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Revista da Abordagem Gestáltica:

Phenomenological Studies
ISSN: 1809-6867
revista@itgt.com.br
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia
Brasil

Vieira Marques, Rodrigo


A EXPERIÊNCIA DO “PATOLÓGICO” ENTRE OS OLHARES DA GESTALTTHEORIE E DA
FENOMENOLOGIA
Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, vol. XII, núm. 1, junio, 2006, pp. 191-
211
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia
Goiânia, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=357735503021

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A EXPERIÊNCIA DO “PATOLÓGICO” ENTRE OS OLHARES
DA GESTALTTHEORIE E DA FENOMENOLOGIA 1

Rodrigo Vieira Marques 2

[...] Há uma certa consistência de nosso “mundo”, relativamente


independente dos estímulos, que proíbe tratar o ser no mundo
como uma soma de reflexos – uma certa energia da pulsação de
existência, relativamente independente de nossos pensamentos
voluntários, que proíbe tratá-lo como um ato de consciência.
É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode
distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda
modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio, de todo
conhecimento em primeira pessoa – e que ele poderá realizar a
junção do “psíquico” e do “fisiológico”.
- M. Merleau-Ponty -

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar


interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros,
ser com eles em lugar de estar ao lado deles. Ocupar-se de
psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do pensamento
objetivo que se move entre as coisas inteiramente prontas, uma
primeira abertura às coisas sem a qual não haveria conhecimento
objetivo.
- M. Merleau-Ponty -

Resumo: A nosso ver, Merleau-Ponty realiza, em seus primeiros trabalhos, uma fenomenologia
do patológico que se torna pertinente, principalmente, quando procuramos compreendê-lo
como a expressão de um “eu” – o eu-posso – que, longe de ser apenas um interior conforme
os moldes cartesianos, apresenta-se como um “ser engajado”, uma verdadeira subjetividade
carnal, na qual não há linhas divisórias entre o corporal e o espiritual. Nesse sentido, tomando
por referência uma epistemologia dos trabalhos da psicologia moderna, a nossa proposta é
promover também uma discussão que favoreça, a princípio, um entendimento filosófico do
patológico e, conseqüentemente, da “ordem humana” aquém do velho debate articulado entre
“mecanicismo” e “vitalismo”.

Palavras-chave: epistemologia da psicologia, fenomenologia, M. Merleau-Ponty.

1 Trabalho apresentado no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e I Encontro de Fenomenologia


do Centro-Oeste, em Goiânia-GO.
2 Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Doutorando em Filosofia pela Uni-

versidade Federal de São Carlos – UFSCar.


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

Quando discutimos o problema da patologia na fenomenologia de Merleau-


-Ponty, precisamos nos aproximar dele a partir de um diálogo com a noção de estrutu-
ra desenvolvida pela Gestalttheorie em sua compreensão de uma “natureza humana”
dinâmica e simbólica. Do mesmo modo, a noção de comportamento desenvolvida por
psicólogos como Watson, frente às dicotomias clássicas, no dizer do filósofo, parece
neutra e favorece uma compreensão dinâmica e dialética da relação homem-mundo.
No entanto, isso não significa que o filósofo compartilha dos posicionamentos teóri-
cos do behaviorismo, pois será apenas a compreensão do homem como um “debate” e
uma “explicação” com o mundo que lhe chamará a atenção nos trabalhos de Watson.
Assim sendo, com as devidas ressalvas, Merleau-Ponty se identificará mais com os tra-
balhos da Gestalttheorie ao abordar o comportamento como uma “estrutura” na qual
se dá a própria experiência do “sentido”. Diante desses contornos teóricos, o filósofo
desenvolve, a partir de uma verdadeira “arqueologia” fenomenológica do mundo per-
cebido, uma descrição da ordem simbólica, do “propriamente humano”, na qual não
caberia apenas uma compreensão do vital ou do fisiológico.
A discussão do patológico emerge na obra de Merleau-Ponty no intuito de re-
fletir um fenômeno que manifesta, de forma evidente, uma dimensão vital dotada de
um peso simbólico que se encontra entre o automatismo e a representação, o mecani-
cismo e o intelectualismo. Essa “zona vital” intermediária, pensa o filósofo, é o centro
no qual se elabora o modo como nos relacionamos com o mundo. Em outros termos,
ao submeter a vida individual ao ritmo vital do corpo, a doença pode revelar relações
fundamentais que, em um estado de “normalidade”, não seriam tão facilmente per-
cebidas, uma vez que o pensador não parte de uma cisão radical entre o “normal” e o
“patológico”, mas busca uma compreensão do fenômeno humano como um todo. Um
estudo acerca dos fenômenos patológicos se torna, por conseguinte, uma via privile-
giada de acesso à compreensão do que eles têm a nos revelar sobre o homem em esta-
do normal. Do mesmo modo, facilita também a identificação dos diversos problemas
teóricos que existem quando se procura compreender a pessoa humana nos moldes da
fisiologia e psicologia clássicas.
Nessa perspectiva, as patologias mentais, por exemplo, longe de constituírem
os resultados de uma mera patologia do “espírito”, são compreendidas, na fenomenolo-
gia de Merleau-Ponty, como uma patologia do “corpo”. Isso significa que, procurando
romper com as perspectivas dualistas que geram uma cisão entre o espiritual (mental)
e o biológico (corporal), o filósofo procura entender a patologia a partir de uma cer-
ta “disfunção” entre ordens que já se encontram incorporadas no humano, ordens que
constituem uma unidade com ele. Na patologia mental, por conseguinte, essa “disfun-
ção” se manifesta na relação das ordens fisiológica e psicológica, como tão bem po-
demos observar nos diversos momentos da Phénoménologie de la perception em que
Merleau-Ponty retoma e discute os distúrbios patológicos do “caso Schneider”. Nessas
questões, a aproximação dos trabalhos de Goldstein é inegável, sendo o próprio psicó-
logo alemão quem melhor nos fala do sentido que possui um olhar sobre o patológico:

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A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

Nós tomamos, como ponto de partida de nossas considerações, os fenômenos


que se manifestam em um homem atingido por lesões do córtex cerebral. Nós
escolhemos este material, primeiramente, porque pensamos – provavelmente
com razão – que é preciso atribuir uma significação “central” preeminente ao
córtex cerebral. Os fenômenos que se produzem quando ele foi lesado serão,
portanto, particularmente significativos para nós enquanto tentamos conhecer
a essência do homem. Nós fizemos também esta escolha porque ela nos per-
mite demonstrar certas leis gerais da desintegração funcional, leis que importa
conhecer para melhor conhecer o funcionamento do organismo. (1983, p. 15;
2000, p. 33)

A escolha de pessoas que sofreram uma lesão no córtex cerebral é significati-


va. É o modo de tentar compreender melhor a estrutura do nosso organismo expresso
na relação entre suas partes. A desintegração funcional, para Goldstein, possibilita a
articulação de um contra-argumento e de uma resposta à compreensão do organismo
fragmentado em funções extremamente circunscritas e especializadas. As famosas ex-
periências do psicólogo alemão em sobreviventes de guerra, no entanto, conduzirão
a pesquisa em outra direção. É assim que ele se posiciona contra ao que chamou de
“método analítico da ciência”. É assim que propõe uma leitura holística do humano e
de seus fenômenos, uma vez que o “ordinário aumento” de uma especialização dos sa-
beres científicos, a constituição de um método “atomístico”, embora tenha significado
um certo enriquecimento teórico, acabara por trazer consigo diversos problemas para
uma compreensão autêntica da existência humana (cf. Goldstein, 1961). Não se pode
pensar o homem como uma simples soma de saberes fragmentados, pois, ao contrário
do que pensam as metodologias atomísticas ou analíticas da ciência, o organismo é um
todo, é uma unidade. Sendo assim:

Se o organismo é um todo e cada uma de suas partes funciona normalmen-


te dentro desse todo, então, na experimentação analítica, que isola as partes à
medida que as estuda, as propriedades e funções de qualquer uma dessas par-
tes devem encontrar-se alteradas por seu isolamento do todo do organismo.
Portanto, não podem revelar o funcionamento dessas partes na vida normal.
São inumeráveis os fatos que provam como se altera o funcionamento de um
setor de resultados de seu isolamento. Se desejamos utilizar os resultados de
tais experiências para compreender a atividade do organismo na vida normal
(quer dizer, como um todo), devemos conhecer de que forma essa condição
de isolamento modifica a função, e devemos levar em conta tais modificações.
(Goldstein, 1961, p. 19)

Goldstein compreende o organismo a partir da dinâmica que se estabelece en-


tre figura e fundo. Mas que sentido possui, para Merleau-Ponty, essas observações

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de Goldstein, compartilhadas por outros autores da Psicologia da Gestalt como Ko-


fka, Köhler e Wertheimer? Lembremo-nos de que em La Structure du comportement,
Merleau-Ponty (1942, p. 18) já estava convencido de que “a conduta do doente, como,
aliás, do animal, da criança ou do ‘primitivo’, não possa se compreender, aliás, por
simples desagregação a partir do comportamento adulto, são e civilizado, é talvez a
idéia menos contestada da psicologia moderna. É necessário unir a explicação fisio-
lógica à descrição psicológica”. Em suas Causeries na rádio francesa, o tema volta:
“Sabe-se muito bem que o pensamento clássico não faz grande caso do animal, da
criança, do primitivo ou do louco” (2002, p. 40)3. O filósofo percebe, nesses trabalhos
da psicologia moderna, como também em outras expressões modernas, um modo de
compreender o homem em sua relação consigo mesmo e com o mundo a partir de ou-
tros referenciais. No fundo, há também uma pergunta pelo homem que, aos poucos,
vai se contextualizando em um âmbito ontológico. Em específico, as patologias aca-
bam por revelar uma expressão de aspectos fundamentais do próprio ser do homem
no horizonte de uma investigação acerca do sentido filosófico presente na noção de
comportamento e de percepção. Nesse texto, abordaremos rapidamente a noção mer-
leau-pontiana de comportamento a partir de sua relação com a noção de meio para,
em seguida, elucidarmos o que os estudos acerca do patológico têm a nos dizer sobre
a nossa existência e, por conseguinte, o que isso contribui para a compreensão de um
“estatuto do corpo-próprio”.

***

Em uma nota da introdução de La Structure du Comportement, Merleau-Pon-


ty (1942) logo nos advertia: “fala-se de um homem ou de um animal que ele tem um
comportamento; não se fala assim de um ácido, de um elétron, de uma pedra ou de uma
nuvem senão por metáfora” (p. 2). Ora, sabemos das desventuras que a investigação
do comportamento tivera na psicologia americana ao procurar seus fundamentos na
fisiologia clássica. Apesar da originalidade de Watson, a definição do comportamento
como um debate com seu meio, o behaviorismo não conseguiu cumprir suas intenções
que, segundo Merleau-Ponty, anunciavam uma “filosofia da existência”. Neste sentido,
torna-se notória a intenção do filósofo ao procurar evidenciar os limites da filosofia da
qual o behaviorismo partia, haja vista que, ao contrário de um estudo psicológico ou
fisiológico do comportamento, a intenção de Merleau-Ponty seja “epistemológica”.
Assim, o que o filósofo visa é, sobretudo, o “conceito” de comportamento e, conse-
qüentemente, seu diálogo com posturas tanto materialistas quanto vitalistas. De acor-
do com Watson (apud Carrara, 1998), a psicologia precisa romper com a introspecção
e ser encarada como uma ciência natural:

3 Merleau-Ponty assinala também o enfoque novo dado à animalidade em Lautréamont de Gaston Bache-
lard.

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A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

A Psicologia, tal como o behaviorista a vê, é um ramo puramente objetivo e expe-


rimental da ciência natural. A sua finalidade teórica é a previsão e o controle do
comportamento. A introspecção não constitui parte essencial dos seus métodos
e o valor científico dos seus dados não depende do fato de se prestarem a uma
fácil interpretação em termos de consciência... a Psicologia terá que descartar
qualquer referência à consciência... ela já não precisa iludir-se crendo que seu
objeto de observação são os estados mentais. (p. 17)

Como assinala Merleau-Ponty (2000), “Watson tinha introduzido a noção de


comportamento numa perspectiva antimentalista, a fim de estudar o comportamento
como qualquer realidade exterior” (p. 228). Nesse sentido, ao contrário de uma abor-
dagem finalista na qual o comportamento poderia ser pensado como o produto de uma
intencionalidade, o behaviorismo o entende a partir de um conjunto de reflexos, de es-
tímulos e de respostas, conforme o que apregoa a fisiologia clássica. Entretanto, como
se pode notar em trabalhos como os de Uexküll (1965), até mesmo no comportamen-
to animal não encontramos um simples automatismo. Por sua vez, o comportamento
examinado também como um conjunto de reflexos não pode servir de explicação, haja
vista o reducionismo fisiológico tão patente na análise clássica.
Para Merleau-Ponty, Watson e os fisiologistas clássicos, em especial Pavlov,
acabam por rebaixar a dimensão psíquica do humano à dimensão fisiológica a partir
do momento em que entrevêem o comportamento como um mero mecanismo nervo-
so. O recurso a estímulos e respostas promove, no behaviorismo watsoniano, a perda
da neutralidade que sua noção de comportamento poderia trazer consigo. Acaba por
tornar-se uma explicação mecanicista que se esquece, como assinalaria La Structure
du Comportement, que um mesmo estímulo pode produzir mais de uma reposta pos-
sível, não podendo ser encaixado em um simples esquema no qual o comportamen-
to seria apenas a soma de fenômenos elementares. Para Merleau-Ponty, a resposta de
um organismo frente a um determinado estímulo depende, sobretudo, da situação na
qual se encontra e de sua capacidade de dar significação a essa mesma situação. Nesse
sentido, ao querer estudar o comportamento como uma realidade totalmente exterior,
Watson – e, por conseguinte, Pavlov – acabaram por reconhecê-lo como uma coisa to-
talmente fragmentada e mecânica. Gerava-se, portanto, uma redução do vital à maté-
ria da mesma forma que haveria em Bergson, por exemplo, uma redução do simbólico
ao vital. Mas como compreender essas relações?
A nosso ver, tanto em La Structure du Comportement quanto na Phénoménolo-
gie de la Perception, constantemente Merleau-Ponty se depara com a possibilidade de
compreender os comportamentos e os seres sem um recurso à noção clássica de uma
“hierarquia” na qual eles se encontrariam rigidamente classificados. A compreensão
do comportamento passaria justamente pela desconstrução dessa concepção, embora
o filósofo não tenha feito isso diretamente. Essa desconstrução se insinua em alguns
títulos e parágrafos da obra merleau-pontiana que pensamos ser, mormente, tributária

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de leituras como a do Der Aufbau des Organismus de Goldstein. Assim, por exemplo,
inclusive na nomeação dos capítulos de La Structure du Comportement, notamos a
explicitação desta suspeita.
Lembremo-nos de que a primeira obra filosófica de Merleau-Ponty encontra-
-se dividida em quatro capítulos: “o comportamento reflexo”, “os comportamentos
superiores”, “a ordem física, a ordem vital, a ordem humana” e “as relações entre a
alma e o corpo e o problema da consciência perceptiva”. O título dos dois primeiros
capítulos já nos apresenta algumas questões: Que relação poderia haver entre o com-
portamento reflexo e os comportamentos superiores? O que seria um comportamento
superior? Se há um comportamento considerado como superior, o que seria um com-
portamento inferior? Ora, não nos esqueçamo-nos de que o filósofo, para elucidar as
incoerências da teoria do reflexo, procurou fazê-lo acompanhando a ordem conceitual
apresentada pelos próprios defensores do “arco reflexo”. No entanto, isso não se dá
apenas em um capítulo, mas trata-se do fundo de toda essa obra de Merleau-Ponty.
Assim, na própria disposição dos capítulos, já observamos a crítica que o filósofo len-
tamente começara a esboçar.
De acordo com a fisiologia clássica, o comportamento deve ser analisado por
uma hierarquia que partiria do simples ao complexo. De um lado, encontraríamos os
comportamentos reflexos, totalmente mecânicos e ligados ao sistema nervoso periféri-
co. Esses comportamentos se caracterizariam por seu aspecto elementar que os fariam
se assemelhar a átomos. Por sua vez, os comportamentos inferiores estariam subordi-
nados aos ditos superiores, considerados assim por estarem ligados ao sistema nervoso
central e se determinar por seu caráter de complexidade. Como lembra Merleau-Pon-
ty, (1945) em Phénoménologie de la Perception, “durante muito tempo, acreditou-se
encontrar no condicionamento periférico uma maneira segura de localizar as funções
psíquicas ‘elementares’ (...)” que seriam distinguidas “(...) das funções ‘superiores’,
menos estritamente ligadas à infra-estrutura corporal” (p. 16).
De acordo com a fisiologia e psicologia modernas, essa separação e hierarqui-
zação dos comportamentos, seguida de uma hierarquização dos próprios seres vivos,
seria totalmente contraditória e distante da verdade. É o que podemos concluir ao con-
siderarmos o fato de que:

O elementar não é mais aquilo que, por adição, constituirá o todo, nem ali-
ás uma simples ocasião para o todo se constituir. O acontecimento elementar
já está revestido de um sentido, e a função superior só realizará um modo de
existência mais integrado ou uma adaptação mais aceitável, utilizando e subli-
mando as operações subordinadas. Reciprocamente, “a experiência sensível é
um processo vital, assim como a procriação, a respiração ou o crescimento”.
(Merleau-Ponty, 1945, p. 16)

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A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

Entre psicologia e fisiologia, mais do que um paralelismo, constituem-se modos


de determinação do comportamento. Nesse sentido, a fisiologia moderna, ao deparar-
-se com os problemas gerados por um “prejuízo” realista, tomado de empréstimo do
senso comum, é levada a uma reformulação do sentido de palavras como “elemen-
tar” e “superior” que, no dizer de Merleau-Ponty (1945, p. 17), “(...) anuncia uma
mudança de filosofia”. Assim, “o próprio cientista deve aprender a criticar a idéia de
um mundo exterior em si, já que os próprios fatos lhe sugerem abandonar a idéia do
corpo como transmissor de mensagens” (Merleau-Ponty, 1945, p. 17). Na fisiologia
moderna, percebemos uma mudança de conceitos fundamentais da fisiologia clássi-
ca, mas, o que essas mudanças querem dizer? A que nova visão filosófica elas apon-
tam? Por fim, haveria um modo de pensar o comportamento sem cair ora no materia-
lismo, ora no vitalismo?
Para que isto aconteça, segundo Merleau-Ponty, é preciso que repensemos as re-
lações possíveis de se estabelecerem entre o físico, o biológico e o humano. Mas como
fazê-lo sem que uma instância predomine sobre a outra? Aqui, seguindo as trilhas de
La Structure du Comportement, deparamo-nos novamente com a noção de “forma” ou
de “estrutura”. Sendo aplicável a todos os níveis, a noção de forma adquire, para Mer-
leau-Ponty, a possibilidade de estabelecer uma comunicação entre os diversos níveis
do real mencionados acima. Até mesmo, extrapolando a separação e distinção radical
de diferentes “formas” ou “estruturas”, tratar-se-á para o filósofo da identificação de
domínios tão adversos como a matéria, a vida e o espírito em uma unidade estrutural.
Partindo da Gestalttheorie, Merleau-Ponty entende a “forma” como detentora de pro-
priedades originais em relação às propriedades de suas partes. A partir da Gestalttheo-
rie, uma “forma” é vista como um todo, como uma figura que, todavia, não rompe suas
relações com o fundo no qual se encontra. A relação com o fundo se dá de modo total
e não simplesmente pela causalidade existente na função dos elementos que constitui-
riam, por soma, a figura. Deparamo-nos, desse modo, com um todo que excede suas
partes, mas que não é uma “coisa” nem “idéia”.
Fundamentando-se na noção de “forma” da Gestalttheorie, Merleau-Ponty
percebe que é possível pensar em uma certa “organização” dos comportamentos, mas
que, ao contrário de se estabelecerem pela divisão em “elementares” e “complexos”,
se dê “(...) conforme a estrutura neles esteja mergulhada no conteúdo ou ao contrário,
a estrutura deles emirja para se tornar, a limite, o tema próprio da atividade” (1942, p.
113). Desse modo, “poder-se-ia distinguir desse ponto de vista ‘formas sincréticas’,
‘formas amovíveis’ e ‘formas simbólicas’” (Merleau-Ponty, 1942, p. 113). Ao procu-
rar definir essas três categorias de “formas”, Merleau-Ponty (1942, p. 113) não pos-
tula nenhuma separação de grupos animais correspondentes a cada uma delas, pois,
“não há espécie animal cujo comportamento não ultrapasse jamais o nível sincrético
ou não desça jamais abaixo das formas simbólicas”. Pelo contrário, “(...) os animais
se deixam dividir nesta escala segundo o tipo de comportamento que lhes é mais fa-
miliar” (Merleau-Ponty, 1942, p. 113), sendo possível que uma experiência possa fa-

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zer parte das três categorias, contudo, possuindo em cada uma delas significações di-
ferentes. Nesse sentido, vejamos rapidamente o que Merleau-Ponty entende por cada
uma dessas “formas”.
Como indica o próprio nome, as “formas sincréticas” se referem aos compor-
tamentos nos quais o organismo se encontra “preso” a seus instintos e limites naturais
formando como que uma única realidade, sendo constituído por estruturas muito mais
“aderentes”. Para essas formas, há uma pequena margem de adaptação, visto que a
resposta sempre se dá radicalmente a um complexo de estímulos antes que a certos
elementos próprios da situação. Por sua vez, as formas amovíveis indicam estruturas
“[...] relativamente independentes dos materiais nos quais elas se encontram” (Merle-
au-Ponty, 1942, p. 115). Nessas formas, o organismo pode lidar com “sinais” que se
fundamentam em estruturas que não se encontram necessariamente presas à matéria
de que é composta. As possibilidades de aprendizagem dessas formas se dão associa-
das a uma relação que combine meio e fim, desde que se viva, de fato, a situação. Por
fim, as formas simbólicas se constituiriam pela existência de sinais que conseguem
expressar o estímulo sem recorrências a outros elementos, dado que o próprio com-
portamento se torna significativo.
As formas do comportamento, para Merleau-Ponty, apresentam-se no intuito
de superar os reducionismos do vital ao físico ou, até mesmo, do simbólico ao vital,
uma vez que, “com a noção de ‘forma’ encontramos, pois o meio de evitar as antíte-
ses clássicas, tanto na análise do ‘setor central’ do comportamento quanto na análise
de suas manifestações visíveis” (Merleau-Ponty, 1942, p.138). Assim, aprendemos
a não explicar “[...] o superior pelo inferior, mas também a não explicar o inferior
pelo superior” (Merleau-Ponty, 1942, p.138). Neste sentido, como ressalta Merleau-
-Ponty (1942),

distingue-se tradicionalmente as reações inferiores ou mecânicas, função, como


um acontecimento físico, de condições antecedentes e que se desenrolam, pois,
no espaço e no tempo objetivos, – e reações “superiores” que não dependem de
estímulos materialmente tomados, mas antes, do sentido da situação, que pa-
recem então supor uma “vista” desta situação, uma prospecção, e não perten-
cem mais à ordem do em si, mas à ordem do para si. Uma e outra destas duas
ordens é transparente para a inteligência; a primeira para o pensamento físico,
como a ordem do exterior onde os acontecimentos se ordenam um e outro de
fora, a segunda para a reflexão, como a ordem do interior onde o que se produz
depende sempre de uma intenção. O comportamento, enquanto é portador de
uma estrutura, não se situa em nenhuma dessas duas ordens. (p. 136)

A partir da identificação das formas que constituem os diferentes comportamen-


tos, Merleau-Ponty se direciona para a noção de “ordem”. Assim, cada forma corres-
ponderia a uma ordem da realidade, a saber, a ordem da matéria (formas sincréticas),

198 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

da vida (formas amovíveis) e do espírito (formas simbólicas). A realidade apresenta-


-se constituída por diversos planos de significação que encarnam estruturas, dialéticas
que se encontram no intervalo existente entre “coisas” e “idéias”. Por conseguinte, o
que determinará a superioridade ou inferioridade de um comportamento? A nosso ver,
Merleau-Ponty concorda com Goldstein que nos afirma que o critério de identifica-
ção do nível de um organismo se encontra em seu grau de integração, sabendo que “a
integração mais perfeita se verifica por uma série de particularidades que, no fundo,
representam a mesma coisa” (Goldstein, 1983, p. 398). O comportamento, pelo que
podemos notar a partir das constatações da Gestalttheorie, passa a ser entendido como
um todo que se manifesta nas relações de suas partes, mais do que uma simples soma
dessas partes. Cada parte anuncia o todo, e o todo é a harmonia dessas partes. Ora,
nada mais evidente que o fato de que o comportamento entendido como uma estrutura
expressa um organismo que se relaciona com o seu meio de modo estrutural. Todavia,
por seu lado, o “meio” também não pode ser entendido como um conjunto de partes
extra partes, dado que o comportamento não é simplesmente um mecanismo que vive
em função de seus estímulos. Assim sendo, deparamo-nos logo com outra questão: se
entendermos o organismo e o comportamento como uma estrutura, uma forma, o que
podemos entender por “meio”?
Sabemos que a noção de “meio” possui um valor fundamental na compreen-
são da relação que o organismo estabelece com seu ambiente. Inclusive, como acen-
tua Canguilhem (1980, p. 144), “a noção de meio está tornando-se um modo univer-
sal e obrigatório de apreensão da experiência dos seres vivos (...)”. Nesse sentido,
até mesmo “(...) se poderia quase falar de sua constituição como categoria do pensa-
mento contemporâneo” (Canguilhem, 1980, p. 144). No entanto, para a psicologia e
fisiologia clássicas, isto acontece em detrimento da importância que se deveria dar
à participação do organismo como também agente dessa relação. Contudo, na histó-
ria da noção de “meio”, não há uma unidade conceitual. Sendo assim, faz-se mister
pensar, em linhas gerais, como se dá a gênese desse conceito. Nesse sentido, preci-
samos ressaltar que tanto a noção quanto o termo meio são, a princípio, retirados da
mecânica pela biologia.
Apesar de já constar em Newton como idéia, é na Encyclopédie de D’Alembert
e de Diderot que o termo se apresenta de fato, mas sem perder sua significação me-
cânica. Vale lembrar que, na concepção cartesiana de mundo, o meio não poderia
ser jamais uma questão importante. Sendo o choque o único modo de ação física,
somente com a noção newtoniana de fluido luminoso (éter) se poderia pensar em
um ambiente, em um meio no qual a ação se dá. É a partir dessa idéia que pensa-
dores como Lamarck falarão de “circunstâncias influentes” como sendo os meios,
fluidos, nos quais o ser vivo se encontra em constantes conexões físico-matemáti-
cas. Nesse sentido, é interessante notar as conclusões que Canguilhem (1980) reti-
ra dessas observações:

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 199


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As origens newtonianas da noção de meio são suficientes, portanto, para dar


conta da significação mecânica inicial dessa noção e do uso que a princípio se
fez dela. É tão verdadeiro que Auguste Comte propondo em 1838, na XL lição
de seu Curso de Filosofia positiva, uma teoria biológica geral do meio, teve o
sentimento de empregar “meio” como um neologismo e reivindica a responsa-
bilidade de erigi-lo em noção universal e abstrata de explicação em biologia.
E Auguste Comte diz que entenderá por isso doravante não mais somente “o
fluido no qual um corpo se encontra mergulhado” (o que confirma bem as ori-
gens mecânicas da noção), mas “o conjunto total das circunstâncias exteriores
necessárias à existência de cada organismo”. (p. 134)

Todavia, sabemos que Comte não superará a significação mecânica, apesar de


suas intenções, que o termo “meio” possuía. Mesmo atribuindo ao organismo e ao
“meio” no qual ele se encontra um poder igual de ação, Comte falará disto apenas
como uma característica da espécie humana quando decide agir coletivamente para
modificar seu “meio” social. Por sua vez, ele não considerará esta relação importante
para as demais situações e espécies. No fundo, nesses outros casos, tratar-se-ia de uma
abordagem matemática na qual, por exemplo, um determinado órgão estaria associa-
do a uma “função” e, por conseguinte, a um conjunto de variáveis. Em outros termos,
para Comte, “é evidente [...] que, do ponto de vista mecânico, a ação do ser vivo sobre
o meio é praticamente desprezível” (Canguilhem, 1980, p. 134). Essa mesma concep-
ção, a princípio, será partilhada pelos behavioristas.
Nesse sentido, ao procurarmos ressonâncias positivistas no behaviorismo, de
imediato, já nos trabalhos de Watson e de Jacques Loeb, entrevemos um organismo
que se encontra duramente forçado pelo “meio” no qual se encontra. Na trilha desses
psicólogos do behavior, como já ponderamos, “o reflexo, considerado como resposta
elementar de um seguimento do corpo a um estímulo físico elementar, é o mecanismo
simples cuja composição permite explicar todas as condutas do vivo” (Canguilhem,
1980, p. 140). Como fundamento das elaborações teóricas desses autores, por sua vez,
não podemos deixar de notar um certo cartesianismo e certo darwinismo “exorbitan-
tes”. Contudo, a partir de Dewey, no que concerne especialmente ao comportamento
humano, o behaviorismo passa a dar uma atenção maior aos movimentos suscitados
pelo organismo. Nessa linha também, seguem-se os trabalhos de Kantor, as críticas
de Jennings ao atomismo de Loeb e o behaviorismo teleológico de Tolmann. Todavia,
na gênese dessas transformações, lembra Canguilhem (1980, p. 143), “[...] é preciso
reconhecer aqui a contribuição considerável da Gestalttheorie, notadamente a distin-
ção, devida a Koffka, entre o meio comportamental e o meio geográfico”. Quanto a
esta distinção, é célebre o exemplo, dado por Koffka (1975), do cavaleiro cavalgando
sobre o Lago de Constança:

200 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

Numa noite de inverno, em meio a uma violenta nevasca, um homem a cavalo


chegou a uma estalagem, feliz por ter encontrado abrigo após muitas horas ca-
valgando na planície varrida pelo vento, na qual o lençol de neve tinha coberto
todos os caminhos e marcos que pudessem orientá-lo. O dono da estalagem ca-
minhou até a porta, encarou o forasteiro com surpresa e perguntou-lhe de onde
vinha. O homem apontou na direção oposta à estalagem, ao que o dono, num tom
de pasmo e temor, disse: - Sabe que esteve cavalgando todo o tempo em cima
do Lago de Constança? – Dito isto, o cavaleiro tombou morto a seus pés. (p. 39)

Para o psicólogo alemão, vivemos ao mesmo tempo em dois meios. Sendo


assim, o forasteiro de Koffka, ao atravessar o lago, encontrava-se em um meio com-
portamental, antes que geográfico. Nesse exemplo, as abordagens do geógrafo e do
psicólogo da Gestalt se divergem. O primeiro se interessará pela localidade particu-
lar. Para o segundo, “existe um segundo sentido na palavra ‘meio’, de acordo com o
qual o nosso cavaleiro não atravessou o lago, mas uma vulgar planície varrida pela
neve” (Koffka, 1975, p. 39). Nesse sentido, “seu comportamento foi o de cavalgar-
-na-planície, não o de cavalgar-no-lago” (Koffka, 1975, p. 40). Para a Gestalt, como
já se sabe, o comportamento deve ser visto como um todo que se destaca de uma
relação dialética entre organismo e meio. Na verdade, o organismo adquire o seu
sentido como uma figura que não existe sem o fundo de onde ela emerge. Contudo,
essa idéia deve sua gênese aos trabalhos de psicologia animal de von Uexküll4 e de
patologia humana de Goldstein. Em ambos, torna-se notória a idéia de que – sen-
do as condições de laboratório, que poderiam legitimar os postulados da fisiologia
clássica, meras construções –, é inegável o fato de que o organismo é, sobretudo,
capaz de criar seu meio.
A partir de Goldstein e de Uexküll podemos “compreender que entre o orga-
nismo e o ambiente há a mesma relação que entre as partes e o todo no interior do pró-
prio organismo” (Canguilhem, 1980, p. 143). Nesse sentido, há uma relação biológica
e funcional entre o organismo e seu meio, o organismo e seus próprios componentes.
Porém, essa relação torna-se clara a partir da distinção, feita por Uexküll, entre Umwelt,
Umgebung e Welt. Conforme salienta Canguilhem (1980, p. 144), “Umwelt, designa
o meio comportamental próprio a tal organismo; Umgebung é o ambiente geográfico
comum e Welt é o universo da ciência”.

A atenção dada por Merleau-Ponty a Uexküll, pelo que podemos notar, apenas acentua mais o seu projeto
4

filosófico já esboçado em La Structure du Comportement. Nessa obra, Merleau-Ponty não se dedicara tanto
a Uexküll, o que iria fazer nos seus cursos sobre o conceito de Natureza no Collège de France. Contudo, já
podemos ver em La Structure du Comportement alguns indícios significativos da noção de Umwelt. O fato
de Merleau-Ponty não citar diretamente Uexküll não significa que não conhecia seus trabalhos. Isto seria
inclusive, a nosso ver, impossível dada a grande quantidade de citações feitas por Merleau-Ponty, em seus
primeiros trabalhos, do Der Aufbau des Organismus de Kurt Goldstein, obra na qual encontramos vários
parágrafos dedicados aos trabalhos de von Uexküll. Quanto a isso, consideramos até mesmo indiscutível
a importância que Merleau-Ponty dá a essa obra de Goldstein e o conhecimento que ele tem dela.

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 201


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

Para Uexküll, a Umwelt encontra-se como um conjunto de excitações que, ao


contrário de serem indiferentes para o organismo, devem ser entendidas, em seu va-
lor e significação, como verdadeiros sinais. Assim, não basta a ocorrência de um fato
físico, mas é preciso também que ele seja notado pelo organismo que, por sua vez, é
quem ordenará as circunstâncias que o envolvem, pois, como lembra Merleau-Ponty
(2000, p. 284), “cada parte da situação só age como parte de uma situação de conjun-
to; nenhum elemento de ação tem, de fato, utilidade separada”. Desse modo, “entre a
situação e o movimento do animal há uma relação de sentido que a expressão Umwelt
traduz. O (sic) Umwelt é o mundo implicado pelos movimentos do animal e que regula
seus movimentos por sua estrutura própria5”. Conforme conclui Canguilhem (1980),
ao analisar também os trabalhos de Uexküll,

A Umwelt é, portanto, uma retirada eletiva na Umgebung, em um ambiente ge-


ográfico. Mas o ambiente não é precisamente nada mais que a Umwelt do ho-
mem, quer dizer, o mundo usual de sua experiência perspectiva e pragmática.
Do mesmo modo que esta Umgebung, este ambiente geográfico exterior ao ani-
mal é, em certo sentido, centrado, ordenado, orientado por um sujeito humano
– quer dizer, um criador de técnicas e um criador de valores – do mesmo modo,
a Umwelt do animal não é nada mais que um meio centrado por relação a este
sujeito de valores vitais em que consiste essencialmente o ser vivo. Nós deve-
mos conceber, na raiz desta organização da Umwelt animal, uma subjetividade
análoga à que estamos seguros de considerar na raiz da Umwelt humana. (p. 144)

Em Uexküll, como já se pôde notar, articula-se a concepção de uma autonomia


do ser vivo. Contudo, não nos esqueçamos de que, anterior às suas pesquisas, encon-
tram-se os trabalhos de Driesch e, como fundo, a disputa entre “vitalistas” e “meca-
nicistas”. Assim, diferentemente de Driesch, a constatação uexkülliana da autonomia
do ser vivo, ao invés de conduzir ao “vitalismo” revela a existência de uma autonomia
que, por sua vez, é relativa. Em contrapartida, Uexküll também se levanta contra a vi-
são do organismo como o produto de diversos processos e transformações dos quais
a seleção natural manteria os melhores a fim de uma evolução da vida. É a organiza-
ção de um todo no organismo adulto que o impressiona. A comprovação de que esse
plano de organização já se encontra no óvulo, até mesmo, o encanta e o surpreende.
Assim, combatendo o próprio modelo mecanicista no qual fora educado, Uexküll vai
se interessando pelas relações existentes entre organismo e meio segundo um prisma
mais dialético6. Em uma perspectiva uexkülliana, portanto, constatamos o modo como
5 As palavras alemãs Welt, Umwelt e Umgebung são femininas. Contudo, na tradução portuguesa de A Na-
tureza, ela é apresentada como masculina. Assim, mantemos nas citações desta tradução o gênero mas-
culino, mas em nossas traduções preferimos manter o gênero feminino que, inclusive, é o procedimento
nas referências francesas a estes termos.
6
A partir do que denominou de “ciclo-de-função”, Uexküll verificou que havia uma correlação estrutu-
ral, já no óvulo, entre o organismo e certos elementos do ambiente. Desse modo, diante de certos si-
nais existentes no ambiente, o animal destacaria certas estruturas por meio de seus órgãos sensoriais

202 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

devemos enxergar, na vida animal, a existência de coisas dotadas de significados e en-


carregadas, pelo organismo, da execução de determinadas funções. Há, malgrado as
ciências naturais do século XIX, certas situações do organismo que não podem ser re-
duzidas a uma mera explicação quantitativa, haja vista que o universo das qualidades,
malgrado também a física clássica, torna-se componente primordial para a pesquisa
biológica. Assim, o que era “secundário” para uma ciência pautada em fundamentos
galileanos – cores, odores, sons etc. – torna-se o elemento sem o qual não se poderia
estudar os fenômenos biológicos7.
Ora, de acordo com a teoria uexkülliana da Umwelt, haveria para cada espé-
cie de ser vivo, independente das características comuns de sua classe biológica, uma
forma específica de mundo que seria hereditária e invariável. Assim, por exemplo, um
determinado objeto que se apresenta, em um ambiente comum, a um homem, a um
cão ou a um gato, adquirem para cada um deles uma tonalidade bem específica. No
universo humano, de modo especial, o mesmo poderia acontecer entre pessoas dife-
rentes ou momentos diferentes do próprio desenvolvimento humano, como seriam as
diferenças entre o mundo experimentado pela criança e o mundo experimentado pelo
adulto. Embora tenhamos um modo comum a nossa espécie de experimentar o mundo,
esse mesmo mundo pode se oferecer a diferentes modos de vê-lo e essas diferenças
podem ser apreendidas. O animal, por sua vez, encontrar-se-ia extremamente obriga-
do a seu mundo próprio.
Nesse sentido, a Umwelt de Uexküll tem por tarefa unir, em um mesmo plano,
tanto a atividade responsável pela criação dos órgãos quanto à atividade própria do
comportamento. Contudo, não há uma enteléquia responsável por esse processo como
vemos em Driesch, haja vista que “o desdobramento de um (sic) Umwelt é uma me-
lodia, uma melodia que se canta a si mesma” (Uexküll apud Merleau-ponty, 2000, p.
282-3). Contudo, o que podemos aprender dessa metáfora? Pensar a relação que se es-
que seriam estabelecidos justamente para esse fim. Por conseguinte, o organismo elaboraria respostas
especiais para essas estruturas que, em seu conjunto, constituiria o próprio ambiente do animal. A par-
tir dessas considerações, é que Uexküll analisa, como exemplo, o ciclo de vida do carrapato que pode
viver, após a reprodução, um bom tempo à espera de seu alimento. Durante todo esse tempo, o animal
se torna indiferente aos diversos estímulos que um ambiente como a floresta pode oferecer. Na análise
do ciclo de vida do carrapato, feita por Uexküll, como lembra Merleau-Ponty (2000, p. 284), “não há
nenhuma estimulação vinda de fora que não tenha sido provocada pelo movimento próprio do animal,
a conduta do animal suscita respostas por parte do meio. Há uma ação em resposta àquilo que o ani-
mal fez, ação essa que reativa o comportamento animal. Em suma, o exterior e o interior, a situação e
o movimento, não estão numa relação simples de causalidade, e não podem ser traduzidos em termos
de “causalidade ímpeto” do antes ao depois”.
7
Nisso encontramos também, por conseguinte, a denúncia dos limites do fundo mecânico que engloba a
teoria do reflexo. Conforme Uexküll, é preciso examinar o reflexo como um movimento dotado de sen-
tido e que se dá sempre em conjunto. Para a sensibilidade do ser vivo, é incompreensível e dispensável
a fragmentação que a ciência faz nos excitantes ou receptores. O organismo não é simplesmente um ser
passivo frente ao meio, mas, pelo contrário, encontra-se em constante debate (Auseinandersetzung) com
ele. Ao se falar em debate, contudo, não se trata de uma oposição, mas de uma relação dialética e sig-
nificativa, pois, “entre a situação e o movimento do animal há uma relação de sentido que a expressão
Umwelt traduz” (Merleau-Ponty, 2000, p. 284).

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 203


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

tabelece entre um organismo e seu meio como uma “melodia” significa pensá-la como
um todo, uma estrutura na qual não é possível que se dê uma prioridade absoluta, seja
ao “estímulo”, seja à própria “resposta”. Para Uexküll (apud Merleau-Ponty, 2000, p.
288), “o tema da melodia animal não está fora de sua realização manifesta, é um tema-
tismo variável que o animal não procura realizar pela cópia de um modelo (...)”. Pelo
contrário, é um tematismo “(...) que persegue as suas realizações particulares, sem que
esses temas sejam a meta desse organismo” (Merleau-Ponty, 2000, p. 288), uma vez
que “o sujeito animal é sua realização, transespacial e transtemporal” (Merleau-Ponty,
2000, p. 288). Desse modo, semelhante ao ser vivo, a “melodia” não é um fluxo, uma
mera seqüência, mas uma harmonia na qual desde a primeira nota até a última já se faz
presente, sendo verdadeiro que entre o passado e o futuro, presentes nas notas de uma
melodia, há sempre uma ação recíproca. Disso podemos concluir que, como sintetiza
Merleau-Ponty (2000, p. 288):

A intenção de Uexküll é a de nos apresentar a noção de Umwelt como um


meio no qual também se pode compreender bem essa coisa que é o átomo in-
dividual de Niels Bohr, que é um campo de estrutura muito simples, e o que
é a consciência, campo à segunda potência. Uma consciência é aquilo que se
pode chamar de “campo transcendental”, um campo que valoriza o conjun-
to dos campos vitais. O (sic) Umwelt humano é um campo aberto, e Uexküll
não é tentado a restringir seu (sic) Umgebung sobre o sujeito humano. Esse
universo humano não é o produto de uma liberdade no sentido kantiano, li-
berdade factual que se atesta na decisão, é antes uma liberdade estrutural.
Em suma, é o tema da melodia, muito mais do que a idéia de uma natureza-
-sujeito ou de uma coisa supra-sensível, o que melhor exprime a intuição do
animal segundo Uexküll.

Por fim, a partir da noção de Umwelt, notamos as incongruências da noção clás-


sica de reflexo. Assim, ao se tomar por referencial a psicologia e a fisiologia moder-
nas, torna-se notório o modo como os clássicos, ao tomarem como recurso um simples
apelo à exterioridade por ela mesma, não foram muito felizes em suas conceituações.
Até mesmo, como diria Merleau-Ponty (1964, p. 36), ao refletir sobre o “psiquismo”
e seus análogos, por exemplo, os psicólogos clássicos parecem tratá-lo como “uma
camada geológica profunda, ‘coisa’ invisível, que se acha em alguma parte, por detrás
de certos corpos vivos, e a respeito da qual se supõe que basta encontrar o ponto justo
de observação”. Mas o problema é que “o psicólogo, por sua vez, instala-se na posi-
ção do espectador absoluto” (Merleau-Ponty, 1964, p. 37). Pensando assim, tanto na
biologia quanto na psicologia clássica, encontramos um pensamento exterior preso a
uma pura exterioridade, na qual o homem se tornara um mero “observador estrangei-
ro”, distanciado do sentido de suas próprias experiências. Ao contrário de nos levar a
um caminho de via única na qual o sujeito, para os intelectualistas, e o objeto, para os

204 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

empiristas, fossem os únicos pontos de partida, é preciso encontrar um caminho de via


dupla na qual se apresente um todo estruturado, um todo onde suas partes se dialogam
e não constituem meras somas. Assim,

Está estabelecido contra o behaviorismo, que não se pode identificar o “entor-


no geográfico” e o “meio do comportamento”. As relações eficazes em cada
nível, na hierarquia das espécies, definem um a priori desta espécie, uma ma-
neira que lhe é própria de elaborar os estímulos, e assim o organismo tem uma
realidade distinta, não substancial, mas estrutural. A ciência não trata, pois os
organismos como os modos finitos de um mundo (welt) único, as partes abstra-
tas de um todo que as conteria eminentemente. Ela se defronta com uma série
de “ambientes” e de “meios” (Umwelt, Merkwelt, Gegenwelt), onde os estímu-
los intervêm segundo aquilo que eles significam e aquilo que eles valem para a
atividade típica da espécie considerada. Da mesma maneira, as reações de um
organismo não são conjuntos de movimentos elementares, mas gestos de uma
unidade interior. (Merleau-Ponty, 1942, p. 139)

Como podemos ver, a partir da fisiologia e psicologia modernas, é preciso en-


tender o organismo como uma “forma”, um “todo” estruturado, dado que “(...) situa-
ção e reação se ligam interiormente por sua participação comum a uma estrutura onde
se exprime o modo de atividade próprio do organismo” (Merleau-Ponty, 142, p. 140).
A partir desses pressupostos, é possível nos aproximar de uma tematização do patoló-
gico. É preciso compreendê-lo no horizonte de um organismo que é estruturado e vive
mergulhado em uma experiência significativo do mundo. Veremos justamente que os
fenômenos patológicos ajudam a desnudar essa vivência pré-reflexiva, organísmica
que constituem o fundamento do nosso próprio ser no mundo, ou seja, de nossa exis-
tência em sua dinâmica com seu “meio”.
Em outros termos, a fisiologia clássica compreendia o corpo apenas como
um mero objeto entre tantos outros e, como tal, ordenando por relações exteriores e
mecânicas. Sendo entendido na linguagem do em si, o funcionamento do corpo era
visto a partir de uma dependência linear entre “o estímulo e o receptor”. A fisiolo-
gia moderna, contudo, caminha em outra direção, não procura uma correspondên-
cia linear entre os fenômenos. Prefere falar em uma “diferenciação da função” ao
invés de perda de “certas qualidades sensíveis” ou de “dados sensoriais”, quando se
trata de lesões centrais ou dos condutos, pois a idéia de que os sentidos conteriam
as qualidades em si de forma compacta, – daí a noção das localizações precisas das
sensações – não tem mais sentido, não se efetiva na experiência. Como dirá o filó-
sofo, “[...] o progresso da lesão na substância nervosa não destrói um a um conteú-
dos sensíveis inteiramente acabados, mas torna cada vez mais incerta a diferencia-
ção ativa das excitações, que aparece como a função essencial do sistema nervoso”
(Merleau-Ponty, 1945, p. 88).

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 205


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

Para Merleau-Ponty, embasado na fisiologia moderna, a relação entre o orga-


nismo e o meio não se dá a partir de uma simples correspondência na qual a sensação
nasceria de uma harmonização entre o estímulo e o receptor, mas a partir da capaci-
dade do organismo em “[...] ‘conceber’ uma certa forma de excitação” (cf. Merleau-
-Ponty, 1945, p. 89). Não há uma causalidade no “acontecimento psicofísico”, dado
que a função do cérebro é, sobretudo, de promover uma “enformação”, uma colocação
“em forma” do estímulo, pois:

A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais que a fazem


assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar. Essa forma que se desenha no
sistema nervoso, esse desdobramento de uma estrutura, não posso representá-los
como uma série de processos em terceira pessoa, transmissão de movimento ou
determinação de uma variável por outra. Não posso ter dela um conhecimento
distante. Se adivinho aquilo que ela pode ser, é abandonando ali o corpo obje-
to, partes extra partes, e repontando-me ao corpo do qual tenho a experiência
atual, por exemplo à maneira pela qual minha mão enreda o objeto que ela toda
antecipando-se ao estímulos e desenhando ela mesma a forma que vou perce-
ber. Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na
medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo. (Merleau-
-Ponty, 1945, p. 89-90)

***

Há, conforme a fenomenologia de Merleau-Ponty, uma experiência do corpo


que nos leva inclusive a não mais aceitar um dualismo entre alma – associada direta-
mente ao cérebro – e corpo como um mero epifenômeno. Porém, salienta o filósofo,
ainda se poderia acreditar que essa formulação da fisiologia moderna não traria nada
de novo, não passando de uma representação ou de mais um mero “fato psíquico”. Para
Merleau-Ponty, podemos compreender melhor essa questão investigando patologias
como a do “membro fantasma”8. O importante é saber o que esse fenômeno pode nos
dizer acerca do corpo próprio, acerca do próprio homem. Ora, de acordo com Merle-
au-Ponty, uma leitura meramente fisiológica não possibilita uma compreensão do fe-
nômeno do membro fantasma. De acordo com essa interpretação, a explicação esta-
ria apenas na persistência de “estimulações interoceptivas”. Contudo, como explicar
o fato de que, mesmo anestesiado, o paciente continue a sentir o membro que lhe fora
amputado? Como explicar também aqueles casos em que essa experiência ocorre sem
que tenha havido uma amputação?
Como salienta o filósofo, uma explicação periférica do membro fantasma
apresenta vários problemas. Todavia, não se pode dizer que uma explicação central,
que postulasse a origem da sensação na conservação de “traços cerebrais”, tam-
8 Trata-se da ilusão pela qual o paciente continua a sentir um membro que lhe fora amputado.

206 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

bém seja suficiente. Ora, frente à impossibilidade de uma leitura fisiologista, pensa
Merleau-Ponty, não basta recorrer a uma leitura psicologista, aquela que, pautando-
-se na anosognose, veria naquela experiência uma simples negação do paciente em
se aceitar com um membro mutilado. O erro dessa leitura, todavia, encontra-se em
desconsiderar o substrato fisiológico do paciente, o fato de que uma secção em seus
nervos pode afetar sua percepção ilusória do membro. Nesse sentido, o problema
não estaria apenas na presença indevida de uma representação. Da mesma forma,
uma simples soma das perspectivas fisiológicas e psicológicas também não seria su-
ficiente, uma vez que:

É preciso compreender então como os determinantes psíquicos e as condições


fisiológicas engrenam-se uns aos outros: não se concebe como o membro fan-
tasma, se depende de condições fisiológicas e se a esse título é o efeito de uma
causalidade em terceira pessoa, pode por outro lado depender da história pes-
soal do doente, de suas recordações, de suas emoções ou de suas vontades.
Pois, para que as duas séries de condições possam em conjunto determinar o
fenômeno, assim como dois componentes determinam um resultante, ser-lhes-
-ia necessário um mesmo ponto de aplicação ou um terreno comum, e não se
vê qual poderia ser o terreno comum a “fatos fisiológicos” que estão no espa-
ço e a “fatos psíquicos” que não estão em parte alguma, ou mesmo a processos
objetivos como os influxos nervosos, que pertencem à ordem do em si, e a co-
gitiones tais como a aceitação e a recusa, a consciência do passado e a emoção,
que são da ordem do para si. (Merleau-Ponty, 1945, p. 91)

Uma teoria mista do membro fantasma se apresenta “obscura” a Merleau-Pon-


ty, principalmente tendo-se em vista a perspectiva dicotomizada na qual as explica-
ções fisiológicas e psicológicas se encontram. Elas partem de uma cisão entre o em
si (fisiologia) e o para si (psicologia). Assim sendo, compartilham de um mesmo erro
que as fazem perder o próprio fenômeno. Em outros termos, ainda não conseguem se
desvencilhar das categorias do mundo objetivo, não se atentando que a experiência se
dá em uma outra ordem, em uma camada ainda pré-reflexiva, ou seja, na perspectiva
do ser no mundo. Compreender essa vivência patológica a partir desse ângulo signifi-
ca compreender que “a recusa da mutilação no caso do membro fantasma ou a recusa
da deficiência na anosognose não são decisões deliberadas, não se passam no plano
da consciência tética que toma posição explicitamente após ter considerado diferentes
possíveis” (Merleau-Ponty, 1945, p. 96). Nesse caso, a patologia revela a existência de
uma outra dimensão do humano, aquela que, não são sendo da ordem do “eu penso”,
nasce a partir de um “eu posso”, de uma subjetividade corporal. Mas o que significa
dizer que a recusa não parte de um “sujeito esclarecido”, de uma “consciência racio-
nal”? Como nos elucida Merleau-Ponty (1945):

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 207


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado em um


certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo
a despeito de deficiências ou de amputações, e que, nessa medida, não as re-
conhece de jure. A recusa da deficiência é apenas o avesso de nossa inerência
a um mundo, a negação implícita daquilo que se opõe ao movimento natural
que nos lança a nossas tarefas, a nossas preocupações, a nossa situação, a nos-
sos horizontes familiares. Ter um braço fantasma é permanecer aberto a todos
as ações das quais apenas o braço é capaz, é conservar o campo prático que se
tinha antes da mutilação. [...] Portanto, o doente sabe de sua perda justamente
enquanto a ignora, e ele a ignora justamente enquanto a conhece. Esse para-
doxo é o de todo ser no mundo: dirigindo-me para um mundo, esmago minhas
intenções que finalmente, me aparecem como anteriores e exteriores a elas, e
que, todavia, só existem para mim enquanto suscitam pensamentos e vonta-
des em mim. (p. 97)

Segundo Merleau-Ponty, podemos vislumbrar na experiência do corpo próprio


camadas que distinguem, por um lado, um “corpo habitual” e, por outro lado, um “cor-
po atual”. Aqui não se trata de uma dicotomia proposta pelo filósofo. Pelo contrário,
trata-se da constatação de um problema que nasce na própria experiência do corpo
próprio expressa na experiência do membro fantasma. A vivência do corpo habitual
é o que garante a percepção do mundo como tangível, dos objetos como manejáveis.
Cada membro traz consigo um verdadeiro campo que possibilita a experiência do mun-
do como o horizonte e o fundo possibilitam a percepção de uma figura. No entanto, a
ausência de um membro representa a ausência de um campo, sem que os objetos que
lhe pertencem deixem de existir. Como indaga Merleau-Ponty (1945), “como posso
perceber objetos manejáveis, embora não possa manejá-los? É preciso que o mane-
jável tenha deixado de ser aquilo que manejo atualmente para tornar-se aquilo que se
pode manejar, tenha deixado de ser um manejável para mim e tenha-se tornado como
que um manejável em si” (p. 98). Essa experiência conduz a uma vivência do corpo
não mais como uma experiência espontânea, mas generalizada, quase que impessoal.
Como sair desse impasse? Para Merleau-Ponty, é possível esclarecer esse descompas-
so entre o habitual e o atual a partir do fenômeno do recalque, assim como é entendido
pela psicanálise. O que isso quer dizer?
O recalque trata-se, sobretudo, de um presente que não quer se tornar passado,
de uma paralisação do tempo pessoal. Frente aos obstáculos gerados por um empre-
endimento, opta-se em não abandoná-lo, mas continuamente colocar-se a renová-lo
em espírito, sempre na abertura a um futuro impossível. Nesse sentido, o recalque não
pode ser encarado como uma simples recordação, dado que permanece sempre um
presente próximo, não se encontrando, portanto, distante de nós. Assim sendo, “[...]
todo recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica
dessa existência, que vive para uma experiência antiga, ou antes, para a recordação

208 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

de tê-la tido, depois para a recordação de ter tido essa recordação e assim por diante,
a ponto de que finalmente ela só retenha sua forma típica” (Merleau-Ponty, 1945, p.
99). Há, para Merleau-Ponty, um “advento do impessoal” na vivência do recalque que
“[...] nos faz compreender nossa condição de seres encarnados ligando-a a estrutura
temporal do ser no mundo” (Merleau-Ponty, 1945, p. 99). Sempre, em nossa exis-
tência pessoal, deparamo-nos com uma “existência quase impessoal” na qual perten-
cemos primeiramente, assim, como um organismo pertence antes a uma Umgebung,
para depois pertencer a uma Umwelt. A experiência do recalque acaba, portanto, de
nos clarear e confirmar a existência do nosso organismo como um solo originário e
anterior a um sujeito epistemológico, um solo no qual a estrutura temporal de nossa
experiência possibilita “a fusão entre a alma e o corpo no ato, a sublimação da exis-
tência biológica em existência pessoal, do mundo natural em mundo cultural [...]”
(Merleau-Ponty, 1945, p.100).
Nessa perspectiva, salienta Merleau-Ponty (1945):

Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando, através do tempo,


mantenho um dos mundos momentâneos pelos quais passei e faço dele a for-
ma de toda minha vida – da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo,
como adesão pré-pessoal à forma geral do mundo, como existência anônima
e geral, desempenha, abaixo de minha vida pessoal, o papel de um complexo
inato. Ele não existe como uma coisa inerte, mas esboça, ele também, o movi-
mento da existência. [...] Com maior razão, o passado específico que é nosso
corpo só pode ser reaprendido e assumido por uma vida individual porque ela
nunca o transcendeu, porque ela o alimenta secretamente e emprega nisso uma
parte de suas forças, porque ele permanece seu presente, como se vê na doen-
ça em que os acontecimentos do corpo se tornam acontecimentos da jornada
diária. O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede
de centrá-la absolutamente, e o anonimato de nosso corpo é inseparavelmente
liberdade e servidão. (pp. 99-101)

Voltando ao fenômeno do membro fantasma, a partir das considerações acima,


devemos entendê-lo como “[...] a experiência recalcada, um antigo presente que não
decide a tornar-se passado. As recordações que se evocam diante do amputado induzem
um membro fantasma, não como no associacionismo uma imagem chama uma outra
imagem, mas porque toda recordação reabre o tempo perdido e nos convida a retomar
a situação que ele evoca” (Merleau-Ponty, 1945, p. 101). Por fim, deparamo-nos com
um olhar diferenciado frente ao patológico, aquele que deve partir do que Merleau-
-Ponty denomina como a “perspectiva do ser no mundo”. A experiência do membro
fantasma se dá, portanto, no entender do filósofo, porque as excitações sensíveis que
ela traz consigo mantêm ainda o membro amputado no circuito da existência. Assim,
a posse de um “corpo habitual” é, por conseguinte, uma necessidade própria de uma

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 209


Marques, R. V. v. XII: pp. 191-211, 2006

existência integrada. Um olhar filosófico sobre o patológico revela-nos, por fim, uma
compreensão do homem não mais como um psiquismo que simplesmente se soma a
um organismo, mas, pensando concretamente, como um “vai-vem da existência” que
vive entre o corporal e os atos pessoais. A patologia expressa justamente a necessida-
de de reconhecer os acontecimentos anímicos não mais ora pela fisiologia, ora pela
psicologia, mas como um processo vital que está, sobretudo, ligado à existência, dado
que “o distúrbio dito somático delineia comentários psíquicos sobre o tema do aciden-
te orgânico, e o distúrbio ‘psíquico’ limita-se a desenvolver a significação humana do
acontecimento corporal” (Merleau-Ponty, 1945, p. 104).
Assim, como assinala o Merleau-Ponty (1945),

Os motivos psicológicos e as ocasiões corporais podem-se entrelaçar porque


não há um só movimento em um corpo vivo que seja acaso absoluto em rela-
ção às intenções psíquicas, nem um só ato psíquico que não tenha encontrado
pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. Não se
trata nunca do encontro incompreensível entre duas causalidades, nem de uma
colisão entre a ordem das causas e a ordem dos fins. Mas, por uma reviravolta
insensível, um processo orgânico desemboca em um comportamento humano,
um ato instintivo muda e torna-se sentimento, ou inversamente um ato humano
adormece e continua distraidamente como reflexo. Entre o psíquico e o fisio-
lógico pode haver relações de troca que quase sempre impedem de definir um
distúrbio mental como psíquico ou como somático. (p. 104)

Voltar-se para uma discussão acerca do patológico significa, sobretudo, procu-


rar compreender as estruturas do nosso próprio ser, do que podemos denominar como
corpo próprio. Esse retorno, todavia, não pode se dar como a volta a uma instância ne-
gativa, mera subtração do considerado comportamento saudável. Pelo contrário, pude-
mos notar, a vivência do patológico possui uma estrutura própria que, por descortinar
as estruturas do corpo próprio, ajuda-nos a compreendê-lo sem o recurso a simples
prejulgamentos. É sobre o próprio organismo e suas dialéticas, sobre o próprio com-
portamento como um debate perpétuo que discorremos quando nos voltamos para uma
tematização dos fenômenos patológicos. Por fim, seguindo as trilhas de Merleau-Ponty,
descobrimos que, longe de legitimar a fisiologia e psicologia clássica, essa abordagem
aponta uma dimensão pré-reflexiva na qual o nosso ser no mundo antecede, sobretudo,
uma consciência tética e uma vivência meramente racional e, logo, artificial, distante
de uma autêntica experiência do mundo.

210 ITGT
A experiência do “patológico” entre os olhares da Gestalttheorie e da fenomenologia

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Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 211

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