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Faustino Teixeira
1Todas as letras das canções de Gil foram recolhidas da obra: Carlos Rennó (Org). Gilberto Gil.
Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Para facilitar as referências, vamos
utilizar o código CR.
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Num ritmo de otimismo que encanta, Gil vai tecendo o seu
canto com as marcas da alegria, como um hino de celebração da vida.
É o que vemos também na canção Cores vivas (1980):
Tomar pé
Na maré desse verão
Esperar
Pelo entardecer
Mergulhar
Na profunda sensação
De gozar
Desse bom viver (CR, 293).
O mundo espiritual
2 Gilberto Gil & Regina Zappa. Gilberto bem perto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 392.
3 Expresso também por Gil na canção “Se eu quiser falar com Deus” (1980): “E apesar de um mal
tamanho, alegrar meu coração” (CR, 291).
4 Gilberto Gil & Ana de Oliveira. Disposições amorosas. São Paulo: Iyá Omin, 2015, p. 118.
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presença destacada do compositor, e que foi um traço de vanguarda
na música popular brasileira5. Em 1967 tinha sido lançada a canção
inaugural, Domingo no parque, com a presença dos Mutantes; e em
1968, o disco tropicalista Gilberto Gil, com outras canções de
destaque como “Procissão”. Nesta canção, em particular,
manifestava-se um pensamento mais sintonizado com o marxismo,
em conexão com o engajamento de Gil no Centro Popular de Cultura
(CPC). A religião aparecia ali como um dado de alienação, e Gil chega
mesmo a ironizar o cristianismo:
5 Na visão de Gil, o Tropicalismo fazia uma síntese entre espiritualidade e marxismo: Sergio Cohn.
Rogério Duarte. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 218.
6 Gilberto Gil. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 247-248.
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período, como “Vitrines”, “Futurível” e “Cérebro eletrônico”. Nesta
última, aborda contrastes e ensaia diálogos entre o mundo dos
homens e o mundo de Deus. O tempo era de modernização, do
avanço cibernético, das primeiras viagens espaciais e da afirmação da
ficção científica, exemplificada no filme de sucesso: 2001, uma
odisseia no espaço. Com “Cérebro eletrônico”, Gil reconhece a força
das máquinas, com seus “botões de ferro” e “olhos de vidro”, mas
sublinha também sua limitação. Elas comandam e fazem “quase
tudo”, mas permanecem penúltimas:
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interno”, com um processo que reconhece como “paralelo ao de Gil”.
Ao voltar do exílio em Londres, Gil foi morar com Rogério, e juntos
começaram a estudar a Eubiose. Ele relembra um trecho da canção
de Gil, “Objeto sim, objeto não” (1969), reconhecida como “panfleto
neomitológico” que busca refundar a aliança da ciência com o mito:
Eubioticamente atraídos
Pela luz do Planalto Central
Das Tordesilhas
Fundarão o seu reinado
Dos ossos de Brasília
Das últimas paisagens
Depois do fim do mundo
(Objeto sim, objeto não – 1969 - CR, 124)
Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
(Oriente – 1971 - CR, 143).
11 Caetano Veloso. Verdade tropical. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 32.
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À medida que você se desprende de si próprio, a ideia de
interiorização muda. Eu cada vez me desprendo mais de
mim mesmo. Cada vez quero saber menos o que sou, o
que significo, o que importo para os outros. Cada vez
mais me atribuo menos importância. Então, a
interiorização de Deus vai junto com isso. É aí que está
Deus, para mim, exatamente onde já se diluíram quase
todas as possibilidades de individuações 12.
12 Cissa Guimarães & Patrícia Guimarães. Viver com fé. Histórias de quem acredita. Rio de Janeiro:
GNT/Casa da Palavra, 2012, p. 261.
13 Gilberto Gil. Encontros, p. 253.
14 Gilberto Gil & Ana de Oliveira. Disposições amorosas, p. 79.
15 Iansã, 1972 (letra de Caetano Veloso).
16 Babá Alapalá, 1976.
17 Logunedé, 1979.
18 Axé, babá, 1980.
19 Toda menina baiana, 1979.
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33120). E cada conta vai montando um colar singular de religiosidade,
proteção e alegria:
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Foi
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser – ora iêiê, ô (...)
O luar
Do luar não há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente precisa ver o luar
21 Miguel Jost & Sergio Cohn. Entrevistas Bondinho. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 107.
22 Cissa Guimarães & Patrícia Guimarães. Viver com fé, p. 259.
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(Luar, a gente precisa ver o luar – 1980 - CR, 287)
Há
De surgir
Uma estrela no céu cada vez que ocê
Sorrir
(Estrela – 1980 - CR, 286).
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Pela sanfona afora até o coração do
menino
(De onde vem o baião – 1976 - CR, 227).
Vamos fugir
Proutro lugar, baby
Vamos fugir
Pronde haja um tobogã
Onde a gente escorregue
Todo dia de manhã
Flores que a gente regue
Uma banda de maçã
Outra banda de reggae
(Vamos fugir – 1984 - CR, 347)
Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
(Refazenda – 1975 - CR, 196).
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E o bonito é poder demorar-se entre as coisas, captando as
suas formas e o seu fragor, como expresso na canção “Retiros
espirituais” (1975). O momento irredutível de “estar defronte de uma
coisa e ficar” (CR, 20225). Aqui notamos o influxo positivo da fórmula
Wu Wei (não ser, não fazer, não agir), tomada da tradição taoísta.
Trata-se de um “deixar-ser”, sem que isto signifique passividade, mas
disponibilidade ativa ao canto das coisas. É o tempo que se inaugura
na cadência de cada instante (CR, 225 26). Gil, em estilo único, que faz
lembrar a sétima Elegia de Duíno (Rilke), celebra a grandiosidade do
momento: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora” (CR, 234) 27. E o
compositor comenta a respeito: “O ´aqui e agora` reivindicado pelos
místicos: a situação confortável, que deveria ser buscada e atingida
pelo homem, de integridade na vivencia de cada momento, de cada
centímetro de espaço ocupado” (CR, 234). É um convite que se
apresenta para todos, de refestança:
como um lugar, uma dificuldade pra uma pessoa”: Gilberto Gil. Encontros, p. 144.
28 Belo Dia, 1978.
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O sussurro do Deus Mu-dança
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os
Sentidos
(Tempo rei – 1984 - CR, 344)
Com “Tempo rei” (1984), Gil deixa aberta uma porta para algo
pós, sempre embalado pelo toque de otimismo. Assinala em
entrevista que prefere “os corpos que ressuscitam e se levantam
apesar de tudo” 30. Daí sua tranquilidade de lidar com a questão da
morte, entendida como deusa, como “rainha que reina sozinha” (CR,
153). E retoma a ideia em canção:
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Numa espiritualidade de semblante feminino, regida pela busca
da leveza, da ternura, do equilíbrio e da paz, Gil celebra a força da fé,
do impulso que move as pessoas, as criaturas e as montanhas; de
uma fé que “não costuma faiá” (CR, 31131). E assinala: “Uma das
características básicas da fé é a possibilidade dessa manutenção do
elã vital, do gosto de viver, que é no que consiste a fé”32.
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