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PASSA A MATAR
Com o avanço da ciência, vários novos medicamentos têm melhorado a
qualidade de vida da população. Entretanto, o uso indiscriminado e
abusivo de certos fármacos, entre eles muitos que não exigem
receita médica, pode ter sérias consequências. Se ingeridas
em excesso, essas substâncias – benéficas nas doses corre-
tas – causam danos ao fígado, onde são processadas, e po-
dem provocar a destruição desse órgão.
O
ser humano tem sido desafiado pelas doenças des-
de o início de sua história, e elas provavelmente o
forçaram a buscar alternativas para se manter vivo
e saudável. Ainda não se sabe se os humanos primi-
tivos buscaram os ‘medicamentos’ na natureza conscientemente ou
se estes foram apresentados de forma aleatória a eles nas refeições que
obtinham de plantas e ervas, por exemplo. Nossa capacidade de perceber, en-
tender e memorizar os primeiros princípios ativos obtidos de recursos naturais foi
crucial para o desenvolvimento da farmacologia e da terapêutica modernas.
Os relatos escritos mais antigos dessas práticas médicas têm mais de 3,5 mil anos e es-
tão em documentos do antigo Egito conhecidos como papiros médicos, entre os quais se
destacam o papiro de Smith (figura 1) e o papiro Ebers, preservados em museus europeus.
Considerados os primeiros tratados médicos, esses papiros serviram de guia para as pres-
crições por muito tempo. Hoje, o panorama é bem diferente: somos constantemente bom-
bardeados por alternativas de medicamentos para tratar quase todos os problemas que
possamos ter. Embora em todo o mundo sejam adotadas medidas importantes visando res-
tringir o acesso e conscientizar a população para os riscos, os medicamentos mais ‘simples’ podem
ser adquiridos com extrema facilidade, muitas vezes sem receita médica ou até pela internet. >>>
Quando
o fígado recebe
substâncias tóxicas em
Intestino grosso excesso (como ocorre no uso
abusivo de medicamentos),
elas podem provocar lesões
Figura 2. Uma das mais importantes funções do fígado é no tecido hepático e até
‘filtrar’ o sangue, que recebe substâncias vindas dos levar à falência do
alimentos e de outras fontes, para retirar as que sejam órgão
prejudiciais ao organismo, além de micro-organismos nocivos
Hepatócitos Capilares
Figura 3. Os lóbulos
hepáticos são pequenas
estruturas nas quais
Arteríolas o sangue captado pela
veia porta é exposto
às células do fígado
responsáveis por
Veia central transformar substâncias
Dutos tóxicas em outros
biliares compostos
Veias de drenagem
tâncias nocivas que entram em contato com suas células Os exemplos mais comuns são os de trabalhadores envol-
ou por aquelas geradas por ele ao tentar decompor e vidos com pintura ou fabricação de tintas e frentistas de
neutralizar essas toxinas. postos de combustíveis. Por isso, é necessário que os tra-
Das substâncias prejudiciais, o álcool é certamente balhadores desses setores exijam do empregador equipa-
a de mais fácil acesso e a mais consumida, o que faz mentos de proteção individual (EPIs) e os utilizem corre-
dele o principal causador de lesão hepática. O álcool tamente. Esses equipamentos ajudam a prevenir esses
ingerido em excesso esgota a capacidade do fígado de problemas, que, além de reduzir a vida útil dos empre-
metabolizá-lo e acumula-se no organismo, gerando no gados, abrem a porta para uma série de problemas médi-
indivíduo sensação de euforia e perda de inibição. Com cos que representam grande fardo econômico e social.
o passar do tempo, o efeito entorpecente do álcool de-
saparece, se a ingestão não continuar. Para manter o
estado de embriaguez, o indivíduo pode ter que consu- Busca por soluções Os medicamentos são as fer-
mir grandes quantidades de álcool, e o fígado receberá ramentas usadas para tratar quase todas as doenças que
toda essa carga, superior à sua capacidade de metabo- nos afligem, o que torna uma situação especialmente
lização. Com esse ‘envenenamento’, várias células do grave se o agente prejudicial é o próprio remédio. Um
órgão, em especial hepatócitos, podem morrer, levando exemplo é o paracetamol, analgésico de baixo custo e
à formação de uma cicatriz. Se esse comportamento for fácil acesso, utilizado em enormes quantidades em todo
repetido com frequência, grande parte do tecido hepá- o mundo: o uso em excesso dessa substância é a principal
tico será substituído pelo tecido fibroso da cicatrização, causa de falência hepática aguda em países desenvolvidos
iniciando um processo denominado cirrose. Esse pro- (figura 4). Como o paracetamol é de fácil aquisição e está
cesso pode inutilizar o órgão e gerar a necessidade de presente nas formulações de vários outros medicamentos,
um transplante. a população normalmente consome grandes quantidades
Entre as causas de lesão hepática por substâncias está desse medicamento, de modo inadvertido ou mesmo com
a inalação de solventes orgânicos, combustíveis ou agro- intenções suicidas (cerca de 16% dos casos de suicídio
tóxicos, que podem danificar os hepatócitos e levar ao por intoxicação medicamentosa, no Reino Unido e nos
acúmulo de gordura nos mesmos – processo denominado Estados Unidos, são associados a esse analgésico).
esteatose hepática. Um ponto importante para ressaltar é Quando presente em excesso no organismo, o parace-
que essa exposição, na maioria dos casos, se dá em am- tamol é transformado pelos hepatócitos em uma substân-
biente de trabalho e, portanto, ao longo de muitos anos. cia bastante tóxica, capaz de matar essas células, levan-