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Maconheiros e malandros
O delegado Ruy Prado de Francischi, lotado na 40ª DP, em Vila Santa
Maria, na zona norte, rastreando os passos de “maconheiros e malandros”,
conforme consta no relatório do Dops, recolheu informes sobre a quadrilha
que roubou o BMI. O delegado descobriu que os assaltantes, com os rostos
cobertos por lenços (estilo copiado dos filmes de faroeste, então a
coqueluche de Hollywood), haviam rendido o vigia e funcionários da
agência com armas furtadas do QG da Força Pública, em 16 de janeiro, de
onde haviam sido levados uma metralhadora INA, três pistolas Walther e
13 revólveres Taurus.
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A carta, datilografada numa folha com o brasão da República e timbres do
Ministério da Justiça e Polícia Federal, é assinada pelo inspetor Firmiano
Pacheco, com data de 8 de maio de 1968, portanto três meses antes de
Aladino Félix e seu grupo serem presos.
© Fornecido por El Pais Brasil Carta mostra a relação com altas patentes
do governo; foi publicada, à época, no Jornal Última Hora.
A onda de atentados era de pleno conhecimento do governo, que tinha
consciência, segundo Aladino Félix, de que o regime entrara numa fase de
desgaste e estava em meio a uma forte crise quatro anos depois do golpe.
“Brasília queria que nossas ações continuassem até dezembro de 1968 ou
janeiro de 1969”, escreve no manuscrito, entregue à polícia em 27 de
setembro de 1968. Todos os integrantes de seu grupo, ouvidos em
inquéritos civis e militares, reafirmariam que a motivação era levar o
regime a editar medidas de exceção.
Os terroristas e o militar
Com o esclarecimento do roubo ao BMI, vieram à tona o furto das armas e
os demais atentados. Trajano admitiu, em depoimento ao Dops, que foi
informado e viu as armas furtadas na casa de seu amigo Aladino Félix, mas
negou que soubesse das demais ações.
Depoimentos e acareações feitas pela polícia colocam o general, no
entanto, na cena em que se planejou o furto: todos disseram que,
consultado sobre a ação, o general pediu um tempo para responder, e que
só teria dado a ordem de execução depois de conversar com o comando da
PF no Rio.
© Fornecido por El Pais Brasil Documentos referentes à explosão de
bomba jogada do alto de um prédio para atingir o Quartel General do 2o.
Exército. Duas funcionárias de uma loja ficaram feridas.
Um dos militares do grupo, o sargento Rubens Jairo dos Santos,
diretamente envolvido em várias explosões de bomba, aponta o dedo direto
para o amigo do presidente: “O general Trajano deu a ordem para colocar a
bomba no QG do II Exército”, afirmou o militar em depoimento. O
objetivo, segundo ele, era assustar e alertar o então comandante da força,
general Syseno Sarmento, sobre a continuidade da conspiração entre
oficiais da Força Pública, mesmo depois de “abortado” o “plano” de
assassinar o presidente.
O delegado do Dops tachou de “evasivas” as respostas do general nas
acareações e afirmou que os que o acusaram de envolvimento no furto se
comportaram de maneira firme e convincente. Mas, em relação à suposta
conspiração contra Costa e Silva ter motivado o comportamento do general,
o delegado Sidney Benedito de Alcântara se mostra mais crédulo. Em seu
relatório, ele diz que o general Trajano “queria ser solidário a Costa e Silva,
com quem servira na vida militar e de quem recebeu valiosos apoios”.
Reconhece, no entanto, ser implausível que um militar experiente se
deixasse iludir por teorias conspiratórias que o teriam feito assumir
“conduta terrorista”. No final do relatório, repete o que imagina ter passado
pela cabeça do líder da direita ao ordenar os ataques aos seus seguidores:
“O governo ver-se-á na contingência de adotar represálias, impondo um
regime de força, desviando, dessa forma, o Brasil do abismo a que está
caminhando”.
Poupado pela Justiça Militar de São Paulo, que nem sequer o considerou
investigado, Trajano se tornaria alvo de um inquérito só mais tarde, aberto
inicialmente no Rio e, depois, transferido para o II Exército, em São Paulo.
Foi preso em setembro no QG da Segunda Divisão do II Exército até que
concluísse seu interrogatório, algo como uma prisão provisória nos dias de
hoje. Mesmo acusado de terrorismo, foi solto alguns dias depois por
decisão unânime dos ministros do STM, entre os quais votou contra a
decretação de prisão preventiva o general Ernesto Geisel, que em 1974
sucederia o general Emílio Garrastazu Médici, chefe do extinto Serviço
Nacional de Informações (SNI) no período dos atentados da direita.
O SNI e a farsa
As suspeitas de que a cúpula do regime militar sabia dos atentados da
direita em São Paulo são reforçadas por um relatório do SNI de agosto de
1969. Numa retrospectiva sobre o papel da Força Pública, então com 36
mil homens livres do “micróbio vermelho” e, portanto, “força
antirrevolucionária” a favor do regime, o agente diz que o grupo de
Aladino Félix tinha a intenção de levar todo o arsenal dos 350 homens que
integravam o antigo Departamento da Polícia Militar e que a autoria do
atentado ao QG da Força Pública foi encoberta por oficiais graduados da
corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.
O agente informa que o soldado Jessé, que classifica como “lugar-tenente”
de Aladino Félix, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira
Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser
presos no mesmo dia em que o petardo explodiu no QG da Força Pública,
em 10 de abril de 1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram
soltos, frisa o agente do SNI, sem nem sequer serem investigados.
Há, ainda, nos autos do mesmo IPM outros indícios que jamais poderiam
ter sido menosprezados numa investigação rigorosa: um bilhete que,
embora anônimo, já esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados. O
autor se dirige ao capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: “Será que
é cego? Onde está a sua experiência de soldado? Não vê que o plano
terrorista que se desenvolve em São Paulo está estreitamente ligado ao
cidadão Aladino Félix e que os maiores terroristas, seus seguidores, na
maior parte, são da Força Pública?”, diz o signatário, que se apresenta
como amigo secreto do capitão e assina com o curioso pseudônimo de
“Altos Significados”. Os quatro meses seguintes seriam marcados por
intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.
Apontado por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam
derrubar Costa e Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações
só seriam retomadas mais tarde por outro oficial, quando o delegado
Francischi já havia destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao
BMI, em agosto.
“Gênio e louco”
Quando a história do terrorismo veio à tona, o conceito do homem que
“salvara” a vida do presidente e evitou a “contrarrevolução” virou de
pernas para o ar. De lúcido e paparicado colaborador do regime militar,
Aladino Félix passou a ser tratado como um doido. A polícia o descreve
depois como um místico que falava ter sido contatado por alienígenas e que
se apresentava como o ungido que reunificaria as 12 tribos de Israel, enfim,
um Messias.
Crime e perdão
Em 30 de setembro de 1970, a Segunda Auditoria da Justiça Militar de São
Paulo afastou Trajano do processo por achar que “não era o caso” de
investigá-lo. Os quatro conselheiros, acatando o relatório do juiz Nelson
Machado Guimarães (o único civil da turma e cuja atuação ficou marcada
por sentenças implacáveis e duras com militantes da esquerda),
consideraram que não havia provas sobre os atentados e condenaram
Aladino Félix e o soldado Jessé Cândido de Moraes, pela Lei de Segurança
Nacional, a cinco anos de reclusão por “terrorismo”, apenas com base no
furto das armas. Os demais envolvidos foram condenados a penas mais
baixas, entre um e três anos.
Com a abertura de IPM contra o general Trajano, detentor de foro
privilegiado, o processo subiria para o STM. Lá, inconformado com a
sentença, o advogado do grupo, Juarez de Alencar, sustentou toda a linha
de defesa no perfil dos réus e nos objetivos políticos dos atentados que,
segundo ele, haviam sido desvirtuados no inquérito policial. Disse que
Aladino Félix e os militares “estavam convictos, na sua posição de homens
de direita, e de defensores da Revolução de Março, da absoluta legalidade
revolucionária de suas ações”.
Alencar lembra que Trajano, “companheiro e amigo” de Costa e Silva, deu
ao regime “notícia indiscutível da intentona”, argumentou que “quem está
com o governo não pode ser condenado pelo próprio governo” e pediu não
apenas a absolvição de todos, mas também que os militares liderados por
Aladino Félix fossem perdoados, reincorporados à Força Pública e
promovidos.
Semi-imputável
©
Fornecido por El Pais Brasil Conclusão do laudo psiquiatríco realizado em
Aladino Felix, também conhecido como “Sabado Dinotos”, durante o
período em que esteve preso.
O laudo assinado por dois psiquiatras forenses, José Roberto Belelli e
Carlos Roberto Hojaij, o define como detentor de personalidade
egocêntrica, com inteligência acima da média e domínio pleno dos temas
sobre os quais era instado a falar, mas, no final, corrobora a tese das
investigações: “Não se trata de doente mental. Trata-se de portador de
perturbação da saúde mental cuja capacidade de entendimento ao tempo
dos fatos era apenas parcial”, dizem no documento encaminhado no dia 7
de outubro de 1971.
A procuradora Mary Valle Monteiro, que antes considerara que o processo
inteiro era “tudo loucura”, já esperava o resultado. “A conclusão de que é
fronteiriço não nos decepciona. É um semi-imputável”, afirma, pedindo a
confirmação da sentença de oito meses de reclusão, plenamente acatada
pela turma do STM, conforme despacho do ministro Lima Torres, em 12 de
janeiro de 1972. “É, no mínimo, um lunático”, acrescentou o ministro.
Inconformado com o estigma de débil mental, Aladino Félix recorreu ao
STF.
Sem que nenhum fato novo tenha ocorrido, o recurso de apelação dormitou
21 meses no STF até que o relator, ministro Rodrigo Alckmin (tio do
presidenciável tucano Geraldo Alckmin) encerrasse o caso no dia 9 de
outubro de 1973, com um despacho de cinco linhas, em que negava
provimento à apelação. Aladino Félix e os demais envolvidos já estavam
em liberdade e o país, mergulhado na ditadura, vivia sob o AI-5 os horrores
dos anos de chumbo.
Aladino Félix amargou uma longa temporada atrás das grades. Foi preso
pela primeira vez em 22 de agosto de 1968, mas teve a prisão relaxada em
17 de outubro pelo juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo, responsável pelo
processo relacionado ao roubo ao BMI de Perus. A soltura, na verdade, foi
um cochilo dos militares responsáveis pelo IMP do II Exército, que
empreenderiam uma verdadeira caçada para prendê-lo novamente nove
meses depois. No dia 15 de setembro, ele conseguiu escapar pela porta da
frente da Casa de Detenção, no Carandiru, mas acabou preso novamente
uma semana depois.