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CAPITALISMO DOS TÉCNICOS

E DEMOCRACIA*
Luiz Carlos Bresser-Pereira

O século XX ficará conhecido no futuro por a esse novo poder, ao mesmo tempo em que é
muitas mudanças importantes: foi o século do pro- condicionada por ele.
gresso tecnológico, das organizações mais do que Enquanto ocorriam mudanças nas esferas so-
das unidades de produção familiares; o século em cial e política, as economias experimentaram enor-
que o número de burocratas ou de técnicos au- me crescimento e tornaram-se muito mais comple-
mentou a ponto de merecerem ser identificados xas. Nesse processo, os mercados assumiram um
como uma classe social – a classe média profissio- papel importante na coordenação da economia –
nal. Juntamente com essas mudanças, foi o século alocando fatores de produção empregados pelas
em que o conhecimento acabou se tornando o fa- empresas comerciais –, mas, obviamente, a coorde-
tor de produção decisivo, e o controle do conhe- nação de todo o sistema ultrapassou em muito suas
cimento tecnológico, organizacional e comunicati- possibilidades. Na esfera política macro, o papel do
vo tornou-se estratégico. No entanto, foi também Estado e do sistema institucional ou legal que ele
o século da democracia, que representa um freio cria e impõe cresceu extraordinariamente. No âm-
bito da sociedade civil (da sociedade politicamente
organizada), as organizações corporativas e, em um
* Trabalho apresentado ao “John Kenneth Galbraith In- segundo momento, as organizações de responsabi-
ternational Symposium”, promovido pelo Laboratório lidade social cresceram em número e influência,
de Reorganização Industrial da Université du Littoral,
agindo como mecanismos de controle dos gover-
Paris, 23-25 set. 2004. Revisado em mar. 2005.
nos. Ao mesmo tempo, na esfera econômica, as
Artigo recebido em janeiro/2005 grandes corporações e todos os outros tipos de
Aprovado em agosto/2005 grandes organizações tornaram-se predominantes

RBCS Vol. 20 nº. 59 outubro/2005


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em toda parte. As empresas exigiam empresários, lucro como motivação básica e a acumulação de
as organizações precisavam de administradores ou capital com progresso técnico incorporado como
técnicos ou profissionais abrangendo um espectro o meio básico de atingir resultados – continuam
cada vez maior de especialidades. As organizações sendo válidas, mas o conhecimento se tornou
continuam a exigir ação empresarial ou inovadora, mais estratégico do que a propriedade do capital.
mas o espírito empreendedor se tornou cada vez No processo produtivo, os bens de capital conti-
mais coletivo, e não individual. Dentro de todas as nuam sendo um fator central de produção e sua
organizações, começando pelo aparelho do Estado propriedade, uma importante fonte de receita e
e incluindo as organizações de responsabilidade so- poder, contudo são hoje relativamente menos es-
cial sem fins lucrativos, as grandes empresas comer- cassos do que o conhecimento, do que a capaci-
ciais e as grandes organizações de serviço sem fins dade de dominar a tecnologia, de administrar as
lucrativos, as demandas de conhecimento técnico, modernas organizações e de comunicar-se através
administrativo e comunicativo também cresceram dos vários tipos de mídia. No âmbito político, o
dramaticamente – e o poder dos administradores conhecimento sempre foi estratégico, mas ele se
ou técnicos aumentou proporcionalmente. tornar estratégico na esfera econômica é um im-
No mundo contemporâneo, instituições, or- portante fato histórico novo que está necessaria-
ganizações e redes são muito mais complexas, na mente afetando a democracia.
medida em que incorporam um progresso científi-
A maior e mais óbvia conseqüência social
co e tecnológico cada vez mais sofisticado e que
dessa mudança foi o surgimento da classe média
lidam com grandes organizações, regulando redes
profissional, ou da tecnoburocracia, que, atualmente,
densas. Em 1967, Galbraith observou que o conhe-
divide a renda e a riqueza com a classe capitalista,
cimento técnico tinha se tornado um fator de pro-
tanto nas organizações privadas como nas organiza-
dução estratégico. Um pouco mais tarde, quando
ções públicas estatais e não estatais, enquanto com-
escrevi meu ensaio básico sobre o aparecimento
pete por influência e poder.1 A conseqüência políti-
da tecnoburocracia ou da classe média profissio-
ca mais importante é que o surgimento dessa nova
nal, acrescentei ao conhecimento técnico o conhe-
classe favoreceu a consolidação da democracia. A
cimento organizacional ou administrativo (Bresser-
Pereira, 1972); estou agora incluindo um terceiro democracia só se consolida quando a sociedade res-
elemento, o conhecimento comunicativo, para en- pectiva conta com uma “nova” classe média profis-
fatizar o novo papel desempenhado pela tecnolo- sional ampla e uma “antiga” classe média de ho-
gia da informação na formação daquilo que Ma- mens de negócio de pequeno e médio porte. Durante
nuel Castells (1996) denominou, e analisou com algum tempo, porém, os analistas resistiram a essa
tanta agudeza, a “sociedade das redes”. Chamarei idéia do surgimento de uma nova classe social. Pri-
essas três formas de conhecimento de “conheci- meiro, porque a classe média profissional, que in-
mento operacional”, na medida em que elas são clui políticos e intelectuais, não gosta de ser chama-
necessárias para tornar operacionais as modernas da de nova classe social, e “se esconde”; segundo,
e complexas sociedades em que vivemos. porque aceitar a idéia de uma nova classe social
A alegação de Galbraith de que o capital es- emergente poderia acarretar uma perda de poder
tava deixando de ser o fator estratégico de produ- para a classe capitalista – algo que especialmente a
ção, sendo gradualmente substituído pelo conhe- esquerda não estava preparada para aceitar, salvo
cimento tecnológico, apareceu em seu livro se essa mudança apontasse na direção do socialis-
clássico O novo estado industrial (1979 [1967]). mo; e terceiro, porque a teoria de uma nova classe
Hoje em dia há poucas dúvidas sobre o acerto de social, que estava surgindo nos países capitalistas e
sua previsão. Vivemos no capitalismo dos técnicos havia se tornado predominante na União Soviética,
ou na sociedade do conhecimento – em um siste- contradizia a análise padrão dos cientistas sociais
ma social que continua sendo capitalista, mas é acerca do poder político.
cada vez mais controlado pelo conhecimento, e No entanto, o crescimento da nova classe
não pelo capital. As características centrais do sis- média foi tão extraordinário que ficou impossível
tema capitalista – a coordenação do mercado, o não reconhecer sua existência e sua nova impor-
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tância. Assim, partirei do pressuposto de que o pitalismo burguês; pode bem ser o capitalismo dos
conhecimento operacional é o novo fator estraté- técnicos ou, mais diretamente, o capitalismo do co-
gico de produção, e de que a classe média profis- nhecimento.
sional divide renda e disputa poder com a classe O capitalismo foi originalmente definido por
capitalista. Quais são as conseqüências dessas no- Marx como o sistema econômico e social no qual
vas realidades? Podemos falar de um capitalismo os meios de produção estão historicamente sepa-
dos técnicos, ou do conhecimento? Podemos ter rados dos trabalhadores, dando origem a uma
um capitalismo no qual o poder e uma nova ren- classe capitalista ou burguesia, que detém o capi-
da derivariam principalmente do conhecimento e tal (a propriedade privada dos meios de produ-
não do capital? Em caso afirmativo, isso significa- ção), e a uma classe assalariada de trabalhadores
ria que a classe média profissional “ganhou” sua ou proletários. Os capitalistas são motivados pelo
lutar por poder, ou que a classe capitalista ainda lucro ou pela mais-valia, que é realizada no mer-
mantém não apenas a riqueza, mas o poder polí- cado por meio de uma troca de valores equivalen-
tico? Seria o conceito de capital ainda o mesmo tes. Para auferir lucros, os empresários acumulam
ou, dada a existência da organização, deveria ele capital e inovam, incorporando o progresso técni-
ser revisto? Pode a democracia ter-se tornado uma co ao processo produtivo, e contratam trabalhado-
efetiva “força compensatória”, no sentido que res que vendem sua força de trabalho no mercado
Galbraith dá a essa expressão? Como aproveitar como qualquer outra mercadoria. Definidas nesses
as vantagens derivadas do fato de o conhecimen- termos gerais, as sociedades do século XXI conti-
to se tornar o fator estratégico de produção sem nuam sendo capitalistas, apesar da enorme mu-
incorrer em suas desvantagens? Neste trabalho, dança que sofreram. A economia continua a ser
proporei algumas respostas a essas questões. essencialmente coordenada pela competição de
mercado. A motivação do lucro ainda é primor-
dial, e a acumulação de capital com incorporação
O técnico e a organização do progresso técnico continua sendo o meio por
excelência de obter lucros.
Sempre que possível, a ciência social conven- No entanto, na medida em que as organizações
cional evita o uso da palavra “capitalismo”, prefe- substituíram as empresas familiares como a unidade
rindo expressões mais gerais como sociedade de básica de produção, e na medida em que o conhe-
mercado ou economia de mercado. Apesar disso, cimento operacional se tornou o novo fator estraté-
capitalismo é uma palavra forte e não pode ser evi- gico de produção, o controle da produção mudou
tada. O capitalismo tem recebido muitos adjetivos, de mãos. O capitalismo clássico foi obviamente o ca-
à medida que vai se modificando com o tempo. pitalismo do capital; o capitalismo dos técnicos, po-
Capitalismo liberal ou clássico, capitalismo mono- rém, ocorre quando capital e organização se asso-
polista, capitalismo organizado, capitalismo indus- ciam. Como Berle e Means (1932) observaram há
trial, capitalismo informacional, capitalismo global, muito tempo, a separação entre o controle e a pro-
cada um enfatizando um determinado aspecto. Ou, priedade das grandes empresas ocorreu no capitalis-
em lugar de adjetivos, algumas expressões tentam mo moderno. Em toda parte, administradores ou téc-
sugerir que o capitalismo foi ultrapassado, tendo nicos substituíram os acionistas ou os capitalistas na
em vista seu próprio sucesso. Viveríamos agora em direção das organizações produtivas. Já utilizei “tec-
sociedades pós-capitalistas, ou em sociedades pós- noburocrata” em lugar de técnico, mas é uma pala-
industriais, ou na sociedade global. O fato de que vra comprida com conotações negativas. “Burocrata”
o conhecimento operacional está gradualmente seria uma alternativa, mas geralmente se limita ao se-
substituindo o capital como o fator estratégico de tor público. Apesar de suas deficiências, usarei de
produção parece corroborar esta última aborda- preferência a expressão “técnico” a “administrador”
gem. No entanto, embora relevante, a variável fa- como a expressão moderna para burocrata, inclusi-
tor estratégico não define por si só a natureza so- ve burocratas privados. O termo “administrador”
cial e econômica do sistema capitalista. O também seria adequado, na medida em que o admi-
capitalismo não precisa necessariamente ser o ca- nistrador controla diretamente as organizações. Mas
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nosso ator social pode ser um profissional que do- ou os proprietários de terra, cujo papel foi desapa-
mina problemas técnicos ou que trabalha em redes recendo com a ascensão do capitalismo. Nas socie-
de comunicação. Se ele trabalhar para organizações dades modernas temos três classes sociais – a clas-
comerciais, será um administrador ou um técnico se capitalista, a classe média profissional e a classe
privado; se trabalhar diretamente para o Estado ou trabalhadora. Ter duas classes sociais dominantes
para organizações sem fins lucrativos, será um técni- não faz sentido quando se adota uma abordagem
co público ou um funcionário público – técnicos pú- marxista ortodoxa. Não sendo um marxista, no en-
blicos incluem os que trabalham para organizações tanto, em meus escritos anteriores sobre o assunto
sem fins lucrativos, enquanto funcionários públicos apresentei uma solução a esse problema. Em primei-
trabalham para o Estado, como políticos eleitos ou ro lugar, opus capitalismo “puro” ao modo de pro-
como servidores públicos não eleitos. Intelectuais e dução estatal ou tecnoburocrático “puro”, que teria a
cientistas também estão na ampla categoria de técni- “organização” como a forma específica de proprieda-
cos ou profissionais. Os técnicos, como as outras de. Em segundo, sendo provavelmente mais fiel a
classes sociais, estão organizados em estratos (Bres- Marx do que os marxistas oficiais, defini o capitalis-
ser-Pereira, 1981b): embora eu fale de uma classe mo moderno como um sistema social misto, como
média profissional, porque a grande maioria dos téc- uma formação social que era predominantemente
nicos pertence à classe média, existem também exe- capitalista mas secundariamente tecnoburocrática
cutivos com altos salários, que fazem parte mais ade- (Bresser-Pereira, 1977, 1981a). No modo de produ-
quadamente dos estratos superiores, assim como ção estatal, o capital deixa de existir, uma vez que a
burocratas de nível inferior que se situam mais ade- propriedade privada dos meios de produção desa-
quadamente na classe baixa. O técnico toma deci- parece, e é substituído pela organização, isto é,
sões, define instituições, organiza a produção, cria pelo controle coletivo das organizações burocráti-
redes, desenvolve novos conhecimentos, propaga cas por parte da classe média profissional. Ela não
ou questiona valores e crenças, tendo como legitimi- detém a propriedade “legal” da empresa e de todas
dade não a tradição nem o capital, mas o conheci- as outras formas de organização, mas a proprieda-
mento. de “efetiva”. Enquanto no capitalismo a proprieda-
Esta distinção entre capitalistas e técnicos de é privada, individual, no estatismo ela é coleti-
pode ser sempre questionada com o argumento
va. Enquanto no capitalismo cada capitalista ou
de que do moderno empresário capitalista se exi-
possui diretamente os meios de produção ou uma
ge não apenas capital e a capacidade de assumir
parte proporcional deles na forma de ações, o ad-
riscos, mas também o conhecimento, do qual de-
ministrador ou técnico não pode dizer que possui
riva a inovação. No entanto, a legitimidade máxi-
uma empresa ou mesmo uma determinada parte
ma do capitalista deriva do capital, não do conhe-
dela. Ele “possui” a organização burocrática, na
cimento. É verdade também que a clássica
medida em que ocupa um cargo executivo ou de
definição do empresário feita por Schumpeter diz
assessoria na hierarquia organizacional, participa
que “capital” não é a propriedade dos meios de
da administração da organização e muitas vezes
produção, mas o crédito – a capacidade de finan-
utiliza seus recursos em benefício próprio.
ciar a inovação. Contudo, ao formular essa defini-
ção de empresário, Schumpeter (1961 [1911]) esta- No capitalismo dos técnicos, os altos execu-
va prevendo a história, estava sugerindo o tipo de tivos no Estado e nas grandes empresas comerciais
espírito empreendedor individual que, juntamente são capazes de definir sua própria remuneração.
com o espírito empreendedor coletivo nas grandes Nas empresas comerciais, teoricamente isso é fei-
organizações, constituiria o típico capitalismo dos to pelo conselho de administração, mas muitas ve-
técnicos.2 É verdade que, como um resultado final zes esses conselhos são controlados por adminis-
de seu espírito empreendedor, o técnico, o deten- tradores e não por acionistas. No Estado, os
tor de conhecimento, também se tornará um capi- funcionários públicos mais graduados, eleitos e
talista. Mas isso não muda a fonte básica da qual não eleitos, muitas vezes têm um poder semelhan-
ele obteve a riqueza. te, mas sua remuneração é consideravelmente me-
No capitalismo clássico tínhamos apenas nor. O fato de os administradores não deterem a
duas classes sociais, se ignorarmos a aristocracia propriedade legal mas, em vez disso, a proprieda-
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de coletiva da organização evidentemente reduz trata um sistema de mercado, em que o lucro é a


sua capacidade de definir seus proventos de modo motivação, a taxa de lucro ou o retorno sobre o in-
pleno. Eles precisam constantemente justificar suas vestimento calculado de acordo com o fluxo de cai-
ações ou explicar sua remuneração em termos de xa descontado é o critério de sucesso, e a acumu-
mercado, enquanto o capitalista está livre para fa- lação de capital com incorporação do progresso
zer uso de sua propriedade em seu próprio bene- técnico é o meio para atingir o lucro. Peter Drucker
fício e no de sua família; mesmo a “nomenclatura” (1993, p. 8), que cunhou a expressão “sociedade do
nas formações sociais predominantemente contro- conhecimento”, insiste que a era do capitalismo
ladas pelo Estado, como a União Soviética, tinha acabou e que a nova sociedade é uma sociedade
uma limitação precisa em sua tentativa de se apro- pós-capitalista. Repetindo Galbraith, mas usando
priar do excedente econômico. A propriedade dos uma nova expressão, ele diz que “os meios de pro-
técnicos não é herdada, ao contrário da proprieda- dução não são mais o capital ou os recursos natu-
rais (a ‘terra’ dos economistas), nem a ‘mão-de-
de capitalista e pré-capitalista. A nova classe média
obra’. É e será o conhecimento […]. O valor será
profissional precisa adotar várias estratégias para
criado pela produtividade e pela inovação”. Druc-
transmitir suas posições de classe a seus filhos e fi-
ker está certo em enfatizar o novo papel do conhe-
lhas, enquanto esse processo é relativamente au-
cimento, mas errado em não compreender que a
tomático no caso das classes capitalistas e, sobretu-
característica essencial e surpreendente do capitalis-
do, aristocráticas. Isso significa que a propriedade
mo contemporâneo é que ele deixou de ser o capi-
organizacional é menos definida e menos autoritá-
talismo dos capitalistas para se tornar o capitalismo
ria do que a propriedade capitalista. Significa que a dos técnicos. Poder e privilégio, que nas sociedades
organização é uma relação de produção que ofere- aristocráticas eram atribuídos de acordo com a li-
ce menos estabilidade a seus proprietários do que nhagem e a força militar, e no capitalismo liberal,
o capital. E explica por que a mobilidade social alocados de acordo com a riqueza e o espírito em-
tende a ser maior no capitalismo dos técnicos do preendedor, são hoje em dia cada vez mais distri-
que no capitalismo liberal. buídos de acordo com o conhecimento. A riqueza
No capitalismo dos técnicos, o “ideal” merito- e principalmente o espírito empreendedor conti-
crático, que era o sonho de um certo tipo de libe- nuam a desempenhar papéis importantes, mas hoje
ralismo ingênuo norte-americano, transformou-se este último já depende mais do conhecimento do
em uma realidade não tão ideal.3 A remuneração que da propriedade do capital físico. O espírito em-
dentro da organização depende da posição relati- preendedor sempre dependeu de ambos os fatores,
vamente instável ocupada pelo indivíduo. A posi- além do básico – o caráter inovador e a orientação
ção, por sua vez, deriva do monopólio sobre o co- do empresário para a necessidade de realização –,
nhecimento técnico, organizacional e comunicativo mas hoje é cada vez mais improvável que pessoas
que o técnico tem ou alega ter. Origina-se do co- não dotadas de conhecimento técnico, organizacio-
nhecimento técnico e científico real ou presumido nal e comunicativo venham a ser grandes empresá-
do burocrata, de sua competência para administrar rios. O típico empresário capitalista é ou o jovem
organizações burocráticas e de sua capacidade de que sai da universidade com uma idéia brilhante,
criar redes e transmitir valores e idéias. Em termos ou o administrador experiente de uma grande em-
de justiça social, há um aperfeiçoamento merito- presa que começa seu próprio negócio. Resumin-
crático – mas esse aperfeiçoamento está longe de do, o sistema social continua sendo capitalista, po-
ser ideal, pelo fato de que a remuneração dos al- rém se trata de um capitalismo dos técnicos ou do
tos executivos se torna extremamente elevada, e a conhecimento.
renda não fica igualitária, mas freqüentemente aca-
ba se concentrando. Mérito e poder organizacional O conceito de capital
tornam-se tão inter-relacionados que fica difícil sa-
ber qual critério prevalece. A definição clássica da ação capitalista, que
Entretanto, apesar de todas essas mudanças, o definiu a revolução comercial, foi a acumulação de
sistema continua sendo capitalista, uma vez que se capital. Com a revolução industrial, a acumulação
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de capital com incorporação do progresso técnico medir o capital. O capital, obviamente, não deve
tornou-se a característica definidora do sistema eco- ser confundido com os meios de produção, ou
nômico. Atualmente, essas duas atividades conti- com os “bens de capital”. O capital é a proprieda-
nuam sendo cruciais, e a segunda – o progresso téc- de dos meios de produção. Dentro dessa definição
nico – é também parte essencial do capitalismo do ampla, porém, o conceito de capital vem mudan-
conhecimento, mas um terceiro elemento importan- do com o tempo. Para os primeiros economistas
te está incluído, qual seja, a expansão das organiza- clássicos, o capital era o capital circulante, era es-
ções burocráticas e das redes por meio das quais sencialmente a capacidade de contratar trabalhado-
elas atuam. Se o capitalista acumula capital, a classe res, pagando-os antes que o resultado de seu tra-
média profissional acumula organizações e redes. O balho pudesse ser vendido no mercado. Para Marx,
objetivo é expandir a organização burocrática, criar assim como para os economistas neoclássicos e
novos cargos burocráticos, acumular poder organi- keynesianos, que viveram em uma época na qual
zacional que depende do número e do caráter dos
o capital fixo tinha se tornado o fator dominante,
cargos subordinados na organização hierárquica, ou
enquanto os trabalhadores podiam cada vez mais
dos nós nas redes pessoais e organizacionais. O téc-
dispensar o pagamento prévio de seus salários, o
nico, diferentemente do capitalista, não está tão
capital era principalmente a propriedade de insta-
preocupado em se tornar rico, mas em subir na hie-
lações e equipamentos. Mais recentemente, quan-
rarquia organizacional, e em expandi-la.
do o software prevalece sobre o hardware, ou
Para atingir suas metas, o detentor de conhe-
cimento precisa trazer maior eficiência ou produ- quando o conhecimento operacional torna-se o fa-
tividade à sua organização. Esse é o critério bási- tor estratégico de produção, tomando o lugar dos
co que legitima sua posição. É assim que ele será bens de capital, o capital é a capacidade de deri-
julgado por seus superiores, seus pares e seus su- var lucros das organizações de comando e do co-
bordinados. A legitimidade da classe média profis- nhecimento a elas incorporado. O aspecto curio-
sional depende da capacidade, real ou presumida, so e significativo dessa definição de capital é que
de aumentar continuamente a produtividade, bem ela inclui o conceito de organização. O capital só
como do monopólio que ela detém sobre a com- é realmente capital quando seus proprietários são
petência técnica, organizacional e comunicativa. também “proprietários” ou capazes de controlar a
Em um mundo cada vez mais voltado para o de- organização. Ora, a organização não é apenas a
senvolvimento econômico, onde a remuneração organização burocrática, é também a propriedade
dos trabalhadores e técnicos depende da produti- coletiva dos meios de produção por parte dos téc-
vidade global da economia, aqueles que demons- nicos. A organização é para o técnico ou o profis-
tram capacidade de administrar organizações bu- sional o que o capital é para o capitalista.
rocráticas e redes assumirão o poder e deterão Observemos que quando Galbraith afirmou
uma parcela importante da renda nacional. que o conhecimento técnico estava substituindo o
Assim, a organização é agora um fator cen- capital como o fator estratégico de produção, ele
tral nas sociedades capitalistas, lado a lado com o estava se referindo ao objeto da propriedade do
capital. Nas sociedades modernas o controle da capital, não ao próprio capital. Ele não estava de-
organização é tão importante quanto o capital. finindo o capital como a propriedade dos meios de
Poder e renda dependem do controle do capital e produção, mas adotando o sentido mais habitual
da organização, e o conhecimento operacional é da palavra – o sentido que identifica o capital com
a ferramenta mais importante nesse sentido. Estou os meios de produção, ou com o capital físico.
chamando essa nova forma que o capitalismo as- Concomitantemente com a transformação do
sumiu de capitalismo do conhecimento ou capita- conceito de capital na capacidade da organização
lismo dos técnicos, mas poderia também chamá- de gerar lucros ou fluxos financeiros positivos, a
la de capitalismo organizacional. forma de medir o capital também mudou. Não es-
Nesse mar de mudanças a que o sistema ca- tou me referindo à complexa e inconclusiva dis-
pitalista está sendo submetido, o próprio concei- cussão dos anos de 1960 entre as duas Cambridges
to de capital se modificou, assim como a forma de sobre o valor do capital. A teoria econômica, nes-
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ses debates, aproxima-se da metafísica, uma abor- conceito de patrimônio líquido deixa de fazer sen-
dagem que não se coaduna com minhas preocupa- tido, enquanto a medida do valor do capital com
ções mais pragmáticas. Refiro-me ao valor financei- base no fluxo de caixa se torna a única possibili-
ro do capital, ao valor das empresas comerciais. Na dade racional. Assim, na medida em que o fluxo de
época do capitalismo industrial, até meados do sé- caixa de uma empresa depende fortemente da
culo XX, o capital de uma empresa era medido por qualidade de sua alta direção, o valor do capital
seu patrimônio líquido, tal como identificado no depende do conhecimento técnico, organizacional
balanço patrimonial. Algumas correções poderiam e comunicativo detido por esses administradores.
ser feitas, o valor dos ativos intangíveis poderia ser Isso explica por que a alta direção vê sua ren-
considerado, a avaliação contábil de certos bens de da e seu poder aumentarem diariamente. Explica
capital poderia ser ajustada, mas, no final, o valor também por que a influência dos acionistas está
da empresa era a soma dos ativos totais menos o sendo sistematicamente reduzida. Explica também
passivo. Enquanto o capital físico era o fator estra- de maneira perversa por que o abuso e a corrupção,
tégico de produção, medir o valor de uma empre- em especial sob a forma de falsos demonstrativos
sa por seu patrimônio líquido contábil ou pelo re- contábeis, como aconteceu com a Enron, tornaram-
torno sobre o fluxo de caixa não fazia muita se tão comuns no capitalismo dos técnicos contem-
diferença. Ambas as medidas eram relativamente porâneo, levando Galbraith a falar ironicamente so-
equivalentes, uma vez que se podia presumir que, bre a “a economia das fraudes inocentes” – título de
em condições normais e dada a tendência à equa- seu último livro (2004). A extraordinária remunera-
lização das taxas de lucro (provavelmente aliada à ção dos altos executivos, sob a forma de bônus e
lei da oferta e da procura, os dois fundamentos da opções sobre ações, depende do desempenho do
teoria econômica, seja qual for a escola de pensa- executivo. Assim, forjar bons resultados é uma ten-
mento), o resultado seria quase o mesmo. tação a que muitos são incapazes de resistir. Esse
Hoje, não há mais essa visão, e o valor de papel estratégico da alta direção, somado a uma
uma empresa é dado pelo valor descontado de seu oferta ainda limitada de administradores ou, mais
fluxo de caixa. Nenhum avaliador sério levará em amplamente, de técnicos, apesar da enorme expan-
conta o antigo sistema. O que está por trás de tal são dos cursos de mestrado em administração de
mudança? Seria apenas um aperfeiçoamento dos negócios e áreas correlatas, e a surpreendente ace-
métodos de análise, como presume a teoria econô- leração do progresso técnico incorporado na tecno-
mica não histórica, ou existe algum fato histórico logia da informação digital também explicam a con-
novo que tenha provocado essa mudança metodo- centração de renda que caracteriza as economias
lógica? A relação entre essa mudança na forma de capitalistas contemporâneas desde meados dos anos
medir o capital e o novo fator estratégico de pro- de 1970.
dução de Galbraith é bastante óbvia, e é dupla. Em Além de mudar a maneira de avaliar o capi-
primeiro lugar, o conhecimento incorporado ao tal, o capitalismo do conhecimento sugeriu a defi-
pessoal da organização, ao software e à própria or- nição de um novo tipo de “capital” – o capital hu-
ganização é atualmente o bem mais importante de mano. Os dois economistas neoclássicos que
muitas empresas, e um bem importante para todas. formularam essa teoria (Schultz, 1961, 1980; Bec-
Portanto, não faz sentido medir o valor de uma ker, 1962, 1993) garantiram para si próprios o Prêmio
empresa por seu patrimônio líquido. Em segundo, Nobel de Economia. E eles o mereceram porque, em
depois que o conhecimento operacional se tornou lugar de apenas usarem o método hipotético-deduti-
estratégico, os analistas do mercado financeiro vo, reconheceram a existência de um novo fato his-
confirmam diariamente que o valor de uma empre- tórico: que o conhecimento tinha se tornado seme-
sa varia de modo dramático de acordo com a qua- lhante ao capital físico, e que o investimento em
lidade de sua gestão. Um novo diretor-presidente e educação é o modo pelo qual os indivíduos “acu-
um grupo de executivos incompetente ou mais mulam” esse patrimônio e dele derivam ganhos ou
competente na direção de uma empresa poderão rendimentos. O que eles não enfatizaram foi que a
mudar seu fluxo de caixa e seus lucros em um pe- educação de muitos indivíduos, a generalização da
ríodo relativamente curto. Nesse caso, o antigo educação para toda a sociedade, acarreta externa-
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lidades positivas, acarreta desdobramentos e cruza- os capitalistas, assim como a classe média profissio-
mentos que abrem caminho para a inovação e o nal, perderam poder político, enquanto os políticos
aumento da eficiência em nível social, de tal modo e, até certo ponto, os cidadãos por eles representa-
que o capital humano total criado é maior do que dos, ganharam. Políticos, entretanto, são essencial-
a soma dos capitais acumulados por cada indiví- mente profissionais, oficiais eleitos recebendo salá-
duo. rio do Estado. Na sua maioria, pertencem à classe
média profissional. Mas, diferentemente dos servi-
dores civis não eleitos, eles dependem dos cida-
A democracia como um poder dãos, dos eleitores, para conseguir poder político.
compensatório No Estado absolutista, servindo como auxiliares de
príncipes ou monarcas, os burocratas patrimoniais
Nas seções precedentes vimos que, dentro tiveram mais poder do que no século XIX, quando
das organizações, a ascensão ao poder e o prestí- seus sucessores, os servidores públicos profissio-
gio de homens e mulheres dotados de conheci- nais, colaboraram com os políticos liberais. A demo-
mento operacional estratégico teve importantes cracia no século XX implicou uma demanda cada
conseqüências econômicas, inclusive uma mudan- vez maior de responsabilidade dos funcionários pú-
ça no conceito e na medida do capital. No entan- blicos eleitos e não eleitos, envolvendo uma redu-
to, suas conseqüências políticas não são tão claras. ção do poder político dos burocratas, mas aumen-
Em relação aos capitalistas, os tecnoburocratas tou o poder dos políticos. Apesar de divididos entre
perderam ou ganharam poder? E em relação ao políticos de direita e esquerda, os primeiros repre-
povo, ou a coletividade de cidadãos? A classe mé- sentando principalmente os interesses de capital, e
dia profissional certamente ganhou poder, mas os últimos o do conhecimento, a classe capitalista
está longe de ter alcançado mais poder político do sempre vê a classe política com desconfiança, e
que a capitalista. Isto apenas aconteceu no sistema sempre que pode acusa seus membros de incidirem
econômico estatista, mas sabemos que o próprio no populismo e no nepotismo, senão na corrupção,
estatismo foi um fenômeno temporário, efêmero. para, dessa forma, limitarem seu poder.4
No capitalismo do conhecimento, a classe média O crescimento da organização do Estado em
profissional é basicamente associada à aristocracia. tamanho e complexidade tornou estratégico seu co-
Mas é certo que a classe capitalista teme o surgi- nhecimento operacional e aumentou seu poder polí-
mento da classe média profissional, particularmen- tico. A criação de agências reguladoras e executivas
te quando isto acontece no nível do aparelho do autônomas e o aparecimento da reforma da gestão
Estado, de organizações do Estado, e de organiza- pública depois dos anos de 1980 refletiram essa nova
ções sem fins lucrativos. A ideologia neoliberal, realidade. Mas, ao mesmo tempo, como saliento em
que surgiu nos anos de 1970 nos países capitalis- um livro recente (Bresser-Pereira, 2004a), o cresci-
tas desenvolvidos, como uma reação à queda da mento dessa autonomia exigiu dos funcionários pú-
taxa de lucro e da taxa de crescimento do PIB, não blicos graduados uma maior responsabilidade e deu
foi direcionada à redução do salário direto ou in- origem a uma miríade de organizações de responsa-
direto dos trabalhadores: seu objetivo era também bilidade social que somente puderam florescer em
reduzir o salário e a influência política da classe um ambiente democrático. Ao mesmo tempo em
média profissional. Esta ideologia, que contou que fica claro que os altos executivos das organiza-
com a cooperação ativa de intelectuais “orgânicos” ções privadas viram seu poder e prestígio dispara-
(Gramsci, 1971 [1934]), e de outros profissionais rem no século XX com a transformação do conhe-
representantes da classe média profissional (o que cimento no fator estratégico de produção, com o
mostra que esta classe está longe de ser coesa), crescimento paralelo da democracia é difícil dizer
obteve sucesso em alcançar seus objetivos, mas se, no final, os funcionários públicos graduados vi-
isto é apenas um capítulo no longo processo de ram aumentar seu poder e influência. Certamente
conflito e cooperação entre as duas classes sociais. aumentaram dentro do aparelho do Estado e das
No entanto, no século XX, com a consolidação organizações públicas não estatais, mas é duvidoso
da democracia como o regime político dominante, que o mesmo tenha ocorrido em termos políticos,
CAPITALISMO DOS TÉCNICOS E DEMOCRACIA 141

quando os funcionários públicos graduados fizeram mento a nova classe dirigente deixou de impor
uso do poder “extroverso” – o poder sobre os cida- um veto absoluto à democracia. Mas, depois des-
dãos fora da organização do Estado –, na medida sa revolução, foi necessário um século – o século
em que o controle democrático exercido sobre eles XIX liberal – para convencer os capitalistas de
por mecanismos internos de responsabilização, que o sufrágio universal não acarretaria a expro-
pela mídia e pelas organizações de responsabilida- priação dos ricos pelos pobres.5
de social não deixou de aumentar. Em comparação, Dado o surgimento da democracia, esta se-
os políticos têm hoje em dia mais poder do que ti- gunda “inconsistência” não é tão surpreendente. A
nham no passado, mas esse poder não tem origem correspondência clássica entre as esferas econômi-
apenas no fato de que as necessidades de conheci- ca e política, que Marx tão agudamente detectou
mento para eles são maiores do que no passado no século XIX, e que está implícita na maior par-
(isso também é verdade para todas as outras profis- te do pensamento social contemporâneo não mar-
sões), deriva principalmente de sua capacidade de xista, perdeu parte de sua validade. O fator estra-
“jogar” o jogo democrático. Os políticos, como os tégico de produção é uma fonte de poder, mas
funcionários públicos graduados, são também cada principalmente de poder “direto” – o poder oriun-
vez mais responsabilizados pelos mecanismos de- do do processo produtivo. O marxismo estabele-
mocráticos, mas, diferentemente de servidores civis ceu uma relação quase direta entre o controle do
regulares, a legitimidade de seu poder vem das elei- fator estratégico de produção e o poder político.
ções e do apoio contínuo da opinião pública. Usan- Nas sociedades pré-capitalistas foi a terra; nas ca-
do o conceito de Galbraith, a democracia funcio- pitalistas, o capital. Contudo essa relação nunca
nou como um poder compensatório ao poder dos foi tão direta. A terra era uma fonte de poder, mas
técnicos e dos capitalistas, sobretudo ao poder ca- era também o poder militar. No capitalismo clássi-
pitalista, porque os políticos, que estão no cerne co, o controle do capital foi chave para o poder
das democracias, são uma espécie particular de téc- político, mas é uma simplificação acreditar que os
nico ou profissional. funcionários governamentais fossem apenas seus
Este é o segundo caso, neste trabalho, em que representantes. No capitalismo do conhecimento,
observamos uma falta de “correspondência” entre técnicos de todos os tipos conquistaram poder e
duas variáveis históricas que presumivelmente deve- influência, mas o aparecimento da democracia im-
riam ser compatíveis. Primeiro vimos que o capita- pôs limites a seu poder discricionário. A revolução
lismo, embora mantendo suas características essen- democrática envolveu a autonomia da política em
ciais, está se tornando um sistema social que não é relação à economia, e do poder político em rela-
basicamente controlado pelos capitalistas, mas pelos ção ao controle do fator estratégico de produção.
técnicos ou profissionais. Agora vemos que os de- Os interesses econômicos e a propriedade do ca-
tentores do conhecimento podem ver seu poder au- pital e do conhecimento continuam a desempe-
mentar dentro das empresas comerciais e de outras nhar um importante papel político, no entanto a
organizações, mas possivelmente decair na esfera relativa autonomia da esfera política é um fato
política. Por quê? Porque o século XX, além de ser novo e auspicioso. Sugere que os desenvolvimen-
o século da organização, foi também o século da de- tos econômico e político são fenômenos comple-
mocracia. Porque foi apenas nesse século que a de- mentares, mas cada vez mais independentes.
mocracia se tornou o regime preferido dos filósofos
e dos políticos. Porque somente no século XX, as
sociedades mais avançadas em primeiro lugar e de- A aliança entre técnicos e capitalistas
pois um grande número de sociedades em desen-
volvimento tornaram-se efetivamente democráticas. Apesar do avanço da democracia, não pode-
O fato histórico novo que provocou essa mos facilmente descartar o controle do conheci-
mudança foi a revolução capitalista, que mudou a mento como uma fonte de poder. Em algumas
forma de apropriação do excedente econômico, áreas, o poder deriva essencialmente disso. E se
das violentas formas da época pré-capitalista para torna particularmente perigoso quando os técnicos
o lucro alcançado no mercado. A partir desse mo- se associam aos capitalistas. Tomemos, por exem-
142 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

plo, a política macroeconômica, que desempenha uma convenção, totalmente dependente do crédi-
um papel estratégico em todas as sociedades con- to de que dispõe cada moeda nacional. Esta é uma
temporâneas, uma vez que a estabilidade econômi- boa explicação, mas lhe falta o caráter de fato his-
ca e também o crescimento dependem fortemente tórico novo que ofereceria um motivo para o au-
dela. Embora essa política afete a todos em uma mento do poder do setor financeiro. Desde o sur-
sociedade moderna, o setor financeiro tem hoje gimento do capitalismo o sistema financeiro sempre
um papel privilegiado em sua determinação. Em desempenhou um papel estratégico na coordena-
princípio, esse poder é prerrogativa dos bancos ção do sistema econômico. O ponto que quero sa-
centrais e ministérios da fazenda, mas, em termos lientar aqui, e que constitui fato novo, é a idéia de
práticos, as instituições financeiras privadas têm que as instituições financeiras detêm hoje grande
uma voz decisiva sobre o assunto. Por quê? Seria parte do conhecimento técnico macroeconômico,
porque o “capital financeiro” de Hilferding é todo- e isto aumenta de forma substancial sua capacida-
poderoso? Certamente que não. De acordo com de de influenciar a política macroeconômica. De-
Hilferding (1910), o “capital financeiro” foi o pro- têm mais conhecimento sobre o tema do que os
duto da fusão do capital bancário com o capital in- outros setores da economia, uma vez que empre-
dustrial sob o comando do primeiro. No início do gam um grande número de macroeconomistas
século XX esse fenômeno estava ocorrendo na Ale- competentes. Essas organizações incluem esse cus-
manha, mas não se reproduziu nos outros países, to em suas operações porque a política macroeco-
e mesmo na Alemanha sofreu uma interrupção. nômica e as decisões que o governo toma sobre a
Um marxista moderno como François Chesnais taxa de juros, a taxa de câmbio, a base monetária
(1994, 1997) afirma que o setor financeiro é a pon- e a política fiscal são o ganha-pão das instituições
ta de lança da globalização ou mundialização do financeiras. Para investir com competência seus
capital. E, emprestando um conceito da teoria da próprios recursos ou o patrimônio de seus clientes,
regulação, acrescenta que o capitalismo mundial é elas precisam fazer previsões diárias sobre tais
hoje caracterizado “por um regime de acumulação questões. Se compararmos o número de macroe-
predominantemente financeiro”.6 Nessa linha de conomistas capazes de expressar opiniões sobre
pensamento, o setor financeiro, servindo o capital política macroeconômica contratados pelo setor fi-
rentista que vive de juros, é, também, a ponta de nanceiro com outros setores da economia, inclusi-
lança do capitalismo internacional em seu proces- ve o governo, veremos que o conhecimento ma-
so de desorganização (não deliberada mas efetiva) croeconômico convencional está concentrado ali.
das economias nacionais dos países em desenvol- É muitas vezes um conhecimento viciado, organi-
vimento. Mediante a abertura financeira, que ocor- zado de acordo com os interesses dos rentistas e
reu em um grande número de países a partir do do setor financeiro, mas é um conhecimento efeti-
início dos anos de 1990, Washington e Nova York vo. Assim, não é difícil compreender o poder des-
levam os países a perder o controle de sua taxa de proporcional que o setor financeiro tem sobre as-
câmbio, os quais, sob o influxo de grandes fluxos suntos macroeconômicos – desproporcional em
de capital (poupanças externas), apreciam a taxa relação ao capital total que as empresas comerciais
de câmbio local, elevam artificialmente os salários detêm nesse setor, mas proporcional a seu conhe-
e o consumo, e, afinal levam à crise de balanço de cimento especializado e muitas vezes viciado.
pagamentos.7 Entretanto, essas análises não expli- Este exemplo ilustra não apenas como o poder
cam o poder político desse setor na definição das político pode ter origem no conhecimento, mas mos-
políticas macroeconômicas, e, particularmente, de tra também como este poder pode ser aumentado
um nível de taxa de juros (que não deve ser con- quando capital e conhecimento, capitalistas e técni-
fundido com as variações dessa taxa necessárias cos, estão associados. No setor financeiro, essa asso-
para a política monetária). Uma explicação alterna- ciação é claríssima. Os grandes bancos de investi-
tiva estaria no fato de que principalmente os ban- mento são hoje, e cada vez mais, empresas de sócios
cos comerciais têm um papel estratégico nas socie- profissionais, e cada vez menos empresas de capital.
dades modernas, nas quais o dinheiro perdeu sua Os grandes bancos de varejo continuam a depender
conexão clássica com a riqueza física e se tornou de seu estoque de capital. Os bancos de investimen-
CAPITALISMO DOS TÉCNICOS E DEMOCRACIA 143

to, porém, e os setores correspondentes nos grandes cesso democrático nesses assuntos, porque tanto
bancos, lucram ou não à medida que dispõem de eles são “altamente técnicos” como perigosamente
técnicos financeiros com os quais os acionistas são estratégicos. Assim, os políticos e os eleitores que
obrigados a dividir os resultados econômicos realiza- eles representam abdicam de exercer controle so-
dos. O setor financeiro é, portanto, cada vez mais es- bre tais agências em nome da falta do conhecimen-
tratégico no capitalismo que vivemos, mas é também to especializado. Na verdade, esses assuntos são
uma demonstração da emergência do capitalismo freqüentemente menos complexos do que se diz.
dos técnicos. São cada vez mais os profissionais das As políticas de taxa de juro e de câmbio podem ser
finanças que comandam as organizações financeiras, baseadas em modelos matemáticos muito sofistica-
e exercem, associados ao capital, a dominação no dos, no entanto raciocínios simples e pragmáticos
plano interno e no internacional. se mostram mais compatíveis com a estabilidade
Grupos conservadores dentro de cada Esta- econômica e o crescimento. As agências regulado-
do-nação participam dessa associação para exer- ras, inclusive os bancos centrais, são com freqüên-
cer poder em termos do controle das políticas pú- cia controladas pelo respectivo setor regulador,
blicas. Como não podem exercer diretamente a mas sua “independência” dos políticos será manti-
dominação baseada no capital, eles usam o co- da enquanto o conhecimento continuar concentra-
nhecimento, que rapidamente rotulam de “racio- do neste setor. Os próprios políticos sentem-se
cínio científico”, para legitimar suas visões e inte- mais seguros ao outorgar essa independência
resses. Esse conhecimento é ideológico, mas é quando a agência é realmente estratégica, como os
freqüentemente visto como mais “razoável” do bancos centrais.
que as visões críticas oriundas dos setores à es- A empresa moderna, cujo principal papel na
querda ou progressistas da sociedade, porque é sociedade contemporânea foi discutido com tanta
produto de uma sofisticada teorização por parte clareza por Galbraith, é essencialmente a epítome
de economistas inseridos no sistema de domina- da associação entre capital e organização, entre
ção. Esse conhecimento geralmente privilegia os capitalistas e técnicos, e provavelmente por essa
rentistas e o setor financeiro às custas dos setores razão é tão forte. Em geral, técnicos privados ten-
reais da economia, mas como as críticas oriundas dem a ser intimamente associados aos capitalistas
dos grupos opositores são freqüentemente des- nas grandes empresas. É por isso que, em termos
providas do conhecimento técnico necessário, ou políticos, os técnicos públicos são mais dignos de
têm origem em um grupo de conhecimento com- nota. Eles também se associam aos capitalistas,
petente mas muito pequeno, a probabilidade de mas em grau menor. Têm uma autonomia que fal-
que as visões do setor financeiro prevaleçam é ta aos técnicos privados. Sua ideologia tecnocráti-
grande. No Brasil, onde a política macroeconômi- ca, baseada na alegação de uma eficiência supe-
ca é particularmente estratégica, na medida em rior, é mais coerente do que a dos técnicos
que o país tem enfrentado instabilidade macroe- privados. Por outro lado, o fato de trabalharem di-
conômica crônica nos últimos 25 anos, o poder retamente para a organização do Estado permite-
do setor financeiro é particularmente grande. E os lhes um etos público mais simples e direto. Eles
erros de política feitos com seu apoio ativo são não dependem da mão invisível de Adam Smith
impressionantes. Entre 1995 e 1998, por exemplo, para trabalhar no interesse público; fazem isso, ou
ele apoiou uma taxa de câmbio sobrevalorizada, supõe-se que o façam.
que se mostrou desastrosa para a economia bra- Assim, quando dizemos que temos três clas-
sileira. Atualmente, apóia a adoção pelo Banco ses sociais básicas no capitalismo moderno, e que
Central de uma taxa básica de juros extremamen- elas estabelecem entre si relações de associação e
te elevada, que só beneficia os rentistas. conflito, referimo-nos à classe capitalista, à classe
Em princípio, um regime democrático deveria trabalhadora e principalmente à classe dos técnicos
ser capaz de controlar os bancos centrais e outras públicos. Esta última age como uma espécie de in-
agências reguladoras, cujas decisões têm importan- termediário entre as outras duas classes, ao mesmo
tes conseqüências sobre a sociedade e a economia. tempo em que mantém muito claros seus próprios
Até o presente, no entanto, não prevaleceu um pro- interesses. Enquanto a classe média profissional
144 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

privada está sempre associada à dos capitalistas, a restaurar a taxa de lucro e retomar o crescimento.
classe média profissional pública associa-se a uma A ideologia neoliberal, que surgiu na década de
ou a outra, ou a ambas, de várias maneiras. Após 1970, juntamente com o globalismo, foi a expres-
a Segunda Guerra Mundial, os técnicos públicos são desse conflito em nível nacional. Enquanto o
associaram-se principalmente a trabalhos relativos objetivo do globalismo, no plano internacional,
à construção do Estado de bem-estar social. Desse foi neutralizar os NICs (“newly industrialized
modo, nos anos de 1970, quando a taxa de lucro e countries” [países de industrialização recente,
a taxa de crescimento econômico declinaram, a também chamados de “tigres asiáticos”]), enfra-
resposta neoliberal que visava a restabelecer am- quecendo os respectivos Estados-nação, o neoli-
bas as taxas foi dirigida contra essa associação. O beralismo foi uma resposta doméstica à queda
objetivo era reduzir o tamanho do Estado, os orde- das taxas de lucro e de crescimento que ocorreu
nados dos técnicos e os salários dos trabalhadores. nos anos de 1970, e seu objetivo era reduzir os sa-
Nos anos de 1930, Keynes percebeu que havia lários reais diretos e indiretos enfraquecendo a or-
uma alternativa menos conflitante – expandir a ganização interna do Estado que dava suporte à
economia por meio da política fiscal –, mas essa al- mão-de-obra e ao Estado de bem-estar social.
ternativa não estava realmente disponível na déca- A globalização é um fenômeno histórico real
da de 1970, tendo em vista que, diferentemente envolvendo aspectos tecnológicos, econômicos,
dos anos de 1930, os Estados nacionais estavam culturais e jurídicos. Mas é interessante observar,
enfrentando uma grave crise fiscal. A teoria ma- nos países desenvolvidos e particularmente nos
croeconômica de Keynes foi um avanço geral no Estados Unidos, como a associação entre os capi-
pensamento econômico, porém envolvia políticas talistas e a classe dos técnicos foi instrumental em
para restaurar a taxa de lucro e de emprego que proteger seus interesses nacionais com relação à
dependiam de finanças saudáveis do setor público. ameaça representada pelos NICs. Como os inte-
resses econômicos envolvidos eram enormes, a
política e a ideologia tiveram um papel importan-
Ideologias te. A globalização tornou-se evidente naqueles
anos, em que também surgiram os NICs, expor-
Ao mesmo tempo em que existe uma ideolo- tando bens relativamente sofisticados produzidos
gia capitalista, baseada no liberalismo econômico e com mão-de-obra barata. Como os países ricos e,
no papel empreendedor do capitalista, existe uma em particular, Washington e Nova York, respon-
ideologia dos técnicos baseada na racionalidade deram a essa ameaça? Internamente responderam
instrumental e na alegação da superior eficiência à queda da taxa de lucro com o neoliberalismo;
das organizações burocráticas, ou da coordenação internacionalmente, com a ideologia “globalista”.
administrativa do sistema econômico. Em certas Essa ideologia tornou os Estados-nação de tal
ocasiões, essas ideologias, apoiadas respectiva- modo interdependentes que eles ficaram irrele-
mente pelo pensamento econômico neoclássico e vantes. Agora, neste mundo competitivo e sem
pela teoria burocrática ou estatista da economia fronteiras, os Estados nacionais enfrentariam, na
planejada, estão em conflito. Nunca estiveram expressão de um de seus mais brilhantes ideólo-
mais em conflito do que durante a Guerra Fria, gos, Thomas Friedman (2000), uma “camisa de
quando o capitalismo liberal esteve em confronto força”, de tal forma que não têm alternativa senão
com o burocratismo ou estatismo da União Sovié- copiar o modelo norte-americano de crescimento.
tica. Quando ambos os grupos e suas respectivas Ao exportarem com sucesso essa ideologia,
ideologias se associaram estrategicamente, como que era o produto combinado da engenhosidade
aconteceu no mundo desenvolvido durante os das classes capitalista e técnica, os países desenvol-
anos de 1970, quando o capital e o conhecimen- vidos, sob a liderança dos Estados Unidos, foram
to se uniram, pudemos observar, na fase ascen- capazes de enfraquecer os países de industrializa-
dente da onda econômica longa, um crescimento ção recente latino-americanos. Não foram tão bem-
econômico que interessou a todos ou, na fase de- sucedidos na Ásia, onde o comprometimento dos
clinante, um processo de reforma estrutural para governos com os interesses nacionais demonstrou
CAPITALISMO DOS TÉCNICOS E DEMOCRACIA 145

ser mais resistente à nova verdade oriunda dos paí- de capital, mantendo suas taxas de câmbio sob
ses desenvolvidos. Na verdade, com a globalização controle, relativamente desvalorizadas, e combi-
os países ficaram mais interdependentes, e as orga- nando competição de mercado no âmbito externo
nizações comerciais passaram a competir em nível com uma eficaz coordenação administrativa e de
mundial. No entanto, o que os globalistas se es- mercado da economia, no interno. Na verdade, o
queceram de mencionar é que a globalização é capitalismo do conhecimento é eficaz em proteger
uma competição generalizada, em nível mundial, a taxa de lucro, porque sem ela a estabilidade e o
de empresas comerciais apoiadas por seus respec- crescimento não são possíveis, mas não fará isso
tivos Estados nacionais. Assim, o Estado-nação con- desnecessariamente, destruindo algumas grandes
tinua sendo bastante estratégico e relevante, dado conquistas institucionais, tais como o Estado de
seu papel de apoiar as corporações nacionais. No bem-estar social e a política macroeconômica. O
entanto, em lugar de desafiar essa alegação alta- Estado de bem-estar social garante estabilidade so-
mente ideológica de que o Estado-nação tinha per- cial e legitimidade política. As políticas econômi-
dido importância, muitos intelectuais progressistas cas complementam a coordenação da economia
limitaram-se a lamentar esse fato, ou a atacar a glo- pelo mercado, de um lado defendendo a compe-
balização. Este é, mais uma vez, um exemplo de tição de mercado e corrigindo a alocação de recur-
como o conhecimento insuficiente ou incompeten- sos; de outro, suavizando o ciclo e estimulando o
te de parte dos grupos progressistas impede a ne- investimento e o crescimento.
cessária crítica das alegações ideológicas emitidas
pelos grupos conservadores associados aos técni-
cos de classe média. Conclusão
No entanto, o neoliberalismo já está desapa-
recendo nos países desenvolvidos. Ele teve suces- Em conclusão, a previsão de Galbraith em
so em limitar a excessiva intervenção do Estado e 1967 de que o conhecimento estava substituindo o
em restaurar as taxas de lucro e de crescimento, capital como o fator estratégico de produção foi
que foram perigosamente reduzidas nos anos de corroborada pelos fatos. Essa mudança, juntamen-
1970, mas foi incapaz de oferecer uma alternativa te com a substituição das empresas familiares pe-
sensata a duas grandes realizações das democra- las organizações como as unidades básicas de pro-
cias modernas: o planejamento macroeconômico dução, deu origem a uma nova classe social – a
e o Estado de bem-estar social. Essa é a razão pela classe média profissional –, caracterizada pela pro-
qual, não levando em conta a privatização, mas priedade coletiva das organizações. No entanto, o
somente o aparelho do Estado no sentido estrito, surgimento da classe dos técnicos não implicou o
as reformas neoliberais foram incapazes de redu- aparecimento de um novo sistema social, nem en-
zir a carga tributária e, portanto, o tamanho da or- volveu a concentração de poder político nas mãos
ganização do Estado. Por outro lado, o globalismo da nova classe. A economia continuou sendo con-
está sendo cada vez mais criticado nos países em trolada pelo mercado e orientada para o lucro, por-
desenvolvimento, particularmente na América La- tanto, capitalista. No entanto, em vez do capitalis-
tina, onde se tornou dominante desde o início da mo clássico, o que temos é um capitalismo dos
década de 1980, na medida em que fracassou dra- técnicos – em que a nova classe divide simultanea-
maticamente em promover o crescimento econô- mente renda e poder com os capitalistas, ao mes-
mico. É verdade que o único caminho para o cres- mo tempo em que disputa particularmente por po-
cimento econômico é o capitalista, mas sabemos der. A tentativa da nova classe de implantar uma
que existem muitas variedades de capitalismo economia planificada teve êxito em obter poupan-
além daquela baseada na poupança externa im- ça forçada e em promover ou consolidar a indus-
posta aos países que abriram sua conta de capital trialização inicial, mas o arranjo puramente estatal
e continuam cronicamente vulneráveis em termos fracassou na União Soviética. Por outro lado, a as-
financeiros.8 Uma demonstração desse fato são os censão da democracia no século XX representou
dinâmicos países asiáticos que há décadas conti- um importante freio às tendências autoritárias da
nuam a crescer rapidamente sem abrir suas contas nova classe e ao poder de ambas as classes, capi-
146 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

talista e classe média profissional. Hoje em dia, as lários. Mas a garantia de educação básica para todos
modernas economias capitalistas são mistas, não e o enorme aumento de estudantes inscritos nas
apenas porque capitalistas e técnicos ou detento- universidades sugerem que este otimismo de longo
res do conhecimento dividem poder e renda, mas prazo não é desprovido de realismo.
também porque a coordenação do sistema econô- Esta crença nas qualidades positivas das eco-
mico não se baseia em um mercado forte e em um nomias mistas, e a visão crítica da “opinião comu-
Estado mínimo, como sonhavam os neoliberais, mente aceita”, expressão que John Galbraith criou,
nem em um Estado forte e um mercado fraco, está presente na maior parte de seu trabalho, des-
como almejavam os estatistas. Ao contrário, é fun- de American capitalism: the concept of counter-
dada em um mercado forte, porque competitivo e vailing power (1957) e The affluent society (1958)
baseado numa classe capitalista empresarial, e até The good society (1996) e The economics of in-
num Estado forte, onde representantes eleitos e nocent fraud (2004). Ele sempre esteve mais inte-
não eleitos da classe média profissional são capa- ressado na empresa do que no Estado, no admi-
zes de organizar a ação coletiva de modo demo- nistrador de negócios do que no burocrata estatal,
crático e eficiente. Esse mercado nunca é tão com- mas sempre deixou claro que a chave para com-
petitivo, e o Estado nunca é tão eficiente e preender o capitalismo contemporâneo está na in-
democrático quanto gostaríamos, mas são o bas- teração entre essas duas entidades e seus respec-
tante para manter em movimento o desenvolvi- tivos agentes. Além disso, está sempre pronto para
mento econômico e político. apresentar uma visão inovadora. Em seu último li-
O capitalismo do conhecimento é parte do vro, por exemplo, afirma: “Uma parte grande e
processo de desenvolvimento que as sociedades cada vez maior do que é chamado de setor públi-
modernas estão vivendo desde a revolução capita- co está, para todos os efeitos práticos, no setor pri-
lista. Esse processo econômico, social e político é vado […]. O gasto com armas não ocorre após
complexo, contraditório, às vezes dispendioso, fre- uma análise imparcial pelo setor público, como se
qüentemente injusto, mas, de qualquer modo, avan- pensa comumente” (Galbraith, 2004, p. 34).
ça. Apesar de todas as desvantagens, o capitalismo Por ser uma classe social, a maior fraqueza
dos técnicos representou um avanço em relação ao da classe média profissional é a falta de um níti-
capitalismo clássico ou liberal. Não apenas porque do engajamento político. Os interesses de seus
essa forma de capitalismo é mais eficiente do que a membros são diversificados, suas associações de-
anterior, mas também porque é mais compatível pendem fortemente de para quem eles trabalham.
com a democracia e com uma distribuição de renda Se falarmos de técnicos que trabalham para orga-
mais igualitária. A razão essencial para isso prova- nizações privadas, eles estarão facilmente associa-
velmente reside no fato de que o conhecimento é dos à classe capitalista. Se trabalharem para o Es-
mais acessível às classes mais baixas do que o capi- tado, quer como políticos, quer como servidores
tal. Embora o conhecimento também possa ser “her- civis, ou para organizações públicas não estatais,
dado” e, em momentos de progresso tecnológico, poderão ser mais autônomos. Nos regimes demo-
extremamente rápido, e ainda possa implicar con- cráticos, os membros da classe média profissional,
centração de renda como demonstraram os últimos em lugar de simplesmente se aliarem aos capita-
trinta anos, é mais difícil para os ricos transferirem listas, como muitas vezes fazem, ou de tentarem
conhecimento a seus filhos do que capital. Com o se tornar totalmente autônomos, como aconteceu
capitalismo dos técnicos, a mobilidade social é maior na União Soviética, podem também se aliar aos tra-
e a igualdade de oportunidades é um objetivo me- balhadores e aos pobres ou ter uma atitude repu-
nos utópico no capitalismo do conhecimento do blicana em direção aos direitos básicos de cidada-
que no capitalismo clássico. Sei que esta é uma vi- nia e ao interesse público. Se esta tendência se
são otimista que não se mostrou verdadeira durante
confirmar, seu poder político continuará muito pro-
os últimos trinta anos em termos de distribuição de
vavelmente a crescer no futuro às custas dos capi-
renda, uma vez que a oferta de pessoas dotadas de
talistas, mas, em compensação, terão que compar-
conhecimento foi inferior ao que exigiam os merca-
tilhá-lo com o povo.
dos, e os ordenados cresceram mais do que os sa-
CAPITALISMO DOS TÉCNICOS E DEMOCRACIA 147

Notas BERLE, Adolf & MEANS, Gardiner. (1950 [1932]),


The modern corporation and private
1 Uso como sinônimos, para identificar a nova clas- property. Nova York, McMillan.
se, as expressões classe média profissional, tecno-
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (1962), “Desen-
burocracia, classe dos técnicos, nova classe média,
volvimento econômico e o empresário”.
da mesma maneira que uso de forma intercambiá-
vel classe capitalista e burguesia. Revista de Administração de Empresas,
4: 79-91.
2 Identifiquei pela primeira vez o espírito empreen-
dedor coletivo como a forma central por meio da _________. (1972 [1968]), “A revolução estudan-
qual a inovação e o desenvolvimento econômico til”, in _________, Tecnoburocracia e
ocorrem no capitalismo moderno em Bresser-Pe- contestação, Petrópolis, Vozes, pp. 141-
reira, 1962. 208.
3 Lloyd Warner (1953) identifica a mobilidade social, _________. (1972 [1968]), “A emergência da tec-
essencialmente baseada no espírito empreendedor noburocracia” in _________, Tecnobu-
capitalista, como “o sonho norte-americano”.
rocracia e contestação, Petrópolis, Vo-
4 É interessante notar que os economistas ortodoxos zes, pp. 17-140.
que, por seu liberalismo econômico, são quase sem-
pre associados aos capitalistas, estão particularmen- _________. (1977), “Notas introdutórias ao modo
te propensos a acusar os políticos. É significativo, tecnoburocrático ou estatal de produ-
também, que a acusação mais grave, a de corrup- ção”. Estudos CEBRAP, 21: 75-110 (trad.
ção, geralmente tem origem na própria classe capi- Francesa: “Notes d’introduction au
talista, que em certos casos pode ser vítima de chan- mode de production technobureaucrati-
tagem, mas que mais freqüentemente é corruptora. que”. L’Homme et Société, 55-58: 61-89,
5 Este tema é discutido em profundidade em Bres- 1980).
ser-Pereira (2002, 2004a).
_________. (1981a), A sociedade estatal e a tecno-
6 Chesnais, porém, também subscreve a teoria do burocracia. São Paulo, Brasiliense.
“capitalismo financeiro”, que, conforme já vimos,
não se confirmou historicamente. _________. (1981b), “Classes and social strata in
contemporay capitalism”. Disponível
7 Desde 2001, venho fazendo a crítica dessa prática – em www.bresserpereira.org.br.
a crítica do crescimento com poupança externa.
Ver, especialmente, Bresser-Pereira (2004b). _________. (2002), “Why democracy became the
preferred regime only in the twentieth
8 Sobre o tema, ver, em particular, Bresser-Pereira
(2004b). century?”. Trabalho apresentado no III
Congresso da Associação Brasileira de
Ciência Política, ABCP, Niterói, 29-31
jul. Disponível em www.bresserperei-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 171

CAPITALISMO DOS THE CAPITALISM OF TECHNI- CAPITALISME DES TECHNI-


TÉCNICOS E DEMOCRACIA CIANS AND DEMOCRACY CIENS ET DÉMOCRATIE

Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Carlos Bresser-Pereira

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Tecnoburocracia; Classe média Techno-bureaucracy; Technoburocratie; Classe mo-
profissional; Democracia; Capi- Professional middle class; yenne professionnelle; Démo-
tal; Burocrata. Democracy; Capital; Bureaucrat. cratie; Capital; Bureaucrate.

A previsão de Galbraith em 1967 de Galbraith’s 1967 prediction that La prévision de Galbraith, en 1967,
que o conhecimento estava substi- knowledge was replacing capital as suivant laquelle le savoir était entrain
tuindo o capital como o fator estra- the strategic factor of production has de se substituer au capital en tant que
tégico de produção mostrou-se ver- proven true. The strategic role that facteur stratégique de production,
dadeira. O papel estratégico technical, organizational and com- s’est montrée véritable. Le rôle straté-
desempenhado pelo conhecimento municative knowledge play today, gique du savoir technique, organisa-
técnico, organizacional e comunica- coupled with the rise of organiza- tionnel et communicatif, ainsi que la
tivo, juntamente com a o surgimento tions as the basic units of produc- création d’organisations, telles les uni-
das organizações, como as unidades tion, has given rise to a new social tés de base de production, ont été à
básicas de produção, deu origem a class – the professional middle class l’origine d’une nouvelle classe sociale
uma nova classe social – a classe – characterized by the collective – la classe moyenne professionnelle –
média profissional –, caracterizada ownership of organizations. Yet, the caractérisée par la propriété collective
pela propriedade coletiva das orga- emergence of the professionals’ des organisations. Néanmoins, la
nizações. No entanto, o surgimento class has not implied the rise of a création de la classe des techniciens
da classe dos técnicos não implicou new social system, nor involved the n’a pas impliqué dans la mise en pla-
o aparecimento de um novo sistema concentration of political power in ce d’un nouveau système social, ni
social, nem envolveu a concentração the hands of the new class. The dans la concentration de pouvoir po-
de poder político nas mãos da nova economy remains controlled by the litique dans les mains de la nouvelle
classe. A economia continuou sendo market, and oriented to profits, thus, classe moyenne. L’économie a conti-
controlada pelo mercado e orientada capitalist. Instead of classical capital- nué d’être contrôlée par le marché et
para o lucro, e, portanto, capitalista. ism, what we have is professionals’ orientée vers le profit. Elle est restée
Em vez de capitalismo clássico, o capitalism, a system where capital- capitaliste. À la place du capitalisme
que temos é um capitalismo dos téc- ists and professionals share income classique, nous avons un capitalisme
nicos, ou um capitalismo do conhe- and power while fighting for them. de techniciens ou un capitalisme du
cimento – um sistema em que capi- Yet, as democracy has become also savoir, un système dans lequel les ca-
talistas e técnicos dividem lucro e the dominant political regime in the pitalistes et les techniciens partagent
poder, ao mesmo tempo em que lu- twentieth century, both classes have profits et pouvoir, en même temps
tam por eles. No entanto, como a lost power to citizens and to politi- qu’ils luttent pour les obtenir. Cepen-
democracia se tornou também o re- cians that represent them. In the dant, comme la démocratie est aussi
gime político dominante no século long run, in the conflict for power devenue le régime politique domi-
XX, ambas as classes perderam po- with capitalists, professionals’ stand- nant au cours du XXe siècle, les deux
der para os cidadãos e para os polí- ing will depend on a capacity that classes ont, en fait, perdu leur pou-
ticos que os representam. A longo sometimes they already prove to voir en faveur des citoyens et des po-
prazo, no conflito por poder com os have of allying themselves with liticiens qui les représentent. À long
capitalistas, a posição dos técnicos common people. terme, dans le conflit pour le pouvoir
dependerá de sua capacidade, já al- avec les capitalistes, la position des
gumas vezes comprovada, de aliar- techniciens dépendra de leur capaci-
se ao povo. té – qui a déjà fait l’objet de confirma-
tions – de s’allier au peuple.

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