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In: PASSOS, R. G.; COSTA, R. A.; SILVA, F. G. (Org).

Saúde Mental e os desafios


atuais da Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Gramma, 2017, pp. 283-312.

CONSCIÊNCIA ANTIMANICOMIAL EM TEMPOS DEMOCRÁTICO-POPULARES:


CAMINHOS DE UM MOVIMENTO1
Daniela Albrecht

Resumo: Este artigo pretende analisar a trajetória do Movimento Antimanicomial


brasileiro, do ponto de vista do desenvolvimento da consciência de classe. Partimos
da hipótese de que sendo parte integrante da luta da classe trabalhadora, o
movimento social que impulsionou o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira
também incorporou elementos da Estratégia Democrática-Popular (EDP) que
orientou hegemonicamente a luta da classe no país neste ciclo histórico, e tinha
como um de seus pilares a atuação junto aos movimentos populares, cuja ação seria
combinada com a ocupação de espaços institucionais. Parâmetros para o processo
brasileiro, a Psiquiatria Democrática italiana e o pensamento de Franco Basaglia
também são abordados, buscando sua relação com o eurocomunismo, referência
estratégica das lutas da classe trabalhadora italiana nos anos 1970/80. A trajetória
do Movimento Antimanicomial será pensada, então, de modo articulado ao
desenvolvimento da EDP, bem como seus limites e impasses.
Palavras-Chave: Movimento Antimanicomial; Reforma Psiquiátrica Brasileira;
Estratégia Democrática Popular.

“Quando dizemos não ao manicômio, estamos dizendo não à miséria do mundo,


e nos unimos a todas as pessoas que no mundo lutam por uma situação de
emancipação”
Franco Basaglia


1 Este trabalho foi originalmente apresentado para ingresso no Programa de Doutorado da Escola de Serviço
Social da UFRJ (PPGSS/UFRJ). Sua escrita, aqui revisada e adaptada, foi privilegiada, em diferentes momentos,
pela leitura e contribuições de alguns companheiros e professores aos quais aproveito para agradecer: Isabel
Mansur, Victor Neves, Beatriz Adura e Mavi Rodrigues. Aproveito para agradecer também aos companheiros do
Núcleo de Educação Popular 13 de maio, espaço fundamental na minha formação teórico-política onde germinou
grande parte das reflexões críticas que aqui serão trazidas e sem o qual esse trabalho não existiria. A
responsabilidade por possíveis insuficiências ou deficiências do texto, contudo, decerto é exclusivamente da
autora.

1

Este artigo resgatará a trajetória do Movimento Antimanicomial brasileiro à luz
do debate crítico sobre a Estratégia Democrática Popular, que tem ganhado volume
e densidade no terreno da teoria e prática política da esquerda marxista no Brasil
nos últimos anos. Entendemos que, de forma particular, o movimento popular que se
aglutinou em torno da luta “por uma sociedade sem manicômios” 2 , se insere no
processo de luta da classe trabalhadora no Brasil, incorporando, assim, elementos
da estratégia que a orientou hegemonicamente neste período. Buscaremos, então,
estabelecer algumas mediações pelas quais a Estratégia Democrática Popular, se
expressa através deste movimento em particular3.
Algumas considerações preliminares se fazem logo necessárias. Em primeiro
lugar, em relação ao que aqui estamos tratando por Movimento Antimanicomial, já
que tal denominação não nos leva a um movimento social especifico, um sujeito
político determinado e inequívoco. Ademais o movimento experimentou diferentes
configurações ao longo de seu desenvolvimento histórico, tanto em relação às suas
formas organizativas quanto a constituição de um conjunto de atores sociais que se
aglutinaram, pelo menos desde os anos 70, na luta por um mesmo projeto.
Referimo-nos, assim, a um conjunto amplo da luta de um campo cuja
expressão mais evidente do seu êxito, em que pese as intenções de transbordá-lo,
se deu nas transformações da assistência pública à saúde mental, que tomaram
corpo no processo da ‘Reforma Psiquiátrica Brasileira’. Por vezes fez parte no
movimento constitutivo deste campo um corpo ainda mais disperso de trabalhadores
e agentes públicos atuantes no aparelho de Estado, através de suas politicas
públicas, que mantiveram certa identidade enquanto ‘campo da saúde mental’4. A
opção prioritária pela denominação “Movimento Antimanicomial” deve-se a ter sido
esta a formulação mais geral a que chegou em sua história; também por isso, a que
melhor expressa o movimento que analisaremos5.
Vale esclarecer também que por certo não tomamos o Movimento
Antimanicomial aqui como espaço central em que o debate sobre a Estratégia

2 Lema que ficou consagrado na história do movimento, como será melhor contextualizado no desenvolvimento.

3
Dado o caráter inicial deste estudo, desde já sinalizamos a necessidade de ampliar as mediações aqui
estabelecidas, visando seu desenvolvimento e aprofundamento.
4
Esse aspecto da caracterização antecipa uma consequência do próprio processo histórico do movimento, por
isso deixamos aqui apenas apontado, deixando para deslindá-lo em momento mais oportuno, no
desenvolvimento do texto.
5
Em certos momentos, contudo, poderemos nos referir ao mesmo processo, sem prejuízo, como ‘movimento
pela Reforma Psiquiátrica’, ou ainda como ‘Luta Antimanicomial’.

2
Democrático-Popular é traçado. O estudo de sua trajetória pode guardar interesse
particular, no entanto, pelo fato de se tratar de um setor em que êxitos importantes
foram alcançados. É preciso partir do reconhecimento de que tratamos de um
movimento em importante medida bem-sucedido em suas reivindicações, tanto em
sua versão brasileira, quanto na versão italiana que lhe serviu de referência e
inspiração – processo que também será trazido para o nosso campo de analise,
dadas as conexões que guarda com o brasileiro. Em que pese as ameaças que
sofre hoje, a Reforma Psiquiátrica Brasileira foi formalmente reconhecida enquanto
política de Estado, através de um denso conjunto de leis e portarias que deram
sustentação para a implementação de medidas que redirecionaram
substancialmente a atenção em saúde mental no Brasil no horizonte de sua
territorialização e humanização, refletindo pautas colocadas pelo movimento. A
análise da trajetória do Movimento Antimanicomial, cujas propostas e afirmações em
larga medida se plasmaram no processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira, como
estudo de caso, pode contribuir assim para a reflexão crítica a respeito da Estratégia
Democrática Popular.
Convém precisar melhor, – e assim passamos à segunda consideração de
caráter preliminar – onde nos localizamos no debate estratégico das lutas da classe
trabalhadora hoje. Entendemos que, em certos períodos de agudização da luta de
classes, a estratégia de transição socialista predominante de um determinado ciclo
histórico é aquela que orienta de maneira geral o comportamento da classe
trabalhadora, que ganha expressão, assim, a despeito de uma intenção mais ou
menos explícita, nas ações dos diferentes sujeitos políticos vinculados de distintos
modos as organizações dos trabalhadores. Isto não significa, é claro, que a classe
só se paute por uma ou outra estratégia em períodos de ascenso das lutas: só que
nestes períodos as estratégias hegemônicas se consolidam, se tornam força
material. Em tempos de refluxo, as remissões a tal ou qual estratégia se darão de
modo transformado, não apenas quantitativamente, mas também qualitativamente.
No sentido como empregamos aqui, uma estratégia não se resume ao modo como
originalmente é formulada – ainda que este seja certamente um momento
constitutivo importante de seu movimento -; ela constitui, antes, uma espécie de
síntese do comportamento da classe naquele período. A leitura deste
comportamento não deve reduzi-lo a seus aspectos meramente subjetivos nem
objetivos, por isso, nas palavras de Iasi (2012),
3

“quando falamos de um determinado comportamento da classe trabalhadora, devemos
relacioná-lo a uma estratégia determinante em um certo período histórico, não como uma
escolha arbitraria de uma certa direção ou vanguarda, mas como uma síntese que expressa a
maneira como uma classe buscou compreender sua formação social e agir sobre ela na
perspectiva de sua transformação” (p. 188)6
Situamo-nos, assim, junto com o campo no pensamento marxista
contemporâneo para a qual no que se refere à estratégia de transição para o
socialismo no Brasil, o atual ciclo histórico – sintetizado na Estratégia Democrática
Popular (EDP)7, cuja principal expressão se deu no Partido dos Trabalhadores (PT)
– encontra-se em processo de fechamento. É quando se fecha um período histórico
que a estratégia que lhe foi hegemônica se revela, aquela que orientou
predominantemente o conjunto da classe em sua ação durante este período. Tal
estratégia tem expressão necessariamente particular nos diferentes campos,
setores e sujeitos políticos8 de um período, mas acaba por se atualizar em cada um
deles diferenciadamente, na articulação das várias diversas ações táticas, que só
podem ser compreendidas, portanto, em relação dialética com a dimensão
estratégica. Como este ciclo está se encerrando é agora possível caminhar no
sentido de seu estudo aprofundado9.

1. Um novo partido, nova estratégia: movimentos na luta por reformas


democráticas
É durante os anos que antecedem e culminam com o fim da ditadura
empresarial-militar que são gestadas as condições para a criação do PT no Brasil.
Os processos de luta da classe trabalhadora, intensificados diante da crise
econômica destes últimos anos e sufocados parcialmente pelos mecanismos
autoritários da forma ditatorial assumida pelo Estado burguês eclodem e se somam
àqueles de ordem política, envolvendo diferentes setores. O ano de 1978 foi
marcado pela irrupção de inúmeras greves no ABC paulista, processo em que Luís

6
Aqui Iasi sistematiza os principais elementos para a compreensão do modo como trata a questão da estratégia.
Mas é em “As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento” que o autor,
partindo da trajetória do Partido dos Trabalhadores, “caminhando pra todos os lados do finito”, procura
acompanhar o movimento da consciência da classe trabalhadora brasileira em seu último período, buscando-o
em suas oscilações e compreendendo-o em sua singularidade. Tomamos tal estudo como referência no que se
refere às suas hipóteses centrais com relação ao ciclo democrático-popular.

7
A partir deste momento nos referiremos à Estratégia Democrático-Popular como EDP, a título de abreviação,
como tem se convencionado.
8
Ainda que por formas não declaradas de adesão, por esforços de diferenciação ou mesmo por oposição.
9
Dizemos que ele está “em processo de fechamento” ou “se encerrando” (por oposição a “fechado” ou
“encerrado”) porque o encerramento definitivo só se dá com o surgimento e a transformação em “força material
que se apodera das massas” de outra estratégia que suplante a anterior. Enquanto o novo não surge, o velho
não termina de perecer – e este perecimento envolve os processos de transformação os mais diversos, de
desenvolvimento de certas potencialidades regressivas em lugar de outras progressivas.

4
Inácio Lula da Silva desponta como liderança sindical. Os anos seguintes seguem
aquecidos pela intensa mobilização em torno das Diretas já (1983/84). A transição
para uma forma democrática da gestão do Estado torna-se uma exigência ampla e
também uma necessidade objetiva. A forma autoritária já dava sinais de desgaste
quanto às possibilidades de administração das contradições da luta de classes,
deixando de apresentar-se como a melhor alternativa do ponto de vista dos
interesses do próprio capital e de sua classe dominante10.
É como produto deste processo que desponta um partido de base
trabalhadora, dando unidade e direção política a esse conjunto de lutas. Afluem para
esta experiência, ainda, militantes ligados à Igreja Católica, referenciados
teoricamente pela Teologia da Libertação; militantes de organizações da esquerda
que se mantiveram clandestinos durante a ditadura empresarial-militar instaurada
pelo golpe de 1964, além de intelectuais da esquerda marxista. É no caldo deste
mesmo processo histórico que se formam também aqueles que seriam outros dois
importantes instrumentos da classe trabalhadora, uma Central Única dos
Trabalhadores, e um Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra. Com vocação
anticapitalista e recolocando o socialismo como horizonte estratégico imediato (IASI,
2006), o PT torna-se confluente e catalisador do conjunto das lutas do período.
Acompanhando as questões e dilemas enfrentados pela classe trabalhadora
internacionalmente, o tema da democracia torna-se também no Brasil um dos
centros do debate estratégico a partir de meados dos anos 1970. O gás inflamado
das lutas democratizantes, conjugado com o esforço (necessário) de diferenciação
das experiências do chamado ‘socialismo real’, e à influência do processo de
renovação do comunismo no plano internacional, alçaram a questão democrática ao
centro do debate estratégico, ganhando expressão na experiência petista.
A EDP é formulada na intenção de superação da Estratégia Nacional e
Democrática (END), que foi predominante nas lutas da classe trabalhadora brasileira
entre os anos 1930 e o golpe empresarial-militar e teve o Partido Comunista
Brasileiro como maior expressão. Recusando qualquer aliança com a burguesia para
a efetivação de uma suposta etapa nacional e democrática (anterior à socialista, na
formulação estratégica capitaneada pelo PCB 11 ), mas supondo também que o

10
Para aprofundamento, ver “A revolução burguesa no Brasil”, de Florestan Fernandes (FERNANDES, 2005).

11
A END enraizava-se nas formulações da Internacional Comunista, que definiu diretrizes político-revolucionárias
para os países coloniais, semicoloniais e dependentes, tomando por base a leitura de Lênin sobre a Revolução
5

socialismo não estaria na ordem do dia, este caminho, para a nascente EDP, se
daria através de um acúmulo de forças no interior da ordem burguesa. Conjugando
ocupação tática de espaços do Estado à pressão exercida pelos movimentos
sociais, propunha-se radicalizar a democracia; esta ação combinada possibilitaria a
promoção de certas reformas, que levariam a uma transformação desta ordem na
direção do socialismo, a partir de seu interior. A progressiva democratização da
sociedade e do Estado não pretendia representar assim, na formulação petista, uma
‘nova teoria de etapas”, que estava a priori descartada, mas já seria, em si mesma, o
caminho ao socialismo.
É dentro desse contexto e nessa perspectiva que ganham força no Brasil as
lutas por reformas democráticas e populares. E no bojo deste processo que começa
a ganhar corpo o incipiente Movimento Antimanicomial, bastante ligado ao também
nascente movimento sanitarista, que aglutinava um conjunto de demandas de
transformação no campo da saúde12.
No plano internacional, já desde o final da Segunda Guerra Mundial
movimentos de questionamentos à instituição psiquiátrica começaram a se
constituir. As prementes necessidades de reabilitação da força de trabalho fruto da
guerra colocam os grandes manicômios em contradição com o novo momento do
desenvolvimento do capital, e é nesse contexto que ganham expressão relevantes
experiências reformadoras13, que confrontam o asilo como resposta massiva, além
de afirmarem a necessária humanização destes espaços – reabilitando-os, de
quebra, na sua função social, atualizada 14 . Foi neste contexto que se dão as
reformas do campo psiquiátrico em diversos países do ocidente, como a Psiquiatria


Russa, o que acabou ficando conhecido como uma aplicação mecânica de certas experiências em países com
formações sociais muito distintas. Partia-se da compreensão de que um desenvolvimento prévio do próprio
capitalismo teria que preceder o processo revolucionário. A revolução socialista precisaria ser antecedida assim
por uma etapa nacional-democrática, que teria caráter anti-imperialista e anti-feudal. Uma etapa nacional, pois a
uma burguesia nacional também interessaria impulsionar esse desenvolvimento e amadurecer o capitalismo no
Brasil. A aliança com essas forças realizaria uma etapa burguesa da revolução, à qual se sucederia a etapa
socialista. Para o aprofundamento sobre a END ver Figueiredo (2014).

12
Ver Dantas (2014).
13
Em “Carta de Nova York. O doente artificial,” Basaglia (2005b) analisa de forma contundente as novas
‘instituições da tolerância’ que se forjam no convívio com as já conhecidas ‘instituições da violência’ nos EUA. No
centro do desenvolvimento do grande capital, as demandas colocadas pelo novo ciclo produtivo são
respondidas, no âmbito da ciência psiquiátrica, com significativas renovações técnicas humanizadoras, prontas a
reabilitar ao trabalho faixas menos dispensáveis na nova conjuntura – no bojo do conjunto de respostas na
mesma direção produzidas pelo Welfare State. É como resultado de uma práxis imersa no desenvolvimento das
experiências históricas que narraremos a seguir, que Basaglia pôde formular a compreensão que
antecipadamente apresentamos.
14 A próxima sessão abordará de modo mais detido aquilo que Basaglia revela como função social do

manicômio, vinculada às demandas do capital no estágio de desenvolvimento que analisa.

6
Preventiva nos EUA, a Psiquiatria de Setor e a Psicoterapia Institucional francesas,
e as comunidades terapêuticas ligadas à Psiquiatria Comunitária na Inglaterra15.
Ainda que estes processos tenham tido importância ao chamar atenção para
a tragédia humana que representavam os grandes hospícios, fortalecendo sua
crítica, tais experiências não chegaram a questionar sua existência. Foi na Itália dos
anos 1960 que se gestou o movimento de crítica institucional que colocava no centro
a própria psiquiatria. Questionando a existência do manicômio, a partir da análise de
sua função social, a crítica agora preconizava o saber psiquiátrico enquanto
instituição, sendo os muros do asilo apenas sua entificação mais concreta. Franco
Basaglia foi o principal ator politico e teórico, expressão e motor, portanto, deste
movimento, batizado como Psiquiatria Democrática Italiana.
O movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira, como mencionamos, se
constituiu em importante diálogo com o pensamento de Basaglia e com a Psiquiatria
Democrática, fazendo desta experiência importante referência teórica e inspiração
programática. Interessa então trazê-la também para o nosso cenário, bem como
compreender o contexto mais geral em que se insere dentro do processo da luta de
classes na Itália. Destacaremos neste caminho os lugares onde na Psiquiatria
Democrática italiana se expressam os elementos estratégicos mais gerais da luta da
classe trabalhadora no período, bem como seus dilemas – importantes, assim, para
a compreensão desta experiência em particular16.

2. Basaglia e a Psiquiatria Democrática, numa Itália eurocomunista


As condições para o desenvolvimento da critica à psiquiatria na experiência
italiana começam a ser gestadas no pós-guerra, quando a sociedade industrial se
desenvolvia e, consequentemente, uma classe operária se fortalecia. Lutas sindicais
se aqueciam no país, como em grande parte do continente. No início dos anos 1960,
Basaglia assume a direção do Ospedalle Psichiatrico Provinciale17 de Gorizia e inicia
um processo de transformação baseado na alteração das relações de poder na


15
Para aprofundamento sobre essas experiências, ver Nicácio (2001), Basaglia (2005a), Amarante (1995).

16
A principal referência aqui serão os escritos de Basaglia. O autor não será trazido aqui, contudo, no plano de
uma produção teórica destacada apenas, mas compreendendo-o enquanto intelectual orgânico de sua classe. O
que tentamos capturar, neste sentido, é como o movimento da classe, em seu processo de luta, ganha
expressão na formulação unitária e coerente de um de seus principais teóricos – cientes, entretanto, dos limites
aí colocados em relação ao estudo do próprio movimento da classe.
17
A experiência de Gorizia é contada em diversos escritos de Basaglia (1979, 2005a)
7

instituição. Partigiano18 preso pelo regime fascista até o final da guerra, o psiquiatra
se confronta com a realidade do manicômio pela primeira vez ao assumir sua
direção, e inicia um processo de humanização e reestruturação, inspirado no modelo
anglo-saxão da Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones.
A história de Gorizia foi fundamental para propiciar as reflexões acerca da
experiência da Comunidade Terapêutica, evidenciando seus limites. No caminho da
ruptura com o aparato institucional psiquiátrico, esta experiência demonstraria
grande importância como um primeiro passo, mas, esgotando-se nele, manteria
suas contradições fundantes no interior do manicômio, cujo fundamento cada vez
mais se revelava estar na própria ordem social.
Suprimidas as contradições que eram vividas no interior da instituição, uma
nova camada se apresentou – contradições que eram da sociedade, e que pareciam
justificar a própria existência daquele espaço. A Comunidade Terapêutica passa a
ser compreendida por Basaglia como uma fase importante, mas necessariamente
transitória – não a meta final. Como tal, ela pode ser incorporada ao sistema geral,
pois não coloca em cheque a finalidade da instituição psiquiátrica, sua função social
e política. Esta finalidade começa a ser então revelada nos caminhos da Psiquiatria
Democrática italiana:
“(...) desbastado o paciente das superestruturas e das incrustações institucionais, percebe-se
que ele ainda é objeto de uma violência que a sociedade usou e continua a usar em seu
caso, na medida em que – antes de ser um doente mental – é um homem sem poder social,
econômico, contratual [a] (...) mascarar a contraditoriedade da nossa sociedade. (...).
Portanto, se o primeiro momento dessa ação reversiva pode ser emotivo (no sentido de que
se recusa a considerar o doente um não-homem), o segundo não pode deixar de ser a
tomada de consciência de seu caráter politico, no sentido de que cada ação desenvolvida
perante o doente continua a oscilar entre a aceitação passiva e a recusa à violência, na qual
nosso sistema sócio-politico se baseia.” (BASAGLIA, 2005a, p. 108, grifos nossos)
Assim Basaglia apresenta as bases da Psiquiatria Democrática italiana. A
natureza da violência do manicômio é encontrada na própria violência da sociedade
capitalista, mediada pela roupagem técnica do saber psiquiátrico. Sua função social
e politica é encobrir parte das contradições entre capital e trabalho, pela ocultação
no interior de seus muros de certo contingente da classe trabalhadora, aquela
parcela que, temporária ou definitivamente, está impossibilitada de manter-se (ou
inserir-se) na esfera produtiva. Impossibilidade cujas margens de definição são


18
Como eram conhecidos os guerrilheiros envolvidos na resistência contra o fascismo.

8
funcionalmente estabelecidas pelo próprio saber psiquiátrico, mediante as
necessidades colocadas pelo momento do desenvolvimento do capital19.
A passagem de Basaglia pelos EUA se soma à experiência vivida em Gorizia
e acelera o amadurecimento da crítica da natureza da instituição psiquiátrica, bem
como a inviabilidade da sua mera reorganização. A funcionalidade da ciência
psiquiátrica enquanto ideologia 20 é revelada na análise do problema do desviante
(BASAGLIA, 2005d), tal como é produzido no capitalismo, sob a chancela do saber
psiquiátrico.
O que a experiência de Gorizia havia revelado é que a classe trabalhadora
italiana estava destinada ao manicômio caso adoecesse. O conjunto dessas
experiências vive um salto de qualidade a partir de 1971, naquela que ganha vida na
cidade de Trieste21. A direção do Ospedalle Psichiatrico Provinciale é assumida para
se trabalhar pelo seu fim. A abertura da instituição se inicia desde a chegada da
equipe, e as soluções começam a ser construídas junto à comunidade. Em
conferência no Brasil, Basaglia (1979) narra o início do processo:
“Começamos, por exemplo, discutindo quando poderíamos dar alta a um paciente. A
discussão não era mais entre nós, os médicos, mas com as pessoas do bairro onde o doente
ia morar. Então o cidadão do bairro se dava conta de que as suas necessidades eram as
mesmas do doente. Quando levantávamos o problema de dar alta a uma pessoa pobre que
não tinha dinheiro, não tinha casa nem família, muitas pessoas percebiam que estavam
nessas mesmas condições: sua situação era igual à do doente mental. (...) tínhamos frente a
nós não mais uma doença, mas uma crise” (p. 19, grifos nossos).
A crise parece se libertar da psicopatologia pra ganhar lugar na cidade, entre
as suas contradições. De vivência individual a problema comum, partilhado, a
expressão de uma crise ganha aqui um sentido outro – bastante concreto, cotidiano,
social. A atuação no interior da instituição psiquiátrica, para sua abertura e
destruição, teria que se dar, assim, através da recusa do mandato técnico – bem
compreendido como social e político – pelos operadores do saber psiquiátrico. A
partir do terreno institucional, a ‘ciência’ seria subvertida como instrumento de
libertação, ao permitir a consciência da opressão – de seus operadores,


19
A exemplo da Psiquiatria Preventiva, como já referido, experiência americana de reestruturação da assistência.
20
Através do conceito de ideologia, Marx revela como o conjunto das relações materiais que estão na base do
funcionamento da sociedade de classes se expressa também na forma de ideias. O conjunto das relações
sociais estabelecidas, e as ideias que delas fazemos, são vividas como se “naturais”. O fato de tais ideias
aparecerem invertidas, como descrito em “A ideologia Alemã” (MARX, 1984), tem origem na inversão real
operada no processo de produção da vida nos marcos do capitalismo.

21
E indissociavelmente do conjunto de lutas sociais que se intensifica na Itália neste então.

9

objetificados como empreiteiros da violência, e dos oprimidos, sobre sua própria
opressão.
A cidade, com seus habitantes e organismos, precisaria estar envolvida neste
processo. Ao acabar com o manicômio, as contradições que ali tinham abrigo
ganhariam expressão no seio da própria comunidade, que passa a ter que se
deparar com elas. A conquista da liberdade do ‘doente’ deveria coincidir com a
conquista da liberdade pela própria comunidade, pressupondo, assim, o
envolvimento de outras tantas organizações, associações, movimentos sociais. As
transformações no campo psiquiátrico, se dariam então, num mesmo compasso de
transformação da sociedade, de modo também inextrincável, portanto, do conjunto
das lutas sociais e dos trabalhadores.
Pelo modo como passa a se compreender e a conduzir o processo de
mudanças que almeja, o setor da classe trabalhadora italiana que aqui se
movimenta parece querer romper o ciclo de uma consciência de classe em si e se
movimentar em direção à formação de uma consciência de classe para si,
descobrindo-se parte de uma totalidade maior 22 . Pelos caminhos por onde
amadurece, tal projeto não podia se destacar de uma transformação societária mais
amplo, tomando parte, portanto, no projeto de emancipação da classe trabalhadora
italiana. Assim, a Psiquiatria Democrática Italiana e a experiência de Trieste podem
ser compreendidas como uma das veredas da luta socialista na Itália da segunda
metade do século XX; como expressão setorial, portanto, de um projeto
estratégico23.
O Partido Comunista Italiano (PCI), no pós-guerra, despontava em movimento
ascendente francamente contrário ao dos partidos comunistas da maior parte dos
países europeus, ganhando grande expressão política. Ao lado dos PCs francês e
espanhol, o PCI afirmou-se como força determinante para o fenômeno que ficou
conhecido como eurocomunismo, importante marco da história do movimento
comunista internacional, que influenciou também os partidos de esquerda brasileiros
neste mesmo período24.

22
Utilizamos como fundamento os estudos sobre o processo de consciência de Iasi (2006; 2007).
23
Não negligenciamos aqui o fato de ser o partido a principal forma coletiva de expressão da consciência de
classe. Contudo, como ficará mais claro no decorrer do texto, tanto para o eurocomunismo quanto para a então
nascente EDP, os movimentos sociais são tomados como importante componente da formulação estratégica, de
tal modo que, neste ciclo histórico, é possível apreender o desenvolvimento do seu processo de consciência no
escopo daquele mais global da classe trabalhadora.
24
As referências adotadas para esta parte do texto são os trabalhos de Dantas (2014) e Motta (2014).

10
O projeto estratégico da luta de classes na Itália que se afirmava no momento
de que estamos tratando conectava-se a este fenômeno. A realização de amplas
reformas no seio do Estado, provenientes de demandas dos movimentos das
massas organizadas, fundamentava a concepção de democracia eurocomunista.
Também não é casual que seja democrática a qualificação da psiquiatria em sua
versão reformada tal qual propunha o movimento em que se encontrava Franco
Basaglia. Tal referência torna-se útil, então, para apreendermos como este projeto
ganha expressão na experiência italiana de reforma – desdobrando possíveis nexos
entre o Movimento Antimanicomial e o Democrático-Popular.
A busca por reformular as relações entre socialismo e democracia marca
constitutivamente o desenvolvimento do eurocomunismo. Sob impacto dos famosos
crimes de Stalin divulgados pelo relatório Kruschev no XX Congresso do PCUS em
1956, o VI Congresso do PCI, que aconteceria no mesmo ano, foi marcado pela
afirmação de um “caminho italiano ao socialismo”. A autonomia perante a
experiência soviética e diferenciação dos caminhos do chamado “socialismo real”
seria a busca permanente dos eurocomunistas, que tendo também como fermento
os processos de luta contra o fascismo, propunham uma via democrática para o
socialismo. As novas experiências em marcha também recusavam os rumos da
Social-Democracia, por não terem ultrapassado os marcos de uma experiência
reformista no interior do capitalismo25.
A noção de democracia progressiva, de Palmiro Togliatti26, ganha centralidade
no nascente eurocomunismo, propondo um regime democrático aberto e plural,
onde conviveriam as mais diversas forças e partidos políticos – à margem da qual
estariam apenas os fascistas. Altamente permeável às demandas sociais, tal regime
se fundaria na participação ampla das massas organizadas. Na construção do
caminho ao socialismo, a disputa no Estado não seria suficiente, este deveria refletir
o conjunto do país, pela incidência direta das massas organizadas, aptas a disputar
concretamente o exercício do poder. Assim organizada, a classe operária poderia


25
Os esforços de diferenciação que a movem são relevantes se desejamos compreender os caminhos da classe
trabalhadora em suas lutas e buscas teóricas na Europa do pós-guerra; buscar compreendê-los em suas
sinceras intenções pode servir de vacina contra leituras mecânicas e deterministas acerca de seus rumos e
desfechos, hoje facilmente criticáveis. A crítica fácil, contudo, pode reduzir-se a mera crítica moral, pouco
ajudando a compreender os movimentos que aqui buscamos capturar.
26
Destacado militante e intelectual do PCI até os anos 70, com grande influencia para as formulações
eurocomunistas.

11

alçar o estatuto de classe dirigente (tal qual formula Gramsci), sendo a democracia,
em seu caráter progressivo, o instrumento para alcançar esta posição.
O fortalecimento e a evolução da democracia facultariam a realização de
profundas reformas sociais, fruto de conquistas produzidas por lutas de bases, a
incidir diretamente sobre a estrutura do Estado. Com o acúmulo de reformas, e a
transformação progressiva do ordenamento jurídico-político, consolidar-se-ia uma
revolução processual, pela via democrática. A superação do capitalismo dar-se-ia
assim por uma via pacífica: ao ‘extremo’, o desenvolvimento da democracia levaria
ao socialismo. A via pacífica também se fortalecia como contraponto à experiência
soviética, dada a associação comum entre via revolucionária, explosiva, e os
caminhos autoritários que se desdobraram no devir histórico desta experiência.
A democracia progressiva de Palmiro Togliatti parece desaguar ou pavimentar
a via (DANTAS, 2014) para a operação que absolutizaria a democracia como um
valor universal, assim expressa pela primeira vez por Enrico Berlinguer. Figura
central do PCI durante as décadas de 70 e 80, Berlinguer destaca-se na liderança
do partido no período em que o eurocomunismo se consolida na história do
movimento comunista, com forte expressão na Itália e Europa, e vasta interlocução
no cenário internacional. Berlinguer reafirma Togliatti na visão do socialismo como o
próprio desenvolvimento pleno da democracia, amplificando-o. A afirmação da
democracia como valor universal ganha ampla repercussão internacional, assim
como a proclamação de que os diferentes países deveriam buscar caminhos
próprios para a construção do socialismo. No Brasil tais noções ganharam eco por
meio das formulações teóricas de Carlos Nelson Coutinho, importante intelectual
orgânico da classe trabalhadora brasileira, declaradamente atravessado pela
experiência eurocomunista.

3. A questão democrática no Brasil. Em meio a um poderoso campo


democrático e popular, um movimento
É em 1979 que Carlos Nelson Coutinho publica o texto homônimo à
expressão de Berlinguer, que viria a consagrar a questão democrática também no
contexto da luta de classes no Brasil27. Apesar de apenas em 1989 entrar para o PT,


27
Vale assinalar que para a “A Democracia como Valor Universal”, de CNC, assim como seus desdobramentos
teóricos e políticos, também afluíram o debate em torno da experiência soviética, bem como o germinal processo
de redemocratização.

12
uma década antes o intelectual lançava formulações teóricas que viriam a ser
incorporadas à Estratégia Democrática Popular28.
Também no Brasil a proposta de uma “democracia pluralista de massas”
ganha centralidade, onde “a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores
representados através da pluralidade dos seus organismos (partidos, sindicatos,
comitês de empresa, comunidades de base, etc.)” (COUTINHO, 1980, p. 40).
Forjada na busca por unidade política junto a estas bases plurais, esta democracia
substantiva deveria ser construída de baixo para cima; no processo de
redemocratização multiplicavam-se numerosos sujeitos políticos coletivos, cuja
articulação deveria consolidar um poderoso bloco democrático e popular. Tal bloco
unitário constituiria instrumento de pressão e controle sobre os mecanismos
institucionais do aparelho democrático. A democracia ganhava centralidade assim,
no caminho ao socialismo. De mera tática, passava a estratégia.
Entre o poderoso bloco democrático e popular, também o nascente
Movimento Antimanicomial tomava corpo, sendo já a partir do final dos anos 1970
que se dá o primeiro tempo desta movimentação política. Assumindo como primeira
forma organizativa a de um movimento de trabalhadores de saúde mental, o MTSM
é o primeiro sujeito político do campo da saúde mental no Brasil29.
Com a efervescência política do fim do regime militar, certas concepções
formuladas pelo movimento sanitário se tornam bandeiras e são incorporadas ao
conjunto das demandas sociais expressas pelas lutas da classe trabalhadora,
sobretudo nos movimentos de trabalhadores da saúde, trazendo uma dimensão
politica nova para o movimento sanitário30. No ano de 1976, o Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (CEBES) é criado. Espaço central de articulação teórica e política
do movimento sanitário, o CEBES se tornou referência para as lutas em curso no
campo e o principal canal de divulgação de uma ‘nova consciência sanitária’31.


28
Para uma análise mais aprofundada das relações entre o intelectual e a EDP, ver o artigo de Souza (2014).

29
As referências históricas aqui serão Amarante (1995) e Bezerra Jr (1994), integrantes dos movimentos que
analisam.
30
O movimento sanitário até então se mantinha circunscrito predominantemente a espaços acadêmicos e de
formulação teórica. O surgimento e trajetória do MTSM não podem se destacar, como já mencionado, deste
campo setorial de escopo mais amplo que se consolidava no mesmo período. O também nascente movimento
sanitário aglutinava aqui o conjunto do setor saúde. A abordagem mais pormenorizada da trajetória sanitarista
não poderá ser feita aqui, dado os limites deste artigo, mas o leitor pode encontrá-la em Dantas (2014).
31
Através de inúmeras e fecundas publicações, organização de encontros e conferências, entre diversas
atividades.
13

O MTSM destaca-se, então, como um dos movimentos emergentes neste
cenário. No ano de 1978, a chamada “crise da DINSAM”32 e a ‘tomada de assalto’ do
V Congresso Brasileiro de Psiquiatria demarcaram os primeiros momentos de
aglutinação do movimento. O I Congresso dos Trabalhadores em Saúde Mental é
realizado no ano seguinte, e o movimento segue crescendo e dando sinais de
amadurecimento. A crítica ao modelo asilar dos grandes hospitais psiquiátricos -
encarados como verdadeiros redutos dos marginalizados - se solidifica, seguindo as
trilhas de Basaglia.. O MTSM afirma que
“a luta pela transformação do sistema de atenção à saúde está vinculada à luta dos demais
setores sociais em busca de uma democracia plena e de uma organização mais justa da
sociedade pelo fortalecimento dos sindicatos e demais associações representativas
articuladas com os movimentos sociais” (AMARANTE, 1995, p. 55)
1979 também foi o ano de uma das vindas de Franco Basaglia ao Brasil, em
que o psiquiatra italiano participou de um longo ciclo de conferências e debates com
sindicatos e outras entidades profissionais em alguns estados (BASAGLIA, 1979). A
visita consolida a importância que a trajetória italiana e suas ideias teriam no Brasil.
Nos anos subsequentes novos encontros regionais e nacionais seguem
acontecendo e o movimento passa a incorporar entre as suas pautas a defesa dos
direitos dos ‘pacientes’. A manutenção de uma indústria da loucura começa a ser
compreendida como determinante para a força do aparato manicomial.
No início dos anos 1980, com a vitória de partidos de oposição nas eleições
para governador em diversos estados e com o estabelecimento da cogestão
interministerial33, inicia-se um debate sobre o movimento ocupar espaços na direção
de unidades e em órgãos estatais. Para Amarante (1995), a cogestão representa um
marco no processo da constituição das políticas públicas de saúde, por ser o
momento em que o Estado passa a incorporar setores críticos da saúde mental. A
validade da ocupação tática de espaços no interior do aparelho de Estado é
contraposta pela defesa da resistência por fora deste aparelho. Bezerra (1994)
traduz parte do dilema nos seguintes termos:


32
Fruto de uma greve seguida da demissão de 260 profissionais de unidades psiquiátricas do Rio de Janeiro. A
Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão federal responsável pela assistência psiquiátrica no país, torna-se alvo
das mobilizações de trabalhadores, que encontram eco no sindicato dos médicos e no CEBES, fortalecendo e se
incorporando às críticas ao modelo sanitário brasileiro. O episódio ganha destaque na imprensa e alcança
repercussão nacional: a violência e o descaso no cuidado aos internos das unidades psiquiátricas mobiliza a
opinião pública e é emparelhada à violência e autoritarismo do regime militar, engrossando o coro pela
democratização.

33
Modalidade de convênio que estabelece a gestão compartilhada das unidades hospitalares do Ministério da
Saúde (MS) entre este e o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS).

14
“De um lado a dúvida quanto à tentativa de transformar o asilo de dentro de suas entranhas:
não seria mais proveitoso, mais correto, mais revolucionário construir caminhos alternativos a
ele? Haveria como evitar a neutralização e pasteurização das propostas de renovação
realizadas no interior de uma instituição tão aniquiladora quanto o asilo?” (p. 177)

O embate dividiria o movimento nos anos subsequentes. Na segunda metade


da década de 1980, o aparelho de Estado já está fortemente ocupado por militantes
do MTSM que assumem cargos de coordenação das políticas de saúde mental. É
notadamente aí que se deram certos embates travados nestes anos34. Também foi
neste período que ocorreram a 8a Conferencia Nacional de Saúde (1986) e a I
Conferencia Nacional de Saúde Mental (1987), momentos de ampla participação
social e relativa abertura do Estado (em que pese também serem espaços
marcadamente institucionais), onde amplos debates em torno da participação
popular e da necessidade de autonomia do movimento foram travados35.
No final de 1987 também é realizado o II Congresso Nacional do MTSM, em
Bauru, cidade escolhida “pelo fato de estar sob uma administração progressista,
inclusive com expressivas lideranças do Partido dos Trabalhadores à frente da
Secretaria Municipal de Saúde, o que facilitava (...) a realização do evento” (idem, p.
81). O II Congresso nos parece apresentar um ponto culminante no processo de
consciência do movimento. Vejamos o que diziam os trabalhadores ao seu final, no
texto que foi divulgado como Manifesto de Bauru (1987):
“Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada
no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao
II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo
momento na luta contra a exclusão e a discriminação.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da
violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana,
inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os
serviços nos quais trabalhamos.
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de
exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela
luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora
organizada.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão
desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos
cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos

34
Também neste momento o movimento sanitário vinha enfrentando dilemas semelhantes, quando alguns de
seus intelectuais, identificados com o projeto de reforma, são chamados a ocupar postos na Previdência Social,
face à crise financeira, diante da falência do modelo privatista. O movimento sanitário apostou hegemonicamente
na via institucional como tática principal durante seu desenvolvimento histórico. Dantas (2014) analisa
pormenorizadamente este processo.

35 Tais Conferências foram momentos de intenso debate que mereceriam atenção mais detida, o que não
será possível nos marcos deste trabalho. A leitura de Amarante (1995) é profícua para um panorama deste
momento.

15

de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por
seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.
Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional.
Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental,
aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.
Contra a mercantilização da doença!
Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária;
por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela
organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços
públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios!” (grifos nossos).
O manifesto dos trabalhadores de saúde mental reunidos em Bauru não
apenas revela uma mudança de patamar no seu processo de consciência, mas
parece reconhecê-la como um salto de qualidade, um passo adiante na sua história.
Sua atitude diante de desafios radicalmente novos é de ruptura, a partir da
ampliação de sua compreensão sobre os mecanismos de exclusão e violência do
manicômio, expressão particularizada de uma opressão que é mais geral. De uma
estrutura que ali se atualiza mas que se impõe ao conjunto da sociedade, cuja
superação não se dá, portanto, através de uma ação isolada, mas de uma luta que
deve ser integrada à de todos os trabalhadores.
O MTSM parece mover-se na direção de uma expressão bastante
radicalizada da consciência de classe em si – típica de um movimento particular –,
se deparando com a necessidade de construção de um projeto emancipatório, que
não pode se esgotar na sua própria particularidade. Neste caminho de radicalização,
evidentes traços democrático-populares se apresentam, explicitamente expressos,
inclusive, na defesa de uma reforma sanitária democrática e popular36. A relação que
aqui supomos entre a trajetória deste processo de lutas e a EDP parece, assim,
assumir contornos bastante claros37.
“Por uma sociedade sem manicômios” torna-se a partir deste momento a
consigna do movimento; o manicômio passaria a simbolizar o conjunto de opressões
desta sociedade. Nos anos que se seguem o movimento incorpora também usuários
e familiares entre seus sujeitos políticos, através de suas associações. O MTSM se
torna Movimento Antimanicomial, e a luta pela cidadania dos loucos toma parte em
um projeto emancipatório maior, que quer mudar o lugar social da loucura. O

36
fato de o evento ser realizado numa cidade de administração petista, pelas facilidade aí encontradas, também
não é secundário; revela, antes, a existência de uma articulação política, a despeito de não haver um vínculo
mais formal.
37 o
Vale lembrar que 1987 também é o ano em que o PT realiza o seu 5 Encontro, onde, segundo Iasi (2012), a
EDP ganha expressão em sua forma mais acabada, pela formulação programática. Ano de intensas
mobilizações sociais, mas que também demarca uma inflexão na dinâmica da luta de classes no Brasil,
inaugurando um momento de longo recuo e defensiva.

16
período subsequente é marcado pela reverberação deste processo, que vai se
ampliando com relação ao número de participantes, aspectos organizativos e ações.
Certas expressões começavam a ganhar corpo também no plano institucional.
Os primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são abertos, intervenções em
grandes asilos ganham ampla repercussão. Em 1989 é apresentado o Projeto de Lei
3.657/89, pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG), que seria aprovado em 2001, com
alterações significativas. A lei 10.216, como ficou conhecida, busca assegurar os
direitos das pessoas com sofrimento mental e reorientar o modelo assistencial em
direção à comunidade. Durante os doze anos de sua tramitação diversas leis e
portarias estaduais são criadas, com propósito semelhante38.
A esta altura grande parte das áreas técnicas de saúde mental estavam
afinadas com os princípios da reforma, inclusive no Ministério da Saúde, onde a
pasta passaria a contar a partir daí com a presença de gestores que ao longo de sua
trajetória foram militantes do movimento antimanicomial, em fases distintas do
mesmo. Lideranças do movimento passaram a assumir então cada vez mais cargos,
o que não era encarado como uma contradição, mas percebido, de modo geral,
como consequência positiva e natural, um desdobramento de um único processo –
afinal, quem melhor para implementar o projeto da reforma psiquiátrica que seus
próprios idealizadores? A resposta que confirma o caminho é quase inescapável.

4. Consciência antimanicomial em tempos democrático-populares: momentos


finais
Os movimentos da Luta Antimanicomial brasileira que narramos a partir daqui
nos conduzirão para nossas últimas considerações. A hipótese que nos guia é a de
que o Movimento, sendo parte integrante daquele da classe trabalhadora neste
período, também expressa elementos de sua estratégia hegemônica, a Democrática
Popular. Se correta, tal hipótese poderá contribuir para esclarecer o quanto os
caminhos do desenvolvimento da consciência de classe na Luta Antimanicomial
também se entrelaçaram, em importante medida, inexoravelmente, àqueles
operados pelo conjunto da classe trabalhadora, em seu processo histórico. Cumpre


38 Não por acaso, este também é o período em que o PT começa a eleger bancadas parlamentares e a
conquistar as primeiras experiências de administração municipal, afirmando-se como principal força política de
oposição, no plano institucional.

17

recuperar o foco então para os rumos da consciência da classe trabalhadora no
desenvolvimento da EDP, nos marcos de sua realização.
Em períodos de refluxo da luta de classes, como assinalado no início deste
texto, a efetivação de uma determinada estratégia se dará de modo transformado,
não apenas quantitativamente, mas também qualitativamente – a cautela se
transformando em acomodação, a coragem em oportunismo, a luta pela
emancipação humana se convertendo em luta pela “emancipação possível” etc. Em
última análise, as coisas se tornando seus contrários... Partilhamos da hipótese, a
que aqui passamos expressamente, então, de que a realização da EDP tem se dado
no Brasil nos marcos de uma democracia de cooptação 39 , em um caminho de
conciliação de classes que, não levando a um projeto de transição ao socialismo,
tem representado o seu apassivamento no interior da ordem burguesa, e o
amoldamento às suas instituições (IASI, 2006, 2012; DANTAS, 2014).
Um processo não deve nunca ser julgado pelo que se apresenta como seu
produto final. A história não pode ser encarada mecanicamente, como se a origem
de um transcurso pudesse conter um fim pré-determinado. O problema das leituras
mecanizadas e deterministas não é apenas a medida em que se tornam
empobrecidas nas análises da realidade, mas no quanto enfraquecem as
alternativas de superação do real que buscam apreender. Assim sendo, acabando
reduzindo a crítica a conteúdos meramente morais. Não pretendemos negar aqui,
portanto, que o objetivo emancipatório estivesse presente nas origens do projeto
democrático-popular – ainda que seu desenvolvimento tenha demonstrado limites
intrínsecos à maneira como se realizou, representando o amoldamento da classe à
ordem que pretendia negar. A radicalidade inegavelmente presente nos processos
de luta antimanicomial, tanto na Itália quanto no Brasil, também parece expressar o
que aqui tentamos assinalar.
A radicalidade da reforma italiana – a própria medida em que foi bem-
sucedida – não se fez acompanhar por um projeto emancipatório do conjunto da
classe trabalhadora. Isso não se dá sem efeitos. O descolamento entre a proposta
de transformação das relações sociais em torno da loucura e este projeto

39 A categoria “democracia de cooptação” é cunhada por Florestan Fernandes ao estimar possíveis
caminhos da burguesia para consolidação de sua hegemonia (IASI, 2013). Tratar-se-ia de um “cenário [em que]
a ordem poderia oferecer pouco aos trabalhadores em troca de sua aceitação da ordem burguesa, mas mesmo
este pouco seria considerado muito pelos setores burgueses no controle do Estado” (p. 10), pensada por
Florestan como caminho pouco provável, considerando a conjuntura que analisava (meados da década de 70). A
categoria parece mostrar-se relevante, contudo, para a compreensão do presente.

18
emancipatório – alertado como impossibilidade estrutural pela Psiquiatria
Democrática, vale lembrar – terminou recolocando novos limites às experiências no
próprio campo, constrangidas aos marcos da ordem. Se a natureza da violência
psiquiátrica foi encontrada por Basaglia na natureza do próprio capitalismo, se a
“solução” para este “problema”, nos seus termos, não poderia estar encerrada no
manicômio, ela igualmente não caberia nas transformações internas ao campo. Por
isso apenas a tomada de consciência da opressão permitiria a emancipação do
louco.
Que caminhos tomou a consciência dos movimentos antimanicomiais em seu
devir histórico, inseridos, como estavam, num projeto estratégico que pretendia a
democratização do Estado capitalista, nas condições em que se realizou? Cumpre
retomar, a partir de tais questões, o curso das conquistas antimanicomiais.
Falávamos de um momento em que a Reforma se consolidava na direção das
políticas públicas em saúde mental, com a crescente ampliação da rede substitutiva
ao hospital psiquiátrico e uma gestão afinada com a direção reformista.
Também os espaços de formação em sintonia com a luta antimanicomial
começavam a se multiplicar; chegam ao novo e estimulante campo trabalhadores já
identificados com o projeto, muitas vezes atraídos por ele – independente de terem
participado do movimento de sua produção. O próprio cotidiano de trabalho passa a
ser compreendido como espaço da militância antimanicomial. Processo que parece
se fazer acompanhar, porém, de um esvaziamento do espaço de luta política, de
construção cotidiana do movimento social, cujo caminho começa a se dar no sentido
oposto, de crescente esvaziamento e fragilização. Se no âmbito das políticas
estatais o projeto da Reforma Psiquiátrica caminhava a notáveis passos largos, com
relação ao Movimento outras contradições se colocavam. Os últimos anos haviam
sido marcados por dificuldades importantes. Parte delas assim relatadas por uma
militante:
“Na carta de Piatã, do encontro de Salvador [I Encontro], afirmava-se claramente o princípio
da autonomia do Movimento Antimanicomial diante do Estado, dos partidos, das
administrações; da mesma forma, estabelece-se a diferença entre o que são os serviços
substitutivos – órgãos do poder público, mais ou menos afinados com a lógica
antimanicomial, e os núcleos, organizações autônomas de um movimento social. (...)
Contudo, essa distinção frequentemente se dilui. (...) De algo podemos estar certos: esses
núcleos, embora certamente existam, estão longe de serem numerosos o suficiente para
ocupar o lugar fundamental que lhes atribuímos (...)” (LOBOSQUE, 2003, p. 27-28, grifos
nossos)
O texto revela dificuldades que vinham sendo enfrentadas pelo movimento,
face ao crescente processo de institucionalização das políticas de saúde mental
19

identificadas com a Reforma Psiquiátrica. Por um lado o esvaziamento (ainda
relativo) diante do número de equipamentos estatais, que não se acompanhava pela
ampliação da participação, como projetado. Por outro uma certa diluição frente ao
aparelho de Estado, uma aparente dificuldade em diferenciar-se dele. O V Encontro
do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), realizado em 2001 (Miguel
Pereira/RJ), assiste a um drástico agravamento das dificuldades, culminando com o
abandono de uma das plenárias por parte dos militantes. O grupo que se retira
termina por fundar uma nova articulação antimanicomial, consolidando um racha. No
mesmo ano em que é aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica, o já fragilizado
Movimento Antimanicomial divide-se em dois, acentuando uma curva que já
descendia.
Chegamos assim a um aparente paradoxo. O que seria, por suposto,
precisamente o êxito das lutas do movimento, as inúmeras conquistas no plano
institucional – legislativas, nas políticas públicas, construção de rede substitutiva etc.
– parece processar num mesmo compasso a fragilização de sua força política e da
capacidade de manter-se como motor de um processo de transformações. Uma
certa drenagem para o aparelho de Estado, em seus diversos dispositivos, parece
subtrair do movimento sua condição de organismo vivo na luta, comprometendo sua
capacidade de ação. A consolidação da Reforma como direção da política pública de
saúde mental parece se afirmar, assim, em um vetor contrário ao que acompanha o
movimento social que a impulsionou, que míngua dramaticamente a partir de então.
A história do Movimento Antimanicomial parece confirmar que não é de modo
linear que se move a consciência (IASI, 2006). O que se apresenta como uma
relativa ampliação da consciência antimanicomial (expressa também na
materialização de demandas e bandeiras do Movimento) parece ser também a um
só tempo o seu constrangimento (aos mesmos limites institucionais que materializam
esta ampliação). Todos são e não são militantes antimanicomiais. No desenrolar do
processo histórico do Movimento Antimanicomial, parecemos assistir a uma
reinstitucionalização da sua consciência, em uma nova qualidade.
Se tanto para a Psiquiatria Democrática quanto para o Movimento
Antimanicomial, nos momentos iniciais de seu curso, a dimensão estratégica da
construção de um projeto emancipatório estava claramente colocada, nos anos que
se seguiram esta dimensão parece gradativamente se esvair ou no mínimo ter seus
tons desbotados. A “dimensão cultural”, pertinentemente valorizada enquanto parte

20
de um projeto de transformações societário, tanto em escritos italianos quanto
brasileiros, parece ganhar uma certa autonomia com relação aos mecanismos que
lhe produzem, em sentido aparentemente diverso daquele que havia sido descrito
por Basaglia, quando analisa a psiquiatria enquanto ideologia. Se o debate
estratégico se desbota neste momento, quinze anos depois ele sugere ter
desaparecido quase por completo. O movimento parece retornar, assim, à sua
particularidade, a uma dimensão particular de ser movimento. Movimento que reflete
um recuo da consciência que é do conjunto da classe trabalhadora, presente tanto
no devir histórico a partir da experiência eurocomunista, como, em nosso caso, no
desenvolvimento e realização da EDP.
O caráter militante se acentua como marca do cotidiano no trabalho das
politicas públicas, diante do avanço da precarização da rede de saúde mental, que
não raro torna a sustentação de uma direção antimanicomial de trabalho
verdadeiramente voluntarista, solitária, inviável. Evitar a internação passa a
depender do empenho individual de técnicos e equipes muitas vezes adoecidas e
despotencializadas. Não são raros os CAPS que não conseguem sustentar essa
direção, ambulatorizando-se ou terminando por banalizar o recurso à internação. A
sobrevivência do manicômio, na convivência com uma rede substitutiva precarizada
e privatizada, leva o horizonte antimanicomial a retroceder cada vez mais ao seu
programa mínimo – resistir aos asilos concretos, em meio a resignadas apostas na
sua humanização.
Chegando ao final deste trabalho, difícil evitar a questão: se o manicômio não
é reformável, seria o capitalismo? Um processo de reformas que passe exclusiva ou
centralmente pelos espaços do Estado pode conduzir ao projeto emancipatório que
a classe trabalhadora almeja construir, enquanto classe independente do capital?
Tais questões não devem induzir respostas fáceis. Se hoje são colocadas, elas só o
são porque partem dos acúmulos históricos desta classe em seu processo de luta;
no último período, de seus embates em torno das experiências democráticas. Longe
de presumir uma resposta definitiva, o mapeamento que aqui trazemos, ainda de
forma inicial, serve antes para abrir caminhos e ajudar a colocar questões que
consideramos fundamentais para o debate do presente.
Os resultados produzidos ao longo da história dos movimentos
antimanicomiais, assim como do conjunto da classe trabalhadora, não esgotam
necessariamente as possibilidades que estavam contidas em gérmen nas lutas onde
21

foram formuladas; mostram, antes, o modo como se desenvolveram nas condições
próprias da luta de classes. Inventariá-las e fazer a sua crítica, compreendendo seus
limites e possibilidades, em movimento, torna-se indispensável, contudo, se
pretendemos seguir (re)construindo os caminhos que nos levarão a uma sociedade
sem manicômios, livre de quaisquer opressões. Nos marcos de Basaglia:
“Nós queremos ser psiquiatras, mas queremos ser sobretudo militantes. Ou melhor,
queremos transformar, mudar o mundo. E podemos transformar, mudar o mundo, através da
nossa especialidade, através da miséria dos nossos pacientes, que são uma parte da miséria
do mundo” (BASAGLIA, 1979, p. 29)

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