Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Luciana Kind
RIO DE JANEIRO
2007
2
Luciana Kind
RIO DE JANEIRO
2007
3
Luciana Kind
BANCA EXAMINADORA:
AGRADECIMENTOS
Estou aprendendo.
Aprendo com Francisco Ortega o espanto diante de novas questões, o que me fez
transitar por terras e conhecimentos estrangeiros. Fernando Vidal e Bernard Andrieu me
ensinaram a compartilhar espaços férteis ao cultivo de idéias amorfas. Com Benilton
Bezerra Jr., Jane Russo e Octavio Serpa Jr, aprendi a encontrar direções a partir de um
trabalho apenas iniciado. Laura Moutinho e Carlos Plastino transmitiram a confiança de
continuar certas trajetórias no exercício de pesquisar. Com Sérgio Gomes, Rafaela
Zorzanelli e Luciana Caliman observo como amizades jovens podem assumir formas
inusitadas de solidariedade, gentileza e afeição mais comuns em laços antigos. Tem sido
uma rica experiência. Com meus familiares construo de longa data o desejo de
crescimento. Especialmente Daniel, Davi e Lara me inspiram para nova trajetória que se
abre. Márcia Stengel e Adriana Penzim me estimulam todos os dias a erguer a cabeça nas
adversidades e nas alegrias; aprendo doçura e leveza nos enfrentamentos cotidianos. Fico
com o ensinamento de que apoio é imprescindível no processo de investigação. Tive a
oportunidade de contar com o suporte da CAPES, o acolhimento do Instituto Max Planck
para História da Ciência e o tempo precioso ampliado pelo Programa de Capacitação
Docente da PUC Minas.
Agradeço as lições inestimáveis que essas pessoas e instituições me ofereceram ao
longo da construção deste trabalho, certa de que elas ecoarão por muito mais tempo e
produzirão frutos.
6
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
morremos de morte igual,
mesma morte severina
RESUMO
ABSTRACT
In the middle of the XXth century, the development of life support technologies made real
the dream of prolonging life and led to more medical experimentations, to endless ethical
debates and to new conceptions of the human being, of life and death. This work aims to
analyse the history of the definition of brain death during that period and its consequences
for the very definition of human being. We describe a net of concurrent knowledge to be
found in scientific texts, the construction of arguments, the international exchange of
practices and ideas and the dissemination of medical procedures grounded on different
conceptions of the human being. In a first moment we retrieved early practices on the
development of medical technologies that made possible the definition of brain death and
organ transplantations. For that, we made use, primarily, of publications in the medical
field. In the literature on brain death, we focused on outstanding journals in the fields of
medicine and philosophy which, between the decades of the 1960s and the 1980s, were the
privileged arena for discussions on the matter. Since the end of the years 1950s, redefining
death became an imperative which had, as it kernel aspect, a definition of the human being
compatible with the explicit intentions of investing in transplantation technologies.
Irreconcilable in every aspect with the achievements of medical technology, the correlation
between human soul and heart suffered a decisive blow with heart transplantation in the
end of the years 1960s. A new seat for the essence of the human being, more modern and
coherent and meant to be solidly constructed upon evidences such as the isoelectric EEG
and the definition of brain death, was firmly founded from the years 1960 onwards. We
also highlight contributions of human sciences literature in the production of critical
studies which compare the definition of brain death in the United States with the
development of transplantation technologies in other countries. From these studies we
emphasize a discussion concerning the “new medical artifacts”, in consequence of the
malleability of the body in the times of high technology: dead bodies with living parts;
living bodies with dead parts; living dead connected to machines. We reflect that in the
XXth century, in the name of the running for the improvement of human life through
medical practices incremented by new technologies, medicine seems to have accomplished
the creation of hybrid human beings, namely machine-man; vegetative-man; man-man.
LISTA DE ABREVIATURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
20
1. MÁQUINAS E ARGUMENTOS: das tecnologias de suporte da vida à definição
de morte cerebral ..........................................................................................................
1.1. A vida prolongada e a produção de doadores ........................................................ 24
1.2. A redefinição da morte nos anos 1960 .................................................................. 30
1.3. Do coração ao cérebro ........................................................................................... 41
INTRODUÇÃO
Numa cena do filme A Ilha (2005) uma mulher jovem, de aparência saudável
caminha lentamente guiando um grupo de pessoas para uma sala onde se destacam painéis
retratando pessoas com “desgastes corporais” evidentes. O plano de filmagem destaca
algumas personagens dos painéis: uma mulher bem vestida com o rosto parcialmente
desfigurado; um homem vestindo terno, sem um dos braços; um homem com agasalho de
ginasta numa cadeira de rodas; um jogador de futebol americano com o braço apoiado
numa tipóia; uma criança segurando um bicho de pelúcia. Uma voz introduz ao grupo de
pessoas o tipo de produto que poderão comprar ali:
O organismo humano é único em todo o universo em sua complexidade. O produto de três milhões
de anos de evolução. Perfeito sob todos os aspectos, menos um. Como todas as máquinas, ele se
desgasta. Há séculos, a regeneração do corpo humano tem sido a meta principal da ciência.1 (A Ilha,
2005).
O futuro antecipado pelo filme prevê uma tecnologia altamente avançada em que o
clone humano é apresentado como “produto”, mercadoria acessível a clientes
1
Transcrição do áudio em português. Confira a transcrição do áudio original em inglês: “The human
organism, unique in all the universe in its complexity. The product of three billion years of evolution. Perfect
in every way, except one. Like all machines, it wares out. For centuries, the idea of replenishing the human
body has been at the forefront of science” (A Ilha, 2005).
2
Transcrição do áudio em português. Áudio em Inglês: “Ladies and gentlemen… Welcome to the next
generation of science: the agnate. An organic frame engineered directly into adulthood to match the client’s
age. You’re looking at stage one of its development. Within twelve months it will be harvest-ready,
providing a carrier for your baby, a second pair of lungs, fresh skin, all genetically indistinguishable of your
own. And in compliance with the eugenics law of 2015. All our agnates are maintained in persistent
vegetative state. They never achieve consciousness. They never think, or suffer o feel pain, joy, love, hate.
It’s a product, ladies and gentlemen. In every way that matters. Not human.” (A Ilha, 2005).
14
maneira de descrever o ser humano3. Essa necessidade apontada pelo biólogo a partir de
sua experiência pessoal coloca em destaque uma discussão presente há algumas décadas na
literatura médica que aborda as tecnologias de suporte de vida, a definição de morte
cerebral e o transplante de órgãos.
Neste trabalho, levantamos a hipótese de que a história da definição de morte
cerebral permite discutir a emergência de diferentes descrições de ser humano.
Analisaremos, nesse cenário, a proliferação de procedimentos médicos, a construção de
argumentos para sustentá-los e a rede de saberes concorrentes que vai se formando em
torno das tecnologias médicas que criaram as condições de possibilidade para a definição
de morte cerebral. Muitos são os pressupostos biológicos, filosóficos e antropológicos que
apóiam as descrições de ser humano que encontramos ao acompanhar esse nicho da
história da medicina. Também numerosos são os atores sociais – médicos, filósofos,
advogados, políticos – que aí se destacam, em defesas individuais ou organizados em
coletivos e entidades. Pressupostos e atores foram identificados na literatura médica e
publicações afins que se dedicaram a transformar a morte cerebral numa “caixa preta”, em
consonância com Latour (2000). A noção de “caixa preta” é utilizada pelo autor com seu
significado emprestado da cibernética, que a descreve como “uma máquina ou conjunto de
comandos” que se revelam complexos demais. O autor propõe uma “entrada no mundo da
ciência e da tecnologia” pela porta de trás, a da ciência em construção. Ele sugere que nos
posicionemos antes da caixa preta se fechar e adquirir uma dimensão de verdade científica.
Para isso, o autor sugere que sigamos o melhor dos guias: os próprios cientistas, “em sua
tentativa de fechar a caixa-preta”. Seria importante, então, a decomposição de uma caixa-
preta a partir das publicações ou do que Latour nomeia como a “anatomia dos textos
científicos”. Pretendemos, portanto, acompanhar a história da definição de morte cerebral,
que se desenrola no século XX, identificando práticas, argumentos e atores que a
compõem. Nessa história, destacaremos os debates que colocam em questão o ser humano,
e aquilo que o caracteriza, como maneira de garantir uma descrição precisa de sua morte.
No primeiro capítulo apresentamos o desenvolvimento de tecnologias de suporte de
vida que demandaram uma redefinição de morte e tornaram possível o transplante de
órgãos. Destacamos da literatura médica entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1970
3
O autor se submeteu a um transplante de fígado em 1999. Em suas palavras: “We are left to invent a new
way of being human where bodily parts go into each other’s bodies, redesigning the landscape of boundaries
in the habit of what we are so definitively used to call distinct bodies.” (Varela, 2001, p. 208).
17
4
As traduções presentes no corpo do texto são nossas, à exceção de publicações que contam com traduções
brasileiras ou portuguesas às quais a pesquisadora teve acesso. As traduções serão sempre seguidas pelo texto
original em nota de rodapé. Nesse caso, Casper e Koenig (1996) escrevem: “(…) technology use in medicine
cuts across social, cultural, and corporeal boundaries”.
21
seguradoras de saúde, e indústria farmacêutica, e não menos importante, nas mãos de industrialistas,
economistas e governos em tempos de paz e de guerra.” (Cooter e Pickstone, 2000, p. xv)5
5
Nas palavras dos autores, “(...) not just the power of knowledge in the abstract, but power in the hands of
doctors and (increasingly) patients; in the hands of institutions such as churches, charities, insurance
companies, and pharmaceutical manufacturers, and not least, in the hands of industrialists, economists and
governments in peacetime and war”.
6
“The more effective utilization of modern science and the more efficient functioning of public health
agencies, hospitals, clinics, and private practitioners of various kinds await the development of social
research, experimentation, and demonstration. If the organizations responsible for these developments do
their work well, the health and happiness of the people of the United States may be immeasurably improved”.
22
exemplificada pela autora com o texto de Mary Shelley7, compromete-se com o bem da
humanidade no ensejo de “dominar tecnicamente a natureza”. Contudo, “a tecnociência de
inspiração prometéica”, reflete a autora, esbarra nos limites da natureza. Não é possível ao
conhecimento humano profanar todos os âmbitos, em especial, não se pode pretender
“ultrapassar o umbral da vida”. Ignorando tal limitação a tradição fáustica se orienta por
“um impulso cego para o domínio e apropriação total da natureza”. A imaginação
científica é ilimitada, fundada num saber fáustico característico das tecnociências
contemporâneas. Nesse pensamento, as pesquisas biotecnológicas não se voltariam para
ampliar as capacidades dos seres humanos. A autora ressalta uma “vocação ontológica”
nessas vertentes científicas, uma “aspiração transcendentalista que enxerga no instrumental
tecnocientífico a possibilidade de criar vida” (Sibilia, 2002, p. 49-50).
O ideal fáustico não se instaurou sem resistência. Medicina, filosofia e teologia
tomam a frente no debate em torno da experimentação, só posteriormente abarcando outras
áreas das ciências humanas. Mesmo que esse debate tenha se estendido até o presente,
gostaríamos de enfatizar que o interesse da pesquisa médica no início do século XX se
direcionava para o organismo como um todo, ainda que estudado em seus fragmentos. No
modelo corpo-máquina, havia espaço para identificar o sujeito com seu corpo. Até os anos
1950 essa acepção pode ser encontrada nos periódicos estadunidenses8. Argumentamos
que a especialização do saber médico combinada com a contínua introdução de aparelhos
em sua prática, em meados do século XX, facilitou a exploração da fronteira entre vida e
morte. Uma das conseqüências dessa investida, a ser analisada adiante, é a identificação do
ser humano com seu cérebro.
7
O emprego de conhecimentos correntes no início do século XIX, como as técnicas de dissecação e as
correntes galvânicas, não privou Mary Shelley (1818/2002) de desenhar a conquista do jovem Frankenstein
como condenável, profana. Numa aproximação entre ciência e literatura La Rocque e Teixeira (2001)
identificam nessa narrativa clássica o impacto das inovações tecnológicas nas esferas mais corriqueiras da
vida social. Para se engendrar no mundo cotidiano, a ciência se apresenta como um “passaporte para um
mundo melhor”. Contudo, há sempre na incorporação de novas tecnologias controvérsias relacionadas aos
seus limites éticos. Os analistas literários lembram que Frankenstein é considerada a primeira obra do gênero
ficção científica. Além de oferecer dimensões críticas à ambição científica, Mary Shelley reporta o grande
mito àquela época de ressuscitar os mortos; mito religioso, mas, sobretudo, científico. Leslie Fielder (1996),
crítica literária, também analisa o romance. Ela enfatiza que os aspectos mitológicos de contos como
Frankenstein revelam a contradição entre a aceitação consciente e a rejeição inconsciente de procedimentos
cirúrgicos presumivelmente benignos. Tais procedimentos nos colocam em confronto com noções primitivas,
bem estabelecidas, sobre vida e morte, o self e o outro, o corpo e o espírito. O transplante de órgãos,
tecnologia com menos de um século de existência concreta, providencia elementos para um debate vasto.
Para além dos resultados bem sucedidos, interessa-nos pensar o que fundamenta tais procedimentos.
8
Sobre esse debate confira Farrell (1958), Fulton (1933) e Ivy (1948). A experimentação em seres humanos
visava prioritariamente o avanço no campo da farmacologia e na utilização de procedimentos invasivos.
24
9
Com isso pretendemos indicar que não é foco deste trabalho explorar as redefinições que dispensam o corpo
como elemento para descrição do ser humano, entrando na esfera das discussões advindas da biologia
molecular. O tempo do “pós-orgânico”, marcado pela conexão entre genética e informação, é uma invenção
mais recente, das últimas décadas do século XX adentrando o século XXI. Sobre essa discussão confira
Rabinow (1999), Andrieu (2002), Sibilia (2002; 2004) e Le Breton (2003, 2006).
10
Nas palavras do autor, “(…) highly sophisticated and profoundly primitive”, Thomas (1971, p. 1367).
11
A tradução literal desta expressão seria “pulmão de aço”, numa alusão direta a sua função. Essa tradução
foi pouco encontrada na bibliografia de língua portuguesa. Portanto manteremos, no corpo do texto, a
expressão em inglês.
25
12
O Laboratório Virtual “Virtual Laboratory” (projeto do Instituto Max Planck para a História da Ciência)
apresenta uma série de modelos destes respiradores mecânicos projetados no século XIX. Alguns podem ser
visualizados no site <http://vlp.mpiwg-berlin.mpg.de/technology>.
26
manual por pressão positiva (...) com insuflação de uma mistura de oxigênio e nitrogênio” (Lassen,
1956, p. xi)13.
13
“August 26 the first patient was treated with the method which soon became our method of choice in
patients with impairment of swallowing and reduced ventilation – namely, tracheotomy just below the larynx
with insertion of an inflatable rubber cuff tube into the trachea, frequent suction of the airway, probably
repeated bronchoscopy, postural drainage and manual positive pressure ventilation (bag ventilation) with
insufflation of a mixture of oxygen and nitrogen.”
14
Será adotada a expressão morte cerebral, em vez de “morte encefálica”, evitando-se deliberadamente a
terminologia médica, no intuito de marcar a discussão que se pretende fazer a partir das ciências humanas.
Sempre que a expressão “morte encefálica” aparecer no corpo do texto, será destacada pela sua vinculação
com o discurso biomédico.
15
“I have felt great satisfaction in realizing that the specialty of anaesthesiology gives opportunity for clinical
work which very often calls for improvisation and for all the experience that a long life in and outside the
operating room has given the background for”.
27
16
“Il appartient au médecin, et particulièrement à l’anesthésiologue, de donner une définition claire et précise
de la ‘mort’ et du ‘moment de la mort’ d’un patient, qui décède en état d’inconscience. Pour cela, on peut
reprendre le concept usuel de séparation complète et définitive de l’âme et du corps; mais en pratique on
tiendra compte de l’imprécision des termes de ‘corps’ et de ‘séparation’. On peut négliger la possibilité qu’un
homme soit enterré vivant, puisque l’enlèvement de l’appareil respiratoire doit après quelques minutes
provoquer l’arrêt de la circulation et donc la mort.”
29
Há uma nova maneira de se morrer nos dias de hoje. É o percurso lento pela medicina moderna. Se
você está muito doente a medicina moderna pode te salvar. Se você está morrendo ela pode te
impedir de fazer isso por um longo período. (...) Para aqueles que acompanham e assistem, isso
parece uma imposição terrível contra a vontade de Deus. (Anônimo, 1957, p. 53).18
17
“(…) it is neither scientific nor human to protract the life of a patient”.
18
“There is a new way of dying today. It is the slow passage via modern medicine. If you are very ill modern
medicine can save you. If you are going to dye it can prevent you from so doing for a very long time. (…) To
those who stand and watch, this seems like a ghastly imposition against God’s will be done”.
19
“There is no ‘hopeless patient’, only hopeless doctors.”
30
Na década de 1960 as publicações começam a tomar uma nova forma, pois autores
isolados se estruturam em grupos, comissões e instituições organizados por interesses
específicos no debate em torno da redefinição da morte. O formato de comissão foi
adotado nas principais publicações sobre o assunto, salvaguardando autores individuais do
constrangimento de emitir suas meras opiniões sobre questão tão delicada. Foram sendo
criados grupos com posições opostas e pontos de convergência no debate, o que promoveu
uma vasta publicação nos periódicos médicos e de áreas diretamente envolvidas nessa
primeira onda de discussões, como a filosofia, a teologia e o direito. Latour (2000) analisa
que “o número de amigos externos com que o texto vem acompanhado é uma boa
indicação de sua força, mas há um sinal mais seguro: as referências a outros documentos”
(p. 58). Nessa composição de autores, entre amigos e opositores, é preciso “empilhar
montes de referências” (p. 63). Esse efeito de produção de textos em cadeia é observado no
debate sobre a redefinição da morte, tendo como força emergente coletivos nitidamente
empenhados em elevar a então recém-definida morte cerebral ao nível de fato científico.
Leslie Rado (1987) argumenta que o estabelecimento de uma “elite
multidisciplinar” caracterizou o movimento de redefinição da morte. A antropóloga analisa
a trajetória dos membros desta elite em termos biográficos, geográficos e institucionais,
destacando suas contribuições para a institucionalização do conceito de morte cerebral. Ela
afirma que os representantes desta elite tinham trajetórias intelectuais e ocupações
institucionais diversificadas. Numa combinação de médicos, teólogos e juristas, a elite
31
conceituou, redefiniu e legitimou uma nova morte. Partindo de indicações presentes desde
os anos 1950 de que isso deveria ser feito, a morte foi transformada em assunto jurídico
nos anos 1960 e 1970. Rado (1987) aponta duas motivações cruciais para a emergência
desta elite, ambas associadas à moderna prática médica. Um primeiro motivo era gerado
pelo alto custo financeiro e emocional ligado ao prolongamento da vida. Uma segunda
razão era a necessidade crescente de se obter órgãos para transplantes.
Vinte e seis homens foram listados por Rado (1987) como componentes desta elite.
Destes, apenas seis não tinham posições acadêmicas nem eram professores universitários, e
nove deles tinha pesquisas financiadas ou eram chefes de seus departamentos ou
laboratórios. Quatorze estavam vinculados a universidades proeminentes no cenário
nacional e internacional. Um deles, o médico Gunnar Biork, era conselheiro de saúde da
Suécia; outros ocupavam postos editoriais em periódicos científicos. Todos eram
respeitados profissionais em suas respectivas áreas. A maioria era de médicos (46%),
seguidos por alguns dos precursores da bioética (31%) e pelos advogados (23%). Os nomes
propostos por Rado (1987) estão listados na Tabela 1. Em itálico estão destacados alguns
dos membros do Ad Hoc Committee of Harvard of Medical School, que viria a publicar a
definição de morte cerebral no Journal of the American Medical Association em 1968.
TABELA 1: A Elite Cultural
Frank J. Ayd, M.D. Hans Jonas, Ph.D.
Henry K. Beecher, M.D Leon R. Kass, M.D., Ph.D.
Gunnar Biorck, M.D. Ian McColl Kennedy, LL.B.
Alexander Capron, LL.B. Julius Korien, M.D.
Rev. Charles Carroll Don Harper Mills, M.D.
Vincent J. Collins, M.D. Robert Morison, M. D.
William V. Curran, J.D. Ralph Potter Jr, Ph.D.
J. Russell Ellington, M.D. Paul Ramsey, Ph.D
George P. Fletcher, J.D. Richard Masland, M.D.
Joseph Fletcher, Ph.D. James F. Toole, M.D., LL.B
Otto Guttentag, M.D. Robert Veatch, Ph.D.
Hannibal Hamlin, M.D. A. Earl Walker, M.D.
Marshall Houts, J.D. Carl E. Wasmuth, LL.B, Ph.D.
Fonte: Rago, L. Cultural Elites and the Insitutionalization of Ideas. Sociological Forum, v.2, n.1, 1987, p.47.
Três nomes são acentuados por Rado (1987): Henry Beecher, Paul Ramsey e
William Curran. Os três tiveram papéis fundamentais para idealizar, divulgar, e
transformar em lei a nova definição de morte, mesmo sendo um deles, Ramsey, crítico da
proposição de morte cerebral. Lideranças no conjunto levantado por Rado, esses e outros
membros do grupo contavam com espaços institucionais privilegiados para construir os
caminhos que se estreitariam numa definição aceitável, bem discutida e difundida e
respaldada juridicamente.
As indicações de Rado (1987) fornecem elementos interessantes para ir além na
discussão sobre a redefinição da morte e a expansão do campo de transplante de órgãos.
32
Guiados por duas publicações marcantes, quais sejam, o relatório do Ad Hoc Commitee of
Harvard Medical School (1968) e o Uniform Determination of Death Act (1981), ambos
veiculados pelo Journal of the American Medical Association (JAMA), fizemos uma busca
neste periódico no intuito de identificar pontos da discussão em torno da morte cerebral e
do transplante de órgãos. Orientamos nossa busca pelos anos 1968 e 1981, incluindo o ano
que precedeu e o que sucedeu o relatório do Ad Hoc Committee... (1968), considerado em
toda a literatura consultada um marco para a discussão que se pretende desenvolver neste
trabalho. 1981 foi o ano de publicação de dois importantes documentos de outro coletivo, a
President’s Commission: o relatório sobre a redefinição da morte, intitulado Defining death
e o já mencionado Uniform Determination of Death Act (UDDA). Estas publicações foram
citadas por várias “gerações de textos” (Latour, 2000), em artigos acadêmicos diversos.
Desde o período em que foram publicadas até os textos mais contemporâneos elas são
citadas pelos adeptos da definição de morte cerebral em sua formulação original ou, com
raras exceções, com pequenas modificações no intuito de atualizá-las. Latour (2000) avalia
que esse efeito produzido por alguns textos, o que se aplica aos relatórios mencionados,
“significa que tudo o que ele tenha feito com a literatura anterior é transformado em fato
por quem o incorpora depois” (p. 70-71), o que encerraria a discussão. Esse processo de
reafirmações múltiplas e persistentes, com muitos opositores, mas também com muitos
simpatizantes e partidários, transformou a morte cerebral numa caixa preta. O Journal of
the American Medical Association constitui-se como um dos mais notáveis veículos de
defesa da definição.
Em sintonia com o pensamento de Fleck (1935/1979), ponderamos que, uma vez
publicada, a definição de morte cerebral se propagou como força social, desdobrando-se
em novas definições e conceitos que criaram, por sua vez, “hábitos de pensamento” (p. 37).
Ao refletir sobre a morte no contexto das práticas médicas a partir do final dos anos 1960,
nem leigos nem especialistas poderiam se esquivar da definição de morte cerebral. Nesse
cenário de publicações, outros dois periódicos, o Hastings Center Report e o New England
Journal of Medicine, mostraram-se importantes canais de divulgação de posições
favoráveis e contrárias à definição de morte cerebral. Nos anos subseqüentes a 1968 até a
atualidade, essas revistas fomentaram debates importantes, revelando a ausência de
consensos e a proliferação de controvérsias. Artigos isolados, especialmente aqueles cujos
autores são apontados como importantes defensores da definição de morte cerebral, serão
também abordados em nossa discussão.
33
20
“Our primary purpose is to define irreversible coma as a new criterion for death. There are two reasons
why there is need for a definition: (1) Improvements in resuscitative and supportive measures have led to
increased efforts to save those who are desperately injured. (…) (2) Obsolete criteria for the definition of
death can lead to controversy in obtaining organs for transplantation.”
34
Nessa defesa sem meias palavras, Beecher equivale a morte cerebral à morte, ponto
polêmico do debate que destrincharemos no capítulo seguinte, onde as derivações da
definição de morte serão discutidas. A publicação da Daedalus inaugura um movimento –
21
As long as it is merely a question of when it is permitted to cease the artificial prolongation of certain
functions (like heartbeat) traditionally regarded as signs of life, I do not see anything ominous in the notion
of “brain death”. (…) But a disquietingly contradictory purpose is combined with this purpose in the quest
for a new definition of death: Permission not to turn off the respirator, but, on the contrary, to keep it on and
thereby maintain the body in a state of what would have been “life” by the older definition (but is only a
“simulacrum” of life by the new) – so as to get at his organs and tissues under the ideal conditions of what
would previously have been “vivisection”.
22
In the field of transplantation there are two great barriers to progress: the immunological rejection
phenomenon and the great shortages of donor material. At the present time, the rejection phenomenon is
beyond our control in any satisfactory sense, but it is within our power to take a giant step forward in
relieving the shortages of donor material. This will require the prior concurrence of those involved, the
agreement of society, and, finally, approval in law. The crucial point is agreement that brain death is death
indeed, even though the heart continues to beat.
35
23
Adiante serão exploradas em detalhe as três principais derivações da definição de morte cerebral, a saber,
whole-brain death, brain stem death e higher brain death. Essas expressões aparecem de forma distinta em
diferentes publicações em língua portuguesa. Whole-brain death pode figurar como “morte cerebral total”
(CNBB, 1996), como “morte de todo o encéfalo” (Penna, 2005), “morte de todo o cérebro” (Torres, 2003) e
“morte holo-cerebral”, esta última tradução presente em artigo de um periódico português (Pita e Carmona,
2004). A expressão brain stem death é comumente traduzida por “morte do tronco encefálico” ou “morte do
tronco cerebral” (Penna, 2005; Pita e Carmona, 2004). Higher brain death aparece em língua portuguesa
como “morte neocortical” (Pita e Carmona, 2004). As expressões em inglês serão mantidas por não haver
consenso nas traduções encontradas, mas também por estas derivações estarem fortemente vinculadas a
características anatômicas, cujos meandros não serão contemplados neste trabalho.
36
24
“C’est à ces trois degrés traditionnels du coma, que nous suggérons d’ajouter un quatrième degré, celui du
coma dépassé: Soulignons nousmême que ce terme n’est pas parfaitment satisfaisant et que nous accepterons
toute suggestion d’un terme meilleur. Mas il est le terme utilisé depuis 4 ans dans le service, depuis que nous
avons défini le coma dépassé come: le coma dans lequel se surajoute à l’abolition totale des fonctions de la
vie de relation, non des perturbations, mais une abolition égalment totale des fonctions de la vie végétative.”
25
“(…) prolonge um spectacle de plus en plus doulourex aux yeux des familles.”
38
26
“(…) a strong case can be made that society can ill afford to discard the tissues and organs of hopelessly
unconscious patients so greatly needed for study and experimental trial to help those who can be salvaged.
This can come about only with the prior concurrence of those involved, the agreement of society and, finally
approval in law.”
39
critérios são a parada da atividade elétrica no cérebro após um período prolongado (...), e a absoluta
falha em responder a qualquer estimulação intensa27. (Beecher, 1968, p. 1427).
daquele período, quando questões de vida e de morte estavam sendo levantadas. Nesta
obra, Ramsey chama a atenção para as ambigüidades do relatório de 1968 que, segundo
ele, negligenciou questões éticas importantes. Destaque é dado para a necessidade de
distinção sobre o que é a morte do ser humano, se ela se refere apenas à morte do cérebro e
se questões religiosas deveriam entrar nessa decisão. Também discute a utilização de
meios extraordinários em detrimento de meios ordinários no “dever” médico de salvar
vidas, apontando que a abundante utilização dos primeiros estava, na verdade, gerando
novos problemas éticos como a eutanásia e o prolongamento do morrer. Outro ponto
enfatizado é a forte conexão entre a definição de morte cerebral e o transplante de órgãos.
Ramsey pondera que o ponto crucial ao qual se havia chegado na tecnologia de transplante
de órgãos, qual seja, o transplante cardíaco, é o que curiosamente apressara uma
redefinição da morte. O coração, outrora representado como sede da vida e da alma, havia
sido profanado; a vida, ela mesma, havia sido tocada. O teólogo aponta que “porque o
coração é um órgão singular que ‘pulsa’ é compreensível que se levantem sérias questões
humanas – questões sobre o significado da vida e da morte – quando o coração é
transplantado”30 (Ramsey, 1970, p. 62). Sobre a situação do transplante, Ramsey conclui
que, se a definição de morte for colocada a serviço dos transplantes, ela não deveria ser
revista.
Se a morte de ninguém deve por este motivo [transplante] ser antecipada, então a definição de morte
por este motivo não deveria ser revista, ou os procedimentos para declarar que um homem está
morto ser revisados para garantir acesso mais fácil a órgãos. (Ramsey, 1970, p. 103)31.
30
“(…) because the heart is an unpaired organ that ‘ticks’ it is understandable that grave human questions
arose – questions of the meaning of life and death – when the heart was transplanted.”
31
If no person’s death should for this purpose be hastened, then the definition of death should not for this
purpose be updated, or the procedures for stating that a man has died be revised as a means of affording
easier access to organs
41
Cantado em verso e prosa como a sede das emoções humanas, nos anos 1960 o
coração perdeu sua condição de órgão privilegiado para se dizer que uma pessoa está
morta. Ganhou, contudo, o status de órgão nobre para a tecnologia de transplantes. A
história do transplante cardíaco está totalmente intrincada na definição de morte cerebral.
Um momento crucial: 3 de dezembro de 1967, quando foi realizado o primeiro transplante
de coração em seres humanos na Cidade do Cabo, África do Sul. Antes mesmo de se
contar com uma declaração oficial de morte cerebral, o primeiro coração humano passou
pelas mãos de Christiaan Barnard, em seu caminho entre o corpo de uma jovem doadora e
um senhor que o recebeu. Christiaan Barnard havia estudado com Shumway, persistente
cirurgião da Universidade de Stanford, onde conduzia experimentos de transplante
cardíaco com animais. Num artigo em que reporta duas cirurgias com seres humanos,
Barnard opina que é prematura a objeção a transplantes cardíacos em seres humanos. Seu
relato foi publicado cinco meses antes do relatório do Ad Hoc Committee.... Ele pronuncia
entusiasticamente que “o primeiro paciente morreu 18 dias após a operação, e o segundo
paciente ainda está vivo após seis meses. Portanto, a técnica evoluída teve zero de
mortalidade direta até o momento” (Barnard, 1968, 589)32.
32
“The first patient died 18 days after operation, and the second patient is still alive after six months. Thus,
the technic evolved has so far carried a direct mortality to zero.”
42
Se o transplante cardíaco era ou não uma ação “imoral” era uma questão que
refletia o clima de espanto e terror com que foi recebido pelo público. A redefinição da
morte ainda estava por se fazer; portanto, havia a dúvida se o ato de retirar um coração
ainda pulsante de um paciente para acomodá-lo em outra pessoa era algo surpreendente. A
concordância imediata com a ação de Barnard é expressa por Appel (1968):
De alguma maneira deve ser definido ou estabelecido um limite para o quão longe podemos
devemos ir nesses esforços para prolongar a vida. Ainda que sejamos capazes, um dia, de substituir
um cérebro gasto, e eu acredito que isso está no âmbito das possibilidades futuras, devemos aceitar o
fato de que algumas vidas não deveriam ser prolongadas. Certamente a profissão médica não está
qualificada para tomar todas essas decisões por si só. A sociedade deve, de alguma maneira, ser
envolvida34. (Appel, 1968, p. 516).
Raymond Hoffenberg (2001), uma das testemunhas dos dois primeiros transplantes
de coração realizados na Cidade do Cabo, relata que o segundo paciente transplantado pela
equipe de Barnard sobreviveu 18 meses, tendo uma sobrevida regrada em função do
transplante. O cirurgião tinha sob sua assistência o segundo doador requisitado pela equipe
de Barnard, e deu seu depoimento sobre a pressão exercida pela equipe do colega:
A equipe de transplantes solicitou que eu declarasse o homem (...) [o segundo doador] “morto” e
confirmasse que seu coração serviria para o transplante. (...) A despeito disso, eu hesitei. Meu
paciente ainda tinha alguns reflexos neurológicos por estimulação. Eu fui para casa, retornei uma ou
33
“My duty as a doctor is to treat the patient. As far as the donor was concerned I could not treat her any
more. She was beyond the stage when I had any medical knowledge or any know-how to treat her, so there
my duty ended. As far as the recipient or the patient was concerned, I had one way of treating him and that
was to transplant a heart. And this was the treatment I gave this patient. I do not think this is immoral”.
34
“(...) somehow man must define or set a limit as to how far we should go in these efforts to prolong life.
Even though we might be able to replace a worn out brain some day, and I believe that is in the realm of
future possibilities, we must accept the fact that some lives should not be prolonged. Certainly the medical
profession is not qualified to make all these decisions by itself. Society must somehow become involved.”
43
duas horas depois, ainda identificava os reflexos, e me neguei a declará-lo morto. (Hoffenberg,
2001, p. 1478)35.
35
“I was asked by the transplant team to pronounce the man (Philip Blaiberg’s donor, who had a
subarachnoid haemorrhage) ‘dead’ and confirm that his heart would be suitable for transplantation. (…)
Despite this I hesitated. My patient still had a few elicitable neurological reflexes. I went home, returned an
hour or two later, still found the reflexes, and declined to pronounce him dead”.
36
“Transplant era dawned on December 3, 1967, when Christiaan Barnard electrified the world by removing
a heart from one human being and implanting it into another”
44
heróicos nos anos imediatamente posteriores a 1967 e a persistência de poucos grupos que
se atreviam a desenvolver a técnica e lidar com altas taxas de rejeição dos órgãos
transplantados. Os relatos dos cirurgiões pareciam otimistas, afirmando que a sobrevida,
ainda que média, era um avanço sem precedente para a história da cirurgia cardíaca
(Cooley, 1968; Shumway, 1969; 1971). Apesar disso, a década posterior aos primeiros
transplantes cardíacos foi marcada por altos custos financeiros e humanos (DiBiardino,
1999).
O transplante cardíaco intensificou a exigência de uma nova definição de morte.
Até a década de 1960, para todos os efeitos, a morte era evidenciada pela parada
cardiorrespiratória do paciente. A pressão por uma definição de morte que permitisse a
coleta do coração para transplante era realidade antes mesmo que a morte cerebral fosse
cunhada. Morte de quem? Mas morte de quê? Os “pacientes sem esperança”, alvo de
discussões nos anos 1950, transformaram-se em esperança de muitos na nova ordem do
transplante cardíaco: morte de uns como promessa de vida de outros. Os pacientes
conectados a respiradores artificiais, em estado irreversível de perda da consciência,
ganharam uma nova denominação, a saber, “pacientes com morte cerebral” (brain dead
patients). Foi sendo construída uma campanha pela associação do sujeito com sua
consciência que, por sua vez, deveria ser localizada no cérebro. A ausência de consciência,
a “morte do cérebro”, seria a condição suficiente para se declarar que o sujeito estava
morto.
Pernick (1999) avalia que, na virada entre os séculos XIX e XX, a ciência médica
vivia tempos gloriosos, com conquistas significativas, o que gerava uma confiança da
sociedade nas ações médicas sem precedentes. Esta crença na potência da medicina
possibilitou a “descoberta de novas incertezas não como perigos, mas como oportunidades,
não como problemas, mas como progresso” (p. 5). Para o autor a consolidação, em meados
do século XX, das práticas de ressuscitação cardiorrespiratória, a possibilidade de
manutenção de “órgãos vivos” e a emergência da tecnologia de transplante de órgãos
marcaram a passagem de uma postura de adoração pela tecnologia médica para uma
desconfiança pública na ciência médica em sua cruzada em busca da imortalidade. Essas
direções do fazer médico provocaram o surgimento da bioética e a demanda por maior
participação de leigos em debates técnicos, que precipitaram o “fim de meio século de
entusiasmo popular sem precedente pela ciência médica e deferência pelos médicos, de
45
37
“[These changes brought a sudden] end to a half-century of unprecedented popular enthusiasm for medical
science and deference to physicians, in ways that profoundly influenced the debate over defining death.”
38
“(...) fears about being wrongly declared dead by hasty, uncaring, or organ-harvesting physicians still
remained an important barrier to full public acceptance of both organ donation and brain death”
46
“No dia seguinte, ninguém morreu”. Esta frase enigmática inicia e finaliza o
romance de Saramago em que a personagem principal é a morte. Dentro das fronteiras de
um país imaginário, a morte se priva da tarefa de ceifar vidas. O drama vivido pelos
habitantes do país se resolve com o simples cruzamento da “linha invisível” de suas
fronteiras. Deslocados geograficamente, os moribundos mudam de status, passando de
mortos-vivos a cadáveres que podiam ser enterrados sem dilemas morais. As fronteiras no
romance se assemelham aos efeitos dos argumentos construídos e reproduzidos na
campanha que se seguiu à redefinição da morte nos anos 1960, nos Estados Unidos, em
prol de sua legitimação em território nacional e estrangeiro. Nessa empreitada, o humano é
também redefinido e é apresentado em diferentes formas, circunscrito em fronteiras
culturais e delimitações de campos de conhecimento.
Como vimos no capítulo anterior, cirurgiões de diversos países haviam sido
treinados para conduzir transplantes cardíacos pela equipe de Shumway, na Universidade
de Stanford. Podemos considerar que essas “trocas internacionais de práticas”,
parafraseando Bourdieu (1990/2002)39, não só difundiram a tecnologia de transplantes em
nível internacional, mas também abriram precedentes importantes para que os cirurgiões
estadunidenses pudessem finalmente realizar transplantes com seres humanos. Nessa
direção, Matoka e Lock (2006) chamam a atenção para o freqüente destaque dado à
diferença cultural nos estudos sobre transplante de órgãos. As autoras destacam três
questões recorrentes trabalhadas pela antropologia médica que se dedica ao estudo dos
transplantes em diferentes contextos: a redefinição da morte; concepções de corpo, self e
identidade; e o comércio de partes do corpo humano.
39
O autor discute, na verdade, a circulação internacional de idéias no campo das ciências humanas, e suas
reflexões são feitas quando ele é convidado a inaugurar, na Alemanha, um Centro de Pesquisas sobre a
França. No caso dos transplantes, é objeto de nosso interesse como os textos circularam para sustentar
práticas e procedimentos técnicos que desafiavam concepções prévias a respeito do ser humano. A definição
hegemônica que ganhou espaço na legislação estadunidense e em muitos países do mundo foi a de whole-
brain death, defendida particularmente por neurologistas, e com a pretensão de ser uma definição universal
de morte cerebral por sua suposta objetividade técnica. Nesse caso, apesar dos textos circularem “sem seus
contextos”, como ressalta Bourdieu, há outros aspectos a serem considerados que escapam ao propósito desta
investigação, como a representação do saber médico frente aos demais campos de conhecimento que
compõem o debate sobre morte cerebral. As trocas internacionais, no caso da história da morte cerebral,
fizeram-se preponderantemente na forma de transmissão de expertise, de know-how, e de argumentos prêt-à-
porter sobre as definições de morte que se estabeleceram com maior sucesso.
48
Quando olhamos para o aspecto formal das atividades científicas, não podemos deixar de reconhecer
sua estrutura social. Nós vemos o esforço organizado do coletivo envolvendo uma divisão de
trabalho, cooperação, trabalho preparatório, assistência técnica, troca mútua de idéias e controvérsia.
Muitas publicações trazem os nomes dos autores colaboradores. Artigos científicos quase
invariavelmente citam textualmente ambos, o estabelecimento e seu diretor. Há grupos e hierarquias
dentro da comunidade científica: seguidores e antagonistas, sociedades e congressos, periódicos e
intercâmbios. Um coletivo bem organizado abriga uma quantidade de conhecimento que excede
41
muito a capacidade de qualquer indivíduo. (Fleck, 1934/1975, p. 42) .
O que se produz nessa construção do fato médico, assinala o autor, é algo que só
pode ser avaliado como de autoria coletiva, cujo produto não pertence a nenhum indivíduo
em particular. Vários desses elementos apontados por Fleck podem ser identificados no
processo de redefinição da morte. A começar pelo uso de palavras usuais, “brain” e
“death”, num arranjo novo em que, aproximadas, são elevadas à condição de definição no
documento publicado em 1968.
Mais do que uma resposta médica a um problema moral induzido pela tecnologia, “morte cerebral”
era um artifício para auto-proteção jurídica. Ela foi designada para proteger a medicina profissional
da possibilidade do público perceber um potencial conflito de interesses e se alarmasse – um
conflito entre a responsabilidade do profissional de cuidar de doentes e moribundos e as demandas
da pesquisa médica pela obtenção de órgãos para transplante. (Stevens, 1995, p. 217)42.
41
“When we look at the formal aspect of scientific activities, we cannot fail to recognize their social
structure. We see organized effort of the collective involving a division of labor, cooperation, preparatory
work, technical assistance, mutual exchange of ideas and controversy. Many publications bear the names of
collaborating authors. Scientific papers almost invariably indicate both the establishment and its director by
name, there are groups and hierarchy within the scientific community: followers and antagonists, societies
and congresses, periodicals, and arrangements for exchange. A well organized collective harbors a quantity
of knowledge far exceeding the capacity of any one individual”.
42
“More than a medical response to a technologically-induced moral problem, ‘brain death’ was an artifice
of legal self-protection. It was designed to protect professional medicine against the possibility that the public
would perceive a potential conflict of interest and become alarmed – a conflict between the profession’s
responsibility to care for the sick and dying and the demands of medical research to procure organs for
transplant”. (p. 217)
51
sentido, a redefinição da morte não poderia estar apartada da opinião pública nos Estados
Unidos, circulando ao mesmo tempo na comunidade médica e na sociedade como um todo.
Os primeiros casos de transplante de coração naquele país desencadearam querelas
jurídicas. Um caso notável envolveu o pioneiro Norman Shumway, que retirou o coração
de uma vítima de homicídio com o consentimento da família e foi condenado. Os
advogados de defesa do réu acusado pelo homicídio alegaram que a vítima morreu com a
retirada do coração e não em decorrência do ferimento à bala que atingiu o cérebro
(Stevens, 1995; Starzl, 1992). Outros casos encontraram nos tribunais estadunidenses
oposição à definição de morte cerebral como morte de jure (Arnold, Zimmerman e Martin,
1968; Black, 1978).
Numa das primeiras iniciativas de avaliar a opinião pública sobre a então recém-
definida morte cerebral, Arnold, Zimmerman e Martin (1968) apontam que os tribunais
não reconheciam como mortos aqueles pacientes que mantinham suas funções
respiratórias, apesar de inconscientes. Num artigo publicado apenas alguns meses depois
do relatório do Ad Hoc Committee... (1968), no mesmo veículo de reconhecido prestígio na
comunidade médica, o Journal of the American Medical Association (JAMA), no qual
constam suas filiações a importantes instituições hospitalares e acadêmicas, os autores
concluem que duas razões contribuíram para que o diagnóstico de morte penetrasse na
discussão pública:
(1) o uso de doadores em transplantes de um único órgão resulta na morte do doador se isso ainda
não tiver ocorrido. (2) O uso de sistemas de suporte de vida levantam, freqüentemente, o
questionamento público de como e quando a morte é determinada. (Arnold, Zimmerman e Martin,
1968, p. 1949)43.
43
“(1) The use of donors in single-organ transplants results in death of the donor if it has not already
occurred. (2) the use of life-support systems has frequently raised the public question of how and when death
is determined.”
52
44
“A public dialogue can and should become an important instrument in developing a climate within which
medical progress and community welfare can be maximized.”
45
“Any definition of death for human beings or persons is (…) tied to conceptions of humanity and
personhood that go beyond biological taxonomy and biological definitions of life and death”
46
“to sustain vital life functions by artificial means” e “to make a composite man by the transplantation of
organs”.
53
ou legal, mas claramente uma responsabilidade médica”47 (Collins, 1968, p. 392). Esse é o
acento dado a muitas publicações realizadas em nome de uma das definições de morte
cerebral, whole-brain death, que viria a ocupar um lugar central no debate que se seguiu ao
relatório do Ad Hoc Committee....
47
“It is evident that prolonging life and determining death are not a theological or legal responsibility but
clearly a medical responsibility”.
54
específico, pode ser formulada”48 (p. 144). O neurologista sustenta sua afirmação
legitimando o documento do Ad Hoc Committee... (1968), considerado por ele como
suficiente para delimitar uma nova definição da morte. Em publicação mais recente, o
autor destaca o cérebro como “essencial” para se dizer o que é um ser humano.
Um ser humano pode funcionar sem um braço, um coração, se um substituto mecânico estiver
disponível, mas a função cerebral é a completude do ser humano. Um ser humano não está completo
sem um cérebro, não importa quantos sistemas podem funcionar de maneira independente. (Lamb,
2003, p. 163)49.
48
“a strictly biological definition of death, regarded as a specific event, can be formulated.”
49
“A human can function without an arm, or a heart if a mechanical substitute is available, but the brain’s
function is the completion of the human being. A human being is not complete without a brain no matter how
many systems can function independently.”
55
50
“whether the law ought to recognize new means for establishing that the death of a human being has
occurred.”
51
“[the] artificially-maintained bodies present a new category for the law (and for the society) to which the
application of traditional means for determining death is neither clear nor fully satisfactory. The
Commission's mandate is to study and recommend ways in which the traditional legal standards can be
updated in order to provide clear and principled guidance for determining whether such bodies are alive or
dead.”
52
O teólogo cristão Paul Ramsey, como visto no capítulo anterior, estava envolvido no debate da redefinição
da morte como opositor de Beecher. Em seu clássico Patient as a person, publicado em 1970, ele parece
aderir a uma definição organicista de ser humano afirmando que “a vida significa o funcionamento do ser
integrado ou do organismo fisiológico como, em algum sentido, um todo” (Life means the functioning of the
integrated being or physiological organism as in some sense a whole) (p. 59). No centro de seus argumentos
está sua preocupação de que a redefinição da morte seja imposta por uma exigência da tecnologia de
transplantes e de defesa exaustiva por parte dos médicos. Estes são acusados por Ramsey de se preocuparem
exclusivamente com a tentativa de encontrar um procedimento de consenso para afirmar, sem conseqüências
jurídicas, que um ser humano está morto. Por suas colocações, Ramsey é associado por Lizza (2006) aos
defensores da definição de whole-brain death, sem levar em conta sua posição como “testemunha” contrária
à formulação apresentada no Relatório da President's Commission.
53
“Ordem dos Advogados Americana”, cf. a página <http://www.abanet.org/>.
54
“Associação Médica Americana”, cf. a página <http://www.ama-assn.org/>.
55
“Conferência Nacional de Comissários para a Uniformização das Leis Estaduais”, cf. a página
<http://www.nccusl.org/Update/>
56
“The witnesses agreed that the technological advances which have made artificial respiration possible also
spawned criteria for determining irreversible cessation of brain functions.”
56
57
“Maintaining a dead body on artificial support systems consumes scarce medical resources and may
unnecessarily deplete the family's emotional and financial resources”.
58
“With the advent of transplant surgery employing cadaver donors—first with kidney transplantation in the
1950's and later, and still more dramatically, with heart transplantation in the 1960's—interest in ‘brain death’
took on a new urgency. For such transplants to be successful, a viable, intact organ is needed.”
57
(…) A morte é aquele momento no qual o sistema fisiológico do corpo deixa de se configurar como
um todo integrado. Mesmo se a vida continua em células ou órgãos isolados, a vida do organismo
como um todo requer uma integração complexa e, sem a última, uma pessoa não pode ser
apropriadamente considerada viva. (President’s Commission..., 1981b, p. 33)59.
59
“(...) death is that moment at which the body’s physiological system ceases to constitute an integrated
whole. Even if life continues in individual cells or organs, life of the organism as a whole requires complex
integration, and without the latter, a person cannot properly be regarded as alive.”
60
“While it is valuable to test public policies against basic conceptions of death, philosophical refinement
beyond a certain point may not be necessary. The task undertaken in this Report, as stated at the outset, is to
provide and defend a statutory standard for determining that a human being has died. In setting forth the
standards recommended in this Report, the Commission has used “whole brain” terms to clarify the
understanding of death that enjoys near universal acceptance in our society. The Commission finds that the
“whole brain” formulations give resonance and depth to the biomedical and epidemiological data presented
(…). Further effort to search for a conceptual “definition” of death is not required for the purpose of public
policy because, separately or together, the “whole brain” formulations provide a theory that is sufficiently
precise, concise and widely acceptable.”
58
respostas animadoras para combater a rejeição de órgãos e tecidos61. Nos anos 1980, com o
uso das drogas contra a rejeição de órgãos em seres humanos, foi vencida uma barreira
técnica importante para a concretização do transplante cardíaco como procedimento
regular, livrando-o da marca de experimentação dos anos iniciais. Nesse clima favorável, a
dupla composta por um advogado – Capron – e um médico, doutor em bioquímica – Kass
–, pôde afirmar, sem rodeios, que uma das principais finalidades da definição estatutária de
morte cerebral era a necessidade de se obter órgãos em boas condições para transplantes.
Ambos os autores tornaram-se figuras proeminentes no então jovem campo da bioética,
ocupando cargos universitários e políticos relevantes no decorrer de suas carreiras, graças a
sua defesa pela delimitação da morte cerebral como fato médico-legal.
Capron e Kass (1972) partem de duas questões para construir sua proposta,
perguntado se o público deveria ser envolvido na tarefa de redefinição de morte e, caso o
fosse, de que maneira contribuiria para a legalização da nova definição. O maior empecilho
à participação do público no debate sobre a definição de morte cerebral, alegam os autores,
seria o fato de que “a ‘definição’ da morte é um assunto médico, adequadamente legada
aos médicos porque reside no âmago de sua esfera particular de competência” (p. 92)62.
Ainda assim, eles admitem a visibilidade de “aspectos extra-médicos”, associados à
definição da morte, que julgam ser “fonte de confusão e preocupação pública”. Como
contra-argumento, eles discutem a fórmula médica como parcimoniosa e tecnicamente
fundamentada para lidar com a questão.
A formulação de um conceito de morte não é nem simplesmente uma questão técnica nem uma
questão passível de verificação empírica. A idéia da morte é, pelo menos parcialmente, uma questão
filosófica, relacionada a idéias como “organismo”, “humano” e “viver”. Médicos, como tais, não são
especialistas nestas questões filosóficas, nem são especialistas em delimitar quais que funções
fisiológicas identificam decisivamente um “organismo humano vivo”. Eles, como outros cientistas,
podem sugerir quais “sinais vitais” têm relevância para determinadas funções humanas. (Capron e
Kass, 1972, p. 94)63.
61
Essa questão, abordada no capítulo anterior, é discutida por DiBardino (1999), que aponta a gradual mas
entusiástica incorporação de imunossupressores ao tratamento da rejeição de órgãos e tecidos na década de
1980, considerada pelo autor como a era moderna do transplante de órgãos.
62
“‘defining’ of death is a medical matter, properly left to physicians because it lies within their particular
sphere of competence.”
63
“The formulation of a concept of death is neither simply a technical matter nor one susceptible of empirical
verification. The idea of death is at least partly a philosophical question, related to such ideas as ‘organism’,
‘human’, and ‘living’. Physicians qua physicians are not expert on these philosophical questions, nor are they
expert on the question of which physiological functions decisively identify a ‘living, human organism’. They,
like other scientists, can suggest which ‘vital signs’ have what significance for which human functions.”
60
64
Centenária entidade jurídica estadunidense, composta por representantes dos governos estaduais, que tem
como finalidade garantir a estabilidade de questões legais em nível federal. Detalhes sobre a entidade podem
ser encontrados no site <http://www.nccusl.org/>.
65
O texto integral dos dois parágrafos sobre a morte de uma pessoa extraído da legislação do Estado do
Kansas é citado por Capron e Kass (1972, p. 108), em nota de rodapé, como se segue:
“A person will be considered medically and legally dead, if in the opinion of a physician,
based on ordinary standards of medical practice, there is the absence of spontaneous respiratory and
cardiac function and, because of the disease or condition which caused, directly or indirectly, these
functions to cease, or because of the passage of time since these functions ceased, attempts at
resuscitation are considered hopeless; and, in this event, death will have occurred at the time these
functions ceased; or
A person will be considered medically and legally dead if, in the opinion of a physician,
based on ordinary standards of medical practice, there is the absence of spontaneous brain function;
and if based on ordinary standards of medical practice, during reasonable attempts to either maintain
or restore spontaneous circulatory or respiratory function in the absence of aforesaid brain function, it
appears that further attempts at resuscitation or supportive maintenance will not succeed, death will
have occurred at the time when these conditions first coincide.”
61
66
“A person will be considered dead if in the announced opinion of a physician, based on ordinary standards
of medical practice, he has experienced an irreversible cessation of spontaneous respiratory and circulatory
functions. In the event that artificial means of support preclude a determination that these functions have
ceased, a person will be considered dead if in the announced opinion of a physician, based on ordinary
standards of medical practice, he has experienced an irreversible cessation of spontaneous brain functions.
Death will have occurred at the time when the relevant functions ceased.”
67
“Death is to be pronounced before artificial means of supporting respiratory and circulatory
function are terminated and before any vital organ is removed for purpose of transplantation. These
alternative definitions of death are to be utilized for all purposes in this state, including the trails of
civil and criminal cases, any laws to the contrary notwithstanding.”
62
68
“We suggest the total and irreversible loss of functioning of the whole brain as the sole criterion of death”
(Bernat, Culver e Gert, 1981, p. 389).
69
“Providing the definition is primarily a philosophical task; the choice of the criterion is primarily medical;
and the selection of the tests to prove that the criterion is satisfied is solely a medical matter.”
70
“If we regard death as a process, then either the process starts when the person is still living, which
confuses the ‘process of death’ with the process of dying, for we all regard someone who is dying as not yet
dead, or the ‘process of death’ starts when the person is no longer alive, which confuses death with the
process of disintegration. Death should be viewed not as a process but as the event that separates the process
of dying from the process of disintegration.”
71
“The concept of ‘person’ is not biological but rather a concept defined in terms of certain kinds of abilities
and qualities of awareness. It is inherently vague. Death is a biological concept. Thus in a literal sense, death
can be applied directly only to biological organisms and not to persons”.
63
72
“[w]hen we talk of the death of a man we mean the same thing as we do when we talk of the death of a dog
or a cat”
73
“the death of an organism which was a person.”
74
“a patient on a ventilator with a totally destroyed brain is merely a group of artificially maintained
subsystems since the organism as a whole has ceased to function.”
75
“(...) death is best defined as the permanent cessation of functioning of the organism as a whole”.
64
pessoalidade, mas permanecem vivos, pois a maioria das funções de seu organismo como um todo
estão intactas (Bernat, 1992, p. 23)76.
76
“The higher brain formulation belongs not in the definition of death but in defining the loss of personhood.
Unlike death, which is a biological phenomenon, personhood is a psychosocial and spiritual concept
embodying certain qualities of awareness, personality, and identity. Patients with only neocortical destruction
have lost their personhood but remain alive because most of the functions of their organism as a whole are
intact.”
77
“Death is defined as the permanent cessation of the critical functions of the organism as whole. In higher
animal species, the criterion of death that satisfies this definition by being both necessary and sufficient for
death is the permanent cessation of the clinical functions of the brain. The brain is the critical system of the
organism without which the organism cannot function as a whole”.
65
contribuem para “manter a saúde do sistema crítico”, o cérebro. A partir dessa proposição,
Bernat (2002) propõe que se reflita sobre a seguinte questão: “qual é a quantidade precisa e
a localização das funções cerebrais que constituem o sistema crítico do organismo que
precisa ser perdido para que ele seja considerado morto?”78. A resposta que ele oferece é
que os defensores da whole-brain death reconhecem que nem todo o cérebro é necessário
para que o organismo seja considerado morto e, portanto, não se pressupõe a morte de cada
um dos neurônios para tal constatação. Bernat (2002) é criticado por sua posição de que é
freqüente se verificar a presença de atividade cerebral em pacientes diagnosticados com
morte cerebral (Veatch, 1989, 2005; Brody, 1999; Shewmon, 2001). Sua resposta consiste
em atestar objetivamente que, uma vez localizado o sistema crítico sem o funcionamento
do qual o organismo está morto, a definição whole-brain death ganharia longevidade sobre
as outras. A permanência dessa definição, assegura Bernat (2002), supera até mesmo
futuros avanços tecnológicos, visto que o sistema crítico a ela atrelado jamais será passível
de reposição.
A oposição entre as definições de whole-brain death e higher brain death se
contrasta por suas teses fundadas na neurologia e na filosofia, respectivamente, e toma a
cena em solo estadunidense. A definição de brainstem death, mais próxima de uma
variação da primeira, também se apóia no campo da neurologia, tendo como especificidade
com relação à whole-brain death o entendimento de que a destruição irreversível do tronco
cerebral é condição necessária e suficiente para a que o organismo pare de funcionar como
um todo. Esta definição se consolidou no Reino Unido, graças a Cristopher Pallis,
neurologista célebre por sua defesa do diagnóstico de brainstem death.
No início dos anos 1980, Pallis publicou uma série de pequenos artigos como
reação ao programa da BBC sobre transplantes de órgãos, Panorama, que foi nomeado por
Gray (2002) como um “amontoado de imprecisões” (farrago of innacuracy)79. Jennett e
78
“What are the precise quantity and location of the brain functions comprising the critical system of the
organism that must be lost for the organism to be dead?”
79
Em resenha do livro Twice Dead de Margaret Lock, publicada no British Medical Journal em 2002, o
patologista Carl Gray comenta o episódio do programa da BBC veiculado em outubro de 1980 como
deflagrados de um conjunto de equívocos sobre transplante de órgãos. Gray (2002) acusa o programa de ter
contribuído para a redução dos transplantes e da confiança da sociedade nessa tecnologia por mais de uma
66
década. O patologista foi obrigado a se retratar publicamente por essas críticas frente à queixa do
apresentador do programa, Richard Lindley. O espisódio é comentando também no obituário de Pallis,
falecido em 2005, em que se afirma que ele ficou “no centro da controvérsia”, destacando-se como um dos
médicos “enfurecidos” pelo programa, mas que reagiu com proposições e publicações científicas em
oposição à discussão veiculada pela BBC (Richmond, 2005).
80
The trust that had been slowly built up over recent years between the public, the donor doctor, and the
transplant surgeon was, however, temporarily undermined by misinformed comment on BBC Panorama in
October 1980. The programme "Transplants – are the donors really dead?" provoked a storm in the public
and medical press, and the ensuing weeks saw an appreciable reduction in organ donors. Doubts about the
reliability of the criteria for diagnosing brain death have now been resolved and the level of organ donation is
slowly being restored.
81
Os artigos (1982a, 1982b, 1982c, 1982d, 1982e, 1983a, 1983b, 1983c, 1983d) são versões resumidas do
livro publicado em 1983 com o mesmo título da série (Pallis, 1983e). As contribuições de Pallis foram
ampliadas em segunda edição do ABC of brain stem death, publicado em colaboração com Harley (1996).
67
dos mais macabros produtos da tecnologia moderna” (Pallis, 1982, p. 1409)82. A definição
da brainstem dead é formulada no primeiro artigo da série do BMJ em contraposição à
whole-brain death.
Eu concebo a morte humana como um estado no qual há a perda irreversível da consciência
combinada com a perda irreversível da capacidade de respirar (e, conseqüentemente, de manter o
coração). Sozinha, nenhuma seria suficiente. Ambas são essencialmente funções do tronco
encefálico (...). O conceito é admitido como híbrido, expressando tanto atributos filosóficos quanto
fisiológicos. (...) A morte do tronco encefálico é a essência fisiológica da morte cerebral, o substrato
anatômico de seus sinais básicos (coma apnéico com ausência de reflexos do tronco encefálico) e a
principal determinante de seu invariável prognóstico cardíaco: assístole em algumas horas ou dias.
(Pallis, 1982a, p. 1410/1412)83.
82
“Legal constraints and dictionary definitions have probably delayed acceptance of the notion of death as a
process” (…) “A dead brain in a body whose heart is still beating is one of the more macabre products of
modern technology.”
83
“I conceive of human death as a state in which there is irreversible loss of the capacity for consciousness
combined with irreversible loss of the capacity to breathe (and hence to maintain a heart). Alone, neither
would be sufficient. Both are essentially brain stem functions (…). The concept is admittedly a hybrid one,
expressing both philosophical and physiological attributes. (…) Brain stem death is the physiological kernel
of brain death, the anatomical substratum of its cardinal signs (apnoeic coma with absent brain stem reflexes)
and the main determinant of its invariable cardiac prognosis: asystole within hours or days”.
84
“The first patient to speak again after having shown unequivocal evidence of a dead brain stem will create
as great a sensation as if the decapited head of Louix XVI had started berating his executioners”.
85
“If [the tests confirm] a dead brainstem, death should be declared, the relatives notified, and a further
appropriate entry made in the notes. A patient is dead when a doctor (using accepted criteria) declares him to
68
be dead. Legally, this is deemed to be the time of death. A death certificate can then be issued, which is a
good way of making it clear that any continued ventilation (to allow organ donation) does not constitute
‘life’. If organ donation is not envisaged there is no need to reconnect the cadaver to the ventilator. (…) If
transplantation is planned the ‘beating-heart cadaver’ should be reconnected to the ventilator.”
69
86
“(...) crucial to the personhood argument is acceptance of one particular concept of those things that are
essential to being a person, while there is no general agreement on this very fundamental point among
philosophers, much less physicians or the general public. Opinions about what is essential to personhood
vary greatly from person to person in our society – to say nothing of intercultural variations.”
70
viva. Sua defesa é por uma mudança da definição de morte que incorpore a consciência
com ponto crucial para se determinar se um ser humano está vivo ou morto.
Veatch (1989) atesta que o centro das discussões sobre a redefinição da morte não
deveria ser os aspectos anatômicos, neurofisiológicos ou uma dimensão “celular” do
morrer. O que interessaria seriam algumas “funções essenciais”, tais como racionalidade,
consciência, identidade pessoal e interação social. Destas funções, a consciência e a
interação social são consideradas cruciais, na opinião de Veatch (1989), quando se
pretende identificar um ser humano. A primeira é entendida por ele como a capacidade de
consciência sensorial (sensory awareness), “a capacidade de experienciar”; função, ao
contrário da racionalidade, vivida por adultos e crianças. A segunda diz respeito à
“capacidade ‘corporificada’ para a interação social” (p. 30)87. O autor está convencido de
que a morte do ser humano corresponda à perda irreversível de uma ou de outra.
Quanto à crítica da President's Commission... (1981b), Veatch (1989) avalia que
qualquer outra que não a de whole-brain death, não terá espaço de consenso nas políticas
públicas sobre a morte. Ele advoga, em decorrência dessa constatação, que cada um deve
escolher à revelia a definição que lhe for mais conveniente. Além disso, Veatch se dedica a
desconstruir a idéia de que a morte se manifesta em um “lugar” privilegiado do corpo
humano, indagando seus interlocutores sobre para onde se deveria “olhar” para verificá-la.
Para ele, diferentes localizações para a morte acompanhariam concepções distintas sobre
ela. Sobre as críticas sofridas em função da localização da morte em sua definição baseada
na consciência, Veatch contra-argumenta:
Não se pode equacionar a presença da consciência com a presença da atividade neocortical, mesmo
com as atuais condições da tecnologia, porque há todas as razões possíveis para acreditar que certas
seções do neocórtex (...) poderiam estar intactas e, ainda assim, uma pessoa poderia ter perdido
completamente a capacidade de ter consciência ou interação social” (Veatch, 1989, p. 34)88.
87
“(…) the embodied capacity for social interaction.”
88
“One cannot actually equate the presence of consciousness with the presence of neocortical activity, even
at the present state of technology, because there is every reason to believe that certain sections of the
neocortex (for example, those responsible for motor function) could be intact and still such a person would be
completely lacking any capacity for consciousness or social interaction.”
71
de ter uma “visão extremamente modesta do status ontológico dos julgamentos morais”
(Veatch, 1989, p. 27)89. Eles estariam errados em associar identidade pessoal e morte, pois
a fragilidade desse argumento estaria em sustentar que há “continuidade de si mesmo”
(sameness), uma concepção lockeana, em situações de perda da consciência que coloca os
autores diante de questões éticas não necessariamente associadas à morte. O autor se
diferencia de Green e Wikler (1981), cujos argumentos serão analisados em detalhe mais à
frente, dizendo que a posição deles,
(...) ao contrário do que atestam, parece depender de uma teoria de pessoalidade (ou pelo menos de
identidade pessoal). Eles são, portanto, passíveis de todo tipo de críticas que sugerem que um ser
humano que perdeu sua pessoalidade ou sua identidade pessoal pode, não obstante, ainda estar viva.
(Veatch, 1988, p. 179)90.
Em seu favor, Veatch (1988, 1989) alega que não se pode pensar na continuidade
ou não da pessoalidade ou da identidade pessoal como morte, pois pode haver situações em
que esse aspecto não se mantém, como as demências ou amnésias decorrentes de lesões
cerebrais, por exemplo. Nesses casos, sempre se pode argumentar que um pessoa pode se
tornar “outra”, pode construir outra história de vida totalmente distinta. Ele sintetiza sua
posição filosófico-religiosa:
“Eu, assim como muitos em nossa sociedade, me apóio na tradição Judaico-Cristã. Dessa maneira,
eu sustento duas coisas. Primeiramente, eu sustento que o ser humano é fundamentalmente um
animal social, um membro de uma comunidade humana capaz de interação com outros seres
humanos. Em segundo lugar, defendo que eu sou, em essência, a conjunção do espírito e do corpo –
ou para usar a linguagem mais moderna, da mente e do corpo. Se um deles é irreversivelmente
destruído de maneira que ambos sejam permanentemente desconectados, então eu – essa entidade
integrada – não existo mais. O que é vital é a capacidade corporificada para a consciência e a
interação social. (...) Sou forçado a concluir que elas [consciência e interação social] são
inseparáveis. (Veatch, 1988, p. 182)91.
Zaner (1988) critica a posição de Veatch, dizendo que ele não consegue evitar uma
definição de morte independente de uma noção de pessoalidade como pretendia. O autor,
editor de uma das importantes coletâneas sobre a morte cerebral, assina um artigo
subseqüente ao de Veatch, defendendo a linguagem objetiva do Relatório da President's
89
“too modest a notion of the ontological status of moral judgments”.
90
“Their position, in contrast to my own, does seem, contrary to their claim, to require a theory of
personhood (or at least personal identity). They are therefore subject to all the criticisms that suggest that a
human being who has lost personhood or personal identity may nevertheless still be alive.”
91
“I, like a great many in our society, stand in the Judeo-Christian tradition. As such I maintain two things.
First, I maintain that the human is fundamentally a social animal, a member of a human community capable
of interacting with other humans. Second, I maintain that I am in essence the conjoining of soul and body –
or to use the more modern language, mind and body. If either one is irreversibly destroyed so that the two are
irretrievably disjoined, then I – this integrated entity – no longer exist. What is critical is the embodied
capacity for consciousness or social interaction. (…) I am forced to conclude that they [consciousness and
social interaction] are not separable.”
72
Commission, afirmando que uma proposta de definição de morte que não contemple a idéia
de que uma dada pessoa morre em função de uma circunstância específica não pode se
sustentar como política pública.
Apesar das críticas a ele direcionadas, passadas três décadas de sua delimitação da
higher brain death, Veatch (2005) continua sua defesa à definição, agregando à tese da
consciência, que mantém seu lugar de destaque, a necessidade de “plena estabilidade
moral” (full moral standing).
Pessoas que normalmente percebemos como sendo seres humanos vivos são, algumas vezes, vistos
como possuidores de um status moral diferenciado. Isso pode ser chamado de “plena estabilidade
moral”. Esse é um status que apreendemos como pertencente ao conjunto dos membros da
comunidade moral humana. (...) Tomando uma palavra que originalmente tinha um significado bem
diferente, nós chamamos esses indivíduos de “mortos”. (...) Assim, chamar alguém de “morto” tem
pouco ou nada a ver com a forma como utilizamos os termos “vivo” ou “morto” na biologia. Tem
tudo a ver com o status moral (e legal). (Veatch, 2005, p. 359)92.
92
“People we normally perceive to be living human beings are sometimes said to possess a special moral
status. It can be called ‘full moral standing’. This is a status we perceive as belonging to full members of the
human moral community. (...) Taking a word that originally had rather different meaning, we called these
individuals ‘dead’. (...)Thus calling someone ‘dead’ has little, if anything, to do with the way we use the
terms ‘living’ and ‘dead’ in biology. It has everything to do with moral (and legal) status.”
73
93
“defining death is a different job from deciding when it is best to remove the life-support systems”.
94
Grifo nosso. “(...) the correct theory of personal identity”.
95
Perry (1975) organizou uma coletânea intitulada Personal Identity, na qual vários autores contemporâneos
e excertos de textos clássicos (Locke, Hume, Butler) sobre o tema da identidade pessoal são condensados. O
autor é defensor de uma concepção de identidade pessoal inspirada em Locke, associando a memória à
permanência do self.
96
“Brain death and brain removal have much the same result; the dead brain serves only to add bulk to the
body if left intact”.
75
97
“Medicine has always been involved in matters of life and death, but the production of novel medical
artifacts – dead body with living parts, living body with parts from the dead – is, historically speaking, a new
departure which impinges upon fundamentals of human life.”
76
98
Termo utilizado pelo próprio Vidal em comunicação oral no Colóquio “Impacto das neurociências na
contemporaneidade”, promovido pelo Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, em 26 de novembro de 2004.
99
A noção de sujeito cerebral se desenvolve como leitura crítica que analisa o impacto das neurociências na
contemporaneidade. Além das discussões de Vidal (2003, 2005) e Ortega e Vidal (2007), outros autores
discutem a interpenetração das neurociências em outros campos de conhecimento. Confira a reflexão de
Ehrenberg (2004) sobre a guerra entre “sujet cérébral” e “sujet parlant” analisando o “programa forte das
neurociências”. Mesmo não partindo de uma idéia de sujeito cerebral, vale conhecer também a crítica à
“neurofilosofia” apresentada por Andrieu (1998).
100
As citações no corpo do texto são extraídas da edição portuguesa dos Ensaios..., publicada em 1999. As
referência em inglês que constarão em notas de rodapé encontram-se na edição de 1959.
101
“This also shews wherein the Identity of the same Man consists; viz. in nothing but a participation of the
same continued Life, by constantly fleeting Particles of Matter, in succession vitally united to the same
organized Body.” (Locke, 1689/1959, p. 331-332).
77
102
“(…) is a thinking intelligent being, that has reason and reflection, and can consider itself as itself, the
same thinking thing, in different times and places. (…) [C]onsciousness always accompanies thinking, and
’tis that, that makes every one to be, what he calls self; and thereby distinguishes himself from all other
thinking things, in this alone consists personal identity. i.e. the sameness of a rational Being: And as far as
this consciousness can be extended backwards to any past Action or Thought, so far reaches the Identity of
that Person. (Locke, 1689/1959, p. 335).
103
“When we see, hear, smell, taste, feel, meditate, or will any thing, we know that we do so.” (Locke,
1689/1959, p. 335).
78
como escapar da irrevogável utilidade da definição de higher brain death defendida por
Green e Wikler (1981), em consonância com a crítica que Veatch (1988, 1989) lhes dirige.
Em discussão contemporânea em defesa dessa formulação de morte cerebral, John
Lizza, filósofo norte-americano, faz ecoar algumas das principais teses de Veatch. O autor
faz uma ampla revisão da literatura sobre morte cerebral, atualizando pontos nevrálgicos
do debate. Lizza (2006) é um dos defensores da higher brain death, pleiteando em diversos
pontos de sua argumentação que pacientes em estado vegetativo persistente não devem ser
considerados pessoas, mas “corpos respirantes”. Para construir seu argumento o autor
apresenta em detalhe as diferenciações entre as principais derivações da definição de morte
cerebral. O autor aponta que seu objetivo é desconstruir os argumentos do que ele chama
de “paradigma biológico”, que teria equiparado a definição de morte cerebral à de morte da
pessoa.
O autor apresenta sua versão contemporânea do debate em torno da morte cerebral,
sintetizada numa pergunta que atravessa sua argumentação: “Por que não consideraríamos
‘mortos’ indivíduos a quem falta potencial para a consciência, o pensamento, o sentimento
e cada uma das outras funções mentais?”104 Lizza (2006) refere-se ao dilema do que fazer
com pacientes em estado vegetativo persistente. Na verdade o autor diferencia entre
pacientes em estado vegetativo persistente e permanente. O filósofo distingue o estado
vegetativo “permanente” como “casos extremos de estado vegetativo persistente (PVS) nos
quais o diagnóstico da perda irreversível da consciência e outras funções cognitivas pode
ser determinado com alto grau de probabilidade” (p. 182)105. Em outras palavras, o que é
alvo do debate na atualidade são menos os “brain dead patients”, ou pacientes
diagnosticados com morte cerebral, mas a extensão desta condição a outros pacientes como
bebês anencéfalos e pacientes em estado vegetativo persistente. Lizza (2006) sustenta que
“anencéfalos e indivíduos em estado vegetativo permanente são meros corpos
respirantes.” (Lizza, 2006, p. 12, grifos nossos)106. O que se teria nessas condições seriam
outras formas tais como “humanóides” ou “artefatos biológicos”.
104
“Why should we not consider as ‘dead’ individual who lack the potential for consciousness, thought,
feeling, and every other mental function?” (p. 1).
105
“extreme cases of persistent vegetative state (PVS) in which the diagnosis of the irreversible loss of
consciousness and other cognitive functions can be determined with a high degree of probability.”
106
“anencephalics and individuals in PermVS are merely breathing bodies.”
79
107
“the belief that death is fundamentally or strictly a biological phenomenon. The definition and criteria of
death are thus understood to be within the province of biologists or physicians. The alternative to this medical
or biological paradigm of death is to think that death is a metaphysical, ethical, and cultural phenomenon in
as equally a fundamental sense as it is a biological phenomenon.”
108
“The emphasis on the biological aspects of death over its metaphysical, ethical, and cultural aspects in
arriving at a definition of death is a modern invention”
80
modificam essa equação. Eles recolocam os impasses éticos de maneira engendrada com a
vida social, posicionando-se criticamente frente às descrições históricas sobre a definição
de morte cerebral e dos transplantes de órgãos como tema de interesse ao mundo
acadêmico ou jurídico.
Nessa direção, Crowley-Matoka e Lock (2006) chamam a atenção para o freqüente
destaque dado à diferença cultural nos estudos sobre transplante de órgãos. As autoras
enfatizam três questões recorrentes trabalhadas pela antropologia médica que se dedica aos
transplantes em diferentes contextos: redefinição da morte; concepções de corpo, self e
identidade; e o comércio de partes do corpo humano. Do ponto de vista metodológico, as
investigações lançam mão de entrevistas em profundidade, de observação, de pesquisa
documental, de análise da mídia estrangeira, dentre outros recursos, essencialmente
guiadas pela etnografia109. As autoras chamam a atenção para o fato de não existir versões
de ciências livres da cultura e que “há sempre variações não apenas entre diferentes
sociedades, mas também em seu interior” (p. 169)110.
A discussão a partir de algumas dessas investigações compõe nossa busca pela
identificação de concepções de ser humano na história da definição de morte cerebral. Os
trabalhos que serão destacados neste capítulo, ao oferecerem uma leitura das práticas
cotidianas dos transplantes de órgãos, repercutiram de forma significativa na bibliografia
sobre a morte cerebral, tendo penetrado no debate contemporâneo sobre o tema como
contra-argumentos diante da “sisudez” do fato médico. As antropólogas com quem
dialogaremos a seguir têm em comum a preocupação de resgatar o contexto de produção
estadunidense da morte cerebral que discutimos nos capítulos anteriores. Acentuamos,
nessa bibliografia, como diferentes contextos culturais – estadunidense, japonês, alemão –
estranham a nova definição de morte em virtude de distintas noções de pessoalidade. Não
havendo estudos correlatos sobre o cenário brasileiro111, essa leitura da antropologia
médica cumprirá também a função de nos auxiliar numa abordagem inicial a esse contexto.
109
Os trabalhos de antropologia médica sobre a morte cerebral e os transplantes de órgãos que serão
discutidos neste capítulo tomaram o método etnográfico como referência. Crowley-Matoka e Lock (2006)
justificam a escolha metodológica ao afirmarem: “Ethnography, the signature research method of
anthropology, is uniquely suited to providing such a nuanced perspective, for it draws upon long-term
immersion in a cultural setting and combines participant observation with in-depth interviewing to explore
questions of social organization, cultural meaning, moral values, and power relations as they shape human
experience” (p. 167).
110
“(...). there is always variation not only between different societies, but within them as well.” (p. 169).
111
É incipiente a discussão sobre morte cerebral na produção em ciências humanas no Brasil. Encontramos
trabalhos que se aproximam de alguma maneira do tema da morte na contemporaneidade, como a pesquisa de
Menezes (2004) sobre cuidados paliativos e a “humanização do morrer” e o trabalho de Sadala (2004), este
83
mais diretamente ligado à questão dos transplantes de órgãos. Apesar de nos ajudarem a pensar como as
discussões e práticas sobre a morte são vistas no contexto brasileiro, o primeiro estudo tem um foco que
apenas tangencia nossa questão de pesquisa. O segundo, a despeito da identificação temática, baseia-se
exaustivamente no método fenomenológico, deixando em segundo plano a crítica à produção científica que
fundamenta as práticas de transplantes no Brasil. Cabe destacar também a abordagem no campo do
biodireito, em que encontramos o trabalho de Sá (2003), que analisa a legislação brasileira sobre os
transplantes de órgãos, mas oferece pouco questionamento à construção da definição de morte cerebral.
Proximidade maior é encontrada na dissertação de Fonseca (2002), em que ela investiga as representações
sociais dos transplantes de órgãos numa comunidade hospitalar, envolvendo entrevistas com profissionais de
saúde, familiares e pacientes. Esse trabalho, apesar de guardar semelhança com os estudos de antropologia
médica abordadas nesta pesquisa, traz uma crítica apenas tímida à definição de morte cerebral, como
discutiremos adiante.
112
“(...) indisputably experimental, invasive, and technocratic.”
84
113
A autora apresenta detalhes dos múltiplos instrumentos de coleta de dados em seu trabalho como
etnógrafa, tais como entrevistas em profundidade, individuais e em grupo, observação participante, survey,
análise de documentos e do processo de captação de órgãos. Ao longo de seus estudos, Sharp (2006) esteve
em contato com cirurgiões, neurologistas, enfermeiras, padres, receptores de órgãos, familiares de doadores e
receptores, funcionários das agências governamentais de captação de órgãos, agentes funerários, bioeticistas,
e pesquisadores envolvidos em trabalhos experimentais sobre transplante de órgãos. O texto consultado, o
livro Strange Harvest, congrega observações da autora desenvolvidas ao longo de sua trajetória como
pesquisadora. Enfatizaremos as interpretações sobre o ser humano que morre na cena dos transplantes, em
vez de nos determos nos detalhes metodológicos de cada uma das etapas de investigação descritas por Sharp
(2006). Essa escolha se aplica também a outros trabalhos apresentados nesta investigação, em particular
aqueles divulgados no formato de livro-síntese (Lock, 2002b; Hogle, 1999) de trabalhos de longa duração,
com múltiplas estratégias e momentos de coleta de dados.
85
mas um doador. A prática se orienta, dessa forma, para o cuidar de cadáveres com órgãos
recicláveis.
Tanto profissionais quando agentes da UNOS são chamados a lidar com pacientes
com diagnóstico de morte cerebral como corpos despersonificados, “cadáveres com o
coração pulsante” (beating heart cadavers). Paradoxalmente o órgão, em particular o
coração, é aclamado como símbolo de “essência da vida” (life essence) que se preserva no
receptor. Sharp (2006) encontra narrativas que levam, por um lado, à despersonificação
dos pacientes com morte cerebral, no esforço de confortar os familiares diante da perda de
seu parente e sensibilizá-los para a doação. Por outro lado, a valorização dos órgãos do
doador como instrumento que salva vidas compõe o discurso direcionado a esse público. A
ambigüidade gerada nessa abordagem dos familiares de doadores produz uma identificação
psicológica entre doadores e receptores, criando a ficção de que o doador vive, de alguma
forma, no corpo do receptor. A autora avalia que os familiares consentem a doação, em
geral, por acreditarem que a “pessoa social” (social person) morre com a cessação do
funcionamento cerebral. Contudo, mantém-se a crença de que a essência da pessoa (hidden
self) só morre quando os órgãos são retirados. Para os familiares, fazer equivaler a morte
cerebral ao fim da vida não passa de um exercício intelectual.
Do outro lado da moeda, tenta-se convencer receptores e seus familiares de que os
órgãos recebidos são meros objetos, materiais humanos impessoais, meros músculos ou
simples peças de reposição. A antropóloga analisa que receptores devem desenvolver um
“sentimento de self pós-transplante” (sense of postransplant self) (Sharp, 2006, p. 31). É
comum entre receptores e familiares no contexto estadunidense a produção de certo
imaginário, impregnado na ideologia de transplantes entre familiares de doadores, de que
seus parentes podem viver através dos corpos dos receptores. Isso é explorado pelas
instituições de captação de órgãos. Outro estudo qualitativo em que receptores de órgãos
foram entrevistados discute essa transposição de selves idealizada nas práticas de
transplante, revelando uma experiência de mal-estar vivida por receptores que devem
conviver com o constrangimento de que “alguém teve que morrer” nesse processo
(Youngner, 1996).
Desvela-se, portanto, a ambigüidade inerente à terminologia de profissionais que
discutem a morte cerebral e os transplantes. São produzidos corpos humanos lucrativos,
pondera Sharp (2006). Ao mesmo tempo em que doadores vão sendo constituídos como
seres liminares (liminar beings), “presos em algum lugar entre a condição de cadáver e
87
paciente” (p. 4)117, eles são marcados, no contexto estadunidense, como desprovidos de
subjetividade. Essa despersonalização extrema está, evidentemente, associada à definição
de morte cerebral, como acentua a autora.
Aos doadores de órgãos falta pessoalidade, como esta é compreendida e valorizada nesta cultura; ou
seja, pacientes com morte cerebral perderam, de forma irrecuperável, sua subjetividade e, portanto,
não podem mais se afirmar em contextos sociais. A construção da pessoalidade repousa firmemente
na suposição medicalizada de que o self está alojado no cérebro: com trauma severo e irreversível,
nós deixamos de ser quem somos, não somos mais humanos e, assim, deixamos de existir. O doador
com morte cerebral, então, nada mais é do que uma carapaça humana, um corpo que funciona
fisiologicamente, mas não pensa ou sente o mundo ao seu redor. (Sharp, 2006, p. 16-17)118.
117
“(…) caught somewhere between patient and cadaver status.”
118
“(…) organ donors lack personhood as it is understood and valued in this culture; that is, brain dead
patients have irretrievably lost their subjectivity and thus can no longer assert themselves in social contexts.
This construction of personhood rests firmly on the medicalized assumption that the self is lodged in the
brain: with severe and irreversible head trauma, we cease to be who we are, we are no longer human, and
thus we cease to exist. The brain dead donor, then, is but a human shell, a body that functions physiologically
but no longer thinks or senses the surrounding world.”
119
Em publicações distintas (1996, 1997a, 1997b, 1998, 2002a), a autora expõe sua longa trajetória de
investigação nos Estados Unidos, Canadá e Japão, cujas análises centrais são apresentadas no livro
mencionado. Assim como nos estudos de Sharp (2006), o método etnográfico orientou as pesquisas de
Margaret Lock, que além de envolver entrevistas, observação e análise documental, incorporou em grande
medida a análise da divulgação da morte cerebral e dos transplantes na mídia.
88
pelo menos dez surveys sobre morte cerebral e doação de órgãos foram conduzidas. Os
resultados mostravam a descrença da população na profissão médica, desencadeando a
composição de Comissões de médicos, juristas e associação de pacientes entre as décadas
de 1960 e 1990. Há nesse movimento certa reprodução do processo instituidor da definição
de morte cerebral nos Estados Unidos. Paralelamente à organização política de grupos de
especialistas e leigos para se pensar a morte cerebral, houve ampla difusão na mídia e nos
meios de publicação científicos da definição e das tecnologias de transplantes. Assim como
nos Estados Unidos, no Japão o envolvimento da opinião pública pretendeu encontrar
consenso e conciliação em torno de uma definição aceitável de morte para subsidiar as
novas tecnologias médicas (Lock, 1997a). Apesar das semelhanças no processo de
legalização da morte cerebral, diferenças radicais na concepção do que é morte e do que é
o ser humano impediram sua aceitação até os anos 1990.
A morte cerebral, no Japão, não foi acolhida como o fim da vida da pessoa, uma
vez que naquele país a morte é compreendida como um “processo natural”, explica Lock
(1997a). Cabe ressaltar que a fronteira entre natural e social naquela cultura, notadamente
no que diz respeito à morte, “nunca foram rigidamente definidas, pois os ancestrais são
imortalizados como seres que continuam a atuar no mundo cotidiano” (p. 134)120. Um
ponto crucial na cultura japonesa é a crença da separação entre corpo e mente no momento
da morte, que não coincide com a definição médica de morte cerebral. Não há espaço para
imaginar que o paciente com morte cerebral é um simples objeto, despersonificado. Ao
contrário, como se reconhece que ainda há traços de vida nesses casos, a pessoa
continuaria a existir. A noção de pessoa nesse contexto assume uma configuração singular:
“[No Japão] os indivíduos são conceituados como residindo no centro de uma rede de obrigações, de
maneira que a pessoalidade é construída para além da mente e do corpo, no espaço das relações
humanas. A “pessoa” é, portanto, uma criação dialógica: o que alguém faz ou o que é feito com um
corpo não se limita aos desejos de um indivíduo.” (Lock, 1997a, p. 138)121.
120
“[The boundary between the social and the natural] was never rigidly defined, because the ancestors were
immortalized as beings who continue to act on the everyday world (…).”
121
“Individuals are conceptualized as residing at the centre of a network of obligations, so that personhood is
constructed out-of-mind, beyond body, in the space of ongoing human relationships. ‘Person’ is, therefore, a
dialogical creation: what one does with, and what is done to, one’s body are by no means limited to the
wishes of an individual.
90
familiares de doadores e receptores. Por outro lado, aqueles que precisam da tecnologia,
lamentam a resistência nacional ao procedimento. Lock (1997a) ilustra esse ponto de
descontentamento citando a fala da mãe de uma candidata a transplante de fígado: “porque
temos que sofrer apenas por termos a desventura de sermos japoneses?” (p. 140)122. As
oposições e ambigüidades na aceitação da definição importada dos Estados Unidos, não se
expressaram apenas entre profissionais e familiares. A institucionalização da morte
cerebral e dos transplantes se fez num processo lento.
Lock (1997b) ressalta que a primeira definição de morte cerebral foi anunciada em
1974 pela Japan Electroencephaly Association, não reconhecendo, contudo, sua
equivalência com o fim da vida de uma pessoa. A finalidade da delimitação era preparar
familiares para a morte iminente de seu parente. Organizada em grupo de trabalho para
discutir a morte cerebral, em 1988, a Associação Médica Japonesa, representada por seus
diretores, aprovou a aceitação da morte cerebral como a extinção da vida humana. A
decisão provocou oposição entre pares, da opinião pública e do Comitê dos Direitos dos
Pacientes (Patients’ Rights Committee). Um fórum governamental – Special Cabinet
Committee on Brain Death and Organ Transplantation – foi designado para discutir o
assunto com a tarefa de buscar uma posição que conciliasse interesses dos agentes e
instituições envolvidos. Entre 1989 e 1992 esse fórum deu segurança ao governo japonês
para se manifestar como “pronto para sustentar um movimento em direção à legalização da
morte cerebral como o término da vida” (p. 226)123. Esse posicionamento oficial do
governo foi contestado pela Ordem Federal dos Advogados Japoneses (Japan Federation
of Bar Associations), tendo como aliada a permanência da inaceitabilidade por parte das
associações de pacientes, da opinião pública e de segmentos médicos. Um argumento
central nos movimentos de oposição à nova definição de morte era a falta de confiança no
diagnóstico médico e das práticas elitistas dos profissionais da área. Até o ano de
publicação desse artigo (Lock, 1997b), a morte cerebral não era juridicamente reconhecida
naquele país. Na continuidade de seus estudos, Lock (2002a; 2002b) discute a aprovação
da lei de transplantes japonesa que, embora tenha sido sancionada no final de 1997, ainda
no início dos anos 2000 era aplicada com resistências.
Em Twice Dead, Lock (2002b) congrega os resultados de anos de pesquisa
etnográfica sobre morte cerebral nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão. No texto a
122
“Why do we have to suffer just because we have the misfortune to be Japanese?”
123
“(…) ready to support a move to legalize brain death as the termination of life”
91
Não foi por falta de tecnologia que o Japão demorou a permitir a realização de
novos transplantes de órgãos vitais de pacientes com morte cerebral. Entre aquele realizado
pelo Dr. Wada e o segundo transplante cardíaco realizado naquele país, trinta e um anos
transcorreram. Enquanto isso, os cirurgiões japoneses especializaram-se em tecnologias de
transplantes entre vivos, como o transplante de fígado, ou realizando o primeiro transplante
de pulmão entre vivos, em 1998. Com discrição, transplantes de rins entre doadores com
morte cerebral eram realizados, mas os de coração e fígado eram considerados arriscados
em função do repúdio à definição de morte cerebral (Lock, 2002b). Numa direção oposta
ao contexto japonês, os alemães, adeptos da experimentação com seres humanos, se viram
diante de constrangimentos distintos com a nova definição de morte.
124
“If the concept of the ‘person’ is diffused throughout the body, or even extends outside the body, then
destruction of the brain is not easily reckoned as signifying death.”
125
“Naturalization of the brain has not been possible. Death is not readily located in the brain, nor is the
essence or identity of the person; and commodification of bodies, dead or alive, creates angst. Medicine has
not been able to claim hegemony over the new death; determination of boundary formation between life and
death is hotly disputed (…)”
92
poucos para benefício de muitos foi defendido por alguns Estados modernos para justificar
o uso indiscriminado de experimentação em seres humanos. Eles avaliam a importância de
se explorar historicamente o uso de experimentação com seres humanos, tomando o
Terceiro Reich como exemplo de abordagens nesse sentido que precisavam ser
desmascaradas pelo seu caráter não terapêutico e utilitarista. Os autores enfatizam a
experimentação médica na Alemanha Nazista, não somente pela sua abjeta singularidade,
mas pelo reconhecimento de historiadores da medicina de que experimentos semelhantes
foram conduzidos em muitas sociedades ditas avançadas.
Linda Hogle (1999) desenvolveu pesquisas em antropologia médica focalizando o
cenário alemão, dedicando-se à experimentação com seres humanos e ao transplantes de
órgãos. Em seus estudos, a antropóloga se aproximou da “medicina onde ela acontece”,
envolvendo gestores das tecnologias de transplantes na Alemanha, médicos e não-médicos,
cirurgiões, enfermeiras, patologistas. Além de entrevistas formais, Hogle observou sessões
de discussão política sobre os transplantes de órgãos e incorporou debates veiculados na
mídia alemã, em encontros sociais e em agremiações e conversas acadêmicas aos seus
dados.
Uma das características mais marcantes do contexto analisado por Hogle (1999) é,
sem dúvida, o repúdio da população alemã pelo caráter experimental dos transplantes de
órgãos. A associação inevitável com as práticas médicas no Terceiro Reich direciona o
debate bioético sobre transplantes naquele país. A sociedade alemã é colocada novamente
diante do dilema ético de decidir se há “pessoas” ou “coisas” em pacientes com morte
cerebral. Casos de mídia analisados pela antropóloga, revelam a ansiedade moral
instaurada pela redefinição da morte na cultura germânica. A autora avalia que a política
Nacional Socialista justifica parte dessa ansiedade, pois seus princípios
Instituíram uma valorização diferenciada para vários tipos de seres humanos de maneiras que
humanos pudessem ser considerados objetos experimentais – imprestáveis demais para participar de
uma sociedade Alemã superior, embora bastante valiosos na economia da ciência a serviço do
Estado. (Hogle, 1999, p. 45)126.
126
“(...) instituted a differential valuing of various types of humans so that certain humans could be
considered experimental objects – too worthless to participate in a superior German society, yet quite
valuable in the economics of science in service to state.”
93
127
Sobre a composição de comissões para a legalização da morte cerebral na Alemanha, confira Wiesemann
(2001).
94
O cirurgião, que foi orientado em seu doutoramento pelo próprio Zerbini, discorre
ainda sobre a declaração de morte do doador do primeiro transplante. Ele comenta que a
equipe do notório cirurgião teve consultoria jurídica e ajuda de neurologistas e psiquiatras
para que o doador fosse devidamente diagnosticado com morte cerebral. Numa menção
vaga a um evento científico ocorrido na Universidade de Roma, sem especificar a data,
Sérgio Almeida relata que ali especialistas reconheceram a morte cerebral como critério
suficiente para a retirada de órgãos. Zerbini estava presente no evento, no qual se
estabeleceu que “a doação era um ato permitido, lógico e ético do ponto de vista religioso e
moralmente aceito como maneira de ajudar outras pessoas a sobreviverem” (Sérgio
Almeida de Oliveira, entrevista cedida em 2004).
128
A entrevista com o cirurgião tem como tema central A cirurgia cardíaca e está disponível no site do
entrevistador, o também médico, Dráuzio Varella: <http://drauziovarela.ig.com.br>.
95
129
Santos (1998) utiliza a expressão médica, “morte encefálica”. A discussão acolhe, sem restrições, as
delimitações médicas da definição, importada do modelo de whole-brain death estadunidense. Ela recorre à
distinção entre brain (encéfalo) e cortex (cérebro), vinculadas respectivamente às definições de whole-brain
death e higher brain death emprestadas da discussão estadunidense, aludindo que as possíveis confusões
podem acontecer por um simples erro de tradução.
96
antropológico, mas precisa ser um conceito biológico” (p. 26), demonstrando extrema
sintonia com o saber biomédico.
Entre as distinções recuperadas pela jurista, figuram a “morte cortical”, tradução de
higher brain death, definida como a morte que ocorre “quando é irrecuperável a atividade
cerebral superior, isto é, aquela do centro cortical e subcortical que condiciona a vida
intelectiva e é a sede da vida sensistiva.” (Santos, 1998, p. 23). A “morte cerebral ou
descerebração”, caracterizada “pela cessação total das atividades cerebrais, atingindo a
esturutra encefálica”, é a definição apresentada como a mais adequada à realidade
brasileira, correspondendo à whole-brain death. Por fim, a autora pontua posições que
admitem como parâmetro de morte a parada não apenas das funções cerebrais, mas
também das cardiorrespiratórias. Há reconhecimento de impasses conceituais na
redefinição de morte, ao que a autora alerta: “é imperiosos distingui-las.” (p. 24). Uma
saída para essa distinção que envolva as ciências humanas é desestimulada.
A nova definição de morte recebeu uma base mais filosófica por outros povos. Isto é o que
chamamos de conceito antropológico. É o término da consciência e da habilidade de se comunicar e
raciocinar, que são essenciais ao homem em relação aos demais animais. As conseqüências dessa
filosofia são: primeiro quando o término dessas essências humanas significam o fim da vida
humana, quando o começo dessas essências não são localizadas, teríamos o começo da vida
humana? Segundo, a morte encefálica parcial é também considerada como a morte do ser humano?
O campo dos valores individuais está aberto. Por essas razões, o conceito de morte encefálica para a
morte do homem inclui perigosas conseqüências. (...) A morte encefálica não pode ser mais um
conceito antropológico, mas precisa ser um conceito biológico. Isto significa que o ser humano
apenas por um motivo biológico tem um ponto terminal. Por isso, a morte encefálica é um seguro
sinal de morte do organismo e, concorrentemente a morte do homem. (Santos, 1998, p. 26)
130
Mesmo admitindo que não está no escopo desta investigação explorar os motivos para a marginalidade
das ciências humanas nessa discussão no contexto brasileiro, cabe questionar se o lugar de destaque que o
saber médico ocupa em nosso país reforça a caracterização da morte cerebral como assunto exclusivo desse
campo. A medicina foi uma das primeiras áreas a se estabelecer nas nascentes universidades brasileiras no
início do século XX (Antunes, 1998) e, como a matéria da edição primeira edição da revista Veja revela, não
é incomum que as práticas médicas sejam apresentadas como atos de heroísmo. Obviamente essa questão
deve ser aprofundada em outro momento.
97
Marinho (2004) compila alguns dados sobre a assistência pública para caso de
transplante de órgãos no Brasil, analisando o impacto econômico da lista única de espera,
dispositivo que se propõe a equalizar a assistência. O autor aponta que o Brasil é o segundo
país do mundo em número de transplantes, sendo superado somente pelos Estados Unidos.
O Brasil conta também com o maior programa de transplante de órgãos do mundo em
termos de financiamento público, arcando com 92% dos procedimentos feitos no país. A
rede suplementar de saúde só é obrigada a cobrir transplantes de córnea e rim para os
associados. O autor salienta que os avanços tecnológicos nessa área devem impulsionar a
demanda por transplantes à medida que os procedimentos se tornarem mais precisos e
seguros (Marinho, 2004). Não há duvida de que o país avançou bastante na tecnologia de
transplantes de órgãos desde sua regulamentação. O que incita a imaginação é que faz
parte da “segurança” nesses procedimentos uma definição precisa de “morte encefálica”,
sempre polêmica, mesmo quando apresentada como consensual.
Apresentada como consenso médico, a “morte encefálica” não somente naturaliza a
experiência da morte como também inibe a discussão sobre as dimensões subjetivas,
culturais e sociais da morte. A tradução de “brain death” nos documentos oficiais no Brasil
como “morte encefálica” sugere que essa definição, aparentemente mais técnica, diz
respeito apenas aos especialistas. Um efeito disso é que o debate ético em torno da
definição de morte cerebral aparece de forma incipiente no cenário nacional. Fonseca
(2002) avalia que a publicação do Relatório do Ad Hoc Committee... (1968) provocou
discussões sobre a morte cerebral no Brasil, mas de forma menos pública do que em outros
países. Aqui, a legislação causou mais impacto do que a definição de morte cerebral e seus
critérios. Na literatura estrangeira sobre o tema é ressaltada a importância do debate
público em torno da definição de morte cerebral e o transplante de órgãos como visto
anteriormente. A despeito disso, contando com uma forte comoção da população em torno
da questão dos transplantes, no Brasil as diretrizes públicas se voltam para a
conscientização da população acerca da importância de se doar vida e a sensibilização para
que a doação seja a regra (Fonseca, 2002).
99
De uma maneira geral, parece haver uma representação do ato de doação como a
utilidade do corpo depois da morte. Bendassoli (2001) entrevistou universitários brasileiros
para discutir esse sentimento de “corpo reciclável” como uma oportunidade que a
tecnologia de transplantes oferece. Ao discutir seus dados o pesquisador relata que “a
doação cria e estimula uma pós-utilidade para o corpo morto (...) que figura como um
instrumento destinado à manutenção da vida, revestindo-se assim de uma finalidade
socialmente valorizada.” (Bendassoli, 2001, 237).
131
Cf. www.abto.org.br
132
“Is the difficulty we face in this discussion really the challenge of theoretically and operationally defining
death? Or defining life? Or is the fundamental difficulty really in defining… person?” (Ott, 1998, p.22)
100
al., 2002; Medina-Pestana, et al., 2004; Bacchella e Machado, 2004; Medina-Pestana, Vaz
e Park, 2002). Chama a atenção a publicação de Medina-Pestana, Vaz e Park (2002), que
apresenta um cenário bastante otimista dos transplantes de órgãos no Brasil, com elogios
ao Sistema Único de Saúde em seu apoio a tecnologias de alta complexidade. O SUS é
apontado pelos autores como incremento ao avanço dessas práticas no país, colocando-o
em lugar de destaque no cenário internacional. Duarte et al. (2002) apresentam um
levantamento importante sobre as atitudes de brasileiros com relação à doação de órgãos
envolvendo mais de mil participantes, todos do estado de São Paulo. Dos resultados,
merece destaque a reflexão dos autores sobre a não-concordância, de uma minoria de
entrevistados, com a definição de morte cerebral, interpretada como falta de informação e
apego a crenças e mitos religiosos que desestimulam as doações. Os autores concluem que,
de maneira geral, os brasileiros são favoráveis aos transplantes de órgãos. A oposição à
doação se deve, avaliam os autores, à falta de conhecimento público da morte cerebral,
certa desconfiança com relação às prática médicas, e mitos sobre o diagnóstico de morte
cerebral. Afinal, em contexto brasileiro, só a ignorância justificaria o questionamento da
palavra de ordem do saber médico.
Em artigo recente, Garcia (2006) analisa o desconhecimento da população e de
parte dos profissionais da saúde acerca do significado de morte cerebral. O autor levanta
como necessidade o incentivo à informação e educação através da mídia que discuta com a
população brasileira “o significado da doação de órgãos, a legislação com relação aos
transplantes, o conceito de morte encefálica e os problemas gerais desta área.” (p. 319). A
proposta não soa como um convite ao debate, mas à plena aceitação do diagnóstico
médico.
Ao envolver os leitores em sua descrição de um de um estranho pesadelo em que o
sonhador se vê enterrado vivo, Edgar Alan Poe indaga quem teria autoridade para delimitar
a fronteira entre a vida e a morte. A personagem acorda do sono soturno e queima seu
livro-texto de medicina para viver uma vida humana. Mas, o que há de humano no limiar
dessa fronteira?
101
biotecnologia, tem sido discutida pelo autor como “políticas da vida” (politics of life itself)
(Rose, 2001; 2007). A delimitação polarizada entre saúde e doença ou o controle de
enfermidades não é foco prioritário desse século. Ênfase deve ser dada à capacidade
controlar, desenhar, modular a vida, possibilitando aos seres humanos se explorarem como
indivíduos somáticos (somatic individuals). O transplante de órgãos, nesse conjunto de
práticas somáticas, se fortalece como tecnologia de otimização da matéria humana,
demandando que novas idéias sobre morte e vida sejam inventadas. Criando arranjos
híbridos de seres humanos, “essas não são apenas tecnologias médicas ou tecnologias de
saúde, elas são tecnologias da vida” (Rose, 2007, p. 17)133. O autor discorre sobre a
maximização de estilos de vida e de saúde, em que a biologia não é mais uma fatalidade;
ela é uma realidade maleável. Diante disso, o self estaria constantemente aberto para
modificações. Nem mesmo as tecnologias de transplante, que no século passado
centralizavam-se no projeto de “salvar vidas”, escapam à lógica de otimização do “século
biotecnológico”. A morte, mais do que nunca, deve ser escamoteada.
No outro lado da moeda, a vida é valorizada ao extremo na contemporaneidade,
mas não qualquer uma. Lock (2001) pondera sobre a abjeção a certas condições de vida,
como os quadros demenciais graves ou pacientes em estado vegetativo persistente, que têm
pouco ou nenhum valor em nosso tempo. Pessoas assim estariam “socialmente mortas”
(socially death), pois não teriam mais a capacidade de se relacionar socialmente, perdendo
a serventia, num mundo de utilitarismo médico. Por essa via, somos constantemente
expostos à idéia de que não deveríamos querer viver em determinadas condições médicas
ou em situações em que seria melhor estarmos mortos. A antropóloga critica o crescente
interesse nas pessoas caracterizadas como socialmente mortas, como potenciais doadores
de órgãos. A medicina e certas vertentes da bioética continuarão a inventar novas
categorias de morte social e, sempre justificadas pelo discurso da escassez, essas áreas
investirão em alternativas para ampliar o suprimento de órgãos. O caminho já deflagrado
com o debate sobre a morte cerebral é a bem sucedida vinculação do final da vida humana
com o cérebro.
Em convites mais extremos para a submissão de qualquer interpretação social aos
processos “naturais” de vida e morte, encontramos a “teoria da vida cerebral” (brain-life
theory), defendida por Goldenring (1985). Categoricamente, o neurologista reduz a
experiência humana à atividade cerebral. O cérebro seria, então, “o maestro de todo
133
“these are not merely medical technologies or technologies of health, they are technologies of life.”
104
134
“the orchestrator of all organ systems and the seat of personality.”
135
Proposições afirmativas: (1) Inteligência mínima; (2) auto-percepção (self-awareness); (3) auto-controle;
(4) senso de temporalidade; (5) senso de futuro; (6) senso de passado; (7) capacidade de se relacionar; (8)
preocupação com o próximo; (9) comunicação; (10) controle da existência; (11) curiosidade; (12)
disponibilidade para a mudança; (13) equilíbrio entre racionalidade e emoção; (14) idiossincrasia; (15)
função neo-cortical. Proposições negativas: (1) o homem não é “anti-artificial”; (2) o homem não é
essencialmente paternal; (3) o homem não é essencialmente sexual; (4) o homem não é um conjunto de
direitos; (5) o homem não é essencialmente um devoto (Fletcher, 1972).
136
“Before cerebration is in play, or with its end, in the absence of the synthesizing function of the cerebral
cortex, the person is non-existent. Such individuals are objects but not subjects.”
105
137
“patient-ventilator entities”; “living cadavers”; “ventilator brain”; “heart lung preparations”.
138
“assumed a hybrid status – that of a dead-person-in-a-living-body”.
106
cerebral”. A população deveria ser sensibilizada para enfrentar questões morais relativas à
interrupção de tratamentos de suporte de vida desatando esse gesto da definição artificial
de morte cerebral.
Fechando o século XX, vozes como as de Truog (1997) e Shewmon (2001) clamam
por um retorno a critérios cardiorrespiratórios, confiando na maturidade social para a
discussão de retirada de órgãos, que prescinda de uma nova definição de morte. Ao mesmo
tempo, defensores da higher brain death pressionam para o reconhecimento de outros
corpos, além dos pacientes com morte cerebral, sejam reconhecidos como cadáveres
(Veatch, 1999; Lizza, 1999; Rich, 1997). Enquanto isso, o Papa João Paulo II, retoma o
diálogo entre igreja e comunidade médica reforçando a definição de whole-brain death ao
afirmar que
a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário e
integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da
alma, da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida neste sentido original, é um
evento que não pode ser directamente identificado por qualquer técnica científica ou método
empírico. Mas a experiência humana ensina também que o evento da morte produz inevitavelmente
sinais biológicos, que a medicina aprendeu a reconhecer de maneira sempre mais específica. (Papa
João Paulo II, 2000, sic).
O pontífice pondera que a única forma ética de se obter órgãos para transplantes é
através da certificação de morte da pessoa pelos “parâmetros claramente determinados e
assumidos de forma consensual pela comunidade científica internacional”. Textualmente,
ele se refere à morte da pessoa pautada pelos critérios relacionados à whole-brain death, ou
seja, à “cessação total e irreversível de qualquer actividade encefálica (cérebro, cerebelo e
tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo
individual como tal” (Papa João Paulo II, 2000, sic). O pano de fundo do discurso do
representante da Igreja Católica é o repúdio ao desenvolvimento de pesquisa com células
embrionárias para o cultivo de órgãos transplantáveis, escândalo maior não tolerado pela
instituição. A avaliação favorável às tecnologias de transplantes de órgãos e da definição
de maior consenso na comunidade científica internacional serve, então, de fundamentação
pra que a Igreja se oponha aos desdobramentos das pesquisas genéticas, vistas como mais
danosas aos seus princípios.
Apesar da prolífera construção de argumentos favoráveis à cerebralização do ser
humano, reforçada pelo discurso do Papa, há vozes dissonantes dessa tendência. Além
disso, desafios recentes no próprio campo dos transplantes deslocam a noção de
pessoalidade para outro lugar do corpo: a face.
108
A recusa aos critérios neurológicos para definição de morte cerebral nem sempre
segue o percurso de Truog (1997) e Shewmon (2001). Alguns autores simplesmente não
pleiteiam uma convivência madura entre sociedade e medicina nos processos decisórios
sobre retirada de órgãos para transplante. Em vez disso, partem do princípio de que um
órgão apenas, não é suficiente para dizer o que é o ser humano para questionar a definição
de morte cerebral. Pots (2001), como exemplo desse pensamento pondera:
Se a vida é definida em termos do funcionamento integrado de uma pessoa, então pacientes com
morte cerebral, sejam eles declarados mortos [em função de] todo o encéfalo ou do neocórtex, estão
funcionando como organismos integrados e são, portanto, seres humanos vivos. Se este é o caso, a
remoção de órgãos vitais singulares de um paciente com morte cerebral com o coração pulsante
significa a morte de uma pessoa humana viva. (Pots, 2001)139.
Seifert (1993) avoluma a tese de que mais do que o cérebro é necessário para se
dizer o que é um ser humano. Para o filósofo, a dependência de aparelhos é uma condição
dos avanços das tecnologias médicas. Assim sendo, se essa hibridização homem-máquina
fosse suficiente para considerar uma pessoa morta, numa leitura radical, sujeitos
dependentes de aparelhos de hemodiálise ou marca-passos também estariam semi-mortas.
O autor recusa peremptoriamente a equivalência entre morte cerebral e morte da pessoa.
Por si só, a conexão de seres humanos a máquinas, ainda que estas substituam funções
vitais, não pode equivaler à morte. O autor questiona: e se a pessoa não tivesse o cérebro,
mas os pulmões comprometidos e precisasse de aparelhos de respiração artificial? Ela
estaria morta? E pessoas que têm um colapso de outros órgãos, como os pacientes que
precisam de rins novos, seriam “mortos renais”? Segundo Seifert (1993), a definição de
morte cerebral tem uma motivação pragmática: a interrupção de tratamento de suporte de
vida e retirada de órgãos para transplantes. Em síntese, o autor conclui que “ninguém sabe
exatamente quais partes do corpo e do cérebro correspondem ao tecido da mente
incorporada que se procura” (p. 185)140. A definição de morte cerebral deveria, assim, ser
rejeitada por se pautar por uma discussão filosófica demasiadamente precária. O filósofo
admite um único critério que indica a morte de uma vida humana. Em suas palavras,
139
“If life is defined in terms of the integrated functioning of a person, then brain-dead patients, whether they
be declared whole brain or higher brain dead, are functioning integrated organisms and are thus living human
people. If that is the case, the removal of unpaired vital organs from a beating-heart brain-dead patient means
killing a living human person.”
140
“nobody knows exactly which parts of the body and of the brain are the mind-incarnating tissue one is
looking for.”
109
O único critério médico aceitável para a vida humana pessoal, concluímos, é a vida humana
biológica – i.e., a vida do organismo humano, da maneira como ele existe da concepção em diante.
De acordo com isso, os únicos critérios aceitáveis para a morte e o fim irreversível das funções vitais
biológicas é a do “organismo com um todo” e os fenômenos que se seguem a partir daí. (Seifert,
1993, p. 198)141.
A definição de whole-brain death não deve ser confundida com a posição de Seifert
(1993). Ele considera razoável que se pense na mente como incorporada, mas isso não
pode ser reduzido a um único órgão, função ou tecido biológico.
Um tênue, mas curioso desvio na cerebralização promovida pela área dos
transplantes pode ser observado na passagem do século XX para o XXI. Em 1998
cirurgiões franceses realizaram com sucesso um transplante de mão, entrando na era dos
transplantes que não se destinam a salvas vidas (Clark, 2005a, 2005b). Por ter empregado
técnicas refinadas esse episódio ganhou repercussão internacional. Ele inspirou outros
tipos de transplante, que se fariam com o objetivo de melhorar condições de vida que não
representam ameaça de morte para os receptores. Um grupo de cirurgiões americanos da
Universidade de Louisville, liderado por Osborne Wiggins, publicou o artigo On the Ethics
of Facial Transplantation Research (Wiggins et al., 2004), discutindo a viabilidade
próxima de transplante de face para tratamento de pessoas com rostos desfigurados. O
grupo assume que investe no aperfeiçoamento de técnicas para realizar o transplante num
futuro próximo e, para que isso aconteça, a comunidade científica deveria debater as novas
questões éticas aí implicadas. Dentre os problemas éticos levantados pelos autores,
destaca-se o seguinte:
O receptor da nova face deve lidar com uma nova aparência. (...) A aparência facial está íntima e
profundamente associada ao senso de identidade pessoal e social. Portanto, o receptor de uma face
deve se adaptar às suas próprias respostas à sua nova “identidade”. (Wiggins et al., 2004, p. 5)142
141
“The only acceptable medical criterion for personal human life, we conclude, is biological human life –
i.e., life or a human organism, as it exists from conception on. Accordingly, the only acceptable criteria for
death are the irreversible end of the biological vital functions of the ‘organism as a whole’ and the
phenomena following thereupon.”
142
“The recipient of a new face must deal with a new appearance. (…) Facial appearance is intimately and
profoundly associated with one’s sense of personal and social identity. Therefore, the recipient of a face must
adapt to his or her own responses to this new ‘identity’”.
110
dos transplantes, essa intervenção não pode abrir mão das entidades híbridas de homem e
máquina. Ao contrário disso, seu caráter não é tão nobre como salvar vidas, o que tem
justificado, na contemporaneidade, outro efeito nefasto dos transplantes de órgãos: a
mercantilização de órgãos humanos.
143
“procurement agencies are typically described as covering technical, transportation, and other support
services, rather than being linked directly to the cost of the organ itself”
144
“among the most lucrative forms of medical practice”.
111
145
“commercialized transplant medicine has allowed global society to be divided into two decidedly unequal
populations – organ givers and organ receivers. The former are an invisible and discredited collection of
anonymous suppliers of spare parts; the later are cherished patients, treated as moral subjects and as suffering
individuals.”
112
outra finalidade. Na Índia o comércio de rins era feito a céu aberto na ocasião da pesquisa.
Na África do Sul, órgãos de negros pobres são retirados para dar alguns anos a mais de
vida para brancos, mesmo nos anos posteriores à segregação racial. A séria denúncia feita
pela antropóloga fortalece sua adesão ao Ogan Watchers, um projeto de vigilância mundial
contra tráfico de órgãos. Para a autora,
“as transações de órgãos hoje são misturadas de altruísmo e comércio; de ciência e feitiçaria; de
voluntarismo e coerção; de doação, permuta e roubo (...), e elas são redefiniram os significados de
real/irreal; visto/não-visto; vida/morte; corpo/defunto/cadáver; pessoa/não-pessoa; rumores/fatos e
ficção” (Scheper-Hughes, 2002b, p. 44)146.
146
“organs transactions today are blended of altruism and commerce; of science and magic sorcery; of
voluntarism and coercion; of gifting, barter and theft (…) and they have redefined the meanings of
real/unreal; seen/unseen; life/death; body/corpse/cadaver; person/non-person; rumors/fact/and fiction.”
113
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGICH, George J.; JONES, Royce P. Personal Identity and Brain Death: A critical
response. Philosophy and Public Affairs, vol. 15, n. 3, p. 267-274, 1986.
A ILHA. Direção: Michael Bay. Produção: Steven P. Saeta. Intérpretes: Ewan McGregor,
Scarlett Johansson, Los Angeles: Warner Brothers, 2005, 1 DVD (136 min).
ANÔNIMO, A way of dying. The Atlantic Monthly, Boston, Mass., p. 53-55, Jan. 1957.
APPEL, James Z. Ethical and legal questions posed by recent advancements in medicine.
JAMA, v. 205, n. 7, p. 513-516, ago. 1968.
ARNOLD, John D.; ZIMMERMAN, Thomas F.; MARTIN, Daniel C. Public Attitudes
and diagnosis of death. JAMA, v. 206, n. 8, p. 1949-1954, nov. 1968.
AYD, Frank J. The Hopeless Case. JAMA, v. 181, n. 13, p. 1099-1102, 1962.
BACCHELLA, T.; MACHADO, M.C.C. The first clinical liver transplantation of Brazil
revisited. Transplantation Proceedings, v. 36, p. 929-930, 2004.
BECKER, Lawrence. Human Being: the boundaries of the concept. Philosophy and Public
Affairs, v. 4, n. 4, p. 334-359.
BEECHER, Henry K. Ethics. New England Medical Journal, vol. 274, n° 24, p. 1354-
1359, 1966.
117
BEECHER, Henry K. Human Studies. Science, vol. 164, n° 3885, p. 1256-1258, 1969.
BELKIN, Gary S. Brain Death and the historical understanding of bioethics. Journal of the
History of Medicine, vol. 58, p. 325-361, jul. 2003.
BENDIXEN, Henrik H.; KINNEY, John M. History of Intesive Care. In J.M. KINNEY
(Ed.) Manual of Surgical Intensive Care, p. 3-14, 1977.
BERNAT, James L.; CULVER, Charles M.; GERT, Bernard. On the definition and
criterion of death. Annals of Internal Medicine, v. 94, p. 389-394, 1981.
BERNAT, James L. How much of the brain must die in brain death? The Journal of
Clinical Ethics, v. 3, n. 1, p. 21-26, 1992.
BERNAT, James L. The concept and practice of brain death. Progress in brain research,
v. 150, p. 369-379, 2005.
BLACK, Peter. Brain Death (2 partes). New England Journal or Medicine, 299, p. 338-
344, 1978.
BRANTE, Thomas; HALBERG, Margareta (1991). Brain or Heart? The controversy over
the concept of death. Social Science Studies, vol. 21, n. 3, 389-413.
BRASIL. Lei n° 9.434 de 4 de março de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos
e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências.
Disponível em < http://dtr2001.saude.gov.br/transplantes/>
humano para fins de transplante e tratamento, e dá outras providências. Brasília: DOU 123.
01 de julho de 1997. Disponível em
<http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaLegislacao.action>.
BRODY, Baruch. How much of the brain must be dead? In: YOUNGNER, Stuart J.;
ARNOLD, Robert M.; SCHAPIRO, Renie (Ed.) The definition of death: contemporary
controversies. Blatimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1999, p. 71-82.
CALLAHAN, Daniel. Profile: Institute of society, ethics and the life sciences. BioScience,
v. 21, n. 13, 735-737, jul. 1971.
CALLAHAN, Daniel. The troubled dream of life: living with mortality. New York: Simon
& Schuster, 1993.
CALLAHAN, Daniel. Terminating life sustaining treatment for demented. Hastings Center
Report, v. 25, n. 6, p. 25-31, nov-dec 1995.
CASPER, Monica J.; KOENIG, Barbara A. Reconfiguring nature and culture. Intersections
of medical anthropology and technoscience studies. Medical Anthropology Qarterly, New
Series, v. 10, n. 4, p. 523-536, 1996.
CLARK, Peter A. Face transplantation: a medical perspective. Med Sci Monit, v. 11, n. 1,
p. 1-6, 2005a.
CLARK, Peter A. Face transplantation: a medical perspective. Med Sci Monit, v. 11, n. 2,
p. 41-47, 2005b.
COOLEY, Denton A. et al. Transplantation of the human heart: Report of four cases.
JAMA, v. 205, n. 7, p. 479-486, ago. 1968
119
COOLEY, Denton A. Cardiac Transplantation: the first twenty years and beyond. Texas
Heart Institute Journal, v. 14, n. 3, sep. 1987.
COSTA, Iseu Affonso da. História da cirurgia cardíaca brasileira. Revista Brasileira de
Cirurgia Cardiovascular, v. 13, n. 1, 1998.
DAEDALUS. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, v. 98, n. 2, Spring
1969 (Ethical aspects of experimentation with human subjects).
DUARTE, P.S. et al. Brazilian’s attitudes toward organ donation and transplantation.
Transplantation Proceedings, v. 34, p. 458-459, 2002.
FARRELL, John J. The right of a patient to die. The Journal of the South Carolina
Medical Association, v. LIV, n. 7, p. 231-233, 1958.
FIELDER, Leslie A. Why Organ Transplant Program do not succeed. In In: YOUNGNER,
SJ; FOX, RC; O’CONNEL, LJ. (Eds). Organ Transplantation: Meanings and Realities.
Madison: The University of Wisconsin Press, p. 56-65, 1996.
FLECK, Ludwik. Genesis and development of a scientific fact. Chicago e Londres: The
University of Chicago Press. 1979 (Original publicado em 1935).
FOX, Renee C. Advanced Medical Thechnology – social and ethical implications. Annual
Review of Sociology, v. 2, p. 231-268, 1976.
GRAY, Carl. Book review: Twice Dead: Organ Transplants and the Reinvention of Death.
British Medical Journal, v. 324, p. 1401, 8 jun. 2002.
GREEN, Michael B.; WIKLER, Daniel Brain Detah and Personal Identity. Philosophy and
Public Affairs, vol. 9, n. 2, p. 105-133, 1980.
HILBERMAN, Mark (1975). The evolution of intensive care units. Critical Care
Medicine, v. 3, n. 4, p. 159-165.
HOFFENBERG, Raymond Christiaan Barnard: his first transplants and their impact on
concepts of death. British Medical Journal, v. 323, Dec., p. 1478-1480, 2001.
HOGLE, Linda. Recovering Nation’s Body: Cultural memory, medicine and the politics of
redemption. New Brunswick / New Jersey / Londres: Rutgers University Press. 1999.
HOWELL, Joel D. Technology in the hospital: transforming patient care in the early
twentieth century. Baltimore: The John Hopkins University Press. 1995.
IVY, A.C. The history and Ethics of the Use of Human Subjects in Medical Experiments.
Science, v. 108, n. 2792, 1-5. 1948.
JENNET, Bryan; HESSETT, Catherine. Brain death in Britain as reflected in renal donors
British Medical Journal, v. 283, p. 359-362, 1 ago.1981.
KASS, Leon R. Organs for sale? Propriety, property, and the price of progress.
KATZ, Samuel L. Conquering Polio: From Culture to Vaccine – Salk and Sabin. New
England Journal of Medicine, v. 351, n. 15, p. 1485-1487, 2004.
121
LAFORET, Eugene G. The “Hopeless” Case. Archives of Internal Medicine, v. 112, Sep.,
pp. 68-80, 1963.
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.
São Paulo: Ed. Unifesp. 2000.
LIZZA, John P. Defining death for persons and human organismos. Theoretical Medicine
and Bioethics, v. 20, p. 439-453, 1999.
LIZZA, John P. Persons, Humanity, and the Definition of Death. Baltimore: The John
Hopkins University Press, 2006.
LOCK, Margaret. Death in technological time: locating the moment of meaningful life.
Medical Anthropology Quarterly, vol. 10, n. 4, 575-600, 1996.
LOCK, Margaret. The unnatural as ideology: contesting brain death in Japan. In:
ASQUITH, P.J.; KALLAND, A. (Eds.). Japanese images of nature: Cultural perspectives.
1997a.
LOCK, Margaret. Displacing suffering: the reconstruction of death in North America and
Japan. In: KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK, M. (Eds.). Social Suffering. Berkeley, Los
Angeles, Londres: University of California Press, p. 208-244, 1997b.
LOCK, Margaret. Deadly disputes: Hybrid selves and the calculation of death in Japan an
North America. Osiris, 2ª série, vol. 13, p. 410-429, 1998.
122
LOCK, Margaret. Inventing a new death and making it believable. Anthropology &
Medicine, vol. 9, n. 2, 97-115, 2002a.
LOCK, M. Twice Dead: Organ Transplants and the reinvention of death. Berkeley / Los
Angeles / Londres: University of California Press, 2002b.
LOCK, Margaret. Living Cadavers and the calculation of death. Body & Society vol. 10, n.
2–3, p. 135–152, 2004.
LOCKE, John (1689). An Essay Concerning Human Understanding. New York: E.P.
Dutton & Co., 1959.
LOCKE, John. (1689). Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1999.
LUCCAS, Francisco José C.; BRAGA, Nadia I.O.; SILVADO, Carlos Eduardo S.
Recomendações técnicas para o registro do eletrencefalograma na suspeita da morte
encefálica. Arquivos de Neuropsiquiatria, v. 56, n. 3-B, p. 697-702, 1998.
MACHADO, Carlos Dalton; PIRMO, Fabrícia Cotrim; FREITAS, Maíra. Neuroética. In:
Bioética: um olhar transdisciplinar sobre os dilemas do mundo contemporâneo. Belo
Horizonte: Ed. PUC Minas, 183-198, 2004.
MAXWELL, James S. The Iron Lung: Halfway technology or necessary step? The
Milbank Quarterly, v. 64, n. 1, pp. 3-29, 1986.
MOORE, Harry H. Public Health and Medicine. The American journal of Sociology, v. 34,
n. 6, 1064-1071, 1929.
MORGAN, Lynn M. “Life begins when they steal your bicycle”: Cross-cultural practices
of personhood at the beginnings and ends of life. Journal of Law, Medicine & Ethics, v.
34, n. 1, p. 8-15, 2006.
MORISON, Robert R. Death: process or event? Science, v. 173, n. 3998, p. 694-698, 1971.
123
OTT, BB. Defining and redefining death. In: CAPLAN, AL; COELHO, DH. (Orgs) The
Ethics of Organ Transplantation: the current debate. New York: Prometheus Books, p. 16-
23, 1998.
PALLIS, Chistopher. Medicine and the Media. British Medical Journal, v. 281, p. 1664,
18 out. 1980.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Reappraising death. British Medical
Journal, v. 285, p. 1409-1412, 13 nov. 1982a.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. From brain death to brain stem death.
British Medical Journal, v. 285, p. 20 nov. 1982b.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Diagnosis of Brain Stem Death-I. British
Medical Journal, v. 285, 27 nov. 1982c.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Diagnosis of Brain Stem Death-II. British
Medical Journal, v. 285, 4 dez. 1982d.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Pitfalls and safeguards. British Medical
Journal, v. 285, 11 dez. 1982e.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. The declaration of death. British Medical
Journal, v. 286, p. 39, 1 jan. 1983a.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Prognostic significance of a dead brain
stem. British Medical Journal, v. 286, p. 123-124, 8 jan. 1983b.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. The position in the USA and elswhere.
British Medical Journal, v. 286, p. 209-210, 15 jan. 1983c.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. The arguments about EEG. British
Medical Journal, v. 286, p. 284-287, 22 jan. 1983d.
PALLIS, Chistopher. ABC of Brain Stem Death. Londres: British Medical Journal
Publishers, 1983e.
PALLIS, Chistopher. On the brainstem criterion of death. In: YOUNGNER, Stuart J.;
ARNOLD, Robert M.; SCHAPIRO, Renie (Ed.) The definition of death: contemporary
controversies. Blatimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1999, p. 3-33.
PAPA PIO XII, Reanimatione [The prolongation of life]. Acta Apostolicae Sedis, p. 1027-
1033, 24 de novembro de 1957.
PAPA JOÃO PAULO II. Discurso do Santo Padre João Paulo II aos participantes no
XVIII Congresso Internacional sobre os Transplantes, 29 de agosto de 2000. Disponível
em <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2000/jul-
sep/documents/hf_jp-ii_spe_20000829_transplants_po.html>.
PERNICK, Martin S. Brain death in a cultural context: the reconstruction of death, 1967-
1981. In: YOUNGNER, Stuart J.; ARNOLD, Robert M.; SCHAPIRO, Renie (Ed.) The
definition of death: contemporary controversies. Blatimore e Londres: The John Hopkins
University Press, 1999, p. 3-33.
PERRY, John (Ed.). Personal Identity. Berkeley: University of California Press, 1975.
PITA, Fernando; CARMONA, Cátia. Morte Cerebral: do mito de ser enterrado vivo ao
mito do dador vivo. Acta Médica Portuguesa, v. 17, p. 70-75, 2004.
POTS, Michael. Debating the criteria for brain death. Canadian Medical Association
Journal, v. 165, n. 3, p. 269, 2001.
RADO, Leslie. Cultural elites and the institutionalization of ideas. Sociological Forum, v.
2, n. 1, p. 42-66, winter, 1987.
RAMSEY, Paul. The patient as person. New Haven e Londres: Yale University Press.
1970. 285 p.
REID, Fred D. Prolongation of life or prolonging the act of dying? JAMA, v. 202, n. 2, p.
181, 1967.
125
RICHARDSON, R. Fearful Symmetry: corpses for anatomy, organs for transplantation. In:
YOUNGNER, SJ; FOX, RC; O’CONNEL, LJ. (Eds). Organ Transplantation. Meanings
and Realities. Madison: The University of Wisconsin Press. p. 66-100, 1996.
RICHMOND, Caroline. Chris Pallis: Neurologist who defined brainstem death. British
Medical Journal, v 330, p. 908,16 abr. 2005.
ROSE, Nikolas. The politics of life itself. Theory, Culture & Society, v. 18, n. 6, pp. 1-30,
2001.
ROSE, Nikolas. The politics of life itself: biomedicine, power, end subjectivity in the
twenty-first century. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2007.
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo. Belo Horizonte: Del
Rey, 2ª ed. 2003.
SANT’ANNA, Denize Berduzzi de. Corpos de Passagem. São Paulo: Estação Liberdade,
2001.
SEIFERT, Josef. Is “brain death” actually death? The Monist, v. 76, n. 2, p. 175-202, 1993.
SHARP, Leslie A. The commodification of the body. Ann Rev. Anthropol., v. 29, p. 287-
328, 2000.
SHARP, Leslie A. Strange Harvest: Organ transplants, denatured bodies, and the
transformed self. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 2006.
126
SHEWMON, Alan. The Brain and Somatic Integration: Insights into the Standard
Biological rationale for equating “brain death” with death. Journal of Medicine and
Philosophy, v. 26, n. 5, p. 457-478, 2001.
STEVENS, Tina. Redefining death in America, 1968. Caduceu, p. 207-219, winter, 1995.
THOMAS, Lewis. The technology of medicine. New England Journal of Medicine, v. 285,
n. 24, p. 1366-1368, 1971.
TRUOG, Robert D. Is it time to abandon brain death? Hastings Center Report, v. 27, n. 1,
p. 29-37, jan-fev, 1997.
VEATCH, Robert M. Death, dying and the biological revolution: our last quest for
responsibility. New Haven: Yale University Press, 1976.
VEATCH, Robert M. Whole-brain, neocortical and higher brain related concepts. In:
ZANER, Richard M. Death beyond whole-brain criteria. Dordrecht / Boston / Londres:
Kluwer Academic Publishers, 1988, p. 171-186.
127
VEATCH, Robert M. Death, dying and the biological revolution: our last quest for
responsibility. Ed. Revista. New Haven: Yale University Press, 1989.
VEATCH, Robert M. The conscience clause: how much individual choice in defining
death can our society tolerate? In: YOUNGNER, Stuart J.; ARNOLD, Robert M.;
SCHAPIRO, Renie (Ed.) The definition of death: contemporary controversies. Blatimore e
Londres: The John Hopkins University Press, 1999, p. 137-160.
VEATCH, Robert M. The dead donor rule: true by definition. American Journal of
Bioethics, v. 3, n. 1, p. 10-11, 2003.
VEATCH, Robert M. The death of whole-brain death: the plague of the disaggregators,
somaticists, and mentalists. Journal of Medicine and Philosophy, v. 30, p. 353-378, 2005.
VIDAL, Fernando. Brainhood. Texto apresentado no evento Mind, Brain and Education,
da Pontificial Academy of Science, Roma, Novembro, 2003.
VIDAL, Fernando. Le Sujet Cerebral: une esquisse historique et conceptuelle. PSN, v. III,
n. II, jan-fév., p. 37-48, 2005.
VOVELLE, Michel. La mort et l’occident: de 1300 à nos jours. Paris: Gallimard, 1983.
WALDBY, Catherine. Stem cells, tissue cultures and the production of biovalue. Health, v.
6, n. 3, p. 305-223, 2002.
WICKS, Mona Newsome. Brain death and transplantation: the Japanese. Medscape
Transplantation, v. 1, n. 1, 2000.
WIESEMAN, Claudia. Notwendigkeit und Kontingenz. Zur Geschichte der ersten Hirntod-
Definition der Deutschen Gesellschaft für Chirurgie von 1968. In: SCHLICH, T.;
WIESEMANN, C. Hirntod. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 209-235, 2001.
WIJDICKS, Eelco F. M. (Ed.) Brain Death. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,
2001.
WIJDICKS, Eelco F. M. Brain death worldwide: accepted fact but no global consensus in
diagnostic criteria. Neurology, v. 58, p. 20-25, 2002.
WILLIAMSON, William P. Life or Death – Whose decision? JAMA, v. 197, n. 10, pp.
139-141, 1966.
YOUNGNER, Stuart J. Some must die. In: YOUNGNER, SJ; FOX, RC; O’CONNEL, LJ.
(Eds.). Organ Transplantation: Meanings and Realities. Madison: The University of
Wisconsin Press. p. 32-55, 1996.
128
YOUNGNER, Stuart J.; ARNOLD, Robert M.; SCHAPIRO, Renie (Ed.) The definition of
death: contemporary controversies. Blatimore e Londres: The John Hopkins University
Press, 1999.
YOUNGNER, Stuart J.; ARNOLD, Robert M. Philosophica debates about the definition of
death: who cares? Journal of Medicine and Philosophy, v. 26, n. 5, p. 527-537, 2001.
ZANER, Richard M. Brains and persons: a critique of Veatch’s view. In: ___ Death
beyond whole-brain criteria. Dordrecht / Boston / Londres: Kluwer Academic Publishers,
1988, p. 187-197.