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Esta colecção visa essencialmente

o estudo da evolução do homem


sob os aspecios mais genericamente antropológicos
- Isto é, a visão do homem como um ser
que se destacou do conjunto da natureza,
que soube modelar-se a si próprio,
que foi capaz de criar técnicas e artes,
sociedades e culturas
........
•••••
• ANTROPOLOGIA
PERSPECTIVAS DO HOMEM
(AS CULTUMS, AS SOCleo.\DES)
SOCIAL
TfTULOS PUBLICADOS:

1. A CONSTRUÇÃO DO MUNDO, d1r. More Augi


2. OS DOMfNIOS DO PARENTESCO. dir. More Augi
3. ANTROPOLOGIA SOCIAL. de E. E. El'ans-Pritchard
4. A ANTROPOLOGIA ECONÓMICA, dir. François Pouil/on
5. O MITO DO ETERNO RETORNO, de Mircea Eliade
6. INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ETNO-ANTROPOLÓGICOS, de Bernardo Btrnardi
7. TRISTES TRÓPICOS. de Claude Uvi-Srraus.v
8. MITO E SIGNIFICADO, de Claude Uvi-Strauss
9. A IDEIA DE RAÇA. de Michel Banton
10. O HOMEM E O SAGRADO, de Ro1tr Caillois
11. GUERRA, RELIGIÃO, PODER, de Pierre Clostres, A/fred Adiu ~ outros
12. O MITO E O HOMEM. de Roger Cai//ois
13. ANTROPOLOGIA: ClêNCIA DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ?, de J. Copans. S. Tor-
na.v, M. Godelitr e C. BacUs-CUment
14. HORIZONTES DA ANTROPOLOOIA, de Mourice Godelitr
15. CRITICAS E POLfTICAS DA ANTROPOLOGIA, de Jean Copa11s
16. O GESTO E A PALAVRA - 1 rtCNICA E LINGUAGEM. de Andri Ltroi-Gourhan
17. AS RELIGIÕES DA P~-HISTÓRIA, de Andrl Ltroi-Gourhan
18. O GESTO E A PALAVRA - li A MEMÓRIA E OS RITMOS. de Andri Ltroi-Gourhon
19. ASPECTOS DO MITO. de Mircea Ellade
20. EVOLUÇÃO E :ffiCNICAS - 1 O HOMEM E A MAT~RIA. de Andri Ltroi·Gourhan
21. EVOLUÇÃO E rtCNICAS - li O MEIO E AS T~CNICAS. de Andri Ltrol·Gourhan
22. OS CAÇADORES DA PR~-HISTÓRIA , de Andrt Ltroi-Gourllan
23. AS EPIDEMIAS NA HISTÓRIA DO HOMEM. de Jacques Ruf]U e Jean Cllar/e Soumia
24. O OLHAR DISTANCIADO. de Claude Uvi-Strauss
25. MAGIA. C lêNCIA E CIVILIZAÇÃO, de J. Branowslt.i
26. O TOTETISMO. HOJE, de Claude Uvi-Strauss
27. A OLEIRA CIUMENTA. de Claude Uvi-Strauss
28. A lÓOICA DA ESCRITA E A O RGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE, de Jack G~·
29. ENSAIO SOBRE A DÁDIVA, de Marcel Mauss
30. MAGIA, C lêNCIA E RELIGIÃO, de Bronislaw Molinowski
31 . INDIVIDUO E PODER, de Paul Veyne, Jean-Pierre Vernant, U>uis Dumont. Paul Ricoeur.
Françoise Dolto e outros
32. MITOS. SONHOS E MIS"reRIOS. de Mircea E/iode
33. HJSTÓRIA DO PENSAMENTO ANTROPOLÓOICO. de E. E. Evons-Pritchard
34. ORIGENS. de Mircea Eliadt
35. A DIVERSIDADE DA ANTROPOLOGIA, de Edmund Ltach
36. ESTRUTURA E FUNÇÃO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS. de A. R. Raddife-Bra>Ht
37. CANIBAIS E REIS. de Marvrn Harris
38. HISTÓRIA DAS RELIGIÕES. de Maurilio Adriani
39. PUREZA E PERIGO, de Mary Douglas
40. MITO E MITOLOGIA, de Walter Burkm
41. O SAGRADO, de Rudo/f 0110
42. CULTURA E COMUNICAÇÃO. de Edmund Ltach
43. O SABER DOS ANTROPÓLOGOS, de D<rn Sptrbtr
44. A NATUREZA DA CULTURA. de A. L KrMbtr
45. A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA. de Gilbm Durand
ANTROPOLOGIA
SOCIAL

E. E. EVANS-PRITCH ARD

Título original:
Social Anthropology

e Routledge & Kegan Paul úd., 1972

Tradução de Ana Maria Bessa

Capa de Edições 70 (Motivo grdfico: grupo em barro cozido, Luaruki-Angola)

Depósito legal n.0 138383199

ISBN 972 - 44 - 0032 - 8

EDIÇÕES 70, LDA.


Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2. 0 Esq.0 - 1069-157 Lisboa/ Portugal
Telefs: (01) 3158752- 3158753
Fax: (01) 3158429

~dk;ões70
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,
no lodo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível
de procedimento judicial.
PREFACIO

Estas seis conferências foram proferidas no Terceiro Pro-


grama da BBC, no Inverno de 1950. Dou-as à estampa tal
como foram difundidas, salvo algumas ligeiras alterações de
vocabulário. Não me pareceu conveniente mudar ou acrescentar
o que foi escrito para ser •lido, dentro das limitações impostas
pelo meio de expressão e com um propósito e um público
determinados.
Para a maioria das pessoas, a Antropologia Social não
representa mais que um nome, mas espero que estas lições
radiofónicas sobre a matéria sirvam para divulgar o alcance
e os métodos desta ciência. Confio em que a publicação das
mesmas em livro servirá para o mesmo fim. Creio que esta
obra pode ser também de utilidade para os estudantes das
cadeiras de Antropologia nas universidades inglesas e ameri-
canas, já que existem muito poucos textos breves que possam
servir de introdução ao estudo desta disciplina. Por isso mesmo
acrescentei uma pequena bibliografia.
Muitas das ideias expressas nestas conferências já as tinha
dado a conhecer anteriormente. e às vez.es da mesma forma.
Agradeço portanto a autorização para reproduzi-las novamente
aos delegados da Clarendon Press e aos editores de Man, Black-
f1iars e A/rica (1).

(') Social Anthropology (Antropologia Social), conferencia inaugural


proíerida na Universidade de Oxford em 4 de Fevereiro de 1948, Clarendon

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ANTROPOLOGIA SOCIAL

Agradeço ao senhor K. O. L. Burridge a sua ajuda na 1


preparação destas conferências e aos meus colegas do Instituto
de Antropologia Social de Oxford, assim como ao senhor T. B. ALCANCE DO TEMA
Radley da BBC, os seus conselhos e as suas críticas.

E. E. E. P.

Nestas conferências, tentarei dar-vos uma ideia geral do


que é a Antropologia Social. Sei perfeitamente que existe lima
confusão bastante grande a respeito desta matéria, mesmo entre
os profanos com um certo nivel cultural. Na maior parte das
pessoas, o nome suscita vagas associações de ideias entre maca-
cos e crânios, ou entre ritos estranhos de selvagens e curiosas
superstições. Creio que não me vai ser difícil fazer-lhes ver o
erro dessas associações mentais.
A minha aproximação a esta matéria pautar-se-á por este
facto. Partirei do princípio de que alguns ignoram totaimente
o que é a Antropologia Social e de que outros têm uma ideia
equivocada a seu respeito. Espero que os que conheçam algo
sobre o tema saibam desculpar-me se na minha exposição o
discuto de uma forma que possa parecer-lhes elementar.
Nesta primeira conferência explicarei o alcance geral da
matéria, enquanto na segunda e na terceira falarei do progresso
teórico desta ciência. A quarta será dedicada àquela parte da
investigação que denominamos trabalho de campo e a quinta
mostrará, através de alguns exemplos de estudos modernos, o
desenvolvimento da teoria e do trabalho de campo. Na última
conferência examinarei a relação entre a Antropologia Social
Press, 1948; Social Anthropology: Past and Present (Antropologia Social: e a vida prática.
P.assado e Presente), Marett Lecture proferida no Exeter College Hall, Na minha exposição. e sempre que seja possível, tratarei
Oxford, em .3 de ~unho de 1950, Man, 1950, n. 0 198; Social Anthropology de limitar-me à Antropologia Socfat em Inglaterra, principal-
(Ai:itropol?g1a Social), Blac~friars, 1946; A pp/ied A nthropo/ogy (Antropo-
logia Aplicada), conferencia pronunciada na Sociedade Antropológica mente para evitar dificuldades de apresentação, uma vez que,
da Universidade de Oxford em 29 de Novembro de 1945, A/rica, 1946. se tivesse de ocupar-me também do desenvolvimento da matéria

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TEMA

nos países do Continente e na América. ver-me-ia obrigado a nar uma parte de uma matéria mais vasta que é a Antropologia,
condensar tanto o material que o ganho em compreensão não isto é, o estudo do homem num certo número de aspectos.
poderia compensar o perdido em clareza e continuidade. Como O seu objecto está ligado às culturas e soci~dades. humanas.
em Inglaterra a Antropologia Social teve um desenvolvimento Na Europa continental prevalece uma outra termmologia. Quando
bastante independente, esta limitação tem menos importância ai se fala de Antropologia, que para nós significa o estudo
que aquela que assumiria em muitos outros campos do conhe- completo do homem, quer-se referir o que nós em In~ate~
cimento. De qualquer modo, não deixarei de mencionar os auto- denominamos Antropologia .f"ISica. que é o estudo biológico
res e tendências estrangeiros que têm exercido uma apreciável do homem. O que nós denominamos Antropologia Social cha-
influência sobre os estudiosos ingleses. ma-se ali Etnologia ou Sociologia.
·P orém, mesmo dentro destes limites, não é fácil dar- Mesmo em Inglaterra só há pouco tempo começou a ser
-vos uma definição simples e clara dos fins e dos métodos usada a expressão «'Antropologia Social». Contudo, tem-se. vindo
da Antropologia Social, porque nem sequer entre os que se a ensinar sob a designação de Antropologia ou Etnologia, em
dedicam a esta disciplina existe um ·acordo tota:l nestes assuntos. Oxford, desde 1884, em Cambridge, desde 1900, e em Londres,
Naturalmente, há uma coincidência completa de opiniões em desde 1908. A primeira cátedra que teve oficfalmente a desig-
muitas matérias, e uma divergência em outras; como sucede nação de «Antropologia Sociai> foi a cátedra honorária de Sir
frequentemente no estudo de um tema novo e muito amplo, as James Frazer, em Liverpool, em 1908. A disciplina alcançou
ideias divergentes tendem a confundir-se com as personalidades uma grande difusão e com o nome de Antropologia Social exis-
que as sustentam, pois os cientistas são talvez mais dados a tem agora vários cursos numa série de universidades da Grã-
identificar-se com as suas opiniões do que quaisquer outras -Bretanha e dos Dominios.
pessoas. Como esta disciplina apenas é uma parte do amplo capitulo
As preferências pessoais, quando há necessidade de as da Antropologia, costuma ser ensinada juntamente com os outros
expressar, não têm importância se são abertamente reconhecidas ramos dessa ciência: Antropologia Fisica, Etnologia, Arqueolo-
como tal. As ambiguidades são muito mais perigosas. A Antro- gia Pré-Histórica e às vezes Linguística .Geral e Ge?grafia
pologia Social tem um vocabulário técnico muito limitado e Humana. Como as últimas duas matérias raras vezes figuram
vê-se obrigada a recorrer à linguagem comum, que, como todos nos cursos de Antropologia deste pais, já não me referirei mais
sabem, não é muito exacta. Os termos «sociedade», «cultura», a elas. Quanto à Antropologia Física, que actualmente tem
«costume», «religião», «sanção», «estrutura», «função», «poli- muito pouco em comum com a disciplina que nos ocupa, só
tico». «democrático», nem sempre comportam o mesmo signifi- direi que constitui um ramo da Biologia Humana que estuda,
cado, quer para diferentes pessoas, quer em diferentes contextos. entre outras coisas, a hereditariedade, a nutrição, as diferenças
Este problema podia-sanar-se introduzindo uma série de vocá- sexuais, anatomia comparada e fisiologia das raças e a teoria
bulos novos ou dando um significado restrito e técnico às pala- da evolução humana. . .
vras de uso quotidiano. Mas se este processo se generalizasse, •A Etnologia é a matéria que se encontra mais relacio-
além das dificuldades para conseguir que todos se pusessem nada com o nosso tema. Este facto compreender-se-á melhor
de acordo sobre os novos conceitos, chegar-se-ia rapidamente a se se souber que embora os antropólogos sociais considerem
uma giria só compreensivel para os estudiosos profissionais. que o seu objecto integra todas as culturas ~ sociedades .huma:
Perante a alternativa de ter de escolher entre manobrar muito nas, incluindo a nossa, o seu esforço, por razoes que mencionarei
perto as obscuridades da linguagem quotidiana e as obscuri- mais tarde, tem-se orientado quase exclusivamente para o estudo
dades da giria especializada, parece-me menos arriscado preferir dos povos primitivos. Como os etnólogos se dedicam também
as formas do discurso comum, pois o que nos ensina a Antro- ao estudo destas sociedades, observa-se portanto uma notável
pologia Social não diz apenas respeito aos profissionais, mas coincidência entre as duas disciplinas.
antes a toda a gente. · Contudo, importa destacar que embora a Etnologia e a
Em Inglaterra .e. ainda que em menor grau, nos Estados Antropologia Social trabalhem fundamenta·lmente com o mes~o
Unidos, a expressão Antropologia Social é utilizada para desig- tipo de sociedades. os seus o.bjectivos são muito diferentes. Assim,

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TEMA

ainda que no passado não se fizesse uma distinção bem clara sociedades primitivas. Tai como se ensina hoje em dia não é
entre ambas. hoje em dia são consideradas como duas disci- mais que um auxiliar da Etnologia e da Pré-História.
plinas diferentes. A Etnologia ocupa-se de classificar os povos O objecto da Antropologia Social é bastante diferente. Como
em função das suas características raciais e culturais, para depois demonstrarei em seguida, estuda o comportamento social, geral-
explicar, baseada no movimento e mistura de povos e na difusão mente em formas institucionalizadas, como a família, sistemas
de culturas, a sua distribuição no presente e no passado. de parentesco, organização política, procedimentos legais, ritos
A classificação de povos e culturas é um estudo preliminar religiosos, e assim por diante, além das relações entre tais insti-
essencial para as comparações que fazem os antropólogos sociais tuições; estuda-se em sociedades contemporâneas ou naquelas
entre sociedades primitivas, porque é altamente conveniente, e comunidades históricas sobre as quais existe uma informação
até mesmo necessário, principiar o trabalho comparativo com adequada para a realização de tais investigações.
as do mesmo nível cultura:! - as que constituem o que "Bastian Assim, enquanto um hábito de um povo, examinado num
chamou, há muito tempo, «províncias geográficas» (l). Porém, niapa de distribuição, tem interesse para o etnólogo como prova
quando os etnólogos tratam de reconstituir a história de povos de um movimento étnico, de uma tendência cultural ou de um
primitivos de cujo passado não se conserva documentação his- · contacto anterior entre povos, para o antropólogo sociail é,
tórica, não têm mais remédio, para estabelecer as suas conclu- noutra perspectiva, uma parte da vida social total no mome~to
sões, que fiar-se nas deduções obtidas por evidência circuns- dado. A mera probabilidade de que esse costume tenha sido
tancial. Tendo em conta a natureza do assunto. as conclusões tomado doutra comunidade, não o preocupa excessivamente,
nunca podem ser mais que prováveis reconstruções. Assim, às uma vez que não pode estar seguro desse facto, e mesmo que
veres, há uma série de hipóteses diferentes e até contraditórias o estivesse não sabe como, quando e por que aconteceu. Por
que se ajustam igualmente bem aos factos conhecidos. A Etno- exemplo, certos povos da África Oriental têm o Sol como o
logia não é pois História. na acepção comum da palavra, já seu símbolo de Deus. Para certos etnólogos, este facto prova
que esta não nos diz os factos qÚe poderiam ter acontecido, a influência do Antigo Egipto. O antropólogo social sabe que
mas antes afirma os que aconteceram; não só assegura a sua não pode demonstrar-se a verdade ou falsidade desta hipótese ·
existência, como também detalha como e quando, e amiúde por e por isso está mais sensibilizado para relacionar o simbolismo
que sucederam. Por essa razão e, além disso, porque pouco solar com todo o sistema de crenças e cultos desses povos. Com-
nos pode informar sobre a vida social que desenvolveram os provamos assim que o etnólogo e o antropólogo social podem
povos primitivos, as conjecturas da Etnologia têm escasso valor utilizar a mesma informação etnográfica, mas com finalidades
para os antropólogos sociais. Ao contrário, as suas classificações
são muito úteis. diferentes.
A Arqueologia Pré-Histórica pode ser considerada como Os programas dos cursos universitários de Antropologia
um ramo da Etnologia que trata de reconstruir a história dos poderiam ser graficamente representados por três círcul~s qu_e
povos e civilizações a partir dos restos humanos e culturais se intersectam, simbolizando cada um deles os estudos biológi-
postos a descoberto nas escavações e sedimentos geológicos. cos, históricos e sociológicos. As áreas comuns aos três seriam
Do mesmo modo que a Etnologia, também utiliza a evidência a Antropologia Física, a Etnologia (incluindo a Arqueologia
circunstancial. A sua semelhança, pouca informação com inte- Pré-Histórica e a Tecnologia Comparada) e a Antropologia
resse proporciona .ao antropólogo social, pois em vez de se Social. Embora estas três disciplinas antropológicas tenham como
ocupar das ideias e instituições dos povos, dedica~e antes a Campo comum de estudo o homem primitivo, os seus fins e
descobrir e a classificar ossos e objectos. Outro ramo da Etno- métodos, são, segundo vimos, bastante diferentes. Se se ensi-
logia é a Tecnologia Comparada, que se ocupa em especial das nam juntas, em maior ou menor grau, nas universidades, esse
facto deve-se mais a circunstâncias históricas largamente tri-
butárias da teoria darwiniana da evolução, que a um plano
cuidadosamente concebido; pela mesma razão estão conjunta-
(') Adolf Bastian, Controyersen in der Ethnologie, 1893. mente representadas no Real Instituto Antropológico.

14 JS
ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TEMA

Alguns dos meus colegas manifestaram-se profundamente mia simples e um baixo grau de especialização da função social.
insatisfeitos com o actual estado de coisas. Alguns antropólogos A•lguns antropólogos acrescentarão outros critérios, especialmente
pretendiam que a Antropologia Social fosse ensinada em liga- a ausência de literatura e, por conseguinte, a falta de qualquer
ção mais estreita com a Psicologia ou com as denominadas arte, ciência ou teologia sistemáticas (2).
Ciências Sociais, tais como Sociologia Geral, Economia, Política Somos às vezes criticados por dedicar tanto do nosso tempo
Comparada, e outros defendiam a sua aproximação com outras a estudar estas populações primitivas. Sugere-se então que seria
matérias. Este assunto é muito complexo e esta não é a ocasião de maior utilidade investigar os problemas da nossa própria
oportuna para o discutir. Só direi que a solução depende em sociedade. Talvez seja certo, mas, por diversas causas, são essas
grande medida do modo como se encare a Antropologia Socia:l, comunidades primitivas que vêm atraindo desde há bastante
pois existe uma enorme divergência entre os que a consideram tempo a atenção dos estudiosos das instituições sociais. Desper-
uma ciência natural e os que, como eu, a incluem entre as taram o interesse dos filósofos do século XVIII, principalmente
Humanidades. Esta divisão agrava-se ao máximo quando se porque forneciam um exemplo do que se supunha ser o homem
discutem as relações entre a Antropologia e a História. Deixarei vivendo em estado de natureza antes da instauração do governo
a análise deste ponto concreto para uma conferência posterior, civil. Os antropólogos do século XIX interessaram-se também
porque se toma necessário saber algumas coisas sobre a evolu- por elas porque pensaram que obteriam importantes chaves na
ção do assunto para entender como se produziu esta divisão busca das origens das instituições. Antropólogos posteriores
de opiniões. foram por sua vez atraídos, porque se mantinha que ai se encon-
Já deliniei de maneira breve e inevitavelmente de forma travam as instituições nas suas formas mais simples, e como o
digressiva a posição da Antropologia Social na universidade. método mais adequado é começar pelo exame do mais simples
Preparado o terreno desta maneira, posso agora dedicar-me para estudar depois o mais compJicado, pensaram que 1hes seria
totalmente à análise dessa disciplina, que é objecto desta expo- útil tudo aquilo que pudessem aprender da investigação do
sição e o único tema que posso tratar com idoneidade. Por- menos complicado.
tanto, quando por comodidade falar de Antropologia, sem . a Com o aparecimento da actualmente chamada Antropologia
especificação de «Social», deve subentender-se ·que me refiro a Funcional, a importância desse motivo tem-se vindo a acentuar.
este ramo que é a Antropologia Social. Como a tarefa da Antropologia Social é olhada cada vez mais
Creio que, agora, convém que me ocupe imediatamente como o estudo das instituições enquanto partes dos sistemas
das perguntas «que são sociedades primitivas?», e «porque é sociais, tanto mais vantagens se notam no estudo das sociedades
que as estudamos?», antes de precisar com mais detalhe o que primitivas, tão estruturalmente simples e culturalmente homogé-
vamos estudar no seu interior. Ta·l como se emprega na lite- neas que podem ser directamente observadas como um todo.
ratura antropológica, a palavra «primitiva» não significa: que antes de tentar estudar sociedades civilizadas complexas, onde
as culturas que qualifica sejam anteriores no tempo ou inferiores isto não é possível. Além disso, sabe-se que é mais fácil efectuar
a outras. Tanto quanto sabemos, as sociedades primitivas têm observações em povos de cultura diferente da nossa, já que o
uma história tão longa como a nossa, e se em alguns aspectos seu diferente modo de vida nos chama imediatamente a atenção
se encontram menos desenvolvidas, noutros estão muito frequen- e há também mais probabHidades de que as interpretações sejam
temente à nossa frente. Por esta ra7.ão é que a escolha do objectivas.
vocábulo não foi excessivamente feliz, mas actualmente a sua Outra razão muito convincente para neste momento estu-
aceitação como termo técnico é tão ampla que não podemos dar as sociedades primitivas é que elas estão a transformar-se
evitá-Jio. rapidamente e, portanto. torna-se necessário investigá-.Jas o mais
Parece suficiente dizer, neste momento, que, quando os
antropólogos empregam esta palavra, referem-se a sociedades
pequenas, quer em número de indivíduos, quer em território,
com contactos sociais limitados, e que, comparadas com outras (') Robert Redfield, «The Folk Society», The American Journal
soeiedades mais avançadas, possuem uma tecnologia e uma econo- o/ Sociology, 1947.

16 i7
ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TBMA

depressa possivel ou então corre-se o risco de não o poder f~r substituída pelo estudo das fontes literá.tjas. Como exemplo,
no futuro. Estes sistemas sociais em vias de desaparecer consti- podemos citar as obras de Sir James Frazer sobre os antigos
tuem variantes estruturais únicas, cuja análise nos ajuda consi- hebreus e sobre certos aspectos da cultura romana, de Sir William
deravelmente a compreender a natureza da sociedade humana, Ridgway e de Jane Harrison sobre temas helenisticos, de Robert-
porque, num estudo comparativo de instituições, o número de
son Smith sobre a antiga sociedade árabe e de Hubert sobre
sociedàdes com que se trabalha é menos significativo que o seu a história dos celtas.
grau de variação. Por outro lado, a investigação das sociedades
primitivas tem um va:lor intrínseco. Estas sociedades são interes- Antes de continuar quero recordar-lhes que a Antropologia
Sociail. é, pelo menos em teoria, o estudo de todas as sociedades
santes em si mesmas, porque nos oferecem uma descrição da
forma de vida, dos valores e das crenças dos povos que vivem humanas e não só das sociedades primitivas, apesar de na prática
privados daquilo que estamos habituados a considerar como os e por conveniência se ocupar actualmente em analisar preferen-
requisitos mínimos do conforto e da civilização. temente as instituições dos povos mais simples. É evidente que
No nosso entender é, pois, imperioso realizar uma inves- não pode haver uma disciplina independente consagrada inteira-
tigação sistemática no maior número possivel de comunidades mente ao estudo destas sociedades. Quando um antropólogo se
primitivas enquanto ainda exista a possibilidade de o fazer. dedica à investigação de um povo primitivo, o que estuda é a
Actua:lmente há um grande número deste tipo de sociedades, linguagem, a religião, as leis, as instituições políticas, a economia
mas até agora os antropólogos somente foram capazes de estudar política, e assim por diante, e, portanto, deparam-se-lhe os mes-
com intensidade muito poucas, já que os estudos são muito mos problemas gerais que ao estudioso destas matérias nas gran-
demorados e os investigadores escasseiam. des civilizações do mundo. Além disso, ao interpretar as suas
Convém, contudo, sublinhar, que embora nos interessemos observações sobre as sociedades primitivas, o antropólogo está
principahnente pelas sociedades primitivas, não nos limitamos sempre a compará.,las, pelo menos implicitamente, com a sua.
exclusivamente a elas. Nos Estados Unidos, onde a Antropologia A Antropologia Social pode assim considerar-se como um
Social se encontra mais bem representada ao nível das univer- ramo dos estudos sociológicos que se dedica principalmente às
sidades que na Grã~Bretanba, os antropólogos, americanos ou sociedades primitivas. Quando se fala de Sociofogia pensa-se
treinados nesse país, Já realizaram uma série de estudos sobre geralmente na investigação de determinados problemas em socie-
comunidades desenvolvidas da Irlanda, Japão, China, 1ndia, dades civilizadas. Se nos ativennos a esta concepção. entre a
México, Canadá e até mesmo dos Estados Unidos. Numa confe- Antropologia Social e a Sociologia apenas existiria uma diferença
rência posterior referir-me-ei em parte a um desses traba.Jhos: o de área de estudo, mas devemos sublinhar que há também entre
de Arensberg e Kimball, efectuado na Irlanda do Sul. ambas importantes variações de método. O antropólogo social
Por diversas raz.ões, entre as quais se contam a escassez de estuda directamente os povos primitivos vivendo entre eles
pessoal e o grande número de povos primitivos existentes no durante meses ou anos, enquanto a investigação sociológica se
nosso império colonial, os antropólogos britânicos ficaram um efectua geralmente na base de documentos e especialmente esta-
pouco para trás nesta matéria, mas também estão ampliando tísticas. O primeiro ocupa-se das sociedades como um todo:
os seus estudos de maneira a incluir povos que de nenhum estuda a sua ecologia, a sua economia política, as instituições
modo podem ser descritos como primitivos. Nos últimos anos, legais e políticas, a religião, a tecnologia, a organização da
por ex~mplo, a1guns alunos do Instituto de Antropologia Soci~l familia e o parentesco, a ganadaria e a agricultura, a arte, etc.,
de Oxford consagraram-se à investigação de comunidades ruraIS como partes dos sistemas sociais gerais. O trabafüo do sociólogo
da índia, 1ndias Ocidentais, Turquia e Espanha, dos bedufnos é em geral muito especia'1izado, porque investiga problemas iso-
do Norte de África, e a estudar a vida urbana e as aldeias lados, como o divórcio, o crime, a loucura, o trabalho, os
inglesas. estimttlos na indústria. Por um fado, a Sociologia está muito
· Por outro lado, também se realizaram estudos antropoló- ·ligada à iFilosofia Social e. por outro, ao planeamento social.
gicos em sociedades históricas, embora na actualidade se ievem Não se preocupa apen~ em averiguar como funcionam as insti-
a cabo com menor intensidade; nelas, a observação directa foi tuições. determina além disso como deveriam fazê-lo e o modo

18 19
ALCANCE DO TEMA
ANTROPOLOGIA SOCIAL
social na Melanésia»; «A organização social dos esquimós da
de melhorâ...las. Noutra perspectiva, a Antropologia Social man- zona central e oeste»; «0 delito na legislação primitiva» (Indo-
tém-se geralmente afastada dessas considerações. nésia e África).
Nestas conferências não vou referir-me à Sociologia neste Espero que estes exemplos possam proporcionar..Jhes uma
sentido, mas num significado mais amplo que a apresenta como ideia geral do género de traba'lho que realizam os antropólogos
um corpo geral de conhecimentos teóricos sobre as sociedades sociais. Em primeiro lugar deve observar-se que nos temas destas
humanas. A relação entre este corpo geral teórico e a vida social teses não há nada de fácil ou atractivo; não se vai atrás do
primitiva constitui o objecto da Antropologia Social. Isto tor- estranho ou pitoresco, nem do romântico ou antigo. Trata-se de
nar-se-á evidente quando eu me referir ao seu desenvolvimento estudos sérios sobre diferentes tipos de instituições sociais.
histórico, já que grande parte da nossa informação teórica ou Observar-se-á também que os trabalhos se ocupam de ~r­
conceptual provém de obras que não tratam das sociedades pri- tos povos ou de séries de povos, distribuídos por toda a Afnca,
mitivas ou que só indirectamente as abordam. Queria, por isso, Sul da índia Jamaica. fronteira indo-birmao.a, América do
que no decurso destas conferências tivessem presentes duas linhas Norte. regiões. polares. ilhas do Pacífico e Indonésia. Esta .disse-
evolutivas inter-relacionadas: por um fado, o progresso da teoria minação geográfica é muito notável porque ampl~a cons1der~­
sociológica. de que a teoria antropológica é só uma parte; e, velmente o campo antropológico, que oferece assim oporturu-
por outro, o desenvolvimento do nosso conhecimento sobre as dades de investigação para os mais diversos interesses. Mas esta
sociedades primitivas. Esse progresso influiu na evolução da mesma amplitude, como explicarei mais adiante, impli~ certas
teoria sociológica, provocando certas reformulações, e dando dificuldades para o ensino e de forma cada vez mais grave
origem a um corpo de conhecimentos relacionado com as socie- para a especiafüação regional. Na sua mais estreita int~rpr~­
dades primitivas. tação, a especialização regional incluiria os povos da. ·Po~més1a
Baseando-me no conceito de Antropologia Social como e da Melanésia, no Pacífico. os aborígenes da Austrába, os
parte integrante de um campo mais amplo de conhecimentos, La pões e os Esquimós das re~ões polares.. os mongóis .da Sibéria,
poderei oferecer-lhes uma ideia mais clara do tipo de prolYlemas os negros de África, os índios do contmente amencano ~ os
que investigamos. Para isso penso que terá bastante utilidade povos mais atrasados da 1ndia, Birmânia, Mal.ásia e lnd<:nés1a -:--
dar-vos uma ideia dos temas das teses apresentadas nos últimos milhares de culturas e sociedades. Numa mterpretaçao mais
anos por estudantes pós-graduados da universidade de Oxford. vasta. as suas fronteiras incluiriam também os povos mais avan-
Eis os títulos de algumas que foram aprovadas: «A posição çados, mas ainda relativamente simples, do Próximo e do Extre~o
do chefe no moderno sistema político dos Ashanti» (África Oci- Oriente Norte de África e certas áreas da Europa - ou se1a.
dental); «Um estudo da influência das mudanças sociais contem- um nú~ero quase ilimitado de culturas e subculturas, de socie-
porâneas sobre as instituições Ashanti»; «A função social da dades e subsociedades.
religião numa comunidade do Sul da índia» (os Coorg); «A orga- Já terão notado que nos exemplos citados figuram temas
nização política dos Nandi» (África Oriental); «Estrutura social tão diversos como as instituições políticas e religiosas, as distin-
da Jamaica, com especial referência às distinções sociais»; «Fun- ções de classe baseadas na cor. sexo ou posição. soci~J, as ins~­
ção do dote da noiva em algumas sociedades africanas»; «Um tuições económicas. as instituições lega~s ou ~milegais, o ~at~­
estudo do simbolismo da autoridade política em África»; «Um mónio. e também estudos de adaptaçao social, da orgam~çao
estudo comparado das formas de escravatura»; «A organização social total. ou estrutura. de um ou outro povo. Quer dizer.
social dos Yao da NiassaJândia do Sul» (África Central); «Sis- a Antropologia Social realiza um conjunto de investigações
temas de possessão de terras entre os povos Bantu da África diferentes numa série de sociedades distribuídas por todo o
Oriental»; «A posição da mulher entre os Bantu do Sul» (África mundo. Qualquer departamento de Antropologia correctament.e
do Sul); «Uma investigação sobre as sanções sociais das tribos organizado tenta abarcar nos seus. programa~ d.e. estudo os tópi-
Naga da fronteira indo-birmana»; <tO sistema político dos Murle» cos minimos e essenciais das sociedades pnm1tivas: parentesco
( Africa Orientai!); «A organização política dos índios da planicie» e famí lia, instituições políticas comparadas, economia poli~ca
(América do Norte)~ " «Um estudo do litígio fronteiriço interes- comparada. religião comparada. legislação comparada, assim
tatal entre os Ashanti» (África Ocidental); «Aspectos da posição
21
20
ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TEMA

como cursos mais gerais sobre o estudo das instituições, teoria número elevado de estudantes trabalhando numa ampla varie..
sociológica geral e história da Antropologia Social. Dá também dade de temas referentes a diversos aspectos da vida de regiões
cursos especiais sobre as sociedades de determinadas regiões que se acham disseminadas pelo Globo, é muitas vezes impos-
etnográficas; e, além disso, pode ainda oferecer cursos sobre sível transmitir-lhes mais que uma visão muito geral. Sir Charles
matérias tão peculiares como morai, magia, mitologia, ciência Oman conta que os professores Regius (') de História, em
primitiva. arte primitiva, tecnologia primitiva, língua, e também Oxford, tropeçaram com a mesma dificuldade quando tentaram
sobre os escritos de certos antropólogos e sociólogos. dar aulas para pós-graduados; não tiveram êxito, pois, como
Um antropólogo pode possuir um conhecimento geral sobre nota meditativamente o nosso autor, «OS estudantes pós-gradua-
todas estas regiões etnográficas e disciplinas sociológicas, mas, dos divagam segundo os seus desejos»(•). Contudo, no âmbito
logicamente, só pode ser uma autoridade em uma ou duas da Antropologia Social, a situação não é tão difícil como no
delas. Consequentemente, e tal como sucede em todos os ramos da História, porque a Antropologia Social pode generalizar com
do conhecimento, o aumento do conhecimento acarreta a espe- mais facilidade e tem um sistema teórico geral que falta à His-
cialização. O antropólogo toma-se um especialista em estudos . tória. Não só existe uma quantidade de semelhanças evidentes
africanos, estudos melanésicos, estudos de índios norte-ameri- entre as sociedades primitivas de todo o mundo, como além
canos, e assim por diante. 1á não tenta dominar os detalhes disso podem ser classificadas num número 11imitado de tipos,
de regiões estranhas ao seu sector, excepto quando fazem parte pelo menos parcialmente, por meio da análise estrutural. Isto
de monografias dedicadas explicitamente a problemas gerais, dá unidade à matéria. Os antropólogos sociais estudam, pois,
quiçá instituições religiosas ou legais, que lhe interessem especial- do mesmo modo, uma sociedade primitiva, quer ela esteja na
mente. A 'literatura existente sobre os índios americanos ou os Polinésia, na Africa ou na Lapónia; por outro fado, os assuntos
Bantu africanos, por exemplo, é já tão abundante que justifica de que se ocupam - sistemas de parentesco, ritos religiosos ou
por si só a dedicação exolusiva de um estudioso a uma ou outra · instituições políticas - são examinados nas suas relações com
matéria. a estrutura social total de que fazem parte.
A tendência para a especialização toma-se mais notória Antes de considerar, de maneira preliminar, o que se entende
quando se estudam as sociedades que possuem ·literatura ou por estrutura socia1, quero pedir-vos que prestem atenção a
que pertencem a uma cultura mais vasta com tradição literária. outra característica desta série de teses, porque ela realça um
Se um investigador tem um certo brio profissional e académico problema importante para a Antropologia no momento actual.
não pode estudar os beduínos árabes ou os camponeses árabes um problema que voltarei a tratar em conferências posteriores.
sem conhecer não só a sua língua faiada, como também a língua Todas se dedicam a temas sociológicos, quer dizer, tratam fun-
clássica da sua estrutura sociocultural; do mesmo modo não damentalmente de conjuntos de relações sociais, isto é. relações
pode abordar as comunidades de camponeses hindus sem ter entre membros de uma sociedade e entre grupos sociais. O que
um certo conhecimento da sua língua e do sânscrito, a Ungua quero aqui sublinhar é que elas são mais estudos de sociedades
clássica dos seus ritos e tradições religiosas. Para não ser um que estudos de culturas. Entre os dois conceitos há uma dife-
simples aprendiz e dominar o seu sector, o antropólogo deve rença sumamente importante, que levou a teoria e a prática
dedicar-se predominamente a um ou dois temas. e deve, aiém antropológicas em duas diferentes direcções.
disso, limitar as suas investigações a determinadas regiões. Não Este problema compreender-se-á melhor com alguns exem-
pode fazer um estudo comparado dos sistemas legais primitivos plos simples. Ao entrar numa igrej~inglesa é costume que os
sem uma boa base de conhecimentos de legislação gera4 e juris- bpmens tirem o chapéu e não os sapatos; ao contrário, numa
prudência, ou investigar arte primitiva sem ter <lido detidamente mesquita muçulmana, tiram o calçado. mas não o que levam
a literatura geral correspondente.
•Estas circunstâncias que acabei de mencionar contribuem
para que a Antropologia Socia:l seja difícil de ensinar, especial-
mente quando se tem de preparar, como sucede frequentemente 1
( ) Cargo de professor criado por Henrique VIII (N. do T.).
em Oxford, pós-graduados e investigadores. Quando há um (") Sir Charles Oman, On the Wriling o/ History, p. 252, 1939.

22 23
ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TBMA

na cabeça. Este mesmo comportamento é normal quando se Inglaterra, tende também a orientar os estudos para os costumes
entra, respectivamente, numa casa inglesa ou numa tenda de ou para a cultura, desprezando de certo modo as relações sociais.
beduínos. Estas diferenças que acabamos de citar são diferenças Quando um antropólogo social analisa uma sociedade pri-
de cultura ou de costumes. Em ambos os casos, as distintas mitiva. não se evidencia com claridade a distinção entre socie-
reacções têm uma mesma função e finalidade: constituem uma dade e cultura, porque o que ele descreve é ·a realidade, o
demonstração de respeito, que é diferentemente expressado nas comportamento básico, em que ambos os conceitos se encontram
duas culturas. Vou dar-lhes um exemplo mais complicado. Os incorporados. Conta, por exemplo, a forma exacta em que um
beduínos árabes nómadas têm em a·lguns aspectos fundamentais indivíduo demonstra respeito para com os seus antepassados,
o mesmo tipo de estrutura social que certos povos nilóticos mas, quando tem de interpretar tal comportamento, vê-se obri-
seminómadas do Este de África. Contudo, culturalmente são gado a abstrair dele à luz do problema particular que está a
diferentes: os primeiros vivem em tendas e os segundos em investigar. Se são problemas de estrutura social, ele prestará
cabanas; os beduínos criam camelos, os niJóticos gado vacum; mais atenção às relações sociais das pessoas que intervêm em
aqueles são muçulmanos, estes têm outro tipo de religião, e todo o processo do que aos pormenores da sua expressão cul-
assim por diante. Outro exemplo diferente dos anteriores, e tural.
ainda mais complexo, seria a distinção que fazemos quando Assim, uma forma de interpretar, pelo menos parcialmente,
falamos de civiliz.ação helénica ou hindu e sociedade helénica o culto dos antepassados seria demonstrtar que não contraria a
ou hindu. estrutura da família ou do parentesco. Os actos culturais ou
Encontramo-nos, por conseguinte, perante dois conceitos habituais que um homem realiz.a quando deseja mostrar res-
diferentes, ou, melhor, duas diferentes abstracções da mesma peito para com os seus antepassados, por exemplo. factos como
rea.Jidade. Embora se tenham discutido com muita frequência o sacrifício de uma vaca ou de um boi, exigem uma interpre-
as definições que lhes corresponderiam e as relações que existi- tação diferente. que pode ser, simultaneamente, psicológica e
riam entre eles, estas questões foram muito poucas vezes exa- histórica.
minadas sistematicamente; existe ainda muita confusão e pouca Esta distinção metodológica é evidente quando se efectuam
unanimidade nesta matéria. Morgan, Spen~r ·e Durkheim foram estudos comparados, pois se se tentar faze~ ao mesmo tempo
os primeiros a determinar que a fina1idáde da nossa actual ambos os tipos de interpretação criar-se-á quase inevitavelmente
Antropologia Social seria a classificação e análise funcional das uma grande confusão. O que nestes casos se compara não são
estruturas sociais. Esta forma de a encarar persiste ainda entre as coisas em si mesmas. mas sim algumas das suas caracterís-
os continuadores de Durkheim em França, assim como na Antro- ticas. Numa comparação sociológica de cultos de antepassados
pologia britânica actual e na tradição da sociologia formal realizada num certo número de sociedades diferentes, por exem-
alemã (º). Por outro lado, Tylor e outros mais orientados para plo. o que se estuda são os conjuntos de relações estruturais
a Etnologia conceberam esta disciplina como a classificação e entre pessoas. Portanto. começa-se forçosamente por abstrair,
análise da cultura. Este foi o ponto de vista dominante na cm cada sociedade, essas relações dos seus modos particulares
Antropologia americana durante bastante tempo. Penso que isso de expressão cultural. pois a comparação não pode fazer-se
se deve, por um lado, a que as sociedades índias em que con- de outra maneira. Quer dizer. o que se faz é separar problemas
centraram a sua investigação são de naturez.a fraccionada e desin- de determinado tipo para poder investigá-los. Neste procedi-
tegrada. prestando-se mais fadlmente a estudos de cultura que mento. não se está n fazer uma distinção entre diferentes tipos
a estudos de estrutura social. Por outro fado, a ausência de uma de coisas - sociedade e cultura não são entidades - . mas sim
tradição de trabalho de campo intensivo nas ffnguas nativas e entre diversas classes de abstracções.
durante prolongados períodos de tempo. tal como se faz · em Ao principiar esta conferência afirmei que a disciplina que
nos ocupa estuda as culturas e sociedades dos povos primitivos.
porque naquele momento não queria introduzir uma dificuldade.
(') Oeorg S1mmel, Sor.iolog/e, 1908; Leopold von Wiese, Allgemeinc Comecei assim e terei de deixar ai o problema, aclarando
Sor.lolog/e, 1924. somente que existe ainda muita incerteza e divergência de opi-

24 25
ANTROPOLOGIA SOCIAL ALCANCE DO TEMA

moes sobre esta matéria e que é uma questão muito difíciJ. As pessoas que vivem numa sociedade podem não se dar conta
Finalmente, estou de acordo em que o estudo dos problemas de que esta possui uma estrutura, ou captá-fa apenas de uma
da cultura conduz - tem mesmo de conduzir - à sua formu- forma vaga. A tarefa do antropólogo social é revelar a sua exis-
lação ~m termos históricos e psicológicos, en9uanto a análise tência.
da sociedade é formulada em termos de Sociologia. A minha Uma estrutura social total, isto é, a estrutura completa de
opinião pessoal é que, embora ambas as questões sejam igual- uma sociedade determinada, compõe~se de um certo número
mente importantes, os estudos estruturais deveriam ter prioridade. de estruturas ou sistemas subsidiários, e é por isso que podemos
Isto faz-nos voltar novamente à apreciação das teses já falar de sistemas de parentesco, sistemas económicos, religiosos
citadas. Lendo-as, observa-se que todas têm algo em comum. ou políticos.
Ou seja: não encaram o objecto do seu estudo - liderança, reli- 1As actividades sociais dentro destes sistemas ou estruturas
gião, distin,ções raciais, dote da noiva, escravatura, possessão estão organizadas à volta de instituições tais como o matrimó-
de terras, posição da mulher, sanções sociais, olasse social, pro- nio, a família, o mercado, a liderança, e assim por diante.
cedimentos legais ou o que quer que seja - como elementos Assim, quando falamos das funções das instituições, estamos a
isolados ou instituições suficientes em si mesmas, mas sim como referir-nos à parte que lhes corresponde na manutenção da estru-
partes das estruturas sociais e em termos dessas estruturas. Que tura social.
é então uma estrutura social? Ver-me-ei obrigado a ser um Creio que todos os antropólogos sociais poderiam eni prin-
tanto vago e pouco convincente ao responder a esta pergunta cípio aceitar estas definições. ·As dificuldades e diferenças de
nas minhas conferências introdutórias, mas ocupar-me-ei nova- opinião aparecem quando se tenta ave.riguar que tipo de abstrac-
mente dela mais adiante. Contudo, posso antecipar desde já ção é uma estrutura social e que significa exactamente o funcio-
que também neste caso existe uma grande divergência de opi- namento de uma instituição. Na realidade, todos estes problemas
ruoes. Isto é inevitável, porque é impossível dar .uma definição se poderão compreender melhor depois de conhecer alguns dados
precisa de conceitos tão básicos. Apesar dos meus escrúpulos, sobre o desenvolvimento teórico da Antropologia Social.
para poder continuar terei necessariamente de lhes dar uma
noção ainda que preliminar do que se entende gerahnente por
estrutura. ·
iÉ evidente que na vida social deve haver uniformidades
e regularidades e que uma sociedade deve ter um determinado
tipo de ordem, pois se tal não sucedesse os seus membros não
poderiam viver juntos. É precisamente porque as pessoas conhe-
cem o tipo de comportamento que delas se espera, nas diversas
situações da vida social, e porque coordenam as suas actividades
em função de regras e em obediência a uma escala de valores.
que todas e cada uma são capazes de realizar as suas tarefas
adequadamente. Podem fazer previsões, antecipar acontecimentos
e viver as suas vidas em harmonia com os seus semelhantes,
porque cada sqciedade tem uma forma ou padrão característico
que nos permite considerá-la como um sistema ou estrutura,
no seio da qua·l os seus membros desenvolvem as suas activi-
dades em concordfmcia com ela. O uso do termo «estrutura»
com este significado supõe um certo grau de compatibilidade
entre as partes, pelo menos susceptível de evitar contradições
abertas e conflitos. Significa também que tem uma duração
maior que a generalidade das coisas passageiras da vida humana.

26 27
II
PRfM1CIAS DO DESENVOLVIMENTO TEóRJCO

Esta segunda conferência e a que se segue serão dedicadas


a uma breve síntese histórica da Antropologia Social. Não tenho
a intenção de vos oferecer uma simples lista cronológica de
antropólogos e das suas obras, mas antes procurarei apresentar
um quadro do desenvolvimento dos seus conceitos gerais, isto
é, da teoria correspondente, ilustrando-o com ideias e citações
de alguns autores ( 1).
Segundo se viu, a Antropologia Social é uma disciplina
bastante nova nos programas de ensino das nossas universidades.
e ainda mais recente com esse nome. Porém, noutra perspectiva,
é uma matéria muito antiga, pois pode dizer-se que começou
com as primeiras reflexões especulativas da humanidade, já que
sempre e em toda a parte os homens propuseram teorias sobre
a naturei.a da sociedade. Ainda que não possamos defini r o
momento exacto do seu início, isso não é fundamental, pois há
um limite para além do qual não tem interesse de maior pre-
cisar as origens. Este período limite para a evolução da Antro-
pologia Social é o século X VIJI. A nossa ciência é. portanto.

(') Podem CflCOlltrar-se dados gera.is sobre a h istória da Antro-


pologia em A. C. Haddon, History of Anthropofogy, ed. rcv., 1934; Poul
Rad in, The Method and Theory of Ethnology, 1933; T. K. Pennimon,
A Hundred Yeau of AnthfYJpology, 19JS; e Robert H. Lowic, Tlw
History of EthnologicaJ Theory, 1937.

29
ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIM1CIAS DO DBSENVOLVIMENTO TEôRICO

filha do Iluminismo e conserva ao longo da sua história muitas e no progresso e desejava acima de tudo estabelecer uma ciên-
das características dessa ascendência. cia positiva das relações sociais, que para ele eram análogas
Em França começa c0m Montesquieu (1689-1755). O seu às relações orgânicas da fisiologia; insistia, além disso, em que
livro mais conhecido, De L'Esprit des Leis (1748), é um tratado os cientistas deviam analisar os factos e não os conceitos. É per-
de Filosofia ·Política, ou, melhor ainda, de Filosofia Social. Con- feitamente compreensível que os seus discípulos fossem socia-
tém uma série de ideias bastante estranhas acerca da influência listas e colectivistas e talvez também que o movimento acabasse
do clima sobre o carácter dos povos, assim como algumas obser- em fervor religioso para finalmente se desintegrar na busca
vações sobre a separação de poderes no Governo. Mas o que da mulher perfeita que pudesse desempenhar o papel de messias
para nós se revela mais interessante é a sua crença em que feminino. O discípulo mais conhecido de Saint-Simon, e que
as partes integrantes de uma sociedade e o seu meio ambiente acabou por se separar dele, foi Auguste Comte (1798-1857).
estão fucionalmente relacionados com todo o resto. S6 se pode Comte era um pensador mais sistemático que Saint-Simon, embora
compreender a legislação internacional, constitucional, criminal fosse igualmente excêntrico. Foi ele quem chamou «sociologia»
e civil considerando-as nas suas relações com o ambiente físico à nova ciência da sociedade. A corrente do racionalismo francês
de um povo, a sua economia, o número de indivíduos. as suas que se origina nestes autores iria mais tarde influir profunda-
crenças, costumes, modos de ser e temperamentos. O livro tem mente na Antropologia inglesa, através das obras de Durkheim,
como finalidade examinar «todas estas inter-relações; no seu dos seus discípulos e de Lévy-Bruhl, descendentes em linha
conjunto formam o que se chama o Espirito das Leis» (2). directa da tradição saint-simoniana.
Montesquieu empregou a palavra deis» com diferentes signi- Os precursores desta disciplina na Grã-Bretanha foram
ficados, mas em regra queria dar a entender por este termo «as os filósofos morais escoceses, cujas obras são típicas . do
relações necessárias que derivam da natureza das coisas» (' ), século XVIII. Os nomes mais conhecidos são os de David
quer diur, as condições que permitem, em primeiro lugar, a Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1790. Hoje em dia
existência da sociedade humana, e, em segundo lugar, a de a maioria destes autores é muito pouco lida. Eles afirmavam
qualquer tipo de sociedade. Por fa:lta de tempo não posso dis- que as sociedades eram sistemas naturais, querendo com isso
cutir este ponto de vista em pormenor, mas é importante subli- sublinhar que a sociedade deriva da natureza humana e não
nhar que Montesquieu faz uma distinção entre a «natureza» da de um contrato social, acerca do qual tanto tinham escrito
sociedade e o seu «principio»: a natureza é «o que a faz ser Hobbes e· outros pensadores. Quando falavam, pois, de mora-
o que ela é», e o principio é «O que a faz funcionar». «Uma lidade nat11ral, religião natural, jurisprudência natural e assim
é a sua estrutura particular e a outra as paixões humanas que por diante, faziam-no neste sentido.
a põem em marcha» (4). Assim dislinguia Montesquieu entre uma Se se considerarem as sociedades como sistemas ou orga-
estrutura social e o sistema de valores que nela operam. nismos naturais, elas terão de ser estudadas empírica e indutiva-
A ascendência francesa da Antropologia Social, partindo de mente. e não pelos métodos do racionalismo cartesiano. Por
Montesquieu, segue por outros escritores tais como D' Afambert. isso o título da tese de Hume de 1739 era: A Treatise of Human
Condorcet, Turgot e em geral os enciclopedistas e fisiocratas, Nature: Being an Attempt to introduce the experimental Methcd
até chegar a Saint-Simon (1760..1825), que foi o primeiro a pro- of Reasoning into Moral Subjects. Mas estes autores eram tam-
por claramente uma ciência da sociedade. Este descendente de bém sumamente teóricos e interessavam-se principalmente pelo
uma ilustre família era um personagem bastante notável. Autên- que eles denominavam «princípios gerais», o que actualmente
tico filho das Luzes, ele acreditava apaixonadamente na ciência se chamaria «leis sociológicas» (~).
Estes filósofos acreditavam também no progresso ilimitado,
que denominavam melhoramento e perfectibilidade. e nas leis
C> De L'lt1ptit. dei Loi1, editado por Oonzague Truc, ·Bditions
Oamier Frbree, s/d, p. 11.
(') lbid., p. 5.
~ lbld., p. 23. (•) Gladys Bryson, Man and Society, 1945.

30 31
ANTROPOLOGIA SOCIAL PRJMtCJAS DO DESENVOLVIMENTO TBóRJCO

do progresso. Para descobrir estas leis empregavam o método ções, a suposição de que as sociedades humanas eram siste-
que Comte haveria de chamar «comparado». Do modo como o mas naturais, a insistência em que o estudo delas devia ser
utilizavam, pressupunham que a natureza humana é fundamen- empírico e indutivo, que a sua finalidade é a descoberta e for-
ta:Jmente a mesma em todqs os lugares e em todos os tempos, mulação de princípios universais ou leis, especialmente em termos
qu~ todos os povos seguem pelo mesmo caminho e por etapas de etapas de desenvolvimento, reveladas pela aplicação do
uruformes, num gradual e contínuo avanço para a perfeição, método comparado da história conjecturaJ; sendo a sua finali-
embora uns mais lentamente que outros. dade ulterior a determinação científica de uma ética.
É indubitável que não há um conhecimento exacto das Estes investigadores são muito importantes para a história
primeiras etapas da nossa história, mas, como a natureza humana da Antropologia, porque tratam de estudar a sociedade e não
é constante, pode supor-se que os nossos antepassados viveram os indivíduos, tentando por outro lado chegar à formulação de
o mesmo tipo de vida que os Peles-Vermelhas do continente princípios gerais. Nesta tentativa os seus interesses orientavam-se
norte-americano e outros povos primitivos, quando se encontra- para as instituições, para as suas inter-relações estruturais, para
ram em condições anáfogas e num nível cultural semelhante. o seu crescimento e para as necessidades humanas que elas
Se compararmos todas as civilizações conhecidas e as ordenar- vinham satisfazer. Adam Ferguson, por exemplo, na sua obra
mos de acordo com o seu grau de progresso, é possível obter An Essay on the History of Civil Society (1767) e em outros
um esquema da evolução da história da nossa própria socie- estudos, ocupa-se dos seguintes temas: as formas de subsistência,
dade e de todas as sociedades humanas, embora não se possa as variedades da raça humana, a predisposição dos homens
saber quando e que circunstâncias suscitaram o progresso. pa? viver em sociedade, os princípios do crescimento popu-
Dugald Stewart chamou «história teórica ou conjectural» Jac1onal, as artes e as relações comerciais, a posição e as divi-
a este procedimento. É uma espécie de Filosofia da História, sões sociais.
que trata de determinar as inclinações e tendências gerais mais É evidente a importância das sociedades primitivas nos
amplas, considerando os casos particulares como meros inci- problemas que interessam a estes filósofos, e às vez.es eles uti-
dentes. Este método foi admiravelmente exposto por Lord lizaram algo do que se conhecia sobre elas na sua época, mas,
Kames nos seguintes termos: «Devemos contentar-nos com reunir em geral, o Antigo Testamento e as obras clássicas eram as suas
os factos e circunstâncias tal como podem deduzir-se das leis fontes principais de informação fora dos limites da sua cultura
dos diferentes países. Se estes elementos todos juntos constituem e do seu tempo. Na realidade, pouco se conhecia acerca das
um sistema regular de causas e efeito, podemos racionalmente sociedades primitivas, embora as viagens e descobrimentos do
inferir que o progresso foi o mesmo em todas as nações, pelo século XVI tivessem levado, já no tempo de Shakespeare, a
menos no que toca às circunstâncias capitais; os acidentes ou uma representação geral do selvagem nos cfrculos cultos. retra-
a natureza especial de um povo ou de um governo provocarão tada no carácter de Caliban. Também os autores de obras .de
sempre algumas peculiaridades» (6). política, leis e costumes começavam já a dar-se conta da grande
Uma vez que existem estas ieis de desenvolvimento e um diversidade de hábitos dos povos não europeus. Montaigne (1533-
método para as descobrir, segue-se que a ciência do homem que -1592), em particular, incluiu em muitas páginas dos seus Ensaios
estes filósofos pretendiam erigir é uma ciência nonnativa. apon- o que hoje se consideraria material claramente etnográfico.
tando para a criação de uma ética secular baseada no estudo Nos séculos XVII e XVIII os filósofos serviram-se dos
da natureza humana em sociedade. povos primitivos como prova dos seus argumentos sobre a natu-
Nas especulações teóricas destes autores do século XVIII reza da sociedade selvagem contraposta à sociedade civil, isto
já encontramos todos os ingredientes da teoria antropológica do é, ·a sociedade anterior ao estabelecimento do governo por con-
século seguinte e ainda dos nossos dias: o ênfase nas institui- trato ou aceitação do despotismo. Locke (1632-1714), especial-
mente, refere-se a estas sociedades nas suas especulações sobre
religião, governo e propriedade. Estava familiarizado com o
que se tinha escrito sobre os Peles-Vermelhas caçadores da
(") Lord Kames, Historical Law-Tracts, vol. I, p. 37, 1758. Nova Inglaterra, mas a sua informação, ao estar limitada a um

32 33
ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIM1CIAS DO DBSENVOLVIMBNTO TEóRICO

único tipo de sociedade índia americana. prejudica o seu tra- Roma e, de forma geral, sobre os povos indo-europeus; Bacbo-
balho. fen estava principalmente interessado pelas tradições e mitologias
Os autores franceses da época utilizaram o que se havia da Antiguidade Clássica; mas quem menos se preocupou com
escrito sobre os índios de São Lourenço, em especial os relatos estas sociedades foram precisamente os que se dedicaram ao
de Gabriel Sagard e de Joseph Lafitau sobre os hurões e os estudo das instituições comparadas nos primeiros tempos do
iroqueses (7), para descrever o homem em estado natural. Por desenvolvimento das sociedades históricas. e, como veremos em
seu fado, Rousseau baseia o seu retrato do homem natural no seguida, limitaram-se a abordá-las de uma maneira sociológica.
que se conhecia dos caribes da América do Sul. Os primeiros a tratar as sociedades primitivas como assuntos
Mencionei a utilização que alguns escritores dos séculos XVII de interesse académico foram McLennan e Tylor na Inglaterra, e
e XVIII fizeram da informação que se possuía dos povos pri- Morgan na América. Foram eles que pri~ei~o. sintetiza~ as
mitivos, para mostrar que o início do interesse pelas sociedades informações existentes acerca dos povos prurutivos, a partir de
mais simples tem na base a constatação de que elas constituem uma ampla gama de escritos de vária ordem, apresentando-a
um material valioso para as teorias sobre a natureza e o melho- de forma sistemática e estabelecendo assim as bases da Antro-
ramento das instituições sociais. Dai surgiria, a meados do pologia Social. Nas suas obras articula-se o estudo das socie'!8dC:S
século XIX, o que actualmente denominamos Antropologia primitivas com a teoria especulativa sobre a natureza das msti-
Social. tuições sociais.
Os autores mencionados, quer em França, quer em Ingla- Como os filósofos que os precederam, estes autores de
terra, consideravam-se e eram considerados no seu tempo como meados do século XIX estavam ansiosos por eliminar a simples
filósofos. Apesar das suas dissertações sobre o empirismo, con~ especulação teórica no estudo das instituições sociais. Também
fiavam mais na introspecção e nos raciocínios a priori que a pensaram que poderiam obter os seus propósitos mantendo-se
observação das sociedades reais. Quiçá, à excepção de Montes- estritamente fiéis ao empirismo e utilizando o mét~o compa:
quieu, para a maioria deles os factos apenas serviam para ilus- rado de forma rigorosa. Já vimos que este procedimento foi
trar ou corroborar as teorias a que haviam chegado através anteriormente empregue pelos filósofos morais sob a desi~~o
da reflexão. Só em meados do século XIX é que se fizeram de história hipotética ou conjectu.ral. Comte .deu uma .de~IIDçao
estudos sistemáticos de instituições sociais. No decénio que vai nova e mais exacta deste procedimento na sua obra mtitulada
entre 1861 e 1871 apareceu uma série de livros que hoje se Cours de Philosophie Positive (1830). Como iremos ver, uma
consideram como os nossos primeiros clássicos teóricos: Ancient vez eliminado o seu historicismo, ele veio a ser mais tarde apro-
1.Aw (1861) e Village-Communities in East and West (1871) de veitado pela Antropologia moderna no denominado método f un-
Maine; Das Mute"echt (1861) de Bachofen; IA Cité Antique cional.
(1864) de Foustel de Coulanges; Primitive Marriage (1865) de Segundo Comte, há uma relação funci.onal. entre os fa~tos
McLennan; Researches into the Early History of Manlcind (1865) sociais de diferentes espécies, que ele e Samt-Sunon denom.ma-
e Primitive Culture (1871) de Tylor; e Systems of Consanguinity vam séries de factos sociais. políticos, económicos, religiosos.
and Affinity of the Human Family (1871) de Morgan. morais, etc. Uma mudança em qualquer destas sé~ies provcx;a
Nem todos estes Jivros tratam primariamente de sociedades mudanças correspondente~ nas outras. O fim da Sociologia devia
primitivas. Maine escreveu sobre as primeiras instituições de ser estabelecer estas correspondências ou interdependências entre
uma e outra espécies de facto social. Isto pode alcançar-se
graças ao método lógico de variações concomitantes. pois ao
tratar-se de fenómenos sociais muito complexos, em que não
(') Gabriel Sagard, Le Grand Voyage du Pays des Hurons, 1632; se pode isolar variáveis simples, este é o único método adequado.
Joeeph François Lefltau, Moeurs des Sau11age1 Amériquain11 comparées Os autores que citei e os que lhes sucederam usaram e~te
aux Moeur11 de11 Premier11 Temps, 1724. Para um comentário geral da
influencia dos escritos etnográficos na Filosofia Política ver 1. L. MyrC9, método e escreveram uma séfie de grossos volumes com o fun
Presidential Adress to Sectlon H., British A1111ocfatfon for the Ad11ance- de demonstrar as leis da origem e desenvolvimento das institui-
men1 of Sclence, WlMipe1, 1909. ções sociais: o desenvolvimento do matrimónio monógamo a

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ANI'ROPOLOGIA SOCIAL PRIMtCIAS DO DESBNVOLVIMENTO TEÓRICO

partir da promiscuidade. da propriedade a partir do comunismo. near. enquanto a família emergia lentamente na forma a que
do contrato a partir do estatuto. da indústria a partir do noma- estamos acostumados. Primeiro aparece a tribo, depois a gens
dismo. da ciência positiva a partir da teologia. do monoteísmo ou clã e, por fim, a familia. A teoria de McLennan foi con-
a partir do animismo. As vezes, especiirlmente quando tratam tinuada por outro escocês, estudioso do Antigo Testamento e
de temas religiosos. as explicações são dadas. tanto em termos um dos fundadores da religião comparada. William Robertson
de origens psicológicas (o que os filósofos chamaram natureza Smith (1846-1894). que a aplicou a documentos antigos da his-
humana), como em termos de origens históricas. tória árabe e hebraica (8 ). '
Os dois tópicos favoritos para os debates eram o desenvol- Sir John Lubbock (1834-1913), mais tarde barão de Ave-
vimento da família e o desenvolvimento da religião. Os antro- bury foi um homem versátil que também traçou o desenvol-
pólogos vitorianos nunca se cansavam de escrever sobre estes vime~to do casamento moderno desde um estádio de pristina
dois temas e a apreciação de algumas das suas conclusões na promiscuidade (º) - o que constituía uma obsessão dos escritores
matéria ajudar-nos-á a entender o tom gera:l da Antropologia .da época. O produto mais complicado. e em cert_?S aspectos
daquele tempo. porque. embora discutissem violentamente entre mais fantástico do método comparado foi a construçao do advo-
si acerca do que se podia deduzir da evidência. estavam total- gado americano L. R Morgan (1818-1881). que, entre outras
mente de acordo sobre os fins e métodos perseguidos. coisas. postulou nada menos que quinze etapas para o dese_n-
Sir Henry Maine (1822-1888), escocês. advogado e funda- volvimento da família e do matrimónio, começando na pronus-
dor da jurisprudência comparada em Inglaterra. mantinha que cuidade e terminando na união monógama e na família tal
a famllia patriarcal é a forma originai e universal da vida social, como agora existe na civilização ocidental. Este seu esquema
e que o patria potestas, a autoridade absoluta do patriarca, em fantasioso do progresso foi incorporado. graças a Engels. na
que ela descansa. produziu em toda a parte uma certa fase doutrina oficial do marxismo na Rússia comunista.
agnática, ou seja. a determinação da linhagem a partir exclusi- •Ao fazer estas reconstruções, os autores utilizaram muito
vamente dos machos. Outro jurista, o suíço Bachofen, chegou a ideia a que McLennan chama «símbolos• e Tylor «sobrevi-
justamente a uma conclusão oposta sobre a torma da familia vências». As sobrevivências sociais podem comparar-se com os
primitiva; e é curioso que ele e Maine tivessem publicado no órgãos rudimentares que se encontram em alguns animais ou
mesmo ano as suas conclusões. Segundo Bachofen. primeiro com as ietras mudas das palavras: não têm uma função especí-
existiu por toda a parte um estado de promiscuidade, depois fica ou, se a possuem, ela é de segunda ordem e diferente da
um sistema matrilinear ou matriarca!. e s6 muito mais tarde original. Estes autores acreditaram .que tai~ sobrevi~ências, por
na história do homem é que este sistema deu lugar a um outro, serem relíquias de uma idade antenor, podiam servir para con-
patrilinear ou patriarca.J. firmar se uma sucessão de etapas sociais estabelecidas por crité-
Um terceiro advogado. também escocês, J. F. MoLen- rios lógicos era efectivamente uma sucessão histórica; J?Or outro
nan (1827-1881 • acreditava firmemente nas leis gerais do desen- lado, determinada a ordem dessas etapas. poder-se-ia tentar
volvimento social. embora tivesse o seu próprio paradigma das estudar as influências que provocaram a evolução de um deter-
etapas da evolução e ridicularizasse os dos seus contemporâneos. minado nível para o nivel seguinte. Por exemplo, Rober:tson
Segundo a sua opinião. os primeiros homens viviam em promis- Smith e 'Mol..ennan consideravam que o costume do ievirato
cuidade. apesar de as provas demonstrarem que em todos os indica a existência de um estado anterior da sociedade em que
.Jados o homem começou por se organizar em pequenos núoleos se praticou a poliandria. Por seu lado. Morgan opinava que a
familiares de tipo matrilinear e totémico. ligados por laços de existência de um sistema classificatório de parentesco. em que
consanguinidade. Estas hordas eram politicamente independentes úm homem chama cpai» a todos os indivíduos mac~os da ge~­
umas das outras e cada uma delas constituía um grupo exogâ- ção do pai, cmãe• a todas as mulheres da geraçao da mae,
mico por causa do costume do infanticídio feminino, que obriga
os homens do grupo a procurar mulheres noutros grupos tribais.
Estas primeiras sociedades desenvolveram com o tempo. ~r ~ Klmhlp and Marrlage ln Early A.rabla, 1885.
meio da poliandria, um sistema patrilinear em vez do matrili- ~ TM Orlgln of CMll:.atlon, 1870.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL PRJM1CIAS DO DBSBNVOLVIMBNTO TBóRJCO

«irmão» e «irmã» aos filhos de toda esta gente e «filho» e de costumes e crenças e não prestavam a devida atenção às
«filha» aos seus filhos, era uma evidência de que as relações diferenças existentes, mas devemos reconhecer em seu favor que,
sexuais nestas sociedades foram em certa altura mais ou menos ao tratar de explicar as semelhanças importantes em sociedades
promiscuas. bastante afastadas no espaço e no tempo, atacavam um pro-
Quando nos viramos para o tratamento que os antropólogos blema real e não um problema imaginário; e muitos e valiosos
do século XIX deram à religião, verificamos que aplicaram dados provieram das suas investigações. O método comparado
o mesmo método que anteriormente exemplificámos, embora permitiu~lhes separar o geral do particular e, consequentemente,
aqui, como já mencionei, haja uma mistura de especulações de classificar os fenómenos sociais.
tipo histórico e psicológico, introduzindo--se na argumentação Assim, a Morgan se deve o começo dos estudos compara-
certas suposições sobre a natureza humana. Sir Edward Tylor dos de sistemas de parentesco, que desde então têm vindo a
( 1 83~1917), muito mais cauto e crítico q ue a maioria dos seus constituir uma importante parte da investigação antropológica.
contemporâneos, que não caiu no consabido esquema das fases Por sua vez, McLennan não só reuniu uma enorme massa de
de desenvolvimento, tentou mostrar que toda a crença e culto dados para comprovar a frequência do rito de casamento por
religioso se desenvolveram a partir de certas deduções equivo- rapto nas cerimónias nupciais das sociedades mais simples, como
cadas da observação de certos fenómenos como os sonhos. também foi o primeiro a mostrar que a exogamia (foi ele quem
transes, visões, doenças, vigilia e sono, vida e morte. inventou a palavra) e o totemismo são características muito
Sir James Frazer (1 854- 1941), a cujo talento literário se comuns nas sociedades primitivas, introduzindo assim dois dos
deve a divulgação da Antropologia Social entre o público leitor, mais importantes conceitos na disciplina emergente. Correspon~
foi também um grande crente nas leis sociológicas. Postulou de~lhe também, juntamente com Bachofen, o mérito de ~er assi-
três fases de desenvolvimento por onde têm de passar todas nalado a existência de sociedades matrilineares em todas as
as sociedades: magia, religião, e ciência. No seu modo de ver, o partes do mundo e reconhecido a sua grande importância socio-
homem primitivo estava dominado pela magia, que, como a lógica, apesar de a forte corrente de opinião da sua época se
ciência. considera a natureza como «uma série de acontecimentos inclinar a favor da origem patriarcal da família. Tylor, entre
que ocorrem numa ordem invariável, sem a intervenção de om outras r~li zações, demonstrou a universalidade das crenças aní-
agente pessoal» (1°). Mas embora o mago, como o cientista, micas e introduziu o termo «animismo» no nosso vocabulário.
pressuponha a existência de leis da natureza, cujo conhecimento Frazer, por seu lado, assinalou a extensão geral das crenças
o habilita a influen.ciá-.Jas para os seus próprios fins, ele não lida mágicas e mostrou que a sua estrutura lógica podia ser reduzida,
com leis reais, mas sim com .Jeis imaginárias. No decurso do através da análise, a dois tipos elementares, isto é, magia homeo-
tempo, os membros mais inteligentes da sociedade apercebe- pática e magia por contágio; reuniu, além disso, um grande
ram-se disto, e da desilusão resultante conceberam seres ~spiri­ número de exemplos de reinado divino e de outras instituições
tuais com poderes superiores aos homens, que podiam ser e costumes, pondo-as de manifesto como padrões sociais e cul-
induzidos por meio de propiciação a alterar o curso da natureza turais amplamente disseminados.
em beneficio do propiciador. Esta é a fase da religião. Posterior- Além disso, a investigação realizada por estes antropólogos
mente descobriu-se que também isto era uma ilusão e o homem foi conduzida com um espirito muito mais critico que a dos
entrou então na 6ltima etapa do seu desenvolvimento - a fase seus predecessores. É indubitável que possufam mais conheci-
cientifica. mentos para utilizar nas suas generalizações, mas também deve-
Os antropólogos vitorianos eram homens de uma capaci- mos reconhecer que os usavam de uma forma mais sistemática
dade extraordinária, de ampla erudição e de uma integridade que os filósofos, de quem Maine se queixava dizendo: «Na rea-
evidente. Sublinhavam um tanto exageradamente as semelhança.s lidade, as investigações do jurista realizam-se actualmente tal
como se efectuavam as do ffsico e do fisiólogo antes que se
substitursse a simples suposição pela observação directa. Teorias
("). Sir J. O. Prazer, The Goldtn Bough. The Magic Art, 3.1 cd~ plausfveis e completas, mas tota~mentc inverificadas, como as
vol. 1, p. Sl, 1922. Leis da Natureza ou o Contrato Social, desfrutam de uma

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ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIM1CIAS DO DESENVOLVIMENTO TEÓRICO

preferência universal sobre a investigação séria ao iongo da mina, predomina também o sistema de parentesco feminino.
história primitiva da sociedade e das leis» ( 11). Se não se pudesse demonstrar qualquer um destes pontos, todo
As especulações filosóficas tinham pouco valor se não esta- o raciocinio se desmoronaria» (1 2 ).
vam apoiadas em provas reais. A «investigação séria» de Maine Maine também se interessou por questões sociológicas: as
e seus contemporâneos abriu o caminho para a compreensão relações da lei com a religião e a moral; os efeitos sociais da
das instituições sociais. Ao seleccionar e classificar o material codillcação da lei em várias circunstâncias históricas; os efeitos
recolhido, eles constituíram um corpo fundamental de dados do desenvolvimento de Roma como um império militar sob a
etnográficos, que até ai não existia, donde se podia extrair signi- autoridade legai do pai de familia; a relação entre o patria
ficativas conclusões teóricas e provar a sua validade. potestas e o parentesco agoático, e a evolução, nas sociedades
Outra virtude da maioria dos escritores mencionados do progressivas, da iei baseada no estatuto para a lei baseada no
século XIX era que estudavam sociologicamente as instituições, contrato. No tratamento destes problemas, Maine estava com-
isto é, analisavam-nas em função da estrutura social e não da pletamente certo ao advogar um método sociológico de análise
psicologia individual. Evitavam os raciocinios dedutivos que par- e ao condenar o que hoje se denominariam explicações psicoló-
tiam de postulados sobre a natureza humana, frequentemente gicas. iA.rgumentava que «O que a humanidade fez nos primeiros
empregues pelos filósofos, e tentavam explicar as organizações tempos não é necessariamente um mistério, mas os motivos que
em função de outras que apareciam com elas na mesma socie- guiaram os indivíduos nesses actos são-nos completamente des-
dade, nesse momento ou num período anterior da sua história. conhecidos e é impossível saber alguma coisa sobre eles. Estes
Assim, quando McLennan quis descobrir a origem da exo- esquemas dos sentimentos dos seres humanos nas primeiras épo-
gamia, rejeitou explicitamente fazê-lo por meio de um deter- cas do mundo são elaborados supondo em primeiro lugar que
minante biológico ou psicológico do tabu do incesto e tentou à humanidade faltava uma grande parte das circunstânciaS de
explicáJla por referência aos costumes de infanticidio feminino, que hoje se encontra rodeada e, depois, postulando que, nas
às inimizades de clã e às crenças totémicas. ·Por outro lado, condições imaginadas, ela manteria os mesmos sentimentos e
não procurou os fundamentos do rito de casamento por rapto preconceitos de que está animada na nossa época - embora,
na natureza humana, mas antes mostrou como se pode rela- de facto, esses sentimentos pudessem ter sido criados ou engen-
cioná-lo com leis exogâmicas e como poderia ser a sobrevivên- drados por aquelas mesmas circunstâncias que, por hipótese,
cia de um acto de rapina. Do mesmo modo, sugeriu como o a humanidade deixou de possuir» ('1ª).
sistema patrilinear pôde derivar do sistema matrilinear através ·Por outras palavras, as instituições primitivas não podem
da combinação dos costumes de poliandria e patrilocalidade; ser interpretadas em termos da mentalidade do investigador civi-
e como a adoração de deuses animais e vegetais, seus símbolos lizado que as estuda, porque a sua mentalidade é o produto
e sua relação hierárquica, entre Judeus, na índia, na Antiga de um diferente conjunto de instituições. Pensar de outro modo
Grécia e em Roma, poderia ter-se desenvolvido a partir do é cair no que se chama o csofisma dos psicólogos», que foi
totem.ismo e de uma estrutura totémica de tribos. frequentemente denunciado por Durkheim, Lévy-Bruhl e outros
McLennan aderiu rigidamente à tese de que as instituições sociólogos franceses.
sociais são 'funcionalmente interdependentes. Por exemplo, diz- Não quero com isto sugerir que as teorias destes antropó-
-nos que cpara explicar totalmente a origem da exogamia há logos vitorianos fossem correctas. Na sua maioria, elas não
que reconhecer que onde esta imperava também existia o tote- podem ser aceites por nenhum estudioso dos nossos dias; algu-
mismo; onde este existe imperam, por sua vez, as inimizades mas delas, inclusivamente, são absurdas não só para os nossos
de clã; onde existem inimizades de clã, há a obrigação religiosa conhecimentos actuais, como também para a época em que
da vingança; onde prevalece a obrigação religiosa da vingança, foram concebidas. Nem pretendo defender o método de inter-
prevalece também o infantic1dio das fêmeas; onde este predo-

('º) S1udie1 in Anciel!I Hisrory (Segunda S6rie), p. 28, 1896.


<!") Ancienl Law, cd. 1912, p. 3. ('') Ancient Law, e<J: 1912, pp. 266-7.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIM1CIAS DO DESENVOLVIMBNTO TBóRICO

pre~ção. Estou meramente a tentar vaiorar o significado destes Mankind; Sir Jones Lubbock escreveu The Origin of Civilization
e~cntores para a .compreensão da Antropologia Social dos nossos e os ensaios de McLennan reuniram-se em dois volumes intitu-
~as. ·Para apreciar os autores em questão e o seu significado, lados Studies in Ancient History.
nao devemos esquecer as mudanças sociais produzidas na Europa Não deve surpreender-nos que estes autores ~usassem estar
nessa época. ~tas mud~ças atraíram a atenção de muitos pen- a escrever História, pois todo o conhecimento da época era de
~d.ores, espec1aimente filósofos da história, economistas, esta- carácter essencialmente histórico. A orientação genética, que deu
~bcos, para o papel das massas na história, procurando unifor- frutos imprevisíveis na Filologia, utilizava-se para a legislação,
mtd~d~ ,e constantes universais, e deixando para segundo plano teologia, economia política, filosofia e ciência (13). Havia por
os J.?di~1d~<?_S e os acontecimentos particulares (1'). O estudo toda a parte uma paixão pela descoberta da origem de todas
d.as mstitwçoes adequava-se facilmente a esta perspectiva, espe- as coisas: a origem das espécies, da religião, das 1eis, e assim
cialmente quando a~ institui~es eram as dos homens primitivos, por diante. Este desejo era quase uma obsessão por explicar
porque aí ~ó se podi~m conJecturar as linhas gerais e a direcção sempre o mais próximo através do mais remoto (16).
da evoluçao, mas nao a parte correspondente aos indivíduos Mencionarei brevemente algumas das objecções mais impor-
ou a acontecimentos acidentais, uma vez que estes não podiam tantes ao método utilizado nestas tentativas de explicar as insti-
ser rCC?nstruídos pelo método comparado ou por qualquer outro. tuições pela reconstrução da sua evolução a partir das origens
Ainda que os antropólogos do século XIX encarassem supostas, porque é importante compreender a razão pela qual
alguns problemas como os investigadores dos nossos dias, estu- os antropólogos sociais em Inglaterra se afastaram do tipo de
davam outros de um modo tão diferente que é difícil ler as interpretações estabelecidas pelos seus predecessores.
su~s conclusões teóricas sem irritação; e às vezes não podemos Creio que na actualidade estamos todos de acordo em que
d~~r de no.s. sentir embaraçados perante o que parece comp1a- uma instituição não pode compreender-se e muito menos expli-
cenc1a.. A_ dificuldade para os compreender reside, em parte, car-se em função das suas origens, quer estas sejam consideradas
nas vanaçoes que se produziram nas palavras utilizadas. O pro- como princípios, causas, ou, simplesmente, num sentido lógico,
gr~so do . conhecimento originou uma mudança geral de orien- como as formas mais simples dessa organização. O desenvol-
taçao, assim como alterações no significado dos conceitos. Não vimento de uma instituição e as circunstâncias eni que se produz
devemos esquecer que naquela época se sabia muito pouco constituem, na realidade, uma boa ajuda para a entender, mas
das socie.dades _primitivas e que aquilo que se tomava por factos o conhecimento da sua história, por si só, não é suficiente para
est~~lecidos ~~o passava de meras observações superficiais ou nos explicar como ela actua na vida sociat Saber como chegou
0~1?1oes parc1a1s. Contudo, é evidente que a forma como se a ser o que é. e saber como funciona , são duas coisas düerentes,
utihzava o método comparado para as reconstruções históricas uma distinção de que me ocuparei nas minhas próximas con-
levou a. cooc:Jusões indesculpáveis e totalmente inverificáveis. ferências.
Os mvestiga~ores. do ~écul? passado consideravam que esta- Mas, no caso destes antropólogos do século XIX, verifica-se
~am a escrever História, Históna do homem primitivo, e estavam que não nos oferecem uma História crítica, nem sequer do
mteressa.dos nas sociedades primitivas não tanto por si mesmas, modo como ela era concebida em meados do século passado.
mas mais _pelo uso que delas se poderia fazer nas hipotéticas A História ainda era então uma arte füerária que distava muito
recon~truçoes dos começos da história da humanidade e, em do estudo sistemático das fontes, como é hoje considerada.
especial. das suas instituições. Assim, a obra de Maine A.ncient Mesmo nesses tempos a História estava pelo menos baseada
Law t~m por s~btítulo Its Connection with the Early History no estudo de monumentos e documentos que não permitiam de
o/ Society•. and 1ts R_elation to Modern Ideas; o primeiro livro
de Tylor tmha por titulo Researches into the Early History o/
(") Lord Acton, .A Lecture on lhe Study o/ History, pp. 56-58,
1895.
(") G. P. Ooôch, History and Historiam in lhe Nineteenth Century (") March Bloch, Apologie pour L'Hisloire ou Mltier d'Historien,
Cap. XXVIII e segs., 1949. ' p. 5, 1949.

42
. .
' (
ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIMtCIAS DO DESBNVOLVIMBNTO TBóRICO

ne!lh~ modo averiguar a evolução das instituições do homem instituições dos povos primitivos é desconhecida, o seu estudo
prumtivo. Neste aspecto, a reconstrução histórica devia ser quase sistemático de como vivem agora deve preceder qualquer ten-
totalmen~ _conjec!ural, e a maior pa~ das vezes não passava tativa de adivinhar como apareceram e progrediram. Também
de supos1çoes nuus ou menos plausíveis. Se considerarmos que mantemos que o modo como se originaram e progrediram é,
o homem descende de a1gum tipo de criatura simiesca, pode ser em todo o caso, um problema que, embora relevante para a
razoável supor que em algum momento da sua história as reia- questão de saber como funcionam em sociedade, se revela como
~. ~xuais foram, em certa medida, promiscuas e tem sentido um problema distinto que deve ser separadamente investigado
mqwnr como se passou desse estádio ao casamento monógamo. por meio de uma técnica diferente.
Mas as presunções e reconstruções dessa evolução são pura- Por outras palavras, enquanto a Antropologia Social e a
mente especulativas. Não são História. Etnologia eram consideradas como uma única disciplina pelos
O método comparado, mesmo quando meramente utilizado investigadores do sécufo XIX, na actualidade são encaradas corno
para estabelecer correlações, sem tentar dar-'1hes um valor cro- duas disciplinas diferentes.
nológico, tinha, quando aplicado às instituições sociais, sérios A segunda diferença para que quero chamar a vossa aten-
inconvenientes que nem mesmo o saber e a habilidade de Tylor ção, só agora parece emergir claramente na Antropologia.. Na
ou os métodos estatísticos que ele tomou em seu apoio podiam minha primeira conferência referi-me à diferença entre cultura
superar. Os factos submetidos à análise eram geraimente insu- e sociedade. Esta distinção quase não existia para os antropóio-
ficientes ou inexactos, e eram frequentemente isolados dos con- gos do século passado. Se a tivessem feito, a sua maioria teria
textos s?ciais a que pertenciam e que ihes davam signüicado. olhado para a cultura. e não para as relações sociais, como o
Afém disso, tratando-se de fenómenos sociais complexos, era objecto das investigações; e a cultura era para eles algo de
extremamente difícil, senão impossível, estabelecer as unidades concreto. Consideravam a exogamia, o totemisrno, a matriiinea-
que deveriam submeter-se à análise pelo método das variações ridade, o culto dos antepassados, a escravatura, e assim por
~ncomitantes. É fác~ averiguar ·a frequência com que o tote- diante, como costumes - coisas - e consideravam o seu traba-
JDJsmo aparece associado ao clã, mas é muito dificil definir lho como uma investigação desses costumes ou coisas. Conse-
«totemismo» e «clã» para o objecto que· se propõe a investiga- quentemente, os seus conceitos tinham de suportar sempre uma
ção. É ainda mais dificil dar uma definição exacta de conceitos carga de reaHdade cultural tão pesada que a análise comparativa
tais como: «propriedade», «crime», «monogamia», «democracia», estava anulada desde o principio.
«escravidão» e muitos outros termos. Só em fins do século passado os investigadores começaram
Outra dificuldade nestas investigações, complicada pela dis- a classificar as sociedades de acordo com as suas estruturas
seminação das instituições e ideias, era decidir o que devia con- sociais, em vez de se basearem nas culturas, dando assim o
siderar-se como exemplo de uma manifestação de um facto primeiro passo essencial para que os estudos comparados se
social. .Oeve, por exemplo, a existencia de poligamia no mundo pudessem revelar de utilidade. Na actualidade, além de estar
muçulmano computar-se como uma ou várias manifestações de separada da Etnologia, a Antropologia Social precisou que a
poligamia? As instituições padamentares derivadas e modeladas sua finalidade é ocupar-se mais das relações sociais que da cul-
do sistema britânico, em numerosas regiões do mundo, consti- tura e, portanto, pôde apreciar mais olararnente os seus proble-
tuem um ou distintos exemplos de Parlamento? mas e traçar um método de investigação. Este método é ainda
A parf:ir do que eu disse, ver-se-á claramente agora que a comparado, mas é empregue com outro propósito, de maneira
Antropologia · do século passado diferia da actual em dois diferente e para comparar objectos diferentes.
as.P_CCt~s _m_uito importantes. No passado, tratava de interpretar Par.i lá destas diferenças de método, sente-se que se está
as mstitwçoes, mostrando como elas se podiam ter originado e moralmente afastado dos antropólogos do século passado - eu,
as etapas que seguiram no seu desenvolvimento. Deixaremos pelo menos, tenho essa sensação. Estes investigadores eram libe-
para mais adiante o problema da relevância da evolução histó- rais e racionalistas e acima de tudo acreditavam no progresso,
rica para a investigação sociológica, nos casos em que a histó- quer dizer, nas mutações materiais, politicas, sociais e filosóficas,
ria é conhecida. Muitos de nós pensamos que se a história das que se estavam a produzir na Inglaterra vitoriana. Industrialismo,

44 45
ANTROPOLOGIA SOCIAL PRIMtCIAS DO DESENVOLVIMENTO TEóRICO

democracia, ciência, e assim por diante, eram coisas boas em si ções tipológicas como sendas históricas e inevitáveis de desen-
mesmas. Consequentemente, as explicações que esboçaram para vol"'._imento. <;on;io ~?derá ver-se facilmente, a combinação das
as instituições sociais, ao serem criticamente examinadas, ficam noçoes de lei científica e de progresso leva, na Antropologia,
somente reduzidas a escalas hipotéticas de evolução, em cujo co~o na Filosofia da História, a postular etapas forçosamente
extremo superior se acham as formas das instituições ou crenças uniformes, cuja suposta inevitabmdade lhes confere um carácter
existentes no século XIX na Europa e na América, e em cujo normativo. Naturalmente, os que opinavam que a vida social
extremo inferior se encontram as suas antíteses. Procedeu-se se P?de reduzir a fois científicas chegaram à conclusão de que
depois a uma ordenação das etapas de desenvolvimento para os ttp?s semelhantes. d~ instituições devem ter sido originados
mostrar o que tinha sido, :logicamente, a história da transição a .Partir de _formas sui:t'la~es e estas de protótipos análogos. Na
de um para o outro extremo dessa escala. A única coisa ·que mmha próXJma conferencia voltarei a abordar este ponto e a
se poderia ainda fazer era enfrascar-se na literatura etnológica sua relação com a Antropologia Social actual.
à caça de exemplos para ilustrar cada uma destas etapas. Apesar
de toda a sua insistência no empirismo e na necessidade do
estudo das instituições sociais, os antropólogos do século XIX
eram apenas um pouco menos dialécticos, teóricos e dogmá-
ticos do que os filósofos rurais do século anterior, ainda que
se preocupassem em sustentar as suas construções com uma
certa riqueza de evidência factual, o que era tota-lmente estranho
aos filósofos morais.
Actualmente, não estamos muitos seguros dos vafores que
eles aceitavam. O abandono da elaboração de estádios de desen-
volvimento, que tanto os ocupou, e a orientação para estudos
indutivos e funcionais das sociedades primitivas, devem ser atri-
buídos, em parte, ao crescimento do cepticismo a respeito das
mudanças produzidas no século XIX, e às dúvidas que sobre
elas surgiam, isto é, se constituíam ou não um progresso real.
Por outro lado, pese à opinião de muitos dos que se dedicam
à Antropologia Cultural, há que reconhecer que esta disciplina
moderna, encarada no seu aspecto teórico, é conservadora: inte-
ressa--se mais pelo que origina equillbrio e integração na socie-
dade, que pela confecção de escalas e etapas de progresso.
Contudo, creio que a principal causa de confusão entre os
antropólogos do século XIX não deve atribuir-se tanto à sua
fé no progresso. Tão-pouco me parece que se deva atribuí-fa ao
facto de terem procurado um método para determinar a forma
como ele se havia materializado, pois sabiam perfeitamente que
os seus esquemas eram simples hipóteses que não podiam ser
verificadas final e totalmente. Penso que a origem dessa inter-
pretação errónea deve procurar-se na crença, herdada da época
do Iluminismo, de que as sociedades são sistemas naturais ou
organismos que têm necessariamente uma forma de evolução
redutivel a princípios gerais ou leis. As conexões ·lógicas apre-
sentavam-se, portanto, como reais e necessárias e as classifica-

46 47
III

DESENVOLVIMENTO TEóRICO POSTERIOR

Na minha última conferência referi-me às principais carac-


ttrísticas dos escritores dos séculos XVIII e XIX, que, de uma
maneira ou outra, se ocuparam das instituições sociais segundo
um critério antropológico. Em ambos os séculos, a aproximação
a estas matérias era naturalista, tinha urna intenção empírica
no domínio da teoria, senão mesmo no da prática, inclinou-se
para as generalizações e sobretudo para o método genético.
Esses autores estavam dominados pela ideia do progresso, isto
é, pela melhoria evolutiva dos modos e costumes da rudeza para
a cortesia. da selvajaria para a civilização. E o método de
investigação que elaboraram - o método comparado - foi prin-
cipalmente utilizado pata reconstruir o hipotético curso deste
desenvolvimento. Aqui reside justamente a diferença entre a
Antropologia actual e a do passado.
Nos fins do século XIX surgiu uma reacção contra as
tentativas de interpretação das instituições sociais mediante uma
reconstrução do passado, isto é, contra a pretensão de expJicar
o pouco que se conhecia através do que se desconhecia quase
por completo. Este movimento mostrou-se particularmente orien-
tado contra os esquemas de desenvolvimento paralelo, teorica-
mente considerados como idealmente unilineares, que tinham
estado muito em voga. Esta Antropologia genética, também
frequente e incorrectamente chamada Antropologia Evolucio-
nista. foi remodelada e apresentada sob um aspecto diferente

49
ANTROPOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIMBNTO TBôRICO POSTERIOR

nos escritos de Steinmetz, Nieboer, Westermarck, Hobhouse. (1), pre uma função de catarsis, imprecativa ou estimulante. O avanço
e outros, mas apesar disso perdeu finalmente todo ~ seu atracbvo. de várias psicologias experimentais modernas demonstrou que
Alguns antropólogos inclinaram-se então, em mru~r ou men:or todas estas interpretações eram confusas, estavam fora do lugar,
grau, para a Psicologia, que nesse momento parecia proporcio- ou não tinham sentido. Contudo, alguns investigadores, espe-
nar soluções satisfatórias a muitos dos seus problemas, sem os cialmente na América, não se desanimaram pela sorte dos seus
obrigar a recorrer à história hipotética. Contudo, pretender predecessores e tentam actualmente expor as suas descobertas
basear a Antropologia Social na Psicologia é como tratar ?e nessa mistura de Psicologia comportamentista e psicanalítica que
construir uma casa sobre areias movediças, quer naquelas cir- se denomina Psicologia da person~Jidade ou Psicologia de moti-
cunstâncias, quer nas actuais. . vações e atitudes.
Na orientação geral da teoria antropológica dos sé- Há várias e específicas objecções a cada uma destas suces-
culos XVffi e XIX, há um fundo de conjecturas psicológicas, sivas tentativas de explicação dos factos sociais através da psi-
mas embora as suposições sobre a natureza humana fossem cologia individual; e há uma objecção comum a todas elas.
inevitavelmente produzidas pelos escritores da época, eles não A Psicologia e a Antropologia Social estudam diferentes tipos
sugeriam que os costumes e as institui.ções pud~e~. ser .enten- de fenómenos e o que estuda uma delas não pode ser com-
didos em função dos sentimentos e impulsos 10d1v1d~a1s: Ao preendido em função das conclusões alcançadas pela outra. A Psi-
contrário como vimos, rechaçaram muitas veres essa 1de1a de cologia estuda a vida individual e a Antropologia Social estuda
forma e~plícita. Deve recordar-se que então não existia n~da a vida social. A Psicologia estuda os sistemas ps'Iquicos e a
que merecesse o nome de Psicologia experimental, e assu~, Antropologia Social os sistemas sociais. O psicólogo e o antro-
quando antropólogos mais recentes, como Tylo~ e Fra~er, qu~­ pólogo social acham-se aparentemente perante os mesmos actos
seram recorrer à Psicologia, para uma certa a1uda, foi à Psi- de comportamento, mas uma análise mais profunda revela que
cologia associacionista que recorreram; e, qu?ndo este ti~o de eles os estudam em distintos planos de abstracção.
Psicologia passou de moda, eles acharam-se tmersos, nas mter- Tomemos um exemplo muito simples: um homem levado
pretações intelectualistas já superadas q~e dela ~xtr~ram. Pos- a tribunal por causa de um crime é declarado culpado por um
teriormente, esta situação voltou a repetir-se ao finalizar o auge júri de do:re homens e sentenciado pelo juiz para ser punid?.
da Psicologia introspectiva. Penso especialmente em trabalhos Os factos de significado sociológico são neste caso a extstência
realizados por Marett. Malinowski . e outros em lng!aterra e de uma lei, as diversas instituições e processos iegais postos em
Lowie, Radin e alguns mais na Aménca (2), sobre maténas como jogo por essa lei e a acção da sociedade política que castiga
religião, magia, tabus e feitiçaria. Todos estes autores, de ~m o criminoso por intermédio dos seus representantes. Ao longo
modo ou outro, trataram de explicar o comportamento soc~al do processo. os pensamentos e sentimentos do acusado, dos
perante o sagrado em função de sentimentos ou estados etno~10- jurados e do juiz variam em espécie e grau no tempo, assim
nais: ódio, cobiça, amor, medo, terror, assombro, um sentido como diferem as suas idades, a cor dos seus cabelos e olhos,
do misterioso ou extraordinário, admiração. projecção ~a v~n­ mas estas variações não têm importancia, pelo menos de forma
tade, e assim por diante. Este comporta~ento surg~ em. s1tuaçoes imediata, para o antropólogo social, pois ele não se interessa
de tensão emotiva, frustração ou intensidade emoc1ona1s, e cum- pelos actores do drama como entes individuais, mas sim como
pessoas que desempenham certos papéis no pr~so. de justiça.
Pelo contrário, para o psicólogo, que estuda os mdivíduos. os
(') S. R . Steinmetz, Ethnologbche Studien ~ur ersten Entwlcklung sentimentos, motivos, opiniões, etc., dos actores, estes elementos
der Strafe, 1894; H. 1. Niebor, Slavery as an Industrial System, 1900; são de importância primordial e o processo legai e procedimentos
Edward Westermarck, The Origin and Development of the Moral Jdeas, particulares de interesse secu!1dário: Esta di~ti?ção essencia! e~tre
1906· L T Hobhouse, Morals ln Evolution, 1906. a Psicologia e a Antropologia Social const1tu1 um ponto hmmar
'~)· R. · R. Marett, The Threshold of Religion, 1909; B. Malinowski,
«Magic Science and Religion», Scfence, Religion and Reality, 192.5; para o estudo desta. Estas duas disciplinas só podem ter uma
R, H. Lowel, Primltive Re/lglon, 192.5; Paul Radln, Social Anthropology, utilidade mútua - que pode ser bastante grande - se cada uma
1932. delas prosseguir independentemente a sua própria investigação

so Sl
ANTROPOLOGIA SOCIAL DESBNVOLVIMENTO TBôRICO POSTERIOR

sobre os seus próprios problemas e segundo os seus métodos e só dificilmente se poderia citar como prova de alguma lei
especificos. de evolução.
Quanto às denominadas teorias evolucionistas da Antropo- A Antropologia difusionista ainda predomina nos Estados
logia do século XIX. pondo de parte as críticas implicadas na Unidos. Em Inglaterra teve uma influência pouco duradoira,
atitude dos investigadores preocupados em interpretar psicologi- não só pelo uso indiscriminado que dela fizeram Elliot Smith,
camente os costumes e crenças e que as ignoraram voluntaria- Perry e Rivers (ª), como também porque as suas reconstruções
mente, elas viram-se atacadas de duas direcções diferentes, a estavam igualmente fundadas em hipóteses que eram tão difíceis
partir da teoria difusionista e da funcionalista. de verificar como os esquemas genéticos que atacava. Os antro-
pólogos funcionalistas, que passarei a examinar, opinavam, por
As objecções dos que se deram a conhecer como antropó-
seu fado, que as discussões entre evolucionistas e difusionistas
logos difusionistas estavam baseadas no facto evidente de que
não passavam de uma simples rixa familiar entre etnólogos, que
a cultura é frequentemente tomada de outros e não emerge em não lhes dizia respeito.
formas similares em sociedades diferentes por crescimento espon- A objecção funcionalista a ambas as teorias é que as suas
tâneo, devido a certas potencialidades sociais comuns e à natu- reconstruções eram meras suposições e que tentavam explicar
reza humana comum. Nos casos em que se conhece a origem a vida social em função do passado. &te não é o método
e desenvolvimento, seja no campo da tecnologia, da arte, do empregue pelos cientistas da natureza, em cuja categoria se
pensamento, seja no do costume, verificamos quase invariavel- incluem a si próprios a maior parte dos investigadores funciona-
mente que não apareceu independentemente num certo número Jistas - e isto quer direr a maioria dos antropólogos sociais
de culturas de diferentes lugares e épocas, mas sim que surgiu ingleses . .Para entender como funciona um aeroplano ou o corpo
no seio de uma única comunidade, num só sítio, e num momento humano, tem de se estudar o primeiro à foz das leis da mecâ-
determinado da sua história, espalhando-se depois, total ou par- nica e o segundo à luz das leis da fisiologia. Não se necessita de
cialmente, por outros povos. Examinando o problema mais pro- saber a história da aeronáutica ou a teoria da evolução biológica.
fundamente, verifica-se que só houve um número limitado de Do mesmo modo se pode estudar uma língua sob vários aspectos:
centros de desenvolvimento e difusão cultural com importância. gramática, fonética, semântica e assim por diante, sem que seja
Além djsso, que no processo de imitação e incorporação noutras imprescindível conhecer a história das palavras. o que corres-
culturas os traços difundidos podem sofrer toda a espécie de ponde à filologia, um ramo diferente da linguística. Analoga-
modificações e mudanças. Uma prova disso é que todos os mente, a história das actuais instituições legais inglesas só pode
inventos de cuja história temos provas fidedignas se difundiram indicar-nos como chegaram ao seu estado presente, mas não
quase invariavelmente deste modo. Por isso, quando encontramos como funcionam na nossa vida social. Para entender como f un-
artefactos, ideias e costumes similares entre povos primitivos cionam, é necessário um estudo conduzido segundo os métodos
de diferentes partes do mundo, é bastante lógico supor que, ana- experimentais das Ciências Naturais. Os estudos históricos e os
logamente, estes se difundiram a partir de um número limitado estudos das Ciências Naturais constituem diferentes tipos de
de centros de progresso cultural, ainda que como prova não estudo, ~m distintos objectivos, métodos e técnicas. Tentar
haja mais do que as implicadas nas similaridades e na distri- prosseguir os dois ao mesmo tempo só pode provocar um estado
buição geográfica, especialmente se os traços forem bastante de confusão.
complexos e se se apresentarem também associados. No estudo das sociedades primitivas compete ao historiador
J:: evidente o impacto deste raciocinio sobre as teorias gené- dos povos primitivos, ao etnólogo, descobrir, se pode, como
ticas dos antropólogos do século passado, que se viram grande- chegaram as instituições ao estádio em que se encontram. Por
mente desacreditadas pela sua força lógica. Uma vez que, se
se pudesse demonstrar que, devido a circunstâncias históricas,
uma sociedade adoptou uma instituição de outro povo, dificil- ~ O. Blliot Smith, The Ancient Egyptian1, 1911; W. 1. Perry, The
mente se poderia considerar que essa instituição é consequência Children1 o/ the Sun, 1923; W. H. R. Rlvcrs, The History o/ Melaneslan
do desenvolvimento natural e inevitável das que a precederam Society, 1914.

52 53
ANTROPOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIMBNTO TBóRICO POS'f.BRIOR

outro lado, é trabafüo do cientista, isto é, do antropólogo social, exemplo, a cultivar e preparar os seus próprios alimentos, mas
descobrir que funções desempenham elas nos sistemas sociais a antes a adquiri-los com a remuneração que recebem pelo desem-
que pertencem. Quer dizer, o historiador, ainda que tendo à sua penho dos seus deveres; e, a'lém disso, se há uma organização
disposição as melhores fontes de documentação possíveis, só política que mantém a lei e a ordem, para que eles possam
pode assinalar qual foi a sucessão de factos acidentais que cumprir com segurança as suas funções; e assim por diante.
modelaram a sociedade tal como ela é na actualidade. Estes Tudo isto é tão evidente que já nas primeiras reflexões
acontecimentos ou factos não podem ser deduzidos de princí- filosóficas sobre a vida social se encontram, de uma ou outra
pios gerais, nem se obtêm por um estudo dos acontecimentos. forma, as ideias de sistema social, estrutura social, papéis sociais,
Em suma, os antropólogos do século XIX incorriam em duas e funções sociais das instituições. Sem remontarmos a autores
faltas graves: estavam empenhados em reconstruir a história mais antigos que os mencionados na minha conferência anterior,
sem os materiais adequados para o fazer, e tentavam estabelecer podemos verificar que os conceitos de estrutura e função apa-
fois sociológicas por um método que não conduz a essas des- recem em Montaigne quando emprega os termos bastiment e
cobertas. A aceitação geral desta posição. separa a Antropologia liaison nas suas considerações sobre a Iei e o costume em geral.
Social da Etnologia e dá à Antropologia Social a sua actual Compara estes a uma «estrutura de diferentes peças, de tal
autonomia no vasto estudo do homem. maneira unidas que é impossível afectar uma delas sem que todo
Com estas proposições, os antropólogos sociais querem dar o corpo se ressinta» ('). O mesmo conceito de sistema social,
a entender que as sociedades são sistemas naturais formados por que inclui a ideia de função social, está igualmente presente
elementos interdependentes, preenchendo cada um uma necessi- na discussão de Montesquieu sobre a natureza e princípios dos
dade no complexo de relações necessárias à manutenção do diferentes tipos de sociedade, em que fafa da estrutura da socie-
conjunto. Pressupõem que a vida social é susceptível de ser dade e das relações entre as suas partes. ·
reduzida a leis científicas, o que permite a previsão. Há aqui Este mesmo pensamento figura também, em maior ou menor
várias proposições. As duas proposições básicas que examinarei grau, em todos os filósofos do século XVIII que escreveram
em seguida podem ser resumidas nestas afirmações: as socie- sobre as instituições sociais. Nos principios do século XIX.
dades são sistemas; tais sistemas são sistemas naturais que podem Comte enuncia-o olaramente. Encontramo-Jo também em todos
reduzir-se a variáveis, com o corolário de que a sua história os escritores de Antropologia do século, ainda que subordinado
é irrelev:ante para um estudo da sua natureza. aos conceitos de origem, causas e etapas de evolução, e nem
'.É óbvio que na vida social há algum tipo de ordem, consis- sempre explicitamente formulado. Nos fins do século passado,
tência e constância. Se não o houvesse, nenhum de nós poderia e especialmente no nosso século, deu-se um ênfase muito par-
tratar dos seus assuntos ou satisfazer as suas necessidades mais ticular ao conceito, em harmonia com a orientação geral do
elementares. '.É também evidente que esta otdem é produzida pensamento. Tal como anteriormente foi dominante a aborda-
pela sistematização ou institucionalização das actividades sociais, gem genética em todos os campos do conhecimento, agora encon-
para que determinadas pessoas desempenhem nelas determina- tra-se por toda a parte uma orientação funcionat Há uma
dos papéis e para que essas actividades cumpram certas funções Biologia f unciona1, uma Psicologia funcion&l, um Direito fun-
na vida social geral. Tomemos um exemplo que já anteriormente cional, uma Economia funcional, etc., assim como, a seu lado,
utilizámos - num Tribunal o juiz, os jurados, os advogados, os uma Antropologia funcional.
empregados, os polícias e o acusado têm papéis específicos a Herbert Spencer e Emile Durkheim foram os dois autores
cumprir e a acção do Tribunal como um todo tem as funções de que mais especificamente chamaram a atenção dos antropólogos
determinar a culpa e castigar o crime. Os indivíduos que ocu- sociais para a análise funcional. Os trabalhos filosóficos de
pam esses postos podem variar de caso para caso. mas a forma
e a função da instituição são constantes. Também é óbvio que
o juiz, os advogados, os empregados e os polícias só podem
(') De la Coustume et de ne Changer aisément une Loy Receüe,
desempenhar as fun~ões profissionais que •lhes correspondem se Ensaios, Nouvelle Revue Française, Biblioth~que de la Pl6iade, p. 132,
existe alguma organiiação económica que não os obrigue, por 1946.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL DESBNVOLVIMBNTO TEôRICO POSTERIOR

Herbert Spencer (1820-1903) são muito pouco lidos na actuali- que a fala e subsistirá depois da sua morte. A única coisa que
dade, mas durante a sua época exerceram uma grande influên- o indivíduo faz é aprender a falá-la, do mesmo modo que os
cia. Spencer assemelha-se a Comte na sua versatilidade; ambos seus antecessores no passado e os seus descendentes no futuro.
aspiraram a dominar todo o conhecimento humano, para erigir Este é um facto social sui generis, que só se pode compreender
dentro dos seus limites uma ampla ciência da sociedade e da em relação com outros factos da mesma ordem, isto é, como
cultura, isto é, o que Spencer denominou o superorgânico (~). uma parte do sistema social e em função do papel que lhe corres-
Para ele, a evolução da sociedade humana (mas não necessaria- ponde na manutenção do próprio sistema.
mente das sociedades particulares) é uma continuação natural Os factos sociais caracterizam-se pela sua generaHdade, pela
e inevitável do desenvolvimento orgânico. Os grupos tendem sua transmissibilidade e pela sua obrigatoriedade. Em regra,
sempre a ampliar o seu tamanho e, por conseguinte, aumentam todos os membros de uma sociedade têm a mesma maneira de
a sua organização e, deste modo, aumentam também a sua inte~ viver, os mesmos costumes, língua e normas morais, desenvol-
gração, pois quanto maior seja a diferenciação estrutural, tanto vendo-se todos dentro do mesmo quadro de instituições legais,
maior será a interdependência das partes do organismo social. políticas e económicas. O seu conjunto forma uma estrutura mais
A utilização da analogia bioiógica do organismo por Spencer, ou menos estáve.l, que persiste com as suas características essen-
embora perigosa como veio a verificar-se, ajudou muito a esta- ciais durante longos períodos de tempo e que se transmitem de
belecer na Antropologia Social os conceitos de estrutura e fun- geração em geração. Os indivfduos passam apenas através da
ção. Spencer não se cansava de repetir que em cada fase da estrutura. Não nascem com ela e não morrem com ela, pois
evolução das sociedades há uma interdependência funcional neces- não é um sistema psíquico, mas um sistema social, com uma
sária entre as suas instituições, as quais, para subsistir, devem consciência colectiva totalmente diferente da individual. A tota-
tender para um estado de equilíbrio. E le foi também um grande lidade dos factos sociais que compõem a estrutura é obrigatória.
advogado das ieis sociológicas, quer estruturais quer genéticas. O indivíduo que não os respeita sofre sempre castigos e é ferido
As obras de Emile Durkheim (1858-1917) exerceram uma de incapacidades de tipo iegal ou moral. Regra geral. ele não
influência mais ampla e directa sobre a Antropologia Social. tem nem o desejo nem a oportunidade para .fazer outra coisa
Este investigador ocupa efectivamente um lugar de excepção na além de conformar-se. Uma criança nascida· em França de pais
história da Antropologia, devido às suas teorias sociológicas franceses só pode aprender francês e não tem vontade de pro-
gerais, que, com a colaboração de um grupo de aiunos e colegas ceder doutra maneira.
de talento, aplicou com notável penetração ao estudo das socie- Ao sublinhar a singularidade da vida social, Durkheim foi
dades primitivas('). muito criticado por ter sustentado a existência de uma menta-
Em poucas pa·tavras podemos definir assim a posição de lidade colectiva. Ainda que os seus escritos sejam às veus um
Durkbeim: os factos sociais não podem interpretar-se em função tanto metafisicos, chega-se à conclusão de que jamais concebeu
da psicologia individual, quanto mais não seja porque se encon- uma tal entidade. Pelo que denominou «representações colec-
tram fora e separados das mentes individuais. A língua, por tivas», queria designar o que em Inglaterra seria um corpo
exemplo, _já existe antes de que nasça um individuo na sociedade comum de valores, crenças e costumes que um indivíduo nascido
numa sociedade aprende, aceita, emprega como padrão de vida
e, logo, transmite. O seu colega Lucien Uvy-Bruhl (1857-1939)
realizou um brilhante estudo do conteúdo ideológico destas
(') The Study of Sociology, 1872; The Principies of Sociology,
1882-3. representações colectivas numa série de 'livros que, apesar de
(') As suas obras mais conhecidas são: De la Division du Travai/ bastante mal interpretados e muito criticados pelos antropólogos
Social: lttude sur L'organisatlon des Societés Supérieures, 1893; Les britânicos, tiveram uma influência considerável em Inglaterra (1) .
Rêgles de la Méthode Sociologique, 1895; Le Suicide: Ittude de Socio/ogie,
1897; o Les Formes E/émentaires de la Vie R'ligieuse; Le Systême
Totémlque en Austral/e, 1912. Ver tamb6m uma s6rie de artigos e
sintcsca do artigos em L'A.nnée Soclologlque desde 1898, o os de Hubert, (') As suas obras mais conhecidas são: Les Fonctions Menta/es dan,f
Mauss e outros na mcama revista. /e.r Sociétés lnférleures. 1912 e La Mentalité Prlmittve, 1922.

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ANI'ROPOLOOIA SOCIAL D~BNVOLVIMENTO TBóRICO POSTERIOR

Parte da base de que as crenças, os mitos e, em suma, as ideias particular é a contribuição que dá à vida social total, como
dos povos primitivos são um reflexo das suas estruturas sociais expressão do funcionamento do sistema social total» (').
e, portanto, diferem de sociedade para sociedade. !Dedicou-se As instituições são, portanto, pensadas enquanto funcionam
então a demonstrar que essas organizações formam sistemas dentro de uma estrutura social, formada por seres individuais
cujo princípio lógico é a denominada foi de participação mística. «ligados por um conjunto determinado de relações sociais para
Este é o tipo de análise estrutural que reflecte o trabalho de constituir um todo integrado» (1°). A continuidade da estrutura
mantém-se pelo processo da vida social ou, por outras palavras,
Durkheim, mas, enquanto este autor analisou as actividades
a vida social de uma comunidade é o funcionamento da sua
sociais, Lévy-Bruhl estudou as ideias a elas associadas.
estrutura. Assim considerado, um sistema social tem uma uni-
O lugar privilegiado que corresponde a Durkheim na história
dade funcional. Não é um agregado, mas sim um organismo
do desenvolvimento conceptual da Antropologia Social em ou um todo integrado.
Inglaterra explica-se pela influência que exerceram as suas obras Ao falar de integração social, o professor Radcliffe-Brown
no professor A. R. Radcliffe-Brown e no professor B. Mali- supõe que «a função da cu'ltura como um todo é unir os seres
nowski, já falecidos. Estes são os dois homens que fireram humanos individuais em estruturas mais ou menos estáveis, isto
dessa disciplina o que ela é actua'lmente na Grã-Bretanha. Todos é, sistemas estáveis de grupos, determinando e regulando as
os que ensinam hoje em dia estas matérias em Inglaterra e nos relações desses indivíduos entre si, e fornecendo uma tal adap-
Dominios são directa ou indirectamente, e a maior parte directa- tação externa ao meio físico e uma tal adaptação interna entre
mente, alunos destes grandes mestres. os componentes individuais ou grupos que possibilitasse uma
Voltarei a ocupar-me de MaJinowski (1884-1942), especia:l- vida social ordenada. Isto é para mim uma espécie de postulado
mente quando tratar o trabalho de campo. Para ele, a Antropo- primário para a rea:lização de qualquer estudo objectivo e cien-
logia funcional, mais que o fundamento das técnicas de tra- tifico da cultura ou da sociedade humana» (n).
bafüo, significava algo assim como um meio literário de dar A elaboração de conceitos como estrutura social, sistema
unidade às suas observações com finalidades descritivas. Não social e função social segundo as definições dadas pelo profes-
era, falando com propriedade, um conceito metodológico, e ele sor Radc1iffe-Brown nas citações anteriores e tal como hoje os
nunca se mostrou capaz de o usar com clareza quando traba- empregam os antropólogos sociais, foi uma importante ajuda
lhava com as abstracções da teoria geraJ. O professor RadcJiffe- para a determinação dos problemas suscitados pelo trabalho
-Brown, ao contrário, expressou de forma muito mais clara e de campo. No século XIX os antropólogos deixavam aos pro-
coerente a teoria funcional ou organismica (ou organicista) da fanos o trabalho de recolher os factos em que e1es baseavam as
sociedade. Apresentou-a de fonna sistemática, com clareza de suas teorias, e não lhes ocorreu que houvesse qualquer tipo de
exposição e lucidez de estilo. conveniência em estudarem eles próprios os povos primitivos.
Isto devia-se ao facto de que consideravam atomisticamente os
Afinna este autor que «O conceito de função aplicado às
diferentes elementos da cultura, dos costumes, que eram reunidos
sociedades humanas se baseia numa analogia entre a vida social
para demonstrar a grande similaridade ou a grande dife-
e a orgânica» ('). Segundo Durkheim. define a função de uma
rença de crenças e práticas, ou para ilustrar as etapas do pro-
instituição social como a correspondência entre a instituição
gresso humano. Mas quando se compreendeu que um determi-
social e as condições necessárias de existência do organismo nado costume carece praticamente de significado se se separa
social; neste sentido, ela representa, de acordo com as suas pala-
vras, «a contribuição de uma actividade pareia·} para a activi-
dade tota·I, de que faz parte. A função de um costume social
~ Ibid., p. 397.
('") Ibid., p. 396.
(") The Present Position o/ Anthropologfcal Studles, discurso do
(') On the Concept o/ Function ln Social Science, Amerioan Anthro- Presidente, British Assoclatlon for the Advancement o/ Scitmce, Secção
pologist, p. 394, 1935. H., p. 13, 1931.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIMENTO TEÓRICO POSTERIOR

do seu contexto cultural, chegou-se à conclusão evidente de que rais e esquemas de evolução hipotética. O objectivo passa a ser,
era necessário efectuar amplos e detalhados estudos dos povos no estudo de sociedades particulares, a definição das actividades
primitivos em todos os aspectos da sua vida social, e que estas sociais em termos das suas funções dentro do sistema social
investigações somente poderiam ser levadas a cabo por antro- em questão, e, nos estudos comparados, uma comparação de
pólogos sociais profissionais, que, conscientes dos problemas teó- instituições como partes de sistemas sociais ou a relação que
ricos envolvidos na matéria, são os que possuem o tipo de têm com toda a vida social das sociedades em que se encontram.
informação requerida para resolvê-los e os únicos capazes de Quer dizer, o que o antropólogo moderno compara não sã~
se colocar na posição onde esta informação pode ser adquirida. os costumes, mas os sistemas de relações. Também me ocuparei
A insistência funcionalista na relação entre as coisas foi em novamente deste assunto nas minhas próximas conferências.
parte a causa dos modernos trabalhos de campo, assim como Chegamos agora ao segundo postulado da Antropologia fun-
também o seu produto. Nas duas próximas conferências discu- cional, que afirma: os sistemas sociais são sistemas naturais que
tirei este aspecto da moderna Antropologia Social. podem reduzir-se a 1eis sociológicas. Consequentemente, a sua
Ao destacar reiteradamente o conceito de sistema social história não interessa sob um ponto de vista científico. Devo
e, por conseguinte, a necessidade de efectuar estudos sistemáticos confessar que, em minha opinião, esta afirmação constitui um
da vida colectiva dos povos primitivos no seu estádio actual. exemplo do pior positivismo doutrinário. Creio que poriam?s
a Antropologia funcional não só separou, como já vimos, a num sério aperto os que dizem que a finalidade da Antropologia
Antropologia Social da Etnologia, como também juntou o estudo Socia'l é formular leis sociológicas, de modo aná:logo às Ciências
teórico das instituições com o estudo experimenta<] da vida Naturais, se lhes pedíssemos alguns exemplos semelhantes ao
social primitiva. Referimos também como, no século XVIII, que nessas ciências se chamam leis. Até agora não se apresentou
as informações proporcionadas pelos exploradores sobre algu- nada parecido, mesmo remotamente, àquelas leis; só se·~êm adu-
mas sociedades incultas serviram ocasionalmente de base para zido afirmações deterministas, teleológicas e pragmáticas bas-
ilustrar as especulações filosóficas acerca da natureza e origens tante ingénuas. As generalizações tentadas até ao momento foram,
das instituições sociais. Vimos depois que no !;éculo seguinte por outro lado, tão vagas e amplas que até mesmo que fos~m
estas sociedades primitivas se transformaram no· principal objecto certas não teriam muita utilidade. Além disso, tendem muito
da curiosidade de alguns estudiosos interessados no desenvol- facilmente para se tomar meras tautologias e banalidades que
vimento da cultura e das instituições, que se baseavam exclusi- não superam o nível da dedução de sentido comum.
vamente nas observações de outros indivíduos. O pensador teó- Nestas circunstâncias, parece-me que se deve investigar nova-
rico e o observador ainda estavam divorciados. Na Antropologia mente se os sistemas sociais são efectivamente sistemas naturais,
funcional, os dois - como explicarei mais pormenorizadamente se, por exemplo, um sistema de direito é na realidade compa-
na conferência seguinte - estão finalmente reunidos e a Antro- rável a um sistema fisiológico ou ao sistema planetário. Pessoal-
pologia Social em sentido moderno surgiu como uma disciplina mente, não acho nenhuma razão válida para considerar um
distinta t:m que os problemas teóricos da Sociologia gera·l são sistema social como um sistema da mesma espécie do sistema
investigados mediante o estudo das sociedades primitivas. orgânico ou inorgânico. Parece-me que é um tipo de sistema
A abordagem funcional teve também o efeito de modificar totalmente diférente; e penso que o esforço para descobrir as
a finalidade e utilização do método comparado. Vimos que os leis naturais da sociedade é vão e que só pode conduzir a uma
antropólogos do passado consideravam o método comparado série de vagas discussões sobre métodos. Seja como for, não
como um meio de· realizar reconstruções históricas qúando não me considero obrigado a provar a inexistência dessas leis, pois
existiam documentos para tal e notámos que o usavam para é aos que. direm que elas existem que compete dizer-nos em
comparar exemplos de costumes ou instituições particulares, que consistem.
recolhidos ao acaso em todo o mundo. Uma vez aceite a noção Os que estão de acordo comigo nesta questão devem per-
de sistema social como postulado primário, como lhe chama o guntar-se se a pretensão funcionalista de que a história de uma
professor Radcliffe-Brown, a investigação já não tem por objecto instituição é irrelevante para a sua compreensão, tal como ela
a classificação etnológica e a consideração de categorias cultu- se apresenta na actualidade, é aceitável, porque essa pretensão

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ANTROPOLOGIA SOCIAL DESBNVOL VIMBNTO TBóRICO POSTERIOR

baseia-se justamente numa concepção de sistema e lei que está neses na todia, na Europa, os nómadas árabes, e outras comuni-
em desacordo com a nossa. Uma rápida análise deste ponto dades parecidas um pouco por toda a parte, já não podem
dar-me-á ~ oportunidade de expressar a minha própria opinião, ignorar por mais tempo a questão. São obrigados a escolher
porque nao quero que se pense que, ao criticar algumas das deliberadamente entre pôr de parte ou tomar em· consideração
lupóteses fundamentais do funcionalismo, eu não me considero, o seu passado social nos estudos do presente.
noutros aspectos, um funcionalista e um continuador dos meus Os que não aceitam a posição funcionalista em relação à
mestres, os professores Malinowski e Radcliffe-Brown, ou que história, opinam que, embora seja necessário realizar estudos
mant~nho ~ue as sociedades são ininteligíveis, que não podem separados de uma sociedade sobre o seu estádio actual e o seu
ser s1s.tematicamente estudadas ou que é impossível fazer qual- desenvolvimento no passado, empregando técnicas diferentes em
que1 tipo de afirmações gerais importantes acerca delas. cada estudo (recomendando, a:lém disso, que em certas cir-
Faço notar também que, ao falar aqui de história, não cunstâncias esses estudos separados sejam efectuados por pessoas
estou a~ora ~ di~cu~ as hipóteses etnológicas do tipo genético diferentes), mantêm que o conhecimento do passado possibilita
ou do tipo difus1001sta. Esse tema podemo-lo considerar encer- uma compreensão mais profunda da natureza da sua vida social
rado. Estou, sim, a debater a importância que tem a história no presente. Efectivamente, a história não é uma mera sucessão
da5 instituições sociais para o estudo dessas mesmas instituições, de mudanças, mas sim, como já outros autores afirmaram, um
quando se conhece perfeitamente e em pormenor a sua história. processo de desenvolvimento. O passado está contido no pre-
Este _Problema só . dificilmente poderia ter chamado a atenção sente como este no futuro. Não quer isto dizer que a vida
dos filósofos morais do século XVIII e dos seus sucessores vito- social possa ser entendida através do conhecimento do seu pas-
rianos, porque não lhes ocorria que o estudo das instituições sado, mas que esse conhecimento permite compreendê-la melhor
pudesse ser alguma coisa mais que um estudo do seu desen- que se o desconhecêssemos. •P or outro lado, também é evidente
volvimento, já que o objectivo final dos seus esforços era esta- que os problemas do desenvolvimento social só podem estudar~se
belecer uma ampla história natural da sociedade humana. As em função da história e que unicamente esta proporciona uma
leis sociológicas eram para eles as leis do progresso. orientação experimental satisfatória para testar as hipóteses da
Nos Estados Unidos, ainda que sem a busca de leis - neste Antropologia funcional.
aspecto os an~opólo~os americanos são tão cépticos como eu - , Acerca deste problema muito mais se poderia dizer, mas
a Antropologia é amda na sua maior parte histórica quanto poder-se-ia pensar que se trata de uma querela doméstica, mais
aos seus objeçtivos. É por isso que é considerada mais como adequada a uma reunião de especia:listas em que se poderia
E~ologi~ que Antropologia Social -pelos antropólogos funcio- discutir com pormenor, que tema para uma minuciosa argu-
nabstas ingleses, que pensam que não é do domínio desta disci- mentação perante um público não especializado. Assim, tendo
plina a investigação da história das sociedades e, além disso, já assinalado a existência dessa divergência de opiniões, não
que o conheci~ento da história das sociedades não serve para continuarei a tratar deste assunto. Contudo, penso que é razoável
aclarar o funcionamento das suas instituições. Esta atitude é exporJlhes o meu ponto de vista sobre o que deveriam ser o
uma co~quência lógica da ideia de que as sociedades são siste- método e os fins da Antropologia Social, sobretudo depois de
mas naturais que podem estudar-se seguindo os métodos utiliza- ter afirmado que considero, juntamente com alguns outros cole-
dos pelas Oê?cias Naturais como a Química, ou a Biologia, gas e contra a opinião da maior parte deles em Inglaterra, que
sempre que tais métodos sejam aplicáveis. essa disciplina pertence mais à esfera das humanidades que à
&te é um tema que ganha uma importância cada vez maior das Gências Naturàis.
à medida que os antropólogos sociais vão estudando sociedades Na minha opinião, a Antropologia Social assemelha-se muito
pertencentes a culturas históricas. Enquanto se ocuparam em mais a certos ramos dos estudos históricos - história socia:l e
investigar os aborígenes australianos ou os povos das ilhas dos história das instituições e das ideias, de preferência à história
mares do Sul, em cujas culturas não existe documentação histó- narrativa e política - que a qualquer disciplina das Gências
rica, podiam ignorar a história com a consciência tranquila. Naturais. Como os antropólogos sociais estudam directamente a
Mas agora que começaram a estudar comunidades de campo- vida social e os historiadores o fazem indirectamente a partir de

62 63
ANTROPOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIMENTO TEóRTCO POSTERIOR

documentos e outras fontes, a semelhança entre esta classe de que, uma vez estabelecidos, o capacitam para a ver como um
historiografia e a Antropologia Social ficou um pouco obscure- todo, como um conjunto de abstracções inter-relacionadas.
cida. No mesmo sentido actuaram também outras circunstâncias, Depois de ter isolado estes padrões estruturais numa
como o facto de os antropólogos se ocuparem de sociedades sociedade, o antropólogo social, na terceira fase do seu trabalho,
primitivas em que não existe documentação histórica e de estu- compara-os com outros padrões de outras sociedades. O estudo
darem em regra problemas sincrónicos, enquanto os historiado- de cada nova sociedade aumenta o seu conhecimento do leque
res investigam problemas diacrónicos. Estou de acordo com o de estruturas sociais básicas e capacita-o para construir com
professor iKroeber (12) em que as diferenças que acabamos de mais facilidade uma tipologia de formas e para determinar as
mencionar são diferenças de técnica, de tónica e perspectiva, e suas características fundamentais e as causas das suas variações.
não de objectivos e método. A historiografia e a Antropologia Creio que a maior parte dos meus colegas não estarão de
Social utilizam essencialmente o método da integração descri- acordo com a minha descrição do trabalho de um antropólogo
tiva, ainda que a sintese antropológica esteja num plano mais social. Eles prefeririam explicá-lo na linguagem da metodologia
elevado de abstracção que a siotese histórica, apresentando a ·das Ciências Naturais, enquanto as minhas afinnações implicam
primeira uma tendência mais marcada e intencional para a com- que a Antropologia Social estuda as sociedades como sistemas
paração e generaliz.ação que a segunda. morais ou simbólicos e não como sistemas naturais. Que está
No meu modo de ver, o trabalho do antropólogo pode ser menos interessada nos processos que nos objectivos e que, por-
dividido cm três fases. Na primeira, como etnógrafo, vai viver tanto, procura padrões e não leis, demonstra a coerência, mas
no seio de um povo primitivo e aprende o seu modo de vida. não as relações necessárias entre as actividades sociais, e que
Aprende a falar a sua ·língua, a pensar nos seus conceitos e a tende a interpretar mais que a explicar. Estas diferenças são
sentir segundo os seus valores. Depois revive a experiência de conceptuais e não simplesmente verbais.
forma crítica e interpretativa, segundo os valores e categorias Vimos que na Antropologia Social existe um bom número
conceptuais da sua própria cultura e em termos do corpo geral de problemas metodológicos por resolver e, no fundo, uma série
de conhecimentos da sua disciplina. Por outras palavras: traduz de problemas filosóficos a aguardar resposta: se se devem ou
uma cultura em termos de outra. não tentar as interpretações psicológicas dos factos sociais; se
Na segunda fase do seu trabalho, considerado ainda como sociedade e cultura devem ou não constituir um mesmo tema
estudo etnográfico de uma sociedade primitiva particular, ele de investigação e que relação existe entre estas duas abstracções;
tenta ir mais além deste estádio literário e impressionista e des- que sentido se deve dar aos termos estrutura, sistema, função; e,
cobrir a ordem estrutural da sociedade, de modo que seja com- finalmente, se a Antropologia Social deve considerar-se como
preensível não só ao uivei da consciência e da acção, como no uma Ciência Natural em embrião ou se na sua busca de leis
caso de um dos seus membros ou de um estrangeiro que sociológicas está a correr atrás de uma miragem. Em todas estas
aprendeu os seus costumes e participa na sua vida, como prin- questões os antropólogos estão em perfeito desacordo e estas
cipalmente ao nivel da análise sociológica (1'). O linguista não diferenças de opinião não se poderão resolver por meio da
se conforma com aprender a falar e traduzir uma língua nativa. discussão. A única arbitragem que todos nós aceitamos é a lin-
antes trata de descobrir os seus sistemas fonéticos e gramaticais. guagem dos factos - o juizo da investigação. Na minha pró-
Analogamente, o antropólogo social não se contenta com obser- xima conferência vou ocupar-me deste lado do problema.
var e descobrir a vida social de um povo primitivo, antes pro-
cura revelar a sua ordem estrutura] fundamental, os padrões

Ç') A. L. Kroebor, «History and Scien<» in Anthropology», Ameri-


can Anthropologist, 1935.
1
( ' ) Claude Lévi-Strauss, «Histoire et Ethnologie», Revue de Méta-
physique et de Mora/e, 1949.

64 65
IV

TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO EMP1RICA

Nas minhas últimas conferências fiz um resumo rápido


do desenvolvimento teórico da Antropologia Social. A teoria
modificou-se com o aumento do conhecimento dos povos pri-
mitivos, que ela contribuiu para acrescentar em cada geração.
É sobre este desenvolvimento do conhecimento que vos falarei
hoje.
Houve sempre um preconceito popular, e não de todo
prejudicial, de que a teoria não aguenta o teste da experiência.
Mas, na realidade, uma teoria bem fundamentada não é mais
que uma generalização obtida a partir da experiência e por ela
corúirmada. Ao contrário, a hipótese não passa de uma opinião
não confirmada, baseando-se na suposição de que aquilo que
já é conhecido autoriza a achar, investigando, um conjunto de
dados de determinado género. A investigação antropológica não
se pode ·levar ·a cabo sem teorias e sem hipóteses, pois as coisas
só se encontram se se procuram, embora muitas vezes se
encontre algo diferente do que se pretendia achar. Toda a his-
tória da investigação, quer nas Oências Naturais, quer nas huma-
nidades, demonstra que a simples recolha do que se denominam
façtos é de pouco valor, se não se possui um guia teórico para
os observar e seleccionar.
Contudo, ainda se ouve dizer que os antropólogos estudam
as sociedades primitivas com certas ideias preconcebidas e que
isto deforma as suas observações da vida selvagem. Ao con-
trário1 o homem prático, que não está influenciado por esses
apriorismos, pode faz.er um relato imparcial dos factos tal como

67
ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO EMP1RICA

os vê. Na realidade, a diferença entre ambos os indivíduos é brutal e curta» carecia de fundamento real, ainda que, na ver-
de outra natureza. O estudioso faz as suas observações para dade, fosse bastante difícil chegar a outra conclusão baseando-se
responder às interrogações que surgem das generalizações de nas informações dos viajantes contemporâneos. Estes descreviam
opiniões especializadas, enquanto o profano responde às que os primitivos que viam com expressões como estas: «Não
são produto das generaiizações da opinião popular. Quer dizer, têm - afirma Sir John Chardin referindo-se aos circassianos,
ambos estão orientados por teorias, mas, enquanto urna delas cujo país atravessou em 1671 (1) - nada que possa qualificá-los
é de carácter sistemático, a outra é claramente popular. como homens, a não ser a fala». O padre Stanislaus Arlet,
Na verdade, a história da Antropologia Social pode con- quando se refere aos índios do Peru, em 1698, diz que «se dife-
siderar-se como a substituição lenta e gradual da opinião pouco renciavam bem pouco das bestas» (2). Estes primeiros relatos
autorizada acerca das culturas primitivas, por uma outra com de viagens, que apresentavam o selvagem como um ser ora
maior seriedade. O nível alcançado em qualquer uma das etapas brutal ora nobre, eram normalmente fantásticos, falsos, super-
intermédias deste processo está, em linhas gerais, relacionado ficiais e cheios de juízos inoportunos.
com o volume de conhecimentos existente em cada época. Afinal Contudo, é preciso reconhecer que o refinamento do via-
o que conta é o volume, a exactidão e a variedade de factos jante, assim como o seu temperamento e carácter, influem bas-
autênticos e comprovados. As observações necessárias para os tante sobre o tipo de narração apresentada. Assim, a partir
recolher são guiadas e estimuladas pela teoria. Sublinho que do século XVI não faltam relatos em que se dão descrições
aqui me apoio mais na opinião dos eruditos sobre instituições moderadas e reais, ainda que limitadas, da vida nativa. ·Podemos
sociais que nas considerações populares. Nas especulações teóri- mencionar, além dos já anteriormente mencionados, os escritos
cas sobre o homem primitivo parece ter havido um movimento do inglês A.ndrew Battel sobre os naturais do Congo, do padre
de interpretação que oscilou, como um pêndulo, em duas direc- jesuíta português Jerónimo Lobo sobre os abissínios, do holandês
ções opostas. A!> princípio, considerava-se que o homem pri- William Bosman sobre as populações da Costa do Ouro e do
mitivo pouco mais era que um animal, que vivia na pobreza, capitão Cook sobre os habitantes dos mares do Sul. Do padre
no medo e na violência. Pouco depois passou a considerar-se Lobo, afirma o dr. Johnson, seu tradutor, em Pinkerton's Voya-
que era um ser amável, vivendo em abundância. paz e segu- ges: «Pela sua forma modesta e pouco afectada de relatar as
rança. Primeiro foi um foragido, depois um escravo das ieis e coisas, parece bavêJJas descrito do modo como as viu, copiando
costumes. No primeiro caso não tinha sentimentos nem crenças a natureza da vida, recorrendo aos seus sentidos e não à sua
religiosas; no segundo estava totalmente dominado pelo sentido imaginação» (ª).
do sagrado e pelo cerimonial religioso. Segundo a primeira con- Quando estes primeiros viajantes europeus ultrapassavam a
cepção era um individualista que se aproveitava do mais débil descrição e os juízos pessoais. era geralmente para estabelecer
e que se apoderava do que podia; no outro ponto de vista, um parafolismos entre os povos que observavam e os povos antigos
comunista que compartilhava terras e bens. Primeiro vivia em que conheciam da füeratura, muitas vezes para mostrar que
promiscuidade sexual; depois, era um modelo de virtudes tinha havido algum tipo de influência histórica das altas culturas
domésticas. Inicialmente era amodorrado e incorrigivelmente pre- sobre as inferiores. Assim, o padre Lafitau faz muitas compara-
guiçoso; depois, activo e industrioso. Parece-me que estas mudan- ções entre os índios Peles~Vennelhas hurões e iroqueses e os
ças radicais de interpretação são perfeitamente explicáveis, pois judeus. cristãos primitivos. espartanos, cretenses da era clássica
quando se tenta alterar uma opinião já existente é natural que e antigos egípcios. ·Do mesmo modo, De La Crequiniere, um
na selecção e acumulação de provas contra dia se exagere no viajante francês que esteve nas índias Orientais no século XVII.
sentido oposto. dedicou-se a estabelecer para:lelismos entre os fndios e os cos-
Estudando o desenvolvimento da Antropologia Soei a1
pode-se comprovar, nestas especulações, a dependência da teoria
dos conhecimentos disponíveis e a interdependência de ambos. (') Pinkerton's Voyages, vol. IX, p. 143, 1811.
A opinião predominante nos séculos XVII e XVIII de que a (
1
) John Lockman, Traveis o/ the Jesuits, vol. 1, p. 93, 1743.

vida do homem primitivo era csolitária, pobre, desagradáve-1, C) Pinkerton's Voyages, voL XV, p. 1, 1814.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO EMPtR.ICA

tumes judaicos e os da época clássica, contribuindo assim para po~os .<ª). Contudo, estes dados foram olhados como meras
uma maior compreensão das Escrituras e dos autores olássicos, cu:ios1dades até ao momento em que Bachofen e McLennan
pois, segundo diz, «O conhecimento dos costumes dos índios salient8:fam a sua . grande importância para a teoria sociológica.
não tem nenhuma utilidade em si mesmo.. . »(•). ~ se tives~ reumdo. este material e consequentemente estabele-
Entre o apogeu dos filósofos morais e os primeiros escri- c1d.o ª.sua 1m.po~c~a antes que Maine escrevesse Ancient Law,
tos autenticamente antropológicos, quer dizer, entre meados do tena s1d? mwto dif1cil <!ue o autor adoptasse a Unha que tomou
século XVIll e meados do século XIX, o conhecimento sobre no. seu livro e que se VIU forçado a modificar em escritos pos-
os povos primitivos e os do Extremo Oriente sofreu um grande teriores ante a evidência de tal documentação.
incremento. A colonização europeia da América cobria vastas McLennan é um exemplo muito elucidativo das relações
extensões, a dominação inglesa implantou-se na índia, e a Aus- que há entre um corpo de conhecimentos e as teorias baseadas
trália, Nova Zelândia e África do Sul estavam colonizadas por nele. Este autor não tinha ilusões acerca do valor de muitos
emigrantes europeus. O carácter da descrição etnográfica dos dos textos que u~va como fontes, que aliás criticava por
povos dessas regiões começou a mudar, passando-se das narra- serem ~uco cons1st~ntes e est:irem viciad.os por todo. o tipo de
tivas de viajantes a estudos pormenorizados de missionários e preconceitos pessoais, mas, amda que tivesse sido mais cau-
administradores, que não só dispunham de melhores oportu- teloso do que foi, ?ificilmente teria podido evitar alguns dos
nidades para observar os nativos, como também eram homens erros que o conduZlraill. a uma sucessão de falsas construções.
de maior cultura que os aventureiros dos primeiros tempos. Co~ as P.rovas de que dispunha McLennan, não havia nenhuma
Analisadas à oluz destes novos dados, muitas das opiniões razao váhda _Para não estar convencido de que entre os aborí-
até ai aceites a respeito dos povos primitivos revelaram-se erró- genes australianos o sistema matrilinear era universal'. Sabemos
neas ou unilaterais. Como já anteriormente mencionei, a nova agora que não é. ~ssim: Também não é verdade que, 'como ele
informação foi suficiente, em quantidade e qualidade, para que ~~'I~. ~ U\.a\n.\'mt:a.nlia.lie -pt.e~a.'\.ece e:n.\1'.e a gn.n.O.e ma\ona
Morgan. McLennan. Tylor e outros construíssem, baseando-se das raças incultas. Ele pensava também 'q ue a pofiandria estava
nela, numa disciplina completa dedicada especialmente a estudar amplamente distribuída, quando na realidade a sua implantação
as sociedades primitivas. Havia por fim um conjunto de conhe- é muito limitada. Estava também enganado quanto ao infanti-
cimentos suficientes para comprovar as especulações teóricas cídio de crianças do sexo feminino, que julgava ser dominante
e para adianta r novas hipóteses, fundadas numa sólida base de entre os povos primitivos.
factos etnográficos. O mais grave erro em que incorreu McLennan, sob a
Quando se diz que, no fim de contas, os factos decidem o inspiração das suas fontes, foi o de supor que entre os povos
destino das teorias, deve agregar-se que não são só os simples mais primitivos as instituições do casamento e da fam11ia não
factos. mas uma demonstração da sua distribuição e importân- existiam, ou então que só apareciam com uma forma muito
cia. Vou dar-lhes um exemplo. Alguns historiadores da Anti- rudimentar. Se tivesse sabido, corno sabemos hoje, que essas
guidade e do período medieva·l já tinham notado, numa série instituições se encontram, sem excepção, em todas as sociedades
de sociedades primitivas, o modo matrilinear de estabelecer a primitivas, não teria formulado as conclusões que conhecemos.
linhagem. Entre eles contam-se, por exemplo, Heródoto para Estas baseiam-se completamente no dogma de que nas primeiras
os Lícios, Maqrizi para os Beja e, entre os observadores moder- sociedades não existiam família nem casamento, uma crença
nos. Lafilau para os Peles-Vermelhas norte-americanos, Bowdich que só foi dissipada há pouco tempo, quando Westennarck e
para os Ashanti da Costa do Ouro, Grey para os Blackfellows.
aborígenes australianos. e alguns outros viajantes para outros
(') Joseph FrançOis. Lafitau, Moeurs des Sauvages Ameriquains,
1724; T. H. Bowdioh, Mission from Cape Coast Castle to Ashantee,
(') Customs of tlle East lndians, p. viil, 1705. (Traduzido de Confor- 1819; George Orey, Journols o/ Two Expeditions of Discovery in North·
mité des Coutumes des lndiens Ori'entaux, p. viii, 1704). -West and Western Australia, 1841.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DB CAMPO B TRADIÇÃO EMP1RICA

depois Malinowski demonstraram a sua impossibilidade face Superstitions, etc., of Unciviüzed or Serni-Civiüz'ed Peoples (').
aos factos ('). que enviou por todo o mundo para obter informação que incluiu
Com igual facilidade se poderia comprovar que a maior num ou noutro volume de The Golden Bough. O mais completo
parte das teorias dos outros autores da época eram tão incor- destes questionários foi Notes and Queries in Anthropology,
rectas ou inadequadas como as de McLennan, por causa da originalmente publicado pelo Instituto Real de Antropologia em
inexactidão ou insuficiência das observações que se conheciam 1874 e actualmente na sua quinta edição.
por essa altura. Mas ainda nos casos mais extremos, estes escri- Muitas veres estabelecia-se uma correspondência regular
tores adiantaram pelo menos a1gumas hipóteses sobre as socie- entre os eruditos da metrópole e as pessoas que os conheciam por
dades primitivas. Estas serviram para orientar as investigações meio das suas obras. Tal é o caso de Morgan, por exemplo,
daqueles cuja vocação ou dever llie exigiam residir entre os que se escrevia com Fison e Howit da Austrália, e o de Prazer,
povos selvagens, frequentemente durante muito tempo. A partir que mantinha correspondência com Spencer na Austrália e
~esse momento criou-se um intercâmbio entre os C?tudiosos que Roscoe em Africa. Em épocas muito mais recentes, os empre-
ficavam na metrópole e uns poucos missionários e administra- gados na administração colonial seguiam cursos de Antropologia
dores que viviam nas regiões atrasadas do mundo. Estes missio- nas universidades britânicas, um evento de que falarei mais tarde
nários e administradores estavam ansiosos por contribuir para nas minhas próximas conferências. Um dos mais importantes
o aumento do conhecimento e aproveitar o que a Antropologia vínculos entre o estudioso no seu pais e o administrador ou
lhes pudesse ensinar para compreender melhor os seus prote- missionário no estrangeiro tem sido o Instituto Real de Antro-
gidos. Lendo o material publicado pelos antropólogos, acabaram pologia, que desde 1843, quando foi fundado como Sociedade
por inteirar-se de que até mesmo as populações situadas no nível Etnológica de Londres, oferece um lugar de reunião para todos
mais baixo da escala de cultura material possuiam sistemas os interessados no estudo do homem primitivo. .
sociais complexos, códigos morais, religião, arte, filosofia e rudi- Muitos relatos de profanos sobre povos primitivos são
mentos de ciência que devem ser respeitados, e, uma vez com- excelentes e, em certos casos, as suas descrições só dificilmente
preendidos, mesmo admirados. poderão ser superadas pelos melhores investigadores de campo
!Nos seus relatos toma-se evidente a influência, umas vezes profissionais. Os homens que escreveram estes relatórios p0s-
benéfica e outras contraproducente, das teorias antropológicas sufam uma vasta experiência sobre as comunidades em questão
da época. Estes funcionários conheciam os problemas teóricos e falavam o seu idioma. Entre essas obras figuram The Religious
que preocupavam os eruditos e estavam frequentemente em con- System of the Amazulu (1870) de Callaway, The Melanesians
(1891) de Codrington, as obras de Spencer e Gillen sobre os
tacto directo com quem os formulava. Quando os funcionários
aborigenes da Austrália ( 8) , La vie d'une tribu sud-africaine
da metrópole queriam informação sobre algum ponto concreto,
(1912-3) de Junod (edição inglesa de 1898), e The lla-Speaking
adoptaram o costume de enviar questionários aos que viviam Peoples of Northern Rhodesia (1920) de Smith e Dale. Ainda
entre os povos primitivos. O primeiro da série foi elaborado durante o periodo em que os missionários e os administradores
por Morgan para estabelecer a terminologia sobre o parentesco, escreviam monografias minuciosas sobre as sociedades primiti-
sendo distribuído aos agentes americanos instalados em países vas, as observações dos viajantes continuavam a proporcionar
estrangeiros. ·Foi com base nas suas respostas que ele publicou infonnações valiosas e, do mesmo modo, esses trabalhos minu-
em 1871 o seu famoso Systems of Consanguinity and Aflinity of ciosos de profanos continuaram a ser de grande vafor para a
the Human Farni/'y. Mais tarde, Sir James Frazer formulou outra Antropologia mesmo depois de o trabalho de campo profissional
lista de perguntas, Questions on the Manners, Customs, Religion, se tomar um hábito normal.

~ Edward A. Wcstennarck, The H/Jtory o/ Human MarriQ/le, 1891; (') Sem data, provavelmente nos anos do dcc6nio de 1880.
B. Malinowski, The Family among the Austra/ian AborigeneJ-A Socio- <!> B. Spencer o F. 1. Oillcn. The Natl11e Trlbes of CMtra/ Australia.
logica/ Study, 1913. 1899; The Northern TribuJ of Central Austral/a, 1904; The Arunta, 1927.

72 73

' ~ '
ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DB CAMPO E TRADIÇÃO BMP1RICA

Contudo, tomou-se evidente que para faz.er avançar o estudo no Pacifico. Esta expedição marcou uma viragem. na histó~
da Antropologia Social era necessário que os próprios antropó- da Antropologia Social na Grã:-~~tanh~ ~ partir de ~ntão
logos efectuassem as suas observações. É realmente surpreen- começam dois movimentos de op1D1ao mwt~ importantes e mter-
dente que, à excepção de Morgan, que estudou os iroqueses ( 9), -relacionados: por um iado, a Antropolo~a t~ma-se cada vez
nenhum deles tivesse realiz.ado trabalhos de campo até aos fins mais uma disciplina que requer uma dedicaçao completa por
do século XIX. É ainda mais notável que nem sequer lhes pas- parte de profissionais, e, por outro, começa-se a olhar para ?s
sasse pela cabeça a ideia de dar uma olhadela, mesmo breve, a trabalhos de campo como uma parte essencial da preparaçao
um ou dois exemplares do que constituía a matéria sobre a e treino dos seus estudantes. . .
qual pa~saram a vida a escrever. William James diz-nos que, Os primeiros trabalhos de campo de carácter. profisSional
~uando mte~ogou Sir James Fraz.er a respeito dos nativos que tinham bastantes defeitos. Os individuo~ que realii:avam. ~s
~ con.hecido, Fraz.er exclamou: «Deus me livrei» (1º). Se se observações, por mais treinados que estive~sem _na m~estigaça?
fizesse a mesma pergunta a um cientista da natureza acerca do sistemática de qualquer das Ciências Naturais, nao podiam reali-
objecto da sua investigação, ele responderia seguramente de zai um estudo profundo durante o cu~o ~riod~ de tempo que
outra maneira. passavam entre as populações que quenam mvestigar. !~oravam
Como já vimos, Maine, McLennan, Bachofen e Morgan, as línguas nativas e os seus contactos com os naturais eram
entre os primeiros autores antropológicos, eram advogados. F us- fortuitos e superficiais. O facto de estes estud?s nos parecerem
tel de Coulanges era um historiador clássico e medieval, Spencer boje totalmente inadequados dá-nos uma medida real dos pr?-
um filósofo, Tylor um empregado que dominava linguas estran- gressos que a Antropologia rea~u de e~tã?. para cá. Mais
geiras, Pitt-Rivers um soldado, Lubbock banqueiro, Robertson tarde, as investigações sobre as sociedades prim1t1vas t~ma~m-se
Smith ministro presbiteriano e estudioso da Bíblia e F razer um .:ada vez mais profundas e esclarecedoras. As de m~ior impor-
erudito em Antiguidade Clássica. Os homens que depois se tância são, na minha opinião, as do professor Radcliffe-Brown.
vieram a interessar pela matéria eram, na sua maioria, cultores discipulo de Rivers e de Haddon. O estudo que l~vou ~ ca~o
das Oências Naturais. Boas era um físico e geógrafo. Haddon ele 1906 a 1908 (1 2 ) entre os ilhéus de An?aman fo.1 o P?meiro
um zoólogo da fauna marítima, Rivers um fisiólogo, Seligman ensaio efectuado por um antropólogo s?cial para. ~~estigar as
um patologista, E lliot Smith um anatomista, Balfour um roólogo, teorias sociológicas no seio de uma soc1ed~de. pnmitiva e des-
Malinowsky um físico e Radcliffe-Brown, embora tivesse pas- crever a vida colectiva de um povo com a fmahdade de ress~tar
sado o Tripos (1 1) de Oências Morais em Cambridge, também claramente o qúe houvesse de importante para essas. teon~s.
tinha estudado Psicologia experimental. Estes homens tinham Este estudo tem talvez para a história .da Antropologia ~1or
aprendido que nas Ciências as hipóteses se devem verificar com importância que a expedição ao estreito de Torres. pms os
as próprias observações, sem esperar que os profanos as rea- membros desta estavam mais interessados em problem~s et~o­
Jiz.em na vez do investigador. lógicos e psicológicos que em quest~s de ? rdem socaoló.gi~.
As expedições antropológicas começaram na A mérica com Já assinalámos como a especulaçao teórica sobre as msti-
os trabalhos de Boas na Terra de Baffin e na Colômbia Bri- tuições sociais estava, pelo menos ao princípio, ocasionalmente
tânica e iniciaram-se em Inglaterra pouco tempo depois quando relacionada com as informações descritivas acerca dos povos
Haddon, de Cambridge, chefiou um grupo de estudiosos que primitivos, e como mais tarde. no séc~lo _?CTX. estes povos se
foram investigar, em 1898 e 1899, a região do estreito de Torres. tomaram o principal campo de investigaçao para al~uns estu-
dantes das instituições, que é o momento - pod~-se d.'zer_- em
que aparece a Antropologia Social. Contudo, a mvestaga~o era
então totalmente .Jiterária e estava baseava em observaçoes de
(9) The League o/ the lroquois, 1851.
(") Ruth Bcnedict, Anthropology a11d the Humanities, cm Anthropo-
logist, p. 587, 1948.
(") Exame necessário para a graduação numa espccinlidade em (,.)A. R. Brown, The Andaman l slanders-A Study in Social
Cambridge (N. do T .). Anthropology, 1922.

74 75
ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO BMP1RICA

outros. Chegamos agora, fina:lmente, à última etapa natural da característica dos primeiros estudos de campo reaiizados por
evolução, na qual as observações e a avaliação dos dados reco- antropólogos profissionais.
lhidos são realizadas pela mesma pessoa e em que o estudioso Estes estudos incidiram em comunidades políticas muito
entra directamente em contacto com o objecto do seu trabalho. pequenas - hordas australianas, acampamentos de Andamans,
Em suma, no passado considerava-se que os documentos eram aldeias melanésias - e esta circunstância teve como efeito a
a matéria-prima necessária ao antropólogo e ao historiador; investigação preferencial de certos aspectos da vida social, fun-
agora, a matéria-prima é a própria vida social damentalmente o parentesco e o cerimonial religioso, em detri-
~ronislaw Malinowski, aluno de Hobhouse, Westermarck mento de outros, em especial a estrutura política, que não
e Seligrnan, deu um passo em frente na investigação experimental. recebeu a atenção que merecia, até as sociedades africanas come-
Embora o professor Radcliffe-Brown possuísse sempre um çarem a ser estudadas. Em Africa os grupos políticos autóno-
conhecimento mais amplo da Antropologia Social geral e mos contam muitas vezes com vários milhares de membros,
demonstrasse ser um pensador mais capaz que Malinowski, este pelo que a sua organização polltica interna e as suas inter-
foi o investigador experimental mais acabado. Nenhum antro- -relações suscitaram o interesse dos estudiosos para os proble-
pólogo anterior a ele (e, segundo creio, nenhum posterior) pas- mas especificamente políticos. Isto é muito recente, já que a
sou um período de tempo tão extenso, de 1914 a 1918, para investigação profissional em África começa com a visita do
efectuar um único estudo de um povo primitivo, neste caso professor Seligman e sua esposa ao Sudão anglo-egipcio
os habitantes das Ilhas Tobriand da Melanésia. Foi o primeiro cm 1909-1910, e o primeiro estudo intensivo realizado por um
antropólogo a conduzir a sua investigação através da língua antropólogo social nesse continente foi o que eu levei a cabo
nativa, como também foi o primeiro a viver durante o seu entre os Azandes do Sudão anglo-egipcio a partir de 1927.
estudo a vida da sociedade local. Nestas circunstâncias favorá- Desde então, os povos primitivos de Africa passaram a ser inten-
veis, Malinowski chegou a conhecer bastante bem os ilhéus sivamente estudados e as instituições políticas receberam a aten-
das Tobriand e por isso continuou a descrever a sua vida social ção que requeriam, como o prova o estudo do professor Scha-
numa série de monografias, algumas bastante volumosas, até pera sobre os Bechuana. o do professor Forte sobre os Tallensi
ao momento da sua morte (11). Malinowski começou a ensinar da Costa do Ouro, o do professor Nadel sobre os Nupe da
em ·Londres em 1924. Os seus primeiros dois alunos de Antro- Nigéria, o do dr. Kuper sobre os Swazi e o meu próprio
pologia foram o professor Firtb. que está à frente da cátedra traba1bo sobre os Nuer do Sudão anglo-egipcio.
de Malinowski em Londres, e eu próprio. Entre 1924 e 1930, Para entender melhor o que significa um trabalho de campo
seguiram as suas lições a maioria dos restantes antropólogos intensivo, vou indicar o que deve fazer actualmente um indi-
sociais que actualmente ensinam na Grã...Bretanha e nos Domí- viduo para chegar a ser um antropólogo social. Sublinho que
nios. Pode dizer-se com plena ju~tiça que os estudos experimen- falo em particuJar do que sucede em Oxford. Quando chega
tais extensivos da Antropologia moderna derivam directa ou à nossa universidade uma pessoa com um título noutra matéria,
iodirectamente do seu ensino. pois ele insistia sempre em que começa por preparar-se durante um ano para obter um diploma
a vida social de uma sociedade primitiva só se pode compreen- em Antropologia. Este curso dá-lhe um conhecimento geral da
der analisando-a a fundo. Necessariamente, todo o antropólogo Antropologia Social e também, como já indiquei na primeira
social deve realizar, como parte da sua preparação, pelo menos conferência, algumas noções de Antropologia Flsica, Etnologia,
um estudo intensivo deste tipo sobre uma população primitiva. Tecnologia e Arqueologia .Pré-Histórica. Passa depois outro ano
Discutirei o que isto significa quando tiver chamado brevemente ou mais a escrever uma tese baseada na literatura de Antro-
a vossa atenção para o que eu penso que é uma importante pologia Social existente e assim obtém o titulo de B. Litt ( 14)

(") Argonauts o/ the Western Paci/ic, 1922; The Sexual Li/e o/ (") Doccalaureus Liternrum, Baclie/or o/ Lel/ers (Lic. em Lite-
Savages, 1929; Coral Gardens and Their Magic, 1935. ratura).

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DB CAMPO B TRADIÇÃO BMP1RICA

ou B. Se. (16). Depois. se o trabalho o merece e tem sorte, obtém de o seu modo tradicional de vida ter sido substancialmente
uma bolsa para realizar uma investigação experimental Pre- alterado pelo comércio. educação e administração colonial Há
para-se para ela estudando cuidadosamente os escritos sobre os muito de verdade no argumento de Radin de que «a maior
habitantes da região em que vai levar a cabo o seu trabalho. parte dos bons investigadores dificilmente se apercebem da forma
incluindo naturalmente a língua nativa. minuciosa como recolhem a sua informação> (1 9).
Gasta em seguida pelo menos dois anos num primeiro estudo Contudo, sabe-se por experiência que são necessárias certas
de campo de uma sociedade primitiva. cobrindo este período condições essenciais para realizar uma boa investigação: o antro-
duas expedições e uma interrupção entre elas para cotejar o pólogo deve dedicar um tempo suficientemente amplo ao
material recolhido na primeira. A experiência tem demonst.(ado estudo, deve estar em estreito contacto com o povo nQ seio do
que. para que uma investigação deste tipo seja eficaz. é essen- qua:l está a trabalhar. só deve comunicar com ele através da
cial uma interrupção de alguns meses. que se devem passar pre- língua nativa. e deve estudar toda a ·sua cultura e vida social.
ferentemente num departamento de universidade. Levar-lhe-á pelo Considerarei cada um destes pontos por separado, pois. embora
menos outros cinco anos para publicar os resultados das suas pareçam evidentes. constituem na realidade as características
investigações ao nível dos trabalhos modernos e muito mais distintivas da investigação antropológica britânica, que fazem
tempo se tiver outras ocupações. Quer dizer. o estudo intensivo que cla seja. na minha opinião, diferente da realizada em qual-
C!e uma única sociedade primitiva e a pubicação dos resultados quer outra parte, e com maior qualidade.
obtidos leva cerca de dez anos. Os primeiros especialistas que fizeram trabalhos de campo
É conveniente começar logo o estudo de outra sociedade, estavam sempre apressados. As suas rápidas visitas às popula-
pois de contrário o antropólogo corre o perigo. como sucedeu ções nativas só duravam às vezes uns poucos dias e raramente
a Malinowski, de passar o resto da sua vida a pensar em· termos mais que algumas semanas. Uma investigação deste tipo pode
de um tipo particular de sociedade. Este segundo estudo leva ser muito útil como orientação preliminar para estudos mais
geralmente menos tempo, porque o antropólogo já aprendeu intensivos e é possível até deduzir dela classificações etnológicas
com a sua experiência anterior a trabalhar rapidamente e a elementares, mas tem pouco valor para interpretar ·a vida social.
escrever com economia, mas decorrerão seguramente vários anos Hoje em dia a situação é muito diferente, pois, cbmo já se disse,
antes que o seu trabalho seja publicado. Assim. faz falta uma o estudo de uma sociedade fova de um a três anos. Isto permite
grande. dose de paciência para suportar esta larga preparação reailizar observações em todas as estações do ano. registar até
e investigações tão demoradas. ao último pormenor a vida social da comunidade e verificar
Neste esboço do treino de um antropólogo. disse apenas sistematicamente as conclusões a que se chegou.
que ele necessitava de fazer um estudo intensivo dos povos pri- Contudo, apesar de dispor de um tempo ilimitado para
mitivos. Ainda não disse como o faz. Electivamente. como é as suas investigações, o antropólogo não poderá oferecer um
que se faz um estudo de um povo primitivo? Responderei bom estudo da sociedade que está a observar se não se colocar
muito brevemente e em termos gerais a esta pergunta, indi- numa situação que lhe permita estabelecer vínculos de intimi-
cando somente as regras que considero essenciais para um bom dade com os nativos, e, portanto, examinar as suas actividades
trabalho de campo e omitindo toda a discussão sobre técnicas diárias de dentro e não de fora da sua vida comunal. Deve
especiais de investigação. De todos os modos, estas técnicas viver, na medida do possível. no interior dos seus povoados ou
eEpeciais são muito simples e de pouca transcendência. Algumas acampamentos, tentando comportar-se como um elemento físico
delas, como os questionários e censos, só se podem empregar e morai da colectiviêiade. Só desse modo poderá ver e ouvir
com sucesso em sociedades que tenham atingido um maior grau o que sucede na vida quotidiana normal dessa comunidade e
d<.' sofisticação que o constatado entre os povos primitivos, antes observar os acontecimentos menos habituais, como por exemplo

(
11
) Bachelor o/ Science (Lic. cm Ciencias). ~ PauJ Radin. The Method and Theory o/ Ethnology, p. ix, 1933.

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO BMP1RICA

~rimónias e acções legais. A!lém disso, participando nessas acti- tagens. Para poder compreender o pensamento de um povo tor-
v1dades, capta pela acção tanto como pelo ouvido e a vista o na-se necessário pensar nos seus próprios símbolos. Além disso,
que sucede à sua volta. :Esta maneira de recopilar os dados é ao aprender uma língua, também se aprende a cultura e o sistema
bastante düerente da dos primeiros investigadores de campo e social, que não podem deixar de estar reflectidos conceptual-
da dos missionários e administradores. Como estes viviam fora mente no idioma. Todo o tipo de relação social, de crença, de
~a comunidade nativa, em postos das missões ou do governo, processo tecnológico - de facto, tudo o que integra a vida social
tinham na sua maior parte de se basear principalmente nos rela- dos nativos - tem a sua expressão em palavras e em acções.
tos de uns quantos informadores. Se por acaso visitavam uma Quando se chega a compreender perfeitamente o significado de
aldeia nativa, as suas visitas interrompiam e alteravam as acti- todos os termos da sua língua em todas as suas situações de
vidades que eles tinham vindo observar. referência, completou-se o estudo da sociedade. Posso acrescen-
, . Não se. trata aqui somente de uma questão de proximidade tar que, como todo o investigador experimentado sabe, a tarefa
física., mas SlDl tam~m de um aspecto psicológico. O antropólogo mais difícil no trabalho de campo de natureza antropológica
que y1ve entre os nativos, tratando de assemelhar-se tanto quanto é determinar o significado de umas quantas palavras-chave, de
poss1vel a eles, coloca-se ao seu nível. ,Diferentemente do admi- cuja conecta compreensão depende o êxito de toda a investiga-
nistrador ou do missionário, ele não tem autoridade ou estatuto ção. E elas só podem ser definidas pelo próprio antropólogo,
legal a defender e, além disso, encontra-se numa posição neu- que as aprende a usar nas suas conversas com os nativos. Outra
tral. Não se acha entre os nativos para modificar a sua forma rezão para estudar a língua da região ao princípio do trabalho
de vida, mas, modestamente, para estudá-la. Não tem assistentes é que dessa forma o investigador coloca--se numa posição de
nem i~t~rm~diários que se interJ?onham entre ele e o povo, não completa dependência em relação aos nativos. Vai ao seu
há policias, mtérpretes ou catequistas para o separar dos naturais. encontro não como um mestre mas como um aluno.
O que é talvez mais importante para o seu trabalho, é que Finalmente, o antropólogo deve estudar a vida social total.
está completamente só, separado da ·camaradagem dos homens É impossivel compreender clara e profundamente qualquer parte
da sua própria cultura e raça, contando apenas com os nativos da vida social do povo. a não ser no contexto da sua vida social
que o rodeiam para procurar companhia, amizade e compreensão oomo um todo. Portanto, embora não tenha a obrigação de
humana. Pode considerar-se que um antropólogo fracassou se, publicar todos os dados recolhidos. no caderno de notas de um
no momento de despedir-se dos habitantes da região, não existe bom antropólogo achar-se-á uma descrição pormenorizada.
em ambas as partes uma profunda pena na partida. ~ evidente incluso das actividades mais comuns, como a forma de ordenhar
que ele só pode instaurar esta intimidade se fogra converter-se uma vaca ou de cozinhar a carne. Além disso, se o investigador
num membro da sua sociedade e viver, pensar e sentir segundo decidiu escrever um livro sobre as leis, religião ou economia
a sua cultura, pois só ele, e não eles, pode efectuar a adaptação de uma sociedade, descrevendo um aspecto da sua vida e negli-
necessária para que isto seja possível. genciando os restantes, não pode esquecer o pano de fundo que
. Compreende-se assim que, para que o investigador possa constituem o conjunto das actividades sociais e a estrutura social
rcaltzar o seu trabalho nas condições que acabo de mencionar, total.
deva aprender a Ungua nativa. Qualquer antropólogo que se Tais são, de maneira muito breve, os requisitos essenciais
preze converterá a sua aprendizagem na primeira tarefa, evitando de um bom trabalho de campo antropológico. Devemos averi-
os intérpretes desde o início do seu estudo. Algumas pessoas guar agora quais são as condições necessárias para o levar a
não têm facilidade para aprender rapidamente uma lingua cabo. 11 óbvio que em primeiro lugar é necessário que o inves-
estrangeira, e tem de se reconhecer que muitos dos idiomas tiga~or de campo tenha tido um treino académico em Antropo-
primitivos são incrivelmente difíceis de assimilar. Contudo, é logia Social. Além disso, deve possuir bons conhecimentos da
imprescindível dominá-fos o mais completamente possível, teoria geral e da etnografia da região onde trabalha.
segundo a capacidade do estudante e as complexidades da lin- É certo que qualquer pessoa educada, inteligente e sensível
gua, pois desta maneira o investigador não só poderá entender-se pode chegar a conhecer bem um povo estranho e escrever um
perfeitamente com os nativos como também alcança outras van- relatório excelente sobre o seu modo de vida. Posso até dizer

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DE CAMPO E TRADIÇÃO BMP1RICA

que muitas vezes chega a conhecê~lo melhor e a redigir um um europeu não é fácil de adquirir - se, de facto, alguma vez
livro melhor sobre ele que muitos antropólogos profissionais. pode ser adquirida.
Uma série de estudos etnográficos muito correctos foram escri- Para atingir esta proeza, o individuo deve abandonar-se
tos muito antes de que se falasse da Antropologia Social Entre sem reservas e possuir certos poderes intuitivos que nem toda
estes contam-se. por exemplo, Hindu Manners, e Customs and a gente tem. Muitos estudiosos, que sabem o que devem observar
Ceremonies, de Dubois (1816). e An Account of the Manners e como observar, podem realizar um trabalho sobre uma socie--
and Customs of the Modem Egyptians, de Lane (1836). Não dade primitiva de carácter meramente eficiente. Porém, quando
pode. pois. negar-se que um profano possa obter bons resul- há que determinar se um homem pode fazer uma investigação
tados. mas eu penso que também é verdade que, mesmo no com mais profundidade de compreensão, é preciso procurar
nível de translação de uma cultura para outra. sem entrar em algo mais que a simples capacidade intelectual e preparação
linha de conta com uma análise estrutural. um homem que técnica. já que estas qualidades, por si sós, não fazem um bom
some às suas outras qualificações uma preparação em Antropo- antropólogo, como tão-pouco podem criar um bom historiador.
logia Social pode fazer um estudo muito mais profundo e amplo, O que resulta do estudo duma população primitiva não deriva
pois uma pessoa deve aprender o que tem de procurar e como apenas das impressões recebidas pelo intelecto, mas do impacto
observar. na personalidade total, quer dizer, do observador como um ser
Quando chegamos à etapa da análise estrutural, o profano humano total. C.Onsequentemente, o êxito de um trabalho de
acha-se perdido, uma vez que neste caso é imprescindível ter campo depende, em certo modo, da capacidade de um homem
conhecimentos da teoria, dos problemas, métodos e conceitos para estudar uma sociedade em particular. Um individuo que
técnicos. Se, por exemplo, saio a passear, e depois de regressar não sirva para investigar determinado povo pode ser muito apro-
escrevo uma informação sobre as rochas que vi. poderei con- priado para o estudo doutro. ,Para que tenha êxito, tem de
seguir uma descrição excelente mas nunca de carácter geológico. sentir um interesse e simpatia crescentes pelo objecto do seu
Analogamente, um profano pode fazer uma relação da vida trabalho.
social dum povo primitivo, mas. ainda que seja um excelente É difícil encontrar o tipo exacto de temperamento em união
relatório, nunca será um estudo de tipo sociológico. Nesse caso, com a capacidade, preparação especial e amor ao estudo cui-
naturalmente, existe, além disso. a diferença de que para o dadoso, que são os requisitos do bom êxito da investigação.
estudo das rochas o geólogo apenas necessita de conhecimentos Mas é ainda mais raro que tais condições se combinem também
científicos, habilidade técnica e instrumentos apropriados, com a penetração imaginativa do artista. que faz falta para
enquanto na observação antropológica das sociedades intervêm interpretar o observado, e a habilidade literária, necessária para
qualidades pessoais e humanas que pode muito bem possuir traduzir uma cultura estranha para a língua da sua própria cul-
tura. O trabalho do antropólogo não é fotográfico. Ele tem de
um leigo mas não um antropólogo. Por outro lado. é possível
decidir o que é significativo naquilo que observa e o que deve
pôr-se na posição dum indivíduo pertencente a uma cultura
pôr em relevo na subsequente narração das suas experiências.
diferente, mas não na de uma rocha. Para isto, além de um amplo conhecimento de Antropologia,
Portanto, o trabalho de campo antropológico requer. além deve possuir um talento especial para as formas e os padrões,
dos conhecimentos teóricos e preparação técnica, um certo tipo assim como um toque de génio. Não quero com isto dizer que
de carácter e temperamento. Muitos indivíduos, por exemplo, haja alguém entre os antropólogos com todas estas qualidades
não podem suportar a tensão do isolamento, especialmente em que definem o perfeito investigador de campo. Alguns são dota-
condições que, em regra, não são nada confortáveis nem saudá- dos em certos campos e outros noutros e cada um usa os talen-
veis; outros, por seu lado, não podem efectuar as necessárias tos que possui da melhor forma possível.
adaptações intelectuais e emocionais. Para que o antropólogo Ora, uma vez que o trabalho de campo de naturcm antro-
compreenda a sociedade nativa, esta deve estar dentro dele e pológica depende bastante - como creio toe.los hão-de admitir -
não apenas reflectida no seu caderno de notas. A capacidade da pessoa que o realiza, pode perfeitamente perguntar-se se se
de pensar e sentir altemadamente como um selvagem e como
1 alcançariam os mesmos resultados com outra pessoa a conduzir

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ANTROPOLOGIA SOCIAL TRABALHO DB CAMPO B TRADIÇÃO BMP1RICA

os trabalhos. Esta é uma questão muito difícil. A minha .res- mente possível. mas antes a expressar-se a si mesmo. Neste
posta seria, e creio que os dados que possuímos sobre a matéria aspecto. o seu relatório deve expressar um juízo moral, espe-
autorizam a pensar que ela é correcta, que, tratando-se dos cialmente quando aborda assuntos bastante susceptíveis e sobre
meros factos registados, estes seriam praticamente os mesmos os quais tem uma opinião definida; e. assim, os resultados de
em ambos os casos mas, como é lógico, com diferenças indivi- um estudo dependerão, pelo menos nesta exacta medida. do
duais na su~ percepção. que o indivíduo traz consigo e envolve na investigação. As
Para uma pessoa que saiba o que anda a procurar e como pessoas que conhecem tão bem como eu os antropólogos e os
deve procurar, é quase impossível que se equivoque a respeito seus trabalhos estarão de acordo com a minha opinião. Se
dos factos, sobretudo se passa dois anos no seio de uma socie- tivermos em conta a personalidade de quem escreve e consi-
dade pequena e culturalmente homogénea, sem farer outra coisa derarmos que os efeitos destas diferenças individuais tendem
senão estudar a forma de vida dos nativos. Chega a conhecer a corrigir-se entre si no seio do amplo sector dos estudos antro-
tão bem o que se dirá e o que se fará em qualquer situação pológicos. não creio que devamos preocupar-nos desnecessaria-
- quer dizer, a vida social toma-se tão familiar para ele~ que mente com este problema. pelo menos pelo que toca à credibili-
deixa de ser necessária a continuação das suas observações ou dade das descobertas antropológicas.
dos seus questionários. Além disso, independentemente do seu Há, contudo, um aspecto mais geral da questão. Por dife-
carácter, o antropólogo especula dentro dos 1imites de um con- rentes que sejam entre si os distintos investigadores. todos eles
junto de conhecimentos teóricos que determinam nas suas linhas são filhos da mesma cultura e da mesma ·sociedade. Além da
gerais os seus interesses e as suas linhas de investigação. Tra- sua preparação e dos seus conhecimentos especializados. todos
balha também dentro dos limites impostos pela cultura do povo possuem fundamentalmente as mesmas categorias e valores cul-
que investiga. Se são pastores nómadas, tem de estudar o noma- turais. que canalizam a sua atenção para determinadas caracte-
dismo pastoril. Se andam obcecados pela feitiçaria, tem de estu- rísticas da sociedade que estão a investigar. Religião, direito,
dar a feitiçaria. Não tem outra saída senão a de seguir os economia política, etc., são categorias abstractas da nossa cul-
padrões culturais locais. tura em que se padronizam as observações da vida social dos
Deste modo, embora eu pense que os diferentes antropó- povos primitivos. As pessoas que pertencem. à nossa cultura
logos que examinam o mesmo povo acabarão por registar os notam certas espécies de factos e de uma certa maneira. As
mesmos factos nos seus cadernos de notas, creio que eles escre- pessoas que pertencem a culturas diferentes notarão, pelo menos
veriam diferentes tipos de livros. Dentro dos limites impostos em certa medida, factos pjstintos. e percebê-los~ão de outro
~la s~a disciplina e pela cultura examinada, os antropólogos modo. Se considerarmos que isto é ·certo, os dados registados
sao gwados, na escolha dos ternas, na selecção e agrupamento nos nossos cadernos não são factos sociais. mas sim factos etno-
dos factos para o ilustrar e na decisão do que é e não é signi- gráficos, visto que na observação houve selecção e interpreta-
ficativo, pel?s seus diferentes interesses, que reflectem diferenças ção. Neste momento não posso comentar este problema geral
de personalidade, de educação, de estatuto social, de opiniões de percepção e avaliação, mas tão-somente deixá-lo colocado
políticas, d~ convicções religiosas, e assim por diante. para o futuro.
Só se pode interpretar o que se vê unicamente em termos Para terminar, devo dizer, como já o terão notado ao falar
de experiência pessoal e em função do que se é. Os antropólogos, do trabalho de campo antropológico e das qualidades e con-
embora possuindo em comum um conjunto de conhecimentos, dições necessárias para o realizar, que segui a opinião expressa
diferem tanto como as outras pessoas em matéria de experiên- na minha conferência anterior de que a Antropologia Social
cia a~quirida e no que respeita ao seu próprio carácter. A per- deve considerar-se mais como uma arte que como uma Oência
sonalidade de um antropólogo não pode ser eliminada do seu Natural. Os meus colegas, que sustentam uma opinião contrária,
trabalho, do mesmo modo que a personalidade do historiador teriam tratado de maneira bastante diferente os temas a que me
não pode ser ignorada no seu trabalho. Fundamentalmente, ao referi nesta conferência.
ocupar-se de um povo primitivo, o antropólogo não está apenas
a descrever a vida social dessa comunidade o mais conecta-

84 85
V

ESTUOOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

Nas minhas segunda e terceira conferências tentei dar uma


ideia do desenvolvimento teórico da Antropologia Social, isto
é, do desenvolvimento das teorias acerca das sociedades primi-
tivas, ou sobre aquilo que no século passado se denominaria
instituições do homem primitivo e no século anterior sociedades
incultas. Na última conferência passei em revista o progresso
dos nossos conhecimentos sobre essas sociedades primitivas e
expliquei como tinham melhorado, em qualidade e quantidade,
os relatos sobre elas, de5de as observações fortuitas dos explo-
radores até aos estudos intensivos dos modernos profissionais,
passando pelos detalhados registos de missionários e administra-
dores. Esta constante progressão do conhecimento foi mode-
lando sucessivamente as teorias que, em cada reformulação,
passaram a orientar a observação para camadas cada vez mais
profundas e novos campos da vida social dos povos primitivos,
conduzindo isto por sua vez a um novo incremento de infor-
mação.
O grande desenvolvimento da investigação deu origem a
uma nova orientação dos fins e métodos da Antropologia Social.
Nesta conferência farei um breve resumo de algumas das ten-
dências a que deu lugar e, depois, como exemplo do tipo de
estudo a que se dedicam actualmente os investigadores de
campo, tratarei pormenorizadamente umas quantas monografias
antropológicas em que registaram e ordenaram as suas obser-
vações. Já vimos coiho se reali:zam estas observações; estuda-

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ANrROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

remos agora como se organizam e a utilização que delas fazem Está então obrigado a publicar uma memória completa das suas
os antropólogos. · observações em todos os aspectos da sua vida? O historiador
O ponto fulcral que convém não esquecer é que o antropó- não se enfrenta nesta fase com o mesmo problema. Ele pode
logo trabalha dentro de um corpo de conhecimentos teóricos e seleccionar, no material à sua disposição, o que é relevante para
faz as suas observações para solucionar os problemas que dele o seu tema e pôr o resto de parte. O que não incorpora no seu
derivam. Esta insistência nos problemas é uma característica livro não fica perdido. O antropólogo, e também, em grande
de qualquer tipo de estudo. Lord Acton recomendava aos seus medida, o arqueólogo. estão numa posição bastante diferente.
alunos de História que estudassem problemas e não períodos. porque aquilo que não registam pode ficar, e muitas veus fica,
Por seu fado, Collingwood dizia aos estudantes de arqueologia perdido para sempre. O antropólogo não é só o cotejador e o
que estudassem problemas e não jazidas. Nós aconselhamos intérprete de fontes. É o criador delas. ·
os nossos estudantes de Antropologia a estudar problemas e Daí que muitos opinem que o dever do investigador. de
não povos. campo não se reduz apenas a anotar, mas também a publicar
As primeiras monografias de trabalhos de campo consis- tudo aquilo que observou, tenha ou não tenha interesse para
tiam em geral em relatos descritivos de um ou outro povo, sem ele. A primeira coisa que o deve preocul?ar é .reunir a ~~r
especial atenção a uma análise sistemática, ainda que as espe- quantidade possivel de dados enquanto ha1a sociedades pmmti-
culações pseudo-históricas fossem às vezes tomadas por tal Cada vas susceptiveis de serem estudadas. O antropólogo é um rcco-
estudo compreendia uma série de capítulos que tratavam suces- pilador de dados e não um árbitro, uma vez que decidir sobre
sivamente e em pormenor dos diferentes aspectos da vida social: a importância de um facto significa prejulgar o interesse das
meio ambiente, características raciais, demografia, esta~ticas gerações futuras. Esta é uma dificuldade a que tentamos res-
vitais, tecnologia, economia, organização social, ritos de passa- ponder de diferentes modos. A prática mais comum consiste
gem, fois, religião, magia, mitologia, folclore, passatempos, etc. em o investigador publicar uma série de monografias sobre os
As monografias modernas tentam ser algo mais que a mera des- diversos aspectos da vida de um povo primitivo que ihe parecem
crição da vida social de um povo com interpretações de tipo de particular importância, usando para esta fin8;lidade apenas
mais popular, que é a que necessariamente conduz qualquer os dados que se demonstram relevantes para os seus temas selec-
descrição de uma cultura em termos de outra. Elas apontam cionados e suficientes para os ilustrar. Os restantes publicam-se
para uma descrição analítica e integrante que ressalte aquelas em revistas especializadas ou são mimeografados ou reduzidos
características da vida social que são significativas para a com- a microfilmes.
preensão da sua estrutura e para a teoria geral. ·A enorme massa de informação que se pode recolher ao
Esta posição começou a ser entendida logo que os estu- estudar um povo primitivo durante dois anos implica uma
diosos da teoria iniciaram as suas próprias investigações de mudança. já bastante evidente, no método antropológico, a~r
campo. Isto significa que os factos, isto é, as observações regis- de se adoptar a utilização dos dados já anteriormente refenda.
tadas no caderno de notas do antropólogo, não se publicam para Vimos que no passado os antropólogos eram uns .devo!OS ~o
descrever o que faz ou diz um povo, mas sim para demonstrar método comparado. Quer a finalidade fosse reconstruir a históna,
que o que ele diz ou faz, além do seu interesse intrínseco, clari- quer descobrir fórmulas descritivas gerais, o procedimento era
fica alguns problemas da cultura ou da vida institucional. Por o mesmo. Lia-.sc uma grande quantidade de livros, extraia-se
outras palavras, para decidir o que deve figurar no seu livro e deles informação respeitante à matéria da investigação e jun-
o que deve deixar de fora, o antropólogo guia-se pela impor- tava-se esta num novo. livro. Não vamos entrar de novo em
tância do material para um determinado tema e pela sua utili- considerações sobre o valor deste tipo de estudo comparado
dade para ressaltar características significativas de algum sis- literário. &tá amplamente provado que se trata de uma for-
tema de actividades sociais. midável tarefa que não pode ser levada a cabo por wn homem
Na realidade, é nesta parte. de anotação e redacção que o que está obrigado a publicar os resultados de dois ou três tra-
antropólogo social· ·se defronta com uma séria dificuldade. Já balhos de campo que tenha realizado, pois para os completar.
vimos que ele realiz.a um estudo global da vida social do povo. se além disso tiver algum cargo docente ou administrativo, ncccs-

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ANJ'ROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

sitará do resto da sua vida. Como hoje em dia quase todos os bém é noutro sentido bastante diferente, comparado; mas com-
antropólogos fazem trabalhos de campo, esta situação encon- parad~ numa acepção substancialmente distinta daquilo a que
tra-se bastante generalizada. chamamos «método comparado», que foi praticamente aban-
É evidente que, nestas circunstâncias, a Antropologia Social donado, em parte pelas razões que já expus e em parte porque
rapidamente se desintegraria numa infinita sucessão de estudos só raras vezes dá resposta às perguntas que se fazem.
desconexos se não houvesse um método comum de investigação Do que tenho vindo a dizer deduz-se outra mudança de
para substituir o velho uso do método comparado. Ora. esta direcção, pois não s6 se transformou o método como tam~.
necessidade encontra-se hoje suprida pelo que nas Ciências em parte a finalidade da investigação. Compreende-se perfei-
Naturais se denominaria método experimental, que é o resultado tamente . que o trabaiho de campo seja incompatível com os
de a Antropologia Social se ter transformado em estudo de esquemas de evolução social propugnados pelos antropólo~os
campo ou disciplina baseada na observação. O exemplo que do século passado, já que não é possível fazer uma análise
se segue pode aclarar o que quero dizer. directa dos factos históricos ou daqueles de que não se ~~~r­
Um antropólogo realizou um estudo dos ritos religiosos vou um registo. Num trabalho de campo ?e um povo prumtiv~
numa sociedade primitiva e chegou a determinadas conclusões não há maneira de provar ou refutar a hipótese de que el.e f~1
acerca do papel que desempenham na vida social. Se formula em tempos matrilinear ou que viveu num estado de promiscui-
estas conclusões com cJarei.a e em termos que permitam resol- dade sexual.
vê-las como problemas susceptíveis de ser investigados, é pos- Além disto o alcance da investigação é inevitavelmente
sível que ele próprio ou outro antropólogo façam observações limitado a pequ~nos problemas, dentro de cujos limites é pos~f­
numa segunda sociedade, capaz.es de demonstrar se as conclu- vel fazer um estudo que pode levar a conclusões frutuosas. Ho1e.
sões iniciais têm ou não uma ampla validade. Provavelmente os esforços ambiciosos no sentido de obter sinteses de alcance
descobrirá que algumas são válidas na sua totalidade, que outras universal cedem o '1ugar a trabalhos mais modestos e menos
o não são e que outras ainda, com certas modificações, tomar- espectaculares. Enquanto o antropól~go do século XIX _P~­
-se-ão correctas. •Partindo do ponto alcançado pelo primeiro curava as respostas para perguntas tais como: «Qual ~ o s1~­
estudo, a investigação no segundo trabalho já se realizará. pre- ficado sociológico da religião?>. actualmente nenhum mvestiga-
sumivelmente, de maneira mais intensa, adicionando-se algumas dor, ou pelo menos nenhum que tenha senso comum, perguntará
novas formulações às conclusões confirmadas do primeiro estudo. tal coisa. Antes, trata de determinar, · por exem.plo, o pa~l que
Surge assim uma hipótese sobre os ritos religiosos dos povos desempenha o culto dos antepassados num sistema soc1a1 do
primitivos baseada no seu estudo em duas sociedades. Logo a tipo a que chamamos de linhagem segmentar entre alguns povos
seguir segue-se um terceiro estudo, um quarto e um quinto. africanos. Em vez de tentar pintar numa gigantesca tela o .desen-
O processo pode continuar indefinidamente. Se os estudos são volvimento da noção de responsabilidade ou o desenvolVJmento
sistemáticos e cada um tenta verificar as conclusões obtidas até do Estado em toda a raça humana, o antropólogo actual con-
esse momento e adiantar novas hipóteses que permitam uma centra-se ~os pequenos problemas que permitem uma investiga-
verificação, com o progresso do conhecimento e o aparecimento ção directá e uma observação pessoal, como. sejam as !unções
de novos problemas cada uma dessas hipóteses conduzirá a um do feudo ou a posição de chefia de certo tipo em sociedades
nível mais profundo de investigação, que por sua vez levará a onde as actividades sociais que se concentram à volta dest:is
uma definição cada vez mais clara de conceitos. Cada novo tra- instituições possam ser observadas e estuda~as. Em v~z ~~ dis-
balho, se possui ·algum valor, não s6 nos proporciona infor-
cutir se as sociedades primitivas são comunistas ou mdmdua-
mação acerca de determinada instituição na sociedade primitiva
estudada, como também aclara as características significativas tistas, o antropólogo moderno procura real~r estud.os .P?rm~­
dessa instituição noutras sociedades, inclusive naquelas em que norizados do complexo de direitos colectívos ou md1Vldua1s
a importância dessas características não foi apercebida pelos pri- centrados na propriedade, às vezes na terra, outras no gad~, numa
meiros investigadores. Considerado neste sentido; o trabaJho de determinada sociedade, para des~obrir com~ ~stão relac1on~dos
campo pode ser hoje em dia qualificado de experimental. Tam- estes direitos entre si e com os sistemas soc1a1s em que se mte-

90 91
ANTROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

gram: sistemas de parentesco, sistemas políticos, sistemas de Vou começar com o sum~o de um dos livros .d~ Mali-
culto, e assim por. diante. nowsk.i, porque ele foi o primeiro a~~opólo~o profiss~~nai _a
Em resumo. a Antropologia Social prefere efectuar actual- reali:zar um trabalho de campo intensivo mediante a utili:zaçao
mente estudos de observação, intensivos e pormenoriz.ados, sobre da Ungua nativa. Embora tivesse recolhido u~ enorme 9uan-
uma série de algumas sociedades seleccionadas. com o objectivo tidade de material sobre os islenhos das Tobnand e publicado
de resolver problemas limitados. Assim se pensa obter um maior vários volumes sobre eles antes de morrer, só pôde dar uma
conhecimento da nature:za da sociedade humana que o que se informação parcial deste povo, e nós continuamos ainda. a igno-
conseguiria mediante generaliz.ações. em larga escala. feitas a rar algumas das suas mais importantes actividades. espec1alm~te
partir da literatura. Graças a isto, só agora começamos a conhe- a sua organi:zação política e o seu sistema de parco~. O livro
cer um pouco da vida social dos povos primitivos. que vou discutir, Argonauts o/ the Wes!ern. Pocifi~ (1922),
A insistência da moderna Antropologia Social na reali:zação ainda que pormeooriz.ado e escrito num estilo _JOrnalls~~· ~
de estudos de campo sobre problemas limitados teve outra con- considerar-se como um clássico da Etnografia descntiva, nao
sequência para a qual queria chamar a vossa atenção antes de só por ser o primeiro no seu género, como também pelo seu
dar alguns exemplos de estudos modernos. Nas conferências considerável mérito.
anteriores já sublinhei que os antropólogos do século XIX tinham A obra trata de um conjunto de actividades que os habi-
um sentido realista da cultura. Interessavam-se pelos costumes tantes das ilhas Tobriand chamam kula. Estes islenhos e os
e estes eram para eles entidades independentes. Coisas que uma nativos de adgumas ilhas vizinhas formam uma espécie de liga
sociedade tinha e que outra sociedade não tinha. Até mesmo para a troca de certos objectos: colares compridos de conchas
um escritor de mentalidade tão sociológica como McLennan vermelhas e braceletes de conchas brancas. Neste sistema de
considerava a exogamia, o totemibmo, a matrilinearidade, e assim troca, os colares percorrem o circuito das comunidad~ ~
por diante, como elementos de costumes que, somados, forma- ilhas num sentido, e os braceletes descrevem o mesmo circwto
vam as culturas. Portanto, o estudo era orientado no sentido de mas em sentido contrário. Estes objectos não têm nenhum valor
determinar se um povo tinha ou não leis exogâmicas, se era prático, mas apenas um valor ritual ou de prestigio, consistindo
totémico ou se possuía sistemas patrilineares ou matrilineares. o prestigio no renome que adquire um indivíduo. pelo facto. de
Este tipo de taxonomia cultural foi sendo lentamente aban- receber, possuir e logo passar a outros a1guns ob1ectos. espec1al-
donado pelos antropólogos sociais ingleses. Poder-se-ia dizer mente estimados. Os homens que tomam parte nestes mtercâm-
muito sobre este tema, mas é suficiente afirmar que o investi- bios têm sócios nas ilhas que visitam. O tráfico realiza« com
gador moderno tende a pensar mais em termos de sociedade formalidade e decoro e não deve haver regateios. Estes só se
que em termos de ·cultura, isto é, em termos de sistemas sociais produzem uma vez terminadas as trocas rituais, quand~ t&n
e valores e nas suas inter-relações. Também já nã.·· se contenta lugar as transacções comerciais ordinárias, como ~ negócio ~
em saber que o povo tem crenças totémicas, mas procura des- alimentos ou artigos de uso prático. A kula propnamente dita
cobrir como podem essas crenças reflectir os valores da descen- é o sistema de intercâmbio ritual por meio do qual colares e
dência e a' solidariedade dos grupos baseados num antepassado braceletes percorrem as comunidades das ilhas num circuito
comum. Ele não acredita que saber que o povo traça a linha- interminável.
gem pelas mulheres, e não pelos homens, constitua um conheci- •P ara levar a cabo estas trocas, os chefes das aldeias e gru-
mento significativo em si mesmo. Antes investiga como este pos de a1deias vizinhas organizam grandes expedições . comer-
sistema matrilinear afecta a relação irmão-irmã ou a relação ciais, o que pressupõe a preparação d~ canoas, conheamentos
irmão da mãe-fillio da filha. Ailguns destes estudos modernos. náuticos, conhecimento de feitiços mágicos para lutar oontra os
como se verá, são mais abstractos e estruturais que outros - há a:zares da aventura e conhecimento das tradições e mitos para
uma grande diferença de opiniões sobre os métodos de análise - , guiar os argonautas nas suas viagens e negociações. Malin~
mas todos eles tendem a ser. quando comparados com os ante- considerou por isso necessário dar ao iongo de todo um livro
riores, sociológicos e funcionais. Passo agora a. dar-vos alguns a informação de todas estas e muitas outras matérias. Deste ~odo
exemplos. viu-se na necessidade.. de nos deixar uma relação pormenonzada

. 92 93
ANTROPOLOGIA SOCIAL ESl1.JDOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

da magia e dos mitos. de nos descrever a paisagem, de nos partir da chefia e descrever a kul~ em f uoção des~ instituição
narrar como. c:s nativos cultivam os seu~ jardins, de nos indicar ou podia também escrever o seu 11vro sobre a magia e descre-
qual é a pos1çao das suas mulheres, como constroem e navegam ver a kula e a chefia em função desse elemento.
nas suas canoas. e assim por diante. Chegou mesmo a narrar Como raras vezes recorreu às abstracções, Malinowski não
o~ se~ próprios sentimentos pessoais, já que também estava pôde ver claramente o que talvez .~ja o aspect<:> mais ~te­
ali. Pinta-nos portanto um quadro da realidade vivida da socie- rístico da kula. quer dizer, a reuruao de comumdades pollticas
dade destas ilhas, que lembra as novelas de J!miJe Zola autónomas por meio da aceita~o de .valores rituais co~uns.
Neste 'livro sobre os habitantes das Tobriaod, o p~eiro Além disso, a comparação da vida social de um~ comu01d~de
que escreveu e o melhor na minha opinião, ele expõe muito assim descrita com outras, analogamente consideradas, fica
claramente a sua concepção do que constitui um sistema social limitada à avaliação das semelhanças e diferenças culturais e não
e f~ uma análise funcional do mesmo. Para ele. o sistema pode ser de tipo estrutural, que requer um certo grau de abstrac-
social é. uma sucessão de actividades ou acontecimentos, e não ção. Contudo, a literatura sobre o tema enri9-ueceu-se com
um con1untc;> de abstr~cções. .Para sair numa expedição, os habi- .alguns excelentes e importantes estudos etnográficos sobre um
tantes das ilh.as fabncam canoas. Ao construí-las pronunciam certo número de sociedades primitivas, levados a cabo por alu-
fórmulas mágicas; estas têm a sua origem em contos, mitos e, nos de Malinowski com o que ainda se pode considerar, em
por outr? lado, podem pertencer a uma pessoa por herança grande medida. um sentido realista da cultura. Entre estes con-
do seu tio materno. Na construção de uma embarcação e no tam-se We, tlze Tikopia do professor Hrth (1936), Reaction to
planeamento de uma expedição, os chefes organizam e dirigem Conquest de Hunter (1936), A Handbook of Tswana law and
~ trabalho; a su~ autoridade provém principalmente da sua Custom do professor Schapera (1938) e Land, Labour and Diet
nqueza, que é ma10r que a da gente comum. Eles são mais ricos in Northern Rhodesia do dr. Richards (1939).
porque poss~em maiores jardins. E têm maiores jardins porque O termo abstracção tem vários significados. Pode signifi-
possuem vánas mulheres. Para Malinowski todas estas diferen- car o tratamento de apenas uma parte da vida social, em atenção
tes actividades formam um sistema. uma vez que cada uma delas a problemas de investigação especiais e limitados, considerando
depende de todas as outras e a função de cada uma é a parte o resto unicamente na medida em que é relevante para o estudo
que ~esen:penha no .co~junto total de actividades que têm uma de$ses problemas. Também pode entender-se como um_a aná!ise
r~la~o· directa ou md1recta com o intercâmbio dos objectos estrutural realizada mediante a integração de abstracçoes feitas
ntua1s da kula. _ a partir da vida socia:l. Como exemplc;> do primeir~ procedimen~
Num certo ponto de vista, é exacto que tudo isto constitui discutirei o livro da dr.ª Mead intitulado Commg of Age m
um siste~a de ~ctividad~s. Este modo impressionista de apre- Samoa (1929). Trata-se de um livro discursivo, quase diria de
se~ta ~ a vida social é mmto eficaz mas, a falar verdade, o tema conversa fiada e feminino. com tendência para o pitoresco. ~ o
prmc1pal acaba por reduzir-se a uma síntese descritiva dos que eu chamo literatura antropológica de ti~o «m~rmúrio-do­
acootecim~n.tos. N~o é u~1a ~tegração teórica, embora os pro- -veoto-nas--folhas-das-palmeiras», de que Malinowsk1 lançou a
b~en;ia.s leoncos se1am discutidos nos interlúdios ao longo da moda.
h1sto~m .. Con~equentemente, não há um verdadeiro padrão de O objectivo do livro é demonst.rar que . as dificulda~es da
relevanc1a, pois cada coisa tem uma relação espacial e temporal adolescência, particularmente as das r~pangas, .que sa~ um
com todas as outras na realidade cultural, e seja qual for o aspecto tão comum e perturbador da vida americana, nao se
P?nto de que se parta está-se sempre no mesmo terreno. A este observam em Samoa; fogo podem considerar-se como o produto
nivel de factos, uma descriç.'io da vida social em termos dos de· um género particular de ambiente social, originado pelas
seus vários ~spectos leva inevitavelmente a infinitas repetições restrições da civilização e não devido à natureza. A dr.ª Mead
e às d~n_ommadas ~onclusões teóricas, que não são mais que trata de demonstrar-nos corno as condições da adolescência em
r~~escnçoe;c; n.u~.ª linguagem mais abstracta, pois as correlações Samoa são diferentes das americanas. Com tal objectivo, con-
discretas ~o d1f1cilrs~ente se podem descobrir se não se partir de ta-nos tudo o que observou a respeito do quadro social da rapa-
uma realidade concreta Maliuowski podia ter começado a riga de Samoa. como, em sentido amplo, é educada, como

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóGICOS MODERNOS

decorre a sua infância, qual o seu lugar na vida da familia do e tão variados valores antagónicos que é obrigada a realizar
povo e no cicculo mais vasto da comunidade e a variedade' das uma escolha, que é precursora do conf:lito.
suas relações sexuais com os jovens. ·A descrição é sempre feita O livro que acabo de comentar distingue-se da maioria das
em o~m ao probl~ma em ~tudo, isto é, à moldagem da per- modernas monografias de trabalhos de campo pelo facto de
sonalidade da capanga q ue vai crescendo pelas condições sociais que nele não se apresenta uma análise da estrutura social de
e as reacções da sua personalidade às mudanças fisiológicas da Samoa, nem sequer de forma esquemática. Por isso é difícil ter
puberdade. qualquer tipo de perspectiva sobre os factos relatados. Contudo,
. A conclusão a que se chega neste estudo é que não há é um bom exemplo de um estudo dedicado a um único pro-
diferenças entre as raparigas americanas e as raparigas samoanas blema, escrito por uma mulher sumamente inteligente.
no processo de adolescência em si mesmo. As diferenças resi- Vou agora falar de dois livros meus. Como desculpa posso
dem na resposta que se lhe dá. Em Samoa não há crises ou alegar que é mais fácil apresentar uma análise de uma cultura
P~. mas um desenvolvimento ordenado de interesses e acti- que nos é familiar que uma de outra que desconhecemos. Estas
VIdades. <As mentes das raparigas - diz-nos a dr.• Mead - duas obras ilustram a utilização da abstracção em dois casos
fi.áo ~tão dominadas por conflitos, perturbadas por questões bastante diferentes: o primeiro é o estudo de um sistema de
filosó~cas. tenta~ por remotas ambições. Viver como uma ideias, e o segundo o estudo de um sistema de grupos políticos.
ra~ga com mwtos amantes, tanto tempo quanto possível, e O meu primeiro livro, Witchcraft, Oracles and Magic among
depoIS ~-se: no seu próprio povoado, perto dos seus parentes, the Azande (1937), ocupa~ de um povo da Africa Central.
e ter muitos. filhos, ~o ambições uniformes e satisfatórias» (1). Ê uma tentativa de tornar compreensíveis uma série de crenças,
A capanga amencana, na mesma fase da sua vida sofre todas elas estranhas à mentalidade de um inglês contemporâneo,
~nsões e pressões porque o seu ambiente social é diferente.' Quais mostrando como constituem um sistema de pensamento .inteligf-
sao então as diferenças mais significativas? A dr.• Mead é de vel relacionado com as actividades sociais, a estrutura social e
opin:ião que as ~s importantes residem na falta de profundos a vida do indivíduo.
sentimentos pessoais e de valores antagónicos na sociedade de Entre os Azande é costume geral atribuir qualquer infor-
Samoa. A rapariga samoana não se preocupa excessivamente túnio que suceda à bruxaria, que eles consideram como um
por a!lguma coisa ou por alguém e, em especial, não cristaliza estado orgânico interno, embora a sua actuação decorra, segundo
grandes esperanças em nenhuma relação social. Isto dev~se em pensam, por meios psíquicos. O bruxo envia o que eles chamam
parte ao facto de que não são educadas num estreito círculo a alma ou o espirito da sua feitiçaria para causar males nos
familiar, mas sim .num mais amplo círculo de parentesco, de outros. O prejudicado consulta então os oráculos, de que exis-
modo que a autondade e o afecto encontram-se divididos por tem diversos tipos, ou um adivinho, com a finalidade de des-
um grande número de pessoas. •A inda mais importante é a cobrir quem o está a prejudicar. O processo pode ser muito
cultura homogénea dos samoanos. Todos eles têm os mesmos demorado e complicado, e, uma vez descoberto o culpado, pede-
padrões de comportamento. Há apenas um conjunto de crenças -se-lhe que cesse a sua influência maligna.
religiosas e um único eódigo mora·). C.Onsequentemente, as ado- Se num caso de doença o bruxo não interrompe a sua
~ntes samoanas .não têm que escolher nestas matérias, o que actividade maléfica e o atacado morre, os parentes do morto
meVItav~lmente te~ de ~ectar as suas relações com os que podiam, antigamente, fovar o assunto ante o seu príncipe e exi·
as rodeiam, e eVItam assim os conflitos que derivam de ter gir vingança ou uma compensação. A outra possibilidade, que 6
escolhido entre diferentes conjuntos de valores e os desajusta- a que se emprega invariavelmente nos nossos dias, é destruir o
_mentos e neuroses que resultam dos conflitos. A adolescente feiticeiro por meio de magia letal. Os Azande não só conhecem
americana, ao contrário, depara~ no seu meio social com tantos este tipo de bruxaria como também possuem. além disso, um
vasto reportório de princípios e técnicas de magia. Para conhe-
cer algumas delas é preciso pertencer a associações mágicas
especiais, que servem principalmente para proteger as suas pes-
~) P. 1$'7, soas e actividades dos encantamentos.

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ANTR.OPOLOOIA SOCIAL ESTIJDOS ANTR.OPOLóGICOS MODERNOS

·Bruxaria, oráculos e magia formam assim um complexo cam-na pela feitiçaria. A feitiçaria e o celeiro, operando con-
sistema de crenças e ritos que só têm significado se se consi- juntamente, mataram o homem.
derarem como partes interdependentes de um todo. Este sistema O conceito de feitiçaria proporciona aos Azande não só
possui uma estrutura lógica; se aceitarmos certos postulados, uma filosofia natural, como também uma filosofia moral. em
as deduções e acções nelàs baseadas são correctas. Um feitiço que também está contida uma teoria psicológica. tAinda que
provoca a morte de uma pessoa. Logo, uma morte é prova de um homem seja um feiticeiro, a sua feitiçaria não prejudicará
feitiçaria e os oráculos confirmam que foi a feitiçaria que a as pessoas a não ser que haja um acto de vontade. Terá sempi:e
provocou. A magia aparece para vingar a morte. Se um viz.inho de haver um motivo e este encontrar~á sempre nas más pai-
morrer pouco depois, os oráculos determinam que ele morreu xões dos homens. no ódio, na cobiça. na inveja, no ciúme e no
vítima da magia de vingança. Vemos, pois, que O· pensamento ressentimento. As desditas provêm da feitiçaria. e a feitiçaria é
místico forma uma espécie de mosaico, em que cada um dos dirigida por más intenções. Os Azande não culpam um h?mem
elementos das crenças encaixa perfeitamente. Portanto, se, num por ser feiticeiro. Ble não o pode evitar. O que denunciam é
sistema de pensamento tão fechado, uma determinada expe- a maldade que existe nele e que o leva a prejudicar outros.
riência está em contradição com uma crença, isto só pode pro- Eu posso acrescentar que os Azande têm plena consciência do
var que a experiência é errada ou inadequada. Ou então, para que os psicólogos chamam projecção, ou seja, que quando um
dar uma solução satisfatória à aparente incongruência, haveria homem diz que um outro o odeia e o está a enfeitiçar, muitas
que interpretar a contradição através de complicadas explicações vezes é o primeiro que odeia e que é o bruxo; e, além disso,
secundárias baseadas nas crenças. Até o cepticismo acaba por que também se apercebem do papel importante desempenhado
corroborar as crenças sobre que se exerce. Assim, ao criticar pelos sonhos, ou do que agora se denomina subcon.sciente: nas
determinado adivinho ou, por exemplo, desconfiar de um certo más paixões dos homens. ·Por outro lado, é necessáno sublmhar
oráculo, ou forma de magia, o que se consegue é apenas aumen- que o dogma de que a maldade de um feiticeiro é a causa ~as
tar a fé noutros feiticeiros e no sistema como um ·todo. desditas não pode invocar-se como desculpa para as acçoes
A análise de um grande número de casos em que surgiu provocadas por erros OL! ignorância. A feitiçaria só provoca
a discussão sobre feitiçaria, e dos comentários dos Ai.ande sobre infortúnios imerecidos. Consequentemente, se um homem comete
o assunto em muitas ocasiões, mostra que a feitiçaria lhes pro- adultério, se é desleal ao seu rei. se falha em alguma empresa.
porciona uma filosofia dos acontecimentos que é intelectual- como olaria. por exemplo, por falta de habilidade, está sujeito
mente satisfatória. A primeira vista parece absurdo sustentar às penalidades ou fracassos que mereçam as suas acções.
que se as térmitas destruíram os suportes de um celeiro e este Como o feiticeiro só prejudica o homem que tenha más
caiu em cima de um homem sentado à sua sombra, matando-o. intenções a seu respeito, o atingido por uma doença ou outro
isto seja um acto de feitiçaria. Ora bem, os Azande, tal como infortúnio põe os nomes dos seus inimigos ante os oráculos · e,
nós, não negam que o colapso do celeiro seja a causa imediata consequentemente. é um inimigo que os oráculos declaram ser
da morte; o que afinnam é que se o indivíduo não tivesse o homem que o está a enfeitiçar. As acusações de feitiçaria , por-
estado enfeitiçado o celeiro não teria caído nesse preciso tanto. só surgem entre pessoas cujas relações sociais permitem
momento sobre esse determinado homem que estava sentado estados de inimizade. A sua incidência é determinada pela estru-
tura social. Por exemplo, as relações entre crianças e adultos não
nesse lugar. Porque não caiu noutro momento ou quando estava
são de natureza a fomentar estados de inimizade e assim as
lá sentada outra pessoa? ~ fácil explicar a queda do celeiro.
crianças não são acusadas de feitiçaria contra os adultos. Por
Foi devida às térmitas e ao peso do milho armazenado no seu raiões semelhantes, os nobres não são acusados de enfeitiçar
interior. Também é fácil explicar a presença do homem debaixo plebeus. ainda que neste caso haja outra razão suplementar, que
dele. Estava aí por causa da sombra, resguardando-se do calor é a de que nenhum plebeu se arriscaria a acusar um nobre ?e
do dia. Mas porque é que estas duas cad~ias de acontecimentos feitiçaria. Do mesmo modo, uma vez que as mulheres na socie-
coincidem num certo ponto no espaço e no tempo? Nós dize- dade Zande não têm relações sociais com homens salvo os seus
mos que a coincidência se deve ao aqlSO. Os Ai.ande expli- maridos e os homens da sua linhagem - e nunca prejudicariam

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ANTROPOLOOJA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóOICOS MODERNOS

a sua linhagem-, elas só são acusadas de enfeitiçar as vizinhas dominante, de modo que as relações entre as partes de uma
e os seus maridos, e nenhum outro homem. tribo, tanto a sua separação como a sua unidade, estão <:On-
Os oráculos têm graus de importância. Uns são menos segu- ceptualizadas e expressas dentro de um quadro de valores liga-
ros que outros nas suas revelações e, consequentemente, não dos à descendência.
·se pode proceder até que as suas afirmações sejam confirmadas Como exemplo do tipo de problema que estudamos e da
pela autoridade máxima, o oráculo dos venenos. A importância análise estrutural que realizamos, e deixando de fado outra~
deste depende, por sua vez, do estatuto social do seu dono. Um questões investigadas sobre este fundo estrutural geral, passarei
caso pode portanto transitar de um oráculo para outro, tal a comentar muito brevemente o conceito que os Nuer têm do
como no nosso país de um tribunal para outro. até chegar ao tempo.
oráculo do rei, que dita o veredicto final, para o qual não há Só esboçarei em linhas gerais o raciocínio que mostra, por
apelação. Assim, o mecanismo legal que funciona em casos de um iado, que o conceito das mudanças natu~ como P?ntos de
feitiçaria está, em última instância, nas mãos do rei e dos seus referência para assinalar o tempo está detemunado pelo ntmo das
representantes. o que faz com que a acção social provocada actividades sociais e, por outro lado, que esses mesmos pontos de
por esta crença seja um dos principais suportes da autoridade referência são reflexo das relações estruturais entre grupos sociais.
real. O funcionamento das práticas de feitiçaria no seio da vida Os pontos de referência quotidiana são as tare~a~ do kraal .e. ~ra
social está também intimamente vinculado ao sistema de paren- os periodos mais longos, as fases de outras actí.vtdades penódicas,
tesco, especialmente através do costume de vingança. Creio ter como a monda ou os movimentos sasonais dos homens e dos seus
já dito o suficiente para mostrar que, graças à investigação antro- rebanhos. A passagem do tempo é a sucessão de actividades e as
pológica, o que à primeira vista apenas parece uma superstição relações que têm entre si. !>aqui derivam uma série de conclusões
absurda é na realidade o principio integrante de um sistema de interessantes. Por exemplo. que o tempo não tem o mesmo vafor
pensamento e leis morais, que desempenha um importante papel em todas as estações do ano. Além disso, como os Nuer care-
na estrutura social. cem de um sistema abstracto para medir o tempo, não consi-
O meu segundo livro, The Nuer. A Description of the deram, como nós, que este seja algo real que passa, que J?Ode
Modes uf Livelihood and Political Institutions uf a Nilotic ser desperdiçado, poupado, etc. Por outro lado, não necessitam
People (1940), trata de um tipo muito diferente de povo e socie- de coordenar as suas actividades em função de uma passagem
dade e ocupa-se de problemas de variadissimas espécies. Os abstracta do tempo, porque os seus pontos de referência são as
Nuer são pastores seminómadas que vivem na zona de pântanos próprias actividades. Deste modo, em certo mês, faze~-se. as
e savanas do Sul do Sudão anglo-egipcio. Formam um conglo- primeiras represas para a pesca e estabelecem-se os. pnmeiros
merado de tribos e, como não têm chefes nem instituições legais, acampamentos para o gado; ora, como se está precisamente_ a
a tarefa mais importante a realizar pareceria ser descqbrir o fazer essas actividades, deve ser, pois, esse mês ou estar então
princípio que preside à sua integração tribal ou política. J! evi- muito perto. Quer dizer, não se fazem as represas para a pesca
dente que os Nuer, como possuem uma cultura material muito porque 6 Novembro, mas sim. ao contrário, é Novembro porque
simples, dependem bastante do meio que os rodeia. Examinando se estão a fa~r as represas.
a sua ecologia. verifica-se que a manutenção da vida pastoril Os perlodos mais longos de tempo são <_IUase ~mpl~ta­
em condições difíceis toma necessária uma ordem política bas- mente estruturais. Os acontecimentos que relacionam sao dife-
tante ampla para conservar o seu modo de vida. Esta ordem rentes para os distintos grupos de pessoas; assim, cada grupo
polltica é fornecida pela estrutura tribal Um estudo das dife- possui o seu próprio sistema de assinal~r o tempo, além ?º
rentes comunidades locais dentro de uma tribo Nuer pôs em sistema colectivo que se refere a acontecimentos, de excepc10-
evidência que cada uma delas se encontra identificada politica- nal significado para todos eles. Por outro lado, os. ~~er do
mente com uma linhagem, embora a maioria dos seus membros sexo masculino estão estratificados por idades em divtsoes ou
não pertença a esta linhagem, e que todas estas linhagens são conjuntos, principiando cada novo conjunto aproximadamente
ramos de um único clã. Cada divisão territorial de uma tribo · cada dez anos. Não vou entrar em pormenores sobre esta orga-
está assim coordenada com o ramo correspondente deste clã nização, mas apenas dizer que muitas vezes se assinala, por

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTR.OPOLóGICOS MODERNOS

referência a estes grupos, o momento em que sucederam deter- de vínculos de parentesco que une os membros d~ u~a aldeia e
minados acontecimentos. Os intervalos entre os acontecimentos das aldeias vizinhas desempenha um .papel mwto 11Dportante
não se c:Ontam, então, em função do conceito de tempo tal qual na organização da vida rural irlandesa. O aut~r disc~te este
n?~ o entendemos, mas em função da distância estrutural, da e muitos outros tópicos; eu, pelo meu lad_?. refenr-me-e1 ~reve­
diferença social entre pessoas. Os Nuer estimam também o decor- mente a dois deles: o casamento e as relaçoes entre os habitantes
rer da história em função das suas genealogias de descendência. do campo e os habitantes da cidade.
Numa si~uação. determinada. procurar-se-á a origem genealógica O autor diz-nos que «O casamento é um ponto fulcral à
de maneua ma.is ou menos profunda de acordo com a dimensão volta do qual gira a vida rural. É um centro estrutural» (2): Os
do grupo de linhagem de que se trate. Aqui, portanto, o tempo agricultores menos importantes são os que possuem as maiores
é um reflexo das unidades da estrutura social. Os acontecimen- familias e o casamento tem lugar, para ambos os sexos, numa
tos .têm uma situação dentro dessa estrutura, mas não têm uma idade ~ais tardia que em qualquer outro sítio com registos
posição exacta no tempo histórico, do modo como nós o enten- conhecidos. Como as quintas são pequenas, uma família só
demos. Pode dizer-se que, em geral, o tempo entre os Nuer é pode casar bem um filho e uma. filha. Ao ca~r-se o filho que
uma Aco~ceptual_ização da estrutura social, e que os pontos de há-de herdar a quinta, a sua nmva traz co~sigo um dote, ~ue
referencia no sistema que o mede são projecções no passado ronda as 250 ou 350 libras, o que é aproxunadamente eqwva-
de relações reais entre grupos de pessoas. Enfim, o tempo coor- lente ao valor da quinta e constitui um indic:e do estatuto soci~l
dena mais relações que acontecimentos. da família. 1Parte do dote vai para o mando e para os pais
Nesta curta exposição haverá seguramente muitos pontos deste, que depois do casamento do fi.lho se retira~ da adminis-
obscuros. Isso não tem importância, já que não pretendo ti·ação da quinta, e outra parte destina~se a auxiliar ~s outros
demonstrar a exactidão do meu raciocínio, mas ensinar o método filhos. que, dado que a propriedade não é divi~ida entre os
que se seguiu. Ter-se-ão apercebido de que também neste caso descendentes, têm de emigrar para as cidades a fim de ganha-
o método se reduz a tomar inteligível uma parte da vida socia'], rem a vida nos negócios, com uma profissão, na igreja, ou sair
~ostrando como ela se integra em todas as outras. Este objec- para o estrangeiro. Deste mod~ se pod~ "?aoter a C?n~uidade
tivo só ~ pode conseguir mediante abstracções, que em seguida da família numa quinta, mediante a mtima associaçao entre
se relacionam logicamente entre si. sangue e património, mas só à custa dos. outros filhos, geral-
Mencionei na minha primeira conferência que, no passado, mente os mais novos. O autor mostra assun que o casamento,
a Antropologia Social limitava geralmente a sua atenção às a herança. os controles sociais, a migração para a~ cidades e. a
comunidades primitivas. Houve, contudo, excepções. Por nossa emigração para o estrangeiro são elementos do sistema social
parte não a consideramos como o estudo das sociedades primi- baseado nas pequenas quintas. .
tivas, mas como a investigação de todas as sociedades humanas. O sistema social das quintas tem a sua contrapartida nas
Para vos mostrar que também estudamos sociedades civilizadas, cidades que constituem mercados locais. o _que expli~. como
e como último exemplo de monografias de trabalhos de campo, se verá, o desaparecimento gradual das famílias da ~idade. Os
falarei dum ~ivro sobre os camponeses do Sul da Irlanda. Tra- filhos mais novos dos agricultores, pelas causas que Já se refe-
ta-se de The lrish Countryman do professor Arensberg (1937). nram, vão para as cidades como aprendizes e as sua~ filhas
Este livro é um exemplo excelente da análise estrutural, em como esposas. Os comerciantes vivem dos seus conhecidos do
que o autor assinala de forma simples e concisa as conclusões campo, que apenas favorecem os. d~ sua linhagem. Po~to,
a que ~hegou depois de uma investigação realizada em County um lojista ou o dono de uma cerve1ana tendem a casar ~ filh_?s
Clare Juntamente com o professor Kimball. herdeiros com uma rapariga do campo, que trará consigo nao
~ parte Sul da Irlanda é uma zona de pequenas quintas. só o seu dote como ainda a gente do seu .Jugar como clientes
A ma10r parte das famHias vive em quinze ou trinta acres de
terra, à custa do que produz o solo, vendendo o excedente para
comprar produtos como farinha e chá. Nas quintas trabalham
as famílias, que às vezes recebem ajuda dos parentes. A rede (') P. 93.

102 103
ANTROPOLOGIA SOCIAL ESTUDOS ANTROPOLóOICOS MODERNOS

d~ l?ja .ou da cei:vejaria. Odade e campo. ou seja, a unidade disso. e como terei oportunidade de sublinhar na minha p~óxima
distributiva e a umdade produtiva. estão não só ligadas economi- e última conferência. essas questões não são meramente impor-
~ente como também por vínculos de parentesco. Contudo, a tantes dentro do seu particular quadro étnico e geográfi<::<>, an~
vida urbana afecta as perspectivas dos homens que. a pouco e constituem problemas de interesse geral. Na nossa própna s<;>e1e-
pouco. já não estão dispostos a fazer concessões aos campo- dode e até mesmo para nós é importante saber que os habitan-
neses. Perdem os costumes e os interesses rurais e este fenómeno tes das Tobriand dedicam o máximo das suas energias a alcan-
é ainda mais notório naqueles que nasceram nas cidades. a çar fins honorificos e não utili!ârios; que em~ra os n~tu~ de
se~d~ geração de migrantes. As famílias dos lojistas e dos &moa não se distingam especialmente entre s1 pela diversidade
cerve1el!'os procuram uma profissão ou deslocam-se para cida- elas suas ambições ou pela grande variedade de caracter~ que
d~ ma10res. Tomam-se parte de um meio em que o campo essas ambições originam, possuem segurança pessoal e a felicidade
n~o. tem lugar. O posto que deixam atrás de si na cidade pro- que a acompanha; que embora a ciência mo?ema rejeite as supo-
~c1ana é ocupado por sangue novo. que, graças às suas cone- sições em que os Zande basearam o seu sistema de crenças, o
xoes com ?.campo, e.stabelece por sua vez novos laços de paren- sistema tem uma validade filosófica e moral; que para entender
!C8CO. Ve~ca~ assim. como no sistema social geral do campo os conceitos dos Nuer sobre o tempo há que compreender pri-
ulandês estão ligados o sistema económico, mediante o inter- meiro a sua estrutura socia'1; e que na Irlanda do Sul as dívidas
câmbio dos artigos da quinta por artigos comerciais. e o sistema servem para manter relações harmoniosas entre campo e cidade.
de parentesco. através dos casamentos entre o campo e a cidade. Estas e muitas outras conclusões frutuosas, se bem que
Uma das formas por que se mantêm as conexões entre os não confirmadas, têm obviamente um importante significado,
habitantes da cidade e os seus primos do campo é a da dívida. não só para a compreensão das socied~des de cujo estudo. en:ier-
O homem do campo está sempre em dívida para com o seu giram, mas também para a compreensao de qualquer sociedade,
pa~nte lojista e esta dívida crónica é uma parte da sua relação incluindo a nossa. ·
s~1aJ. A falar verdade. quando um camponês se zanga com o
IC"JISta, costuma sarldar a sua conta para deixar de ser cliente
e cortar assim a relação entre ambos. Este compromisso, como
o d~te. é um índice de estatuto; é um signo da capacidade e do
dese10 de manter a rede de obrigações sociais que dão ao indi-
víduo e à sua família um lugar dentro da vida social. A dívida
~. de g~ração em geração. de pai a filho. 1! o laço entre a
f~a e linhagem do camponês e a família e linhagem do
Io11~~ pelo qual se expressa a confiança mútua e as obrigações
soc1~s recíprocas. A dívida aparece assim sob uma nova pers-
pecttva. como um dos mecanismos que contribuem para a manu-
tenção de um sistema social Para entender o seu sentido. não
a ~emos considerar apenas em sentido económico, mas em
relaçao com o parentesco e outros aspectos da estrutura social
total. O juízo moral que se possa formular a seu respeito tem
de fazer-se. pois, à luz deste mais amplo entendimento.
Espero que estes poucos exemplos, que são os que pude
dar em tão pouco tempo, tenham contribuído para vos tomar
compreensíveis o género e a diversidade de problemas que hoje
em dia o antropólogo social tem de encarar. Mais uma vez
poderão comprovar .qµe não se trata de investigar temas estra- ··.
nhos ou românticos, mas problemas reais de Sociologia. Além

104 105
VI

ANTROPOLOGIA APLICADA

Nas minhas primeiras conferências tentei dar-lhes uma ideia


geral da Antropologia Social do ponto de vista do ensino univer-
sitário, do seu desenvolvimento como um ramo especial do
c.onhecimento, dos problemas que investiga e das características
dt:sse 1abor. Nesta última lição tratarei de uma pergunta que
muitos antropólogos devem ter escutado de tempos a tempos.
Para que serve estudar Antropologia Social?
Esta pergunta pode ser interpretada de várias maneiras.
Pode ser interpretada como o desejo de saber o que leva um
homem a tomar a tAntropologia Social como profissão. Prova-
velmente, cada antropólogo daria aqui uma resposta diferente.
Para muitos de nós, e inclusive para mim, a resposta poderia
ser: «Não sei exactamente», ou, nas palavras de um colega
americano, <<Suponho que gosto de viajar».
Contudo, a pergunta tem geralmente o sentido de: Que
utilidade tem o conhecimento dos povos primitivos'? Uma res-
posta a esta questão fom1ulada deste modo tem de ser dividida
num debate sobre a sua utilidade para as próprias sociedades
primitivas e para aqueles que são responsáveis pelo seu. bem-
-estar e numa discussão da sua utilidade e valor para os homens
que as estudam - ou seja, para nós próprios.
Como os antropólogos sociais se ocupam principalmente
da~ sociedades primitivas, é evidente que a informação que
recolhem e as conclusões a que chegam terão alguma relação
com os problemas da administração e educação dessas comuni-
dades.Compreende-se assim facilmente que se um governo colo-

107
ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

nial quer administrar uma comunidade através dos seus chefes, suficiente para os capacitar para a investigação, ainda que tives-
~m ~e saber quem são, quais são as suas funções, autoridade, pri- sem (e não o têm) tempo e oportunidade para a reali7.ar. Mas
v~égios e obrigações. Além disso. para governar segundo as os governos têm, por seu lado, apoiado ocasionalmente os fun-
leis e costu~es que thes ~o próprios, é óbvio que primeiro há cionários ao seu serviço, ajudando-os a adquirir uma formação
que descobn-los. Se se quiser mudar a economia de uma socie- avançada em Antropologia e secundando os que mostraram apti-
~ade,. alterando, por exemplo, o seu sistema de posse da terra, dão para .Jevar a cabo investigações e estudos nos seus territó-
IJl~uzmdo-a a plantar produtos de exportação, ou então insti- rios. Alguns estudos importantes foram realizados desta maneira,
tumdo . mercados e uma economia monetária, seria altamente sendo os mais destacados aqueles que se encontram incorpo-
convem~nte .poder ~l.cular, pelo menos aproximadamente, os rados na série de volumes publicada por Rattray sobre os
prováveis efeitos soc1a1s dessas medidas. A modificação do sis- Ashanti da Costa do Ouro. Também são excelentes os estudos
tem~. de posse das terras pode ter repercussões sobre a vida realizados do mesmo modo pelo dr. Meek na Nigéria, e por
familiar e o parente~co. como também sobre a religião, porque F. E. Williams e E. W. Pearson Chinnery na Nova Guiné. Tem,
os vínculos de fa~~a e parent~sco, e as crenças e ritos religio- · no entanto, de se sublinhar que mesmo os melhores trabalhos
sos podem estar mtimamente bgados ao sistema tradicional de destes funcionários antropólogos não chegam a satisfazer total-
~ropried~e da terra. Também é evidente que se um missioná- mente o profissional. E também parece que não são satisfatórios
no dese1a converter os povos nativos à Cristandade deve ter do ponto de vista administrativo, já que, salvo no Tanganica,
alguns conhecimentos sobre as suas crenças e práticas' religiosas. este processo de realizar a investigação foi, segundo creio, gera:l-
~ outro modo, é impossível avançar com o ensino apostólico, mente abandonado.
Já qu~ este ~e~e realizar-se na língua nativa, isto é, através dos Pelo contrário, o Sudão anglo-egípcio, bastante ajuizada-
conceitos religiosos dos nativos. mente na minha opinião, preferiu sempre financiar expedições
A importância da Antropologia Social para a Administra- de antropólogos profissionais ou contratá-los por determinado
ção Colonial foi reconhecida de modo geral desde os princípios espaço de tempo para realizarem certas investigações. Assim,
do século: 9uer pelo Ministério das Colónias, quer pelos gover- realizaram sucessivamente estudos neste pais, desde 1909 até
nos coloma1s, que demonstraram um interesse crescente no ensino agora, o professor e a senhora Seligman, eu próprio, o dr. Nadél,
e n~ investigação antropológicos. Desde -há muito tempo que os e o senhor Lienbardt. Esta solução é vantajosa para o antro-
aspirantes do quadro do exército colonial, antes de irem ocupar pólogo, porque adquire uma experiência que lhe permitirá ir
os seus postos, recebem, juntamente com outros cursos aulas ocupar, logo a seguir, um lugar na Universidade, e para o
de Antropologia Social em Oxford, Cambridge e, mais' recen- governo, porque recebe os benefícios do trabalho de um homem
temen~. em Londres. A partir da última guerra, começou-se perfeitamente preparado, que conhece os mais modernos avan-
a ~n~1ar à metrópole alguns funcionários coloniais para que ços sobre o tema.
assistissem a cursos de aperfeiçoamento e revisão nessas três A partir da última guerra, o Ministério das Colónias
universidades, e ~uitos deles escolheram a Antropologia Social demonstrou um interesse cada vez maior pela Antropologia
':°mo tema es~1al de estudo, entre as matérias optativas. Não Social. Organizou e financiou investigações antropológicas num
e raro. além disso, que funcionários administrativos prestassem grande número de territórios coloniais. Mas os resultados obti-
provas para o Tri.pos de Antropologia em Cambridge e ocasio- dos não me parecem totalmente satisfatórios, nem o modo
nalm~nte panl; o ~ploma ou o grau de pós-graduação em Antro- como as investigações foram conduzidas. Estou completamente
pologia na u~vers1dade_ de Oxford. Muitos deles, que pertencem de acordo com os que sustentam que a melhor forma de efec-
ao ·Real Instituto de Antropologia, mantêm através desta insti- tllar uma investigação é através dos departamentos universitários.
tuição um contacto seguro com os desenvolvimentos mais Neste caso, são eles os responsáveis pela selecção e preparação
recentes desta disciplina. dos estudantes, pela supervisão do trabalho e pela redacção e
Os governos coloniais estão de acordo em que 6 muito útil publicação dos resultados. A política actual do Ministério das
que os seus funcionários possuam um conhecimento elementar Colónias é organizar os estudos através dos institutos focais de
e geral de Antropologia. Contudo, esse conhecimento não é iuvestigação. Um deles, o Instituto Rhodes-Livingstone da

108 109
ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

Rodésia do Norte, tem estado a operar desde 1938 e recente- mao, é a desconfiança com que se considera a ·Antropologia
me':1te fundaram-se mais três novos institutos para a investigação nesses círculos. Tal prevenção não é de todo infundada, pois
social.: ~ em Makerere no Uganda, um segundo em lbadan esta disciplina tem andado sempre unida ao livre-pensamento
n~ Nig~na e o terceiro em Kingston na Jamaica. Pessoirlmente e, além disso, tem sido considerada, com certa razão, como anti-
nao ~re10 que possam substituir os departamentos universitários -religiosa na sua tónica e até mesmo nas suas finalidades. Os
na direcção das investigações, mas penso que podem desem- missionários crêem, com bastante lógica, que, como diz Gabriel
penhar um papel muito importante como centros locais de tra- Sagard na sua introdução ao livro sobre os índios hurões (1632),
balho para os est~dantes universitários, isto é, ter um papel «a perfeição dos homens não consiste em ver muito, nem em
análogo ao dos Insntutos Britânicos em R oma, Atenas e Ancara. saber muito, mas sim em realizar a vontade e os desejos de
Es~e ponto de vista já foi defendido noutros lugares. Outro Deus». Contudo, muitos missionários, a título individual, ganha-
ªC?ntec1:111c:.nto extremamente importante para os antropólogos ram um interesse bastante profundo pela Antropologia, com-
foi a cnaçao de bolsas de. estudo pa~a a investigação de linguas preendendo a importância que tem para o seu trabalho. Temos
e culturas. do Extremo Onente, Próxnno Oriente, !Europa Orien- um exemplo desta atitude no caso do pastor J unod da missão
t~ e Afnca. Durante a última guerra pôd~se comprovar que românica suíça. autor de uma das melhores monografias antro-
existe um lamentável estado de ignorância a respeito destas pológicas até hoje escritas. Diz-nos Junod que ao recolher a
partes do mundo e uma comissão real, presidida pelo conde informação contida no seu livro tinha um objectivo em parte
de ~rbro~~· ch~gou à conclusão de que esta situação só se cientifico e em parte prático, já que pretendia que ele fosse
podia modificar coando uma tradição de estudos sobre as lin- uma ajuda para os funcionários administrativos e para os mis-
~uas. e culturas . dessas regiões. O admirável plano proposto sionários, além de constituir um meio para esclarecer a opinião
mclw o fortalecimento dos departamentos universitários exis- pública sul-africana sobre os nativos. «Trabalhar para a Ciência
~tes. e ~ criação .de ~utros novos; a atribuição de bolsas de é nobre, mas ajudar os nossos semelhantes é ainda mais
mv~bgaçao nas umvers1dades aos indivíduos que eventualmente nobre» ( 1). Outro missionário, o dr. Edwin Smith, é o co-autor
ensmassem ':1elas; ~ fu~dação de institutos, que servissem de de uma excelente obra sobre o povo Ba-ila do Norte da Rodé-
centros locais de mvesbgação naquelas partes do mundo ·em sia e foi recentemente presidente do Real Instituto de Antro-
que ~ levasse~ a cabo os estudos. Deste modo, não só se asse- pologia.
~rana a re~ção dos trabalhos, como também se estabelece- Vemos, pois, que no passado foram geralmente os funcio-
na ~ ~antena uma tradição académica nesta matéria e uma nários administrativos e os missionários os que comprovaram
continuidade nos estudos. que podiam cumprir as suas funções de uma maneira mais ade-
Graças ~ es~s bo.lsas _de estudo, os antropólogos sociais quada e agradável se possuíssem alguns conhecimentos de
puderam realizar mvestigaçoes em várias partes do mundo que Antropologia. Actualmente, com a mudança que a situação sofreu.
de ou.tro modo estariam fora do seu alcance. Os estudos antro- os especialistas adquiriram uma · importância crescente no nosso
pológicos e~ lugares. di~~~ são ~uito caros e a ajuda gene- Império colonial; na sua maioria - médicos, encarregados de
rosa das diferentes mstituiçoes - tais como Emslie Homiman departamentos agrícolas, encarregados das florestas, veterinários,
Anthropological Scholarship Fund, Goldsmiths Company's Post- engenheiros, etc., assim como comerciantes e representantes de
graduate Travelling Scholarship, Leverhulme Grants Committee empresas mineiras e de outros interesses comerciais - devem
e Viking Fund - é insuficiente para cobrir mais que uma levar a cabo as suas diferentes actividades no seio das popula-
pequena porção da investigação urgente. ções nativas, cuja forma de vida e ideias na maior parte dos
. . Neste país, as orS'.lnizações. missionárias não parecem sensi- casos desconhecem totalmente.
bilizadas para a necessidade de dar a quem trabalha nas missões Perguntar-se-á que utilidade pode ter para os europeus nas
entre povos primitivos uns certos conhecimentos antropológicos. suas relações com os nativos o conhecimento da Antropologia.
Isto ~~ve-se em parte à .pobreza das missões, que não podem
permitir-se o luxo de enviar os seus voluntários às universidades
onde se ensina Antropologia. Outra das razões, na minha opi- (') The Li/e o/ a South African Tribe, p. 19, 1913.

110 111
ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

Durante bastante tempo muitos antropólogos falaram de Antro- utilidade para os problemas coloniais e, nos Estados Unidos,
pologia aplicada, da mesma forma que se fala de medicina ou para os problemas industriais e políticos. É verdade qu~ os seus
engenharia aplicadas. Consideram que a Antropologia Social é mais prudentes defensores sustentaram .9-ue. só podena hav~r
uma ciência aplicada. Já vimos que os que mantêm este ponto uma Antropologia aplicada quando ~ ciencia . do homem esti-
de vista sustentam que a Antropologia Social é uma ciência vesse muito mais avançada que nos dias de hoje. Contudo, uma
natural que tem como objectivo estabelecer as .Jeis da vida autoridade tão eminente e cautelosa neste tema como o profes-
social; e, a partir do momento em que se possam desenvolver sor Radcliffe...Brown escreveu: «Com um avanço mais rápido
generalizações teóricas, toma-se possível falar de ciência apli- da ciência pura e com a cooperação ~ .a.dministraçõe~ ~l~
cada. Também vimos que este elemento normativo na Antro- niais poderiamos inclusive prever a possibilidade da existen~1a
pologia é, tai como os conceitos de lei natural e progresso de de uma época em que o governo e a ed.ucação das. popul~çoes
que deriva, parte da sua herança filosófica. Os filósofos morais nativas, nas várias partes do mundo, estivessem mais próximos
do século XVIII, os etnólogos do século XIX e a maioria dos de ser uma arte baseada na aplicação das leis descobertas pela
antropólogos sociais dos nossos dias tomaram como modelo as ciência antropológica» (2). Outros escritores, menos. prudentes e
ciências naturais, de forma implicita ou explicita, e assumem de tendências mais populares, reclamaram, es~cialmente nos
então que a Antropologia tem por objecto controlar as mudan- Estados Unidos, a aplicação imediata dos conhecimentos antro-
ças sociais mediante a previsão e o planeamento. Esta opinião pológicos ao planeamento social.
encontra-se perfeitamente resumida na expressão «engenharia Se se aceitar este ponto de vista, que se . pode ent~n~er
social». como a perspectiva da ciência natural, é perfei.tame~te logico
Não pode, portanto, surpreender que desde os seus come- sustentar, dado que as leis sociológicas são aplicá~e1s a .qual-
ços a Antropologia Social teórica se tenha envolvido fortemente quer sociedade. que a sua principal utilização reside mais no
com o socialismo, especialmente em França, onde tanto Saint- planeamento da nossa própria sociedade que no controle. do
-Simon como Comte trataram de criar religiões positivistas. Na desenvolvimento das sociedades primitivas. que po~em_cons1~ê­
minha opinião, este é inegavelmente o impulso condutor que rar-se como exemplos de laboratório para a invesllgaçao socio-
se encontra por detrás das obras de Durkbeim e dos seus cole- lógica. Com efeito. não é só em África que existem problemas
gas. O seu ponto de vista geral encontra-se perfeitamente de governo. de propriedade, de migração ~e trabalhadores. de
expresso por um deles, Uvy-Bruhl, numa excelente e curta divórcio, e assim por diante. O que descobnrmos, por exemplo,
exposição-la Morale et la Science des Moeurs (1903). Os sobre a desintegração da vida familiar entre os povos ~os noss~s
sistemas éticos não têm, para ele. efeitos sobre a conduta. Não territórios coloniais pode ser aplicado, se se conseg~1r ded~zir
os podem ter porque eles são meras racionalizações de costumes, uma fórmula geral a partir desse conhecim.ento, à cn 5? .da vida
isto 6. considera-se certo aquilo que se fez. Se um povo. por familiar em Inglaterra e nos Estados U~1dos. «.A divida que
exemplo, mata todos os gémeos ao nascimento. a prática é temos para com a sociedade que nos. mantem - diz-nos o antro-
moral para o povo. As leis morais são simplesmente as regras pólogo americano professor Herskov1ts - deve ~agar-se a longo
que determinam a conduta real numa sociedade e que, portanto, prazo, por meio das contribuições fundamentais que façamos,
variam com as mudanças na estrutura social. O moral é o que tendentes a uma maior compreensão da natureza e processos
é normal para um determinado tipo de sociedade numa deter- da cultura e, através destes. para a solução de alguns dos nos~os
minada fase da sua evolução. A tarefa da razão é, por conse- problemas básicos» (3). Como disse Kipling num contexto muito
guinte, moldar o comportamento por uma arte prática da ética
derivada de um estudo científico da vida social. Esta é a opinião
de quase todos os autores que escreveram sobre as instituições
sociais nesse período. Era totalmente lógico esperar que essa (') A. R. Radcliffe-Drown, 'A pplícd Anlhropology' Report of. A us-
tralian and New Zeland A ssociation for the Advancement o/ Sc1ence,
opinião fosse partilhada por muitos antropólogos sociais.
Section F., p. 3, 1930. · h A ·
Tais antropólogos sublinharam frequentemente as aplicações (') Melville J. Herskpvils, 'Applicd Anthropology nnd t e merican
práticas das suas descobertas, insistindo em Inglaterra na sua Anthropologist', Science: 6 de Março de 1936, p. 7.

112 tl3
ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

diferente, o que aprendemos com os amarelos e negros ajudar- demonstrado que os antropólogos o fazem com mais rapidez e
-nos-á muito com o branco. exactidão que outras pessoas, porque sabem o que devem pro-
, Espero ter deixado claro e abundantemente provado nestas curar e a maneira de encontrá-lo. O tempo de que dispomos
conferências que eu não acredito que possa vir a existir uma só nos permite dar um exemplo que ilustra a . utilidade da
ciência da sociedade semelhante às Ciências Naturais. Não me investigação especializada para as administrações coloniais e para
parece, porém, necessário voltar a esta questão, porque não as missões. Entre muitos povos africanos, uma das maneiras
creio que nenhum antropólogo possa sustentar seriamente que, de celebrar o casamento é por meio de entregas de gado por
até ao momento actual, se tenha descoberto a'1guma lei socio- parte da família ·e parentes do noivo à fanúlia e parentes da
lógica. E se não se conhece nenhuma lei, é evidente que não noiva. Durante bastante tempo teve-se a ideia de que este dote
se pode aplicá-la. era uma compra e que as raparigas eram transaccionadas por
Isto não significa que a Antropologia Social, ainda que gado. Assim, com base nesta concepção, a transacção foi con-
considerada em sentido limitado e numa perspectiva técnica. denada pelos missionários e proibida pelos governos. Só quando
não tenha qualquer tipo de aplicação. mas apenas que não pode se demonstrou pela investigação antropológica que a transfe-
ser uma ciência aplicada análoga à Medicina e à Engenharia. rência de gado é tanto a compra de uma esposa quanto · o paga-
Contudo, ela é um conjunto sistemático de conhecimentos sobre mento de um dote na Europa Ocidental é a compra de um
as sociedades primitivas e, com todos os conhecimentos desta esposo; e, por outro lado, que a condenação e abolição desse
espécie, pode ser de utilidade para os assuntos práticos dentro costume não só debilitava os vínculos do matrimónio e da
de certos limites e usando o senso comum. Na administração família, como tendia, além disso, para provocar a degradação
e educação dos povos atrasados é necessário tomar decisões e das mulheres, que era o que se tentava evitar pela supressão
os responsáveis terão mais possibHidades de actuar coi:recta- do costume tradicional, só então se começou a . considerar essa
mente se conhecerem os factos. Desta forma têm também menos prática de outro ponto de vista. É nesta espécie de . temas que
oportunidades de cometer erros graves. Foram precisas duas os profanos devem recorrer. à Antropologia em busca de uma
guerras contra os Ashanti da Costa do Ouro para que o governo orientação; e isto porque a natureza e as funções do dote só
colonial descobrisse que o Escabelo de Ouro, cuja entrega recla- podem ser descobertas por meio da investigaçã.o antropológica.
mava, continha, segundo as suas crenças. a alma de todo o Além de se encontrarem numa situação mais favorável que
povo e ,que portanto não podia ser entregue em caso algum. as outras pessoas para descobrir os factos. os antropólogos têm
É evidente, pois. que o conhecimento antropológico teve e pode às vezes mais possibilidades de calcular correctamente os efeitos
ter este tipo de benefício para a administração colonial, que de determinada medida administrativa, pois a sua preparação
foi sublinhado várias vezes por antropólogos e funcionários. acostuma-os a esperar as repercussões nos pontos onde os leigos
A ideia está perfeitamente resumida nas palavras do professor não imaginam. Portanto. pode-se-lhes pedir assistência para os
W. H. Flower escritas em 1884: «É absolutamente necessário governos coloniais. não só para lhes mostrar os factos reais,
que o estadista que deseja governar com êxito não contemple a fim de que se melhore a política na base desse novo conheci-
a natureza humana de um ponto de vista abstracto, tratando mento, mas também para ilhes ensinar as consequências que
de aplicar regras universais. mas antes que considere as apti- pode vir a ter uma determinada orientação governamental. Con-
d?~s. necessidades e aspirações morais, in~electuais e sociais espe- tudo, não é uma tarefa especifica do antropólogo sugerir a pdlí-
c1f1cas de cada raça com que tem de se relacionar» (4 ). tica a adoptar. Graças à sua faculdade de descobrir os factos,
Ainda que pareça óbvio. creio que vale a pena destacar o antropóiogo pode . inf.luir sobre os meios que se empregam
que estas «aptidões. necessidades e aspirações morais, intelectuais para alcançar determinados fins políticos e sobre as perspecti-
e sociais especificas» têm de ser descobertas. A experiência tem vas dos responsáveis pela sua definição, mas os conhecimentos
sobre as sociedades primitivas, que recolhem e publicam, ·rtão
podem determinar o tipo de pôlítica que deve ser prosseguido.
(') W. H . Flower, discurso do Presidente, Journa/ of the Anthro- · •A política encontra-se determinada por outras considera-
po/ogica/ lnstitute, p. ·493, 1884. . ções que superam as descobertas dos investigadores. Não se

114 llS
ANTROPOLOGIA SOCIAI.; ANTROPOLOGIA APLICADA

necessita de um antropólogo para assinalar que os habitantes têm causado muitos problemas. Na minha opinião, a solução
das ilhas -Bikini teriam sido, sem dúvida, mais felizes se os seus reside em que os governos coloniais criem lugares de antropó-
lares.'não tivessem sido convertidos em campos de ensaio para logos no seu aparelho administrativo, tal como têm postos de
as bombas atómicas. Também seria inútil que os antropólogos educadores, geólogos, botânicos, parasitólogos e outros especia-
explicassem aos governos, como certamente o fizeram, que, se listas. Desta forma, alguns antropólogos seguiriam a carreira
se proíbe caçar cabeças a certas comunidades das Hhas do Paci- académica e outros o serviço administrativo.
fico, as populações em questão podem degenerar e extinguir-se. Eu próprio rea:liui bastantes trabalhos de investigação para
Os governos responderiam que a caça de cabeças deve supri- o governo do Sudão anglo-egípcio. Como creio que o governo
mir-se, sem olhar às consequências, porque é em si me~ma repug- partilha a minha opinião sobre o que deve ser a Antropologia
nante para a justiça natural, a equidade e o bom governo. Social, uma exposição do seu critério destacará a importância
Parece-me que este é um bom exemplo do que queremos subli- que essa disciplina tem para a administração. Como já men-
nhar, porque ele ilustra que os fins são determinados pelos valo- cionei, o governo do Sudão tem apoiado, desde há algum tempo,
res que são axiomáticos e que não derivam de um conheci- a . investigação antropológica, permitindo aos antropólogos estu-
mento factual das circunstâncias. Se os que controlam a polí- dar à vontade o que desejem, no lugar e da forma que prefiram.
tica acreditam na prosperidade material, no alfabetismo, nas · Quer diur, o governo escolhe a pessoa, deixando-lhe depois a
instituições democráticas, ou o que quer que seja, eles entendem ela a liberdade de estabelecer o seu plano de trabalho. Penso
que têm de proporcionar obrigatoriamente essas mesmas vanta- que essa atitude é muito inteligente, pois desta forma nunca
gens aos povos do seu império colonial. Estejam a proceder pôde albergar a falsa esperança de que o antropólogo desco-
bem ou mal, isso é uma questão da esfera da filosofia moral, brisse algo de grande importância prática. Entende, noutra pers-
que está fora da competência da Antropologia Social. pectiva, que o governo deve encorajar os estudos e acredita - e
Para não comprometer as suas bolsas de estudo, os antro- este é o ponto que quero sublinhar - que um conhecimento
pólogos evitam as questões de política; e creio que é meu dever das línguas, da cultura e da vida social dos poyos do Sudão
agregar que a situação de dependência em que se encontram tem um imenso valor para os funcionários administrativos e
relativamente aos governos, inclusivamente para descobrir os outras pessoas, independentemente do facto de permitirem ou
factos, pelo apoio que estes podem dar-lhes, constitui um sério não resolver algum problema prático imediato.
elemento de perigo para a Antropologia. É também um factor Creio que se pode encarar o assunto desta maneira: se
que pode provocar diferenças entre os pontos de vista do estu- um indivíduo tem de ir ocupar um cargo diplomático ou comer-
dioso e dos governos acerca do que deve ser uma investigação cial em França, a vida será muito mais agradável - para não
antropológica. Um antropólogo pode estar especiitlmente inte- falar já da opinião que os franceses formarão dele - e ele tor-
ressado, suponhamos, em alguns problemas de religião primitiva nar-se-á um diplomata ou um homem de negócios muito mais
e, por isso mesmo, deseja dedicar uma grande parte do seu eficaz se aprender o francês e estudar bem a vida social fran-
tempo a essa questão. Ao contrário, como os governos em geral cesa e o funcionamento das suas instituições. Passa-se o mesmo
não se preocupam com esses temas, prefeririam que se ocupasse com o homem que vive no meio de um povo primitivo. Se
fundamentalmente dos problemas de migração de trabalhadores. souber o que diz.em e o que faz.em, as suas ideias e valores, não
Também pode suceder que a administração deseje que se inves- só terá uma compreensão mais profunda do povo, mas tam-
tigue exclusivamente o sistema de posse da terra de um povo bém os poderá administrar de forma mais justa e eficaz.
determinado, enquanto o antropólogo, por seu lado, considera Um viajante do século XVIII, De la Crequiniere, que já
que não se pode compreender tal sistema sem primeiro estudar citei , ·numa conferência anterior. expressa sucintamente este
a sua vida social total. Como é perfeitamente lógico imaginar, o mesmo ponto de vista. ·Baseando-se na experiência recolhida
antropólogo interessa-se pelos problemas da sua disciplina entre os indios orientais, depois de aconselhar os viajantes a
tenham ou não tenham importância prática. Naturalmen~. o ter a sua mente aberta, mas a manter-se firmes nas suas crenças.
governo colonial interessa-se pelos problemas práticos, tenham a tolerar e a tentar compreender costumes estranhos e a com-
ou não tenham importância teórica. Estas posições antagónicas portar-se correctamente em terras estrangeiras, a evitar enamo-

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

rar-se porque isso distrai. a evitar o jogo e os trapaceiros e a derar qualquer actividade de uma sociedade no contexto de
estudar história. linguas e geografia. ele conclui: cO que saiba toda a vida social de que faz parte; e também a ver sempre o
como se deve viajar t.erá. grandes vantagens: melhorará a sua particular à tluz do mais gerai.
ment.e com as suas observações. governará. o seu coração com O antropólogo social tenta revelar as formas ou padrões
as suas reflexões e refinará o seu conhecimento conversando estruturais que exist.em por detrás da complexidade e aparente
com pessoas honradas de muitos países; depois disto. estará confusão das realidades da sociedade que estuda. E chega a
muito mai~ bem pz:eparado para viver gentilmente. pois saberá este objectivo procurando farer abstracções a partir do com-
como adaptar-se aos costumes de diferentes pessoas e. conse- portamento social e relacionando-as entre si de tai modo que
quentemente. aos diferent.es estados de ânimo de quem deva a vida social possa ser apercebida como um conjunto de partes
visitar. Desta forma. nunca fará nada a outro que saiba estar inter-relacionadas, como um todo. Isto só se pode conseguir,
contra as suas inolinações. o que é quase o único segredo do como é óbvio, pela análise; mas a análise não é um fim - neste
que agora chamamos a Arte de Viver»(º). caso, decompor a vida social em elementos isolados - , é um
Não creio que possa aplicar-se o conhecimento antropo- meio para revelar a sua unidade essencial pela posterior inte-
lógico às artes administrativas e da educação entre os povos gração das abstracções realizadas pela análise. Foi por isso
primitivos. a não ser num sentido cultural muito geral: na que sublinhei que, para mim, sem exoluir outras considerações.
influência que exerce sobre a modelação da atitude do europeu a v\ntropologia Social é uma arte.
em relação aos povos primitivos. A compreensão do modo de O antropólogo social, comparando as diferentes sociedades,
vida de um povo suscita em regra simpatia a seu respeito. e trata de revelar as características comuns das instituições, assim
às veres uma profunda dedicação pelos seus interesses e neces- como as particularidades observadas em cada sociedade. Quer
sidades. Deste modo se beneficia o nativo e o europeu. dizer, procura mostrar como algumas características de uma
Mencionarei brevemente outra possível aplicação da Antro- instituição ou conjunto de ideias são peculiares de determinada
pologia Social nos povos cuja vida investiga e descreve. Se sociedade, como outras são comuns a todas as sociedades de
algum antropólogo romano nos tivesse deixado uma descrição certo tipo e, ainda. como outras se encontram em todas as
exacta e pormenorizada da vida social dos nossos antepassados sociedades humanas, são universais. As características que pro-
celtas e anglo-saxões. os nossos conhecimentos teriam sido mais cura o antropólogo são de ordem funcional. Ou seja, também
completos e estaríamos profundamente agradecidos a esse estu- oeste caso. ainda que a um nível mais elevado de abstracção,
dioso. No futuro. os povos nativos de todo o mundo poderão tenta achar uma ordem dinâmica na vida social, padrões que
alegrar-se por possuírem uma informação tão correcta acerca sejam comuns a todas as sociedades do mesmo tipo e padrões
dos seus antepassados, escrita por estudiosos imparciais, que que sejam universais. O método que utili:za é o mesmo, quer
apenas pretendem realizar um estudo tão completo e verdadeiro se trate de obter conclusões sobre uma, muitas ou todas as
quanto possível. · sociedades: por meio da análiSe chega a abstracções das reali-
A Antropologia Social em algumas ocasiões pode resolver dades sociais complexas, e depois relaciona estas abstracções
problemas de administração. Contribui para uma compreensão umas com as outras de tal modo que as relações sociais totais
mais profunda dos outros povos, e também fornece mat.erial se apresentem como uma estrutura e sejam assim percebidas
valioso para o historiador do futuro. Contudo, pessoaimente pela µiente em perspectiva e como um todo integrado, em que
não atribuo tanta importância aos serviços que proporciona ou aparecem destacadas as suas características esseQciais. Um antro-
pode proporcionar nestes aspectos como à disposição geral ou pólogo deve ser julgado, por conseguinte, pelo êxito que tenha
há.bitos mentais que forma em nós próprios, devido ao que nos em alcançar este objectivo, e não pela utilidade imediata do
ensina sobre a natureza da vida social. Acostuma-nos a consi- que escreve.
Encarando os fins da Antropologia Social sob este ponto
de vista, queria assinalar o significado que eles têm para nós
~) Cwtom1 of IM Ea.Jt lndlatU, p. 159, 1705 (traduzido de Con-
como pessoas e a sua importância como uma pequena parte
formlté dei Coutume1 dei lndlen1 Orientaux, pp. 251-2, 1704). do conhecimento da nossa cultura. Como tenho esta concepção

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ANTROPOLOGIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

das suas finalidades, compreenderão agora por que é que subli- guntar-nos - que é que lhes permite viv~r juntos em harmonja
nhei com ênfase nestas conferências que ó estudo das sociedades e enfrentar corajosamente os azares da vida, contando com tão
primitivas tem um valor em si mesmo, fora do problema de poucos elementos para os ajudar na sua batalha con!ra ~ n~tu­
saber se ,tem ou não tem uma aplicação prática ou cientifica. reza e o destino. O mero facto de que os selvagens nao d1spoem
Tenho a certeza de que ninguém negará valor ao conhecimento de automóveis, não lêem jornais, não compram e vendem, e
sobre a antiga Atenas, a França medieval, a Itália do Renasci- assim por diante, longe de os tomar menos interessantes, realça
mento, só porque não tem muita aplicação prática para resolver o seu atractivo, pois aqui o homem enfrenta o destino em todo
os problemas da nossa própria sociedade no momento actual o seu rigor e dor, sem que a civilização o suavize com analgé-
ou porque não nos pode ajudar na formulação de leis socioló- sicos e consolos. Não é por isso estranho que os filósofos tives-
gicas. Não necessito, pois, de convencê-los de que o conheci- sem pensado que tais homens deveriam viver num permanente
mento que não tenha uma aplicação prática imediata ou não estado de medo e dor.
possa ser reduzido a uma fórmula cientifica não possa vir a ter Se eles não vivem assim é porque a sua vida decorre dentro
uma grande importância quer para os indivíduos na sua vida de uma ordem mora1 que llies proporciona segurança e que tem
particular, quer para a sociedade como um todo. valores que lhes tomam a existência suportável. Examinando
Alguns, contudo, poderão estar a pensar - e às vezes mais detidamente o problema verifica-se que sob esta aparente
ouve-se dizer - que é bastante interessante ler sobre a antiga simplicidade de vida se escondem estruturas sociais complexas
Atenas, a França medieval e a Itália do Renascimento, mas a e ricas culturas. Estamos tão habituados a considerar a cultura
quem poderá interessar um bando de selvagens? Confesso que e instituições sociais em função da civilização material e da
me custa compreender o ponto de vista destas pessoas que nos dimensão, que as perdemos totalmente de vi~ta n~ caso . dos
chamam barbarólogos. Certamente esta posição não foi adoptada povos primitivos, a menos que as procure~o~ ~tenc~onalmente.
pelas mentalidades abertas à novidade, a partir do momento Descobrimos então que todos os PPVOS pmrutivos têm uma fé
e~ que começou a filtrar-se no pensamento europeu o conbe- religiosa que se expressa em dogmas e ritos; que celebram o
c1~.ento dos povos estranhos e, em particular. dos povos pri- casamento com cerimónias específicas e outras práticas e que
rrutivos. a vida familiar está centrada num lar; que têm sistemas de
Já assinalei nas conferências anteriores que, a partir do parentesco, a maior p~rte das vezes mais c?mplicad?s e a~plos
século XV! , os homens cultos sentiram-se atraidos pelos relatos que qualquer dos existentes na nossa propna sociedade; que
que escreviam os viajantes sobre os selvagens e interessados têm clubes e associações para fins determinados; que possuem
tanto pelas notáveis semelhanças de pensamento e comporta- regras de etiqueta, às vezes muito elaboradas. e regras de com-
mento como pelas amplas divergências de cultura que revela- portamento; que têm regulamentos, muitas vezes reforçados por
vam; e vimos também como os filósofos se entusiasmaram com tribunais, que constituem códigos de leis civis e criminais; que
esses relatos, que descreviam as instituições primitivas. Imagino a sua língua é muitas vezes extremamente complexa. fonética
9ue estariam mais interessados nas instituições dos caribes e e gramaticalmente, e que utiliza um vasto vocabulário; que pos-
uoqueses que nas da Inglaterra medieval. suem uma literatura poética vernácula. rica em simbolismo. e
A sua curiosidade é fácil de entender, pois as culturas pri- crónicas, mitos. contos populares e provérbios; que têm artes
mitivas têm bastante interesse para quem reflicta sobre a natu- plásticas; que têm sistemas de agricultura que requerem um
reza do homem e da sociedade. Ai nos encontramos com homens conhecimento considerável das estações, dos solos. das plantas
sem uma religião revelada. sem um idioma escrito, sem conhe- e da vida animal; que são especialistas em pesca e caça e aven-
cimentos científicos desenvolvidos, frequentemente nus, e com tureiros em mar e terra; e que têm um grande acervo de conhe-
ferramentas e habitações rudimentares, como se fossem homens cimentos - de magia, de feitiçaria, de oráculos e de adivinha-
em bruto, e contudo vivendo, na sua maior parte felizes, em ção - que nós desconhecemos.
comunidades da sua espécie. Nós próprios não nos poderíamos iÉ um verdadeiro preconceito e uma moda considerar que
imaginar vivendo nessas condições e muito menos vivendo satis- estas sociedades e culturas não são 'tão dignas de ser conhecidas
feitos. Por isso nos perguntamos - e penso que devemos per- como outras; que u~1 homem culto deve conhecer o Antigo

120 121
ANTROPOLOOIA SOCIAL ANTROPOLOGIA APLICADA

Egipto. Grécia e Roma, mas que não necessita de saber nada a ainda acreditam nos bruxos e os responsabilizam pelos danos
respeito dos maoris. dos esquimós, ou dos bantu. Esta é segura- causados aos seus vizinhos. Naturalmente. quando se proc';lla.
mente a mesma mentalidade que. na época posterior ao Renasci- para o estudo de fenómenos sociais numa socie~d~, uma onen-
mento e à Reforma, ignorou durante tanto tempo a Idade Média tação interpretativa no estudo de fenómenos similares noutra
e que. no plano geográfico. centrada no Mediterrâneo e na sociedade, deve-se proceder com uma grande cautela. Contudo.
Europa do Norte, considerou a história. literatura, arte e filoso- por muito diferentes que sejam em alguns aspectos, sempre se
fia da 1ndia sem importância. Esta atitude etnocêntrica tem assemelham noutros básicos. .
de ser abandonada se quisermos apreciar a rica variedade das O que acabo de dizer é bastante evidente. Em todas as socie-
culturas humanas e da vida social. As esculturas da Africa dades, por mais simples que sejam. se~pre se encontra alguma
Ocidental não podem ser avaliadas pelos cânones da escultura forma de vida familiar, um reconhecimento dos vinculos. ~e
grega. As línguas da Melanésia não devem ser tratadas como parentesco, uma economia, um sistema politico, estat~tos ~1ais,
excepç<>es às regras da gramática latina. As crenças e as práticas culto religioso, modos de d~rimir disi;>utas e casugar cnmes,
mágicas não se compreenderão jamais se forem encaradas diversões organizadas, e assun por dum~e. ao lado de uma
segundo as regras da ciência ocidental. As hordas de aborígenes cultura material e de um corpo de conhecimentos sobre a natu-
australianos não podem ser julgadas tomando Birminghan e reza técnicas e tradições. Se quisermos entender as c:nracte-
Manchester como modelos. Cada povo. a seu modo, respondeu rísti~s comuns a qualquer tipo de instituição nas sociedades
aos problemas que surgem da vida em comum dos homens e humanas em geral, e compreender também as dife~e~tes form.as
da aspiração a preservar os seus valores e transmiti-los aos seus que adopta e as diversa<> funções que cuml?re em dis~tas.socie­
filhos. E estas soluções são tão dignas da nossa atenção como dades, tanto nos podemos valer das soc1e~ades mais simples
as. ~ncontradas por qualquer outro povo. Uma sociedade pri- como das mais complexas. O que descobnmos no estudo de
rmttva pode ser pequena, mas será porventura um escaravelho uma sociedade primitiva acerca da natureza de uma. das suas
ou uma borboleta menos interessante que um boi? instituições toma para nós esta instituição mais inteligivel em
. Chegamos assim a um aspecto mais geral da Antropologia qualquer sociedade, incluind<? a nossa. Se ten1;11mos entender,
Social. que não se refere ·à s sociedades primitivas como tal, mas por exemplo, o Islão. a Cnstandade o~ o ~.duísmo_. é ~e
à natur~za da sociedade humana em geral. O que aprendemos grande ajuda saber que certas · ca~~!eris~cas r:e1tgiosas sao UDl-
sobre uma sociedade pode indicar-nos algo a respeito de outra versais, pertencem a todas as rehgioes, .mclusive às do~ povos
e portanto a respeito de todas as sociedades, quer pertençam mais primitivos; que outras são especificas de ce~os tipos de
ao passado histórico, quer à nossa época. religião e que outras aindá são exolusivamente típicas de uma
Tomemos alguns exemplos históricos. Tem-se escrito muito religião determinada.
acerca dos beduínos pré-islâmicos da Arábia, mas apesar de •Fundamentalmente. se tivesse de defender a causa da Antr:o-
tudo pennanecem muitas questões sobre a sua estrutura social, pologia Social. fá·•'lo-ia desta maneira: d;iria que nos permite
que são difíceis de resolver a partir das evidências históricas. ver, dum certo ponto de vista. a humamdade como ~ todo.
Uma forma de aclarar estes problemas é estudar a estrutura Quando nos habituamos ao modo como a Antro~logia olha
social dos beduínos árabes da actuaJidade, que em muitos para as culturas e socieda~es humanas, toma-se fácil passar ?º
aspectos levam a mesma vida que os de épocas antigas. Igual- particular para o geral, e mversamente. Se faiamos. da famllia,
ment~ se !em. escrito muito sobre o feudo nos primeiros períodos não nos referimos apenas à familia da Europa Ocidental co~­
da h1stór1a mglesa, mas também aqui podemos ser bastante temporãnea, mas a uma instit.uição universal de que ª. famllia
ajudados na solução. de vários problemas ligados a esta questão europeia ocidental não é mais que uma forma e~pec1al co~
pelo estudo do funcionamento do feudo nas sociedades bárbaras muitas particularidades distintivas. Quando nos refenmos à reli-
dos. nossos dias. -Fioa•lmente, é difícil compreender actualmente gião. não pensamos só no Cristianism.o, mas no v.asto número
os JUigamentos de bruxas que tiveram lugar, em Inglaterra. no de cultos que se pratieam e se praticaram antenorme~te em
sécu~~ xyi. .Pode-~ · aprender bastante a este respeito estudando todo 0 mundo. Só compreendendo outras culturas e sociedades
a fe1ttçana nas sociedades da África Central, onde as pessoas é que se poderá observar a nossa própria cultura em perspec-

122 123
ANTROPOLOGIA SOCIAL

VII
tiva e chegar a entendê-la melhor contra o fundo da totalidade
da experiência e esforço humanos. Como já assinalei na minha BIBLIOGRAFIA SELEOCIONADA
conferência anterior, a dr.ª Margaret Mead adquiriu em Samoa
um certo tipo de compreensão acerca .dos problemas americanos
da adolescência. Malinowski clarificou o problema dos incen-
tivos na indústria britânica estudando o intercâmbio de objectos
rituais nas Tobriand e eu penso que aumentei os meus conheci-
mentos sobre a Rússia comunista ao estudar a feitiçaria entre
os Azande. Resumindo tudo isto, creio que a Antropologia
Social nos ajuda a compreender melhor, em quaiquer lugar ou
tempo, essa maravilhosa criatura que é o homem.

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