e se reinventam diante da modernidade, e compreender
que dessa reinvenção surgem novas significações para antigos e novos anseios do ser humano.
143

Considerações Finais

O estudo sobre Pajelança Cabocla na Amazônia, e especificamente no Pará, possui


uma trajetória de algumas décadas, com o primeiro estudo antropológico realizado por
Eduardo Galvão e publicado em 1955, em “Santos e Visagens”. Entretanto, ainda é um campo
pouco conhecido, principalmente em se tratando de Marajó. Poucas pesquisas foram
realizadas até o momento que contemplem a Encantaria na Ilha do Marajó e espera-se que
essa pesquisa contribua para o campo de estudos da religião e da pajelança cabocla na
Amazônia. Temos consciência, contudo, que esse trabalho deixou algumas lacunas, mas
muitas questões foram esclarecidas, e esperamos que isso instigue mais interessados e
pesquisadores a se debruçarem sobre o tema.
Esse trabalho demonstra que existem diversas formas de pajelança em Soure e que
não devemos pensar esse fenômeno como sendo um “bloco monolítico”, uniforme, mas que
possui diversas faces e características, dependendo do contexto, lugar e indivíduo(s)
relacionados, apesar dos muitos aspectos em comum entre “as pajelanças”. Percebe-se
também que a pajelança não é um fenômeno estático, e sim dinâmico e está em constante
adaptação e ressignificação. Além disso, verifica-se que a mulher exerce intensa participação
na pajelança cabocla e atua conjuntamente com o homem nesse campo religioso e cultural.
Nesse estudo é possível observar que a “pajelança marajoara” de Zeneida Lima
carrega um substrato da cultura amazônica e marajoara, está repleta de ancestralidade e
mística xamânica, mas também é ressignificada e recriada ao contexto moderno e atual. É,
portanto, uma “tradição inventada”, segundo os parâmetros de Hobsbawn (1997). De acordo
com Guerriero (2004) a sociedade atual vive uma ânsia em buscar, em resgatar um passado
perdido, e essa postura é observada em diversas expressões religiosas tradicionais e
contemporâneas. A sociedade moderna, encontrando-se descontente com sua realidade, com a
violência nos centros urbanos, o trabalho alienante, o Estado decepcionante e a falta de
sentido em suas vidas, busca no passado as formas de vida e valores “perdidos” por nossa
sociedade.
A sociedade atual busca na essência das tradições religiosas antigas (em sua maioria
pré-cristã) por algo que preencha os anseios não saciados pela modernidade, especialmente o
sentimento de pertencimento a uma comunidade, a sensação de harmonia com a natureza e o
universo, a visão holística (integrada) da vida, entre outros aspectos. Com isso, as tradições e
religiões antigas (como o Xamanismo e as religiões de povos da antiga Europa, como Celtas,
Vinkings e Gregos) são recriadas e reinterpretadas para uma realidade atual e inseridas dentro
144

de um contexto moderno, urgente de sentidos de existência. Nesse sentido, a pajelança


cabocla, e no caso a pajelança apresentada por Zeneida Lima, encaixa-se nessa situação, pois
esta pajé procura lembrar ao ser humano sua relação de irmandade com a natureza e o seu
papel de guardião da harmonia da mesma, que implica, consequentemente, em sua própria
harmonia. Cada vez mais pessoas buscam (e encontram) respostas, esperanças e sentidos nas
tradições culturais antigas (como as citadas acima), a fim de suprir os vazios provocados pela
modernidade. No contexto amazônico, entre as tradições antigas a que mais é buscada e
reverenciada, tornando-se como um símbolo da ancestralidade, é o xamanismo ou
pajelança(s) indígena(s), expressa tanto nas culturas e povos indígenas quanto nos saberes
tradicionais das populações caboclas e ribeirinhas.
Estudos sobre as mulheres pajés na Amazônia estão se ampliando cada vez mais e
demonstrando que elas participam do universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja
agindo efetivamente como pajés ou xamãs, seja agindo como serventes ou assistentes de um
pajé. Em todo o território amazônico elas são mulheres que tem o dom da cura, que vem do
Fundo das águas, das matas e de suas próprias vivências mais profundas. São mulheres
chamadas de curadoras ou curandeiras, benzedeiras, parteiras e pajés, e seu amplo arsenal de
saberes envolve o conhecimento das plantas curativas, da mata, do ritmo das águas, dos ciclos
da lua e da natureza. Saberes estes que estão intimamente relacionados ao ambiente natural e
a história cultural amazônica, gerando então um complexo e rico imaginário, que denomina-se
Encantaria. Esta Encantaria encontra-se com um pé fincado na ancestralidade e outro na
modernidade, e atualmente nela floresce uma face feminina, em que a mulher é não só a
agente de cura dos indivíduos, ou seja, a pajé, a sábia, a curadora e parteira, em cujas mãos
novas vidas vêm ao mundo, mas também é a agente de cura e transformação da humanidade e
do planeta.
145

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149

Glossário

Auí: na pajelança de Zeneida Lima, é o ser luminoso criado pelo Girador (a divindade
primeva, criadora) que governava a princípio as cidades encantadas. Descumpriu a ordem do
Girador de não observar o que havia no fundo das águas e ao fazê-lo, inverteu a ordem do
mundo, o que havia embaixo subiu, e o que havia em cima desceu para as profundezas das
águas. Com isso seu corpo foi dilacerado e ao dividir-se deu origem aos três reinos da
natureza: reino animal, mineral e vegetal (aqui encontra-se um tema mítico universal, “o
sacrifício do gigante ou semi-deus”, segundo Eliade, 2001).

Anhangá: na pajelança de Zeneida Lima, é um ser caótico, nem maléfico nem benéfico, que
pude os agressores da natureza e aqueles que quebram o equilíbrio do universo. Vivia no
fundo das águas até emergir a superfície quando foi visto por Auí.

Corrente-do-fundo: Termo nativo utilizado em estudos de Galvão e Maués para definir o


momento em que os pajés começam a sentir os efeitos da influência dos encantados e quando
iniciam de fato seu treinamento para ser pajé. Esse termo não é encontrado em Soure, mas a
ideia é presente.

Caruana: Seres encantados que vivem no fundo das águas e florestas, e possuem poder de
cura e maldição (podem “malinar”). Chamados também de encantados, companheiros do
fundo, camaradas, guias, caboclos, povo das águas e gente do fundo. Um fato interessante é
que a expressão “caruana” parece ser utilizada somente no Pará, e em especial na Ilha do
Marajó. Podem assumir a forma animal, humana ou ambas, ou ainda serem invisíveis aos
olhos mundanos. Alguns caruanas foram pessoas que se “encantaram”, desapareceram
misteriosamente na mata ou nas águas. Para a pajé Zeneida Lima, a ideia de caruanas é
semelhante a esta, mas vai um pouco além, pois para ela caruanas são as “energias das águas”.

Encantado: ver “Caruana”.

Encantaria: grande sistema de crenças e práticas, difuso e fluido como a água. Imaginário que
engloba diversas práticas religiosas, entre elas a(s) Pajelança(s) Indígena(s), Pajelança
Cabocla, Umbanda, Tambor de Mina e outras práticas de cura relacionadas aos encantados e
seu Mundo das Águas.

Girador: na pajelança de Zeneida Lima, é a divindade criadora, possui a forma de uma


igaçaba, ou seja, um grande pote ou vaso.

Malineza: termo que designa o ato de provocar intencionalmente ou não o sofrimento (na
forma de doenças de causa incomum ou supranatural) em pessoas. Encantados geralmente
“malinam” com humanos que perturbam sua morada (igarapés, matas, olhos d’água...) ou a
poluem, quando se sentem ofendidos ou por simples vontade de “malinar”.

O Fundo: como é chamado o lugar onde habitam os encantados, já que eles moram no fundo
das águas e das matas.

Pajé: Homem ou mulher que tem o dom de curar doenças de causa “comum” (exemplo: gripe,
dor de cabeça, dor de barriga, fratura etc.) ou “incomum” ou melhor, supranaturais
(provocadas por encantados ou humanos, exemplo: mau olhado, quebranto, “flechada de
150

bicho” etc.). Em alguns locais da Amazônia, a mulher sofre restrições em ser pajé, em outros
(como em Soure), não.

Pajelança (cabocla): Conjunto de práticas e crenças, sobretudo, de cura presente em diversas


localidades da região amazônica. A crença em Deus (católico), nos santos, nos encantados ou
caruanas, nos caboclos, nos espíritos (“desencarnados”) e outros elementos oriundos de várias
expressões religiosas são encontrados no mosaico que é a pajelança cabocla, e cada pajé
apresenta uma forma particular de exercer a pajelança.

Patu-Anu: na pajelança de Zeneida Lima, foi criado pelo Girador para governar as cidades
encantadas no Fundo depois que Auí transgrediu a ordem. Ele teria criado várias coisas boas
nas cidades encantadas, como a Lírica do mar e a Casa de Espuma (que são explicadas neste
trabalho e são melhor descritas no livro autobiográfico de Zeneida Lima, “O Mundo Místico
dos Caruanas da Ilha do Marajó”, 2002).

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