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Toda a loucura é arte?

Análise crítica de um eufemismo romântico Achilles Delari Junior

TODA A LOUCURA É ARTE?*


análise crítica de um eufemismo romântico
Achilles Delari Junior**

1 Um ponto de divergência*** 2 Do pleonasmo à metonímia


Partirei aqui de um emblemático enunciado de Gregório Penso que quando o autor diz “pleonasmo”, para dar a
Baremblitt em seu texto “Patologia. Arte. Terapia. Cura” ver que “toda loucura já é arte”, pode também emergir,
(2006), como fragmento representativo de outras ques- ao invés (ou além) disso, uma “metonímia” da parte pelo
tões às quais ele não se refere, mas que emergem da sua todo. Ou seja, nem tudo na loucura é só arte, algo dela o
leitura como relevantes para o debate atual em psicolo- pode ser, mas este algo passa a representá-la no seu
gia e saúde mental. Trata-se particularmente de uma conjunto: “toda loucura já é arte” pode soar como “lou-
afirmação nuclear sua de que o trabalho com as artes cura é arte”, “tudo na loucura é arte”, “arte é o todo da
junto a pessoas sob o signo da “loucura” pode ser consi- loucura”. De modo que, supondo que fosse a arte algo
derado um pleonasmo, visto que a loucura como tal já intrinsecamente “benéfico” às pessoas que a produzem
operaria seus processos semió- e fruem, tudo de “maléfico”
ticos do mesmo modo que a que na loucura porventura
produção artística, sob o para- “A arte não é um comple- pudesse haver seria
digma talvez da linguagem oní- mento da vida, mas o resul- extrínseco à sua própria
rica. É o que se sintetiza no definição – a loucura seria
enunciado: “Tal vez por eso ha- tado daquilo que excede a vi- apenas mais um bem
blar acerca de, y practicar Arte da no ser humano” cultural entre outros e não
terapia sea, al mismo tiempo, também um processo que
una estrategia respetable y un L. S. Vigotski (2003, p. 233) causa sofrimento e decrés-
pleonasmo. El Arte es cura, si cimo de qualidade de vida
por cura se entiende la restaura- como outros males dos quais
ción de un concepto de locura que siempre fue la salud a humanidade ainda padece. O eventual sofrimento, se
de los artistas” (BAREMBLITT, 2006, p. única). Assim, houver, seria advindo exclusivamente de algum tipo de
está se dizendo que a arte já é loucura e que nos artistas acidente ou impostura alheia a ela, ou à sua gênese. A
já haveria uma loucura que é saúde ou cura. Deduz-se não ser, é claro, que se levante, desde já, a possibilidade
daí que o trabalho com artes junto a pessoas sob a de- de não haver para a arte só a finalidade e a capacidade
signação de “loucos” (o autor reprova o termo “pessoas de proporcionar alegria, elevação, composição, potência
com sofrimento mental” como sendo eufemismo) seria de vida, mas também tristeza, rebaixamento, decompo-
então o de lhes potencializar a mesma loucura, estando sição e impotência – algo a ser pensado, a seu tempo,
a arte nela implícita. Sob minha ótica, gostaria de dispu- quanto à própria definição de arte posta em jogo. Cer-
tar essa apreciação tanto sugerindo um caráter não ex- tamente, restará perguntar, frente a isso, se há como
cludente da figura de linguagem posta em jogo na rela- sentir ainda desejo de que as paixões alegres predomi-
ção “arte e loucura”, quanto questionando alguns de nem, de que a potência de vida se amplie e de que pos-
seus desdobramentos semânticos relativos à práxis te- samos compor mais com o mundo, ou se tal aspiração
rapêutica – inserindo na arena desses signos uma breve está desde já condenada a afundar no mar revolto do
crítica à cosmovisão romântica própria ao discurso que atra- relativismo cultural, epistêmico, estético e ético da con-
vessa o fragmento ora tomado como ponto de partida. temporaneidade – mas isso é para mais adiante. No
momento, o ponto chave, para aquilo que buscarei arti-
*
cular em seguida, é o de que mesmo que admitamos
Para fins de referência: DELARI JR., A. Toda a loucura é arte? Análise crítica
de um eufemismo romântico. Umuarama. Mimeo. 2008. 14 p. todos os devires da loucura como sendo um tanto arte,
**
Psicólogo pela UFPR, Mestre em Educação pela Unicamp, na área “Educa- também seria preciso assumir que em cada vivência
ção, conhecimento, linguagem e arte”. E-mail: delari@uol.com.br

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singular sob o signo da loucura nem tudo é apenas arte – não tão belo assim, como dor e sofrimento, como angús-
não se essa palavra ainda guardar certa especificidade tia e desespero, algo que a franca fantasia de que tudo
conceitual que a possa definir como tal em inter-relação se resuma a ver “elefantes rosa flutuantes” pode dene-
e contraste com outras realidades propriamente huma- gar. Cabe ver que, sobretudo, falas como a dessa moça
nas. Hegel teria afirmado que “quando se diz que algo é cumprem mais uma função retórica num discurso, senão
tudo, esse algo é nada”1 e entendo que nisso ele estava ingênuo e panfletário, ao menos um tanto acrítico e
correto, do ponto de vista da lógica de construção das fantástico, fantasioso, fantasmático. Em contrapartida,
nossas próprias categorias verbais. Se tudo for arte, na- um relato que obtive de um homem então sob o signo
da é arte. Se tudo for loucura, nada é loucura. Se uma da bipolaridade3 indica significações para sua própria
for a outra, uma das duas pode deixar de ser signo de compreensão da loucura, sua função e seus efeitos, bas-
algo que não apenas de outro signo. tante distintas das sugeridas no discurso da jovem estu-
dante. Ele contou-me algo de uma dentre as suas muitas
3 Da metonímia ao eufemismo experiências com a paranóia, mas tratava-se de uma
ideação delirante e não alucinatória, como a construída
De metonímia pode-se passar, contudo, também a certo pela retórica da moça que acabei de narrar.
eufemismo, quando ao invés de dizermos que uma pes- Estava ele com sua namorada, na casa dela, e algo
soa vive uma situação de loucura, dissermos apenas se dizia sobre um calombo pronunciado na sua nuca,
“veja, trata-se de lembrou então
um artista, ape- que um pro-
nas não se com- fessor de ana-
preende sua lin- tomia lhe dis-
guagem, sua esté- sera que a
tica”. Isso me re- parte corres-
mete à fala de pondente no
uma jovem estu- crânio indica-
dante que, com va relação com
aspirações since- a glândula pi-
ras de crítica e en- neal (FIGURA
gajamento social, 2). Ela riu, e
declarada simpa- lhe disse “o
tizante da esqui- homem da pi-
zoanálise, disse- neal grande”...
me uma vez, no Alguns minu-
contexto de uma tos depois, de
discussão sobre modo aparen-
ideologia: “ora, se temente inex-
o louco vê elefan-
tes cor de rosa FIGURA 1: “Las tentaciones de San Antonio” de Salvador Dali plicável, logo
flutuantes como após um pe-
2
balões, que se tem de dizer a ele que isso não é real?” . queno gole de vinho, de cerca de um quarto de taça, seu
Uma tentativa autêntica de proclamar retoricamente o pensamento se desprendeu e passou a elaborar uma
direito a codificar o mundo em diferentes linguagens, teoria de conspiração na qual a moça e seu irmão, tam-
mesmo as mais surreais, tal como faria Salvador Dali bém presente no instante de beber, tramariam matá-lo
com seus leves elefantes, com compridas pernas de in- para extrair sua glândula pineal e vendê-la no tráfico de
seto (FIGURA 1). Contudo, não é esse apenas o ponto, órgãos, e tudo estaria dado desde o início, muito antes
mas antes certo romantismo frente ao que estaria sob o de ele pronunciar uma única palavra sobre o assunto. Tal
signo loucura, ainda a metonímia da parte pelo todo. situação fazia recobrar várias outras similares já vividas e
Mas quem disse que loucura é exatamente ou apenas um grande pavor se instalou nele nesse instante. Bus-
pintar belos quadros na tela da imaginação? Corre-se o cando, com todas as forças, controlar os impulsos que as
risco de derivar para o eufemismo: ali pode haver algo idéias lhe indicavam, necessitou pedir para ausentar-se

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sem dizer o motivo, além do de que não passara bem ção atual no mundo, mas na estrutura e dinâmica sem-
com o vinho, pois estava já antes muito sensível. Foi pre ainda atravessando e instituindo uma vivência pes-
para casa onde experimentou uma noite longa e terrível soal. Fosse assim, todo o sofrimento, de algum modo já
de insônia, temendo ainda ser morto pelos próprios pais instalado, magicamente desapareceria desde que, por
a quem também ama muito e lutando com a paranóia, benevolência ou solidariedade, a apreciação do socius
tentando contrapor-lhe a megalomania: se era tão espe- “deixasse” o pensamento ser pensado. Desconsidera-se
cial para que muitos o quisessem matar, devia ser tam- assim que a própria lógica interna do delírio no instante
bém suficientemente especial para que alguém o esti- singular de sua significação já possa se apresentar como
vesse protegendo... E esse foi seu bálsamo, sua saída indesejável e triste, isto é, impeditiva da potência de
simbólica e afetiva, naquele dia, após horas de agonia. alguém compor com o mundo, de ir ao encontro do que
Contou-me, no entanto, que raras vezes houve saída lhe é aprazível.
assim bem sucedida para esses seus medos, sendo mais O talvez eufemismo dos “elefantes cor de rosa”
comum criar situações constrangedoras para si e para as pode ter a ver com o que denomino como um possível
pessoas a quem passava a temer, numa espiral crescen- influxo contemporâneo de uma cosmovisão romântica
te só interditada por no trato com o
alguma intervenção tema da loucura.
médica, que logo de- O romantismo,
pois o poria pros- não só no sentido
trado em depressão do senso comum,
circularmente... E, mas no dado pela
sobretudo, expres- estética literária,
sou a dor e o so- como em Arnold
frimento por ter que Hauser (1998) em
se afastar do que lhe sua obra “História
era aprazível, nesse social da arte e da
caso, a presença e o literatura”, impli-
carinho da namo- ca a agregação de
rada, em função do certos índices nu-
delírio persecutório. ma alegoria pecu-
Nesse momento, su- liar da condição
giro que certa her- humana. Índices
menêtica talvez freu- como a valoriza-
diana da castração, ção do irracional,
mesmo que emirja da figura da cri-
por puro hábito, seja FIGURA 2: Localização da glândula pineal – aquela que Descartes ança como ser
posta à parte, para via como a sede física da união entre o corpo e alma livre e espon-
que não circulemos tâneo, da genia-
no lugar comum de uma metodologia de análise seme- lidade indomável, da autenticidade do selvagem, da
lhante a um cargueiro sem leme, que transporta os mais potência e pureza da natureza tanto quanto da busca de
diversos conteúdos, mas é inapto para conduzi-los a retorno a ela, da elevação do artista, do isolamento vo-
algum destino deliberado. O ponto assim é outro e mais luntário dos solitários, entre outros traços que talvez
essencial: o que está sob o signo da loucura não promo- pudessem ser condensados na forma de certa regra lite-
ve só alegria, no sentido que Espinosa (1979) dá ao ter- rário-filosófica do “predomínio do dionisíaco sobre o
mo. Se o delírio real da glândula pineal é arte, não o é do apolíneo”. Não há que questionar aqui as contradições e
mesmo modo que a fictícia alucinação dos elefantes cor talvez distorções implícitas à arena de cada índice des-
de rosa. Desconsiderar isso pode ser incorrer em eufe- ses. Poderíamos apenas lembrar as três fases do desen-
mismo e omissão: “deixe que pense de modo delirante, volvimento da alma humana no Zaratustra de Nietzsche
esta é a sua linguagem poética”, como se ser poético ou (1978) para sentir algo desse pathos romântico: primeiro
mesmo hilário para quem frui de fora resolvesse algo do o camelo que atravessa arduamente e com poucos re-
tormento de quem o produz, na gênese desde sua inser- cursos; depois o leão que é chamado “eu quero” lutando
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contra o dragão kantiano do “tu deves”; e, por fim, a Retomando o exemplo do meu conhecido diagnos-
criança posta como o auge da evolução, por assemelhar- ticado como bipolar aos seus trinta e dois anos, qual a
se ao artista em sua inalienável liberdade criadora. O operação semiótica posta em jogo na poética de seu
romantismo satura estas cores com o foco luminoso de “delírio paranóide”? Tenho notado que aí incide, sobre-
sua própria cosmovisão. Sob tal luz, pouco ou quase tudo, a hipérbole, a figura que opera pelo exagero. Um
nada valeria perguntar sobre algo da dignidade e força exagero orgânico-semiótico geral na oscilação entre os
do dragão, tampouco sobre eventuais matizes de de- extremos, inação e agitação, hipersonia e insônia, de-
pendência, egocentrismo ou despotismo na atitude da pressão e mania. Mas também exageros semânticos
criança. Talvez não descolado da tendência contempo- específicos em cada pólo, sobretudo no extremo da ma-
rânea, moderna, ao privilégio do indivíduo e seu sucesso nia, com a paranóia (exagero de perseguição) e a mega-
pessoal, esteja o sucesso da ideologia do romantismo ao lomania (exagero de presunção), e no extremo da de-
também prezar tanto a solidão, o isolamento e a des- pressão com a ideação suicida (exagero de morbidez) e o
crença ou desprezo pelas organizações coletivas. No auto-moralismo (exagero de julgamento). A exegese da
mesmo livro em que se fala da criança como última eta- arquitetura semiótica da chamada bipolaridade não vem
pa, de modo um tanto quanto paradoxal, se conclamam aqui ao caso, até porque o que está sob este signo, tanto
os solitários da terra para que um dia formem um povo: quanto o que está sob o signo da loucura de modo geral,
“Vós solitários de hoje, vós que vos apartais, havereis apresenta configurações nômades, rizomáticas, se assim
um dia de ser um povo: de vós, que vos elegestes a vós se preferir dizer, dificilmente nomeáveis com uma única
próprios, há de crescer um povo eleito: - e dele o além- palavra. No limite, não coincidentes, nem tampouco
do-homem” (NIETZSCHE, 1978, p. 234). Povo de solitá- exatamente redundantes ou repetíveis, pleonásticas.
rios! Ainda então “solitários”? Ainda assim “povo”? Tudo Contudo, mesmo atendo-nos apenas ao exemplo da
se dá, paradoxo retórico à parte, sem dedicar-se a míni- glândula pineal, notamos que a situação flagra uma ope-
ma atenção para a contradição básica de que nenhuma ração semiótica hiperbólica, não só na estrutura do e-
criança sobrevive ou se desenvolve sem o suporte de um nunciado, mas, sobretudo, no conteúdo afetivo, sensível
outro social. Trata-se, certamente, de um discurso que do episódio... A dor do medo, o tremor, a sudorese nas
não pretende nenhum rigor ou coerência, posto que se mãos, a dilatação das pupilas, a respiração ofegante, a
auto-outorga certa “licença poética”, permeada marca- ardência no peito, a impossibilidade de dormir, descan-
damente por um pathos trágico, ou por uma paixão que sar, desligar, mesmo diante do forte desejo de que isso
poderíamos chamar de trágica, na acepção que Aristóte- pudesse ocorrer logo, mesmo na cama deitado com si-
les dá para a tragédia em sua “Poética” (1979b). Ou seja, lêncio e todas as luzes apagadas. A terrível sensação de
um ato mimético que retrata algo que está para além que o tempo se congela nesse sofrimento, que não pas-
dos limites da condição humana. Para confirmar isso sa, que dura para sempre. Assim uma hipérbole de corpo
basta apenas lembrar a tão propagada ideologia do “a- inteiro. Como disse Bakhtin, o homem “se põe todo na
lém-do-homem”. Acrescentando-se que no romantismo palavra” (apud SCHNAIDERMAN, 1996, p.1388), trata-se
a isso se ama como a uma utopia que não se pode abso- de uma palavra de corpo inteiro. Mas essa estética hi-
lutamente alcançar, com relação à qual só se pode fazer perbólica do ato semântico e sensível do delírio paranói-
sucumbir. Sucumbir talvez de modo catártico, purgando de seria exclusiva e/ou precisamente arte? Não é a hi-
as culpas sociais, como é criticado por Boal (1988) quan- pérbole também um forte recurso retórico para os polí-
to à tragédia grega, ou quem sabe sem catarse alguma, ticos de carreira ou mesmo para alguns dos componen-
mas apenas experimentando tão fundo a dor que se tes de uma militância social mais aguerrida, superfatu-
chegue a uma suspensão no vazio ou na resignação por rando qualidades nossas e de nossos aliados, subfatu-
uma vida na qual nada há de digno de ser amado, senão rando as de nossos oponentes? Não seria ela também
a dedicação a fazer nascer dela um dia talvez o além-do- um recurso de linguagem muitas vezes presente ainda
homem. Um pensamento sincrético, talvez mais presen- na ciência ou na filosofia, com seus recorrentes “verda-
te em nossa sociedade do que se possa imaginar, pode- deiro”, “falso”, “correto”, “incorreto”, “tudo”, “nada”,
ria agregar todos esses índices românticos sob o signo da “nunca” ou “sempre”? “Só sei que de nada sei”! “Nada
“loucura”. O louco é o gênio, o solitário, a criança, o se cria, nada se perde, tudo se transforma”! Não estão
selvagem, o dionisíaco, o prenúncio do além-do-homem. estes operadores também presentes nas falas mais coti-
O louco é o artista. Mas que arte é essa que associada à dianas? O que há de especificamente artístico nesse
loucura provocaria um pleonasmo? processo simbólico, nessa semiose, nessa produção de

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significados e sentidos? Penso que seja interessante e curvatura da vara”, formulada por Lênin e parafraseada
desejável pensar numa “estética geral da criação verbal” pelo pedagogo brasileiro Dermeval Saviani; ou ainda (c)
ou, de modo ainda mais abrangente, “estética geral da outros arranjos entre essas duas vias ou para além delas.
criação sígnica”. Isso porque a estética, sobretudo, tem a Por um lado, numa atitude de busca do termo médio
ver com a sensibilidade humana, para o belo por defini- não poderíamos estar nem com uma postura demasiado
ção, mas também para toda a polifonia e policromia do romântica da loucura “o louco é exatamente um artista
mundo, para sua “poliestesia”, por bela ou feia que seja, incompreendido a ser justiçado”, nem com uma postura
mas não indiferente ou “para além” da atribuição de demasiado “realista” “a loucura é apenas e tão somente
valores como “bom” ou “ruim”. Por suposto é interes- uma realidade bastante dolorosa a ser superada com um
sante, mas não restaria ainda algo específico para quan- tratamento”. Nada disso então deixaria de cobrar cho-
do se fala da estética propriamente artística, que não só ques de sentidos entre os pólos e no interior de cada um
o mesmo que se passa na estética de qualquer signo deles. Seria preciso, nessa lógica, buscar um ponto de
cotidiano, político, científico, filosófico, ético ou outro? equilíbrio: “algo de artístico ou criativo, mas também
Se tudo pode ser considerado arte, poderíamos usar algo de doloroso e auto-destrutivo” – uma composição
esse nome para designar tudo o que é humano, não só a de opostos complementares, “a dor de criar e a criação
loucura? Ou a loucura também passará a ser uma defini- da dor” juntos com “o prazer de criar e a criação do pra-
ção primeira da própria condição humana? Considere- zer”. Por outro lado, numa concepção de “curvatura da
mos a idéia de que uma condição sine qua non para es- vara”, é necessário puxar a linha argumentativa para
tabelecer um diálogo seja a de haver diferença entre os outro extremo, para que o que está agora torto venha
interlocutores em função de uma constitutiva polissemia depois endireitar e chegar ao centro... Se a loucura foi e
nas palavras que eles confrontam e compartilham. Se tal ainda é tida como algo áspero, inaceitável, repugnante a
noção tem algum fundamento, não seria mais interes- ser interditado, escondido, desestimulado, curado – pois
sante procurar destacar o que distingue as palavras ou é preciso “trazer à tona quem está no fundo”, caberia
as coisas e o que compõe suas contradições internas, então puxarmos para o oposto e dizermos que é algo
para assim haver diálogo entre elas, do que igualar e suave, aceitável, aprazível a ser liberado, mostrado, es-
equiparar todos os seus devires sob um único signo, no timulado, agravado – pois o problema talvez não seja
limite sempre redundante? “estar no fundo”, mas “não ter ainda ido realmente ao
fundo”. Assim me parece insinuar-se que a tática do que
4 Do eufemismo à metáfora chamo de cosmovisão romântica frente à loucura seja
mais a da curvatura da vara que a do termo médio. É
Essa discussão, mesmo que despretensiosa, não deve certo que muitas vezes há que confrontar o conservado-
seguir adiante sem considerar, ainda que apenas de rismo mediante o contraste, contudo se essa tática é
passagem, o contexto no qual uma eventual romantiza- utilizada para dialetizar a discussão na seqüência, o sen-
ção eufêmica da loucura se dá. Pois concomitante à re- tido é um, se o é para fazer do extremismo não um mei-
corrente banalização da dor humana, seja na forma de o, mas um fim que se esgota em si mesmo, já é outro.
redução à caricatura, interdição de sua expressão ou Como confrontar então uma sutil ingenuidade e
invisibilidade de sua agudez, está também presente cer- um velado pacto do silêncio que podem estar na base ou
to desejo legítimo de compreender a linguagem própria no topo de certa visão talvez romântica e eufêmica?
da dita loucura, como algo significativo socialmente e Trazer para um novo extremismo e jogar na mesa as
relevante do ponto de vista da compreensão da condi- mazelas dolorosas e as profundas feridas ainda não cu-
ção humana de modo geral. Ocorre assim que, entre radas, as quais ninguém parece pretender curar, sejam
esses dois vetores e outros mais, há uma tensão repre- os ditos “tradicionais” sejam os ditos “alternativos”,
sentada, posta em jogo, aqui nessas nossas observações. senão apenas curar com o ato de panfletar que devem
Tensão imanente ao fato de que os signos “loucura” e ser “vistas com outros olhos”, quase como com olhos
“arte” não têm sentidos unívocos e se constituem antes que dizem que ali tão somente não estão ou nunca re-
como “arena de lutas” como também diz Bakhtin, mas almente estiveram? Talvez fosse temerária essa queda
agora em seu “Marxismo e filosofia da linguagem” de braços... Sobretudo porque, sim, muito da dor que
(1992). Nessa luta não está ainda definido o que preva- envolve a loucura deriva de fatores hiatrogênicos, isto é,
lecerá: (a) uma busca de um termo médio, de um equilí- de fatores etiológicos coincidentes com os próprios tra-
brio, como se põe na “Ética a Nicômaco” de Aristóteles tamentos impetrados justo em nome de se livrar a pes-
(1979a); (b) uma atitude como a sugerida pela “teoria da
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soa do mal que a acometia. Dizer que tudo o que gera a mo metáfora da vida, quiçá o drama como metáfora das
dor na loucura é intrínseco à sua própria definição seria relações entre loucura e arte. Ou ainda o drama como a
retrocesso. Contudo, ainda não há na loucura, social- modalidade de arte que de modo, porventura, menos
mente gerada e pessoalmente incorporada, uma dor eufêmico pode metaforizar a loucura, tanto quanto me-
pungente contra a qual combater, nem que seja sequer taforiza a luta que é a vida da qual esta ou aquela loucu-
para amenizá-la? Contrapor extremismo com extremis- ra emerge e à qual ela permanece inalienavelmente
mo não parece o melhor caminho, mas tampouco um vinculada, entretecida.
suposto harmônico caminho do meio parece apaziguar Para desenvolver essa nossa intuição, cabe destacar
as contradições em jogo na arena das palavras chave que a ênfase no conflito também filia Vigotski, salvo
desse diálogo. Tendo a pensar que os vetores opostos engano, a certa estética romântica, não saberia hoje
não podem rumar tranqüilamente para um equilíbrio dizer se via Hegel ou por qual referência, mas a um con-
aristotélico neutro, harmonioso, isento de tensão ou ceito moderno e romântico de drama: o conflito no cen-
conflito. Soa-me mais pertinente retomar a lembrança tro da vida humana, o conflito não como algo a ser bani-
duma herança heraclítica da centralidade da tensão, do ou superado definitivamente pelo equilíbrio, a har-
como a “do arco e da lira”. Sem tensão não há qualquer monia e a total ausência de tribulações, o nirvana, ou
harmonia para extrair da lira, sem tensão a flecha de quiçá por alguma provisória vitória de Thânatos, a pul-
Apolo não é lançada e o guerreiro não é acertado em são de morte. Mas antes tal conflito como algo constitu-
seu calcanhar. Uma tradução mais contemporânea da tivo da condição humana, imanente a ela mesma. Assim
importância do conceito de tensão está na visão dialéti- o seu pathos não indica ser o mesmo que o do roman-
ca da psicologia de Vigotski, sobretudo no seu conceito tismo no sentido que vimos contrapondo aqui, pois no
de drama, exposto em seu “Manuscrito de 1929” (2000). cerne do conceito vigotskiano de conflito põe-se em jogo
O conceito de drama de Vigotski é mais moderno do que a concomitância, sem vencedor definido, mesmo que
clássico. Para os clássicos, sobretudo Aristóteles (1979b), porventura pretendido, entre tristeza e alegria, trágico e
drama é um modo de representar mediante a “ação” – cômico, dionisíaco e apolíneo, dor e prazer, morte e
abrangendo tanto tragédia como comédia, mas não a vida, solidão e companhia. Conflito entre opostos no
lírica. Já para os modernos o foco central do drama é o qual não há um foco axiológico no predomínio dos pri-
conflito que aquela ação envolve, ou mesmo a própria meiros termos, de modo que fossem valorados como
mistura conflitiva de vetores tanto trágicos quanto cô- signos maiores da beleza, da nobreza e da profundidade
micos. Confluência e choque que tratariam de constituir da experiência humana, como sugere a cosmovisão ro-
uma representação mais próxima da “vida como ela é”, mântica, stricto sensu. Na ausência de um termo bem
e menos da vida como idealizada e elevada na figura de preciso, poderíamos nomear tal centralidade do conflito
heróis e deuses (mimese classicamente típica da tragé- mesmo entre a tragédia e a comédia como um roman-
dia, quanto ao seu objeto de representação) ou da vida tismo, digamos, “sério-cômico”, para usar mais um ter-
como caricaturada e rebaixada na figura de animais e mo de Bakhtin (1997) – relativo à dialogia da cosmovisão
pessoas grotescas (mimese classicamente típica da co- carnavalesca, de origem popular. Já o romantismo de
média, também quanto ao seu objeto de representa- tom predominantemente sério e aristocrático, ao qual
ção). Misto entre tragédia e comédia, mas tendo como esse texto se contrapõe tem um duplo aspecto: o pathos
central ainda o conflito no interior dessa mistura... Jogo trágico e a apologia da solidão por um lado, e, por outro,
de forças entre hierarquias opostas de valores, hierar- o eufemismo quanto à condição daqueles sob o signo da
quias opostas de relações de predominância entre afeto loucura, numa certa elisão do sofrimento que nela pode
e razão, tal como se apresenta no exemplo paradigmáti- estar envolvido e na maioria das vezes efetivamente
co de Vigotski (2000) de um juiz que julga a própria es- está. Um tanto se o omite, ao mesmo o tempo se o põe
posa – numa hierarquia o afetivo predomina sobre o num pedestal, quase como que num certo processo de
racional, e ele a absolve, noutra o racional predomina admiração mítica pela “divina loucura”. Mítica não só
sobre o afetivo e ele a condena: o que prevalecerá? Tra- porque puramente ficcional, mas também e principal-
ta-se assim de um confronto ao qual, por não se saber o mente porque irrefletida, acrítica. De modo geral, temos
que vencerá, é inerente certa “suspensão” ou “epokhé”, uma filosofia que insinua uma beleza poética em reco-
uma recorrência à dúvida, constituída e constitutiva de nhecer nossa condição trágica, como em Arthur Schope-
uma imprevisibilidade que sempre se refaz, nunca se nhauer, que teria dito: “melhor do que morrer, só mes-
esgota, senão talvez com a própria morte. O drama co- mo nunca ter existido” – numa visão que de fato, ou na

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raiz, não se mostra tanto como uma forma de pessimis- que seja com um delírio megalomaníaco para que ambos
mo quanto como um elogio ao ato de ver beleza e/ou se anulem e seus efeitos peculiares não prejudiquem a
verdade em postular a degradação como cerne da con- relação com aquilo que lhe é aprazível? Está muito claro
dição humana. Não é de nos surpreender o fato de no que o problema não está absolutamente em ser ilegíti-
atual cenário dito pós-moderno de queda dos projetos mo ou ilógico o delírio. Tráfico de uma glândula que tem
coletivos e descrédito quanto à busca de ampliar os es- grande valor tem muita lógica nos tempos atuais. A ex-
paços da participação do homem na decisão sobre seu pressão de medo de que se a tire tem ainda muita legi-
próprio destino, esse discurso venha fazendo tantos timidade, por sua vez. O próprio Vigotski (1999) destaca
adeptos, sobretudo entre jovens encantados por aforis- o fato de haver “método na loucura”, parafraseando
mos filosóficos dispersos e sem aspiração alguma à coe- Shakespeare (1990) – entenda-se aqui método por lógica
rência epistemológica ou ao compromisso político. Posto interna de funcionamento mesmo sob olhares externos
que não haja contra o que lutar, muito menos como tal processo pareça ilógico. E recorre ainda, nesse senti-
vencer, então nos apraz a fruição estética da derrota, do, em outro lugar, à metáfora de que “nenhum edifício
não como acidente ou contingência, mas como um cará- desaba senão segundo as próprias leis pelas quais foi
ter inevitável da condição humana que, como tal, guarda construído” (paráfrase minha), indicando que aquilo que
inclusive uma beleza, mesmo que mórbida ou triste. Esse apresenta uma aparência caótica na patologia tem, des-
sentido mais radical, profundo, do romantismo não é o de o início, sua lógica de organização interna, com uma
mesmo que o do eufemismo dos “elefantes cor de rosa”, gênese histórico-cultural que se configura de modos
mas ambos guardam relação, ainda que o segundo seja qualitativamente distintos ao longo da vida. Sim, mas a
mais ingênuo e talvez mesmo mais prejudicial à constitu- pergunta, retornando a Artaud, seria: essa lógica própria
ição de uma visão crítica sobre o signo loucura. O eufe- a uma expressão legítima, de algo que nem bem se defi-
mismo do segundo tende a bloquear a crítica mais que a niu ainda, está aí para ampliar a potência de vida da
hipérbole do primeiro, mas tem ainda algo a ver com pessoa naquele momento? Ela permite que tal pessoa
ele, pois se trata, em ambos os casos, de dar um lugar continue próxima daquilo que lhe dá prazer? Permite
peculiar às paixões tristes: seja hipostasiando-as, seja que ela componha mais com o mundo? Artaud, por mais
elidindo-as. Dos dois modos desmobiliza-se o desejo de genial que seja em seu desafio aos diretores, por mais
contrapô-las, de lutar para que elas, já que nunca deixa- pertinente que seja em também, ao seu modo, destacar
rão de existir, ao menos nem sempre predominem sobre que “há método nessa loucura”, como de resto já fizera
as alegres ou as aniquilem. Nos dois casos, então, con- o velho Polônio em Hamlet séculos antes, acaba também
tribui-se para que aquelas prevaleçam. Eis o que há de elidindo qualquer referência às conseqüências dolorosas
comum. que pode trazer o delírio. E acaba, querendo ou não,
Mas como um conceito de drama como conflito transmitindo uma visão idealizada e romântica da loucu-
sem vencedor definido, e das relações da arte com a ra: “quem está sob esse signo não é alguém que sofre”,
loucura como drama, poderia se contrapor às visões “se sofre é só porque não pode expressar seus senti-
românticas trágico-aristocráticas, tanto à radical quanto mentos e pensamentos livremente”. No caso da ideação
à eufêmica? Coloquemos em questão uma breve inter- delirante ao qual já nos referimos aqui, bastaria que se
pretação romântica do delírio, dada pelo grande drama- pudesse expressar o medo, o pavor, “livremente” que
turgo Antonin Artaud, um exemplo emblemático de uma ele não iria se potencializar, mas simplesmente seria um
visão perspicaz, na medida em que parece cumprir certa medo que faria bem, sem medo de ter medo, mas “ape-
função de “curvatura da vara”. Em sua célebre “Carta nas” medo de ter uma parte do corpo extraída a custo
aos diretores de asilos de loucos” ele chega a dizer que: da própria vida? Então, digamos que, caso ele houvesse
“não podemos admitir que se impeça o livre desenvol- decidido expressar seus pensamentos, as pessoas ali
vimento de um delírio, tão legitimo e lógico como qual- presentes apenas deixassem-no dizer seu delírio “livre-
quer outra série de idéias e atos humanos” (Artaud, mente”, sem censura, incentivassem-no, concordassem
1979). Ora, mais uma vez só pode se tratar de a parte com ele... O medo passaria ou aumentaria? Teria o delí-
pelo todo: trata-se de todo e qualquer delírio, ou de um rio que ser confirmado para não contrariar a lógica de
tipo determinado de delírio? Que dizer do delírio para- quem o estava produzindo? Que triste seria... Em tal
nóide que afasta um homem daquilo que lhe faz bem? lógica uma ideação suicida também então seria incenti-
Que dizer de um delírio que esse próprio homem tenta vada a ser posta em prática. Ao contrário, a tática en-
dolorosa e solitariamente a todo custo contrapor, nem contrada por ele foi apartar-se e viver o drama de delí-

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rios opostos em confronto até que se anulassem, ficas- do qual compartilhamos. O que intriga aqui é quanto a
sem por um instante em suspenso e uma relação mais ser pleonasmo, ou seja, redundância. Ora, como pode
potente entre razão e emoção pudesse se estabelecer – algo que é redundante ser então necessário? Se for res-
para que o sono e o descanso pudessem enfim chegar, peitável deve ser algo necessário, mas como pode ser
sempre passageiros, mas pelo menos existentes. Se há necessário o que não acrescenta nada ao que ali já está?
algo de artístico nisso, não é como metonímia da parte “Entrar para dentro”, “sair para fora”, “descer para bai-
pelo todo, nem como eufemismo... Se há uma metáfora xo”, “subir para cima”, sendo pleonasmos, são na maio-
que melhor signifique essa condição parece ser antes a ria das vezes construções desnecessárias, dispensáveis, o
do drama. Mas um drama que remete não à genialidade segundo termo não acrescenta ao primeiro e pode assim
de um artista individual produzindo em seu atelier, com ser desconsiderado a não ser como forma de “ênfase”
paixão, amor, ódio ou fúria, prazer ou dor, exclusiva- mediada pela repetição. Então o que se passa ao “traba-
mente íntimos ao seu ato criador. O drama implica a lhar arte com quem já trabalha arte”? Como é isso? Seri-
ação da representação de papéis sociais variados, de a, assim, um ato de ampliar as capacidades artísticas que
uma mesma pessoa em cenários e situações distintos, ali já estão desde o início? Como seria a ampliação da
com interlocutores diversos. O outro vem compor essa capacidade artística de produzir uma hipérbole de um
arte em parceria ou disputa, seja com ele, para ele ou delírio persecutório ou um delírio megalomaníaco, to-
contra ele. Assim trata-se de uma produção coletiva, mando aqui apenas o nosso exemplo mais próximo na
mais uma vez contrapondo o individualismo, o isolamen- construção deste texto? Seria converter essa hipérbole
to e a solidão privilegiados pela cosmovisão romântica em uma outra modalidade de linguagem mais aprazível
radical, cinzenta, ou elididos pela eufêmica, multicor. para o próprio sujeito que antes produzira a primeira, ou
seria gerar a hipérbole da hipérbole? Penso haver aqui
5 Da metáfora à práxis uma questão central para toda essa incipiente discussão
que vimos tentando, com todos os nossos limites, de-
Dizer que é preferível ter como figura de linguagem para senvolver aqui. Qual seja: a arte com relação a quem
a loucura não o pleonasmo, nem a metonímia, nem o está sob o signo da loucura, tem algo a acrescentar co-
eufemismo, mas a metáfora, não é suficiente, não fecha mo linguagem que ressignifica e/ou recompõe em uma
a discussão. Tampouco seria para fechar a discussão que outra a situação de sofrimento “psíquico” (por mim en-
estas questões vêm sendo colocadas, mas para abrir a tendido já como um momento corpóreo em sua própria
sua polissemia, no movimento inverso ao do “fechamen- definição), ou ela é uma mera redundância, um pleo-
to do universo da locução” denunciado por Marcuse em nasmo, uma repetição de um processo que já está ali
“A ideologia da sociedade industrial” (1978), movimento desde sempre ao qual cabe apenas aceitar, incentivar
de mostrar que as palavras são contraditórias, polissê- e/ou deixar apoderar-se da experiência daquele que já a
micas, arenas de luta, que seu sentido não é unívoco, produz por si mesmo?
transparente, nem tranqüilo, que não se pode dizer tudo A meta dessa suposta redundância “arte-loucura”
de qualquer coisa, que aquilo que dizemos tem conse- (toda arte já é loucura) ou “loucura-arte” (toda loucura
qüências éticas e políticas. Tampouco é suficiente ou já é arte) seria mais a suplantação do sofrimento psíqui-
inequívoco dizer que a metáfora utilizada poderia ser co, ou mais a criação de belas obras a serem fruídas por
antes a do drama, como modalidade específica de ativi- outrem? A pergunta pode parecer descabida, mas há
dade artística, e não como conceito genérico e idealiza- uma diferença entre as duas coisas que se pode resgatar
do de arte. Existem desafios postos a partir disso, desa- com a história da arte, sobretudo nas biografias de gran-
fios que só poderão se desdobrar e potencializar com a des gênios que foram, de algum modo, também conside-
indicação e efetivação de uma práxis. Algo por construir, rados loucos, seja isso visto como pleonasmo ou não. Tal
com todas as dificuldades e sucessos que isso possa im- diferença consiste no fato de que nem sempre a criação
plicar. Algo que aqui não se há de resolver, mas ainda artística faz tanto bem a quem cria quanto a quem frui,
em outras arenas, verbais e não verbais. Mas, ainda com embora muitas vezes esta fruição socialmente aprazível
a finalidade de abrir os horizontes do diálogo muito mais só seja possível postumamente – há alguns grandes ar-
do que de concluir seja o que for, resta algo a problema- tistas que só têm suas obras reconhecidas quando não
tizar quanto ao fragmento de Baremblitt ao dizer que mais agridem os padrões estéticos do tempo em que são
“praticar arte terapia, seja ao mesmo tempo uma estra- fruídas, quando não mais abalam o status quo da socie-
tégia respeitável e um pleonasmo” (2006, p. única). dade em que são assimiladas e nas quais ganham altís-
Quanto a ser respeitável, isso implica um juízo de valor
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simos valores mercantis. Concretamente, personagens esse pedaço de asfalto da sua rua e se o coloque num
como Van Gogh foram retratados por historiadores da museu e assim está feito: temos uma obra de arte retra-
arte como sofrendo muitíssimo no próprio ato de criar, tando “a finitude da metamorfose kafkiana numa relei-
reportando-nos sua criação como processo profunda- tura a partir da sociedade pós-industrial sob o paradig-
mente doloroso. Então como valorar isso? Como o es- ma toyotista nas linhas de produção”! Ou seja, “tudo é
forço de um mártir que se sacrifica para criar algo de arte”... Logo, “nada é arte”, posto que a ela não é neces-
grandioso para a humanidade? A produção do belo co- sária a tarefa de transcender o que quer que seja – levar-
mo uma febril exteriorização de uma dor que não tem nos além de nossos limites não faz mais parte de sua
mesmo como cessar apenas pelo fato de exteriorizar-se? definição, assim: a arte como outros “deuses”, está mor-
Sendo assim, quando pensamos em proporcionar, para ta! Argumentar contra a morte da arte seria resistir na
alguém que sofre sob o signo da loucura, recursos ne- postura de que ela como atividade cultural, como ativi-
cessários para produzir sua arte não só de modo intrap- dade propriamente humana, tem ainda sua especificida-
síquico, mas também extrapsíquico (mediante signos de, tem algo que nos permite fazer dela arte e não ciên-
compartilháveis), o objetivo será a arte como produto cia, e não política, e não religião, e não outra esfera da
social, peça cultural a ser apreciada pelos outros apenas, vida cultural e social pública ou cotidiana. Muito embora
ou também como ressignificação dos conteúdos internos certamente sempre possa haver algo de arte na ciência,
capaz de aplacar ou ao menos diminuir as paixões tristes na política, na religião e no cotidiano. Mas em que ainda
de quem a produz? Creio que no segundo sentido não poderíamos buscar a especificidade da arte em contra-
pode haver pleonasmo. No segundo sentido algo de ponto à sua especificidade ausente nos pós-modernos?
novo se acrescenta à arte que já estava ali, ao drama Dessa vez mais como “curvatura da vara” do que como
que já estava ali. A arte, a criação artística, se coloca busca de um “ponto de equilíbrio” ou de “tensão situa-
como algo que vem acrescentar à loucura, e não apenas da”, mais para criar um conflito na arena social, do que
como algo que já lhe fora inerente desde o início e, por- para já interiorizar todos os seus vetores, dentro da
tanto, configuraria mera redundância. cosmovisão que perpassa a abordagem histórico-cultural
Chegamos aqui ao momento de pensar não só a em psicologia, seria interessante retomar o que diz Vi-
definição de loucura que está em jogo, que parece mui- gotski sobre educação e arte e que talvez nos traga al-
tas vezes elidir o sofrimento, mas também a de arte, que guma luz para o tema das relações entre arte e saúde
parece valorizar apenas seu aspecto porventura trans- mental. Para este psicólogo “a arte não é um comple-
gressor, que talvez tivesse romanticamente em comum mento da vida, mas o resultado daquilo que excede a
com a loucura. Como já foi dito, “se tudo é loucura, nada vida no ser humano” (2003, p. 233). Ou seja, há um sen-
é loucura”, do mesmo modo: “se tudo é arte, nada é tido de transcendência na arte, de um ato de se acres-
arte”. É interessante lembrar a obra “Argumentação centar, de ir além, e não apenas de redundância, pleo-
contra a morte da arte”, de Ferreira Gullar (1993), para nasmo, repetição, do que ali já está dado desde sempre
por em tela a resistência aguerrida de alguns autores no sujeito e, portanto, em suas relações sociais atuais,
críticos contra uma pretensa total dessubstancialização efetivas. Esse excedente de visão e sensibilidade que a
da linguagem artística, promovida, sobretudo, pela ver- arte produz pode ser apropriado e fruído pelo próprio
tente, de resto muito difusa e indefinida, dita pós- artista ou não, como no que se relata sobre Van Gogh.
moderna4. O poeta foca como exemplo a ênfase hiper- Mas a tendência à constituição do predomínio, já que
trofiada no ato de colocar algo no espaço de uma expo- não exclusividade, de uma paixão alegre, isto é, aquela
sição artística como suficiente para tê-lo como arte. To- que aumenta a potência de vida e conduz a compor mais
me-se uma barata esmagada sobre o asfalto pelo pneu com o mundo, está dada como algo intrínseco à defini-
de um carro importado da fábrica Toyota, recorte-se ção de arte posta em jogo por Vigotski.

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O fato de poder haver uma arte triste, ou seja, que gosto então haveria em fruí-la? No caso de promover
leve a decompormo-nos em nós e com o mundo, que deliberadamente paixões desagregadoras, desvitalizado-
diminua nossa potência de vida, que nos faça passar de ras, não seria esta arte antes um mecanismo de domina-
estados mais elevados de nossa experiência afetivo- ção, imobilização e subordinação do interlocutor? Isso
volitiva para uns menos elevados, também não está bem sem entrarmos no mérito da estética agenciadora do
claro para mim. Certamente não é só arte aquilo que ódio como aquela própria do nazi-facismo ou do anti-
provoca um riso fácil, e mesmo rindo nossa potência de comunismo, ainda que não só destes... É com relação a
vida não necessariamente se amplia. Se me coube aqui isso que nos voltamos em nossa crítica ao eufemismo
contrapor a hipérbole ou o eufemismo romântico, uma quanto à “artística loucura”: algo que promove uma
hipérbole ou eufe- paixão triste teria
mismo cômicos tam- como ser arte? Che-
bém não seriam de ga um momento, se
grande ajuda, por é que já não está
mais que o próprio claro desde o início,
riso possa efetiva- no qual cabe marcar
mente também ter a que o mais impor-
função de subverter, tante aqui não é
de fazer-nos “ir além” disputar se há ou
quando contrapõe-se não algo de artístico
ao tom sisudo aristo- na loucura, uma par-
crático e oficial. Des- te no todo, mas
se modo, a obra de perguntar se não há
arte que provoca pro- algo que não seja só
funda tristeza, no isso, algo triste tam-
sentido comum da bém, um sofrimen-
palavra, pode ser to, algo a que a arte,
também a mesma como tal, poderia
que provoca pro- converter em outra
funda alegria, no coisa... E não apenas
sentido espinosano ampliar em forma
da palavra, nem toda de repetição ou
lágrima diminui nossa redundância. Por
potência de vida, outro lado, cabe di-
nem toda dor é vã, zer que esse proces-
assim como nem so de conversão da
todo riso liberta, nem vida em arte não é
todo prazer é sub- direto nem imedia-
versivo. Nesse sen- to, as transições são
tido, se o riso me FIGURA 3: “Gypsy” de Henri Mattise mediadas e envol-
aliena e me paralisa é vem certa tensão,
um riso triste, se a lágrima me impulsiona e me faz ir como se pode deduzir também do que é dito por Vigots-
além é uma lágrima alegre. Mas é difícil imaginar uma ki: “Na arte, a realidade está sempre tão modificada que
obra de arte, por mais cáustica ou cruel que seja a sua não é possível fazer uma transferência direta do signifi-
abordagem, que como linguagem se dirija a diminuir a cado dos fenômenos da arte para os da vida” (VIGOTSKI,
potência do seu interlocutor, que tenha como meta en- 2003, p. 228). Conta-se que, em dada ocasião, numa
tristecer no sentido de aniquiliar, decompor, impedir exposição, Matisse foi interpelado por uma senhora que
que se vá ao encontro do que é aprazível. Se houver, que lhe disse, referindo-se a um de seus quadros (ver FIGU-
finalidade teria? Mesmo que assumíssemos que a arte RA 3): “Nunca vi mulher de barriga verde...”, ao que ele
em si prima por não ter obrigação com qualquer função teria replicado “Minha senhora, isto não é uma mulher;
pragmática que seja, ainda poderíamos perguntar, que é uma pintura”. Na arte a vida não está como tal, como
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cópia, a vida está como significada, codificada, traduzida, converter fagulhas em tormentas. Mas também, por
transcriada, para usar um termo de Haroldo de Campos, outro lado, envolverá uma aprendizagem de reeducar o
pela linguagem artística... Se a arte não é o mesmo que a olhar para enxergar e fruir, sentir e entender, tanto pe-
vida, a vida também não é o mesmo que a arte, embora quenas fagulhas como grandes tormentas... Uma educa-
se relacionem, significando-se uma à outra, como metá- ção do olhar que não se esgota na pura e simples pro-
fora, como hipérbole ou como elipse, como alegoria, clamação panfletária da necessidade de “ver com outros
como a figura que melhor convier à sua proposta em olhos”, pois exige trabalho, formação, apropriação de
cada caso. A arte se põe aqui no limiar de um paradoxo, práticas sociais relativas à nossa própria sensibilidade, e
a vida certamente é categoria mais abrangente que a isso só pode se dar no tempo. Tanto num caso quanto
arte, não se faz nem se frui arte sem se estar vivo, não se noutro a arte teria algo a acrescentar à vida, e não só a
faz arte sem trazer da vida para a sua linguagem ou sem redundar, repetir, reiterar... Caberia ainda relembrar,
fazer tal linguagem atravessar a vivência de alguém, mas talvez retirar do subtexto e trazer para enunciação explí-
poderia então aquilo que está contido na vida, rumar cita, que na concepção vigotskiana de educação estética
para além dos limites dela? Eis um paradoxo constituti- e arte insinua-se uma concepção espinosiana de alegria.
vo, temos aqui um mecanismo semiótico de expansão A arte demonstra estar posta, nesse caso, como promo-
das fronteiras da própria vida, desde ela mesma, é a arte tora de paixões alegres, senão isso, ao menos como
vista como uma modalidade privilegiada de linguagem. promotora da busca de uma relação favorável para o
Estas são, salvo engano, questões pertinentes à homem no infindável jogo dramático entre as paixões
práxis: cabe ficar na repetição da arte, linguagem, dra- alegres e as tristes. Creio que seja o que podemos intuir
ma, já dados, já postos desde o início? Ou cabe contribu- a partir da afirmação de que: “toda vivência poética age
ir para que tais arte, linguagem, drama, se convertam como se acumulasse energia para ações futuras, lhes dá
ainda em uma outra realidade que os transcenda, ou uma nova direção e faz com que o mundo seja visto com
seja, os negue e reafirme em um outro patamar? Ainda outros olhos” (Idem, p. 234). Outra vez a ampliação da
para Vigotski a educação estética busca converter em potência, acúmulo de energia, a prospecção, o lançar
um retorno para o cotidiano, ela tem isso como meta vistas para o futuro, a reconstituição do olhar, a busca
que tenciona com a realidade atual, efetiva, na qual de de uma nova visão – como resultado de um trabalho, de
início se situam educador e educando, tenciona em dire- um processo criativo em que imaginação e realidade
ção de uma realidade potencial... “A beleza deve deixar estão intimamente vinculadas, como se explica na obra
de ser uma coisa rara e própria das festas para se trans- “A imaginação e arte na infância” deste mesmo autor
formar em uma exigência da vida cotidiana, e o esforço (Vigotski, 1987). Ao mesmo tempo, neste mesmo livro, a
criativo deve impregnar cada momento, cada palavra e concepção de atividade criadora como modo humano de
cada sorriso da criança. Potebnia disse de uma bela for- reordenar o real em combinações inéditas, permite não
ma que, assim como a eletricidade não está apenas onde tomarmos a arte somente como repetição do que estava
há tormenta, a poesia também não está apenas onde dado desde sempre. Dialeticamente, o novo comporta o
existem grandes criações artísticas, mas em todos os velho e este também traz o gérmen daquele, mas o pri-
lugares onde a palavra humana estiver. E essa poesia de meiro não se esgota na repetição circular do segundo,
“cada instante” é que talvez constitua o objetivo mais num “eterno retorno”, perpétua reedição do mesmo,
importante da educação estética” (VIGOTSKI, 2003, p. pleonasmo de leis da natureza ou do “destino”.
239). Essa fagulha que está onde toda palavra humana Além disso, se arte, em grego, podia ser denomina-
estiver, pode converter-se em tormenta ou não, para da pelo signo “tekhné” (que indica um “saber fazer”, um
além de uma educação estética uma formação de artis- “como fazer”, do qual porventura teria derivado nossa
tas, mas para que algo como tal educação seja necessá- palavra “técnica”, entre outras), Vigotski, em sua “Psico-
rio deve-se admitir e não omitir que uma “transforma- logia da arte”, amplia bastante essa definição estrita-
ção em uma exigência da vida cotidiana” é ainda literal- mente etimológica, denominando a arte como “técnica
mente “transformação”, ou seja, implica algo por modi- social do sentimento” (1999b, p. 3). Considera-se, assim,
ficar, algo por converter, algo por realizar, algo que não que a arte seja mesmo um “saber fazer” prático, ou seja,
está dado, não está posto. Isso de a beleza “deixar de ser que ela demanda o aprendizado de um ofício, a aquisi-
uma coisa rara” envolverá por um lado uma aprendiza- ção de um domínio da técnica, e não só um puro arreba-
gem de converter a vida em arte, já que arte desde o tamento, por um processo criador inerente ao artista,
início está na vida cotidiana, mas nela não se esgota, cuja origem se possa pretender estritamente inata, or-

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gânica, quando não mágica ou divina. Ademais, trata-se da voz amarela”5: “O método, isto é, o caminho seguido,
ainda de uma prática social, tanto na origem, pois é pre- se contempla como um meio de cognição: mas o méto-
ciso aprendê-la com alguém, quanto na dinâmica de seu do é determinado em todos os seus pontos pelo objetivo
funcionamento, posto que a arte, sendo linguagem, en- a que conduz” (VIGOTSKI, 1991, p. 357). O método no
volve sempre, pelo menos: (a) alguém que a enuncia; (b) caso da arte não seria um caminho exclusiva ou priorita-
um signo enunciado; e (c) um interlocutor, um outro, ao riamente da cognição, mas também e, sobretudo, um
qual este signo se destina e que, desde o início, estabe- caminho que conduz à constituição de sentimentos que
lece parâmetros para a sua composição – de modo que a à cognição se entrelaçam e a ela impulsionam. Entretan-
alteridade, nessa concepção, é vista como imanente à to, nosso foco está aqui no problema metodológico de
própria definição da arte como tal. Por fim, além de ser um possível “objetivo”, ou “meta”, para um trabalho
técnica social, há uma especificidade quanto àquilo que com arte em saúde mental. Haveria alguma meta, a não
ela visa produzir e que reside no fato de que a contradi- ser repetir ou porventura aumentar o que ali já está
ção conteúdo-forma que lhe é própria dirige-se a provo- dado desde sempre? Na visão vigotskiana, tal como a
car, evocar, ou mesmo criar, constituir, emoções huma- entendo, para o homem de modo genérico, a meta não
nas, nossos sentimentos com relação à própria obra, ao há de ser nenhum fantasmático “além-do-homem” ni-
mundo e a nós mesmos. Em complemento a esta defini- etzscheano, nem alguma de suas derivações ideológicas
ção poderíamos destacar, ainda na visão do pensador solipsistas mais camufladas, mas antes o próprio homem
bielo-russo, uma ênfase no fato de que “a vivência esté- como um devir social concreto, real e potencial6. O que
tica organiza nosso comportamento” (Vigotski, 2003, p. nos aproximaria daquilo que Dostoiévski logrou chamar
234). A arte não é assim vista como idêntica a qualquer “o homem no homem” e que interpreto como “o que há
outra atividade humana, ela tem sua especificidade co- de humano no homem”, o que está no alvo de nossa
mo aquela atividade social que se volta para a organiza- própria busca e na raiz mais profunda de nossa existên-
ção do comportamento humano, e mais especificamente cia social. A tomada de posição em direção ao homem,
no que diz respeito aos nossos sentimentos, na direção em direção a nós mesmos, está explicitada em Marx na
da produção de um excedente de visão e de sensibilida- sua “Crítica à filosofia do direito de Hegel”, onde diz que
de. Entendo que pensar tal especificidade nos propor- “É certo que a arma da crítica não pode substituir a críti-
cione pistas para uma compreensão sobre em que pode- ca das armas, que o poder material tem que ser derro-
ria vir a contribuir a arte num dado processo de educa- cado pelo poder material, mas também a teoria se trans-
ção estética ou mesmo para um processo “arte- forma em poder material logo que se apodera das mas-
terapêutico” – se o neologismo não for pleonasmo. sas. A teoria é capaz de se apoderar das massas quando
Pistas na direção de uma reflexão metodológica por argumenta ad hominem, e argumenta ad hominem
ser construída, entendendo que haja o que questionar, quando se torna radical: ser radical é tomar as coisas
na contramão do eufemismo romântico, para o qual a pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio ho-
resposta já está dada na dita redundância: “a loucura em mem” (apud CHASIN, 1999, p. 9). Talvez possamos para-
si é arte”. Tomando a questão do método, nos termos fraseá-lo dizendo que a linguagem da arte não pode por
clássicos de sua relação com a noção de caminho, nota- si só converter a hegemonia das paixões tristes em he-
mos que mesmo que este só se faça “ao caminhar”, sua gemonia das paixões alegres, que só no próprio jogo de
produção envolve também uma direção, um dardo de forças entre elas, como função das relações sociais que
aspiração, uma meta. Dentre os diferentes momentos as constituem, elas poderão configurar correlações mais
constitutivos do método, tomemos aqui o da busca de favoráveis e saudáveis. Contudo, se a arte puder inscre-
definição de uma meta como uma unidade significativa ver-se ad hominem (“relativa ao homem”, “junto ao
nuclear – pois talvez uma diferença importante entre homem”, “adstrita ao homem”), indo à raiz da condição
uma práxis pautada na contribuição de Vigotski e outra humana, que atingida o projeta para além de si como ser
pautada num certo eufemismo romântico que vimos cuja definição não se restringe ao que está sob sua pró-
contrapondo, resida mais na definição de fins do que na pria pele, talvez haja ainda um papel para a criação artís-
dos meios como tais. Karl Krauss disse, em termos poéti- tica nas práticas terapêuticas em saúde mental – que
cos, que “a origem é o alvo”, sugerindo-nos um movi- não seja tão somente o de pleonasmo.
mento que inicia no ato de definir-se onde se deseja Não basta a crítica para mudar as condições materi-
chegar ou que se origina justo naquilo a que se destina. ais, como não basta a arte para fazer com que o homem
Em termos meta-teóricos, diria novamente o “homem vá além de seus limites e construa modos inéditos de

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Toda a loucura é arte? Análise crítica de um eufemismo romântico Achilles Delari Junior

sentir e entender o mundo. É preciso que a crítica se Achiles Delari Junior


aproprie das massas, é preciso que a arte possa ser a- Umuarama, 10 de outubro de 2008.
propriada concretamente pelo homem que a frui e/ou Trabalho voluntário e independente
produz, em co-existência com outras pessoas com as Última revisão em 31 de outubro de 2009
quais se compõe mediante a linguagem dela, em sua Passará por revisões posteriores
acepção radical. A rigor, a práxis como tal não é uma
problemática só da ordem crítico-argumentativa, stricto Agradecimentos
sensu. Aqui, a reflexão sobre ela só pode se colocar co- Agradeço muito aos amigos Jota, Richard, Grazzi, Ester, Janaí-
mo relativa às implicações semânticas de certa cosmovi- la, Vinícius, João e Alysson pela leitura da primeira versão
são romântica para uma dada prática social. Deste mo- desse texto, pelo apoio ao seu intuito ético primeiro e pelas
do, lançamos mão de enunciados que se configuram sugestões de alterações e acréscimos que me orientaram na
somente como esboço da composição de uma meta que busca de torná-lo talvez um tanto mais crítico e inteligível do
orienta e constitui um núcleo metodológico possível, que se mostrava de início.
sendo o próprio método um caminho a ser trilhado, cujo
curso só realmente se estabelece no próprio desenvol- Notas
vimento da ação e, por vezes, só pode ser descrito em 1
Comentário do Prof. Júlio Cezar Soares (em comunicação
detalhe retrospectivamente. Esta meta, tal como já foi pessoal, 1993).
dito, configura-se em termos éticos e políticos como a 2
Essa fala foi feita em espaço de uma discussão pública, não
edificação processual e permanente do “homem no ho- demandando autorização escrita para ser citada aqui. Man-
mem”, mediante uma ação que busque constantemente tém-se, de todo modo, o sigilo quanto à sua autoria e ao con-
um predomínio das paixões alegres sobre as tristes em texto espaço-temporal original.
suas relações dialéticas. Uma hegemonia, mesmo que 3
Esse homem, hoje com 40 anos, teve acesso ao conteúdo de
tensa, do bem estar sobre a dor e/ou sofrimento psíqui- todo este texto, assim como ao de Baremblitt, e autoriza a
cos, e não apenas uma relativização do sofrimento como inclusão do relato sobre seu episódio.
a expressão de mais uma linguagem estética entre ou- 4
Habermas (1990) fala de duas grandes vertentes no pensa-
tras, além ou aquém de qualquer valoração ética. O que
mento dito pós-moderno: os neo-conservadores e o anarquis-
implica, na raiz, a ampliação de nossa capacidade de tas. Com relação à postura estética que parece atravessar as
associarmo-nos e compormo-nos com nossos semelhan- concepções relativas à arte e à loucura às quais nos opomos
tes, com o mundo e, portanto, conosco – não somente aqui, não fica muito claro em qual campo intermediário entre
um livre fluxo de todo e qualquer delírio, já tomado aqui esses dois pólos elas se situam.
como metonímia de “loucura”, como parece reivindicar 5
“Homem da voz amarela” é o apelido dado a Vigotski por
Artaud. Parâmetros esses que demandam a elaboração Sherashevski, um mnemonista de grande fluxo sinestésico,
social de uma terapêutica que vise à promoção de um paciente de Luria, cujo caso foi detalhadamente narrado no
acréscimo, de uma ampliação da potência de vida, da livro “A mente de um mnemonista: um pequeno livro sobre
capacidade do homem de compor com o mundo, com os uma grande memória” (Luria, 2006).
outros e consigo – por parte de pessoas que, em algum 6
Para uma discussão detalhada dos conceitos de “desenvol-
momento, põem-se/são postas sob o signo da loucura – vimento real” e “desenvolvimento potencial” cuja distância
palavra tão imprecisa, passível de ser dita tanto de modo define uma “zona de desenvolvimento proximal”, ver Vigotski
ufanista e relativista quanto coercitivo e dogmático. Em (1989).
síntese, aqui me coube apenas destacar princípios me-
todológicos potencialmente organizadores para tal prá-
xis, como: (a) um conceito de drama como metáfora da
Referências
loucura e da própria condição humana; e (b) um concei- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: ______. Metafísica:
to de arte como técnica social dos sentimentos que se livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo:
volta à criação de um excedente de visão e de sensibili- Abril Cultural, 1979a.
dade. Desse modo, trilhando por veredas de sentido, no
próprio passo que as abre, este texto, como diz a canção ARISTÓTELES. Poética. In: ______. Metafísica: livro 1 e
popular, “termina na hora de recomeçar”. livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cul-
tural, 1979b.

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Toda a loucura é arte? Análise crítica de um eufemismo romântico Achilles Delari Junior

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