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Phenomenological Studies
ISSN: 1809-6867
revista@itgt.com.br
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia
Brasil
Resumo: A nosso ver, Merleau-Ponty realiza, em seus primeiros trabalhos, uma fenomenologia
do patológico que se torna pertinente, principalmente, quando procuramos compreendê-lo
como a expressão de um “eu” – o eu-posso – que, longe de ser apenas um interior conforme
os moldes cartesianos, apresenta-se como um “ser engajado”, uma verdadeira subjetividade
carnal, na qual não há linhas divisórias entre o corporal e o espiritual. Nesse sentido, tomando
por referência uma epistemologia dos trabalhos da psicologia moderna, a nossa proposta é
promover também uma discussão que favoreça, a princípio, um entendimento filosófico do
patológico e, conseqüentemente, da “ordem humana” aquém do velho debate articulado entre
“mecanicismo” e “vitalismo”.
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3 Merleau-Ponty assinala também o enfoque novo dado à animalidade em Lautréamont de Gaston Bache-
lard.
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de leituras como a do Der Aufbau des Organismus de Goldstein. Assim, por exemplo,
inclusive na nomeação dos capítulos de La Structure du Comportement, notamos a
explicitação desta suspeita.
Lembremo-nos de que a primeira obra filosófica de Merleau-Ponty encontra-
-se dividida em quatro capítulos: “o comportamento reflexo”, “os comportamentos
superiores”, “a ordem física, a ordem vital, a ordem humana” e “as relações entre a
alma e o corpo e o problema da consciência perceptiva”. O título dos dois primeiros
capítulos já nos apresenta algumas questões: Que relação poderia haver entre o com-
portamento reflexo e os comportamentos superiores? O que seria um comportamento
superior? Se há um comportamento considerado como superior, o que seria um com-
portamento inferior? Ora, não nos esqueçamo-nos de que o filósofo, para elucidar as
incoerências da teoria do reflexo, procurou fazê-lo acompanhando a ordem conceitual
apresentada pelos próprios defensores do “arco reflexo”. No entanto, isso não se dá
apenas em um capítulo, mas trata-se do fundo de toda essa obra de Merleau-Ponty.
Assim, na própria disposição dos capítulos, já observamos a crítica que o filósofo len-
tamente começara a esboçar.
De acordo com a fisiologia clássica, o comportamento deve ser analisado por
uma hierarquia que partiria do simples ao complexo. De um lado, encontraríamos os
comportamentos reflexos, totalmente mecânicos e ligados ao sistema nervoso periféri-
co. Esses comportamentos se caracterizariam por seu aspecto elementar que os fariam
se assemelhar a átomos. Por sua vez, os comportamentos inferiores estariam subordi-
nados aos ditos superiores, considerados assim por estarem ligados ao sistema nervoso
central e se determinar por seu caráter de complexidade. Como lembra Merleau-Pon-
ty, (1945) em Phénoménologie de la Perception, “durante muito tempo, acreditou-se
encontrar no condicionamento periférico uma maneira segura de localizar as funções
psíquicas ‘elementares’ (...)” que seriam distinguidas “(...) das funções ‘superiores’,
menos estritamente ligadas à infra-estrutura corporal” (p. 16).
De acordo com a fisiologia e psicologia modernas, essa separação e hierarqui-
zação dos comportamentos, seguida de uma hierarquização dos próprios seres vivos,
seria totalmente contraditória e distante da verdade. É o que podemos concluir ao con-
siderarmos o fato de que:
O elementar não é mais aquilo que, por adição, constituirá o todo, nem ali-
ás uma simples ocasião para o todo se constituir. O acontecimento elementar
já está revestido de um sentido, e a função superior só realizará um modo de
existência mais integrado ou uma adaptação mais aceitável, utilizando e subli-
mando as operações subordinadas. Reciprocamente, “a experiência sensível é
um processo vital, assim como a procriação, a respiração ou o crescimento”.
(Merleau-Ponty, 1945, p. 16)
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zer parte das três categorias, contudo, possuindo em cada uma delas significações di-
ferentes. Nesse sentido, vejamos rapidamente o que Merleau-Ponty entende por cada
uma dessas “formas”.
Como indica o próprio nome, as “formas sincréticas” se referem aos compor-
tamentos nos quais o organismo se encontra “preso” a seus instintos e limites naturais
formando como que uma única realidade, sendo constituído por estruturas muito mais
“aderentes”. Para essas formas, há uma pequena margem de adaptação, visto que a
resposta sempre se dá radicalmente a um complexo de estímulos antes que a certos
elementos próprios da situação. Por sua vez, as formas amovíveis indicam estruturas
“[...] relativamente independentes dos materiais nos quais elas se encontram” (Merle-
au-Ponty, 1942, p. 115). Nessas formas, o organismo pode lidar com “sinais” que se
fundamentam em estruturas que não se encontram necessariamente presas à matéria
de que é composta. As possibilidades de aprendizagem dessas formas se dão associa-
das a uma relação que combine meio e fim, desde que se viva, de fato, a situação. Por
fim, as formas simbólicas se constituiriam pela existência de sinais que conseguem
expressar o estímulo sem recorrências a outros elementos, dado que o próprio com-
portamento se torna significativo.
As formas do comportamento, para Merleau-Ponty, apresentam-se no intuito
de superar os reducionismos do vital ao físico ou, até mesmo, do simbólico ao vital,
uma vez que, “com a noção de ‘forma’ encontramos, pois o meio de evitar as antíte-
ses clássicas, tanto na análise do ‘setor central’ do comportamento quanto na análise
de suas manifestações visíveis” (Merleau-Ponty, 1942, p.138). Assim, aprendemos
a não explicar “[...] o superior pelo inferior, mas também a não explicar o inferior
pelo superior” (Merleau-Ponty, 1942, p.138). Neste sentido, como ressalta Merleau-
-Ponty (1942),
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A atenção dada por Merleau-Ponty a Uexküll, pelo que podemos notar, apenas acentua mais o seu projeto
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filosófico já esboçado em La Structure du Comportement. Nessa obra, Merleau-Ponty não se dedicara tanto
a Uexküll, o que iria fazer nos seus cursos sobre o conceito de Natureza no Collège de France. Contudo, já
podemos ver em La Structure du Comportement alguns indícios significativos da noção de Umwelt. O fato
de Merleau-Ponty não citar diretamente Uexküll não significa que não conhecia seus trabalhos. Isto seria
inclusive, a nosso ver, impossível dada a grande quantidade de citações feitas por Merleau-Ponty, em seus
primeiros trabalhos, do Der Aufbau des Organismus de Kurt Goldstein, obra na qual encontramos vários
parágrafos dedicados aos trabalhos de von Uexküll. Quanto a isso, consideramos até mesmo indiscutível
a importância que Merleau-Ponty dá a essa obra de Goldstein e o conhecimento que ele tem dela.
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tabelece entre um organismo e seu meio como uma “melodia” significa pensá-la como
um todo, uma estrutura na qual não é possível que se dê uma prioridade absoluta, seja
ao “estímulo”, seja à própria “resposta”. Para Uexküll (apud Merleau-Ponty, 2000, p.
288), “o tema da melodia animal não está fora de sua realização manifesta, é um tema-
tismo variável que o animal não procura realizar pela cópia de um modelo (...)”. Pelo
contrário, é um tematismo “(...) que persegue as suas realizações particulares, sem que
esses temas sejam a meta desse organismo” (Merleau-Ponty, 2000, p. 288), uma vez
que “o sujeito animal é sua realização, transespacial e transtemporal” (Merleau-Ponty,
2000, p. 288). Desse modo, semelhante ao ser vivo, a “melodia” não é um fluxo, uma
mera seqüência, mas uma harmonia na qual desde a primeira nota até a última já se faz
presente, sendo verdadeiro que entre o passado e o futuro, presentes nas notas de uma
melodia, há sempre uma ação recíproca. Disso podemos concluir que, como sintetiza
Merleau-Ponty (2000, p. 288):
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bém seja suficiente. Ora, frente à impossibilidade de uma leitura fisiologista, pensa
Merleau-Ponty, não basta recorrer a uma leitura psicologista, aquela que, pautando-
-se na anosognose, veria naquela experiência uma simples negação do paciente em
se aceitar com um membro mutilado. O erro dessa leitura, todavia, encontra-se em
desconsiderar o substrato fisiológico do paciente, o fato de que uma secção em seus
nervos pode afetar sua percepção ilusória do membro. Nesse sentido, o problema
não estaria apenas na presença indevida de uma representação. Da mesma forma,
uma simples soma das perspectivas fisiológicas e psicológicas também não seria su-
ficiente, uma vez que:
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de tê-la tido, depois para a recordação de ter tido essa recordação e assim por diante,
a ponto de que finalmente ela só retenha sua forma típica” (Merleau-Ponty, 1945, p.
99). Há, para Merleau-Ponty, um “advento do impessoal” na vivência do recalque que
“[...] nos faz compreender nossa condição de seres encarnados ligando-a a estrutura
temporal do ser no mundo” (Merleau-Ponty, 1945, p. 99). Sempre, em nossa exis-
tência pessoal, deparamo-nos com uma “existência quase impessoal” na qual perten-
cemos primeiramente, assim, como um organismo pertence antes a uma Umgebung,
para depois pertencer a uma Umwelt. A experiência do recalque acaba, portanto, de
nos clarear e confirmar a existência do nosso organismo como um solo originário e
anterior a um sujeito epistemológico, um solo no qual a estrutura temporal de nossa
experiência possibilita “a fusão entre a alma e o corpo no ato, a sublimação da exis-
tência biológica em existência pessoal, do mundo natural em mundo cultural [...]”
(Merleau-Ponty, 1945, p.100).
Nessa perspectiva, salienta Merleau-Ponty (1945):
existência integrada. Um olhar filosófico sobre o patológico revela-nos, por fim, uma
compreensão do homem não mais como um psiquismo que simplesmente se soma a
um organismo, mas, pensando concretamente, como um “vai-vem da existência” que
vive entre o corporal e os atos pessoais. A patologia expressa justamente a necessida-
de de reconhecer os acontecimentos anímicos não mais ora pela fisiologia, ora pela
psicologia, mas como um processo vital que está, sobretudo, ligado à existência, dado
que “o distúrbio dito somático delineia comentários psíquicos sobre o tema do aciden-
te orgânico, e o distúrbio ‘psíquico’ limita-se a desenvolver a significação humana do
acontecimento corporal” (Merleau-Ponty, 1945, p. 104).
Assim, como assinala o Merleau-Ponty (1945),
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Referências bibliográficas
Uexküll, J. von. (1965). Mondes animaux et monde humain. Trad. Philippe Muller.
Paris: Denoël.