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LITERATURAS
LATINO-AMERICANAS
CONTEMPORÂNEAS
ISSN 1982-9701

38
ano 23 | 2014
Missão
A revista Cerrados configura-se como um veículo de divulgação do pensamento
teórico literário, publicada semestralmente pelo Programa de Pós-Graduação em
Literatura da UnB. Visa a incorporar as contribuições do desenvolvimento do
pensamento científico na área das literaturas e das áreas afins do conhecimento,
que enriqueçam as fronteiras das Ciências Humanas na interdisciplinaridade
necessária aos estudos acadêmicos contemporâneos.

Editora
Cláudia Falluh Balduino Ferreira

Reitor
Ivan Marques de Toledo Camargo

Vice-Reitora
Sonia Nair Bao

Decano de Pesquisa e Pós-Graduação


Jaime Martins de Santana

Diretor do Instituto de Letras


Enrique Huelva Unternbäumen

Chefe do Departamento de Teoria Literária e Literaturas


Ana Claudia Silva

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura


Piero Luis Zanetti Eyben

Conselho Executivo
Cláudia Falluh Balduino Ferreira – Editora Chefe
Sylvia Helena Cyntrão
Rogério da Silva Lima
Wilton Barroso Filho
38
ano 23 | 2014

LITERATURAS
LATINO-AMERICANAS
CONTEMPORÂNEAS
Editora Capa
Cláudia Falluh Balduino Ferreira Design | Jana Ferreira e David Borges
Obra da capa | Hombre caminante (Eduardo Darino)
Organizadora deste número
Elga Pérez-Laborde Projeto Gráfico, Capa e Diagramação
Jana Ferreira e David Borges
Revisão
Yana Palankof e Mariana Mattioni Schardong

Apoio
Capes/CNPq

Conselho Editorial Consultivo


Ana Laura dos Reis Corrêa (UnB, Brasília-DF, Brasil) | Elga Pérez-Laborde (UnB, Brasília-DF, Brasil)
Regina Dalcastagnè (UnB, Brasília-DF, Brasil) | Rogério Lima (UnB, Brasília-DF, Brasil)
Paulo Nolasco (UFGD, Dourados-MS, Brasil) | Affonso Romano de Sant’Anna (FBN, Rio de Janeiro-RJ, Brasil)
André Bueno (UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil) | Antonio Carlos Secchin (UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil)
Gilberto Martins (Unesp, Assis-SP, Brasil) | Laura Padilha (UFF, Rio de Janeiro-RJ, Brasil)
Luís Alberto Brandão (UFMG, Belo Horizonte-MG, Brasil) | Maria Antonieta Pereira (UFMG, Belo Horizonte-MG, Brasil)
Mário Cezar Leite (UFMT, Mato Grosso-MT, Brasil) | Nádia Battella Gotlib (USP, São Paulo-SP, Brasil)
Alckmar Luís dos Santos (UFSC, Florianóplis-SC, Brasil) | Benito Martinez Rodrigues (UFPR, Curitiba-PR, Brasil)
Eliane do Amaral Campello (FURG, Rio Grande-RS, Brasil) | Walter Carlos Costa (UFSC, Florianóplis-SC, Brasil)
Diógenes André Vieira Maciel (UEPB, Campina Grande-PB, Brasil) | Márcio Ricardo Muniz (UFBA, Salvador-BA, Brasil)
Rinaldo Fernandes (UFPB, João Pessoa-PB, Brasil) | Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal)
Bernard Lamizet (Université Lumière 2, Lyon, França) | Claire Williams (Universidade de Liverpool, Reino Unido, Inglaterra)
François Jost (Sorbonne Nouvelle, Paris, França) | Jacques Fontanille (Universitè de Limoges, Limoges, França)
Rita Olivieri-Godet (Université Rennes 2, França)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C398
Cerrados : revista / do Programa de Pós-Graduação em Literatura. - Vol. 1, N. 1 (1992)- .-Brasília, DF : Universidade
de Brasília, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 1992-.
v.
Semestral
Tema: Literaturas Latino-Americanas Contemporâneas
Editor: Cláudia Falluh Balduíno Ferreira
Descrição baseada em: Vol. 14, N. 38 (2014)
Inclui Bibliografia

ISSN 1982-9701
1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Literatura comparada. 3. Literatura - periódicos. I. Universidade de Brasília.
Departamento de Teoria Literária e Literaturas.

12-9157. CDD: 809


CDU: 82.09

12.12.12
18.12.12 041516
Editorial Foreword
Quando escolhemos a literatura latino-americana When we chose Latin American literature as the
contemporânea para tema do número 38 da revista theme for the 38th number of Cerrados, we knew it
Cerrados, sabíamos que a matéria se apresentava was perfect for a review whose vocation is polyphony.
perfeita para uma revista cuja vocação é a polifonia. From any angle we take it, Latin American
De qualquer ângulo que a tomemos, a literature is plural. Doted with a political and
literatura latino-americana é plural. Dotada de symbolical memory alongside with an intense
uma memória política e simbólica e em contraponto counterpoint with modern thinking, it brings up, in
intenso com o pensamento moderno, ela suscita, the Spanish-Portuguese duet, the languages of its
no dueto espanhol e português, línguas de sua realization, the testimony or the inspiration of its
realização, o testemunho ou a inspiração de seus writers, be them poets, mystics, chroniclers,
escritores, sejam eles poetas, místicos, cronistas, travelers, novel writers, they are all in symbiosis with
viajantes, romancistas, todos em simbiose com a History, as archeologists of literature that they are,
história, arqueólogos da literatura que são, com a with philosophy, anthropology and all the possible
filosofia, a antropologia e todos os demais ângulos angles of Hermeneutics appreciated by Modernity.
de hermenêuticas apreciadas pela modernidade. For the organization of this issue, Cerrados
Para a organização deste número, a revista invited researcher Elga Pérez-Laborde. Member of
Cerrados convidou a pesquisadora Elga Pérez-Laborde. the Post-Graduation Program in Literature, she

Editorial 5
Membro do Programa de Pós-Graduação em combines an intense intellectual production with
Literatura da Universidade de Brasília, a professora the activity of journalism, in Chile, Argentina and
Elga Pérez-Laborde combina uma fecunda Venezuela, where she acted as a correspondent for
produção intelectual tanto como jornalista no Chile. Critic and essayist specialized in art and
Chile, na Argentina e na Venezuela, onde atuou literature, her current research at the University of
como correspondente para o Chile quanto acadêmica. Brasília emphasizes Hispanic literatures. She is
Ensaísta e crítica especializada em arte e literatura, leader of the research group Latin American
sua pesquisa atual na Universidade de Brasília Contemporary Literature and since 2001, she
enfatiza as literaturas hispânicas. Sua produção coordinates the International Congresses of
engloba diversas publicações nesses países em Humanities (Congressos Internacionais de
livros e revistas acadêmicas ou especializadas de Humanidades), a joint action of UnB and
arte e cultura. É atualmente líder do Grupo de UMCE/Chile. Elga Pérez-Laborde will present a
Pesquisa Literatura Latino-Americana Contemporânea minute panorama of the organization of this issue.
(Poslit) e desde 2001 coordena os Congressos The careful thematic choices, allied to the
Internacionais de Humanidades, em convênio extreme care exerted by the organizing group and
entre a UnB e a UMCE, do Chile. Elga Pérez-Laborde by the editing team, in these difficult times for
apresentar-nos-á em seguida um panorama Brazilian academic production, are what bring the
pormenorizado da organização deste número. reader the excellence of the 38th issue of Cerrados.
São estas escolhas temáticas aliadas aos Celebrating Latin American contemporary
cuidados exemplares exercidos pelos organizadores literature in this issue through the studies which
e pela editoria nestes tempos difíceis da produção express a part of its enormous plurality in its
acadêmica brasileira que trazem até o leitor a symbolic systems, through the languages and the
excelência do número 38 da revista Cerrados. discourses which pervade this literature, since the
Celebrando a literatura latino-americana years of 1960 until nowadays, we show the reader
contemporânea nesta edição por meio de estudos the scope of its substrate and the stimulus of its
que expressassem uma parte da imensa pluralidade incandescence in its present.
dos seus sistemas simbólicos, por intermédio das
línguas e dos discursos que sonoramente a
perpassam desde os anos 1960 até os dias atuais,
dispomos ao público leitor o inesgotável de seu
substrato e a estimulante incandescência do seu
presente e atualidade.

Cláudia Falluh Balduino Ferreira

Editora Chefe
Chief Editor

Translated by Cíntia Carla Moreira Schwantes

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Apresentação
O presente número da revista Cerrados, dedicado às centenário do antipoeta Nicanor Parra (1914),
Literaturas Latino-Americanas Contemporâneas, oferecida no Instituto de Letras da UnB com o
está organizado em três seções, produto da apoio da Embaixada do Chile.
concentração dos focos, temas e autores enviados A dinâmica virtual do poema do uruguaio
pelos pesquisadores. A primeira, referida a alguns Eduardo Darino (1939), que ilustra a capa da
dos grandes clássicos que revolucionaram a presente edição permite fazer algumas reflexões
narrativa a partir da segunda metade do século XX acerca da forte permanência do contemporâneo
e a uma visão do atual conto mexicano como nos textos recebidos sobre os valores literários e
gênero; a segunda, à crescente contribuição de projetos estéticos aportados por Borges, Juan Rulfo,
mulheres escritoras, preocupadas das diversas García Márquez, Vargas Llosa, Eduardo Galeano.
questões relacionadas com conflitos, lutas e Os autores hispano-americanos já não estão entre
problemáticas contingentes; e a terceira, um perfil nós, salvo Vargas Llosa, mas todos eles deixaram
ilustrado da evolução da poesia visual oferecido uma obra que permanece acesa, atual e continua
pelo poeta e acadêmico Antonio Miranda. Além sendo motivo de pesquisas acadêmicas pelo que
disso, constitui uma colaboração especial para esta representam na renovação da linguagem, no
edição o texto em espanhol da conferência do desenvolvimento da consciência crítica, na projeção
escritor chileno Leonardo Sanhueza, sobre o e legitimação dos imaginários latino-americanos.

Apresentação 7
O mesmo pode-se apreciar na leitura e análise dos de identidade e gênero têm sido abordadas no
escritores brasileiros presentes neste volume. Desde campo dos estudos literários, especialmente nas
“a universalidade do regional, do primitivo e do duas ultimas décadas. Na América Latina, em
cultural, para a dissolução de individualidades e o particular, a exploração desses conceitos é notável,
reconhecimento das ambiguidades como fonte de tendo em vista o avanço das pesquisas pós-coloniais
um poder e supremacia identitárias”, de Guimarães e da noção de sujeito híbrido. (Hall, 2003). Assim,
Rosa, até os delírios autoficcionais e pós-modernos indivíduos como o negro, o índio e/ou a mulher
de Chico Buarque. Incluem-se também os ensaios têm sido objeto de investigação em que cada um
que interpretam “Pelo fundo da agulha: a insólita deles procura reivindicar sua posição enquanto
trajetória de um retirante na cidade elemento ativo na sociedade.
contemporânea, do baiano Antonio Torres”; As autoras chilenas oferecem um quadro de
“A representação do Insólito contemporâneo no interesses de leitura e estudo de diversas
romance As Montanhas da lua de Samuel Duarte”; procedências. No primeiro trabalho apresenta-se a
Douglas e o Livro de Luz, de Jack Brandão cotejado análise de destacados romances publicados entre
com teóricos da interdisciplinaridade e um olhar 1982 e 1999 por cinco escritoras atuais: Isabel
nietzschiano sobre o prefácio de Tutaméia, “Aletria Allende, Ana María Del Río, Andrea Maturana,
e hermenêutica”, de Guimarães. Sonia González e Marcela Serrano. Nesse trabalho,
Os estudos sobre a literatura produzida por em espanhol, enviado por duas especialistas, o
mulheres cobrem um amplo espectro que vai dos objetivo é conhecer o que acontece com a
extremos cardeais de norte a sul do continente. literatura criada por mulheres, os temas e o mundo
A mexicana Laura Esquivel motivou uma leitura de recriados, e o modo como se estrutura o relato,
sua obra Malinche, na qual se desenvolve a ideia da atendendo à figura do narrador e à mensagem que
resistência como um constituinte de um cenário que cada obra entrega. Outra leitura refere-se à
enfoca o contato entre partes com posicionamentos construção da identidade de resistência da
distintos frente ao mundo. Nesse cenário a autora personagem Zarité, no romance A ilha sob o Mar
também traz o potencial da produção literária (2010), de Isabel Allende. Duplamente oprimida
como ferramenta para instauração de uma ‘nova por ser mulher e escrava, figura mais frágil em um
ordem’ social na América Latina. sistema patriarcal e escravocrata, e, ironicamente,
A análise sobre a porto-riquenha Rosario pela invisibilidade social que sua cor e sexo lhe
Ferré e seu conto “La bella durmiente” adentra no impõem, a personagem logra êxito nas suas
pensamento pós-colonial e feminista para se associar aspirações sociais e pessoais.
às abordagens sobre atuação e epistolaridade, numa De Diamela Eltit, escritora chilena que se
narrativa performática, que encena o feminino no encontra no ápice da contemporaneidade e do
entrecruzar de culturas e histórias plurais, conceito de pós-modernidade, incluímos duas
frequentemente dolorosas e dissonantes. leituras diferenciadas pelos livros escolhidos. Uma -
Pode-se constatar, na apresentação da “Os limites do corpo na letra: subjetividades à
leitura do romance A Vinte anos, Luz (2006) da margem em Diamela Eltit”- busca analisar o
escritora argentina Elsa Osório, que a construção romance Los vigilantes, a partir do (des)

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
ordenamento proposto pelo corpo-linguagem da
criança cujos monólogos iniciam e encerram o
texto. Neste romance, a criança levará a linguagem
a seu limite, na iminência de se dissolver em suas
pulsões. A marginalidade da criança, seu desajuste
em relação à racionalidade, é o que permitirá a
subtração à disciplina e vigilância impostas pela
organização social a que mãe e filho se encontram
submetidos, durante boa parte do relato. A outra
leitura -“Esse corpo não é meu! Uma análise sobre
o ‘corpo/ consumo’ e a lógica do mercado em Mano
de obra e Impuesto a la carne”– trata, por um lado,
de homens e mulheres ocupantes de um espaço
globalizado e degradante em Mano de obra; e, por
outro lado, em Impuesto a la carne, enfoca os
espectros femininos como seres errantes, que tentam
sobreviver no espaço inóspito de um hospital.
Encerra o grupo de mulheres romancistas,
uma resenha sobre Quarenta dias (Alfaguara, 2014),
o romance mais recente de Maria Valéria Rezende,
paulista radicada há décadas na Paraíba, Prêmio
Jabuti 2009. Traz uma protagonista curiosa – Alice,
uma paraibana aposentada que, por conta da filha
única casada com um gaúcho e que planeja engravidar,
vai viver em Porto Alegre, preparando-se para se
tornar “avó profissional”. Personagem que faz
pensar no problema da identidade e de suas
representações no romance brasileiro atual.
A latinidade contemporânea abrange tudo
isso e muito mais. A Cerrados tenta, neste número,
fazer uma aproximação a esse universo literário
que nos pertence, que move nossa identidade e
nossa história em essência e circunstância para
explicar nossa realidade em termos de escrita,
leitura, textualidades e significados.

Elga Pérez-Laborde
Organizadora

Apresentação 9
Sumário
Seção 1

Pelo fundo da agulha, de Ântonio Torres: a insólita trajetória de um retirante na


cidade contemporânea, 17
Pelo fundo da agulha, by Antônio Torres: the inusual journey of a brazilian northeast
migrant in contemporary city
Rogério Gustavo Gonçalves

Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeano, 35


Literature beyond the literary genres: the wrinting of Eduardo Galeano
Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva

Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de


Mario Vargas Llosa, 47
Transversal identification and narrative focus on Tia Júlia e o escrevinhador,
Mario Vargas Llosa
Jorge Alves Santana

Sumário 11
Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe, 65
Gabriel García Márquez, a Reading about the Caribbean
Sara Almarza

El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no


Novo Romance Histórico, 77
El Sueño del Celta: The Fictionalized Irish Hero in New Historical Novel
Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro

Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de Pedro Páramo, de


Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana, 93
Between Poetry and History: The Complex Narrative Setting in Pedro Paramo, by
Juan Rulfo, and El Último Lector, by David Toscana
Daniele dos Santos Rosa

A Representação do Insólito Contemporâneo no Romance As Montanhas da Lua de


Samuel Duarte, 111
A Representation of Unusual Contemporary Romance in The Mountains of the Moon
of Samuel Duarte
Ester Abreu Vieira de Oliveira

Borges: Por uma Estética da Precariedade, 127


Borges: For a Esthetic Precariousness
José Wanderson Lima Torres

Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade, 141


Antônio Jackson de Souza Brandão | Sebastião Jacinto dos Santos

Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em


O Irmão Alemão, de Chico Buarque, 161
Two Faces of the same Coin: On the Bound of Postmodern Autofiction In
O Irmão Alemão, Chico Buarques
Márcia Fernandes | Elga Pérez-Laborde

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”, 175
Impermanent Permanences: “Páramo”
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha

El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970 - 2014): Las contradicciones


de una práctica masiva, 193
José Sánchez Carbó

Seção 2

Malinche: uma aproximação que distancia, 219


Malinche: an approximation that distance
Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro

Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré, 233


Writing, Staging and Performance in Rosario Ferré
Stelamaris Coser

Memórias do trauma e as relações de gênero em Ha vinte anos, luz, de Elsa Osorio, 251
Memories of trauma and gender relationships in Ha vinte anos, luz | My name is light,
by Elsa Osorio
Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa

Identidade de resistência em A ilha sob o mar, 265


Resistance identity in the A ilha sob o mar
Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos

Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales, 287


Five novels, five current chilean writers
Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez

Sumário 13
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do
Mercado em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit, 315
This Body Is Not Mine! An Analysis of the “Body - Consumption” and the Logic of the
Market In “Mano de Obra” and “Impuesto A La Carne”, of Diamela Eltit
Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde

Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit, 329


The limits of the body on the language: subjectivity on the sidelines in Diamela Eltit
Rafaela Scardino | Alexandre Moraes

Quarenta Dias e o Elogio da Cordialidade, 343


Rinaldo de Fernandes

Seção 3

Poesia Visual Ibero-Americana 3 Animaverbivocovisualidade – AV3, 351


Poesía Visual Iberoamericana y La Animaverbivocovisualidade – AV3
Antonio Miranda

Nicanor Parra, un poeta de la incertidumbre, 379


Nicanor Parra, um poeta da incerteza
Leonardo Sanhueza

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Seção 1
Pelo fundo da agulha, de
Antônio Torres: a insólita
trajetória de um retirante na
cidade contemporânea

Pelo fundo da agulha, by Antônio


Torres: the inusual journey of a
brazilian northeast migrant in
contemporary city

Rogério Gustavo Gonçalves


Doutor em Letras pela
Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” –UNESP,
de São José do Rio Preto –SP

rogeriogstvo@yahoo.com.br
Resumo Abstract
Este trabalho analisa o modo como são retratadas, This paper examines how are represented in the
no romance Pelo fundo da agulha, de Antônio novel Pelo fundo da agulha, by Antonio Torres, the
Torres, as condições de vida do retirante living conditions of the Brazilian northeast
nordestino na cidade de São Paulo, a partir da migrant in the city of São Paulo, based on the
trajetória do protagonista Totonhim, em paralelo trajectory of protagonist Totonhim, in parallel
com a dos demais personagens de mesma origem with the other characters of the same origin. The
presentes na obra. O objetivo é mostrar como a aim is to show how the success story of the main
história de sucesso do personagem principal se character is different relative to the journey
diferencia em relação ao caminho comumente commonly traveled by others, not mirroring the
percorrido pelos demais, não espelhando o fate of the northeastern backcountry man,
destino do sertanejo nordestino, em geral, no generally, in urban space.
espaço urbano.
Keywords: Antônio Torres; backcountry; city;
Palavras-chave: Antônio Torres; sertão; cidade; migration.
migração.
D
a obra literária do escritor baiano Antônio Torres, tornou-se mais célebre o
romance Essa terra. Publicada pela primeira vez em 1976, a história narra a de-
sintegração de uma família do vilarejo de Junco, no sertão baiano, em virtude
do movimento migratório dos habitantes dessa região para as capitais. A recep-
ção positiva da obra, de modo permanente, pela crítica e pelo público leitor, permitiu que
o autor, mais de vinte anos depois, desse continuidade à saga da família do protagonista,
Totonhim, com a publicação, em 1997, de O cachorro e o lobo. Em 2006, com o lançamento
de Pelo fundo da agulha, Antônio Torres encerra a história desse personagem que, já envelhe-
cido, na cidade de São Paulo, faz uma retrospectiva de sua vida.
Pode-se dizer que, nesse romance que fecha a trilogia do migrante nordestino,
dá-se a transição da representação do espaço sertanejo para o urbano. Em Essa terra, a ima-
gem da cidade grande é construída apenas indiretamente, pela descrição muitas vezes distor-
cida pelo deslumbramento dos que nela estiveram ou pela idealização dos que nela sonham
em viver. Nelo, o personagem morador da metrópole nesse primeiro romance, retorna ao
sertão de Junco sem revelar nada sobre sua vida em São Paulo, exceto no episódio em que
narra a surra que levou de policiais, no qual imprime uma imagem dura e alucinante das
ruas da capital paulista. Em O cachorro e o lobo, apesar de Totonhim já morar na cidade gran-

Rogério Gustavo Gonçalves


19
Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
de, a história se desenvolve toda na Junco de dois tempos: a do período em que o persona-
gem permanece ali na companhia do pai e a de sua juventude, reconstruída em sua memó-
ria. Apenas Pelo fundo da agulha apresentará a vida do protagonista, já aposentado, no coti-
diano de São Paulo, enquanto grande parte do conteúdo de suas recordações mostra o tem-
po anterior em que também viveu nessa cidade.
Nesse último romance, Totonhim aparece como um homem supercivilizado do
século XXI, de classe média, que administra com desenvoltura os compromissos e
ferramentas que fazem parte do cotidiano de seu universo e de seu tempo: almoços de
negócios, viagens profissionais, contas de condomínio, secretária eletrônica, e-mail, celular
e todos os demais elementos que compõem o paradigma do sujeito urbano integrado ao
contexto contemporâneo. Herdeiro de mentalidade atrelada ao modo de vida rural, o
personagem demonstra uma vivência que denota total inserção ao espaço citadino,
absorvendo todos os requintes e comodidades da civilização e lançando-se na corrente da
vida cosmopolita internacional:

Mas atenção: era uma vez o pacote turístico em suaves prestações – carnavais à
beira-mar, paraísos tropicais, ilhas gregas e caribenhas, museus da Europa, as mura-
lhas da China, rios e templos sagrados orientais, míticos desertos, o muro das lamen-
tações, a estátua de Hemingway no bar Floridita de Havana, a foto do velho Ernest
e o fantasma de Scott Fitzgerald no Closerie de Lilas, as sombras de madame Simone
e de Monsieur Jean-Paul no Café de Flore... (TORRES, 2006, p. 20)

Aparentemente libertado dos quadros da vida no sertão, Totonhim sucumbe à


lógica social da cidade, identificando-se com o cenário à sua volta e com os lugares que visita
no decorrer da vida., Ao longo fo tempo ele foi moldando-se ao espaço urbano, num proces-
so de “assimilação” de costumes, conforme o sentido do termo empregado por Burke (2003,
p. 44), em que uma cultura subordinada adota características de uma cultura dominante.
No capítulo 2 do romance, quando se recorda de sua última viagem a Paris, à metrópole
“suntuosa, cheia de si”, um dos símbolos supremos da civilidade, o personagem demonstra
absoluta intimidade com a cidade, seus bairros e ruas, projetando sobre todas as coisas um
olhar de reconhecimento, e não de novidade. Desse modo, Pelo fundo da agulha se mostra
uma obra cosmopolita apresentada pelo ponto de vista de um sujeito também cosmopolita.
Totonhim maduro, ou Antão Filho, assume uma posição que se configura como a de um
intelectual cuja visão do mundo do desenvolvimento em que está inserido, no entanto, não
é restrita e isenta de questionamentos. Aliada a essa assimilação dos valores impostos pelo
contexto citadino, pelos novos tempos, há ainda a ascensão de Totonhim a uma camada so-
cial diferente da dos pais e do seu povo, o que amplia o seu desenraizamento, aprofundando
o abismo instaurado entre presente e passado, entre o personagem e a terra natal.

Cerrados nº 38
20
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Para Antonio Candido (1971, p. 48), no perfeito romance urbano, os personagens
e problemas estão desligados de qualquer background rural, e o autor estabelece uma escala
de valores que não passa pelo campo. Apesar de Pelo fundo da agulha parecer um romance
urbano por excelência, seu conteúdo diegético, como nas demais narrativas de Antônio Tor-
res, resulta de um jogo de intercalação entre dois espaços antagônicos: cidade e sertão. Mes-
mo a cidade constituindo uma referência de espaço físico “que acompanha o protagonista
como auxiliar indispensável para a leitura de sua própria vida” (COSTA, 2007, p.14), o gentle-
man paulistano, Antão Filho, vai sendo explicado, no decorrer da narração de suas memó-
rias, em parte pelo passado do jovem Totonhim em Junco, sendo aquele o resultado de tudo
o que este viveu. Mesmo quando as recordações abrangem o tempo vivido na cidade, nelas,
o personagem, volta e meia, reporta-se para o passado do espaço sertanejo, abrindo-se um
segundo plano memorialístico dentro do primeiro, ou mesmo um terceiro dentro do segun-
do, a caracterizar uma estrutura narrativa em abismo:

Os olhos dele fazem um passeio pela sala. Há nela acomodações confortáveis, da


mesa de jantar e suas cadeiras senhoriais, às poltronas e sofás [...] Mas percebe: há
um banquete à sua espera, na mesa do centro. Enche-se de pânico diante da expecta-
tiva daquele momento. Nunca antes lhe fora dada tamanha importância [...] Pela
primeira vez estava conhecendo algo bem acima da sua experiência de vida. Um lar.
O que tivera se desfizera na poeira dos fluxos e refluxos migratórios da sua família.
Era ainda uma criança no dia em que acordara no meio de uma confusão, um
falatório apavorante, que vinha da cozinha da casa em que nascera. Naquele dia, o
pai não havia chamado os filhos, antes do sol raiar, para rezar a ladainha, conforme
o ritual de todo alvorecer. [...] (TORRES, 2006, p. 153)

Essa passagem é uma recordação de Totonhim do dia em que conheceu os pais de


sua ex-esposa, Ana, num jantar no luxuoso apartamento deles. Nessa ocasião, vem à mente
do personagem, conforme se vê no segundo parágrafo, a lembrança das brigas e da separa-
ção de seus próprios pais, em virtude da insatisfação da mãe com as condições de vida no
sertão. A memória traz de volta a precariedade e o clima de instabilidade que marcaram a
infância do jovem migrante para contrastar com a imagem de conforto, fartura e harmonia
com a qual ele se depara ao conhecer a casa dos sogros, reavivando sua consciência das dife-
renças de contexto social.
Mesmo enredado às malhas da cidade e adaptado ao seu ritmo, Totonhim possui
sua origem sentimental no sertão, com seu olhar frequentemente lançado para trás, a rede-
senhar o passado, como referência por meio da qual interpreta o presente. Dada essa pecu-
liaridade, Pelo fundo da agulha não se caracteriza como um romance legitimamente urbano,
conforme o definido por Antonio Candido. Aproxima-se mais da ideia de “romance de urba-

Rogério Gustavo Gonçalves


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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
nização”, sugerida por Fernando Cerisara Gil. Nessa categoria, segundo Gil, inserem-se nar-
rativas que apresentam o deslocamento de personagens de esferas sociais pouco urbanizadas
para espaços sociais supostamente mais modernos:

O que está em jogo no romance de urbanização, de modo geral, é o conflito de dois


tempos históricos distintos que correspondem a espaços e valores sociais e culturais
também diversos e que, até certo ponto, formalizam-se no nível estético como irrecon-
ciliáveis para a vida do nosso protagonista. De um lado, têm-se o tempo presente da
cidade, da vida urbana; de outro, o passado do campo da vida rural. [...] O seu dis-
curso somente pode ser articulado como exposição dessas duas pontas que todavia
não podem ser unidas. (GIL,1999, p. 73)

Considerando o modo como se dá o processo histórico brasileiro de inserção e


adaptação do indivíduo oriundo do campo no contexto citadino, Gil aponta na representa-
ção literária, com destaque a certas obras, a presença de um “dualismo”, no qual “uma pers-
pectiva referenciada pela experiência tradicional, rural e patriarcal” se opõe à “experiência
moderna, urbana e burguesa”, resultando do atrito desses dois prismas uma “tensão irresol-
vida” (GIL, 1999, p. 126). Em Pelo fundo da agulha, como nos romances anteriores com am-
bientação urbana, Antônio Torres continua a debater o problema aparentemente irresolúvel
de duas realidades nacionais: o sistema patriarcal e rústico não deixa de ser revisitado nas
lembranças de Totonhim, mesmo com a fácil integração do personagem à vida em meio aos
arranha-céus paulistanos, sem cogitação de retorno à antiga conjuntura.

O percurso singular de Totonhim na metrópole


Embora ligado emocionalmente ao passado, Totonhim – afastado definitivamente de um
mundo que não possui mais vigência concreta para ele e buscando construir sua biografia e
encontrar sua identidade – tenta traçar, desde o início de sua chegada à metrópole, um percurso
de referências sociais diferenciadas em relação às suas origens. Logo que desembarca na capital
paulista, ele é recepcionado pela chuva, o que imprime ao momento um sentido de fim e de
recomeço, ou seja, de renascimento, assim como no dilúvio bíblico, ,pois na perspectiva
simbólica a água pode significar tanto a vida quanto a morte ou destruição. Para J. E. Cirlot,
autor do Dicionário de símbolos, a travessia da água implica mudança, transformação, “passagem
de um estado para outro” (CIRLOT, 2007, p. 157), substituição ou a preferência de uma situação
em detrimento de outra anterior. Isso reafirma no romance de Antônio Torres, portanto, a
virada de rumo, com o início de uma nova etapa na vida do protagonista. A chuva também
aponta a diferença do novo ambiente com a realidade a que Totonhim estava acostumado no
sertão castigado pela escassez de água pluvial, despertando-lhe a lembrança de como uma
situação dessas, comum em São Paulo, era comemorada em sua terra natal:

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Outra vez, uma memória. Pipocando com a rapidez do relâmpago que acabava de
clarear o estrondo de um trovão: a dos homens que vestiam terno branco e rolavam
na lama, nos dias de trovoada, depois de uma longa estiagem.
(TORRES, 2006, p. 112)

Na saída da rodoviária de São Paulo, o personagem, sem saber que rumo tomar,
é acolhido pelo guarda-chuva de uma mulher que o conduz até um hotelzinho próximo à
Ladeira da Memória (sugestivo nome para as condições em que se dá a narração desse nível
diegético no romance). Na caminhada de Totonhim rumo à sua emancipação essa mulher
exerce o papel de “adjuvante” (GREIMAS, 1973, p. 116). Assim como o actante que – no conto
maravilhoso, portando um objeto mágico – tem a incumbência de auxiliar o herói a realizar
o seu programa narrativo, conforme a formulação greimasiana de modelos actanciais do
personagem de ficção: “Sentiu-se batizado pelo Deus das tempestades, sob as bênçãos de
uma madrinha, surgida ao balançar de um condão, o cabo do seu guarda-chuva.” (TORRES,
2006, p. 112).
Na roupagem mais atual de uma funcionária das lojas Mappin, a figura feminina
que auxilia Totonhim em sua chegada também faz alusão ao célebre poema “A uma passan-
te”, de Baudelaire (1985), em que o poeta descreve o casual encontro com uma mulher no
meio da multidão da metrópole. Assim como no poema das Flores do Mal, a imagem da
apressada mulher que acompanha Totonhim e logo desaparece, transmite ao personagem a
sensação de fugacidade e dissolução que caracterizam a vida na grande cidade:

— Ei, ei! — gritou. — Qual é o seu nome?


Deu-se conta de que gritava em vão. Em questão de segundos, ou de um minuto,
talvez, ela passava a ser apenas um par de pernas indistinguíveis. Um corpo a mais
entre tantos outros em movimento. (TORRES, 2006, p. 115)

O emprego da metonímia, anulando os contornos dos transeuntes, aliado à bre-


vidade com que o entrecho narrativo é desenvolvido – com a moça entrando e saindo de
cena rapidamente, sem tempo de dizer seu nome –, comunica certa impressão de magia e de
incerteza, concedendo ao encontro um caráter de aparição. Ao perder a moça de vista, o
personagem, pela voz do narrador, despede-se dela em pensamento, reproduzindo, consigo
mesmo, um fragmento da “Canção do amor ausente”, de Vinicius de Moraes. Com isso de-
monstra todo o encanto que a jovem lhe despertara e lamenta a separação causada pelo rit-
mo da cidade, mostrada como espaço humano onde se instaura o efêmero: “Ah, mulher, tu
que criaste o amor. Aqui estou eu, tão só, na imensa rua, adeus.” (MORAES, 1976, p. 121)
Posteriormente, Totonhim conhece o jovem Bira, seu companheiro de quarto no
hotel, possuidor do atributo do saber, que também o auxilia, orientando-o a prestar o concurso

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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
público para o Banco do Brasil. Essa experiência, aliada ao seu primeiro contato com a
mulher, faz com que Totonhim (a quem são correlatas as modalidades funcionais do querer
e do poder) tenha uma imagem inicial de São Paulo inversa àquela prevista de maneira ne-
gativa: “Passo a passo, um clichê ia se quebrando sob os seus pés. O da indiferença da cidade
que não podia parar e por isso não tinha tempo para prestar atenção em ninguém.” (TOR-
RES, 2006, p. 124)
Totonhim possui uma visão não utópica do espaço urbano, em razão da passa-
gem que teve por cidades maiores, próximas a Junco, e por ter testemunhado a experiência
malsucedida do irmão Nelo. Seus conterrâneos, diferentemente, viam o universo urbano
inscrito sob a égide do progresso, como um lugar de promessas e de realizações. Em decor-
rência de sua falta de expectativa, ele não sofre nenhum tipo de choque quando se depara
com a realidade da capital paulista, bem diversa daquela idealizada por muitos sertanejos.
Consciente das dificuldades que teria de enfrentar nesse ambiente, o jovem per-
sonagem, recém-chegado, demonstra possuir objetivos bem definidos em relação à sua esta-
bilização profissional em São Paulo: “Pensou que era isso o que também queria: um empre-
go com um horário que lhe permitisse estudar.” (TORRES, 2006, p. 116). Com uma visão
mais clara do que a maioria dos retirantes nordestinos que viviam na cidade das relações
sociais, para Totonhim, o estudo representa sua única oportunidade de conseguir se estabe-
lecer financeiramente. O inconformismo e o desejo de crescimento estimulam-no a ultra-
passar os limites impostos ao migrante no espaço citadino. Ele age para transformar sua
vida, não sendo passivo e submisso ao ajustamento socioeconômico que a ordem urbana
impõe aos cidadãos de sua origem, que são destinados às profissões de menor prestígio e
renda, nas quais se incluem:

“[...] os carpinteiros, os operários das fábricas, os mecânicos, borracheiros e guarda-


dores de automóveis, os cobradores e os motoristas de ônibus, ascensoristas, os por-
teiros, as empregadas domésticas, costureiras, faxineiras, cabeleireiras, manicures,
enfermeiras, babás, os lixeiros, os varredores das ruas [...]” (TORRES, 2006, p. 90)

O desejo de Totonhim escrever uma história de vida diferente da dos outros


nordestinos pobres em São Paulo se manifesta logo na sua chegada, na preferência em instalar-se
no centro da cidade, longe de seus conterrâneos, que viviam, predominantemente, nos
bairros periféricos:

(Poderia dizer-lhe o que sabia. Mas não disse. Que se fosse a um subúrbio chamado
São Miguel Paulista encontraria metade ou mais do povo de sua terra. E ali teria
lugar para ficar. Só que não era isso o que queria, assim de entrada. Preferia um
lugarzinho qualquer, uma pensão, um hotel barato, um quarto numa casa de cômo-

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dos ou num apartamento, uma república de estudantes...)
Disso ele falou. Que gostaria de pousar no centro da cidade. (TORRES, 2006, p. 114)

Embora tenha escolhido habitar o centro de São Paulo, Totonhim percorre al-
guns pontos do submundo citadino, visitando, por um determinado período, o bairro de
São Miguel Paulista e se relacionando com outros migrantes que ali se concentravam. Nesse
subúrbio, o personagem vê reproduzido o ambiente das cidadezinhas do interior onde vivia,
com o alto-falante da praça a tocar as canções de Luiz Gonzaga, num fenômeno comum de
constituição de núcleos de província dentro da metrópole:

Nem parecia que aquele lugar, chamado São Miguel Paulista, fazia parte das redon-
dezas da maior cidade da América do Sul, da qual era um apêndice inchado, graças
às contribuições dos retirantes sertanejos à sua densidade demográfica. (TORRES,
2006, p. 141)

Essa tentativa de reconstruir o espaço perdido do sertão dentro da grande cidade


revela o desejo do migrante, mesmo que inconsciente, de conservar suas tradições regionais.
Isso caracteriza um modo de resistência contra a gradativa perda de referências que a vida
num ambiente diferente do seu, em vários aspectos, pode causar. Com a abordagem desse
fato na criação do seu universo ficcional, Antônio Torres reproduz literariamente o que, na
realidade, para Homi Bhabha, é uma tendência entre os povos em situação de deslocamento
e de transição no mundo globalizado:

A comunidade é o suplemento antagônico da modernidade: no espaço metropolitano


é o território da memória, colocando em perigo as exigências da civilidade; no mun-
do transnacional ela se torna o problema de fronteira dos diaspóricos, dos migrantes,
dos refugiados. As divisões binárias do espaço social negligenciam a profunda
disjunção temporal – o tempo e o espaço de tradução – através da qual as comunida-
des de minoria negociam suas identificações coletivas. (BHABHA, 2010, p. 317)

Conforme a constatação do crítico dos estudos culturais, nas grandes concentra-


ções urbanas, os indivíduos oriundos de regiões cujos aspectos culturais contrastam com os
locais buscam, geralmente, agrupar-se em redutos, criando uma espécie de fronteira socio-
cultural virtual dentro da própria urbe. Esse comportamento – além de consistir num meio
de proteção contra processos discriminatórios – faz com que o estrangeiro, mesmo não se
negando a assimilar os costumes da nova conjuntura, procure preservar a memória coletiva
de seu povo, a partir da manutenção de aspectos culturais e identitários originais. Do mes-
mo modo, na narrativa de Antônio Torres, os personagens sertanejos no espaço urbano,

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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
com exceção a Totonhim, geralmente mostram-se, de início, maravilhados com o modo de
ser, de falar e de vestir dos habitantes, tentando reproduzi-lo, como é o caso de Nelo. Ao
mesmo tempo, eles procuram, nesse ambiente, dar continuidade a certas práticas específicas
de seu grupo, promovendo um processo de ajustamento em que se mesclam os hábitos no-
vos e antigos.
Totonhim, apesar de reconhecer no bairro paulistano de São Miguel Paulista um
simulacro da atmosfera dos vilarejos do interior baiano, não deixa de notar a pior qualidade
de vida que se tem no local, ao destacar seus aspectos negativos:

Sentiu-se no Junco. De alguma maneira. Olhou em volta. O que viu foi a feiura de
pequenos prédios que pareciam iguais uns aos outros, como se fossem engradados em
que as pessoas se engarrafavam para dormir dentro deles. Ruas maltratadas. Calça-
das estreitas. Mau cheiro nas esquinas. Não. Nada a ver com o Junco. [...] Não dava
para dizer que a vida num subúrbio de uma capital era igual à de uma cidadezinha
do interior. (TORRES, 2006, p. 141)

É importante frisar que a descrição dos ambientes, em Pelo fundo da agulha, em-
bora seja realizada por um narrador em terceira pessoa, é sempre relativa à perspectiva do
protagonista, no tempo em que os acontecimentos recordados ocorreram. Objetivando
apresentar um quadro que enfatiza a pobreza, o narrador dissemina no relato do passado
notações ligadas à ideia de abjeção e sujeira para descrever o bairro dos nordestinos, ilustran-
do, assim, o desamparo de um determinado setor da sociedade.
No subúrbio, Totonhim também frequenta temporariamente os bailes locais, os
“arrasta-pés, os populares mela-cuecas” (TORRES, 2006, p. 142), onde se reencontram mui-
tos emigrantes de Junco. Isso lhes propicia o compartilhamento das recordações da experiên-
cia comum no sertão, como, por exemplo, o problema da seca. Dessas reuniões, resulta um
trabalho mútuo de reconstrução do passado e, consequentemente, um processo de identifi-
cação com o outro. A prática espelha o funcionamento psíquico da memória coletiva, con-
forme descrito por Maurice Halbwachs, segundo o qual cada grupo localmente definido
possui uma memória própria, com uma representação exclusiva de seu tempo:

No primeiro plano de memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos


e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que resultam de
sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais próximos, os que estiverem
mais frequentemente em contato com ele. (HALBWACHS, 2006, p. 51)

O momento de comunhão com os conterrâneos reforça a memória coletiva de


Junco, amenizando o sofrimento pelo problema da distância para aqueles que, situados na

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metrópole, mas com o pensamento voltado para a terra natal, alimentam o desejo de retor-
no: “Lá, havia o sonho de partir. Aqui, o de voltar.” (TORRES, 2006, p. 142). No entanto,
Totonhim – com sua propensão ao desenraizamento, sem saudades do sertão e, na sua nega-
ção em posicionar-se à margem da sociedade urbana –busca romper com esse mesmo passa-
do, ao decidir, posteriormente, deixar de visitar o bairro suburbano e seus bailes, eliminan-
do, assim, definitivamente, qualquer tipo de contato com o povo de sua terra:

Com o passar dos dias, cansou-se das mesmas histórias dos parentes e aderentes que
acabou reencontrando:
— Eu carreguei você no meu ombro.
Ou:
— Sabe dizer se está chovendo por lá? (TORRES, 2006, p. 142)

Os encontros nos festejos em que se concentram os retirantes baianos eviden-


ciam o contraste: entre eles e o insatisfeito Totonhim. Diante dessas aglomerações, manifes-
ta-se no personagem a consciência do abismo entre ele e os outros, o dilema de sua inquietu-
de intelectual oposta à ausência, por parte daqueles que se divertem tranquilamente no
baile, de preocupações existenciais e de não-aceitação das forças que os esmagam, tornando
impossível a evolução social e espiritual.
Outra demonstração da natureza incompatível de Totonhim com a dos outros
emigrantes, em geral, e de sua vontade de se destacar socialmente na cidade está na relação
mantida com a jovem do subúrbio, Edileusa. Com ela, ele também deixa de se encontrar,
com o argumento de ter de se dedicar ao cumprimento de suas metas:

— Não dá mais para continuar vindo aqui todo fim de semana. Mas saiba que...
— É outra?
— Não. Não há outra. Necessidade de estudar. Inglês, francês, cursinho para o
vestibular... (TORRES, 2006, p. 143)

O local de enlace sexual com a moça, sempre em um terreno baldio da periferia,


denota, desde o início, o caráter do relacionamento entre os dois, baseado no gosto pelo pe-
rigo, na clandestinidade e no instinto, em detrimento do envolvimento afetivo. A imagem
dessa jovem suburbana preterida com quem Totonhim tem um caso opõe-se aos qualificati-
vos de Ana, por quem ele, logo em seguida, realmente se apaixona e com quem se casa:
paulista, estudante universitária, virgem, moradora do elitizado bairro de Higienópolis e
filha de um general reformado. Com a namorada “oficial”, até casar-se, “Houve um longo
protocolo a ser cumprido, cuidadosamente, degrau por degrau, na escalada das convenções.”
(TORRES, 2006, p. 148). Apesar de, na cidade, sustentar um comportamento que caracteriza,

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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
de certo modo, um sentimento de rejeição em relação aos migrantes de mesma origem, pela
falta de identificação com eles, o orgulho de Totonhim pela conquista da namorada paulista
e rica deflagra a existência de uma autoimagem inferiorizada:

No entanto, quando retornava aos braços de sua namorada, ganhava uma nova es-
tatura, crescia para si mesmo. A bela namorada era o símbolo de uma conquista,
com certeza a maior de todas, na cidade que tinha a voz cheia de dinheiro, e as filhas
de família estavam guardadas para pretendentes da mesma classe, ele imaginava.
(TORRES, 2006, p. 148)

Por outro lado, o casamento com Ana representa, para ele, após a aprovação no
concurso do banco, mais uma vitória na escalada rumo à realização de seus objetivos. O
matrimônio permite a Totonhim, se não fazer parte, de imediato, de uma classe social mais
alta, pelo menos inserir-se no universo referente a ela de maneira mais rápida. No centro
geográfico e social da metrópole paulista está a figura do general, pai de sua noiva, represen-
tante da autoridade, do poder, junto com os que habitam sua casa. Na periferia estão os re-
tirantes subjugados na base de uma relação de dominação hierárquica. Totonhim atravessa
essa fronteira de maneira transgressora: ao inserir-se na tradição paulistana ele rompe com
a interdição do homem nordestino, em geral, na urbe, a quem está reservado o confinamen-
to social nos redutos pobres.
Aqui caberia um entretítulo, por exemplo, Contexto histórico
Por meio das lembranças de Totonhim da convivência com a família da esposa, Antônio
Torres não deixa de explorar, no romance, mesmo que superficialmente, o contexto da dita-
dura militar brasileira. O processo político-histórico é abordado de maneira crítica, a partir
do artifício carnavalizante, segundo a concepção de Bakhtin (1996), de destronamento da
figura de autoridade que caberia ao general Bonifácio, sogro de Totonhim: “E esperava de-
frontar-se com uma figura rígida, austera, sistemática, capaz de comandar as mais cruéis
torturas, nos porões dos quartéis.” (TORRES, 2006, p. 160).
Em sua caracterização exterior, o personagem, apelidado de Bonzo, por ser gordo
e bonachão, destoa dos padrões físicos apropriados para a carreira militar. Afastado de suas
atribuições profissionais, numa inversão de papéis, ele vive em casa sob a vigilância da espo-
sa e da filha, aproveitando-se das oportunidades que surgem para beber escondido. Sua mor-
te também ocorre destituída de qualquer nobreza: o personagem mata-se com um tiro no
banheiro de casa, após chegar de uma festa com a família. Sendo o suicídio considerado um
ato de covardia dentro da corporação militar a que pertence, o fato foi, por isso, acobertado.
O período também é abordado a partir das recordações de Totonhim sobre o
amigo Bira, militante político de esquerda que é assassinado a tiros de metralhadora, junto
com a esposa, num ponto de ônibus na Praça da Sé. A morte brutal do personagem revolu-

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cionário põe em relevo a perspectiva da cidade como cenário de lutas políticas, de repressão
e de violência, durante os anos de totalitarismo no Brasil, dada a maior possibilidade de en-
contros e interações ideologicamente conflitantes que esse espaço promove.
Por ser caracterizado como um indivíduo que luta contra o sistema, Bira apresen-
ta-se como um personagem contrastante à imagem de Totonhim, acusado pelo amigo de ser
pouco politizado e de aderir facilmente às comodidades que o dinheiro pode comprar no
ambiente citadino:

Lembrou-se de seu amigo Bira, um verdadeiro irmão, a criticá-lo por entregar-se à


vida boêmia, como um deslumbrado pelos prazeres da cidade, e a ler os poetas e ou-
vir músicas românticas, quando deveria, até por questão de coerência em relação à
sua própria trajetória, interessar-se mais pelas lutas de classes. (TORRES, 2006, p. 159)

Totonhim, em seu programa de vida (não ser mais um retirante subjugado em


suas potencialidades na cidade grande) consegue inverter sua posição desfavorável na escala
social, ocupando, ao final de sua carreira, a posição de “chefe dos educadores corporativos do
banco número 1 do país (estatal), no seu estado mais poderoso, com status de ‘autoridade’,
tendo como jurisdição um universo de dez mil funcionários.” (TORRES, 2006, p. 40). Po-
rém, em seu percurso de ascensão, ele acaba tornando-se escravo do modo de vida na socie-
dade industrial, que impõe ao sujeito a ideia de autorrealização pessoal baseada na prioriza-
ção dos valores materiais, na aquisição de poder e na concepção de uma vida imediata. A
diretriz tomada pelo personagem retrata as tendências comportamentais no contexto socio-
cultural representado na obra, que pode ser interpretado sob a perspectiva de Edgar Morin,
segundo a qual o sistema de produção e as formas de difusão de seus produtos exercem in-
fluência sobre a maneira de ser e de pensar dos indivíduos. Para o sociólogo francês, na era
da indústria cultural:

Seus conteúdos essenciais são os das necessidades privadas, afetivas (felicidade,


amor), imaginárias (aventuras, liberdades), ou materiais (bem-estar). Mas é precisa-
mente isso que constitui sua força conquistadora. Em toda parte onde o desenvolvi-
mento técnico ou industrial cria novas condições de vida, em toda parte onde se es-
boroam as antigas culturas tradicionais, emergem as novas necessidades indivi-
duais, a procura do bem-estar e da felicidade. (MORIN, 1990, p. 159)

Nas cidades, de maneira mais evidente, as instituições, por regerem a vida cole-
tiva, controlam a conduta, estabelecendo padrões previamente definidos. Totonhim, em São
Paulo, buscando integrar-se a um modelo de identificação humana concebido segundo as
leis da sociedade de consumo, deixa-se moldar pela lógica disciplinadora e uniformizadora,

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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
que é um fator constitutivo dessa sociedade. Se, de um lado, ele atinge um nível de vida que
o livra da preocupação de suprir as necessidades materiais básicas para a sobrevivência, de
outro passa a ter sua existência regida por necessidades artificiais, das quais o poder se mos-
tra a mais ilusória, seguido de seus derivados: “Convites para eventos os mais variados. Co-
quetéis. Festas. Presentes. Bajulações. Inumeráveis amigos.” (TORRES, 2006, p. 40).
O personagem, que se recusava a compartilhar de uma vida alienadamente feliz
e resignada com seus conterrâneos na periferia, na sua nova classe social pode ser definido
também como um homem alienado, mais vítima passiva das instituições ético-sociais e de
seu implícito poder coercitivo do que agente capaz de modificar uma situação injusta. Em
sua luta contra o estado inicial de carência no espaço incógnito da cidade, Totonhim con-
quista tudo que almejava (reconhecimento profissional, amor e dinheiro) ao identificar-se
com a lógica e o ritmo que norteiam a mercantilização da vida urbana. Entretanto, somente
após aposentar-se, perdendo o emprego, a mulher e os privilégios que o status lhe garantia,
o personagem se dá conta de que, engolido por sua profissão, não passava de mais uma peça
no funcionamento de um sistema indiferente à individualidade do sujeito, à sua condição
humana. Assim, Totonhim retorna, de certo modo, à condição inicial, marcada por uma
falta, empreendendo, dessa vez por meio da memória, uma nova viagem, na qual retoma os
passos de sua história, agora com o objetivo de apreender o sentido dessa travessia.
Em sua retrospectiva de vida – com a lembrança do desejo de, na metrópole,
destacar-se em relação aos indivíduos de sua origem, ultrapassando a fronteira da margina-
lidade social–, Totonhim conscientiza-se do seu ingresso num processo de desenraizamento
em relação ao passado, comportamento apontado por sua própria esposa, Ana, na época da
separação dos dois:

— É exatamente aí que eu quero chegar. Nas suas escolhas. Continuando o que eu


vinha dizendo antes, pergunto: o que aconteceu com aquele cara com uma história
tão diferente da minha, e que eu admirava tanto? Acabou se tornando igualzinho a
mais um da minha família. Você quis ser como eles. E se perdeu de vista. Que merda,
hein, Filho? (TORRES, 2006, p. 181)

Essa fala da personagem Ana ilustra a observação de Tânia Pellegrini sobre uma
vertente da literatura que se acentua a partir da década de 1970, com foco no processo mi-
gratório brasileiro para as capitais, no qual “Atraído pela cidade, o homem do campo vê ir-
remediavelmente transformados sua vida, valores, usos e costumes, perdendo com as raízes,
a identidade.” (PELLEGRINI, 2002, p. 367)
Totonhim, no anseio de, por esforços próprios, estabelecer-se na nova sociedade
em que adentra, acaba perdendo a identificação não apenas com seus conterrâneos que
vivem no espaço urbano de São Paulo, mas também com seus ancestrais. A fim de afirmar

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os valores da revolta e do individual para se aproximar da imagem do “outro”, num universo
onde somente o presente interessa, ele rompe os laços familiares, numa forma de renúncia
ao pai, ao clã, à origem e ao passado. Dada sua posição temporalmente fraturada entre pas-
sado e presente, entre mundo rural e mundo urbano, o personagem procura, então, formu-
lar uma perspectiva lógico-racional da vida, tentando restaurar a identidade perdida, sobre
a qual a origem campesina tem importância fundamental. O romance retrata, assim, o
drama de um indivíduo que é mais vítima de si mesmo do que da situação de retirante nor-
destino na grande cidade, ao emaranhar-se à conformação de um sistema em que o sujeito
vale tão somente pelo que possui.

Conclusão
Em Pelo fundo da agulha, a cidade mostra-se, paradoxalmente, símbolo de conquista e sinal
de decadência. Ao chegar a essa terra estrangeira, Totonhim, dada sua visão mais esclarecida,
não demonstra sofrer com os costumes diferentes, com o preconceito, a rejeição, ou com a
solidão material e espiritual, obstáculos comuns àqueles que chegam à cidade grande nas
mesmas condições. Todavia, ele passa a sentir na pele essas dificuldades e a problematizar
sua situação, seu lugar na cidade, ironicamente, depois de trinta anos vivendo em São Paulo.
Ele é levado a um sentimento de não-pertencimento por estar fora do mercado de trabalho
e não por sua condição de migrante nordestino. Desse modo, o romance questiona não so-
mente o lugar que a nação brasileira reserva ao retirante nordestino, mas também ao traba-
lhador aposentado ou desempregado no mundo globalizado.
A problemática do lugar do retirante na sociedade metropolitana é retratada de
maneira mais autêntica ou profunda, na situação dos nordestinos que se aglomeram na pe-
riferia de São Paulo, com a impossibilidade de se reintegrarem à vida primitiva no sertão e
tampouco de se inscreverem numa nova ordem. A partir da imagem que o narrador constrói
deles e das condições em que vivem, o romance reflete o marginalismo do emigrante, com-
primido entre os processos de decadência rural e de degradação urbana. Expressa um ângu-
lo de visão que implica na descrença de um mundo agrário obsoleto, cujo esfacelamento,
promovido pelo progresso industrial e pelo desamparo governamental, obriga a emigração
para o centro urbano que, por sua vez, conduz à perda da dignidade na precariedade dos
subúrbios e nos subempregos.
Embora a história de Totonhim também reproduza o declínio da família patriar-
cal rural, ela concentra-se nas formas de competição social e de alienação no espaço urbano,
que surge como agente de um processo que desumaniza o indivíduo. Apesar de tanto a cida-
de quanto o campo, no romance, constituírem espaços de opressão, a trajetória de Totonhim
não espelha o destino do sertanejo nordestino que se aventura no universo urbano. Com o
relato do percurso desse personagem, a figura do retirante é retirada de seu lugar subjugado.

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Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
O protagonista, com sua história de vitórias, mas também de reveses, recusa o papel de víti-
ma da seca e da sociedade urbana e, ao mesmo tempo, o de salvador da esperança de seu
povo, revelando a postura, por parte de Antônio Torres, de rejeitar uma imagem emblemá-
tica e previsível do retirante.

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TORRES, Antônio. Essa terra. 20ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005

________. O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro: Record, 1997

________. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Record, 2006

Rogério Gustavo Gonçalves


33
Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres: a insólita trajetória de um retirante na cidade contemporânea
Literatura para além dos
gêneros literários: a escrita de
Eduardo Galeano

Literature beyond the literary genres:


the wrinting of Eduardo Galeano

Ailton Magela de Assis Augusto


Prof. do IFET Sudeste de Minas Gerais/
Campus São João del Rei. Aluno do
mestrado em Estudos Literários da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Juiz de Fora.

ailton.augusto@ifsudestemg.edu.br

Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


Prof. Dra. de Literatura Brasileira do
DELET da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Juiz de Fora.

teresinha.zimbrao@ufjf.edu.br
Resumo Abstract
Neste trabalho, busca-se confrontar dois In this work we seek to confront two moments of
momentos da escrita do uruguaio Eduardo writing of the uruguayan Eduardo Galeano and
Galeano e analisar as estratégias de composição analyze composition strategies employed by the
empregadas pelo autor a partir dos anos 1980 e author since the years 1980 and that would make
que permitiriam ler seus textos como parte do it possible to read his texts as part of Latin
cânone literário latino-americano, a contrapelo American Literary Canon, against the grain of
daqueles que preferem enxergar apenas o those who prefer to see only the journalist or
jornalista ou ensaísta autor de As veias abertas da essayist, author of Open Veins of Latin America.
América Latina.
Keywords: Eduardo Galeano; literary writing;
Palavras-chave: Eduardo Galeano; escrita Latin American narrative.
literária; narrativa latino-americana.
H
omenageado internacional da II Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada
em Brasília em abril deste ano, Eduardo Galeano teve um gesto significativo
com relação à autoavaliação de suas obras, relativizando a importância de seu
livro Las venas abiertas de América Latina (1971). O escritor uruguaio não
renegou sua obra mais alardeada – significativamente escolhida pelo falecido presidente
venezuelano Hugo Chávez para presentear Barack Obama, mandatário dos EUA, na 5ª
Cúpula das Américas, em 2009. No entanto, Galeano a qualificou como uma leitura
enfadonha, vinculando essa característica ao fato de se tratar de prosa de esquerda tradicional.
1 | Cf. http://www.perfil.com/
Ele disse ainda que se trata de uma etapa superada1. politica/Eduardo-Galeano-
Interessaria, pois, verificar em que sentido se deu essa superação. Nossa hipótese No-volveria-a-leer-Las-
venas-abiertas-de-America-
é de que se tratou de uma opção, feita pelo escritor a partir do final da década de 1980, de Latina--20140501-0022.html.
Acesso: 19 jul. 2014
veicular suas ideias em textos menos presos aos esquemas discursivos da esquerda, abrindo
passo pela seara da criação literária, sem restringir-se, contudo, a um gênero literário em
particular. Ou seja, um autor cuja carreira se iniciou no jornalismo combativo dos anos 60
e 70, com participação na edição de revistas como Marcha e Crisis (esta última com atividades
interrompidas em função do golpe militar na Argentina em 1976), decidiu, em algum mo-
mento, empreender caminhos novos para a discussão da realidade latino-americana – em
particular – e de temas contemporâneos que dizem respeito à humanidade de modo geral.

Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


37
Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeno
Esses caminhos novos foram-se construindo pela articulação de distintos textos,
tramas e vozes em obras que vão configurando o ponto de inflexão que estamos buscando
determinar. Além do já mencionado Las venas abiertas, Galeano também publicou naquelas
décadas Vagamundo (1973), La canción de nosotros (1975), Días y noches de amor y de guerra (1978)
e a trilogia Memoria del Fuego, editada entre 1982 e 1986 e que rendeu ao autor prêmios do
Ministério de Cultura do Uruguai e também o American Book Award, da Washington Uni-
versity (EUA), em 1989. Essas obras já transitam entre distintos gêneros – jornalismo, narra-
tiva, testemunho e discurso historiográfico – restando saber se os rótulos dão conta de clas-
sificá-las. O próprio autor, no prólogo do primeiro volume de Memoria del Fuego, diz não
perder o sono por causa dessa questão.
Días y noches de amor y de guerra, por exemplo, é precedido de uma pequena nota
que o apresenta como um relato de fatos realmente acontecidos, escritos conforme foram
guardados pela lembrança do autor com modificação de poucos nomes. Mesmo sendo pou-
cos, os nomes modificados denotam, segundo o crítico espanhol José Ramón González, a
noção que Galeano possui (e torna explícita para os leitores) de que a representação é uma
falácia. Contendo um repertório amplo de personagens, que trazem uma polifonia de vozes
ao discurso do autor/narrador, o livro é mais que “un mero relato de explícita denuncia y
prolija descripción de agravios” (GONZÁLEZ, 1998, p. 101).
Em 1989, Galeano publica El libro de los abrazos, obra em que essa polifonia discur-
siva, apoiada em uma multiplicidade de gêneros ou possibilidades narrativas parece consoli-
dar-se como modo de escrita e de trabalho. Dito de outro modo,

Sería, sin embargo, hacer un flaco favor al esfuerzo creativo del autor el considerar El
libro de los abrazos como una simple miscelánea o un centón de materiales dispersos.
Todos los textos que componen el libro se ofrecen ante el lector como producto de una
misma actividad, la memoria - lo que, dicho sea de paso, significa situar la unidad de
la obra en una instancia pre-enunciativa. El libro es ejercicio de la memoria, o, mejor,
memoria que se pone en ejercicio con el fin de recupearar (individualmente) y rescatar
(también para los otros) todo un universo de experiencia. (GONZÁLEZ, 1998, p. 103)

O autor não se inscreve mais no texto como o exilado que conta suas experiências
de modo mais ou menos distante do modelo de testemunho ou como o pesquisador que reúne
distintas vozes para recontar a história latino-americana à margem dos conteúdos escolares.
Aqui ele se apresenta como alguém tocado pela “pasión de decir”, expressão que intitula um
dos fragmentos constituintes do livro. Neste fragmento é descrita a representação que índios
do Novo México fazem dos contadores de histórias: uma pessoa de quem brotam várias pessoi-
nhas. Podemos ver Galeano como esse homem grávido de outras pessoas, mas é preciso ter em
conta que, para ele, o contar não é

Cerrados nº 38
38
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
una actividad intrascendente, un mero entretenimiento, sino la posibilidad muy efec-
tiva de crear la realidad y de construir la historia del sujeto (en todas sus acepciones)
desde la propia escritura que vendrá a constituirse así en tarea plenamente poética
o creadora. (GONZÁLEZ, 1998, p. 103)

Também parece ser um contador de histórias quem se mostra em Celebración de la


amistad/2. Nesse relato, cuja forma evoca a tradição oral, pois Galeano reconta o que
supostamente ouviu ao escritor argentino Juan Gelman, somos apresentados ao inusitado caso
de uma senhora que ataca operários que caçavam pombos em Paris. Brandindo seu guarda-
chuva, ela liberta os pássaros para espanto dos trabalhadores que “(...) no atinaron más que a
protegerse, como pudieron, con los brazos, y balbuceaban protestas que ella no oía: más respeto,
señora, haga el favor, estamos trabajando, son órdenes superiores, señora, qué bicho la picó, se
ha vuelto loca esta mujer…” (GALEANO, 2000, p. 187). A explicação da senhora é ainda mais
espantosa: segundo ela, seu filho morreu e se transformou em pomba. Ancorados na estreita
realidade de suas obrigações laborais, os operários sugerem que a senhora leve seu filho consigo
e os deixe trabalhar em paz. Porém, ela se recusa a fazê-lo, e nisso reside a celebração da amizade
que intitula o relato:

- ¡Ah, no! ¡Eso sí que no!


Miró a través de los obreros, como si fueran de vidrio, y muy serenamente dijo:
- Yo no sé cuál de las palomas es mi hijo. Y si supiera, tampoco me lo llevaría. Porque,
¿qué derecho tengo yo a separarlo de sus amigos? (GALEANO, 2000, p. 188) – fala
da personagem em itálico no original.

Um texto como esse, tanto em termos temáticos como compositivos parece pro-
var a opção do autor pela literatura, pela escrita por metáforas, matizada por um entusias-
mo ou encantamento com relação a valores como a amizade, mesmo quando esses são entre-
vistos em situações inusitadas.
Se essa opção parece clara, resta verificar de que maneira ela se articula com o afã
crítico e transformador que presidiu a escrita de Las venas abiertas, obra hoje tida por supe-
rada. De que maneira Galeano mantém, na literatura, uma postura engajada frente ao mun-
do? É o que tentaremos mostrar na seção seguinte com uma leitura mais extensa de alguns
dos textos do autor, mostrando as ligações que ele constrói ao convocar distintos fragmentos
para compor suas obras.

Uma leitura possível de Eduardo Galeano


Como dissemos, a opção pela literatura representa, em Galeano, uma mudança de caminho,
mas não de rumo. Isso fica evidente na crítica feita por ele ao esvaziamento de autenticidade

Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


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Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeno
nas relações sociais no texto El sistema/2. Em poucas linhas o escritor faz uma condenação
da atitude da sociedade frente à encruzilhada de uma moral dupla, construída de acordo
com as conveniências:

Tiempo de los camaleones: nadie ha enseñado tanto a la humanidad como estos hu-
mildes animalitos.
Se considera culto a quien bien oculta, se rinde culto a la cultura del disfraz. Se habla
el doble lenguaje de los artistas del disimulo. Doble lenguaje, doble contabilidad,
doble moral: una moral para decir, otra moral para hacer. La moral para hacer se
llama realismo.
La ley de la realidad es la ley del poder. Para que la realidad no sea irreal, nos dicen
2 | Optamos por nos los que mandan, la moral ha de ser inmoral. (GALEANO, 2000, p. 136).2
reportarmos aos textos
em sua língua original,
porém a obra em estudo já
Comparando a humanidade aos camaleões, Galeano ressalta as mudanças de
se encontra traduzida ao
português: GALEANO, E. O conduta e pensamento que são feitas por interesse – características do atual modo de orga-
livro dos abraços. Trad. de
Eric Nepomuceno. 2ª ed. nização de nossas sociedades. O alvo da crítica é claro, como indicam as referências tex-
Porto Alegre: L&PM, 2005.
tuais à lei do poder e aos ditames dos que mandam.
3 | Referimo-nos aqui ao No marco da arte contemporânea, que alberga distintas posturas e propostas,
texto La dignidad del arte,
também presente em El Eduardo Galeano destaca-se por ser capaz não apenas de criticar a postura dissimulada da
libro de los abrazos. Nesse
sociedade, mas também de comprometer-se com a dignidade da arte, escrevendo para
texto, Galeano diz que, nos
momentos de desânimo aqueles excluídos que não podem ler seus textos por viver “en la cola de la historia”3 , atri-
frente à realidade de seus
leitores, ele se lembra de buindo a si e aos seus escritos a função de apresentar alternativas ao paradigma atual. A
um espetáculo que assistiu
esse respeito, segundo o já citado González, persiste em Galeano uma “concepción del arte
na Itália em um teatro
vazio, junto apenas de como instrumento capaz de transformar la realidad y el convencimiento de la vigencia de
sua companheira Helena
Villagra, do bilheteiro e do ciertas explicaciones globales de la mundo [sic] y de la condición humana desde una pers-
lanterninha. Apesar disso,
pectiva de compromiso ideológico-político” (GONZÁLEZ, 1998, p. 101).
os atores representaram
seus papeis normalmente, Poderíamos dizer que um dos traços característicos dessa escrita que se quer
entregando-se por inteiros.
plural é a abertura de espaços, nos textos, para cosmovisões que discrepam daquela que
enxerga na dominação o único caminho para um indivíduo relacionar-se com outros e
com a natureza. Essas cosmovisões são apresentadas em linguagem metafórica como acon-
tece no texto Las tradiciones futuras em que Eduardo Galeano, sob um título no mínimo
curioso, convoca as vozes “teimosamente vivas” do passado americano para mostrar a li-
gação entre os seres humanos e a terra (ligação que a lógica racionalista da modernidade
parece ter descaracterizado) e apontar para a possibilidade de um futuro diferente:

Hay un único lugar donde ayer y hoy se encuentran y se reconocen y se abrazan, y


ese lugar es mañana.
Suenan muy futuras ciertas voces del pasado americano muy pasado. Las antiguas

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
voces, pongamos por caso, que todavía nos dicen que somos hijos de la tierra, y que
la madre no se vende ni se alquila. Mientras llueven pájaros muertos sobre la ciudad
de México, y se convierten los ríos en cloacas, los mares en basureros y las selvas en
desiertos, esas voces porfiadamente vivas nos anuncian otro mundo que no es este
mundo envenenador del agua, del suelo, el aire y el alma.
También nos anuncian otro mundo posible las voces antiguas que nos hablan de co-
munidad. La comunidad, el modo comunitario de producción y de vida, es la más
remota tradición de las Américas, la más americana de todas; pertenece a los prime-
ros tiempos y a las primeras gentes, pero también pertenece a los tiempos que vienen
y presiente un nuevo Nuevo Mundo. Porque nada hay menos foráneo que el socialis-
mo en estas tierras nuestras. Foráneo es, en cambio, el capitalismo; como la viruela,
como la gripe, vino de afuera. (GALEANO, 2000, p. 101).

Indicando a relação de pertencimento existente entre os homens e a terra – filhos


e mãe intimamente ligados de acordo com a cosmovisão indígena –, o texto chama a atenção
para o outro mundo anunciado por essas vozes antigas. Vozes cujo alcance começa a ser per-
cebido no atual contexto de crise ambiental. Frente a um paradigma de desenvolvimento não
funcional, gerador de um mundo que envenena a água, o solo, o ar e a alma, o texto encontra
em outra matriz cultural a possibilidade de remodelar dito paradigma e apresenta o mundo
sob outra luz.
Essa outra luz é constituída pelas tradições futuras emanadas da cosmovisão indí-
gena, convocada para fortificar nossa visão do universo e ampliar tanto as possibilidades de
entendimento da realidade quanto as de (inter)conexão com outras pessoas e seres. É igual-
mente sob essa luz que podemos estabelecer um pacto de leitura capaz de entender outras
articulações feitas por Galeano e que mobilizam o leitor em uma tarefa

que no tiene, en principio, límites ni cierres preestabelecidos. El frag-


mento lo es, simultáneamente, de la obra en que entra a formar parte
y, desde la perspectiva del lector que lo reconoce, del mundo implícito
cuya recuperación imaginativa corre a cargo del receptor” (GONZÁ-
LEZ, 1998, p. 105).

Permitimo-nos, aqui, estender um pouco o escopo de nossa análise e exemplifi-


car essas articulações com os textos El agua e Los dueños del agua, presentes em Bocas del
tiempo, livro lançado em 2004. O primeiro texto parece ser enunciado pelo Galeano con-
tador de histórias, aquele capaz de resgatar um mito da costa colombiana do Pacífico e
tratá-lo como uma versão alternativa do livro de Gênesis. De acordo com esse mito, “al
principio de los tiempos, la hormiga no tenía la cintura finita (…) era redonda y estaba

Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


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Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeno
toda llena de agua” (GALEANO, 2004, p. 64), porém ela se negou ajudar Deus a molhar o
mundo e “los dedos de Dios le estrujaron la panza. Y así nacieron los siete mares y todos
los ríos” (GALEANO, 2004, p. 64). O outro texto, não por acaso disposto na página seguin-
te, inicia-se com uma frase em que o jornalista das décadas anteriores se faz ouvir: “hay
empresas que son como esa hormiga, pero mucho más grandes” (GALEANO, 2004, p. 65)
e, na sequência é descrita a “guerra da água” ocorrida em Cochabamba, Bolívia. A exem-
plo do que ocorreu no mito colombiano, foi preciso pressionar a pança da formiga, nesse
caso a multinacional Bechtel, para obter água, e Galeano é irônico ao sentenciar as moti-
vações daqueles que organizaram o movimento, dizendo que o fizeram “por atraso cultu-
ral. Los bolivianos pobres, que son casi todos, ignoran que deben bañarse una vez al día,
como es costumbre en Europa desde hace quince minutos, y también ignoran que deben
lavar el auto que no tienen” (GALEANO, 2004, p. 65).
Retornando a El libro de los abrazos e ao resgate da concepção indígena do mun-
do promovido pelo escritor, cumpre destacar a ênfase à noção de comunidade e ao valor
4 | Numa tribo indígena, atribuído à coletividade4, conceito exemplarmente ilustrado no texto Los indios/3. Esse
a noção de coletividade
é muito maior e mais texto é o segundo na sequência do já citado Las tradiciones futuras, o que entendemos ser
significativa do que a que uma posição pensada estrategicamente pelo autor. Entre um e outro, uma irônica reflexão
conhecemos em nossa
sociedade. Mesmo por uma sobre a poluição do mundo, uma catástrofe explicável somente pela decisão do homem de
forte busca da sobrevivência,
o indivíduo só é fraco e abdicar “el planeta (...) en favor de las cucarachas” (GALEANO, 2000, p. 102)5.
impotente, ele só se torna um Se em Las tradiciones futuras a evocação das vozes ameríndias tinha por obje-
indivíduo na sua totalidade
se estiver intrinsecamente tivo apontar uma alternativa para a degradação ambiental – tema retomado no texto se-
ligado a uma coletividade. O
pensamento individual e o guinte –, ao falar dos índios na sequência da obra o autor busca demonstrar o processo de
pensamento coletivo unidos. extermínio a que essas populações foram submetidas e que explicaria por que as vozes que
(CÂNDIDO, Ana Virginia
et. al. Trançado. Disponível falam da Mãe-Terra e da produção comunitária soam confinadas ao passado, embora sua
em: http://www.eba.ufmg.
br/alunos/kurtnavigator/ mensagem seja tão atual:
arteartesanato/trancado.
html. Acesso: 19 jul. 2014)
Jean-Marie Simon lo supo en Guatemala. Ocurrió a fines de 1983, en una aldea lla-
5 | Referimo-nos aqui
ao texto El reino de las mada Tabil, en el sur del Quiché.
cucarachas, também presente Los militares venían cumpliendo su campaña de aniquilación de las comunidades
em El libro de los abrazos.
indígenas. Habían borrado del mapa a cuatrocientas aldeas en menos de tres años.
Quemaban plantíos, mataban indios: quemaban hasta la raíz, mataban hasta los
niños. Vamos a dejarlos sin semilla, anunciaba el coronel Horacio Maldonado Shadd.
Y así llegaron, una tarde, a la aldea de Tabil. (GALEANO, 2000, p. 103).

Chegando a Tabil, os militares entregam à comunidade cinco prisioneiros “allí


nacidos, allí vividos, allí multiplicados”, mas que, segundo o oficial, eram cubanos e inimi-
gos da Guatemala. A decisão e a execução do castigo são deixadas a cargo da aldeia e é aí, sob
a pressão dos acontecimentos, que a noção de comunidade se faz sentir:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
En asamblea, los indios discutieron:
- Estos hombres son nuestros hermanos. Estos hombres son inocentes. Si no los mata-
mos, los soldados nos matan.
La noche entera pasaron discutiendo. Los prisioneros, en el centro de la reunión, es-
cuchaban.
Llegó el amanecer y todos estaban como al principio. No habían llegado a ninguna
decisión y se sentían cada vez más confusos.
Entonces pidieron ayuda a los dioses: a los dioses mayas y a los dioses cristianos.
En vano esperaron la respuesta. Ningún dios dijo nada. Todos los dioses estaban mudos.
Mientras tanto, los soldados esperaban, en algún monte de los alrededores.
La gente de Tabil veía cómo el sol se iba alzando, implacable, hacia lo alto del cielo.
Los prisioneros, de pie, callaban.
Poco antes del mediodía, los soldados escucharon los balazos. (GALEANO, 2000, p.
104) – destacado no original.

A confusão referida pelo narrador demonstra o colapso da noção de coletividade


diante do ardil colocado pelo homem branco. Nesse enquadre, é lícito supor que a decisão
final de executar os prisioneiros funda-se, apesar de tudo, na mesma noção porque a atitude
extrema dos índios foi tomada no intuito de tentar preservar os demais membros da aldeia.
Se nesse relato está representado um paradigma de dominação e individualismo
típico da modernidade, em outro texto de El libro de los abrazos encontramos um gesto indi-
cativo das alternativas a esse modelo de sociedade baseado na exploração do ser humano.
Crónica de la ciudad de La Habana, nos conta a história de um emigrado cubano que re-
torna ao seu país com a intenção de conhecê-lo, pois seus pais partiram para Los Angeles
pouco tempo após a revolução de 1959. Em sua busca por conhecimento, o personagem
Nelson Valdés vai todos os dias à biblioteca e passa as tardes lendo. Um dia, porém, sua via-
gem de ônibus até a biblioteca é interrompida pelo interesse do motorista por uma mulher
que atravessa a rua e que ele irá cortejar:

– Me disculpan, caballeros – dijo el conductor de la guagua 68, y se bajó. Entonces


todos los pasajeros aplaudieron y le desearon buena suerte.
El conductor caminó balanceándose, sin apuro, y los pasajeros lo vieron acercarse a
la muy salsosa, que estaba en la esquina, recostada a la pared, lamiendo un helado.
Desde la guagua 68, los pasajeros seguían el ir y venir de aquella lengüita que besa-
ba el helado mientras el conductor hablaba y hablaba sin respuesta, hasta que de
pronto ella se rio, y le regaló una mirada. El conductor alzó el pulgar y todos los pa-
sajeros le dedicaron una cerrada ovación. (GALEANO, 2000, pp. 40-41) – fala do
personagem em itálico no original.

Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


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Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeno
Após uma primeira reação positiva, representada por uma ovação de aprovação
ao flerte do motorista, os passageiros passam à inquietação e ao desespero ao ver que ele
abandona seu trabalho para seguir a maravilhosa passante.

Entonces avanzó, desde los asientos de atrás de la guagua 68, una mujer que parecía
una gran bala de cañón y tenía cara de mandar. Sin decir palabra, se sentó en el
asiento del conductor y puso el motor en marcha. La guagua 68 continuó su recorri-
do, parando en sus paradas habituales, hasta que la mujer llegó a su propia parada
y se bajó. Otro pasajero ocupó su lugar, durante un buen tramo, de parada en para-
da, y después otro, y otro, y así siguió la guagua 68 hasta el final.
Nelson Valdés fue el último en bajar. Se había olvidado de la biblioteca. (GALEANO,
2000, p. 41).

A atitude da passageira de assumir o lugar do motorista em benefício próprio e


dos demais passageiros exemplifica a retomada da noção de coletividade. Em lugar de lamen-
tar-se pela conduta do profissional, essa senhora toma uma atitude que indica não apenas a
importância do trabalho de quem conduz a guagua 68, mas mostra o quanto o empenho de
cada indivíduo em prol dos outros pode ajudar na solução de problemas que afligem a todos.
Essa doação aos outros se torna extrema no caso de Nelson Valdés, quem se esqueceu de seu
compromisso na biblioteca e conduziu o ônibus até o final do trajeto.

Considerações finais
Não foi nossa intenção apresentar uma leitura exaustiva dos textos literários de Eduardo
Galeano, até porque suas obras são compostas, como dissemos, por diferentes e numerosos
fragmentos, cuja montagem e interpretação dependerá de cada leitor(a). Em todo caso, espe-
ramos haver demonstrado com nossos apontamentos e exemplos de leitura que essa escrita
múltipla, avessa às categorizações literárias, não representa uma mudança de rumo na ativi-
dade do autor, sendo antes o caminho encontrado por ele para continuar produzindo segun-
do suas posições político-ideológicas, mas sem se prender ao que ele chamou “prosa de es-
querda tradicional”, com seus esquemas rígidos e consequente ônus para o leitor, obrigado a
enfrentar obras enfadonhas. Para finalizar, deixamos o convite para que mais pessoas to-
mem contato com os escritos desse escritor uruguaio e encontrem neles um espaço de en-
cantamento e reflexão.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
CÂNDIDO, Ana Virginia et. al. Trançado. Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/alunos/kurtnavigator/
arteartesanato/trancado.html>. Acesso em: 19 jul. 2014

GALEANO, Eduardo. Bocas del tiempo. Buenos Aires: Catálogos, 2004

GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, Catálogos, 1989. Versão
eletrônica (sem os desenhos do original): P/ L@ [Para leer por e@mail], 2000. Disponível em: < http://ar.
groups.yahoo.com/group/paraleer/files/Almacen.htm>. Acesso em: 02 out. 2009

GONZÁLEZ, José Ramón. La estrategia del fragmento "El libro de los abrazos" de Eduardo Galeano.
Castilla: Estudios de literatura. Nº 23. Valladolid (Espanha). 1998, págs. 99-108. Disponível em: < http://
dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=136251>. Acesso em: 20 jul. 2014

Ailton Magela de Assis Augusto | Teresinha Vânia Zimbrão da Silva


45
Literatura para além dos gêneros literários: a escrita de Eduardo Galeno
Identificações transversais e
focalização narrativa em
Tia Júlia e o escrevinhador,
de Mario Vargas Llosa

Transversal identification and


narrative focus on Tia Júlia e o
escrevinhador, Mario Vargas Llosa

Jorge Alves Santana


UFG –Universidade Federal de
Goiás/UFMG –Universidade
Federal de Minas Gerais,
Goiânia-GO, Brasil, Doutor
em Letras, Pós-Doutorando
em Teoria Literária, Professor
Associado II.

jorgeufg@bol.com.br
Resumo Abstract
“Eu estudava na San Marcos, Direito [...] embora, “I studied in San Marcos, Law School […]
no fundo, me agradasse mais chegar a ser escritor”. Although, deep down, it pleased me becoming a
Inicia-se, assim, o romance Tia Júlia e o escrevinhador writer”. Begins, this way, the romance Tia Júlia e o
(1977), de Mario Vargas Llosa. Analisaremos, aqui, escrevinhador (1977), Mário Vargas Llosa. We are
identidades transversais nas formações discursivas e going to analyse transversal identities in the
subjetivas, que dizem respeito ao “eu narrador” e ao discursive and subjective formations, regarding
“eu narrado”; à inusitada enunciação, dinamizada the “me narrator” and the “me narrated”; the
pela técnica do discurso indireto livre e pelos vasos unusual enunciation, optimized by the free
comunicantes; e, por fim, ao painel sociocultural indirect speech technique by the communicating
peruano e latino-americano, base para a rizomática vessels; and, lastly, the Peruvian and Latin-
formação do autor. American painel, groundwork for the author’s
rhizomatic formation.
Palavras-chave: Mario Vargas Llosa, Tia Júlia e o
escrevinhador, identificações Transversais, discurso Keywords: Mário Vargas Llosa, Tia Júlia e o
indireto livre, vasos comunicantes. escrevinhador, transversal identities, free indirect
speech, communicating vessels.
Naquela época remota, eu era muito jovem e morava com meus avós numa casa de
vila de paredes brancas na rua Ocharán, em Miraflores. Estudava na San Marcos,
Direito, acho, resignado a, mais tarde, ganhar a vida com uma profissão liberal,
embora, no fundo, me agradasse mais chegar a ser escritor.
Mário Vargas Llosa, 2012, p. 8.

Tal vez el atributo principal de la vocación literaria sea que quien la tiene vive el
ejercicio de esa vocación como su mejor recompensa, más, mucho más, que todas
las que pudiera alcanzar como consecuencia de sus frutos.
Mário Vargas Llosa, 2008, p. 6.

Mas por que haveria o meu devaneio de conhecer minha história? O devaneio
estende a história até os limites do irreal. Ele é verdadeiro, a despeito de todos os
anacronismos. É multiplamente verdadeiro nos fatos e nos valores.
Gaston Bachelard, 1988, p. 117.

O
romance Tia Júlia e o escrevinhador, do peruano vencedor do prêmio Nobel Mário
Vargas Llosa, é publicado em 1977. Sua narrativa é feita por meio de capítulos dis-
postos por vasos comunicantes, que nos dão sequências temáticas pertinentes às
aventuras biografemáticas do autor. Esses biografemas literários perfazem a vida
pessoal e a formação como escritor literário do próprio Llosa, aos seus dezoito anos. E também
se ficcionaliza, de modo humorado, crítico e inclusivo, uma das paixões da América-Latina, que
foram as radionovelas. Em prefácio a essa narrativa, o autor nos conta que:

Comecei este romance em Lima, em meados de 1972, e continuei escrevendo, com


múltiplas e, às vezes, longas interrupções, em Barcelona, La Romana (República
Dominicana), Nova York e de novo Lima, onde o terminei quatro anos depois. Me foi
sugerido por um autor de radionovelas que conheci quando jovem, cuja lucidez foi
devorada por algum tempo por suas histórias melodramáticas. Para que o romance
não resultasse artificial demais, tentei acrescentar-lhe uma collage autobiográfica:
minha primeira aventura matrimonial. Esse empenho serviu para que eu compro-
vasse que o gênero romance não nasceu para contar verdades, que estas, ao passar
para a ficção, transformam-se sempre em mentiras (quer dizer, umas verdades duvi-
dosas e inverificáveis) (LLOSA, 2012, p. 7).

Jorge Alves Santana


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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
O narrador-protagonista, ao iniciar sua ficção, nos demonstra sua condição nômade, pois
após os fatos narrados, já aos vinte e seis anos, deixara o Peru e viajara para vários países com
a finalidade de estudar para conseguir compreender, de modo mais producente, as possibili-
dades de viver profissionalmente da escrita literária, no que esse fenômeno artístico teria de
mais sofisticado e enobrecedor. Foi na adolescência, pois, um aspirante, a entrar no locus da
literatura canônica, movido pelas leituras que faz dos grandes autores universais. Assim,
pretende ser capaz de escrever obras literárias e ter a consciência da ação que executa. O que
é indicado por essa narrativa de Llosa, por suas demais ficções e por obras de teoria e crítica
literárias que são recorrentes em sua grande produção.
Ao lado das particularidades tragicômicas que o romance em questão enseja, ve-
mos que também se delineia um complexo e rico painel da sociedade e da cultura peruanas,
bem como as relações que essa dimensão sociocultural mantém com os demais países latino-
-americanos, principalmente com a Bolívia – espaço de origem de duas personagens que di-
namizam o enredo – e com a Argentina – sociedade que é foco de sátiras e críticas constan-
tes. Ou seja, o espaço latino-americano funcionará como material coletivo que emoldura e
sobredetermina as produções de ações, de valores e de subjetivações presentes na narrativa.
Sem nos esquecermos de que sua determinação também é perspectivada pelas relações que
o intelectual latino-americano mantém com as tecnologias de produção artística advindas
do continente europeu; espaço das utopias do protagonista Varguitas, apelido que Mário
Vargas Llosa usa para si mesmo nesse romance.
Tia Júlia e o escrevinhador apresenta-nos basicamente quatro grandes núcleos ac-
cionais: a formação do protagonista Varguitas, que cursa Direito na Universidade San Mar-
cos por imposição dos pais, mas que deseja ser escritor profissional e capaz de compreender
consciente e criticamente sua produção artística; a fascinação e o acompanhamento minu-
cioso que o protagonista faz em relação ao trabalho instigante e industrial do boliviano Pe-
dro Camacho, que escreve radionovelas para a Rádio Central, em Lima; as aventuras melo-
dramáticas que envolvem o casamento de Varguitas com a tal Tia Júlia, membro de sua fa-
mília e mais velha que ele, sob as contrariedades de seus pais; e, por fim, as próprias estórias
que conformam as novelas melodramáticas, de Pedro Camacho, que tomam capítulos inte-
grais na narrativa.
Dois locus de vivências pessoais atravessam institucionalmente a arquitetura nar-
rativa, que são os lugares de trabalho da protagonista. Temos a Rádio Panamericana e a
Rádio Central. Ambas as empresas limenhas são dos mesmos donos; no entanto, suas linhas
de produção se diferenciam para atender a sociedade local. A primeira é mais conservadora
e de classe média, enquanto a segunda atende aos interesses das classes mais populares. Ve-
jamos como o narrador as configura:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Tinha um trabalho de título pomposo, salário modesto, apropriações ilícitas e horário
flexível: diretor de Informações da Rádio Panamericana. Consistia em recortar as
notícias interessantes que apareciam nos jornais e maquiá-las um pouco para que fossem
lidas nos boletins. [...] A Rádio Central, ao contrário, ficava espremida numa velha casa
cheia de pátios e desvãos, e bastava ouvir seus locutores informais, que abusavam da
gíria, para reconhecer sua vocação pelas multidões, plebeia, nacionalíssima. Ali se
divulgavam poucas notícias, e ali a música peruana era rainha e senhora, inclusive a
andina, e não era raro os cantores índios dos estádios participarem daqueles programas
abertos ao público que, já horas antes, atraíam multidões às portas do local. Suas ondas
também estremeciam, generosamente, com a música tropical, mexicana, portenha, e
seus programas eram simples, não imaginativos, eficazes: Pedidos por telefone,
Serenatas de aniversário, Mexericos do palco, do acetato e do cinema. Mas seu
prato forte, repetido e generoso, que, segundo todas as pesquisas, garantia sua enorme
audiência, eram as radionovelas (LLOSA, 2012, pp.8-9).

Entre o registro da produção cultural tida como séria e aquela tida como popular,
acompanharemos uma subjetividade adolescente tentando encontrar seu lugar pessoal e
social. Mesmo trabalhando na Rádio Panamericana e sendo membro da classe média lime-
nha, Varguitas terá intensas relações com o pessoal da Rádio Central; principalmente com
Pedro Camacho, o autor prolífico das produções novelescas que tanto lhe encantam e, tam-
bém, ao Peru inteiro.
Nesse quadro, observaremos e refletiremos como ocorrem possibilidades de for-
mação pessoal, social e profissional de subjetivações no campo da escrita literária. Se nor-
malmente, pensamos que as identidades são realidades subjetivas compostas por um conjun-
to de características estáveis, não é o que parece acontecer aqui. Ou seja, essa narrativa roma-
nesca nos expressará as circunstâncias que perfazem entre-lugares que podem existir entre
arte erudita e arte popular, além de acompanharmos como as formações subjetivas são di-
namizadas entre personalidades de níveis sociopolíticos diferentes, sendo que um nível não
exclui o outro.
A categoria da focalização narrativa nos será útil para refletirmos sobre essas re-
lações entre Varguitas e seus desejos pessoais e profissionais aparentemente contraditórios-
Nos servirá também para acompanharmos a construção narrativa através da técnica dos
vasos comunicantes. Essa técnica é responsável pela disposição dos capítulos da narrativa,
que nos apresenta ora a vida aventureira do protagonista, ora as radionovelas de Pedro Ca-
macho. Sendo que no final, ambas as realidades serão fundidas em um contexto revelador de
uma possível condição do escritor latino-americano proposta por Mário Vargas Llosa.

Jorge Alves Santana


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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
A narração de si nas malhas da outridade
No romance Tia Júlia e o escrevinhador, de Vargas Llosa, o protagonista, que narra sua pró-
pria estória, já ocupa um lugar social definido, pois, no tempo da enunciação, conta-nos
que publicara romances de reconhecimento internacional. Também nessa narrativa, a dis-
tância entre o jovem adulto e o adolescente de dezoito anos ficará atenuada com o uso do
discurso indireto livre.
As situações de conjunção da instância enunciativa e da vivida ocorrem em si-
tuações importantes para o desenrolar da narrativa. Por vezes, de tão sutis que são, podem
passar até despercebidas. No caso de Varguitas, podemos acompanhar essas mesclas de
fontes em situações nas quais ele tem contato com aqueles que mais diretamente envolve-
ram-se na sua formação como pessoa e como escritor: com Pedro Camacho, com sua mãe,
seu pai e com Júlia.
No primeiro caso, vemos Mário ter os seus primeiros contatos com Pedro Ca-
macho. Instruído pelo diretor da Radio Panamericana a travar boas relações com o escri-
tor boliviano que acabara de chegar a Lima, o rapaz reflete sobre o suposto comportamen-
to exótico do novo colega, sem encampar o estereótipo que Genaro-filho colocara sobre o
novo funcionário:

Lembrei-me de que, num momento de nossa conversa da véspera, no seu covil da


rádio Central, o artista havia dogmatizado, com fogo, sobre os cinquenta anos do
homem. A idade do apogeu cerebral e da força sensual, dizia, da experiência digeri-
da. A idade em que se era mais desejado pelas mulheres e mais temido pelos homens.
E havia insistido, de modo muito suspeito, que a velhice era algo “optativo”. De-
duzi que o escriba tinha cinqüenta anos e que a velhice o aterrorizava: um raiozi-
nho de fraqueza humana nesse marmóreo espírito (LLOSA, 2012, p. 47, grifo
nosso).

Pedro Camacho é uma das figuras que mais chamou a atenção de Mário, em seu
percurso formativo, expresso ficcionalmente dos 18 aos 26 anos. O adolescente, nessa altura,
já tinha o hábito de fazer uma série de leituras de ficção e de teoria literária e, como já men-
cionamos, realmente acalentava o desejo de ser um escritor reconhecido. Nesse contexto,
uma faceta de si mesmo pode ser capaz de reconhecer o que seria um embuste literário
aquele caso de Pedro Camacho. Mas quando esse reconhecimento parece encorpar-se, um
movimento de afeto positivo surge para amenizar os possíveis defeitos no comportamento
pessoal, na metodologia e na produção novelesca de Camacho.
O comportamento de Mário é, então, dirigido por uma condescendência que in-
siste em não limitar as possíveis impressões que tem de Camacho. Entre ambos surge uma
relação amistosa, que enternece o rapaz e o influencia em sua fala sobre as peculiaridades do

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
autor dos melodramas radiofônicos. Quando alguma suspeita paira sobre alguma impressão 2 | Luiz Edmundo
Bouças Coutinho, em
sua, uma espécie de carinho envolve a avaliação, atenuando as esquisitices e desequilíbrios seu ensaio intitulado Do
jogo intertextual em Tia
objetivamente percebidos. Júlia e o escrevinhador,
A situação, criada pela incompreensível simpatia que o adolescente sente pelo aponta bem a qualidade
de duplicidade que perfaz
homem mais velho, poderia ser analisada pelo narrador adulto que, já com os dados do pas- a relação Mário-Camacho.
O ensaísta acompanha os
sado aparentemente sob controle, deveria ser capaz de produzir uma análise minuciosa da comportamentos ambíguos
sedução que Camacho causava-lhe. Porém, não é essa a direção para a qual a mistura de vo- de Mário que, mesmo
conhecendo os cânones
zes enunciativas parece apontar. “Eu-narrador” e “eu-narrado” comungam da sensação de literários europeus, é
seduzido pelo espírito
mistério e de sedução causada por uma relação pessoal e profissional, que ainda os sensibili- folhetinesco da prosa
za e mobiliza-os em direções nas quais a intencionalidade racional não tem utilidade absolu- do companheiro Pedro
Camacho. E quando vemos
ta para reorganizar a vida. Mário assumir alguns dos
procedimentos de Camacho,
Dessa forma, o interesse, a simpatia e a sedução continuam a agir sobre a subjeti- temos a possibilidade de
vidade em produção da protagonista. Para ele, parece não importar a constatação objetiva acompanhar como um
texto pós-moderno segue
dos limites artísticos e da trágica derrocada psicofísica no fim da carreira de Pedro Camacho, seu curso de composição
heterogênea e libertária. Vale
que nos é contada, de modo perturbado, no final da sua narrativa: a pena acompanharmos um
dos desdobramentos que
Coutinho faz sobre esse tema:
Pouco a pouco, não sem esforço, fui relacionando, aproximando, o que lembrava de “Na cena de possibilidade
que entreabre Tia Júlia e o
Pedro Camacho com o que tinha diante de mim. Os olhos graúdos eram os mesmos, escrevinhador, podemos,
mas havia perdido o fanatismo, a vibração obsessiva. Agora seu brilho era pobre, naturalmente guardando
as proporções intencionais
opaco, fugidio e atemorizado. E também os gestos e a postura, a maneira de gesticu- de uma ótica bastante
particularizadora, dizer que
lar quando falava, esse movimento antinatural do braço e da mão que parecia o de ‘dividir’ metaforicamente a
um vendedor de feira, eram os de antes, assim como sua incomparável, cadenciada, Remington com Camacho
é para Llosa irmanar um
acariciadora voz (LLOSA, 2012, p. 278, grifo nosso). fascínio gêmeo. Por outro
lado, e no vigor dessa
cena, a intromissão dos
Mesmo que o fragmento não apresente o uso convencional do discurso indireto ‘fragmentos’, dos ‘capítulos’
das radionovelas recriados
livre, podemos perceber como, no jovem de 26 anos, existe uma mistura de afetos que conti- por Llosa, enganador Llosa-
Camacho, cede ao prazer do
nuam a agir, independentes de uma evolução temporal. A certeza da ruína física e profissio- autor de ouvir-se percorrer.
nal de Camacho, que ocorre no fim do romance, coroaria de modo cabal as suspeitas que o Urge o desejo de celebrar-
se igualmente no pretexto
adolescente tinha aos dezoito anos, como vimos no fragmento anterior.A ambiguidade judi- do duplo –frequentar seu
reflexo –cúmplice, re-
cativa continua, porém, quando Varguitas ainda percebe a “incomparável, cadenciada e aca- experimentando no prazer
riciadora voz” que o seduzia e ainda toca, incompreensivelmente, as cordas do seu coração2. da re-escritura o esforço que
rompe o limite parodístico
Outro exemplo do uso do discurso indireto livre, também mais em clave qualita- entendido nos domínios
rigorosos de seu sentido
tiva que quantitativa, é visto quando o rapaz encontra sua mãe que retornara a Lima, para comum e puramente
evitar o casamento do filho com Tia Júlia. Tentando convencer a mãe da importância dessa desmitificador e reorganizar
sob o halo componente da
relação para sua felicidade no matrimônio atípico, vemos a linha argumentativa usada: letra a imagem que acena o
espelho integral do risco que
percorre e que se prolonga na
Tentei fazê-la sorrir, com uma brincadeira que acabou sendo de mau gosto (“mas, co-autoria de voz e palavra”
(1984, p, 218, grifo nosso).
mamãe, você deveria estar feliz, eu me casei com uma grande amiga sua”); logo,

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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
porém, toquei em cordas mais sensíveis, jurando-lhe que não abandonaria os estu-
dos, que me formaria advogado e que, inclusive, quem sabe, mudaria de opinião
sobre a diplomacia peruana (“os que não são idiotas são maricas, mamãe”) e ingres-
saria no Ministério das Relações Exteriores, o sonho de sua vida (LLOSA, 2012, p.
257, grifo nosso).

A marcação duplicada nos trechos grifados, parênteses e aspas, parece expandir a


origem enunciativa de uma fala que deveria ser apenas a do adolescente. A experiência amo-
rosa e marcante poderia ser vista em sua suposta completude pelo “eu-narrador” em sua fase
mais madura. Mário pode voltar ao passado e ver que sua família tinha razão em vaticinar
o fracasso do casamento inusitado, no qual se jogava sem grandes preocupações com o futu-
ro. Porém, mesmo sendo capaz de fazer um balanço racional da aventura, ele parece não
estar convicto de que a relação fora mais negativa do que positiva para sua vida.
O comportamento arriscado, que parecia beirar a idiotice para a avaliação de sua
família, ainda fala alto para Varguitas. E a marcação das falas de convencimento, feitas à
mãe, soa como se fosse dirigida a ele próprio em um momento de sua vida que deveria já ser
pautado pelos convencionalismos sociais, ocasionados pelo segundo casamento, agora com
sua prima Patrícia. O jovem aventureiro que colocava sua vida e os valores de sua família em
jogo para realizar desejos aparentemente incompreensíveis, mas prementes, adequara-se aos
parâmetros comportamentais da família tradicional?
A lembrança intensa e de caráter ambíguo do arrojo afetivo concretizado com a
parenta e a coragem para diferenciar-se da normalidade apriorística que o formaria como
sujeito parecido com aqueles de sua família, são fatores que nos fazem acreditar que a ade-
quação existencial do rapaz não chegou a um termo final. O que corrobora o sentido de que
essa narrativa também apresenta uma subjetividade em processo de produção e não como
um produto acabado, semelhante às narrativas homodiegéticas de formação convencional.
Enfim, sentimentos atemporais também dizem respeito à importância que o pai
e Tia Júlia possuem para Mário. O pai, quando sabe do casamento feito em segredo, tem um
de seus rotineiros acessos de raiva e promete denunciar a “corruptora de menores” à polícia.
No entanto, o rapaz parece não se atemorizar mais: “Em seguida, haveria o julgamento, mas
ele estava certo de que, examinadas as circunstâncias – quer dizer, dado que eu tinha dezoito
e não doze anos –, era impossível que a acusação prosperasse: qualquer tribunal a absolveria”
(LLOSA, 2012, p. 261, grifo nosso).
Quem absolve Tia Júlia no fragmento? O adolescente pressionado pelo pai ou o
jovem escritor relembrando os acontecimentos passados, já no alto de seus vinte e seis anos?
A convicção plena da absolvição seria mais típica dos arroubos adolescentes. A flexibilidade
valorativa, quanto aos comportamentos e sentimentos complexos dos seres humanos, já se-
ria consequência de um jovem, que vai se tornando adulto, e mantém a vivacidade e ecletis-

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
mo típicos de uma fase formativa. Fase formativa na qual o mundo das vastas e ilimitadas
possibilidades existenciais é uma verdade mais plausível, e não apenas uma miragem que
produziria uma irremediável melancolia de um sujeito conformado em síntese disjuntiva
exclusiva.
No meio dessas duas possibilidades, podemos ver como o mais interessante da
situação é justamente essas aberturas de solução para o conflito, que a linguagem literária
permite. A absolvição pode acontecer de variadas formas ou talvez nem ter acontecido em
sua integridade, já que o texto, com o uso de sentidos indiretos, não chega a um ponto final.
colonizador e colonizado). Não se trata de considerar propriedade e empréstimo, sujeitos e
processos devedores e credores; mas, principalmente, de apropriações, de experiências co-
muns, de interdependências de todo tipo entre culturas diferentes, das necessidades que es-
sas culturas têm umas das outras, assim como as literaturas, assim como na expressão da
língua laboutansiana.

Identidades transversais e vasos comunicantes


É curioso perceber que adentramos o espaço ficcional de Tia Júlia e o escrevinhador por uma
visceral e labiríntica epígrafe:

Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo escrever que escrevo e também
posso me ver a me ver escrevendo. Lembro de mim já escrevendo e também me ven-
do escrever. E me vejo lembrando que me vejo escrever e me lembrando que me vejo
lembrando que escrevia e escrevo me vendo escrever que me lembro de ter me visto
escrever que me via escrevendo que lembrava de ter me visto escrever que escrevia
e que escrevia que escrevo que escrevia. Também posso me imaginar escrevendo que
já havia escrito que me imaginaria escrevendo que havia escrito que imaginava a
mim escrevendo que me vejo escrever que escrevo
SALVADOR ELIZONDO, O grafógrafo
(LLOSA, 2012, p. 6).

Este paratexto nos alerta, já na abertura na narrativa, que as sequências de ações
não ocorrerão em disposição conservadora, apesar de o narrador, em certa parte do texto,
nos dizer que sua índole de escrita o leva para a estética do Realismo. Nesse ponto, vemos
que há certo distanciamento da escrita de Llosa em relação àquelas convenções fantásticas
do boom da escrita literária latino-americana que fez fama mundial a partir da década de 50.
No entanto, se o registro semântico de romance em estudo é explicitamente realista, há
como que um veio labiríntico que subjaz sua estrutura. Como mencionamos no início de
nossas reflexões, o texto é montado de forma a contrapor o relato das aventuras que envol-

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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
vem a vida da protagonista Varguitas e o relato das aventuras das radionovelas de Pedro
Camacho.
Essa aparente justaposição de capítulos não é tão simples quanto aparenta, pois é
mais que a mera soma de partes. Como acompanhamos as intersecções discursivas e subjeti-
vas, com base na técnica do discurso indireto livre, na parte anterior, também podemos
perceber que há uma espécie de deslocamento dessa técnica de falas híbridas na engenharia
das acoplagens dos capítulos desse romance. Para darmos curso a nossa análise, é necessário
voltarmos à técnica do discurso indireto livre, agora em sua dimensão mais teórica.
Em seus costumeiros e vastos estudos teóricos e críticos, Mario Vargas Llosa es-
3 | La orgia perpetua (2011) creve um livro referencial sobre a obra de Gustavo Flaubert3. Nesse estudo, além de outros
é tido como um estudo
clássico, no panorama temas, discute o que seria o discurso indireto livre. Para ele:
mundial, para a compreensão
da obra do escritor
francês Gustave Flaubert, El estilo indirecto libre, al relativizar el punto de vista, consigue uma vía de ingreso
particularmente em relação
ao romance Madame Bovary. hacia la interioridad del personaje, uma aproximación a su conciencia, que es tanto
mayor por cuanto el intermediario — el narrador omnisciente— parece volatilizar-
se. El lector tiene la impresión de haber sido recibido en el seno mismo de esa
intimidad,de estar escuchando, viendo, una onciencia em movimiento antes o sin
necesidad de que se convierta em expresión oral, es decir, siente que comparte uma
subjetividad
(LLOSA, 2011, p. 188).

Instala-se, pois, o fenômeno de duas vozes que, numa fusão, perdem seu estatuto
de individualidade, que para existir em si mesma teria de ser separada de outras individuali-
dades. Esse fato estabelece uma situação heterogênea nas emissões enunciativas, pois não se
saberia qual é a fonte de emissão da voz. Há, pois, um compartilhamento e dialogismo entre
a subjetividade encarregada do relato e a subjetividade que vivencia as ações relatadas. Um
espaço híbrido, múltiplo e heterogêneo é criado.
Sobre essa modalidade discursiva, o teórico francês da narrativa memorialista,
Philippe Lejeune, também nos auxilia:

O estilo indireto livre é também uma figura narrativa, fundado a partir dos fenôme-
nos de elipse. Sua função é de integrar um discurso reportado ao interior do discurso
que o reporta, realizando uma ‘fusão’ em favor da qual as duas enunciações vão se
misturar. [...] Assim é obtido uma hibridização das duas enunciações: entende-se
uma voz que fala no interior de uma outra (LEJEUNE, 1980, pp. 18-19).

A elipse que surge nessa relação de vozes estabelece um discurso complexo, em


que a voz do ator penetra (ou é penetrada por) a estrutura formal do discurso do narrador,

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como se ambos falassem em uníssono, fazendo emergir uma voz dual. Essa situação acaba
por fazer desaparecer as marcas de especificidade pessoal da narrativa. Nesse caso, instalar-
-se-ia uma espécie de monólogo interior polimorfo que torna difusas a compleição subjetiva,
a espacialidade accional e a temporalidade organizadora de relações causais.
Os teóricos da narrativa Reis e Lopes acrescentam uma nuance de cunho psicoló-
gico a esse tipo de discurso, que é dual pelo fato de deter as funcionalidades representacional
e actorial, sem que uma sobreponha-se a outra. Existiriam em sua plenitude, porém não
isoladamente. Para esses autores:

O discurso indirecto livre, ao proporcionar uma confluência de vozes, marca sempre,


de forma mais ou menos difusa, a atitude do narrador face às personagens, atitude
essa que pode ser de distanciamento irônico ou satírico, ou de acentuada empatia
(REIS; LOPES, 1994, p. 321, grifo nosso).

A “atitude difusa do narrador”, perante o ator que é ele próprio em outra época,
marca a tentativa de se articular um sujeito textual que não seja apenas mais uma projeção
iluminista do sujeito. No processo de auto-descoberta, que impõe mecanismos de constru-
ção e desconstrução dialéticos, o discurso indireto livre pode criar condições para um com-
portamento irônico, satírico e, até mesmo, de simpatia na relação entre a pessoalidade adul-
ta e a pessoalidade das fases que possuem grande importância em seu processo formativo.
No caso específico da narrativa de formação do artista há, também, uma postura
irônica, no sentido de questionar, reviver e reconstruir o passado, que atinge os dois planos 4 | Essa simpatia diz respeito
ao natural envolvimento
da escritura. Mas também, tanto o enunciado quanto a enunciação são envolvidos por uma da subjetividade em
produção com as demais
cumplicidade afetiva que, mesmo ao lado dos estados cognitivos, pulveriza as distâncias es- subjetividades; seja a sua
paço-temporais, possibilitando a emergência de sentimentos e judicações variados sobre as própria subjetividade,
em fases diferentes, seja
situações contemporâneas e aquelas vividas, sendo que, apesar da tônica de ironia, um forte as demais subjetividades
que estão a volta dos
elo de simpatia une as duas instâncias.4 protagonistas e colaboram
Essa cumplicidade, feita pela simpatia, ocorre em uma série de estados: nas ale- na formação de sua história.
Para Laplanche e Pontalis
grias, por vezes desinteressadas, do passado; na necessidade da moratória psicossocial do a simpatia corresponde
àquilo que, no freudismo,
presente; nas dores, não tão compreendidas, das horas importantes do período de formação; denominou-se narcisismo
no sentimento de que o impulso para a ação artística terá seu curso satisfeito; na convicção secundário ou: “aquela
estrutura permanente
de que a prática artística não é feita apenas pela apreensão de um construto teórico consoli- do sujeito em que os
investimentos do ego não
dado de modo apriorístico; mas sim, que esse construto e sua operacionalização efetiva ocor- visam a si próprio, mas aos
rem em constante movimentação, que, necessariamente não é de caráter teleológico. objetos e seres que estão
a sua volta, mesmo que
A simpatia, ocasionada pelo discurso indireto livre, torna difusos a constituição, uma formação narcisística
primária nunca seja
lugar e tempo do narrador e do ator e mostra como a divisão do tipo homodiegético dá-se completamente abandonada”
mais no âmbito de grau do que da espécie do subtipo que é escolhido. (LAPLANCHE; PONTALIS,
1992, p. 290).
Dessa forma, acompanhamos, no romance em questão, um dos marcadores tex-

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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
tuais que é o uso do discurso indireto livre e suas consequências para a constituição do nar-
rador e do uso de suas perspectivas. Tentamos, pois, demonstrar como o narrador homodie-
5 | Jaap Lintvelt (1989, gético autoral e o narrador homodiegético actorial5 são dispostos em uma dinâmica de dife-
pp, 79-90) reflete sobre
a focalização narrativa renciação, porém, ao mesmo tempo, em uma espécie de inclusão funcional. Mesmo que
homodiegética. Sobre quantitativamente um tipo narrativo supere o outro, no plano qualitativo, que diz respeito
essa estratégia discursiva
literária, o autor considera à subjetividade em produção no decorrer no texto, a relação é de caráter inclusivo. O passado
duas divisões que seriam: a
do narrador homodiegético não seria, assim, um restrito conjunto de representações catalogadas em um arquivo que
autoral, aquele que, existiria sob a organização e controle de uma intencionalidade já formada e completamente
semelhante ao onisciente,
teria conhecimento integral e segura de si mesma.
atemporal sobre a sua própria
estória, mas com certo O narrador homodiegético autoral, nesses casos, parece eclipsar-se perante à
distanciamento vivencial e emergência da representação-experienciação das vivências do narrador homodiegético ato-
judicativo; e o homodiegético
atorial, aquele que mistura rial. É sensibilizado, de forma simpática e sincera, pelos movimentos afetivos vividos no
suas sensações, emoções,
saberes e vivências com passado, ao lado dos sentimentos e sentidos do presente, não tão controláveis de modo obje-
o protagonista, que é ele tivo, como nos aponta Phillipe Lejeune6.
mesmo no passado. Assim,
haveria uma imbricação entre Esse descontrole, ou condição maleável dos processos formativos, ocasiona as comuns
os tempos, as vivências e as
subjetividades que envolvem (con)fusões das fontes enunciativas e aponta, ainda, para um outro elemento estruturante das
essa focalização. narrativas de formação, que é o seu modo peculiar de articulação da memória: essa função
6 | LEJEUNE, 1980, pp.14-15. .
cognitiva de retenção e transformação de dados e afetos que funciona de forma assistemática,
tendo em vista os padrões do pensamento racional misturados às sensações e emoções.
Ao lado da estratégia do discurso indireto livre, vemos que a narrativa de Tia
Júlia e o escrevinhador usa outra estratégia discursiva que parece surgir desta primeira, ou
então assemelhar-se a ela por seu caráter funcional. Falamos da estratégia dos vasos comuni-
cantes que Mário Vargas Llosa teoriza em seu livro a respeito da produção literária de Gus-
tave Flaubert, que mencionamos acima. Enquanto o discurso indireto livre pode ser perce-
bido no plano oracional da formulação das sequências narrativas, os vasos comunicantes
funcionam em outro nível. Esse nível seria aquele da junção das sequências e, no caso de
nossa narrativa em estudo, na junção dos capítulos.
O romance, como já mencionamos, é montado pela relação de capítulos que,
respectivamente, expressam as aventuras de Varguitas e as radionovelas de Pedro Camacho.
Normalmente, os capítulos ímpares dizem respeito à vida da protagonista, e os pares, às
várias estórias melodramáticas escritas por Camacho, que nos são apresentadas em sua ínte-
gra. No decorrer da sequência narrativa do romance, sentimos que se respeita a autonomia
dos capítulos. No entanto, com leitura mais apurada, percebemos que as ações, situações e
configurações de valores vão-se imbricando a ponto da autonomia de cada capítulo ficar
difusa. No final, tanto imaginário quanto valores sociopolíticos estão tão misturados que
fica impossível diferenciar suas identidades originais.
A estratégia construtiva dessa fusão é ocasionada pelos vasos comunicantes. Má-
rio Vargas Llosa explica essa técnica, percebida na obra de Flaubert e utilizada também

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nesse seu romance:
Los distintos sucesos, articulados en un sistema de vasos comunicantes, intercam-
bian vivencias y se establece entre ellos una interacción gracias a la cual los episo-
dios se funden en una unidad que hace de ellos algo distinto de meras anécdotas
yuxtapuestas. Hay vasos comunicantes cuando la unidad es algo más que la suma de
las partes integradas en esse episodio, como ocurre durante los «comicios agrícolas».
[...] Dos o más episodios que ocurren en tiempos, espacios o niveles de realidad dis-
tintos, unidos en una totalidad narrativa por decisión del narrador a fin de que esa
vecindad o mezcla los modifique recíprocamente, añadiendo a cada uno de ellos una
significación, atmósfera, simbolismo, etcétera, distinto del que tendrían narrados
por separado. La mera yuxtaposición no es suficiente, claro está, para que el procedi-
miento funcione. Lo decisivo es que haya «comunicación» entre los dos episodios
acercados o fundidos por el narrador en el texto narrativo. En algunos casos, la co-
municación puede ser mínima, pero si ella no existe no se puede hablar de vasos co-
municantes, pues, como hemos dicho, la unidad que esta técnica narrativa establece
hace que el episodio así constituido sea siempre algo más que la mera suma de sus
partes (LLOSA, 2008, pp. 89 à 90).

A junção de sequências, aqui no caso dos capítulos, não é feita apenas sob a dinâ-
mica da soma das partes, que não afetaria a natureza dessas unidades. Há a criação de uma
nova atmosfera que transforma os sentidos dos capítulos. As realidades distintas são movi-
das por uma dinâmica rizomática7. As diferenças dos múltiplos e heterogêneos sentidos são
neutralizadas ou atenuadas, dando margem à construção de um enredo complexo e mais 7 | A ideia de rizoma vem dos
estudos de Gilles Deleuze
próximo da realidade também complexa que se representa de modo artístico. O registro da e Félix Guattari (1995, pp.
narrativa realista é enriquecido pelo estabelecimento de um locus existencial no qual as iden- 10-36). Para esses pensadores
franceses contemporâneos,
tidades, tanto de contextos quanto de subjetividades, adquirem a natureza da transversalida- o rizoma seria uma alegoria
de como os fenômenos
de, existindo em relação de sínteses conjuntivas inclusivas. funcionam de modo
Assim, acompanhamos a índole e os desejos da protagonista Varguitas se deslo- ontológico; ou seja, suas
características constitutivas
cando por caminhos que a perspectiva do narrador adulto não tem o poder completo de seriam feitas pelos princípios
de conexão, multiplicidade,
controlar. Vimos como ele se esforça para conquistar os saberes de produção literária que o heterogeneidade, cartografia
colocariam no campo da produção cultural erudita. Suas leituras dos clássicos autores e seus móvel e a-significância.

exercícios esforçados de escrita literária demonstram isso. No entanto, há, nos desvãos de
seus desejos, aquela vontade de também compreender como funcionam os mecanismos de
produção cultural popular. Talvez por isso, surja seu fascínio pela maneira de composição
literária do folhetinesco Pedro Camacho, como o protagonista nos conta:

Sempre tive curiosidade de saber que talentos fabricavam aqueles seriados que
entretinham as tardes de minha avó, aquelas histórias que costumava ouvir de

Jorge Alves Santana


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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
repente em casa de tia Laura, de tia Olga, de tia Gaby ou nas casas de minhas
numerosas primas, quando ia visitá-las (nossa família era bíblica, miraflorina,
muito unida) (LLOSA, 2012, p. 9).

Essa quase obsessão pelo radionovelista também entra para o campo da existên-
cia pessoal. Além de desejar conhecer a obra de Pedro Camacho e o seu processo de produção
industrial de narrativa, Varguitas quer conhecer a própria natureza humana do autor folhe-
tinesco. Assim, desde o começo da narrativa vemos a maneira que ele descreve minuciosa-
mente como esse sujeito se configura, com detalhes:

Falava sério demais e me dei conta de que mal notava que eu o acompanhava ali;
era desses homens que não admitem interlocutores, mas apenas ouvintes. Igual à
primeira vez, me surpreendeu a absoluta falta de humor que havia nele, apesar dos
sorrisos de boneco — lábios que se levantam, testa que se enruga, dentes que apare-
cem — com que enfeitava seu monólogo. Falava tudo com uma extrema solenidade,
o que, somado à dicção perfeita, ao físico, à roupa extravagante e aos gestos teatrais,
lhe dava um ar terrivelmente insólito. Era evidente que acreditava ao pé da letra em
tudo o que dizia: via-se, de imediato, que era o homem mais afetado e o mais sincero
do mundo (LLOSA, 2012, p. 32).

A figura de Pedro Camacho já é vista com exotismo pelos seus colegas de traba-
lho. Afinal é um autor de origem boliviana e produtor do que seria uma subliteratura. E
sendo assim, nada mais natural que lhe imputar características etnocêntricas. Esse quadro
de marginalização fica mais evidente quando o radionovelista entra em crise mental no ár-
duo trabalho de escrever uma infinidade de novelas para preencher a sedenta grade de pro-
gramas da Rádio Central. Nessa fase, o romance toma novos rumos, pois acompanhamos a
degradação do que seria o vistoso e anteriormente bem-vindo trabalho de Camacho. O autor
começa a misturar personagens, tempos, lugares e ações de suas várias novelas. O público
estranha a produção e os donos da rádio o internam em uma clínica de reabilitação.
Ao fim da narrativa, percebemos que os sentidos dos capítulos da ficção melodra-
mática se fundem com os capítulos das estórias pessoais de Varguitas. Já não há distinção
entre um e outro. E a técnica dos vasos comunicantes como se nos abre um panorama com-
plexo que nos mostra as conexões da vida do “eu narrador” com a vida do “eu narrado”, entre
Varguitas e Camacho, entre a arte séria e a arte popular, entre a sociedade peruana e a socie-
dade europeia, na perspectiva de se problematizar uma suposta redenção do escritor latino-
-americano usando as vias da arte canônica do velho continente.
No curso da vida ficcional e da biografemática, sabemos que Varguitas, casa-se
com a Tia Júlia, viajam para vários países, mas separam-se após oito anos. Em seguida, ele

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
volta para o Peru e se casa com sua prima Patrícia, no que se apaziguam os ânimos da famí-
lia, que era contra o primeiro casamento. O protagonista já escreve de modo profissional e
parece seguir rumo ao reconhecimento de sua carreira pelo campo literário de sua socieda-
de, como nos exemplifica a passagem:

Estava escrevendo um romance situado na época do general Manuel Apolinario


Odría (1948-1956), e no mês de minhas férias limenhas, ia, duas manhãs por sema-
na, à hemeroteca da Biblioteca Nacional, folhear as revistas e periódicos daqueles
anos e, inclusive, com algo de masoquismo, ler alguns dos discursos que os assessores
(todos advogados, a julgar pela retórica forense) faziam o ditador pronunciar
(LLOSA, 2012, p. 239).

O romance que Varguitas escreve é Conversa na Catedral, narrativa que viria a ser
uma das obras mais representativas do autor. Nela, cria-se um grande painel de vidas pes-
soais e da sociedade peruana à época de um dos mais densos períodos de ditadura política do
Peru. Nessa narrativa, não vemos a presença marcante da estratégia do humor, que ocorre
através das ironias e paródias presentes em Tia Júlia e o escrevinhador; sequer a presença siste-
mática dos vasos comunicantes que hibridizam rizomaticamente realidades diferenciadas. O
registro aí é de uma seriedade cética que discute os rumos sociais que um país latino-ameri-
cano toma e que exige do autor literário um posicionamento político mais objetivo, mesmo
que a narrativa tenha a tônica dos deslocamentos estéticos.
Sendo o nosso romance em estudo posterior ao Conversa na catedral, pensamos
que o autor encontrou novas modalidades de expor contextos de produção de subjetividades
mesclados a contextos sócio-políticos. Ironias, humor, collages autobiográficas, simpatias pe-
las outridades, juntam-se para a apresentação de possibilidades comportamentais e relacio-
nais que, apesar de suas diferenças convencionais, dialogam entre si e permitem a constru-
ção de outras realidades.

Considerações finais:
Tia Júlia e o escrevinhador é um romance de lavra peculiar na produção de Mário Vargas Llo-
sa. Ao mesmo tempo em que trata de temática séria, a formação de um escritor “na periferia
do capitalismo”, permite-se ao uso de humor e ironia, nas apresentações da radionovelas
melodramáticas, e a uma complexa discussão sobre identificação simpática entre subjetiva-
ções e realidades socioculturais heterogêneas. Se por um lado coloca em discussão a produ-
ção artística séria frente à produtividade artística popular de uma sociedade como a perua-
na, e por extensão a latino-americana, também nos coloca a possibilidades de essas existên-
cias dependerem uma da outra mais do que pensamos.
O caráter rizomático das vozes, ações e situações são exemplificados pelo uso do

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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
discurso indireto livre e pela técnica dos vasos comunicantes presentes na narrativa. Esses
usos permitem que se veja a produção das identidades transversais, tanto dos fenômenos
culturais e sociais, quanto das formações subjetivas. Assim, as fronteiras entre o individual
e o coletivo, entre a arte erudita e a popular, entre aspectos sociopolíticos da América Latina
e da Europa, ficam maleáveis, difusas e deslocam-se através das possibilidades dialógicas.
O escritor latino-americano, ao representar artisticamente a si mesmo como es-
critor literário e a sua sociedade latino-americana, não se envergonha de uma suposta infe-
rioridade frente ao cânone e valores de outras sociedades. Ao contrário, usa das estratégias
que permitiram a construção desse cânone e valores para repensar as técnicas e os valores
que dão conta, mesmo que provisoriamente, da realidade estetizada de sua cultural e de sua
pessoalidade, que não são insuladas, mas movente e dialética nos encontros com a outridade.
Nesse quadro, Tia Júlia e o escrevinhador é de categoria semelhante àqueles
romances que discutem a formação identitária do escritor e intelectual latino-americano e
que se sabem em constante desterritorialização, apesar de sentirem a necessidade de certo
enraizamento no que seria a possibilidade da fixação em solo firme e único. Ao lado da
vontade de fixidez, parece falar mais forte a sensação dos deslocamentos constantes nos
quais a identidade contemporânea, tanto das subjetivações quanto da formação artística, é
lançada, como lembram as reflexões do pensador Félix Guattari:

O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Com isso


quero dizer que seus territórios etológicos originários - corpo, clã, aldeia, culto, cor-
poração... Não estão mais dispostos em um ponto preciso da terra, mas se incrustam,
no essencial, em universos incorporais. A subjetividade entrou no reino de um noma-
dismo generalizado.
(GUATTARI, 1992, p. 11)

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antonio de Paula Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1988, p. 117

COUTINHO, Luiz Edmundo Bouças. “Do jogo intertextual em Tia Julia e o escrevinhador.” In:
Perspectivas: Ensaios de Teoria e Crítica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1984, p. 218

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Coordenação de
tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 1995, pp. 10-36

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia
Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 11

LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins
Fontes, 1992, p. 290

LEJEUNE. Philippe. Je est un autre: l’autobiographie, de la littérature aux médias. Paris: Seuil. 1980, pp. 18-19.

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Identificações transversais e focalização narrativa em Tia Júlia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
LLOSA, Mario Vargas. Tia Júlia e o escrevinhador. Tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, 249p. [La tia Julia y el escribidor. Barcelona: Seix Barral/ Biblioteca Breve, 1977.]

_______. La orgia perpetua. Madri: Santillana Ediciones, 2011, p. 188

_______. Cartas a um jovem escritor: toda vida merece um livro. Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2008, p. 6

LINTVELT, Jaap. Essai de typologie narrative de “point de vue”. 2a. ed., Paris: José Corti, 1989, pp. 79-99x

REIS, Carlos. Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós. 3a. ed., Coimbra: Livraria
Almedina, 1984, p. 321

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Gabriel García Márquez, uma
Leitura do Caribe

Gabriel García Márquez, a


Reading about the Caribbean

Sara Almarza
Professora Titular do
Departamento de Teoria
Literária e Literaturas,
Instituto de Letras,
Universidade de Brasília
(UnB), Brasília DF.

salmarza@unb.br
Resumo Abstract
Uma leitura dos espaços textuais construídos por Reading of the textual spaces built by García
García Márquez polarizando o Caribe e a região Márquez opposing the Caribbean to the Andean
andina da Colômbia, apontando assim seu lugar Region of Colombia, expressing this way his place
no mundo, sua identidade. in the world, his identity.

Palavras-chave: García Márquez, Caribe, identidade. Keywords: García Márquez, Caribbean, identity.
A
s letras perderam em 2014 vários escritores latino-americanos, entre eles Gabriel
García Márquez. Quando se deu a notícia do falecimento do autor colombiano, 1 | El olor de la guayaba, p. 34.

seus leitores devem ter recordado o dia da morte de José Arcadio Buendía, o 2 | O enterro do diabo;
fundador de Macondo, quando minúsculas flores amarelas caíram por toda a “Os funerais da Mamãe
Grande”; O outono do
noite numa “tempestade silenciosa” que atapetaram as ruas por onde passou o enterro. Patriarca; Crônica de uma
morte anunciada e Amor nos
Como não lembrar também o sofrimento do escritor quando devia matar ao coronel tempos do cólera.
Aureliano, pois estava velho, encerrado no quartinho de Melquíades lapidando seus
peixinhos de ouro; mas o escritor adiava sua morte... não se atrevia. Acontecido o homicídio
literário, vai ao encontro de Mercedes, sua esposa, e chora, chora “durantes duas horas”1.
Naquele abril, lembrei-me desses episódios; o tema da morte é uma presença constante na
obra especialmente nas aberturas dos espaços narrativos2.
É interessante o que acontece quando um escritor prêmio Nobel morre: suas
obras voltam a ser publicadas, lidas e estudadas. Começamos releituras ainda mais prazerosas
com a perspectiva que dá o tempo. Sem dúvida a nova aproximação da sua obra suaviza a
ausência porquanto nos encontramos, mais uma vez, com García Márquez de carne e osso já
que em seus romances, como ele disse inúmeras vezes, não há nada que não tenha como
fonte a experiência de sua vida.

Sara Almarza
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Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe
Nesta releitura queria aprofundar sobre um assunto que sempre chamou minha
atenção, a forte identidade com sua região natal, o Caribe. O emprego, no domínio crítico,
do conceito de identidade recai por vezes em um abuso complacente, e as explicações teóricas
abundam. No entanto é necessário mencionar somente uma premissa básica, da qual
fundamento minha reflexão: o homem não nasce membro de um corpo social, mas vai-se
tornando aos poucos, uma vez que a identidade vem a ser ao mesmo tempo individual e um
3 | Acompanho as ideias de constructo social3. Enquanto o indivíduo absorve seu redor com a socialização primária,
Alberto Melucci,
A invenção do presente. ocorre simultaneamente uma identificação com o espaço e com o ambiente. É esse o
momento que me interessa destacar nos escritos do autor. A teoria sistêmica entende que o
indivíduo é um ente relacional que vai-se delineando na medida em que se vincula ao meio,
isto é, com o espaço e com os seres que o conformam. Neste ponto, acompanho de perto as
reflexões de Humberto Maturana em relação à experiência de cada pessoa. O neurobiólogo
chileno percebe a condição humana como a maneira que temos de nos relacionar tanto com
4 | Humberto Maturana, os outros quanto com o lugar em que vivemos4.
Amor y juego, pp. 19-69.
Também em Emociones y
lenguaje, Santiago, LOM, •••
1990; Sentido de lo humano,
Santiago, LOM, 1991.
A sutil manifestação na linguagem registrada nos escritos americanos com o
intuito de mostrar um pertencimento surge desde os séculos coloniais. Ao deter-se no
significado com que foi empregado o termo pátria desde o século XVII, observamos que a
palavra está impregnada de uma carga afetiva e de uma marca de identidade para as pessoas
nascidas no continente americano. O emprego vai revelando diversos matizes: às vezes é
restrito – refere-se apenas ao lugar de nascimento –, em outras ocasiões, indica uma maior
abrangência, como no texto do Inca Garcilaso de la Vega, que afirma claramente que sua
5 | Comentarios reales (1609), pátria é o império inca5, querendo destacar assim um sentimento de identidade com as
caps. ix, xxiv. Ele era filho
de um capitão espanhol e de terras que conformaram o vasto domínio incaico. Mentes mais lúcidas consideram como
uma inca. pátria o continente americano como um todo ou uma América setentrional versus uma
meridional. Nas terras luso–americanas, também aparecem as primeiras diferenças entre
“os que de lá vieram” e os “que cá nasceram” como manifesta o autor do Diálogo das grandezas
6 | S. Almarza. “O legado do do Brasil (1618)6.
sistema colonial na América
Latina”, pp. 121-140. A consciência de identidade literária de García Márquez está perpassada pela
cultura caribenha com marcas e sinais na própria construção dos textos, aparecendo como
7 | Com essa afirmação me o mais caribenho dos escritores latino-americanos7. Para assinalar como a geografia do
refiro somente à região
caribenha hispana sabendo Caribe se destaca nas suas obras, segue uma brevíssima introdução sobre essa região. Essa foi
da existência das outras um ponto estratégico importantíssimo na história da colonização do continente americano
comunidades linguísticas, a
francesa, a neerlandesa e as e no surgimento de uma cultura própria. Foram as primeiras terras às quais chegou Colombo
de fala inglesa.
pensando que havia alcançado as Índias. É nas ilhas caribenhas que os europeus tentam
aclimatar-se quando adentram a terra firme, e elas também foram seus portos que recebem

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
os primeiros navios negreiros. Atualmente, as análises sociológicas e culturais consideram a
região como um conjunto de países que margeia o mar do Caribe, isto é, as grandes e
pequenas Antilhas; as terras continentais do norte da Venezuela e da Colômbia, e as nações
que conformam a América Central; no México, a península de Yucatán e a região de
Veracruz. Também fazem parte do Caribe o Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa.
Trata-se de um conglomerado de povos com um percurso histórico similar e uma rica e
variada cultura.
No entanto, a configuração geográfica da Colômbia apresenta aspectos bastante
diferenciados. A Cordilheira dos Andes desdobra-se em três redes montanhosas que
percorrem de sul a norte todo o território. Uma dessas cadeias está aproximadamente a 42
quilômetros da costa do Caribe, a Sierra Nevada, perto de Aracataca (povoado onde nasce e
cresce o autor). A personagem Fermina Daza teve que cruzá-la na viagem do “esquecimento”
conduzida por uma “caravana de tropeiros andinos” (O amor nos tempos do cólera, p.108). Ao
norte se localiza a Península de La Guajira com um clima ventoso e árido, espaço onde
transcorre a vida de Erêndira, “perdida na solidão do deserto...” como lemos nas primeiras
linhas d´A incrível história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada (p. 92). Na costa caribe
encontram-se situadas as cidades de Barranquilla – onde passa o enredo de Memórias de
minhas putas tristes e os momentos finais de Cem anos de solidão – e Cartagena de Índias,
cenário d´O amor nos tempos do cólera e Do amor e outros demônios.
A diversidade do espaço está assinalada conscientemente nos textos do colombiano
por meio da polarização entre personagens andinos e caribenhos. Em forma similar à
geografia do continente e à da Colômbia, apreciamos um embate similar ao telúrico, pois os
aspectos e o comportamento de suas criaturas ficcionais são igualmente contrapostos. Os
escassos personagens de relevância perfilados como rígidos, formais, autoritários e
introvertidos são todos originários da região andina. Recordemos à complicadíssima
Fernanda del Carpio, memorável pela ladainha a Aureliano Segundo reclamando da falta de
dinheiro na casa de Macondo. Ela vem do páramo – termo empregado repetidamente pelo
escritor para distinguir alguém que não pertence ao Caribe. Foi lá “na cidade lúgubre” que
Fernanda mandou por toda a vida a filha Meme depois que Mauricio Babilônia foi assassinado
por ordem do prefeito que como ela “tinha descido do páramo” (Cem anos de solidão, p. 278).
Outro personagem que não pertence ao Caribe e chega desde seu “páramo natal”, como
marca o autor, é o ditador, anfitrião do bando de colegas que são acolhidos por ele, no
romance O outono do Patriarca. Embora todo rastro de sua origem tenha desaparecido dos
textos históricos, as numerosas vozes que povoam o espaço textual, uma ilha situada no
Caribe, comentam que ele é nativo do páramo “pelo seu apetite desmesurado de poder” e,
especialmente, “pela inconcebível maldade do coração com que vendeu o mar” a um poder
estrangeiro e condenou-nos a viver frente a esta planície sem horizonte” (p. 50). Dos Andes
também são originários Saturno Santos, o rebelde que intenta se levantar contra a ditadura

Sara Almarza
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Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe
do Patriarca, e o jovem médico recém-chegado à cidade, que é reconhecido por Juvenal
Urbino por “notar seu rubor fácil e seu sotaque andino” (O amor nos tempos do cólera, p. 12).
O contraste entre essas duas regiões está ilustrado nas obras por meio das
diferenças das criaturas de ficção, mas também da atitude de García Márquez frente à vida.
Recordemos o gesto de identidade ao se vestir com o branco liquelique caribenho na cerimônia
da entrega do Nobel, na Academia sueca, eleição que para o mundo o diferenciou mais uma
vez como um caribenho, manifestando uma consciência irrestrita da sua origem. As tramas
literárias estão ancoradas nas vivências em diversas cidades caribenhas onde ele viveu, tais
como Aracataca, Barranquilla e Cartagena, e também nas viagens de verão do escritor às
margens do rio La Mojana, durante a adolescência, quando voltava do Liceu de Zipaquirá,
cidade próxima à montanhosa, fria e fúnebre Bogotá.
O autor colombiano constrói esse contraponto entre duas idiossincrasias não
como crítica, ao contrário, para destacar um espaço que não só corresponde a uma localização
cartográfica, mas a um conceito de origem que conforma seu próprio ser e do qual tem
plena consciência. Isso confirma-se nas entrevistas e no trabalho de recordação, semente da
sua escrita, explicitado na epígrafe das Memórias: “a vida não é a que a gente viveu, e sim a
8 | Viver para contar, p. 5. que a gente recorda, e como recorda para conta-la”8. Sabido é que a memória trabalha em
forma seletiva e a pessoa traz novamente ao coração – etimologia do termo recordar – as
situações que a tem afetado.
A diversidade de sentir em relação às preferências do indivíduo não é uma simples
questão de aparência, é reforçar a opinião de que a humanidade é tão variada em sua essência
9 | Acompanho aqui as como em sua expressão9. Para não me ater somente às diferenças construídas por García
reflexões de Clifford Geertz,
A interpretação das culturas,
Márquez entre andinos e caribenhos, lembro também o contraponto que se manifesta na
pp. 25-39. música em uma e noutra região. Os diversos estudiosos sobre a vida e a conduta do ser humano
afirmam que o espaço propicia uma forma específica de se relacionar com a natureza. O
aspecto mais relevante sobre a maneira de ser andino aponta para a introversão e para a
melancolia. A altitude, o clima gélido e ventoso, a distância de um povoado a outro induzem
o homem dessa região a se comportar em forma mais individualista. Esse vínculo com o lugar
se manifesta também na música. Segundo os etnomusicólogos, não se tem notícia de uma só
sociedade na humanidade que não possua alguma manifestação de sons. A música possibilita
uma interação do homem com seu entorno e cumpre uma função decisiva na configuração
10 | Cf. Rafael José Menezes simbólica do social10. No cenário andino, os sons nada mais são que a expressão dialética entre
Bastos, “Esboço de uma
antropologia da música: para a sonoridade e o silêncio. Na reprodução há uma preponderância dos instrumentos de sopro
além de uma antropologia sobre os de percussão e uma carência de voz, sendo a maior parte da música andina
sem música e de uma
musicologia sem homem”, instrumental. A explicação para esse predomínio está vinculada às montanhas, com os
pp. 9-73.
precipícios que formam a cordilheira, e ao cruzamento dos ventos que ali se produzem.
No outro cenário, é impossível estudar o Caribe sem analisar a sua expressão
musical. Afinal, antes do verbum era o tambor, como afirmam os pesquisadores do tema.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Num ambiente de migrações constantes, de encontros entre línguas e falas diversas, a música
e a dança antecederam à palavra como ferramenta de comunicação. Os ritmos e, posteriormente,
as letras acompanham a formação social desses povos e o acontecer histórico – a imigração
escrava – passa a constituir um poderoso traço identitário, uma raiz de pertencimento.
A grande quantidade de ritmos afro-americanos – son, guaracha, rumba, bomba, plena,
merengue, seis, aguinaldo, reggae, cumbia, vallenato, hip-hop, guajira, tamborito, etc – combinam-se
magistralmente para expressar a história e o cotidiano caribenho11. As fortes pegadas da 11 | Ángel G. Quintero
Rivera, Salsa, sabor y control.
influência africana na criação musical não só enraizaram no Caribe, até hoje se fazem sentir Sociología de la música
também no sul do continente12. tropical, pp. 88-89 e o cap. VI.

Voltando à narrativa de García Márquez, observamos que são muito escassas, no 12 | Cf. Luis Ferreira, Los
tambores del candombe,
enredo, as figuras relevantes que sejam originárias das cidades andinas com a ressalva, como passim.
já falei, do Patriarca e de Fernanda del Carpio. No entanto, os personagens que exercem
poder como os chefes militares, os soldados e os prefeitos são todos caracterizados como
andinos. Nas Memórias de minhas putas tristes13 o velho nonagenário, antes de ser autorizado 13 | Emprego a edição em
espanhol de 2004, p. 53;
a transitar pelo parque San Nicolás, é instado a se identificar por uma patrulha militar, cujos tradução minha porque o
soldados “eram homens do páramo, duros e calados com um odor de estábulo” e todos com termo páramo, que na língua
portuguesa existe, não
as “faces tostadas dos andinos na praia” (p. 53). Durante a greve dos operários da companhia está conservado na edição
em português; trad. Eric
bananeira, em Macondo, os três regimentos que o governo central mandou para acabar com Nepomuceno, Rio de Janeiro,
os distúrbios estavam compostos por soldados pequenos, maciços e brutos que “suavam com Record, 2008, p.59.

suor de cavalos e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a impavidez taciturna
e impenetrável dos homens do páramo” (Cem anos de solidão p. 288).
O casal formado por Fermina Daza e Juvenal Urbino tinha “aversão pelos ares
andinos”, odiosidade disfarçada com presumíveis achaques: “perigos da altura para o coração,
o risco de uma pneumonia” e inclusive o aborrecimento pelas “injustiças do centralismo” diz
o autor n’O amor nos tempos do cólera (p. 378). Quando o perseverante e apaixonado Florentino
Ariza poderelacionar-se finalmente com Fermina, já viúva, a convida para uma viagem fluvial
pelo Magdalena e para entusiasmá-la argumenta que poderia até visitar a capital, mas ela

[...] não queria conhecer uma cidade gelada e sombria onde as mulheres só saíam de
casa para a missa das cinco e não podiam entrar nas sorveterias nem nas repartições
públicas e onde havia a toda hora engarrafamentos de enterros nas ruas e uma
garoa miúda desde os tempos do descobrimento (p.400).

Esse cenário minucioso, recriado na ficção, o escritor o absorveu quando era


estudante em Zipaquerá, época de grande solidão e de se sentir como um forasteiro dentro de seu
país como lembra nas suas memórias. Os perfis andinos diferenciados dos personagens, dos
costumes e até das cidades – como a capital Bogotá – mostram uma arquitetura textual, alicerçada
no Caribe, que possui uma tremenda carga significativa ao assinalar mentalidades opostas.

Sara Almarza
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Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe
A preponderância do calor, a umidade, a chuva e a presença do mar são evidentes
nas tramas de todos os textos do escritor. As surpreendentes variações climáticas próprias da
região caribenha regem não somente o comportamento dos personagens, mas também seus
organismos. O mês de outubro era funesto e de presságios tristes para o tesoureiro da
revolução em Macondo, figura central em Ninguém escreve ao coronel e com uma presença
mais nebulosa em outros espaços narrativos como em Cem anos de solidão. Quando começavam
as chuvas até os ossos e os intestinos ficavam-lhe úmidos anelando a chegada de dezembro.
Do mesmo modo que o coronel, vários personagens conduzem sua rotina acompanhando as
repentinas e bruscas mudanças do clima. O senhor Carmichael, administrador das riquezas
da viúva após a morte de José Montiel, sabe que as chuvas não acabarão tão cedo, porque os
14 | “A viúva de Montiel”, Os calos não lhe permitem dormir14.
funerais da Mama Grande.
O deslocamento das vivências do autor a suas obras é de tal magnitude que alguns
refrães, canções e frases do romance O outono do Patriarca só podem ser entendidos pelos
motoristas de Barranquilla, diz o autor; o mesmo ocorre no fim de Cem anos de solidão.
Quando Macondo e a família Buendía davam seus últimos sinais de vitalidade, os clientes-
leitores da livraria recebem o nome dos amigos de juventude do escritor: Álvaro, Alfonso,
15 | Cem anos de solidão, Germán e Gabriel. Os quatro que formaram em 1949 o “Grupo de Barranquilla”15, confraria
p. 367. São seus amigos de
juventude em Barranquilla, de jornalistas e escritores que tiveram uma importância fundamental na iniciação leitora do
Alvaro Cepeda Zamudio. escritor. Também nos encontramos com ele mesmo, Gabriel, como personagem de ficção.
Germán Vargas e Alfonso
Fuenmayor e Gabriel García Perambulam ainda pelos espaços narrativos não somente o escritor e seus amigos, também
Márquez. Vivir para contarla,
pp. 128-143. sua esposa; com nome e sobrenome está presente no coro de vozes que dão testemunho
sobre a morte de Santiago Nasar16; igualmente os nomes de seus filhos, Rodrigo e Gonzalo,
16 | “Muitos sabiam que na
inconsciência da farra propus são os que Amaranta Úrsula queria colocar aos dela “na aldeia mais luminosa e plácida do
a Mercedes Barcha que se
cassasse comigo, quando mundo” (Cem anos de solidão, p. 360).
mal havia terminado a escola Esse percurso pela imagética caribenha de García Márquez, a explico como uma
primária...” Crônica de uma
morte anunciada, p. 66. “geografia humana” na qual o meio, o modo de vida e a cotidianidade mostram a interação
entre o homem e o espaço geográfico. Continuando com a caminhada pelo Caribe, é
imprescindível não nos determos sobre o rio Magdalena que cruza de sul a norte uma grande
porção do território colombiano. Através dos navios de três andares e uma roda propulsora
na popa, o Magdalena viveu uma época de glória nas décadas de trinta e quarenta do século
passado, porquanto comunicava a capital com o interior do país até desaguar no Caribe. Na
literatura, o rio tem sido cantado desde os tempos coloniais.
O poeta neogranadino Domínguez Camargo no século XVII o chamava a “pupila
de América”; segundo Pablo Neruda “o rio Magdalena anda lento como a lua”. Para García
Márquez é “o rio da vida”, já que o conheceu desde a adolescência viajando desde a costa até
a capital. O romance O general em seu labirinto, por exemplo, não tem como foco as proezas
de Simón Bolívar pela independência das colônias, mas apenas os últimos dias do prócer,
moribundo e sem glória, navegando pelo Magdalena à sua terra natal, San Pedro Alejandrino,

Cerrados nº 38
72
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
no norte caribenho. Também o rio e os pormenores da Companhia Fluvial do Caribe é o
ambiente da apologia sobre o amor nas diversas facetas da vida, na obra O amor nos tempos do
cólera. Fermina e Florentino, o casal septuagenário, deparam-se, na viagem interminável,
que “o vento do Caribe se meteu pelas janelas com o alarido dos pássaros”, e descobrem que
“é a vida, mais que a morte, a que não tem limites” (428-429). Esse texto tem como apertura
a experiência de vida de um antilhano, Jeremiah de Saint Amour, que orienta o leitor no
espaço dos “amores contrariados”. O relato de sua história, o significado de seu sobrenome
francês e a insólita história de amor parecem ser o umbral necessário para acompanhar a
complicada e longa espera de Florentino. Jeremiah é inválido, prófugo de Caiena, fotógrafo
de crianças e um exímio jogador de xadrez. Numa praia de Haiti, junto a sua amada, decide
que nunca será velho e assume a determinação irrevogável de tirar sua vida aos sessenta
anos, decisão inexorável que ela acompanha. Após a morte, o amigo e companheiro no
xadrez, o médico Juvenal Urbino, encontra-se com a mulher e se estabelece um diálogo
simples e belo, breve e grandioso,

– mas então você sabia! [o suicídio de Jeremiah] – exclama.


Não só sabia, confirmou ela, como o havia ajudado a carregar o fardo da agonia com
o mesmo amor com que o havia ajudado a descobrir a ventura [...].
– Seu dever era revelá-lo – disse o médico.
– Eu não podia fazer-lhe essa desfeita – disse ela escandalizada: – eu o queria com
todas as forças (p. 24).

Os dois assuntos expostos no romance, a velhice e o amor – aliás, os grandes


temas, junto à solidão, na obra do colombiano –, estão introduzidos a partir da situação
vivida por Jeremiah e sua mulher.
Os espaços narrativos criados por García Márquez tem a singularidade de “gerar”
um personagem em um ambiente para completá-lo em outro, prazer imenso para os leitores
que habitam os textos. O embrião da figura de Jeremiah vai surgindo aos poucos, em forma
bastante nebulosa. Pode parecer um habitante a mais dos tantos que circularam por
Macondo, pois seu passo pela narrativa é fugaz. Não tem nome, simplesmente forma parte
dos “pacíficos negros antilhanos” que, com a chegada da companhia bananeira e os distúrbios
acontecidos em Macondo, a rua deles era o “único reduto de serenidade”, pois o grupo se
“sentava ao entardecer cantando hinos melancólicos” (pp. 221 e 293). Porém, nos derradeiros
anos de Macondo e da história dos Buendía, Jeremiah cumpre uma função primordial, pois
ninguém lembrava nem da existência da família nem do Coronel Aureliano Buendía “salvo
o mais antigo dos negros antilhanos, um ancião de cabeça algodoada” com aspeto de “um
negativo de fotografia” (p. 364). Pulcro trabalho gradativo do autor na consolidação textual
de um personagem que recebe relevância por ser é o único que recorda, guarda e transmite

Sara Almarza
73
Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe
detalhes dos Buendía. Poderia ser considerado, então, como o guardião da memória coletiva
de Macondo. Escolhi essa figura, presente em diversos espaços textuais e atuando em
momentos de grande relevo dramático, para destacar o trabalho de arquiteto do escritor, em
relação a potenciar situações ou personagens fugazes, mas com poderosa força significativa.
A consciência de García Márquez em relação a seu entorno não se esgota no
Caribe colombiano. Nas paisagens dos textos há uma profusa presença de objetos e
personagens que provém das outras partes da região. Por exemplo, o louro causante da
morte de Juvenal tinha vindo de Paramaribo; as gaiolas na casa do casal foram vendidas
pelos traficantes de Curaçao; a boneca com malefícios recebida por Fermina adolescente
tinha sido comprada na Martinica; a avó de Erêndira foi resgatada de um prostibulo das
Antilhas e queria levar a neta para Aruba; quando se inaugura a casa do Patriarca, o ditador
vê desde o terraço o rastro das ilhas alucinadas das Antilhas, o mercado infernal de
17 | La Guaira é a capital do Paramaribo, o cego da Guayra17, o agosto abrasante de Trindade e com a luz de dezembro
Estado de Vargas no Caribe
venezuelano. chegava a contemplar desde Barbados até Veracuz18.
Então, o que significa o Caribe para o escritor? Ele conta que quando visitou
18 | O outono do Patriarca,
trad. Remy Gorga Filho, Rio Angola em 1978 teve uma das “experiências mais fascinantes” de sua vida. Nessa viagem, ao
de Janeiro, Record, pp. 43-44.
colocar os pés na terra e respirar o ar africano se encontrou, disse, “com toda minha infância”
e com formas culturais, costumes e imaginários muito diferentes aos do “altiplano” andino
19 | Acredita-se que cerca onde se manifestam as culturas indígenas19. Explica que no seu Caribe literário se embaralhou
de 20 milhões de africanos
tenham chegado ao a imaginação desbordante dos escravos africanos com a imaginação dos nativos pré-
continente entre os séculos colombianos para logo se misturar com os andaluzes e o sobrenatural dos galegos – seus avós
XVI e XIX para o trabalho
escravo na agricultura e maternos eram de origem galega20. Sem esquecer, explica, que toda essa região foi o encontro
nas minas. Cf. Luz María
Martínez, Negros en América, por vários séculos dos piratas ingleses e franceses que alimentaram as lendas e ditos
Madrid, MAPFRE, 1992. populares21. Um exemplo da presença dos corsários no imaginário do autor o disfrutamos
20 | El olor de la guayaba, quando Úrsula Iguarán ficava revoltada com os desvarios do marido e “pulava por cima de
pp. 54-55.
trezentos anos e maldizia a hora em que Francis Drake assaltou Rioacha”, porque possibilitou
21 | Famosos foram os que seus antepassados pudessem conhecer-se, e ela casar-se com José Arcadio (Cem anos de
corsários britânicos Henry
Morgan, Francis Drake e solidão, p. 25).
William Dampier e o francês
Jacques de Sores. O Caribe é tudo para o escritor. Não é somente a terra onde teve a “sorte de
nascer” nem o mundo que lhe ensinou a escrever, é o único lugar em que não se sente
22 | El olor de la guayaba,
pp. 55. estrangeiro, confessa22; é o lugar onde está seu corpo e onde ele descobre a alteridade. Em
outros termos é sua pátria. Emprego o termo tradicional, mas alargando o conceito podemos
entendê-lo como uma forma de ser e de atuar que não se restringe a uma divisão físico-
política, pois Gabriel García Márquez o ressignifica acrescentando uma necessidade de
pertencimento e de identidade, esta entendida como uma insistente busca pela origem, a
viagem lenta e dolorosa tentando encontrar a semente.

Cerrados nº 38
74
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
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_________________________O outono do Patriarca (1975). Trad. Remy Gorga, Filho, Rio de Janeiro: Record, s/d.

_________________________El olor de la guayaba. Conversaciones con Plinio Apuleyo Mendoza. Bogotá: La


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Sara Almarza
75
Gabriel García Márquez, uma Leitura do Caribe
_________________________O amor nos tempos do cólera (1985). Trad. Antônio Callado. Rio de Janeiro:
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QUINTERO RIVERA, Ángel G. Salsa, sabor y control. Sociología de la música tropical. México: Siglo XXI, 1998.

Cerrados nº 38
76
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
El Sueño del Celta: O Herói
Irlandês Ficcionalizado no
Novo Romance Histórico

El Sueño del Celta:


The Fictionalized Irish Hero in
New Historical Novel

Rodrigo Vasconcelos Machado


UFPR, Curitiba, Doutor em Letras
(USP), DELEM (UFPR).

rvmachado@yahoo.com

Wagner Monteiro
UFPR, Curitiba,
Doutorando em Letras.

wagmonteiro1989@gmail.com
Resumo Abstract
Em 2010, Mario Vargas Llosa voltou à tradição de In 2010, Mario Vargas Llosa returned to the
ficção histórica com El sueño del celta, romance que tradition of historical fiction with El sueño del celta, a
dialoga com a História e ficcionaliza o idealista novel that speaks with the history and fictionalizes
irlandês, Roger Casement. O presente artigo the idealistic Irishman, Roger Casement. This article
pretende analisar o romance pelo viés da ficção aims to analyze the novel by the perspective of
histórica, retomando as teorias de Lukács (1955) e historical fiction, resuming the theories of Lukács
Menton (1993), refletindo sobre como Vargas (1955) and Menton (1993), reflecting how Vargas
Llosa retoma o Novo Romance Histórico Llosa returns to New Historical Novel and, in the
Latino-americano e, no plano da linguagem, level of language, how fiction and History intertwine.
como ficção e história se entrelaçam.
Keywords: historical novel; el sueño del celta;
Palavras-chave: romance histórico; el sueño del Mario Vargas Llosa.
celta; Mario Vargas Llosa.
¿No era la vida algo absurdo, una representación
dramática que de súbito se volvía farsa?

Roger Casement in
El sueño del celta

E
m 2010, o arequipenho mais famoso das letras hispânicas ganhava o prêmio Nobel
de Literatura. Fato que não surpreendeu os inúmeros fãs do estilo de Mario Vargas
Llosa, conhecido pelos múltiplos narradores de dois de seus principais romances:
La ciudad y los perros (1963) e La casa verde (1966). Estilo semelhante ao de outro
Nobel, o escritor norte-americano William Faulkner, e ao de Juan Rulfo, um dos principais
nomes da literatura mexicana. Mas a citação inicial a esse ano não se dá apenas para fazer
uma introdução , apresentando os dados biográficos do escritor peruano. Queremos atentar
ao fato de que, nesse mesmo ano, Vargas Llosa publicou um novo romance que, ao longo
deste artigo, será analisado a partir do ponto da interface entre Literatura e História. El sueño
del celta, portanto, pode ser lido como ficção histórica.

Mas o que é um romance histórico? O que faz com que um romance, como El sueño del
celta, possa ser lido como histórico?
Antes de chegarmos ao conceito de romance histórico, definamos o que é ficção histórica.
Para Weinhardt (2006: 135), “ficção histórica é aquela que ficcionaliza a história”. Correndo o
risco de que qualquer ficção possa ser chamada de histórica, já que sempre podemos analisá-la
levando em conta suas relações com a História, Weinhardt (2006) esmiúça o conceito:

Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro


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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
Reservamos tal denominação para o texto ficcional em que a historicidade é
determinante para o enredo, ou seja, a obra em que a inscrição dos fatos narrados
em um determinado tempo passado é decisiva para que eles tenham ocorrido como
tal e, de modo explícito ou não, o texto dialoga com o discurso histórico, ou melhor,
com discursos históricos. (WEINHARDT, 2006: 137)

El sueño del celta dialoga de modo bastante claro com o discurso histórico. Para
tecer seu romance, Vargas Llosa fez uma longa pesquisa de dados históricos, para que pudes-
se criar sua obra literária sem deixar de lado os diversos eventos históricos nos quais Roger
Casement esteve involucrado. E, como veremos ao longo deste artigo, o protagonista de El
sueño del celta atuou em diversos eventos, citados por Vargas Llosa ao longo da narrativa.
Vejamos agora a teoria do romance histórico, pensada inicialmente na primeira metade do
século XX.
Entre 1936 e 1937, o filósofo húngaro György Lukács escreveu sua obra-prima, O
romance histórico, que segue até a atualidade como uma das bases dos estudos entre literatura
e História. Segundo Lukács, o romance histórico desenvolveu-se essencialmente no século
XIX que, segundo ele, e não por uma mera coincidência, é o século em que os Estados nacio-
nais melhor se desenvolveram em solo europeu. Ou seja, uma primeira função desses roman-
ces históricos do dezenove era a de fomentar, em seu público leitor, o sentimento nacionalista.
Sentimento aflorado nas massas também pela invasão napoleônica em vários territórios.
Nesse contexto, surge, segundo Lukács, o primeiro romance histórico (nos mol-
des definidos pelo autor): Ivanhoé. A magnum opus de Walter Scott inauguraria, segundo o
teórico marxista, uma tradição que segue até a contemporaneidade. Com a Revolução Fran-
cesa e o advento da burguesia, o romance histórico, que segundo Lukács é a continuação do
romance social realista do século XVIII, encontra suas bases alicerçadas: “Esses acontecimen-
tos, essa convulsão do ser e da consciência do homem em toda a Europa formam as bases
econômicas e ideológicas para o surgimento do romance histórico de Walter Scott.”
(LUKÁCS, 2011: 46-47).
Walter Scott era um romancista que falava do passado. O escritor britânico não
abordava os problemas sociais ingleses pondo como pano de fundo o século XIX. Na medida
em que compreendeu os problemas sociais, apropriou-se, como aponta Lukács, de uma “fi-
guração ficcional das etapas mais importantes da história da Inglaterra” (LUKÁCS, 2011: 49).
Portanto, Scott recorreu ao século XII para inserir seu herói Ivanhoé. E sua grandeza, que o
fez ganhar fama mundial, é o fato de conseguir ficcionalizar personagens sociais históricos.
Veremos mais adiante que, em El sueño del celta, o grande mérito de Mario Vargas Llosa é
conseguir ficcionalizar o personagem histórico Roger Casement a tal ponto que, quando
lemos a obra, tomamos como verdade as aventuras eróticas que ‘supostamente’ Casement
viveu e que ainda são questionadas quanto a sua veracidade. Entretanto, Roger Casement é

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
um personagem histórico de fama internacional, por sua luta pelos direitos humanos e par-
ticipação em diversos eventos históricos (como a Primeira Guerra Mundial), diferentemente
de Ivanhoé, herói mediano, sem destaque na história da Grã-Bretanha, mas centro da narra-
tiva. As grandes figuras históricas, na obra de Walter Scott, e em um romance histórico no
modelo de Lukács, não podiam ser o centro da obra literária.
Lukács afirma ainda que o grande mérito de Walter Scott, jamais alcançado por
outro romancista, é o de conseguir representar um tempo passado sem a idealização dos
personagens históricos. Para isso, teve de colocar esses personagens centrais na História, em
uma espécie de ‘periferia narrativa’. Só assim Scott conseguiu retratar a idade média eviden-
ciando – nas palavras do próprio Lukács – “o ser-precisamente-assim das circunstâncias e das
personagens históricas” (LUKÁCS, 2011: 62).
Deve ficar claro, porém, que não se pode dizer que um romance não pode ser lido
como ficção histórica apenas porque não se enquadra no modelo proposto pelo filósofo hún-
garo. Lukács apresentou a primeira teoria sobre o tema, mas veremos ao longo deste artigo
que o novo romance histórico – com destaque para o latino-americano, ao qual El sueño del
celta pertence – surge com uma nova proposta de desenvolvimento do componente histórico
na narrativa ficcional.
No entanto, para falarmos de novo romance histórico, temos de pensar se ainda
é possível produzir romances históricos na contemporaneidade. O também crítico marxista,
Fredric Jameson, em conferência apresentada na Universidade da Califórnia, questionou-se:
O romance histórico ainda é possível? Jameson é famoso por construir seu pensamento levando
em conta o contexto pós-moderno. Para ele, nesse contexto pós-moderno, o romance histó-
rico pode voltar a conseguir espaço, posto que nesse contexto há um contraponto às ideias
modernistas (e às narrativas fortemente introspectivas, focadas apenas em experiências inte-
riores). Mas o teórico norte-americano deixa bem claro que o romance histórico para ele
deve possui como pano de fundo: “(…) Eventos históricos paradigmáticos, como a própria
guerra, que sempre devem estar no centro de um romance histórico – na minha opinião –
para que ele se qualifique como tal” (JAMESON, 2007: 188).
Ainda que se relatem vários episódios históricos em El sueño del celta, Jameson não
o consideraria um romance histórico, pois o centro da narrativa não são esses eventos paradig-
máticos. A Revolta da Páscoa e a Primeira Guerra Mundial aparecem na narrativa, mas, na
primeira, o protagonista não atua ativamente e, na segunda, ainda que sua atuação seja menos
discreta e haja um apoio aos alemães, o narrador não foca a participação de Casement nesse
evento. Sabemos que Casement apoiou a Alemanha contra a Inglaterra, nos momentos em
que se encontra preso, e se lembra dessa atitude com remorso, pois não conseguiu perceber que
os alemães não possuíam o menor interesse na causa independentista irlandesa.
Contudo, se El sueño del celta não pode ser lido como romance histórico para
Lukács e tampouco para Jameson, como podemos dizer que esse romance de Mario Vargas

Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro


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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
Llosa pode ser lido como histórico? Para responder essa pergunta, temos de recorrer à obra
clássica de Seymour Menton: La nueva novela histórica de la América Latina. Para Menton, em
1949 surgiria o primeiro ”novo romance histórico”, que se contraporia ao modelo clássico de
romance histórico de Lukács: El reino de este mundo. Entretanto é apenas a partir do final da
1 | A partir deste momento década de setenta que o NRH1 atingiria seu auge. O próprio Vargas Llosa se enquadra nesse
utilizaremos a sigla NRH para
me referir ao novo romance período com dois romances. O menos famoso, Historia de Mayta, publicado em 1984 e cujo
histórico, proposto por enredo se desenvolve em 1958, em meio a uma intentona revolucionária trotskista; e o mais
Seymour Menton.
famoso, La guerra del fin del mundo, publicado em 1981, uma espécie de palimpsesto de Os
sertões, de Euclides da Cunha, cujo enredo se desenvolve no final do século XIX, na região
baiana de Canudos, e retoma o lendário líder espiritual Antônio Conselheiro.
Dissemos acima que o NRH se contrapunha ao modelo proposto por Lukács.
Vejamos agora em quais pontos. Menton aponta que o NRH possui seis características fun-
damentais. A primeira delas é “La subordinación, en distintos grados, de la reproducción
2 | A subordinação, em mimética de cierto período histórico a la presentación de algunas ideas filosóficas”2,3 (MEN-
diferentes graus, da
reprodução mimética de TON, 1993: 42). Menton destaca que um dos pensamentos difundidos é o de que é impossível
certo período histórico à conhecer a verdade histórica em sua totalidade. Os autores ressaltam os acontecimentos
apresentação de algumas
ideias filosóficas. imprevisíveis em meio ao contexto histórico.
3 | As traduções são de nossa A segunda característica é de maior interesse para este artigo: “La distorsión
responsabilidade. consciente de la historia mediante omisiones, exageraciones y anacronismos.”4 (MENTON,
4 | A distorção consciente da 1993: 43). Em El sueño del celta, em diversos momentos, o narrador distorce a história. Mas a
história mediante omissões,
exageros e anacronismos. principal distorção se dá, primeiramente, pela apropriação dos black diaries5 como verdadei-
ros; segundo, o narrador, em diversos momentos, apresenta algumas passagens do diário
5 | Supostos diários de Roger
Casement, cuja veracidade como fantasias que Casement possuía, mas que não chegou a concretizar. Ou seja, Vargas
ainda é questionada.
Llosa desenvolve toda a narrativa levando em conta que Casement realmente escreveu os
6 | Regressando ao hotel dele, diários divulgados pela polícia britânica, mas distorce os dados, colocando-os como falsos,
presa da excitação, escreveu
numa linguagem vulgar e fruto da imaginação do autor. Isso fica claro no próximo fragmento, quando Roger aborda
telegráfica que utilizava para
os episódios mais íntimos: um rapaz barbadense, mas não obtém êxito, não conseguindo concretizar o ato sexual. Mes-
“banheiros públicos”. Filho de mo assim, ele fantasia em seu diário:
clérigo. Belíssimo. Falo longo,
delicado, que se esticou nas
minhas mãos. O recebi em
minha boca. Felicidade de De regreso a su hotel, presa de la excitación, escribió en el lenguaje vulgar y
dois minutos. telegráfico que utilizaba para los episodios más íntimos: “Baños públicos”. Hijo de
7 | De vez em quando, como clérigo. Bellísimo. Falo largo, delicado, que se entiesó en mis manos. Lo recibí en mi
tinha feito tantas vezes na
África e no Brasil, fazia amor boca. Felicidad de dos minutos.6 (LLOSA, 2010: 296)
a sós, rabiscando as páginas
de seu diário com letra
nervosa e apressada. Em outro momento da narrativa, o narrador mostra que nos muitos momentos de
solidão, Roger usava sua imaginação para escrever seu diário e “fazer amor a sós”: “De cuando
en cuando, como lo había hecho tantas veces en el África y en el Brasil, hacía el amor a solas,
garabateando las páginas de su diario con letra nerviosa y apurada”7 (LLOSA, 2010: 381).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A terceira característica, não menos importante para este artigo, é a de ficcionalização
de personagens históricos, em moldes diferentes ao proposto por Lukács. Para ele, os personagens
históricos, como vimos acima, tinham de ser colocados em segundo plano. Os protagonistas
eram pessoas medianas, como o próprio Ivanhoé. No NRH, surgem, como protagonistas, perso-
nagens históricos como Cristóvão Colombo, Francisco de Goya, Santos Dumont. Em El sueño del
celta, Roger Casement é o centro da narrativa, um protagonista não fictício. Esse fato também é
recorrente no subgênero romance de ditador, que aflorou no boom latino-americano. Augusto Roa
Bastos é, talvez, o maior expoente, com Yo el supremo, que narra a história do ditador perpétuo
do Paraguai, José Gaspar Rodríguez de Francia. Vargas Llosa também se destacou com La fiesta
del chivo, que conta a história do ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo. Portanto, no
NRH, o protagonismo passa àqueles que já possuíam uma história no imaginário coletivo.
A quarta característica é a metaficção, ou melhor, os comentários do narrador
sobre o processo de criação, nos moldes de Tristam Shandy. No final do século XIX no Brasil,
tem como um dos grandes exemplos, o romance Dom Casmurro. Em El sueño del celta, o nar-
rador não segue a forma shandyana. Seguindo a definição de Friedman (2002), em O ponto
de vista na ficção, o narrador do romance de Vargas Llosa é onisciente neutro, pois ainda que
haja onisciência, não há interferências explicitas do narrador.
A quinta característica refere à intertextualidade presente no NRH. Menton
(1993) cita novamente La guerra del fin del mundo, que possui intertextualidade com Os sertões,
como um dos grandes exemplos. Em El sueño del celta, há uma clara intertextualidade com os
black diaries de Roger Casement. Além da citação de diversas obras, como a Imitação de Cristo,
de Tomás de Kempis. A intertextualidade faz com que o texto histórico se aproxime ainda
mais da História e passe uma impressão de verdade ainda maior ao leitor.
Por fim, a última característica são os conceitos bakhtinianos de carnavalesco, de dia-
lógico, da paródia e da heteroglossia. Entre esses conceitos, vale destacar o de carnavalesco, desen-
volvido por Bakhtin ao analisar a obra de Rabelais. Bakhtin assinala a imagem grotesca do corpo
em Rabalais, em um dos capítulos de La cultura popular em la edad media y en el renacimiento. O gro-
tesco em Rabelais tinha como propósito, em grande medida, fazer rir. Veremos que em El sueño del
celta há uma explicitação das funções corporais, não para gerar riso, mas – essa é a ideia principal
deste artigo – para ficcionalizar o herói independentista, dando maior verossimilhança ao romance.

Roger Casement: herói ou santo? Humano.


Em recente estudo sobre El sueño del celta, Helene Carol Weldt-Basson recorre à teoria pós-
-colonial trabalhada por Homi Bhabha, que muda o foco da ficção histórica contemporânea
da representação colonial das tradições nacionais:

Where once, the transmission of national traditions was the major theme of world
literature, perhaps we can now suggest that transnational histories of migrants, the

Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro


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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
colonized, or political refugees, these border and frontier conditions, may be the
terrains of world literature... for the critic must attempt to fully realize and take
8 | Onde, antes, a transmissão responsibility for the unspoken, unrepresented pasts that haunt the historical present.8
de tradições nacionais foi o
principal tema da literatura
(BABHA, 2004: 17 apud WELDT-BASSON, 2013: 232)
mundial, talvez possamos
agora sugerir que histórias
transnacionais de migrantes, Mario Vargas Llosa retrata um Roger Casement absolutamente ambíguo. Em
colonizados ou refugiados
políticos, essas condições
muitos momentos é apresentado como um herói santo, que viajou ao Congo acreditando
de fronteira, podem ser que estaria levando a civilização ao povo bárbaro, desconhecendo os reais interesses coloni-
os terrenos da literatura
mundial (...) o crítico deve zadores europeus. Para ele, os civilizados:
tentar realizar plenamente e
assumir a responsabilidade
pelo não dito, o passado não (…) vendrían a ayudarlos a mejorar sus condiciones de vida, librarlos de plagas
representado que assombram
o presente histórico. como la mortífera enfermedad del sueño, educarlos y abrirles los ojos sobre las
verdades de este mundo y el otro, gracias a lo cual sus hijos y nietos alcanzarían una
9 | . (…) Viriam ajudá-los vida decente, justa y libre9 (LLOSA, 2010: 39)
a melhorar suas condições
de vida, livrá-los de pragas
como a mortífera doença Mas esse herói também é apresentado como um pecador, um pederasta pedófilo
do sono, educá-los e abrir
seus olhos sobre as verdades que não consegue controlar seus desejos carnais, contrapondo-se ao idealista defensor dos
deste mundo e do outro,
graças à qual seus filhos e direitos humanos: “Un muchacho muy joven, adolescente de quince o dieciséis años lo tur-
netos alcançariam uma vida bó”10 (LLOSA, 2010: 295).
decente, justa e livre.
Para Weldt-Basson (2013), esse dualismo entre santo e pecador forma a típica con-
10 | Um rapaz muito jovem,
adolescente de quinze o tradição do sujeito pós-colonial. Um sujeito que é colonizador, mas que também possui as
dezesseis anos lhe aturdiu. angústias do colonizado. Roger é europeu, mas mais do que isso é irlandês, um celta que
sonha com uma pátria independente. Roger é, pois, múltiplo. Ainda que refute a ideologia
colonialista, defendendo as minorias raciais

Although John is the defender of black and indigenous peoples in the novel, he treats
the native populations as objects of his sexual desire, a role that converts him from
11 | Embora Roger Casement defender of the colonized into the colonizer who views the colonized as sexual object.11
é o defensor dos povos negros
e indígenas no romance, ele
trata as populações nativas
como objeto de seu desejo
Para desenvolver o lado humano de Roger Casement, como disse há pouco, Ma-
sexual, um papel que o rio Vargas Llosa apropria-se dos black diaries e constrói sua narrativa levando em conta que
converte de defensor da
colonização no colonizador Roger realmente escreveu os diários, ainda que não tenha concretizado as passagens ali
que vê o colonizado como
objeto sexual.
narradas. O autor de El sueño del celta explicita isso no epílogo da narrativa:

Nunca cesó ni probablemente cesará la controversia sobre los llamados Black Diaries.
¿Existieron de verdad y Roger Casement los escribió de puño y letra, con todas sus
obscenidades pestilentes, o fueron falsificados por los servicios secretos británicos
para ejecutar también moral y políticamente a su antiguo diplomático, a fin de hacer

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
un escarmiento ejemplar y disuadir a potenciales traidores? (…) Mi propia impresión – la
de un novelista, claro está – es que Roger Casement escribió los famosos diarios pero
no los vivió, no por lo menos integralmente, que hay en ellos mucho de exageración
y ficción, que escribió ciertas cosas porque hubiera querido pero no pudo vivirlas.12 12 | Nunca terminou nem
provavelmente terminará
(LLOSA, 2010: 449) a controvérsia sobre os
chamados Black Diaries.
Existiram de verdade e
Vargas Llosa escolhe uma verdade histórica. Ou seja, a verdade que lhe é mais Roger Casement os escreveu
a punho, com todas suas
conveniente para construir seu argumento, seu romance. Ao analisar La guerra del fin mun- obscenidades pestilentas,
do, Menton (1993) deixou claro que a tendência pós-moderna e que influenciou diretamente ou foram falsificados pelos
serviços secretos britânicos
o novo romance histórico é de que não há uma única interpretação verdadeira da história para executar também moral
e politicamente a seu antigo
ou da realidade, ou seja, a realidade é inconcebível. Logo, o Antônio Conselheiro de A guerra diplomata, com o propósito
del fin del mundo não corresponde exatamente ao personagem histórico, líder espiritual em de fazer um escarmento
exemplar e dissuadir
Canudos. Assim como o Roger Casement de El sueño del celta é fruto do olhar do romancista. potenciais traidores? (...) Minha
própria impressão –a de um
Se em A guerra del fin del mundo, Menton (1993) disserta que Vargas Llosa coloca romancista –é claro –é que
como pano de fundo o confronto em Canudos para refletir sobre o fanatismo em várias Roger Casement escreveu
os famosos diários mas não
instâncias; em El sueño del celta, o autor desenvolve seu argumento mostrando como se desen- os viveu, não pelo menos
integralmente, pois há neles
volveu a luta contra o colonialismo – Roger além de lutar insistentemente contra o colonia- muito exagero e ficção, e que
lismo irlandês, não mediu menores esforços na luta contra o colonialismo e suas consequên- escreveu certas coisas porque
quis, mas não pode vivê-las.
cias atrozes no Congo.
Voltando aos black diaries. Mostra-se leviano pensar que essa ficcionalização do
herói se dá apenas em trechos do diário. Em muitos momentos na narrativa, o narrador re-
lata o que Roger estava sentindo em cada momento histórico. O ficcional é ainda exacerbado
com a narração de momentos de dor e alívio passados pelo personagem histórico que, nessas
passagens, ganha uma maior ficcionalidade: “La memoria le devolvió a Roger el recuerdo de
aquel día de junio de 1890 cuando, transpirando por el húmedo calor del verano que empe-
zaba y fastidiado por las picaduras de los mosquitos que se encarnizaban contra su piel de
extranjero.”13 (LLOSA, 2010: 72). 13 | A memória devolveu a
Roger a recordação daquele
Nos momentos em que o narrador demonstra sua simpatia por Roger Casement, dia de junho de 1890
explicitando que o protagonista se apiedou pelos congoleses, também se exacerba o processo quando, transpirando pelo
húmido calor do verão que
de ficcionalização. Para dar maior veracidade, novamente o narrador onisciente explicita o começava y irritado pelas
picadas de mosquitos que se
que o protagonista estava sentindo: “Rojo de ira, sudando a chorros, daba un pequeño bufi- enfureciam contra sua pele
do a cada chicotazo.”14 (LLOSA, 2010: 57). Como o narrador está do lado de Roger, deixa-se de estrangeiro.

claro ao longo de toda narrativa o mal-estar que o herói irlandês sentia frente às enormes 14 | Vermelho de ira, jorrando
suor, dava uma pequena
atrocidades presenciadas por ele no Congo: “A Roger esas visitas a las tribus le provocaban sussurrada a cada chicotaço.
un malestar que aumentaría con los años”15 (LLOSA, 2010: 61).
15 | A Roger essas visitas às
Essa simpatia do narrador pelo protagonista é fruto da admiração de Vargas Llo- tribos lhe provocavam um
mal-estar que aumentaria
sa pela história de Roger Casement. Em carta enviada pelo romancista a Angus Mitchell, com o passar dos anos.
Vargas Llosa salientou as qualidades do irlandês, dignas de um verdadeiro herói:

Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro


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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
Além de lutar insistentemente pelos Direitos Humanos e defender os povos indígenas,
Roger Casement foi um observador perspicaz da natureza, da vida social e dos
diversos tipos humanos que cruzaram sua vida (...) Tudo que tenho lido de Casement,
inclusive seus informes e mensagens da vida consular, tem observações sagazes e
originais, e revelam um homem de grande sensibilidade, sem preconceitos e ávido
por conhecer a realidade sem deixar que sua visão seja ofuscada por prejuízos e
lugares comuns. (MITCHELL, 2011: 11)

Como o narrador insere os dados históricos na narrativa?


El sueño del celta começa com as seguintes palavras:

Cuando abrieron la puerta de la celda, con el chorro de luz y un golpe de viento entró
también el ruido de la calle que los muros de piedra apagaban y Roger se despertó
16 | Quando abriram a
porta da cela, com o jato de asustado. Pestañeando, confuso todavía, luchando por serenarse, divisó, recostada
luz e uma rajada de vento
en el vano de la puerta, la silueta del sheriff. Su cara flácida, de rubios bigotes y
entrou também o ruído da
rua que os muros de pedra ojillos maledicentes, lo contemplaba con la antipatía que nunca había tratado de
sufocavam e Roger acordou,
assustado. Pestanejando, disimular. He aquí alguien que sufriría si el Gobierno inglés le concedía el pedido de
ainda confuso, lutando para
clemencia.16 (LLOSA, 2010: 13, grifos nossos)
serenar-se, avistou, encostada
no vão da porta, a silhueta
do sheriff. Seu rosto flácido,
de bigode loiro e olhinhos A partir do primeiro parágrafo fica claro que o livro de Vargas Llosa trata-se de um
maledicentes, contemplava-o
com a antipatia que nunca
romance. O fica claro pela linguagem empregada, como no fragmento “o ruído da rua que os mu-
tinha tentado dissimular. ros de pedra sufocavam”. Percebe-se também que uma primeira pista de que o livro pode ser lido
Eis aqui alguém que sofreria
se o Governo inglês lhe como ficção histórica, pois já há a presença de um dado histórico influenciando diretamente na
concedesse o pedido de
clemência.
narrativa: vemos que um personagem sofreria se o pedido de clemência (de que pedido se trata
ainda não se sabe nesse primeiro parágrafo) fosse concedido a Roger (ainda não sabemos que esse
17 | O homem era alto e tão
magro que parecia sempre Roger é o herói irlandês, Roger Casement).
de perfil. Sua pele era escura,
seus osso proeminentes e
Com o propósito de analisar o estilo literário de Vargas Llosa na tessitura de seus ro-
seus olhos ardiam com fogo mances que podem ser lidos como ficção histórica, vejamos um fragmento de La guerra del fin del
perpétuo. Calçava sandálias
de pastor e a túnica roxa mundo (1981):
que lhe caía sobre o corpo
recordava o hábito desses
missioneiros que, de vez em El hombre era alto y tan flaco que parecía siempre de perfil. Su piel era oscura, sus
quando, visitavam as vilas do
sertão batizando multidões huesos prominentes y sus ojos ardían con fuego perpetuo. Calzaba sandalias de
de crianças e casando os
pastor y la túnica morada que le caía sobre el cuerpo recordaba el hábito de esos
casais amancebados. Era
impossível saber sua idade, misioneros que, de cuando en cuando, visitaban los pueblos del sertón bautizando
sua procedência, sua história,
mas algo havia em seu muchedumbres de niños y casando a las parejas amancebadas. Era imposible saber
aspecto tranquilo, em seus
su edad, su procedencia, su historia, pero algo había en su facha tranquila, en sus
costumes moderados, em
sua inalterável seriedade que, costumbres frugales, en su imperturbable seriedad que, aun antes de que diera
ainda antes de que desse
conselhos, atraía as pessoas. consejos, atraía a las gentes.17 (LLOSA, 2008: 17)

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Não podemos, por meio desse fragmento, afirmar que La guerra del fin del mundo
pode ser lido como ficção histórica. Ainda que saibamos, após a leitura de toda a obra, que
o homem alto e magro que vestia uma túnica roxa é o líder espiritual Antônio Conselheiro,
não há pistas nesse primeiro parágrafo, diferentemente de El sueño del celta. Apenas no séti-
mo parágrafo da narrativa, o narrador vai revelar que o nome desse homem alto e misterio-
so era Antônio Vicente, de sobrenome Mendes Maciel, e de apelido “o Conselheiro”.
Essa comparação entre os dois romances de Vargas Llosa serve para começarmos
a falar de como se insere o dado histórico na narrativa. Acima focamos em como o narrador
desenvolve o personagem histórico Roger Casement, ora herói, ora pecador. Agora analisa-
remos como a História, ou seja, como o contexto histórico tem papel importante em El sueño
del celta. E de como esse contexto é inserido de várias maneiras, por isso a comparação inicial
entre dois romances que distam em trinta anos na produção romanesca do autor.
Há em El sueño del celta diversas referências a momentos históricos. Sem recorrer
a nenhum manual de História, ou seja, apenas pelo texto ficcional, sabemos da existência de
diversos momentos importantes historicamente ao longo da primeira metade do século XX.
Hobsbawm (2011) aponta para a relação entre a Primeira Guerra Mundial e a estrutura do
colonialismo mundial. No romance de Vargas Llosa, essa relação é amplamente trabalhada.
Vejamos primeiramente as palavras do crítico marxista:

Contudo, a Primeira Guerra Mundial foi o primeiro conjunto de acontecimentos que


abalou seriamente a estrutura do colonialismo mundial, além de destruir dois
impérios (...) e derrubar temporariamente um terceiro (...) O único império que 18 | Rebelião irlandesa
arquitetada durante a
enfrentava sérios problemas em algumas áreas – isto é, problemas que não podiam quaresma, cujo estopim se
deu na semana santa de
ser tratados com operações de polícia – era o britânico. Em 1914 já havia concedido 1916. O objetivo principal era
autonomia interna às colônias de assentamento branco massivo, conhecidas desde a independência da Irlanda,
ainda sob domínio britânico.
1907 como “domínios” (Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul), e estava
19 | Vale ressaltar que não
comprometido com a autonomia (“Governo Interno”) para a sempre se pode afirmar quais
problemática Irlanda. (HOBSBAWM, 2011: 208, grifos nossos) eram “os reais motivos”
da relação. O narrador, no
romance, desenvolve o
argumento de que Roger se
Essa sempre problemática Irlanda é retratada no livro pela citação em diversas aliou aos germânicos com
vezes da Revolta da Páscoa18. Vemos, ao longo do romance, como se arquitetou a revolta e o único interesse de que
estes ajudassem a Irlanda a
como esconderam os planos finais de Roger Casement, pois havia uma desconfiança geral conseguir a independência do
Império britânico.
em relação a ele, posto que os reais motivos de sua forte relação com o Império alemão ainda
eram desconhecidos.19 20 | É provável que eu passe
à História como um dos
Vejamos no seguinte fragmento como o narrador intercala o dado histórico (A responsáveis da Revolta da
Páscoa –disse com ironia –o
Revolta da Páscoa) com o plano ficcional: “Es probable que yo pase a la Historia como uno senhor e eu sabemos que vim
de los responsables del Alzamiento de Semana Santa – dijo con ironía –. Usted y yo sabemos aqui colocando minha vida
em risco para tentar deter
que vine aquí jugándome la vida para tratar de detener esa rebelión”20 (LLOSA, 2010: 130). essa rebelião.

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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
Essa ironia fica clara no contexto narrativo, pois Roger, como disse acima, não participou
ativamente do conflito e tentou, de todas as formas barrá-lo, pois, para ele, as chances de
vitória eram pequenas.
Esse é sem dúvida o grande mérito de Vargas Llosa em El sueño del celta: o roman-
ce consegue amarrar História e ficção de forma satisfatória. Não há capítulos deslocados
com dados históricos, que aparecem ao longo da narrativa em meio ao contexto ficcional.
Por isso, El sueño del celta pode ser considerado um romance bem realizado. Isso fica claro se
analisamos as várias visitas que Roger Casement recebe da historiadora Alice Stopford Gre-
en – famosa estudiosa da história e dos costumes irlandeses. A partir de suas visitas à prisão
em que Roger passou os últimos dias de vida, somos informados – assim como o protagonis-
ta – de diversos eventos históricos. O narrador revela o sentimento dos personagens frente
aos dados históricos. Vejamos uma passagem em que esse êxito narrativo fica claro:

(...) Yo también estuve en contra de este Alzamiento, en estas condiciones. Y, sin


embargo…
Sin embargo qué, Alice?
Por unas horas, por unos días, toda una semana, Irlanda fue un país libre, querido
– dijo ella, y a Roger le pareció que Alice temblaba, conmovida –. Una República
21 | .- (...) Eu também fui independiente y soberana, con un presidente y un Gobierno Provisional21 (LLOSA,
contra essa Revolta, nestas
condições. E, entretanto... 2010: 350).
–Entretanto que, Alice?
–Por umas horas, por uns
dias, por toda uma semana, Alice ressalta ainda toda a simbologia que a Revolta possuía para os irlandeses.
Irlanda foi um país livre,
querido –disse ela, a Roger Ainda que muitos rebeldes tenham morrido, o valor histórico da revolta era imensurável.
pareceu que Alice tremia, Aqui novamente são inseridos, em meio ao discurso ficcional, nomes presentes na história
comovida -. Uma república
independente e soberana, da Irlanda:
com um presidente e um
Governo Provisório.
– Es un símbolo y la Historia está hecha de símbolos – asintió Alice Stopford Green -.
22 | .- É um símbolo e a
História é feita de símbolos – No importa que hayan fusilado a Pearse, a Connolly, a Clarke, a Plunkett y demás
assentiu Alice Stopford Green
–. Não importa que tenha firmantes de la Declaración de Independencia. Al contrario. Esos fusilamientos han
fuzilado a Pearse, a Connoly, bautizado con sangre a ese símbolo, dándole una aureola de heroísmo y martirio22
a Clarke, a Plunkett, e demais
assinantes da Declaração de (LLOSA, 2010: 352)
Independência. Ao contrário.
Esses fuzilamentos batizaram
com sangue esse símbolo, A Revolta da Páscoa não é o único conflito histórico retratado no livro. Conforme
dando-lhe uma auréola de
heroísmo e martírio. assinalamos acima, outros conflitos de enorme importância, como a Primeira Guerra Mundial,
são trabalhados no livro e revelam, por meio do discurso do narrador onisciente, um Roger
idealista e, em alguns momentos, decepcionado com o fato de o Reich ignorar a causa indepen-
dentista irlandesa. Vejamos no fragmento abaixo como, além dos dados históricos interligados
com a ficcionalidade, há a presença de uma carta, que confirmaria a história narrada:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Entonces, con la misma vehemencia con que había admirado a Alemania, comenzó
a sentir por este país un desagrado que se fue convirtiendo en un odio semejante, o
acaso mayor, que el que le inspiraba Inglaterra. Así se lo dijo en una carta al
abogado John Quinn, de New York, luego de contarle el maltrato que recibía de las
autoridades: “Así es, mi amigo: he llegado a odiar tanto a los alemanes que, antes de
morir aquí, prefiero la horca británica”23 (LLOSA, 2010: 430) 23 | Então, com a mesma
veemência com que tinha
admirado a Alemanha,
Essas cartas de Roger Casement foram fundamentais para que Mario Vargas Llo- começo a sentir por esse
país um desagrado que
sa escrevesse seu romance. Mitchell (2011) revela que em muitas correspondências particula- foi se tornando um ódio
semelhante, ou até mesmo
res e até mesmo oficiais aos seus colegas, Roger explicitou o desagrado de ser cônsul no maior, que o que lhe
Brasil e criticou ostensivamente o povo e a cultura brasileira. Também lhe desagradava a inspirava a Inglaterra. Assim
lhe disse em uma carta ao
monotonia e o elevado custo de vida em Santos e, depois, no Rio de Janeiro. Deve-se salien- advogado John Quinn, de
New York, depois de lhe
tar que seu serviço como cônsul no Brasil foi após sua experiência no Congo. Ou seja, Roger contar os mau tratos que
contrapunha a monotonia no Brasil ao intenso e agitado trabalho em terras africanas. Essa recebia das autoridades: “É
assim, meu amigo: cheguei a
experiência no Brasil também foi desenvolvida por Vargas Llosa no romance: odiar tanto os alemães que,
antes de morrer aqui, prefiro
a forca britânica”.
Tal vez el escaso entusiasmo con que retomó la carrera diplomática contribuyó a
hacer de esos cuatro años en el Brasil – 1906-1910 – una experiencia frustrante. (…)
Lo que más do deprimió fue que, a diferencia del Congo, donde, pese a las dificultades,
tuvo siempre la impresión de trabajar por algo trascedente, que desbordaba el marco
consular, en Santos su actividad principal tenía que ver con los marineros británicos
borrachos que se metían en líos y a los que él tenía que sacar de la cárcel, pagar sus
24 | Talvez o escasso
multas y devolver a Inglaterra. (…) Donde lo pasó peor fue en Río de Janeiro, en entusiasmo com que
retomou a carreira
1909. El clima empeoró todos sus males y les añadió unas alergias que le impedían de diplomática contribuiu a
dormir.24 (LLOSA, 2010: 145) fazer desses quatro anos
no Brasil –1906-1910 –uma
experiência frustrante. O que
mais lhe deprimiu foi que,
Considerações finais diferentemente do Congo,
Ao longo deste artigo vimos inicialmente a primeira grande teoria do Romance Histórico, onde, ainda que com as
dificuldades, teve sempre a
de György Lukács, e a teoria mais recente, usada para balizar esse trabalho, de Seymour impressão de trabalhar por
algo transcendente, que ia
Menton, do Novo Romance Histórico, pensando especificamente no hispano-americano. além do marco consular,
Quisemos deixar claro que – mesmo El sueño del celta não se enquadrando no modelo de em Santos sua atividade
principal estava relacionada
Lukács, que apresenta Ivanhoé como grande exemplo, ou no proposto por Jameson – a obra aos marinheiros britânicos
bêbados que se metiam em
pode ser lida como ficção histórica e que esse romance de Mario Vargas Llosa, publicado em confusão e aos que ele tinha
2010, segue a tendência do Novo Romance Histórico. A comparação de El sueño del celta com que tirar do cárcere, pagar
suas multas e devolver a
A guerra del fin del mundo e com outros romances históricos serviu para situar o último ro- Inglaterra. (...) Onde passou
pior foi no Rio de Janeiro, em
mance de Vargas Llosa na forte produção de romances históricos latino-americanos. 1909. O clima piorou todos
Mas mais que ficção histórica, El sueño del celta é um grande romance, uma obra bem seus males e lhe gerou umas
alergias que lhe impediam
acabada, fruto de várias pesquisas feita pelo autor e de sua maturidade intelectual. Se Roger de dormir.

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El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
Casement já é um personagem histórico complexo, cujo mistério permanece, o personagem
do romance de Vargas Llosa não perde em complexidade e multiplicidade. Há muitos Rogers
ao longo da narrativa, nas três partes que compõem o romance: Congo, Amazônia e Irlanda.
Em determinados momentos é um herói, como neste fragmento, em que o narrador o apre-
senta como um idealista, inconformado com as barbaridades na selva africana: “Roger pen-
só en su juventud, cuando la experiencia de la maldad y el sufrimiento, en el África, lo
inundaron de aquel sentimiento beligerante, de aquella voluntad pugnaz de hacer cualquier
25 | Roger pensou em cosa para que el mundo mejorara”25 (LLOSA, 2010: 156). Em outros, é pecador:
sua juventude, quando a
experiência da maldade
e o sofrimento, na África, Esa tarde volvió a los baños públicos (…) Se besaron, se mordisquearon las orejas y
inundaram-lhe daquele
sentimento beligerante, el cuello, mientras se quitaban los pantalones. Roger observó, ahogándose de deseo,
daquela vontade belicosa de
fazer qualquer coisa para que el falo negrísimo de Stanley y el glande rojizo y húmedo, engordando bajo sus ojos.26
o mundo melhorasse. (LLOSA, 2010: 297)
26 | Essa tarde voltou aos
banheiros públicos (...)
Beijaram-se, mordicaram- Roger Casement como santo ou pecador é apresentado como um sujeito moder-
se as orelhas e o pescoço, no, pós-colonial. Um grande visionário. Um dos primeiros europeus a lutar contra o colonia-
enquanto baixavam as
calças. Roger observou, lismo. Conforme a citação do poeta irlandês William Butler Yeats, Casement era um cida-
afogando-se de desejo, o falo
negríssimo de Stanley e a dão do mundo, sua luta era pelos direitos humanos: “Se lo oí decir alguna vez a Yeats: Roger
glande avermelhada e úmida, Casement es el irlandés más universal que he conocido. Un verdadero ciudadano del mundo”27
engordando sob seus olhos.
(LLOSA, 2010: 359).
27 | O ouvi dizer alguma vez
a Yeats: Roger Casement é Levando-se em conta que não existe uma única verdade, Mario Vargas Llosa
o irlandês mais universal questiona a perspectiva histórica consagrada. Se os black diaries são vistos por muitos como
que conheci. Um verdadeiro
cidadão do mundo. uma invenção com o propósito de denegrir a imagem do idealista celta, o romancista peru-
ano os dá como ‘verdadeiros’. Contudo, ainda que Roger os tenha escrito, para Llosa, ele não
viveu grande parte dessas narrativas.
Por fim, conforme aponta Perry Anderson, em Trajetórias de uma forma literária,
em resposta a Fredric Jameson, o romance histórico ainda é possível, mesmo que diste do
modelo do século XIX, cujo objetivo principal era a construção de identidades nacionais.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
ANDERSON, P. Trajetos de uma forma literária. In Novos estudos. São Paulo, nº 77, p. 205-220, mar. 2007

FREDMAN, N. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. In Revista USP. São
Paulo, nº 53, p. 167-182, março/maio 2002

HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2011
(publicado originalmente em 1995)

JAMESON, F. O romance histórico ainda é possível? In Novos estudos. São Paulo, nº 77, p. 185-203, mar. 2007

LLOSA, M. V. El sueño del celta. Buenos Aires: Alfaguara, 2010

__________ La guerra del fin del mundo. Buenos Aires, Alfaguara, 2008 (publicado originalmente em 1981)

LUKÁCS, G. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011 (publicado originalmente em alemão, em 1955)

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina: 1979-1992. México, Fondo de cultura
económica, 1993

Rodrigo Vasconcelos Machado | Wagner Monteiro


91
El Sueño del Celta: O Herói Irlandês Ficcionalizado no Novo Romance Histórico
MITCHEL, A. Roger Casement no Brasil: a borracha, a Amazônia e o Mundo do Atlântico 1884-1916. São
Paulo: Humanitas, 2011

WEINHARDT, M. O romance histórico na ficção brasileira recente. In CORREA, R. H. (Org.) Nem fruta
nem flor. Londrina: Humanidades, 2006, p. 131-172

WELDT-BASSON, H. El sueño del celta: postcolonial Vargas Llosa. In WELDT-BASSON, H. (org.)


Redefining Latin Historical American Fiction. Michigan: Michigan State University, 2013

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Entre a Poesia e a História: O
Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e
El Último Lector, de David Toscana

Between Poetry and History: The


Complex Narrative Setting in
Pedro Paramo, by Juan Rulfo, and
El Último Lector, by David Toscana

Daniele dos Santos Rosa


Doutora em Literatura pela
Universidade de Brasília,
Brasil. Professora da
Secretaria de Educação do
Distrito Federal.

danysr@gmail.com
Resumo Abstract
Este artigo tem por objetivo discutir o complexo This article aims to discuss the complex narrative
ambiente narrativo de duas importantes obras da setting of two important Latin American literary
literatura latino-americana: Pedro Páramo, de Juan works: Pedro Paramo, by Juan Rulfo, written in 1955,
Rulfo, de 1955, e El último lector, de David Toscana, and El último lector, by David Toscana, written in
de 2004. Muitos são os aspectos comuns entre os 2004. There are many aspects in common between
dois romances mexicanos, mas se aproximam, them, but the main one is the way they hold in
principalmente, por manterem na história a força History the power that allows both novels, as being
que as possibilitam, enquanto arte, captarem o art works, to collect the real and deep movement of
movimento real e profundo da história na Latin American History.
América Latina.
Keywords: Contemporary Literature, Juan Rulfo,
Palavras-chave: Literatura Contemporânea, Juan David Toscana, Historiography.
Rulfo, David Toscana, Historiografia.
D
istantes por quase cinquenta anos, Pedro Páramo, de Juan Rulfo, de 1955, e El
último lector, de David Toscana, de 2004, trazem ao leitor contemporâneo um
universo que é puramente local, mexicano, mas, ao mesmo tempo, se impõe
como universal, pois seus questionamentos envolvem diretamente a vida
humana, em especial, o fazer literário e a história literária nas nações periféricas. Nesse
sentido, este artigo propõe, não apenas a aproximar esses romances, mas discutir o complexo
ambiente narrativo comum dessas duas obras da literatura latino-americana, que se
assemelham, principalmente, por manterem na história a força que as possibilitam,
enquanto arte, captarem o movimento real e profundo da história na América Latina.
O primeiro ponto de aproximação entre essas duas obras está no tema. Nelas, a
morte é o assunto principal. Em Rulfo, a morte é anunciada no tom fantasmal que envolve
a narrativa, desde o encontro de Juan Preciado com Abundio, os gritos e as sombras na casa
de Eduviges, até o desaparecimento repentino das pessoas nas ruas de Comala. Depois,
somente durante a leitura, descobre-se que se trata de uma narração feita por mortos, ou
seja, relata-se a morte de Pedro Páramo como questão central, por intermédio de difuntos,
que em suas tumbas conversam. Assim, a morte, como um assunto especial para o povo

Daniele dos Santos Rosa


95
Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
mexicano e universal da existência humana, está em Pedro Páramo interiorizada no tema e
no modo de narrar, na constituição e na caracterização dos personagens.
Por sua vez, em El último lector, não há a presença do tom fantasmal; não são
fantasmas que narram, porém será o falecimento de uma criança que conduzirá o movimento
do mundo narrativo. É a aparição de Anamari, a menina da escola, encontrada sem vida no
poço de Remigio, que moverá a vida estancada dos moradores de Icamole. Mas, assim como
em Pedro Páramo, a morte não é a chegada do sofrimento ou da perdição: é parte da natureza
humanae coloca-se como parte fundamental da vida e, principalmente, da possibilidade de
comprensão da existência. Por isso, a morte parece apenas um motivo: a leitura do romance
de Toscana não traz as causas do óbito da menina, apenas suas consequências.
Junto à temática central, outro aspecto que aproxima as duas obras, temporalmente
distantes, é o ambiente narrativo. Icamole é como Comala, uma cidade desolada. Comala é
comparada ao inferno, é muito quente, sem ar. Juan Preciado, ao chegar à cidade, pergunta a seu
guia Abundio se há alguém, pois é como se todos estivessem mortos. A resposta é afirmativa:

– ¿Qué dice usted?


– Que ya estamos llegando, señor.
– Sí, ya lo veo. ¿Qué pasó por aquí?
– Un correcaminos, señor. Así les nombran a esos pájaros.
– No, yo preguntaba por el pueblo, que se ve tan solo, como si estuviera abandonado.
Parece que no lo habitara nadie.
– No es que lo parezca. Así es. Aquí no vive nadie.
– ¿Y Pedro Páramo?
– Pedro Páramo murió hace muchos años. (RULFO, 1996, p. 183)

Icamole não é diferente:

La sequía alcanzó un punto intolerable. Prácticamente nada de lo vivo podía


comerse: no las hierbas secas, no las víboras que apenas dejaban atrapar, no las aves
que pasaban burlonas, sólo de paso, porque a qué ser estúpido se le ocurría hacer ahí
una madriguera, un nido, una casa. Había llegado la hora de alimentarse con
insectos o de partir. Si el agua no es fiel a estas tierras, dijo el padre Pascual, tampoco
nosotros le debemos fidelidad.
(TOSCANA, 2004, p. 53)

Muitos são, portanto, os aspectos comuns entre esses dois romances: o mundo
desolado de Comala e Icamole e a morte como tema central. É possível entrever, então, entre
a produção literária de Juan Rulfo e as obras publicadas de David Toscana, a formação de um

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
movimento que mantém uma relação íntima de continuidade e de ruptura entre as obras,
como bem salienta José Joaquín Blanco, citado por Castañeda:

la polémica de la modernización llena nuestra literatura reciente; se le canta y se le


denuncia, se le analiza y se le documenta, se le describe y se le sueña. Los novelistas,
por una parte, cierran el mundo mexicanista, indígena y rural, y si pierden en las
vastas y caóticas dimensiones urbanas; en lugar de identificar comunidades o clanes,
descubren sicologías, metafísicas, estéticas modernas […].
(BLANCO, 2008, p. 146)

Forma-se, na literatura mexicana da segunda metade do século XX e do início do
século XXI, uma tradição literária, na qual se expõe uma profunda busca pela inovação
formal, por meio de uma necessidade inerente de retorno à história do povo mexicano, em
seus momentos cruciais, como uma constante autocrítica de si.
Em Rulfo, é nítida a presença da revolução ocorrida no início do século XX no
México, bem como eventos posteriores, como a Revolta Cristera. Em Toscana, a presença da
história como documento factual também se impõe. No caso de El último lector, as referências
documentais são mais dispersas, mas marcam bem a que momento da história do povo
mexicano se quer referir, como os fragmentos citados a seguir poderão mostrar. Porém, em
seu romance El ejército iluminado, publicado em 2006, serão a Batalha em El Álamo, em 1836,
e o Massacre de Tlatelolco, em 1968, que marcarão de forma mais contundente a narrativa.
Nesse sentido, é necessário compreender de que forma se dá essa relação entre
esses romances que, distantes no tempo, levam os leitores a uma situação objetiva muito
concreta, por meio de narrativas que buscam inovar e inverter as formas tradicionais de
narração, como será tratado a seguir. Antes, faz-se necessário breves comentários acerca do
espaço que as obras de Toscana ocupam no cenário literário atual.
O fim da década de 1960 e o início da década de 1970 estão marcados pela produção
literária denominada como pós-moderna, cuja característica principal está indicada pela
crítica no experimentalismo. Esse se fundamenta em uma confusão entre as temporalidades,
em que os limites entre o antigo e o moderno não estão marcados, assim como o narrador,
os personagens e o espaço passam por uma constante transformação, já que o passado, o
presente e o futuro estarão conjugados no mesmo “agora” da narrativa.
Essa produção literária vem conjugada ao Movimento Estudantil de 1968, que
merece destaque devido à sua importância histórica, social e literária. Como parte das
reivindicações decorrentes da instabilidade política e social, forma-se no país um levante
ligado mais diretamente aos professores e alunos da Universidade Autônoma do México,
cuja reivindicação central era a melhoria nas condições de ensino, mas levou à ocupação do
campus pelo Exército. Esse movimento sofreu uma ampliação após o Massacre de Tlatelolco,

Daniele dos Santos Rosa


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Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
ocorrido em 2 de outubro de 1968, no qual as tropas das Forças Armadas reprimiu violentamente
uma manifestação na Plaza de las Tres Culturas, com um número total de mortos ainda
desconhecido. Essa ação violenta autorizada pelo então presidente Gustavo Díaz Ordaz deu
início a mais protestos ao longo de 1968 e marcou profundamente a produção literária das
décadas posteriores.
Nesse sentido, serão ao mesmo tempo um fato histórico objetivo e a produção
de obras experimentais no ano de 1968, como Inventando que sueño, de José Agustin, e El
hipogeo secreto, de Salvador Elizondo, que marcarão um novo momento na historiografia
literária mexicana.
A força significativa de momentos como em 1968, somada a outra repressão
violenta ao movimento estudantil em 1971 (el Halconazo), ocorrida em 10 de junho, com mais
mortos e feridos, impulsionou os intelectuais, entre eles os literatos, a uma aproximação
ainda mais crítica das formas sociais e culturais desenvolvidas no México, com obras como
La noche de Tlatelolco, de Elena Poniatowska, de 1971, e Los días y los años, de Luis Gonzáles Alba,
escrito durante sua prisão após a liderança e participação no movimento estudantil de 1968.
Trata-se, portanto, não de uma vinculação direta entre o fato histórico e a
escritura literária, como pode parecer de antemão, mas de uma relação muito mais profunda
entre a história e a literatura, no sentido em que esta se faz produtora da própria história,
como se dá nessas obras citadas.
Essa produção da história pela obra de arte literária é importante salientar, não
se constitui apenas como um discurso historiográfico a mais, mas como projeção ficcional
que questiona a veracidade dos outros discursos e a suas próprias afirmações. Ao tratamos
da produção ficcional, falamos de um mundo outro criado a partir de suas próprias regras,
mas que em sua própria realização formal carrega as marcas humanas do trabalho, ou seja,
as marcas profundas da vida humana objetivada na História.
Assim, essa identificação da presença da História como eixo constituidor de uma
tradição na historiografia literária mexicana não se prende à citação dos momentos históricos,
mas ao sentido histórico que essa presença assume na própria constituição da obra literária
como mundo autônomo, como potencialidade humana de recriação de sua própria história.
Parte desse movimento de inovação literária, decorrido nas décadas de 1960 e
1970, será denominado como La Onda. Esse movimento tinha por intuito uma pretensão
inovadora no âmbito da linguagem, por meio da utilização de um palavreado então
denominado como pop, além de uma temática prioritariamente urbana e íntima relação
com os mais diversos assuntos da contemporaneidade, como o rock and roll, drogas, sexo,
entre outros. Escritores como José Agustín e Gustavo Sainz buscavam uma máxima
atualização, por meio de uma intensa experimentação dos recursos formais, e uma
universalização de temas, tentando distanciar-se da então temática rural, considerada
arcaica e ligada aos movimentos revolucionários e reivindicatórios mexicanos.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Influenciados por esse movimento juvenil de pretensões inovadoras, ao mesmo
tempo em que se buscava a literatura produzida por Jorge Luis Borges e por Julio Cortázar,
autores como Carlos Fuentes e Salvador Elizondo publicam significativas obras, como
Cumpleaños (1969) e Terra Nostra (1975), Farabeufy (1965) e El hipogeo secreto (1968),
respectivamente, introjetando fôlego à produção literária mexicana ao se absterem da
extremada fuga dos temas locais, sem abrirem mão da inovação formal conquistada e em
desenvolvimento.
Como resultado dessas diversas forças em ebulição (o novo e o antigo, o local e o
universal, o experimentalismo e a tradição), a década de 1990 e o início do século XXI serão
marcados por um novo movimento literário mexicano, denominado “el Crack”, e pelo
aparecimento na cena literária mexicana de David Toscana Também se destaca a publicação
de importantes obras de autores já então consagrados como Carlos Fuentes, que tem sua
obra de ficção completa até então publicada em 1996, e o aparecimento de Diana o la cazadora
solitaria, que é a primeira de três crônicas romanceadas sobre a América Latina; e Sérgio
Pitol, com a publicação de El arte de la fuga, em 1996, e sua Obra reunida, em 2004.
Constituído como um manifesto artístico, o movimento Crack destinou-se
inicialmente a apresentar uma série de romances, de jovens autores, com certa similitude na
seleção de temas e de formas estéticas. Essa publicação, de 1996, trouxe ao público, além da
listagem dos seus romances partícipes: El temperamento melancólico, de Jorge Volpi; Memoria
de los dias, de Pedro Ángel Palou; Si volviesen sus majestades, de Ignacio Padilla; La conspiración
idiota, de Ricardo Chávez Castañeda; y Las rêmoras, de Eloy Urroz; uma série de ensaios,
escritos pelos próprios literatos, que buscavam definir essa nova tendência na literatura
mexicana, como busca afirmar Palou:

Las novelas del Crack no nacen de la certeza, madre de todos los aniquilamientos
creativos, sino de la duda, hermana mayor del conocimiento [...] las novelas del
Crack apuestan por todos los riesgos. Su arte es, más que el de lo completo, el de lo
incumplido. (PALOU, s./d.)

Sem pertencer assumidamente a essa nova tendência literária do México, porém


com muitas aproximações, David Toscana publica em 1992 seu primeiro romance, Las
bicicletas, dando início a uma produção intensa. Diferentemente da pretensão dos autores da
La Onda, que buscavam uma ruptura com o passado literário, em especial com os autores da
Literatura Fantástica, Toscana parece conjugar em suas obras as forças ainda em ebulição na
literatura mexicana, que são o desejo e o apelo ao experimentalismo, conjugado com uma
resistência da tradição, assim como a necessidade de se buscar o presente por meio da
narrativa do passado, conforme tentar-se-á demonstrar na análise dos fragmentos textuais
apresentados neste artigo.

Daniele dos Santos Rosa


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Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
Nesse breve panorama da literatura mexicana do século XX e início do século
XXI, aqui disposto de forma introdutória, ressalta-se esse movimento inerente entre a
produção literária, em sua busca constante por inovação, e experimentação, ao mesmo
tempo em que se coloca como parte essencial de sua consubstancialidade a vinculação
dialética com a história factual mexicana. Se a Revolução Mexicana deixa de ser tema na
década de 1960, serão os movimentos estudantis de 1968 e 1971 que marcarão profundamente
essa nova narrativa, ou, de forma mais extrema, será o período de governo de Porfírio Dias,
diretamente anterior à Revolução, que aparecerá na narrativa contemporânea, como no
romance El último lector, aqui analisado.
Assim, este artigo apresenta a formação de uma tradição literária, em que a
causalidade interna parece manter-se também pelas forças locais, em um movimento que
parte do romance da Revolução, centraliza-se e ganha força em Juan Rulfo, até chegar à
contemporaneidade, numa constante contradição dialética entre o local e o universal.
Nesse sentido, a aproximação entre as duas obras se distancia do nível superficial
para se estabelecer também na construção do mundo da enunciação: há semelhança também
no uso dos recursos narrativos baseados em uma fragmentação da instância narrativa.
Nessas obras há múltiplos narradores, em diferentes vozes. Começaremos por Pedro Páramo.
Pedro Parámo é formado por 63 pequenas narrações. Nessa obra não há separação
entre capítulos, apenas narrativas intercaladas por espaços em branco. Trata-se da chegada
de Juan Preciado a Comala, em busca de seu pai, Pedro Páramo, a pedido de sua mãe,
Dolores, no momento de sua morte. A busca pelo pai perde-se entre tantas outras histórias,
que ganham lugar no romance: a vida de Pedro Páramo, sua infância e como realiza o
negócio da família; seu amor e sua busca por Susana San Juan, enloquecida devido aos
acontecimentos de sua infância; a vida difícil e dolorosa de Dorotea, com seu desejo e sua
incapacidade para ter filhos; a vida de Abundio e muitos outros moradores de Comala, que
sofrem uma série de dificultades por causa dos comandos e dos excessos de Pedro Páramo.
Por fim, junto à morte de Preciado, o leitor se depara com uma cidade que se descompõe e
converte-se em um povoado de almas penadas, como no fragmento a seguir:

– Este pueblo está lleno de ecos. Tal parece que estuvieran cerrados en el hueco de las
paredes o debajo de las piedras. Cuando caminas, sientes que te van pisando los
pasos. Oyes crujidos. Risas. Unas risas ya muy viejas, como cansadas de reír. Y voces
ya desgastadas por el uso. Todo eso oyes. Pienso que llegará el día en que estos
sonidos se apaguen. (RULFO, 1996, p. 218)

“Ecos”, “crujidos”, “risas”, “voces ya desgastadas”, é este ambiente que Juan


Preciado encontra ao chegar a Comala, a procura de seu pai Pedro Páramo. Os risos velhos

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
ou as vozes desgastadas pelo uso carregam em si a passagem de um tempo, um tempo que
se desmaterializa, pois não há seres, são os sons, esses ecos “que te van pisando los pasos”, que
se fazem presentes, até que pelo desgaste apagar-se-ão.
São esses ecos que constituem Pedro Páramo. Os ecos que persistem e ainda são
ouvidos em Comala. São os mesmos sons que formam esse mundo ficcional, que constituem
a obra literária, também como vozes desgastadas que se repetem ao infinito, iniciam-se e
finalizam-se a cada leitura do romance.
Assim, esse fragmento refere-se ao mesmo tempo à Comala, ao mundo ficcional
criado, bem como à obra literária, que, como trabalho, relaciona-se dialeticamente à história
humana, mais especificamente à vida e à história do povo mexicano.
Essa dissolução do tempo e do espaço, que aparentemente transforma o romance em um
conjunto de fragmentos desconexos, fornece à obra um tom fantasmal muito particular.
Esse tom fantasmal é fortalecido pela descoberta do leitor, já no meio do romance, de que se
trata de um diálogo entre corpos mortos, em que tudo o que foi lido até então é uma conversa
entre Juan Preciado e Dorotea, enterrados na mesma tumba.
No romance rulfiano, a presença do irreal ou do insólito é bem complexa, pois
esse tom fantasmal é a todo tempo questionado, rompido. De um início totalmente envolto
no inexplicável, a narrativa caminha para seu oposto: a linearidade temporal, fundamentada
na vida de Pedro Páramo, contada por um narrador em terceira pessoa, que contribui para
o rebaixamento das explicações sobrenaturais para a simplicidade do cotidiano.
É importante salientar que essas pequenas narrativas ocorrem internamente no
romance por meio de diferentes épocas. Há idas e vindas na história desses personagens, por
intermedio de uma temporalidade difusa, formada por muitos planos narrativos diferentes.
No fragmento 64, lemos parte do diálogo entre Dorotea e Juan Preciado. Como
já sabemos, os dois, enterrados na mesma tumba, conversam. É uma conversa longa, eterna
e atemporal, situada no presente da enunciação, que marcará a obra como um todo,
revelando-se apenas no meio do livro. Dorotea está muito interessada no que está sendo dito
por outros mortos e pede que Juan Preciado lhe conte o que ouve. Após a narração de um
momento da vida de Susana, Dorotea inicia o fragmento com a seguinte frase: “Yo. Yo vi
morir a doña Susanita.”. Como características gerais, podemos verificar que se trata do
presente da narrativa; é uma continuidade indireta do fragmento 55 (parte do diálogo) e
liga-se de forma temática, mas não linear, ao fragmento imediatamente anterior, no qual se
narra o momento da morte de Susana, e Dorotea é uma das mulheres ali presentes:

– Yo. Yo vi morir a doña Susanita.


– ¿Qué dices, Dorotea?
– Lo que te acabo de decir. (RULFO, 1996, p. 294)

Daniele dos Santos Rosa


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Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
No fragmento 66, por sua vez, há um rompimento temporal e temático maior: já
não se trata mais da morte de Susana San Juan. É um diálogo entre El Tilcuate e Pedro
Páramo sobre suas investidas na Revolução Mexicana. O cacique de Comala, a fim de proteger
sua propriedade, estabelece contato com os revolucionários, promete a eles dinheiro e
homens e manda seu empregado para, junto a eles, inserido na guerrilha, buscar manter sua
posição como terrateniente.
Em forma de diálogo, apenas iniciado por um narrador, El Tilcuate vai contando a
Pedro Páramo as mudanças e os choques de poder que ocorrem durante os anos da Revolução:

El Tilcuate siguó viniendo:


– Ahora somos carrancistas.
– Está bien.
– Andamos con mi general Obregon.
– Está bien.
– Allá se ha hecho la paz. Andamos sueltos.
– Espera. No desarmes a tu gente. Esto no puede durar mucho.
– Se ha levantado en armas el padre Rentería. ¿Nos vamos con él, o contra él?
– Eso ni se discute. Ponte al lado del gobierno.
– Pero si somos irregulares. Nos consideran rebeldes.
– Entonces vete a descansar.
– ¿Con el vuelo que llevo?
– Haz lo que quieras, entonces.
– Me iré a reforzar al padrecito. Me gusta cómo gritan. Además lleva uno ganada
la salvación.
– Haz lo que quieras. (RULFO, 1996, p. 296)

Pelo próprio desenrolar da Revolução, sabe-se da mudança e dos movimentos de


desacordos, traições e assassinatos ocorridos, o que no fragmento está contido em uma
forma linear de diálogo, como se tudo fosse dito de uma vez. O tempo que compreende a
tomada de poder por Carranza, em 1915, a vitória de Obregon em 1920, até o levante Cristero,
em meados de 1927-1929, está apreendido em um diálogo. Esse fragmento, portanto, mostra-
se interessante por romper em si, em sua estrutura, a própria instância temporal.
Movimento narrativo semelhante ocorre em El último lector. Um romance que
também não marca suas partes ou capítulos, e seu universo narrativo tampouco é linear:

Remigio quita la vista del libro para ponerla encima de Lucio. Si lo que quieres es
asustarme, lo estás logrando. No te fijes en eso, quizá debí pedirte que comenzaras
más adelante, pero ya me conoces y me agrada esa crítica que se hace a la iglesia.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Anda, síguele. Empujó el pequeño cuerpo con la punta de su bota y se repitió
satisfecho: no habrá cadáver, nunca lo habrá. (TOSCANA, 2004, p. 40)

Nesse fragmento, reunem-se, de forma exemplar, as diversas histórias que se


misturam por intermédio da morte da pequena Anamari. Sem saber o que fazer com o
corpo da menina, Remigio pede ajuda a seu pai, Lucio. Este lhe dá um livro, como parte da
idea de enterrar o corpo debaixo de um abacateiro.
É possível ver como as vozes dos personagens, a contribuição do narrador em
terceira pessoa e a narrativa dos livros da biblioteca misturam-se em um mesmo texto, sem
divisões ou marcas, como um grande relato, um mesmo relato:

Entonces sonrió con tal mueca que, de haberlo visto alguien, juraría que se trataba
de la sonrisa de Lucifer. Otra vez Remigio abandona la lectura. Puedo aceptar que
Babette y la niña de la cocina sean la misma persona, pero a este hombre ya lo están
comparando con el diablo. Son sandeces de Santín, nadie puede jurar que se trata de
la sonrisa del diablo porque nadie lo ha visto sonreír ni no sonreír, es un recurso
dramático inútil, pero eso nada tiene que ver contigo. Ten paciencia y continúa.
(TOSCANA, 2004, p. 40)

Diante desse movimento de continuidade entre essas obras, afirmadas suas


diferências que não poderão ser melhor tratadas aqui, é preciso perguntar: agora, na
contemporaneidade, qual significado há na permanência desses recursos literários em
romances separados por quase 50 anos? Que força significativa há nessa permanência diante
do desenvolvimento da história social de povo mexicano e da literatura hispanoamericana?
Para muitos críticos, a obra de Rulfo, o jogo de vozes alí presente, foi un momento
de mudança na literatura mexicana, que transitou de uma literatura de testimunho (o
melhor exemplo é “la novela de la Revolución”), dominada pela presença de um narrador
onisciente, para se realizar em Pedro Páramo, como uma narrativa múltipla, ou seja, “narrador
y personaje se convierten en una sola identidad, se confunden y al confundirse se crea un
lenguaje literario nuevo” (KLAHN, 1996, p. 512), uma linguagem literária que se estabelece
como própria das experiências e da visão de mundo de quem a expressa.
São essas vozes, multiplicadas e aparentemente soltas, que dão ao romance esse
movimento interminável entre o que é vanguada e o que é parte da tradição, pois, junto a
elas, há a presença de um narrador, onisciente, que assumirá a narrativa. Assim, essas vozes
soltas e o narrador em terceira pessoa formam um movimento dialético de perspectivas e
tempos narrativos. Como narrativas, ou fragmentos de narrativas, temos, então, narrador e
personagem que dividem e assumem a instância narrativa, compartilham o poder narrativo
em sua plenitude.

Daniele dos Santos Rosa


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Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
Será Dorotea, “la cuarraca”, aquela que contará o estabelecimento do poder de Pedro Páramo
em Comala:

– Ve tú a saber. Algunos de tantos. Pedro Páramo causó tal mortandad después que
le mataron a su padre, que se dice casi acabó con los asistentes a la boda en la cual
don Lucas Páramo iba a fungir de padrino. Y eso de Don Lucas nomás le tocó de
rebote, porque al parecer la cosa era contra el novio. Y como nunca se supo de donde
había salido la bala que le pegó a él, Pedro Páramo arrasó parejo. Eso fue allá en el
cerro de Vilmayo, donde estaban unos ranchos de los que ya no queda ni rastro...
(RULFO, 1996, p. 255).

Muitas outras vozes narrativas que estão presentes no romance, aparentemente


soltas, antecipam ou dão continuidade e profundidade à história de Comala. Dois fragmentos
são muito peculiares nesse sentido. O primero é o fragmento 62, que traz um diálogo entre
doña Fausta e Ángeles, no qual o leitor descobre, ainda de forma antecipada, a morte de
Susana, em seu quarto, na Media Luna. Essas personagens não aparecem no romance em
nenhum outro momento:

– Ve usted aquella ventana, doña Fausta, allá en la Media Luna, donde siempre ha
estado prendida la luz?
– No, Ángeles. No veo ninguna ventana.
– Es que ahorita se ha quedado a oscuras. ¿No estará pasando algo malo en la Media
Luna? Hace más de tres años que está aluzada esa ventana, noche tras noche. Dicen
los que han estado allí que es el cuarto donde habita la mujer de Pedro Páramo, una
pobrecita loca que le tiene miedo a la oscuridad. Y mire: ahora mismo se ha apagado
la luz. ¿No será un mal suceso? (RULFO, 1996, p. 289-290).

Há, no fragmento 62, um diálogo de larga data, contemporâneo à morte de Susana,


que interrompe os fragmentos anteriores e posteriores diretamente, nos quais um narrador em
terceira pessoa nos contava uma conversa entre Susana e Justina, até o momento em que o
sacerdote Rentería tenta confessar Susana, sob a mirada de outras mulheres e de Pedro Páramo.
Junto con a intromissão do diálogo e a antecipação, ainda precipitada, de um
evento da narrativa (a morte de Susana), há outro momento peculiar, que é a intromissão de
vozes na conversa entre Juan Preciado e Dorotea:

–... Tenía sangre por todas partes. Y al enderezarme chapotié con mis manos la
sangre regada en las piedras. Y era mía. Montonales de sangre. Pero no estaba
muerto. Me di cuenta. Supe que Don Pedro no tenía intenciones de matarme. Sólo de

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
darme un susto. Quería averiguar se yo había estado en Vilmayo dos meses antes.
(RULFO, 1996, p. 256).

Essa voz é de outro cadáver, enterrado próximo. Nem o leitor, nem Juan Preciado,
tampouco Dorotea sabem quem nos conta esse feito. Somente por meio da relação
estabelecida com a narrativa de Dorotea é possível saber que se trata das ações de Pedro
Páramo, sua vingança, agora contada por aqueles que sofreram e sentiram sua força,
complementando e indicando o sentido da narrativa como um todo.
Esses aspectos concorrem com a inovação formal trazida pelo romance rulfiano,
no qual a quebra da temporalidade, da espacialidade e a multiplicação de vozes e de
narradores promovem o reconhecimento e a reapropriação de um dos temas centrais da vida
mexicana, no sentido de recolocá-lo em evidência, como parte da própria atualidade, do
próprio presente, como bem salienta Escalante:

La obra de Rulfo se ubica de una manera oblicua, por decirlo así, frente a los discursos
dominantes de nuestra época. Ubicación oblicua, en primer lugar, y sobre todo,
frente al acontecimiento más importante de la historia mexicana en este siglo: la
Revolución de 1910-1917. Y, de modo subsecuente, frente a los discursos legitimadores
de dicha revolución convertida en gobierno. Ubicación oblicua, también, frente a la
secuencia narrativa que se conoce con el nombre de Novela de la Revolución. Un
complejo histórico y otro narrativo, en consecuencia, van a ser puestos en entredicho
por la obra de Rulfo. (ESCALANTE, 1996, p. 665).

Em Toscana, essa multiplicidade narrativa parece dar-se sobre outros pilares.


Como dito anteriormente, não há em El último lector o tom fantasmal. Assim, diferentemente
da obra de Rulfo, não serão vozes perdidas no tempo, de corpos mortos, como ruídos e
murmúrios, que se penetram na trágica busca do personagem. As vidas narradas no romance
El último Lector parecem não possuir nenhum mistério, nenhum recurso fantasmal: são vidas
solitárias, em um povoado também esquecido, até pela chuva:

El cencerro se escucha por todo Icamole, lo cual no es decir mucho: más o menos
cuarenta casas desalineadas como carretones mal estacionados a lo largo de una cruz
de calles sin pavimento; unas pocas, como la de Remigio, rodeadas por muros de
adobe; otras, con malla o alambres de púas que evitan la salida de chivos y gallinas
y, sobre todo, que impiden la entrada de animales rapaces […] (TOSCANA, 2004, p. 21)

Como destaca Remigio: “a falta de clases sociales, en Icamole, se marcan diferencias


con pequeñas cosas, como una cara limpia, unas manos sin calos […]” (TOSCANA, 2004, p. 22).

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Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
Assim, trata-se de um povoado pequeno, pobre, mas que possui uma biblioteca. Por
determinação governamental, uma parte da casa de Lucio é destinada ao acervo dos livros.
Os livros chegaram, e Lucio tornou-se o responsável por organizar-los e ofrecer-los aos
leitores, porém não há leitores. Sua organização é feita por meio da leitura atenta dos livros,
e a disponibilidade somente é assegurada depois de sua aprovação. Se o livro não é aprovado,
é lançado “al infierno”:

¿Hay algún ritual o sólo los arroja por el hueco? Sólo los arrojo. Ella va hacia la
puerta y hace el ademán de lanzar el libro; voltea hacia Lucio y, al verlo cruzado de
brazos, con signos de impaciencia, los deja caer. De acuerdo, dice, pero a esta puerta
le hace falta un letrero algo que indique la suerte de quien la traspase.
(TOSCANA, 2004, p. 108).

Diante da ausência de quase tudo, até de alimentos, a sensação de poder, do uso de


sua força humana, está na posibilidade de eleger quais livros merecem ou não ficar na estante.
Assim, em El Último Lector, livro ou história narrada passam a significar vida. Lucio é responsável
por unir, de forma quase simbiótica, a vida e a ficção. Forma-se, portanto, na obra uma ficção
da ficção: no interior da história de Lucio e Remigio, que já é ficcional, são narradas outras, que
são romances com títulos, personagens, autores e, especialmente, vozes narrativas.
Essa mistura feita no romance é temática, pois a vida dos personagens Remigio,
Anamari, Melquisedec são explicadas pelos romances lidos pelo protagonista Lucio, como está
no primero fragmento citado (a igualdade dada à história de Remigio e a necessidade de enterrar
Anamari, e o assassinato narrado na obra El Manzano, de Alberto Santín) e o fragmento 11, em
que, ao ser interrogado pelos policiais sobre o desaparecimento da criança, Lucio começa a ler os
fragmentos de Ciudad sin niños, de Paolo Lucarelli, até que o tenente Aguilar lhe pergunta:

¿Qué quiere usted decirme? Nada, señor, yo sólo estaba leyendo. El libro yace
cerrado; la mano de Lucio se posa sobre la portada, bloqueando título y autor.
Teniente y bibliotecario se sostienen la mirada durante varios segundos; uno en
espera de distinguir nervosismos; otro con deseo de que el visitante comprenda y se
marche. En eso suena el cencerro de Melquisedec […]. (TOSCANA, 2004, p. 64).

Assim, por intermédio da leitura de Lucio, que narra a vingança de um velho que
assassina crianças e as leva em caixas de madeira, como se fossem terra, os rurales passam a
crer que Melquisedec, que trazia água à cidade, podia levar o corpo da pequena Anamari em
seu tambor. Há, portanto, uma simbiosis, uma relação íntima entre a vida dos personagens e
as histórias narradas, que são como vozes narrativas que se interpõem durante o relato e
fazem parte desse relato maior, que é o romance El último lector.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Essa simbiosis é tambem formal: o romance reproduz em si uma qualidade
estrutural percebida por Lucio em suas leituras: é um “recurso dramático”, pois a mistura
das vozes dá ao texto uma dinâmica de movimento constante, que exige do leitor uma
atenção aos detalhes que explicam quem fala e que história se conta, como é possível perceber
nos fragmentos aqui citados.
Há, portanto, a utilização de recursos formais comuns em Pedro Páramo e em El
último lector. Os dois romances estruturam-se por intermédio de uma mistura de vozes narrativas
diversas. Em Pedro Páramo será a relação entre os diversos tipos de narradores (primeira e terceira
pessoa), somada aos recursos fantasmais que conduzem ao cotidiano; já em El último lector, as
vozes ampliam-se, pois não abarcam somente as possibilidades narrativas em uma obra, porém
se conjuga com a narrativa dos personagens a narração de outros tempos, mundos, pessoas.
Assim, nessa obra de Toscana, a multiplicidade de vozes já não é parte da
vanguarda, como foi em Rulfo. Essa confusão narrativa, com múltiplos espaços e tempos,
não é um recurso novo, assim como a perspectiva dramática que exige do leitor um empenho
maior na leitura é tampoco inovação. Contudo, é o uso desses recursos que contribuem para
situar historicamente a obra e suas relações com a historiografia literária mexicana.
Se em Pedro Páramo o jogo entre narradores em primeira e terceira pessoas,
somados ao tom fantasmal, transfigurou a complexa relação entre a vanguarda e a tradição
no âmbito estético e entre a modernidade e o arcaico na vida humana; em El último lector é a
intromissão de outras vozes ficcionais, de narrativas segundo modelos já estabelecidos
esteticamente, que se contrapõem a vida mezquina do povoado de Icamole, que atualizará
essa mesma questão, como um problema da arte e da vida.
Assim, esse jogo entre a inovação e a tradição tem um significado formal de
reconhecimento, na obra de arte, do limite e do estabelecimento da capacidade de captar o
movimento da história. Em suma: a dialética relação entre a ficção e a história como tema
concreto dos romances, presente de forma encoberta em Rulfo, no uso de seus diversos
narradores e dos recursos fantasmais, e exteriorizada em Toscana, ao utilizar a própria ficção
como recurso formal ficcional.
Por isso, em Toscana a multiplicidade de vozes se mostra como inovação
assimilada, mantendo como tema central a história versus ficção. Porém, na atualidade se
trata de un movimento peculiar: o que antes era a relação dialética entre história, como a
realidade, e a ficção, como a captação artística do existir, na contemporaneidade é ficção sob
ficção ou ficção em dobro. Contudo, o que o romance de Toscana nos assegura não é a
inexistência da história, como se tudo agora fosse irrealidade, abstração, somente discurso.
O que El último lector atesta é que não há outro caminho para se chegar à profundidade da
vida humana, chegar à sua história concreta, que não seja pela ficção, pela ficção literária.
A perspectiva arcaica da população de Icamole junto à necesidade de outra ficção,
uma ficção que dê sentido a vidas mesquinhas, é a continuidade da busca pelo sentido vital

Daniele dos Santos Rosa


107
Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
na obra literária. Na obra de Toscana há, assim como em Rulfo, a procura de uma
configuração artística que possa captar as estruturas históricas e sociais em seu movimento
peculiar, ou seja, nas palavras de Lukács: “la profunda configuración artística de lo que
existe” (LUKÁCS, 1976. p. 315). Nesse sentido, essa configuração profunda se apresenta como
um movimento próprio da arte: movimento de ruptura e continuidade com sua história, o
alcance da ficção, e da vida humana.
Forma-se, assim, na literatura mexicana do século XX, em especial em sua
segunda metade, bem como neste início do século XXI, um movimento que foi tratado aqui
como a formação de uma tradição literária mexicana, que se coloca como uma profunda
busca do presente, por meio de uma necessidade inerente de retorno ao passado, à história
do povo mexicano, em seus momentos cruciais, como uma constante autocrítica de si.
A busca pela compreensão das obras literárias por meio da percepção de uma
tradição literária de retorno ao passado, seja mais recente ou mais distante, não anula ou
simplesmente conjuga as reais diferenças e especificidades entre as produções aqui estudadas,
já que se busca perceber, por meio da conjugação entre as diferenças e as permanências na
forma concreta das obras, o essencial dessa historiografia literária, ou seja, o sentido inerente
à particularidade de cada romance em si e sua íntima relação com a universalidade de
produção, como captação dos movimentos próprios do desenvolvimento da história humana.
Assim, na tentativa de compreender a historiografia literária latino-americana
este artigo propõe outro caminho de formação de uma tradição literária, em que a causalidade
interna parece manter-se pelas forças locais, em um movimento que parte do romance da
revolução, centraliza-se e ganha força em Juan Rulfo, até chegar à contemporaneidade, com
Toscana, numa constante contradição dialética entre o local e o universal.
É, portanto, a lógica desse movimento dialético entre a forma literária e o
processo social, que tem na Literatura Mexicana o desejo de inovação formal como pilar,
juntamente aos limites impostos pela própria história e pela tradição, que este artigo busca
compreender a particularidade da captação desse processo de objetivação da realidade, por
meio e a partir das próprias ferramentas formais da literatura, que, enquanto literatura, nos
termos de Lukács, possibilitam ao homem defrontar-se com o sentido da vida humana, na
elaboração e reelaboração de sua ação no mundo.

Cerrados nº 38
108
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
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LUKÁCS, Georg. La novela Histórica. Traducción castellana de Manuel Sacristán. Barcelona; Buenos Aires;
México: Ediciones Grijalbo, S.A., 1976. Editora UFMG, 2006.

Daniele dos Santos Rosa


109
Entre a Poesia e a História: O Complexo Ambiente Narrativo de
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e El Último Lector, de David Toscana
A Representação do Insólito
Contemporâneo no Romance
As Montanhas da Lua de
Samuel Duarte

A Representation of Unusual
Contemporary Romance in The
Mountains of the Moon of
Samuel Duarte

Ester Abreu Vieira de Oliveira


Doutora em Letras
Neolatinas UFRJ; Pós-doutora
em Teatro Contemporâneo,
UNED, Madri; membro do
PPGL/ UFES (mestrado e
doutorado) e de algumas
instituições culturais.

esteroli@terra.com.br

http://lattes.cnpq.
br/3293718089972581
Resumo Abstract
Considera-se insólita a manifestação da It is considered uncommon the manifestation of
consciência e de um desejo racionalmente conscience and of a desire that is not rationally
injustificável. Tzvetan Todorov (1975) distingue o justifiable. Tvezan Todorov (1975) considers fantastic
fantástico como uma perplexidade diante de um a perplexity before an unbelievable fact, a
fato inacreditável, uma hesitação, entre uma hesitation between a rational and realistic
racional e realista explicação e o término da explanation, and the end of a supernatural
1 | As traduções dos situação sobrenatural. Segundo Bessière (1974), o
1
situation. According to Bessiére (1974), the fantastic
textos originalmente em
língua francesa são de fantástico não contradiz as leis do realismo does not contradicts the laws of the literary realism,
responsabilidade da autora literário, mas mostra que as leis tornam as but shows that those laws make them unrealistic
do artigo.
manifestações fantásticas irrealistas quando a when actuality is considered totally problematic.
atualidade é tida por totalmente problemática. Based on these theorists, we analyze the
Com base nesses teóricos, analisamos o insólito na uncommon in the work of Samuel Duarte who, in
obra de Samuel Duarte que, em As Montanhas da As Montanhas da Lua (The Mountains of the Moon)
Lua (1982), engendra o personagem Ariel, que (1982), engenders the character Ariel, who and who
procura descobrir um enigma de sua existência. tries to find the enigma of his own existence.

Palavras-chave: Representação. Insólito. Romance. Keywords: Representation; Uncommon; Novel;


Montanhas da Lua. Mountains of the Moon
Voltar ao passado, para mim, significava voltar a ser o
que eu fora, modificar o meu ‘vir-a-ser’, ter uma segunda
oportunidade na opereta da vida.
DUARTE, 2004, vol. 2, p. 140.

O Tempo, essa entidade abstrata, invisível, mas, nem por


isso, inexistente, que nos empurra inexoravelmente para a
frente, no meu particularíssimo caso abriu uma exceção e
me permitiu palmilhá-lo ao contrário.
DUARTE, S., As Montanhas da Lua, vol. 1, p. 21.

O tempo — mas esse tempo que é ele próprio [o homem] —


afasta-o tanta da manhã donde ele emergiu como daquela
que lhe é anunciada.
FOUCAULT, M., As palavras e as coisas, p. 373.

C
onsidera-se insólito o inabitual, o incomum, o extraordinário, ou seja, a
manifestação da consciência de um desejo racionalmente injustificável. O
homem, por meio da arte, procurando dar sentido ao mundo, à vida, resgata a
realidade e a transforma; cria novos valores, com base em significados comuns e
codificados. O narrador narra o possível, o que poderia ter acontecido, de acordo com a
verossimilhança e, já nos conselhos de Aristóteles na Arte poética (1998, cap. 25), o narrado
pode ser acrescido do maravilhoso (narrativa não tética), porque este agrada e é “preferível
escolher o impossível verossímil ao possível incrível”.
Como a literatura é recriada a partir da própria literatura, o texto literário
manifesta propriedades comuns ao conjunto dos textos literários. O insólito, como elemento
da literatura, corrobora essa assertiva, já que se encontram suas marcas na Antiguidade
Clássica, como na Odisseia, nas aventuras maravilhosas da viagem de Ulisses, contadas por
Homero, ainda que essas não fossem entendidas como acontecimento extraordinário, por
aproximar-se de situações criadas pelo imaginário de então.
Na Idade Média, pode-se citar, como exemplo do maravilhoso, na obra O Conde
Lucanor (escrita entre 1330 e 1335 por Don Juan Manuel), o episódio em que o Mago de Toledo,

Ester Abreu Vieira de Oliveira


113
A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
don Illán, um sábio bruxo, produz uma projeção do tempo, para convencer o deão de
Santiago que a ambição, em almas pouco generosas, não traz benefícios.
O século XVII tem na narrativa de Cervantes, Don Quijote de La Mancha, um
exemplo da presença do insólito, na aventura, narrada na segunda parte dessa obra, nos
capítulos 22 e 23, em que o herói desce à caverna de Montesinos onde se encontra com
personagens e situações de novelas de cavalaria, disseminando a dúvida entre os outros
personagens, que não conseguiam decidir se era realidade ou fantasia o que lhes estava
sendo narrado. Também remete-se à obra gótica do polonês Jan Potocki, O Manuscrito de
Saragoça (1812), em que se conhece a história de dois enforcados que morriam e
ressuscitavam. Nesse caminho, encontra-se a ficção contemporânea, porque, citando
Borges (1984, p. 98), diremos que: “[...] la historia humana se repite; nada hay ahora que no
fue; lo que ha sido será [...].”
Assim, muitas narrativas contemporâneas – repetindo o que, no passado, se fez e
transformando de uma forma peculiar a técnica até então usada – tendem à criação de um
mundo mágico e simbólico e à inclusão de acontecimentos estranhos, regidos por uma
maneira coerente e pela necessidade de ocultar, muitas vezes, ideias político/sociais contrárias
a um determinado regime.
Podem ser encontrados nas narrativas, de Cortázar, Rulfo, Borges e García
Márquez, relatos impregnados dessa técnica ficcional. Neles, a realidade ficcional, cobrindo-
se de contornos fantásticos, organiza-se num jogo entre o verossímil e o inverossímil,
obedientes a um plano estético, sem limites separativos para apresentar o real (o tético) e o
irreal (o não tético), o lógico e o ilógico, pois o texto é a realidade em sua totalidade. Ele é
um espelho no qual se projetam o real e o irreal. Nesse jogo ambíguo, o mundo narrado, que
se torna mágico, fantástico, maravilhoso, constituído do símbolo e do mito, leva a mundos
estranhos e a acontecimentos irreais.
São, de certa forma, essas as explicações que o autor de As Montanhas da Lua dá
AO LEITOR nas primeiras páginas de abertura da obra para justificar a inclusão de fatos
históricos e imaginativos.

Grande parte dos acontecimentos relatados em As Montanhas da Lua é fato


histórico e pertence ao domínio público. No entanto, foram introduzidas neles
algumas modificações com a finalidade de se criar uma obra de ficção. O leitor
perspicaz conseguirá identificá-las facilmente.
(DUARTE, 2004, vol. 1, p. 5.)

Nessa explicação, o autor direciona o leitor para uma obra ficcional de fantasia
criativa para que aceite as coisas do mundo mostradas diferentemente do que se apresentam
no que se chama “realidade”.

Cerrados nº 38
114
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Autor e Obra
Samuel Duarte, em suas palavras ao leitor, esclarece que “[...] todos os personagens de As
Montanhas da Lua são frutos exclusivos de sua imaginação. As exceções ficam, naturalmente,
com as figuras históricas do período focalizado [...]” (DUARTE, 2014, vol. 1, p. 5). Nessa obra,
ele desenvolve a história de uma família portuguesa, os Ignez; narra situações históricas e
mágicas vividas por essa família, num lugarejo do norte de Portugal; aponta as perseguições
por sua origem judaica e a necessidade de ocultarem seus ritos; e descreve a forma de sua
emigração para o Espírito Santo, no século XIX. Essa narrativa, entre a história e a ficção, em
um tempo fantástico que retrocede e antecipa, vai desenvolvendo de geração a geração,
quatrocentos anos de história, o que lembra, na reconstrução temporal de Ariel e seus
familiares, a saga dos Buendías de Cem anos de solidão, de García Márquez. Isso posto, ilustra-
se o dito sobre o tempo com um fragmento de inquietações desse personagem:

Em que pese a eles (Agostinho e Kant) provar que o passado e o futuro careciam de
existência, dessa “existência” que é atributo exclusivo do “hoje”, eu acreditava, que
o passado tinha existência; quanto ao futuro, concordava com eles. Passei então a me
2 | William Butler Yeats,
refugiar no passado, a não mais tomar conhecimento do presente do futuro. Meu (Dublin, 13/6/1865 —
Menton, França, 28/01/1939),
tempo interior, apesar de acelerado, era o único que me interessava. [...] No meu poeta, dramaturgo e místico
enorme acervo de ‘vivências’, eu só evocava as primeiras. E delas apenas aquelas irlandês, recebeu o Prêmio
Nobel em 1923. Suas obras
vividas em um determinado lugar e espaço. Elas estavam tão associadas a ele que iniciais eram caracterizadas
por tendência romântica
comecei a achar que poderia revivê-las se voltasse àquele ‘espaço’. Voltar ao passado, exuberante e depois seu
para mim, significava voltar a ser o que eu fora, modificar o meu ‘vir-a-ser’, ter uma estilo torna-se mais austero e
moderno. A poesia de Yeats
segunda oportunidade na opereta da vida. Pois o tempo me alquebrara o corpo, a que o narrador se refere
é “As lamentações de um
atenuara meus ímpetos e aniquilara minhas ilusões mais caras. Desejaria, como Yeats2, velho pensionista” – Embora
cuspir na cara daquele Tempo que me arrebatara tudo, até a fé em mim mesmo. me abrigue da chuva/ Sob
uma árvore quebrada,/ A
E me vi só ante o nada. Perdera a capacidade de me comunicar com o próximo, de minha cadeira era a mais
próxima do fogo/ Onde
planejar futuros. Só vivia para minhas reminiscências e elas eram cada vez mais se falasse de amor ou
obsessivas. [...]. política,/ Antes de o Tempo
me ter transfigurado.//
(DUARTE, 2004, vol. 2, p. 140) Embora os jovens ergam
de novo barricadas/
Para uma conspiração/ E
O tempo ciclo é o núcleo básico do mito que se afirma no simulacro, como se desvairados tratantes gritem
a sua vontade/ Contra a
fosse o sonho projetado. O herói mítico não deixa de ser a personalização dos desejos humana tirania,/ As minhas
meditações pertencem
coletivos. No pensamento de Foucault (1988, p. 368), o homem está ligado a uma historicidade ao Tempo/Que me tem
estabelecida e nunca é contemporâneo desse tempo. Só observando essa ligação descobre-se, transfigurado.// Não há
mulher que volte o rosto/
ou seja, o homem “só descobre o seu próprio início e sobre o pano de fundo de uma vida que, Para uma árvore quebrada/
E, todavia, as belezas que
por seu turno, teve início muito antes dele”. amei/ Conservo-as na minha
As Montanhas da Lua é de autoria do escritor capixaba Samuel Machado Duarte, memória;/ Cuspo no rosto
do Tempo/Que me tem
nascido em Atílio Vivácqua (ES), em 1934. Cirurgião dentista aposentado, poeta, cronista, transfigurado.

Ester Abreu Vieira de Oliveira


115
A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
contista e romancista, é Samuel o 4º ocupante da Cadeira nº 05 na Academia Espírito-
santense de Letras, cujo patrono é Amâncio Pinto Pereira. É membro efetivo da Academia
Cachoeirense de Letras, da Ordem Nacional dos Escritores e do Instituto Histórico e
Geográfico do Espírito Santo. Entre as suas obras, estão os romances Ilha do Fim do Mar
(1966); As Duas Faces de Eros (2001), Montanhas da Lua (2004); e O Almirante Batavo (no prelo
para lançamento em 2014), esta obra junto com Ilha do Fim de Mar e As duas Faces de Eros, faz
parte da trilogia “Um Homem/ Uma mulher”. Escreveu, ainda, o livro de poemas O Sino
Submerso (1988) e Eu Pescador; o livro de contos Taperas & Coivaras, (2010); o de crônicas, Amor
de minha Terra (inédito) e a obra histórico-etimológica; O Incalistrado – Topônimos Capixabas
de origem Tupi (2008); e a novela Alma de Mestre (2014).
Samuel Duarte engendra nos 60 capítulos, distribuídos em dois volumes, de As
Montanhas da Lua, o personagem Ariel, idealista, imaginativo, íntegro, corajoso, grande
leitor, que procura descobrir o enigma de sua existência, traço que caracteriza, segundo
Foucault (1988, p. 367), “o modo de ser do homem e a reflexão que a ele se dirige”. Nessa
busca, o personagem vai captar a sua história ancestral ao mesmo tempo em que amplia,
mediante o enigma do tempo, a história da humanidade, do Brasil e, principalmente, do sul
do Estado do Espírito Santo.
3 | O lugar passou a chamar-se, O ambiente rural de São Filipe3, na época do relato, serve de espaço para que o
mais tarde, Marapé, distrito
de Cachoeiro de Itapemirim autor apresente o aspecto insólito da narrativa. Vila onde passava o trem da Leopoldina e,
(ES). A partir de 1963, esse
distrito foi emancipado com
segundo o narrador, “Era uma pérola em fase de crescimento, engastada no colar de trilhos
o nome de Atílio Vivácqua e que, em boa hora, acabavam de cortar o sul do Espírito Santo” (DUARTE, 2004, vol. 1, p. 265).
lugar do nascimento de
Samuel Duarte. Nesse São Felipe, do fim do século XIX,

[...] outros lugarejos ganhavam vida nova com a passagem da estrada de ferro. Muqui,
Mimoso do sul, Dona América e Ponte de Itabapoana viram suas terras férteis e pouco
valorizadas se transformarem em verdadeiras meças para homens cuja visão só era
superada pela ambição. E eles foram chegando aos magotes, com suas famílias e suas
ferramentas, e cobriram toda a região com suas roças e suas criações.
São Felipe, fundada no meado do Segundo Reinado por um certo Felipe José Leal,
apesar de distar poucas léguas de Cachoeiro, ainda não fora contagiado pelo
progresso febril do vizinho. As estradas que uniam os dois burgos eram péssimas.
Não passavam de trilhas estreitas, serpenteando entre montanhas, vencidas a custo
pelas tropas e seus almocreves [...] (DUARTE, 2004, vol. 2, p. 140)

A obra inicia com um fato que teria ocorrido na história das navegações, em 1481, quando o
sefardi, matemático, astrônomo e geógrafo italiano, Paolo dal Pozzo Toscanelli, um ano
antes de sua morte, escreve a Cristóvão Colombo, uma orientação para atingir o Extremo
Oriente. Nessa carta, aconselha-o a viajar para ocidente a partir da costa atlântica europeia.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A narrativa prossegue em uma noite de tempestade quando Ariel, ancião, “sentado à porta
da cabocla Delaura”, reflete sobre as suas aventuras, reconhecendo que todo o entusiasmo
que punha em seus empreendimentos “tocava as raias da loucura”. Repensando o seu
passado – “[...] poucas pessoas viveram uma vida tão intensa como a minha” (DUARTE,
2004, vol. 1, p. 18) – como uma forma de dilatar, à maneira proustiana, os momentos válidos
do presente em função da memória, espera o temporal que se está formando com “certa
impaciência, porque [sabe] que, com a sua chegada, [irá] embora” (Idem). Nessa parte se
fundem presente e futuro, pois essa situação voltará a ocorrer momentos antes de esse
personagem desaparecer, em uma noite de tempestade, no final do segundo volume.
Ariel é uma reencarnação de vários judeus sefardis. Viveu 60 anos, mas suas
aventuras ultrapassaram o seu tempo de vida e, num ir e vir de épocas, ele poderia dizer,
como o personagem de Jorge Luis Borges, em Historia de la eternidad (1984, p. 97-98): “yo
suelo regresar eternamente al Eterno Regreso” ou explicar, como o narrador desse conto,
“[...] al cabo de cada año platónico renacerán los mismos individuos y cumplirán el mismo
destino [...]” (Idem).
Em cada capítulo de As Montanhas da Lua há uma surpresa, um avançar e um
retroceder no tempo e no espaço de Ariel, cujo nome decorre de uma leitura de sua mãe da
obra A Tempestade de Shakespeare:

[...] minha mãe me pôs o nome de Ariel. Não que houvesse algum judeu entre nossos
ancestrais. É que ela estivera lendo, nos dias que antecederam o meu aparecimento,
os Contos de Shakespeare, dos irmãos Lamb, e ficara tão encantada com o
duendezinho de a tempestade que acabara colocando seu nome em mim.
(DUARTE, 2004, vol. 1, p. 19)

Ariel discorrerá sobre o tempo, unindo-o ao espaço:

[...] O Tempo, essa entidade abstrata, invisível, mas, nem por isto,
inexistente, que nos empurra inexoravelmente para frente, no meu
particularíssimo caso abriu uma exceção e me permitiu palmilhá-lo ao
contrário. Por quê? Não o sei; se foi para o meu bem ou para o meu
mal, tampouco. Sempre podemos, a nosso alvitre, caminhar para a
frente e para trás no Espaço, essa outra entidade à qual o Tempo está
intimamente ligado. O local onde estivemos ontem e do qual nos
afastamos estará sempre à nossa disposição. Basta desandar os passos
e ele nos aparecerá novamente, com sua paisagem conhecida, com as
recordações do que ali vivemos. Sempre achei que com o Tempo se
passasse o mesmo que o ‘ontem’ estivesse sempre à nossa disposição,

Ester Abreu Vieira de Oliveira


117
A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
caso soubéssemos remontar a caudal do calendário. Por que deveria
ser diferente do Espaço? Por que haveria de levar-nos sempre para
adiante, sem a mínima possibilidade de retorno [...]
(DUARTE, 2004, vol. 1 p. 21-22)

Num tempo circular, em que a origem não tem começo e tudo pode iniciar,
Samuel Duarte coloca o passado no presente; rompe com as regras da temporalidade
tradicional do relato e adapta o tema tratado a outros enfoques da realidade. O desejo de o
escritor reviver uma época pretérita e de mostrar a raiz familiar de Ariel é uma maneira de
participar daquela época e, até, de modificar certos elementos do passado a fim de
transformar o presente, evitando com isso a negação da realidade pelo leitor.
Assim, em um tempo e espaço diversos, o escritor cria o narrador Ariel, que tem
atitudes quixotescas; reflete sobre a condição humana; descreve a paisagem e a conduta
social de cada período por que passa o seu personagem em sua trajetória. Como Orlando de
Virgínia Wolf, Ariel conjuga diferentes épocas e tempo durante o relato. Não fica detendo o
tempo como os personagens de Esperando Godot, de Brecket, mas toma consciência dele e age
em cada projeção temporal.

O Fantástico em As Montanhas da Lua


Para Louis Vax (1963), difícil é diferenciar o fantástico. Tzvetan Todorov (1975)
distingue, como fantástico, uma perplexidade diante de um fato inacreditável, uma
hesitação, entre uma racional e realista explicação e o término da situação sobrenatural. Em
As Montanhas da Lua há situações embaraçosas para os personagens como a explicação que
Libênio dá a Ariel, como comandante, perseguido pela polícia:

– Em algum lugar dessa fazenda voscemecê deve ter ‘brotado’. Porque aqui, perdoa
a má palavra desse negro bronco, é uma espécie de cu do mundo. Por aqui já brotou
o Pedro Vermelho, costuma brotar uma tal mulher que uns vêem e outros não, e o
mesmo deve ter se passado com vossa excelência. Brotou, pronto, pra mim não carece
de mais explicações. Que eu tenho pra mim que o capitão há de retornar a esse dito
lugar donde ‘brotou’ e ali aguardar, com fé em Deus, o que o Destino lhe mandar.
Que a porta da saída é a mesma da entrada. (DUARTE, 2004, vol. 2, p. 140)

É certo que o real, grosso modo, é concebido como possível, como aceitável, e a
trama do texto em As Montanhas da Lua é real, mas se trata de uma realidade com aspectos
do fantástico. Nesse universo ficcional, a realidade não existe fora da linguagem. Assim,
colocada a realidade do que representa na mesma condição da narrativa, num jogo do
negativo com o positivo – negativa com falsa hipótese –, essa representação requer o

Cerrados nº 38
118
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
testemunho de alguém que viu o acontecimento estranho e almeja confirmar sua verdade,
provocando uma incerteza, pois no narrado não se encontra nenhuma causalidade
satisfatória. Nas páginas finais do segundo volume, depois do desaparecimento de Ariel, em
uma noite de tempestade, o sobrenatural é visto e confirmado pelo negro “meio leso”, o
Bastião Culote, marido de Delaura:

Que estava dormindo, mais a mulher lá dele, quando foram acordados pelo temporal,
e era um deus-nos-acuda, parecia que o céu vinha abaixo. Então, na luz dos coriscos,
que nem precisaram abrir janela que o ranchinho deles é uma peneira, eles viram o
homem assentado perto da engenhoca e o conheceram logo, porque os raios
alumiavam tudo quase como se fosse de dia. E ficaram espantados, imaginando
coisa, quando ouviram um cachorro acuando e uma semelhança de voz de homens
confabulando pras bandas de umas bananeiras que eles têm perto da cacimba.
Pareciam que estavam tocaiando o capitão, pois era ele quem estava sentado no seu
toco. Depois, lá pras tantas, ele descobriu que estava sendo tocaiado, gritou alguma
coisa e logo vieram os tiros...
— Daí?... - quis saber Rodrigo, tenso.
— Daí, senhor patrão, que o clarão dos tiros nem tinha terminado e o homem não
estava mais lá, tinha sumido no ar, a modos de fumaça... Isso, suncê veja, contado
por eles, da própria boca deles, que não ponho nem tiro nada meu. E aquele Culote
falou pra sinhá lá dele: ‘cruzes, parece até coisa do Demo!’
(DUARTE, 2004, vol. 2, p. 289)

A obra As Montanhas da Lua insere-se dentro do fantástico pelas seguintes razões:


no tratamento artístico da narrativa de um tempo circular; nas saídas do presente para os
variados passados históricos, nos quais atuará o personagem ou um dos seus antepassados;
no emprego do sobrenatural; na procura de emoção e de insatisfação; e na união do real e do
irreal, uma maneira de atrair a onipresença do além e forma de conservar a descontinuidade
da vida.
Numa verossímil atitude, como aponta Borges (1983, p. 72), com “una fuerte
apariencia de veracidad, capaz de producir esa espontánea suspensión de la duda [...]”, o
personagem, desiludido, refugia-se no passado e comunica aos leitores que vai acolher-se nos 4 | Em Confissão, Agostinho
explica que os tempos,
livros: “[...] No meu desespero lembrei-me dos livros. Apesar do propósito de nunca mais lê-los, sucessão contínua de
pedi socorro a Agostinho e a Kant.” (DUARTE, 2004, vol. 2, p. 140). Apoiou-se o personagem instantes individuais, são três:
o presente dos fatos passados
no conceito de tempo de Agostinho4, entendido como não possuindo qualquer realidade (memória), o presente dos
fatos presentes (visão) e o
fora do sujeito, reflexão que esse Santo filósofo inicia na história da Filosofia e que tem seu presente dos fatos futuros (a
ápice no pensamento moderno, principalmente, em Kant, que concebe o tempo e o espaço espera) que existe na alma,
logo, memória e espaço estão
como forma subjetiva de representação. dentro do tempo.

Ester Abreu Vieira de Oliveira


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A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
Na busca da origem – um dos traços do homem– e na construção da saga do
personagem – para fazê-la verossímil – Samuel Duarte toma como base a historicidade e o
tempo, caminhando do século XV ao XX, pois a vida do homem, do personagem Ariel, tem
início muito antes de seu nascimento. A esse respeito, Foucault afirma em As palavras e as
coisas: “É sempre em relação a um fundo já começado que o homem pode pensar aquilo que
vale para ele como origem” (FOUCAULT, 1988, p. 368-369).
A vida de Ariel, viajante do tempo, pode ficar inserida na temática do tempo,
porque entre o historiográfico e a ficção, o real e o fantástico, ou maravilhoso, dentro de um
tempo verossímil, Samuel Duarte, como Cronos, que absorve o tempo, magnificamente,
rompe com o tempo e o espaço num romance épico-poético, em que o leitor acompanha a
angústia de um ser solitário e percebe o grande leitor que é o criador da obra.
Por meio das dúvidas, tristezas e anseios de uma vida, Samuel Duarte rememora
as crises mundiais (econômica, política e social); dá ênfase ao crescimento de Cachoeiro de
Itapemirim e de alguns lugares circundantes; e mostra que a humanidade não aniquila nem
sufoca a obra humana, mas a acompanha, pois a vida é uma maré constante entre o existir
e a memória.
O escritor, em As Montanhas da Lua, prolonga o Tempo e o Espaço e vai mais além
do que se crê possível e, dessa forma, consegue inserir o romance em um dos padrões da
literatura fantástica.
Terminando o segundo volume, quando Ariel triste e perplexo com o
desaparecimento (ou evaporação) da mulher amada, encontra-se sentado no “lugar em que
dois meses atrás” havia aberto os olhos, diante da mesma paisagem (DUARTE, 2004, vol. 2
p. 283-284), o autor fecha o círculo temporal e espacial introduzido no primeiro volume:

Podem me chamar de Ariel; tempos atrás eu acrescentaria: “sem medo de errar”. Se


hoje não acrescento é porque já não tenho certeza de mais nada. Nem mesmo por
mais absurdo que isso possa parecer, do meu próprio nome.
Devem ser por volta das nove da noite e estou sozinho, sentado à porta da cabocla
Delaura, a uns escassos vinte quilômetros de uma cidadezinha chamada São Felipe.
Há um temporal se formando no quadrante sul. Eu o espero com uma certa impaciência,
porque sei que com a sua chegada, irei embora. Para aonde? Eis algo que não sei.
Porém desconfio que seja para essa terra sem retorno a que chama de Morte.
(DUARTE, 2004, vol. 1, p.18)

Samuel Duarte, para demonstrar a força do passar do tempo, vale-se, pela boca
de seus personagens, de citações de obras e de intertextualidades, que, segundo Lauren Jenny
(1999, p. 6), “são todos os textos que deixam transparecer a sua relação com outros textos:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
imitação, paródia, citação, montagem, plágio, etc.”, procedimentos que evidenciam o caudal
de leituras do escritor e enriquecem a narrativa no jogo do insólito.
Assim, se o nome do personagem principal, Ariel, provém do de uma obra
(Tempestade, de Shakespeare), o mesmo acontece com o título do romance, inspirado no
poema El Dorado5 de Edgar Allan Poe – que o leitor encontra citado, na p. 81, do segundo 5 | Gentil, faceiro,/ um
cavaleiro,/ sob sol e
volume, de As Montanhas da Lua, na lembrança um pouco destorcida de Ariel, e como sombreado,/ seguiu
epígrafe da obra no primeiro volume. Além disso, o percurso de vida de Ariel não deixa de avante,/ cantarolante,/ em
busca do Eldorado./ Mas o
se aproximar de um dos motivos desse poema, indicados nos versos da epigrafe da obra: andarilho/ ficou tão velho,/
no âmago assombrado,/ por
não achar/ nenhum lugar/
Mas, como envelhecesse, assim como Eldorado./ E,
enfim diante/ de sombra
Do cavaleiro ousado errante,/ parou, quando
esgotado/ e argüiu-lhe
A alma ficou envolta em treva. “onde/,/ sombra, se esconde/
E, já sem energia, a terra de Eldorado?”/
“Sobre as montanhas/ da
Em seu último instante, lua e entranhas/ do Vale
Mal –assombrado,/ vá com
Um vulto viu, feito de treva. coragem”,/ disse a miragem,
Diz-me, ó sombra errante, “se procuras o Eldorado”.

– implorou – onde achar eu poderia


Esse caminho que a Eldorado leva? [...]
(POE, Apud, DUARTE, 2004, vol.1, p. 7)

pois em uma noite de tempestade, “em paz com a vida, com o mundo e (com ele mesmo,
fecha) os olhos e (parte) para as Montanhas da Lua”. (DUARTE, 2003, vol. 2, p. 284)
Mas, também, a volta do passado se reflete nas epígrafes da obra, e tanto A
Tempestade como “El Dorado” serão suportes para o desenvolvimento do teor maravilhoso
temporal que percorre o livro, na metáfora do tempo, seja nos ciclones atmosféricos e
pessoais que o personagem enfrenta, seja na busca de sonhos, que as palavras de Próspero,
em A Tempestade, refletem: “[...] somos feitos de mesmo material que os sonhos e nossa curta
vida acabam num sono” (SHAKESPEARE, 1988, p. 952). Mas também a volta do passado
se reflete nas epígrafes da obra e se encontra no fragmento do poema “Eldorado”, de Edgar
Allan Poe, e numa citação de As Cidades e As Serras, de Eça de Queirós, textos bem significativos
para reforçar a volta ao passado e a circularidade temporal, de fortes motivos de As Montanhas
da Lua:

Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas
que estão dentro. Há corpos de agora em almas de outrora. Na feira da Roqueirinha
quem sabe com quantos reis antigos se topa quando se anda aos encontrões entre
vaqueiros. ” (DUARTE, vol. 2, p. 237)

Ester Abreu Vieira de Oliveira


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A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
O romance As Montanhas da Lua oscila entre a 1ª e a 3ª pessoa do singular, em
tempos presente e passado. Na maioria dos capítulos predomina a primeira pessoa. Com esse
recurso, o protagonista faz-se presente, ele é testemunha, e o leitor vai encontrar as
experiências diretas e buscas de Ariel. Mas, quando ele está ausente, a narrativa se encontra
na 3ª pessoa, e o fato narrado é assinalado como realizado. Não há delimitação de fronteiras
entre fictício e não fictício, elas se desenvolvem ao longo dos variados tempos e se fazem
presentes na existência do ser Ariel.
Uma das características do gênero fantástico é a hesitação que o leitor sente para
identificar a natureza de um acontecimento estranho, mas que ele soluciona a dúvida pela
decisão de que é fruto da imaginação ou resultado de uma ilusão. O insólito na literatura
nos remete ao mágico, ao fantástico e ao maravilhoso, por ter tido o termo, nessas categorias,
destaque ao longo da história literária, levando os seus leitores a mundos estranhos e a
acontecimentos fora da realidade.
Em 1919, Freud (2014) estudou o tema do “estranho”, ramo do que é assustador,
que provoca medo e horror. Segundo esse psicoanalítico, o fantástico serve para os escritores
fazerem surgir as imagens do inconsciente, pois permite que de livres associações, condensação de
imagens e cenas e contrassensos do tempo e do espaço, surjam criaturas, lugares e circunstâncias não
próprias do nosso mundo cotidiano. E, a partir da publicação da “Interpretação dos Sonhos”,
Freud vai apresentar a ideia do Inconsciente, e os conflitos intrapsíquicos ocuparão um
ponto central no estudo da mente humana e seus processos, que resultarão em uma nova
base para as teorias do estranho. Como resultado, surgeum tipo de literatura marcado,
universalmente, não só pelas obras clássicas, citadas anteriormente, como também pelos
contos de fadas, que acompanham a literatura há tempos.
Exemplo do que poderia ser a afloração de imagens do inconsciente, proveniente
de desejos ocultos, é a narrativa – dos cap. 48-49, vol. 2, p. 182, de As Montanhas da Lua – da
ocorrência de algo estranho que mais parece ter surgido do desejo de reencontrar uma perda.
Quando Ariel e o velho marinheiro, Red Peter, “ao cantar dos galos”, saíram para ver a lagoa
– onde há muitos anos o barco deste aportara, e onde ele fora para vê-lo por três vezes e que só
na primeira viu a lagoa e a embarcação que tanto amava. Tudo havia desaparecido nas outras
vezes que ali fora. O mesmo aconteceu com eles quando terminaram a caminhada e no local
chegaram. A lagoa não existia. Dormiram ali, ao relento. Mas pela madrugada sentiram cheiro
de lama e de plantas aquáticas e viram um espetáculo prodigioso, não percebido na véspera,
no ocaso: aves aquáticas voando e o barco “a modo de um tronco boiando”. Uma luz intensa
delineava tudo. A lagoa, porém, “não estava banhada pela ‘nossa luz’”. Apesar de um Sol de
verão despontar no horizonte e “agredir a natureza com sua luz crua, os contornos do lago e o
próprio lago pareciam mergulhados em outra espécie de luz”. Segundo o narrador, a visão
dividia o tempo em o de hoje e o de ontem, “era um certo ‘quê’ indefinível que lembrava o
passado, que lembrava um tempo muito distante, mas que, não obstante, teimava em se

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
apresentar [...]”. Depois tudo foi lentamente desaparecendo aos olhos de Ariel e de Red Peter;
pássaros, céu esmaecido, barco, plantas, deixando-os frustrados, enfeitiçados com o que viram.
No século XX, houve uma queda do fantástico, de uma tendência gótica do século
XIX, e apareceu uma nova maneira de manifestar o insólito com conflitos existências,
insatisfações sociais, em obras de Franz Kafka, Jean Paul Sartre, entre outros. Carpentier
(1991) explica como surgiu a sua técnica de narrativa fantástica, no prefácio de El reino de este
mundo, em que narra as insurreições de escravos lideradas por Mackandal e Bouckman, e a
ascensão ao poder e a queda do rei Henri Christophe: “[…] la noción de lo real maravilloso
me vino en 1943 en la visita a Haití.”
No fantástico, a realidade cotidiana oculta uma segunda realidade que, de uma
certa maneira, não é nem misteriosa, nem transcendente, nem teológica, mas humana.
Segue como exemplo a cena em que Ariel, enfrentando uma tempestade no mar, apoia-se
em leituras anteriores para poder manejar o barco, e recorda-se de leituras nas quais se
manifestava o maravilhoso :

Foi aí então que as minhas leituras vieram em meu socorro. Lembrei-me do velho capitão
de Conrad, em Tufão, que também notou a queda brusca do barômetro, mas não
entendeu nada. `Essa merda está com algum defeito,´ dissera. E, como eu, ele, ao ser
colhido pélas garras do ciclone, também, não se lembrava das manobras recomendadas
para essas eventualidades. `Virar essa joça pra qual lado, Senhor? Já não há mais rumo,
nem bússola, nem leme! Essa banheira está se desmanchando aos poucos´... Também
pensei naquele Dom Ramiro do Romanceiro Ibérico, quando Violante lhe toma a mão
gelada e lhe diz, pensando tratar-se do Bernal Francês: `Bravo estava o mar?` E ele
respondeu: `Tremendo.´ Conclui então que ia morrer bem acompanhado.
Feliz de quem tem, como craveira, como referência, essas leituras do passado. Feliz
de quem pode comparar suas experiências com aquelas vividas por outros homens,
em idênticas situações. E chega-se à conclusão, pelo fato mesmo de eles haverem-nas
contado, de que sobreviveram a elas e que o mesmo pode se dar conosco. E, na pior
das hipóteses, se nada dá certo e se a gente morre, morre então com toda a lucidez e
entra pelo Outro Lado com a cabeça erguida.
Como o que ia acontecendo com Exupéry, nos anos vinte, bem perto de onde
estávamos, quando pilotava um velho Breguet 14 da Latécoère, de Trelew para
Comodoro Rivadávia. Ele for acolhido por um desses ciclones e precisava de mais de
duas horas para cobrir um percurso de uns doze quilômetros apenas. [...]
(DUARTE, 2004, vol. 2, p. 193).

O discurso fantástico é uma reconstrução do real e, como evocação, é um apelo.


Bessière (1974, p. 13; 22) explica que o fantástico não contradiz as leis do realismo literário,

Ester Abreu Vieira de Oliveira


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A Representação do Insólito Contemporâneo do Romance As Montanhas da Lua de Samuel Duarte
mas mostra que as leis tornam as manifestações fantásticas irrealistas quando a atualidade
dá por totalmente problemática outra realidade. E, apesar de ser difícil definir uma literatura
propriamente fantástica, como afirma Louis Vax, Bessière (1974, p. 13; 22.), esclarece que, por
ter uma criatividade verossímil, a poética da narrativa fantástica supõe registro de dados
objetivos (religião, filosofia, esoterismo, magia) e sua desconstrução.
A situação climática de raios, de trovões e de chuva envolverá a vida de Ariel, no
mar ou na terra em um mundo noturno. As percepções fantásticas do tempo e do espaço, a
relação entre ser ilusão ou não, o misterioso repetir de fatos e de personagens duplicados
semelhantemente e, às vezes, apenas, com nomes diferentes direcionam a obra para o insólito.
O tema da tempestade, que acompanha o personagem, dá-lhe identidade histórica
e identifica a paródia com a obra de Shakespeare, Tempestade. Mas são as constantes ações
inverossímeis, indefiníveis, justapostas a contradições de diversos elementos verossímeis; as
rupturas de convenções sociais; as aparições e desaparições de pessoas (fantasmas), resultados
de um desejo de racionalização; e as articulações temporais que podem colocar As Montanhas
da Lua no gênero do fantástico, do insólito.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
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Ester Abreu Vieira de Oliveira


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VAX, Louis. L´art et la littérature fantastiques. Paris: Universitaires de France, 1963.

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126
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Borges: Por uma
Estética da Precariedade

Borges: For a
Esthetic Precariousness

José Wanderson Lima Torres


Professor do Mestrado
Acadêmico em Letras da
Universidade Estadual do
Piauí (UESPI), doutor em
Literatura Comparada pela
Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN).

wandersontorres@hotmail.com
Resumo Abstract
O presente artigo investiga o projeto literário de This article investigates the literary project of Jorge
Jorge Luis Borges. Para tanto, discute as noções de Luis Borges. This paper discusses the concepts of
mímesis, sujeito e autoria, categorias centrais na mimesis, subject and authorship, central categories
estética do autor argentino. Oferece-se uma in the aesthetics of the Argentine author. Offers an
explicação para a estética de Borges a partir de seu explanation to Borges’ aesthetics from his dialogue,
diálogo, de natureza estetizante, com fontes da of esthetic nature, with sources of idealist
filosofia idealista (Berkeley, Shopenhauer), da philosophy (Berkeley, Schopenhauer), religion
religião (Budismo) e da literatura propriamente (Buddhism) and the literature (Mallarmé).
dita (Mallarmé).
Keywords: Borges. Aesthetics. Mimesis.
Palavras-chave: Borges. Estética. Mímesis. Subject. Authorship.
Sujeito. Autoria.
Introdução

O
presente estudo constitui uma tentativa de compreensão do projeto estético de
Jorge Luis Borges. Objetiva delinear os traços da concepção literária borgeana
por meiodo que nomeamos de “estética precariedade” – tomando o termo
precariedade para caracterizar a forma desestabilizadora das concepções
borgeanas que desnudam a fragilidade das categorias a que nos apegamos como critério de
inteligibilidade da realidade que nos circunda e da literatura que produzimos para interpretar
essa realidade.
Procuramos mostrar como Borges predica a instabilidade de nossa noção de
realidade, nomeia o sujeito como ilusão e dissolve a categoria literária do autor. Para tanto,
sondamos múltiplos pontos de diálogo da literatura borgeana, oriundos seja de fontes
filosóficas (Hume, Berkeley, Schopenhauer), seja de tradições religiosas orientais (o Budismo),
seja de fontes propriamente literárias (Mallarmé, Whitman, Macedônio Fernández).

A precariedade da mímesis: uma literatura em guerra com o realismo


Diversos comentadores de Borges, por exemplo, Rodriguez Monegal (1983) e Raul Sosnowski
(1991), apontaram o hábito borgeano de se valer de teorias filosóficas e teológicas como
simples matéria de fábula, sem nenhum empenho para com os postulados ali defendidos.

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
Era costume de Borges dizer que a metafísica é um ramo da literatura fantástica; num
diálogo com Ernesto Sabato, chegou a afirmar que o Deus de Tomás de Aquino, tal como
exposto na Summa Teológica, era a mais fascinante personagem da literatura (BARONE,
2005). No epílogo de Outras Inquisições, diz abertamente que se habituou a “avaliar as ideias
religiosas ou filosóficas por seu valor estético e até pelo que encerram de singular e de
maravilhoso” (1999b, p. 171). E arremata: “Isso talvez seja indício de um ceticismo essencial”
(idem). Harold Bloom (2001, p. 56), não por acaso, qualifica-o de “visionário cético”.
Se há algo que mereça um estudo dos mais acurados em Borges, consiste em sua
relação com filosofia idealista e com as doutrinas religiosas, inclusive as heréticas. Borges
não é um simples satirista dessas especulações, mas tampouco é um crente. Ele se aproxima
delas para realizar uma operação que constitui um traço característico de seu modus operandi:
desrealizar mundo e sujeito, ou seja, predicar a inconsistência ontológica do mundo e,
seguindo a linha interpretativa de religiões orientais como o budismo e o hinduísmo,
declarar o sujeito como mera ilusão.
O conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” é paradigmático dessa força desrealizadora
do real que é um dos motores da obra borgeana. Nesse conto, Borges e Bioy (personagens,
não os seres reais) descobrem uma versão apócrifa de um volume da Enciclopédia Britânica
que contém em suas páginas finais a descrição de Ubqar, país inventado por sábios adeptos
de uma forma extrema de idealismo. Esse fato conduz Borges, por múltiplos descaminhos, à
obra A first encyclopaedia of Tlön. Vol. XI. Tlön, o planeta em que está Uqbar, também uma
invenção coletiva, o fruto de gerações de homens que, maquinando em silêncio com
imaginação e rigor, concebem um planeta inteiro. Pouco a pouco, porém, objetos de Tlön
começam a aparecer no mundo real, dando sinais de que, em mais tempo ou menos tempo,
Tlön invadirá completamente nosso mundo. Ou seja: a firmeza e a evidência de que tudo
que nos cerca está por um triz.
Muitos críticos se ocuparam desse aspecto da obra de Borges; comentaremos
brevemente dois.
Ana Maria Barrenechea (1967), numa obra convenientemente chamada La expresión
de la irrealidad en la obra de Borges, estuda as fontes, os símbolos e as marcas estilísticas que
trazem para a literatura borgeana a sensação de desrealização. Acerca das fontes, indica a
autora cinco às quais Borges se mune a fim de “atacar la consistencia del universo y do
hombre dentro del universo” (1967, p. 169): 1) a filosofia idealista de Berkeley, que predica a
inexistência do mundo fora percepção humana e da mente divina; 2) o platonismo, que
considera o mundo que habitamos mera ilusão, sombra (eikon), pálido reflexo dos arquétipos
eternos do mundo das ideias; 3) o cristianismo e sua crença num Deus que cria o homem à
sua imagem e semelhança e que o conserva; 4) as crenças orientais que tratam o mundo
como aparência; 5) fontes populares, como mitos e lendas, que especulam sobre a existência
ou a possibilidade de criação de seres sobrenaturais.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Às fontes citadas por Barrenechea (1967), todas justas, cabem algumas emendas.
Mais que Berkeley, o filósofo idealista mais presente em Borges é Arthur Schopenhauer, cuja
obra-prima O mundo como vontade e representação apresenta muitos pontos de contato com o
budismo, doutrina muito cara a Borges. Resumindo o argumento de Parerga e Paralipomena,
afirma o escritor portenho que Schopenhauer “reduz todas as pessoas do universo a
encarnações ou máscaras de uma só (que é, previsivelmente, a Vontade) e declama que todos
os acontecimentos de nossa vida, por aziagos que sejam, são invenções puras de nosso eu
como as desgraças de um sonho” (2001, p. 477). Sem dúvida, essas palavras, exceto a crença
no monismo da vontade, descreve procedimentos comuns nas ficções borgeanas. Sobre as
fontes cristãs de que Borges se vale para elaborar suas ficções, vale dizer que se tratam, quase
sempre, de obras heréticas, especialmente do Gnosticismo. Outra fonte religiosa não aludida
pela autora, mas fortemente presente nos textos borgeanos, é a Cabala, da qual Borges extrai
a ideia da Palavra como instrumento de criação do Ser, e não apenas como símbolo que
designa o Ser (SOSNOWSKI, 1991). De qualquer maneira, a intuição básica de Ana Maria
Borrenechea (1967) é mantida: Borges dissolve a realidade e nos revela a condição do homem
“perdido en un universo caótico y angustiado por el fluir temporal” (p. 17).
2 | William Butler Yeats,
Mas, se a realidade é dissolvida nas ficções borgeanas, ou pelo menos é posta em (Dublin, 13/6/1865 —
Menton, França, 28/01/1939),
dúvida sua firmeza, há de existir termos recorrentes, símbolos, que sirvam para concretizar poeta, dramaturgo e místico
esse intento. Borrenechea (1967) destaca dois símbolos e um procedimento. O primeiro irlandês, recebeu o Prêmio
Nobel em 1923. Suas obras
símbolo é espelho, que pode sugerir a fantasmagoria do duplo, ou uma alusão aos arquétipos iniciais eram caracterizadas
por tendência romântica
platônicos, ou a passagem para mundos mágicos, ou ainda a ideia gnóstica de que nosso exuberante e depois seu
mundo é uma cópia borrada, tosca, invertida mesma, da ordem celeste. De qualquer maneira, estilo torna-se mais austero e
moderno. A poesia de Yeats
o espelho, em Borges, aponta sempre para a fragilidade ontológica do nosso mundo. O a que o narrador se refere
é “As lamentações de um
segundo símbolo é o sonho, que alude para a indeterminação fronteiriça entre a realidade e velho pensionista” – Embora
o imaginário. Os sonhos, em Borges, “tienen dentro de la economía de sus relatos papeles me abrigue da chuva/ Sob
uma árvore quebrada,/ A
premonitorios, laberínticos, de repetición cíclica, de alusión al infinito” (BORRENECHEA, minha cadeira era a mais
próxima do fogo/ Onde
1967, p. 177). Quanto ao procedimento, consiste, segundo a autora, na fusão entre os planos se falasse de amor ou
da realidade e da ficção. As formas mais comuns de manifestação desse procedimento nas política,/ Antes de o Tempo
me ter transfigurado.//
narrativas borgeanas são, por um lado, a mescla em seus textos entre seres históricos e Embora os jovens ergam
de novo barricadas/
criações fictícias e, por outro, um jogo de atribuições autorais, ora verídicas ora inventadas. Para uma conspiração/ E
Como Dante e como Leopoldo Lugones, Borges é protagonista de muitas de suas próprias desvairados tratantes gritem
a sua vontade/ Contra a
histórias, nas quais também insere amigos como Bioy Casares, Alfonso Reyes e Henríquez humana tirania,/ As minhas
meditações pertencem
Ureña, persuadindo-nos, como bem observa Bloom (2001), a acreditar no inacreditável. ao Tempo/Que me tem
Quanto ao jogo de atribuições, um exemplo clássico é o pseudoensaio “A aproximação de transfigurado.// Não há
mulher que volte o rosto/
Almotásim”, de História da Eternidade (1936), que resenha um romance inexistente. Para uma árvore quebrada/
E, todavia, as belezas que
Por fim, na busca de comprovar a expressão da irrealidade em Borges, Borrenechea amei/ Conservo-as na minha
(1967) aponta algumas marcas estilísticas que contribuem para esse propósito. A autora cita, memória;/ Cuspo no rosto
do Tempo/Que me tem
em primeiro lugar, a pletora de adjetivo que em Borges expressam o vago, o indefinido, o transfigurado.

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
infinito (a “adjetivación de lo borroso”, em sua feliz expressão). Repete-se em Borges, em
admirável quantidade, “irreal” e suas formas derivadas, “ilusorio” e “afantasmado”, além de
termos que sugerem dissolução, como “caducar”, “apagarse”, “cesar”, “simulacro”, etc...
Também ocorrem em abundância formas da negatividade, como “no-ser”, “apenas-ser”,
“apariencias”, “sombras”, etc... Expressões de dúvida e conjectura também pululam por toda
a obra borgeana. Um recurso simples do qual Borges retira interessantes efeitos são os
parênteses: “A veces Borges intercala, entre paréntesis o entre comas, una advertencia que
pone a la oración principal el comentario acerca de la subjetividad de toda afirmación
humana” (1967, p. 196). É o que exemplifica a concisa e misteriosa frase introdutória do conto
“A Biblioteca de Babel”: “O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõem-se de um
número infinito...” (1999a, p. 516). Enfim, a que nos leva a percepção desses traços estilísticos
em Borges? Borrenechea (1967) nos responde: “El autor expresa con ellas juntamente la difi-
culdad de interpretar una realidad que se escapa y el deseo de mostrar con humilidad y con
todo rigor lo precario de nuestro conocer” (p. 201).
Outro estudioso que trata do tema que chamo de “desrealização” em Borges é
Luiz Costa Lima. Enquanto Borrenechea dá por pressuposto que a literatura de Borges é
“irrealista” e, assim, persegue os rastros estilísticos e os lastros filosóficos que embasam essa
irrealização. Costa Lima (2003) leva essa discussão para o campo da mímesis, especulando os
fundamentos, o efeito desestabilizador e os limites do que chama de “antiphysis” em Borges,
isto é, o antinaturalismo ou a desrealização que singulariza a obra do escritor portenho. Não
intentaremos aqui resenhar pari passu o estudo do crítico brasileiro, mas apenas iluminar o
problema circunscrito neste tópico.
A hipótese de Luiz Costa Lima (2003) é que a narrativa de Borges foge ao padrão de
imitação (mímesis) da realidade ou natureza (physis), inaugurando uma forma que literatura
que pleiteia o esmagamento do real: a literatura da antiphysis. Para quem não está habituado à
teorização da mímesis levada a cabo por Costa Lima, pode até considerar óbvia a hipótese; no
entanto, é preciso afastar a mímesis costalimiana das ideias de realismo, reflexo e de quaisquer
outras que pressupõe algo como uma transparência entre representação e realidade. A mímesis
costalimiana é a produção da diferença num horizonte de semelhante. A semelhança é o
catalisador que possibilita a recepção da obra, mas o fim da literatura não deve ser, ou melhor,
não pode ser reduplicar o real. Ao afirmar, portanto, que a literatura de Borges se constrói sob
o signo da antiphysis não se diz simplesmente que ela se opõe ao realismo – o que seria uma
ideia óbvia –, mas que ela se constrói num processo autoconsciente de negação da
correspondência entre mímesis e physis. Com isso, menos que ser uma literatura escapista ou
adepta de um esteticismo estéril, essa literatura, ao romper os laços entre representação e
realidade, corrói em sua base uma série de certezas e convenções, a começar pela confiança que
temos no que chamamos de real. Além disso, essa espécie de literatura rechaça, com grande
ironia, tanto as formas acríticas de identificação com os personagens quanto as formas de

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
interpretação miméticas ingênuas, que tomam a literatura como representação reflexo
diáfano do mundo social. Nessa literatura intransitiva, fundada na vertigem nada agradável
de perda de correspondência entre mundo e livro, vemos ficções que respondem a ficções
numa atitude de rechaço à realidade que, no entanto, não gera alívio, mas o horror. “A
aniquilação ficcional da não provoca alívio” (COSTA LIMA, 2003, p. 249).
Da admissão desse quadro, provêm duas formas de ler Borges. A primeira, como
um texto intransitivo, que à maneira de certos poemas de Mallarmé (pensemos no mais
famoso deles, Un coupé de dés) tornam a interpretação um ato arbitrário e, a rigor, impossível,
já que o texto se constrói contra a profundidade, portanto, contra a referência, sendo puro
jogo de signos. A segunda, considerar, como Luiz Costa Lima, insuficiente (embora não
necessariamente errônea) a postulação anterior e admitir que a antiphysis de Borges tem seu
ponto cego, alheio à vontade autoral, e retorna à mímesis.
A força questionadora da categoria da mímesis em Borges se completa pela
consideração do sujeito como ilusão, como veremos a seguir. Esses dois pontos dão à literatura
borgeada o poder de constituir uma estética da precariedade, na qual a literatura se pensa
numa radicalidade poucas vezes vistas na tradição ocidental.

O sujeito como ilusão


A despersonalização foi apontada por muitos críticos como um dos traços mais recorrentes
da estética literária moderna, pós-baudelaireana. Em vez da identificação do autor com suas
criações ficções (personagens, na prosa; eu lírico, na poesia), a literatura moderna pauta-se
numa gama de critérios cujo ponto comum é a negação da retórica afetiva romântica e sua
entronização do eu: fala-se em distanciamento (Brecht), em fuga da emoção e da personalidade
(Eliot), em fingimento e construção de heterônimos (Pessoa), em polifonia (Mikhail
Bakhtin), em morte do autor (Barthes).
Jorge Luis Borges, desde suas primeiras intervenções teóricas, na segunda década
do século XX, alinhou-se a essa perspectiva de uma maneira sumamente radical, pois que
negou não apenas os poderes demiúrgicos do autor, mas até mesmo a consistência ontológica
do sujeito. Essa destruição da categoria sujeito tem, em Borges, múltiplos pontos de
referência, oriundos seja de fontes filosóficas (Hume, Berkeley, Schopenhauer), seja de
tradições religiosas orientais (o Budismo), seja de fontes propriamente literárias (Mallarmé,
Whitman, Macedônio Fernández). Como as alusões à ideia de sujeito como ilusão atravessam
praticamente toda a obra borgeana, dos anos 20 aos anos 80 do século XX, selecionaremos
para tecer breves comentários apenas três distintos momentos dessa postura, todos cruciais
em suas formulações: um texto de juventude (jamais traduzido no Brasil), intitulado “La
nadería de la personalidad”, que faz parte de um dos três livros de ensaios que Borges, em
1977, expurgou de suas obras completas: Inquisiciones (de 1925); o conto “As ruínas circulares”,
encetado na coletânea Ficções (de 1944); e por fim, sem nos apegarmos a nenhum texto

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
especificamente, gostaríamos de discutir o legado do budismo como fonte da destruição do
sujeito em Borges.
Escrito numa linguagem empolada, que Borges abominaria depois, “La nadería
de la personalidad” defende a tese, certamente fruto das leituras de Hume e Berkeley, que a
unidade do eu é inexistente: “No hay tal yo de conjunto. Qualquier actualidad de la vida es
enteriza e suficiente” (BORGES, 1994, p. 94). Quem afirma que a identidade pessoal é uma
possessão primitiva de “algún erario de recuerdos” (idem) supõe uma durabilidade
improvável da memória. Isso sem contar com o problema a seleção: por que alguns instantes
se estampam em nossa memória e outros não?
Com isso, Borges não pretende fazer desabar a segurança com que nós diariamente
dizemos eu e afirmarmos a consciência do nosso ser. Essa dimensão pragmática – ele não diz,
mas devemos supor – é uma ilusão necessária, basilar para enfrentarmos as situações
cotidianas. Todavia, bem analisado, nem todas as nossas convicções se ajustam à dicotomia
eu e não-eu, nem essadicotomia é constante. A convicção que me faz tornar-me como uma
individualidade, argumenta Borges, é em tudo idêntica à de qualquer outro ser humano.
Dentro os fatores que desmentem a unidade do eu sobressai-se o nosso passado. Para
Borges, qualquer um que procure ver-se nos “espejos del pasado” (1994, p. 96) se sentirá um forasteiro.
Em busca de corroborar suas intuições, Borges cita fontes da cabala (Agrippa de
Nettesheim), da literatura (Torres Villarroel), da filosofia (Schopenhauer, mas não Hume e
Berkeley) e também o budismo. Tudo isso com um propósito não exatamente filosófico, mas a
fim de erguer a proposta de uma estética não psicologista. Nas palavras de Borges (1994, p. 99),

El siglo pasado, en sus manifestaciones estéticas, fue raigalmente subjetivo. Sus


escritores antes prepondieron a patentizar su personalidad que a levantar una obra;
sentencia que también es aplicable a quienes hoy, en turba caudalosa y aplaudida,
aprovechan los fáciles rescoldos de sus hogueras.

Essa estética expressivista, dos “idólatras de su yo” (1994, p. 99), é o antípoda da
“nadería de la personalidad” que Borges aponta. Contra essa estética de inclinação romântica
Borges propõe outra, de pender clássico, como ele mesmo confessa, e que se pauta na
devotada atenção às coisas. Whitman e Picasso seriam os propugnadores dessa estética
antirromântica na modernidade, segundo Borges.
Nunca é demais lembrar que Borges publicara “La nadería de la personalidad” em
1925, no livro Inquisiciones, quando contava apenas 25 anos. Pouco lembrado, esse texto constitui
um marco da reflexão sobre a modernidade literária na América Latina e um forte vislumbre
das futuras ideias estéticas de Borges, intelectualizantes e de pendor fortemente antiexpressionista.
O tema da “nadería de la personalidad” voltará a aparecer constantemente na
obra borgeana, como no famoso conto “As ruínas circulares”. O conto relata o propósito de

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
um guru hindu de conceber um ser humano através do sonho e trazê-lo à realidade. Depois
de anos de tentativas frustras, ele finalmente atinge seu propósito: parte por parte, a começar
pelo coração, constrói uma pessoa. Uma divindade esquecida, outrora ativo deus do templo
em ruínas que o guru habita, diz-lhe que somente ele, o guru, e um elemento, o fogo, saberão
da condição de simulacro daquele homem. Temeroso que o filho descubra este terrível
segredo – sua condição fantasmal –, o guru manda-o para outro templo em ruínas. Tempos
depois, porém, chega aos seus ouvidos a história de um homem imune ao calor do fogo. O
guru teme mais que nunca a descoberta do segredo. Ironia do destino, porém, as ruínas em
que o guru habita pegam fogo – e aqui Borges se esbalda em sua ironia: o templo em ruínas
de um deus do fogo é por fim destruído inteiramente... pelo fogo –, mas as labaredas que
lambem o corpo do guru não lhe fazem a menor mácula... ele também, como o seu filho,
fora forjado pelo sonho de alguém: era também um fantasma.
Entre outras possibilidades de leitura, o conto “As ruínas circulares” remete à
condição fantasmal, condição de mero simulacro, da identidade pessoal. O eu, segundo o
conto, não se estriba num solo firme, numa experiência concreta, mas num sonho. O medo
que o guru tem que seu filho descubra não passar de um simulacro é compreensível: o
esquecimento é condição necessária para que haja a ilusão da identidade pessoal. Prova-o a
existência do próprio guru: ainda no princípio do conto, quando ele chega ao templo em
ruínas para sonhar outro homem, afirma o narrador que “[...] se alguém lhe tivesse
perguntado o próprio nome ou qualquer aspecto de sua vida anterior, não teria acertado na
resposta” (1998, p. 500). Ou seja, o guru esquecera sua condição de simulacro. Tomar
consciência de que se é um simulacro, um sonho alheio, é saber que a integridade do eu, sua
consistência no mundo, é uma ilusão.
Juan Nuño (1986) lê “As ruínas circulares” como uma contrafação de Borges às
teorias filosóficas do neoplatonista Plotino e do idealismo de Berkeley. Para Nuño, o conto
seria “una pesadilla metafísica” (1986, p. 107) – um pesadelo metafísico – sobre a precariedade
da existência humana, sua carência ontológica, e pode ser iluminado, de diferentes ângulos,
pelas duas filosofias aqui citadas:

Si se acepta el idealismo mentalista [de Berkeley], los hombres son sombras, meros
sueños, cuya fugaz y parpadeante existencia está en función de otras sombras y de
otros sueños. Si se cambia la angustia casi existencial de semejante visión onírica por 4 | Em Confissão, Agostinho
explica que os tempos,
la supuesta seguridad modélica de cualquier platonismo, los hombres pasan a ser sucessão contínua de
copias imperfectas de uma Idea sobrehumana, hacia la que, en el mejor de los casos, instantes individuais, são três:
o presente dos fatos passados
sólo les queda tender como quien tiende hacia un inalcanzable límite. La umbrática (memória), o presente dos
fatos presentes (visão) e o
antroplogía del hombre-sueño es reemplezada por la visión impossible del Otro presente dos fatos futuros (a
Hombre, el modélico. En cualquier caso, la existencia humana se asienta en lo espera) que existe na alma,
logo, memória e espaço estão
precario y adjetivo (1986, p. 186-187). dentro do tempo.

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
Se essa perda da segurança da subjetividade é comumente vivenciada no Ocidente,
segundo a feliz expressão de Nuño, como um pesadelo metafísico, para certos sistemas de
pensamento do Oriente, como o Hinduísmo e o Budismo, trata-se de uma meta a ser
alcançada. Nesse sentido, não seria exagero, e nem negaria a leitura de Nuño, afirmar que
“As ruínas circulares” é uma fábula budista, em que se narra, ainda que sem a menor
intenção à fidelidade histórica, um processo de ascese direcionada à superação da ilusão da
subjetividade. Sua localização na Índia, berço do Budismo, não é, pois, casual.
Borges expressou sua simpatia ao Budismo em três estudos. A primeira vez no
ensaio “Formas de uma lenda”, do livro Outras Inquisições, de 1952; a segunda vez no opúsculo
Que es el Budismo, de 1976, escrito em parceria com Alicia Jurado. A terceira na comunicação
“O Budismo”, do livro Sete Noites, de 1980. Não interessa aqui o que Borges pensou do
Budismo, mas como a doutrina do Buda se enquadrava em seu programa estético. Assim, o
conjunto de escritos borgeanos sobre o tema busca, na denúncia do Budismo à ilusão da
1 | O budismo em Borges subjetividade, um reforço à sua estética antirromântica1. Lembremos que no ensaio de 1925,
era também um repto à
Psicanálise, que considerava “La nadería de la personalidad”, em que Borges defendia não existir o sujeito, senão uma
a mitologia empobrecida de série de estados mentais, já aparece uma alusão ao budismo.
nosso tempo (Cf. BORGES,
2000). A antipatia de Borges Muito tempo depois, em 1980, na comunicação “O budismo”, Borges retorna ao
à Psicanálise não impediu,
porém, que abordagens argumento de 1925, cavando como ponto de confluência entre o budismo e a tradição
fundadas nela iluminassem filosófica ocidental a negação do eu:
alguns pontos de sua obra.
Veja-se, por exemplo,
Monegal (1983), Woscoboinik
(1986) e Pommer (1991, p. Uma das ilusões capitais é a do eu2. Nisso o budismo coincide com Hume, com
99-139). Schopenhauer e com nosso Macedonio Fernández. Não existe sujeito, o que existe é
2 | No original: “Una de las uma série de estados mentais. Se digo “eu penso”, estou incorrendo em um erro,
desilusiones capitales es la
del yo” (Argentina, Emecé, porque suponho um sujeito constante e depois uma obra desse sujeito, que é o
tomo II, 1989, p. 251). pensamento. Não é assim. Deveríamos dizer, aponta Hume, não “eu penso”, mas
“pensa-se”, assim como se diz “chove”. Ao dizer chove, não pensamos que a chuva
exerce uma ação; não, está acontecendo algo. Do mesmo modo, assim como dizemos
que faz calor, que faz frio, que chove, devemos dizer: pensa-se, sofre-se, e evitar o
sujeito. (1999b, p. 280, grifos do autor).

O Budismo deve ser lido em Borges mais como um dado estético do que como
um artigo de fé. Aliás, o Budismo dispensa a crença num ser transcendental criador do
mundo, o que deve ter sido um fator atrativo ao homem Borges, que sempre oscilou entre o
agnosticismo e o ateísmo.

Considerações Finais
A inteligência que preside os textos de Borges é um anteparo, necessariamente vulnerável,
contra um drama da linguagem: o drama de não poder ordenar o mundo, de não abarcá-lo

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
em sua totalidade, de não realizar uma mímesis total ou hipermímesis. A literatura de
Borges opta não pela simples dissolução da realidade e pela negação da mímesis, antes se
empenha numa atitude lúcida de sondagem do poder de representação da literatura, e dos
limites dessepoder.
Negando as idiossincrasias do sujeito, minando a crença numa subjetividade una
e constante, Borges construiu uma estética avessa à confissão e ao sentimentalismo, uma
estética antipsicologista por excelência, fundada na inteligência e na erudição, voltada não
para os abismos da psique humana, mas sensível aos tipos delineadores de arquétipos3. Não 3 | Uso o termo arquétipo,
aqui e noutros pontos, não
por acaso Borges frequentemente demonstrava desinteresse ou mesmo enfado com os no sentido junguiano de
estruturas do inconsciente
grandes investigadores dos abismos humanos, com Agostinho, Pascal, Dostoievski, Proust e coletivo, mas no sentido que
Freud. As ficções de Borges são achatadas: progridem sem depender da perquirição das lhe atribui Mircea Eliade, o
sentido de modelo exemplar,
camadas subconscientes dos personagens. Coerente com sua negação do sujeito, Borges que o mito e a literatura
revelam e que o rito atualiza.
dissolve as idiossincrasias dos sujeitos humanos: faz do destino de um o destino de todos. Ver Eliade (1980).
Como ele já dizia no assaz citado aqui “La nadería de la personalidad”, de 1925: “[...] tu con-
vencimiento de ser una individualidad es en un todo idéntico al mio y al de cualquier espé-
cimen humano, y no hay manera de apartalos” (I, 1994, p. 96).

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
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WOSCOBOINIK, Julio. El alma de “El Aleph”: nuevos aportes a la indagación psicoanalítica de la obra de
Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1986.

José Wanderson Lima Torres


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Borges: Por uma Estética da Precariedade
Douglas e o Livro de Luz:
As Imagens e a Busca pela
Interdisciplinaridade

Antônio Jackson de Souza Brandão


Prof. Dr. Antônio Jackson de
Souza Brandão é escritor,
poeta, mestre e doutor
em Literatura alemã pela
Universidade de São Paulo
(USP), além de docente no
mestrado da Universidade de
Santo Amaro (UNISA/SP).

Sebastião Jacinto dos Santos


Prof. Sebastião Jacinto
dos Santos é especialista
em Educação pela UFRN
e mestrando em Ciências
Humanas pela Universidade
de Santo Amaro (UNISA/SP).
Resumo Abstract
A partir da leitura do romance Douglas e o Livro From the reading of the Jack Brandão’s novel
de Luz, de Jack Brandão cotejado com teóricos da Douglas e o Livro de Luz, collated with theoretical
interdisciplinaridade, o presente artigo abordará a interdisciplinarity, this article will address the
importância de o docente não limitar seu campo importance of the teacher does not limit its field to
de atuação a sua disciplina, mas de buscar a his discipline, but to seek the cooperation of the
cooperação entre as demais disciplinas, já que a other disciplines, since the view of the world and
visão do mundo e da realidade não se faz de reality is not done in a compartmentalized way. For
maneira compartimentada. Para que isso seja this to be possible, the image becomes an effective
possível, a imagem torna-se uma forma efetiva de way of interdisciplinary accessibility, as it takes and
acessibilidade interdisciplinar, já que leva e assumes questions that go beyond and that open
pressupõe questionamentos que vão além dela e the plural understanding of the world around us.
que se abrem ao entendimento plural do mundo
que nos cerca. Keywords: interdisciplinarity, literature, teacher
education, education, Douglas e o Livro de Luz,
Palavras-chave: interdisciplinaridade, literatura, image.
formação docente, educação, Douglas e o Livro de
Luz, imagem.
Q
Introdução

uando trabalhamos com uma obra literária em aulas que não sejam de Língua
Portuguesa, criamos a possibilidade de que nossos alunos não só viagem a um
mundo imaginário, como também que acabem enxergando certos aspectos da
realidade com outros olhos. Dessa maneira, no momento em que haja o

envolvimento entre leitor e obra literária, essa viagem ganha características particulares,
criando semelhanças que os levam a identificar seu mundo presente na descrição do autor,
algo como uma espécie de simbiose entre o leitor-narrador.
Segundo Wolfgang Iser (1999, p. 85), esse processo leva, inclusive, o leitor a tornar-
se sujeito dos pensamentos do narrador, desaparecendo, a cisão entre sujeito e objeto, tão
importante para o conhecimento e a percepção geral.
Na obra Douglas e o Livro de Luz (2013), encontramos muitos argumentos que
auxiliam o discurso interpretativo respaldado pelo ambiente do professor e do aluno. É uma
obra literária cheia de encontros sobre os acontecimentos históricos que nos fazem ver a
realidade de maneira singular, pois mais que narrar uma “história trivial”, verifica-se o
constante questionamento daquilo que se conhece ou se cria conhecer. Vê-se, por conseguinte,
como a relação entre o professor e o aluno pode tornar-se mais rica; quando este, apesar das

Antônio Jackson de Souza Brandão | Sebastião Jacinto dos Santos


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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
inúmeras dificuldades, consegue aproximar-se do mundo daquele ao levá-lo sempre ao
questionamento de seu próprio status quo, mas para isso precisa libertar-se do engessamento
da mera especialidade disciplinar.
Dessa maneira, o romance nos traz algumas considerações sobre a questão
interdisciplinar e sua prática, já que mais do que especular sobre a realidade, demonstra que
esta é a reunião de várias facetas não excludentes, mas interdependentes, cujo elemento
amalgador seria a imagem.

Aspectos do romance Douglas e o Livro de Luz


Obra literária, composta por 35 capítulos e epílogo, gira em torno de Douglas Hackmann,
aluno que acaba despertando para o sentido de sua própria história, a partir das pesquisas
propostas por seus professores em sala de aula.
O protagonista acaba tornando-se peça-chave para a descoberta do Livro de Luz
que propiciaria a seu detentor todo o conhecimento adquirido pelo homem ao longo de sua
existência – desde o domínio do lógos escrito, cujo start foram as imagens, que a humanidade
foi construindo ao longo dos séculos, até o futuro – pelo menos em relação ao tempo
diegético da narrativa –; mas, para que isso seja possível, conta com a ajuda e apoio de seus
amigos, Maíra e Luciano, além do professor Lincoln.
Há, além do protagonista e dos deuteragonistas uma rede de antagonistas:
Henrique Bianchi, péssimo aluno, repetente, procura cooptar todos para seguir seu exemplo;
Júlio, desafeto do pai de Douglas em sua infância, e sua filha Júlia; o advogado e professor da
universidade, doutor W., comparsa de Júlio para perseguir e destruir os planos de Douglas;
além de Êdima, religioso poderoso que adquiriu bens usando a fé dos ignorantes e que, de
certa forma, financia a rede. Sem contar com os comparsas: Xênia, professora de biologia
cativante e inteligente; Rosaura, professora de literatura, ensina que as palavras não podem ser
interpretadas superficialmente por se constituírem em enigmas; Pierre, professor de educação
física; Nálssio, professor de Física; Niklos, diretor da escola Max Mundi e o delegado Michael.
Como todo herói, Douglas também é auxiliado em seu intento por uma figura
tutelar (ou guardião) espécie de alterego, Godofredo, que, conforme Jung (2008, p. 144), são
“representações simbólicas da psique total, entidade maior e mais ampla que supre o ego da
força que lhe falta”.
Nos seis primeiros capítulos, o enredo gira em torno da relação dos alunos com
professores em sala de aula, a realização de pesquisas na biblioteca da comunidade e conversas
entre os colegas sobre os vários campos do conhecimento. No primeiro, por exemplo, o
professor de história relaciona sua disciplina com a fotografia e pede uma redação aos alunos
sobre suas famílias a partir dessa relação.
Assim, a partir dessa atividade, reacende, em Douglas, seu interesse em conhecer
aspectos da vida de seus pais que já estavam mortos há muitos anos, mesmo que a consequência
para isso fosse a dor e a tristeza:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Na hora do jantar, Douglas foi interpelado pela avó que queria saber como havia
sido seu primeiro dia de aula no colégio novo. O garoto demonstrou grande
entusiasmo, falando a respeito do álbum de fotografias, do interesse do professor pela
matéria, do avental azul, dos colegas, do tamanho do colégio… A avó via a alegria
estampada no rosto do neto. De repente, o menino se cala e fica olhando para o prato.
Então, começa a brincar com o macarrão parafuso e com os legumes ali presentes.
Não só seu olhar estava distante, como também seus pensamentos. Dona Rosa
interrompe o devaneio do neto:
— Que houve com o garoto que chegou todo alegre, saltitante e agora fica cabisbaixo
e triste? Você está pensando em quê?
— Nada vó…
— Como nada? Você não me engana Douglas… Alguém judiou de você no colégio?
— Não, vó… é que… – relutava em dizer o motivo que o entristecera de repente,
mas diante da insistência da avó, continua –… estava pensando em meus pais…
Não queria que a senhora ficasse triste… (BRANDÃO, 2013, p. 16-17)

No capítulo 2, a professora de biologia, a partir dos seguintes questionamentos


ontológicos: “De onde o homem veio? O que ele faz aqui? Como surgiu tudo o que há na
terra?” (ibidem, p. 27), solicita uma pesquisa a seus alunos. Essa acaba sendo o start que
apontarão a questões interdisciplinares, levando os alunos a transitarem por diversas áreas
do conhecimento dos conhecimentos bíblicos às descobertas científicas.
A partir do capítulo 7, começa a se desenrolar o tema central do romance: Douglas questiona-
se sobre os sonhos estranhos que tem tido. Ele sonha sempre com Godofredo que aparece na
forma de vários animais. A saga começa, quando este revela ao protagonista a existência de
um Livro, que lhe revelaria o motivo da morte de seus pais e o porquê dos sonhos estranhos
que tem tido. Mas ao se deparar com aquele estranho objeto não esconde sua decepção:

— Mas pensei que ele fosse me dar as respostas que preciso… Você não disse que…?
— Falei que parte das respostas você encontrará aqui… Chegue mais perto! Procure
ler o que está escrito. (ibidem, p. 80)

O garoto, preso como muita gente à ideia de que a imagem fala por si mesma e
que não necessita de leitura e interpretação, sente-se logrado por Godofredo. O ato de ler é
bem mais abrangente do que supunha, não se restringia apenas ao lógos, mas às várias
imagens que o próprio Livro havia lhe revelado naquela floresta cercada de escuridão:.

— Mas eu só vejo imagens…


— Quem disse que as imagens também não têm de ser lidas, meu caro?

Antônio Jackson de Souza Brandão | Sebastião Jacinto dos Santos


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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
— Nunca ninguém me disse isso…
— Mas é vivendo que se aprende, meu caro! Venha, leia as imagens
que você está vendo.
— Mas eu não estou entendendo nada do que está aqui…
— Você não disse que eram só imagens? Então, como está difícil ler? Elas não falam
sozinhas, sem a necessidade de legendas?
(BRANDÃO, 2013, p. 80)

A personagem Douglas segue na busca por este livro e a trama foca questões, em
grande parte, filosóficas. No capítulo 13, ele conta a Maíra sobre seus sonhos, o Livro,
Godofredo e o professor Lincoln. Ela acha a história excitante e perigosa, mas se compromete
a ajudá-lo em sua busca.
No capítulo 17, na busca por descobrir o enigma do livro, ocorre um assassinato:
o da professora Rosaura que ajudaria os garotos com a decifração das imagens fornecidas
pelo livro. Na testa da professora, duas letras foram marcadas a estilete: “N” e “V”, nos pés
do cadáver havia um bilhete que dizia: “Não busque mais do que o trivial, a verdade do livro
não deve ser procurada, caso contrário todas as rosas irão desaparecer com o vento... Non
Veritas” (ibidem, p. 251-252). Douglas logo percebe que o assassinato está relacionado ao Livro
de Luz. Isso gera vários questionamentos sobre quem fez aquilo e porque, se a professora
nem sabia das imagens do livro ainda.
No epílogo, a narrativa finaliza quando os meninos resolvem todo o enigma das
imagens no parque e são transportados por um túnel para um outro lugar, onde encontram
o Livro de Luz.

A importância da imagem no romance


No romance de Brandão (2013) são apresentadas duas instâncias: uma a de que a imagem
ultrapassa o limite do suporte em que está inserida; a outra, de que ela perpetua-se e
confunde-se em toda a trajetória humana. Desde o início da história da civilização, quando
o homem sequer tinha desenvolvido uma linguagem escrita, a imagem já estava lá presente
como forma de percepção da realidade.
O mapeamento das imagens pode ser apontado quanto a sua existência desde a
experiência dos homens da caverna, quando estas eram fixadas nas paredes rochosas: os
desenhos, os traços representando as caçadas, a descoberta do fogo, a percepção entre o
quente e o frio, entre o inverno ou verão, a visão sobre a realidade do mundo; enfim, a
manutenção diária pela sobrevivência.
Com os avanços científicos, o homem, numa tentativa assustadora, desenvolve a
compreensão do mundo a partir de seu fazer linguístico, resumindo-a às imagens. Não
obstante, para Brandão essas são antes de tudo textos e, como tal, acompanham todo o

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
processo de desenvolvimento da civilização humana. Não é à toa que Douglas “começa a ler
as fotos com uma voracidade que até então nunca tivera” (BRANDÃO, 2013, p.18).
Certa vez, conversando com sua avó em casa depois do jantar, Douglas traz à tona
os pormenores do ocorrido na escola em um determinado dia. Falou, de modo particular, das
aulas do professor de história, do despertar para a realidade a partir das fotografias amareladas.
Mais tarde, divagava e conversava com um “esquilo” (ibidem, p. 19-22), quando se
viu observando seus parentes desconhecidos, como seu pai (menino) e a avó desconhecida.
No sono, sonha uma “fotografia real” de sua existência. As imagens recobrem-se de uma
temporalidade que não lhes é inerente – , têm de se manter numa imobilidade eterna, em
um perpétuo presente –, visto que ganham movimento; tornam-se, portanto, mentais:

— Hans… komm, schnell!1 1 | [Hans... venha, rápido!]

Hans… agora que eu vi: aquele menino é meu pai! Mas como é possível? Por que ele
não me vê? Será que entrei na fotografia ou a fotografia entrou em mim? Será que é
esse o motivo de tudo estar preto e branco? Tento fechar os olhos, olhar para o sol;
tenho de vislumbrar as cores! Nada, nada, nada; até as flores daquelas floreiras são
cinza… Estou sonhando… Como é bom sonhar! (ibidem, p. 21)

Que é real? Que existe de fato?

Sim, a realidade se transformava em ilusão, pois as imagens que ia construindo em


sua mente se misturavam com aquelas que lia nos livros e com as que assistiam nos
filmes na televisão (ibidem, p. 13).

Talvez seja por isso que o protagonista, em alguns momentos, punha-se a tentar
entender o que seria a tal realidade, mas para que isso fosse possível, barrava-se na questão
temporal:

Quantas vezes não se punha a imaginar outros mundos, outras línguas e pessoas,
outras realidades. Outras realidades… Estas realmente eram outras, fugiam do
senso comum, do factível, pelo menos para uma criança na idade em que estava.
Não, o mundo não é só isso que vemos, deve haver algo mais por trás dele. Mas, que
seria? Quem sabe, quando se tornasse adulto saberia melhor as coisas da vida e do
mundo! Todos dizem que os adultos sabem das coisas, pelo menos ele ouvia sempre a
mesma história: “Essa conversa é de adulto!”, “Você não pode ficar aqui…, quando
você crescer…” No entanto, ele achava que poderia entender, por que não tentavam
lhe falar? Preocupava‑se com isso, mas sabia que um dia cresceria e poderia se sentar

Antônio Jackson de Souza Brandão | Sebastião Jacinto dos Santos


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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
à mesa com os outros, falar de igual para igual. Deveria apenas ter paciência, o
tempo faria o resto… (BRANDÃO, 2013, p. 69)

Não há sequer um momento na história humana desprovido da ideia de imagem,


cuja essência é, primordialmente, interdisciplinar. Isso porque, em seu processo de
construção, de análise e de leitura, envolvem-se vários elementos não restritos a um tempo
e espaço determinados, conforme o narrador do romance em questão demonstrará ao longo
de seu texto e que farão parte integrante do acervo iconofotológico (BRANDÃO, 2010, p. 92)
individual do protagonista:

Se não fossem as fotografias, a imagem de minha mãe já teria desaparecido totalmente


de minha mente! Não adianta dizer o contrário, as imagens se esmaecem pouco a
pouco, tornam‑se borrões até desaparecerem para sempre… (BRANDÃO, 2013, p. 61)

Esse acervo, contudo, perpassa o individual e entra no coletivo e serve-se deste e


de sua interferência para se efetivar, é por isso que o protagonista questiona-se se as imagens
que possui em sua memória são deles ou foram construídas por aqueles que estão a seu lado:

Como ele ficava contente quando sonhava com seus pais! Mas esses sonhos só eram
possíveis, porque a imagem que possuía deles era muito vívida e real em sua mente:
aquelas velhas fotografias haviam lhe aberto as portas de que necessitava para sair
à procura por respostas. Aquelas imagens e todo o mundo que as envolvia saíam de
suas molduras como reflexos que saltavam do papel e o impulsionavam para aqueles
instantes, puxando‑o para momentos mágicos que se renovavam em sua lembrança.
Sabia, porém, que muitos deles eram enxergados a partir dos olhos de sua avó, pois
em muitas cenas que lhe saltavam aos olhos, nos mínimos detalhes, ele não passava
de uma criança bem pequena: será que sou eu mesmo que estou me lembrando disso?
(BRANDÃO, 2013, p. 169-170)

Como afirma Fazenda (2011, p. 11), “a primeira condição de efetivação da


interdisciplinaridade é o desenvolvimento da acessibilidade”, ou seja, esse processo “pressupõe
um treino na arte de entender e esperar, um desenvolvimento no sentido da criação e da
imaginação” (FAZENDA, 2011, p. 11). Assim, a própria imagem torna-se uma forma efetiva
de acessibilidade interdisciplinar, já que leva e pressupõe questionamentos que vão além dela.

O papel do professor na construção da interdisciplinaridade


Assim como na rotina da sala de aula, o professorado do aluno Douglas também apresenta
várias facetas. Ao se lerem as entrelinhas do romance, deparamo-nos com um fato salutar

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que, dificilmente, poderíamos distanciar do real: ficção e realidade se fundem num todo que
se regenera mutuamente, em sua completude, na busca pelo dialógico:

O ensino interdisciplinar nasce da reposição de novos objetivos, de novos métodos,


de uma nova pedagogia, cuja tônica primeira é a supressão do monólogo e a
instauração de uma prática dialógica. (FAZENDA, 2007, p. 33)

A mesma autora adverte, porém, que para tal ideia se legitimar é importante que
possamos romper com as “barreiras entre as disciplinas e entre as pessoas que pretendem
desenvolvê-las.” (ibidem, p. 33)
Para realizar o trabalho interdisciplinar, faz-se necessário que o professor possa
analisar os materiais de ensino, os livros didáticos, os livros de literatura infanto-juvenil e
indicar trechos de apoio para planejar bem o trabalho interdisciplinar em sala de aula.
Nesse sentido, a obra Douglas e o Livro de Luz nos aponta caminhos que estão
presentes nas questões cotidianas do professor brasileiro. Os inúmeros problemas ligados às
barreiras históricas não se resumem a questões de geografia, por exemplo, mas a de outras
áreas das ciências humanas tais como a filosofia, sociologia, história, cujos conceitos e
definições têm se transformado, infelizmente, em conteúdo amorfo.
Se a escola é vista como um reduto para o convívio social, deve estender-se
também ao mundo da criança e do jovem: seja por meio das antigas brincadeiras interativas
e sociais, seja por meio das novas tecnologias virtuais que devem ser intercaladas à realidade
da rotina cotidiana escolar.
Hábitos, valores e atitudes sociais, integrantes básicos da personalidade humana,
devem ser ligados ao discurso da sala de aula. O professor, ao despejar uma massa disforme
de conteúdos que apenas reproduz o conteúdo de um livro texto, limita o aluno, conduzindo-o
a uma aprendizagem relativa, cujo resultado também será a construção de uma realidade
distorcida do que se entende por verdade.
Assim, quando a professora Xênia explica a teoria do Big Bang, faz empregando
elementos do mundo daqueles jovens:

Quando se sentou à mesa, tirou do bolso de seu avental uma bexiga azul e começou
a assoprá‑la, assoprá‑la, assoprá‑la, assoprá‑la … – o mais engraçado é que aquele
balão era enorme, e ela tinha um fôlego gigantesco, pois nem ela se cansava, nem a
bexiga estourava – assoprá‑la, assoprá‑la … Todos começaram a fechar os olhos
esperando o estouro. Mas, antes dele, ela parou. Ficou com aquele imenso balão
diante de si. Tirou, cuidadosamente, a ponta da bexiga de sua boca e a amarrou.
Saiu da mesa e deixou em seu lugar aquele monstro azul pronto a explodir.
(BRANDÃO, 2013, p. 28)

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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
Percebemos assim, em nossa prática educacional, que há muitas tentativas
inovadoras que perpassam a formação do professor, embora na ação cotidiana a grande
maioria ainda esteja submetida ao isolamento de suas práticas especialistas. Acreditamos ter
domínio de nossa área, de seus conteúdos, de sua evolução, de seus vários acontecimentos;
delimitamos, dessa maneira, tais saídas que se mantêm no isolamento, visto que tais
experiências não são compartilhadas com os colegas de trabalho. Isso tornaria possível
socializar as fronteiras nos temas dos elementos trabalhados no cotidiano do aluno.
Tal prática recebe severas críticas no campo das definições do que vem a ser a
interdisciplinaridade que, ainda segundo Fazenda (2003, p. 60), deve pressupor um
compromisso existencial com a partilha. Na ausência desse pressuposto não há sentido na
prática diária.
A prática interdisciplinar constitui-se assim, não como ações isoladas do professor
ou do aluno, mas como uma prática dialógica conjunta, que leva ambos a interagirem para
além de suas limitações e de seus discursos:

— A resposta é clara e está no próprio bilhete: pessoas devem se contentar com o


trivial! – disse Lincoln que acrescentou – Isso quer dizer que o poder deve permanecer
sempre nas mesmas mãos…
— Mas isso é coisa da Idade Média! – afirmou Maíra.
— Exatamente! Vejo que você prestou atenção em nossas aulas! Mas a questão não
é só medieval, é algo que acontece em todo lugar e ainda hoje! Quantos governos,
quantas ditaduras não escolhem, até hoje, o que seus cidadãos devem ler e conhecer?
[...] (BRANDÃO, 2013, p. 250)

Dessa forma, as várias disciplinas constituem um formato de conhecimentos que


não deveriam ser abordados, isoladamente, em seus vários campos de conhecimento. Elas
precisam interagir para constituir-se uma totalidade, a fim de apresentar o mesmo
conhecimento em suas várias facetas e formas. Isso levará com que mais alunos ajam como
a personagem Maíra ao estabelecer relações que, apenas na aparência, não se coadunam.
A interdisciplinaridade, neste caso, definir-se-ia como um processo de relação,
reciprocidade e mutualidade, ou como um regime de copropriedade, de interação, que
possibilitaria o diálogo, levando a “uma mudança de atitude perante o problema do
conhecimento, da substituição de uma concepção fragmentária pela unitária do ser
humano” (FAZENDA, 2007, p. 31), estabelecendo a intersubjetividade.

Quem está sendo interdisciplinar?


No romance em questão, Douglas e seus amigos estão sendo envolvidos por uma série de
atividades no cotidiano que os fazem pesquisar e seguir por diversas fontes de conhecimento.

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Nesse ínterim, tanto os professores como os educandos têm, na prática, uma perspectiva
interdisciplinar, pois para qualquer pesquisador são necessárias diferentes interlocuções que
se conectem às mais diversas fontes de saberes e aprendizagem.
Nesse sentido, trabalhar com uma visão ou uma ação interdisciplinar não é
colocar em prática um método. A interdisciplinaridade não se constitui em um método ou
uma corrente de pensamento.
Conhecer os paradigmas que orientam a interdisciplinaridade na realidade
contemporânea é desenvolver um experimento a partir da seleção dos principais eixos
pragmáticos. Experimento que se inicia a partir de estudos no seio das disciplinas. Esses
eixos são pautados pelas questões filosóficas, sociológicas, antropológicas, como do campo
do conhecimento científico em geral. Devemos compreender que, ao tratar-se de
interdisciplinaridade, não estamos falando diretamente de correntes de pensamentos ou de
regras filosóficas em geral. Não eliminamos, porém, qualquer forma de conhecimento,
deixando claro que a interdisciplinaridade não está fundamentada como regra ou método
que fundamente a sua prática.
É importante perceber também que, na atualidade, questões que envolvem
diretamente a problemática humana estão de alguma forma interligadas com campos do
conhecimento. Nesse caso, ao estudar o tema interdisciplinaridade nos autores aqui
apontados, percebemos que estes dialogam diretamente com esses mesmos eixos do
conhecimento. Concomitantemente, percebe-se também que, as questões ecológicas,
políticas, éticas, e de finalidades estéticas, são de alguma forma expoentes para o complemento
do trabalho com interdisciplinaridade.
Os aspectos literários tratados em Douglas e o Livro de Luz orientam-se de fato,
por estas questões do conhecimento. Os professores, cada um ao seu modo, desenvolvem seu
trabalho didático, tendo em mente uma visão disciplinar que, necessariamente, se completa
com o auxílio do entrelaçamento de outros conhecimentos contidos quase sempre no campo
desconhecido daquela especificidade.
O autor conseguiu relacionar ficção com realidade, já que o que ele descreve se
confunde perfeitamente com o real. Neste caso, não há uma resposta única e concreta que
defina quem é ou não detentor de uma ação interdisciplinar: professor e aluno complementam
suas ações fazendo destas um ato interdisciplinar em que ambos se envolvem entrelaçando
ideias que determinam a sua prática.

A recepção dos alunos  é interdisciplinar?


Distribuído em 35 capítulos, a obra é digna de qualquer enredo literário que atende uma
gama vasta de leitores, inclusive ao grupo infanto-juvenil. Brandão percorre uma forma de
escrita literária, prendendo a atenção do leitor. Na tentativa de perceber qual é o real sentido
da busca das personagens, enveredamos não só por lugares, como também pelas consciências

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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
e descobre-se que, “na realidade, quando não se conhece alguma coisa ou alguém,
simplesmente é mais fácil ter medo, mesmo sabendo que isso não passa de um lugar-comum”
(BRANDÃO, 2013, p. 12). É justamente essa fórmula que o autor encontra para dar asas à
imaginação: transformar o conhecimento comum em fatos puramente literários, tornando
a realidade em pura ficção.
De uma sala de aula e da simples interferência do professor, o autor remete os
alunos ao mundo dos questionamentos filosóficos sobre a origem do tempo, da vida, da
morte; ou ainda, o desejo de viajar no tempo para mudar aquilo que não está conforme o
que desejamos.
Um texto escrito de uma forma prazerosa, cujo discurso é puramente
interdisciplinar já que apresenta um entrelaçar de conhecimentos nas várias fontes do saber
disciplinares. Brandão (2013) realiza assim, a proeza conforme nos afirma Lenoir:

Ao lado da especialização e da classificação dos saberes, a efetivação do sistema de


disciplinas científicas requer o uso de um processo comunicacional junto às estruturas
disciplinares, assim como, por fora, com outras comunidades disciplinares e com o
conjunto da sociedade. Esta exigência é tão forte que a estrutura descentralizada do
sistema das disciplinas científicas fez desaparecer toda possibilidade, ao mesmo
tempo de controle supra disciplinar e de substituição, [...], a religião por muito tempo,
a filosofia em seguida (LENOIR, 2005).

A intencionalidade interdisciplinar não se expressa, necessariamente, no


conhecimento especializado e tão pouco na classificação dos saberes, pois tais definições são
características que legitimam a disciplinaridade. Já apontamos anteriormente, essa questão,
a partir do pensamento de Fazenda (2011).
No trabalho interdisciplinar é importante desenvolver o pensamento de natureza
filosófica, sociológica, antropológica, etc., para o entendimento da educação, assim “conceitos pouco
explorados na educação tais como ética e estética, memória e temporalidade já fazem parte do
universo do discurso e pesquisas da interdisciplinaridade”, conforme nos alerta Fazenda (2012, p. 7).
Nesse caso, de acordo com a mesma autora, “o processo interdisciplinar desempenha
um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho de fundar uma obra de educação à luz da
sabedoria, da coragem e da humanidade” (FAZENDA, 2012, p. 8); sendo assim, é “possível
planejar e imaginar, porém é impossível prever o que será produzido e em que quantidade ou
intensidade” (ibidem, p. 8).
É possível que o professor possa dialogar com as principais ideias do conhecimento,
realizando um trabalho voltado para a pesquisa, para a participação e para a partilha de
experiências. Cada professor, em sua especialidade, vai enveredando por uma autoaprendizagem
que outorga legitimidade em sua ação de educar, na resolução da complexidade de aprender

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e ensinar na atualidade. Por isso sente, muitas vezes, a vontade de sempre ir além, conforme
disse o professor Lincoln:

Acho que eu deveria ter estudado letras, não história, aí poderia ler Homero não
com os olhos “tecnicistas” de historiador, ler Virgílio não com o ceticismo científico,
mas com o olhar ufanista de quem vê, diante de si, toda a grandeza de seu povo, de
sua cultura, de sua nação. Sim, Adão pode ter vivido mil anos, isso não faz diferença
para quem acredita, mas faz muita para quem quer aprender. (BRANDÃO, 2013, p. 114)

Nessa perspectiva de busca:

faz-se necessário recorrer à interdisciplinaridade em função da exigência de um


outro método de análise de nosso mundo, mas também em função de finalidades
sociais, cada uma das disciplinas científicas não podendo sozinha responder
adequadamente às problemáticas altamente complexas (LENOIR, 2005).

Um olhar sobre interdisciplinaridade


No início do século XXI, com a crise do pensar aflorada em todo o mundo e interferindo em
todas as instâncias do planeta, o processo de desenvolvimento humano é comprometido.
Consequências drásticas afetam o embate do conhecimento científico e surgem
novas formas de questionamentos para resolução emergente do pensar complexo. Esse
embate se faz necessário, principalmente, pela negação ou crise expressiva que nos tem
tolhido o direito de reflexão.

Nesse fenômeno de concentração em que os indivíduos são despossuídos do direito de


pensar, cria-se um sobrepensamento que é um subpensamento, porque lhe faltam
algumas das propriedades de reflexão e de consciência próprias do espírito, do
cérebro humano (MORIN, 2013, p. 135).

Isso interfere diretamente no processo de ensino- aprendizagem.


Na obra literária analisada, o aluno Douglas busca o entendimento da realidade a
partir do conhecimento. Podemos inferir que o autor realiza o perfeito desencadeamento dos
temas a serem narrados no romance, apresentando algumas questões que, embora façam
parte do senso comum na atualidade, são pertinentes ao ajuste do conhecimento científico.
Sem eles, o conhecimento humano não teria encontrado o seu apogeu nos dias
de hoje. Esses temas nos levam a crer numa crise do conhecimento. Não em sua ausência,
mas como avanços incompreensivos ou retrocesso de problemáticas que já deveriam ter sido
solucionadas pela ciência.

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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
Essa forma de pensar limitada ou progressista não deixa de ter em seu cerne a
essência da busca da compreensão do mundo que se traduz em uma nova forma de ver a
educação, sua importância e complexidade (MORIN, 2005).
Nessa busca pelo conhecimento, aprofundando seu sentido e sua importância, o
mundo e o desencadeamento da realidade tomam uma dimensão ora distante, ora muito
próxima. Isso gera o que podemos definir como pensamento complexo: interdisciplinar,
transdisciplinar, multidisciplinar ou pluridisciplinar. Estas palavras podem ser definidas
como simples modismo para o entendimento sobre o conhecimento ou as formas complexas
do entendimento da trajetória e transformação do conhecimento científico na atualidade.
No cerne da questão está a “disciplina” como ciência compartimentada do
conhecimento. Sua maneira de ser trabalhada em sala de aula tem sido definida como
atrasada ou ultrapassada. Contudo não se pode negar, no estudo do conhecimento
disciplinar, que o dialogo inter-, trans-, multi- e pluri-, pode ser, na realidade, a conjectura
de legitimidade disciplinar.
Poderíamos nos perguntar qual a importância e o real papel ou finalidade da
interdisciplinaridade no cotidiano da educação. Ela se faz necessária em se tratando de uma
realidade brasileira em que a educação tem se apresentado como uma prática e forma de agir do
professor em suas fórmulas ultrapassadas e quase sempre criticadas pelos estudiosos da educação?
Neste sentido, a tarefa de definir o que é ou não interdisciplinar pode seguir por
duas fronteiras: uma que trata diretamente da relação entre conhecimento; outra mais
abrangente e quase sempre difícil de ser compreendida de como tratar questões que vão
além do discurso científico das disciplinas.
Cabe, nesse caso, abandonar as práticas de senso comum e enveredar por uma
realidade mais abrangente levando em conta que os conceitos interdisciplinares se
fundamentam em questões filosóficas, sociológicas, históricas, geográficas entre tantos
outros conhecimentos científicos.
Como ilustração, poderíamos afirmar que, na contemporaneidade, com os
avanços tecnológicos, as descobertas científicas e a resolução das diferentes buscas de
respostas para todo e qualquer tipo de conhecimento, dificilmente falaríamos de um tema
ou de determinado assunto sem relacionar os diversos campos do conhecimento.
Na busca do aprofundamento sobre o sentido real do que vem a ser a
interdisciplinaridade, faz-se necessária uma tomada de posição sobre sua real finalidade e sentido
a partir de uma ação consciente e inovadora entre professor e aluno. Não é só papel do professor,
mas também do aluno ter em mente a socialização do conhecimento que, necessariamente,
pode se apresentar também fora daquilo que é finalidade direta de cada disciplina.
Nesse sentido, quando acionamos as questões curriculares, entendemos que alguns
aspectos da aprendizagem vão além daquilo que é planejado pelo professor, cabendo a este
exercitar a sensibilidade em um processo maior de educação e reeducação de si e do outro.

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Esse exercício é diário e constante, assim como a

interdisciplinaridade é uma exigência natural e interna das ciências, no sentido de


uma melhor compreensão da realidade que elas nos fazem conhecer. Impõe-se tanto
à formação do homem quanto às necessidades de ação (FAZENDA, 2003, p. 43)

Os estudos quanto à definição e intencionalidade tem demonstrado ser difícil


definir a interdisciplinaridade. Os dicionários têm tratado o tema de forma simplista
chegando a definir o conceito “interdisciplinar” com alusão ao estágio comum a duas ou
mais disciplinas ou ramos do conhecimento. Ela pode também ser vista, como interação
entre diferentes ramos do conhecimento ou a tendência em mesclar os conhecimentos de
duas ou mais disciplinas (BORBA, 2011, p. 784).
A interdisciplinaridade pode ser percebida assim, em três abordagens conforme
Lenoir (2005):

1. a instrumental que pode


resolver problemas sociais de diversas ordens, ela pode também reduzir a atividade
intelectual a preocupações de viabilidade comercial e submeter à formação
universitária – ensino e pesquisa – às exigências políticas ou econômicas (p. 11);

2. a abordagem epistemológica que


pode ajudar a compreender a complexidade, os fundamentos e os desafios das
relações disciplinares; ela pode também favorecer uma acentuação da fragmentação
disciplinar ou eliminar a perspectiva social (p. 17).

3. e a fenomenológica,
que pode favorecer enormemente a tomada de consciência pelo docente de suas
funções profissionais, senão sociais, pode também induzir condutas humanas que
negligenciam, entre outras, a relação com o saber (p. 17).

Assim, a interdisciplinaridade pode ser definida, historicamente, como algo


contemporâneo por se constituir em “uma noção recente; pois a palavra foi forjada
certamente há menos de cem anos e sua extensão ao domínio da educação é ainda mais
recente”. (LENOIR, 2005, p. 4)
Pode-se dizer que essa visão não nos ajuda a compreender seu sentido e que isso
se dá por sua própria indefinição que ainda vem sendo buscada por alguns estudiosos. É o
caso de Fazenda, importante pesquisadora e estudiosa do tema ao apontar que “o pensar
interdisciplinar parte da premissa de que nenhuma forma de conhecimento é em si mesma

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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
exaustiva. Tenta, pois, o diálogo com outras fontes do saber, deixando-se irrigar por elas.”
(FAZENDA, 2007, p. 15)
No tocante ao romance de Brandão (2013) encontramos estas fronteiras de ligação
que surgem no início dos fatos narrativos sobre as imagens e que seguem na busca dos
alunos Maíra, Luciano e Douglas. Estes estão envolvidos em pesquisas e na busca do
entendimento sobre as teorias da criação (BRANDÃO, 2013, p. 64–73), cujo start foi dado
pela professora de Biologia Xênia.
Os trabalhos de pesquisa desses alunos e a interferência dos professores em sala
de aula demonstram que a interdisciplinaridade é efetiva de fato, portanto a
interdisciplinaridade pode ser vista como fronteiras de proximidades e de instâncias. Significa
que diferentes disciplinas sobrepõem-se em troca de conhecimento, complementando-se,
quando uma não elimina a outra. O resultado é uma nova forma de percepção do
conhecimento com diferentes noções, sem, entretanto, poder fazer outra coisa senão afirmar
cada uma, seus próprios direitos e soberanias em relação de troca e cooperação. É por isso
que, às vezes, temos a sensação de que ao trabalharmos um tema de sociologia, percebemos
este como se fosse de filosofia, história ou outra área disciplinar.

Interdisciplinaridade e romance: encontro ou desencontro?


As ideias de Brandão (2013) nos proporcionam o encontro entre o romance e o sujeito
interdisciplinar, pois quem faz essa integração do conhecimento é o ser humano envolvido
na ação educativa e coerciva.
Quando falamos da interdisciplinaridade, necessariamente temos de abandonar
uma teoria romântica sobre o que vem a ser o cotidiano de uma sala de aula, com toda sua
estrutura organizacional, o processo interventivo do professor e todo mundo individualista
do aluno.
O professor não lida com uma, mas com várias visões de mundo, pois cada aluno
é único, capaz de se permitir em sua resiliência como protagonista do comando de sua
formação. Procede-se, desse modo, a uma reafirmação das percepções, com um nível
ideológico presente nas ações professor-aluno já que “numa sala de aula interdisciplinar,
todos se percebem e se tornam parceiros” na convivência e na “produção de um conhecimento
para uma escola melhor, produtora de homens mais felizes” (FAZENDA, 2007, p. 83).
Mas, a pesar do desencanto que tem se desencadeado na prática do professor,

Numa sala de aula interdisciplinar, a obrigação é alternada pela satisfação,


arrogância pela humildade, a solidão pela cooperação, a especialização pela
generalidade, o grupo homogêneo pelo heterogêneo,  a reprodução pelo questionamento
do conhecimento (FAZENDA, 2007, p. 83).

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Em síntese, numa sala de aula interdisciplinar há ritual de encontro – no início,
no meio, no fim (FAZENDA, 2007, p. 83). Esse encontro pode ser tanto pelo conhecimento
como também nas relações pessoais que são realizadas no encontro professor-aluno, aluno-
aluno e todos os profissionais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.
Inserido dentro desse contexto, a proposta do romance de Brandão (2013) realiza
um processo de concatenação, levando-nos a crer que a proposta pedagógica se reflete na
realidade da sala de aula.

Considerações finais
Conclui-se, portanto que o romance Douglas e o Livro de Luz, além de proporcionar fruição
estética, pode servir de start para que o profissional da educação possa reconhecer o papel
fundamental de seu ato: o de transformar seus alunos em amantes do conhecimento, à
semelhança de Douglas e de seus amigos.
No entanto, para que isso ocorra de modo efetivo, é necessário que o docente possa
se abrir para além de sua especialização, a fim de levar o corpo discente a enxergar que o
conhecimento, apesar das especializações, também possui vias comunicantes entre si e o mesmo.
Se isso não estivesse claro no mundo narrativo proporcionado por Jack Brandão
em seu romance, não seria possível ao protagonista desvendar o mistério que o Livro de Luz
havia lhe proposto, ou seja, as imagens oferecidas não poderiam nunca serem lidas apenas
com o olhos da anacronia: nunca fariam sentido! Para que essa leitura fosse efetiva, seria
necessário, como o foi, adentrar na diacronia, pois assim foi possível enxergar o que as
imagens revelavam em suas diversas camadas interdisciplinares.
Aquele que se abrir para isso terá em suas mãos a chave do conhecimento humano
que apenas o Livro de Luz, como metáfora de todo conhecimento humano, é capaz de
proporcionar; mas, para isso precisamos sair do nosso campo de conforto e partir para novas
experiências, socializando nosso trabalho docente tanto com nossos colegas de trabalho,
quanto com nossos alunos, razão de ser do magistério.
Assim, a tentativa de levar os alunos a alçar voos por mundos diferentes, a partir
dos temas estudados, deixa-nos a certeza de que não podemos apenas nos fechar nos
compartimentos de nossas especialidades.

Antônio Jackson de Souza Brandão | Sebastião Jacinto dos Santos


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Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
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159
Douglas e o Livro de Luz: As Imagens e a Busca pela Interdisciplinaridade
Duas Faces de uma mesma Moeda:
Na Fronteira da Autoficção
Pós-Moderna em O Irmão Alemão,
de Chico Buarque

Two Faces of the same Coin:


On the Bound of Postmodern
Autofiction In O Irmão Alemão,
Chico Buarques

Márcia Fernandes
Mestre em Literatura pelo
Departamento de Teoria
Literária e Literaturas –
Instituto de Letras – UnB.

marciafernandes.jornal@gmail.com

Elga Pérez-Laborde
Professora do Programa de
Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília. Líder
do grupo de pesquisa Literatura
Latino-americana Contemporânea.

elgaplaborde@gmail.com
Resumo Abstract
Em O irmão alemão, romance publicado em 2014 In O Irmão Alemão, romance published in 2014 by
por Chico Buarque, o escritor mescla fatos já Chico Buarque, the writer blends facts already
conhecidos da sua biografia pública com trechos known of his biography to the public with fictional
fictícios marcados pelo delírio e pela imaginação passages marked by delirium and the unrestrained
desenfreada do eu-lírico. Pode-se interpretar O imagination of lyric self. O Irmão Alemão can be
irmão alemão como uma obra de autoficção – interpreted, as a work of autofiction — neologism
neologismo criado por Serge Doubrovsky para created by Serge Doubrovsky to describe works
designar obras que misturam realidade e ficção. which blend reality and fiction. The typical
A existência comum nas vidas do autor e do existence, in the author and character lives, a
personagem de um irmão alemão, a paixão pelo German brother, the passion for soccer and
futebol e pela literatura, o pai Sérgio rodeado por literature, the father Sergio surrounded by books
livros e a convivência com a linha dura da repressão and living with the hard line of military repression
militar são elementos que aproximam e tornam o are elements that make similar and approach the
autor Chico semelhante ao personagem Ciccio. author Chico to the character Ciccio.

Palavras-chave: O irmão alemão; autoficção; Keywords: O irmão alemão; autofiction;


autobiografia; Chico Buarque autobiography; Chico Buarque
C
iccio observa a calçada molhada, ainda empapada pelo granizo que caiu na
madrugada e pela chuva fina que teima em carregar os ares de São Paulo. Olha
para a nesga de sol no outro lado da rua, olha para os prédios cinzentos, olha
para todo aquele tipo de gente que vai e vem num frenesi descontrolado. O olhar
estaca nas duas viaturas que bloqueiam o final da rua. Pode ser um tenente qualquer do
Exército, pode ser uma investigação comum, pode ser que nem reparem nele. Pode ser um
censor que se ofendeu com alguma canção que ele escreveu. Talvez tenham se chateado com
algum verbo, algum adjetivo, com os substantivos ele nem se apega mais. Ciccio, no entanto,
não tem canção alguma escrita, é estudante de Letras e carrega um Fernando Pessoa
inocente nas mãos.
Chico pega uma transversal, muda o lado da calçada, um camburão passa guinchando
os pneus e mira num rapaz parado ali em frente. O rapaz paralisa, toma postura, sai
correndo, mas o tiroteio começa, a mira ajusta-se e a cabeça dele explode. O jornal do outro
dia há de declarar a morte de mais um terrorista. Chico não sabe. Na verdade, viu os horrores
dos tempos de chumbo de perto, mas jamais presenciou a execução do dito “terrorista”.
Durante parte do Regime Militar, esteve fora, havia partido com Marieta e a primeira filha
para Itália. Chico e Ciccio têm em comum o pai Sérgio – um intelectual rodeado de tantos

Márcia Fernandes
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Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
livros – além de um irmão desconhecido nascido e criado na Alemanha da Segunda Grande
Guerra. Chico e Ciccio, no entanto, são duas figuras absolutamente distintas. Em seu quinto
1 | Adotamos neste artigo a romance, Chico Buarque1 brinca com a sua biografia pública e produz uma obra que transita
assinatura Chico Buarque,
em vez de Chico Buarque de no limiar entre a autobiografia e a ficção.
Hollanda. O critério para esse A biografia como construção literária, sobretudo a autobiografia, levanta um
uso foi o fato do escritor ter
abandonado o “de Hollanda” debate controverso. Como aponta Paul de Man (1979), existem “pressupostos sobre o discurso
no início da carreira.
(ZAPPA, 2011). autobiográfico que são, na verdade, altamente problemáticos”. Primeiro porque, de acordo
com o autor, há uma tentativa de definir a autobiografia como gênero literário. Isso a
colocaria no mesmo patamar de gêneros tão sólidos e canônicos como a tragédia e a poesia
lírica (MAN, 1979). O segundo motivo é que a autobiografia é conceituada — ainda que essa
definição seja tantas vezes vista como falha — como uma produção documental, pautada na
verdade, que parece “depender de eventos reais e potencialmente verificáveis de um modo
menos ambivalente que a ficção” (MAN, 1979). Seria possível, no entanto, uma produção
literária estar tão impregnada da realidade que resultaria em uma construção pura,
completamente livre da ficção? Para Man (1979), dificilmente esse tipo de construção literária
não conta com pelo menos um elemento ficcional. Por isso, para ele, “a autobiografia parece
sempre ligeiramente desacreditada e autoindulgente”. Man defende que “a distinção entre
ficção e autobiografia não é uma polaridade ou/ou: é indecidível” (MAN, 1979).
O historiador e filósofo francês François Dosse também traçou um amplo
panorama sobre as questões acerca da produção biográfica. Em O desafio biográfico (2009),
Dosse (2009) defende que a biografia é um sim um gênero, híbrido, que se coloca em
constante tensão, numa tênue fronteira entre o intuito de reproduzir o real, o verdadeiro e
a tentativa de refazer um universo perdido sem explorar o polo imaginativo, estético e
artístico do biógrafo. “O caráter próprio da biografia consiste em depender de uma
indistinção epistemológica. O gênero biográfico é uma mescla de erudição, criatividade
literária e intuição psicológica”.(DOSSE, 2009).
Dosse cita Ricour ao dizer que a biografia é “um misto instável de fabulação e
experiência viva” (RICOEUR apud DOSSE, 2009). Quem se dispõe a ler uma biografia sabe
que ali vai encontrar fatos declarados como reais, relacionados à vida de uma determinada
pessoa. Quem se dispõe a publicar uma biografia promete informações pautadas na verdade,
nos testemunhos orais, registros de memórias, confissões e documentos, “fatos verídicos,
pois o biógrafo deve ao leitor, acima de tudo, a verdade” (MAUROIS apud DOSSE, 2009).
Ainda que seja uma produção até certo ponto documental, que retrata uma determinada
realidade, Dosse aponta que a biografia também possui passagens puramente estéticas, não
necessariamente reais, desenvolvidas pelo talento do escritor. Isso torna essas produções
ainda mais ricas. Para Dosse (2009), o biógrafo deve apelar para o caráter imaginativo para
preencher as lacunas da história documentada. “A realidade das personagens da biografia
não as impede de serem sujeitos de arte” (MAUROIS apud DOSSE, 2009). Cabe ao biógrafo,

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
como um retratista, escolher o que há de essencial, editar a história de forma que o romance
fique coeso e autêntico, sem necessariamente narrar todos os fatos.
Para Dosse (2009), os escritores que tentam apenas narrar a história integral,
sem edições ou inserções, sem romancear a escrita, acabam por produzir biografias de
qualidade menor. Ele explica que os biógrafos que se julgam historiadores deixam de criar
retratos admiráveis, pois “procurar trazer tudo a luz é, pois, ao mesmo tempo a ambição que
orienta o biógrafo e a aporia que o condena ao fracasso” (DOSSE, 2009). Para o filósofo, esse
hibridismo do gênero transformou biógrafos em exímios romancistas e resultou em grandes
obras literárias. Isso porque, ao ler uma biografia, “exigimos dela os escrúpulos da ciência e
os encantos da arte, a verdade sensível do romance e as mentiras eruditas da história”
(MAUROIS apud DOSSE).
Por isso, Dosse cita Boswell ao dizer que o melhor método biográfico é o que une
acontecimentos importantes da existência de uma pessoa com declarações desse personagem,
além de outras inserções necessárias à estética textual. Essa combinação entre a verdade dos
fatos e ficção é, para o autor, a melhor forma de construir esse tipo de escrito. Sendo assim,
o biógrafo não é um artista, e sim um artesão que une esferas da realidade e da ficção. “O biógrafo
tem, portanto, de manter-se no justo meio-termo”. (DOSSE, 2009).
Já Philippe Lejeune inicia suas considerações em O pacto autobiográfico (1975)
explicando que, no debate sobre a produção biográfica, há dois grupos definidos. Um é
formado por aqueles que acreditam que não é preciso comprometer-se com a verdade ao
produzir uma biografia e que “a própria ideia do pacto autobiográfico lhes parece uma quimera”
(LEJEUNE, 1975). O outro grupo defende a biografia como relato de fatos verdadeiros.
Lejeune (1975) disserta que, desse debate, o que se sabe de fato é que a autobiografia
acumula uma série de deficiências. Ela não é totalmente verdadeira, sendo assim, ficção. Uma
“ficção que se ignora”, que é ingênua ou hipócrita por não assumir que é ficção. Ela se insere
em um campo de conhecimento histórico, já que busca atingir a verdade na narração dos
fatos. Não deixa, no entanto, de pertencer ao campo da criação artística (LEJEUNE, 1975).
Lejeune cita Ricouer (1975) ao explicar que, ao escrever uma autobiografia, não
há uma tentativa de se reinventar. Há sim, um árduo trabalho de edição, que consiste em
estilizar ou simplificar o que de fato ocorreu. Não há, no entanto, uma reinvenção da
identidade do biografado. Como produção literária, no entanto, a biografia visa não apenas
ao verdadeiro mas também ao belo (LEJEUNE, 1975). A conclusão do autor aproxima-se da
de Dosse: é o meio termo entre a realidade e a ficção que garante a qualidade desse tipo de
produção. A união entre a autenticidade e a ficção é o que torna possível aproximar-se do
“mistério da riqueza do indivíduo” (LEJEUNE, 1975). Para ele, a autobiografia, quando construída
e apresentada tal qual um romance, toca mais profundamente os leitores. “Se a identidade é
um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade”
(LEJEUNE, 1975).

Márcia Fernandes
165
Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
Ao debater o embate entre ficção e realidade, o francês Serge Doubrovsky criou
um novo termo, a “autoficção”. Segundo Eurídice Figueiredo (2010), em 1977, Doubrovsky
sentiu-se desafiado por Lejeune, que havia dito que desconhecia a existência de um
romance em que o protagonista tivesse o nome do próprio autor. Ele então escreveu Fils,
um romance sobre si próprio. Cunhou como “autoficção” esse gênero híbrido, que une
ficção à realidade.

Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no


crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos
estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma
aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance,
tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias,
dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em
música. Ou ainda: autoficção, pacientemente onanista, que espera agora
compartilhar seu prazer. (DOUBROVSKY, 1977)

Sendo assim, para Vilain (2005) a autoficção seria uma versão pós-moderna da
autobiografia. Ela não se vende como verdade absoluta e nem acredita na transcrição dessa
verdade. Ela se coloca, puramente, como uma construção que une fragmentos da memória
com outros elementos ficcionais. Segundo Figueiredo (2010), Doubrovsky deixa claro que a
autoficção não é a narrativa da vida de uma pessoa, mas recortes de determinados momentos
que constroem o romance.
O irmão alemão (2014) pode ser considerado uma autobiografia que segue os
parâmetros de estudos de Man, Dosse e Lejeune: o quinto romance de Chico Buarque
mistura fatos da vida de Chico com dados puramente ficcionais e anda no meio, no equilíbrio
entre a ficção e a documentação de fatos. Pode-se interpretar também que o romance vai
além disso. É possível identificá-lo como uma autoficção, segundo o ideal de Doubrovsky. O
irmão alemão mostra a história da vida de um rapaz paulista que fantasia a busca por um
irmão desconhecido, nascido na Alemanha.
O apelido “Ciccio”, dado pela mãe do protagonista, tão parecido com “Chico” dá
início à série de coincidências comuns na biografia do autor e do personagem. De forma
geral, Chico e Ciccio possuem histórias correlatas. Os dois são paulistas e cresceram na São
2 | O Hollanda da família Paulo da década de 1950. Filhos de um Sérgio de Holanda2, que é intelectual e apaixonado
costuma-se a ser escrito com
dois “L”. Sérgio optou por por livros. Os dois possuem uma ligação íntima com a Itália: Ciccio é filho de uma italiana,
usar um L só e assim quis e Chico viveu lá na infância e no autoexílio durante a ditadura. Ambos, quando criança,
batizar os filhos. Para alguns,
como o próprio Chico, no gostam de jogar futebol na rua. Quando adolescentes, alegram-se em exibir exemplares
entanto, restaram o Hollanda
com “L” duplo. (ZAPPA, 2011). raros de romances da biblioteca particular do pai. Ambos veem de perto os abusos da
ditadura militar. Os dois têm, na Alemanha, um irmão desconhecido.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Não é difícil pressupor que a existência desse irmão alemão, um personagem
atraente e desconhecido serviu de inspiração para o quinto romance de Chico Buarque.
Werneck (2007, p.85) explica que foi Manoel Bandeira que trouxe à baila o assunto e revelou
a existência do rapaz a Chico Buarque.
De acordo com Werneck (2007, p.85), em 1967, Chico Buarque, acompanhado de
Tom e Vinícius, visitou Manuel Bandeira. O poeta estava nostálgico e saudoso dos tempos que
convivia com Sérgio Buarque de Holanda. Contou que convivia muito com o historiador na
década de 1920, mas que Sérgio se mudou para Berlim no início da década de 1930, engravidou
uma mulher e que as relações entre eles tornarem-se mais espaçadas. O fato é que Chico
Buarque não tinha conhecimento desse meio-irmão nascido na Alemanha. Conta Werneck
(2007, p.85) do tamanho choque de Chico, já crescido e famoso, ao saber da existência do rapaz.
Ao chegar em casa, Chico pressionou o pai que, relutante, contou-lhe a façanha:
viveu uma temporada em Berlim, como correspondente dos Diários Associados. Nesse
tempo, Sérgio Buarque de Holanda teve um filho com uma alemã, Anne Margerithe Ernest.
O historiador não chegou a conhecer a criança e só teve notícias dela mais tarde, quando
Anne lhe escreveu pedindo uma declaração para comprovar que o filho, Serge George
Ernest, não era descendente de judeus.
A história bastou para inspirar Chico Buarque no romance. No enredo, Ciccio
depara-se com uma carta em alemão de Anne ao pai, dentro de uma edição de O Ramo de
Ouro. Ele conta que sabia que o pai havia morado em Berlim e que, pensando bem, já ouviu
falar de um filho na Alemanha. Tudo o que ouvira, no entanto, era como um segredo. “Não foi
discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede,
uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado” (BUARQUE, 2014, p.9).
A partir daí, o romance mostra a busca alucinada, sonhadora de Ciccio pelo
irmão perdido e as fantasias do eu-lírico sobre Serge. Ciccio imagina o irmão, de tez clara
como qualquer germano, mas bochechudo tal qual o pai brasileiro. Nesse delírio, imagina
que Serge vive a indagar à mãe sobre a procedência do nome e parta para o Brasil, em busca
do pai desconhecido. Imagina a chegada dele na casa dos Holanda, onde é recebido por
Assunta, que prepara uma lasanha e o recebe como filho legítimo. Na imaginação de Ciccio,
o irmão alemão torna-se fanático por livros como o pai, ou se filia à juventude nazista ou se
esconde em igrejas em busca de conforto. Ciccio fantasia ainda mais e, por um tempo
incrivelmente longo, jura que o irmão, na verdade, mora em São Paulo, é professor de
francês, criado pela mãe alemã e pelo padrasto pianista. Logo, no entanto, percebe que
aquele não era seu irmão e já se põe a fantasiar novamente sobre a vida de Serge.
Além da existência concreta de um irmão alemão, outros aspectos do enredo são
semelhantes a momentos da vida de Chico Buarque. Um deles é a relação entre Chico
Buarque e Sérgio e entre os personagens Ciccio e Sérgio. Segundo Fernandes (2009, p. 25),
Chico disse, em entrevista a Augusto Massi, que para se aproximar do pai historiador e

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Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
intelectual, sempre recorreu aos livros. Percebia que entrar na biblioteca do pai, que conviveu
com grandes nomes da literatura brasileira era, de algum modo, penetrar no seu mundo.
Essa mesma postura é exibida por Ciccio que busca conquistar a atenção paterna
por meio da literatura. Para isso, pensa em contar ao pai que leu Guerra e Paz em francês e
com ajuda de dicionários, penava para concluir O Ramo de Ouro. Quando indagado pelo pai
se andou “mexendo” nos seus Kafkas, responde prontamente que não e é incentivado a
mergulhar nos desvarios do escritor tcheco. Ainda assim, a relação de companheirismo
entre Ciccio e o pai limita-se a uma convivência superficial. Na tentativa de aprofundar essa
relação, Ciccio põe-se, então, a indagar sobre o irmão desaparecido. “Estaria estabelecida
uma ponte entre nós, talvez daí em diante meu pai me ouvisse de vez em quando, me
corrigisse e de, algum modo, me filiasse” (BUARQUE, 2014, p.53).
A literatura, inclusive, pode ser vista como uma espécie de personagem que
permeia o escrito metalinguístico. O protagonista, que se gradua em Letras, vive numa casa
que parece ser sustentada apenas por livros. “Era nos livros que eu me escorava, desde muito
pequeno, nos momentos de perigo real ou imaginário, como ainda hoje nas alturas grudo as
costas na parede ao sentir vertigem” (BUARQUE, 2014, p. 16). Ciccio também tem um pai
que vive absorto em leituras tão extensas e contínuas. Segundo Werneck (2007, p. 120), o
Sérgio pai de Chico, assim como o do livro, vivia tão enfurnado na biblioteca que, ao vê-lo
andar, Chico surpreendeu-se ao saber que ele caminhava.
Chico e Ciccio compartilham também uma paixão pela literatura. Como conta
Werneck (2007, p. 16), Chico, ainda criança, publicava crônicas no jornalzinho do colégio.
Fernandes (2009, p.25) revela que, estimulado pelo pai, Chico leu Camus, Sartre, Flaubert e
Céline; Dostoievski e Tolstói. Por fim, encantou-se por Kafka (WERNECK, 2007, p.24).

Eu me lembro de, lá pelos 18 anos, ir para a Faculdade de Arquitetura com esses livros
em francês, o que era uma atitude um pouquinho esnobe. Talvez para me valorizar
dentro de casa ou talvez para agradar meu pai (...) até que um colega me deu uma
debochada: ‘mas você só vem com esses livros para cá, porque não lê literatura
brasileira? Eu respondi: ‘você tem razão’. E comecei a ler o que não havia lido ate
então, de Mario de Andrade, Oswald de Andrade até Guimarães Rosa, por quem me
apaixonei. Guimarães Rosa talvez seja esse marco para mim. (FERNANDES, 2009, p.25).

O interessante é observar que essa declaração de Chico, publicada em Chico


Buarque do Brasil, de Rinaldo de Fernandes, é tão coincidente com as narrativas de Ciccio.

Gabola, gabarola, cabotino, meus colegas não me perdoavam por ostentar os livros
autografados por meu pai nos corredores da faculdade de letras. E arriscando-me a
aborrecê-los mais um pouco, eu não resistia em me referir sem cerimônia aos autores

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
assíduos da minha casa, o João, o Jorge, o Carlos, o Manuel. O Sartre? De passagem
por São Paulo fez questão de nos visitar com a Simone, extrapolei numa aula de
filosofia. (BUARQUE, 2014, p. 47).

Até o nome da mãe do personagem guarda suas semelhanças com a vida de Chico
Buarque. Não Maria Amélia, nome da mãe de Chico e de seus seis irmãos, mas sim o Assunta,
nome da italiana que vive cercada de tortas, massas e livros em O irmão alemão. Ocorre que
esse nome foi retirado das memórias do romancista, que viveu ainda criança na Itália. Lá, o
rodízio de empregadas domésticas para ajudar dona Maria Amélia era constante (WERNECK,
2007, p.15). Todas eram da região da Sardenha, “havia uma Pina, havia uma Assunta...”,
conta Chico Buarque (WERNECK apud BUARQUE, 2007, p. 15).
Costuma constar nas biografias de Chico Buarque sua notória paixão pelo
futebol, pelo Fluminense e pelo Politheama, time criado por ele. Esse fanatismo pelo futebol
refletiu também no enredo da vida de Ciccio. O menino Chico Buarque, de acordo com
Werneck (2007, p.17), chegava mais cedo na escola para jogar bola antes da aula. Era comum
as partidas nas ruas, em campos improvisados, a rua Haddock Lobo foi cenário de tantos de
lances. Diz Werneck (2007, p.19) que, na vinda de um ou outro carro, os meninos punham-
se a avisar uns aos outros com o grito “Olha a morte!”. Infância de Chico que foi, de certa
forma, transcrita e narrada pelo protagonista de O irmão alemão.

Certa vez, a caminho da redação, parei para jogar futebol de rua, era comum
naquele tempo. Carros circulavam só de quando em quando e ao avistá-los ao longe
os meninos gritavam: ‘olha a morte’! Logo recolhíamos as lancheiras, as pastas, os
agasalhos que representavam as balizas e aguardávamos na calcada a passagem do
carro para recomeçar a partida. (BUARQUE, 2014, p.21).

O Chico adolescente também se assemelha com Ciccio. Werneck (2007, p. 28)


conta que, na falta de atividade melhor, no verão de 1961, Chico juntou-se a um amigo numas
férias de verão e decidiu “puxar um carro”. Era um hábito comum na época e tratava-se de
arrombar um veículo, fazer uma ligação direta e sair para passear, sem necessariamente
ficar com o carro. Diz Werneck (2007, p. 28) que a brincadeira deu certo, mas, na segunda
vez, Chico não teve sorte. O dono do carro havia retirado uma peça, o carro deslizou pela
rua e, enquanto tentava junto a um amigo fazer o carro pegar, Chico foi flagrado pela
polícia. Ciccio teve mais sorte. Ao encontrar com um Skoda estacionado numa esquina, o
protagonista fez pressão no vidro e arrombou a porta, tomou o volante e destravou o freio
de mão para que o carro descesse “o Thelonious está quase deitado aos meus pés com a lanterna
acessa entre os dentes e a cabeça metida atrás do painel. Remove umas peças que eu não vejo
direito, junta uns fios e depois de uns estalos e faíscas, o motor pega.” (BUARQUE, 2014, p.11).

Márcia Fernandes
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Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
Se Chico retratou de alguma forma suas peripécias de criança e adolescente,
também imprimiu no romance sua visão do período que testemunhou a Ditadura Militar.
Segundo Werneck (2007, p.65), desde a adolescência Chico simpatizava com as ideias de
esquerda. Foi o único a defender Fidel Castro na escola, em uma aula de história. Tanto que
os amigos comentavam que ele só agia assim porque o pai dele era intelectual (WERNECK,
2007, p.65). Como o pai de Ciccio. “Lá em casa pouco se falava de política, se bem que meu
pai, pelo o que sei, tendia a ideias socialistas.” (BUARQUE, 2007, p.38). Mesmo com o golpe,
Chico demorou a demonstrar seu antagonismo em relação ao novo regime. Conta Werneck
(2007, p.65) que o compositor chegou a participar de assembleias “meio gaiatamente”,
postura que, novamente, é retratada por Ciccio no romance. “No primeiro ano passei a
comparecer ao centro acadêmico sempre que me convocava uma assembleia, fosse para
discutir a reforma universitária, fosse para reivindicar papel higiênico para os banheiros”
(BUARQUE, 2014, p.47). Conta Werneck (2007) que Chico, em 1968, esteve presente na
passeata dos 100 mil. Como Ciccio. “Andei de braço com artistas, jornalistas, informantes,
desocupados, malucos e moças insolentes com perna de fora que me lembravam da Maria
Helena” (BUARQUE, 2014, p. 49). Chico foi além e retratou no escrito os horrores vistos por
ele durante os anos de chumbo da repressão. Para isso, revelou a efervescência das ruas, das
marchas católicas, das passeatas de esquerda. Mostrou o susto de Ciccio ao se deparar com o
assassinato a sangue frio de um rapaz, chamado depois de terrorista nos jornais. Exibiu a
dificuldade de Ciccio se manter empregado em tempos de incerteza política, o drama de
Eleonora Fortunato à procura do filho Ariosto, desaparecido político. Ariosto que, antes de
sumir, andou preso e foi torturado por policiais. Esse retrato de horror dos tempos de chumbo
culmina com o desaparecimento de Mimmo, irmão de Ciccio, que some depois de acompanhar
Tricida, estudante argentina que havia namorado e também estava à busca de Ariosto.
Esse jogo, no qual traços da autobiografia e da ficção unem-se, não são as únicas
características de pós-modernidade presentes no quinto romance buarquiano. Bauman
(1998) disserta que uma das características da sociedade pós-moderna é o hedonismo
desenfreado, num “reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer”
(BAUMAN, 1998, p. 9). Essa incessável busca pelo prazer, naturalmente, imprimiu contornos
na sexualidade humana. A liberdade conquistada pelo homem pós-moderno reclama por
uma sexualidade mais livre e corriqueira. Possuir sexualmente uma pessoa significa
acumular sensações, histórias, experiências. Essa característica da pós-modernidade está
ricamente exposta no romance O irmão alemão. A sexualidade de Ciccio é exibida desde
muito cedo, na relação que ele mantém com livros, brochuras, escritos “durante toda a
minha infância mantive essa ligação sensual com os livros” (BUARQUE, 2014, p. 16). Quando
criança, Ciccio dizia que “passava horas a andar de lado rente às estantes, sentia certo prazer
em roçar a espinha de livro em livro” (BUARQUE, 2014, p. 16). Percebia que havia “algo de

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
erótico em separar dois livros apertados, com um anular e o indicador, para forçar a entrada
de O Ramo de Ouro na fresta que lhe cabe” (BUARQUE, 2014, p.10). Depois de adulto, Ciccio
aventura-se em conquistar as jovens que o irmão conduz e para o quarto. “Se pudesse
lamberia todas as mulheres que meu irmão teve na vida” (BUARQUE, 2014, p.41). Nutre
também paixão pela desinibida Maria Helena, a quem passa a desejar ainda mais depois de
perceber que ela foi molestada pelo irmão Mimmo.
É preciso destacar também a linguagem peculiar impressa no romance. Ribeiro
(2009, p. 63) defende que Chico Buarque é desses casos no qual a qualidade da escrita é
destacável pelo ritmo das frases, pela concisão das orações, pela construção quase que
minimalista de imagens. Ao escrever, Chico pinta um quadro em prosa de imagens que
guiam o leitor para o imaginário do eu-lírico.

Asa de inseto, nota de dez mil reais, cartão de visita, recorte de jornal, papelzinho
com garranchos, recibo de farmácia, bula de sonífero, de sedativo, de analgésico, de
antigripal, de composto de alcachofra, há de tudo ali dentro. E cinzas, sacudir um
livro do meu pai é como soprar um cinzeiro (BUARQUE, 2014, p.8).

Ribeiro (2009, p.63) destaca também que Chico Buarque, influenciado por Kafka,
constrói universos sufocantes, labirínticos, em que a alucinação e o pesadelo são recorrentes.
Essa característica de sua prosa já havia se destacado em Estorvo (1991) e volta a ser impressa
novamente em O irmão alemão. Seja quando Ciccio se deita e põe-se a construir imagens
fantásticas sore os que o cercam ou quando devaneia pelas ruas de São Paulo nessa busca
frustrada pelo irmão desconhecido, a atmosfera de sonho permeia o romance. Ao frequentar
a casa de Michelle, que ele acredita ser Anne, o devaneio é tanto que, por muitas vezes, o
leitor se pega questionando se tudo aquilo era real ou se não passava de delírio. Sonhos
dentro de sonhos, delírios e alucinações que tornam a prosa rica e traçam com requinte a
personalidade dos personagens.

Depois afago meu rosto, para ver se o sono vem, e é um consolo sentir minha pele
livre de espinhas (...) o que me encoraja a procurar Maria Helena, que ao que me
parece foi morar com o pai no Rio de Janeiro. É a primeira vez que entro num avião,
na verdade um teco-teco que voa muito baixo, tirando cascas de mausoléus do
cemitério da Consolação, o que me leva a reclamar do piloto, que é o Thelonious, ou
melhor, o Ariosto, que fica nervoso e resolve fazer um pouso forçado bem na minha
rua, em frente a um bunker que para mim é novidade, num subsolo de garagem lá
de casa, onde ele entorna cerveja no chão e me ensina a preparar coquetéis molotov
(BUARQUE, 2014, p.58).

Márcia Fernandes
171
Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
Chico Buarque ao construir o universo de O irmão alemão, exibiu características da pós-modernidade
e mesclou com sabedoria fatos documentados da sua vida como compositor, cantor e escritor
com elementos ficcionais. Numa comparação, ainda que superficial, a persona Chico Buarque
mantém com Ciccio uma relação parecida com a que o próprio Ciccio mantém com Mimmo,
o irmão brasileiro que desapareceu durante o Regime Militar.

Se cunhássemos nossas cabeças eu e meu irmão, cada qual numa face de uma moeda,
e se girássemos essa moeda com um peteleco forte, poderíamos vislumbrar a cabeça
do meu pai e da minha mãe quase simultaneamente. Já com a moeda em repouso
tonamos a ser duas cabeças tão dessemelhantes que ninguém os imagina irmãos.
(BUARQUE, 2014, p. 36)

Ciccio e Chico são sim, personas distintas. Ainda assim, semelhantes e


complementares.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

DOUBROVSKY, Serge. Fils. Tradução de Eurídice Figueiredo. Paris: Galilée, 1977

FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

FIGUEIREDO, Eurídice. Autoficção feminina: a mulher nua diante do espelho, Revista Criação e Crítica,
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LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à internet. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.

MAN, Paul de. Autobiografia como Des-figuração. In Modern language Notes. Nova Iorque: Columbia
University Press, 1979.

Cerrados nº 38
172
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
RIBEIRO, Carlos. Romance do Simulacro. In: WERNECK, Humberto (org.). Chico Buarque. Tantas
palavras. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse. Tradução de Eurídice Figueiredo. Paris: Grasset, 2005.

WERNECK, Humberto. Chico Buarque. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

Márcia Fernandes
173
Duas Faces de uma mesma Moeda: Na Fronteira da Autoficção Pós-Moderna em
O Irmão Alemão, de Chico Buarque
Permanências Impermanentes:
Enigmas de “Páramo”

Impermanent Permanences:
“Páramo”

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


Profª de Literatura no Curso
de Letras e Programa de
Pós-Graduação em Estudos
Literários da Universidade
Federal de Uberlândia.
Drª. em Letras pela USP, com
Pos doutorado pela UFRJ.

betina@ufu.br
Resumo Abstract
Análise de “Páramo”, de G. Rosa, buscando The analysis of ‘Páramo’ , by G. Rosa seeks to
compreender as possíveis leituras interpretadas comprehend the possible readings interpreted by
pelos mitos do mundo moderno, e o valor de the modern world myths, and the worth of a
uma produção literária distanciada pelo espaço de literary production distanced by the space of a
uma realidade temporal e cosmologia míticas, temporal reality and mythical cosmology, though
mas muito próxima do ponto de vista de very close to the dialogs’ and interactions’ point of
interações e diálogos, permitindo inferir que a view. This allows one to infer that literature should
literatura deva apreender as possibilidades do real, seize the possibilities of real, replacing the previous
substituindo a cosmovisão anterior, worldview traditionally coherent and organized in
tradicionalmente coerente e organizada em um a mythical locus, populated by modern (re)
locus mítico, povoado de reatualizações modernas, updates, by another anticipatory look of significant,
por um outro olhar antecipatório de universos cross-cultural universes.
significativos, transculturais.
Keywords: Myth, Narrative, Transculturation,
Palavras-chave: Mitos, Narrativa, Tranculturação, Identity.
Identidade.
Apreciei demais essa continuação inventada. A
quanta coisa limpa verdadeira uma pessoas de
alta instrução não concebe! .. No real da vida,
as coisas acabam com menos formato, nem
acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá
erro contra a gente. Não se queira. Viver é
muito perigoso ... 1 1 | Rosa, Guimarães. Grande
sertão: veredas. In: ROSA,
Guimarães. Ficção completa.
Rio de Janeiro: Nova
Aguilar.1994, vol2, p. 59.

R
osa, em seus textos, exibe uma pluralidade de notações linguísticas, discursivas,
culturais e sociais, deixando antever, mais do que uma adesão ou um credo, um
projeto humanístico voltado para a universalidade do regional, do primitivo e do
cultural, para a dissolução de individualidades, enfim, para o reconhecimento
das ambiguidades como fonte de um poder e supremacia identitárias.
É esse olhar de humanizada humanidade que diferencia a leitura literária que ora
se propõe. Não se pretende aqui olhar o conto “Páramo”2 a partir de uma determinação 2 | ROSA, Guimarães. Estas
estórias. In: ROSA, Guimarães.
geográfica e/ou cultural, ainda que seu conteúdo o indique; ao contrário, espera-se observar Ficção completa. Rio de
a posição de um sujeito e o modo de sua enunciação, desenhando uma reflexão que prometa Janeiro: Nova Aguilar.1994,
vol2, p. 867 a 885. Obs:
desdenhar a razão objetiva e autoritária em favor de um novo modo de olhar a palavra, o Doravante, as citações
referentes a este conto serão
homem e sua escritura sensível. A leitura literária permite falar de um espaço-mundo, seja anotadas por P, seguido do nº
utópico, seja real, seja idealizado, que dialogue com o mundo presente e sua configuração. da página.

Portanto, espera-se, aqui, propor uma leitura que encontre esse lugar, recriando-o como
possibilidade interpretativa de um discurso não só humanizador mas também representativo
dessa condição cultural e identitária plural.
Finalmente, e pensando sobre as transformações teórico-críticas que perpassam
o domínio da Literatura, pode-se justificar, para este trabalho, a escolha de um caminho

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


177
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
crítico voltado para as questões culturais da atualidade, privilegiando inter-relações que
3 | Esta obra post-mortem foi apontem outros desdobramentos, ao mesmo tempo esperando verificar novas formas
organizada por Paulo Rónai
e Vilma , filha de Rosa. Para narrativas, que interrogam os sujeitos ficcionais, fragmentados e ambíguos como a
esse trabalho,usar-se-à a
seguinte edição: ROSA, João
subjetividade moderna que os acolhe e, ao mesmo tempo, garante o caráter essencial que
Guimarães. Ficção completa. mantém e justifica a perspectiva ontológica deste ser humano.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994, p. 867/885. Para tanto, pode-se relembrar que Guimarães Rosa, em 1938, é nomeado Cônsul
4 | http://www.releituras.com/
Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de
guimarosa_bio.asp Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes
5 | Tenho conhecimento, até escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e
esse momento, de 3 artigos
em que os pesquisadores se
o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua,
debuçaram sobre esse conto, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que
a saber: CERQUEIRA FILHO,
Gilásio. “Sufoco na alturas pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções,
sobre Páramo, de Guimarães
Rosa”. In: Passagens. Revista
nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais.
Internacional de História Embora consciente dos perigos que enfrentava, Rosa protegeu e facilitou a fuga
Política e Cultura Jurídica.
Rio de Janeiro: vol. 5, no.2, de judeus perseguidos pelo nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D.
maio-agosto, 2013, p.
168-204. ; PEREIRA, Maria
Aracy. Vale observar que, em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher
Luiza Scher. O Exilio em foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus
“Páramo” de Guimarães
Rosa: Dilaceramento e prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas
superação” In: http://www.
psicanaliseebarroco.pro.
que dão acesso a Jerusalém.
br/revista/revistas/09/6-5. Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado
pdf; Traços melancólicos em
Guimarães Rosa: uma leitura em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o
de Páramo, de Estas Estórias.
OLIVEIRA, Edson Santos. In:
pintor pernambucano Cícero Dias. Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca
Reverso vol.32 nº.59 Belo de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o
Horizonte jun. 2010.
Sem dúvida, acredito na escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua
possibilidade de outras
leituras, às quais não tive
estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-
acesso. lhe o conto Páramo, indicando um cunho autobiográfico e faz parte do livro Estas Estórias,
publicado post-mortem, sendo a primeira edição em 19693. Em 1948, o escritor está novamente
em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana;
durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular
Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de
curta, mas decisiva duração.4
O conto, pouco estudado pela crítica5, se refere à experiência de "morte parcial"
vivida pelo protagonista (o próprio autor como acreditam alguns), experiência essa induzida
pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e, particularmente, pela asfixia
resultante da rarefação do ar - soroche – o mal das alturas. Desde a epígrafe que acompanha
o conto, retirada da obra de Platão, Górgias, “Páramo” sugere uma possibilidade de leitura.
“Não me surpreenderia, com efeito, fosse verdade o que disse Eurípides: ‘ Quem sabe a vida
é uma morte e a morte uma vida?’”

Cerrados nº 38
178
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A oposição morte/vida, vida/morte, vem referendada por um longo preâmbulo, à
moda, talvez, de um sermão, que antecipa a narração propriamente dita, apresentada, após
esse Introito, por um narrador em primeira pessoa.

Sei, irmãos, que todos já existimos, antes, neste ou em diferentes lugares, e que o que
cumprimos agora, entre o primeiro choro e o último suspiro, não seria mais que o
equivalente de um dia comum, senão que ainda menos, ponto e instante efêmeros na
cadeia movente: todo homem ressucita ao primeiro dia.6 6 | P.p. 867

O tom profético, persuasivo e convincente dessa afirmação convida ao entendimento


da experiência humana como um fundamento abstrato, mas, ao mesmo tempo, fugaz e atemporal,
cujo intervalo entre “o primeiro choro e o último suspiro” permite rever a existência humana,
conduzida por um sentido e compreensão do tempo como um intervalo entre duas condições de
vida e não mais como uma sequência cronológica e temporalizada pelas noções conceituais
objetivas e racionais. Entender que todo homem ressucita ao primeiro dia é entender também que
existe uma morte diária, promessa de uma redenção e de uma sobrevivência reparadoras, a
partir das quais o homem, voltando ou reconhecendo-se em um patamar mais primitivo e
original,possa ter devolvidas as condições e forças integradoras de sua condição humana –
agora cicatrizada das dores e da morte simbólica que reintegra. Assim, essa morte é uma

“.. estação crucial. É um obscuro finar-se, continuando, um trespassamento que não


põe termo natural à existência, mas em que a gente se sente campo de operação
profunda e desmanchadora, de íntima transmutação precedida de certa parada;
sempre com uma destruição prévia, um dolorido esvaziamento; nós mesmos, então,
sempre nos estranhamos.”7 7 | P.p. 867

Essa morte é ainda uma etapa ou uma passagem de uma experiência iniciática – “
... a crise se repete, conscientemente, mais de uma vez, ao longo do estágio terreno, exata
regularidade, e como se obedecesse a um ciclo no ritmo de prazos predeterminados – de sete
em sete, de dez em dez anos” 8 8 | Idem, ibidem. Estes
ciclos são sempre vistos
Para se curar, ou para reestabelecer uma unidade, a harmonia sempre acalentada, em doutrinas e práticas
esotéricas como ciclos de
é necessário nascer mais uma vez, voltar de um enterro simbólico, daquele começo absoluto,
renovação.
não maculado, repetindo o nascimento de este novo ser, nova personalidade, que se
acrescenta todos os dias, em uma contínua ressureição como insiste Rosa e como advoga
Eliade9 (1992,p. 160), ao lembrar que “[ ...] morre-se sempre para qualquer coisa que não seja 9 | ELIADE, Mircea. O sagrado
e o profano. São Paulo:
essencial10; morre-se sobretudo para a vida profana.” Martins Fontes. 1992.
Em um simbólico anúncio dessas etapas e dores existenciais, a “voz” profética
10 | Grifos do autor.
localiza o homem-iniciante em um espaço atemporal, mas, ao mesmo tempo, significativo e

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


179
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
emblemático, a acolher e a justificar o próprio processo de iniciação que representa. Assim
ele desenha o personagem, a história exemplar e a sua prefiguração:

Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai
em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade
velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre
chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às
nuvens, castigada pelo inverno [ ..] Lá, no hostil espaço, o ar era extenuado e raro,
os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas de tempo, para abrir
lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio,
11 | P.p. 868. um silêncio também morto, como se mesmo feitoda matéria desmedida das montanhas.11

O tom poético e tristemente impressivo constrói uma metáfora da solidão, da dor


e abandono muito próprios de um estado de luta interna e, ao mesmo tempo, de busca de
sobrevivência ao caos e à ausência – de sentido, de vida, de substância sensível.
Nessa ambiência e com tal premissa – quase uma condição de entendimento –
este narrador, profético, divinatório e oracular, dá lugar a outro narrador em primeira
pessoa, agora testemunha e ator desse processo de ressureição, que passa a compartilhar as
etapas e processos da iniciação ritualística (sofrimento, morte e renascimento) pelos quais
conquistou uma nova existência.
É esse mesmo homem que desenha seu novo refúgio, anti-lugar inóspito e sinistro:

“Esta cidade é uma hipótese imaginária ... Nela estarei prisioneiro, longamente, sob
as pedras irreais e as nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. [ .. ] E há, sobranceiros
e invisíveis, os paramos – que são elevados pontos, os nevados e ventisqueiros da
cordilheira, por onde tem de pássaros caminhos de transmonte, que para aqui
trazem, gelinvérnicos! Os paramos, de onde os ventos atravessam. Lá é um canil de
ventos, nos zunimensoslugubruivos. De lá o frio desce, umidíssimo, para esta gente,
estas ruas, estas casas. De lá, da desolação paramuna, vir-me-ia a morte. Não a
12 | P.p. 869. morte final – equestre, ceifeira, ossosa, tão atardalhadora. Mas a outra, aquela.12
A grafia em itálico é do
próprio autor.
O espaço-atmosfera, ameaçador e trevoso, abriga um homem desamparado, já
sabedor de seus destinos e lutas, de sua realidade frágil, na qual passa a reconhecer dores e
passagens, identidades e diálogos, ausências e presenças, tal como o “homem com a
semelhança de cadáver”,que passa, como um duplo, a acompanhar o narrador-personagem:
“E tive de ficar conhecendo – oh, demais de perto! – o homem com a semelhança de cadáver”.
Esse, por certo eu estava obrigado a defrontar, por mal de pecados meus antigos, a tanto o
13 | P.p. 870. destino me obrigava”13.

Cerrados nº 38
180
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Em um movimento especular, esse homem-cadáver se faz presente ao longo de
toda a narrativa, apontando as purgações pelas quais o personagem passa e configurando o
estado de espírito e salvação que se concentra nessa identidade conjunta, partilhada, duplo
de um Eu em metamorfose e construção. São dez alusões a esse homem-cadáver,
acompanhadas a cada citação de diferentes adjetivos ou caracterizações, de forma que vai se
concretizando a existência de um outro – essa sempre grafada em itálico ou entre aspas,
como a insistir sobre a diferença e interação dessa imagem com o sujeito que a vê, que a
desenha –que se identifica, e ao mesmo tempo, espelha.
Observa-se, pela literatura, que o mito do homem desdobrado, do duplo que
interroga e busca a união primitiva está presente no comportamento humano e na
linguagem desde sempre, representando uma condição do homem que se traduz, por outro
lado, em tentativa constante de entendimento das ambiguidades e dos aspectos que revestem
essa condição. Benefício, malefícios, transgressões e passagens, castigo e salvação, humano e
divino, feminino e masculino, homem e animal, espírito e carne, vida e morte ... Desde o
Gênesis, passando pelos mitos pagãos, por Platão em O Banquete, até as narrativas e
performances atuais, a dualidade da pessoa humana revela uma crença na metamorfose,
implicando uma ideia do homem como responsável pelo seu destino.
Esse homem dividido, tão presente na literatura e nas manifestações artísticas,
que se mostra como um perseguidor reflete uma profunda mudança para o reconhecimento
do eu, o que acontece, no caso de Rosa, pelos exercícios e convivência com as posturas sócio-
político adversas – tais como o exílio experimentado na Alemanha, a salvação de inúmeros
judeus, sob pena de enormes prejuízos pessoais – que passam a acrescentar questionamentos
e interrogações à vida já tão conturbada, sensível e emocionalmente, do poeta-prosador.
Neste momento – e pensando em uma possível leitura autobiográfica – compreende-se
o peso e a substância da afirmação:

“Por que vim? Foi-me dado, ainda no último momento, dizer que não, recusar-me a
este posto. Perguntaram-me se eu queria. Ante a liberdade de escolha, hesitei. Deixei
que o rumo se consumasse, temi o desvio de linhas irremissíveis e secretas, sempre
foi a minha ânsia querer acumpliciar-me com o destino. E hoje, tenho a certeza: toda
liberdade é fictícia, nenhuma escolha é permitida; já então, a mão secreta, a coisa
interior que nos movimenta pelos caminhos árduos e certos, foi ela que me obrigou a
aceitar. O mais-fundo de mim mesmo não tem pena de mim; e o mais-fundo de meus
pensamentos nem entende as minhas palavras.”14 14 | P.p. 869.

Guimarães Rosa compartilha com o seu leitor uma profunda e angustiada


reviravolta nas suas concepções e certezas, deixando perceber que seu destino – mesmo que
tivesse tido a oportunidade de escolher entre viajar para a Colômbia, onde desempenharia o

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


181
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
15 | Pintor simbolista suíço, a função de diplomata e ficar no Brasil – não fora determinado por uma atitude racional e
Arnold Böcklin (1827-1901)
pintou cinco versões desse objetiva, mas sim, por uma condição não consciente, não determinada por si, mas pela mão
quadro, entre 1880 a 1886. A de um destino algoz e autoritário, a infligir ao personagem autobiográfico (?), um rito de
terceira versão foi comprada
por Hitler por uma soma que passagem doloroso e quase esquizofrênico na sua experiência e na condução da realidade.
já na época era altíssima:
cerca de 100 milhões de Aqui o eu, dono de seu mundo e de sua história, que se expressava no cogito, promovendo
euros atuais. O ditador sempre a distinção entre as experiências reais e imaginárias, perde o lugar para o seu duplo –
pendurou o quadro em seu
estúdio, e o levava sempre desconhecido e com fluidos de cadáver ou com a presença de cadáver – exibindo suas lacunas
consigo. Levou-o até mesmo
ao bunker onde se suicidou, interiores e a urgência do retorno a uma logicidade e emoções humanizadas, generosas
no final da Segunda Guerra. consigo próprio e com o mundo.
Lênin, por seu lado, preferiu
pendurar uma versão da O narrador, nesse estado ritualístico e agônico ao mesmo tempo, confirma sua
obra diretamente sobre o
seu leito. Freud possuía ideia de morte ao relembrar, o quadro de Boecklin, “A Ilha dos Mortos”.15
nada menos que 22 cópias
do quadro em seu estúdio
em Viena. O pintor Salvador
Dalí se dizia fascinado
pelo quadro. Até mesmo
o poeta italiano Gabrielle
D'Annunzio adquiriu uma
cópia, e costumava exibi-la
com orgulho aos amigos.
Böcklin, sempre descreveu
a obra como “uma pintura
de sonho”, mas nunca deu
maiores explicações sobre
o seu significado. Ele nem
sequer deu um nome ao
quadro. O título “A Ilha
dos Mortos” foi dado pelo
galerista alemão Fritz Gurlitt,
em 1883. Sem conhecer
a história das primeiras
versões da pintura, muitos
interpretaram o barqueiro
como sendo o mítico Caronte,
que conduzia as almas ao
mundo subterrâneo na antiga
mitologia grega. Para esses
comentaristas, as águas
seriam as do rio Stix, e a
figura coberta de branco uma
alma recém-chegada ao além. Que assim o descreve:
In: http://www.brasil247.com/
pt/247/revista_oasis/97906/A-
Ilha-dos-Mortos “ [ ... ] o fantasmagórico e estranhamente doloroso maciço de ciprestes, entre falésias
tumulares, verticais calcareamente, blocos quebrados, de fechantes rochedos, em
sombra – para lá vai, lá aporta a canoa, com o obscuro remador assentado: mas, de
costas, de pé, todo só o vulto, alto, envolto na túnica ou sudário branco – o que
16 | P.p 873. morreu, o que vai habitar a abstrusa mansão, para o nunca mais, neste mundo.”16

Tal descrição, privilegiando o aspecto sombrio e insólito da tela, faz coincidir


uma possível interpretação da figura de Caronte, conduzindo um cadáver ao reino dos

Cerrados nº 38
182
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
mortos. Alíás, a ideia de morte, de passagem e de distanciamento do mundo real se
presentifica ainda mais quando o narrador, em um tom de melancolia e solidão relembra
outro quadro de Boecklin,

Em que mundos me escondo, agora neste instante? Prendem-me ainda, e tão somente,
as resistências da insônia. Ah, não ter um sentir de amor, que vá conosco, na hora da
passagem! De novo, é um quadro de Boecklin que meus olhos relembram, sua
maestra melancolia – o “Vita somnium breve” – : duas crianças nuas que brincam,
assentadas na relva, à beira de uma sepultura.”17 17 | P.p 874.

http://www.arnoldbocklin.org/Vita-Somnium-Breve--1888.html

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


183
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
A visão do quadro e a condição de duplicidade e ausência de uma verdadeira e
harmoniosa identidade se manifestam em um cotidiano povoado de fantasmas – observe-se
que acima do túmulo tem uma imagem, não claramente delineada, que permite ser
interpretada não como uma escultura, mas sim com uma sombra fantasmática – que perseguem
o narrador-personagem,

“São fantasmas, soturnos transeuntes, vultos enxergados através de robustas rexas


de ferro das ventanas, moradores dessas casas de balcões salientes sobre as calhes,
desbotados e carcomidos. Como sempre, por extranatural mudança, eles se corporizam
agora transportados a outra era, recuados tanto, antiquíssimos, na passadidade,
formas relíquias. Assim é que os percebe o meu entendimento deformado, julga-os
18 | P.p 875. presentes .....”18

O duplo toma lugar e passa a identificar nos habitantes e moradores do lugar o


drama do sujeito dividido pela apreensão do seu inconsciente. A realidade se situa agora no
avesso, no oposto do real objetivo, na treva escura de uma consciência apagada de suas
balizas e certezas. A esquizofrênica visão impera e ressurge como uma obsessão nociva que,
progressivamente, substitui o conhecido por um misterioso e simbólico ódio, como a
determinar a substância de uma morte gradual e o apagamento ritualístico de uma
condição pré-existente, a ser substituída, por outra, ainda desconhecida, mas (quem sabe?)
renovada e libertadora.
Assim o narrador justifica tal etapa: “... dia de dia, eu levava adiante, só em
sofrimento, minha história interna, a experiência misteriosa, o passivo abstrair-me, no
ritmo de ser e re-ser. Não tive nenhum auxílio, nada podia. Um morto não pode nada, para
19 | P.p 876. o se-mesmo-ser.”19, entendendo-a como uma total ausência de si e do mundo circundante,
uma profunda e original solidão – esta uma imperiosa condição, igualmente ritualística e
passagem para um outro estado da experiência existencial que promete a salvação, o renovar
e a esperança.
“Como surge a esperança? Um ponto, um átimo, um momento. Face a mim,
euÀquele ponto, agarrei-me, era um mínimo glóbulo de vida, uma promessa imensa.
Agarrei-me a ele, que me permitia algum trabalho da consciência. Sofria, de contrair os
20 | P.p 877. músculos. Esta esperança me retorna, agora, mais vezes, em certos momentos”20.
Nesse longo e doloroso percurso em direção à vida e ao renascimento, encontra-
se um narrador ansioso pela sua salvação, cultivando uma esperança de retorno ao mundo
da realidade, mas, ao mesmo tempo, sabedor dos inúmeros percalços que ainda serão
transpostos e os diferentes sacrifícios exigidos por essas etapas purgatórias.
Os rituais, as expiações e enfermidades são assim encarados pelo personagem: “já
sei que tudo é exigido de mim, se bem que nada de mim dependa. A penitência, o jejum, a

Cerrados nº 38
184
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
entrega ao não-pensar – são o único caminho. As necessidades de retorno ao zero. Quando
eu recomeçar, a partir de lá, esperar-me-á o milagre?”21. 21 | Idem, ibidem, p. 877.
Em um tom de conformismo, aceitação e disponibilidade ritualística, esse
homem acredita e investe no sofrimento – a perda, a ausência, a falta, a dor da penitência, a
fome de um jejum – como uma forma de aceder ao novo homem, anunciado pela salvação
escondida na plenitude prometida pelos ritos de passagem cumpridos.
Trata-se de uma simbólica e angustiante lucidez que, transformando-se em
esperança, permite ao mesmo narrador-personagem enfrentar novos caminhos e sentidos
que se criam para dar substância e entendimento às procissões simbólicas instaladasem uma
via crucis moderna, mas, ao mesmo tempo, garantia de um vir-a-ser original, retorno ao
mais sensível e primitivo da experiência humana.
Assim, o homem já humanizado pelas dores e buscas empreende o caminho de
sua ressurreição. Esta é o ponto de chegada da viagem iniciática. Andar pela cidade – ainda
realidade física – abre o espaço da interioridade e da duplicidade de um “outro mundo” que
se configura no próprio périplo (interior pela volta aos conteúdo interno de substância
existencial e e exterior pelos caminhos a percorrer...): “Andei. Tudo era um labirinto, na 22 | P.p. 879.

velha parte da cidade, nuvens tapavam a cimeira da torre, a grande igreja fechada, sonhava 23 | “Hear how/a Lady of
Spain/did love/an Englishman
eu em meio à insônia?”a viagem, ao mesmo tempo que prossegue o caminhar, desvanece a ...” Esse versos fazem parte da
clareza do entorno, esmaecendo as referências, deixando-as impressões de um outro mundo, balada “The Spanish Lady’s
Love”cujo texto, tal como
síntese de um duplo que integra a personalidade antiga à nova, individualizada e universal se tem notícias,foi impresso
e vendido em Bow-Church-
ao mesmo tempo. É uma arquitetura de ruelas, em um misto de sonhos, lembranças, Yard, Londres em algum
aventuras e andanças que reatualizam memórias imemoriais, de um tempo e espaço momento do período entre
1736 e 1763 como O amor
atemporais, povoados de impressões e personagens igualmente ancestrais e sem rosto, mas da senhora espanhola a um
marinheiro Inglês. Uma cópia
eternizadas pelos sentidos universais e universalizantes .... Às lembranças deste pode ser encontrado
no Biblioteca Bodleian. Asd.
Referências encontradas em
“Aqui, outrora, recolhiam-se as damas, à luz de lanternas conduzidas por criadas. site específico apontam que a
fonte tomou esta melodia de
Quem riu, riso tão belo, e de quem essa voz, bela e rouca de mulher, antes, muito Chappell de Música Popular
tempo, como posso lembrar-me, como poso salvar minha alma?! Numa era extinta, dos tempos antigos; Uma
coleção de canções antigas,
nos ciclos do tempo, ela dormirá, talvez, a essa hora, em seu solar, dos Lenguia [...]22 baladas e melodias de dança
.. com ... ... Avisos de escritores
do século XVI e XVII ... que
Acrescentam-se mudos diálogos com uma desconhecida e amada personagem foi publicado em 1859. Uma
balada com o nome de Lady
provavelmente situada em uma notação intertextual, recuperada de uma canção23 – citada espanhol foi registrada na
Inglaterra 14 de dezembro
pelo autor-narrador-personagem no corpo do texto narrativo. de 1624 com a Empresa das
Em um exercício polifônico e intertextual, o Narrador toma como sua a história livrarias. É possível que a
composição citada por Rosa
recontada pela balada, lembrando o amor equivocado e não correspondido entre a espanhola esteja relacionada a esta
versão ou uma das variantes
(a quem nomeou Clara!) e ele próprio, fazendo desse conteúdo uma perda presentificada não indicadas. In: http://www.
pela memória do vivido, mas sim pela memória de uma reminiscência situada em um tempo bartleby.com/243/161.html
e http://www.contemplator.
não real, arquetípico, de características atemporais. com/england/slady.html.

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


185
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
“O mistério separou-nos. Por quanto tempo? E – existe mesmo o tempo? Desvairados,
hirtos, pesados no erro: ela, orgulho e ambição, eu, orgulho e luxúria. Esperava-me
ao portal.
— Adeus ... – ela me disse
— A Deus! ... – a ela respondi.
De nada me lembro, no profundo passado, estou morto, morto, morto, morto. Durmo.
Se algum dia eu ressuscitar, será outra vez por seu amor, para recuperar a
oportunidade perdida. Se não, será na eternidade: todas as vidas. Mas, no fundo do
abismo, poderei ao menos soluçar, gemer uma prece, uma que diga todas as forças do
meu ser, desde sempre, desde menino, em saudação e apelo: Evanira! ....”

24 | PLATON. Phèdre Como se não bastassem as armadilhas trazidas pelo jogo de palavras adeus/ a
suivi de la pharmacie de
Platon. Traduction inédite, Deus e pela lembrança do nome de Evanira (em itálico e com reticências, tal como no conto
introducion et notes par Luc
Brisson. Paris: Flammarion, homônimo), apresenta-se, na narrativa, esta outra estória, que caminha tal como um
2000. p. 123. intervalo entre parênteses, em paralelo à macro narrativa deste um personagem narrador
Obs.: Como o próprio
tradutor comenta em nota que se busca, buscando suas identidades e suas histórias. Estas - mescladas a uma subjetividade
à p. 213, esta passagem
é de difícil tradução e e uma indeterminação subtraemdo texto uma perspectiva histórica e temporal -localizam a
entendimento. Portanto, ação e o presente da narrativa em um nebuloso locus, misto de imagens e projetos visionários
preferiu-se, nesse caso,
acrescentar aqui uma versão que, misturados ao repertório sensível e criativo armazenado na história do mundo,
condensada e traduzida por
M. Auxiliadora R. Keneipp. imbricam e tensionam a memória, a reminiscência e a experiência do real.
“Como disse, toda alma de Essa temporalidade paradoxal retoma a questão da impossibilidade de uma
homem, por sua natureza,
contemplou o ser verdadeiro; “memória total”, já apontada por Suzana K. Lages (2002:93), e conduz ao reconhecimento
de outro modo não teria
vindo nessa criatura viva. do papel dos fatos não-lembrados como afirmativa para o direcionamento narrativo do
Mas lembrar-se das coisas conteúdo lembrado, de forma que os elementos excluídos do contexto narrativo – ao serem
daquele mundo a partir das
coisas deste não é fácil para abandonados – privilegiam os outros, lembrados, e preenchem o sentido das experiências
todas as almas. Não é fácil
para aquelas que somente vividas, imaginadas, recriadas.
entreviram as coisas de lá, Pode-se, nesse momento, apelar a Platão que, dando voz a Phèdre, explica:
nem para aquelas outras que,
depois de sua queda neste
lugar, tiveram de se deixar
arrastar à injustiça por certas “comme je l’ai dit en effet, tout âme humaine a par nature, contemplé l’être; sinon elle
convivências e de esquecer, ne serait pas venue dans le vivant dont je parle. Or, se souvenir de cesréalités – là à
assim, as visões sagradas que
tinham contemplado. Logo, partir de cellesd’ici bas n’est chose facile pour aucuneâme; ce ne l’estni pour
não resta senão um pequeno
número de almas que toutescelles qui n’onteu qui unebrève vision des choses de là-bas; ni pour celles qui,
conservam suficientemente après leur chute ici-bas, onteu le malheur de se laissertounerversl’injustice par on ne
bem o Dom da lembrança.
Essas, quando divisam saitquellesfréquentations et d’oublier les choses sacréesdont, en ce temps-là, ellesonteu
uma imitação das coisas
daquele mundo, ficam fora la vision. Il n’en reste doncqu’unpetitnombre chez quile souvenir présenteunétatsuffisant.
de si mesmas e não mais se Or, quandilarrivequ’ellesaperçoiventquelquechosequiressembleauxchoses de là-bas,
controlam.” In: DROZ, G. Os
mitos platônicos. p. 63-64. cesâmessontprojetéeshors d’elle-mêmes et elles ne se possédentplus.”24

Cerrados nº 38
186
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Observa-se nessa passagem, que o Phedro relaciona a reminiscência a uma
existência pré-empírica da alma em contato com uma essência, um absoluto e realidades
também originais.
Pode-se, ainda, deduzir a imortalidade da alma, que renasce várias vezes, e
contempla, de forma latente, o conteúdo do mundo, guardando, dessa visão, a expectativa
de retorno a estados originais. Portanto, as lembranças, aqui na Terra, de um saber ancestral,
reencontram não só o conhecimento, mas a integralidade do já percebido, sabido. Por outro
lado, essa percepção torna-se, na sua concepção, uma redescoberta de verdades até então
esquecidas e escondidas.
Compreende-se, aqui, a representação das experiências míticas como retorno ou
construção ou instalação de um mundo não racionalizável objetivamente e que, ao propor
o apagamento de uma cronologia temporal, incita os sentidos da sensibilidade e resgata o
essencial. Em outras palavras, pode-se pensar que a morte de que fala o narrador em sua
apaixonada confissão, é também uma morte iniciática e propulsora de outras experiências,
vertigens e (re)conhecimentos.
Por outro lado, ao interromper a estória da história, a narrativa “real” retoma a
continuidade do rito iniciático e das purgações experimentadas, consolidando uma atmosfera
de dor, abandono e solidão. O narrador, assumidamente desamparado, atinge o ápice dessa
condição, se interrogando: “Nenhum sonho! Sim, para o que servem os sonhos, sei. Alguém
se lembraria ainda de mim, neste mundo? E os que conheci e quis bem, meus amigos?
Alguém iria saber que eu terminava assim, desamparado, misérrimo?”25 25 | P.p. 869.
Em meio a tanta desolação, o choro toma lugar, expondo o narrador-personagem
a um constrangimento ainda maior por se sentir observado, exposto a um desconfortável
olhar e julgamento daqueles que, acreditava!,estivessem olhando-o, julgando-o ou tecendo
comentários a seu respeito e de sua condição. Eenvergonhado, mistura-se a um cortejo, um
enterro de gente simples - “Sim, meu coração saudou-os. Passavam. Eram como num capricho
de Goya. E nem soube bem como atinei com o bem-a-propósito: ato contínuo, avancei,
bandeei-me a eles” – perguntando-se “Onde estaria melhor, mais adequado, que ali, pudesse
pois chorar largamente, crise inconclusa, incorporado ao trânsito triste?”26 26 | P.p. 869.
É interessante observar nesse momento a sutil armadilha intertextual que G.
Rosa propõe a seu leitor. Ao aproximar o capricho de Goya ao cortejo fúnebre, o narrador
reatualiza a temática de Los caprichos, uma série de 80 gravuras do pintor espanhol Francisco
de Goya, representando uma sátira da sociedade espanhola do final do séc. XVIII, sobretudo
da nobreza e do clero. Goya no último decênio do séc. XVIII, a despeito de novas ideias que
percorriam a Europa, evoluiu para o ceticismo, abandonando a confiança no pensamento
iluminista e tornando-se precursor do mundo atual que perdera a confiança na capacidade
intelectual dos homens para regenerar a sua sociedade em um mundo obscuro sem ideais.

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


187
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
Este trânsito e evolução no seu modo de pensar aconteceu durante a elaboração dos
Caprichos, aparecendo claramente nas lâminas escuras, na composição de contrastes muito
fortes, em que os tons de preto destacam as luzes violentamente, produzindo efeitos de
grande dramatismo,com sátiras de inspiração ilustrada e noutras em que aparece o seu
ceticismo nas possibilidades do homem.Goya concebeu inicialmente esta série de gravuras
como Sonhos (e não como Caprichos), realizando pelo menos 28 desenhos preparatórios, 11
deles do Álbum B. Ele pensava intitular a capa: Sonho 1º Idioma universal. Desenhado e gravado
por Francisco de Goya. Ano de 1797. O Autor sonhando. A sua tentativa é apenas desterrar
vulgaridades prejudiciais e perpetuar com esta obra de caprichos, o testemunho sólido da verdade.
Os Sonhos seriam uma versão gráfica dos Sonhos literários do escritor satírico Francisco de
Quevedo, que escreveu entre 1607 e 1635 uma série na qual sonhava que estava conversando
27 | http://www.a-r-t.com/ no Inferno, tanto com os demônios como com os condenados.27
goya/; periodicos.ufpb.br/
ojs/index.php/dr/article/
download/13831/7845

In:http://pt.wikipedia.org/wiki/Los_caprichos

Cerrados nº 38
188
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Pode-se aqui inferir a aproximação dessa série com a atmosfera experimentada
pelo narrador ao tentar construir a imagem de seu doloroso momento. Em um processo de
alusão, o narrador compartilha não só sua condição extrema mas cria uma referência
hermética e poucoacessível aos leitores comuns, não habituados ao intercâmbio e
interpretação artísticas e pictóricas. Trata-se, na verdade, de um clima e de uma indeterminação
que aproxima o conjunto todos temas e das inúmeras gravuras (oitenta ao todo, sempre com
temáticas dramáticas!) a uma situação de perda, de ausência e sofrimento. Esta, por sua vez,
conduz o narrador, gradualmente, a um estado de memória latente e assunção de um eu-
existente que, em meio ao choro e à consciência de um estado de impotência e apagamento,
decide por se colocar dentro do mundo “real”, não mais aquele da experiência da viagem
iniciática e ritualística para dentro de si, mas sim aquele novo homem que, mesmo em meio
de turbulentas visões e reais abstratos, pode despertar para uma outra instância do viver e
do estar-no-mundo, renascimento e possibilidade de realização ontológica e essencial.

“Amedrontavam-me, na morte, não o ter de perder o que eu possuía e era, ou fora,


essas esfumaduras. Não pelo presente, ou o passado. O que eu temia, era perder o
meu futuro: o possível de coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe
adiante me aguardava. A vida está toda no futuro.”28 28 | P.p. 884.

É importante realçar que o narrador, ao se definir pelo futuro, pela vida, abandona
em uma lápide do cemitério, um livro não lido que o acompanhava desde muito – por ele
chamado de O Livro – espécie de amuleto e senha. Este, ao ser abandonado nesse momento
e lugar cruciais, passa a configurar uma simbólica paga ou tributo29 pelo direito de mudar 29 | Não há como esquecer
o antigo costume grego
de patamar e, portanto, aceder a outro nível de existência, transformando morte em vida, de colocar uma moeda,
inconsciência em consciência, sofrimento em salvação, noite em dia. chamada óbolo, sob
a língua do cadáver, para
pagar Caronte pela viagem.
Se a alma não pudesse pagar
“... e era então como se deixasse algo de mim, que deveria ser entregue, pago ficaria forçosamente na
restituído. Naquele livro, haveria algo de resgatável. Pensei, e fiz. A um canto margem do Aqueronte para
toda a eternidade, e os gregos
discreto, à sombra de um cipreste, e de um lousa, larguei-o, sotoposto. O silêncio era temiam que pudesse regressar
para perturbar os vivos.
meu, lúcido. Aguardei ainda uns minutos, transtempo que tentava ouvir e ver o que
não havia. Parecia-me estar sozinho e antigo ali, na grande necrópole. Afinal de lá
me vim.”30 30 | P.p. 884.

“De lá me vim” encerra uma profunda transposição de lugar e de estado. A um espaço físico,
o cemitério, de saída do mundo dos mortos, corresponde outro, o espaço da recuperada
realidade, sinônimo e expectativa de vida. Nesse espaço, novo-velho, ainda em branco pelas
ausências e lacunas não preenchidas, desenrola-se uma última etapa – inesperada,
estarrecedora e misteriosa – deste processo de movimentação especular, na qual o eu se

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


189
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
confunde e, ao mesmo tempo se livra de um eu outro, duplo de si e de suas angústias
inexplicáveis mas purgatórias de dores ancestrais e de encontros desencontrados na busca de
um conhecimento apaziguador.
Ao sair do cemitério, o personagem-narrador é abordado por um dos participantes
do enterro e, sem que se pudesse explicar como ou por que, devolve-lhe o Livro que havia
abandonado em uma lápide, tal como uma paga ou permissão (Óbolo?).

“Estarreci-me. Como fora esse pobre homem encontrar o Livro, e por que me
encontrava agora, para restituí-lo? Ter-me-ia seguido, desde o começo, até meu
esconderijo, tão longe, num recanto sombrio entre as tumbas? De que poderes ou
providência estava ele sendo o instrumento? Qual o sentido de todos esses
31 | P.p. 885. acontecimentos, assim encadeados?”31

A todas essas perguntas – irrespondidas, angustiantes e premonitórias – o


narrador-personagem mantem-se afastado, distanciando-se do homem com um
agradecimento e, ao mesmo tempo, recuperando o caminho para a vida.
Nesse recuperar – e provavelmente suspeitando de um valor simbólico e
anunciativo deste processo ritualístico – o personagem abre o Livro, ali buscando alguma
direção ou certeza ao apaziguamento ....

32 | P.p. 885. “Abri-o, li, ao acaso: ”32

A nós, leitores, é vedado, nesse momento, o acesso ao conteúdo do texto lido pelo
narrador. Segundo nota do organizador, há no original um espaço para citação que o autor
33 | Volta-se a insistir que não chegou a preencher33, cabendo, portanto, uma série de inferências construídas pelo
essa obra foi publicada
post-mortem, sem revisões ou olhar e pelo lugar do leitor que busca dar sentido à lacuna, sensível e significativa, aqui
acréscimos de representada pelo vazio, pelo branco, pela ausência.
Guimarães Rosa.
Entretanto, o narrador – supostamente ciente de seu destino, cravado nas
palavras e escrituras encontradas nas lições do Livro - assim concretiza seu retorno à vida:
“Eu voltava, para tudo. A cidade hostil, em sua pauta glacial. O mundo. Voltava, para o que
nem sabia se era a vida ou se era a morte. Ao sofrimento, sempre. Até o momento derradeiro,
34 | Idem, ibidem, p. 885. que não além dele, quem sabe?”34
Com essa certeza, mescla de reconhecimento, tragédia e fatalidade, o narrador-
personagem exibe um estado de consciência e acomodação, como a aceitar os dolorosos
momentos de sua triste viagem nos espelhos quebrados da alteridade e da dupla relação
identidade consigo próprio e que o outro que o habita. A vida retoma o mesmo ritmo, nas
mesmas condições inóspitas e ameaçadoras, nas quais solidão e ausência se misturam a um
rigoroso e implacável estar-no-mundo que, insensível, inclemente conduz ao acomodamento

Cerrados nº 38
190
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
físico e existencial deste novo homem, ainda duplo na sua permanência ontológica – Orfeu
da modernidade, a sobreviver ao caos e à escuridão do mundo dos mortos.
Nesse sentindo, e inconcluindo as observações aqui alinhavadas, é forçoso
lembrar a epígrafe que abre essas interrogações. Apontando para os inventivos e instigantes
caminhos que a vida e a imaginação desenham para o homem, o escritor reconhece essa
condição ambígua, plural e primitiva que se manifesta na vida humana, sugerindo, em
contrapartida, o jogo dinâmico que constrói o mundo, suas imagens e suas narrativas. A ficção
torna-se assim um lugar privilegiado de permanências impermanentes, a justificar e
corroborar e, até mesmo eternizar a recriação do mundo mimetizada ou imaginada pelas
imagens significativas e simbólicas que a escritura poética realiza, dando substância e
sentido à experiência do homem – sempre um lutador, um intérprete e um sobrevivente que
desafia os perigos que a vida lhe apresenta em favor de sua humanizada sensibilidade.

Referências Bibliográficas
CERQUEIRA FILHO, Gilásio. “Sufoco na alturas sobre Páramo, de Guimarães Rosa”. In: Passagens.
Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: vol. 5, no.2, maio-agosto, 2013,
p. 168-204.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes. 1992.

OLIVEIRA, Edson Santos. In: Reverso vol.32 nº.59 Belo Horizonte jun. 2010.

PLATON. Phèdre suivi de la pharmacie de Platon. Traduction inédite, introduction et notes par Luc Brisson.
Paris: Flammarion, 2000.

PEREIRA, Maria Luiza Scher. O Exilio em “Páramo” de Guimarães Rosa: Dilaceramento e superação”
In: http://www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista/revistas/09/6-5.pdf;

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. In: ROSA, Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar.1994, vol2.

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha


191
Permanências Impermanentes: Enigmas de “Páramo”
El cuento mexicano reciente en
el sistema literario (1970 - 2014):
Las contradicciones de una
práctica masiva

José Sánchez Carbó


Doctor en Literatura
Hispanoamericana por la Universidad
de Salamanca y Coordinador de la
maestría en Letras Iberoamericanas de
la Universidad Iberoamericana,
Puebla, México.

jose.sanchez.carbo@iberopuebla.mx
Resumen Abstract
En México la publicación de libros de cuentos se The publication of books of short stories in
ha incrementado en las últimas décadas. Las Mexico has increased significantly in the last
panorámicas del cuento mexicano reciente decades. This panorama points out such a wide
coinciden en que es tal la diversidad de propuestas range of topics and proposals that classifying
formales y temáticas que resulta imposible them is not an easy task. With this in mind, this
clasificarlas. Ante este escenario, este artículo article intends to show the conditions that
buscará mostrarlas condiciones que permitieron motivated such growth from the perspective of
tal incremento de títulos y variedad de propuestas the literary field as well as the relationship of the
desde las perspectivas del campo literario y del literary system with peripheral areas such as the
sistema literario así como la relación que el short story written in indigenous languages.
sistema literario central mantiene con las
periferias, como es la marginación del cuento Keywords: Recent Mexican short-story,
escrito en lenguas indígenas. Indigenous languages short stories, literary
system, literary field.
Palavras-clave: Cuento mexicano reciente, cuento
escrito en lenguas indígenas, sistema literario,
campo literario.
L
a revisión de la cuentística mexicana de los últimos cuarenta años supone
enfrentarla variedad temática y formal de un corpus de poco más dedos mil obras.
Esta tarea ha sido emprendida de forma sistemática e individual, a lo largo de las
últimas décadas, por varios especialistas. En conjunto, estas aproximaciones
reflejan la atención que el género ha merecido por parte de la crítica literaria. Estos estudios
han ido conformando o redefiniendo un canon más o menos estable a travésdel análisis de
cuentos, cuentarios o autores en particular, o de la producción según las generaciones, los
temas o las regiones;y, por otra parte, handestacado las constantes y las variables estilísticas
y técnicas según determinados ámbitos sociales y culturales.
Pocos críticos han abordado esta revisión panorámica desde la perspectiva del
“campo literario” (BOURDIEU, 1995) o del “sistema literario” (EVEN-ZOHAR, 2007). La
conjunción de ambas propuestas nos permitirá revisar y explicar el conjunto de elementos
implicados en los procesos de producción, distribución, divulgación y consumo. Estas condi-
ciones y las políticas culturales implicadas en ellas han situado a México como una referen-
cia en el ámbito del cuento hispanoamericano, por un factor cuantitativo sin menoscabo de
la calidad y la originalidad de las propuestas.
A una estrategia similar recurrió Sara Poot Herrera al “seguir de cerca de qué

José Sánchez Carbó


195
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
manera se concibe esta práctica en el contexto literario” en un período de tres años (POOT
HERRERA, 2004, p. 427). De esta manera, le dedicó un apartado a los “comentarios de
cuentistas sobre el cuento” (431) y a reseñar brevemente cuentarios publicados en los tres
primeros años del siglo XXI: más de 150. A esto agregó información sobre “el contexto de co-
mercialización de la literatura”, por lo que hace mención de instituciones y programas de
creación literaria a nivel federal y estatal, de la difusión del cuento a través de publicaciones
periódicas impresas y digitales, así como de las antologías.
En esta línea, nuestra propuesta de análisis se fundamenta en los presupuestos
del sistema literario así como en la idea de las fases de la cultura (GIMÉNEZ, 1987). Estos
enfoques nos ayudarán a reconocer que a la par de la publicación de libros de cuentos, el
sistema literario mexicano se ha dinamizado y diversificado por la paulatina incorporación
a los procesos de producción o consumo de géneros temáticos o populares y por la descentra-
lización de políticas culturales. No obstante la hegemonía del sistema literario metropolita-
no sobre las periferias y que en los últimos veinte años han ganado presencia literaria grupos
históricamente marginados (mujerese indígenas), todavía puede percibirse, sobre todo en el
caso de la literatura escrita en lenguas indígenas, que se manejan como si se tratara de siste-
mas escindidos del centro geográfico y cultural. Dado este contexto, se atenderán las condi-
ciones y los procesos de producción, mediación, recepción y transformación del sistema lite-
rario.Revisar estas condiciones y procesos, por otra parte, nos permitirá presentar otro tipo
de revisión panorámica.

El sistema literario
El sistema literario establece relaciones y es afectado por otros sistemas de la cultura de ahí
su carácter dinámico y heterogéneo. Asimismo es importante subrayar que adoptar esta
perspectiva:

implica un rechazo de los juicios de valor como criterios para una selección a priori de los
objetos de estudio. Esto debe recalcarse particularmente en el caso de los estudios literarios
donde todavía existe confusión entre investigación y crítica. Si se acepta la hipótesis del po-
lisistema, ha de aceptarse también que el estudio histórico de polisistemas históricos no
puede circunscribirse a las llamadas “obras maestras”, incluso aunque algunos las consideren
la única razón de ser inicial de los estudios literarios. Este tipo de elitismo no es compatible
con una historiografía literaria, del mismo modo que la historia general no puede ya ser la
narración de las vidas de reyes y generales. En otras palabras, en tanto que estudiosos dedi-
cados a descubrir los mecanismos de la literatura, no parecemos tener la posibilidad de evi-
tar reconocer que cualesquiera juicios de valor prevalentes en un período dado son parte
integral de esos mecanismos. (EVEN-ZOHAR, 2007, p. 12)
El sistema cultural eurocéntrico, hegemónico tanto en México como en Hispa-

Cerrados nº 38
196
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
noamérica, se consolidó hacia finales del siglo XIX a partir de una concepción de cultura
caracterizada no sólo por la pretensión de autonomía o emancipación, respecto a otros siste-
mas como el religioso o el político, sino también por su postura excluyente, elitista y restric-
tiva. Esta idea de cultura y, por consiguiente, de literatura, es la que ha permeado y moldea-
do muchas de las políticas y acciones constitutivas del sistema literario mexicano hasta nues-
tros días.
Otro aspecto a tomar en cuenta es que la cultura y la literatura han atravesado
por tres fases que, en el caso de México, no han sido sucesivas sino más bien simultáneas o
desfasadas. La primera es reconocida como etapa de “codificación” en la que se definen los
criterios de valoración de las expresiones culturales “que permiten fijar y jerarquizar los
significados y los valores culturales, tomando inicialmente por modelo la ‘herencia europea’
con su sistema de valores heredados, a su vez, de la antigüedad clásica y de la tradición cris-
tiana” (GIMÉNEZ, 1987, p.36). La segunda etapa corresponde a la llamada institucionaliza-
ción de la cultura, en la que los estados, inspirados en proyectos nacionales, asumen el con-
trol y la gestión de la cultura, “bajo una lógica de unificación y centralización” (GIMÉNEZ,
1987, p. 37). Esta institucionalización dentro de los proyectos nacionales, anclados en la nece-
sidad de consolidar una identidad nacional homogénea, se concreta en el aparato de Estado
a través de políticas culturales y de instituciones responsables de promover y divulgar expre-
siones culturales por medio de ministerios de cultura o educación, casas de la cultura o
agregadurías culturales. La tercera fase es la de “mercantilización”, “que implica la subordi-
nación masiva de los bienes culturales a la lógica del valor de cambio y, por lo tanto, al mer-
cado capitalista, [esta etapa] representa la principal contratendencia frente al proceso de
unificación y centralización estatal”de la fase precedente (GIMÉNEZ, 1987, p. 37).
Esta idea de literatura con sus respectivas etapas de consolidación es la base para
entender el proceso del cuento mexicano de 1970 hasta nuestros días. Como veremos, según
el sistema literario e incluso el género literario, en algunos casos prevalece la etapa de codi-
ficación o de mercantilización e institucionalización. En el caso del cuento es claro su forta-
lecimiento respecto al establecimiento de un repertorio o a los apoyos institucionales que ha
merecido, pero no es visto por los consorcios editoriales como un producto rentable.
En este sentido, vale recordar que en la literatura hispanoamericana, así como en
el seno de muchas literaturas nacionales, coexisten varios sistemas literarios. Por ejemplo, en
México se escribe literatura en al menos 25 lenguas indígenas y en este sistema las fases de la
cultura mencionadas son emergentes (codificación e institucionalización) o de plano ausen-
tes (mercantilización). De ahí la necesidad de distinguir la existencia de sistemas literarios
periféricos y no periféricos. Esta distinción, más de índole social pero con implicaciones es-
téticas, nos servirá para entender el escaso desarrollo de ciertas literaturas, en específico, el
cuento escrito en las diversas lenguas indígenas que conviven en el territorio mexicano pues
el apoyo y el impulso recibido ha sido asimétrico. Durante décadas estos grupos han careci-

José Sánchez Carbó


197
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
do de las condiciones de posibilidad que tiene la literatura metropolitana.
Asimismo, las fases de codificación, institucionalización y mercantilización del
polisistema literario, nos permitirán explicar la prolífica producción, reconocer la variedad
temática y formal en los cuentos de los últimos cuarenta años, situar desde la perspectiva de
la mercantilización la crisis que vive el cuento, cubrir el panorama crítico, las políticas cul-
turales y las instituciones que han apoyado a los escritores y, por último, dar cuenta del esta-
do del cuento escrito en lenguas indígenas.

El cuento reciente en México


Si bien la revisión panorámica desvanece la singularidad y convoca a la inevitable deuda de la
omisión de autores y obras, por descuido u olvido, resulta un ejercicio pertinente para delinear
constantes estilísticas y para reconocer cómo se ha diversificado el denominado repertorio del
cuento en México, lo que en otras palabras es “el agregado de reglas y materiales que rigen tanto
la confección como el uso de cualquier producto […] reglas y materiales […] indispensables para
cualquier procedimiento de producción y consumo” (EVAN-ZOHAR, 2007, p. 42).
En estas cuatro décadas y media, el cuentista ha jugado con aspectos temáticos y for-
males para perpetuar la tradición del cuento clásico o tradicional pero otras veces ha conjugado,
desechado e hibridado, elementos que han desafiado y transformado una tradición cuyos referen-
tes se encuentran tanto en el exterior (Poe, Maupassant, Chejov, Faulkner, Hemingway, Borges,
Quiroga) como en el interior (Julio Torri, Alfonso Reyes, Rafael F. Muñoz, Juan Rulfo, José Re-
vueltas, Juan José Arreola, Carlos Fuentes). Asimismo, encontramos al cuentista que se ha alejado
de la tradición al punto de problematizar el propio concepto de cuento y, por consiguiente, ha
demandado nuevas rutas de interpretación y análisis. Ante este multiforme escenario, una parte
de la crítica se ha inclinado por mantener y fundamentar un restrictivo patrón de ajuste para los
“cuentos”; otra parte de ella, ha recurrido a una concepción amplia y básica para denominar cuen-
to toda relación de sucesos; o ha optado por emplear el término‘relato’ para integrar formas nar-
rativas breves, proteicas o híbridas. Así, unos críticos, con el propósito de proteger la definición,
excluyen del recinto conceptual del “cuento” formas narrativas por considerarlas fragmentos, es-
tampas, viñetas, pensamientos, relatos, evocaciones o capítulos de una novela desarticulada (ES-
CALANTE, 1990). No obstante, otros le han dado cabida a un catálogo amplio de expresiones
narrativas breves al conjurar distinciones entre cuento clásico, cuento moderno y cuento posmo-
derno (ZAVALA, 2004).
Para la década de los setenta, el cuento en México contaba con referentes en el género
como José Revueltas (1914), Edmundo Valadés (1915), Juan Rulfo (1917), Juan José Arreola (1918)y
Carlos Fuentes (1928).Sus cuentos trazan o afianzan las rutas por las que posteriormente transita-
ría el cuento: el realismo, la literatura comprometida, el cosmopolitismo, la reflexión sobre el
ejercicio de la escritura, la literatura fantástica o la mini ficción. En otro plano, también establecen
las bases para la promoción del cuento a través de varias acciones que se continúan replicando

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
hasta nuestros días. En este ámbito, Valadés fundó la revista El Cuento(1964-1999), un referente
para el género no sólo a nivel nacional sino para toda Latinoamérica, ejerció la crítica literaria en
periódicos nacionales, incentivó la creación de cuentos a través de concursos e impulsó la publica-
ción de mini ficciones. Arreola, por su parte, formó y apoyó a nuevas generaciones de escritores
en talleres literarios, con la revista Mester (1964-1967) y con colecciones editoriales como Los Pre-
sentes y Cuadernos del Unicornio.
En esta época vendría a sumarse el singular universo narrativo del guatemalteco y
mexicano por adopción, Augusto Monterroso (1921-2003) 1, y la llamada Generación del Medio 1 | Cf. Anexo. Lista de autores
y sus obras.
Siglo, integrada por escritores como Juan García Ponce (1932-2003), Juan Vicente Melo (1932-1996),
Salvador Elizondo (1932-2006), José de la Colina (1934) o José Emilio Pacheco (1939-2014), recono- 2 | Cf. Anexo. Lista de autores
y sus obras.
cidos por alejarse del nacionalismo y cultivar la metaficción y la experimentación formal.También
publican notables libros de cuentos figuras como Sergio Pitol (1933) y Eraclio Zepeda (1937). En los
mismos años setenta irrumpe en la escena nacional la juventud y la irreverencia característica de
la llamada generación de “La onda” con René Avilés Fabila (1940), José Agustín (1944), Parménides
García Saldaña (1944-1982) o Héctor Manjarrez (1945). A decir de Yolanda Vidal, en la década de los
setenta:

La cuentística mexicana se transforma tanto en temas como en estilos, de la mano de una


pluralidad de voces que impide cualquier intento de encasillamiento. Son tiempos de expe-
rimentación con el lenguaje y con las técnicas narrativas, de búsqueda de nuevas formas de
expresión para la nueva temática que irrumpe en la literatura. Cada autor sigue su propio
camino, sin atenerse a consignas, escuelas o movimientos literarios. Los escritores se agru-
pan en generaciones desde un punto de vista cronológico, ya no tanto estético o ideológico.
(VIDAL, 2013, p. 626)

Por tanto, después de “La onda”, la última generación estética y cultural recono-
cida por la crítica, sólo es viable recurrir a la cronología para mencionar las obras de algunos
cuentistas destacados. De la promoción que publica sus primeros libros entre los setenta y
los ochenta, citamos a Federico Patán (1937), 2 Agustín Monsreal (1941), Felipe Garrido (1942),
Bruno Estañol (1945), Hernán Lara Zavala (1946), Carlos Montemayor (1947-2010),Guillermo
Samperio (1948), Francisco Hinojosa (1954), Fabio Morábito (1955), Emiliano Pérez Cruz
(1955) y Juan Villoro (1956). Posteriormente, vinieron a ampliar los límites formales e inscri-
bir nuevos temas y ambientes en el cuento escritores como Enrique Serna (1959),Guillermo
Fadanelli (1963),Mario González Suárez (1964),Mauricio Montiel Figueiras (1968)o Álvaro
Enrigue (1969); y, entre los novísimos, Alberto Chimal (1970) o Antonio Ortuño (1976).
Los cuentos de este intervalo abordan los problemas de sujetos enfrentados a di-
lemas (éticos, morales, sexuales, sentimentales, ideológicos o políticos) y sus secuelas (emo-
cionales, psicológicas, físicas y sociales). En escenariosy contextos (urbanos, provincianos,

José Sánchez Carbó


199
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
rurales o fronterizos, nacionales e internacionales),con referentes reales e imaginarios,tratan
problemas relativos a la inseguridad, la represión, el desarraigo, la pobreza, el conservaduris-
mo, la violencia o la injusticia. Además, el cuento en México ha retomado hechos históricos
relevantes para el país como la Revolución Mexicana (1910), el movimiento estudiantil (1968),
el terremoto de la Ciudad de México (1985), el levantamiento zapatista (1994) y las recurren-
tes crisis políticas y económicas del país desde 1968 hasta la actualidad. Los protagonistas son
mujeres, jóvenes, viejos, políticos, militares, empresarios, profesionistas, escritores, artistas,
personajes marginados o de las periferias, parejas heterosexuales y homosexuales, con rela-
ciones tormentosas o eróticas, románticas o invadidas por los celos o la infidelidad, el fracaso
y la iniciación.
Los registros son realistas, oníricos, fantásticos, surreales, humorísticos, paródi-
cos o metaficcionales. El lenguaje es culto o una reproducción del habla regional o del caló
de los barrios. Las historias son contadas de forma convencional o fragmentada, con narra-
dores omniscientes, monólogos interiores o una mezcla de voces. Los cuentos transgreden
sus propias fronteras: cuentos clásicos y modernos conviven con mini ficciones, colecciones
de relatos integrados, prosa poética, juegos del lenguaje y experimentación, así como con
otras formas discursivas como la crónica, el ensayo o la epístola.
Como se había mencionado, en estas décadas se inicia el proceso de diversifica-
ción y descentralización del cuento en México. En parte se debe al número creciente de es-
3 | Cf. Anexo. Lista de autores critoras entre las que mencionamos a Elena Garro (1920-1998), 3 Rosario Castellanos (1925-
y sus obras.
1974), Inés Arredondo (1928-1989), Amparo Dávila (1928), Beatriz Espejo (1939), Silvia Molina
4 | Cf. Anexo. Lista de autores (1946), Ethel Krauze (1954), Ana García Bergua (1960), Cristina Rivera Garza (1964), Cecilia
y sus obras.
Eudave (1968) o Guadalupe Nettel (1973). De acuerdo con Cluff, en los cincuenta “42 libros de
cuentos fueron publicados por mujeres; en los 60, 38; en los 70, 41; y en los 80, 119” (CLUFF,
1997, p. 51). Por otra parte, se incorporó un nutrido grupo de escritores del norte de México
como Jesús Gardea (1939-2000),4 Daniel Sada (1953-2011), Luis Humberto Crosthwaite (1962),
Eduardo Antonio Parra (1965), Luis Felipe Lomelí (1975) o Carlos Velázquez (1978), que vie-
nen a enriquecer el cuento con originales perspectivas temáticas y formales. Dentro del re-
pertorio literario géneros temáticos como el relato de ciencia ficción y el policiaco empiezan
a consolidarse con libros y concursos de cuento; y en el aspecto formal, la mini ficción y las
colecciones de relatos integrados, colocan a México como un referente a nivel latinoamerica-
no por la variedad, la cantidad y la calidad de sus propuestas.

Las condiciones de producción


Lauro Zavala se explica a grandes rasgos el incremento en la producción cuentística de los
últimos años por “la explosión numérica de la universidad de masa, con el consiguiente au-
mento de lectores (y, por lo mismo, de autores y editores) de narrativa breve, acompañado
por la multiplicación de los premios, becas, encuentros y talleres literarios en todo el país”

Cerrados nº 38
200
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
(ZAVALA, 2000, p.10). A este esbozo de condiciones debe añadírsele los pequeños avances
hacia la descentralización que ha reducido la posibilidad de que un escritor fuera del centro
literario y geográfico del país, es decir, en la periferia cultural, carezca de las mismas opcio-
nes “en términos editoriales, oportunidades de promoción, facilidades de reconocimiento,
de valoración crítica y de lectura” (BERUMEN, 2006, pp. 46-47).Como se verá a continua-
ción, las universidades, los centros no escolarizados, las editoriales, los premios y las becas
enriquecieron y transformaron las tendencias del sistema literario metropolitano.
En este periodo se consolidaron o se establecieron facultades de letras en muchas
universidades de los estados de la república, al inicio ofreciendo programas de licenciatura y,
posteriormente, de maestría y doctorado, con lo que contribuyeron en la formación no sólo
de escritores y lectores especializados sino de agentes implicados en el sistema literario: aca-
démicos, investigadores, editores, promotores de la lectura. En los tres primeros cuartos del
siglo XX el predominio en esta órbita había recaído en la UNAM, cuya facultad de Filosofía
y Letras fue creada en 1924. Desde entonces, muchos escritores estuvieron inscritos o vincu-
lados, tanto a la institución como a la facultad. 5 La máxima casa de estudios en México, 5 | Tal es el caso de Rosario
Castellanos, Salvador
además de formar a los futuros escritores, era un punto neurálgico para la vida cultural del Elizondo, Sergio Pitol, René
país, un sitio de paso casi obligado para todo aquel interesado en integrarse al sistema litera- Avilés Fabila, Parménides
García Saldaña, Carlos
rio. Ahí coincidían escritores, académicos, críticos y demás personas ligadas a la literatura Montemayor, Felipe Garrido,
Silvia Molina, EthelKrauze,
para conformar una amplia red de relaciones e intereses. Francisco Hinojosa, Enrique
El lento y convulso desarrollo de la educación superior en el país a lo largo del Serna o Ana García Bergua.

periodo comprendido en el presente análisis, entre otros aspectos, paulatinamente posibili-


tó reconocer a escritores y profesionistas formados en universidades públicas estatales y, en
menor medida, en las privadas. Si bien la ciudad de México todavía concentra los medios, los
recursos y las relaciones, en algunos estados las facultades de Letras o Humanidades dinami-
zan la actividad literaria a través de talleres, conferencias, presentaciones de libros y publica-
ciones; dinámica que, cabe mencionar, se enriqueció con la presencia de escritores y acadé-
micos sudamericanos exiliados de las dictaduras que llegaron al país durante los años seten-
ta y ochenta.
El nexo entre la literatura y la educación en los noventa revela otra faceta, la de
los escritores-profesionistas mexicanos que empezaron a migrar para obtener títulos de pos-
grado en universidades del extranjero, como es el caso de Mario González Suárez (Moscú),
Álvaro Enrigue (Maryland), Luis Felipe Lomelí (Madrid), Cristina Rivera Garza (Houston),
Cecilia Eudave (Montpellier) o Guadalupe Nettel (París), por citar sólo unos casos de una
gran mayoría.
Coincidimos con Ernesto Herrera, cuando reconoce que si bien es cierto que “las
universidades no son el único espectro posible de conocimiento, la disciplina, el rigor y sobre
todo los caudales cognitivos de la academia han contribuido a que la creación se deslice por
senderos más abiertos, como antes no había sucedido” (HERRERA, 2013, p. 1002). La titula-

José Sánchez Carbó


201
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
ción universitaria, aunque no exclusivamente en letras, es común en la mayoría de los cuen-
tistas nacidos a partir de los sesenta. Pero, por otra parte, hay que destacar que otros escrito-
res, siguiendo la senda de Juan José Arreola, paradigma del autodidactismo en México, como
Guillermo Samperio, Agustín Monsreal, Luis Humberto Crosthwaite o Guillermo Fadane-
lli, han publicado obras notables, de hecho, sumamente atractivas, propositivas y originales.
Otras instituciones no escolarizadas, en situación paralela a las facultades de letras, han sido
claves para la literatura y, de modo específico, para el cuento en México. Entre ellas se en-
cuentran el extinto Centro Mexicano de Escritores, la Escuela de Escritores de la SOGEM
(Sociedad General de Escritores de México), la Fundación para las Letras Mexicanas y la Es-
cuela Mexicana de Escritores, todas ellas con sede en la ciudad de México. El Centro Mexica-
no de Escritores, entre 1951 y 2005, becó a escritores de la talla de Juan Rulfo, Juan José Ar-
reola, Rosario Castellanos, Agustín Monsreal o Carlos Fuentes, por citar como ejemplo una
mínima nómina de una extensa lista. La Escuela de Escritores, establecida en 1986 en la
ciudad de México, ha extendido su modelo a otros estados de la república. La Fundación para
las Letras Mexicanas inició actividades en el 2003 y su programa está dirigido a formar crea-
dores menores de 30 años. La Escuela Mexicana de Escritores abrió sus puertas en 2011 y es
dirigida por el cuentista Mario González Suárez. Estas escuelas obtienen recursos económi-
cos de fundaciones filantrópicas para becar a jóvenes escritores o para mantener viable su
proyecto por concepto de inscripciones y colegiaturas de cursos, talleres y diplomados de
creación literaria. Además de acompañar la formación de futuros escritores, estos centros
representan una opción de trabajo para los mismos escritores que, en el caso de los cuentis-
tas, difícilmente pueden vivir de las regalías obtenidas por concepto de la venta de sus libros.
En menor medida, los premios y concursos representan otra opción para obtener ingresos.
El propósito principal de los premios es incentivar la creación pero, como se podrá observar,
también han servido para instituir desde la provincia tradiciones al reconocer la trayectoria
de otros escritores. Entre los numerosos certámenes literarios dedicados al cuento cabe men-
cionar los siguientes: Concurso Latinoamericano de Cuento Edmundo Valdés (1971); Premio Bellas
Artes de Cuento San Luis Potosí (1974); Premio Bellas Artes de Cuento Infantil Juan de la Cabada
(1977); Premio Nacional de Cuento Fantástico y de Ciencia Ficción (1984); Premio Nacional de Cuen-
to Efrén Hernández (1990); Premio FILIJ de Cuento para Niños y Jóvenes (1993); Premio Iberoame-
ricano de Cuento Agustín Monsreal (1998); Premio Nacional de Cuento Beatriz Espejo (2001); Pre-
mio Nacional de Cuento Breve Julio Torri (2001); Premio Nacional de Cuento Juan José Arreola
(2001); Premio Nacional de Cuento Agustín Yáñez (2003); Premio Nacional de Cuento Acapulco en
su tinta (2010); y el Premio Nacional de Cuento Joven Comala (2010).
Dentro de estas condiciones de posibilidad, el Consejo Nacional para la Cultura y
las Artes (CONACULTA), enclave de las instituciones culturales, abona al factor cuantitativo
de las publicaciones y a las formas de remuneración de los escritores, ya que desde su estable-
cimiento en 1989 sentó las bases para materializar una política de fomento a la literatura,

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202
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
principalmente, a través de tres organismos: el Fondo Nacional para la Cultura y las Artes
(programa de becas para jóvenes creadores y creadores “con trayectoria”);el Fondo Editorial
Tierra Adentro(cuyo criterio básico es publicar obra de menores de 35 años); y el Sistema
Nacional de Creadores. Muchos de los cuentistas nacidos a partir de la década de los sesenta
han sido beneficiarios de alguno de estos programas a nivel nacional y estatal.
Un elemento destacable dentro de las condiciones de producción es el trabajo
editorial. La publicación de libros de cuentos ha recaído en universidades públicas, con la
UNAM y la Universidad Veracruzana a la cabeza, en las instituciones públicas, en las edito-
riales independientes y, en menor medida, en las editoriales comerciales, nacionales o tras-
nacionales. Ricardo Chávez Castañeda y Celso Santajuliana, al revisar los sellos editoriales
de los libros de cuentos publicados por la generación de escritores de los sesenta, observaron
que “las grandes y medianas empresas editoriales privadas no están corriendo el riesgo de
llevar a su catálogo el género del cuento […]. El aparato institucional, en contraparte, ha
recogido casi el 60 por ciento de la producción cuentística de la generación” (CHÁVEZ y 6 | Carlos Montemayor. Las
llaves de Urgell. México: Siglo
SANTAJULIANA, 2003, p. 218). XXI, 1971; Juan García Ponce.
Encuentros. México: FCE,
Visto lo anterior, nos permite asentir que la generación de los nacidos en los se- 1972; Augusto Monterroso.
senta, en muchos aspectos, ha experimentado u aprovechado la transformación de los proce- Antología personal. México:
FCE, 1975; Amparo Dávila.
sos del sistema literario: Árboles petrificados. México:
Joaquín Mortiz, 1977;
Emiliano González. Los sueños
El otro motivo por el que se ha hecho muy fuerte esta generación es que ha tenido apoyos, de la bella durmiente. México:
Joaquín Mortiz, 1978.
becas, publicaciones. El 70% de cualquier persona nacida entre el 60 y el 69 ha ganado alguna
7 | Jesús Gardea. Septiembre y
beca o un apoyo […]. Esta generación está cambiando el rostro de la literatura mexicana por los otros días. México: Joaquín
muchas razones: porque están cambiando las ecuaciones de movilidad; ya no respeta jerar- Mortiz, 1980; Sergio Pitol.
Nocturno de Bujara. México:
quías ni reglas. El que muchos hayan optado salirse del medio literario mexicano para pro- Siglo XXI, 1981; Eraclio
Zepeda. Andando el tiempo.
bar fortuna fuera de México es un esbozo de las maneras en que se está escribiendo y pen- México: Martín Casillas,
sando la literatura […]. (CARRERA y KEIZMAN, 2001, p. 76) 1982; Héctor Manjarrez.
No todos los hombres son
románticos. México: Era, 1983;
Margo Glantz. Síndrome de
No obstante esta dinámica, algunos especialistas han coincidido que el cuento de naufragios. México: Joaquín
la década de los noventa experimentó una crisis de representatividad, incluso de calidad. Un Mortiz, 1984; Angelina Muñiz-
Huberman. Huerto cerrado,
parámetro de lo mencionado es el Premio Xavier Villaurrutia, uno de los de mayor prestigio huerto sellado. México: Oasis,
1985; Ernesto de la Peña. Las
en el país, otorgado a la obra publicada sin importar el género literario. Entre 1970 y 2014 estratagemas de Dios. México:
han sido premiados quince libros de cuentos, doce de ellos publicados entre los setenta6 y los Domés, 1988.

ochenta 7. En los noventa sólo dos fueron premiados 8 y uno en lo que va del presente siglo 9. 8 | Daniel Sada. Registro de
causantes. México: Joaquín
Seymour Menton, por su parte, afirma no haber “podido encontrar entre los cuentistas na- Mortiz, 1992; Juan Villoro.
cidos en los años sesenta y setenta nuevas manifestaciones” (MENTON, 2006, p. 11). Chávez La casa pierde. México:
Alfaguara, 1999.
y Santajuliana lamentan la paradójica situación: “tanto cuento […] tantos libros de cuento
9 | Felipe Garrido. Conjuros.
[…] tantos en el oficio narrativo a través del cuento, para resultar en tan poco” (CHÁVEZ y México: Jus, 2011.
SANTAJULIANA, 2003, p. 222).

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El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
Sobre las condiciones de producción, se ha dejado fuera todo el espectro de posi-
bilidades de publicación y divulgación digital generadas a partir del uso de las nuevas tecno-
logías, ya que desde nuestra perspectiva merecen un estudio aparte.

La recepción del cuento en México


Como se ha venido observando, tal abundancia de títulos publicados ha sido posible al
margen de la participación del mercado comercial del libro; según el parecer de algunos
escritores, este desdén de las editoriales comerciales ocasiona que el cuento a muchos lectores
les resulte poco atractivo. Al respecto, Sara Poot Herrera compila algunas opiniones. Carlos
Monsiváis comentaba que el desinterés “frente al cuento ha desanimado y ha convertido al
cuento en una zona donde siguen leyendo (sólo) los lectores especializados” (POOT HERRE-
RA, 2004, p. 428). Para Eduardo Antonio Parra, uno de los cuentistas más destacados de la
última década, “el cuento está en peligro si se piensa que las editoriales dan prioridad a las
novelas o a los libros policíacos, históricos, autobiográficos” (POOT HERRERA, 2004, p.
429). Sergio Pitol, en la misma línea, advierte que el cuento “corre serio peligro ante la acti-
tud de las editoriales que en nuestro idioma lo han desaparecido poco a poco” (POOT HER-
RERA, 2004, p. 429). Fabio Morábito, por su parte, cree que el cuento es el peor tratado de
los géneros (POOT HERRERA, 2004, p. 429).
Estos comentarios y apreciaciones validadas por la propia experiencia de los escri-
tores conducen a deducir que el cuento en México, vilipendiado o menospreciado porque no
satisface los requerimientos mercantiles, ha encontrado en los lectores especializados, es
decir, en los estudiantes de letras, los académicos o los críticos, su nicho más fiel. Tanto es así
que es factible hablar de una tradición sobre el estudio del cuento que se ha constituido a lo
largo de muchas décadas, gracias al esfuerzo y compromiso de un buen número de lectores
comprometidos. Ajenos al desdén comercial, las modas, las coyunturas, las tendencias, estos
lectores han analizado y establecido corpus temáticos y formales para comprender desde
distintos ángulos la rica veta del cuento mexicano. El estudio sistemático iniciado por Luis
Leal, Edmundo Valadés, Jaime Erasto Cortés o Emmanuel Carballo ha prosperado con la
mirada crítica de Russell M. Cluff, Alfredo Pavón y Lauro Zavala, entre otros. Son hasta el
momento muchos los libros monográficos, antologías, capítulos y artículos de revista publi-
cados, por lo que sólo haremos referencia a aquellos trabajos que han apostado por la revi-
sión panorámica y que de alguna manera representan la punta de un iceberg con una hon-
dura apenas sospechada.
Mencionemos primero el Encuentro de Investigadores del Cuento Mexicano, que
se convirtió en un espacio que privilegiaba el encuentro e intercambio de ideas entre críticos
y creadores durante una década y media. Este esfuerzo coordinado por Alfredo Pavón y hos-
pedado en la Universidad Autónoma de Tlaxcala, en quince ediciones, de 1990 a 2004, ade-
más, logró extender la vida de las reflexiones vertidas en ponencias y poéticas del cuento con

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
la colección “Destino Arbitrario”, propuesta editorial compuesta con más de 26 títulos, de
autoría individual y colectiva, la gran mayoría dedicados al cuento.
Entre los libros de esta colección, el Panorama crítico-bibliográfico del cuento mexica-
no (1950-1995) de Russell M. Cluff, se ha convertido en una ineludible obra de consulta para
todo aquel interesado en el estudio del cuento mexicano contemporáneo. Este exhaustivo
compendio tiene la virtud de registrar la mayoría de los volúmenes de autor y colectivos
publicados en el lapso indicado en el título; asimismo incluye una sección dedicada a la bi-
blio-hemerografía indirecta de cada uno de los escritores y sus obras. El periodo revisado por
Cluff contempla más de mil 500 volúmenes “que, a su vez, implican más de 10000 cuentos
individuales” (CLUFF, 1997, p. 18). Así, mientras que en 1970 se publicaron 14 libros de cuen-
tos, para 1994 consigna que fueron 54. En resumen, la “década de los 50 rindió un total de
201 libros de cuentos; la de los 60, 248; la de los 70, 251; la de los 80, 580” (CLUFF, 1997, p. 51).
Más allá del invaluable recuento, el reto de analizar los libros de cuentos publica-
dos en un periodo, como es de 1950 a 2003, podría ser posible conjuntando no sólo el esfuer-
zo sino las bibliotecas personales de un equipo de especialistas. Este reto lo asumió y concre-
tó Alfredo Pavón, hace una década, al convocar a un colectivo de académicos y escritores
para conformar Cuento muerto no anda (2004), libro estructurado por capítulos dedicados a
analizar las publicaciones por cuatrienios, de 1950 a 1981, y trienios, de 1982 a 2002; así como
por un capítulo sobre las antologías del cuento mexicano y cinco textos sobre las estéticas del
cuento según escritores como Mauricio Molina, Ana Clavel, René Avilés Fabila y Federico
Patán. Recientemente, el mismo Alfredo Pavón publicó Historia crítica del cuento mexicano del
siglo XX (2013), que en dos tomos compila treintaiún ensayos publicados anteriormente en
“revistas y volúmenes colectivos de escaso tiraje y difícil acceso” pero que “aglutinados, ofre-
cen una vista sistemática y plural” del cuento mexicano (PAVÓN, 2013: p 12). Con lo anterior,
“se tiene ya un sugerente mapa del género breve a partir del cual las nuevas generaciones de
investigadores pueden confirmar, corregir y ampliar las aseveraciones precedentes y formu-
lar nuevas cartografías, siguiendo, como sus antecesores lo hiciesen en su momento, los
dictados de los creadores por venir en el siglo XXI” (PAVÓN, 2013, p. 8).

El cuento en lenguas indígenas


En México el repertorio metropolitano hegemónico ha forjado tanto una sólida tradición, a
través de varias generaciones de escritores, como un sistema literario diverso que se descen-
tralizó y fortaleció, sobre todo, a partir de los setenta. Este mismo sistema metropolitano,
esta ciudad letrada, durante siglos representó a los indígenas y el mundo indígena para lla-
mar la atención sobre las condiciones de marginación en la que vivían, pero al mitificarlos o
victimizarlos cancelaba simultáneamente, en algunos casos, la posibilidad de la autorrepre-
sentación o la de constituirse como sujetos. Estas corrientes, predominantes a lo largo de
varios siglos, han sido reconocidas como literatura indianista e indigenista. La primera, de

José Sánchez Carbó


205
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
espíritu romántico, idealiza al indígena, pinta sólo sus aspectos externos hasta estilizarlo, “se
refiere a la época precolombina y al periodo de dominación española y exalta el esplendor de
las culturas prehispánicas y la bondad de los misioneros”. La narrativa indigenista, por su
parte, tiende a la objetividad y a la denuncia, “muestra al indio con sus cualidades y defectos
[…], alude a las miserables condiciones de vida [y] destaca la pobreza en que han vivido los
nativos no sólo durante la Conquista y la Colonia, sino después de la revolución” (TORRES,
1997, p. 57).
En contraste, el sistema literario en lenguas indígenas actualmente es incipiente.
Afectado por carencias históricas, hoy en día es evidente que sus etapas de codificación e
institucionalización están superpuestas, ya que mientras este sistema consolida y fija reper-
torios, ya sea elaborando gramáticas, diccionarios y alfabetos, rescatando la literatura tradi-
cional o proponiendo nuevas formas expresivas, también participa para delinear la defini-
ción, los alcances y los propósitos que deben perseguir las instituciones encargadas de la
formación, la difusión o el análisis de sus textos literarios.
Si la alfabetización, las gramáticas, los alfabetos y los diccionarios son esenciales
para el florecimiento de la literatura en lenguas específicas, ya que abren “la posibilidad real
de que se empiece a escribir en esa lengua” (MONTEMAYOR, 2001, p. 35), lo mismo sucede
con la formación de escritores. Sobre este punto, es notable que a diferencia del sistema lite-
rario metropolitano, el “proceso de formación de los escritores indígenas contemporáneos
no se presenta en las universidades ni es parte de un proyecto indigenista” (REGINO, 1993,
p. 119). Otra consecuencia de tal situación es que el número de lectores para esta literatura
sea ínfimo. De ahí que Carlos Montemayor, durante muchos coordinador de talleres litera-
rios en distintas comunidades indígenas, editor de antologías y especialista en el tema, con-
sidere que “desde la perspectiva indígena no hay una clara demarcación entre lo que es un
cuento literario y la información médica, religiosa o histórica de una tradición comunitaria.
Es decir, no siempre es posible hablar de un relato de creación, ya que toda fabulación es una
información tradicional y, por lo tanto, de valor histórico y social, esto es, no ficticio” (MON-
TEMAYOR, 2001, p. 46).
Una década clave para la literatura escrita en lenguas indígenas fue la de los
ochenta, ya que“comenzó a darse en México un proceso cultural relevante: el surgimiento
de escritores en varias lenguas indígenas. La aparición simultánea, aunque no coordinada en
sus inicios, de estos escritores en prácticamente todos los rumbos del país fue resultado de la
evolución de las organizaciones indígenas mismas y de las acciones educativas provocada en
México por las diferentes y a veces contradictorias políticas del lenguaje” (MONTEMAYOR,
2001, p 29). Este incremento en la actividad literaria coincide con los movimientos indígenas
de reivindicación que se extendieron en muchas poblaciones de América Latina, entre otros
factores, por la crisis del modelo de Estado, la urbanización, la globalización, la crisis de iden-
tidades y la “re-identificación étnica” (QUIJANO, 2007, pp. 317-322).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
En los ochenta se sentaron las bases para que en las siguientes décadas se realiza-
ran, por ejemplo, el Primer Encuentro de Escritores Indígenas (1990); se constituyera la Aso-
ciación de Escritores en Lenguas Indígenas (1993), que representa a más de 25 lenguas indíge-
nas; o se fundara la Casa del Escritor en Lenguas Indígenas (1996). Asimismo se empezaron
a otorgar becas a escritores indígenas a través del Fondo Nacional para la Cultura y las Artes
(1992) y se convocó a premios como el Nezahualcóyotl de Literatura en Lenguas Indígenas
(1994), el Continental Canto de América de Literatura en Lenguas Indígenas (1998), y el de
Literaturas Indígenas de América (2013), otorgado a la trayectoria de los escritores y que ha
sido entregado al narrador Javier Castellanos y al poeta Esteban Ríos, en sus dos ediciones.
En la misma dirección, las editoriales institucionales como la UNAM, la Direc-
ción de Culturas Populares, el Instituto Nacional Indigenista, la Secretaría de Educación
Pública y los gobiernos de los estadoscomenzaron a atender la literatura en lenguas indíge-
nas con ediciones bilingües. En el ámbito comercial, una notable excepción: la editorial
Diana creó la Colección Letras Indígenas Contemporáneas. Por otra parte, varias antologías
han reunido la leyenda y el mito con el cuento tradicional y moderno. 10 10 | Cuentos y relatos
indígenas. México: UNAM:
Existe un número amplio de escritores que ha publicado la mayoría de las veces 1989; Julieta Campos. El
lujo del Sol y bajo el signo
más de un libro de cuentos, tales como Macario Matus, Domingo Dzul Poot, Jacinto Arias, de Bolom. México: FCE/
Martín Gómez Ramírez, Dolores Batista, Irene DzulChablé, Roberta EkChablé, Andrés Tec Gobierno de Tabasco,
1988; Carlos Montemayor
Chi, Gabriel Pacheco, María Roselia Jiménez Pérez, Diego Méndez Guzmán, Enrique Pérez (sel.). Los escritores
indígenas actuales. México:
López, Armando Sánchez Gómez, Isaías Hernández Isidro, Vicente Canché Canul, Vicente CONACULTA/ Tierra Adentro,
Canché Móo, Jorge Echevarría Lope, María Luisa Góngora Pacheco o Miguel MayMay (PA- 1992; Cuentos purépechas
(Juchariuandanstskuecha).
VÓN, 2013, pp. 131-132).Una característica de muchos de estos narradores es que“trabajan México: Diana, 1994;
Narrativa náhuatl
materiales tradicionales y muy pocos proponen relatos de ficción, quizás porque los temas contemporánea. México:
tradicionales son muy amplios y aún ejercen un poderoso sentimiento de compromiso cul- Diana, 1995; Antología de
cuentos indígenas de Guerrero.
tural” (MONTEMAYOR, 2001, p. 47). México: CONACULTA, 2007.

La histórica exclusión o la forzada integración a proyectos del Estado relativos a


la identidad nacional, han repercutido negativamente en la literatura escrita en lenguas in-
dígenas. El escritor Natalio Hernández plantea las tareas pendientes para este sistema litera-
rio: rescatar la literatura tradicional, oral y escrita, valiéndose del uso de las nuevas tecnolo-
gías de la comunicación; crear talleres de apreciación literaria con hablantes de lenguas indí-
genas así como talleres de creación literaria; organizar encuentros entre escritores en len-
guas indígenas; “apoyar la edición, impresión y difusión nacional e internacional, tanto de
la literatura tradicional como de la nueva, cuando responda a criterios de calidad universal
de una manera digna y de cara al interior de la etnia”; aprovechar espacios educativos y me-
dios de comunicación para la difusión y “establecer un sistema de becas para apoyar la for-
mación de escritores en lenguas indígenas” (HERNÁNDEZ, 1993, p. 115).
El cuento escrito en lenguas indígenas enfrenta problemas, desafíos y circunstan-
cias, que le son ajenas a la literatura escrita en español. Si bien ha tenido un avance signifi-

José Sánchez Carbó


207
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
cativo en un plazo no mayor de treinta años, es un sistema literario que está por consolidar-
se y todavía carece, en muchas lenguas, de códigos de valoración, por lo que es frecuente que
importe los de otros sistemas. Además, los escritores tienen que atender “un doble proceso:
uno nacional, étnico; otro personal, de compromiso con su historia de sangre y opresión,
con su cultura, con sus lenguas indígenas que describen con mayor frescura y naturalidad
nuestro territorio” (MONTEMAYOR, 2001, p. 27), un estatuto que genera conflictos pero
también respuestas originales.

Conclusiones
La investigación del cuento mexicano reciente realizada a través del concepto de sistema
literario y de la identificación de sus etapas (codificación, institucionalización y mercantilización)
nos permitió explicar el incremento tanto de la producción como de la diversificación de las
propuestas. Asimismo, ante este escenario, la clasificación y agrupación de las mismas se
complejizó: a partir de los setenta, sobre todo, los críticos coinciden en la dificultad de delimitar
estilos, grupos o generaciones para el estudio del cuento. Así, se observó que el repertorio y
otros elementos del sistema literario tienden a modificarse de forma recíproca.
El cuento en México ha sido un género literario practicado por la mayoría de los
escritores, ya sea porque en los talleres literarios es frecuente recurrir a él para desarrollar
las técnicas literarias o porque muchos narradores inician su carrera escribiendo cuentos
para después pasar a la novela. Dentro del sistema literario metropolitano, el cuento ocupa
un lugar privilegiado en el catálogo editorial de las universidades, pese a ser poco atractivo
comercialmente. Esta condición le ha permitido ganarse un prestigio, gracias a plumas
talentosas, que ha traspasado las fronteras nacionales.
La producción e impulso del cuento están estrechamente relacionados con la
consolidación del sistema literario. Si bien, por un lado, la descentralización contribuyó a
dinamizar la actividad literaria en otras entidades del país, fuera del centro, también es claro
que los centros urbanos todavía concentran los elementos y recursos del sistema literario.
Por otro lado, el cuento escrito en lenguas indígenas apenas está por constituirse porque ha
carecido de las condiciones y los apoyos necesarios.
En este sentido, otro ámbito de estudio que debería considerarse, concerniente al
sistema literario, es el del cuento infantil en relación con la producción, el consumo, la recep-
ción y la comercialización.
Otro elemento para la diversidad de la producción también ha ido de la mano de
la multiplicidad de los medios para su difusión y su estudio. Al respecto, en futuros estudios,
sería pertinente investigar la repercusión y el papel que han jugado las innovaciones tecno-
lógicas. A partir de la década de los noventa, el proceso de edición se simplificó con el uso de
los medios electrónicos favoreciendo la apertura de una notable cantidad de editoriales in-
dependientes, la comercialización de textos digitales, la generación de nuevas formas de

Cerrados nº 38
208
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
narrativa breve (twiteratura) o la difusión de revistas dedicadas a la promoción y el estudio
del cuento desde estos soportes.
Ante esta panorámica, se detecta la creciente salud del cuento en México, que va
incidiendo en el campo y el sistema literario con las recientes formas de comercialización
para darles acceso a los nuevos lectores.

Anexo. Lista de autores mencionados y sus obras


Augusto Monterroso. La oveja negra y demás fábulas. México: Joaquín Mortiz, 1969; Animales
y hombres. San José Costa Rica: EDUCA, 1971; Movimiento perpetuo. México: Joaquín Mortiz,
1972; La letra e. México: ERA, 1987; Sinfonía concluida y otros cuentos. Caracas: Monte Ávila,
1994; Pájaros de Hispanoamérica. México: Alfaguara, 2002.
Juan García Ponce. Encuentros. México: FCE, 1972; Figuraciones. México: FCE, 1982; Cuentos
completos. Barcelona: Seix Barral, 1997; Obras Reunidas I. Cuentos. México: FCE, 2003.
Juan Vicente Melo. El agua cae en otra fuente. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1985; Cuentos
completos. Xalapa: Instituto Veracruzana de Cultura, 1997.
Salvador Elizondo. El retrato de Zoe y otras mentiras. México: Joaquín Mortiz, 1969; El Grafó-
grafo. México: Joaquín Mortiz, 1972; Camera lucida. México: Joaquín Mortiz, 1983.
José de la Colina. El mayor nacimiento del mundo y sus alrededores. México: Penélope/FONA-
PAS, 1982; La tumba india. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1984; Tren de historias. México:
Aldus, 1998; De algún tiempo a esta parte. Relatos reunidos. México: Era, 2014.
José Emilio Pacheco. El principio del placer. México: Joaquín Mortiz, 1973.
Sergio Pitol. Del encuentro nupcial. Barcelona: Tusquets, 1970; Nocturno de Bujara. México:
Siglo XXI, 1981; reeditado como Vals de Mefisto. Barcelona: Anagrama, 1984; El asedio del fuego.
México: UNAM, 1984; Todos los cuentos. México: Alfaguara, 1998; Los mejores cuentos. Barcelo-
na: Anagrama, 2005.
Eraclio Zepeda. Asalto nocturno. México: Joaquín Mortiz, 1975.
René Avilés Fabila. La lluvia no mata a las flores, Joaquín Mortiz, 1970; La desaparición de
Hollywood (y otras sugerencias para principiar un libro). La Habana: Casa de las Américas, 1972;
Nueva utopía y Los guerrilleros. México: Ediciones El Caballito, 1973; Los oficios perdidos. Méxi-
co: UNAM, 1983; Los fantasmas y yo. La Habana: Casa de las Américas, 1985; Los animales pro-
digiosos. México: INBA/Armella, Caballo Verde, 1990; El bosque de los prodigios. México: Patria,
2007.
José Agustín. No hay censura. México: Joaquín Mortiz, 1988; No pases esta puerta. México:
Joaquín Mortiz, 1992; Cuentos completos (1968-2002). México: Joaquín Mortiz, 2002.
Parménides García Saldaña. El rey criollo. México: Diógenes, 1971.
Héctor Manjarrez. Acto propiciatorio. México: Joaquín Mortiz, 1970; No todos los hombres son
románticos. México: ERA, 1983; Ya casi no tengo rostro. México: ERA, 1996; Anoche dormí en la

José Sánchez Carbó


209
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
montaña. México: Era, 2013.
Federico Patán. Nena, me llamo Walter. México: FCE, 1986; En esta casa. México: FCE, 1987; El
paseo y otros acontecimientos. México: CONACULTA, 1992; La piel lejana. México: CONACUL-
TA, El Guardagujas, 1998.
Agustín Monsreal. Los ángeles enfermos. México: Joaquín Mortiz, 1979; La banda de los enanos
calvos. México: SEP, 1987; Pájaros de la misma sombra. México: Océano, 1987; Lugares en el abis-
mo. México: García y Valadés, 1993; Diccionario de juguetería. México: Aldus, 1996; Las terrazas
del purgatorio. México: Plaza &Janés, 1998.
Felipe Garrido. Con canto no aprendido. México: FCE, 1978; La urna y otras historias de amor.
Xalapa: Universidad Veracruzana, 1984; Garabatos en el agua. México: Grijalbo, 1985; La musa
y el garabato. México: Universidad de Guadalajara/FCE, 1992; Conjuros. México: Jus, 2011.
Bruno Estañol. FataMorgana. México: Joaquín Mortiz, 1989; Ni el reino de otro mundo. Méxi-
co: Joaquín Mortiz/Conaculta/INBA, 1991; La esposa de Martín Butchel. México: UNAM, 1997;
Bella dama nocturna sin piedad. México: FCE, 2003; Passiflora Incarnata. México: Cal y Arena,
2004.
Hernán Lara Zavala. De Zitilchén. México: Joaquín Mortiz, 1981; El mismo cielo. México: Joa-
quín Mortiz, 1987; Después del amor y otros cuentos. México: Joaquín Mortiz, 1994; Muñecas
rotas. México: El Ermitaño, Minimalia, 2002; El guante negro y otros cuentos. México: Alfagua-
ra, 2010.
Carlos Montemayor. Las llaves de Urgell. México: Siglo XXI, 1971; El alba y otros cuentos. Méxi-
co: Premiá, 1986; Operativo en el trópico o el árbol de la vida de Stephen Mariner. México: Aldus,
1994; Obras reunidas III. Narrativa breve. México: FCE, 2014.
Guillermo Samperio. Cuando el tacto toma la palabra. México: Instituto Politécnico Nacio-
nal, 1974; Fuera del ring. México: INBA, 1974; Miedo ambiente. La Habana: Casa de las Améri-
cas, 1977; Lenin en el fútbol. México: Grijalbo, 1978; Gente de la ciudad. México: FCE, 1986; Humo
en sus ojos. México: Lectorum, Marea Alta, 2000; La Gioconda en bicicleta. México: Océano, El
Día Siguiente, 2001; Cuentos reunidos. México: Alfaguara, 2006.
Francisco Hinojosa. Informe negro. México: FCE, 1987; Cuentos héticos. México: Joaquín Mor-
tiz, 1996; Un tipo de cuidado. México: Tusquets, 2000; La verdadera historia de Nelson Ives. Mé-
xico: Tusquets, 2002.
Fabio Morábito. Gerardo y la cama. México: Limusa, 1986; La lenta furia. México: Vuelta, 1989;
La vida ordenada. México: Tusquets, 2000; También Berlín se olvida. México: Tusquets, Andan-
zas, 2004; Grieta de fatiga. México: Tusquets, 2006.
Emiliano Pérez Cruz. Tres de ajo. México: Oasis, Los Libros del Fakir, 1983; Un gato loco en la
oscuridad. Antología personal. México: Colibrí, 2002.
Juan Villoro. El mariscal de campo. México: La Máquina de Escribir, 1978; La noche navegable.
México: Joaquín Mortiz, 1980; Albercas. México: Joaquín Mortiz, 1985; Tiempo transcurrido.
Crónicas imaginarias. México: FCE, 1986; La alcoba dormida. Caracas: Monte Ávila Editores,

Cerrados nº 38
210
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
1992; La casa pierde. México: Alfaguara, 1998; Los culpables. México: Almadía, 2013.
Enrique Serna. Amores de segunda mano. México: Cal y Arena, 1994; El orgasmógrafo. México:
Plaza &Janés, 2001; La ternura caníbal. Madrid: Páginas de espuma, 2013.
Guillermo Fadanelli. El día en que la vea la voy a matar. México: Grijalbo, 1992; Terlenka (doce
relatos para después del apocalipsis). México: Moho, 1995; Barracuda. México: Moho, 1997; Más
alemán que Hitler. México: Cal y Arena, 2001; Mariana constrictor. Oaxaca: Almadía, 2011.
Mario González Suárez. La materia del insomnio. México: DIFOCUR, 1991; Nostalgia de la luz.
México: Universidad Autónoma Metropolitana, 1996; El libro de las pasiones. México: DIFO-
CUR/Tusquets, 1999; El libro de las pasiones, FCE, 2013.
Mauricio Montiel Figueiras. Donde la piel es un tibio silencio. México: DIFOCUR, 1992; Pági-
nas para una siesta húmeda. México: CONACULTA/Tierra Adentro, 1992; Insomnios del otro
lado. México: Joaquín Mortiz, 1994; La penumbra inconveniente. Barcelona: El Acantilado,
2001; La piel insomne. México: Norma, 2002.
Álvaro Enrigue. Virtudes capitales. México: Joaquín Mortiz, 1998; Hipotermia. Barcelona:
Anagrama, 2005.
Alberto Chimal. Gente del mundo. México: CONACULTA/ Tierra Adentro, 1998; Estos son los
días. México: ERA/Conaculta, 2004; El viajero del tiempo. México: Monterrey, Posdata, 2011;
El último explorador. México: FCE, 2012.
Antonio Ortuño. El jardín japonés. Madrid: Páginas de Espuma, 2007; La señora rojo. México:
Páginas de Espuma, 2010.
Elena Garro. Andamos huyendo, Lola. México: Joaquín Mortiz, 1980.
Rosario Castellanos. Álbum de familia. México: Joaquín Mortiz, 1971; La muerte del tigre y
otros cuentos. México: Punto de Lectura, 2002
Inés Arredondo. Río subterráneo. México: Joaquín Mortiz, 1979; Los espejos. México: Joaquín
Mortiz, 1988; Cuentos completos. México: FCE, 2013.
Amparo Dávila. Árboles petrificados. México: Joaquín Mortiz, 1977; Cuentos reunidos. México:
FCE, 2009.
Beatriz Espejo. Muros de azogue. México: Diógenes, 1979; El cantar del pecador. México: Siglo
XXI, 1993; Alta costura. México: Tusquets, 1997; Cómo mataron a mi abuelo el español. México:
ISSSTE, 1999; Cuentos reunidos. México: FCE, 2004; Marilyn en la cama y otros cuentos. México:
Nueva Imagen, 2004.
Silvia Molina. Lides de estaño. México: Universidad Autónoma Metropolitana, 1984; Dicen
que me case yo. México: Cal y Arena, 1989; Un hombre cerca. México: Cal y Arena, 1992; Cruzar
la sombra. Cuentos reunidos. México: Cal y Arena, 2012.
Ethel Krauze. Intermedio para mujeres. México: Océano, 1982; El lunes te amaré. México: Océa-
no, 1987; Relámpagos. México: CONACULTA, 1995; El secreto de la infidelidad. México: Alfagua-
ra, 2000; El instante supremo. México: Alfaguara, 2002.
Ana García Bergua. El imaginador. México: Era, 1996; La confianza en los extraños. México:

José Sánchez Carbó


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co: Joaquín Mortiz, 1980; Luces del mundo. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1986; Difícil de
atrapar. México: Joaquín Mortiz, 1995; Reunión de cuentos. Antología. México: FCE, 1999.
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bir, no quiero. Toluca: Ayuntamiento de Toluca, 1993; Estrella de la calle sexta. México: Tus-
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José Sánchez Carbó


215
El cuento mexicano reciente en el sistema literario (1970-2014) las contradicciones de una prática masiva
Seção 2
Malinche: uma aproximação
que distancia

Malinche: an approximation
that distance

Maria Luana dos Santos


Possui graduação pela Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
e mestrado pela Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD), na área de
Literatura e Práticas Culturais, Dourados/
MS. Bolsista FUNDECT/CAPES.

mluanads22@bol.com.br

Alexandra Santos Pinheiro


Possui pós-doutorado pela Universidad
de Jaén (Espanha) e faz parte do quadro
permanente de professores da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD), atuando
na graduação e pós-graduação da área de
Letras. Dourados/MS.

alexandrasantospinheiro@yahoo.com.br
Resumo Abstract
Tentando entender a estruturação do “Novo Trying to understand the structure of the "New
Mundo”, analisamos a obra Malinche (2006), de World", analyzed the work Malinche (2006),
Laura Esquivel. Apropriamo-nos do texto em Laura Esquivel. Appropriated us the text in
questão como evidenciador de um processo de question as disclosing a process of resistance,
resistência, característico de nações que já characteristic of countries that have occupied the
ocuparam o duro espaço de colônias europeias. hard space of European colonies. In addition to
Ademais de compreendermos mais a fundo nosso understand more deeply our corpus we realize
corpus percebemos que ele não se constitui como that it is not as such if we fail to consider your
tal se deixarmos de considerar o seu contexto de production environment, Mexican at first, but
produção, mexicano a princípio, mas, mainly Latin American. We also seek to
principalmente, latino-americano. Buscamos, demonstrate how is the development of a 'new
ainda, demonstrar como se dá a elaboração de order' socio-historical and ideological in Latin
uma ‘nova ordem’ sócio-histórica e ideológica na America.
América Latina.
Keywords: Resistance; Malinche; New order.
Palavras-chave: Resistência; Malinche; Nova ordem.
Apenas um começo

Um corpo imóvel se impõe limites, um corpo em movimento se expande, torna-se


parte do todo, mas é necessário caminhar com leveza, sem carga pesada. Caminhar
nos enche de energia e nos transforma, para poder olhar o segredo das coisas.
Caminhar nos converte em borboletas que se alçam e olham o que o mundo é na
verdade. O que a vida é. (...) mas, se você quiser, pode ficar sentada e se
transformar em pedra.
(Laura Esquivel, 2007)

Del mar los vieron llegar/mis hermanos emplumados/eran los hombres barbados/de
la profecía esperada/Se oyó la voz del monarca/de que el Dios había llegado/y les
abrimos la puerta/por temor a lo ignorado.
(Amparo Ochoa & Gabino Palomares, 1975)

A
obra Malinche, da escritora mexicana Laura Esquivel, é propulsora para a análise a ser
realizada. Evidenciando com cores diferentes o período de colonização da América
pelos espanhóis, sobretudo a parte central, o texto em questão nos permite visualizar
a relação entre aproximação e distanciamento das civilizações, bem como sua
interferência na configuração sócio-histórica, ideológica e cultural dessa porção de terra.
Para tanto, desenvolvemos a ideia da resistência como parte constituinte de um ce-
nário que enfoca o contato entre partes com posicionamentos distintos frente ao mundo. Aden-
tramos, também, em um contexto de investigação pós-colonial, adotando a língua como força
motriz para o desencadeamento de um processo de resistência para os dois extremos do contato
colonial; Em seguida, discutimos o potencial da produção literária como ferramenta para ins-
tauração de uma ‘nova ordem’ social na América Latina, levando em conta como essa e o Méxi-
co configuraram as suas comunidades imaginadas.
Em toda essa trajetória, permanecemos nos limites máximos de textos possíveis e,
tentando compreender o nosso objeto, perscrutamos a sociedade mexicana, o que nos levou
direto a nossa formação latino-americana. Caminhamos de manso para olharmos de perto o
segredo das coisas, visualizamos alguns certamente, aqueles que foram destacados para revelar
todo o seu potencial transformador, mas outros ficaram perdidos.

Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro


221
Malinche: uma aproximação que distancia
Se nossa história é caminhar, então, caminhemos nessa estrada para que não nos
transformemos em pedras, sem ação ou força transformadora.

Uma célula de resistência


Durante o desenvolvimento da humanidade passamos por algumas palavras chaves que, em
sua grande maioria, tratavam de processos de subordinação e davam conta de padrões carac-
terísticos de um dado período. Talvez a mais “elevada” tenha sido “colonização”, ainda na
Idade Média, que exprimia o domínio dos reinos e, também, da Igreja Católica – enquanto
1 | Cf. AGAMBEM, Giorgio. instituição mais política que religiosa. Na contemporaneidade1, ousamos afirmar que vive-
O que é o contemporâneo?
e outros ensaios. Chapecó: mos na era da resistência.
Editora Argos, 2009. No Dicionário Houaiss Eletrônico (2007, S/P) entre as muitas acepções para a pala-
vra ‘resistência’ nos deparamos com estas: “s.f. ato ou efeito de resistir. 1. Qualidade de um
corpo que reage contra a ação de outro corpo. 3. Capacidade de suportar a fadiga, a fome, o
esforço. 4. Recusa de submissão à vontade de outrem; oposição, reação.” Superficialmente,
aceitamos tratar-se da ação de se opor a forças que agem sobre/contra nossos princípios ou
estrutura física, ou seja, implica uma relação de causa e consequência.
Se pensarmos nesses termos, precisamos considerar que uma prática de resistên-
cia necessita de um contexto em que haja contiguidade entre partes., Mas uma contiguidade
que, muito longe de ser pacífica ou violenta, envolva debate/embate, sobretudo de posturas/
posicionamentos. Tomemos a ideia de resistência como mote fundador da análise que ora se
empreende do texto de Laura Esquivel em estudo., Sssim sendo, partimos do pressuposto
inicial que, para o desenvolvimento de uma prática de resistência na obra, temos como fato
a existência de partes em diálogo.
Apresentando uma história centradano convívio entre culturas distintas,
Malinche (2006) apresenta-se dentro dos preceitos da resistência, que retira a América Latina
da condição de pedra inerte para colocá-la em constante caminhar, ação transformadora.
Torna-se evidente, no enredo, a aproximação, ou melhor, o ponto em que se tocam os
padrões culturais espanhóis e das diversas etnias que compunham o “Novo Mundo” – no
caso específico da produção de Esquivel, a porção que corresponderia ao atual México.
Nessa conjectura, buscaremos aproximações e distanciamentos no texto que re-
velem reações potenciais mexicanas quanto a ações que, se não dilapidavam toda uma cul-
tura, ao menos sujeitavam ao seu controle grande parcela social. Logo de partida temos
consciência de que são as aproximações as responsáveis pela evidenciação das distâncias exis-
tentes entre as partes e, consequentemente, do desencadeamento de oposições de ambos os
lados aos padrões do “outro”.
De um modo ou de outro estamos discutindo a construção da comunidade me-
xicana, bem como os primeiros passos para a invenção do “Novo Mundo”. Significativa,
nesse ponto, é a passagem que segue:

Cerrados nº 38
222
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Quando a cerimônia terminou, Malinalli se aproximou de Aguilar, o frade, para
perguntar-lhe qual era o significado de Marina, o nome que haviam acabado de lhe
dar. O frade respondeu que Marina era a que vinha do mar.
— Só isso? – perguntou Malinalli.
O frade respondeu com um simples:
— Sim.
A desilusão se delineou em seus olhos. Ela esperava que o nome que lhe estavam
conferindo os enviados de Quetzalcoatl tivesse um significado maior. Não eram sim-
ples mortais que desconheciam por completo o profundo significado do universo, mas
iniciados, como ela supunha. Seu nome devia significar algo importante, (ESQUI-
VEL, 2007, p. 48-9).

Após um ritual cristão, que muito diferia dos ritos astecas, Malinche está às vol-
tas com o frade Aguilar para saber o significado de seu “novo” nome. O significado do nome
para os Astecas dizia muito das características dos sujeitose de sua importância para o siste-
ma social do qual eram partícipes. Estamos diante de uma das primeiras relações entre colo-
nizador e colonizado, pois a troca do nome interfere diretamente na constituição da identi-
dade dos sujeitos, promovendo a despersonalização dos atores sociais.
Ademais, percebe-se um embate cultural e uma célula de resistência (mesmo que
de modo não claro ou consciente). O batismo, nos moldes cristãos, não configurava prática
local para as civilizações que estavam passando por um processo de (re)civilização, e a troca
de nome interferia de modo muito incisivo nos padrões identitários existentes. Assim, a
cultura espanhola buscava impor-se sobre a cultura asteca, e, em um curso ascendente de
reação a princípio não consciente, ocorre a negação da “simplicidade” de cultura outra, que
é tomada em relação a sua própria.
Malinche se opõe aos aspectos culturais do outro, quando se nega a aceitar que
seu nome signifique tão pouco, pois nome algum de sua sociedade é levado em tão pouca
conta. É, pois, a partir da aproximação entre aspectos culturais que se visualiza o seu distan-
ciamento, bem como, a invenção de um novo mundo pensado a partir de outros padrões,
tendo em vista que são as características espanholas as que são priorizadas. Podemos afir-
mar, então, que só se inventa ou fabula tomando-se como ponto de partida nossos próprios
esquemas imaginativos ou do grupo ao qual pertencemos.
Ao tomarmos imbricamentos e distanciamentos provenientes do contato entre
uma ou mais civilizações, tornadas factíveis pela obra Malinche (2006), colocamos em relevo
todo um percurso que envolve as relações entre colonizador e colonizado. Dito de outra
maneira, adentramos em contexto de investigação predominantemente pós-colonial. Isso
significa mencionar que não destacamos aspectos pós-passagem do colonizador em territó-
rios colonizados, mas o momento mesmo da interação.

Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro


223
Malinche: uma aproximação que distancia
(...) podemos definir a literatura pós-colonial como toda a literatura, inserida no
contexto de cultura, ‘afetada pelo processo imperial, desde o primeiro momento da
colonização européia até o presente’ (ASHCROFT et al. 1991, p. 2). A crítica pós-co-
lonial, portanto, abrange a cultura e a literatura, ocupando-se de perscrutá-las du-
rante e após a dominação imperial europeia, de modo a desnudar seus efeitos sobre
as literaturas contemporâneas. De fato, todas as literaturas oriundas das ex-colônias
europeias, sejam elas portuguesas, espanholas, inglesas ou francesas, surgiram da
experiência da colonização e reivindicaram-se perante a tensão com o poder colonial e
diante das diferenças com os pressupostos do centro imperial, (BONICCI, 2009, p. 267).

Ashcroft et al (1999, p. 3-4) situa a literatura pós-colonial como um modo de pro-


dução que trata da forte influência exercida pelo colonialismo na vida/cotidiano de mais da
metade da população mundial, sendo que, como uma arte, ela seria capaz de evidenciar essa
influência de forma mais contundente. Ou seja, preocupa-se com o durante e após da colo-
nização, tomando como base a produção literária. O termo pós-colonial seria utilizado para
cobrir a produção literário-cultural de toda a extensão que ficou sob o poder colonial euro-
peu. Os autores tomaram como corpus para o desenvolvimento de seu pensamento a litera-
tura em língua inglesa produzida por ex-colônias britânicas, mas o fato é que há várias ou-
tras literaturas, em tais condições, disseminadas pelo mundo.
Nesse contexto a língua ocupa papel fundamental para o tratamento de uma li-
teratura que seja pós-colonial, pois é por meio da subversão do código escrito dominado pelo
conquistador que o colonizado lança as bases para a (re)invenção de seu mundo já inventado,
ou melhor, para a revelação de seu contexto de produção, sobretudo, de sua existência.

Para mim a crioulização não é crioulismo: é, por exemplo, engendrar uma linguagem
que teça as poéticas, talvez opostas, da língua crioula e da língua francesa. O que eu
chamo de poética? O contador de histórias crioulo se serve de procedimentos que não
pertencem ao espírito da língua francesa, que lhe são mesmo opostos: os procedimentos
da repetição, reduplicação, insistência, circularidade. As práticas da listagem (...)
que esboço em muitos de meus textos, essas listas que tentam esgotar o real não numa
fórmula, mas numa acumulação, a acumulação precisamente como procedimento
retórico, tudo isso me parece muito mais importante do ponto de vista da definição
de uma linguagem nova, mas muito menos visível, (GLISSANT apud FIGUEIREDO,
1998, p. 88).

É o que percebemos no parecer de Glissant quanto à utilização de uma língua


que é, em sua síntese, híbrida, fugindo da língua pura do colonizador, signo de sua domina-
ção e, consequentemente, da subjugação do outro. Essa proposição evidencia a tentativa de

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224
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
reação, oposição às forças possuídas pelo colonizador, e que seguiram durante muito tempo
interferindo nas sociedades que estiveram baixo o jugo do “exploit” 2 europeu. 2 | Verificar distinção entre
Na América de ‘língua espanhola’, a apropriação do idioma do explorador pelo ‘exploire’ e ‘exploit’ na língua
inglesa.
colonizado pode ser percebida na larga produção de Augusto Roa Bastos, que focaliza em seu
3 | Clara consciência é
texto castelhano o guarani, a língua do indígena subjugado. Em Malinche, não é perceptível a utilizada quando se aceita o
utilização do idioma indígena local em meio ao espanhol, o que seria descrito por Ashcroft et princípio da verossimilhança
como inerente às produções
al (idem, p. 6) em termos de abrrogação resultando em lacunas metonímicas. No entanto, é literárias.

perceptível a clara consciência3, por parte do colonizador europeu, do quanto a falta de domínio
do idioma local pode ser comprometedor para o desenvolvimento de sua sanha “desbravadora”.

Ao longo de sua vida, à medida que amadurecia, comprovava que não havia melhor
arma do que um bom discurso. No entanto, agora se sentia vulnerável e inútil, desarmado.
Como poderia utilizar sua melhor e mais efetiva arma diante daqueles nativos que
falavam outras línguas?(...) Ele sabia que não lhe bastariam os cavalos, a artilharia e os
arcabuzes para conseguir o domínio daquelas terras. (...) Os canhões e a cavalaria
surtiam efeito entre a barbárie, mas num contexto civilizado o ideal era obter alianças,
negociar, prometer, convencer, e tudo isso só seria conseguido pelo diálogo, do qual se via
privado desde o início./ Nesse novo mundo recém-descoberto Cortés sabia ter nas mãos a
oportunidade de sua vida; no entanto, sentia-se de mãos atadas. Não podia negociar;
necessitava com urgência alguma maneira de dominar a língua dos nativos. De outra
forma – com sinais, por exemplo – seria impossível conseguir seus objetivos. Sem o
domínio da linguagem, de pouco serviriam as armas, (ESQUIVEL, 2007, p. 41).

O não domínio linguístico constituiu grande empecilho para os conquistadores.
A aproximação dos códigos orais acabou por demonstrar o quanto de distanciamento existia na
relação entre os opostos, o que acabava por figurar como uma célula de resistência à penetração
de outros padrões culturais em domínios nunca antes explorados. A constatação de Cortés, de que
sem o conhecimento das mais distintas línguas da civilização asteca seria impossível levar a cabo
seus objetivos, desperta mais uma vez a sede por conquista – dúbia se aprofundarmos a reflexão,
pois a conquista da língua é convertida em conquista do outro.
Essa relação dialógica entre colonizador e colonizado, pautada na conquista, ademais
de enfrentar a resistência imposta pela língua, enquanto código oral e veículo de comunicação,
enfrenta a resistência consciente de Malinche, a intérprete de Cortés, que fere a língua, órgão
responsável pela manifestação das mensagens. Quando a ‘língua’ de Cortés segue esse caminho,
ela está consciente das consequências que busca causar.

(...) A língua os unia e a língua os separava [Cortés e Malinche]. A língua era a cul-
pada de tudo. Malinalli destruíra o império de Montezuma com sua língua. Graças

Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro


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Malinche: uma aproximação que distancia
às suas palavras, Cortés fizera aliados que asseguraram sua conquista. Decidiu en-
tão castigar o instrumento que criara esse universo. (...) Como resultado, a expedição
das Hibueras foi um fracasso. A derrota de Cortés mergulhava no silêncio. A reali-
dade os devolvia vencidos, (Ibidem, p. 165-6).

Por meio da autopunição, Malinche acaba por punir o seu arremedo de espelho,
o que nos leva a discussão inicial e empreendida até o momento, isto é, a resistência. Não nos
termos da abrrogação enquanto apropriação da linguagem do outro, hibridizando-a com a
sua, para causar a lacuna metonímica ou o vazio de compreensão por parte do outro que a
si se opõe. A resistência nesse caso é consolidada pela consciência de que privando o coloni-
zador da linguagem de domínio se estará imputando-o ao fracasso. É o que se constata na
derrota mergulhada em silêncio, pois é na não possibilidade de comunicação provocada por
Malinche que a derrota de Cortés se alicerça.
A ausência de um código que seja compreensível é convertida em reação ao tra-
balho de dominação. Concordamos, então, tratar-se de uma resistência que ultrapassa os li-
mites do controle individual exercido por Cortés sobre Malinche, para ganhar status mais
abrangente. Quando se nega em ser a ‘língua’ de Cortés numa determinada batalha, Malin-
che está negando todo o aparato colonizador. Em síntese, está resistindo a tudo que Cortés
representa para a civilização asteca. A obra, por sua vez, acaba evidenciando um processo de
resistência sócio-histórica e cultural em relação aos padrões europeus.

Malinche: por uma ‘nova ordem’


As produções literárias possuem condições reais para a transformação das sociedades das
quais são metonímias constitutivas? Quiçá essa afirmação possa ser verdadeira, mas, até que
ponto, textos que durante grande parte do tempo foram tomados como atividades para o
deleite, podem ser transformados em meios que justifiquem os fins sociais? Consideramos
que determinadas obras podem e, até mesmo, devem ser tomadas como veículos estrutura-
dores de uma ‘nova ordem’, seja social, histórica, cultural ou ideológica.
Na contemporaneidade, os fazeres científicos que carregam a carga de um pensamento
pós-colonial, feminista oude outros conglomerados que centram suas forças em áreas sociais
marginalizadas, periféricas ou das sombras – para exemplificar a larga nomenclatura que pontos
esquecidos da estrutura social recebem – atuam de modo determinante na estruturação de outros
padrões sociais, na ressemantisação dos esquemas ideológicos de uma formação social.
Malinche encontra-se na ordem dessas produções compelidas por faculdades
transformadoras. Uma obra marcada pela reconfiguração do pensamento latino-americano,
bem como ressignificação da nação mexicana enquanto comunidade imaginada. Afinal,
como postula Anderson (2008, p. 12), não há comunidades que sejam verdadeiras, pois são
todas imaginadas fora do signo da falsidade ou autenticidade, conforme o “estilo” seguido

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
pelo ‘nós’ coletivo dentro de sua diversidade. Se assim ocorre, a obra em foco é capaz de in-
terferir na apreensão coletiva do México quando subverte a estrutura social, desenvolvendo
“quimeras” acerca dessa nação inventada/imaginada.
Com um projeto estético-literário e também crítico-social voltado para uma co-
munidade que se constrói a partir da resistência ao outro (sem deixar de considerar os aspec-
tos inerentes a um contato hibridizante, nos pontos que há de positivo no termo), Malinche
possibilita a percepção do México no momento do diálogo entre dominador e dominado,
com o propósito de transportar esse período para o que é apresentado no livro por a ‘nova
raça’ e que remete à sociedade mexicana contemporânea.
Quando deparamos com o excerto: “Eles não pertencem nem ao meu mundo
nem ao dos espanhóis. São a mistura de todos os sangues: o ibérico, o africano, o romano, o
godo, o sangue nativo e o sangue do oriente” (ESQUIVEL, 2007, p. 189), temos a certeza de
que há um projeto maior que a simples retratação de um encontro, marcado por processos
de resistência mútua ao que o outro representa. Isso porque essas frases são construídas não
de modo negativo, mas pelo contrário, de modo a exaltar a constituição de um ‘mundo
novo’, híbrido por excelência.
Chegar nesse ponto requer discernimento para entendermos que não refletimos
mais sobre um cenário cultural específico do México, mas do mundo que se torna plural.
“Como o futuro depende do esgotamento de paradigmas, ele depende da pertença a duas ou
mais culturas (...), [o que gera] uma mudança na maneira de percebermos a realidade, de nos
vermos, e de nos comportarmos” (ANZALDÚA apud FIGUEIREDO, 2010, p. 96). Logo, a
humanidade de modo geral adentra cada vez mais no espaço em que se constituem sujeitos
híbridos, assim como culturas e sociedades, também híbridas. Isto é, sujeitos e formações
sociais que não pertencem a nenhum e a todos os cantos ao mesmo tempo.
Então, afirmar que México possui uma constituição híbrida é não falsear a realidade,
mas é, principalmente, admitir, pela representação trazida pela obra, que esta nação configura
uma verdade momentaneamente plural. O ‘nós’ coletivo coaduna com um pertencimento
múltiplo, envolvendo todos os seus implicantes, sejam eles benéficos ou maléficos. O que significa
dizer que o multicultural é uma expressão marcadamente maniqueísta. Claramente, a comunidade
imaginada mexicana possui o sentimento de pertença ligado a um cenário cultural híbrido.
Quando aderimos à concepção de que uma obra literária torna possível apreen-
der comunidades imaginadas, que pertenceriam mais a uma empreitada de investigação
sociológica ou antropológica, estamos admitindo – no caso do texto de Esquivel, que possui
forte apelação para a interdisciplinaridade com a história – tratar dita produção seguindo os
matizes ficcionais em sua ampla relação com a historiografia.

[Pois] Ambos os discursos unem-se numa função comum: tanto a historiografia como
a ficção são uma alegoria da vida, para além de seus tons e modalidades, são vitali-

Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro


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Malinche: uma aproximação que distancia
zações e revitalizações, instâncias e formas de novas existências, fragmentos de vida
produzidos numa luta agônica contra o esquecimento, numa luta dramática contra a
morte, (PIZARRO, 2006, p. 43).

Assim, a associação realizada entre narrativas ficcionais e historiográficas transi-


ta no espaço singular da tentativa de desenvolvimento de um discurso que desse conta, não
apenas da literatura, mas de aspectos culturais da América Latina, o que permitiria conhecê-
-la mais a fundo, ou, ao menos visualiza a partir de outra perspectiva.

O interesse que os espanhóis, e Cortés em especial, mostravam pelo ouro não lhe pa-
recia correto. Se fossem deuses de verdade, se preocupariam com a terra, com a se-
meadura, em assegurar o alimento dos homens, e não era assim. Em nenhum mo-
mento os vira interessados no milharal, só em comer, (ESQUIVEL, 2007, p.75).

Aos olhos de Malinche, personagem que não ocupava posição de destaque na


sociedade que se estruturava, os colonizadores longe de serem desbravadores audazes, com-
paráveis a deuses, pareciam suspeitos demais, comportando-se como aproveitadores. Visão
muito distinta da apresentada pelos manuais oficiais que dão conta do “descobrimento” da
América. Retomando o passado histórico, mas com uma ressignificação da ‘realidade’ colo-
cando em destaque outras possibilidades de leitura, podemos afirmar que a produção em
questão, atua como veículo para a constituição de uma ‘nova ordem’, sobretudo, sócio-ideo-
lógica. Afinal, interfere nos padrões ideológicos de determinada formação social, modifican-
do concepções ético-morais primeiras ou, de outra forma, interferindo na comunidade ima-
ginada mexicana.
Outro ponto que remete a constituição de uma ‘nova ordem’, e que ao mesmo
tempo retorna a nossa questão inicial – a resistência –, passa pela apropriação da língua do
colonizador. É por meio de uma língua que não é sua, mas que é tomada de assalto ao colo-
nizador, que o colonizado irá subverter a ordem convencional dos contextos apregoados e
instaurar uma ‘nova ordem’ mais condizente com o cenário ‘real’ dos fatos acontecidos,
tanto em termos ficcionais quanto em relação aos contextos de produção.

De repente a tarde adquiriu um tom cinzento e a luz solar foi devorada pela umidade
do céu. Malinalli tinha os olhos (...) como se (...) quisessem ocultar imagens ao cérebro
e apagar toda forma e todo reflexo de uma conquista e um mundo ilusório, enganoso.
Pronunciando a palavra “Cortés” com voz grave, disse:
— Cortés, (...) não me peça, nesse tom, que deponha. Já não sou sua língua, senhor
Malinche.
Havia muito ninguém o chamava de Malinche. (...) Cuspiu fogo pelos olhos e com

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
fúria contida se dirigiu a ela:
— Quem pensa que é para me falar assim?
Jaramillo, que conhecia a mulher como ninguém, viu em seus olhos um arrebatamento
de raiva e percebeu que ela ia vomitar sobre Cortés todo seu ódio, (Ibidem, p. 183).

É apropriando-se da língua do colonizador que Malinche irá expressar, com todo


rancor, a mágoa e a compreensão quanto ao processo de colonização empreendido por Cor-
tés, que é ao fim e ao cabo, a representação da colonização espanhola. Esse fragmento é a
preparação para que Malinche deixe às claras o que pensa a respeito de Cortés e de toda a
“desgraça” por ele imputada à civilização Asteca. Nesse tom, e tentando apagar todos os re-
flexos de “um mundo ilusório”, a personagem em questão seguirá enumerando as “desgra-
ças” da conquista – a mais representativa atesta a “maldição” dos espelhos negros que rouba-
ram todo o discernimento de seu povo.
Pelo idioma que “não é seu”, a personagem principal irá se rebelar/resistir quanto
a tudo o que é personificado pela pessoa de Cortés. Assim, a língua instaura uma ‘nova or-
dem’ na narrativa, na qual o colonizado deixa de “baixar a cabeça” para o colonizador e as-
sume um discurso diferenciado do em voga para um contexto de exploração. Ao mesmo
tempo, promove a instauração de uma ‘nova ordem’ quando se enfatiza o contexto de pro-
dução de Malinche.
Laura Esquivel utiliza a língua espanhola, a mais marcada possível pelos anos de
evolução em contato com outras línguas, para narrar um texto possível. Não se pode garan-
tir que um diálogo desses possa ter ocorrido entre os dois polos em comunicação. Mas, ousa-
mos dizer que, no modo latente de pensar a sociedade contemporânea/pós-moderna, a auto-
ra ao menos despertaria em seu leitor a reflexão sobre o processo de colonização – descrito,
durante muito tempo, como um benefício para os povos não civilizados, garantido pelas
grandes nações conquistadoras/exploradoras.

Onde a metrópole espera silêncio, há voz; onde a metrópole espera conformismo, há


inquietação. Desta forma, como Bhabha, Santiago também acredita que o intelectual à
margem, ao dominar a língua do opressor, tem um contradiscurso, mais prático e eficaz
uma vez que “É preciso que aprenda primeiro a falar a língua da metrópole para melhor
combatê-la em seguida” (SANTIAGO, 1978, p. 22), (BARZOTTO, 2011, p. 71-2).

Desse modo, apropriar-se de outra língua para desvelar os fatos, tornando-os


acontecimentos, é condição recorrente para nações que já ocuparam, durante muito tempo,
a insígnia de colônia do mundo, ao menos do ocidente. Assim, conhecer a língua da metró-
pole é antes combate e resistência que submissão, é um não se calar e obedecer quando é essa
a atitude que se tem como certa, é rebelar-se quando se esperava águas mansas para aprisioná-las.

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Malinche: uma aproximação que distancia
Em síntese, é desbravar às avessas, conhecer quem somos e não permitir que o outro diga quem somos.
A América Latina tem elaborado um contradiscurso em contexto pós-colonial,
tem instaurado uma ‘nova ordem’. Quando se apropria da língua do colonizador (francês,
espanhol ou português) retira as amarras que unia metrópole e colônia em uma relação
desproporcional, baseado no ‘eu mando’ e ‘você obedece’, respectivamente, instaurando, a
seu modo, uma maneira diferenciada de conceber seu mundo.

No somos lo que fuimos ni hay vuelta atrás. La velocidad del cambio nos obliga a
repensarnos, a re-posicionarnos, a reubicarnos. Eso, la tarea hoy es reubicarnos. Ne-
cesitamos nuevas cartas de marear, nuevas brújulas de navegar en este mundo de
hoy. Encontrar el lugar del intelectual latinoamericano hoy en día implica volver a
encontrar la grieta, la hendidura, el intersticio desde donde hablar. Discurso y poder,
poder y discurso, exigen antes establecer desde dónde hablamos. (…) Decidir desde
donde hablamos implica decidir quiénes somos y sobre todo quienes queremos ser,
(ACHUGAR, 2011, p. 28).

Ao retomar seu passado histórico, seja por meio de textos ficcionais, históricos ou
de quaisquer que sejam as áreas, a América Latina assume o seu direito de dizer quem é e,
quando isso ocorre, não mais reflete a imagem distorcida e inventada para ela. A obra
Malinche figura como um exemplo esclarecedor da “verdadeira” identidade latino-americana,
híbrida por excelência, e com alto poder de resistência a padrões subjugadores. Ou seja, o
texto de Esquivel, em contexto latino-americano, possibilita a instauração de uma ‘nova
ordem’, na qual Latino América se escreve com letras maiúsculas, e os tons do poder europeu
para o controle, tornam-se, a cada dia, mais desbotados.

Um final utópico?
Passamos por alguns pontos que causaram certo incômodo até chegarmos a uma conclusão
ressoante em toda a América Latina, isto é, estamos em franco processo de transformação
sócio-histórica e ideológica. Observamos que a prática da resistência, seja em objeto ficcional
ou na vida, configura uma das principais características de nossos tempos, afinal, é por meio
dela que empreendemos uma caminhada distinta daquela que para nós foi inventada.
Malinche proporciona reflexão não apenas acerca do processo de colonização me-
xicano, mas também, sobre nossa própria constituição que começou a se consolidar desde o
primeiro contato com o colonizador. Situação que ao mesmo tempo em que permitia a
aproximação de diferentes elementos culturais, garantia que o distanciamento revelasse as
sinuosidades de uma trajetória conflitante, de resistência.
Tomar algumas passagens do texto literário facultou conhecer não apenas a
produção de Laura Esquivel, mas, primordialmente, matizes primeiros da constituição

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
identitária e social mexicana. Isso nos leva a pensar no potencial que um texto possui de
transformar o cenário no qual ele está inserido, realidade que pode ou não ser possível.
Acreditar que uma obra – ou várias seguindo a mesma corrente – seja capaz de
mudar o mundo pode soar como fantasia de nefelibatas. Mesmo que a literatura não pos-
suísse toda essa força, ao menos a sua característica de representação das sociedades em seus
mais variados matizes, seria uma certeza. Por isso, seguimos crendo no potencial transfor-
mador da literatura e que ela é capaz de dar movimento a pedras inertes.

Referências Bibliográficas
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REIS, Lívia (orgs.). América Latina: integração e interlocução. Rio de Janeiro: 7Letras; Santiago, Chile:
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BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialistas. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.).
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ESQUIVEL, Laura. Malinche. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007

Maria Luana dos Santos | Alexandra Santos Pinheiro


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Malinche: uma aproximação que distancia
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Cerrados nº 38
232
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Escrita, Encenação e Performance
em Rosario Ferré

Writing, Staging and Performance


in Rosario Ferré

Stelamaris Coser
Professora do Programa de
Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), em
Vitória (ES), Brasil.

stelacoser@hotmail.com
Resumo Abstract
Rodopio, salto, fuga; máscara, risco, desejo Spinning, leaping, fleeing; the mask, the risk,
transgressor. Imagens e personagens do conto “La transgressive desire. Images and characters in
bella durmiente”(“Sleeping Beauty”), de Rosario Rosario Ferré’s short-story “La bella
Ferré, evocam dilemas porto-riquenhos/latinos durmiente”(“Sleeping Beauty”) evoke Puerto
em questões entrelaçadas de gênero, raça e classe. Rican/Latin American dilemmas in interrelated
Como apoio teórico a esta análise, o pensamento questions of gender, race, and class. Postcolonial and
pós-colonial e feminista associa-se a abordagens feminist critical thinking, associated with
sobre performance e epistolaridade. Rodopiante e approaches to performance and epistolarity,
tensa, mas também lírica e melodiosa, a narrativa provides theoretical support for this analysis.
performática de Ferré encena o feminino no Whirling and tense, but also lyrical and musical,
entrecruzar de culturas e histórias plurais, Ferré’s performative narrative stages the feminine
frequentemente dolorosas e dissonantes.. in a crisscrossing of plural cultures and histories,
often painful and dissonant.
Palavras-chave: “La bella durmiente”, narrativa
performática, corpo, feminino. Keywords: “Sleeping Beauty”, performative
narrative, body, feminine.
bailabas al aire frío
alrededor de las estrellas
bailabas los bordes anaranjados de las campanas
que se abrían cuando tú eras niña sobre la superfície del sol
entonces alguien dijo: una señora bien educada no baila.

R. Ferré, “La bailarina”

O
conto “La bela durmiente”, da escritora porto-riquenha Rosario Ferré, destaca-se no
âmbito da escrita ficcional de autoria feminina produzida nas Américas,
particularmente da narrativa em primeira pessoa com uso de cartas e/ou diários,
formato em que se instala um jogo entre a obra e o autor, o político e o subjetivo, o
histórico e o familiar. Tomando o conceito de performance como centralizador da discussão no
presente trabalho, observa-se que a narrativa performática de Ferré encena o feminino enquanto
dramatiza o entrecruzar de culturas e histórias plurais, frequentemente dolorosas e dissonantes.
A historiografia literária pode comprovar a importância central que o gênero
epistolar de caráter íntimo exerce na literatura. Ele compõe textos do século XVIII que,
desde a Europa, são considerados fundadores do romance moderno, como Pamela (1740) e
Clarissa (1746-47), de Samuel Richardson; Julia ou A nova Heloísa (1761), de Rousseau; e Os
Sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe. Há relatos epistolares que precedem e
anunciam o romance, como, por exemplo, A journal of the plague year (1722), de Daniel Defoe,
obra de ficção que se apresenta como diário real de um morador de Londres sobrevivente à
peste de 1665. Em terreno interdisciplinar e já no espaço público, a epistolaridade caracteriza
também os registros iniciais das nações americanas, as cartas e relatos feitos por navegadores
e colonizadores europeus. Como diz Elena Palmero González (2006, p. 25),

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Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
Lo que hasta hoy se considera los primeros textos de la literatura hispanoamericana,
las crónicas de la conquista, eran textos que, adoptando la forma de diarios o cartas
de relaciones, nombraban el mundo que se gestaba ante los ojos del imperio, para
decirlo con la elocuente metáfora de Marie Louise Pratt (1999).

Falar de literatura, escrita, narração e interlocução é referir-se também a voz,


tempos e espaços, desejos, relações de poder e estratégias de invenção e transgressão. Foram
homens brancos europeus que formaram as bases da literatura e que representaram a
América e seus habitantes nos textos fundadores do continente. Principalmente a partir da
segunda metade do século XX, porém, a decadência dos centros metropolitanos e os vários
movimentos de libertação atuam sobre o espaço crítico e interpretativo no sentido de
desestabilizar o controle masculino e branco da ‘verdade’ e do discurso, seja ele literário,
político ou histórico. Num cenário em que espaços híbridos desafiam fechamentos e
fronteiras rígidas, por vezes identificado como pós-moderno, a inserção de novos grupos e
indivíduos permite a multiplicação gradual de recortes e narrativas.
Nascida em 1938, Rosario Ferré integrou a chamada “Geração de 1970”, grupo
integrado por jovens escritores de Porto Rico, cujo comprometimento sócio-político
incorporava influências do socialismo cubano, do feminismo e outras tendências, aliadas
aos novos ares do boom latino-americano. Angel Rama e Mario Vargas Llosa foram professores
de Ferré no curso de mestrado na Universidade de Porto Rico, e Julio Cortázar foi tema de
sua tese de doutorado na Universidade de Maryland. Nesse período em que ela se inicia na
literatura, crescem na ilha tensões identitárias agravadas por divisões internas, problemas
sociais, o êxodo crescente de trabalhadores e a influência cada vez maior dos Estados Unidos
na língua e na cultura porto-riquenha (PALMER-LÓPEZ, 2002, p. 157-159).
Os textos de Ferré problematizam o conceito de lugar relacionado à ideia de
nação, suas heranças coloniais e estruturas de poder, utilizando Porto Rico como “espaço de
encenação” privilegiado. Pela relação que sugere entre o real empírico, a construção literária
e a cena ou palco, tomo emprestada a expressão utilizada em “Quem reivindica alteridade?”
1 | No original inglês (p. 201), (1994, p. 198), tradução brasileira do artigo de Gayatri Spivak “Who Claims Alterity?” (1989).1
Spivak escreve “space of
agency” e refere-se à Índia. A ilha parece refletir e ao mesmo tempo contradizer aspectos hegemônicos dos textos
fundadores, lugar impuro que recusa a ilusão do autêntico e a reivindicação de identidades
homogêneas e únicas. Particularmente marcada por trânsitos e hibridações, Porto Rico é
‘nação’ em crise prolongada sem nunca ter sido um país soberano. Estrategicamente situada
no centro do arquipélago no Mar do Caribe, sob domínio espanhol de 1508 a 1898 (quando
o controle passou aos Estados Unidos), é marcada desde o começo da colonização pela mescla
interracial e a violência envolvendo espanhóis, índios Arauaques (também chamados Taínos)
e escravos africanos. Ao longo dos séculos, recebeu influências culturais também vindas de
Cuba e da República Dominicana, do Haiti e do Caribe anglófono (FLORES, 1992).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Resguardadas suas especificidades, as heranças coloniais na ilha espelham condições que
identificam e entrelaçam diversos pontos do continente americano.
Um texto especial dentro da série de contos, romances, poemas e ensaios produzidos
por Rosario Ferré, “La bella durmiente” [“A bela adormecida”] foi publicado em 1976 na
primeira coletânea de contos da escritora, intitulada Papeles de Pandora. Sua escrita experimental
aguarda que os leitores deem sentido aos fragmentos sem cronologia e comentários emitidos
em cartas ou artigos de jornal que falam de uma protagonista silenciosa: a jovem María de los
Angeles, bailarina clássica e filha do prefeito de San Juan, Don Fabiano Fernández. Ela catalisa
as atenções do leitor e dos demais personagens, muito embora se expresse apenas através de
breves fluxos de pensamento delirante, de mensagens cifradas e da dança. Combinando
elementos de literatura, balé clássico, circo e de música erudita e popular de forma intensamente
visual e dramática, a narrativa focaliza o espetáculo, descreve performances e estimula leituras
nessa linha interpretativa. Parece aplicar-se ao conto a definição de “narrativa performática”
que Graciela Ravetti atribui a “tipos específicos de textos escritos nos quais certos traços
literários compartilham a natureza da performance” (RAVETTI, 2002, p. 47). Sobretudo a
partir dos anos 1960, o termo performance vem adquirindo significados múltiplos, às vezes
conflitantes, em abordagens teóricas de diferentes tendências e campos disciplinares híbridos.
Além do trabalho de Graciella Ravetti, diversos estudos e teses acadêmicas desenvolvidas no
Brasil vêm adotando o conceito de performance em associação a obras literárias, e.g. Klinger
(2006) e Azevedo (2004). Usado por Ravetti (2002, p. 47) “em sentido amplo”, isto é, tanto
como encenação ou atuação no campo literário e artístico, quanto relacionado à esfera política
e social, o termo adquire algumas nuances que vão atuar como balizamento nesta análise da
obra de Rosario Ferré.

Apresentações encenadas no texto


As apresentações encenadas pela protagonista-bailarina María de los Angeles Fernández
distribuem-se nas três partes em que se divide o texto ficcional, que têm como subtítulos
nomes de conhecidos balés românticos europeus. Na parte I, o balé “Copélia” – uma
adaptação do conto “O homem de areia” (1815) de E. T. A. Hoffmann – é apresentado no
teatro da cidade de San Juan para uma plateia rica e ilustre.2 Os personagens principais no 2 | Esse balé estreou em 25
de Maio de 1870 na Ópera
palco são Dr. Copelius (um mágico que fabrica brinquedos), Swanilda (nome derivado de de Paris, com coreografia de
swan, cisne: a moça mais bela da aldeia) e Franz (seu noivo). Recordando o enredo, em rápido Arthur Saint-Léon, libretto de
Saint-Léon e Charles Nuitter,
resumo: Swanilda sente sua felicidade ameaçada por Copélia, a jovem perfeita que encanta e música de Léo Delibes.

Franz e aparece sempre lendo um livro na janela da casa do Dr. Copelius. Enraivecida,
Swanilda invade a casa e destroça o corpo daquela que, na verdade, é apenas uma boneca de
porcelana inventada pelo Dr. Copelius. Swanilda (interpretada por María de los Angeles, no
conto) veste então a roupa da boneca e assume sua não identidade: deita-se em sua caixa e
enrijece o corpo, até que Franz a descubra e a faça reviver, colocando-a para dançar.

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Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
No conto de Ferré, o episódio mais contundente na encenação desse balé ocorre
exatamente na quebra da sequência prevista, quando María começa “a rodopiar loucamente”
pelo palco. Age “como se estivesse improvisando” – criando sua própria performance – até
que, num salto monumental, foge do palco, alça voo para o chão, escancara as portas do
3 | É de responsabilidade da teatro e sai correndo pela rua (FERRÉ, 1991, p. 92).3 O choque provocado na plateia atenua-se
autora a tradução livre para o
português desse e de outros quando ela volta e termina o balé com brilhantismo, segundo o colunista social que depois
trechos oriundos de obras descreve o evento no jornal: “a estrela da noite” retornou ao palco, “dançou maravilhosamente”
publicadas em inglês ou
espanhol. e ganhou aplausos calorosos no final (FERRÉ, 1991, p.92). Para o leitor desconfiado dessa
linguagem hiperbólica, o episódio parece indicar que María de los Angeles é intensamente
envolvida pelo papel e reconhece a si própria como uma boneca tolhida. Sob pressões
impostas em conjunto pela família, a igreja, a escola e o espaço social, que ameaçam sufocar
seu desejo e torná-la marionete sem vida, seu impulso é escapar desse teatro de máscaras.
Inexperiente, jovem e dividida em seu dilema, ela reassume o lugar devido e permitido.
4 | Clássico dançado por “A bela adormecida”, que dá nome à segunda parte e ao conto como um todo,
todas as grandes companhias
do mundo, esse balé estreou retoma com ironia a adaptação do conto de fadas de Charles Perrault pelo famoso balé russo
a 5 de janeiro de 1890 no musicado por Tchaikovsky, encenado agora fora do palco, na ‘vida real’.4 Proibida de dançar
Teatro Maryinsky de São
Petersburgo, na Rússia, após o episódio que escandalizou os pais, a Madre Superiora de sua escola e provavelmente
com música de Peter Ilyich
Tchaikovsky, libreto de Marius toda a alta sociedade de San Juan, María de los Angeles adoece gravemente e entra em coma.
Petipa e Ivan Vsevolojsky, e Um príncipe salvador, Felisberto, surge em fragmentos do seu delírio, com promessas de
coreografia de Marius Petipa.
respeito, carinho e independência. Mas a esperança se dilui na parte III, intitulada “Giselle”,
5 | Estreia do balé em 1840/41
na França; libreto do poeta que tem como referência e pano de fundo o balé romântico sobre a camponesa que,
romântico Théophile Gautier apaixonada por um nobre disfarçado de camponês, morre ao descobrir a mentira.5 Ainda
(inspirado pela história das
Willis contada por Heinrich fora dos palcos e destituída da liberdade de corpo e espírito, só resta a María o casamento
Heine em De l’Allemagne,
1835) e música do compositor arranjado pelos pais. Dividida e frágil, ela reza para que a Mãe divina a proteja, mas se
Adolphe Adam. Na época imagina como Giselle, rodopiante no longo vestido branco e, por fim, descrente do amor,
das festas de colheita das
uvas, a bela camponesa cravando uma adaga no próprio peito.
Giselle, da região da Alsácia,
é vista pelo conde Albrecht. A partir dos contos de fadas e dos balés clássicos, as imagens de mulheres moldadas
Mesmo tendo uma noiva pelo sistema patriarcal entrelaçam-se na história de María de los Angeles. Como autômato,
nobre, ele se apaixona por
Giselle e consegue aproximar- ela se casa em meio à grandiosidade vazia de um show, performance pública orquestrada
se se fazendo passar pelo
lenhador Loys. Quando pela mãe, a orgulhosa primeira-dama da cidade. Os medos da moça, quanto ao noivo
Albrecht é desmascarado, Felisberto, confirmam-se, já que ele segue as ordens de seu pai, Don Fabiano, e é mais um
ela enlouquece e suicida-se
enterrando uma adaga no elo da engrenagem social que a sufoca. Os dois homens misturam-se em sua mente: ao em
coração (cena tão chocante
que foi substituída por um vez de dançar, esperam que ela seja uma empresária da dança; como esposa e mãe, assumem
ataque cardíaco). Desolado que ela vá cuidar do lar e logo tenha um filho, ou melhor, um herdeiro homem para os
com a morte, Albrecht é salvo
pelo espírito da amada, que o negócios do pai. O marido exige sexo sem restrições e a engravida à força, contrariando a
defende da perseguição das
Willis, fantasmas de noivas vontade de María e a promessa que ele antes lhe fizera.
apaixonadas que morreram Em paralelo, lembranças tumultuadas da infância recordam a María de los
antes do dia do casamento e
voltam querendo vingança. Angeles que seu pai havia sido amante de Carmen Merengue, uma trapezista de circo que

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
dançava e equilibrava-se lindamente numa corda de prata. Na época, seguindo costume
vigente no sistema patriarcal-colonial, Don Fabiano deu a Carmen uma casa e tentou moldá-
la aos padrões burgueses. Mas ela preferiu abandoná-lo e continuar pobre e livre, sendo ela
mesma no circo e na dança, apesar da maquiagem pesada do rosto com que se apresentava
ao público.
A cena mais surpreendente e trágica do conto de Ferré ocorre quando María de
los Angeles ultrapassa os limites de gênero e classe, avançando na confluência proibida de
dois mundos. A moça rica e católica toma para si o papel de prostituta e equilibrista.
Escancara o próprio desejo desfigurado e apresenta seu ato de rebeldia final, com a preparação
e encenação da própria morte – não mais imaginária e nem romântica. Renega a formação
pudica eurocêntrica e, para afrontar a quem a oprime, anuncia-se como adúltera e promíscua
em cartas anônimas enviadas ao próprio marido. Ousando explorar o proibido e reivindicar
o direito de escolha, incorpora a amante do pai, Carmem Merengue, veste-se, pinta-se e
comporta-se como prostituta. No momento final, com o corpo nu, os pés equilibram-se e
dançam suavemente sobre uma corda bamba, o rosto coberto com máscara branca e ruge
pesado, os olhos enegrecidos, os cílios falsos, o cabelo vermelho. Mas não está num circo e
não se apresenta para o público: prepara a encenação em um quarto de hotel barato para um
espectador específico, o marido, que representa também o pai. O nome do hotel, Alisios/
Elysium, acrescenta ironia à performance. No Dicionário Houaiss, Elísio é “para os gregos e
romanos, mansão ocupada pelos heróis e pelos justos após a morte”; é termo “relativo a ou
local de prazeres, de felicidades; morada dos heróis e das pessoas virtuosas depois da morte
(o céu dos pagãos)”. A escolha de María de los Angeles aponta sua fragmentação interna, a
força da hierarquia sociocultural nublando a chance de liberdade: “Pensou com alívio que
pela primeira vez ia poder ser ela mesma, ia poder ser bailarina, mesmo que fosse de segunda
ou terceira categoria” (FERRÉ, 2000, p. 186).
Nesse momento, sendo “ela mesma”, María faz uma verdadeira performance,
não é mais a dançarina que desempenha um papel no palco de um teatro. Pois a performance,
nas palavras de Medeiros (2006, p.10), mostra “o corpo humano presente e não representado”.
Assim, o performer, como sublinha Pavis (1999, p. 284), “é aquele que fala e age em seu próprio
nome (enquanto artista e pessoa)” e, diferentemente do ator, “realiza uma encenação de seu
próprio eu”.
Descrita por Rosario Ferré de forma gráfica, a cena performática agride a
sequência erudita e clássica e denuncia o falso equilíbrio da sociedade tradicionalista e
patriarcal. A materialidade do corpo feminino é confrontada na performance que é
verdadeiramente uma “arte corporal”, termo preferido por François Pluchart, já que “o
corpo é o sujeito e o objeto da arte da performance” (MEDEIROS, 2009, p. 22). No conto de
Ferré, o corpo despe-se do vestido branco de princesa e parece deixar-se contaminar pela
sensualidade vermelha e decotada da cigana Carmen, evocada pelo nome e pelas atitudes da

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Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
amante do pai. Na ópera de Bizet, Carmen é uma cigana bela, impetuosa e sedutora, de
6 | Ópera de Georges Bizet, muitos amores, que acaba assassinada pelo amante ciumento.6 O sobrenome Merengue, por
inspirada em novela de
Prosper Merimée, estreou sua vez, evoca os ritmos miscigenados das colônias europeias do Caribe e da América Latina,
em Paris em 1875 e tornou-se ainda mantidos à parte e estigmatizados.
muito popular.
Como se fosse uma manifestação radical da body art [arte corporal], a personagem
María de los Angeles compõe-se de uma colagem de referências e personagens díspares.
Transportada para as páginas literárias, sua performance é chocante e dolorosa, o corpo
imolado fazendo uma acusação radical contra as amarras e hipocrisias sociais. A lei
patriarcal, no entanto, apropria-se de seu ato transgressor, apaga ou destorce os fatos e faz
circular por meio de cartas e jornais a notícia de que María foi enterrada com luxo, em seu
vestido de noiva de grife famosa. Reafirma-se a feminilidade arcaica e compulsória a que as
mulheres são submetidas, confirmada nas palavras de Don Fabiano em carta final à Irmã
Superiora do Colégio do Sagrado Coração de Jesus: no caixão, sua filha “parecia estar
dormindo, representando pela última vez o papel de Bela Adormecida” (FERRÉ, 1976, p.
189; 1991, p. 118).

A escrita de si, do lugar e do tempo.


Como acentua Graciela Ravetti (2002, p. 49), a “sobredeterminação dos discursos” oficiais
inibe a vida cultural e a criação literária de mulheres e de outros grupos marginalizados,
mas os atos performativos paródicos que podem ocorrer na literatura conseguem “assinalar
pontos de fuga do círculo oclusivo da imposição de identidades e, consequentemente, de
comportamentos”. Ainda segundo Ravetti (p. 56), a escrita performática, na qual “os textos
e imagens valem como testemunhas”, pode ilustrar antagonismos e conflitos relacionados a
heranças coloniais e a tempos históricos intensos. Uma característica da narrativa
performática seria a “confluência do pessoal com o geral”, a estreita ligação entre a experiência
do autor e o texto ficcional, de forma que aspectos do privado e do biográfico ali se tornam
públicos. Embora negue a intenção autobiográfica, Rosario Ferré usa a literatura para expor
valores arcaicos de uma elite repressora e buscar espaços de maior hibridez social e cultural,
fazendo lembrar tanto a literatura inovadora da segunda metade do século XX quanto à
atitude de escritores latinos do século XIX estudados por Graciela Ravetti (2002, p. 55), para
quem “a performance do eu na ficção” seria uma forma de reivindicar “novos valores que
outorguem sentido ao presente”.

No ensaio “La cocina de la escritura” (1980), Ferré afirma que escreve para reinventar
a si mesma e ao mundo. Revela o sentimento de profunda agonia que a dominou
após o fim de seu primeiro casamento e impulsionou a criação de histórias como a de
María de los Angeles e de outras mulheres oprimidas (inseridas em seu primeiro
livro, de 1976). El empeño por llegar a ser la esposa perfecta fue quizá lo que me hizo

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
volverme, en determinado momento, contra mí misma; a fuerza de tanto querer ser
como decían que debía ser, había dejado de existir, había renunciado a las obligaciones
privadas de mi alma (FERRÉ, 1980).

A pessoa Rosario Ferré faz parte da mesma elite que a escritora critica e parodia
em suas obras. Nascida na cidade sulista e canavieira de Ponce, com pele clara e em berço
privilegiado, era quase uma princesa de conto de fada: herdeira da aristocracia rural, pelo
lado materno, e da elite industrial e política, pelo lado do pai, Luiz A. Ferré, engenheiro que
governou Porto Rico de 1968 a 1972. Assim como a protagonista de “La bella durmiente”,
Rosario Ferré recebeu o que se considerava a melhor educação para uma menina católica
bem nascida. A partir dos sete anos estudou em colégios de freiras, teve formação de bailarina
clássica e cursou faculdades particulares nos Estados Unidos.
Por meio da performance ficcional, Rosario Ferré manifesta desconforto e
hesitação diante das instituições e convenções e das barreiras de raça, classe e gênero. O
pessoal e familiar imbricam-se na história econômica, social e política de Porto Rico, tema
central nas obras que ficcionalizam a decadência das plantations, sua substituição pela
industrialização e pela burguesia urbana, e o processo cultural decorrente de séculos de
dominação espanhola com o sistema escravista, seguidos da ocupação pelos Estados Unidos
a partir de 1898. O conto “La bella durmiente” aborda o início da década de 1970, período de
transição em que as raízes tradicionais e os hábitos da aristocracia rural mostram-se
infiltrados nas supostas tentativas de modernização. O renomado Colégio do Sagrado
Coração de Jesus continua controlando e zelando pelo comportamento de futuras senhoras,
pronto a alertar as famílias sobre a perdição ameaçadora trazida por modismos e liberdades.
A igreja, a escola, os negócios comerciais, os bancos e o poder político associam-se numa
relação emaranhada em busca do controle social.
Enxertadas no conto, colunas sociais do jornal El Mundo parodiam tanto o
eurocentrismo arraigado quanto o americanismo ‘moderno’ e as relações sociais e políticas
movidas pelo interesse econômico. Termos em inglês e adjetivos hiperbólicos detalham
roupas, jóias e chapéus usados pela alta sociedade para assistir a apresentação do balé
“Copélia”. A decoração dourada do teatro, o ingresso de mil dólares e os nomes de famosos
e estrangeiros (de preferência louros) que ali marcam presença recebem atenção bem maior
do que a arte ou o sentimento que ela poderia inspirar. Do lado de fora, nas periferias
marginalizadas da cidade, o povo desenvolve uma cultura outra, que a própria María de los
Angeles considera atraente, transgressora, mas inferior, refletindo valores hegemônicos que
lhe foram inculcados.

A escrita como performance


Um aspecto constantemente enfatizado em estudos sobre performance é a qualidade mais

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Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
livre e mutante de um tipo de encenação que escapa a padrões rígidos e permanentes. A
forma experimental e fragmentada do conto “La bella durmiente” procura essa liberdade ao
incluir quebras cronológicas e alternar linguagens, tipos de texto, vozes e pontos de vista
variados. Além disso, observa-se uma variação expressiva entre o texto original em espanhol
(1976) e as duas traduções para o inglês (1988 e 1991), e também entre uma tradução e outra,
ambas assinadas pela autora Rosario Ferré com Diana Vélez. É como se o texto fosse uma
performance em andamento, espetáculo inacabado que se recria ao sabor de outra língua e
outro momento. Em espanhol, é mais extenso e contém mais detalhe e erotismo do que nas
versões em inglês; a autora já admitiu que enlouquece com as palavras quando escreve na
língua-mãe, enquanto o inglês a torna mais contida e distanciada, “como se outra pessoa
estivesse escrevendo” (apud NAVARRO, 2008).
Sobre a relação entre autor e obra e as possibilidades da narrativa ficcional, Ana
Cláudia Viegas (2008) argumenta que “a criação de personagens escamoteia a revelação da
intimidade, num exercício de autoficcionalização”, que revela ao mesmo tempo em que
protege o autor e o separa do narrador. Ferré estudou em colégio de freiras e sonhava ser
bailarina; muitas de suas personagens se envolvem com as artes e o balé (como a María no
conto; Isabel, no romance The house on the lagoon/ La casa de La laguna; e a bailarina do poema
citado em epígrafe). “Ao escrever sobre suas personagens, um escritor escreve sempre sobre
si mesmo, ou sobre possíveis vertentes de si mesmo”, diz Ferré, porém, “por meio da
imaginação”, transforma os tons de sua própria experiência autobiográfica “em matéria de
arte” (FERRÉ, 1980).
“La bella durmiente” induz o leitor ao entrelaçar autor/vida e obra/ficção por
meio da estratégia narrativa que brinca com o gênero epistolar, faz uso da primeira pessoa e
de referências concretas a locais, fatos e pessoas que integram tanto a história de Porto Rico
quanto a experiência observada ou vivida pela escritora. A colagem de cartas escritas e
recebidas por personagens diversos – além da transcrição de colunas do jornal El Mundo, os
conselhos para noivas, legendas do álbum de fotos de casamento e o anúncio oficial do
nascimento do filho de María de los Angeles e Felisberto – joga com códigos de escrita e
insere datas (de 1971 a 1973) e assinaturas que conferem ao texto credibilidade e caráter
documental. Por outro lado, os trechos curtos de narração onisciente e, sobretudo, os
fragmentos de monólogo interior que interrompem a sequência, desconstroem qualquer
expectativa de previsibilidade e coerência. O corpo do texto reflete a personagem central ao
7 | No original: “La ira mostrar-se cambiante, confuso e esfacelado.
movió, durante siglos, a No ensaio “La cocina de la escritura”, anteriormente citado, Ferré afirma a
innumerables mujeres a
escribir sus textos. […] La inserção de sua obra literária na tradição feminista que denuncia e interfere no real. Se a
ironía consiste precisamente
en el arte de disimular la escrita de muitas mulheres foi, durante séculos, impulsionada pela ira, a autora alia-se a
ira de atemperar el acero Virginia Woolf ao transformar revolta em ironia para “regular o fio cortante da linguagem”
lingüístico para lograr con él
un discurso más efectivo”. e “conseguir um discurso de maior efeito” (FERRÉ, 1980).7 Em diversas partes do conto aqui

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
abordado, a ironia volta-se para a alta sociedade, cujo luxo e supérfluos perpetuam a divisão
de classes e raças, encobrem o tédio e o desamor e justificam a inutilidade feminina e o
controle masculino. A crítica irônica e violenta embutida em sua ficção chocou a cultura
tradicionalista da ilha de Porto Rico na década de 70 (COSER, 2009). Ansiando por expressar-
se artisticamente em liberdade, Ferré sofreu pressões conflitantes e censuras tradicionalistas
pelo tipo de literatura que havia ousado publicar. Como atesta a escritora portorriquenha
Ana Lydia Vega (1994), a coletânea Papeles de Pandora “foi considerada um escândalo. A filha
de um ex-governador, uma mulher rica, estava desafiando as convenções de sua classe”.
Utilizada como performance, a narrativa de Rosario Ferré assume uma estratégia de
transgressão que, como explica Judith Butler (1997, p.147), é um ato de poder que se afasta do
comportamento autorizado, acenando com a possibilidade de alterar paradigmas e “derrubar
códigos de legitimidade longamente estabelecidos”.
Uma carta anônima aberta aos leitores inicia o conto “La bella durmiente” e atua
como aviso também para nós que iniciamos a leitura: “Estimado Don Felisberto: Se
sorprenderá al recibir mi carta” (FERRÉ, 1976, p. 149). Segue-se uma segunda carta anônima,
alertando o destinatário sobre a traição da esposa, fornecendo detalhes e insistindo na ação
urgente. Embora de forma velada e sutil, o desfecho da performance anuncia-se desde a
abertura do texto, paródia tragicômica dos papéis de gênero e dos valores prezados pela alta
sociedade porto-riquenha, que se repetem pelo continente (COSER, 2012).
O romance The house on the lagoon, publicado por Rosario Ferré em 1995 e logo
indicado nos Estados Unidos para o prestigiado National Book Award, expande as referências
sociopolíticas e oferece alguns contrapontos de interesse. Pela primeira vez a escritora
polemiza ao publicar um livro originalmente na língua inglesa, o que aproxima ainda mais
o ‘real’ e o ficcional no campo das questões culturais relacionadas ao bilinguismo, ao trânsito
aberto entre ilha e continente, e aos desgastantes conflitos de um século em torno do status
político de Porto Rico. Ferré insere na trama locais, personagens e fatos históricos como
guerras, plebiscitos e rebeliões, dramatizando a conflitante situação política de Porto Rico,
que desde 1952 vive sob a condição de Estado Livre Associado ou Commonwealth, econômica
e politicamente dependente do governo federal dos Estados Unidos.
Em termos de epistolaridade e performance, o romance mostra o desdobramento
da escrita de um manuscrito feita pela personagem Isabel. Trata-se de um relato
memorialístico? Ficção? História? Sua natureza e finalidade são examinadas ao longo do
texto que se encontra em andamento e pretende um dia ser publicado. Seria este, afinal, o
livro que o leitor tem nas mãos? A narrativa em primeira pessoa é várias vezes interrompida
por relatos oniscientes sobre a descoberta que o marido Quintín faz das folhas manuscritas
escondidas por Isabel e sua crescente obsessão com a liberdade e ousadia da mulher. O
manuscrito o amedronta e fascina ao mesmo tempo, e ele acaba interferindo e escrevendo
nas margens e por trás das páginas, tentando ‘corrigir’ as percepções registradas por Isabel.

Stelamaris Coser
243
Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
Na linha de Foucault, Diana Klinger (2006, p. 25) aborda a “escrita de si” como
discurso que “não é apenas um registro do eu”, mas que “constitui o próprio sujeito, performa
a noção de indivíduo”, o que descreve bem a estratégia narrativa no romance de Ferré. O
marido Quintín, sentindo-se cada vez mais confrontado pela persistência da mulher que
finge ignorar sua interferência e continua a escrever, vai tentar destruir todo o relato, toda
a obra construída por ela. Segundo ele, Isabel não tem o direito de publicar uma
representação distorcida e falsa dele mesmo e de toda a família; ele insiste na veracidade de
sua própria versão da história. Associando referências a locais, fatos e figuras históricas da
geografia política, econômica e cultural do país com a reflexão metaficcional, o romance
projeta um quadro amplificado (se comparado ao conto “La bella durmiente”, por exemplo)
sobre as divisões internas e a continuada desigualdade e injustiça nas relações entre classes
e raças no país, enquanto expõe versões conflitantes da ‘verdade’ nas lutas por voz, poder
e cidadania.
Se pensarmos no conto de Edgar Allan Poe “A queda da Casa de Usher”, o
manuscrito de Isabel pode ser lido como a história de uma família poderosa que se desintegra
junto com a casa que lhe serve de metáfora. Mas, se relacionado a Faulkner ou a García
Márquez, mostra a construção não só de conflitos e relações interpessoais e familiares, mas
também de uma cidade, região, país e hemisfério, em seus contrastes e seus dilemas políticos
8 | Algumas pontes e sociais.8
intertextuais no romance de
Ferré são Sherazade em as
Mil e uma noites e o conto Acordes finais
de Poe citado no texto.
O nome do personagem Os balés dançados ou evocados ao longo do conto “La bella durmiente” não são apresentações
Quintín Mendizabal lembra
o Quentin Compson de estanques, limitadas a um palco ou um evento. Embora, em si mesma, a dança clássica não
William Faulkner; a narrativa se encaixe no conceito de performance – algo à margem do mercado de consumo, não
construída sobre a produção
de um manuscrito que dá reprodutível, ímpar, efêmero, circunstancial, “linguagem sem gramática” (MEDEIROS,
origem ao próprio livro que
lemos evoca García Márquez 2009, p. 23) –, ela assume formas mutantes e contaminadas no texto de Rosario Ferré,
e Cem anos de solidão. quando movimentos e imagens se entrelaçam ao corpo e mente da protagonista e à história
Roberto González Echevarría
(2010) também aponta a narrada. Os balés escolhidos por Ferré para compor a narrativa ilustram e problematizam
relação dos contos de Ferré
com obras de escritores do papéis de gênero e classe e mantêm a questão de raça semi-oculta em sua invisibilidade
Cone Sul como Felisberto periférica, na plateia que assiste aos balés e na história social, política e literária. Assim, as
Hernández, Julio Cortázar
e, especialmente, paixões e transgressões, a ambiguidade cultural e as heranças coloniais de Porto Rico
Horacio Quiroga.
encontram eco na referência intertextual aos contos de fadas e à música e literatura que
compõem o balé clássico, legados por vezes infiltrados e desestabilizados pela rua, o circo, a
prostituta, o descontrole e a loucura.
O romance The house on the lagoon aponta o controle e o abuso masculino sobre
Isabel e várias mulheres de gerações precedentes, mas várias delas são fortes o bastante para

Cerrados nº 38
244
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
não sucumbir. Isabel, como Sherazade, consegue sobreviver contando pouco a pouco sua
história, que pode ser lida também como metáfora da formação e do desenvolvimento de
Porto Rico. No conto “La bella durmiente”, no entanto, o autoritarismo e a repressão
exercidos pela cultura dominante provam-se demasiados para a vulnerável María. Isolada
em seu castelo e formatada para submeter-se às normas, a moça perde-se na frustração e
refugia-se no delírio, desprovida da dança, da palavra efetiva ou de relações significativas que
a possam salvar. Incapaz de articular a revolta contra um papel social paralisante, a
personagem muda e sem movimentos torna-se quase outra boneca manipulada como
Copélia, uma Giselle enganada, uma “bela adormecida”. O tema faz lembrar o argumento
de Walter Mignolo (2005, p. 9) de que os “legados coloniais são um espaço de acumulação de
fúria que não se articula teoricamente, porque a teoria esteve sempre do lado civilizador dos
legados coloniais, nunca do lado da força dividida entre civilização e barbárie.”.
Segundo Ferré (1980), a literatura tem sido o espaço possível para a canalização
da raiva acumulada pela mulher ao longo dos tempos, ira em grande parte direcionada
contra a mudez a que foi subjugada. Nelly Richard (2002, p. 139) argumenta que, embora o
desejo de dissolver a autoridade paterna não seja exclusivamente feminino, “as mulheres
confrontam a alternativa norma/infração sob condições de desequilíbrio e assimetria tais
que as predispõem especialmente aos excessos”. Em seu silêncio e na performance final
inspirada por Carmen Merengue, María de los Angeles surge como a incorporação radical da
normatividade e simetria sendo sacudidas e fraturadas pelo excesso longamente represado.
O momento único, chocante, que mistura e confunde, confirma o argumento de François
Pluchart de que a performance “é uma ferida permanente no buraco do pensamento
binário" (apud MEDEIROS, 2000).
Ao parodiar o amor romântico e as conveniências sociais presentes em narrativas
clássicas europeias e nas “ficções de fundação” americanas (termo de Doris Sommer,
1991/2004), o conto de Ferré acusa e desestabiliza o precário equilíbrio político e social
apoiado na dominação de cor, gênero e classe, estrutura que caracteriza a América Latina de
um modo geral. Embora a cidade de San Juan ali descrita se assemelhe a tantas outras, o
Porto Rico desenhado por Ferré é um território-nação ambivalente, fronteiriço e
particularmente controverso situada no centro do continente americano, num poroso lugar
‘entre’ que inclui e confunde sul e norte, ameríndios, europeus e africanos, anglos e
hispânicos, erudição e criatividade popular, tradição e modernidade.
Enquanto problematiza o registro da ‘verdade’ via manuscritos pessoais e
documentos oficiais, a escrita de Rosario Ferré dialoga com a tradição literária das Américas
ao alinhavar cruzamentos intertextuais e inserir a questão de gênero, classe e raça no debate
sobre autoria, memória e poder.

Stelamaris Coser
245
Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
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Stelamaris Coser
249
Escrita, Encenação e Performance em Rosario Ferré
Memórias do trauma e as
relações de gênero em Ha vinte
anos, luz, de Elsa Osorio

Memories of trauma and gender


relationships in Ha vinte anos, luz |
My name is light, by Elsa Osorio

Algemira de Macedo Mendes


Doutorado Letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS), Brasil
(2006) professora adjunta da
Universidade Estadual do Piauí.

algemacedo@ig.com.br

Regilane Maceno Barbosa


Mestranda no Curso de Mestrado
Acadêmico em Letras da
Universidade Estadual do Piauí
(Uespi).

regilane.maceno@hotmail.com
Resumo Abstract
As questões relativas à construção de identidade e Issues concerning the construction of identity and
gênero têm sido abordadas no campo dos estudos gender have been addressed in the field of literary
literários, especialmente nas duas ultimas décadas. studies, especially in the last two decades. It has
Tem-se presenciado também uma mudança de also been observed a paradigm shift regarding the
paradigmas no tocante ao tema nos estudos subject in scientific studies, especially in the
científicos, principalmente nas ciências humanas humanities in the West. In Latin America, in
no Ocidente. Na América Latina, em particular, a particular, the exploration of these concepts is
exploração desses conceitos é notável, tendo em remarkable, considering the advancement of
vista o avanço dos estudos pós-coloniais e da post-colonial studies and the notion of the hybrid
noção de sujeito híbrido conforme aponta Hall individual as shown by Hall(2003). Thus,
(2003). Assim, indivíduos como o negro, o índio individuals as the Black, the Indian and / or the
e/ou a mulher têm sido objeto de estudos em que women have been the subject of studies in which
cada um procura reivindicar sua posição each one tries to claim their position in society as
enquanto sujeito ativo na sociedade. É o que se active subjects. It is what can be seen in the novel
pode constatar no romance A Vinte anos, Luz Há Vinte Anos, Luz / My name is Light (2006) by
(2006) da escritora Argentina Elsa Osório. O the Argentinian writer Elsa Osorio. Thus, the
presente trabalho está estruturado com os aportes work will be structured with the theoretical
teóricos de PERROT, (2012) LAURETIS, (1994), LE contributions of Perrot (2012), Lauretis (1994), LE
GOFF (2003), dentre outros. GOFF (2003), among others.

Palavras-chave: Elsa Osório. Memória Trauma. Keywords: Elsa Osório. Memory. Trauma.
Gênero. Gender.
H
á vinte anos, Luz, livro da escritora argentina Elsa Osório publicado em 1998,
foi recebido e aclamado pela crítica. A obra vem ganhando notoriedade na
Academia, sendo estudada em muitos trabalhos – como na dissertação de
mestrado Identidade, Gênero e História: representação do feminino em Há vinte
anos, Luz, de Amanda Dal’ Zotto Parizoto, e também na tese de doutorado Mar de esqueci-
mento, tempestade de lembranças – uma jornada em busca da identidade e da memória futuras, de
Patrícia Rossi de Oliveira. É ainda objeto de estudo de vários artigos científicos, mostrando
que o texto foi bem elaborado e faz jus ao destaque que vem alcançando permitindo, inclu-
sive, que outras obras da autora sejam estudadas.

Chegou algemada, toda suja, com o cabelo empastado, sem cor definida, e com uma
espécie de venda preta para que não visse nada” (OSÓRIO, 1999, p. 58).

Essas primeiras três horas eram fundamentais. O Animal sabia muito bem disso, daí
ele usar todos os recursos... para conseguir que os prisioneiros abrissem sem demora.
Passadas três horas de sequestro, soaria o alarme na organização, e a célula seria
desativada. (Idem, p. 126).

Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa


253
Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
Os trechos acima ilustram o panorama social que dá pano de fundo à narrativa
de Elsa Osório: a Ditadura Militar Argentina ou a Revolução Argentina, rebatizada como
Processo de Reorganização Nacional no último golpe de 1976. Se em sucessivos golpes mili-
tares (1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976) a Argentina sofreu uma série de problemas, é justa-
mente no último golpe (1976), o mais repressivo e carrasco, que Elsa Osório centra a história
de Luz.
A Argentina foi governada por uma junta militar, formada por um membro de
cada força de Estado, que se revezaram no poder no período de 1976 a 1983. Esse Estado bu-
rocrático violou massivamente os direitos humanos e causou o desaparecimento de dezenas
de opositores. Perseguições políticas, torturas, assassinatos eram comuns, tudo apoiado por
países europeus, Estados Unidos, União Soviética e pela Igreja Católica, a exemplo do que
ocorria no Brasil, Chile, Peru, Paraguai, Bolívia e Uruguai. O pensamento dominante era o
mesmo nesses países, como o do general Dufau:

O general Dufau era um dos que pensava que, quantos mais liquidassem, melhor,
que era necessário eliminar toda essa geração apátrida para ganhar a guerra, e não
como os outros, que queriam recuperar os montos, transformá-los em colaborado-
res. Para o então tenente-coronel Dufau, tudo era uma questão de números estatísti-
cos. Ele ficava orgulhoso de que seus campos de detenção apresentassem as maiores
porcentagens de ”transferência”... Para ele, subversivo bom era subversivo morto.
(Idem, p. 225).

“Subversivo bom é subversivo morto” resume a ideia dos militares da junta que
passou a governar o país, que “transferiu” milhares de dissidentes e suspeitos políticos de
todos os tipos, incluindo médicos e advogados que ofereciam apoio profissional aos persegui-
dos, além de criar os centros clandestinos, nos quais se torturavam até a morte os presos
capturados pelos militares, como o mencionado no trecho acima.
Em 1982, esse governo empreendeu a Guerra das Malvinas contra o Reino Unido,
mas saiu derrotado, isso marca também a queda da última junta militar. Assumiu o governo,
de forma democrática, Raúl Alfonsín, em 1983. Os chefes militares foram ajuizados, alguns
foram condenados, mas o vazio histórico deixado por esse período macabro ainda permanece.
O romance a que nos propomos analisar é constituído de dezessete capítulos, di-
vididos em três partes, além de um prólogo e de um epílogo. As partes são apenas datadas,
sugerindo a temporalidade dos fatos, não deixando dúvidas do contexto histórico-social em
que a história acontece, assim tem-se: primeira parte em 1976, a segunda em 1983 e a terceira
entre 1995 e 1998. Tanto o prólogo como o epílogo é datado em 1998.
O prólogo instala o leitor em 1998, como citado. Narrado em terceira pessoa, co-
nhece-se Luz Iturbe, que viajou da Argentina a Madri para conhecer o pai biológico, Carlos

Cerrados nº 38
254
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Squirru. A partir desse encontro, Luz entrecorta esse narrador para contar, ela mesma, sua
história ao pai e ao leitor que já está imerso na narrativa.
A história de Luz começa em 1976, quando a junta militar ocupava o poder e os
militantes de esquerda eram sequestrados, torturados e assassinados. As militantes grávidas
eram mortas e seus bebês roubados para serem entregue às famílias de chefes militares:

[...] o fato é que, embora ninguém entendesse suas razões (que também ninguém
perguntou), já que não era a única que estava grávida, foi tratada como coisa dele...
O que ninguém podia imaginar é que o sargento Pitiotti estava cuidando da incuba-
dora de seu filho (OSÓRIO, 199, p. 41).

Luz descobre que é um desses bebês raptados e entregues aos militares. A partir
dessa descoberta, emprega-se numa luta obstinada em busca de sua verdadeira identidade.
Essa obstinação surge depois do nascimento de seu filho Juan.
O romance inicia com Mirim ornamentando ansiosamente um quarto para um
bebê que seu noivo, Animal (sargento Pitiotti), prometeu-lhe trazer já que não podia mais
ter seus próprios filhos, devido aos muitos abortos clandestinos que fizera.
Longe dali, na maternidade, Mariana, filha mais velha do tenente-coronel Du-
fau, tenta dar vida a seu filho., Simultaneamente, Liliana, uma subversiva, registra-se como
Miriam Lopes para também ter sua filha. Alguma coisa dá errado para Mariana e seu o bebê
nasce morto, e ela entra em coma. Já com Liliana tudo ocorre bem, e a menina nasce sau-
dável.
Sabendo do que ocorre nas atividades do marido, Amália convence Dufau a pe-
gar o bebê de Liliana para que Marianita não sofresse quando saísse do estado em que esta-
va. E assim é feito. Entretanto, a melhora de Mariana custa a acontecer, por isso, Animal se
vê obrigado a esconder a presa e a bebê em sua própria casa. Miriam passa a cuidar das duas,
mas acaba se envolvendo emocionalmente com elas. Depois de muito relutar, embaladas por
uma música no intuito de disfarçar dos seguranças, Miriam acaba ouvindo a história como-
vente e desesperadora de Liliana. Juntas, elas planejam uma fuga frustrada na qual Liliana é
assassinada com vários tiros. Obrigada a devolver Lili 1 a Dufau, com medo de tudo que sabe 1 | É como Miriam passa a
chamar a bebê de Liliana,
e sem conseguir disfarçar o medo, Miriam foge, abandonando Animal. pois esta não teve tempo de
Lili, que agora se chama Luz, cresce com a família Iturbe, mas a não semelhança nomear a filha.

com os familiares chama a atenção de Laura, cunhada de Eduardo, o agora pai da menina:
“Laura não sabia dizer o quê, mas algo não lhe cheirava bem, algo muito estranho e nebulo-
so” (idem, p. 127).
Há uma passagem de tempo de sete anos, e agora a história acontece em 1983.
Eduardo reencontra Dolores, sua antiga namorada, e fica sabendo das mortes de Pablo e
Mirta e do rapto do bebê deles. Sem acreditar em suas próprias suspeitas, Eduardo acaba

Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa


255
Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
descobrindo a verdade: sua filha Luz era um desses bebês sequestrados. Ao tentar contar a
verdade, Eduardo é assassinado por Animal, e sua morte foi entendida como latrocínio. Há
uma nova passagem de tempo, o ano agora é 1995, Luz já é uma mulher, cada vez mais pare-
cida com a mãe biológica.
A relação com a mãe adotiva, Mariana, é muito difícil, principalmente depois
que Mariana descobriu não ser sua mãe biológica, além de ter adquirido um novo casamen-
to logo depois de ficar viúva. Mariana via em Luz a filha de uma subversiva. Sem entender a
agressividade da mãe e ouvindo pedaços de histórias sobre seu passado, Luz começa a duvi-
dar de sua história e, com a ajuda de Laura, vai atrás de sua verdadeira identidade, contando
2 | A organização inclusive com as “Avós da Praça de Maio” 2.
humanitária que tem
como finalidade localizar A relação entre a História e a ficção está presente desde sempre na literatura lati-
as crianças sequestradas no-americana. E a da Argentina, escrita nos anos de chumbo da ditadura, bem como nos
ou desaparecidas pela
ditadura militar argentina anos de 1980/1990, não foge à regra. Uma literatura, de cunho testemunhal e memorialísti-
(1976-1983). Disponível
em: <http://g1.globo.com/ co, que é marcada pela pergunta acerca de como compreender a história nacional. Em Elsa
mundo/noticia/2014/08/ Osório essa relação é significativa.
avos-da-praca-de-maio-
acham-115-neto-sequestrado- Entrelaçando um vasto leque de personagens, pondo em evidência aspectos des-
na-argentina.html Acesso em
22/08/2014. conhecido da história argentina nos tempos da ditadura, Há vinte anos, Luz constrói-se como
uma história carregada de suspense e adrenalina. No decorrer da narrativa, máscaras vão
3 | Disponível em: < http://
www.youtube.com/ sendo arrancadas e histórias subterrâneas vão emergindo do escuro, do vácuo deixado pela
watch?v=SgP_oBZFXcU>
Acesso 10/06/2014. história oficial.
A busca incomensurável pela verdade transforma o romance de Elsa Osório
numa metáfora do próprio país e também num mecanismo de denúncia e ruptura de silên-
cios. Aspecto, aliás, similar ao que apresenta o filme A história Oficial (1985)3, de Luis Puerzo
que também aborda o assunto. Os limites entre História e ficção são abalados, principalmen-
te levando em consideração a temática central da obra em análise. Um fato histórico de di-
mensões pandêmicas: a ditadura militar.
Para Hutcheon (1991), na contemporaneidade parece haver um novo desejo de
pensar historicamente. E é papel da nova história literária, que não tem compromisso em
manter o cânone, assumir uma posição questionadora da história. Assim, o texto literário
mantém uma estreita relação com a realidade exterior.
Na esteira desse pensamento, Freitas (1986) aponta dois tipos de obra literária: a
representativa, cujo referencial está, em menor ou maior grau, no mundo real; e a segunda,
autorrepresentativa ou a que representa a si mesmo, desconsiderando o mundo que a cerca.
Partindo dos pressupostos de Freitas (1986), podemos considerar o romance Há
vinte anos, Luz como uma obra representativa, sem considerar a veracidade dos fatos que es-
tão presentes no texto, que podem, entretanto, ser atestados por meio dos registros históri-
cos. Ao transpor fatos históricos para o romance, Elsa Osório transforma sua obra em uma
interpretação pessoal da história de seu país. Mas, mesmo retratando um fato possível de ser

Cerrados nº 38
256
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
percebido na realidade concreta, não é função da obra literária representar o real objetivo, e
sim usar a linguagem literária para representar uma realidade estética que é percebida pela
arte, assegura Freitas (1986).
No romance Há vinte anos, Luz, Elsa Osório utiliza-se de artefatos da realidade
histórica, mas como afirma Le Goff (2003), tem a liberdade de modificá-los, ou seja, a autora
pode “desrealizar” a realidade que quer representar. Isso inclui acrescentar ou escamotear
acontecimentos, como o trecho abaixo, quando a autora fala da “Lei da obediência devida”.

A lei da obediência devida foi promulgada em 1987, e significou que todos esses tor-
turadores, assassinos, estavam livres, não eram responsáveis, porque recebiam or-
dem, como se alguém pudesse te obrigar a fazer coisas tão monstruosas como as que
eles fizeram (idem, p. 272).

De acordo com Freitas (1986), apesar de invadir e manipular a realidade histórica,


a ficção também pode deslocar ou simplesmente negligenciar elementos da realidade, segun-
do o tratamento que o autor dá a sua narrativa. No romance em estudo, Elsa Osório negli-
gencia o fato de que os bebês que não eram adotados pelas famílias de militares também
eram torturados e mortos como forma de pressionar as subversivas. Fato trazido a nu pelo
escritor também argentino Martín Kohan em seu livro Duas vezes junho.
A invasão da história pela ficção opera segundo três planos, de acordo com Frei-
tas (1986). O primeiro plano consiste na escolha do acontecimento central, depois no plano
dos acontecimentos secundários privilegiados na diegese e, por fim, nas personagens. Seguin-
do esse modelo, Há vinte anos, Luz traz como acontecimento central o rapto de bebês duran-
te a ditadura militar argentina. Esse fato se dá na intersecção da história de Luz, que é um
fato secundário. Ao mesmo tempo, a personagem apresenta-se como um lugar de quiasma
entre todas as outras personagens que desfilam pela narrativa.
É no apoderamento da ficção sobre a história – em que elementos romanescos se
mesclam com históricos, fazendo com que a história seja confundida com a História – que,
levado pela verossimilhança, o leitor fica acorrentado. Assim, partindo da ideia de que há
uma necessidade de compreender esse período doloroso da história do país, uma abordagem
literária pode auxiliar muito nessa questão. Elsa Osório foi muito feliz nessa empreitada.
A questão da memória tem sido bastante tratada na contemporaneidade, seu
conceito foi alargado e está a serviço das várias áreas das ciências humanas, como a filosofia,
história, psicologia, antropologia, sociologia e outros campos do saber. Esse constante e necessário
diálogo entre as ciências busca compreender os registros memorialísticos produzidos à margem
da história oficial. Essa forma de contar as atrocidades das ditaduras latino-americanas foi
alcunhada de Romance Memorialista, também vista como literatura testemunhal, e teve sua
efervescência nos anos de repressão e exílio, ganhando notoriedade nas décadas de 1980/ 1990.

Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa


257
Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
O narrar testemunhal surgiu como o meio mais adequado para discutir e
compreender o período mais intenso das ditaduras, pois o real maravilhoso de Alejo
Carpentier (Cuba), Julio Cortázar (Argentina), Manuel Scorza (Peru), Murilo Rubião (Brasil),
criado para este fim, já não dava conta. Era preciso escrever, de forma crítica, a realidade
para (re) lembrar os que caíam nas mãos dos ditadores e para não esquecer as atrocidades
cometidas contra a vida humana.
Assim, pode-se dizer que Há vinte anos, Luz é um romance memorialista, pois está
carregado de memória de um período nefasto da ditadura argentina. A obra está prenhe de
inquietações políticas e de denúncia social de um passado que reclama reconhecimento, reparação.
O rapto de bebês aparece na obra como emblema do horror absoluto da história guardado na
memória nacional, embora no subterrâneo do passado, mas que não quer e nem pode ser esquecida.
Izquierdo (2003) define a memória como “a aquisição, a formação, a conservação
e a evocação de informações”. Assim, a priori, essa memória se refere a um conjunto de fun-
ções psíquicas, graças às quais o sujeito pode fazer atualizações sobre o passado. Por outro
lado, também permite referir-se à lembrança/recordação que se tem de algo que já tenha
ocorrido e à exposição de fatos, dados ou motivos, que dizem respeito a um determinado
assunto. Há vinte anos, atualiza e (re) significa, por meio das memórias de Luz, a história do
país, como pode ser observado no trecho que segue:

Mariana preferia ler as histórias, não inventá-las. Ela estava cansada de mau hu-
mor, mas leu-a porque queria que Luz dormisse logo e tranquila. Essa noite não su-
portaria uma daquelas crises que Luz tinha de vez em quando: os olhos arregalados,
esses olhos tão clarinhos e brilhantes que pareciam pegar fogo e aqueles gritos de
terror como se a estivessem mantando (Osório, 1999, p. 151).

Na leitura da obra, vemos que Luz estava nos braços da mãe Liliana quando esta foi
assassinada com barulhentos tiros. O bebê ficou nos braços de Miriam, que com seu próprio corpo
a protegia. O que vemos no trecho em destaque é que a memória daquele trauma ficou no incons-
ciente de Luz, mesmo ela sendo tão pequenina (ela tinha três dias). Essas memórias passam a fazer
sentido quando ela descobre seu passado. Esse passado, aliás, é reconstituído por farelos de histó-
rias mal contadas pelos familiares.
Esse reencontro com o passado também é recuperado com lembranças, sem sentido a
princípio, mas que faz muita diferença. Um exemplo é o trecho abaixo, quando Miriam chega ao
apartamento de Luz, que está brincando com o filho Juan, quando este cai e chora, antecipando-
se em levantar a criança age desta forma:

Não foi nada, lindinho, vamos assoprar que passa o dodói. Mas Juan continua
chorando. Então a mulher, que não fez outra além de balbuciar, insolitamente,

Cerrados nº 38
258
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
começa a cantar Manuelita vivía em Pehuajó, pero um día se marchó. A canção em
sua boca me provocou uma reação estranha. Emoção? Surpresa? Olho para ela, e ela
se cala bruscamente (idem, p. 347).

Riccouer (2007, p. 131) assegura que não lembramos sozinhos, precisamos do testemu-
nho dos outros para ter acesso a acontecimentos de nossas vidas que estão adormecidos em nós. A
música que Miriam canta para o filho de Luz, Juan, é a mesma que ela cantava para acalmá-la
quando esteve sob sua custódia. A memória evocada pela canção e pela voz de Miriam provoca
sentimentos contraditórios na personagem, trazendo lembranças traumáticas, incômodas.
A própria protagonista, um bebê raptado, funciona como um lembrete desconfortá-
vel do passado da família Iturbe, como podemos inferir pela aversão à mãe adotiva. Pode-se dizer
que essa memória evocada por estímulos é uma memória traumática, pois, segundo Primo Levi,

[...] a recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque


evocá – lá dói ou pelo menos perturba: quem foi ferido tende a cancelar a recordação
para não renovar a dor; quem feriu expulsa a recordação até as camadas profundas
para dela se livrar, para atenuar seu sentimento de culpa. (LEVI, 1990, p. 10).

Para Le Goff (2003, p. 469), “a memória é um elemento essencial do que se costuma


chamar identidade – individual ou coletiva – cuja busca é uma das atividades fundamentais
dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. É por meio desse trabalho de
resgatar memórias sobre a ditadura, “encadeando, elo a elo, os fatos soltos de sua vida” (Osório,
199, p.314), que a protagonista tenta descobrir sua verdadeira identidade. Na medida em que
reconstrói sua história individual, também é reconstruída a história da nação argentina.
Outro aspecto presente na obra em discussão é a questão de gênero. Sabe-se que
por muito tempo a mulher foi deixada fora da história, silenciada pelo poder dominante no
qual prevalecia a “lei do pai”. Dessa forma, discutir as representações na literatura só foi
possível a partir da segunda metade do século XX, quando a crítica literária passou a consi-
derar os elementos extrínsecos às obras, entre eles, o papel do leitor e o contexto social.
Para Hall (2006), o feminismo foi um dos cinco grandes avanços na teoria social
e nas ciências humanas ocorridos na pós-modernidade. Dentro desse caos pós-moderno,
surgem vários questionamentos acerca da posição do sujeito e revisitas a conceitos estanques
sobre gênero, sexualidade, raça, entre outros. Nesse lugar de quiasmas, em que a identidade
é fragmentada, a mulher vem ganhando cada vez mais espaço e voz, provocando mudanças
significativas sobre sua atuação na sociedade. Segundo Zolin (2009, p. 328),

[...] o novo lugar que a mulher passa a ocupar na sociedade em decorrência do femi-
nismo fez-se refletir (e não poderia ser diferente) nesse status quo. De um lado, a

Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa


259
Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
crítica literária, antes de domínio quase que exclusivamente, passou a ser praticada
por mulheres; de outro, estas passaram a escrever mais como literatas, livres dos te-
mores da rejeição e do escândalo.

Ainda segundo Zolin (2009, p. 328), “a intenção é promover a visibilidade da


mulher como produtora de um discurso que se quer novo”, pois esse reconhecimento da
mulher contribui para a desestabilização dos paradigmas já sacramentados, tais como ho-
mogeneização, essencialismo e universalização que ancoram o patriarcado.
O feminismo desconstrói o conceito dicionarizado de gênero, livrando-o do
binarismo instituído. Para Laurentis (1994, p. 206), “o conceito de gênero como diferença
sexual tem servido de base de sustentação na arena do conhecimento formal e abstrato,
nas epistemologias e campos cognitivos definidos pelas ciências físicas e sociais e pelas
ciências humanas”. A autora entende que, assim como a própria sexualidade, o gênero não
pode ser visto como uma propriedade do corpo, nem algo que existe inato ao ser humano,
mas como representações socialmente produzidas nas relações sociais, por meio
desdobramento de uma “complexa tecnologia política”, produzida, mantida e dominada
pelo discurso patriarcal.
Perrot (2005, p. 18) concorda com esse pensamento e acrescenta que a “domina-
ção se faz por meio de definições e redefinições de estatutos ou de papéis que não concernem
unicamente às mulheres, mas ao sistema de reprodução de toda a sociedade”. As convenções
sociais determinam a masculinidade e a feminilidade dos sujeitos e têm seu horizonte de
expectativa alargado quando um indivíduo não se sente confortável ou se recusa a usufruir
daquilo considerado típico para seu gênero. As vivências de masculinidades e feminilidade
estão sujeitas à metamorfose e adaptação.
Portanto, pensar na transformação social envolve transgredir normas pré-estabe-
lecidas de comportamento, dominação e de poder impostas pela sociedade aos gêneros. De-
vemos considerar que existem diferentes construções simbólicas de papéis que são flexíveis
ao longo do tempo como é uma sociedade. O movimento feminista, ao analisar a desigual-
dade social que acomete as mulheres, tem feito diversas críticas ao patriarcado, ideologia em
que o homem é a maior autoridade, pregando a necessidade de sua eliminação para que a
desigualdade entre homens e mulheres seja reduzida e se possa criar uma sociedade mais
igualitária e menos discriminatória e exploradora.
De todo modo, o patriarcalismo ainda está embutido no subconsciente das socie-
dades. Embora as constituições ocidentais afirmem que há igualdade entre homens e mulhe-
res e entre todos os indivíduos da sociedade, o patriarcalismo ainda se manifesta de alguma
forma. Suas raízes germinaram no ideário humano ao longo dos séculos, e ainda hoje é
preciso indicar as formas e as ocasiões em que aparece o efeito do patriarcado para fazer va-
ler o ideal de igualdade entre as pessoas.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Elsa Osório lança-se no universo da ficção, construindo uma narrativa povoada
de personagens femininas marcantes, conscientes do estado de dependência e submissão a
que a ideologia patriarcal relegou a mulher. Entretanto, a seu modo, cada uma delas rompe
com esse sistema simbólico de dominação, seja usando o charme e a fragilidade – como
Mariana –, seja usando o corpo e a beleza – como Miriam –, seja usando a esperteza e
inteligência – como Laura – ou radicalizando como a protagonista Luz Iturbe.
O romance em análise apresenta uma total ruptura com esses valores, pois as fi-
guras masculinas, mesmo as que estão em destaque como o general Dufau e o sargento du-
rão Pitiotti, são apagadas pelas figuras femininas.
Por toda a narrativa existe uma preocupação em demonstrar o papel da mulher
como sujeito ativo, pois ao mesmo tempo em que a autora silencia a voz masculina, há uma
iluminação intensificada nas figuras femininas, até mesmo naquelas que não estão em rele-
vo, como a personagem Suzana, que é uma personagem secundária na história.
No caso da protagonista, Luz Iturbe é uma mulher que consegue desfazer “os
nós” de sua existência para encontrar a tão sonhada plenitude. Seu próprio nome é um pa-
radoxo, principalmente, porque foi dado pela família por quem foi adotada. Ele remonta a
nação argentina, que foi obscurecida pela repressão e truculência de anos de ditaduras, pois
“ter um parente desaparecido na família significa, além de uma profunda dor, a marginali-
zação, o isolamento” Osório (1999, p. 327). Ao mesmo tempo sugere um pedido de luz sobre
a obscura história dos desaparecidos. Depois de uma vida dolorosa, permeada de angústia e
sofrimento, como vimos nos trechos destacados, a protagonista encontra seu passado na fi-
gura do pai Carlos Squirru e da avó Nora Ortiz.
Assim destacamos as principais personagens transgressoras do romance. Em pri-
meiro lugar, Luz Iturbe, que rompe com o sistema patriarcal em vários momentos. Foge de
casa duas vezes, engravida fora da instituição do casamento, sempre manipula o marido
Ramiro, acaba desobedecendo à família e descobrindo sua própria história. As outras perso-
nagens como Mariana, Amália, Miriam, Laura Dolores e Liliana, cada uma a seu modo,
também transgredem a ordem estabelecida pelo sistema patriarcal.
A guisa de conclusão, a persistência histórica da cultura patriarcal é tão forte que,
mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração consti-
tucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais
continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade.
A literatura apresenta-se como uma modalidade de reescritura da história, em
que há a possibilidade de fomentação da tensão entre esse discurso (patriarcal) e os relatos
marginalizados (a mulher). Assim, constitui-se um espaço no qual a mulher/escritora tem
espaço livre, podendo escrever suas próprias histórias, suas memórias. Elsa Osório soube
marcar presença nesse cenário a partir do olhar da personagem protagonista do romance Há
vinte anos, Luz, Elsa. Com isso, Elza Osório reconstrói parte da história das mulheres argen-

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261
Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
tinas que tinha sido silenciada e que, portanto, era desconhecida pela população.
O romance, por meio de uma narrativa memorialista, dá voz às mulheres silen-
ciadas como as avós, mães a todas que tiveram seus netos, filhos arrancados por militares.
Podemos concluir que o romance Há vinte anos, Luz, de Elsa Osório, é uma obra
que marca rupturas no sistema patriarcal, pois as figuras femininas – sempre postas em re-
levo em detrimento da figura masculina – não aceitam a opressão e o silenciamento que
ainda persistem nas diferentes sociedades e em diferentes culturas.

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LEVI, Primo. A memória da ofensa. In: Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Ségio Heniques. Rio de
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<http://www.jornaopcao.com.br> acesso em: 31/05/14 (Edição 2024 de 20 a 26 de abril de 2014)

Algemira de Macedo Mendes | Regilane Maceno Barbosa


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Memórias do trauma e as relações em Há vinte anos, luz, de Elsa Osorio
Identidade de resistência em
A ilha sob o mar

Resistance identity in the


A ilha sob o mar

Milena Campos Eich


Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Mestranda em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada.

milenacampos@uol.com.br

Ana Cristina dos Santos


Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Professora Associada
do Departamento de Letras
Neolatinas (Português/Espanhol)
e do Mestrado em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada
do Instituto de Letras.

anacrissuerj@gmail.com
Resumo Abstract
Este trabalho analisa a construção da identidade de This paper analyzes the construction of  Zarité, a
resistência da personagem Zarité, no romance A character of resistance identity, in the novel A Ilha
ilha sob o Mar (2010), de Isabel Allende. sob o Mar (2010 ), by Isabel Allende. Doubly
Duplamente oprimida por ser mulher e escrava, oppressed as a woman and a slave, more frail
figura mais frágil em um sistema patriarcal e figure in a patriarchal and slave system, and,
escravocrata, e, ironicamente, pela invisibilidade ironically, by the social invisibility that her color
social que sua cor e sexo lhe impõem, a personagem and sex require, the character achieves success in
logra êxito nas suas aspirações sociais e pessoais. her social and personal aspirations. Uses affective
Utiliza os laços afetivos estabelecid os nos bonds established in moments of transcendence
momentos de transcendência e deslocamento – and displacement - both physical and imagined
tanto físico como imaginado – que os rituais - that the religious rituals and dance, as spaces of
religiosos e a dança, enquanto espaços de encenação staging of culture, values and alliances allow her
de cultura lhe permitem vivenciar, contribuindo to experience, contributing to her identity
para sua afirmação identitária. affirmation.

Palavras-chave: Literatura latino-americana; Keywords: Latin american literature ; gender ;


gênero; deslocamento; identidade de resistência; displacement; resistance identity ; A ilha sob o mar.
A ilha sob o mar.
A
análise proposta nesta pesquisa insere o mais recente livro de Isabel Allende, A
Ilha sob o Mar (2010), em uma das possibilidades de análise que encontram seus
caminhos em produções que se distinguem por demonstrar a mulher a partir
de uma perspectiva que somente pode ser constituída por mulheres, devido às espe-
cificidades, não biológicas, mas culturais, de construção da identidade dos gêneros, ou seja, naquilo
que a crítica feminista tem, contemporaneamente, considerado como literatura de gênero.
O romance A Ilha sob o Mar (2010) aborda a trajetória de luta, sobrevivência, afe-
tos e desafetos de sua protagonista, uma mulher que, na condição inicial de escrava, vivencia
não somente toda a opressão pertinente à que sua condição lhe impõe, como também reage
a ela, usando as armas de que dispõe, que objetivamente não são muitas, mas que, subjetiva-
mente, preservam sua identidade e compõem os laços de solidariedade e colaboração entre
ela e os grupos aos quais se vincula, nos espaços em que circula. Nessa obra, em relação a sua
protagonista, identificamos uma forte representação daquilo a que Castells (1999) denomi-
nou de identidade de resistência, ou seja, aquela:

Criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estig-


matizadas pela lógica de dominação, construindo, assim, trincheiras de resistências

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


267
Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
e sobrevivência com base em princípios diferentes do que permeiam as instituições
da sociedade ou mesmo opostos a estes últimos (CASTELLS, 1999, p. 24).

Assim, objetivamos analisar como a autora elabora a construção dessa identidade de resistência na
protagonista, elencando alguns dos elementos que, no romance, constituem-se como tais. Além
disso, pretendemos demonstrar a representatividade da figura feminina em situação de protagonis-
mo em contraposição a uma tendência da historiografia tradicional de colocar nessa condição ape-
nas os personagens masculinos. Adotamos, para tanto, a perspectiva de Hutcheon (1991, p. 122),
segundo a qual: “O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção
e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos senti-
dos ao passado”.
A contribuição de Isabel Allende ao recontar, em sua obra ficcional, a história do
Haiti, está, entre outros fatores, no fato de que, dessa forma, essa história se desloca do campo do
racionalismo econômico, que tão bem a justificava, para o campo do sensível, na medida em que
nos permite acessar, ainda que de forma ficcionalizada, a experiência emocional e existencial dos
personagens, humanizando-os e irmanando-os a cada um de nós por meio de suas angústias,
limitações, fraquezas e superações. A denúncia dos abusos torna-se mais veemente e grave a par-
tir desse prisma, pois sabemos que, embora ficcional, a história tem seu pano de fundo nos fatos
reais que, a partir de 1791, fizeram com que São Domingos, atual Haiti, fosse o único país de que
se tem registro na história em que uma revolução de escravos foi bem sucedida (ALLENDE, 2010;
JAMES, 2010).

A economia escravista em São Domingos: um breve panorama histórico


A história do Haiti e do processo revolucionário que ali ocorreu quando esse país ainda era
a Ilha de São Domingos, colônia francesa de produção intensiva de açúcar sob o sistema de
1 | Sistema de produção plantation1, é única sob muitos aspectos. Localizado na América Central, próximo à linha do
intensiva de um único Equador, esse país revelou, para os franceses que lá chegaram à época da colonização, uma
cultivo agrícola, largamente
utilizado na América do Sul natureza exuberante e pródiga, em que as culturas agrícolas prosperavam em quantidade e
e Caribe nos séculos XVI e
XVII, predominantemente qualidades superiores a de qualquer outra colônia europeia, despertando a cobiça desenfre-
sustentado pela força de ada pelos lucros exorbitantes que sua exploração poderia – e pôde – proporcionar.
trabalho da mão de obra
africana escravizada e Açúcar, cacau, anil, algodão... todas estas culturas cresciam exponencialmente,
voltado ao atendimento do
mercado externo, europeu. favorecidas pelo clima e pelas condições de trabalho nas lavouras, quase toda baseada na es-
Fonte: http://escravidaoafrica. cravidão de povos sequestrados na África e levados para lá em navios que marcariam a his-
blogspot.com.br/2009/06/
nos-seculos-que-se-seguiram- tória por ilustrarem - na realidade - o inferno que Dante ficcionalizou.
ao-colapso.html
Acesso em: 2 dez 2014. Após a captura no interior, os negros eram presos uns aos outros em formação, e
a fim de impedi-los de fugir, atavam-nos a pedras de 20 a 25 quilos, para que assim, presos,
marchassem até o mar, eventualmente distante até centenas de quilômetros. Em lá chegan-
do, exaustos e famintos, eram espremidos nos porões de carga onde eram dispostos de tal
forma que não era fisicamente possível deitar-se completamente ou sentar-se sem manter a
coluna arqueada. Presos a ferros e entre si, recebendo apenas uma ração alimentar por dia,
sem nenhuma condição de higiene, eram, se as condições de navegação e comportamento
permitissem, levados uma vez ao dia à parte de cima dos navios para se exercitarem, mas em

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
caso de rebeldia, tempestade ou mesmo de calmaria extrema (ausência de ventos), podiam
ter os alçapões fechados a tábuas ou mesmo serem propositadamente mortos, a fim de se
evitarem prejuízos financeiros.
Eram frequentes as manifestações de resistência. Greves de fome, suicídios e
tentativas de rebelião estavam entre as mais comuns. Por medo de sua própria “carga”, os
capitães apelavam para o terror e para a crueldade. É emblemático o caso do capitão que
matou um escravo rebelde e repartiu seu coração e entranhas em trezentas partes, obrigando
os escravos a comê-las, sob a ameaça de que teriam o mesmo destino, se não o fizessem
(JAMES, 2010). Essa abordagem radical do “problema”, como veremos, se estendeu a todos
os elos da barroca cadeia de relações que se estabeleceu na Ilha de São Domingos, atual Haiti.
Já chegados em terra, os escravos eram submetidos a humilhações públicas, vendi-
dos, marcados a ferro em brasa e levados para o trabalho incessante nas fazendas, onde viviam
por cerca de sete anos, até morrerem de cansaço, doença, castigo ou fracasso em alguma mal
sucedida tentativa de fuga. A história das atrocidades é bastante conhecida de todos. Mas nunca
deixa de surpreender, tanto no que diz respeito aos números, indicando um comércio de propor-
ções até então inimagináveis, quanto no que toca às atrocidades, exageros, perversidades e cruel-
dades empreendidas, dignas da ficção mais alegórica, como bem cantam os versos de Castro
Alves. Para apaziguar a ânsia dos negros por liberdade, as torturas mais bestiais eram aplicadas:

Os escravos recebiam o chicote com mais frequência ou regularidade do que rece-


biam a comida. Era o incentivo para o trabalho e o zelador da disciplina. Mas não
havia engenho que o medo ou uma imaginação depravada não pudesse conceber
para romper o ânimo dos escravos e satisfazer a luxúria e o ressentimento de seus
proprietários e guardiães: ferros nas mãos e nos pés; blocos de madeira, que os escra-
vos tinham de arrastar por onde quer que fossem; a máscara da folha de lata, proje-
tada para evitar que eles comessem a cana-de-açúcar, e o colar de ferro. O açoite era
interrompido para esfregar um pedaço de madeira em brasa no traseiro da vítima;
sal, pimenta, cidra, carvão, aloé e até cinzas quentes eram deitadas nas feridas
abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e, algumas vezes, as partes
pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais eles poderiam se entregar sem
custo. Seus donos derramavam caldo fervente de cana nas suas cabeças; queima-
vam-nos vivos; assavam-nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam
com uma mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com
açúcar para que as moscas os devorassem; amarravam-nos nas proximidades de ni-
nhos de formigas ou vespas; faziam-nos comer os próprios excrementos, beber a pró-
pria urina e lamber a saliva de outros escravos. (...). Embora seja impossível verifi-
car as centenas de casos, as evidências mostram que essas práticas bestiais eram
comuns na vida do escravo. (JAMES, 2010, p. 26-27).

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


269
Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
Robin Blackburn (2003) dedica-se a entender como um regime que se permite
tantas e tamanhas extravagâncias pôde existir e perpetuar por tanto tempo, mesmo com as
perdas que essas práticas provocavam. Os altos índices de mortalidade, em torno de vinte
por cento, eram compensados pela alta lucratividade desse tipo de comércio e pela necessida-
de de segurança, determinante em um ambiente em que os negros chegaram a ser milhões
quando os brancos não passavam de alguns milhares (BLACKBURN, 2003). Embora extre-
mamente perdulário, esse sistema gerava lucro.
O regime de trabalho era intenso, começando ao nascer do sol e estendendo-se
até o início da noite, sob as condições mais penosas. Ao contrário dos servos europeus, que
por contrato, deveriam receber alimentação e moradia por parte dos fazendeiros e que, em
caso de não terem essas necessidades atendidas, poderiam recorrer aos tribunais, os escravos
de origem africana eram quase que inteiramente responsáveis por sua subsistência e não
contavam com nenhum amparo legal para o caso de passarem por necessidades dessa natu-
reza. Tinham, por isso, o direito à folga de domingo, quando então aproveitavam para culti-
var seus roçados, no que eram estimulados por seus proprietários, que dessa forma se viam
com menos uma despesa com que arcar.
Além disso, o sistema de castigos não causava estranhamento do ponto de vista
cultural. Já era praticado na Europa contra delinquentes, vagabundos, loucos, criminosos,
feiticeiros (as), etc... Marginais e excêntricos eram pública e sistematicamente flagelados e
marcados a ferros. Rapazes sem ocupação eram incentivados a vender-se por prazos combi-
nados. Essa espécie de suporte à organização social e econômica, o trabalho forçado, era co-
mum na Europa dos seiscentos e setecentos e foi aproveitada no Caribe, sendo a ela poste-
riormente integrada a ideologia da escravidão racial e o reforço às identidades que iriam
sustentá-la (BLACKBURN, 2003).
2 | Brancos pobres A princípio, escravos, servos e engagés2 não poderiam, legalmente, abandonar a
contratados por prazo
estipulado previamente plantação na época da colheita, e o produtor lidava com uma empresa cuja demanda por
(BLACKBURN, 2003).
mão de obra era intensa, posto que, devido ao clima e à riqueza do solo, produzia-se inces-
santemente ao longo de todo o ano. Era preciso suprir a plantação com a quantidade neces-
sária de trabalhadores durante todo o tempo. Era difícil e caro coordenar essas variáveis com
a mão de obra europeia, pouco habituada a esse tipo de serviço e com dificuldades severas de
adaptação ao ambiente. Há relatos de que a taxa de mortalidade entre imigrantes europeus
nos primeiros anos de vida no Caribe era duas vezes mais alta do que entre africanos (CUR-
TIN, 1968 apud BLACKBURN, 2003). Além disso, não havia muitos servos livres, de origem
europeia, disponíveis, porque faltava mão de obra na Europa, em que os trabalhadores ru-
rais haviam morrido em grande quantidade por fome, guerras e peste. Como resultado des-
sa escassez, os salários eram altos, e os compromissos de responsabilidade mútua, diversos.
Condenados em geral também não eram uma boa opção, porque eram perigosos e pode-
riam ajudar-se mutuamente e provocar rebeliões, escapando.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Já os trabalhadores de origem africana, além de disponíveis em grande quantida-
de eram mais adequados, pois resistiam melhor ao clima equatorial, eram mais independen-
tes nas questões de subsistência e tinham menos condições de se organizar para escapar,
uma vez que não conheciam o lugar. Em caso de fuga, eram facilmente identificáveis pela
cor de pele. E se a escravidão em si, porventura fosse questionada do ponto de vista de sua
desumanidade, sempre havia a história bíblica dos filhos de Caim justificando a ideia de
manter os negros em cativeiro pelo fato de não partilharam do Cristianismo. As relações
mercantis, por sua vez, revestiram a propriedade privada de aura sagrada, e, naquele contex-
to, escravos eram nada mais do que mera propriedade, como bem atestam os inventários em
que figuram lado a lado com os animais das fazendas (BLACBURN, 2003).
No romance A Ilha sob o Mar, esse entendimento se materializa na atitude do
personagem Toulouse Valmorain, jovem francês, herdeiro de uma fazenda de plantação de
cana e produção de açúcar e futuro proprietário de Zarité – a protagonista do romance. Em
seu primeiro contato com a terra e os escravos, em sua maioria doente ou faminta, morren-
do “como moscas” (ALLENDE, 2010, p. 13) de que seu pai, moribundo, não conseguia mais
cuidar:

Conseguiu um substancioso empréstimo, graças ao apoio e às ligações que o agente


comercial de seu pai tinha com banqueiros, depois mandou os commandeurs aos
canaviais para trabalhar lado a lado com os mesmos que eles haviam martirizado
antes e os substituiu por outros menos depravados, reduziu os castigos e contratou
um veterinário que passou dois meses em Saint-Lazare tentando devolver um mí-
nimo de saúde aos negros. (...).Valmorain se deu conta de que os escravos de seu pai
duravam em média dezoito meses antes de fugir ou cair mortos de cansaço, tempo
muito inferior ao das outras plantações. As mulheres viviam mais do que os homens,
mas tinham o péssimo costume de engravidar. Como muito poucas crianças sobrevi-
viam, os plantadores concluíram que a fertilidade era tão baixa que não se tornava
rentável. O jovem Valmorain realizou as mudanças de forma automática, sem pla-
nejamento e rápido, decidido a ir logo embora, mas quando o pai morreu, deu-se
conta de que havia caído numa armadilha. Não pretendia deixar seus ossos naquela
colônia infestada de mosquitos, mas, se partisse antes do tempo, perderia a plantação
e, com ela, a renda e a posição social de sua família na França. (ALLENDE, 2010, p.
14, grifo nosso).

Essa equiparação de negros a animais (especialmente os de carga) começou entre


portugueses e espanhóis, mas foi sistematizada por ingleses, franceses e holandeses, permi-
tindo-lhes agir como bem lhes aprouvesse com sua propriedade, sem riscos de coerção moral
ou punição legal. Em um sistema cujos exorbitantes lucros dependiam do trabalho escravo,

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


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Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
mantê-los sob total controle poderia requerer uso de violência e crueldade. Afinal, como
bem lembra James (2003, p. 56): “Prosperidade não é um problema moral, e a razão de São
Domingos era sua prosperidade”.
Toulose Valmorain, o francês de ideias iluministas que, vindo à colônia, suposta-
mente para ajudar seu pai adoentado durante um tempo, acaba tendo que, após o falecimen-
to deste, assumir a fazenda de plantação de açúcar, gerenciando sua produção com o rigor de
um mundo que vivia, historicamente, o auge do mercantilismo. Torna-se proprietário da
terra e dos escravos que nela trabalhavam. Como não haveria na França outro modo de
sustentar-se, nem à sua mãe e irmãs que lá permaneciam, decide assumir suas novas respon-
sabilidades, embora intimamente condenasse as práticas associadas à produção e comércio
do açúcar, pois se considerava um iluminista.
Pressionado, ora pela necessidade de adequar sua produção à forte concorrência
que se instalava, ora por sua própria fraqueza de caráter, Valmorain, no que diz respeito ao
fato de que não reconhecia os escravos como humanos, iguala-se, progressivamente, a seus
pares, de quem antes se dizia enojado:

Antes de se ver obrigado a viver na ilha teria ficado chocado com a escravidão. E
teria ficado escandalizado se tivesse conhecido a fundo os detalhes, mas seu pai nun-
ca se referia ao assunto. Agora, com centenas de escravos sob seu comando, suas
ideias a esse respeito haviam mudado. (ALLENDE, 2010, p. 17)

Em um diálogo que Valmorain empreende com o médico da família, que, na


ocasião, tratava da esposa adoentada de seu cliente, as características humanas dos escravos
são seriamente questionadas e a justificativa final para a posição do proprietário, de quem o
médico discordava, se fundamenta na questão econômica:

– Há uma diferença fundamental entre um africano e minha esposa, doutor! Não


acha que os negros são como nós, não é mesmo? – interrompeu Valmorain.
– Do ponto de vista biológico,sim. Há evidências de que são como nós.
– Nota-se que você lida muito pouco com eles. Os negros têm constituição para traba-
lhos pesados, sentem menos dor e cansaço, seu cérebro é limitado, não sabem discer-
nir, são violentos, desorganizados, preguiçosos, não têm ambição e nem sentimentos
nobres.
– Poderíamos dizer o mesmo de um branco embrutecido pela escravidão, monsieur.
(...)
– Nunca teve um escravo, doutor?
– Não. E tampouco terei no futuro.
– Parabéns. Você tem a sorte de não ser um plantador – disse Valmorain. – Não gosto

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
da escravidão, posso lhe garantir, mas alguém tem que lidar com as colônias para que
você possa adoçar seu café e fumar um charuto. Na França, usufruem de nossos pro-
dutos, mas ninguém quer saber como são obtidos. (ALLENDE, 2010, p. 91-92).

Esse posicionamento ideológico, embora aparentemente contraditório e incon-


sistente, justificava-se, em sua consciência, pelo fato de que não se dedicava, como muitos
de seus pares, a perversões e sadismos de maior impacto, mesmo porque, isso, além de
perigoso, não era lucrativo. Além disso, a violência, tal como aquela a que eram submeti-
dos os escravos em São Domingos, é uma prática recorrente na história, em muitas escalas
diferentes, mas é a moral vigente em cada época e lugar que vai condená-la, ou não. Sua
aceitação depende de variáveis que, como bem analisou Marx, estão intimamente ligadas
às condições materiais sob as quais se estabelecem as relações sociais:

Sobre as diversas formas de propriedade e sobre as condições sociais de existência


ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões da
vida diversos e formados de um modo peculiar. A classe inteira cria-os e forma-os a
partir de suas bases materiais e das relações sociais correspondentes. (MARX, 1852
apud JAMES, 2010, p. 55).

É um mundo violento, repleto de disputas e inserido em um sistema econômico


altamente desigual e competitivo – imposto pelos brancos – no qual todos, independente-
mente de sua concordância ou não com a realidade, defrontam-se com o fato de que ela está
dada e que, objetivamente, é preciso sobreviver a ela e ocupar, cada qual, seu lugar na socie-
dade. Aos brancos cabe manter-se no poder, exercendo a violência, física ou ideológica, dos
mecanismos típicos da dominação. Aos outros, negros, morenos, mulatos, créoles, cabe tra-
balhar para a sustentação do sistema. Sobreviver, nem sempre. A taxa de natalidade tendia
a ser negativa, posto que não havia nenhum cuidado especial para com as mulheres grávidas
ou com as crianças pequenas, que demoravam muito a conseguir produzir como um escravo
adulto. (BLACKBURN, 2003). A economia estava tão fortemente ancorada na escravidão, e
o tráfico era tão abundante e rentável, que era mais lucrativo comprar escravos novos quan-
do os antigos (com cerca de sete anos de trabalho exaustivo) morriam, do que cuidar para
que se preservassem vivos os já adquiridos. O suicídio era uma prática frequente, bem como
o infanticídio, uma vez que havia, em suas crenças religiosas, a ideia de que a morte signifi-
cava, não apenas a libertação dos sofrimentos experimentados em vida, como também o
retorno à África (JAMES, 2010). É justamente dessa crença que Isabel Allende retira o título
da obra que ora analisamos. "A ilha sob o mar" é o lugar para onde supostamente iriam as
almas dos que morreram em função da diáspora a que foram submetidos os negros subtraí-
dos do continente africano, atravessando o oceano Atlântico para servirem como escravos

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Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
em outras terras. Ocorre que, antes de morrer, muitos deles decidiram por se libertar.

A Ilha sob o Mar: a história dentro da História


Ao abordar o tema da revolução em São Domingos, Allende insere-se em um significativo
grupo de escritoras e escritores que fazem a chamada “literatura latino-americana” nos Esta-
dos Unidos produzindo, como afirma Stacey Skar (1991, p. 9) “desde las entrañas del mons-
truo” e adotando um discurso multicultural, na medida em que se define, não mais como
uma escritora chilena, mas como latino-americana, pois relê a história do continente. Essa
perspectiva têm se reproduzido em várias de suas obras, como O plano infinito (1992), Filha da
Fortuna (1999) e agora, em A Ilha sob o Mar (2010).
Em comum, essas obras, além de privilegiarem a representação da figura femini-
na em condição de protagonismo, também se estruturam em torno de uma trajetória de
construção de identidade vivenciada por personagens que, por motivos variados, encontram-
-se em situações de crise no tocante a esse aspecto (SKAR, 1991). Isabel Allende reexamina
conceitos como liberdade, identidade e etnia e questiona o lugar da mulher nas relações so-
ciais. Em seus textos, as personagens femininas tendem a fugir dos estereótipos que se sub-
metem, devido a exigências da sociedade, à voz masculina, seja pela negação do corpo e do
prazer, seja pela negação de vontades outras. Além disso, a autora destaca-se por eleger a
condição da mulher sob o pano de fundo de uma narrativa de reconstrução histórica como
objeto de sua representação, dando voz a personagens que, nas narrativas tradicionais ha-
viam sido silenciadas.
Assim, a história é contada, ora pela voz onisciente da narradora, ora pela própria
protagonista, a escrava Zarité, que dá sua própria versão dos fatos, apresentando-os sob o
ponto de vista de uma personagem que, em uma sociedade patriarcal e escravocrata, encon-
tra-se duplamente oprimida, por pertencer simultaneamente às categorias de mulher e es-
crava. Gênero, escritura e identidade são categorias que se interligam no âmbito das discus-
sões sobre a literatura produzida por mulheres no século XX, redimensionando, assim, a
perspectiva de análise linear da história, tendenciosamente contada pelos “vencedores” na-
quilo que a sociedade reconhece como tal: homens, adultos, detentores de posses, associados
ao poder.
Nesse sentido, a obra apresenta, entre outros fatores, a visão dos vencidos, aquele
personagem que Benjamin (1994) nomeia como o excêntrico e problematiza a questão do
discurso como fonte de verdade. Sob essa perspectiva, a narrativa vai também ao encontro
da abordagem adotada por Velasco Marín (2007), segundo a qual, uma das principais carac-
terísticas da literatura de gênero – no caso, feminino – é a marca da identidade que se traça
através da resposta de contraposição ao discurso hegemônico.
Pela voz da narração, onisciente, é o discurso hegemônico que instaura a ordem
– ou a desordem, muitas vezes derivada de suas próprias contradições internas. Contudo,

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Allende o apresenta com uma boa dose de ironia, porque a história se passa em uma colônia
francesa cuja economia se baseia toda na escravidão, embora a legislação e os valores já esti-
vessem enfrentando, além dos processos de revolta por parte de escravos e mulatos, algumas
frentes de oposição interna, decorrentes das ideias iluministas da época. Protagonistas, co-
adjuvantes e enredo vão sendo apresentados na medida em que sua teia de relações vai sendo
constituída e são mostradas as motivações e justificativas de cada um deles para assumirem
seus posicionamentos diante da realidade que os cerca.
Quando a narrativa é passada à personagem Zarité, protagonista do romance,
tratada também pelo apelido de “Teté”, são explicitadas as contradições e a falta de sentido
dos hábitos e tradições europeus diante da ânsia pelo lucro imediato, em contraposição ao
sentido de preservação do bem maior, a vida. A falta de propriedade dos homens brancos no
lidar com a natureza, os afetos, a infância e as mulheres soa, do ponto de vista da escrava,
como inumanos. A respeito de sua patroa, a quem fora encomendada para servir de compa-
nhia e nos cuidados de sua alimentação, higiene e beleza, a protagonista comenta, sem dis-
farçar a incredulidade e o espanto que lhe vêm à mente quando ouve dizer que é bonita:
“Estava transparente. O patrão dizia que era muito bonita, mas seus olhos verdes e seus ca-
ninos pontudos não me pareciam humanos” (ALLENDE, 2010, p. 66).
Seja nos momentos em que é pronunciada diretamente por Zarité, seja quando é
através da narradora3, a narrativa reforça a noção de que a crítica feminista se contrapõe, 3 | Evitamos aqui, por adesão
à corrente crítica feminista,
segundo Velasco Marín (2007), à crítica tradicional, demonstrando que há, sim, uma possi- usar o termo “narrador”.
Richards (1996, apud
bilidade de análise que encontra seus caminhos em produções que se distinguem por de- VELASCO MARÍN, 2007, p.
monstrar a mulher a partir de um ponto de vista que só pode ser constituído por mulheres, 551) demonstra que a suposta
neutralidade da linguagem
dadas as especificidades, não biológicas, mas culturais, de construção, seja acidental, seja também contribui para o
reforço dos estereótipos de
conscientemente elaborada, da identidade dos gêneros. Em um mundo patriarcal e escravo- dominação masculina, na
crata, é da condição de observadora que a mulher aprende a lidar com os fatos. medida em que o mascara.
Sendo a escritora uma
A faculdade de “ver mais longe”, adiantando-se aos acontecimentos e desenvol- mulher, e embora não
possamos confundir as
vendo resiliência e sabedoria para lidar com as intempéries, é uma peculiaridade daqueles noções de “escritor” com a de
que, na configuração dos fatos, ocupam o espaço de “dominados”: “Tété havia aprendido “narrador”, por um processo
de simplificação e de busca
cedo as vantagens de se calar e obedecer às ordens com expressão vazia, sem dar mostras de de coerência, a figura literária
que nos conta a história será
entender o que acontecia ao seu redor (...)” (ALLENDE, 2010, p. 43). Enquanto isso, os domi- aqui tratada como narradora.
nadores, por força e obra do conforto ao qual se apegam, vão tornando-se, paulatinamente,
mais frágeis e vulneráveis à medida que se desenvolvem e se acirram os confrontos.
Zarité, a escrava, insiste e persiste em manter seus próprios valores e ponto de
vista sobre os fatos e as diversas “tomadas de decisão”, que inevitavelmente implicam mu-
danças, por vezes as mais drásticas, feitas por parte dos detentores do poder, em especial por
parte do homem a quem “pertence” na maior parte de sua vida. Apesar de sua posição estar
à margem da sociedade, em uma dimensão ex-cêntrica a essa, a personagem não se deixa
submeter em sua identidade pessoal nem coletiva, apenas simula subserviência, como meca-

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


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Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
nismo eventual de sobrevivência, face a uma estratégia maior de conquista posterior da li-
berdade:

Quando o patrão Valmorain foi me buscar algumas semanas mais tarde, não me
reconheceu. Eu havia engordado, estava limpa, com o cabelo curto e um vestido novo
que Loula costurara para mim. Perguntou-me meu nome e lhe respondi com a voz
mais firme, sem levantar os olhos, porque nunca se olha um branco na cara. (AL-
LENDE, 2010, p. 52)

Diferente postura é adotada por Eugenia, esposa desse mesmo homem, a já mencionada
patroa de Zarité. Criada em um convento, isolada do restante do mundo, ela nada sabe sobre
como garantir sua própria sobrevivência ou desenvolver sua própria rede de relações que não
seja relativo à missão de tornar-se esposa e mãe, preservando-se bonita e casta. Ou seja, suas
preocupações limitam-se a agradar aos homens, adaptar-se a eles. Seu casamento, arranjado
mediante um “acordo de cavalheiros”, traz benefícios sociais e econômicos, tanto para seu
irmão, finalmente liberto do fardo de sustentar a irmã solteirona, quanto para o marido,
cuja respeitabilidade diante da sociedade branca depende, em grande medida, do fato de ser
casado. Pouco antes de ter oportunidade de conhecer o futuro marido, Eugenia questiona o
irmão, com quem vivia em Cuba, a respeito do casamento, e suas dúvidas não parecem ser
um empecilho para ele:

– É um cavalheiro culto e rico, mas, mesmo que fosse corcunda, você se casaria com
ele de qualquer jeito. Vai fazer vinte anos e não tem dote...
– Mas sou bonita!
– Há muitas mulheres mais bonitas e magras que você em Havana.
– Você me acha gorda?
– Você não está em condições de se fazer de rogada e muito menos em se tratando de
alguém como Valmorain. Ele é um excelente partido e possui títulos e propriedades
na França, embora o grosso de sua fortuna seja uma plantação de cana-de-açúcar em
Saint-Domingue – explicou Sancho. (ALLENDE, 2010, p.34-35)

A ela cabe, portanto, aceitar as vontades e decisões de ambos, por mais absurdas
que pareçam. Quando, em momentos cruciais de sua vida, intenta apresentar alguma opo-
sição aos mandos e desmandos do marido, sua voz é calada, mediante um austero: “Não se
fala mais nisso!” (ALLENDE, 2010, p. 65). Também era comum que a dopassem, mediante o
4 | Cidade próxima à fazenda uso de drogas, caso se exacerbasse por não suportar algumas das situações a que era seguida-
de Toulose Valmorain, senhor
de escravos e proprietário de mente imposta, como quando ambos se hospedaram na casa do intendente de La Cap4,
Zarité, a protagonista.
porque seu marido queria que, no dia seguinte, assistissem a um evento público no qual es-

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
cravos rebeldes seriam mortos em uma fogueira, algo que ela se recusava a ver, posto que
estava grávida e assombrava-se com tamanho horror:

Seu marido rogou que baixasse a voz para que o resto da casa não a ouvisse, mas ela
continuou gritando. O intendente apareceu para saber o que estava acontecendo e
encontrou sua hóspede quase nua, lutando com o marido. O doutor Parmentier tirou
um frasco de sua maleta, e os três homens obrigaram a mulher a engolir uma dose
de láudano capaz de botar um bucaneiro para dormir. Dezessete horas mais tarde, o
cheiro de queimado que entrava pela janela acordou Eugenia Valmorain. Sua roupa
e a cama estavam ensanguentadas; assim acabou a ilusão do primeiro filho. (AL-
LENDE, 2010, p. 73-74).

Sucessivamente interditada em suas vontades e identidade, Eugenia acaba desenvolvendo


paranoias, delírios, comportamentos depressivos, até por fim, desligar-se quase que comple-
tamente da realidade, ou seja, enlouquecer:

Sete anos mais tarde, em 1787, num mês escaldante e fustigado por furacões, Eugenia
Valmorain deu à luz seu primeiro filho vivo, depois de várias gestações que lhe cus-
taram a saúde. Esse filho tão desejado chegou quando ela já não podia amá-lo. Trans-
formara-se num amontoado de nervos e perdia-se em estados mentais confusos e
caóticos em que vagava por outros mundos durante dias, às vezes semanas. Nesses
períodos de desvario, sedavam-na com tintura de ópio, e, no resto do tempo, acalma-
vam-na com as infusões de plantas de Tante Rose, a sábia curandeira de Saint-Laza-
re, que substituíam a angústia de Eugenia pela perplexidade, mais suportável para
aqueles que deveriam conviver com ela. (ALLENDE, 2010, p. 75).

É a voz interditada que não tem vez na sociedade. Foucault (2012, p. 10) nos dá
conta do que a história bem o demonstrou: “Desde a Alta Idade Média, o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos outros". Nesse aspecto, a narrativa desconstrói a ima-
gem de “humanidade” e “justiça”, normalmente atribuídas aos defensores dos ideais aprego-
ados pela Revolução Francesa.
O que Allende faz com essa obra é nos apresentar, embora de forma ficcionaliza-
da, a voz daquelas personagens a quem a história oficial calou, as mulheres, direta ou indi-
retamente envolvidas na revolução de São Domingos. Há uma imensa bibliografia destinada
a reconstituir os fatos ocorridos à época, mas toda ela se dedica a ilustrar ação decisiva de
homens que, contra ou a favor da revolução, nela ocuparam posições de comando, seja na
guerra, seja na política. Pesquisando em registros históricos variados, temos acesso a nomes
de vários destes heróis: Mackandal, Toussaint L’ouverture, Napoleão Bonaparte, etc, mas

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Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
nada encontramos sobre as mulheres que, agindo dentro de suas possibilidades, não se limi-
tavam a ações permitidas pelo sistema, mas se confrontavam com este, por meio de sua ou-
sadia, inteligência e coragem. É a essa história, recolhida dentro da História que temos aces-
so agora.

Zarité: identidade cultural e de resistência


Zarité contrapõe-se a essa dominação assumindo a perspectiva da construção de identidade
de resistência (Castells, 1999) pela perspectiva feminina e afetuosa, além de cultural. Assim,
tendo tido oportunidade de receber educação, tanto em sua cultura, de origem africana,
5 | Da plantação. quanto na cultura dita “branca” – já que era uma escrava “de casa” e não “do eito5”, como se
dizia na época –, Zarité desenvolve, desde menina, sensibilidade e perspicácia para entender
a violenta opressão à qual está submetida e encontrar, nos menores subterfúgios, espaço
para preservar sua integridade e liberdade, pelo menos internas. Na maior parte do tempo,
procura manter-se “invisível”, pois, aos brancos, só interessa a presença dos escravos quando
deles necessitam:

Dona Eugenia dormiu e eu me arrastei para o meu canto, onde a luz trêmula das
lamparinas não chegava. Tateei, procurando o prato, peguei um pouco do ensopado
de cordeiro com os dedos e pude perceber que as formigas haviam chegado primeiro.
Mas comi assim mesmo porque gosto do sabor picante delas. Estava na segunda
porção, quando o patrão e um escravo entraram, (...). Cobri o prato e esperei sem
respirar, fazendo força com o coração para que não prestassem atenção em mim.
(ALLENDE, 2010, p.67)

Isso faz dela um personagem-coringa (capaz de estar e circular nos mais diversos
ambientes sendo pouco notada) e lhe dá acesso a informações cruciais para a participação
em momentos estratégicos do enredo. É uma personagem dotada do que Lukács (1965) apon-
ta como um “caráter intermediário”. São escravos, crianças ou poetas que, por diferentes
motivos, circulam entre os principais grupos sociais envolvidos nos conflitos retratados,
conseguindo articular os “extremos essenciais do mundo representado no romance”, repre-
sentando “aquela figura em torno da qual se pode construir assim todo um mundo, na tota-
lidade de suas vivas contradições.” (LUCKÁCS, 1965, p. 78).
Porém, quando, em raras e curtas ocasiões, Zarité tem possibilidade de fazer uso
de sua voz e reflexão para com seu senhor, o faz com sabedoria, dando-lhe conta da teia de
paradoxos em que está inserto, ou fazendo-o recuar, ainda que momentaneamente, em suas
arbitrariedades. Um curto diálogo entre ambos demonstra essa sua habilidade:

– Espere,Tété. Vamos ver se nos ajuda a dirimir uma dúvida. O doutor Parmentier

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
acha que os negros são tão humanos quanto os brancos e eu afirmo o contrário. O
que você acha? – perguntou-lhe Valmorain, num tom que ao doutor pareceu mais
paternal do que sarcástico.
Ela permaneceu muda, com os olhos no chão e as mãos juntas.
– Vamos, Tété. Responda sem medo. Estou esperando....
– O senhor tem sempre razão. – murmurou ela, por fim.
– Ou seja, na sua opinião, os negros não são completamente humanos...
– Um ser que não é humano não tem opiniões, senhor.
O doutor Parmentier não pôde evitar uma gargalhada espontânea, e Toulose Valmo-
rain, depois de um instante de dúvida, riu também. Com um gesto, despediu a escra-
va, que desapareceu na sombra. (ALLENDE, 2010,p. 96)

No entanto, por motivos óbvios, não é o que acontece a maior parte do tempo,
em especial no contexto que precede o processo de revolta dos negros, marcado por uma
explosão de violência contra a minoria branca. Zarité precisa, na maior parte de sua vida,
calar o medo e suportar a violência, a fim de meramente manter-se viva. Desenvolve, para
isso, mecanismos de “escape” por meio dos quais resguarda sua identidade e lucidez. E, ape-
sar de toda a dor e opressão, reconhece-se como alguém diferenciado de seu dono e não
como mera “propriedade” dele, em um processo diametralmente oposto ao percorrido pela
esposa.
Aprende a sobreviver com pouco, a aproveitar as sobras, a esperar pelo momento
adequado para agir. Escapa, sempre que possível, da violência sexual, embriagando seu dono
de modo que a ele lhe pareça que está sendo atendido em suas ânsias. Quando não o conse-
gue, suporta fisicamente a situação, escapando mentalmente dela:

Tété havia aprendido a se deixar usar com a passividade de uma ovelha, o corpo
frouxo, sem opor resistência, enquanto sua mente e sua alma voavam para outro
lugar. Assim, seu patrão acabava logo e depois desmoronava num sono de morte.
Sabia que o álcool era seu aliado se o administrasse na medida certa. Com uma ou
duas taças, o patrão se excitava, com a terceira devia ter cuidado porque se tornava
violento, com a quarta o envolvia a neblina da embriaguez e, se ela o evitasse com
delicadeza, dormia antes mesmo de tocá-la. (ALLENDE, 2010, p. 113).

Exemplificando o quanto a obra se esforça no sentido de desconstruir o pensa-


mento hegemônico dominante, em um trecho em que a voz é passada à própria Zarité, ela
narra as desventuras de seu primeiro grande amor, Gambo, quando da ocasião em que é
raptado de sua tribo na África, trabalho feito por membros de uma tribo inimiga, e levado
aos brancos, para ser vendido e escravizado:

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


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Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
Foi quando Gambo viu os brancos pela primeira vez e achou que eram demônios;
depois ficou sabendo que eram gente, mas nunca acreditou que fossem humanos
como nós. Estavam vestidos com panos suados, couraças de metal e botas de couro,
gritavam e batiam sem motivos. Nada de caninos ou de garras, mas tinham pelos na
cara, armas e chicotes, e seu cheiro era tão repugnante que nauseava os pássaros no
céu. (ALLENDE, 2010, p. 128-129)

A presença de várias vozes conduz a um embate discursivo em torno da questão


que sustenta a Pós-modernidade – em que apenas o discurso permite a identidade – e esses
discursos refletem a heteroglossia, pois cada discurso parte de um lugar social diferente, o
que, por sua vez, revela uma intensa intertextualidade. Gardiner (1996, apud VELASCO MA-
RÍN, 2007, p. 552) ressalta que a pergunta medular da crítica literária feminina é: “Quem
está falando quando uma mulher diz: ‘eu sou?’ ”.
Em A Ilha sob o Mar, esse processo de identificação se marca, entre outras coisas,
pela preservação do próprio nome, como bem registra a personagem: “Aprendeu a me
chamar Tété, como todo mundo, menos alguns que me conhecem por dentro e me chamam de
Zarité” (ALLENDE, 2010, p. 145. Grifo nosso). Zarité reconhece-se como alguém dotado de
personalidade e subjetividade próprias, embora todo o sistema no qual está forçosamente
inserida insista em fazê-la considerar-se uma “coisa”. Apenas aqueles com quem se relaciona
por vontade própria reconhecem-na como pessoa. Esse reconhecimento se materializa na
expressão verbal de seu nome, afinal os brancos proprietários de escravos tinham por hábito
dar a eles apelidos ou nomes normalmente usados em animais, como “Saltador”, “Brincalhão”,
“Fido”, etc... (BLACKBURN, 2003, p. 393). Figueiredo e Noronha (2005, p.191) também nos
vêm reforçar essa perspectiva, ao afirmar que todo embate construído na história é um
embate pela identidade: só reclama pela identidade aquele que não é reconhecido pelo outro.

A identidade de resistência: deuses que dançam e conclamam à revolução


A obra analisada insere-se em um processo de revisão histórica, dando visibilidade aos
valores e cultura contra-hegemônicos daqueles que antes não tinham vias por meio das
quais se expressar. Essa revisão se faz possível, entre outros motivos, porque já não é mais
plausível pensar em uma divisão da sociedade tão maniqueísta quanto a que previa limites
claros entre uma identidade central e outra, à margem desta. Um dos procedimentos dessa
literatura, na qual Allende se integra, é a subversão dos valores e cultura hegemônicos,
dando voz ao que antes era considerado o Outro, aquele que estava à margem da sociedade,
cuja língua e versão dos fatos não eram consideradas legítimas diante da sociedade em que
se encontravam. O contraste entre ambos os extremos faz-se presente em várias passagens da
narrativa, como nesta em que, por estarem Zarité e sua filha Rosette presas e correndo

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
perigo, a escrava pede ajuda a sua deusa de devoção, rejeitando a prece proferida por outra
das presas, em louvor à Virgem Maria:

Às suas costas, ouviu a mulher se despedir com palavras conhecidas,


porque as tinha ouvido de Eugenia: ‘Virgem Maria, mãe de Deus, ro-
gai por nós, pecadores.’ Tété respondeu em seu íntimo, porque a voz
não lhe chegou aos lábios secos: ‘Erzuli, loa da compaixão, proteja Ro-
sette’. (ALLENDE, 2010, p. 247)

Outro motivo que, sob nossa ótica, tem possibilitado a emergência da voz do dito
marginalizado, em especial no tocante aos povos de origem africana, está no fato de que,
apesar de toda a opressão e ofensa que sofreram, os valores e a cultura das pessoas que
vivenciaram na pele, através de gerações, a terrível experiência da escravidão, perpetuaram-
se através do tempo e chegaram até nós. Podem hoje reclamar seu direito à voz e à sua
própria versão dos fatos, por conta, entre outros fatores, da exaltação às suas tradições,
vivenciada em seus rituais de religião e dança, elementos-chave na construção de sua
identidade de resistência enquanto povo cultural e politicamente oprimido por séculos.
Esses rituais, além de permitirem a perpetuação dos valores e cultos vinculados
à origem africana, consagravam novos partícipes à invocação aos deuses de seus antepassados
e à experimentação dos “transes” espirituais a que sua fé lhes conduzia. Claramente, sobre
estes momentos, como bem o descreve Allende (2010), a cultura branca hegemônica não
tinha nenhum poder, entendimento ou controle. Aos olhos dos brancos, cuja cultura
religiosa cristã divide o corpo e alma em duas partes distintas, desagregadas e opostas uma
à outra, os rituais relativos à religiosidade africana tinham um aspecto considerado como de
feitiçaria e descontrole, inclusive por valorizar como sagrado exatamente o oposto: a união
entre o corpo e a alma. Não por acaso, a religiosidade de origem africana expressa-se, nesse
livro, de forma intensa e reiterada, através da dança. Allende ficcionaliza o imenso ritual em
que, na floresta, escravos e rebeldes teriam se decidido pela revolução:

Os tambores começaram a perguntar e a responder, a marcar o ritmo para a cerimô-


nia. As hounsis dançavam em volta do poteau-mitan, movendo-se como flamin-
gos, agachando-se ondulantes, os braços alados, e cantaram chamando os loas, pri-
meiro Légbé, como sempre se faz, depois os outros, um por um. (...). Os tambores
aumentaram de intensidade, o ritmo se acelerou, e a floresta inteira palpitava das
raízes mais fundas até as estrelas mais remotas. Então, Ogum desceu com o espírito
da guerra, Ogum-Feraille, deus viril das armas, agressivo, irritado, perigoso, e Er-
zuli soltou Tante Rose para dar passagem a Ogum, que a montou (...). Muito tempo

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


281
Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
6 | As expressões em negrito depois, quando a multidão estremecia como uma só pessoa, Ogum deu um rugido de
(grifadas pela autora)
parecem estar no assim leão para impor silêncio. Imediatamente os tambores se calaram, e todos, menos a
chamado dialeto créole,
próprio dos escravos que
mambo, voltaram a ser eles mesmos, e os loas se retiraram para a copa das árvores.
habitavam a ilha para Ogum-Feraille apontou o asson para o céu, e a voz do loa mais poderoso explodiu na
comunicar-se entre si.
boca de Tante Rose para exigir o fim da escravidão. (ALLENDE, 2012, p. 169-170)6 .

Não é, no entanto, necessário a alguém entender, nem ser adepto dessa forma de
religiosidade para entender essa integração que a dança provoca, destes dois polos que, para
a cultura cristã, estão tão resolutamente separados pelo pecado, o corpo e a alma. Esse
aspecto integrador da dança também terá seu reconhecimento em outras culturas. Maurice
Bejart, coreógrafo da emblemática cena de balé clássico representada ao final do filme
Retratos da Vida (LELOUCH, 1981), sob o som do “Bolero de Ravel”, assim define o resgate
dessa união, propiciado pela dança: “A dança é uma das raras atividades humanas em que o
homem se encontra totalmente engajado: corpo, espírito e coração” (BÉJART apud
GARAUDY, 1980, p. 8-9).
Como a cena descrita por Allende pode demonstrar, durante o ritual religioso, há
hierarquias, vozes de comando e sinais a serem respeitados. Os que, em uma plantação de
cana, reduzem-se a escravos, em uma roda ritualística de dança e expressão religiosa, podem
perfeitamente ocupar a condição de liderança. O deslocamento, aqui, é cultural e ritualístico
e propicia a preservação ou a reinvenção das identidades, em um movimento de resistência
à aculturação insistentemente tentada pelo catolicismo. “Um caráter subversivo seria
atribuído a qualquer expressão religiosa de ordem não católica” (BARZOTTO, 2011, p. 7),
mas ele persistiu. No tempo e no espaço, público e privado.
Esse aspecto, no livro, se coaduna com os estudos teóricos sobre a escrita de
autoria feminina no diz respeito à abordagem relativa à religiosidade e à mitologia. Cunha
(2004, p. 17) evidencia que “talvez para chegar ao fundo da dominação que, historicamente,
tem padecido a mulher, e libertá-la, as escritoras sentem a necessidade de questionar ou
desmistificar não somente a história nacional, como também a mitológica e religiosa”. Em
um ambiente dominado pelo catolicismo, os deuses contra-hegemônicos de Zarité e seus
amigos são símbolos de sua identidade e não subserviência:

Honoré sempre me falava da Guiné, dos loas, do vodu, e me advertiu de que eu


nunca pedisse ajuda aos deuses dos brancos, porque são nossos inimigos. Explicou-me
que, na língua de seus pais, vodu quer dizer espírito divino. Minha boneca represen-
tava Erzuli, loa do amor e da maternidade. Madame Delphine me fazia rezar para a
Virgem Maria, uma deusa que não dança, só chora, porque mataram seu filho e
porque nunca teve o prazer de estar com um homem. (ALLENDE, 2010, p. 49)

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Encontram-nos também em rituais que afrontam a moral e os costumes brancos:

Na praça do Congo, dançávamos do meio-dia até a noite, e os brancos vinham se


escandalizar; porque, para lhes gerar maus pensamentos, mexíamos as nádegas
como redemoinhos, e para lhes causar inveja nos esfregávamos como tórridos
amantes. (ALLENDE, 2010, p. 264.)

Contudo, não só para escandalizar os brancos, Zarité cultiva seus deuses. Dessa fé extrai
grande parte da força que a mantém íntegra, mais uma vez, em sua identidade. É,
subjetivamente falando, um exercício de liberdade:

Os tambores vencem o medo. Os tambores são a herança de minha mãe, a força da


Guiné que está no meu sangue. Ninguém então pode comigo, torno-me incontrolável
como Erzuli, loa do amor, e mais veloz que o açoite. Os búzios chacoalham nos meus
tornozelos e nos meus pulsos, as cabaças perguntam, os tambores Djembes respondem
com sua voz de floresta e os timbales com sua voz de metal, os DjunDjuns que sabem
falar convidam e o grande Maman ruge quando o tocam para chamar os loas. Os
tambores são sagrados, e é através deles que falam os loas. (ALLENDE, 2010, p. 7 )

Cabe aqui observar que se impõe a autenticidade da linguagem de origem


africana. Allende não traduz as expressões de cunho religioso e, como leitores, se não as
encontramos traduzidas em alguma outra fonte, cabe-nos deduzir, aceitar. Somos
confrontados novamente com o uso de estratégias linguísticas envolvendo as relações de
poder, confirmando as teorizações de Richards (1996) no que concerne a esse aspecto,
desmontando as pressuposições tradicionais segundo as quais a linguagem seria “neutra”. A
resistência cultural se nos defronta dessa vez pelo caminho contrário ao da aculturação
hegemônica, pois ao leitor é imposta a necessidade de entender, com seus próprios recursos,
o discurso da personagem, confortável e vibrante em suas convicções religiosas.
Aderimos aqui a um dos principais objetivos da crítica literária que é o de
ressignificar as práticas mediante as quais uma cultura escolhe guardar alguns textos como
memória de seu passado, mantendo outros à margem deste. O compromisso se amplia na
medida em que procura ampliar a intervenção do texto no campo da política. Como Barzotto
(2001), tomamos a história de Zarité e de sua libertação pessoal como uma metonímia da
libertação do Haiti do domínio que o mantinha na condição de colônia da França. Ambas as
liberdades tiveram a religião, a dança e as relações que nelas se estabelecem como apoio à sua
libertação. Por caminhos tortuosos e alternativos, alcançaram seus objetivos. Há muito
ainda a ser feito, porque a dominação também encontra formas outras de se perpetuar. Mas

Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


283
Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
a literatura e a arte, como o corpo e alma de quem dança, hão sempre de encontrar ritmos
através dos quais as identidades culturais possam se expressar, libertando-se.

Conclusões
Conforme se observou ao longo desta análise, é justamente em caminhos que se desenvolvem
a revelia da organização sociocultural hegemônica do sistema em que estava inserida – em
especial através da dança e da religião – que Zarité Sedella, a protagonista de A ilha sob o mar,
logra alcançar seus objetivos pessoais, entre os quais a liberdade e o reconhecimento junto
àqueles com quem se identifica e com quem deseja estar.
Mediante a lógica racional e calculista sobre a qual se sustentava todo o sistema
dominante, somada ao rigor e à desumanidade a que estava submetida a população
escravizada, a possibilidade de que a personagem obtivesse tais sucessos, era, em tese,
inexistente. No entanto, havia trincheiras e subterfúgios a ocupar em espaços – físicos ou
imaginados – em que a personagem podia desenvolver todo o seu potencial humano. Esses
espaços se constituíram, primordialmente, em rituais de religião e dança, em que era possível
estar fora do alcance da dominação exercida pelo sistema e manter vivas, tanto suas tradições
e cultura, quanto as relações de afeto e cuidado mútuos entre ela e seus pares.
Essa estratégia confirma a pertinência da aplicação do conceito de identidade de
resistência à obra aqui analisada, bem como demonstra a necessidade de se complementar as
versões mais conhecidas da história com outras, como esta aqui apresentada, de forma a
enfrentar toda a violência, física ou moral, que o preconceito, normalmente advindo da
ignorância, pode perpetuar.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
ALLENDE, Isabel. A Ilha sob o Mar. Trad. de Ernani Ssó. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BARZOTTO, Leoné Astride. A fé como estratagema cultural libertador. In: Anais do XII Congresso
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BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo. Trad. de Maria Beatriz de Medina. Rio de
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CUNHA, Gloria da (Ed). La narrativa histórica de escritoras latinoamericanas. Buenos Aires: Corregidor,
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FIGUEIREDO Eurídice e NORONHA, Jovita Maria. Identidade nacional e identidade cultural. In:
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Milena Campos Eich | Ana Cristina dos Santos


285
Identidade de Resistência em A ilha sob o Mar
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GARADAY, Roger. Dançar a vida. Trad. de Gloria Mariani e Antonio Guimarães Filho. 5 ed Rio de
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HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo: História, teoria, ficção. Trad. de Ricardo Cruz. Rio de
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JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ourveture e a revolução de São Domingos. Trad. de


Afonso Teixeira Filho. 1ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010.

LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. In: LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Trad. de Giseh Vianna
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VELASCO MARÍN, María Adriana. La crítica feminista, el dedo en la llaga o el cuestionamiento al canon
literario. In: GUARDIA, Sara Beatriz (ed). Mujeres que escriben en América Latina. Perú: Centro de estudios
de la mujer en la Historia de América Latina (CEMHAL), 2007, p. 551-2.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Cinco novelas, cinco escritoras
chilenas actuales

Five novels, five current


chilean writers

Carmen Balart Carmona


Universidad Metropolitana de
Ciencias de la Educación (UMCE),
Santiago, Chile, Dra. en Filosofía
mención Literatura General,
Decana Facultad de Historia,
Geografía y Letras.

cbalartc@gmail.com

Irma Césped Benítez


Irma Césped Benítez, Profesora
Emérita, Universidad Metropolitana
de Ciencias de la Educación
(UMCE), Santiago, Chile, Profesora
de Castellano, Licenciada en
Educación.

irma.cesped@gmail.com
Resumo Abstract
Para el artículo, se han elegido cinco novelas Five current Chilean novels, published between
chilenas actuales, publicadas entre 1982 y 1999, 1982 and 1999, written by five women: Isabel
escritas por cinco mujeres: Isabel Allende, Ana Allende, Marcela Serrano, Ana María del Río,
María del Río, Andrea Maturana, Sonia González, Andra Maturana, Sonia González, were chosen
Marcela Serrano. El objetivo es saber qué acontece for the article. The objective is to know what
con la literatura creada por mujeres: analizar los happens with the literature created by women:
temas recreados y el modo cómo se estructura el analyze recreated topics and the way how is
relato, atendiendo a la figura del narrador, al structured the story, according to the figure of the
mundo creado y al mensaje que la obra entrega, storyteller, the created world and the message
según la visión de mundo que construye. that the work delivery, according to the image of
world building.
Palabras clave: novelas chilenas actuales,
escritoras chilenas, narrador, mundo creado, Keywords: novels current chilean, chilean writer,
lector. narrator, world created, reader.
P
ara el presente artículo, hemos seleccionado un corpus de cinco novelas chilenas,
publicadas, en 1ª edición, entre 1982 y 1999. Hemos elegido un período aproxima-
do de 20 años y solamente a escritoras, pues se busca dar a conocer qué pasa con
la literatura escrita por mujeres, intentando recuperar los diferentes temas y veri-
ficar las estructuras narrativas, con el fin de mostrar el universo plural y multifacético en
que se desenvuelven las creadoras literarias en el orbe del presente.
No nos mueve ninguna motivación feminista preconcebida, particular e ideoló-
gica, sino sencillamente centrarnos en un corpus narrativo creado por mujeres para aden-
trarnos en el cosmos instituido en palabras y de qué modo se expresa el mundo interior, la
relación entre la mujer y el espacio externo, la búsqueda de identidad existencial y social, el
modo peculiar e íntimo de descubrir una verdad, la propia, en un mundo real, histórico,
social, cultural, que defiende los paradigmas establecidos.
En el análisis, se considerarán los siguientes aspectos, atendiendo a los elemen-
tos claves que favorezcan la interpretación de la obra: (a) Presentación de la novela. (b)
Narrador. (c) Construcción de mundo. (d) Visión de mundo implícita. (e) Síntesis. A las
obras analizadas, las hemos clasificado de acuerdo con la estructura particular que orga-
niza a la novela.

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


289
Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
De las escritoras se indica el año de nacimiento; y de las novelas seleccionadas, el
año de la primera edición. El orden en el trabajo atiende a la fecha de nacimiento:
• Isabel Allende (chilena nacida en Perú, 1942): La casa de los espíritus, Sudamerica-
na, Buenos Aires, 1982.
• Ana María del Río (Santiago, 1948): Siete días de la señora K, Planeta, Santiago,
1993.
• Marcela Serrano (Santiago, 1951): Nuestra Señora de la Soledad, Alfaguara, Ciudad
de México, 1999.
• Sonia González (Santiago, 1958): El sueño de mi padre, Planeta, Chile, 1998.
• Andrea Maturana (Santiago, 1969): El daño, Alfaguara, España, 1997.

2. Último tercio del siglo XX en Chile: La producción literaria


En el último tercio del siglo XX, en Chile, se produjo un incremento en la producción litera-
ria de carácter narrativo. Pasado el primer impacto del golpe de Estado, septiembre de 1973,
aparecieron títulos y autores que buscaron comprender, analizar y explicar los aconteci-
mientos del trienio que cerró la centuria. La temática y la estructura de estas obras se enmar-
can en el imaginario de la tradición vernacular enriquecida con la experiencia narrativa
universal; sin embargo, también reflejan el impacto de los acontecimientos socioculturales
acaecidos en Chile, ya sea en una representación descriptiva ya sea en una recreación simbólica.
El referente histórico afectó el modo de configurar la estructura del narrador y el
modo de configurar la realidad en algunos de los tipos de novelas producidas desde fines del
siglo XX; pues la novela debió satisfacer las necesidades de un lector que deseaba comprender
el momento vivido y, asimismo, leer relatos que referían intrigas en las que participaban
personajes de ficción con los que se podía identificar y vivir el heroísmo narrativo. De allí la
proliferación de novelas, como la de aventuras, la de ciencia ficción, la de misterio, la policial,
la testimonial, la sentimental o rosa, el thriller.
La narrativa actual plantea una nueva visión de mundo, una diferente perspecti-
va de cultura y de pensamiento y, con ello, nos obliga a replantear nuestra propia vida para
adoptar una actitud acorde con los cambios de nuestro tiempo y espacio. En esta nueva so-
ciedad en la que nos movemos, en donde, por el ajetreo diario y la inconsciencia existencial
de una sociedad enajenante, tener noción de cultura pareciera tan ajeno como la necesidad
de ser con los otros en una unidad total.
Las escritoras en las que se centra nuestro trabajo son herederas de los aportes de
las generaciones de narradores que las precedieron. La fuerte vinculación histórico-social
anterior a 1973, evidente en las narraciones sociales de Manuel Rojas, en las urbanas y rurales
de Óscar Castro y Marta Brunet, en los relatos psicológicos de María Luisa Bombal, en el
realismo mágico de Fernando Alegría, en los cuentos policiales de Alberto Edwards y de Luis
Enrique Délano, se mantiene en la narrativa posterior con significativas variantes.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
3. El nuevo sistema de interpretaciones y de creencias
La narrativa chilena, a partir del último tercio del siglo XX, está marcada por los cambios
que se producen en el entorno nacional y mundial. Estas transformaciones se reflejan en la
creación literaria, en el decir del narrador, en el sistema de creencias, en el modo de concebir
la realidad, en el enfoque a la acción narrada, en la manera de ubicar a los personajes ante la
historia, en la forma de expresar el mundo interno; innovaciones que afectarán a la forma y
al contenido del mensaje.
Todos elaboramos, en relación con la realidad externa, un sistema de interpreta-
ciones que da significado a las instituciones y a las palabras; y que nos permite enfrentar el
caos de la contingencia temporal. Le es inculcado a cada persona desde antes del nacimiento,
por su grupo familiar y social. Forma parte de la educación y permite una integración al
núcleo social y a la comunidad.
Estos sistemas de creencias, que guardan relación con el concepto de devenir que
tienen el autor y los personajes, se reflejan en el mundo poético como un imaginario vincu-
lado con el tiempo-espacio generado en la obra y permiten determinar las razones que mue-
ven a los personajes y al narrador en una determinada dirección. En la medida en que el
imaginario y los parámetros dentro de los cuales se mueve el autor, logren comunicarse al
lector, el texto trasciende a su autor. Esto hace posible que se descubren nuevas interpreta-
ciones de una obra; y, de esta forma, la novela conquista la universalidad que le permite ser
valorada y comprendida a lo largo del tiempo.

4. Composición y estructura de novelas chilenas de fines del siglo XX


Interrogarnos sobre la contingencia, utilizando el camino metafórico de la novela, implica
una forma de hacer visible nuestro mundo por medio de la lectura y de la imaginación; y
una posibilidad de acceder a una profunda comprensión de la realidad en la que estamos
inmersos, por cuanto se la percibe desde diferentes perspectivas.
Con los elementos que el referente entrega: la vida que vivimos, y con la elección
de una forma ofrecida por la tradición, el narrador genera su mundo: la vida cómo la leemos
en una novela. El narrador ordena el cosmos creado como un demiurgo, como un sabio en-
cantador, aunque la imagen de sí mismo, de sus semejantes, de los valores de su entorno, se
hayan degradado.
Desde el punto de vista de la interpretación del mundo, la novela es la antítesis
de la epopeya y de la narrativa del siglo XV. Debido a los cambios que se han producido en
las visiones de mundo, se quebranta la omnisciencia del narrador, los espacios se desacrali-
zan, las acciones pierden trascendencia y los héroes se transforman en antihéroes.
Si consideramos que la novela es un documento que permite conocer la evolu-
ción de una comunidad, debemos concluir que, más allá de la voluntad explícita del creador,
refleja los cambios del imaginario, el horizonte vital, la concepción de hombre, de sociedad

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


291
Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
y de las relaciones que se establecen. En el modo de organizar el relato, la nueva narrativa
chilena mantiene las estructuras tradicionales, pero cambia la intencionalidad, el sentido.
El acontecer social y político es un referente al que la literatura, al igual que toda
manifestación humana, no puede estar ajena, pero lo construye como expresión simbólica
de la sociedad. El relato finisecular no se interesa en la construcción novelesca por el valor
estético que representa, sino por la posibilidad que ofrece de denunciar una situación de
crisis o de ofrecer una posible salida, que implica un sentido personal para una vida que se
despliega en un contexto socio-histórico determinado.
Los cinco tipos de novela que analizaremos en cuanto estructuras narrativas que
se despliegan en un tiempo-espacio, revelan cómo se presentan las nuevas condiciones socio-
culturales; y proponen una visión de mundo a través del modo de representar la realidad en
el mundo creado y de la figura del narrador como espacio de conciencia personal o colectiva:
• Novela del realismo mágico. Se articula desde una doble perspectiva: (a) con-
tar, desde la ficción literaria, enmarcada en la realidad externa, la historia misma del país
y cómo esta historia condiciona la vida de los personajes; (b) destacar, como una posibili-
dad salvadora que permite superar el determinismo socio-histórico, la presencia de los
dones sobrenaturales que, de forma innata, poseen ciertas personas, lo que hace posible,
en el relato, la presencia de lo mágico-maravilloso: La casa de los espíritus, de Isabel Allende.
• Novela de género. Producto del despertar de la mujer, plantea una situación
propia de la época contemporánea: el respeto y valoración que merece como persona inde-
pendiente, dueña de su cuerpo, su tiempo y su mente. Así, la mujer asume, dentro de la
sociedad, un lugar específico, reivindicando los derechos femeninos: Siete días de la señora
K, de Ana María del Río
• Novela estructurada en torno al viaje. Presenta, a través del hecho concreto
del desplazamiento del héroe o de la heroína de un espacio a otro, el cambio interior que
se produce, al dejar el espacio habitual para enfrentar lo desconocido. El movimiento está
impulsado por una necesidad externa o por la propia voluntad: El Daño, de Andrea Matu-
rana.
• Novela autobiográfica. Es un tipo de relato que se traduce en un discurso ínti-
mo que sugiere algo personal, en el que cobra valor el yo, en cuanto conciencia que se
busca a sí misma y que busca a los otros yo semejantes a él; por ello, se representa en su
trayectoria existencial. La novela es un medio para entender el porqué estoy aquí y cómo
llegué hasta aquí. El recuerdo es el opción más valedera tanto para recrear el pasado y
comprender el presente: el valor de la memoria histórica; como para conocernos a noso-
tros mismos y a quienes nos rodean: el valor de las personas: El sueño de mi padre, de Sonia
González.
• Novela de misterio. Este tipo de relato juega con el secreto que debe ser desci-
frado y que impone una construcción temporal en la que, en el presente de la búsqueda en

Cerrados nº 38
292
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
el que se intenta resolver el enigma, gravita el pasado que se investiga y se proyecta a un
mañana, el de la solución del misterio: Nuestra Señora de la Soledad, de Marcela Serrano.

5. Novela del Realismo Mágico: La casa de los espíritus, Isabel Allende


1 | Allende, Isabel. La casa de
5.1. Presentación de la novela. La historia novelada de Chile. La casa de los espíritus 1, los espíritus. Buenos Aires:
Sudamericana, 1992. Las citas
publicada en 1982, narra la vida de tres generaciones de la familia de Esteban Trueba, y su de la novela pertenecen a
hilo conductor es la participación en los hechos y en los procesos más amplios. Asimismo, esta edición. El nº de página
se consigna entre paréntesis.
denuncia los principales vicios retardatarios de Chile y América Latina: el autoritarismo, la
violencia, el militarismo, la prepotencia, el machismo.

5.2. Narrador. El orden de los acontecimientos. Un narrador básico cuenta, en orden cro-
nológico, desde 1930 hasta 1975, esta ficción; junto con él, están las voces narrativas de Este-
ban, Clara y Alba.
Los catorce capítulos que estructuran la novela persiguen un doble objetivo: (a)
referirse a la historia de Chile desde una óptica personal, revolucionaria; (b) denunciar los
poderes que ejercen algunos grupos sociales y familiares. Aunque, no logran tener
verdadera significación socio-política, ejercen una influencia local que les permite actuar
de modo arbitrario y excéntrico, imponiendo, con autoritarismo, su voluntad, y, con
prepotencia machista, la violencia y el militarismo. Así, los últimos cuatro capítulos, El
Despertar, La Conspiración, El Terror y La Hora de la Verdad, se cargan con un énfasis político,
evidente en sus títulos.
No es objetivo ni realista el narrador básico, porque presenta a los personajes
enmarcándolos en un proceso mítico, evidente en el retrato de Rosa:

“Al nacer, Rosa era blanca, lisa, sin arrugas, como una muñeca de loza, con el cabe-
llo verde y los ojos amarillos, la criatura más hermosa que había nacido en la tierra
desde los tiempos del pecado original, como dijo la comadrona santiguándose. […] A
los dieciocho años Rosa no había engordado y no le habían salido granos, sino que se
había acentuado su gracia marítima. El tono de su piel, con suaves reflejos azulados,
y el de su cabello, la lentitud de sus movimientos y su carácter silencioso, evocaban
a un habitante del agua. Tenía algo de pez y si hubiera tenido una cola escamada
habría sido claramente una sirena.” (p. 8-9).

En tanto que Rosa es un ser marino, del agua; Clara, su hermana, es aérea, dota-
da con el don de la visión. A los diez años, un Jueves Santo, en la ceremonia, ante todos los
feligreses, había sido acusada por el Padre Restrepo, de ser “soberbia” y de estar “endemonia-
da”. Y no era de extrañar, porque interrumpió la ceremonia con una impertinente frase
infantil:

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
“-¡Pst! ¡Padre Restrepo! Si el cuento del infierno fuera pura mentira, nos chingamos
todos...” (p. 9)

Las palabras del sacerdote

“permanecieron en la memoria de la familia con la gravedad de un diagnóstico […]


Los poderes mentales de Clara no molestaban a nadie y no producían mayor desor-
den; se manifestaban casi siempre en asuntos de poca importancia y en la estricta
intimidad del hogar. Algunas veces, a la hora de la comida, cuando estaban todos
reunidos en el gran comedor de la casa, sentados en estricto orden de dignidad y go-
bierno, el salero comenzaba a vibrar y de pronto se desplazaba por la mesa entre las
copas y platos […] También se habían habituado a los presagios de la hermana me-
nor. Ella anunciaba los temblores con alguna anticipación, lo que resultaba muy
conveniente en este país de catástrofes.” (p. 9-10).

El narrador asume diversas perspectivas: narra tanto desde una posición externa
como desde la interioridad de sus personajes. Repentinamente, sin transición, la voz del
narrador puede ser reemplazada por la de alguno de ellos. Es el caso de Esteban que recuerda
y describe su encuentro con Rosa:

El “momento preciso en que Rosa, la bella, entró en mi vida, como un ángel distraído
que al pasar me robó el alma. […] Habitualmente no ando pendiente de las mujeres,
pero habría tenido que ser tarado para no ver esa aparición que provocaba un tu-
multo a su paso y congestionaba el tráfico, con ese increíble pelo verde que le enmar-
caba la cara como un sombrero de fantasía, su porte de hada y esa manera de mo-
verse como si fuera volando. Me quedé en la calle, estupefacto.” (p. 18).

En el decir de Esteban hay humildad, timidez y profundo amor por Rosa. Con-
mueve su dolor cuando se entera de que ha muerto envenenada. Sin embargo, presentado
por el narrador, el personaje adquiere tintes arquetípicos o caricaturescos, absolutamente
determinado por lo social.

5.3. Construcción de mundo. Personajes y entorno socio-político


Esteban es un empresario, minero, agricultor y financiero, un espíritu emprendedor y am-
bicioso, que ve la vida desde esa doble perspectiva y cree que esos afanes son básicos en la
existencia. Su posición social, económica y la época en que vive determinan su pensamiento
y su quehacer. Por él sabemos que nació alrededor de 1885 y muere cumplidos los noventa
años, en 1975.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
En lo político, Trueba es conservador y sus enemigos acérrimos son los comunis-
tas, frente a los cuales hace todo cuanto puede para destruirlos, hasta ser abiertamente gol-
pista en el período 1970-1973.
En la vida de Esteban y de su familia, se conjugan tres factores: (a) La clarividen-
cia de Clara, la esposa. (b) La opción político-amorosa de sus descendientes, que los lleva a
comprometerse en acciones extremistas, como el tráfico de armas y el encubrimiento políti-
co. El senador Trueba es fiel representante de su clase social; mas sus hijos y nieta son casi
desclasados, ya que sus amistades y afectos los establecen sin considerar para nada la posición
del pater familiae. Uno de los hijos llega a plantearse la necesidad de cambiarse de apellido
para no cargar con semejante lastre. (c) El tercer factor lo constituyen los avatares de una
novelada historia de Chile entre 1930 y 1975, que permite narrar y explicar la vida de los
Trueba, atendiendo al hilo conductor de participación en hechos y en procesos más amplios.
La relación entre Esteban y sus inquilinos describe las circunstancias sociales en la hacienda.
Lo anterior lleva a distinguir dos tipos de protagonismos: (a) Protagonismo con-
servador, que encarna Esteban Trueba, un terrateniente capitalista, progresista en lo econó-
mico y retardatario en lo social, por su autoritarismo, su machismo y su percepción discri-
minatoria de sus subordinados y del pueblo. Su visión es la de un conservador que puede ser
benefactor; pero que se esfuerza por mantener la condición social: otorga educación y vivien-
da a sus inquilinos, mas se niega a una democracia real. (b) Protagonismo transformador,
que se encauza en la versión democrática que tiene Jaime, hijo de Trueba, un médico que
pasa con Allende sus últimas horas en La Moneda y es ejecutado días después; y en la versión
revolucionaria de Miguel, un dirigente estudiantil, amante de la nieta de Trueba y que ads-
cribe a la vía armada.
Entre los personajes, destacan: Clara, la esposa, la clarividente; Rosa, quien, desde
su nacimiento, estuvo dotada de belleza; y, una vez muerta llegó a adquirir rasgos sobrena-
turales. Ambas eran hijas de Severo del Valle y de Nívea. Severo era ateo y masón, pero sus
ambiciones políticas le imponían ciertas obligaciones sociales, por ejemplo, ir a misa, para
que todos lo vieran. Nívea prefería entenderse con Dios sin intermediarios, y apoyaba a su
marido en sus ambiciones parlamentarias, pensando en el voto femenino, por el cual lucha-
ba desde hacía diez años, sin que sus numerosos embarazos (quince) lograran desanimarla.

5.4. Visión de mundo implícita. ¿Destino o libre albedrío?


El mensaje de la obra alude a paradigmas inspiradores de la novela: (a) cierto organicismo,
una interdependencia entre el todo y las partes; (b) un fatalismo de adhesión a una creencia
en lo inevitable, lo insoslayable, lo predestinado.
En el texto se manifiesta una particular relación entre las personas y sus antece-
sores inmediatos o lejanos, en el sentido de que los descendientes nacen con una carga que
los hará participar en ciertos hechos, más o menos traumáticos, con el papel inverso al que

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
jugó el antepasado (si fue víctima será victimario y viceversa) y todo esto ligado a un afán de
venganza del sacrificado. Esta suerte de esquema causal lo intuye Alba, nieta de Esteban,
luego de estudiar toda la documentación que logra reunir de su familia y cuando, a su vez,
ha sido víctima y se prepara para dar a luz a un hijo que podría ser fruto de la violación co-
metida por un hijo ilegítimo de Trueba, quien busca vengar la violación de su madre y el
amancebamiento que le fue impuesto.
Los distintos personajes tienen una visión de mundo diferente; pero, la más im-
portante es la de Alba, quien cierra la saga de los Trueba:

“En la perrera escribí con el pensamiento que algún día tendría al coronel García
vencido ante mí y podría vengar a todos los que tienen que ser vengados. Pero aho-
ra dudo de mi odio. […] Sospecho que todo lo ocurrido no es fortuito, sino que corres-
ponde a un destino dibujado antes de mi nacimiento y Esteban García es parte de ese
dibujo. […] El día en que mi abuelo volteó entre los matorrales del río a su abuela,
Pancha García, agregó otro eslabón en una cadena de hechos que debían cumplirse.
Después el nieto de la mujer violada repite el gesto con la nieta del violador […] y así,
por los siglos venideros, en una historia inacabable de dolor, de sangre, de amor. […]
En algunos momentos tengo la sensación de que esto ya lo he vivido y que he escrito
estas mismas palabras, pero comprendo que no soy yo, sino otra mujer, […] mi
abuela Clara escribía en sus cuadernos, para ver las cosas en su dimensión real y
para burlar a la mala memoria. Y ahora yo busco mi odio y no puedo encontrarlo.
[…] Quiero pensar que mi oficio es la vida y que mi misión no es prolongar el odio,
sino solo llenar estas páginas mientras espero el regreso de Miguel, mientras entierro
a mi abuelo que ahora descansa a mi lado en este cuarto, mientras aguardo que lle-
guen tiempos mejores, gestando la criatura que tengo en el vientre” (p. 362-363).

De este párrafo, se desprende una creencia generada en la cultura griega con el


mito de Edipo y sus hijos; y, reflotada por el naturalismo del francés Emilio Zolá, que esta-
blece un determinismo transmitido mediante herencia. La culpa de los padres respecto a
ciertos hechos es pagada por sus descendientes, instaurándose una trama de relaciones no
fortuitas en las que el pasado y los antepasados juegan un papel crucial. El mundo anterior
de Alba no admite la libertad. El tiempo concebido en la novela es el cumplimiento de un
destino de familia, como lo verbaliza la nieta de Esteban.
Los personajes hasta el desenlace se inscriben en una cadena de acontecimientos
que deben cumplirse inexorablemente. Ellos tienen voluntad de acción y de poder, pero no
logran crear nuevas realidades acordes con su utopía. El cambio ocurre porque así está fija-
do. Hay una suerte de ley en la evolución, aunque esta ley admite excepciones a nivel indivi-
dual. Esteban piensa, por ejemplo, que él debió ser un empleaducho; pero que, gracias a su

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
esfuerzo y ambición, se ha convertido en un hombre rico; no obstante, está imposibilitado
para cambiar el curso de los acontecimientos del país.

5.5. Síntesis. Valor de la literatura


El para qué explícito de la novela se hace evidente a través de la necesidad de demarcar el hilo
conductor de la historia de Chile en el período comprendido entre 1930-1975 y cómo condi-
ciona la vida de ciertos personajes. El para qué implícito se deduce desde la historia de la fa-
milia Trueba, que permite rescatar el pasado y generar una esperanza que facilite sobrevivir
mejor al conflicto. La salvación está en lo mágico, propio de los cuentos maravillosos.

6. Novela de género: Siete días de la señora K, Ana María del Río


6.1. Presentación de la novela. Rutina y cambio. Siete días de la señora K 2 2 | Río, Ana María del. Siete
días de la señora K. Santiago:
es un relato que merece el calificativo de nouvelle, por cuanto carece de complejidad y solo Planeta, 1993. Las citas
gira en torno a lo que acontece en un período, siete días, que rompe la rutina de la vida de de libro están tomadas de
esta edición. La página se
una mujer, la señora K, que se refugia en sus sueños, como un modo de superar sus dolorosas consigna entre paréntesis.

experiencias de niña violada y de esposa incomprendida y violentada.

6.2. Narrador. ¿Obligación – libertad?


En los capítulos 2 y 3, un narrador en primera persona, la propia señora K, rememora la
violación infantil y el consecuente terror que le significa la brutal incomprensión de su ma-
rido al realizar el coito y calificarla de “frígida”, lo que le permite repetir sistemáticamente
la primera violación. A través de los restantes dieciocho capítulos, un narrador en tercera
persona, aparentemente objetivo, transparente, detallista, desde la perspectiva de la señora
K, da cuenta del paulatino cambio que se produce en el interior de la protagonista.
Como lo señalábamos, se entrega una sola acción, complementada con episodios
que la explican y justifican, desde la percepción traumatizada de la protagonista. En la nar-
ración, el momento existencial vivido por la señora K se conjuga y se integra con el plano de
la imaginación, generando una posible realidad, tal vez solamente ensoñada, pero que signi-
fica una consciente y consentida liberación para la mujer.
El narrador logra cierta complejidad gracias a la conjunción de diversos tiempos y espacios
que se enmarcan dentro del principal: el interior de una casa de clase media en la época actual.

6.3. Construcción de mundo. El ciclo del cambio


En el mundo narrado debemos destacar la creación de la protagonista, la señora K, herida en
su infancia por una violación no superada, que, como consecuencia, no le ha permitido rea-
lizarse como mujer. A través de ella, podemos vislumbrar la existencia de otros seres signifi-
cativos en su vida: un violador brutal, un marido egoísta y egocéntrico, unos hijos traviesos
y ausentes, unos vecinos indiferentes, aunque curiosos:

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
“Ni siquiera a la vuelta de las fiestas en las noches, con el olor almendrado del licor
amasándole los labios, cuando su marido se desnudaba entero bailando, tarareando
pasos y la empujaba a ella a la cama sin mirarla, poniendo el despertador para la
mañana siguiente, ni siquiera entonces se diluía el fuerte sentir inerte de su ser. Ahí,
la señora K apagaba la luz y sentía como el cerrarse de una antigua puerta con pes-
tillo. Y venía la noche, de un paño negro interminable […] Y ella se ponía a pensar,
cubierta por una extraña libertad oscura: miraba siempre la ventana, donde habían
empezado a crecer barrotes inamovibles, en medio de las flores de metal.” (p. 27).

Gravita en el recuerdo de la mujer agredida el tiempo-espacio del atentado: oscu-


ridad, terror, barrotes, violación que quiebra la vida infantil:

“De un golpe me vuelvo mayor, tragándome de un grito la niñez” (p. 18).

Su matrimonio, también, se verá quebrado, porque a la ilusión de la joven ena-


morada sucederá la violencia del marido que trae consigo el desgarro de la soledad:

“Ella sentía que era de vidrio: el parecía mirar a través suyo, como si la cara de la
señora K fuera una ventana […] La señora K sentía el sonido de no contar para
nada, como una escoba que está a punto de jubilar detrás de un mueble. Y es que ella
nunca podría moverse ni fugir un poco como leona sin peinar o quejarse como tigre-
sa brasileña. Como decía Mauro que hacían las mujeres de verdad. La casa se trans-
formaba en una mesa de patas muy largas y ella arriba, atada, siempre le venía ese
gusto del recuerdo, a los barrotes de esas ventanas de otro tiempo.” (pp. 19-20).

Es antitética la vida que lleva el marido en la casa, en el orbe íntimo, y en el exte-


rior, en el mundo social. Cuán diferente es el hombre en un ámbito y otro: (a) en el primero
siempre está cansado, agrio, indiferente, en silencio, ausente, esperando ser atendido y servi-
do por la mujer; (b) en el segundo, aparece erguido, descansado, amable, interesado, mirada
iluminada:

“Mauro, erguido, reía con los ojos iluminados y los labios que destellaban su sudor
triunfante. No se veía cansado como cuando llegaba a la casa en las noches […] ni
decía agrio que el jardín se secaría en poco tiempo más que ni siquiera valía la pena
regarlo. […] Y ahora tan distinto. Como si fuera otro vestido de él. No se echaba al
diván a que le trajeran la comida y quedarse dormido después, sin hablar con nadie,
con la mano puesta en el cierreclair del pantalón” (p.24).

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Es comprensible que la relación marital precedida de la violación haya significado
en la vida de la señora K un verdadero terror a todo contacto sexual (p. 29-31) y un desvin-
cularse de su propio cuerpo, que le parece de corcho. Se la ha cosificado, pero, también, ella
se mueve en un mundo cosificado. Verdadero regalo inesperado son esos días de libertad que
le son concedidos, cuando su marido parte a Venezuela a una convención. La novela nos
habla de un tiempo lineal, el lapso entre la partida y el regreso del esposo y de los hijos.
Tiempo libre concedido a la señora K, espacio regalado para el ensueño y la creación, para la
libertad y la ilusión, para descubrirse en la identidad secreta.

“Entonces, la señora K descubrió que tenía cinco días justos, pero no sabía para qué.
Estaba angustiada y respiraba agitándose, guardando cosas donde no debía. Era
como la última oportunidad para algo. Los niños no estaban, ni su marido, ni su
maletín, ni su paraguas, las cuatro cosas que pesaban en la casa. Después de eso ya
no tendría más días […] ya el tiempo se le habría escapado definitivamente […]
Volvería a comprar el pan y las verduras los miércoles y hacer las camas, como lo
había hecho siempre. Porque todos creían que la señora K había venido al mundo
para eso: comprar las verduras los miércoles y hacer las camas. […] De pronto se dio
cuenta de que no había barrotes en la ventana.” (pp. 37-38)

Frente al espejo, la señora K mira su cuerpo:

“Era de corcho. Sin una gota de traslucidez, a pesar de la crema que se ponía a veces.
Granuloso y compacto como la piel de las toallas, atesorando los sinsabores y cosas
que no se fueron, como nudos de un árbol.” (p.40)

Su cuerpo aparece reseco, de corcho. Con tristeza, sin querer ver su imagen, lleva
sus manos al rostro y descubre que sus párpados aleteaban, llenos de lágrimas (p. 40). Desde
allí empieza a tomar conciencia de su físico, a acariciarlo, a aceptarlo y a amarlo. Descuida
las obligaciones rutinarias de dueña de casa. Se hace dueña de su propio territorio (p. 47) y sien-
te renovadas sus energías (p. 55).
Un recurso que se utiliza en la novela es el simbolismo de ciertos elementos, que,
como constantes tópicos, se cargan con las connotaciones femeninas: la oscuridad, las venta-
nas con barrotes y flores de metal, el pestillo de las puertas. Y, sobre todo, la imagen del es-
pejo y la del armario antiguo, obsequio de una de sus abuelas (p. 42). El espejo le permite
recordar a la nueva señora K, en tanto que el armario se colma de símbolos, de sonidos, de
sentidos, que se corporizan en la ensoñación femenina, buscando lograr la liberación sexual
y, por ende, psicológica, de acuerdo con la concepción de la autora.

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
6.4. Visión de mundo implícita. El simbolismo de los siete días
Desde el título de la obra, el número siete ofrece una simbología que no podemos descono-
cer en el análisis. Es una semana que puede relacionarse con los siete días tradicionales de la
creación divina. Asimismo, es curioso obviar el nombre de la protagonista y reemplazarlo
por una letra, recurso utilizado por Franz Kafka, en El proceso y en El castillo. Contrasta esta
anonimia con la recurrencia del nombre de su marido, Mauro.
Siete días de soledad, de retiro en sí misma, le permitirán a la señora K recrear o,
mejor dicho, rescatar esa imagen femenina que agoniza en su interior. En este sentido, no
deja de ser significativo el último gesto de la protagonista:

“En el colgador se silenciaban las chaquetas de Mauro. La señora K tomó una y la


descolgó. Luego se amarró los brazos de casimir a la cintura. Con las solapas en la
mejilla, hundiéndose en el olor, comenzó a moverse en cada nota lenta, con fruición
no domesticada. Los brazos de tela la acunaron desde los hombros en la delicia de
una íntima agua segura. Y se puso a cantar” (p. 110).

6.5. Síntesis. El mensaje de libertad


La novela da cuenta de cómo a fines del siglo XX todavía está la mujer sujeta a cánones deci-
monónicos y no se la valora como persona independiente, sino sometida al marido, destina-
da a cumplir rutinariamente sus deberes de esposa y madre. No obstante, se plantea una
posible salida a través de reconocimiento del propio cuerpo, lo que implica aceptarse y amar-
se, para poder abrirse y amar libremente a otro. Los siete días, la semana de autocreación,
permiten a la mujer vivir una experiencia de amor, real o imaginario.

3 | Maturana, Andrea, El daño. 7. Novela estructurada en torno al viaje: El daño 3, de Andrea Maturana
Santiago: Alfaguara, 1997.
Las citas de la novela están 7.1. Presentación de la novela. El viaje de autorreconocimiento. El daño, de Andrea
tomadas de esta edición. Se
Maturana,
anota el nº de página al final
de la referencia. muestra a dos amigas, Elisa y Gabriela, que hacen un viaje hacia el Desierto de Atacama; un lugar
árido sin variedad de tonalidades, donde el paisaje cansa con su monotonía de colores. Mientras
un incesante calor agota el cuerpo durante el día, una baja temperatura lo castiga durante la
noche. En medio de este paraje, se presenta, a veces, la magia del verdor, de la fruta y del agua, así
como la posibilidad de que estas dos mujeres comiencen una etapa de autoafirmación.

7.2. Narrador. El tránsito por el desierto


Las protagonistas van contando, a través de relatos autobiográficos, nacidos de sus más
traumáticos recuerdos, cuanto les ha sucedido a lo largo de sus existencias, y, de esa manera
se va construyendo el mundo narrado. La historia particular de Elisa y Gabriela se gesta
desde la intimidad, a partir de las remembranzas que cada una trae consigo, y también se va

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
configurando la acción narrativa, a través de la cual se nos permite conocer la interioridad
de los personajes.
Diversos episodios vividos por ellas se entrelazan a partir de los sentimientos de
ambas mujeres. En la soledad del desierto, las protagonistas logran desentrañar sus conflic-
tos íntimos, aprenden a compartir y a asumir los sentimientos y acontecimientos que las
han llevado a elegir esta vía de escape, y a entenderse como seres humanos.
En este tránsito por el Norte de Chile, cada una de ellas trata de reconstruir un
espacio personal que creía perdido y con él, una realidad que conduzca al camino del en-
cuentro con ellas mismas y con la vida.

7.3. Construcción de mundo. Del silencio a la palabra


El mundo creado desde las evocaciones genera un tiempo-espacio que no se define con exac-
titud, pues se carece de detalles temporales concretos, como años precisos. Son las reminis-
cencias las que abren la puerta para que el relato comience. De este modo, se manifiesta el
tiempo no como un transcurrir rígido, sino como una circularidad, donde podemos apreciar
el paso del tiempo y vivir el hilo continuo de Elisa y Gabriela. Asimismo, podemos rescatar
nuestra propia intimidad, pues nos identificamos con la historia, aceptamos el relato y tra-
tamos de entender el mundo narrado.
Solo a partir del viaje ambas mujeres comienzan a intimar y a descubrirse me-
diante diálogos, risas, silencios y llantos. Lo que hace evidente la necesidad del otro para
configurar un ambiente que admite que cada una de ellas se confiese. A partir de ese mo-
mento, los personajes femeninos comienzan a erguirse como personas capaces de autorreco-
nocerse con sus respectivas culpas y temores frente a la vida que les tocó vivir.
El viaje permite que ellas puedan romper ese sinsentido interior: la distancia de
los hechos vividos en su propia contingencia y el encontrarse en su propia soledad influirán
en la apreciación de esas vivencias y en la evolución personal.
Una y otra protagonista tienen sus propios recuerdos y, por lo tanto, su propia historia; una
historia que está marcada por hitos trascendentes: una violación, una muerte, una discu-
sión, un hombre casado.
Aunque no se precise la fecha exacta en que comienza la acción, por el tipo de
lenguaje y de escenarios que nos parecen familiares, podemos decir que se trata de una no-
vela ambientada en los años noventa, en un Chile donde lo real se esconde y las máscaras
envuelven aquella realidad de la cual nadie quiere hablar ni compartir ni entender. La histo-
ria se enmarca en un tiempo mínimo: se desarrolla a partir de un viaje, durante un viaje y
en la breve posterioridad de aquel viaje.
El relato de los acontecimientos recordados nos permite entender los efectos que
en la psiquis de cada protagonista han tenido. Nos percatamos de que ambas mujeres escapan
de los problemas a que se han visto enfrentadas, como si asumir su propia verdad fuera algo

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
demasiado complejo. No habían logrado aceptar las cargas de recuerdos dolorosos que cada ser
humano lleva y que genera una incapacidad, física y psicológica, para entregarse a otro ser humano.
De aquí nacen la soledad, la incomunicación, y el desencuentro. Los problemas y dolores que ellas
cargan son: (a) Abuso físico de un padre hacia su hija. (b) Abuso psicológico de una madre hacia su
hija. (c) Silencio que lleva a ocultar una verdad. (d) Partida y separación del amor.
Como consecuencia, se habían negado a toda forma de compromiso, y se enfren-
taron con una vida colmada de silencios, incomprensiones, frustraciones, separaciones, an-
gustias que se acallan y se tratan de olvidar para no recordar la violencia vivida, los abusos
físicos y psicológicos que marcaron las relaciones parentales.
Estos motivos impulsaron a cada una a emprender el viaje como una huida, para
asumir el dolor y desprenderse del daño que lleva consigo: (a) Elisa. Ha guardado lo que le
aconteció con su padre, siente temores y tiene como aliado al silencio. Quiere olvidar las
palabras que le causan daño, los sonidos que le producen dolor. Su silencio es su escudo; al
no verbalizar los acontecimientos que la hieren, no recuerda y, por lo tanto, sus problemas
no existen. Para Elisa, sus recuerdos son imágenes que pueden ser un sueño o el delirio de
una mente enferma. (b) Gabriela. Vive la muerte del amor; pero es incapaz de someterse al
silencio y toma como vía de escape el hablar siempre de su pérdida afectiva. Al enfrentarse a
la vida de una manera extrovertida, asume medidas drásticas con respecto a sí misma e in-
tenta olvidarse de la muerte del amor con cada hombre que se cruza en su camino. Debido
a que necesita extirpar el recuerdo de Marcelo, actúa reactivamente, buscando evadirse y se
embriaga o se entrega físicamente a cualquiera, en un intento desesperado por aturdirse y
huir de lo que tanto duele.
La realidad de ambas mujeres se manifiesta sin ataduras. Las dificultades en el
camino son las tentaciones que el destino les pone a estas almas para que no encuentren la
luz; pero estas amigas continúan la ruta ardua y agotadora que significa el ir descubriendo
los rincones más sombríos que cada una posee. La narración se convierte, entonces, en un
relato íntimo. Gabriela y Elisa van desnudándose a lo largo de este caminar para encontrar,
en medio de la soledad, algo sumamente valioso: ellas mismas.
La novela permite que se manifieste una voz femenina mediante el dolor, la
pena, la soledad, la muerte; pero, sobre todo, consciente, a partir del recuerdo, tanto del daño
como del curso de los acontecimientos de la novela.
El daño que vive cada protagonista, se conecta con el lector de diferentes maneras:
(a) están los que dañan, (b) en oposición, están los que son dañados, (c) los que disfrutan con
ese daño, (d) los que conservan con veneración todo daño, (e) los que lo extirpan y se
transforman en tipos humanos configuradores de mundo.

7.4. Visión de mundo implícita. El daño


La gran metáfora de la novela es el daño, es lo que trasciende al sufrimiento humano, es la

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
cadena que liga a la mujer con su entorno. El daño es lo explícito y lo implícito: es el recuer-
do, ya que el dolor de cada una de las mujeres se da a partir de una remembranza que se ha
enquistado como una espina molesta. Los malos recuerdos, como los tumores, deben ser
extraídos para que no maten; malos recuerdos son los que deben extirpar Gabriela y Elisa y
mientras aquel proceso de purificación no se logre, el dolor permanecerá inmutable.
Por eso, el viaje actúa como un proceso necesario que todo ser humano requiere
para darse cuenta de su propio microcosmos. Las amigas, en el desierto, realizan el periplo
del sol, pues buscan la luz, la iluminación interior que hace crecer al hombre y que muestra
los lugares internos que han permanecido en la penumbra.
Podemos afirmar que cuando la luz del sol redime la oscuridad de la incomprensión,
el ser humano alcanza su propia integridad, el paraíso perdido que está en el interior de cada
uno. Todo hombre y toda mujer pueden encontrar dentro de sí la luminosidad del espíritu, el
oro interno que le permite, más allá del daño, de la oscuridad, acceder al sentimiento de
plenitud que significa encontrar la riqueza en un adentro conectado con un afuera.
El sol es la vida en la Tierra; sin embargo, Elisa y Gabriela se dirigen hacia el de-
sierto, espacio donde domina el sol, que significa aridez, soledad y vacío. Este símbolo, por
tanto, posee la dualidad de todas las cosas como si fuese las dos caras de una misma moneda:
por una parte, es la luz que sacia toda sed; y, por otra, es la misma luz que agobia y encandi-
la al ser humano. Es a través del desierto -sentido del viaje- y no en el desierto, en donde
Gabriela y Elisa encontrarán el camino.
La novela devela la soledad del ser humano actual: la necesidad de comprensión
y de comunicación, de amor como una relación de entrega y de recibimiento total. El hom-
bre, la mujer están solos en el mundo y deben ser capaces de salir de la profundidad del
abismo en que se encuentran. Por eso, la obra muestra que, a partir del dolor, el desencuen-
tro encuentro es una posibilidad entre las personas.
Es necesario comentar que la obra no se cierra a la pareja heterosexual, ni en un
ideal de pareja específico. A pesar de su soledad, el individuo desea mantener viva la fuente
de vida que es la relación de pareja. Desde esta perspectiva, se puede entender que la necesi-
dad del otro es tan fuerte que se da entre iguales, sean amantes o amigas, aumentando, de
este modo, el universo de personas a quienes amar y entregarse.

7.5. Síntesis. El valor de la palabra


En la novela, hay un mundo íntimo, un adentro, que se manifiesta por medio de la palabra
que nos lleva a la intimidad del ser humano, generando una atmósfera y configurando un
mundo interior. También se da un afuera, situado en el Norte de Chile, en el Desierto de
Atacama. Este espacio, un escenario desolado, actúa como espejo del alma. Y proyecta la
interioridad de cada una de las protagonistas. La aridez, la soledad, el frío y el calor
contribuyen a la reflexión y al proceso de búsqueda interna de Gabriela y Elisa.

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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
El mensaje que nos entrega la novela es el asumir que estamos solos en el mundo
y que lo único que nos acompaña en nuestro andar es nuestro propio ser. El daño nos enseña
a posesionarnos como personas con recuerdos y nos presenta la posibilidad de torcerle la
mano al destino y de encontrar la luz interior en el camino de la vida.

8. Novela Autobiográfica: El sueño de mi padre, Sonia González


4 | González, Sonia. El sueño 8.1. Presentación de la novela. El impulso de un viaje. La novela El sueño de mi padre, 4
de mi padre. Santiago:
Planeta, 1998. Las citas de de Sonia González, está centrada en un viaje de reconocimiento que emprende Teresa, la
la novela están tomadas de protagonista, cuya motivación pareciera clara: reconstruir el sueño de su padre, Simón,
esta edición. Solo se anota el
nº de página al término de la quien, desde que sus dos hijas eran pequeñas, intentó apartarlas de todo lo que pudiera cau-
referencia bibliográfica.
sarles daño o impedir su felicidad, que, en su imaginario, consistía en tener una familia,
como la de sus padres y abuelos, con hijos y armonía. Sin embargo, Julia rompió esta espe-
ranza paterna, porque se involucró con un hombre casado, con un comprometedor pasado
político y huyó de casa para trabajar en la búsqueda de la verdad de los detenidos desapare-
cidos. Teresa asume la misión de encontrar a Julia.

8.2. Narrador. Del sueño a la realidad


El tema del relato lo constituye la historia de una existencia que configura un personaje en
un decir mimético como narradora en primera persona, desde su propia perspectiva. Relato
al que podemos acceder, gracias al oficio de un narrador básico que lo enmarca. La narrado-
ra y protagonista, Teresa, en un intento por encontrar a Julia, su hermana, antes de que su
padre muera, va recordando acontecimientos de su pasado: la huida de su hermana con Mi-
guel, su niñez, su matrimonio, su separación, el regreso a la casa paterna, su encuentro fur-
tivo con Joaquín y su conocimiento de sucesos y personas relacionados con detenidos desa-
parecidos. Todo esto da a la novela un tinte autobiográfico; que no debe engañarnos. Es la
historia de Teresa, no la de Sonia, su autora.
La búsqueda que lleva a cabo la narradora-protagonista está impulsada por
ciertos valores que, sin estar explícitos en la novela, constituyen el fundamento del universo
del personaje. Los valores que encarna Teresa necesita exponerlos, defenderlos, sustentarlos
con su vida; y solo el portador de estos valores, es decir, la narradora, puede exteriorizarlos.
Su relato es, entonces, autobiografía y crónica social.

8.3. Construcción de mundo. La búsqueda


Una amiga de la niñez, Susana, que pertenece a una organización que apoya a los familiares
de los detenidos desaparecidos e investiga el destino de estos, ayuda a Teresa a involucrarse
en esa realidad de los que “quieren recordar” que, hasta ese momento, le era ajena y nada
parecía indicar la necesidad de un cambio. Le entrega un libro con nombres y datos sobre
detenidos desaparecidos (D.D.) y, mediante un mensaje, le sugiere que ubique a Joaquín,

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
propietario de una casa arrendada a Julia. Este la había comprometido, junto con Miguel, a
delatar a Roberto (jefe de Sergio, esposo de Teresa), quien había estado involucrado en la
desaparición de la madre de Susana.
Teresa visita a Roberto, Secretario de un Ministerio de Gobierno, y le entrega
una foto en la que aparece él junto a la madre de Susana y a Miguel, el mismo día en que esta
desapareció. Le explica que su única motivación es encontrar a su hermana. Roberto le ase-
gura que la policía actúa para proteger a Julia, a su familia y a Sergio y le propone que cierre
ese capítulo de su vida, pues el recordar ciertos acontecimientos del pasado no traerá benefi-
cio alguno. Además, él puede ayudar a Julia a huir del país.
Teresa ha caído en una trampa. Ahora conoce hechos que no se pueden olvidar y que requie-
ren un compromiso con la verdad. Por otro lado, su padre, que la mantuvo alejada de ciertos
fantasmas y temores, muere; y ella necesita recuperar el anhelo que lo conservó con vida
hasta ese momento, aunque esto signifique aceptar y olvidar.
La noche en que su padre fallece, regresa Julia, la que espera un hijo. Teresa se resiste
a entrar en la habitación, pero ahora Sergio, ya no su padre, le dice que no tenga miedo. Teresa
asume su presente y toma una decisión: volver a su vida con Sergio y tratar de olvidar. En su
nueva existencia, adopta una hija, a la que bautiza Susana, en honor a la amiga, y acompaña a
su marido en su nuevo cargo en el gobierno. El sistema ha ganado. Pero ella se despierta algunas
noches y se hace el propósito de recordar, “aunque eso no sirva ahora de nada” (p. 229).
Lo primero que llama la atención en esta novela es su estructura narrativa. Los
acontecimientos presentados de forma explícita corresponden a reminiscencias; por lo tan-
to, asistimos a una narración a través de imágenes o representaciones mentales de la prota-
gonista. Cada capítulo da cuenta de una circunstancia que se recuerda. No existe un orden
cronológico para relatar esos momentos, que se pudieron dar en forma correlativa o espacia-
da. Es trabajo del lector encontrar un sentido a esta particular estructura, con el fin de dar
coherencia a su contenido.
Se yuxtaponen diferentes historias que se articulan en torno a los siguientes ejes
temáticos y temporales: (a) El deseo, la esperanza, el sueño del padre que motiva a Teresa a
buscar a Julia. (b) Los recuerdos asociados a este sueño: la niñez, la casa, el barrio, la abuela,
los temores del padre el día del bombardeo a la Casa de Gobierno, el cumpleaños de Susana,
la celebración del nuevo presidente, el encuentro con la madre de Susana en la manifesta-
ción, la desaparición de esta. (c) El matrimonio de Teresa con Sergio y las aparentes razones
de su separación: la falta de hijos, la soledad, el trabajo de Sergio en el Ministerio, en el que
nunca ha querido involucrarse en su rol de esposa. (d) La relación de Julia con Miguel, que
compromete a Susana, a Joaquín, a los detenidos desaparecidos y a Roberto, el jefe del
marido de Teresa.
Como todo padre, el sueño de Simón fue que sus hijas vivieran felices, sobre todo,
que no tuvieran miedo, que se sintieran seguras, protegidas y a salvo. Para ello, debían seguir

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
sendas tradicionalmente establecidas, convencionales y desechar todo lo que estuviera más
allá de las murallas que él había intentado construir a su alrededor. Sin embargo, existen tres
momentos en el relato en que el propio padre siente miedo: (a) cuando conoce a la madre de
Susana; (b) cuando es elegido el Presidente Allende; (c) cuando bombardean el edificio de la
Casa de Gobierno.
Los recuerdos de la niñez de Teresa son el aval para encontrar a Julia; también la
impulsa el sueño del padre, que se ha distanciado de Julia, pues esta ha entrado a un mundo
donde se encuentra desprotegida y será perseguida; orbe del que tendrá que huir, abando-
nando para siempre su hogar y el sueño elegido por su progenitor.
Ahora que su padre enfermo ya no puede hablar con ella, Teresa lo hace a través
de sus recuerdos (marcados textualmente por el uso de paréntesis) y decide que vale la pena
el viaje que emprenderá en busca de su hermana. El imperativo de Teresa es devolver las es-
peranzas: el sueño al padre para, tal vez, impedir su muerte.
La huida de su hermana ocurrió poco después de su separación con Sergio, por lo
tanto, también se cuestiona su vida con él y su decisión de separarse. Sin saberlo en forma
consciente, sus añoranzas se van enlazando con la situación política del país, cuyas verdades
desconoce; pero que luego, no podrá olvidar.

8.4. Visión de mundo implícita. ¿Destino o casualidad?


Los antecedentes que entrega Teresa, en forma desordenada, que nos han permitido identi-
ficar los ejes ordenadores, nos permiten inferir, en nuestra calidad de lectores, el mensaje
implícito de la novela: el destino no está ausente de la vida de esta familia.
Luego de atar los cabos sueltos en la mente de Teresa, no podemos dejar de notar
que toda la trama política que envuelve a los protagonistas de esta historia comienza cuando
Teresa y Julia, de la mano de su padre, van al cumpleaños de Susana en un lujoso hotel de la
capital y ven, por primera y última vez, a la madre de esta. Entonces, ¿es el destino o el azar
lo que relaciona la vida de los personajes? Miguel, el futuro amante de Julia, es amigo de la
madre de Susana, y esposo de Nancy, amiga de la familia de Teresa que ha llegado del exilio
en Alemania. Roberto, el jefe de Sergio, esposo de Teresa, era amigo de Susana y Miguel.
¿Es una coincidencia que Miguel se acerque a Julia; que Teresa trabaje en la ofici-
na de turismo que Susana maneja; que, con el pretexto de ayudarla a encontrar a su herma-
na, Joaquín contacte a Teresa con Roberto en un intento por involucrarlo políticamente?
¿Qué lleva a Teresa a emprender su viaje en busca de Julia y de sus recuerdos: su necesidad
de mantener vivo el sueño del padre o el deseo de saber una verdad política que desconoce y
en la que se sabe, desde pequeña, inserta?
Percibir que los hechos no son independientes provoca un quiebre en la dimensión
temporal del relato. ¿Dónde empieza realmente una historia?:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
“Comenzaba con la enfermedad de mi padre o con la desaparición de Julia, el hecho
que precedió, en nuestra particular cronología, a la enfermedad de mi padre. Aun-
que también podía tener su origen en la llegada de Miguel y de Nancy a nuestra
casa. Y, por qué no, antes. Los hechos nunca son autónomos, apuntaban también a la
tarde en que papá fue con nosotras al cumpleaños de Susana, cuando el señor boto-
nes nos condujo hasta la sala en el segundo piso donde aguardaba la madre de Susa-
na, que fue amable con nosotros.” (p. 203).

El regreso de Teresa a su antigua vida, al final del relato, parece darnos una res-
puesta que tiene dos caras: de día, se sentirá segura, porque, pese a no contar con la protec-
ción del padre, sí cuenta con Sergio y el poder político que lo acompaña. Consiente en callar
la realidad que conoce e insertarse en el sistema. Ha aceptado su rol dentro de la situación
política vigente, ya que, con ello, ha ayudado a su hermana en su propio escape. No obstan-
te, de noche, despierta sobresaltada por viejos fantasmas y por antiguos miedos. Conoce la
verdad, pero nada puede hacer por comunicarla. Su desahogo es su hija, el consuelo de su
memoria, el nombre de Susana, que repite cada vez que habla con su pequeña.
En forma pesimista, la obra nos indica que el sistema es inviolable. Pese a que los
pensamientos no tienen barreras y los podemos llevar a donde queramos, nada salvará al padre
de Teresa de la muerte; ni se sabrá de la madre de Susana ni de otros tantos desaparecidos. Julia
tendrá que huir y su padre nunca conocerá al hijo que espera. Roberto seguirá su ascendente
carrera política y Teresa volverá con Sergio. Sin embargo, queda una esperanza: siempre se podrá
recordar lo que otros quieren enterrar. Todos poseemos un sueño por el que vale la pena luchar.
Si nos situamos en el plano de la narración, diremos que esta se configura a partir
de la historia íntima de la protagonista, que tiene que ver con los recuerdos que son
trascendentes para Teresa. En la capacidad de rememorar lo compartido, de no olvidar,
radica la identidad personal, familiar y social. Más allá de la separación, de la muerte física,
la memoria del corazón, el tiempo reconstruido en la evocación, mantiene vivas a las
personas con las que coexistimos; y se convierte en el medio más valedero para conocernos
a nosotros mismos y a quienes nos rodean. La memoria hace posible el permanecer; así
como los hijos posibilitan la prolongación familiar. Teresa recuerda:

“A Sergio y a mí, nos faltó nietos para mi padre. Continuidad. Permanencia. Semilla
para un mundo sin miedo.” (p.219).

8.5. Síntesis. La memoria histórica y personal


La idea de mundo implícita está marcada por el contexto político de la dictadura y la novela
pretende ser el testimonio de una realidad que es necesario recordar. Por otro lado, intenta

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
rescatar valores familiares al presentar el hogar como el espacio en el que nos sentimos
protegidos y somos felices, un lugar en el que la figura paterna es esencial, un ámbito al que
todos podemos volver cuando hemos fallado o estamos solos.

9. Novela de Misterio: Nuestra Señora de la Soledad, Marcela Serrano


5 | Serrano, Marcela. Nuestra 9.1. Presentación de la novela. El misterio, el enigma. Nuestra Señora de la Soledad, 5 de
Señora de la Soledad.
Santiago: Aguilar, 1999. Marcela Serrano,
Las citas de la novela están desde la perspectiva explícita del narrador, se desarrolla bajo la estructura básica de una
tomadas de esta edición. Solo
se anota el nº de página al novela policial negra: asignación del caso a una investigadora, estudio de antecedentes, en-
término de la referencia.
trevistas a los involucrados, análisis, viajes, persecuciones, elaboración de hipótesis, reflexio-
nes y solución del enigma. Por ello, ha sido clasificada como novela policial; pero, se trata
más bien de una novela de misterio, ya que se busca resolver una incógnita: la desaparición
de una persona y no la solución de un crimen que culmina en el reconocimiento del asesino.

9.2. Narrador. Carmen y Rosa


La novela, narrada en primera persona, cuenta la búsqueda de Carmen Lewis (o C.L. Ávila,
autora de novelas policíacas). Es chilena de nacimiento, nacionalizada norteamericana, una
viajera incansable que ha pasado su vida entre Chile, India, Estados Unidos y México. Tras
haber participado en un seminario de escritores, en Miami, cuatro meses antes, no se ha
vuelto a saber de ella.
La desaparición da inicio a la revisión que la detective encargada del caso, Rosa
Alvallay, 54 años, abogada de profesión y detective de oficio, hará de su pasado y de su actual
condición. Es el caso más difícil que le ha correspondido resolver. Comienza su labor comprando
una copia de todos los textos de la autora y analizando sus dedicatorias. Por cercanía temporal
y por su título, decide leer la novela Un mundo raro, pues le llama la atención el epígrafe que
alude a una desaparición. La protagonista de la novela es la detective Pamela Hawthorne, muy
similar en su rol a Rosa, así como también es parecido el caso que debe resolver.

9.3. Construcción de mundo. Realidad y ficción


Rosa inicia su trabajo entrevistando a personas cercanas a Carmen: (a) al Rector Tomás Ro-
jas, el esposo; (b) a la nana que estaba al cuidado de la casa; (c) a su hijastra, Ana María Rojas;
(d) a sus amigos Jill y Martín Sánchez; (e) al escritor mexicano Santiago Blanco.
Cada uno la describe desde una particular visión: (a) Para su marido, Carmen es
una persona extraña, sin apego a las cosas materiales. (b) Para la nana, una mujer desordenada,
sin intención de asumir responsabilidades. (c) Para Ana María, una persona que, en un
comienzo, pareció risueña, pero luego se mostró huraña, ausente, aburrida. Nunca encajó
en el ambiente de su padre, se casó con él solo para lograr una seguridad que ella nunca
poseería. Cuando su padre conoció a la escritora le advirtieron que estaba loca. (d) Para Jill

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
y Martín, era una persona sumisa, obligada a llevar un modo de vida que no compartía y que
la hacía sentir encerrada. Martín se refiere a la falta de contacto con el mundo real que
mantenía Carmen en el último tiempo y a su deseo de terminar con la existencia de la pro-
tagonista de sus novelas, Pamela Hawthorne. (e) Santiago Blanco la describe como un espí-
ritu escindido, si bien se la apreciaba como escritora famosa, en su vida personal estaba
inquieta y molesta. Con sus amigos escritores mexicanos, era la misma persona alegre de antaño.
En cuanto al paradero de Carmen, se barajan varias hipótesis: (a) Se piensa que
fue secuestrada por la guerrilla centroamericana, con la que mantuvo contacto mientras
permaneció en México, al extremo de tener amores con un guerrillero, al que la opinión
generalizada consideraba el gran amor de su vida. (b) Se deduce que puede estar muerta. (c) Se
cree que huyó debido al cansancio que su forma de vida le producía.
Rosa debe viajar a México, país que visitó por motivos políticos (el exilio); pero,
que le significó una parte muy hermosa de su vida. Antes de partir, Tomás le entrega una
copia de una entrevista concedida por la autora. En ella, cuenta acontecimientos de su pasa-
do que la marcaron: (a) sus padres, (b) su peregrinar por diferentes lugares, (c) su vida con la
abuela Florencia, (d) el asesinato de esta cometido por una tía de Carmen, hecho que ella
presenció y que fue la causa de su radicación en Estados Unidos.
Del suceso del crimen lo que más recuerda es que su tía, en el momento de come-
ter el homicidio, cargaba a una niña en brazos, su prima Gloria González. Después de este
incidente, Carmen se va a vivir con sus padres a India, de la que rescata la visión de una
chica encerrada en una torre. De ahí va a San Francisco, con su tía Jane (el padre es nortea-
mericano), hasta finalizar sus estudios. Luego, inicia un viaje que culmina en México, donde
se dedica a la artesanía y comparte momentos con escritores y guerrilleros. Mientras vivió
allí, lo hizo en casa del escritor Santiago Blanco. En ese lugar, nació su hijo Vicente, descrito
con rasgos mexicanos, cuyo padre dice ser un gringo fallecido en un accidente. De México,
lo que más aprecia es la contradicción intrínseca de su gente de querer avanzar, criticando el
pasado, pero exaltándolo a la vez: "La ambigüedad entre la ruptura y la salvación". Al terminar
la entrevista, dice sentirse, como la princesa encerrada de la India: protegida, pero prisionera.
En México, Rosa encuentra un libro de Santiago Blanco, La Loba. Comienza una
labor deductiva y crea enlaces entre los elementos investigados: recuerda las palabras de Ana
María, "le dijeron que era una loca". Telefonea a Tomás Rojas y le pide una descripción de
Carmen, la cual es semejante al personaje que aparece en el texto de Blanco. En otro pasaje
de esta obra, reconoce similitudes entre los manuscritos de Carmen y ciertas alusiones de
Blanco. Decide, entonces, investigar al escritor.
La deducción que viene a su mente es que el gran amor de Carmen no es el
guerrillero, sino este escritor mexicano que podría ser el padre de su hijo, pero con el que no
pudo permanecer dada su condición de casado. Haciéndose pasar por periodista, descubre
que Blanco viajará a Oaxaca y decide seguirlo. Allí, el escritor se encuentra con una mujer

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


309
Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
que dista mucho de la descripción de Carmen. Al indagar por su origen, descubre que es
una colombiana, Lucía Reyes, que vive desde hace un mes en ese lugar.
Rosa piensa que se ha equivocado, pero insiste en investigar. Se introduce en casa
de la colombiana y descubre, en el vestidor, ropa muy abrigada, que contrasta con los vesti-
dos típicos de la zona. Lo que detona su perspicacia es una caja de remedios del Formulario
Nacional. La solución que anticipa es que la escritora se ha sometido a una serie de cambios
que la transforman en otra persona: cirugía, color del cabello, reducción de peso, lentes de
contacto. Decide seguir a Lucía Reyes y detecta en sus muñecas marcas de un suicidio fallido.
Un llamado al Rector Rojas confirma sus sospechas: ha resuelto el caso. Está fren-
te a Carmen Lewis Ávila. Todo parece claro, pero una entrevista a Santiago Blanco da cuen-
ta del porqué y el cómo de esta desaparición planificada, creada por la novelista. La entrevis-
ta entrega un dato desconocido de la vida de Carmen: una violación múltiple ocurrida en
San Francisco que la llevó a intentar el suicidio. Solo logró la paz cuando conoció a Tomás,
pero sus modos diferentes de vida lo llevaron a cometer adulterio con la prima de Carmen,
Gloria González, que se había convertido en su secretaria personal. Comienza un nuevo su-
frimiento para Carmen, pues Rojas siguió engañándola.
Tras una milagrosa escapada de un accidente aéreo, Carmen decide abandonar
esta vida y alcanzar la felicidad. Con ayuda de Blanco, realiza lo que Rosa ha intuido. En su
búsqueda, la detective se ha encontrado con hechos y con palabras de sentido encubierto,
que es necesario decodificar. Desentrañar el misterio exige, para la investigadora, una atenta
observación de las circunstancias; un ejercicio intelectual de análisis de los fenómenos rela-
cionados con el caso, un nivel de abstracción lógico que implica la solución del misterio y la
develación de la verdad. Aunque haya resuelto el enigma, queda para Rosa una última y
definitiva interrogante por resolver: dar por terminado el caso y anunciar la aparición de la
escritora o dejar que viva la existencia que ha planificado. La reflexión sobre su realidad, la
carencia de cambios y ambiciones, llevan a la detective a optar por lo último: acepta la solu-
ción de Carmen, decide reescribir el final de la historia y recrea su propia novela negra.

9.4. Visión de mundo implícita. Coincidencias


Tres son los hitos narrativos que estructuran a la novela: (a) La historia de Carmen Lewis
Ávila (o C.L. Ávila) y los motivos que la llevaron a su desaparición. (b) La historia de Rosa
Alvallay, la detective asignada al caso, y su reflexión existencial. (c) La relación que existe
entre la ficción novelesca y los hechos ocurridos en la realidad.
La novela posee todos los elementos de la novela policial, mas introduce varios
componentes que llaman la atención: (a) Destaca el hecho de que la novela comienza con la
transcripción de un texto, sin que se especifiquen datos de procedencia. (b) Se incorporan
párrafos textuales extraídos de otras novelas; lo que se repite a lo largo de la obra para

Cerrados nº 38
310
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
mostrarnos parte de Un mundo raro y, hacia el final, La loba, momento en que el lector
recuerda la primera página del texto, pues es la misma. (c) La presentación de estos
componentes lleva a visualizar que la obra trata de las coincidencias entre el mundo de la
ficción y el mundo real.
El mensaje implícito que sugiere la historia no atiende a la solución de un caso,
sino a la presentación de la vida frustrada de una mujer que no tiene otro escape que la fic-
ción literaria. La obra lleva a preguntarnos: ¿Cuál es el límite entre la ficción y la realidad?
Los datos, las fechas, los lugares, los nombres, son reales. Pero Rosa es muy similar a Pamela.
La desaparición, en Un mundo raro y en Nuestra Señora de la Soledad, es similar. Carmen es la
protagonista de La loba. En la realidad, Carmen quiere eliminar a Pamela, pero eso significa-
ría terminar con una parte de sí misma.
Estas interrogantes y reflexiones se enmarcan en una estructuración del relato
en torno a comparaciones explícitas e implícitas: (a) Rosa y Pamela Hawthorne, en sus roles
de investigadoras. (b) Rosa y Carmen, en sus estilos de vida y modos de enfrentar la realidad.
(c) La vida en Chile y la vida en México, que comparten Rosa y Carmen. (d) Carmen y la
protagonista de La loba. (e) Los manuscritos de Carmen con partes de la misma novela. (f) La
desaparición en Un mundo raro y la de Carmen.
Los antecedentes que recaba Rosa Alvallay son suficientes para que el lector logre
concluir las razones de la desaparición de Carmen y la forma en que se llevó a cabo. Sin em-
bargo, dado el tipo de novela, el caso se resuelve de modo explícito y se hace un resumen del
argumento hacia el final de la obra.

9.5. Síntesis. Historia y creación


En Nuestra Señora de la Soledad, ¿cuál es la historia inventada y cuál es la creación artística?
¿Existió el caso de Carmen Lewis, tal como lo cuenta Rosa Alvallay? El cuaderno de anota-
ciones de la detective ¿es registro de datos o es material para un futuro relato? Carmen Lewis
¿tiene existencia real o es solo parte de la imaginación de Santiago Blanco?
El mensaje de la obra gira en torno a la insatisfacción que siente Carmen por su
vida. Su existencia la frustra. Se siente asfixiada, presa en la torre que Tomás ha construido
a su alrededor, obligada a cumplir con los compromisos sociales que la ligan al entorno. Lo
que desea es sumergirse en un mundo irreal, en el que se siente feliz y protegida. Para lograr
su objetivo, debe acabar con toda huella que la ate al pasado. Únicamente un cambio radical
puede terminar con los fantasmas de su vida anterior. Para sobrevivir, Carmen Lewis Ávila
debe desaparecer.
Por otro lado, Rosa, que vive una vida de aparente placidez, no puede dejar de
cuestionarse la veracidad e importancia de sus propios actos; tampoco puede dejar de
reconocer lo anodino de su existencia y opta por la solución que le entrega Carmen. Decide
valerse de la ficción para otorgarle un nuevo curso a la realidad e inventa la desaparición de

Carmen Balart Carmona | Irma Césped Benítez


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Cinco novelas, cinco escritoras chilenas actuales
Carmen. La ficción ha prevalecido en el relato como una forma de escape que resulta vital,
en algunos casos, cuando la realidad ya no tiene escapatoria.

10. Conclusión
Cerraremos nuestro análisis-interpretativo de las cinco novelas seleccionadas, de escritoras
chilenas actuales, centrándonos en el mensaje de cada texto narrativo, considerando que
toda novela es novela social, por cuanto da testimonio, de forma directa, figurada o repre-
sentada, tanto de la visión de mundo de la época en que fue concebida, a través del modo en
que la estructura social y el imaginario configuran a los personajes, determinan sus senti-
mientos, acciones y su decir; como del sistema de creencias y valores culturales, éticos, esté-
ticos, sociales y personales vigentes.
• En La casa de los espíritus, es posible reconocer un mensaje explícito que consiste
en la necesidad de fijar un hilo conductor de la historia de Chile acaecida entre 1930 y 1975;
y un mensaje implícito, que busca rescatar el pasado y generar una esperanza que ayude a
superar la crisis.
• En Siete días de la señora K, la novela revela el hecho de que a fines del siglo XX,
aún la mujer está reprimida como persona, e inmovilizada en su actuar propio, restringida
por cánones machistas, condenada a cumplir diariamente, en su calidad de esposa, con sus
obligaciones de guardiana del hogar. La salida a la rutina, al sinsentido, está en la autovalo-
ración física, que significa aceptarse y comprender que es posible la creación de un espacio
compartido entre pares. Los siete días simbolizan el tiempo que se hace espacio para el amor.
• En El daño, las protagonistas actualizan su pasado y lo hacen presente mediante
la comunicación que se convierte en el desahogo personal; sin dejar de lado la risa como una
vía de escape y como un juez de las propias reflexiones y sucesos. El tiempo que cuenta den-
tro de la obra es el pasado. El tiempo anterior al que se vive da sentido y curso a la historia y
a las situaciones que se dan en el presente. El momento actual tiene como objetivo el mos-
trar, resolver, extirpar, concluir o asumir hechos y dolores preliminares, con el fin de cons-
truir un futuro.
• En El sueño de mi padre, la narradora y protagonista elige la capacidad de recordar
como el ámbito espiritual donde radica la fuerza que mantiene vivas tanto las tradiciones
como a la gente que conocemos y admiramos. El recuerdo es el medio más valedero para
conocernos a nosotros y a quienes nos rodean.
• En Nuestra Señora de la Soledad, Carmen Lewis se siente insatisfecha con su vida,
asfixiada porque no puede ser ella misma y debe cumplir con los compromisos sociales que
Tomás, su esposo, ha construido en torno a ella. Carmen no acepta esa realidad e inventa
una salida. Para ello, debe desaparecer y reaparecer con otro nombre, nacionalidad,
idiosincrasia. Termina la mujer real y nace la mujer imaginada. Por su parte, la investigadora,
Rosa Alvallay, también entra en este juego creativo e inventa un final ficticio de la historia

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
de Carmen. Sobre la realidad domina la imaginación, sobre los acontecimientos prevalece el
lenguaje creativo, sobre la circunstancia se impone la ficción.
La novela es un documento que permite conocer, literal o metafóricamente, la
peculiaridad del momento histórico en que se gestó. Una obra literaria nace dentro de una
concepción de mundo, determinada por el espacio físico y por los acontecimientos que en él
suceden. No se la puede desarraigar de esa instancia, sin traicionar la intencionalidad de su
creador, que expresa al hombre en su contingencia. Lo que no impide la trascendencia de la
obra que, por su universalidad, se hace válida para lectores posteriores que la recrean desde
nuevas perspectivas.

Bibliografía
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BALART, Carmen y CÉSPED, Irma. El imaginario en novelas chilenas actuales: temas y estructuras. Santiago:
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CÁNOVAS, Rodrigo. Novela chilena. Nuevas generaciones. Santiago: Siglo XXI, 1997

ESPINOSA, Patricia. Narrativa chilena hoy. En: Nueva narrativa chilena. Santiago: LOM, 1997, p. 65-74

FERNÁNDEZ, Maximino. Literatura chilena de fines del siglo XX. Santiago: Don Bosco, 2002

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LARRAÍN, Jorge. Identidad chilena. Santiago: LOM, 2001

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RÍO, Ana María del. Siete días de la señora K. Santiago: Planeta, 1993

SERRANO, Marcela. Nuestra Señora de la Soledad. Santiago: Aguilar, 1999

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise
sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica
do Mercado em Mano de Obra e
Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit

This Body Is Not Mine! An Analysis of the


"Body - Consumption" and the Logic of
the Market In “Mano de Obra” and
“Impuesto A La Carne”, of Diamela Eltit

Juliana de Jesus Amorim Pádua


Mestre em Literatura no Programa de
Pós-Graduação em Literatura da UnB.

julianadejesusamorinpadua@gmail.com

Elga Pérez-Laborde
Professora do Programa de
Pós-Graduação em Literatura da
Universidade de Brasília. Líder
do grupo de pesquisa Literatura
Latino-americana Contemporânea.

elgaplaborde@gmail.com
Resumo Abstract
Na lógica de mercado, os corpos são o elemento In market logic, the bodies are the necessary
necessário na busca alucinada pela satisfação, a element in the frantic search for satisfaction, the
verdadeira moeda de troca. E é dentro dessa real exchange currency. From the dichotomous
dicotômica relação que Diamela Eltit estabelece relationship the Diamela Eltit establisches language
jogos linguísticos e narrativos que levam o leitor a and narrative games that take the reader to deep
profundas reflexões sobre as consequências de um reflections on the consequences derived from a
mundo globalizado e excludente. Nesse contexto, globalized world and excluding. In this context, two
duas obras se destacam por desvelarem essa books stand out revealing the degradation derived
degradação por trás da sedução perversa do from the perverse capitalism seduction. In Mano de
capitalismo. Em Mano de obra, homens e mulheres obra, men and women occupants of a degrading
são ocupantes de um espaço globalizado e globalized place; whereas in Impuesto a la carne,
degradante; já em Impuesto a la carne, os espectros female spectra wander and try to survive the harsh
femininos são seres errantes, e tentam sobreviver space of a hospital. .
no espaço inóspito de um hospital..
Keywords: marktet, bodies, Diamela Eltit,
Palavras-chave: mercado, corpos, Diamela Eltit, globalized world.
mundo globalizado.
Não é fácil fazer valer, nesse paisagismo
midiático do banal, uma diferença de voz cuja
alteridade saiba burlar o estereotipado do
marginal com que o mercado comercializa as
marcas chamadas ‘mulher’, ‘periferia’,
‘subalterno’, para colocá-las em algum espaço
cômodo que controle o sistema de identidades e
as diferenças homogêneas.
(RICHARD, 2009)

H
istoricamente o corpo é o elemento essencial nas relações individuais e sociais
que conhecemos até hoje, um “mapa de discursos que estabelece construções
de sentido”;1 principal campo de atuação do poder, desde o uso ritualístico e 1 | ELTIT, Diamela. Signos
Vitales: Escritos sobre
sagrado à degradação e destruição por meio da legitimação de “verdades” que literatura. 1ª ed., Santiago:
Ediciones Universidad Diego
se estabelecem a partir de uma construção identitária que perpassa a materialidade de cada
Portales: 2008, p. 15.
existência para resultar em uma tecnologia desenvolvida pelo biopoder2, tema abordado por
2 | O termo aparece pela
Michael Foucault na obra Microfísica do Poder. primeira vez em outra obra
de Michael Foucault, História
da sexualidade I: A vontade
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela de saber..

consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico,
no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo
é uma realidade bio-política [...] (FOUCAULT, 1989, p. 80).

No contexto atual de pós-modernidade, as condições de valor e desvalor se dão,


principalmente, por meio da construção corpórea, o poder materializado que, dentro de um
discurso aparentemente coerente, estabelece critérios de padronização e de comportamentos.
O controle do indivíduo se dá, assim, pela imposição de regras e de mecanismos coercitivos,

Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde


317
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do Mercado
em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit
a construção dos “corpos dóceis”. Segundo Foucault, “um corpo só se torna útil se é ao
3 | FOUCAULT. Michael. mesmo tempo corpo produtivo e submisso”3, ou seja, a alienação e o utilitarismo são os
Vigiar e Punir. História da
Violência nas Prisões. 33ª ed., principais componentes investidos no mercado capitalista.
Rio de Janeiro: Vozes, 2007,
p. 26.
Para legitimar essa relação, historicamente construída, a linguagem se estabelece
como o principal mecanismo nessa fabricação. A criação de códigos não permite apenas a
troca relacional entre os seres de uma comunidade, ela impõe um referencial a ser observado
e a ser seguido cegamente, uma hierarquização inquestionável. Uma das mais conhecidas
lides linguísticas é, sem dúvida, a luta estabelecida pelo feminismo, que tenta perfurar e
subverter a cultura patriarcal nos códigos da palavra, de dentro para fora. E é nesse campo de
rupturas que surge, a partir de um contexto ditatorial, a autora chilena, Diamela Eltit, que, a
modelo de Severo Sarduy, com a linguagem neobarroca, e de José Donoso, com a apropriação
marginal dissidente, institui uma escrita, segundo a própria autora, errante e solitária.
Eltit surge no cenário da literatura latino-americana contemporânea, nas últimas
décadas do século XX, mais precisamente durante o regime militar de Augusto Pinochet, nos
anos de 1970. Importante verificar que os aspectos da marginalidade em Eltit não estão em
torno apenas de personagens ou tipos sociais, mas inseridos nos processos que geram a
exclusão. Sua escrita é, por escolha, descentralizada, e seu estilo literário consegue aliar
construção estética experimentalista, denúncia e reflexão social; características de várias
obras latino-americanas, nos moldes de Rayuela, a “antinovela” de Júlio Cortázar e o labirinto
4 | O grupo atuava no campo estético de El Aleph, de Jorge Luís Borges. A linguagem utilizada por Diamela, fragmentada e
não-oficial artístico durante
a ditadura no Chile. Entre as simbólica, já se revela como um gesto contra o discurso hegemônico e as produções reificantes.
performances organizadas
pelos artistas estão: Para
Nesse mesmo sentido, suas obras se encontram na contramão da sacralização literária, uma
no morir del hambre el vez que ainda estão à margem do cânone, apesar de a produção da autora chilena já ter
arte, formada por algumas
ações simultâneas como despertado interesse em diversos estudos acadêmicos nos Estados Unidos e na França.
a distribuição de leite em
uma periferia de Santiago,
Os projetos literário e artístico de Eltit vão além da produção de novelas e da
seguida da realização de um escrita de ensaios; a autora chilena faz do próprio corpo um território experimental dos
discurso sobre a fome em
cinco idiomas, executado no estigmas que atravessam a marginalidade. Os primeiros trabalhos foram realizados junto ao
prédio das Nações Unidas de
Santiago. Outra intervenção
grupo CADA (Colectivo de Acciones de Arte)4, durante o regime militar entre os anos de
foi a chamada Ay Sudamerica, 1979 e 1984. Essas ações, relacionando arte e política, incluíam trabalhos de instalações
que distribuiu 400.000
panfletos com um manifesto audiovisuais e produções fotográficas. Essas experiências foram determinantes para a
artístico jogado de aviões em
diversas comunidades do Chile.
simbiose arte e vida, característica presentes na escrita de Diamela, uma mistura de reflexão
social e ruptura com esquemas tradicionais canônicos. Tanto nas atuações com o CADA,
5 | Projeto realizado entre
1980 e 1982, em parceria com quanto na escrita solitária, Eltit opta pelas margens, um espaço cismático que desestrutura
a fotógrafa e produtora Lotty
Rosenfeld. Simultaneamente
e questiona os arranjos do poder. Procurando abarcar a complexidade da exclusão social e o
ao ato de lavar a rua, Diamela estado psíquico de corpos marginais, a autora caminha pelas ruas de Santiago como
projeta o próprio rosto em
uma tela. No terceiro ato, a testemunha e estudiosa das várias faces da marginalidade.
autora beija um mendigo; uma
inversão nas cenas românticas
Um dos primeiros corpos que fizeram parte do projeto literário e experimental
do cinema americano. da autora foi o corpo marginal prostituído. Na atuação performática Zonas de dolor5 , a autora

Cerrados nº 38
318
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
chilena lava a calçada de um prostíbulo, um gesto simbólico que descontrói o estigma
perverso que responsabiliza especialmente as mulheres pela venda sexual do corpo.

Dos prostíbulos mais vis, sórdidos e desamparados do Chile, eu nomeio minha arte
como a arte da intenção. Eu peço para eles a permanente iluminação: o desvario.
[...] porque eles são mais puros que as repartições públicas, mais inocentes que os
programas de governo mais límpidos [...]. E eles, definitivamente marginalizados,
entregam seus corpos precários consumidos a troco de algum dinheiro para
alimentar-se. E seus filhos crescem nesses lupanares. Mas é nossa intenção que as
ruas se abram algum dia e sob os raios de sol se cante e se dance e que suas cinturas
sejam capturadas sem violência na dança, e que seus filhos cheguem aos colégios e
universidades: que tenham o dom do sonho noturno. Insisto que eles já pagaram
por tudo o que fizeram; travestis, prostitutas, meus iguais. (ELTIT, 1980, apud
PEDRON, 2006, p. 125-126)

A seguir, outros dois corpos marginais que se tornaram o centro da análise de


Eltit são os dos ocupantes de rua. O primeiro aparece na obra Lumpérica6 (ELTIT, 1983); um 6 | O nome “Lumpérica” é
provavelmente a junção do
corpo feminino que ocupa uma praça e vive sob a vigilância de um poste iluminado, termo lúmpen, classe social
mais baixa, em espanhol, e a
referência às formas de controle durante o regime militar. A narrativa fragmentada da obra,
palavra América, referência à
além de escapar ao controle ditatorial, impossibilita interpretações unívocas de uma América Latina.

identidade socialmente pré-estabelecida. Já em El Padre Mío7 (Id.,1989), a fala desarticulada e 7 | El Padre Mío faz parte de
uma produção literária e
esquizofrênica de um mendigo contrasta com a suposta ordem instaurada pelo poder. Esse
artística da autora chilena, que
discurso, na forma do delírio do “pai”, representa o estado de morte e de incertezas em que gravou em três momentos
diferentes (1983, 1984, 1985)
vivia a população chilena durante o período de repressão. a fala de um suposto morador
de rua, cujo principal foco
Um terceiro corpo marginal aparece em Por la Patria (Id.,1986). Coa/Coya é a
do discurso faz referência ao
representação dual entre o nome de uma princesa Inca, em quéchua8 (Coya), e o estado de governo Pinochet.

marginalização da (in)existência indígena (Coa). Seguindo esse mapeamento da marginalidade, 8 | Família de línguas
indígenas ainda hoje falada
Eltit desenha, por meio de um trabalho fotográfico e poético, a loucura. Essa existência
na América do Sul.
antissocial e pervertida encontra espaço em Infarto del Alma (Id., 1994), uma descrição sensível
e inusitada de corpos de casais que vivem reclusos em um manicômio em Putaendo, Chile.
São corpos que reestabelecem significados e sentidos, especialmente no tocante à junção
improvável entre amor e loucura.
Assim, o olhar atento de Diamela Eltit sobre as margens rompe com os códigos
linguísticos por meio de uma linguagem densa e elíptica para apresentar as diferentes
formas de resistência. No lugar de explicar o mundo objetivo, Eltit ocupa-se das relações
simbólicas e da pluralidade de significados do discurso, principalmente do não-dito e dilui,
assim, na atuação simbólica do corpo (gestos e sentidos), a representação verbalizada do
poder instaurado.

Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde


319
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do Mercado
em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit
Dentro desse projeto de significativas rupturas, a genealogia do corpo marginal
torna-se um código complexo, que leva a uma reflexão mais lúcida sobre os discursos que
endossam o poder. Dessa forma, a partir da perspectiva corpo-linguagem, o presente estudo
analisa duas obras que retratam a dolorosa existência submersa no capitalismo, presa a
esquemas mercadológicos. Em Mano de obra (Id., 2002) a alegoria do mercado assume o rosto
cruel do hiperconsumo, que não se limita à necessidade cada vez maior de aquisição de bens
e serviços, mas se configura especialmente na compra de padrões comportamentais e de
realidades, muitas vezes, distantes da população. Ainda explorando a temática capitalista,
Impuesto a la carne (Id., 2010) faz alusão à comemoração dos 200 anos da República chilena,
marcados pela mobilização popular, pelo ataque aos corpos “indóceis” e pelo controle deles.
Todo esse resgate histórico é metaforizado no espaço simbólico de um hospital, local de
violação dos corpos, que se encontra sob a suspeita da existência de um mercado ilegal de
sangue e de órgãos.

Carnes à mostra: hipermercado e consumismo em Mano de Obra


A força dos ideais capitalistas, que esmaga o indivíduo ao mesmo tempo em que faz dele um
aliado, instala-se na alegoria de um (super)mercado na novela Mano de obra (ELTIT, 2002).
Nela, patrões e empregados vivem a tensa condição da exploração da mão de obra trabalhadora.
O Hipermercado é o espaço de aglomeração, cuja dinâmica espetacular se repete
constantemente e de forma viciante até o processo máximo de alienação, tanto da parte de
quem consome como da parte de quem é coprodutor e também consumidor. Uma cadeia de
9 | BAUDRILLARD, Jean. uma “disciplina programática”, como afirma Jean Baudrillard.9
Simulacros e Simulação.
Lisboa: Relógio d’Água, 1991,
p. 99. O hipermercado parece-se com uma grande fábrica de montagem, de tal maneira
que, em vez de estarem ligados à cadeia de trabalho por uma limitação racional
contínua, os agentes (ou pacientes), móveis e descentrados, dão a impressão de
passarem de um ponto a outro da cadeia segundo circuitos aleatórios, contrariamente
às práticas de trabalho. (BRAUDILLARD, 1991, p. 99)

O consumidor desse mercado global é, por sua vez, a busca de um sonho


hedonista, de realizações individuais e cada vez menos relacionais, paradoxalmente distinto
à promessa das novas tecnologias do fim das fronteiras e uma aproximação cada vez maior
entre realidades geograficamente distantes por meio, especialmente, das redes sociais;
antigamente representadas pela televisão, um sistema unilateral de comunicação. Sobre esse
fenômeno, assim se posiciona o filósofo francês Gilles Lipovetsky:

A ordem despótica do consumo não é senão a que institui a unilateralidade da


comunicação, uma relação social abstrata que impede toda forma de reciprocidade

Cerrados nº 38
320
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
entre os seres [...]. A problemática da dessocialização sistemática foi ainda mais
reforçada com o desenvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação,
que substituíram progressivamente a antiga vida em sociedade pelas interações
virtuais. (LIPOVETSKY, 2007, p. 144. )

O resultado dessa busca cega pela realização pessoal é um “autismo generalizado”10, 10 | Termo utilizado por
Gilles. LIPOVETSKY, Gilles
um estado quase esquizofrênico de atuação social, que faz com que, por exemplo, se perca o (2007:144).
verdadeiro sentido de cidadania, pois “se es ciudadano en la medida que se consume lo que
11 | Trad. “Se é cidadão na
dictamina la hegemonía de mercado.”11 (ELTIT, 2008, p. 113), o que gera, segundo Diamela, medida em que se consume
o que dita a hegemonia do
um verdadeiro estado de despolitização. Por outro lado, a construção identitária de cada um mercado”.
praticamente só é construída na capacidade de adquirir objetos e bens individualmente. No
entanto, apenas esta última constatação não dá conta da complexa condição atual do
“consumidor-cidadão”, uma vez que, mesmo não consumindo diretamente bens e serviços,
o indivíduo se encontra nessa rede e a alimenta de forma infinita, já que o principal produto
do hiperconsumo é o simbólico. Mesmo indivíduos desprivilegiados socialmente são
consumidores em potencial dos signos e da ideologia dominante.
Em oposição a esse capital ideológico, Diamela Eltit adota uma postura
antifetichista12 em Mano de obra para confrontar os valores ideais e reais do mercado 12 | O termo “fetichismo”
é aqui utilizado com maior
neoliberal que, de acordo com a própria autora, impõe regras que favorecem ao próprio jogo proximidade com a teoria
de imposição de verdades inquestionáveis (ELTIT: 2007). Nesse projeto literário, Eltit coloca marxista.

em cena a excludente realidade que o mercado não permite que se veja. Assim, as imagens
no “super” são degradantes e revelam a outra face do sistema capitalista.
A história desse “hiperconsumismo” é dividida em duas partes; na primeira, um
narrador-personagem, sem nome nessa parte inicial da trama, apresenta o mercado no
cenário principal, “a segunda casa” do empregado. A visão é de um “hipercapitalismo”; um
13 | Trad. “A natureza do
lugar ameaçador e competitivo, organizado por meio de hierarquias, da subserviência e do super é o magistral cenário
que favorece a mordida.
sofrimento, mas que se apresenta aos olhos dos consumidores como um espaço para a Oh, sim, os corredores e
realização dos desejos. seu rastro labiríntico, a
irritação que provoca o
excesso (de mercadorias, é
claro), as incontáveis árvores
La naturaliza del súper es el magistral escenario que auspicia la mordida. Oh, sí, los (artificiais, logicamente) com
pasillos y su huella laberíntica, la irritación que provoca el exceso (de mercaderías suas luzes inócuas. A música
emblemática e programada.
por supuesto), los incontables árboles (artificiales pues) con sus luces inocuas. La Um conjunto harmônico de
luzes (de cores) corretamente
música emblemática y serial. Un conjunto armónico de luces (de colores) correcta- conectadas a seus circuitos
mente conectadas a sus circuitos actuando de trasfondo para abrir el necesario ape- atuando de pano de
fundo para abrir o apetite
tito que requiere la fiera [...]. (ELTIT, 2005, p. 72)13 necessário que a fera pede.”

As imagens hiperbólicas da disputa pelas mercadorias, com velhos decrépitos e


crianças que invadem uma seção de brinquedos demonstram a crueldade do sistema e a

Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde


321
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do Mercado
em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit
exclusão de boa parte da população dos benefícios do mercado capitalista que, na realidade,
só pode realizar os desejos de uma parcela mínima da população. Com o fim da capa
fetichista, restam os produtos da dor, do engano e o sentimento de destruição; ofertas que o
mercado esconde no simulacro do poder.

Esas carnes de segunda desvelan y martirizan al cliente. Lo desquician y lo obligan a


detenerse con una actitud vengativa delante del congelador. Su mirada ahora, depo-
sitada sobre la carne, se vuelve doblemente desconfiada y el olfato alcanza su máxi-
ma categoría. Se inclina como un pájaro de absurdas proporciones (precisamente
como una ave de carroña) sobre esa carne que desmiente sin tapujos la realidad de
su origen. Allí, entre la transparencia del plástico, está escondida la certidumbre de
una carne de segunda que se presenta como si fuese de primera. Claro que se trata
14 | Trad. “Essas carnes de un fraude. (ELTIT, 2005, p. 27- 28)14
de segunda tiram o sono
e martirizam o cliente.
Tiram-no do sério e Nesse espaço de um tempo interminável e indeterminável, cuja consciência da
obrigam-no a ficar com uma
atitude vingativa diante do realidade se dissolve, e os corpos são constantemente controlados e vigiados pelas câmeras
congelador. Seu olhar agora,
depositado sobre a carne, faz-
(a sala de gravações), o narrador é um dos poucos que consegue se despir do estado anestésico
se duplamente desconfiado e em que a maioria se encontra. Como consequência da sua lucidez, a dor é inevitável, uma
o olfato alcança sua máxima
categoria. Inclina-se como vez que ele se dá conta do esvaziamento e da apropriação da estrutura identitária do seu
um pássaro de absurdas
proporções (precisamente
próprio corpo.
como uma ave carniceira)
sobre essa carne que
desmente sem disfarce a Me refiero al dolor. Un dolor que está determinado, y, sin embargo, carece de una
realidade de sua origem.
Ali, entre a transparência
localización precisa. Digo, como si el cuerpo funcionara sólo como una ambienta-
do plástico, está escondida ción, una mera atmosfera orgánica que está disponible para permitir que detone el
a certeza de uma carne de
segunda que se apresenta flujo de un dolor empecinado en perseguirse y, a la vez, huir de sí mismo. (ELTIT,
como se fosse de primeira.
Claro que se trata de uma
2005, p. 20)15
fraude. ”

15 | Trad. “Refiro-me a Assim, a atitude resignada dos clientes contrasta com o estado de consciência da
dor. Uma dor que está
determinada e, no entanto,
personagem narradora, que termina abdicando do estado alienante para dar conta de sua
precisa de uma localização própria ruína, oposta também ao gozo cego daqueles que compram as ilusões do mercado.
precisa. Quero dizer, como se
o corpo funcionasse apenas Já na segunda parte do livro, “Puro Chile”, a narrativa é deslocada para o espaço
como um cenário, uma mera
atmosfera orgânica que está
privado de uma habitação, onde convivem os funcionários do mercado, invisíveis aos olhos
disponível para permitir que da empresa. Como o zoom de uma câmera, as personagens são apresentadas ao leitor por
rompa o fluxo de uma dor
empenhada em se perseguir meio de diferentes comportamentos e em situações diversas. Assim, da identificação
e, ao mesmo tempo, fugir de
si mesmo. ”
categorizada (os clientes, as crianças, os empregados), desenha-se uma existência individual;
surgem os nomes próprios Isabel, Gloria, Enrique, Sonia, Alberto, Gabriel e desaparecem as
marcas temporais que controlam os acontecimentos. O choque entre esses dois universos
diferentes e, ao mesmo tempo, complementares revela-se na tentativa de apagamento dos

Cerrados nº 38
322
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
conflitos da primeira e na conturbada relação entre pessoas diferentes da segunda, pois é no
espaço privado que o mercado se revela como signo repleto de significados.16 16 | Na lógica de
mercado, os produtos
Tal encenação foge ao lugar-comum da descrição desse fenômeno típico do capitalismo, são autossustentados e
impessoais. Esse fenômeno
característica que dá singularidade às obras de Eltit que, a exemplo do produtor Marcelo de uma produção cultural
Masagão, com o filme 1,99, um Supermercado que Vende Palavras (2003), recorre ao simbólico fragmentada e aleatória
é identificado por Fredric
do espaço artístico para desconstruir a visão massificada sobre a visão do mercado Jameson como esquizofrenia,
termo emprestado da
consumidor. Ambos criam uma zona fronteiriça de representação da distância que há entre psicologia e de Lacan,
o dominante e o dominado por meio de códigos e signos que não são dados prontamente e compreendido como ruptura
da cadeia significativa
que exigem do leitor/espectador mais do que a reprodução mecanicista dos fatos, técnica (JAMESON, 2000).
utilizada pelo capitalismo para permanecer no poder.
Na citada obra de Masagão, um mercado é representado em um cenário todo
branco (um campo de esvaziamento da consciência), com pessoas, supostos consumidores
que, mecanicamente, pegam os produtos nas prateleiras. No entanto, no lugar da marca do
produto (elemento fetichista), aparecem caixas de diversos formatos que se remetem aos
“slogans”. Frases do tipo “você consegue”, “pense diferente”, “chique é ser inteligente” e
“escolha a sua dívida” têm a função simbólica de demonstrar a construção ideológica por
trás de cada mercadoria. Assim como no mercado real, há outras pessoas que esperam do
lado de fora, uma vez que não há espaço para todos.
O grande mercado é, então, dividido entre os socialmente privilegiados e aqueles
que desejam ser, mas se encontram do outro lado da relação mercadológica, não sendo,
contudo, menos importantes no mundo globalizado, uma vez que esse segundo grupo de
indivíduos, “sujeitos desejantes”, garantem a disseminação do pensamento consumista de
uniformidade, a despeito das disparidades sociais que separam ricos e pobres. Diante dessa
realidade, todos são, fatalmente, consumidores em potencial, e a única igualdade realmente
presente é o comportamento inconsciente e indefeso do consumidor global.
Em Mano de Obra, além de estabelecer o paralelo entre esses dois universos, a
autora trabalha ainda outras formas de hierarquização entre os corpos marginalizados, que
não se estabelecem apenas na relação “patrão x empregado”. Na hierarquia “familiar” da
convivência entre homens e mulheres (segunda parte do livro), por exemplo, também ficam
evidentes diferenças de gênero, em que o masculino se sobressai e ocupa a posição de
liderança, no caso de Enrique, que passa a ocupar o cargo de supervisor, enquanto o corpo
feminino sofre diversas derrotas, ora por conta dos estigmas da sexualidade (na figura de
Isabel), ora em razão do terror do desemprego (representado por Glória).
Além das questões do sexo/gênero, há a preocupação, por parte do poder, em
classificar todos os corpos (por idade, sexo, condições de saúde, etnia, classe social), o que leva
à fragmentação da realidade, que é uma das principais estratégias desse tipo de sistema e a
única forma de dissipar uma reação em massa ou uma consciência coletiva, que se encontra
em permanente estado de inconsciência, “pero allí estaban, alienados, buscando trabajo por

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Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do Mercado
em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit
17 | Trad. “[...] mas ali horas, sin anteponer ni las más elementares condiciones.” (ELTIT, 2005: 135)17. Como reação
estavam alienados, buscando
trabalho por horas, sem a essa ordem mercadológica, a narrativa encerra-se na rua, com o início de uma organização
impor nem as mais popular, um movimento que restitui aos corpos dilacerados dos trabalhadores a dignidade e
elementares condições”.
o valor necessários para uma existência plena e de condição cidadã.

O Hospital enfermo: visões do “corpo-consumo” em “Impuesto a la carne”


Seguindo a mesma linha de reflexão crítica sobre o corpo, como simulacro do jogo ideológico
do capitalismo, a narrativa de Impuesto a la carne (ELTIT, 2010) traz à cena principal dois
corpos femininos que atuam como meros instrumentos do uso da medicina contemporânea.
O título da obra resgata um fato histórico ocorrido no Chile, no início do século passado
18 | Trad. “Como me chamo? (1905), em que a voz popular ocupava as ruas de Santiago para protestar, em frente ao palácio
Vocês sabem que não o “La Moneda”, contra o aumento do imposto pela importação de gado argentino, conhecido
posso dizer, meu nome, e
compreendem, isso eu sei, como “imposto da carne”.
que tenho que renunciar e
tranquilizar todas e cada uma Esse fato cronológico serve na realidade de pano de fundo para uma detalhada
das intenções de nomear-me análise sobre a perda dos signos e dos significados que dão legitimidade à atuação popular.
a mim mesma.”
O nome da obra assume, assim, uma dupla face dentro de uma ambiguidade arquitetada
19 | Termo utilizado na obra
para definir a existência de pela autora; uma referência histórica e, ao mesmo tempo, a descrição dos mecanismos que
mãe e filha dentro do sistema se servem do corpo para a implantação de um biopoder.
capitalista.
O relato dos fatos nos é apresentado por uma voz que retrata os corpos enfermos
20 | Essa pergunta retórica
aparece diversas vezes no e destroçados de duas mulheres, mãe e filha. O foco narrativo, em primeira pessoa, reproduz
relato e se refere aos 200 a voz da filha. Ambas não possuem nome; não têm identidade própria; elas representam
anos de República chilena.
apenas categorias e estigmas sociais. No entanto, a não nominação também serve de
21 | O sangue é um dos
principais elementos das instrumento de defesa, uma forma de escapar às investidas de um poder estatal, seja durante
obras de Diamela Eltit; o regime militar, seja no processo de redemocratização. “¿Cómo me llamo? Ustedes saben
símbolo da vida e da
morte; um dos principais que no lo puedo decir, mi nombre, y comprenden, eso lo sé, que tengo que renunciar y apa-
componentes da sexualidade,
especialmente ligado ao ciguar todas y cada una de las intenciones de nombrarme a mí misma.”18 (Id., ibid., p. 181).
feminino. Esse simbolismo Assim, esses corpos errantes e “anárquicos”19 ocupam o espaço de um hospital em uma
é também utilizado como
memória histórica para se infindável espera por atendimento; um tempo mítico de dois séculos. “¿Cuántos? ¿doscientos
reportar às vidas perdidas
durante regimes militares ou anos?”20. Paradoxalmente, esse ambiente as faz adoecer cada vez mais; porque não há um
em manifestações populares. real interesse na cura, mas na utilização indiscriminada dos corpos, até a apropriação
22 | Trad. “Morreremos de completa dos órgãos e do sangue21 das pacientes.
maneira imperativa, porque
o hospital nos destruiu,
duplicando cada uma das Moriremos de manera imperativa porque el hospital nos destruyó duplicando
enfermidades.
Adoeceu-nos de morte o cada uno de los males.
hospital.
Enclausurou-nos. Nos enfermó de muerte el hospital;
Matou-nos. Nos encerró, nos mató.
A história nos deu uma
punhalada pelas costas.” La historia nos infligió una puñalada por la espalda. (ELTIT, 2010, p. 9)22

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Socialmente, o hospital23 revela-se como o principal espaço de cura e de libertação 23 | Em “O Nascimento do
Hospital”. In: Microfísica
das doenças, representado por umas das principais áreas do saber e responsável pelo sonho do poder, capítulo VI, p.
da longevidade. A medicina é praticamente a principal “religião” da humanidade, a “farmácia 99-111, Michel Foucault
afirma que “o hospital como
da felicidade”24, cujos princípios e preceitos são inquestionáveis e intocáveis, embora algumas instrumento terapêutico”
data do final do século XVIII.
verdades científicas desse campo já tenham sido desmistificadas. No mundo pós-contemporâneo, Nesse período, porém, não
a ciência médica representa uma das maiores intervenções mercadológicas com o uso de havia nesse espaço o uso
de um saber hospitalar ou
tecnologias avançadas, que pode não só restaurar a salubridade populacional, como também a intervenção da medicina.
Essa junção só se dará nos
consegue tornar o corpo mais jovem e mais desejável, dentro, principalmente, dos padrões séculos seguintes. Uma
ocidentais de perfeição estética. das razões apontadas por
Foucault para isso foi a
De forma totalmente invertida, os corpos das personagens, “hóspedes” desse própria necessidade de
o ambiente hospitalar se
espaço de uso da medicina, são decrépitos, envelhecidos e abandonados. São existências “medicalizar” no combate
indefesas, embora resistentes, ao poder médico-estatal, cujas ações jamais chegam à raiz dos às doenças propagadas
nesse espaço. Daí vem a
problemas sociais. criação do Hospital Geral,
local que abrigava não só
enfermos, mas devassos,
Estamos en permanente estado de alerta porque nuestras vidas se deslizan a través pais dissipadores, filhos
pródigos, os blasfemadores.
de una línea multitudinaria de cuerpos, una larga geografía colmada de pacientes (FOUCAULT, Michel. História
da loucura: na Idade Clássica.
sumisos. Una ostentosa fila de pacientes severos o terminales que conforman el en- Tradução de José Teixeira
torno de lo que ha sido nuestra difícil existencia. Coelho Neto. São Paulo:
Perspectiva, 2007b). Ou seja,
Un mundo enfermo. mais do que a doença física,
o isolamento hospitalar se
Una realidad horizontal que nos amenaza a mi madre y a mí. destina aos “insanos” e a
(ELTIT, 2010, p. 12)25 qualquer um que se desvie
das normas sociais.

24 | Termo citado por


Nesse espaço de enclausuramento e de impossibilidades, mãe e filha têm apenas Gilles Lipovestsky na obra
uma à outra para conseguir sobreviver e não serem engolidas pelo poder, representado A Felicidade Paradoxal.
Ensaio sobre a Sociedade de
especialmente pelo masculino e pelos ocupantes da elite. Dentro da narrativa, isso se traduz Hiperconsumo, p. 57.

na imagem de “un médico blanco, frío, metálico, constante” (Id., ibid., p. 13), que detinha 25 | Trad. “Estamos em
cada corpo enfermo nas mãos e que, apesar disso, ainda tinha uma legião de admiradores; permanente estado de
alerta porque nossas vidas
os “fãs”. se deslizam por meio de
uma linha multitudinária
Essa analogia entre a atuação da medicina e as formas de governabilidade se dos corpos, uma larga
encaixa perfeitamente no projeto da autora de denunciar o lado sombrio dos acontecimentos geografia cheia de pacientes
submissos. Uma enorme
dos dois últimos séculos, em meio à comemoração histórica de 200 anos de República fila de pacientes graves ou
terminais, que configuram
chilena. O hospital funciona, dentro desse relato, como uma metáfora do próprio país, o meio de nossa difícil
território arquitetado para a alienação e para a “anestesia” populacional. existência. Um mundo
doente. Uma realidade
horizontal que nos ameaça, a
minha mãe e a mim.”
Mi mamá que tiene que entregarle sangre gratuitamente a nuestro hospital patrio, a
nuestro recinto nacional, a todo el territorio hospitalario del país para que la mantengan
viva las enfermeras que sirven a los médicos con una dedicación no sé si voluptuosa

Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde


325
Esse Corpo Não É Meu! Uma Análise sobre o “Corpo-Consumo” e a Lógica do Mercado
em Mano de Obra e Impuesto a La Carne, de Diamela Eltit
26 | Trad. “Minha mamãe pero sí insensata. Los sirven para que los medicamentos triunfen en el cuerpo de los
que tem que entregar sangue
gratuitamente a nosso pacientes. (ELTIT, 2010, p. 69)26
hospital-pátrio, a nosso
recinto nacional, a todo
território hospitaleiro do De forma semelhante ao Hipermercado de Mano de Obra, o hospital é o espaço
país para que se mantenham
as enfermeiras vivas, que alegórico da manipulação e do domínio do corpo, especialmente do corpo feminino, estigma
servem aos médicos com de diversas formas de marginalidade. Como afirma a própria narradora-personagem: “So-
uma dedicação não sei se
libidinosa, mas sim insensata. mos las parias de los médicos. Representamos una forma de expiación con la que prueban la
Elas os servem para que os
medicamentos triunfem no fortaleza de sus vocaciones: la energía, disciplina y la férrea autoridad nacional que ejercen
corpo dos pacientes” sobre nosotras”27 (Id., ibid., 33). Além das “mulheres-pacientes”, colocadas à disposição do
27 | Trad. “Somos as párias Estado, há outra representação feminina importante, a das enfermeiras, “discípulas” do
dos médicos. Representamos
uma forma de expiação com universo médico-masculino. Essa imagem se reporta à exploração da mão de obra
a qual provam a força de suas trabalhadora, um dos principais alimentos do capitalismo. Ainda como gesto dissidente,
vocações: a energia, disciplina
e a dura autoridade nacional Eltit faz uma proposital ruptura com a tríade edipiana, na imagem da mãe-filha28, em que o
que exercem sobre nós.”
masculino é expurgado dessa relação.
28 | Na narrativa, os corpos Dentro desse cenário hospitalar, a principal mercadoria é o próprio corpo
de mãe e filha representam
um só não apenas como humano, dentro de um sinistro esquema de tráfico de órgãos e de sangue, vendidos em
imagem simbólica, mas como
algo possível e real dentro de algum mercado negro. Tudo sob o testemunho de mãe e filha, em duzentos anos de estada
uma impossibilidade física. no hospital. Elas, todavia, subjugadas e debaixo da vigilância médica, nada podiam fazer e,
29 | Trad. “Caminhamos com em nome da própria sobrevivência, guardavam em silêncio tudo o que viam.
diferentes graus de certeza
diante do sangue, a minha e a
de minha mãe, nosso sangue “Caminamos con distintos grados de seguridad ante la sangre, la mía y la de mi
que será vendido na ‘parte
dos fundos’ (uma tradução madre, nuestra sangre que se va a vender en la trastienda de un mercado descono-
possível também seria venda
‘por baixo dos panos’) de cido pero seguramente devaluado y transitorio. Ellas, las enfermeras, venden nues-
um mercado desconhecido, tra sangre y sólo una porción ínfima se destina a los exámenes de rutina que nos
mas com certeza sem
valor e passageiro. Elas, as hacen.”29 (ELTIT, 2010, p. 65).
enfermeiras, vendem nosso
sangue e somente uma porção
ínfima se destina aos exames Junto ao comércio ilegal, há um corpo constantemente “roubado” e esvaziado
de rotina que nos fazem.”
pelo saber da medicina, um sistema paraestatal. Esse processo se revela também por meio da
30 | Trad. “São mulheres,
quando não ingênuas, dilaceração do corpo, por meio da intervenção cirúrgica. Enquanto o povo comemora nas
obsessivas, entregues aos ruas a conquista republicana, o corpo de 15 mulheres “suspeitas”, que ameaçam o poder
medicamentos, adeptas a
seus corpos, envenenadas médico, é submetido à operação para a “cura” de seus males. “Son mujeres cuando no
delas mesmas.”
ingenuas, obsesivas, entregadas a los medicamentos, adictas a sus cuerpos envenenadas de
31 | Trad. “Apesar de nossa ellas mismas”30 (Id, ibid., p. 152). Algumas não conseguem resistir e morrem sem que a
sangrenta exclusão, sabemos
que lá fora, na pátria ou população tome conhecimento desse fato. “Apesar de nuestra sangrenta exclusión sabemos
no país ou na nação, as
comemorações não param.” que afuera, en la patria o en el país o en la nación, las conmemoraciones no cesan”. 31 (Id,
ibid., p. 164). Assim, longe da história oficial, esses corpos fazem parte de outra narrativa,
instituída pelas marcas sangrentas daqueles que foram impedidos de sinalizar qualquer
forma de descontentamento ou revelar as diversas formas de opressão, fragmentadas e

Cerrados nº 38
326
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
diluídas no mundo globalizado, que nos deixa cada vez mais entretidos e maravilhados com
as facilidades de uma tecnologia individualista e massificada.
Mesmo diante de um cenário tão tenebroso, o último gesto da escrita de Diamela
Eltit é de total resistência, uma escrita neobarroca, como ela mesma define, que na contramão
da história e ao assumir o papel de uma “escrita-denúncia” nos deixa um enorme legado de
representação literária não apenas na literatura latino-americana, mas que alcança todas as
questões globais e de realidades adversas dentro das relações pós-contemporâneas. “Vamos a
nacer outra vez o vamos a morir outra vez, quién sabe” (Id., ibid., p. 187).

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Juliana de Jesus Amorim Pádua | Elga Pérez-Laborde


327
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Cerrados nº 38
328
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Os limites do corpo na letra:
subjetividades à margem em
Diamela Eltit

The limits of the body on the


language: subjectivity on the
sidelines in Diamela Eltit

Rafaela Scardino
UFES –Universidade Federal
do Espírito Santo– Vitória (ES).
Doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Letras.

rafaelascardino@yahoo.com.br

Alexandre Moraes
UFES –Universidade Federal
do Espírito Santo –Vitória (ES).
Professor no Programa de
Pós-Graduação em Letras.

alexjmm@gmail.com
Resumo Abstract
Este trabalho busca analisar o romance Los We analyze the novel Los vigilantes, by Chilean
vigilantes, da chilena Diamela Eltit, a partir do author Diamela Eltit, from the (dis)ordering
(des)ordenamento proposto pelo corpo- proposed by the body-language of the child
linguagem da criança cujos monólogos iniciam e whose monologues begin and conclude the text.
encerram o texto. Na obra, a criança levará a In this novel, the child will lead language to its
linguagem ao limite, na iminência de se dissolver limits, on the verge of dissolving into his drives.
em suas pulsões. A marginalidade da criança e seu The marginality of the child, his misfit in relation
desajuste em relação à racionalidade vão permitir to rationality, will allow the subtraction to the
a subtração à disciplina e vigilância impostas pela discipline and vigilance imposed by social
organização social a que se encontram organization to which mother and son are
submetidos, durante boa parte do romance, mãe e subjected during a good part of the novel.
filho.
Keywords: Diamela Eltit; Body; Power; Language.
Palavras-chave: Diamela Eltit; Corpo; Poder;
Linguagem.
O
sentido, por vezes, parece ficar fora do acontecimento, fora da linguagem. E,
assim, fora da linguagem, será preciso forçar seus limites: no romance Los vigi-
lantes, de Diamela Eltit, a criança será o infans 1, aquele que está além e aquém 1 | A palavra infans vem do
verbo latino fari, falar, em
da linguagem – fora de suas margens reconhecíveis, portanto –. Será, ainda, sua forma fans, particípio
quem poderá, com seu corpo convulso, levar a linguagem a seu limite e aproximar-se da presente. O infante, portanto,
seria aquele que não fala.
constituição da experiência, até mesmo por testemunhar a sua impossibilidade, na iminên-
2 | Quando os textos não
cia de se dissolver em suas pulsões. contarem com edição em
No texto, o filho não tem acesso à linguagem usual, mas fala com o corpo, ou língua portuguesa indicada
na bibliografia, as traduções
melhor, deixa o corpo falar, carente de bordas: “Meu corpo laxo fala, minha língua não tem são de minha autoria. No
original: “Mi cuerpo laxo
musculatura. Não fala” (ELTIT, 2004, p. 35) 2 . É esse corpo sem limites que limitará, mesmo habla, mi lengua no tiene
graficamente, a linguagem de uma organização supostamente racional da mãe. O romance musculatura. No habla”.

começa e termina com monólogos do filho, dando espaço e, ao mesmo tempo, acolhendo a 3 | No original: “Tu hijo
se defiende y le oculta el
desagregação linguística da mãe, a escrever para um pai que, mesmo ausente, se considera prodigioso desarrollo de
no direito de ditar ordens e intervir no comportamento dela e no da criança. A avó do me- un impresionante juego
corporal”.
nino atua como uma enviada das ordens do pai, aquela que deverá exercer in loco a vigilância
paterna. Diante de suas visitas, escreve a mãe, o “filho se defende e lhe oculta o prodigioso
desenvolvimento de um impressionante jogo corporal” (ELTIT, 2004, p. 71) 3. Seu corpo “se

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


331
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
ausenta e se apresenta, cai e se levanta, se enreda sobre si mesmo, foge, se escapa, se amanhe-
4 | No original: “su cuerpo se ce depois de uma larga vigília, se condói do estado de seus membros” (ELTIT, 2004, p. 71) 4.
ausenta y se presenta, cae y
se levanta, se enreda sobre Assim, frente ao ordenamento representado pela avó, o corpo do menino, aquilo que instau-
sí mismo, huye, se fuga, se ra a cisão na linguagem, deixa falar o deslocamento das operações de desestabilização do
amanece luego de una larga
vigilia, se conduele del estado poder. Seu corpo comporta-se como a multidão: responde com um silêncio propositivo à
de sus miembros”.
exigência de uma determinada ordem discursiva.
Seu corpo, afirma a mãe, é o “reduto da cerimônia” (Cf. ELTIT, 2004, p. 71), agen-
ciamento que só se pode dar dentro de um contexto social, implicando sempre a inclusão do
outro. Transformar o próprio corpo no reduto da cerimônia é constituir, a partir desse cor-
po, uma experiência política que (re)coreografa um ordenamento (discursivo, mas também
corporal) que busca roteirizar esse corpo, inseri-lo na dimensão do arquivo. É um corpo que
não conhece a experiência do “instante de um limite” (Cf. ELTIT, 2004, p. 71) que lhe tenha
sido imposto por uma determinação que se pretenda totalitária.
Diana Taylor propõe que existe uma oposição, em termos de performances so-
ciais, entre os domínios do arquivo e do repertório. O arquivo está ligado ao registro, àquilo
que resiste à mudança. “O fato de que a memória arquival consegue separar a fonte de ‘co-
nhecimento’ do conhecedor – no tempo e/ou espaço – leva a comentários, como o feito por
Certeau, de que ela é ‘expansionista’ e ‘imunizada contra a alteridade’” (TAYLOR, 2013, p.
49). O repertório, por sua vez, corresponderia à encenação de uma memória incorporada,
“em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reprodu-
zível” (TAYLOR, 2013, p. 49), como a própria linguagem. “O repertório ao mesmo tempo
guarda e transforma as coreografias de sentido” (TAYLOR, 2013, p. 50).
Assim, cabe estacar que as ações da criança e sua própria forma de estar no mun-
do desestabilizam não somente o ordenamento externo representado pelo pai e por seus vi-
gias, a avó e os vizinhos que lhe dão conta do que se passa na casa da ex-mulher. Esses atos
desestabilizam também a mãe, instaurando uma cisão em seu ordenamento subjetivo, sub-
metido aos influxos do poder paterno.
As gargalhadas do filho são, para a mãe, “ruídos inóspitos” que a “descompõem”
(Cf. ELTIT, 2004, p. 54) e dos quais deverá se proteger. Esses sons estão inseridos no mutismo
da criança como um resto de linguagem que impede a coincidência do discurso materno
com a opressão paterna. São essas gargalhadas, pulsão de vida, que, tensionando as margens
da linguagem, trazem à tona o descompasso entre as ações e crenças da mãe e aquelas de seu
ex-marido e vizinhos, como se verá quando abrigar os desamparados açoitados pelo frio. É
por isso que serão vigiados e, consequentemente, estarão sempre em vigília, mãe e filho,
sujeitos que não se adéquam à ordem e à coreografia imposta pelo poder patriarcal que bus-
5 | No original: “el cuerpo ca constranger-lhes.
sedentario de tu hijo batalla “O corpo sedentário de teu filho”, escreve a mãe, “batalha contra o nomadismo
contra el nomadismo de sus
miembros”. de seus membros” (ELTIT, 2004, p. 71) 5. Esse corpo sem limites está sempre à beira da pul-

Cerrados nº 38
332
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
verização, porém afirma, com seu sedentarismo, o desejo de instituição de relações de per-
tencimento. É um corpo que exclui qualquer relação positiva de identidades, mas que tam-
bém se opõe ao nomadismo de uma organização econômico-subjetiva-social que obriga à
movimentação e hostiliza a criação de laços.
A escrita pertence aos adultos: o menino inicia seu primeiro monólogo afirman-
do que “[m]amãe escreve. Mamãe é a única que escreve” (ELTIT, 2004, p. 35) 6. O filho, no 6 | No original: “Mamá
escribe. Mamá es la única que
entanto, quer afastá-la da escrita — isto é, da estabilidade dos sentidos — que significa a escribe”.
submissão ao pai, ao qual o menino se refere como “aquele que escreve”, que fixa uma pala-
vra. A escrita, o uso monitorado da linguagem, pertence, portanto, aos adultos, os quais, por
meio dela, exercem seus jogos de poder: o pai busca submeter a mãe, que se deixa vitimizar,
vigiar. O filho fica reduzido a um corpo emergencial, quase incomunicável, porque se recusa
a entrar nos jogos de poder dos adultos, pois seu território é o da fluidez. Coloca-se à parte,
criando um novo registro da experiência em que tudo deve ser criado a partir das urgências
do corpo.
Sua relação com a linguagem é a de uma falta, uma desagregação, um despeda-
çamento, que, quando nomeados de forma ininteligível para os adultos, utilizando-se de
seus termos, dará fim à especificidade da experiência do menino: “Quando possa dizer a
palavra fome esta história terá terminado” (ELTIT, 2004, p. 38) 7. Por outro lado, adentrar a 7| No original: “Cuando pueda
decir la palabra hambre esta
lógica discursiva dos pais (ou, melhor dito, do pai, que a impõe à mãe e, de forma enviesada, historia habrá terminado”.
ao menino) será também opor um poder discursivo à coerção paterna: “Quando eu fale
impedirei que mamãe escreva. Ela não escreve o que deseja” (ELTIT, 2004, p. 39) 8. 8 | No original: “Cuando yo
hable impediré que mamá
escriba. Ella no escribe lo que
O pai como figura do poder desea”.

Segundo Idelber Avelar, o pai é a representação do nom-du-père que aliena “o corpo da mãe
do balbuciante desejo do filho” (AVELAR, 2003, p. 208). Assim, o pai ocuparia, também, o
lugar psíquico da lei. Interessa aqui, entretanto, analisar as ressonâncias sociais dessa encar-
nação da lei, ou seja, do poder. Um poder que –ainda que vacilantemente nomeado e locali-
zado – é invisível e espraia-se capilarmente pela cidade, tendo nos vizinhos sua principal
força vigilante.
O poder do pai sobre a mãe manifesta-se de forma mais evidente pela escrita. Sua
insistência nas cartas, na escritura de cartas, é uma forma, também, de submeter o corpo
mesmo da mãe, corpo que, como será visto, irá transformar-se em letra num movimento de
destituição da linguagem:

Você insiste no imperativo da correspondência e em minha obrigação em responder


suas cartas. Se não te escrevo, você diz que tomará uma decisão definitiva. Vejo que
outorga à letra um valor sagrado e, dessa maneira, me inclui no seu rito particular
sem se importar com minhas dificuldades, como o prazer que te dá ter o controle so-

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


333
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
9 | No original: “Insistes bre meus dias e o trabalhoso incidente caligráfico em que transcorrem minhas noites
en el imperativo de la
correspondencia y en mi (ELTIT, 2004, p. 77) 9.
obligación de responder a
tus cartas. Si no te escribo,
dices, tomarás una decisión Analisando as promessas não cumpridas da democracia, Norberto Bobbio afirma
definitiva. Veo que le otorgas
a la letra un valor sagrado y que um de seus principais “fracassos” é o “poder invisível”. “Um dos lugares comuns de todos
de esa manera me incluyes
en tu particular rito sin
os velhos e novos discursos sobre a democracia”, escreve o pensador italiano, “consiste em
importarte mis dificultades, afirmar que ela é o governo do ‘poder visível’” (BOBBIO, 1986, p. 83). No entanto, sabe-se,
como no sea el placer que
te ocasiona tomar el control especialmente os que vivem nas jovens democracias pós-ditatoriais latino-americanas, que
sobre mis días y el trabajoso
incidente caligráfico en que
os ordenamentos do poder continuam a ser, muitas vezes, invisíveis, escondendo-se, por
transcurren mis noches”. exemplo, sob a máscara de uma tecnocracia que apenas afasta as forças populares das discus-
10 | No original: “estaba sões sobre os interesses públicos. Como visto no capítulo anterior, estabelecem-se, na demo-
muy afectada yo, como
persona, en ese momento,
cracia, dispositivos legais que garantem a assimetria das relações de poder. Num momento
por el cambio de discurso en similar, em que se fortalecia a implantação do neoliberalismo no Chile, Eltit, quem teve
Latinoamérica. Eso sí te lo
tendría que decir. O sea, en uma destacada participação em movimentos de resistência à ditadura de Pinochet, publica
ese sentido piensa tú que esta
novela yo la escribo después
Los vigilantes no exílio mexicano, tocada não apenas pela situação de manutenção/ampliação
de 17 años de dictadura, das mazelas sociais no Chile, mas com uma perspectiva continental:
con todo lo que sabemos de
ella, pero pasar después de
17 años de dictadura, como
salida, a la instalación de una
[E] u estava muito afetada, como pessoa, nesse momento, pela mudança de discurso
cuestión neoliberal acritica, na América Latina. Isso eu tenho que dizer. Ou seja, nesse sentido, pense que este
para mí, como escritora,
como persona, como todo, romance eu escrevi depois de 17 anos de ditadura, com tudo o que sabemos dela, mas
me afectó. Encontré sí que
estaba lleno de signos sociales
passar, depois de 17 anos de ditadura, como saída, à instalação de uma questão neo-
dramáticos ese minuto. liberal acrítica, para mim, como escritora, como pessoa, como tudo, me afeta. Encon-
Lo que veía lo encontraba
peligroso, dramático, pese trei um minuto cheio de signos sociais dramáticos. Achava perigoso o que via, dra-
a que yo no vivía acá, pero
en los viajes, cuando uno
mático, ainda que não morasse aqui [no Chile], mas em viagens, quando se volta, eu
vuelve, yo estaba viniendo estava vindo umas duas vezes por ano, eu via, como diria Parra, como estava mu-
una o dos veces al año, yo
veía, como diría Parra, cómo dando minha “tribo”. Minha tribo estava mudando. Gente com quem convivi estava
estaba cambiando mi 'tribu'.
Mi tribu estaba cambiando.
mudando. Estavam mudando as relações sociais, a questão literária. Se instalava o
Gente con la que uno habitó mercado. E isso não era somente aqui. No México e em outras partes da América
estaba cambiando. Estaban
cambiando las relaciones Latina se via o mesmo. Então sim, creio que me afetou, nesse sentido me afetou, e o
sociales, la cuestión literaria.
Se instalaba el mercado. Y
vi mais dramático, digamos, o afastamento, a exclusão, a indiferença, a solidão
eso no era acá no más. En (apud KAEMPFER , 2001, p. 35) 10 .
México y otras partes de
Latinoamérica tú veías lo
mismo. Entonces sí creo que
me afectó, en ese sentido
Sobre as relações entre a literatura e o poder institucionalizado, Ricardo Piglia escreve
me afectó, y lo vi más que o Estado não pode funcionar apenas por pura coerção, necessita “forças fictícias”: “Necessita
dramático, digamos, el retiro,
la exclusión, la indiferencia, la construir consenso, necessita construir histórias, fazer crer certa versão dos feitos. Me parece que
soledad”.
há, aí, um campo de investigação importante nas relações entre política e literatura, e que talvez
a literatura nos ajude a entender os funcionamentos dessas ficções” (PIGLIA, 2001, s/p) 11. No ro-
mance de Eltit, a força do pai se organiza como o poder do Estado, especialmente do Estado neo-

Cerrados nº 38
334
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
liberal, um poder invisível cujas ficções dominam as vidas e os pensamentos daqueles que estão 11 | No original: “Necesita
construir consenso, necesita
sob seu jugo. O ordenamento paterno espalha-se pela cidade, contamina os espaços urbanos, que já construir historias, hacer creer
cierta versión de los hechos.
não se oferecem à convivência, mas à segregação social e à vigilância que visa apagar qualquer desvio Me parece que ahí hay un
de conduta: “A vigilância se estende e cerca a cidade. Esta vigilância que auspiciam os vizinhos para campo de investigación
importante en las relaciones
implantar as leis que, asseguram, porão freio à decadência que se adverte” (ELTIT, 2004, p. 53) 12. entre política y literatura,
y que quizás la literatura
As descrições da cidade feitas pela mãe parecem ecoar o disciplinamento hierarquizado nos ayude a entender el
das cidades europeias tomadas pela peste em Vigiar e punir, de Michel Foucault. O estudioso funcionamiento de esas
ficciones”.
francês afirma que a “ordem responde à peste”,
12 | No original: “La vigilancia
se extiende y cerca la ciudad.
ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quan- Esta vigilancia que auspician
los vecinos para implantar las
do os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte des- leyes, que aseguran, pondrán
freno a la decadencia que se
fazem as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada advierte”.
um sua doença e sua morte [...] (FOUCAULT, 2012, p. 163).
13 | No original: “acuerdo
de cerrar las puertas a los
desamparados”.
Na cidade do romance, a palavra “peste” poderia ser substituída por “desampa-
rados”, pois os vizinhos, escreve a mãe, têm um “acordo de fechar as portas aos desampara- 14 | No original: “Los
vecinos están a la caza
dos” (ELTIT, 2004, p. 90) 13. Após oferecer abrigo a algumas dessas pessoas, a mãe passa a ser de desamparados y han
establecido un miserable
ainda mais vigiada pelos vizinhos, tornando-se um perigo real à ordem das coisas: acuerdo con ciertos individuos
que les servirán para sus
fines. Llegaron hasta mi casa
Os vizinhos estão à caça de desamparados e estabeleceram um miserável acordo com dispuestos a convertirme
en la primera víctima, a
certos indivíduos que lhes servirão para seus fins. Chegaram até minha casa dispos- probar desde mi cuerpo la
tos a me converter na primeira vítima, a provar com meu corpo a correção de seus certidumbre de sus planes.
[…]Has hecho de mis vecinos
planos. [...] Você fez de meus vizinhos seus aliados para conseguir o que você mesmo tus aliados para lograr lo
que tú mismo no puedes
não pode lograr. Os vizinhos se transformaram em caçadores, aterrados frente a conseguir. Los vecinos se han
tudo que ameace seus espaços. Eles pensam que seus espaços estão ameaçados pela transformado en cazadores
de presa, aterrados frente a
fome que circunda as ruas e não estou certa de que não é um rumor que cada um todo aquello que amenace
sus espacios. Ellos piensan
colocou em movimento para combater seu próprio tédio. A vigilância é o exercício que sus espacios están
que os mantém alertas. [...] Temiam que eu tivesse uma aliança com os desampara- amenazados por el hambre
que circunda las calles y no
dos, diziam que um complô contra a harmonia de Ocidente se estendia pela cidade e estoy segura de si es un rumor
que cada uno ha puesto en
que todas as suas casas estavam na mira de uma insurreição que ainda não tinha movimiento para combatir su
uma forma nítida (ELTIT, 2004, p. 92-93) 14 . proprio tedio. La vigilancia es
el ejercicio que los mantiene
alertas. […] Temían que yo
tuviera una alianza con los
Pode-se notar, pela insistência no uso da palavra “espaço”, que o que se quer pro- desamparados, decían que un
teger é um ordenamento espacial que evitará a mistura e o contágio. O outro extremo, complot contra la armonía de
Occidente se extendía por la
aquele com quem os vizinhos negam compartir até mesmo sua condição de seres humanos, ciudad y que todas sus casas
estaban en la mira de una
deve ser excluído dos espaços de circulação da cidade. insurrección que aún no tenía
Outra questão importante a ser discutida é a horizontalidade da vigilância: a una forma nítida”.

disciplina deve exercer-se sobre todos os corpos, e todos devem garantir seu cumprimento.

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


335
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
Induz-se, assim, um estado de consciência da vigilância, que a internaliza e assegura sua
eficácia. Há uma automatização e desindividualização do poder que assegura a manutenção
de suas relações assimétricas, em que são todos “objeto[s] de uma informação, nunca
sujeito[s] de uma comunicação” (FOUCAULT, 2012, p. 166). Esse processo de horizontaliza-
ção da vigilância torna-a invisível, enraizada na organização dos sujeitos sociais de forma a
não se poder identificá-la a um sujeito ou instituição que, eliminado, desse lugar a outro
ordenamento social.
A respeito do poder invisível, Bobbio escreve que

[c]onsiderando o casal comando-obediência como o casal característico da relação


assimétrica de poder, quem comanda é tanto mais terrível quanto mais está escondi-
do [...]; quem deve obedecer é tanto mais dócil quanto mais é perscrutável e perscru-
tado em cada gesto seu, em cada ato ou palavra (BOBBIO, 1986, p. 98).

Dessa forma, a relação que se estabelece entre o pai e mãe da criança parece, num
primeiro momento, fazer eco às afirmações do pensador italiano quando fala de “comando-
-obediência”. Não se nega que a relação de poder entre os dois seja assimétrica, exatamente
o contrário. A mãe parece indefesa diante da vigilância da ex-sogra e dos vizinhos e também
parece não ter acesso às instituições jurídicas de instalação e exercício do poder, pois se sub-
mete às ameaças do pai de um juízo que lhe tiraria a guarda do menino. Efetivamente, a
imagem do pai configura uma imagem do poder invisível, como se pode ver nos trechos:
“Não sei quem você é, pois está em todas as partes, multiplicado em mandatos, em castigos,
15 | No original: “No sé em ameaças que rendem honras a um mundo inabitável” (ELTIT, 2004, p. 121) 15 e “Ah, já
quién eres pues estás en
todas partes, multiplicado en não sei quem você é, mas no entanto estou certa do lugar que ocupa. Como se fosse um le-
mandatos, en castigos, en gislador corrupto, um policial, um sacerdote absorto, um educador fanático” (ELTIT, 2004,
amenazas que rinden honores
a un mundo inhabitable”. p. 122) 16. O pai encarna, assim, o ordenamento da lei. Não pode ser alvo ou objeto de análise.
16 | No original: “Ah, ya no sé Não tem referente para um questionamento: o referente é ausente.
quién eres pero, sin embargo, Interessa-nos destacar, também, a descrição do pai como um “educador
estoy cierta del lugar que
ocupas. Como si fueras un fanático”, pois um dos pontos de tensão entre os adultos é a expulsão da criança da escola.
legislador corrupto, un policía,
un sacerdote absorto, un Foucault escreve que a escola “não deve simplesmente formar crianças dóceis; deve
educador fanático”. também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira viver, seus recursos, sua
piedade, seus costumes” (FOUCAULT, 2012, p. 174). A insistência do pai para que a criança
retorne à escola é uma insistência para sua inclusão no ordenamento da lei, das disciplinas.
Uma operação de bordeamento desse corpo pulsional que se recusa a adentrar à linguagem
paterna. A escola seria, como os vizinhos, mais um vigilante que permitiria ao pai “ver
sem ser visto”.
A mãe, todavia, busca opor-se a esse ordenamento, acolhendo em sua casa os de-
sabrigados que vagam pelo frio da cidade, não por acaso denominada Ocidente. Seu ato é

Cerrados nº 38
336
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
considerado extremamente condenável pelos vizinhos e pelo pai da criança, dando início a
duas novas formas de ameaça: a presença da mãe do ex-marido, uma enviada que deverá
somar-se à vigilância dos vizinhos, tendo acesso, ainda por cima, ao interior da casa; e a
constante ameaça de um processo judicial que lhe tirará o menino.
A escrita das cartas, imposição paterna, deverá rebelar-se à vigilância dos vizi-
nhos, à ordem do discurso do pai, e ser o registro de um sujeito que não se submeterá docil-
mente à suposta proteção oferecida pela lei, atuando como o escritor pigliano, que contra-
põe relatos às ficções estatais, “contrarrumores”, “micronarrativas”, ficções anônimas cuja
circulação deverá minar a totalidade da narrativa do poder. O escritor, continua Piglia, “é o
que sabe ouvir, atento a essa narração social, e também o que as imagina e escreve” (PIGLIA,
2001, s/p) 17. Assim, uma de suas últimas cartas dirá: 17 | No original: “es el
que sabe oír, atento a esa
narración social, y también el
que las imagina y las escribe”.
Você ousa dizer que os vizinhos quiseram me proteger, assim pretende encobrir esta
extensa vigilância. Você disse que quiseram me proteger de mim mesma e de minha 18 | No original: “Osas
decir que los vecinos han
perniciosa inclinação para rituais que todos querem esquecer. Mas eu sabia que se querido protegerme, así
pretendes encubrir esta
participava dos pobres costumes, do vazio, do tendencioso rumor que promovem os extensa vigilancia. Dijiste
vizinhos, teria acabado praticamente morta, me teria convertido em uma figura que quisieron protegerme de
mí misma y de mi perniciosa
submetida e inanimada. Não posso aceitar que a cidade seja dividida entre o visível inclinación hasta rituales
que hoy todos quieren
e o invisível para assim inventar uma imparcialidade que desemboque na orgiástica olvidar. Pero yo sabía que
soberba da satisfação (ELTIT, 2004, p. 121) 18 . si participaba de las pobres
costumbres, del vacío, del
tendencioso rumor que
promueven los vecinos, habría
A mãe, cujo nome só é conhecido na última carta, afirma, assim, aquilo que Pa- estado prácticamente muerta,
loma Vidal (2006) chamou de uma “comunhão com as margens” na literatura de Eltit. Cita- me hubiera convertido en una
figura sometida e inanimada.
-se, mais uma vez, uma fala da escritora chilena, que deixa claro não apenas esse procedi- No puedo aceptar que la
ciudad sea dividida entre lo
mento, mas também o lugar da marginalidade em sua escrita visible o lo invisible para así
inventar una imparcialidad
que desemboque en la
[P]enso que talvez seja na estrutura onde verdadeiramente se situe o que possa se orgiástica soberbia de la
satisfacción”.
entender por marginalidade e o que marcou minha própria margem como escritora.
A palavra e sua centralização ou descentralização, seu acordo estético, seu jogo e sua
trapaça e a torção constituem dentro do processo de escrita o maior desafio que devo
afrontar. [...] Mais importante para mim é amparar-me em todas as ambiguidades
possíveis que me outorga o hábito de escrever com a palavra e a partir dela emitir
umas poucas significações (apud LABORDE, 2013, p. 282-283).

As margens, na obra de Eltit, contaminam a linguagem, conformam-na, organi-


zam os personagens. A mãe vai permitir a contaminação por essas margens que deslocam o
ordenamento do discurso e vai partilhar com o filho de sua língua laxa, falada sobretudo
com/pelo corpo.

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


337
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
Durante boa parte do período em que escreve as cartas ao ex-marido, a mãe
apega-se à fixidez da escrita como à lei, mas a experiência, mostra o texto, só pode se
dar na fissura da fixidez da linguagem, numa fissura à lei, especialmente num contexto
pós-ditatorial.
Um dado interessante é que um possível momento de virada na atitude da mãe
em relação à ordem paterna – patriarcal – é o relato de um sonho, ou seja, uma abertura
para o que escapa à estrita racionalidade da vigília: “Agora sei que meu pescoço não é unica-
mente material para a decapitação, nem meu olho o caminho para a cegueira. Entendi, a
partir da sabedoria que continha meu sonho, que minha carne não é apenas a via para que
19 | No original: “Ahora sé que você efetue a melhor caminhada” (ELTIT, 2004, p. 96) 19. E a possibilidade de sair do jugo
mi cuello no es únicamente el
material para la decapitación discursivo do pai passa, necessariamente, pelo corpo.
ni mi ojo el paso a la ceguera.
Entendí, desde la sabiduría
Quando se encerra a escrita da mãe, surge novamente o discurso desordenado do
que contenía mi sueño, que filho. Os dois agora habitam as ruas, e é o menino quem deverá responsabilizar-se pela mãe.
mi carne no es sólo el sendero
para que tu efectúes la mejor Fora da escrita, a mãe perde o acesso à linguagem, pois não pode, ainda, deixar falar seu
caminata”.
corpo: “Agora mamãe não fala. Não fala. Mamãe é a TON TON TON Ta das ruas da cidade”
20 | No original: “Ahora (ELTIT, 2004, p. 134) 20. Assim, a mãe troca de lugar com o menino que deixa de ser o TON
mamá no habla. No habla.
Mamá es la TON TON TON Ta TON TON To da casa, sendo responsável pela sobrevivência dos dois no espaço público. Na
de las calles de la ciudad”.
passagem do espaço privado (privatizado) da casa para o espaço público (abandonado) das
21 | No original: “Mamá ruas, será a linguagem laxa do corpo sem bordas aquela que estabelecerá as negociações es-
todavía conserva algunos
de sus pensamientos. Los paciais. O menino passa, então, a ser aquele que saberá falar a linguagem das ruas; responsá-
pensamientos que conserva
son míos. Son mios. Yo soy
vel pela mãe, acabará, em sua organização pulsional, por fundir-se a ela: “Mamãe ainda
idéntico a la uña, el dedo, la conserva alguns de seus pensamentos. Os pensamentos que conserva são meus. São meus.
mano avasallada de mamá”.
Eu sou idêntico à unha, ao dedo, à mão submissa de mamãe” (ELTIT, 2004, p. 131) 21. Ele deve
22 | No original: “Ahora
mamá y yo sólo tenemos la
conduzir a mãe à possível sobrevivência nas ruas a partir de uma força que nasce do corpo:
carne de nuestros cuerpos”. “Agora mamãe e eu só temos a carne de nossos corpos” (ELTIT, 2004, p. 133) 22. E reafirma-
23 | No original: “Mamá rá que a mãe não soube lidar com o pai sem alguma submissão ao seu poder, sucumbindo à
nunca supo para quién era
su palabra. Para quién era
sua invisibilidade:
su palabra árida e inútil.
[…] Mi cabeza de TON TON
TON To siempre adivinó que Mamãe nunca soube para quem era sua palavra. Para quem era sua palavra árida
mamá iba a ser derrotada
e inútil. [...] Minha cabeça de TON TON TON To sempre adivinhou que mamãe ia
por la aridez de la página.
De la página. Quise morder, ser derrotada pela aridez da página. Da página. Quis morder, rasgar mamãe para
desgarrar a mamá para
alejarla de su inútil letra. Yo afastá-la de sua inútil letra. Eu não falo. Não falo (ELTIT, 2004, p. 133) 23 .
no hablo. No hablo”.

O monólogo do filho, com uma alta carga poética, diferencia-se da escrita da


mãe, totalmente inserida na tradição da prosa de registro, documentação jurídica, econômi-
ca. A criança assume o controle discursivo, deslocando as estruturas de poder que foram
sendo construídas durante todo o romance. Sua “cabeça de TON TON TON To”, ou seja, seu
desajuste em relação à racionalidade permitirá que mãe e filho comuniquem-se com as ruas,

Cerrados nº 38
338
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
subtraindo-se à disciplina e vigilância imposta pela organização social a que pertenciam
antes, quando proprietários de uma casa, quando ainda faziam parte do mundo em que se
separavam espaços de posse e delimitava-se a exclusão da alteridade: “Agora eu estou perto
de controlar esta história, de dominá-la com minha cabeça de TON TON TON To. De TON
TON TON To. Mamãe e eu terminaremos por nos fundir. Graças a mim, a letra escura de
mamãe não fracassou por completo” (ELTIT, 2004, p. 132) 24. A letra que não fracassa por 24 | No original: “Ahora yo
estoy cerca de controlar esta
completo pode ser lida, também, como o corpo que não fracassa por completo, um corpo historia, de dominarla con
mi cabeza de TON TON TON
que não chegará à extinção, ainda que abandone certa constituição disciplinaria. To. De TON TON TON To.
Mamá y yo terminaremos por
fundirnos. Gracias a mi, la
Corpo-letra letra oscura de mamá no ha
fracasado por completo”.
Em certas passagens do monólogo final da criança, em Los vigilantes, é possível ler na palavra
“letra” um modo (tensionador) de dizer “corpo”, como nos trechos que seguem: “Estamos 25 | No original: “Estamos
más abajo, acá donde la TON
mais embaixo, aqui onde a TON TON TON Ta das ruas da cidade PAC PAC PAC PAC destro- TON TON Ta de las calles de
la ciudad PAC PAC PAC PAC
çou suas costas até desfazer sua letra” (ELTIT, 2004, p. 135) 25; “Arrasto uma letra inútil e se ha destrozado su espalda
distante por uma superfície erma” (ELTIT, 2004, p. 136) 26. Destituída da palavra escrita, à hasta deshacer su letra”.

mãe só lhe resta o corpo, com o qual não sabe escrever. Seu deslocamento pela cidade é conduzido 26 | No original: “Arrastro una
letra inútil y lejana por una
pelo filho, quem conhece não apenas a linguagem das ruas, mas a linguagem do corpo. superficie yerma”.
Após o fim da escrita e o abandono do espaço privado da casa, é o saber do corpo
27 | No original: “la esquina
que poderá guiá-los pelo espaço público das ruas. Deparamo-nos com a subversão de uma de esta única calle que nos
hace existir”.
ordem racional em que a mãe deveria conduzir a criança, mas em que a mulher, devastada
pela ordem do poder patriarcal, sucumbe à suposta racionalidade da linguagem, sem poder 28 | No original: “Si llegamos
hasta la plenitud de las llamas
criar espaços de negociação entre si mesma e o ordenamento discursivo a que estava subme- derrumbaremos a los ojos
acechantes que pretenden
tida, perdendo-se na letra de suas cartas. que la tierra de esta única
Ao alcançar as ruas, “a esquina desta única rua que nos faz existir” (ELTIT, 2004, esquina sepulte mi letra.
Mi letra. Ahora yo escribo.
p. 132) , a escrita passa ao menino, que escreve com o corpo:
27 Escribo con mamá agarrada
de mi costado que babea sin
tregua y BAAAM, BAAAM, se
Se chegarmos até a plenitude das chamas derrubaremos os olhos perseguidores que ríe. Se ríe. Mamá no quiere
que yo escriba y se prende a
pretendem que a terra desta única esquina sepultem minha letra. Minha letra. Agora mi pierna para desgarrar mis
palabras. Palabras”.
eu escrevo. Escrevo com mamãe agarrada nas minhas costelas que baba sem trégua
y BAAAM, BAAAM, ri. Ri. Mamãe não quer que eu escreva e se prende a minha
perna para arrancar minhas palavras. Palavras (ELTIT, 2004, p. 135) 28 .

Aqui também, pode-se pensar “letra” como outro nome para “corpo”, mas, dife-
rentemente da mãe, o menino escreve com o corpo. Sua escrita está grafada nas ruas da cida-
de e, ao acontecer, cria o espaço de sua possível sobrevivência. Sua movimentação coreografa
o espaço da cidade, politizando-o.
Nesse espaço delimitado, importa sobremaneira o chão, e suas possibilidades dis-
cursivas. Recorre-se, aqui, ao trabalho de André Lepecki sobre as potencialidades políticas da

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


339
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
coreografia e dos usos subjetivos do chão. Margarita, a mãe, não consegue lidar com a perda
do lugar que lhe era reservado pela vigilância e pelo poder patriarcal. Será a criança – com
sua vocação para o pequeno, para os humilhados, para o que é menor (Cf. GAGNEBIN, 1997) – a
figura que irá criar laços com a rachadura, com as fissuras (do espaço, da linguagem). É no
entre-lugar que desloca os discursos disciplinários que se afirmará o corpo-escritor do
menino, em comunhão com o espaço público que lhe foi vetado pelo pai. Cita-se Lepecki:

Porque a rachadura, finalmente, não é mais do que o chão emergindo como força
coreopolítica: desequilibrando e desestabilizando subjetividades predeterminadas e
corpos pré-coreografados para benefício de circulações que, apesar do agito, mantêm
tudo no mesmíssimo lugar. A rachadura já é o chão, já é o lugar, e é com sua parceria
que podemos agir o desejo de uma outra vida, de uma outra pólis, de uma outra
política [...]
O sujeito que emerge entre as rachaduras do urbano, movendo-se para além e aquém
dos passos que lhe teriam sido pré-atribuídos, é o sujeito político pleno (LEPECKI,
2012, p. 57).

A criança de Los vigilantes abre-se à alteridade, não apenas do chão, mas se abre ao
outro, extremo, da animalidade. Deslocado da ordem paterna, do razoamento da linguagem
e até mesmo de uma suposta contenção humana de suas pulsões, o menino se entrega

a esta noite constelada e desde o chão levantamos nossos rostos. Levantamos nossos
rostos até o último, último, o último céu que está em chamas, e ficamos fixos, hipnó-
ticos, imóveis, como cachorros AAUUUU AAUUUU uivando para a lua (ELTIT,
29 | No original: “a esta noche 2004, p. 138-139) 29.
constelada y desde el suelo
levantamos nuestros rostros.
Levantamos nuestros rostros
hasta el último, último, el último
cielo que está en llamas, y nos
quedamos fijos, hipnóticos,
inmóviles, como perros
AAUUUU AAUUUU AAUUUU
aullando hacia la luna”.

Cerrados nº 38
340
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Referências Bibliográficas
AVELAR, I. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Trad. Saulo
Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003

BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986

ELTIT, D. Los vigilantes. In: ___. Tres novelas. México: Fondo de Cultura Económica, 2004, 26-139

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012

GAGNEBIN, J.M. Infância e pensamento. In: ____. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de
Janeiro: Imago, 1997, p. 169-184

KAEMPFER, A. Las cartas marcadas: política y convivencia textual en ‘Los vigilantes’, de Diamela Eltit.
Confluencia, 16.2, 2001, p. 32-45

Rafaela Scardino | Alexandre Moraes


341
Os limites do corpo na letra: subjetividades à margem em Diamela Eltit
LABORDE, E. P. As emergências de Diamela Eltit: na poética do mal-estar e na resistência política secreta.
In: MORAES, A.; SCARDINO, R. (orgs). Traços de um outro mapa: literatura contemporânea nas Américas.
Vitória: EDUFES, 2013, 277-290

LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha, vol. 13, n. 1, 2012, p. 41-60

PIGLIA, R. Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades). Casa de las Américas, La
Habana, n. 222, 2001. Disponível em http://www.casa.cult.cu/publicaciones/revistacasa/222/piglia.htm.
Acesso em 25 jun. 2014

TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Trad. Eliana
Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013

VIDAL, P. Depois de tudo: trajetórias na literatura latino-americana contemporânea. 2006. 234f. Tese
(Doutorado em Letras) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2006

Cerrados nº 38
342
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Quarenta Dias
e o Elogio da Cordialidade

Rinaldo de Fernandes
Doutor em Letras pela
Unicamp e professor de
literatura na Universidade
Federal da Paraíba (UFPb).
Autor dos romances
Rita no pomar (7Letras,
2008 –finalista do Prêmio
São Paulo de Literatura) e
Romeu na estrada (a ser
lançado). Organizou, entre
outras coletâneas, Contos
cruéis: as narrativas mais
violentas da literatura
brasileira contemporânea
(Geração Editorial, 2006) e
Chico Buarque: o poeta das
mulheres, dos desvalidos e dos
perseguidos (LeYa, 2013).
Q
uarenta dias (Alfaguara, 2014), o romance mais recente de Maria Valéria Rezende,
paulista radicada há décadas na Paraíba (o texto de orelha informa que ela, em
1965, “entrou para a Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo
Agostinho” e que sempre se dedicou à educação popular), traz uma protagonista
curiosa – Alice, uma paraibana aposentada que, por conta da filha única
casada com um gaúcho e que planeja engravidar, vai viver em Porto Alegre, preparando-se
para se tornar “avó profissional”. Protagonista curiosa e que faz pensar no problema da
identidade e de suas representações no romance brasileiro atual.
Quarenta dias, é bom que se afirme logo, atesta a habilidade da autora em
manusear as técnicas do romance, as suas ramificações; em saber conduzir bem as ações em
sua disposição não-linear; em operar e intensificar o monólogo interior. Por esse viés, Valéria
Rezende atrai bastante como romancista. Tem uma linguagem fluida, sem excessos ou
cacoetes, contendo-se para não tornar jocosa a fala da paraibana, que é também narradora
da história.
O romance tem 32 capítulos/fragmentos, razoavelmente curtos, tomando uma,
duas, três, quatro, cinco e até seis folhas (totalizando 245 páginas). A história de Alice,
especialmente a de sua vida em Porto Alegre – onde ela passou quarenta dias circulando

Rinaldo de Fernandes
345
Quarenta Dias e o Elogio da Cordialidade
pelas ruas, sobretudo as da periferia; quarenta dias no “avesso” da cidade, por seus “buracos”
e “rachaduras” –, é narrada, como indicado, em 32 capítulos/fragmentos que trazem ainda
três elementos, sendo que o primeiro é praticamente invariável, o segundo apresenta
algumas variações e o último, também com algumas variações, aparece intercalado entre
capítulos. Os elementos são os seguintes:
1) uma epígrafe (uma frase ou trecho que a protagonista-narradora, leitora voraz,
retirou de algum livro que lhe pertence ou que ela manuseou em sebo ou livraria por onde
passou; um único capítulo, o quinto, exibe três epígrafes);
2) uma fala, às vezes abrindo, às vezes fechando os capítulos, às vezes abrindo-os
e fechando-os, que Alice dirige à boneca Barbie (na verdade, à imagem da boneca que está
estampada na capa do caderno onde a protagonista-narradora escreve o seu relato);
3) uma ilustração, constituindo o pórtico de 16 dos 32 capítulos, de um panfleto
(publicitário, em sua grande maioria, mas há ainda recibos de lanchonete ou de padaria,
uma simpatia e até mesmo um anúncio de uma cadela perdida) que a protagonista-narradora
recolheu em suas andanças por Porto Alegre. No caso, o verso, ou mesmo a frente, do
panfleto serviu para ela fazer anotações sobre o que observou.
O relato que lemos é, substancialmente, o registro feito pela protagonista-narradora
no caderno (com a imagem citada da Barbie) que ela leva de João Pessoa para Porto Alegre;
registro de suas lembranças (da “balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados
por quarenta dias”), dessas várias anotações feitas nos panfletos publicitários, os quais Alice
dispõe na mesa da cozinha do apartamento (ofertado pela filha) em que ela fica sozinha em
Porto Alegre. É aqui, no apartamento, que a professora aposentada faz o seu registro.
As ilustrações que formam o pórtico de 16 dos capítulos são bem produzidas (foram
compostas por Andrea Vilela de Almeida) e funcionais – antecipam informação semântica ao
leitor, apontando para o circuito da protagonista, para as suas andanças pelas dobras da cidade.
As falas que Alice dirige à boneca Barbie, por sua vez, e amainando a voz um tanto
tensa da protagonista-narradora, são lúdicas, humoradas, e, em certos passos, lembram o
registro da literatura infantil (é bom lembrar que Valéria Rezende é autora premiada de obras
infantis), como nestes exemplos:

“Bonjour”, mudinha, continue quieta [...]


 
Nada disso lhe interessa, não é, Barbie?, você é oca e indolor [...]
 
Vamos lá, boneca, desculpe perturbar mais uma vez seu sono eterno [...]
 
Pena que você não tem nada dentro dessa cabeça [...]
 
 

Cerrados nº 38
346
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Por outro lado, a protagonista-narradora Alice expressa valores que configuram
uma imagem positiva do ethos do Nordeste e da periferia. Ao se encontrar em Porto Alegre,
e sendo de “lá” (do Nordeste), como às vezes indica, ao se deslocar pela periferia da cidade
tentando achar Cícero Araújo, desaparecido, filho de uma conterrânea sua, operário da
construção civil, Alice embarca numa aventura por recantos em que, quase sempre, se
depara com pessoas solidárias, vários nordestinos, que têm compaixão dela, que se comovem
com a narrativa que ela sempre usa do desaparecimento de Cícero. Narrativa na qual enfatiza
a desolação da mãe paraibana que ela, Alice, num ato, convenhamos, de desprendimento,
também de muita solidariedade, decide, e de modo obstinado, ajudar. Nesta perspectiva, há
no livro uma espécie de ‘elogio da cordialidade’. Alice, embora andando por lugares que não
conhece, alguns supostamente perigosos, ou potencialmente violentos (“Porto Alegre é
uma cidade enorme, moderna, metrópole, violenta” – está dito logo no segundo capítulo),
não tem maiores dificuldades para fluir, para encontrar guarida, atenção – enfim, cordialidade.
Exemplo de cordialidade que ampara a protagonista:
 
[...] deixe minha filha chegar, ela leva a senhora por aí, aqui tem muito paraibano, sim,
minha filha conhece todos, eu conheço também as famílias, vai com ela, perguntando
[...]. Olha ela chegando aí, minha filha vai levar a senhora, não leva, Suelen?
Suelen me conduziu de casa em casa, gente do sertão, do litoral, da Várzea, do Brejo da
Paraíba, uns tantos Cíceros, por certo, mas nenhuma notícia de Cícero Araújo, nem
nas casas de outros Araújos. Comi tapioca com coco, tomei café, refresco de cajá [...]. 
 
Outro exemplo de cordialidade que alcança a protagonista em sua rota pela periferia:
 
[...] acordei [num sofá velho em que Alice se recostara] já com o dia escurecendo e
uma mulher jovem, com uma fala que não era dali, me apertava o ombro perguntando
se me sentia mal, se queria uma água ou que chamasse alguém. Envergonhada,
recusei, disse que não era nada, apenas um pouco de tontura porque tinha andado
demais, Mas já passou, já estou bem, preciso ir embora, estou atrasada. Levantei-me
de um pulo e já saí andando, Tem certeza?, não quer mesmo nem um pouco de água?

A periferia de Valéria Rezende, reitero, é cordial, afetiva. Periferia prestativa, da boa


convivência. E Alice, até pelo que virá acontecer com ela, soa como uma personagem franciscana.
A personagem de Alice, por outro lado, tem muita força, notadamente nos primeiros
momentos do livro, quando está dilacerada por sua transferência para Porto Alegre (“cidade
pra onde me transplantaram à força”). Aqui o leitor sofre com a personagem, apega-se ao seu
drama, comove-se com a sua solidão. Aqui o tema do ‘exílio’, da angústia do indivíduo
desterrado, se impõe. Alice, já foi dito, é aposentada (tem duas aposentadorias), deu aulas de

Rinaldo de Fernandes
347
Quarenta Dias e o Elogio da Cordialidade
francês, esteve na França fazendo um curso, tem uma filha professora universitária que a
leva para Porto Alegre (deixa-a num bem equipado apartamento na capital gaúcha antes de
seguir com o marido para uma pós-graduação de seis meses na Europa; apartamento
disponibilizado exclusivamente para Alice e que esta irá abandonar de uma hora para outra).
Alice tem erudição, é apegada aos livros (que estão sempre presentes na sua vida, tornando-
se um elemento importante, em várias cenas do livro, na caracterização da personagem).
É, como qualquer brasileiro médio, bem posta na vida. Sendo assim, é de se perguntar: não
soa estranho, não cede um tanto a força da personagem, a ‘descida’ de Alice para a mendicância
ou algo parecido? (Sim, Alice, em parte dos quarenta dias em que circula por Porto Alegre,
vive à beira da mendicância ou mesmo como mendiga. A indumentária, o modo de se
alimentar e de dormir nas ruas, num parque ou em prédios públicos, a convivência com
moradores de rua – tudo isso a identifica com uma mendiga. E é a própria protagonista-
narradora que anota, já para o fim do livro, que os moradores de rua são seus “iguais”). A sensação
de “existir solta”, por si só, seria suficiente, justificaria a virada drástica na vida da personagem?
A insatisfação da protagonista provocada por seu “transplante” para outro estado moveria
mesmo a mudança, tão radical, de sua condição/identidade, teria mesmo carga para
proporcionar a sua penúria (e Alice recebendo, repito, duas aposentadorias e tendo um bom
apartamento à sua disposição) pelas ruas e noites frias de Porto Alegre? O romance, por uma
via que muito provavelmente a escritora não desejava enveredar, não terminaria de algum modo
reforçando o estereótipo do nordestino paupérrimo, miserável, socialmente inviabilizado?
São questões para as quais não encontro respostas no momento. São inquietações
sérias, responsáveis, de quem reconhece os méritos do romance de Maria Valéria Rezende. 

Cerrados nº 38
348
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
Seção 3
Poesia Visual Ibero-Americana 3
Animaverbivocovisualidade – AV3

Poesía Visual Iberoamericana y La


Animaverbivocovisualidade – AV3

Antonio Miranda
Antonio Lisboa Carvalho de
Miranda, bibliotecólogo pela
Universidad Central de Venezuela
(1970), Master in Information
Science pela Loughborough
University of Technology, Doutor
em Comunicação pela ECA/
Universidade de São Paulo,
Professor Titular e Emérito
da Faculdade de Ciência da
Informação da Universidade de
Brasília. Poeta e dramaturgo,
autor de mais de 40 títulos de
livros de poesia, livros técnicos e
ficção publicados em Português,
Espanhol, Italiano, Russo e
centenas de artigos científicos,
resenhas, trabalhos em congressos
e seminários nacionais e
internacional. Atual Diretor da
Biblioteca Nacional de Brasília.
Dirige o Portal de
Poesia Ibero-americana:
<www.antoniomiranda.com.br>.
Resumo Resumen
Apresenta os fundamentos da Comunicação Presenta los fundamentos de la Comunicación
Extensiva e de seus elementos de Extensiva y de sus elementos de
animaverbivocovisualidade (conceito proposto animaverbivocovisualidad (concepto propuesto por
por MIRANDA e SIMEÃO) englobando a MIRANDA Y SIMEÃO): hipermidiación,
hipermidiação, a interatividade, a interactividad, hiperactualización, movilidad,
hiperatualização, a mobilidade, a ubiquidade e a ubicuidad y multivocalidad, siguiendo los
multivocalidade, segundo os postulados teóricos postulados teóricos de Karl R, Popper de la Teoría
de Karl R. Popper da Teoria do Conhecimento del Conocimiento Objetivo y de la Teoría de la
Objetivo e da Teoria da Complexidade de Edgar Complejidad, de Edgar Morin. El AV3 presupone
Morin. O AV3 pressupõe uma amálgama dos un amálgama de los recursos verbales, vocales y
recursos verbais, vocais e imagéticos conforme as imagéticos conforme las capacidade creativa
capacidades criativas (poiesis) do processo criador, (poiesis) del proceso creador, en su dimensión de
em sua dimensão de anima (tanto no sentido da anima (tanto en el sentido de alma creadora y
alma criadora e estética e o uso das tecnologias na estética y el uso de las tecnologías en la arquitextura
arquitextura da poesia e de outros textos. Texto de la poesía y de otros textos. Texto ilustrado con
ilustrado com poemas visuais e eletrônicos de poemas visuales y electrónicos de autores ibero-
autores ibero-americanos. americanos.

Palavras-chave: Poesia, visual, virtual, Palabras-clave: Poesía, visual, virtual,


Multivocalidade, hipermodernidade. Multivocalidad, hipermodernidad.
Um Poema como Epígrafe

LÍRICA DO CIBORGUE* * | Um Ciborgue é um


organismo cibernético, isto
é, um organismo dotado
de partes orgânicas e
o ciborgue habita cibernéticas, geralmente com
debaixo da tua pele a finalidade de melhorar
suas capacidades utilizando
tecnologia artificial.
(wikipedia) Poema do livro
pouco a pouco Neo-Poemas-Pagãos.
ele toma conta SP: Selo Demônio Negro,
2012. 2ª ed.
de todos os teus
sentidos e não sentidos

com os olhos ele vê


as cores que não há

nos ouvidos
músicas silenciosas

pela pele os toques


tocam nas coisas
imponderáveis
na boca os sabores

Antonio Miranda
353
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
sabem de cor
os desgostos do gosto
no nariz
os odores são
as dores que sobem
desde a raiz
e no todo teu corpo
eles inauguram
os movimentos
que são teus pensamentos
na mágica do leve
levitarás em breve
nos espaços
abstratos
de todos os teus atos

serão sutilmente alteradas


e as funções
dos teus órgãos
serão novas

quando já não terás


um só eu

mas vários eus


que nem sequer
serás

é com eles
que para sempre
viverás
para além do óbvio

Homo Sapiens Ciborgue


irmão de mim próprio

E. M. de Melo e Castro

Cerrados nº 38
354
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
1 − Infopoética e Complexidade
Existirá uma poética do complexo, ou a complexidade é, em si própria, uma nova poética
que sempre esteve entre nós, mas que os computadores conseguiram revelar, assim como
aconteceu com os “atratores estranhos” de geometria não euclidiana fractal criada por Benoit
Mandelbrot? No mesmo sentido, programas como o Photoshop possuem possibilidades
inventivas de imagens complexas sempre renováveis, muito para além dos usos pragmáticos
para que foram originalmente feitos. Ou, reciprocamente, ambas essas hipóteses se
interativam, porque toda a complexidade é poética, mas também toda a poética é, sempre
foi, complexa. Mas a poética exige níveis objetuais do fazer, enquanto a complexidade é
do domínio conceitual.

No entanto, ambas são categorias diferenciadas, mas indissociáveis do


conhecimento e das manifestações comunicativas. Digamos então que a
poética é um fazer, enquanto a complexidade é uma condição ou estado
de energia. Mas quando essa energia é a própria matéria do fazer poético,
como no caso da infopoesia e das poesias digitais, então a complexidade
torna-se uma poética das transformações só probabilisticamente previsíveis.
(E. M. DE MELO E CASTRO, p. 10-11)

Poema Visual de E. M. de Melo e Castro

Antonio Miranda
355
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3

Fotografia do casamento de Osman Lins e Maria do Carmo de Araújo Lins, em Vitória de Santo Antão, no dia 8 de
dezembro de 1947. Foto cedida por Ângela Lins
“O que parece estar em questão é a existência da Poesia, essa arte integral da
palavra, enquanto força semântica capaz de denotar significados novos,
formas novas do "dizer"”, amplia E. M. de Melo e Castro, com o
propósito de interferir no mundo real procurando “despertá-lo de seu
automatismo, cada vez mais celerado via tecnologia”.

Complexidade, que propicia uma intersemiose permanente na montagem do


texto poético: a questão deve ir a níveis mais profundos que dizem respeito à
própria linguagem, aos signos que utilizam hoje e que se encontram
saturados, banalizados, desgastados ao extremo para possibilitar a
detonação de significados novos.” (CARLOS ÁVILA, 1993, Folha de
São Paulo).

2 − Melopeia, Fanopeia e Logopeia


Visionário e vanguardista em seu tempo, Ezra Pound, em ABC of Reading (1934), definiu os
três modos retóricos para “carregar de energia” a linguagem poética. A teoria de Pound,
primeiramente apresentada no ensaio “How to Read” (1927, in Literary Essays, 1954), visa criar
uma espécie de semiótica para os registros possíveis da linguagem poética que permeia todo
o processo criativo.
A melopeia é, na sua origem, grega melopoiía («composição de cantos líricos»), é
a arte de musicar a poesia, que significa qualquer melodia (recitada ou cantada) que nos
depara o mundo criativo dos sons no texto poético. Ex. litania:
http://www.youtube.com/watch?v=BJgzPlHeblw#t=49
A fanopeia traduz o poder visual da imagem ("throwing the object (fixed or moving)
on to the visual imagination", nas palavras de Pound); é particularmente significativa na poesia
visual chinesa.

Cerrados nº 38
356
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A logopeia deriva do grego logopoeía, “criação de palavras”, e pressupõe a
capacidade de combinação da forma e do conteúdo das palavras o propósito de alcançar um
estado estético adequado à comunicação.

Infopoesia – E. M. de Melo E Castro

“Uma sabedoria que reinventa e renomeia tudo aquilo que produz ou


em que toca: POESIA, TRANSPOESIA, REPOESIA. A infopoesia, ou
seja, a poesia produzida com instrumentos informáticos que é já agora uma
possibilidade, ao se instalar na realidade virtual, equaciona as ainda algo
enigmáticas relações da interação homem-máquina. (...) Interação que
diluindo a noção de autor, ao mesmo tempo a potencia, agora de uma forma
exponencial, nas suas capacidades criativas e críticas. É que as imagens
assim produzidas, ou seja, os infopoemas, ao atingirem graus de complexidade
estrutural e perceptiva de outro modo impossível de alcançar, representa
uma virtualização de virtualização (...)”
(E. M. DE MELO CASTRO, P. 12-13)

Antonio Miranda
357
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
WOND – MIND Arnaldo Antunes

Bento Teixeira – Poema Barroco

3 − AV3, Hibridismo e Convergência Tecnológica


As teorias mais recentes das áreas de informação e comunicação anunciam, para esse início
de século, o que já foi prenunciado na filosofia e na matemática: o aperfeiçoamento de
nossa percepção das diferentes possibilidades de combinação entre elementos (registros):
INTERSEMIOSES. Paulo Leminski (1944-1989) afirmou que “aqui muitos/vários códigos
interpenetram-se produzindo híbridos que são os mutantes da qualidade nova”; através da
intersemiose, cruzam-se “outras linguagens, outros códigos, outros recursos, outros meios”.
A animaverbivocovisualidade (AV3) é um tipo de linguagem que se apresenta
por meio da convergência tecnológica complementada pelo hibridismo de formatos e
registros e que desperta uma ação criativa integradora de sentidos.

Cerrados nº 38
358
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A AV3 surge nas redes telemáticas e, a partir de seus dispositivos e de nossa
percepção, buscará, na rede prismática de ideias, uma combinação possível de seus múltiplos
formatos. No processo de comunicação em AV3, autores combinarão cognitivamente
conteúdo e forma e poderão processar registros e comunicá-los numa arquitetura
multidimensional.

AV3, HIBRIDISMO E CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA


A AV3 é um tipo de linguagem que se apresenta por meio da convergência tecnológica
complementada pelo hibridismo de formatos e registros e que desperta uma ação criativa
integradora de sentidos.

Antes havia a intenção da "integração das artes" (Bauhaus). Mas a tecnologia


era limitada, como acontecia na inter-relação do texto, som e imagem. A verbivocovisualidade
dos poetas concretistas é um exemplo dessa limitação. Mesclando texto, som e ilustração, o
texto sugeria ou formava a imagem – a geometrização do verso e sua ideogramação.

Antonio Miranda
359
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
Poema visual de ANTONIO MIRANDA
versão animada do poema, pelo artista gráfico Alexandre Rangel

www.youtube.com/watch?v=O8csp1L1ns8

No século 21, essa atividade de “amalgamar” elementos parece mais fácil. É


possível mesmo harmonizar texto, som e imagem pela convergência tecnológica do
processo digital. E se o(s) criador(res) e autor(es) souber(em) valer-se desse recurso, pode(m)
alcançar a “ânima”, ou seja, a (dupla) relação da poiesis (elemento estético, criativo) e o da
“animação” dos elementos da composição mediante a tecnologia. Arriscaríamos dizer que,
em certo sentido, o termo anima como a alma dessa relação intersígnica.
No planejamento da mensagem os elementos amalgamados compõem uma
arquitextura, ou seja, uma combinatória de elementos animaverbivocovisuais. A arquitextura
é compreendida finalmente como uma combinação estética dos elementos criativos, movidos
em “ânima”, compondo uma mensagem única, na relação intersígnica, defendida por
Philadelpho Menezes.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
FERNANDO AMARAL – ideograma verbal

A AV3, como pretendemos, permite a poiesis e a virtua, a criação e sua virtualização,


combinando fatores estéticos e éticos em composições híbridas de alcance ilimitado em
termos expressivos: a animaverbivocovisualidade; que acontece no campo digital, mas que
também pode associar-se a elementos físicos, nas expressões artísticas e científicas:
performances, projeções sobre objetos, “instalações urbanas”, sons e até tato e olfato...

Antonio Miranda
361
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
GABRIELA MARCONDES

http://www.youtube.com/watch?v=SPl0QfSPqfk

O hipermodernismo marca uma nova era nas comunicações e acesso à


informação, considerando que o pós-modernismo terminou no século passado e levou
consigo antigos métodos de organização e tratamento de informação, sejam eles aplicados
ao contexto científico, artístico ou na literatura e nas práticas criativas ainda sem um
planejamento de amálgamas multissensoriais na arquitextura aqui anunciada. Vale dizer,
criando simulações e alternativas de comunicação fora dos padrões convencionais, para
estimular de forma mais integrada os sentidos humanos. Nessas situações é preciso treinar
o olhar e a percepção para a assimilação dos conteúdos.

“O poeta inscreve, modela, geometriza, diagrama sobre a superfície plana da


página, dos muros, da tela ou parte para suportes mais amplos como o disco sonoro,
o cinema e o vídeo, e à publicação digital, com recursos multimídia e holográficos...
agora vale tudo no processo de criação e expressão...” (MIRANDA, 2013).

LETRISMO – OS GÊMEOS

Cerrados nº 38
362
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
É PEIRCE quem nos fornece as bases para um entendimento efetivo dos diversos
códigos (ou semias: sistemas de signos) e suas relações. Partindo sempre do ícone, o signo da
atividade criadora, seja ela artística ou científica. Na semiologia a iconicidade é a
propriedade que tem o signo icônico de representar por semelhança o mundo real:
SEMIOSE – além da representação... semiotifixação

GUILHERME MANSUR

Quem avança na discussão da inter-relação necessária entre arte e ciência,


buscando estimular a academia a pensar seu processo criativo, é o físico Roland de Azevedo
Campos. Convencido de que não há ciência sem o recurso da arte e não deve haver arte
sem o apoio da ciência e da tecnologia, no livro “Arteciência – Afluência de Signos Co-
Moventes” (2003), o autor leva o leitor a percorrer esses espaços de convergência científico-
poético-músico-pictóricos. Segundo Campos, é o que ocorre quando ideias/fórmulas físico-
matemáticas coparticipam de poemas, ou quando imagens poéticas percorrem e inspiram
tópicos da física. Essa transemiose oxigena e adensa os conteúdos.

RODOLFO FRANCO

Antonio Miranda
363
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
4 − O AV3 e a Teoria do Conhecimento Objetivo de POPPER
Devemos invocar a Teoria do Conhecimento Objetivo, de Karl R. Popper, para entender o
espaço da AV3. Popper, em sua teoria, identificou três mundos:

1 – o mundo físico, que “distinguimos em corpos animados e inanimados e que também


contém estados e eventos especiais, como tensões, movimentos, forças, campos de força”;
2 – o mundo metafísico, das “vivências conscientes e, presumivelmente, de vivências
inconscientes”;
3 – do conhecimento registrado, “dos produtos objetivos do espírito humano,
originários da ação do mundo 2”.

Ou seja, a materialização ou coisificação do conhecimento mediante sua


inscrição (ex. livros) “que consiste em atos linguísticos, que são também coisas físicas, processos que
se efetuam no mundo 1”. Devemos reiterar que, neste caso, sempre existe uma base física – que
chamamos de suporte – e a mensagem disposta no processo comunicativo.

Poema visual atribuído a CLEMENTE PADIN – URUGUAI: (videopoema), elaborado pelo artista multimídia Eduardo

Darino: http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/poedigital/poedig001.htm

O conhecimento digitalizado, no século passado, apenas começava sua virtualização


pela computação, em certa medida limitada às letras e números, signos e símbolos de
representação, no processo convencional de registro. Atualmente, porém, os avanços
tecnológicos permitem a amálgama de textos, imagens e sons mediante a convergência
tecnológica e sua algoritimização.
Em etapa mais avançada da exposição, Popper (p. 39) já considera “a parte imaterial,
o lado imaterial do mundo 3”, reconhecendo um impacto sobre a nossa consciência. Ou seja, a
criação de outra realidade, produto da criatividade e da sensibilidade. Agora com mais recursos
à disposição de artistas e cientistas, e até mesmo de qualquer pessoa que deseje ingressar no
processo criativo, aberto pela democratização dos meios de informação e comunicação.

Cerrados nº 38
364
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
A partir dos conceitos de Pierre Levy, o virtual não se opõe ao real. O virtual é
sempre uma potência, uma possibilidade do ser, da entidade concebida no mundo 2, anterior
à sua realização no mundo 3. E o registro no mundo do conhecimento objetivo requer meios
e capacidades de inscrição, cujos recursos vêm se expandindo com o avanço das teorias,
das metodologias e das tecnologias ao alcance dos criadores, mas que também dependem de
sua capacidade intelectual (mundo 2).
O processo de virtualização sendo uma heterogênese, um devir outro, processo
de acolhimento da alteridade, entendendo heterogênese como a variação na concepção e
expressão, ou seja, as diferentes maneiras de manifestação de uma ideia.
Da, nirham: eRos (pseudônimo de ANTONIO MIRANDA) divulgou, em 1970,
um poema visual que ilustra a ideia da perspectiva ilusória, ressaltada por Roberto Pontual,
um dos grandes estudiosos das vanguardas brasileiras, na revista VOZES:

“O panorama da nossa poesia veio sofrendo uma transformação que, hoje como
nunca, se apresenta de modo radical e que teve sua base mais imediata nas ideias
lançadas há cinco anos atrás pelo movimento concreto e posteriormente desenvolvidas
em sentidos diversos pelo grupo neoconcreto.” “Mas há também os que,
arregimentando procedimentos específicos de uma e de outra tendência, procuram
reuni-los numa síntese cujos resultados são, algumas vezes, bem interessantes. É o
caso, como iremos verificando, do POEGOESPACIALISMO [do grupo liderado por
Da Nirham Eros”.(PONTUAL, Roberto)

Antonio Miranda
365
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
Em suma, a inscrição depende da anima (alma) do criador e dos recursos ao
seu alcance no processo criativo (poiesis), ou seja, uma ideia pode expressar-se de diferentes
maneiras, mais ou menos eficiente conforme as faculdades e condições do criador, sujeitas a
críticas, refutações e transformações.

RUBENS JARDIM, na exposição OBRANOME, Museu da República.

No livro sobre “Práticas da leitura” (organizado por Chartier e Guglielmo Cavallo,


com a colaboração de Pierre Bourdieu, etc.), estudiosos de disciplinas diversas que tentam
elucidar os modelos e efeitos, mediante a leitura. Leitura compreendida como um ato que
surge da mediação, ato de decifrar signos que traduzem uma linguagem. Não se trata apenas
de entender (ler) o mundo pelo prisma de um autor (ou autores), mas também captar essa
linguagem que se expressa através de signos (em registros) e que pode tornar fluida a
ação comunicativa. Leitura também como processo dinâmico de aprendizagem, construída
pela definição de padrões e códigos (...) Essa intimidade do leitor agora integra um espaço de
“convivência virtual” onde os internautas e seus pares compartilham experiências e saberes
para além dos espaços convencionais.

GOMEZ DE ZAMORA - ESPANHA

Cerrados nº 38
366
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
É a comunicação extensiva, um processo que avança com a instrumentalização
de sistemas abertos, cooperativos e de compartilhamento de dados:

“É a interação de emissores e receptores com uma lógica hipertextual, pontual e


objetiva em suas metas, mas efêmera, sem estoques e em constante mutação. Pontual
e precisa é também uma mediação transitória. É um entrelaçamento de pessoas e
de ideias em sistemas complexos que tentam responder sincronicamente às
demandas de seus usuários” (SIMEÃO, 2006).

5 − Os elementos da ANIMAVERBIVOCOVISUALIDADE
O AV3 e a HIPERTEXTUALIDADE
A hipertextualidade, segundo Simeão (2006) pode ser compreendida como a possibilidade
da interconexão de conteúdos múltiplos. Uma linguagem que atende às necessidades de
informação do usuário levando à construção de um discurso personalizado e, em muitos
casos, único. A principal característica desse indicador é o direcionamento intertextual
construído por meio de links conceituais.

WAGNER BARJA – AKD-MICO (1986)

O AV3 e a HIPERMIDIAÇÃO
A hipermidiação é a combinação da informação em suas múltiplas dimensões. Texto,
imagem e áudio são utilizados na construção do conteúdo numa lógica discursiva não
linear que obedece aos comandos do usuário. Há, de fato, operacionalmente, uma
preocupação estética de construção, mas distingue-se da anterior por concentrar-se na
capacidade de promover a construção de conteúdos em bases meta-textuais.

Antonio Miranda
367
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
O AV3 E A INTERATIVIDADE
Compreendida como a possibilidade de diálogo entre o usuário (interpretante) e os
sistemas; e de usuários entre si por meio de sistemas com ferramentas que promovem um
contato temporário ou permanente, respondendo também dúvidas sobre o sistema e sua
utilização, seus produtos e serviços de informação. A principal característica deste indicador
é a interação do sistema com seus usuários, sejam eles emissores ou receptores, fundamental
no processo de ensino-aprendizagem.

DANIEL RETAMOSO PALMA – INFOPOEMA (vídeo)

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/daniel_retamoso_palma.html

Algoritimização versus parametrização como uma permanente necessidade de


vinculação dos conteúdos a uma lógica computacional.

“Embora os sistemas inteligentes apontem, no caso da modelagem de prognóstico,


para uma predominância de inferências indutivas fundamentando a predição, há
usos da tecnologia para descoberta de novos padrões, em que o sistema é convidado
a contribuir com os primeiros parâmetros de informação. É neste sentido que cabe
perguntar os limites entre o humano e o maquínico, já que estes parâmetros
interferem na ordem das decisões humanas.” (EDMOND, 2012)

Nesse contexto, a ciência progrediu porque há uma dialógica complexa


permanente (E. Morin) e a regulação se dá pelo diálogo. Esse relacionamento também
comporta a ideia de que os antagonismos podem ser estimuladores e reguladores. Lembrar
as “conjecturas e refutações” da Teoria do Conhecimento Objetivo, de Karl Popper.

O AV3 E A HIPERATUALIZAÇÃO
Atualizar é alterar, mudar para agregar valor. E esse é o principal objetivo das atualizações
nos sistemas automatizados que processam as informações atuais... provocando aceleração
do obsoletismo do registro original ou seu descarte. Em cada nova versão são introduzidas
alterações não só nos conteúdos dos registros, mas na sua estética e conformação:

Chamamos de hiperatualização em tablets a atualização em tempo real, nos moldes


da internet, para todo o conteúdo disponível e com alta frequência ao longo do dia.
(BOTÃO, 2013)

Essa discussão transposta para o ciberespaço é um exercício ainda em curso – que


vem incentivando os pesquisadores a pensar a memória social como um composto em

Cerrados nº 38
368
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
movimento, distanciando-se do sentido de acumulação característico das sociedades da
escrita (DODEBEI & GOUVEIA, 2008).
Henri Bergson e Maurice Halbwachs afirmam, na mesma direção, que a memória
social vem migrando de uma concepção individual para uma composição coletiva,
modelada pelas tecnologias digitais.

E ainda: hiperatualização como uma constante relação entre passado-


presente-futuro, um vir-a-ser perene que invoca o conhecido e projeta novas dimensões no
processo de interpretação dos fenômenos em observação e consequente construção de
conteúdos para a memória pública e a comunicação. Na visão de Maurice Halbwachs a
memória coletiva surge da interação social.

LINDOLFO BELL – POEMA-OBJETO EM ACRÍLICO

Antonio Miranda
369
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
O AV3 E A MOBILIDADE
Mobilidade é a possibilidade de transmitir e receber conteúdos em dispositivos portáteis
e também facilmente ajustados ao perfil e contexto de uso, por meio de ferramentas a aplicativos
(APPs) configurados pelo usuário e que ampliam e agregam valor ao dispositivo (móvel).
Na Educação, complementando o conceito de e-learning, surge o m-learning, como
um sinal claro de que a tecnologia feita para a construção de conteúdos de educação a
distância se alinha aos dispositivos das novas gerações, exigindo estratégias pedagógicas
diferenciadas e recursos tecnológicos específicos. Com as vantagens das diferentes
possibilidades ergonômicas de cada dispositivo.

JOAN BROSSA – ESPANHA

André Lemos (2008, p. 98) apresenta três tipos de mobilidade: a mobilidade


física/espacial (locomoção, transporte), a mobilidade cognitiva/imaginária (pensamentos,
religião, sonhos) e a mobilidade virtual/informacional. O autor entende as mídias, tanto as
massivas quanto as pós-massivas (da invenção do alfabeto até a Internet), como artefatos de
mobilidade informacional no espaço e no tempo. Parte-se do princípio de que hoje a
produção ou registro de informação (conteúdos), coleta, organização, recuperação,
interpretação, transformação e transmissão da informação estão sendo significativamente
afetadas pela possibilidade da comunicação em movimento.

EDUARDO SCALA – ESPANHA – montagem de poema visual na fachada do Instituto Cervantes, em Madri.

Cerrados nº 38
370
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
O AV3 e a UBIQUIDADE
A ubiquidade na teologia é a faculdade divina de estar concomitantemente presente em
toda parte (HOUAISS). Com essa perspectiva, e com o apoio das tecnologias, também temos
o poder de estar ou existir concomitantemente em todos os lugares. No mesmo conceito
aponta-se também a grande rapidez com que se domina um espaço, seja pelo monitoramento
ou mesmo pela possibilidade de incorporá-lo como domínio.
O etnólogo e antropólogo francês Marc Augé, em seu livro “Não-lugares” de 1995,
cunhou o termo "não-lugar" para se referir a lugares transitórios que não possuem significado
suficiente para serem definidos como "um lugar", por exemplo, um quarto de hotel, um
aeroporto ou supermercado, um avião em movimento, etc.

FALVES ALVES – POEMA-PROCESSO

Efetivamente, estamos presenciando um deslocamento do antigo conceito de


disponibilidade documentária, concebida como um esforço da organização da massa
documental para colocá-la à disposição dos usuários – para uma nova dimensão, graças às
tecnologias. O disponível estava fisicamente limitado ao local de armazenagem, enquanto
no mundo digital o disponível torna-se ubíquo e múltiplo, acessível de qualquer lugar,
dependente dos recursos e das habilidades dos usuários. Em outros termos, saímos do
acanhado universo de “poucos para poucos”, em que especialistas produzem para poucos
leitores, passamos para o estágio de “muitos para muitos” graças à universalização do ensino,
da pesquisa e da extensão e da difusão do conhecimento. Atualmente alcançando um
público abrangente, com informações multidimensionais, estamos agora na direção de uma
comunicação integrada “de todos para todos”, numa sociedade interativa, e até virulenta,
que surge na sinergia do processo criativo.
Como previu Ioneji Masuda, pioneiro da sociedade da Informação, os processos
comunicativos incorporam processos produtivos híbridos, ubíquos e de atualização
constante (MENDONÇA, 2007).

Antonio Miranda
371
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
DE POUCOS PARA POUCOS (antes da tipografia)
DE MUITOS PARA MUITOS (na pós-modernidade)
DE TODOS PARA TODOS (na hipermodernidade)

FERREIRA GULLAR – PEOMA ORIGAMI

O AV3 E A MULTIVOCALIDADE (Todos - Todos)


Retomando as ideias de Karl Popper, a construção do conhecimento é um permanente
processo de atualização do mundo 3, por meio da experiência do mundo 2, para chegarmos
ao conceito de multivocalidade. Como explica Barreto:

Conhecer é um ato de interpretação individual, uma apropriação do significado do


conteúdo pelas estruturas mentais de cada sujeito. A geração de conhecimento é uma
reconstrução das estruturas mentais do indivíduo, o que se realiza através de suas
competências cognitivas; é uma modificação no estoque mental de saber acumulado,
resultante de uma interação com uma estrutura de informação. O conhecimento só
se realiza na consciência dos receptores, sendo, portanto, subjetivo e relativo a
cada indivíduo. (Mundo 2)

DADOS – INFORMAÇÃO – CONHECIMENTO

Cerrados nº 38
372
Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
AUGUSTO DE CAMPOS – JULIO PLAZA: POEMOBILES

No contexto das redes, por meio da navegação, com um conjunto de links,


externos e internos, gera-se um mecanismo de comunicação que aciona vários discursos,
tornando-se um dispositivo de comunicação polifônica. Segundo Miranda e Simeão

“Esta multivocalidade é, em essência, aquilo que as metodologias (pedagogicamente


falando) deveriam explorar melhor, conformando-se às expectativas de muitas
teorias e estudos que atestam a possibilidade da instrumentalização dos discursos
híbridos e de uma inteligência coletiva”.

O sociólogo Pierre Lévy, filósofo francês da cultura virtual contemporânea,


defende a existência de uma inteligência coletiva. O conhecimento coletivo é construído
(via TIC) em bases inter e transdisciplinares, numa multivocalidade de autorias.

AUGUSTO DE CAMPOS – JULIO PLAZA: POEMOBILES

Antonio Miranda
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Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
Segundo Levy a comunicação atual permite o que sempre postulou: “onde o
coletivo inteligente pode inventar uma 'democracia em tempo real', uma ética da
hospitalidade, uma estética da invenção, uma economia das qualidades humanas”. O
autor situa o projeto da inteligência coletiva em uma perspectiva antropológica de longa
duração, pelo intercâmbio de conhecimentos. Então existem: a potência computacional, a
comunicação ubíqua por internet e a capacidade quase infinita de guardar informações...
Com esses três aspectos nós temos um novo ambiente de comunicação, e esta é a base técnica
para o desenvolvimento de um novo tipo de inteligência coletiva. Essa criação intertextual
reúne numa cadeia produtiva em que os autores podem vir de diferentes áreas.
O que vale é a complementaridade de ideias no processo criativo. Uma concepção
de “rede”, já defendida por Castells. Lévy é seguidor das ideias de Michel Serres e Cornelius
Castoriadis e cunha o termo “inteligência coletiva” dando mais lastro À ideia de rede
coletiva de conhecimento e criação, o espaço ideal de multivocalidades.
Para analisar e explicar as interações entre Internet e Sociedade, desenvolveu um
conceito de rede, juntamente com Michel Authier, conhecido como Arbres de connaissances
(Árvores do Conhecimento).
Esta multivocalidade é definida por Lemos et alli como uma técnica de vincular
discursos diversos e até contraditórios. Para estes autores, a técnica deve ser explorada em
experiências de educação online porque viabilizaria um conhecimento mais completo (e
complexo) já que poderia expor versões complementares de um tema, deixando ao aluno a
possibilidade de efetuar suas próprias sínteses e combinações.
A associação de conceitos e a busca de estratégias que promovam ações
interdisciplinares fazem parte da filosofia “mestiça” que norteará as ações empreendidas nesta
“arquitetura de complexidades”. Lévy adverte que um dos principais objetivos da educação
formal é fornecer aos jovens uma disciplina cognitiva, sem a qual não se consegue nada.

ANTONIO MIRANDA – CREDO CRUZ – CRUZ CREDO

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
6 − CONCLUSÃO
Estamos na hipermodernidade, e o mundo digital amplia as nossas perspectivas criativas
tanto individuais quanto coletivas. Ninguém cria no vácuo, vivemos numa cultura
hipermidiática, e a construção se projeta na combinação irrestrita de recursos ao nosso
alcance: a esfera semântica proposta recentemente por Pierre Lévy depois de quatro décadas
de estudos das fronteiras do universo digital e virtual em que vivemos:

“Na medida em que a humanidade é uma espécie social especializada na manipulação


simbólica, a nova disponibilidade de autônomos capazes de aumentar a nossa
potência de tratamento de símbolos, casada às telecomunicações e ao estoque de
informação em grande escala, anuncia uma transformação de grande escala. A
inevitável metamorfose cultural mundial (de que nós só observamos o tímido começo no
início do século XXI) se estenderá necessariamente por diversas gerações” (LÉVY, p. 28)

E Lévy conclui que não podemos mais entender a nova realidade olhando, pelo
retrovisor, os conceitos das “escritas estáticas e das comunicações unidirecionais”, ou seja,
devemos antever uma nova dimensão na criatividade humana, incluindo a poesia. Sem
descuidarmos da psyché (espírito), da anima (alma) que “evoca essa corrente de atração entre a
imagem e o conceito, essas forças de repulsão ou de gravitação entre ideias, entre “perceptos””.
Com a possibilidade de reunir formatos, conteúdos e temas das mais diversas
áreas do conhecimento em diferentes situações, cria-se um cenário de interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade e transdisciplinaridade conjugado com qualquer tipo de suporte e de
informação, em função da convergência tecnológica. Voltamos à AV3 e ao hibridismo,
hibridismo múltiplo, com vários níveis da realidade, entre os signos textuais, sonoros e
visuais que circulam por todas as partes:

Do mesmo modo, desde a revolução industrial que, no mundo da linguagem, fez


emergir o jornal, seguido do cinema, do rádio e da televisão, a tendência das mídias
tem sido a crescente hibridização de linguagens, numa direção que a revolução digital
está cada vez mais explorando no limite de suas possibilidades. (SANTAELLA, 2010, p. 95)

Lembrando que o pensamento complexo (MORIN) não se limita ao âmbito


acadêmico: transborda para os diversos setores da sociedade. E com isso questiona todas as
formas de pensamento unilateral, dogmático, unilateralmente quantitativo ou
instrumental. Um desafio à própria democracia.

“BASTA!!!” – POEMA VISUAL DE ANTONIO MIRANDA

Videopoema: http://www.antoniomiranda.com.br/da_nirham_eros/poego_spaco.html

Antonio Miranda
375
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
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Antonio Miranda
377
Poesia Visual Ibero-Americana e Animaverbivocovisualidade – Av3
Nicanor Parra, un poeta
de la incertidumbre

Nicanor Parra, um poeta


da incerteza

Leonardo Sanhueza
Leonardo Sanhueza (1974) es escritor, columnista de
prensa, geólogo y tiene estudios en lenguas y cultura
clásicas. Ha publicado los libros de poesía Cortejo a la
llovizna (Stratis, 1999), Tres bóvedas (Visor, 2003), La ley
de Snell (Tácitas, 2010) y Colonos (Cuneta, 2011); el relato
biográfico El hijo del presidente (Pehuén, 2014), la novela
La edad del perro (Random House, 2014), la colección
de crónicas Agua perra (J. C. Sáez Editor, 2007) y el
volumen Leseras (Tácitas, 2010), que reúne sus versiones
de los poemas breves de Catulo. Además es autor de la
antología El Bacalao. Diatribas antinerudianas y otros
textos (Ediciones B, 2004) y de la compilación de la Obra
poética de Rosamel del Valle (J. C. Sáez Editor, 2000). Su
trabajo poético se encuentra además en varias antologías
y revistas nacionales y extranjeras. Su labor ha sido
reconocida con diversos premios y becas: Premio de la
Academia Chilena de la Lengua (2012, por Colonos), Premio
de la Crítica (2011, por La ley de Snell), Premio Lagar de
Poesía (2009), Premio Internacional de Poesía Rafael
Alberti (Cádiz, 2001), Premio “Pablo Neruda” del Concurso
Nacional de Arte y Poesía Joven de la Universidad de
Valparaíso (versiones 2001 y 2002; y mención en el 2003),
Juegos Florales de Vicuña (2000), Concurso Nacional
Eusebio Lillo de Poesía (1994), menciones en el Concurso
Nacional Ciudad de San Felipe (2000) y en el Premio
Municipal de Literatura (2004), y las becas de la Fundación
Neruda, del Consejo Nacional del Libro y la Lectura y de
la Fundación Andes. El 2012 año recibió el Premio Pablo
Neruda de poesía por su trayectoria.

http://www.premioaltazor.cl/leonardo-sanhueza/

[Conferência apresentada no evento “Cem anos com


Nicanor Parra. Colóquio sobre antipoesia”, organizado pela
Embaixada do Chile no Brasil e o Instituto de Letras da
Universidade de Brasília,
23 de outubro de 2014.]
Resumen Resumo
Hay una serie de equívocos a que ha dado lugar la Há uma série de equívocos em relação à
antipoesía, muchos de ellos relacionados con la antipoesia, muitos deles em função da própria
propia palabra antipoesía. Este año en particular, palavra antipoesia. Este ano em particular, o
el prefijo anti ha sido reiterado hasta el cansancio, prefixo anti tem sido reiterado até o cansaço,
como parte inseparable de todo lo que tenga que como parte inseparável de tudo o que tenha a ver
ver con Nicanor Parra. Así como el prefijo bati se com Nicanor Parra. Assim como o prefixo bat está
halla pegado a todo lo que tenga que ver con ligado a tudo o que tenha a ver com Batman –
Batman –batimóvil, baticueva–, todo lo parriano batmóvel, batcaverna –, tudo o que é parriano é
es precedido por anti, venga o no a cuento: precedido por ante, tenha ou não a ver com a
antihomenaje, anticentenario, anticumpleaños. situação: antihomenagem, anticentenário,
antianiversário.
Palabras-clave: Nicanor Parra. Antipoesía.
Centenario. Paradojas. Palavras-chave: Nicanor Parra. Antipoesia.
Centenário. Paradoxos.
L
a poesía de Nicanor Parra es sin duda una de las más excéntricas del siglo veinte en
castellano. Sé que la excentricidad es una característica resbalosa para hablar de un
tiempo en que prácticamente todos los poetas, por lo menos durante la primera
mitad del siglo, pretendían estar fundando una poesía nueva, revolucionaria, nun-
ca vista, de modo que la galaxia resultante no tiene un centro de referencia evidente. Sin
embargo, incluso los poetas más rompedores, los más grandes y originales de esa época
mantuvieron siempre cierta consistencia con respecto a su tiempo y a sus contemporáneos.
Ese tiempo fue, de hecho, una construcción colectiva en torno a las diversas formas del van-
guardismo, en oposición a los estertores del modernismo rubendariano o manifestaciones
neorrománticas.
El propio Vicente Huidobro, que mediante su manifiesto Non serviam, de 1916,
prácticamente se consagró como el fundador de las vanguardias latinoamericanas al declarar
por primera vez un quiebre con el arte como representación, a partir de entonces fue siempre
solidario con la ola europea, cuyas fluctuaciones le permitieron hallar su propia veta.
César Vallejo, el más latinoamericano de las vanguardias, es impensable sin esos
movimientos o sin el influjo político de su tiempo. Neruda, Octavio Paz, García Lorca en sus
postrimerías, etcétera: todos ellos intentaron una vía renovadora y congruente con el espíri-

Leonardo Sanhueza
381
Nicanor Parra, un poeta de la incertidumbre
tu de la época. La galaxia de las vanguardias, con toda su dispersión, con toda su diversidad,
es reconocible a distancia como un todo, a semejanza de la Vía Láctea.
En ese panorama, Nicanor Parra irrumpió dos veces y en ambas se situó lejos de
esas constelaciones. La primera de ellas fue su apagadizo debut literario, en 1937, es decir, a
los 23 años. El libro Cancionero sin nombre, que le valió ser reconocido en ciertos círculos le-
trados como un joven y promisorio poeta, significó también una toma de posición con res-
pecto a la poesía chilena de ese tiempo. Se trataba de un libro juvenil, muy influido por las
canciones de García Lorca y por el romancero; estaba escrito en versos medidos de arte me-
nor, dominados por un espíritu lírico muy transparente, sin agonías, oscuridades o experi-
mentalismos. Es decir, era todo lo que un poeta joven chileno del año 37 no podía hacer. Los
poetas jóvenes estaban más allá de todo eso y habían declarado la guerra a muerte a todo lo
que tuviera el menor perfume a poesía convencional de juegos florales o fiesta de la prima-
vera. Los grandes elefantes de marfil explosivo de la poesía contemporánea ya estaban escul-
pidos y todos miraban hacia el futuro. Pablo de Rokha, Vicente Huidobro y Pablo Neruda ya
habían superado la velocidad del sonido en sus naves intergalácticas, mientras que los más
jóvenes, contemporáneos de Parra, ya estaban pensando en la teletransportación a través de
túneles desconocidos para llegar pronto a las ciudades espléndidas de las que hablaba Rim-
baud. No había tiempo que perder, el futuro estaba en todo lo que fuera completamente
nuevo, porque las palabras también eran actos del hombre revolucionario. Parra entró así a
la poesía chilena, aplaudido por la retaguardia, ignorado por la vanguardia, y con esa postu-
ra involuntariamente refractaria marcó su primera distancia con respecto a la poesía nueva.
Ese momento de la historia parriana podría haber quedado para el anecdotario
de los primeros libros renegados. Hay mil casos al respecto: poetas cuyo primer libro resulta
un lastre, un pecado juvenil si se compara con la obra total por la que llegan a ser conocidos.
Piénsese nomás en el ya mencionado Huidobro, que no sólo tuvo un traspié de juventud,
sino cuatro libritos publicados en que el mismo pequeño dios que llegó a escribir Altazor o
Temblor de cielo se mostraba como un adolescente piadoso que le escribía poemas a su madre
o a la Virgen María. El caso de Cancionero sin nombre pertenece sin duda a esa categoría y
sospecho que Parra habría dado cualquier cosa por borrar esas páginas de su historia litera-
ria, pero tiene una relevancia esencial para comprender el origen de la antipoesía y su situa-
ción con respecto a su tiempo. Fue tan importante ese momento de éxito y fracaso mezcla-
dos, que Parra esperó 17 años en silencio para volver a la pista de baile. Dije bien: 17 años sin
decir una palabra, hasta que publicó Poemas y antipoemas, en 1954.
Ese silencio puede tener muchas interpretaciones especulativas. Una de ellas es
que Parra sabía que no podía quedarse ahí con sus canciones transparentes y que, para salir,
sólo había dos opciones: plegarse a las vanguardias y hacer «poesía nueva» en ese sistema, o
inventar algo nuevo de verdad. Ya sabemos qué opción tomó. La solución parriana fue tomar
aquella vieja «claridad» que brotaba en el Cancionero sin nombre y meterla en la juguera con

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
la oscuridad de la paradoja y la contradicción, es decir, con la sorpresa que había propuesto
el Conde de Latréaumont, la misma que poco a poco fue conectándose, como veré más ade-
lante, con el habla de Chile y la cultura popular.
Hay una serie de equívocos a que ha dado lugar la antipoesía, muchos de ellos re-
lacionados con la propia palabra antipoesía. Este año en particular, el prefijo anti ha sido
reiterado hasta el cansancio, como parte inseparable de todo lo que tenga que ver con Nica-
nor Parra. Así como el prefijo bati se halla pegado a todo lo que tenga que ver con Batman
–batimóvil, baticueva–, todo lo parriano es precedido por anti, venga o no a cuento: antiho-
menaje, anticentenario, anticumpleaños, etcétera. Ese uso, que viene principalmente del
periodismo cultural y de los creativos publicitarios, por una parte representa un gesto de
simpatía y condescendencia, un saludo inocente, pero por otra parte revela la existencia de
una gran confusión con respecto al significado de la palabra antipoesía y a las ideas que se
hallan en su origen.
El propio Parra ha sido ambiguo con eso. A diferencia de otras poéticas chilenas
–pienso por ejemplo en la poesía lárica, que es un sistema más o menos bien definido y reco-
nocible–, la antipoesía se ha planteado desde su contraste con la poesía, en una indefinición
de cara y sello, de negativo y positivo, pero también de complementos y consustancialidades.
La antipoesía es lo contrario de la poesía, pero también es su revés, su sombra, su Mr. Hyde.
Pensemos por un instante en el poema «La montaña rusa». Lo puedo leer aquí,
ya que es muy breve:

La montaña rusa

Durante medio siglo


la poesía fue
el paraíso del tonto solemne
hasta que vine yo
y me instalé con mi montaña rusa.

Suban, si les parece.


Claro que yo no respondo si bajan
echando sangre por boca y narices.

A menudo se lee ese poema como una declaración rupturista, propio de las van-
guardias, en que se declara caduca la tradición vigente para instalar un nuevo sistema, un
nuevo paradigma, que en el caso de Parra sería un parque de diversiones vertiginoso y lleno
de adrenalina. Su singularidad sería el peligro que comporta adherir a ese sistema. O sea, se
cambia un dogma, que Parra llama el «paraíso del tonto solemne», por otro dogma, que es

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Nicanor Parra, un poeta de la incertidumbre
el de la montaña rusa de la antipoesía. Eso es lo que se suele pensar de ese poema, que Parra
irrumpió en la poesía chilena para instalar su negocio desplazando o destruyendo lo que
había antes de su llegada, con la sutileza de que quien se atreva a entrar en el nuevo juego
podría salir severamente dañado. Es decir, advierte el poeta, no cualquiera puede subirse a
la montaña rusa. Hay que ser bravo, valiente.
Sin embargo, esa lectura nunca me ha satisfecho, creo que hay algo más en ese
poema, algo más profundo, que Parra logra ocultar mediante un chiste. Se puede hacer una
lectura paralela que me parece más interesante. El «tonto solemne» puede pensarse como
símbolo de la rigidez intelectual, del dogmatismo, del fanatismo literario. Parra opone a ese
sistema de verdades únicas y pétreos manifiestos un juego que no es cualquier juego, sino
uno de sube y baja, de cumbres y hondonadas, de pares de curvas convexas y cóncavas, de
tranquilidad y pánico, de velocidad y calma. Podría haber escogido las sillas voladoras o el
Tagadá, pero eso habría sido reemplazar un dogma por otro, en este caso del vértigo y la di-
versión. Parra escoge un juego particular, el único de los parques de diversiones que tiene
una manifiesta dualidad. La rueda de la fortuna también es dual, pero su circularidad mo-
nótona es muy pobre para la idea que se pretende expresar.
Justamente ése es uno de los aspectos que más me interesa de Nicanor Parra: la
manera en que quiso asentar la dualidad, la contradicción y la paradoja como puntos centra-
les de la creación literaria, estableciendo una solución alternativa al problema de la incerti-
dumbre impuesto por la realidad de entreguerras, ese mundo de las «imágenes quebradas»
de las que hablaba Ezra Pound, ese mundo que la mayoría de los poetas de entreguerras
enfrentaron mediante poéticas cercanas al nihilismo, ya sea desde el dadaísmo o desde la
revolución propulsada por el surrealismo; poéticas que descreían completamente de la reali-
dad, porque la realidad misma estaba destrozada y todas sus seguridades se habían esfumado
con el desastre de la guerra. En resumen, la mayoría de las vanguardias europeas y america-
nas había enfrentado la disolución de las certezas mediante brillantes manifiestos revolucio-
narios acerca de alguna nueva certidumbre más o menos plausible. Pasada la Segunda Gue-
rra Mundial, la solución parriana resultó, desde luego, provocadora: oponer a la incertidum-
bre no un nuevo dogma, sino más incertidumbre: incluso en juego de fractales, ya que la
misma propuesta de incertidumbre está en tela de juicio. Parra, al proponer que la literatura
debe estar asentada sobre la incertidumbre, está dudando de su propia teoría.
Recuerdo el poema «Mariposa», de Versos de salón, en que un sujeto está tan ma-
ravillado por una mariposa que anda por ahí, que dice:

no la pierdo de vista
y si desaparece
más allá de la reja del jardín
porque el jardín es chico

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
o por exceso de velocidad
la sigo mentalmente
por algunos segundos
hasta que recupero la razón.

La imagen lírica de seguir a la mariposa incluso más allá de los lindes visibles del
jardín internándose en el espacio mental es en sí misma una imagen de la incertidumbre, pero
Parra se detiene en ese momento incierto en que la mariposa sale del jardín y entra en la men-
te, consintiendo la imagen sólo como un desliz de la razón. Es decir, como una insensatez,
como una trampa del ensueño. Parra ha empezado, sobre todo a partir de Versos de salón, un
constante bombardeo sobre la figura del «poeta lírico», tal como se entendía hasta ese mo-
mento: el poeta que se deja llevar por sus sensaciones, sus ilusiones o sus ensoñaciones. En el
caso del poema «Mariposa» que acabo de citar, el ataque se resuelve dejando que el poeta lírico
exista por un momento, mientras mira la mariposa, pero enseguida lo destruye al hacerlo re-
cuperar la razón. El resultado es, por cierto, paradójico, ya que el poema había empezado a
existir y se sostenía íntegramente en el ensueño lírico, pero cuando todo eso se destruye el
poema se transforma en un nuevo artefacto, cuyo comienzo era sólo una parte del contraste.
Incertidumbre más incertidumbre. Es útil ver esa palabra, «incertidumbre», a la
luz de la antipoesía. Mientras la convención literaria le otorgaría un significado estable, pla-
no, paradójicamente concreto, en el sentido de la inseguridad y la incerteza, la convención
parriana desprende de ella un hecho científico alarmante, el principio de Heisenberg, según
el cual no es posible determinar simultáneamente algunos pares de variables físicas; por
ejemplo, la posición y el momento de un cuerpo. A partir de eso Parra, por su formación
científica, parece decirnos que no sólo sabe eso, sino también que del mismo modo las rela-
ciones entre las cosas, es decir, entre las palabras, no son ciertas, sino probables. Una rosa no
es una rosa. Una rosa es la probabilidad de una rosa.
La propia noción de «poemas y antipoemas» incluye esa conciencia de la duali-
dad. Poemas y antipoemas. El universo parriano no está constituido por unidades cabales,
sino por pares: derecho y revés, humano y divino, poesía y antipoesía. En otras ocasiones
esos pares están fundidos, forman una sola realidad. Por ahí hay un famoso verso en que el
autor se define a sí mismo como «un embutido de ángel y bestia». No un cruce, no una co-
habitación, sino un embutido brutal, manual, doméstico: una longaniza, una butifarra. Pa-
rra no quiere que ángel y bestia estén unidos por una lucha o separados en el espacio en
perfecta armonía simbólica, sino que los compone de manera violenta, los muele y los mez-
cla para hacer con ellos un fundido, una masa de salchicha, donde la carne del ángel es indis-
tinguible de la de la bestia.
En fin, ya sea por su fusión o por su rebote, el choque de opuestos lo que da vida
al artefacto literario. Y aquí volvemos a la física cuántica, esta vez a la física de partículas.

Leonardo Sanhueza
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Nicanor Parra, un poeta de la incertidumbre
Hay que recordar que Nicanor Parra, el año 1946, o sea, justo el año siguiente del fin de la
Segunda Guerra Mundial, se fue a Oxford a estudiar cosmología y, por lo tanto, física cuán-
tica. Ese paso por Oxford tuvo un impacto muy importante en el desarrollo del sistema pa-
rriano de dualidades, justamente porque la física cuántica le permitía a Parra abandonar el
mundo de las certezas de la mecánica racional y plantearse la realidad desde la perspectiva
de las incertezas y las probabilidades. Las cosas ya no están donde están, sino que su situa-
ción es siempre una probabilidad. En particular, me detengo en la asociación de materia y
antimateria: por ejemplo, electrón y positrón que, con su encuentro, permiten el surgimien-
to del fotón, es decir, la luz. Ése creo que es el punto esencial, que hace que los encuentros de
opuestos no sea un mero choque dialéctico, ni su mera exposición, sino que produzcan algo
nuevo con su colisión.
Es en este punto en que Parra enfrenta de otro modo el problema del surrealis-
mo, llegando por la vía de la razón y de la claridad retórica a aquello que los surrealistas
encontraron en la escritura automática o en la oscuridad del inconsciente y que se resume
en la ya clásica comparación de Lautréamont: «Bello como el encuentro fortuito de una
máquina de coser y un paraguas sobre una mesa de disección».
Esa manera de ver el acto poético como una tensión física permanente, que ad-
mite y hasta necesita la oposición de pares entre una realidad y algo que pueda llamarse
«antirrealidad» –certeza y azar, amor y odio, risa y llanto–, irrumpió con fuerza liberadora
en la poesía chilena.
Tal vez convenga aquí hacer un paréntesis sobre el tipo de influencia que ejerció
Parra sobre las generaciones siguientes. Aunque es posible rastrear cierto parrianismo en
algunos poetas, expresado por ejemplo en el uso del humor coloquial o en la fijación del
habla como recurso literario, me parece que la influencia más importante de Parra proviene
de la serie de preguntas que su obra deja abiertas.
La figura del poeta lírico, por ejemplo, a partir de entonces quedó completamen-
te desacreditada. Incluso en casos de poetas especialmente inclinados a la ensoñación, a la
sensiblería nerromántica o al entendimiento de la poesía como un arte sagrado o conectado
con realidades metafísicas, la presencia de Parra puso en circulación una duda esencial acer-
ca de las palabras. Para ser poeta lírico después de Parra, lo primero que se debe saber es que
existen las cosas y que las cosas son lenguaje. En dos vías muy diferentes, los dos principales
poetas de la generación inmediatamente posterior a Parra, Enrique Lihn y Jorge Teillier, se
plantearon su lirismo justamente a partir de una toma de posición con respecto a la relación
entre el escritor y su realidad cotidiana, sus cosas, su lenguaje, su memoria.
Además, con la ruptura de las grandes construcciones (p.ej, a la manera de Hui-
dobro, De Rokha, Neruda) no se produjo una nueva corriente, una nueva escuela, sino que
quedó el campo abierto. En la actualidad, es impensable que un poeta quiera situarse en el
podium del «poeta nacional» o plantearse su oficio como quien se plantea un apostolado o

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
una misión profética. Hasta mediados de los cincuenta, gran parte de la poesía chilena se
realizaba como acto de fe, como compromiso con un programa o un conjunto de ideas. Pa-
rra intentó dinamitar esa manera de ser poeta, llevando la literatura a un terreno mucho
más dinámico, que construye y destruye a la vez, que no tiene fe, sino desconfianza sobre el
objeto creado.
Curiosamente, un frecuente antagonista de Parra, el poeta Gonzalo Rojas, fue
acaso el único de todos sus contemporáneos y antecesores que también planteó en Chile
algo por el estilo: la imagen de que en el corazón de su ejercicio literario había una lucha,
una coreográfica pelea de víboras, entre verso y prosa. En un poema suyo, efectivamente,
Rojas hace pelear y danzar, enredándose violenta y a la vez plásticamente, dos serpientes,
una llamada Versa y la otra Prorsa.
En el caso de Parra, la disputa también es formal, por ejemplo cuando hace cho-
car versos de lirismo convencional y frases que, como un ready-made, son extraídas con muy
buen oído del repertorio de lugares comunes. Pero además hay una lucha en el pensamiento.
Creer y dudar, proclamar y negarse, destruir para crear. Una cosa es tener la belleza en las
rodillas e injuriarla, otra muy distinta es buscarla nada más que para escupirla. «Ordeñar
una vaca / y tirarle su propia leche por la cabeza», dice Parra, desbaratando la función poéti-
ca ejemplar de las viejas voces, la torre de marfil en que la Poesía con mayúscula siempre
tiene la última palabra.
Parra tiende a ridiculizar en primera persona esas arbitrariedades del poeta lírico
y tonto solemne, encarnado a veces en el político charlatán o en el energúmeno.
Pienso por ejemplo en un poema en que un sujeto exclama, a propósito de nada:
«Tengo unas ganas locas de gritar / viva la Cordillera de los Andes / muera la Cordillera de la
Costa». Aunque no es evidente la asociación, el propio sujeto declara que con esa muerte de
la Cordillera de la Costa se podrían ver mejor los atardeceres, cosa que reconoce no intere-
sarle en absoluto, ya que es un «profesor de pantalones verdes / que se deshace en gotas de
rocío / un burgués es lo que soy / ¡qué me importan a mí los arreboles!». Y sin embargo ese
mismo sujeto, al que le importan un comino los arreboles, energúmeno víctima de sus pro-
pias ideas fijas ahora develadas como actos fallidos del poeta lírico, lo único que quiere es
gritar hasta morir: «viva la Cordillera de los Andes / muera la Cordillera de la Costa».
Esa idea de la poesía entendida como afirmación y negación simultáneas, que
ahora parece tan familiar, por lo menos en el ámbito de la poesía hispanoamericana, es dis-
cordante con respecto al sentido común de las vanguardias chilenas, que desde Vicente Hui-
dobro y Pablo de Rokha en los años veinte hasta los surrealistas del grupo Mandrágora en
los cuarenta habían manifestado un compromiso radical con cierto absolutismo poético,
entendido según quién en las esferas del inconsciente, la metafísica, la fe religiosa, la estética:
todos esos ámbitos en que la poesía se rebelaba contra la prosa llana y mundana. El propio
Huidobro, al definir al personaje Altazor con el par «antipoeta y mago», no pretendía ni

Leonardo Sanhueza
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Nicanor Parra, un poeta de la incertidumbre
remotamente desestabilizar su oficio; muy por el contrario, quería extender sus alcances
hacia el máximo ideal creacionista, que es el pequeño dios o hacedor de mundos nuevos.
Sospecho que Parra abrazó ese sistema de opuestos porque en él confluyen al
menos tres vertientes del conocimiento: la física cuántica (por lo que ya he dicho), la tradi-
ción literaria (desde un punto de vista crítico) y la cultura popular (rica en pares del bien y
el mal, como la figura del «diablo burlado», pero también en lo que podríamos llamar «in-
certidumbre del habla chilena». Dicho sea de paso, esa cultura popular es fuente de un crea-
dor con el que Parra tiene mucho en común: Raúl Ruiz. El cineasta justamente ha puesto
énfasis en el discurso errático de los chilenos, esa lengua flotante en que decir una cosa por
otra es prácticamente un requisito para entenderse). Sin esa triple conjunción entre razón,
crítica a la tradición literaria y regreso al habla chilena, me temo que el sistema de dualida-
des, contradicciones y paradojas no habría tenido efecto alguno, entre otras razones porque
habría sido un lugar común, un dato conocido desde tiempos de Heráclito. En el caso de
Parra, se produce el encuentro entre sus preocupaciones inmediatas de profesor de física, su
vocación de hombre de letras enfrentado a las vanguardias de su tiempo y, especialmente, su
biografía de chileno provinciano arraigado en la cultura campesina y en el habla popular del
singularísimo sur de Chile. La antipoesía es así una respuesta basada en principios científi-
cos aplicados a una sociedad letrada occidental mediante argumentos de una cultura popu-
lar que atesora en el habla un precioso legado arcaico, fruto de siglos de mestizaje y opresión,
en los que la cosmovisión mapuche se había entremezclado con la vieja tradición europea
hasta fundirse en una mitología propia.
En 1958, de hecho, cuatro años después de la publicación de Poemas y antipoemas,
Nicanor Parra presentó la conferencia «Poetas de la claridad» en el Primer Encuentro de
Escritores Chilenos, realizado en la Universidad de Concepción. En su alocución, Parra se
situó en oposición a cierto «hermetismo» dominante en la poesía chilena de entonces, ejem-
plificado en prácticamente toda la producción poética de la primera mitad del siglo veinte,
aunque él mismo admitía allí que la antipoesía no era otra cosa que el encuentro entre el
lirismo más convencional –que él asimilaba en García Lorca y en el romancero popular– y el
surrealismo más ortodoxo. En ese cruce, pues, descubierto a través del habla, manifestación
genuina del pueblo, Parra encontró ese feliz Triángulo de las Bermudas en que el flujo de
razón, literatura y lenguaje intenta impedir que la poesía, desprovista de su incertidumbre
esencial, pueda ser instrumento de charlatanes ideológicos, oscuros sacerdotes o chamanes
de cartón que pretendan establecer, por medio del uso de la palabra, algún reino bastardo
sobre el planeta.

Cerrados nº 38
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura
COLABORADORES

Ailton Magela de Assis Augusto


Alexandra Santos Pinheiro
Alexandre Moraes
Algemira de Macedo Mendes
Ana Cristina dos Santos
Antônio Jackson de Souza Brandão
Antonio Miranda
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha
Carmen Balart Carmona
Daniele dos Santos Rosa
Elga Pérez-Laborde
Ester Abreu Vieira de Oliveira
Irma Césped Benítez
Jorge Alves Santana
José Sánchez Carbó
José Wanderson Lima Torres
Juliana de Jesus Amorim Pádua
Leonardo Sanhueza
Márcia Fernandes
Maria Luana dos Santos
Milena Campos Eich
Rafaela Scardino
Regilane Maceno Barbosa
Rinaldo de Fernandes
Rodrigo Vasconcelos Machado
Rogério Gustavo Gonçalves
Sara Almarza
Sebastião Jacinto dos Santos
Stelamaris Coser
Teresinha Vânia Zimbrão da Silva
Wagner Monteiro

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