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Teoria do Direito

Direito interrogado hoje —


o Jurisprudencialismo:
uma resposta possível?

Estudos em homenagem ao
Doutor António Castanheira Neves

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NUNO M. M. SANTOS COELHO
ANTÔNIO SÁ DA SILVA
Organizadores

Teoria do Direito
Direito interrogado hoje —
o Jurisprudencialismo:
uma resposta possível?

Estudos em homenagem ao
Doutor António Castanheira Neves

Salvador
2012

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Editoração eletrônica: Carla Piaggio | contato@carlapiaggio.com.br
Capa: Amanda da Silva Gonçalves

Conselho Editorial:
Fredie Didier Júnior, Cristiano Chaves de Farias,
Gamil Föppel El Hireche, Nestor Távora,
Valton Pessoa, Rodolfo Pamplona Filho,
Dirley da Cunha Júnior, Maria Auxiliadora Minahim.

Todos os direitos desta edição reservados à Faculdade Baiana de Direito.


Copyright: Faculdade Baiana de Direito.
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SUMÁRIO

PREFÁCIO.....................................................................................................................7

CAPÍTULO 1
O “JURISPRUDENCIALISMO” — PROPOSTA DE UMA RECONSTITUI-
ÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO DO DIREITO ...........................................................9
António Castanheira Neves, Universidade de Coimbra

CAPÍTULO II
PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RES-
PECTIVA INTERSECÇÃO).......................................................................................81
Fernando José Bronze, Universidade de Coimbra

CAPÍTULO III
JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S)
DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?.............................................................109
José Manuel Aroso Linhares, Universidade de Coimbra

CAPÍTULO IV
JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIO-
LÓGICA: UM CONTRAPONTO ENTRE JACK BALKIN E CASTANHEI-
RA NEVES..................................................................................................................175
Ana Margarida Simões Gaudêncio, Universidade de Coimbra

CAPÍTULO V
A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE
UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO NOS ARGUMENTOS DE A. CAS-
TANHEIRA NEVES E DE MARTHA C. NUSSBAUM ......................................... 211
Antonio Sá da Silva, Universidade Federal da Bahia

CAPÍTULO VI
SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZA-
ÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA ................................................. 231
Nuno M. M. Santos Coelho, Universidade de São Paulo

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PREFÁCIO

Os textos aqui reunidos foram apresentados em Seminário realizado na ci-


dade de Ouro Preto, dedicado ao pensamento do Doutor António Castanhei-
ra Neves, que dele participou concedendo-nos, como é próprio de seu caráter
austero mas generoso, a oportunidade de nos falar e de discutir as visões que
trouxemos, sobre seu próprio pensamento, e os diálogos que lhe propusemos,
sempre tendo em vista questões essenciais da experiência jurídica contemporâ-
nea, a partir do ponto de vista de quem vive e pensa o direito, tal como é próprio
da perspectiva jurisprudencialista, que ele funda.
Os organizadores brasileiros deste livro devem expressar a gratidão a to-
dos os professores de Coimbra que dele participam. São, também eles, refe-
rências intelectuais essenciais de nossa formação acadêmica e de nossas pes-
quisas atuais. Pretendemos, com a edição da obra, contribuir para consolidar
os laços que nos unem, na construção de uma profícua teoria do direito em
língua portuguesa.
Em especial, agradecemos ao Doutor António Castanheira Neves, cuja obra
abre um vasto horizonte de pesquisas, propiciadas pela perspectiva teórica insti-
gante, rigorosa e abrangente que nos oferece. Não por outro motivo é tão inten-
sa a dedicação ao estudo de seus textos, no Brasil e em Portugal. Esta é apenas
uma entre as muitas homenagens que merece e que tem recebido, de grupos de
estudiosos das melhores Universidades.
Com esta nossa obra, pretendemos, nós também, testemunhar a liderança
intelectual do Doutor Castanheira Neves. Não há forma de melhor homenagear
um pensador que o de vivificá-lo pondo-o em discussão, ao mesmo tempo em
que se garante, a mais interessados, a oportunidade de conhecê-lo e discuti-lo.
Da mesma forma, gostaríamos de expressar a admiração, causada em todos
que o conhecem, por seu extraordinário valor humano. Referimo-nos à sua fran-
queza e rigor de caráter, ao seu corajoso enfrentamento das angústias e excessos
do nosso tempo, à sua abertura para o diálogo e à sua dadivosa disposição para
ensinar — mas não apenas. Sua dedicação ao Direito, sempre rigorosamente
científica, propõe-nos uma questão sobre nosso ideal de vida, e nunca é indi-
ferente ao nosso destino como humanos. Sua vasta obra tem o sentido funda-
mental de nos lembrar do sentido próprio e especificador do Direito enquanto
Direito — sentido em que a Pessoa não se encontra desamparada em sua igual-
dade e liberdade, nem inadvertida de sua responsabilidade. Sua obra é, assim,

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uma intensa cruzada em favor de uma Humanidade em que haja lugar para a
humanidade do humano.
Esta sua dedicação será sempre o fundamento de nossa maior dívida para
com o Doutor António Castanheira Neves.

Nuno M. M. Santos Coelho

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CAPÍTULO 1
O “JURISPRUDENCIALISMO” — PROPOSTA DE UMA
RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO DO DIREITO

António Castanheira Neves


Universidade de Coimbra

SUMÁRIO: 1. Saudação — 2. Invocação de um sublime estímulo — 3. Molto Allegro: 3.1. O diagnóstico


crítico do presente — 4. Andante: 4.1. Os problemas radicais que há a repor numa intencionalidade crítica de
reconstituição — 5. Menuetto-Allegretto: 5.1. O contraponto de outras propostas alternativas a considerar —
6. Final: Allegro assai: 6.1. O jurisprudencialismo; 6.1.1. Os pressupostos; 6.1.2. O esquema fundamental;
6.1.3. Os corolários.

A Fernando José Couto Pinto Bronze e a José Manuel Aroso Linhares,


queridos Amigos e meus generosos companheiros de sempre.

1. SAUDAÇÃO
Aqui vimos alguns universitários portugueses, vimos de Coimbra — essa
memória de muitos também académicos brasileiros — a Vila Rica, à cidade Im-
perial de Ouro Preto, à republicana simplesmente Ouro Preto, não à procura de
ouro (do qual a vossa Cecília Meireles disse: “De seu calmo esconderijo,/ o ouro
vem, dócil e ingénuo,/ torna-se pó, folha, barra,/ prestígio, poder, engenho…/ É
tão claro e turva tudo:/ honra, amor e pensamento”), não à procura de ouro, mas
justamente com o objectivo de uma troca de ideias que permita algum pensa-
mento — e a corresponder a um fraterno e penhorante convite vosso, Colegas e
Amigos brasileiros, em que não posso deixar de distinguir e agradecer o parti-
cular empenho do Doutor Nuno Morgadinho Santos Coelho. Mas sem esquecer
também, neste privilegiado ambiente em que estamos, aquela outra face de Ouro
Preto, a que nos comove como expressão do nosso encontro de outrora. Dela
disse — e que bem! — Vinícios de Morais através de versos também sempre
invocados: “Bom parar a cada ladeira, para adorar cada pequeno detalhe, uma
grade, um ferrolho, um postigo, um corrimão, um lance de escada, um velho
telhado, uma patina louca, num muro branco”.
E dito isto — numa saudação amiga e muito grata —, passemos ao que afinal
tenho para vos dizer. Com uma outra observação ainda: sentirei alegria se isso

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

que vos quero dizer o disser de um modo simples e claro e para ouvirdes alguma
coisa que valha a pena ouvir. Só que, quanto este último ponto, também uma
advertência mais — não o tomeis como pretensioso ou ingénuo, pois aí as mi-
nhas dúvidas são sinceramente atrozes. Seja como for, atrevo uma reflexão sobre
o Direito, sobre o seu problema e o seu eventual recuperável sentido, na nossa
actual encruzilhada civilizacionalmente cultural. Reflexão que, todavia, não será
mais do que uma recapitulação do que sobre isso tenho tentado pensar, afinal
numa identidade em que se não desiste de persistir. O título desta minha fala já o
denuncia. E, sendo assim, tereis de me perdoar a repetição de mim mesmo.

2. INVOCAÇÃO DE UM SUBLIME ESTÍMULO


As civilizações têm também as suas dores, quando sofrem, quando nelas
todos sofremos, se não o embate trágico do fim — e de quantos a história nos dá
a conhecer! —, seguramente o perigo de um colapso ameaçado e nos convocam,
por isso mesmo, a um esforço de superação (superação de sentido, antes de mais)
que recuse tanto a abdicação da vontade como o fatalismo niilista. Não peque-
mos contra a esperança.
E se vivemos hoje um desses momentos, de fim de um ciclo e de expectativa
constituinte de um outro novo e diferente em que nos continuemos — o tema do
fim da nossa civilização, ou das civilizações actuais, tornou-se monótono na aná-
lise de uma bibliografia todos os dias mais extensa —, como não invocar, num
paralelo de beleza sublime e estímulo, o momento pessoal de sofrimento dramá-
tico, mas de final, se ainda compungido, todavia já recuperador, como aquele que
Mozart nos transmite e chama a reviver com a sua música, na sua quadragésima
sinfonia (40ª Sinfonia, KV 550)?
Eis porque também a nossa reflexão, e com o objectivo referido, terá quatro
andamentos — sob a analogia inspiradora.
1) Um primeiro andamento para referir com realismo, num diagnóstico sem
ilusões, a situação presente — é dela que emerge o problema e por ela so-
mos convocados a uma tentativa superadora. Será o nosso Molto allegro.
2) Um segundo andamento em que nos interroguemos, num reconhecível
fundo de angustiosa procura, pela orientação para esse novo caminhar. É a
interrogação em que se reconhecerá a dolorosa vivência do Andante.
3) Um terceiro andamento, verdadeiramente o nosso Menuetto-Allegretto,
chamado a pôr-nos perante as propostas que aí estão a oferecer-se num
primeiro entusiasmo, mas que afinal temos de deixar cair desapontados.

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

4) Um quarto e último andamento, aquele em que pomos a esperança — sem


excessivo optimismo, mas sem ceder também ao pessimismo, como sempre
o digo — de uma recuperação e em que tudo se continue num possivelmen-
te novum, novo caminho de vida e futuro — o nosso Final: Allegro assai.

3. MOLTO ALLEGRO

3.1. O diagnóstico crítico do presente


1) Nos mais de três séculos que nos antecederam, o universo jurídico cons-
tituiu-se, ninguém o ignora, sob o “paradigma” (no exacto conceito de Thomas
S. Khun) moderno-iluminista da juridicidade, posto que dele vivamos hoje a sua
agonia — o paradigma da legalidade. E em que se reconhecerão duas dimensões
capitais: a que exprimia o seu sentido do direito, por um lado, e o seu modelo do
pensamento jurídico, por outro lado. O sentido do direito ia no legalismo — o di-
reito era a lei, posto que segundo um particular entendimento dela — e o modelo
do pensamento jurídico traduzia-o o normativismo. Este é anterior e não tem de
coincidir com o legalismo, nos pressupostos, na intencionalidade e no modus —
recordar-se-á, sem mais, que o jusnaturalismo moderno era normativista e que o
legalismo bem pode traduzir-se apenas no quadro de um decisionismo concreto
—, mas no paradigma que consideramos o legalismo foi assumido efectivamen-
te, noética e metodologicamente, em termos normativistas e assim de modo a
não ser de todo incorrecto designá-lo por legal-normativismo. Deixaremos agora
de lado, no entanto, o normativismo (sobre ele especificamente, pode ver-se as
nossas lições de Teoria do Direito, 1998, polic., Cap. I, 59-125), para nos fixar-
mos exclusivamente no legalismo.
Pois foi com o legalismo, enquanto o núcleo constitutivo do paradigma da
legalidade, que no âmbito da diferenciada experiência prática o homem moderno
europeu, sobretudo moderno-iluminista, constituiu uma nova época, com base
numa nova concepção de si próprio e do seu mundo humano-prático. A lei pas-
sou a assumir-se verdadeiramente com a nomos desse homem e desse seu mundo
— e com o objectivo capital, que se reconhecerá da maior importância e aparen-
temente paradoxal, de com ela se lograr o que temos dito a solução jurídica do
problema político.
Decerto que o legalismo traduziu a moderna, e também a primeira, estatiza-
ção e politização do direito. Com efeito, a perspectiva fundamental determinada
pelas aspirações moderno-iluminísticas implicava como decisiva consequência
que o último horizonte prático passasse a ser o político. O político referido à
plena e constitutiva autonomia humana. Ou seja, em libertação, se não em rup-
tura, relativamente aos quadros metafísicos (ético-metafísicos) e religiosos a que

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

se assimilara a “filosofia prática” anterior, fosse grega ou teológico-medieval, e


mesmo nos metafísicos pensadores do séc. XVII (se não já em Espinosa, decerto
ainda em Leibniz, sem falar sequer de Bossuet), ruptura radical em Maquiavel,
e libertação também clara e militante em Hobbes, não menos em Rousseau, etc.,
e se fez filosoficamente explícita e sistemática em Kant — em todo esse novo
pensamento o prático deixou de se referir a uma material axiologia pressuposta,
com fundamento fosse em Deus, fosse no Ser, fosse inclusivamente numa onto-
lógico-antropologia (assim no jusnaturalismo moderno), em que se vincularia,
para se assumir antes como tarefa exclusiva da liberdade humana e da sua auto-
nomia constitutiva. E na lei, estadualmente moderno-iluminística, teriam directa
expressão essa liberdade e essa autonomia. Ou seja, o político, enquanto então
a libertada e última instância prática dos novos tempos, teria nesses termos uma
tradução jurídica e é nessa conversão então do político no jurídico que vemos a
específica solução jurídica do problema político.
O que foi todavia o resultado de um processo complexo, já que, se nesse
processo teve a sua génese o legalismo, foi esse legalismo, pelas consequências
institucionais que implicou conjuntamente com o sentido muito particular de
lei que constituiu, que ofereceu a possibilidade, e do mesmo passo o ideológico
projecto, de pensar aquela solução jurídica para o problema político — a possi-
bilidade de pensar afinal com coerência e sem paradoxo, como corolário mesmo,
aquela solução para este problema.
Nesse processo concorreram diversas condições e múltiplos factores a que
faremos uma simples alusão. A condição filosófico-cultural da modernidade des-
de logo — a analisar-se num factor antropológico (o homem de plena autonomia
que viria a culminar no individualismo — o individualismo moderno), num fac-
tor religioso (além do protestantismo, com o seu apelo à consciência dos crentes
sem mediações de autoridade, o movimento da secularização a culminar, por sua
vez, no secularismo), no factor cultural tanto do racionalismo, assimilado pelo
racionalismo prático do jusracionalismo que se sincronizava com o racionalismo
científico empírico-construtivo-sistemático, com o seu contraponto embora no
historicismo e a sua consequência no positivismo prático. A condição social,
por outro lado, que foi a economia e a emergência do capitalismo, e assim a
perspectivação decisiva pelos interesses libertados. A condição política, estrita-
mente, que refere institucionalmente o Estado absoluto (moderno), primeiro, e
representativo e com separação dos poderes (Estado iluminista), depois, e que
convocou fundamentante-ideologicamente para este último o contratualismo. E
tudo isto para concluir — prescindindo neste momento da específica explicação
necessária e de que nos ocupámos já noutras cincunstâncias — que pela conjuga-
ção e a dialéctica evolutiva de todas estas condições e de todos estes factores se

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constituiu, na verdade, o paradigma da legalidade, já que todo aquele acervo de


condições e factores convergiu nos três pressupostos decisivos e entre si poten-
ciados na ordem prática, em que esse paradigma encontrou a sua possibilidade
— o pressuposto filosófico-cultural geral do racionalismo, o pressuposto antro-
pológico da concepção do homem moderno, e moderno-iluminista em oposição
ao homem clássico e medieval, e o pressuposto político do contratualismo — e
que implicou, como referimos, tanto uma característica consequência institucio-
nal como o muito particular sentido da lei em que afinal essa consequência ins-
titucional directamente se sustentava. Digamos de imediato dessa consequência
institucional e compreendamos esse sentido da lei — a consideração de aqueles
pressupostos irá adiante simultânea à sua análise crítica.
Ao falar da consequência institucional do paradigma da legalidade e em que
ele se confirmava, referimos decerto o “Estado de legislação” — versão oitocen-
tista e primeira do “Estado-de-Direito”. E sem termos de nos ocupar aqui de uma
sua caracterização acabada — que se poderá ver, se necessário fosse e por todas,
na bem conhecida feita por Carl Schmitt, Legalität und Legitimität, 1932, 7-19;
Verfassungslehre, 1928, § 13, 138,ss., e a distinguir esse tipo de Estado tanto dos
que se hajam de dizer “Estado de governo” e de “adminisração” (Regierungs
und Verwaltungsstaaten) como do “Estado de jurisdição” (Jurisdiktionsstaaat)
—, apenas acentuaremos nele, através desse contributo, três notas fundamentais.
1) A lei seria o fundamento essencial e o critério decisivo da actividade estadual,
pelo que, em implicação, o “poder legislativo”, decerto no quadro representativo
e na global organização dos poderes, seria também o poder capital ou a última
instância — the Legislative is supreme power, na formulação de Locke —; 2)
a lei entendia-se, tendia a entender-se segundo o ideal constitutivo que, aliás,
vinha de longe, como ratio e não voluntas, como nomos e não imperativo ou
decisão, e para que tão só actuando “em nome da lei” e não por imputação a um
qualquer concreto poder, se admitisse que unicamente as leis e não os homens
dominavam, que verdadeiramente não haveria domínio, já que “as leis não domi-
nam, valem só como normas”, recuperando-se consumadamente assim, poderá
dizer-se, a racionalidade sem paixões que Aristóteles queria ver nas leis; 3) e
desse modo também a “legalidade” superaria afinal ou faria supérflua a “legiti-
midade”, já que deixava de ter sentido invocar, como titular e centro político, o
poder ou a autoridade, sendo que na coerência dos dois pontos anteriores, o lugar
da legitimidade seria ocupado pela legalidade na sua autonomia e então simples-
mente “a legalidade (podia) valer como legitimidade” (Max Weber).
E daí também dois imediatos efeitos jurídicos — a eles igualmente nos li-
mitaremos. Na perspectiva pública, a proclamação dogmática de um princípio
de legalidade a impor a toda a acção pública, não obstante as limitações que

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

pragmaticamente (se não antes politicamente, com se aludirá) teve de reconhe-


cer. Na perspectiva privada, a conversão dos direitos, revolucionariamente liber-
tados, em “direitos subjectivos”, em direitos pela lei unicamente reconhecíveis
e em referência a ela tão só invocáveis, e assim tornados direitos legais — ainda
que na lei fosse decerto pressuposto, como melhor se acentuará, o contratualísti-
co acordo das liberdades.
Tudo o que só era possível pensar-se e propor-se como lógica consequência
político-institucional, para assim lograr uma solução jurídica para o problema
político — e em que se pretendia, e acabasse, por distinguir o direito do político,
a juridicidade do directo compromisso político —, porque à lei, e decerto como
a base fundamental do sistema, se atribuía um muito particular e bem caracterís-
tico sentido, exactamente o sentido da lei moderno-iluminística, que importa ter
presente. Segundo esse sentido, a lei, se seria decerto tão só a lei do Estado, a lei
estadual — a lei do poder político através, como se disse, do poder legislativo
—, era-o todavia de um modo diferente do que se poderia considerar quer na lei
moderna em geral, na lei do Estado moderno sem mais, em que se incluirá o Es-
tado moderno absoluto (cfr. Hobbes), quer inclusivamente, p. ex., na lei do Es-
tado hegeliano, Estado este como a realização histórica da ideia ética absoluta,
e em que a lei do respectivo poder legislativo, se era chamada a uma expressão
eminente do direito, pensando e determinando “o universal universalmente”, já
se não identificava nem se confundia com ele, como se verificava na lei ilumi-
nística — na qual o direito era a lei, única e exclusivamente a lei —, e antes,
como bem se sabe, profundamente a transcendia (Grundlinien der Philosophie
des Recht, §§ 211-214, 298-320, e passim). Diferença a pensar relativamente à
lei iluminística, pela razão de que a esta não bastava ser lei estadual, invocava
um conjunto de características por que e como tal especificamente se definiria.
Referimo-nos à validade racional, à universalidade, à permanência, ao carác-
ter formal e ao a priori normativo. Validade racional, posto que, excluída como
estava, e já o aludimos antes, o referente fundamento axiologicamente material,
fosse metafísico, fosse teológico, fosse mesmo onto-antropológico, a lei deve-
ria ser a autónoma expressão da libertada racionalidade humana, tal como na
racionalidade a autonomia humana essencialmente se manifestaria. Se legisla-
tivamente, as leis seriam, ou se pretendia que fossem, o resultado da discussão
racional dos representantes no parlamento, Kant ofereceu a última fundamen-
tação filosófico-iluminística para essa sua racionalidade, ao dizer (Rechtslehre,
§ B) que na razão teria o direito o seu “único fundamento”, já que seria a razão
também o único fundamento de “uma legislação positiva possível”, pois esta,
e portanto o direito que ela constituiria, só na razão poderia atingir o seu inte-
ligível sentido — o sentido, para além das condições empíricas, da conciliação

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do arbítrio de cada um com o arbítrio de todos e o fazia compreender “segundo


uma lei universal da liberdade”, atingindo-se assim também “o princípio uni-
versal do direito”. Bem se sabe que esta solução enunciada na “metafísica dos
costumes”, enquanto Philosophia pratica universalis, pressupunha a possibili-
dade, decerto problemática, de ser prática a “razão pura”, mas deixaremos agora
de lado esse desenvolvimento reflexivo. De momento apenas importa referir,
pois veremos a sua consequência, que com esta fundamentação só racional da
legislação e das suas leis se estava perante a parodoxia de uma autofundamen-
tação (cfr.. N. Luhmann), perante uma pseudo-fundamentação já que afinal e
simplesmente tautológica. Quanto à universalidade, seria ela a própria essência
da lei como expressão racional da “vontade geral” a que deveria ser referida, e
num duplo entido. Por um lado, universalidade do seu racional originário cons-
titutivo, com serem as leis “des actes de la volonté générale” e não simplesmen-
te da “volonté de tous” (já que apenas aquela primeira seria racional e tão só
uma conjugação empírica esta segunda) — como o pensava Rousseau e foi em
geral aceite — e nesse sentido rigoroso e específico, e apenas nesse sentido, se
haveria de dizer que nas leis “tout le peuple statue sur tout le peuple”, ou mes-
mo, segundo Kant, que as leis se afirmariam “nach einer allgemeinen Gesetz
der Freiheit”. Por outro lado, universalidade de intencional generalidade aos
destinatários: as leis deviam provir de todos e dirigirem-se igualmente a todos,
fomentando assim a igualdade também de todos perante elas — a “igualdade
perante a lei”, que foi uma das principais motivações da lei moderno-ilumi-
nística. A permanência não seria senão o exigido corolário prático da racional
universidade e a sua efectiva garantia, porquanto desse modo se preservava a
lei das contingências de mera oportunidade e da variável funcionalidade do
político — daí a invocação expressa que dela fazia Locke (Segundo Tratado §§
136 e 137), e ter a Constituição girondina proclamado no artº 4 da sua Secção II:
“les caractères qui distinguent les lois sont leur generalité et leur durée indéfi-
nie”. No que toca ao carácter formal, não se trata de distinguir a “lei formal” da
“lei material” para considerar que naquela o processo legislativo bastaria à sua
validade jurídica e nesta se implicavam intencionalmente a liberdade e a pro-
priedade, e portanto que aquela traduziria um sentido mais democrático e esta
um sentido mais liberal da lei, mas de significar que a juridicidade da legalidade
que consideramos tinha uma índole formal por ser desse modo que unicamente
o direito podia compatibilizar-se com a sua efectiva politização material. Índole
formal num sentido análogo, pois, àquele com que Max Weber compreendia
o direito moderno como um direito formal, pois o que sobretudo pretendemos
dizer com esse carácter formal é que a lei se propunha ser apenas a condição
jurídica da acção em geral e em abstracto, definindo os parâmetros da licitude,
mas aceitando ser neutra, na sua normatividade material, relativamente aos fins

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

particulares e aos compromissos materiais tanto dos últimos objectivos práticos,


que competiriam ao poder político, como da acções concretas, que caberiam por
sua vez à liberdade dos titulares e agentes individuais — descomprometendo-se
assim das teleologias materiais e concretas que, por um lado, se propunha tão
só enquadrar juridicamente e que, por outro lado, considerava, na sua variedade
de manifestação, simplesmente contingentes e fungíveis e, por isso, contrárias
à racional universalidade da sua essência. A lei seria “estrutura” e não “função.
Por último, o a priori normativo traduzia-se na prescrição antecipante, e em
termos também gerais e abstractos, do seu regulativo jurídico, do seu jurídico
dever-ser, e a impor assim a distinção, que se reconhecerá por não menor impli-
cação capital da autonomia da legalidade e da sua universal racionalidade, entre
a prévia normatividade prescrita em abstracto e a posterior aplicação ou exe-
cução em concreto, dualismo estruturalmente normativo que encontraria toda a
sua projecção no correspondente também dualismo intencional-metodológico
do normativismo — que, como dissemos, aqui não consideraremos.

2) Este, pois, o “paradigma da legalidade”, nos seus momentos mais signifi-


cativos e diferenciadores. A que, para além dos seus objectivos práticos, políticos
e jurídicos, fruto de uma época que concorria também para definir, não faltava
decerto — há que reconhecê-lo — força construtiva e inclusive beleza sistemá-
tica. Só que não é menos reconhecível a profunda crise em que esse paradigma
mergulhou, em termos de haver de dizer-se que ele se encontra decisivamente
superado, sendo hoje de todo outros quer a perspectiva prática, quer o sentido do
direito. Tornaram-se fortemente problemáticos os seus pressupostos, subverteu-
-se irremediavelmente, e pela própria realidade emergente, o sentido da lei que
era o seu núcleo constitutivo e significante, sofreu inclusive uma evolutiva ero-
são definitiva a sua compreensão da juridicidade — erosão de que o pensamento
jurídico não deixou de se fazer veemente eco, se é que para ela também simulta-
neamente não contribuiu, ao proliferarem as perspectivas e as propostas de revi-
são e substituição do sentido básico do paradigma convocando novas exigências
de um mundo humano político-socialmente muito diferente.
Comecemos, no entanto, por chamar a atenção, antes de considerarmos todos
esses pontos, para os equívocos que iam latentes na pretensão capital — por ela
o paradigma adquiria a sua moderna originalidade político-jurídica — de ver
na lei, especificamente moderno-iluminista, a solução jurídica para o problema
político. Esses equívocos eram sobretudo três. Um primeiro podemos dizê-lo
como que o pecado original desse paradigma ou concepção — o direito, como
dissemos, ao ser-lhe retirada autonomia normativamente material, foi imputado

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

materialmente à política enquanto a última instância prática e a dimensão jurí-


dica acabava por ser reduzida a uma racionalidade normativamente formal de-
finida por uma legalidade (o direito seria só forma legal, a forma normativo-
legal dos objectivos e da acção práticos) e então a lei nessa forma legal, e pela
correlativa elaboração dogmática, garantiria a sua autonomia jurídica, mas para
assumir materialmente uma teleologia não jurídica. O problema político obtinha
uma solução jurídica do mesmo passo que o jurídico assumia directamente o po-
lítico. Pelo que o sentido de autonomia relativo à forma acabava por ser anulado
pelo sentido materialmente referido ao conteúdo — o que não deixava mesmo
de ter algumas manifestações expressas, fosse nos “actos de governo” (em que
se insinuava afinal o Regierungsstaat), fosse no “poder discricionário” (em que
se insinuava, por sua vez, o Verwaltunsstaat). Um segundo equívoco vêmo-lo
no paradoxo já daí resultante — visando-se afirmar na lei a dimensão jurídica,
na sua autonomia e importância capital perante as outras dimensões do Estado,
numa intenção de autolegitimação e de autocontrole, mas com uma juridicidade
que ia compreendida, apenas e no fundo, numa intencionalidade política norma-
tivamente racionalizada, determinava isso afinal a negação in nuce da autono-
mia do sentido do direito no próprio projecto (político) da sua afirmação. Com
que, por último, e como se evidenciaria ainda mais fortemente com a posterior
evolução da estria legalidade para a constitucionalidade, enquanto a decisiva po-
larização da juridicidade, o paradigma que consideramos sofria afinal e contradi-
toriamente de uma grave ambiguidade — se o político e o jurídico se afirmavam
nele discursiva e dogmaticamente diferentes, não deixavam de ir também nele
materialmente confundidos — e na sua constitucionalidade mais não oferecia do
que, como temos dito, o estatuto jurídico do político. É este o gérmen da crise
fatal que o atingiria, e a dar base para a sua superação que logo viria depois.
E não pode também omitir-se, num complemento crítico ao que acaba de
dizer-se, quanto vemos hoje problemáticos, profundamente problemáticos, os
pressupostos capitais de todo este edifício de construção político-jurídica. Já re-
ferimos esses pressupostos — e retomamo-los para considerar essa sua proble-
maticidade, para os dizer, na verdade, já falhados 1) O pressuposto filosófico do
racionalismo, decerto o racionalismo moderno na sua básica atitude antimetafí-
sica, agora na sua projecção prática, tal como de forma veemente, já o dissemos,
o proclamara Kant, e em que se sustentava afinal a formal universalidade da
lei moderno-iluminística. Só que, se o racional puro apenas pode ter sentido na
analítica do pensamento e, portanto, num plano estritamente formal em que o
pensamento só recupera tautologicamente o pensado, e logo reconhece os seus
limites e a sua vazia inconcludência perante as exigências do pensamento transi-
tivo e constitutivamente material em que avultam, pela impossibilidade mesma

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

de um pensamento dessa índole sem pressupostos, as referências intencionais


nas condições contextuais — não temos aí um dos factores da actualmente diag-
nosticada “crise da razão”? —, e não avulta isso, como a própria evidência, na
razão prática, à qual é impossível alhear-se do tempo e da história? Ora, a razão
pura prática desconhecia, efectivamente, o tempo (prático) e pensava fora da
história — pelo que tinha fundamento a crítica de Hegel na denúncia da apenas
logicidade dessa razão, a pensar-se simplesmente a si mesma. Na verdade, a
intencionalidade prática não tem sentido com abstracção e sem o reconhecimen-
to da historicidade que lhe é culturalmente constitutiva, como hoje ignoravel-
mente sabemos. A pura racionalidade da legalidade iluminística não era senão
a racionalidade de um bem histórico-concreto projecto que o homem ao tempo
se propôs para a sua prática político-jurídica — nem se deduzia da razão, nem
tinha universalidade para além desse projecto para esse tempo. 2) O pressuposto
antropológico traduzia-se — temos de o repetir — na concepção que o homem
moderno se tinha de “sujeito” autoassumido na ordem intencional (abstrairemos
agora da distinção, decerto muito relevante, entre “sujeito e “indivíduo” também
no plano filosófico, que adiante consideraremos) e de “indivíduo” acumunitário,
na ordem prática —, individualismo este de expressão moderada na lockeneanan
perspectiva liberal, com os seus”direitos naturais”, e de reivindicação radical
no estatismo já hobbeseano de um absolutismo de segurança, já no voluntaris-
mo rousseaneano de uma racionalística identificação de liberdade e igualdade, e
ainda na a priori autonomia kantiana, ainda que referida esta já a fundamentais
dimensões éticas — e para o que tudo a lei, na sua universalidade normativa,
seria a possibilidade e a garantia. O que hoje, não deixe de se reconhecer e como
veremos, se retoma no apelo à legalidade enquanto condição das sociedades de-
mocráticas e exigência dos seus pluralismos. Mas pressuposto que, na verdade,
deixou de ser sustentável. Igualmente na ordem intencional, pelo que se poderá
dizer a derrocada filosófica do “sujeito” cartesiano, e em último termo também
kantiano, no seu solipsismo em qualquer das formas, um sujeito egoloide e fe-
chado na sua pura ipseidade, fosse ele ideal ou universal nas suas categorias,
fosse ele transcendental no seu a priori constitutivo. Basta contrapor-lhe tanto a
ontologicamente pressuponente existência no mundo como a intersubjectividade
constituída na existencial e comunicativa relação sujeito/sujeito, que é afinal a
condição primeira dos homens, na interpessoalidade do “eu/outros”, da lingua-
gem, da história, da comunidade real. Na ordem prática, por sua vez, não menos
a insustentabilidade do homem-indivíduo, não obstante a manifestação de todos
os egoísmos associais a assolidários do triste espectáculo quotidiano, perante a
essencialmente humana e realmente também primeira e irredutível existência
humana comunitária, em pressuposta comunidade histórica, enquanto é esta con-
dição de existência, condição empírica e condição ontológica da humanidade

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do homem, pese embora a sua ignorância pelos radicalismos da modernidade e


igualmente pelo neoindividualismo contemporâneo, com expressões ainda mais
radicais. A que há que acrescentar ainda que a categoria fundamental na ordem
prática não a temos no homem-sujeito-indivíduo, mas na pessoa, no homem pes-
soa e com todas as implicações da sua imediata referência ético-comunitária, de
realização e de responsabilidade. Pelo que, e já por aqui, se terá de concluir que o
vínculo social não pode fazer tabula rasa de outros vínculos humanamente pres-
supostos, no postulado de um vazio aberto ao incondicional alvedrio da vontade
política, ainda que por mais de uma vez na história, e sempre tragicamente e em
vão, assim se pensasse e tentasse na acção. E o que se diz e conclui quanto ao
pressuposto antropológico, não menos claramente se dirá e reconhecerá relativa-
mente ao pressuposto político do contratualismo.

3) Bem se sabe que este mais não foi do que um ficcionado tropos argumen-
tativo num als ob legitimante e para preservar o prius da liberdade no encontro
social. Neste encontro nada seria admissível que a liberdade não postulasse e
validasse, e para a garantir — a implicar que o vínculo social, o direito se quiser-
mos, só poderia surgir convencionalmente, por livres acordos autofundantes, e
também assim tanto fora da história como sem pressuposições intencionalmente
práticas que lhe fossem pré-determinantes — não tinha decerto esta significação
e relevância pressuponente a invocação apenas pela retórica política do “estado
de natureza”. Só que legitimante argumentação em que se reconhecerão dois
deficits — de validade e de possibilidade. O primeiro revela-se, paradoxalmente,
naquilo que a invocação contratualista oculta. Pois para a sua força persuasiva
mobiliza sempre, seja ou não explicitamente, pressupostos normativos pratica-
mente fundamentantes e discursivamente assimilados pela intencionalidade da
argumentação, e que tão só lhe permitem ser retoricamente convincente. Com
a excepção porventura de Espinosa — que no seu Tratado Teológico-político,
Cap.259, a justificar o pacto fundador do Estado não via senão a crassa seguran-
ça e a astúcia da utilidade —, foi assim inclusive em Hobbes, que, distinguindo
ius e lex, direito e lei, não deixou de identificar aquele com o ius naturale, as de-
zanove “leis fundamentais da natureza”, as quais, posto que só de índole moral,
não deixavam de ser o padrão regulativo das “leis” do Estado e que este devia
ter presente, já que “a lei da natureza e a lei civil se contêm uma a outra e são de
igual extensão”, e “a lei da natureza é uma parte da lei civil em todos os Estados
do mundo” (Leviatan, caps. XIV, XV, XXVI); claramente também em Locke,
para quem o “estado de natureza” era já pleno de referências ético-práticas e ex-
pressamente sublinhava que “as obrigações da lei natural não cessam na socieda-
de...” e que “a lei natural permanece como regra eterna de todos os homens, sem

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exceptuar os legisladores” (Segundo Tratado..., § 135); assim como o “Contrat


Social” de Rousseau não pode entender-se no seu verdadeiro sentido sem ter pre-
sente a ética que ia fortemente implicada na “voz puramente inteligível da razão”
e que a “volonté générale” era chamada a exprimir — mostra-no-lo concludente-
mente Bertrand de Jouvenel e que por isso pôde afirmar que “se a vontade de to-
dos é um facto político, a Volonté Générale é um fenómeno moral”; e não ecoa e
fortemente isto mesmo em Kant a dar afinal denso sentido material à “pureza” da
razão prática (não se desconhece, aliás, a influência de Rousseau na sua filosofia
prática) e poder-se-á compreender o seu contratualismo sem a pressuposição da
ética personalista também da sua filosofia prática e pela qual o próprio “contrato
social”, menos do que imediato produto da liberdade incondicionada, se imporia
como um vinculante dever? Pelo que o acordo contratual e fundador só obtém
sentido, e se sustenta, de um regulativo normativo que, como originariamente
pressuposto, devia excluir. Isto no “contrato social” como em qualquer outro
contrato, que nunca será originariamente fundador e sempre normativamente
fundado: o acordo não será vinculante sem um fundamento normativo que lhe
confira validade — a vontade só como vontade, na sua factualidade, não vincula,
a sua pura contingência empírica é mero facto, não norma, tanto na constituição
como quanto aos efeitos normativos. Deficit de possibilidade também, já que o
procedimentalismo a que teria de dar lugar ou que será necessariamente o seu
esquema prescritivo (veja-se agora em Rawls e mais marcadamente ainda em
Habermas) — enquanto condição implicada pela postulada ausência de pressu-
postos-fundamentos e de prévias determinações, mas sem renúncia à obtenção
de conteúdos e soluções racionais ou sem arbítrio — não pode actuar afinal sem
fundamentais pressuposições axiológicas e prático-materiais que igualmente de-
veria excluir, e que não exclui e antes contraditoriamente refere porque de outro
modo, ou na sua pretensa pureza procedimental nunca seria viável, (v. o nosso
ensaio A crise actual da Filosofia..., 69, ss.). Deficits esses, um e outro, que são
sobretudo o resultado de um erro capital, o de pensar a sociabilidade fora da
história, como se os homens pudessem decidir ex nihilo, e por vontade absoluta,
da sua existência e dos seus fundamentais vínculos sociais. Utopismo generoso
decerto, mas muito simplificador. É nobre por vezes esse fracasso de Prometeu, a
desafiar todos os deuses e a realidade, posto que as suas tentativas identificáveis
na história só têm resultado frustradas, quando não em cruel violência.
Assim se conclui globalmente que os pressupostos capitais do legalismo são
o que há de mais problemático e que por essa sua problematicidade, que ve-
mos sempre acentuada, o resultado é ficar o legalismo sem pressupostos que
verdadeira e inequivocamente o justifiquem, justifiquem a sua originalidade e
a sua exclusividade: a lei, moderno-iluminista, não logra afinal constituir uma

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normatividade que só nela e autonomamente se funde — o direito não se impõe


na lei de todo ex novo, a lei apenas pode concorrer com o seu contributo para a
manifestação do direito porque se insere num mundo prático e de pressuposta
normatividade que é o seu regulativo, ainda quando a não totalmente determine.
E ignorar isto é suspender a lei, e o consequente legalismo, num vazio em que
não se sustenta e só se ilegitima.
Tudo isto a considerar a crise do paradigma da legalidade na sua própria
imanência constitutiva. Mas crise que adquiriu mesmo uma manifestação histó-
rica pela real subversão do sentido da lei que, como vimos, dava essencial pos-
sibilidade e por essa possibilidade também sentido ao paradigma — não decerto
sentido apenas político, e antes intencionalmente prático. Enunciámos as notas
decisivamente caracterizadoras desse sentido da lei e trata-se agora de ver que
nenhuma lei se reconhece já hoje nessas notas e efectivamente as cumpre.
A validade racional que a lei se proclamava como um fundamento que ex-
cluía a referência a uma qualquer transcendência normativamente fundamen-
tante, mesmo que só política, a que em directa dependência tivesse de norma-
tivamente prestar contas, só podia ser decerto uma autofundamentação. A lei
fundamentava-se a si própria pela exclusiva invocação da sua racionalidade
constitutiva, ou seja, pela razão prática que em si e só por si exprimiria e que
encontrava objectivação reflexiva — objectivação essa necessária, pois sabemos
e já dissemos que a razão na sua pureza é vazia — na racionalidade e coerência
normativas do sistema jurídico que com base nas leis, e de modo hermenêutico e
doutrinal, se construísse numa subsistência dogmática para além da contingência
das fontes e das particulares e fragmentárias teleologias do direito positivo. O
direito das leis seria afinal um autossubsistente sistema dogmático que na racio-
nalidade desse sistema tinha a sua própria racionalidade — só aí ele era ratio-
-nomos e não poder e voluntas. Que tanto é dizer que a autofundamentação que
dogmaticamente assim se manifestava mais não era do que uma autofundamen-
tação axiomática, a autofundamentação própria de toda e qualquer axiomática,
que em si e por si unicamente se fundamenta e define. E então não tinha de sofrer
só a inevitável paradoxia da autofundamentação e bem assim a autocontradição a
que nunca é imune uma qualquer axiomática (Gödel dixit), mas sobretudo a radi-
cal “positivação”, que sempre acompanhou, como uma sombra, a racionalidade
da legalidade do sistema jurídico e a que ele progressivamente e cada vez mais
se viria a submeter, não só era incompatível com aquela sua validade racional
como tornou impossível uma tal validade. A positivação de que especificamente
falamos não se confunde com a positividade jurídica em geral — esta é uma ca-
tegoria da existência do direito (afirma o modo de ser do direito), aquela é uma
categoria da normatividade jurídica (refere um certo sentido e um determinado

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modo da constituição da normatividade jurídica). Considerar a positividade do


direito é reconhecer que ele só existe como direito positivo — ou que só o direito
positivo é direito —, já que apenas é direito qua tale a normatividade jurídica vi-
gente, enquanto que pela positivação se considera que o direito só vê constituída
a sua normatividade através de uma decisão impositiva — o direito será posto
(im-posto) por uma decisão prescritiva e apenas nessa decisão terá a origem
e o fundamento da sua existência. “Designa-se como positivo, enuncia neste
sentido N. Luhmann, o direito que foi posto e vale por força de uma decisão”.
Pelo que a positivação do direito verdadeiramente significa “decisibilidade” e
“alterabilidade” — “o direito vale positivamente se a sua decisibilidade e com
isto a sua alterabilidade se tornar actualidade permanente e como tal for admi-
tida” (Luhmann). E tanto mais radicalmente quanto maior for a formal contin-
gência decisória que se aceite na prescritiva manifestação das leis, quanto mais
estas provenham de um poder político que continuamente e fragmentariamente
as prescreve, sem peias e sem coerência, em completa cedência às solicitações
de oportunidade político-sociais também continuamente variáveis e que apenas
procuram justificação nos efeitos visados, ou uma pretensa legitimação pelos
efeitos. É então que Hobbes volta a triunfar plenamente — auctoritas, non ve-
ritas facit legem — e perde todo o sentido a ideia de uma validade racional,
jurídico-normativamente racional, que perante o direito positivo legal se quei-
ra invocar. Não que esse direito positivo legal se haja de dizer irracional, mas
tratar-se-á de uma outra racionalidade, entra simplesmente em jogo a razão dos
projectos e do consequencialismo políticos. A racionalidade converte-se em es-
tratégia e o direito passa a ser apenas política — à tentativa moderno-iluminista
de reduzir o político ao jurídico, substitui-se a instrumentalização do jurídico
pelo político. E quem pode negar que esta é uma situação actualmente reconhe-
cível — apesar do que por diversos modos se lhe pretende contrapor, e que não
deixaremos de convocar —, situação em que o sentido da lei como solução jurí-
dica para o problema político de todo se subverte, já que o terreno foi totalmente
ocupado pelo política? Também quanto à universalidade, nas duas perspectivas
que vimos — por um lado, universalidade originariamente constitutiva ao pen-
sarem-se as leis “des actes de la volonté générale” ou “nach einer allgemeinen
Gesetz der Freiheit”; por outro lado, universalidade de intencional generalidade
aos destinatários para se assegurar a igualdade destes, a sua igualdade perante
a lei —, o que hoje realmente temos, e bem ao contrário da exigida expressão
desta universalidade nesses dois sentidos, são leis como prescrições de particu-
lares e mesmo partidárias forças políticas e de governo e também com objectivos
políticos particulares — não são necessários exemplos, já que eles são inúmeros
e constantes. Leis, pois, que se não pode pensar imputar, mesmo em termos de
ficção redutiva, à vontade geral ou sequer ao comum de todos, de todo o povo

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para todo o povo. E precisamente quando assim acontecesse — previu-o Rous-


seau —, quando a vontade fosse “seulement d’une partie” e não de todo o “corps
du peuple” não estaríamos perante uma lei, mas perante uma simples “volonté
particulière”, ou seja, “un décret tout au plus”. Depois, leis também longe de
serem sempre impostas genérica ou igualmente a todos, dada a contínua dife-
renciação dos destinatários, exigida umas vezes pelas políticas sociais, lograda
outras vezes pela força dos lobbies e dos grupos institucionalizados de interesses
que se reconhecem em todos os actuais neocorporativismos. Sem a essencial
universalidade regressamos mais uma vez a Hobbes e as leis não passam de actos
políticos do poder, do poder estadual soberano, se quisermos — o mesmo é dizer
que nada essencialmente as distingue de quaisquer outros actos políticos. No
que à permanência se refere, só há que sorrir perante a incontrolável produção e
contínua alteração das leis, no que bem se poderá dizer uma verdadeira inconti-
nência legislativa. E que dizer relativamente ao carácter formal, garantia que se
esperava que fosse de uma neutralidade quanto à contingência dos fins concretos
e aos compromissos materiais da acção, que apenas visaria enquadrar segundo
estruturais padrões gerais e abstractos — o que se implicava, aliás, na raciona-
lidade e a universalidade? Igualmente bem se sabe que as leis, do mesmo modo
que passaram a ser prescrições de certas e partidárias forças políticas, foram
mobilizadas para definir e realizar a não menos contingente programação da ac-
ção político-social — de estrito estatuto jurídico passaram a instrumento político
(“governa-se com as leis”) — numa neomaterialização a que adiante se aludirá,
posto que igualmente essa já hoje falhada, ao falhar a capacidade regulatória
que com aquela programação se tentou. Por último, será ainda a lei o a priori
normativo da prática social? Decerto que as leis continuam a prescrever-se para
o serem, mas se o que afinal as determina são os compromissos político-sociais e
as suas consequencionais teleologias, as leis mais não são do que funções desses
mesmos compromissos e teleologias, nos quais se terão verdadeiramente de ver
os critérios da prescrição legal, deixando assim esta de ser norma da acção (ac-
ção político-social) para ser efeito dela — solução regressivamente imposta pela
teleologia político-social concreta, não validade para ela. E se aparentemente a
sua forma e o seu tempo são ainda o da antecipação normativa, a sua lógica é a
da funcionalidade do sistema político e está por inteiro ao seu serviço — aquela
antecipação é simplesmente discursiva, não de verdadeiro prius normativo.

4) Confirmada está, pois, a subversão do sentido do sentido primeiro e funda-


mental da lei moderno-iluminista. que justificava o legalismo. Mas o mais grave
verificou-se ainda na erosão evolutiva que esse sentido veio a sofrer — e em que
de todo se explicita muito do que só implicitamente foi considerado. Evolutiva

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erosão que foi sobretudo a resultante da pressão do input societariamente contex-


tual sobre a juridicidade. E que só foi possível porque esta, tendo excluído, como
vimos, nos seus valores jurídicos puramente formais qualquer intencionalidade
normativamente material, oferecia um vazio que não podia resistir às solicita-
ções que de fora lhe viessem, e vieram elas efectivamente em catadupa. Num
primeiro momento foi a euforia da neomaterialização do direito — o direito vol-
tava a uma intencionalidade material, só que não de índole axiológico-normativa
especificamente jurídica e em que a autonomia material do direito se afirmasse,
como estava na intenção do direito pré-moderno, mas de uma índole político-
-social, já antes aludida. O que se traduziu pura e simplesmente na socialização
e instrumentalização do direito — ou, numa só e mais rigorosa palavra, o direi-
to assumiu o funcionalismo, o funcionalismo jurídico. O que deverá, todavia,
entender-se no seu exacto significado. Nesse funcionalismo estamos para além
e numa radicalização do primeiro finalismo, aquele que fomentado por Ihering
(Zweck im Recht) seria assimilado, embora com alterações significativas, pela
Interessenjurisprudenz, pois que esse finalismo, passando é certo a orientar-se já
por determinações sociais nas suas dimensões sociológicas, não deixaria, num
particular equilíbrio, de “interiorizar”, digamo-lo assim, o social no jurídico
numa como que neutralização jurídica daquele pela sua assimilação nos quadros
jurídicos tradicionais (a tanto se propôs a distinção capital entre Gebotseite e
Interessenseite) e onde a dimensão social do “interesse”, dos interesses, se con-
vertia numa simples coordenada hermenêutica. Enquanto que no funcionalismo
de socializada instrumentalização são os quadros jurídicos tradicionais que são
ultrapassados, verdadeiramente excluídos, numa predominância funcional dos
compromissos e objectivos político-sociais, para os quais o direito e as leis se-
riam um mero instrumento de regulatória programação e realização.
Sabe-se como isto começou. Pelo bem conhecido e generalizado compro-
misso político-social que o Estado assumiu, de que fez o principal objectivo
da sua acção, e pelo qual se justificaria a sua qualificação de Estado social. O
Estado vê-se então chamado, para além da função simplesmente de definição
e tutela de direitos e da garantia do funcionamento pacífico da ordem jurídica,
à tarefa de conformação da própria estrutura da ordem social mediante a inter-
venção política nas situações e processos económico-sociais. E um dos meios
que para tanto mobilizou foi decerto a legislação — se esta era da sua exclusiva
titularidade, o Estado não hesitou em dispor dela. Pelo que a lei deixou de se
esgotar nas funções normativas já de quadro e garantia dos direitos, de critério
de igualdade e factor da segurança jurídica, já de quadro e limite dos poderes e
tornou-se instrumento da própria acção política. Ou seja, já o dissemos, o Estado
passou a governar com as leis. E funcionalizada assim político-socialmente, não

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

tardou que a lei assumisse outros tipos prescritivos bem diferentes do que ma-
nifestariam as características atrás referidas da lei como simplesmente “norma
jurídica” — assim as “leis-plano”, as “leis-providência”, etc. Quer dizer, as leis,
como a legislação, ficaram disponíveis para todos os tipos prescritivos que aque-
la funcionalidade exigisse. E isto sem esquecer ainda os fenómenos regulatórios
em que a lei é substituída e ultrapassada pelo que se designa “a concreta legislati-
vidade da organização”(Zagrebelsky), ou seja a constituição autónoma de regras
pelas próprias organizações públicas em ordem à sua eficiência. E quanto ao di-
reito em geral as consequências não seriam menos claras: tornado expediente de
uma teleologia que lhe é heterónoma, vê-se submetido a um funcionalismo que
lhe subtrai valores e fins próprios e lhe impõe uma índole tão só programático-
-regulamentar. Não intencionando as leis fundamentos juridicamente específicos
e alheias mesmo à preocupação com juízos normativos autónomos, os resultados
não podiam ser senão os que verificaram, os de uma ilimitada instrumentalização
em que o direito perde o seu sentido próprio e se avilta a consciência jurídica, na
sua necessária distância de normativa e crítica validade.
O que, dito assim muito em geral, só seria o começo do que viria depois.
Já que deste modo se abriu a porta, pelos seus pressupostos e nas suas consequ-
ências, aos funcionalismos de todos os tipos, em que a materialização política
e político-social do direito seria acabada. Falamos desde logo do funcionalismo
político e do funcionalismo social em sentido estrito, e neste já do tecnológico,
já do económico, com a perspectiva muito particular da Law and Economics. O
explicitante desenvolvimento, no essencial, de todos estes funcionalismos fize-
mo-lo, e por mais de uma vez, noutras circunstâncias, pelo que aqui só enuncia-
remos a conclusão a que então pudemos chegar. E que foi esta: submetido a uma
radical intrumentalização, o que vemos é ser o direito afinal puramente política
ou uma jurídico-política no funcionalismo político, simplesmente uma jurídico-
tecnologia sociológica ou jurídico-administração social no funcionalismo social
tecnológico, não mais do que uma jurídico-economia no fincionalismo social
económico, etc. O direito dissolve-se nas teleologias e compromissos heteróno-
mos que assimila e a que se funcionaliza — quando não se abandona mesmo ao
mundo autorregulado, autocontratualizado a arbitral, dos negócios “sem leis nem
juízes”, o mundo do macrofenómeno da globalização económico-tecnológica. O
que no limite será justamente a base para as alternativas ao direito, as alternati-
vas dele superadoras, que iremos reconhecer.

5) Até aqui a erosão sobretudo no plano da própria realidade evolutiva. Mas


a erosão verificou-se ainda, como foi aludido, no plano estrito do pensamento

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jurídico, já que este, ao propor-se assumir a nova circunstância, foi progressiva-


mente projectando no direito outros e entre si diferentes sentidos e referenciais
exigências práticas que tinham, no entanto, em comum o abandono do funda-
mental que fora próprio do paradigma moderno~iluminístico da legalidade.
Desde logo e como básica atitude, a geral sustentação da tese não só do
declínio, como mesmo da negação da autonomia do direito — “the decline of
law as an autonomous discipline”, para o dizermos com Richard Posner, um dos
mais expressos adeptos dessa tese. E para sustentar especificamente que o direito
deveria encontrar o seu sentido ou, talvez melhor, o seu ponto decisivo de refe-
rência fora dele. Para compreender o direito (Law) teríamos de procurar auxílio
em disciplinas diferentes do próprio direito, pois, havendo de reconhecê-lo como
um “deliberado instrumento do contrôle social”, teríamos de ir para além dele na
procura do conhecimento dos seus factores determinantes na sociedade, já que
só assim ficaríamos aptos a compreendê-lo, a criticá-lo e a criá-lo. Daí também
que a Teoria do Direito houvesse igualmente de ser um estudo dele “from the
outside”. E conhecem-se propostas de orientações em obediência a esses objec-
tivos. Referirei apenas três. Uma também de Posner, a proposta jurídico-teórica
de um pragmatismo jurídico apoiado pluridisciplinarmente — em que o direito
e o pensamento jurídico deveriam constituir-se e pensar-se numa perspectiva de
“good for” com auxílio de todas as ciências sociais, a economia, a ciência polí-
tica, a estatística, além da filosofia e a ética, etc. O direito, pois, como um social
e funcional instrumento de contrôle pragmaticamente orientado. Diferente, mas
afim neste último sentido, será a convocação de um “direito responsivo”, de
superação dos anteriores modelos de “direito repressivo” e de “direito autóno-
mo”, em que se recuperasse a “soberania da finalidade” com a consideração dos
resultados, através da assumida relevância dos factores sociais numa explícita
politização do direito (Philip Selznick/ Philippe Nonet, Law and Society in Tran-
sition, 1978); e analogamente na perspectiva que Teubner designa de “colisão
dos discursos”, e se traduziria na jurisdicização-assimilação das externalidades
sociais ao direito, na juridicização dos fenómenos morais, económicos, políti-
cos, mas sem anular a especificidade desses “discursos” no discurso jurídico.
Uma terceira linha em que, dir-se-á, tudo se radicaliza encontramo-la no Critical
Legal Studies Movement, de uma maior riqueza e complexidade doutrinárias, a
conjugar múltiplos pontos de vista e de plúrima participação — posto que com
os nomes principais de Mangabeira Unger, Duncan Kennedy e Jack Balkin — e
que a partir do legal realism americano (verdadeiramente o Movement é carac-
teristicamente americano, na problemática, nas perspectivas, nas referências e
nas propostas, ainda que sob forte influência do pensamento crítico europeu,
em que se distinguirão também desde a Teoria Crítica de Frankfurt e a analítica

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político-cultural da microscópica denuncia dos poderes de Foucault até à filo-


sofia da linguagem de Wittgenstein e ao desconstrutivismo de Derrida, etc.) se
desenvolveu por fases diferenciáveis desde o final da década de setenta até hoje,
e em que é todavia possível acentuar globalmente, para o que mais nos importa,
alguns pontos específicos. Uma postura assumidamente política na compreensão
do direito e na atitude perante ele, tanto em perspectiva crítica como em intenção
reconstrutiva, na linha da new left (emancipatória e igualitária), em termos de
expressamente se proclamar que “Law is politics”, ou que “the law and politics
could not be separated. Uma forte analítica crítica do “paradigma liberal” do
legalismo tradicional, pela denúncia tanto das “contradições fundamentais” (D.
Kennedy) que lhe seriam inerentes como da essencial indeterminação do direito
positivo e da sua ilusória objectividade normativa e também da sua racionalidade
metodológica (do seu “formalismo” hoc sensu), pontos sobretudo acentuados
por Mangabeira Unger no fundo de uma dismistificação ideológica da juridi-
cidade em geral. Propostas diversas, já em atitude positivamente reconstrutiva,
quer de uma directa referência performativa do direito a uma “justiça transcen-
dental” (J.Balkin) e no compromisso de ética alteridade, em que se reconhece-
riam as derridanas “aporias da justiça” evidenciadas pela sua “desconstrução”
(Durcilla Cornell), quer o projecto de uma alternativa ideológica de um outro
sistema de direitos e económico; a afirmação da centralidade da decisão judicial
(adjudication), e com a convocação pragmática dos mais diversos critérios, para
a prosseguição desses objectivos, no entendimento justamente da “adjudication
as a forum of ideology”, sendo que “the judge is na ideological performer willy-
-nilly” (D.Kennedy, A critique of adjudication: fin de siècle, 1997); etc. Numa
palavra de síntese destas três diferenciadas linhas e perspectivas, concluir-se-á
que a pragmática instrumentalização e político-social materialização funcional
do direito seria a solução necessária.
E então, já não teria sentido o objectivo moderno-iluminista de procurar uma
solução jurídica para o problema político — a solução optimista da legalidade,
com a sua universalidade, a sua índole formal, a sua validade racional, o seu a
priori normativo —, antes para o problema político a solução seria hoje também
política, posto que com funcional e instrumental mobilização do direito (dos qua-
dros e das regras, das instituições e dos agentes jurídicos). E com isso o paradig-
ma moderno-iluminista do direito não estaria apenas evolutivamente superado,
pura e simplesmente desaparecia do horizonte da compreensibilidade jurídica.
E todavia não temos aqui o último estádio evolutivo — um outro se seguiu
ainda, ou que com este concorre, e é vivido actualmente num grande empenho
reflexivo em que várias outras perspectivas se acrescentam às anteriormente re-
feridas, em contraponto, pode dizer-se, a uma também enorme perplexidade.

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

Trata-se agora do que exactamente se dirá uma desmaterialização do direito a


opor àquela sua anterior neomaterialização funcional. Aliás, com duas diferen-
ciáveis direcções. Por uma lado, tem-se presente a crise do Estado-providência
e, recusando os radicalismos funcionalistas anteriores, pretende-se preservar um
papel específico ao direito, só que papel específico esse que seja compatível e
adequado ao actual mundo social complexo, em que se reconhecem diversos sis-
temas sociais autónomos, de uma particular e irredutível autopoiésis, e que por
isso mesmo frustrariam a directa intencionalidade regulatória dos tradicionais
modelos normativo-prescritivos do direito — a regulatory failure —, e justifica-
ria a procura de um direito pós-instrumental ou de modelos jurídicos pós-instru-
mentais. Abundam também as propostas nesse sentido. Aludirei também apenas
a algumas. Tanto uma “reformalização” do direito que, na coerência do actual
neoliberalismo, regressasse às normas gerais e abstractas enquanto condições de
garantia da acção autónoma por que se exercesse a liberdade — proposta a que
voltaremos, na consideração dos novos projectos de autonomia do direito —
como, numa perspectiva diferente e de maior cedência à actual situação social,
um direito autoconstituído ou de autorregulação pelas instituições ou associa-
ções socialmente diferenciadas, que seria a expressão do já aludido “neocor-
porativismo” e a traduzir-se no social “pluralismo das fontes” do direito ; tanto
as atitudes de retracção e mesmo juridicamente negativas de “deslegalização”,
de “descriminalização”, de “desjurisdicionalização” (na procura de formas não
judiciais de resolução de conflitos), etc., como a horizontalidade de um direito (i.
é, de prescrições e regras) de imediata e espontânea expressão social, resultante
de contínuas acções concertadas, de transacções e precários acordos segundo o
lema each with each ou provindo de uma espécie de forum de aberta negociação
social (a “contratualização das leis” e do direito) — no fundo, o “direito social”
de que nos fala e propõe François Ewald; tanto um “diritto mite”, um direito
dúctil e de flexível adaptação, como a redução da juridicidade ao procedimen-
talismo apenas, numa sua reprocedimentalização, e sobretudo, na mesma linha,
a aceitação de um simplesmente “direito reflexivo”, preocupado tão só com as
“constituições externas” dos diversos subsistemas sociais e enquanto mecanismo
que, na renúncia a imposição de soluções normativas prévias, apenas condicio-
nasse o modo de autonomamente as obter numa contínua e autopoiética refle-
xividade, e do mesmo modo numa aprendizagem atenta às externalidades e aos
resultados. Já na outra e segunda direcção referida, assumindo-se uma forte e
plurifacetada atitude crítica e desconstrutivista relativamente ao projecto e às di-
versas “narrativas” da modernidade, na recusa de quaisquer pretensas unidades,
de quaisquer racionalidades totalizantes e integradoras, e na proclamação de plu-
ralísticas diferenças irreconciliáveis, visa-se uma expressamente autodesignada
“jurisprudência pós-moderna” em que também todos os pluralismos, todas as

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possibilidades divergentes, toda a complexidade e a ampla abertura interdiscipli-


nar, a própria incerteza, haveriam de ter lugar numa juridicidade dinamicamente
aberta, assistemática e irredutora — e tudo porque viveríamos hoje num mundo
humano radicalmente diferente e que se haveria de reconhecer verdadeiramen-
te sem logos (recorde-se o actual e enfático repúdio do que seria o tradicional
logocentrismo), sem nomos (que só a inaceitável pressuposição de uma norma-
tiva validade indisponível sustentaria) e sem telos (as teleologias, quando ainda
tivesse sentido invocá-las, seriam tão só e sempre resultado contingente e inde-
terminado da aberta, variável e livre autopoiésis). Aliás perspectiva esta de uma
“jurisprudência pós-moderna” em muitos aspectos dificilmente diferenciável do
movimento dos “critical legal studies”, não obstante a distância que aquela se
afirma perante estes (Costas Douzinas and Ronnie Warrington, Posmodern Ju-
risprudence, The law of text in the texts of law, 1991, passim), em termos de se
poder porventura dizer que, ao postularem ambos “a contingência do direito e a
pluralidade da experiência jurídica” e do mesmo passo proclamarem “o fracasso
das concepções tradicionais da razão jurídica”, que teria de ser radicalmente ou-
tra, se distinguem apenas porque os Criticals Studies nessa sua crítica e procura
reflectem, como já foi aludido, mais o contexto político-jurídico americano, e
a jurisprudência que se diz pós-moderna convoca sobretudo as referências cul-
turais europeias e numa preocupação menos ideologicamente política do que
filosófica e ético-cultural. Mas aqui ainda segundo duas orientações distintas:
uma, apelando radicalmente à “justiça”, embora uma “outra justiça”, uma justiça
“desconstruída”, numa incondicionada referência ética e em contraponto à dis-
tinção moderna justamente entre ética e política, e assumidamente transjurídica
— a justiça à outrance do reconhecimento absoluto do “outro”, momentânea,
singular, contingente e situacionalmente concreta, a mobilizar simultaneamente
“direito e literatura, jurisprudência e estética, filosofia e retórica, a fala e a es-
crita, a palavra e o mundo”, justiça essa que não deixaria de ser no limite “uma
justiça sem direito”, posto também se diga, talvez por isso, que “justice is un-
pronounceable” que “what justice is, we never know” (Id., op.cit., 183, 186).
Na outra orientação, que visa sobretudo um novo tipo de pensamento jurídico,
aludiremos, dentre muitas outras que se oferecem, a uma posição exemplar nesse
sentido — a titulada por Karl-Heinz Ladeur. Assim, considerando que a solução
não estaria já em qualquer autonomia e clausura autopoiéticas, como, p. ex., as
convocadas pelo funcionalismo sistémico, pois não se poderia pensar mais em
reduzir apenas a complexidade, e se trataria antes em constituir um novo mode-
lo susceptível de corresponder e de assimilar, sem simplificações e em termos
não lineares, a pluralidade de perspectivas, a multiplicidade das possibilidades
e de formas-de-vida caraterizadoras da nossa actual realidade social e do nosso
tempo, implicaria tudo isso a aceitação de uma “legal culture of incertainty”, um

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modelo de juridicidade de índole experimental, com uma flexividade e um pro-


ceedimentalismo não unidimensionais, mas aberto e dissipativo em que se daria
relevo a todas as posições de impositiva consequência social — isto decerto com
desenvolvimentos e segundo uma dialéctica que agora não consideraremos.
A estas perspectivas e propostas, que umas às outras se sucedem, muitas
mais se podiam acrescentar no seu contínuo proliferar, mas as referidas não só as
temos por principais como são suficientes para ficarmos a par da sentido actual
das preocupações do pensamento jurídico — digamos pensamento jurídico “pós-
-paradigma”. E para podermos também concluir que essa profusão de perspecti-
vas e propostas mais do que a saudar como a fulgurância de uma riqueza, verda-
deiramente se oferece como o caos do desfazer da feira — em que a chegada de
um fim se reconhece e a exigência de um novo começo se exige. Em que a crise
(não apenas do paradigma da legalidade, também do sentido do direito) é uma
evidência e a crítica o imperativo. Mas crítica no seu muito específico sentido:
não fragmentária análise e consideração de aspectos negativos num diagnóstico
do que se haja de ter já por insustentável no pensamento dominante e se pre-
tenda superável mediante propostas parcelares e correctivas, seja por alteração
ou substituição, seja por invocação de outras dimensões ou de outros pontos de
vista, seja por redução ou abertura, etc., e tudo por exigências “externas” ou
contextuais, como foi em boa medida o que até agora temos visto e em que o
“sistema” criticado, se não subsiste no essencial, também não depara com uma
sua autêntica alternativa — o mesmo que se poderá dizer num paralelo, p. ex., do
pensiero debole perante o tradicional ontologismo metafísico (v. o nosso “Uma
reflexão filosófica sobre o direito…”. In: Digesta, vol. 3, 86-88) e expressamente
vemos considerado relativamente aos Critical Studies (v. DOUZINAS, Costas;
WARRINGTON, Ronnie, op. cit., 139) — mas uma reconstituição global do
sentido das coisas com vista a um novo começo de compreensão, de intenciona-
lidade estrutural e de realização, e que possa ter-se então, mas só então, verda-
deiramente por uma alternativa.

4. ANDANTE

4.1. Os problemas radicais que há a repor numa intencionalidade crítica de


reconstituição
O que exige, só terá sentido e mesmo será possível pela reposição dos pro-
blemas radicais de que a crítica, que se nos revelou necessária, seja uma reno-
vada solução, pois só esses problemas, pelas também fundamentantes soluções
que solicitam, nos podem convocar a um novo princípio reconstitutivo. Novo
princípio, para além da erosão paradigmática que entretanto passou a ser apenas

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

uma acumulação sem fim e obstrui a clareza do horizonte — que tanto é dizer, o
que de fundamental importa pensar.

1) E todavia uma antecipante pergunta se terá de formular e que não menos


as circunstâncias impõem: porquê afinal essa intencionalidade de crítica supe-
ração, porque não a conformada aceitação da realidade a que se chegou e aí
está na sua justificação evolutiva, conformada aceitação já num qualquer amor
fati, já reconhecendo, porventura hegelianamente, que a história se impõe sem
que nós verdadeiramente a façamos e que apenas nos restaria ir comentando ex
post em atitude metahistórica? A resposta será esta, de uma simplicidade não
ingénua, nem trágica: porque a história não é uma irracionalidade, em absoluta
contingência, nem a temos de considerar apenas a posteriori, antes no momento
presente das res gestae somos nós apesar de tudo os seus agentes e delas temos
a responsabilidade. Assim no-lo revela a dialéctica da própria história em que se
manifesta a condição transcendens e constitutiva do homem, a condição da es-
piritualidade humana, que ao interrogar, para além das coisas e do factum da re-
alidade, pelo sentido do que vive e quer viver, visa um fundamento constitutivo
do novum de uma outra, de uma diferente e constituenda nova realidade. Dir-se-á
que assim se assumem as exigências do que, com Lon Fuller, se poderá dizer
“the morality of aspiration”, a do apelo à plena realização das possibilidades
humanas. E sobretudo, importa acentuá-lo, quando a experiência histórica atinge
um seu limite, o limite do como então vivido, e se impõem as perguntas últimas e
sobre os “últimos” — sobre os problemas radicais numa necessária recuperação
do sentido historicamente esgotado ou pervertido, ainda que sentido também
entretanto dogmatizado e portanto a prenunciar uma atitude de desespero e nii-
lismo (Sobre a dialéctica que apenas deste modo se alude, v. a nossa monografia
Questão-de-facto — Questão-de-direito, $ 3º, 63, ss.). E não estamos — não
apenas pelo que foi dito relativamente ao universo jurídico, mas globalmente
em referência à experiência e ao actual momento humano-histórico que em ge-
ral vivemos — numa dessas situações em que se experiencia um limite, que o
proliferar de propostas e derivas esotéricas apenas iludem, e em que já por isso
somos remetidos aos problemas radicais em que tudo se recupere com sentido?
Nem será difícil reconhecer que hoje os problemas radicais são fundamen-
talmente dois e que ambos, na intencionalidade da sua própria interrogação, con-
vocam justamente o sentido — que tanto é dizer, a transcensão de significação
em que o homem se compreenda na existência e para a sua realização nela. O
problema metafísico — o problema do sentido do mundo no seu existir e para a

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nossa existência — e o problema prático — o problema do sentido do encontro


do homem com os outros homens e do modo desse encontro também no mundo.
Antes, no entanto, de a esses problemas directamente nos dirigirmos, sobretudo
ao segundo, na procura da resposta-solução que lhes deva corresponder, importa
compreender o actual fundo humano-cultural e até civilizacional de que eles
emergem e nos permite atingir o seu último contexto de inteligibilidade.

2) Assim, as civilizações culturalmente perspectivadas conhecem sempre,


no núcleo das suas diferenciáveis épocas históricas, capitais polaridades refe-
renciais que, na sua tensão contrapontística, são as agónicas matrizes culturais
dessas épocas e da compreensão do homem nelas. Justifica-se por isso que re-
pitamos aqui uma alusão — originalmente referida a outra oportunidade — às
polaridades que a nossa história cultural conheceu, que são ainda decerto o lastro
evolutivo que nos constitui, para chegarmos ao esclarecimento daquela que, sem
exclusão embora das que a antecederam, marca sobretudo o nosso tempo e que
será assim o decisivo contexto reflexivo a que aludimos.
Foi desse modo que para os gregos a determinante polaridade cultural, re-
ferida pela existência e nela condicionava o sentido de tudo, era a de o Ser e a
tragédia, como para o homem medieval foi a de Deus e o pecado, a da moder-
nidade a de o homem e a ciência e a nossa actual, compreendê-lo-emos, é a de a
liberdade e o sentido.
Se ao Ser se referia a ontológica última pré-determinação de tudo, no enten-
dimento de que o Ser seria o sentido, tanto do mundo e da sua existência como
dos homens e da sua acção, numa metafísica necessidade que verdadeiramente
excluía o irromper da novidade e da própria história, o contraponto a essa ordo
definitiva, acabada e perfeita, que era vivido na excepção, no fatum sofrido mas
também nos deuses transgredidos, na ruptura e no apelo que transcende, na espon-
taneidade irracional e no impulso vital, na surpresa do acontecimento ou no “aca-
so” em que se manifesta, ontem como hoje, a nossa fragilidade e vulnerabilidade
(.v. NUSSBAUM, Martha. The Fragility of Goodness, 1986), encontravam-no os
gregos na tragédia. É como se à ordem plena do ser se reconhecesse o contrapon-
to, e no próprio ser afinal manifestado, duma contradição irredutível — “a antiga
tragédia, nas palavras de Ratzinger, é a explicação do ser com base na experiência
do mundo contraditório, do qual inexoravelmente resulta o fracasso e a culpa”. O
que significará — e prescindindo agora de considerar o jogo apolíneo-dionísico
na suposta origem da tragédia, a intuir um “uno primordial” de originária abertura
para além da ordem aparente da “serenidade helénica”, segundo Nietzsche — que

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

à ontológica necessidade essencial se contrapunha um também essencial e não re-


dutível novum que irrompia na realidade humana ou nela se sofria, ainda que para
uma última intencionada reintegração global da liberdade e da necessidade, como
foi bem evidente nos estóicos, na justamente por eles pensada “liberdade para a
necessidade”, e que, portanto, a agónica polaridade entre os dois seria a expressão
fatal do homem, afinal o ser agónico autenticamente.
O que para o homem medieval — digamos, genericamente e exactamente,
para todo o bíblico Cristianismo e também o actual — teria outra manifestação,
mas no fundo o mesmo humano sentido, no contraponto que de Deus era agora
o pecado: a omnipotência de Deus, na Sua vontade e providente sabedoria, a
que se submetiam a Criação e todas as criaturas, nem por isso excluía o pecado,
pois no “ante Deus” (P. Ricoeur) da exigência infinita da Transcendência e no
apelo da Aliança ele ia implicado na sua radical possibilidade, e com ele e nele
a liberdade que também necessariamente pressupunha — nesse “apelo absoluto
e na correspondência ou recusa por parte do homem que é o jogo originário da
liberdade”(M. Baptista Pereira) —, liberdade prefigurada mesmo na luta entre
Jacob e o Anjo-Deus, e o homem nessa polaridade era a liberdade que pode
pecar — que tanto é dizer, desviar-se de Deus e mesmo transgredi-Lo: foi-lhe
proibido, mas não impedido, que comesse da árvore e o homem comeu — peran-
te aquela vocação a que haveria de re-spondere na culpa, enquanto o “momento
subjectivo” de que o pecado é o “momento ontológico”(P. Ricoeur). Foi desse
modo que, contra a inocência pagã e essencialmente com o pecado, a culpa en-
trou definitivamente no finito universo humano. Refiro-me só ao pecado — e não
ainda ao amor, possibilidade beatífica do homem a que pela santidade também,
ou sobretudo, é chamado: aí não há contrapólo, já que “Deus é amor”–, e em
toda a sua extensão, inclusive quando pareceria o contrário, como na música de
Mozart, sendo que, segundo a compreensão de Hans Urs von Balthasar e dito de
uma forma admirável, também aí está presente o pecado “na confissão da graça”.
E se no homem moderno passou o próprio homem a ser o primeiro pólo,
numa antropológica reivindicação de autonomia perante toda a transcendên-
cia, de Deus, da comunidade e da história, para que se afirmasse a ipseidade do
“sujeito”, não deixava com isso de se lhe contrapor o mundo, mundo-natureza,
posto que não já expressão do ser e sim enquanto manifestação da experiência
empírica — contraposição essa que teria a sua determinação na ciência, e num
último projecto de domínio que veio a ser técnica, também pela ciência (F. Ba-
con, Descartes). E em termos agora, numa dialéctica de preponderância evoluti-
va, o homem, na sua liberdade e na prática que esta constituiria, inevitavelmente
passar a ser, ou projectar-se, ele mesmo em objecto de ciência — de sujeito
volve-se em objecto, e objecto experimental (cfr. M. Jorgen, Der Mensch ist sein

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eigen Experiment). Ciência tornada a instância última — e daí os limites que, em


reacção crítica, lhe definiria Kant e a proclamação igualmente por ele dos direi-
tos e da irredutibilidade da “razão prática”, com os seus postulados metafísicos.
O que foi uma primeira experiência dos efeitos e o grave problema da polaridade
cultural em último termo recusada numa hipertrofia de um dos seus pólos — o
que seria afinal, paradoxalmente e por obra dele, a negação do próprio homem,
na sua essência polar. A hipertrofia do científico (científico-tecnológico) a que a
libertação dos interesses — possibilitada pela quebra do religioso e do ético —
levaria a associar-lhe o económico.
Assim se chegaria ao nosso tempo e desse modo ele se constituiria. O cien-
tismo não se suspendeu no séc. XIX — reconhecemo-lo na “nova aliança” a que
Monod aspirava, afinal a “epistemodiceia” de Serres, e não menos na também
aludida invocação da ciência para a solução impossível do problema prático — e
o economicismo volveu-se no aparentemente único horizonte prático-social. O
que a pujante manifestação entretanto igualmente da arte, na expressão literária,
plástica e musical, não logrou decerto compensar. E daí que a quebra daque-
las dimensões capitais a que nos temos referido e que se pensariam naturais
ao mundo humano pudessem ter uma confirmação expressa, e comprazida, nas
mortes que se proclamaram: a morte de Deus (Nietzsche) e assim da referência
de sentido e fundamentante à Transcendência; a morte da história, a significar
quer o termo da criação de novidade e da abertura de futuro (Fukuyiama) quer
da responsabilidade que viria do seu vínculo imanente (Perry Anderson); a morte
da consciência na sua explicativa redução bio-psicológica (Freud); a morte do
próprio homem (M. Foucault) com os ilusórios valores do “humanismo” em que
humanamente se realizaria. Só que, se ao nosso actual mundo humano o não
tivermos de ver como um mundo de morte que se afunda no nada, há que pergun-
tar perante todas essas mortes: mortes todas essas para que viva o quê? Creio que
a resposta pronta e veemente que se proclama é esta — mesmo quando parecerá
o contrário, como em Freud — e num grito final à emancipação: a liberdade,
para que viva a liberdade! E assim tocamos o ponto decisivo em que uma nova
polaridade — a polaridade de nós homens nesta nossa actualidade — se haverá
de constituir. É que essa liberdade consequente ao vazio não pode ser ela mesma
uma abertura vazia — o que seria uma liberdade de absurdo e que desse modo a
si mesma se negaria — assim como não será, em alternativa, a da vontade abso-
luta da autonomia incondicional que em si mesma assuma o infinito — como na
liberdade kantiana e do idealismo posterior e sobretudo, mas de modo diferente,
na “obstinada liberdade” de Sartre —, já que nessa liberdade, num caso e noutro,
também menos o homem autenticamente se reconheceria, pois o homem só o
é na sua existência, no ser e na história, pelo transcender-se a algo convocante

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com que dialogue na procura da resposta às perguntas fundamentais. O homem,


vimo-lo antes e temos de repeti-lo agora, existe sempre numa polaridade de agó-
nica dialéctica. Qual é, pois, essa outra polaridade, a nossa, em que constitutiva-
mente nos reconheçamos? Mas com uma exigência particular hoje, uma vez que
no nosso mundo humano só fomos encontrando esvaziamentos — essa nossa
outra polaridade, não a encontramos já disponível, haveremos antes de a cons-
tituir como uma irrecusável exigência de humanidade no nosso tempo. Nem se
estranhará que assim seja, pois as condições do tempo actual apenas tornaram
de todo evidente a dialéctica, agora como que no próprio Kairos da história, que
aí está a convocar o homem e em que ele não pode deixar de se comprometer.
Tenho-me referido, para caracterizar essa dialéctica, à dialéctica entre “crise” e
“crítica”, e neste momento melhor convirá falar da dialéctica entre o termo civi-
lizacionalmente cultural e a superação culturalmente reconstituinte — assim se
faz a história e ela nos convoca. E porque grave é o termo civilizacionalmente
cultural que estamos a viver, mais exigente e de irrenunciável responsabilidade
será o reconstituinte superador. Também aqui estamos perante uma “dialéctica
negativa” de exigências fundamentais. E creio que as encontramos na polaridade
liberdade e sentido — a querer dizer que a liberdade não a podemos compreen-
der hoje como a mera disponibilidade de um vazio residual e redutor que como
tal nos anulasse, mas como a abertura convocada e responsabilizada por referên-
cias trancendens que nos realizem na nossa humanidade. Pela proclamação das
mortes referidas, e seja ou não fundada essa proclamação, não se pretenderá que
regressemos radicalmente a nós para aí ficarmos vazios e sim para nos abrirmos
sem obstáculos à possibilidade dessa nossa realização. Pelo que a polaridade
referida será hoje a nossa tarefa e a nossa responsabilidade o assumi-la. Pois
o sentido é isso mesmo, a referência transcendentemente convocante que pos-
sibilita a realização da liberdade. “Presença real” (de que afinal Deus não está
ausente) o disse George Steiner. E se passarmos do singular convergente à plura-
lidade da sua manifestação, explicitaremos dizendo que os sentidos são assim as
referências espiritualmente culturais que convocam ao transcender da realização
humana — como fundamentos, orientações e compromissos da liberdade.
Com um último ponto: o sentido e os sentidos não os temos de compreender
como meras criações humanas e de que o homem de todo disponha — como se
tende a pensar e alguns, como Castoriadis, expressamente proclamam —, antes
os vemos, sem termos de o justificar agora, como respostas humanas, histórico-
-culturais humanas, ao apelo absoluto da Transcendência.

3) Ora, é assim ou neste fundo humano-cultural e civilizacional que, como


tínhamos começado por referir, os dois aludidos problemas radicais se nos põem

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e do mesmo modo compreendemos como a resposta que eles esperam nos con-
voca à nossa responsabilidade humano-culturalmente constituens.
O problema metafísico deixemo-lo de lado, já que o nosso é antes de mais
o problema prático. Sem deixar todavia de ter presente que o problema meta-
físico é, evidentemente, o último horizonte de todos os outros problemas, mas
no reconhecimento também de que com isso não só não fica anulada ou sequer
reduzida a especificidade desses outros problemas diferentes como não se obterá
a solução destes na directa e acrítica consideração daquele — o que nem sempre
foi e continuamos a não ver respeitado. Uma directa referência a uma perspec-
tiva metafísica enquanto fundamento do problema prático era decerto o que no
fundo caracterizava o pensamento do “direito natural”, quer o clássico, quer o
moderno. Só que, o direito natural clássico era referido, como todos o sabemos,
a uma concepção onto-teleológica de base aristotélica e no pressuposto de uma
compreensão do ser como ordem imutável e eterna (assim fundamentalmente
no-lo diz Aristóteles, na Metafísica, I, Livro E), afinal só uma concepção e um
pressuposto culturalmente gregos e assim decerto não necessários, e antes já tão
duvidosa uma como inaceitável o outro. E o direito natural moderno implicava
uma onto-antropológica concepção que o homem moderno de si próprio se pos-
tulava e, portanto, não era menos uma projecção cultural culturalmente condicio-
nada. Depois, e a atingir ambos os jusnaturalismos, terá de considerar-se, igual-
mente bem se sabe, a “descoberta” da “subjectividade” — que se viria a pensar
crítica ou transcendental — e desse modo o reconhecimento do homem e da sua
poiésis, digamo-lo assim, como parte também do problema e com isso a impli-
cação da historicidade constitutiva (que não significa mero historicismo), com a
consequente mediação histórico-cultural humana que viria a pôr definitivamente
em causa as indisponíveis necessidades metafísicas, particularmente no universo
prático. O problema prático e a sua solução revelaram-se da responsabilidade e
criação culturalmente humanas. Pelo que as “verdades” ditas “evidentes” e como
tais proclamadas, por exemplo, na Declaração da Independência dos Estados
Unidos da América não eram, efectivamente, senão isso: criações histórico-cul-
turais de que, pela sua força no entendimento epocal da prática polItico-social,
se havia deixado de duvidar. Sem que esta conclusão tenha de significar — como
considerava Leo Strauss e muitos outros com ele — a queda no “relativismo sem
reservas” do “historicismo” e que “rejeitar o direito natural é o mesmo que dizer
que todo o direito é positivo, ou seja que o direito é determinado exclusivamente
pelos legisladores e os tribunais dos diferentes países”, quando “é perfeitamente
sensato e por vezes mesmo necessário falar de leis ou de decisões injustas” e
assim reconhecer que “há um padrão do justo e do injusto que é independen-
te do direito positivo e lhe é superior”. Pois, como se verá, a referência a um

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fundamento normativamente transpositivo, fundamento do “justo e do injusto”


positivos, não implica, como alternativa também necessária, a solução metafísica
do direito natural. O que igualmente não significa, vistas agora as coisas do outro
pólo, a conversão da tradicional intencionalidade teórica (na significação origi-
nária e mesmo etimológica do termo, ou “contemplativa”) do problema metafí-
sico para uma sua intencionalidade radicalmente prática no sentido constitutivo,
como foi em último termo a do idealismo alemão, numa recuperação, posto que
assim de perspectivas diferentes e mesmo opostas, da unidade, sem hiatos nem
mediações, entre o problema metafísico e o problema prático ou de uma imediata
implicação daquele neste. Há que reconhecer, insista-se, a distinção e a relativa
autonomia entre os dois problemas — e com ela, do mesmo modo, também a
inconcludência da tentativa de anulação redutiva do problema metafísico, que
foi acalentada depois pela deriva do cientismo de oitocentos, mas em vão como
também adiante veremos. Só que o problema metafísico não é hoje intencionado
nos termos como classicamente o foi: antes que o da referente determinação de
uma ousia absoluta (ou do “mesmo” subsistente), digamo-lo também assim, é
o da compreensão do sentido numa assunção convocante — com a significação
e na coerência, esta diferente atitude, da actual polaridade referencial que atrás
dissemos própria do nosso tempo. O problema metafísico repô-lo nestes termos
Heidegger, perante o domínio avassalador da técnica (perante a absolutização do
científico-tecnológico), ao interrogar pelo Sinn des Sein (sentido do ser), atra-
vés da pergunta “porque é em geral o ente e não antes o nada” (Einführung in
die Mehaphysik, 1953) e para que antes começara a procurar a resposta, todos
o sabemos, com a analítica do Dasein em Sein und Zeit (1927),. Pergunta pelo
“sentido do ser”, e não já determinação onto-teológica da “ordem do ser”, como
fora próprio da metafísica tradicional, a que o homem devia agora responder,
assumindo-o. Embora com o poderoso contraponto, pensado por E. Lévinas, no
apelo a um transcender ético pela invocação do infinito, não da “totalidade” ou
do todo (hegeliano), através do “outro”, outro manifestado como rosto e radi-
calmente responsabilizante, e infinito em que se haveria agora de intencionar o
sentido, o sentido “para além do ser” ou reconhecendo-se que o ser não é afinal
o sentido (Sobre este pensamento ético-metafísico, v Totalité et Infinit, 1980; a
colectânea de ensaios Entre nous. Essais sur le penser-a-autre, 1991; também
Dieu, la morte et le temps, 1993, na sua segunda parte; e muito especialmente
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, 1974). E se o sentido “metafísico” de
uma ou de outra forma assim nos convoca, nem por isso temos imediatamente
nele a compreensão e a resposta do problema prático e somos poupados à media-
ção da nossa autonomia também responsabilizada por ele. Sem que todavia se
deixe de continuar a ver por diversas formas a tentativa de um directo arrimo no
problema metafísico, ou em algumas das suas particulares consequências, para

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o problema prático: em primeiro lugar, pela projecção neste problema sobretudo


da restauração filosófica da hermenêutica que a compreensão do sentido do ser
no Dasein oferecia, particularmente nos seus desenvolvimentos específicos por
Gadamer; em segundo lugar, a convocação da responsabilidade infinita pelo ou-
tro como “fonte” radical do sentido e em todos os planos foi em grande medida
responsável, graças também a alguns epígonos, como Derrida, pela referência ao
absoluto ético em algumas das tentadas soluções para o problema prático — o
que não deixará de suscitar as mais justificadas reservas, nessa imediata trans-
posição. Quanto à hermenêutica, considerámo-lo já noutra circunstância; quanto
à solução também desse nosso problema pelo absoluto ético — de que vimos já
antes alguns afloramentos — adiante se dirá o que nos parece pertinente.
Passemos, pois, ao problema prático, já referido na sua intencionalidade geral
e que se concretizará nestes termos: o problema do sentido da prática humano-
-social nas actuais condições específicas dessa prática — isto é, considerados os
pressupostos e a intencionalidade, a estrutura e as exigências particulares dessa
prática. É antes de mais este problema que nos importará compreender, na espe-
cificidade do sentido que constitutivamente o diferencia, para a crítica procura da
solução que hoje lhe seja própria.

4) Os homens na transfinitude intencional da suas acções individuais não só


coexistem (uns perante os outros), mas convivem (uns com os outros) num certo
espaço humano, num mesmo mundo. Esta pressuponente pluralidade individual
na unicidade do mundo — o mundo é um e os homens nele são muitos — acaba
por constituir uma estrutura dinâmica de dimensões contrárias, posto que não
contraditórias: à espontaneidade e autonomia da tranfinitude individual, na sua
contínua diferença dispersiva, é correlativo o comum do mundo humano com-
partilhado, na sua unidade integrante enquanto o próprio mundo da convivência.
Daí que, que desta estrutural negatividade de cada uma das dimensões contrá-
rias como contraponto irredutível relativamente à outra, ou desta “social inso-
ciabilidade” (Kant), se quisermos, se nos imponha um problema específico, o
problema, em último termo, da humana integração convivencial de autonomias.
Problema que Robinson Crusoe levou consigo para a ilha do naufrágio e que
logo se tornou explícito com a aparecimento de Sexta-Feira. Problema ainda,
sem cuja exigível e adequada solução o que teremos é a impossibilidade mesma
da concreta existência humana.
Ora, compreendido o problema prático com este sentido específico, uma in-
ferência se pode desde logo enunciar: que o tipo da solução exigível — o tipo de
solução antes mesmo do determinante conteúdo dela — haverá de ser coerente,

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na sua índole e nas suas implicações, com esse seu sentido, com esse seu sentido
problemático que o diferencia como problema prático. Exigência esta que, não
obstante a sua evidência, nem sempre tem sido respeitada. E daí as atitudes pro-
blematicamente diferenciáveis que criticamente termos de considerar.

5) Em primeiro lugar, a atitude que diremos de elisão redutiva do problema.


Aquela que, em último termo, visa um tipo solução para o problema prático que
afinal o exclui, com ser pura e simplesmente incompatível com o sentido des-
se problema. Referimo-nos ao tipo de solução que a ciência ofereceria, que na
ciência se deveria procurar — e ciência decerto no sentido teorético hipotético-
nomologicamente explicativo e na suas consequências tecnológicas operatórias.
Aspiração acalentada com a modernidade e a partir dela para que nessa base se
abandonasse a antiga por uma “nova aliança” (Monod), do mesmo modo que
uma “epistemodiceia” ocupasse o lugar que fora da teodiceia (Michel Serres) —
para que os sábios expulsassem os profetas no projecto de um “homem novo”
que seria afinal a tarefa da ciência (A. Supiot).
A intenção como que estaria assim em superar a distinção aristotélica entre
theorie (a actuar pela “virtude intelectual” do epistéme necessário) e praxis (a
competir já à deliberativa virtude da phronêsis na contingência) pela imputação
desta às possibilidades daquela. Decerto teoria agora com o sentido, na inten-
cionalidade e no modelo metodológico, já aludido e que adquiriu com a ciência
moderna e actual, mas sempre com o objectivo, que as potencialidades univer-
sais e globais dessa ciência justificariam, de justamente eliminar a contingência
decisória da acção, enquadrada mas não vencida pela apenas contrafactualidade
normativa — em último termo, para eliminar mesmo o normativo, com o ale-
atório da liberdade que implica e pudesse então dizer-se, em coerência conclu-
siva que a redução científica autorizaria, que o direito, enquanto autónoma e
essencial solução do problema prático e que o pressupõe, como melhor se verá,
afinal perante a ciência “já não tem uma palavra a dizer” (cfr.Alain Supiot, Homo
Juridicus, 2005, 229). Embora com modalidades diversas de realização do ob-
jectivo, no comum fundo redutivo desse espírito e dessa aspiração científicos de
resolver a prática pela teoria. Modalidades de que referiremos tão só duas princi-
pais. Abstraindo do grande projecto filosófico — e justamente porque filosófico,
mesmo metafísico, e não estritamente científico — das filosofias da história, a
enunciarem o sentido determinante da realização da humanidade em referência,
não à acção assumida, mas a “estruturas objectivas da evolução da espécie hu-
mana” (Cfr. HABERMAS, J. “Dogmatismus, Vernunft und Entscheidung — Zu
Theorie und Praxis in der verwissenschaftlichten Zivilization”. In: Theorie und

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Praxis,1978, 307), há que considerar quer o projecto, já de expressão tradicional,


de substituir o governo dos homens pela administração das coisas, mediante a
reorganização institucional das sociedades na perspectivas de objectivos pro-
gramados e orientação e contrôle dos comportamentos em correlativa funcio-
nalidade, quer específicos modelos teleológico-estratégicos de intencionalidade
e organização científicas (teoréticos estruturais e analítcos) em que a prática se
converte em tecnologia. (organização experimentada dos meios para realizar os
fins). Como exemplos da primeira modalidade, recordem-se a physique sociale
de Comte, com o seu global projecto político-social com base num positivismo
sociológico de ampla repercussão (pense-se no Brasil de oitocentos), o seu pre-
cedente de uma “sociedade de engenheiros e industriais” de Saint-Simon e dos
seus sucessores, decerto menos tecnologicamente unilaterais na aspiração e nas
propostas, como Monod (a preconizar, repita-se, a substituição, com base na
ciência, da “antiga aliança” por uma nova aliança cultural e ética), Popper (advo-
gando a directa aplicação do epistemológico “racionalismo crítico” ao governo
da sociedade e a toda a conduta que quisesse ser racional), M. Serres (a dizer-
-nos, nada menos, que hoje “a física é o direito natural”), Forastié (a convocar
as “soluções” científicas a obter e chamadas a superar as “decisões” morais com
que até agora nos teríamos resignado) e muitos outros — e em todos a mobiliza-
ção resolutiva da antropologia científica, das ciências biológicas e psicológicas
do comportamento, das ciências sociais da comunicação e de gestão, da linguís-
tica sobretudo na dimensão pragmática, da teoria analítica da decisão, da ciência
económica, etc. Como exemplo dos modelos aludidos em segundo lugar, basta
ter presentes, desde logo, e numa privilegiada projecção da última ciência refe-
rida, o forte movimento de Law and Economics, a pretender converter o direito
e mesmo em geral todo o comportamento, se não à economia, seguramente aos
esquemas económicos e ao tipo de ponderação e cálculo dessa índole. Assim
como, num plano já da teorética cientificidade empírico-tecnológica, tem aqui
lugar a referência à proposta de Hans Albert, em expressa inspiração no raciona-
lismo crítico de Popper e no paralelo da explicativo-compreensiva “sociologia
do direito” de M. Weber, de uma “ciência do direito” como uma Realwissen-
chaft, isto é, uma ciência do direito não já normativo-dogmática e hermenêutica
no sentido tradicional, mas segundo a concepção alternativa de uma ciência do
direito “naturalística” que considerasse as normas jurídicas também não no seu
comum entendimento normativo e antes como sociológicos “esquemas de direc-
ção social” e em que também as “ciências naturalísticas” (empírico-explicativas)
contribuiriam para a preparação das decisões, já que não se trataria de saber o
que se deve fazer, mas só do que se pode fazer e do que se terá de fazer para
alcançar determinados fins — ciência do direito elevada assim ao nível de uma
“prática racional”, com o objectivo exclusivo de regulação social e convertida,

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expressamente assim se declara, numa “tecnologia social” (v HALBERT, Hans.


Traktat rationale Praxis,1978, 60 ss.; Id., “Erkenntnis und Recht, Die Jurispru-
denz im Lichte des Kritizismus”. In: Rechtstheorie als Grundlagenwissenschaft
der Rechtswissenschft, Jahrbuch fur Recchtssoziologie und Rechtstheorie, Band
2, 80,ss.; Id., Rechtswissenschaft als Realwissenschaft, Das Recht als soziale
Tatsachte und die Aufgabe der Jurisprudenz, 1993).
Elisão redutiva esta do problema prático que imediatamente suscita críticas
relevantes. Uma, decerto fundamental, considera a invalidade ontológico-cul-
tural a reconhecer em geral, que não apenas na problemática específica de que
curamos, da redução e mais ainda da eliminação do sentido pela necessidade,
da transcensão (cultural) pela explicação, da “subjectividade” pela objectivida-
de — sentido, transcensão e subjectividade que afinal também na ciência como
criação cultural se terão de reconhecer. (Em termos também gerais e a considerar
criticamente o projecto comum da redução do filosófico-cultural pela ciência,
já alguma coisa dissemos no nosso ensaio “Da ‘verdade’ especulativa e dog-
mática da filosofia às ‘verdades’ exactas e controláveis da ciência — ou o erro
da pretensa superação da filosofia pela ciência”, Lusografias, n. 6/7/8, ano III,
2007, 120, ss.). Uma outra crítica invoca a impossibilidade da redução em causa
pela confusão que traduziria entre o “poder de agir” e o “poder de manipular as
coisas” (Habermas), pois as recomendações técnicas que a esse manipular unica-
mente seria possível não resolveriam as questões práticas suscitadas pelo poder
de agir e que encontrariam imediata expressão tanto na opção selectiva dos fins
como no juízo sobre a validade dos meios. Crítica que não temos, no entanto,
por totalmente insuperável, já que é porventura pensável uma científico-interdis-
ciplinar determinação dos próprios fins, convocando a antropologia evolutiva, a
psicologia de superfície e profunda, a ciência política, também a economia, etc.,
assim como, do mesmo modo, a validade dos meios poderia aferir-se, não só
tecnologicamente pela relação meio-fim, mas estratégico-consequencialmente
pelos efeitos. Pelo que especificamente decisiva será uma outra crítica que não
considera a última validade, como a primeira, nem apenas a possibilidade, como
a anterior, mas a essencialidade — uma essencialidade sineipeica, poderá dizer-
-se. Nestes termos: os programas finalísticos e esquemas operatórios, os factores
estruturais-analíticos e os efeitos empíricos, etc. próprios da redução teórica (te-
órico-tecnológica) da prática substituem-se, relativamente a esta, às referências
culturais, aos fundamentos de validade, aos critérios normativos e, assim, ao que
essas referências, esses fundamentos e esses critérios implicam de transcensão
espiritual, de autonomia, de responsabilidade, sendo que essas referências, fun-
damentos e critérios não referem a necessidade ou sequer a probabilidade, mas
convocam uma reflexiva assunção, positiva ou negativa, pelos seus destinatários

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e na acção. E então, eliminar ou, pelo menos como projecto, tentar superar da-
quele modo a espiritualidade, a autonomia e a responsabilidade no universo hu-
mano, no prático universo humano, é amputá-lo de uma dimensão essencial da
sua humanidade. O problema prático pode ser cientificamente incompreendido
ou ignorado, mas não é reduzível nem resolúvel pela ciência — parafraseando
Habermas, dir-se-á que o acréscimo do poder de manipular as coisas no mundo
da prática humana não se verifica senão com o acréscimo proporcional do irra-
cional no domínio mesmo dessa prática Pelo deslumbramento da ciência, obra
cultural também sua, não pode o homem no encontro existencial de uns com os
outros anular-se a si próprio.

6) Em segundo lugar e numa exigência crítica que se poderá ver menos clara,
já que somos agora remetidos, e de uma forma radical, para o global univer-
so prático, consideraremos a proclamação da solução para além do problema,
como será a solução metaproblemática procurada no absoluto ético. Pois se é
reconhecido desde Aristóteles que a praxis convoca a phronêsis, e que esta “não
releva da ciência (epistéme), nem da arte (thécné)” e antes traduz “a disposi-
ção prática, de acordo com um sentido orientador e verdadeiro, com vista ao
que é bem e mal para o homem” (VI,5,1140b,4) (utilizamos a edição bilingue
da Ética a Nicómaco, na tradução e notas de Maria Araujo y Julian Marias)
ou “a disposição racional verdadeira e prática a respeito do que é bom para o
homem” (VI,5,1140b,20), poderia pensar-se que a praxis é sem mais o domí-
nio indiferenciado da ética e que, correlativamente, a ética será globalmente a
solução da praxis, e todavia haveremos de reconhecer que a ética, considerada
não como padrão universal e indiferenciado do comportamento (êthos), mas no
seu diferenciado absoluto intencional, não refere o problema prático, tal como
o enunciámos na sua especificidade, e não nos pode por isso oferecer a sua so-
lução. O absoluto ético, compreendê-lo-emos em breves palavras, situa-se além
(ou, se quisermos, aquém) do problema prático, na sua especificidade sempre
considerado, e nesse sentido a diremos uma solução metaproblemática. Há, pois,
aqui um equívoco a desfazer. O equívoco que um leitura imediata também de
Aristóteles, atrevo-me a dizê-lo, poderá suscitar: na Ética a Nicómaco, e por-
tanto na reflexão em que a ética é o tema geral, se vemos o seu Liv. VI dedicado
às “virtudes intelectuais” também em geral e que se considera a phronêsis, já é
especificamente no anterior Liv.V que se pensa “a justiça”, dizendo-se-nos aí que
“chamamos justo ao que é susceptível de criar ou de salvaguardar, na totalida-
de e nas suas partes, a felicidade da comunidade política”(V,1,1129b,15) e que,
portanto, “a justiça é uma virtude perfeita, não absolutamente, mas em relação
a outro” (V,1,1129b,25), “porque quem a possui a usa para com outro e não

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só para si mesmo” (V,1,1130a,30), “em relação com outros e em comunidade”


(V,1,1130a,1) (aqui temos o ad alterum que nunca mais se deixou de referir à
justiça, posto que incorrectamente, já que a justiça, como o texto faz claro, tem
a ver antes com a inter-subjectividade comunitária) — tanto é dizer que, se as
virtudes intelectuais, entre as quais se conta a phronêsis, são virtudes “em si”
ou referidas à intencionalidade que em si cumpre ao comportamento pessoal, a
justiça implica a exigência posta pelo outro nas suas relações na comunidade ou
enquanto relacionados membros dessa comunidade, pelo que a justiça não visa
um absoluto, mas o relativo de uma proporcionalidade entre eles (seja correctiva,
aritmética ou geométrica) — “o justo é, pois, uma proporção” (V,3,1131a,25),
uma reciprocidade que “faz com que a cidade se mantém unida” (V,5,1132b,20).
No primeiro caso o problema é puramente ético, no segundo caso o problema já
é estritamente “político” — isto é, no específico sentido com que Aristóteles no
começo da Ética diz que esta é “uma disciplina política”, com ter a ver com a
“polis” — e mais não é afinal que o problema prático, com a sua específica pro-
blemática da dialéctica correlatividade de autonomias e do comum integrante.
Que a ética tem a ver com o absoluto intencional, mostrou-no-lo no nosso
tempo, de uma forma veemente, E. Lévinas. Já o referimos: a responsabilidade
pelo “outro”, ou o “amor sem concupiscência”, convoca-nos pelo seu “rosto” à
justiça infinita que lhe é devida, fundada no transcender absoluto do sentido, e
que se exprimiria no “dizer” original ou “pré-original” — “ordem mais grave
que o ser e anterior ao ser”, “significante antes da essência” — e assim pré-
vio e para além de todo e qualquer “dito” objectivante, seja ôntico-apofântico
ou dogmático-normativo (Autrement qu’être…, 17, 64. 78, passim). Só que, se
nestes termos o absoluto ético “carece originalmente de reciprocidade, pois a
reciprocidade ameaçaria o seu carácter gratuito, a sua graça e a sua caridade
incondicional”, por isso mesmo não pode esse absoluto ser solução do problema
prático ou reduzir o mundo prático, onde, nas palavras também de Lévinas, “de-
trás das singularidades únicas é preciso antever indivíduos do mesmo género, e
há que compará-los, julgar e condenar”, surgindo assim a “ordem da justiça”, a
implicar “o facto do terceiro que, junto àquele que é o meu outro, é para mim
‘outro outro’”, “surge aqui a obrigação de comparar” uns aos outros e a impor,
portanto, a “objectividade da justiça”, “o momento das instituições habilitadas
para julgar” (Entre nous…, versão cast., 194, 227, 276), ou, agora com P.Ricoeur
(Soi-même comme outre, sep. ét., esp. 227,ss.; Qui c’est le sujet du droit, in Le
Juste, 28, ss.), a implicar o “terceiro incluído” para além simplesmente da inter-
-relação “eu”e “tu”, através da “mediação institucional” e, como tal, a recuperar
a dimensão comunitária própria do problema prático. Daí que a ética se exprima
segundo mandamentos e a sua categoria seja o dever, enquanto a justiça implica,

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na intencional mediação dos seus fundamentos e critérios, antes direitos e obri-


gações correlativos e convoca integrantes responsabilidades.
A ética no seu absoluto — a impor a atenção, mesmo a responsabilidade,
pelo outro como outro na sua absoluta e incomparável singularidade — implica
por último o amor e acaba por remeter, no limite, ao horizonte e à vivência da
santidade, naquele sempre escândalo da justiça (relativa) perante o amor (abso-
luto), como nas parábolas do Filho Pródigo e dos Trabalhadores da Vinha, na sua
abstracção afinal do mundo prático. Daí que, ou no plano puramente ético, não
estejamos só para além do ser, estamos “também para além da “justiça” — quero
dizer, para além do problema prático especificamente. “A caridade, digamo-lo
noutros termos, supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que
é ‘meu’”, embora se deva também reconhecer que “nunca existe sem a justiça,
que induz a dar ao outro o que é ‘dele’, o que lhe pertence em razão do seu ser
e do seu agir” (Bento XVI, Encíclica Caritas in Veritate, Int., 6) Pelo que se
compreende que S. Tomás não tenha seguido Graciano, quando proclamava este
que o “direito natural” era o contido na Lei, nos dez Mandamentos e no Evange-
lho (Para um afastamento afim, vide, Álvaro D’Ors, Derecho y sentido comum,
Siete lecciones de derecho natural como limite del derecho positivo, 17-24), do
mesmo modo que, ou por razões análogas, se distanciaria de S. Agostinho, ao
não identificar, inspirado também no Dikaion aristotélico, o ius à lei moral, aos
mandamentos éticos da Lei, vendo antes o seu modelo no ius romanum, ou seja,
compreendendo a especificidade do problema prático-jurídico na sua autono-
mia. (Vide, sobre este ponto, e numa interpretação do pensamento de S. Tomás,
VILLEY, Michel. “Bible et philosophie gréco-romaine de saint Thomas au droit
moderne”. In: Archives de Philosophie du Droit, XVIII (1975), 27, ss.).
Tanto basta para concluir já pela diferenciação do compromisso puramente
ético relativamente à intencionalidade do problema prático, já pelo reconheci-
mento de não se poder encontrar a solução deste problema directamente naquele
compromisso. Estamos em campos problemáticos diferentes a implicarem in-
tencionalidades resolutivas distintas. Pontos estes, um e outro, que nem sempre
vemos exactamente atendidos.
Não os atende, desde logo, J.Derrida no seu ensaio Force de Loi (1994, 11-
63), quando, por um lado, pensa uma relação imediata entre a “justiça” — com-
preendida, mediante uma expressa invocação de Lévinas, e assim de “a relação
com o outro” e “o acolhimento feito ao rosto”, como justiça “infinita, incalcu-
lável, rebelde à regra, estranha à simetria, heterogénea e heterotrópica” — e o
direito, “a justiça como direito” — entendido este como legitimidade ou lega-
lidade, dispositivo estabilizável, estatutário e calculável, sistema de prescrições

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reguladas e codificadas”. Relação imediata entre os dois, uma vez que “o direito
pretende exercer-se em nome da justiça e (...) a justiça exige instalar-se num di-
reito”, não havendo, portanto, entre justiça e direito uma “verdadeira distinção”,
“um oposição cujo funcionamento seja logicamente regulado e controlado”, e
antes uma exigência de “desconstrução” do direito pela justiça (“a desconstrução
é a justiça”, também se nos diz aforisticamente). E então, e porque “a justiça
como experiência da alteridade absoluta” já por isso “excede o cálculo, as regras,
os programas, as antecipações, etc.” as suas relações teriam de reconhecer-se
afinal aporéticas. Isto porque, se “o direito não é a justiça” — “o direito é o
elemento do cálculo, e é justo que haja direito”, enquanto “a justiça é incalculá-
vel” — esta “exige que se calcule com o incalculável”, o que implicaria, assim
se conclui, “três aporias”. A aporia, vivida num angustiante “momento ou tempo
de suspensão” (de “l’épokhé de la règle”) da decisão na aplicação da regra de
direito e assim de uma generalidade calculável, quando a justiça exigiria nesse
mesmo momento a consideração da absoluta singularidade do outro em causa. A
aporia da tensão da indecibilidade (la hantise de l’indécidable), já que “indeci-
dível é a experiência de quem, estranho à ordem do cálculo e da regra, deve no
entanto (...) propor-se à decisão impossível tendo em conta o direito e a regra”
relativamente “ao outro como singularidade sempre outro”. A aporia da urgên-
cia do decidir contra a exigência sem limites e nunca plenamente cumprida do
saber ou da verdade (l’urgence qui barre l’horizon du savoir). Em tudo o que
temos, verdadeiramente ou se bem virmos as coisas sob o manto envolvente das
subtilezas do discurso, também três posições já hoje insustentáveis. Em primei-
ro lugar, confunde-se o amor, no seu absoluto ético ao outro, com a justiça, na
sua relatividade comunitária com o outro, e se o amor se traduz no acolhimento
absoluto e incondicional do outro em si mesmo, na sua infinita e incomparável
singularidade pessoal, já a justiça implica, como vimos, a mediação da “terciali-
dade” e exige a comparação segundo um padrão comum num espaço de partilha
— por isso o amor está para além da justiça e remete em último termo ao campo
da santidade, vimo-lo também e reconhece-o afinal igualmente Derrida (op.cit.,
49), enquanto a justiça se refere ao campo prático (campo comunitariamente prá-
tico). E se Lévinas começou por não estar isento dessa confusão — aliás, é esse
período do seu pensamento que vemos invocado por Derrida (cfr. ibid. 48,s.) —,
pudemos no entanto reconhecer antes que a justiça passou posteriormente a ser
por ele remetida para o problema prático, com a sua tercialidade institucional e
a sua relatividade de comparação, tal como igualmente em Aristóteles e em S.
Tomás a justiça se autonomizou do puramente ético. Em segundo lugar, conce-
be-se o direito no modo vulgar do normativismo prescritivista, que foi próprio
do positivismo dominante, e só essa concepção, já hoje superável e na verdade
superada, como sabemos e melhor ainda iremos ver, é pressuposto de tudo o que

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dele se diz nas suas relações com a justiça — um direito decaído e humanamente
criticável que a justiça, descontrutivamente, é chamada a superar —; em terceiro
lugar, e correlativamente ao ponto anterior, pensa-se a aplicação-decisão jurídica
nos termos também próprios do normativismo sistemático-dedutivista, na sua
lógica de generalidade, e que por isso seria alheia às exigências do problemático
concreto, à singularidade concretamente a reconhecer, manifestando-se assim as
aporias referidas, o que todavia logo perde relevo considerada que seja, como
hoje se haverá de considerar, que a juridicidade exige e actua mediante uma rea-
lização (não mera aplicação lógico-dedutiva) decisório-judicativa, mediante um
juízo problematicamente intencionado e normativamente constitutivo em que o
concreto problemático, e justamente no seu novum e irredutível problemático, se
intenciona e implica uma específica dialéctica normativo-judicativa pela qual as
exigências da “justiça” concreta (a justiça, não o amor infinito) são satisfeitas,
reconhecendo-se assim que as aludidas aporias mais não fazem afinal, embora
de um modo dramaticamente elíptico e insatisfatório, do que convocar essa dia-
léctica. Por último, o próprio dualismo justiça-direito tem uma história, que se
deverá conhecer no que teve de culturalmente contingente, dualismo que, posto
se tenha tornado um lugar comum, se verá não ser necessário e antes devemos
reconhecer também superável, compreendido que seja o direito no seu sentido
autêntico. Quer dizer, e numa palavra, a conclusão que tínhamos enunciado, e
a que fizemos o contraponto desta deriva criticada, pode ser retomada: o ético
absoluto não cumpre ao problema prático, na sua inconfundível especificidade, e
daí não poder oferecer-lhe a solução que a ele lhe seja própria (Também sobre a
relação entre os pensamentos referidos e o direito, v., de leitura imprescindível,
as exaustivas e aprofundadas análises e reflexões de J.M. Aroso Linhares, “O
dito do direito e o dizer da justiça, Diálogos com Levinas e Derrida”. In: Entre
discursos e culturas jurídicas, Studia 89, 181, ss.; e “Autotranscenscentalidade,
desconstrução e responsabilidade infinita”, Studia 90 — a concluir igualmente,
embora de outro modo, pelas fortes limitações desses pensamentos para a consi-
deração última do direito, na sua problemática autonomia).
Conclusão que se manterá, em fundamental analogia, ainda perante a pro-
posta extrema do que poderemos considerar um apocalipse prático — visando
um novo céu e uma nova terra... — do absoluto utópico referido pela que, de-
certo por paráfrase, se diz “Jurisprudência da libertação” (Befreiungsjurispru-
denz) — v. MASTRONARDI, Thomas Félix. “Befreigunsjurisprudenz”, ARSP,
Beiheft n. 62, 53, ss.; referindo MULLER, Jorg Paul. Demokratische Gerechti-
gkheit, 1979; e UNGER, R. Mangabeira. Kowledge and Politics,1975; Id., Pas-
sion, 1985; Id., False Necessity,1987. Aí se convocam os homens ao amor e
à fé nas relações sociais, projectando “amor, esperança e fé” na sociedade: “a

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

jurisprudência da libertação é o triunfo do amor sobre o capital, é o triunfo


do amor sobre o poder e o triunfo do amor sobre o sistema do mercado e um
método para uma comunidade mundial mais justa e mais convivencial” (Th. F.
Mastronardi); “o amor na forma de Ágape é um essencial elemento na política,
direito e sociedade” (R. Mangabeira Unger), uma vez que “desejosos de fé,
tocados por esperança e movidos pelo amor os homens olham continuamente
para Deus” (R. Mangabeira Unger). Pois, se estamos perante um sublime apelo
religioso em que ecoa mesmo, queremos vê-lo, o Sermão da Montanha (…feli-
zes os que choram, porque serão consolados..., felizes os que têm fome e sede
de justiça, porque serão saciados..., Mat. 5) e de suprema aspiração humana
ao imediatismo, já agora e neste mundo, do absoluto dos “novíssimos”, afinal
o apelo à santidade e à beatitude que os homens devem decerto ouvir como o
sentido assumido do absoluto, o certo é que este modelo de perfeição não pode
excluir só por si as condições humano-históricas das seculares, e reais, socie-
dades humanas em que existem o poder, o capital, o sistema do mercado, etc.,
e com eles a mediação dos problemas práticos específicos que aí se põem. De
outro modo, e com as palavras de Vittorio Possenti (Essere e Historia, 2004, 7),
“a escatologia não estabelece a orientação da história como tal, mas a supera
em virtude da esperança, ela é qualquer coisa que excede a totalidade humana
e a põe em comunicação com o infinito enquanto outro e excedente da totalida-
de de que temos experiência”. Problemas, portanto, que não encontrarão a sua
resposta num projecto incondicionado que os inconsidera, que está para além
deles e se não preocupa com a solução crítica que exigem — que acaba afinal
por ignorar, na visão absoluta só do bem, o verdadeiro problema prático, que
não podemos excluir e que havemos de enfrentar.

7) Pelo que somos assim determinados a intencionar a solução na directa


assunção do problema, isto é, a procurar a solução que ao problema prático
autenticamente lhe corresponda, solução que nem o reduza, nem o ultrapasse,
mas o assuma.
Só que ao universo prático sabemo-lo complexo na sua globalidade. Assim,
reconhecemos nele a dimensão socialmente instrumental do útil e do interesse,
que se realiza no económico; a dimensão socialmente ideológica do domínio
e do poder, que se realiza no político; a dimensão socialmente axiológica do
valor e da validade, que se realiza no direito. O princípio do económico é o
da utilidade, motivada pelos interesses (nesse interesse em que subjectividade
projecta a sua apetência) e o seu modelo, implicado pelo êxito que a utilidade
procura — a optimização dos meios alternativos, adequados à prossecução dos

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

fins —, define-se por um princípio de eficiente instrumentalização. E no fundo


antropológico da relação estrutural homem/mundo pela mediação dos outros.
Se diferenciarmos, por outro lado, a relação dos homens imediatamente entre si
embora pela mediação do mundo, temos uma outra estrutura antropológica a re-
metermos ao político. Aí deparamos com o poder que se organiza segundo uma
partidarização, se orienta por uma estratégia ideológica e actua numa eficácia
decisória. Para além, no entanto, da relação directa entre o homem e o mundo,
pela inter-relacional mediação dos homens, com que deparamos na economia e
da relação entre os homens pela mediação do mundo em que se estrutura a políti-
ca, há que atender ainda — continuamos no plano antropologicamente estrutural
— à relação de sujeito/sujeito ou dos homens com os homens, no mundo decerto
e em referência a ele, mas agora pela mediação do sentido — pela mediação de
uma referência transindividual ou uma comum transcendência fundamentante. A
transcendência fundamentante em que se compreende o sentido e se reconhece o
valor. E, como transcendência na intersubjectividade comunitária, que manifesta
o sentido e refere o valor, constitui para a mesma intersubjectividade um vínculo,
vínculo-fundamento, que se objectiva numa validade — a implicar esta, por sua
vez, a polaridade normativa do válido e do inválido, do justo e do injusto, do
lícito e do ilícito. A significar também assim que no universo prático ingressa a
validade versus a instrumentalidade e também versus o poder e a sua estratégia e
do mesmo modo a universalidade versus a partidarização e o fundamento versus
a eficácia. Intencionalidade esta referida ao problema prático, num nível superior
de exigência relativamente às duas outras dimensões igualmente do universo
prático, já que é da validade também delas em concreto por que interroga, e em
que reconhecemos afinal o direito. O que sem mais nos permite o postulado de
que é o direito a solução última e autêntica do problema prático que procuramos
e devemos considerar.
Só que, com que sentido rigorosamente essa solução de direito? Tudo vem a
convergir neste ponto. E desde logo com uma condição capital para a resposta,
que acaba por ser também um pressuposto: que nos interroguemos por, e com-
preendamos verdadeiramente o sentido do direito — o problema de um sentido,
agora do direito, volta a ser o decisivo. O sentido do direito na sua especificidade
prática e que nessa especificidade nos revele simultaneamente a sua possibilida-
de e a sua normatividade no universo da prática humana, mas não menos, como
igualmente se verá, os seus intencionais limites também aí.
Propomos, nessa linha, como resposta e solução, uma perspectiva não teórica
(mais rigorosamente, não de “Teoria do Direito”, que acabaria por ser metanor-
mativa), mas prático-normativa, isto é, comprometida com a própria normati-
vidade da prática, e global, querendo dizer este último ponto que não se visa

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a consideração de esta ou aquela linha, de esta ou aquela dimensão, de este ou


aquele enriquecimento, de este ou aquela alteração do “sistema” do direito no
fundo indiscutido do seu sentido tradicional (o direito como um normativista
prescritivismo sustentado pelo poder político), mas antes uma alternativa global
a esse sistema e a esse seu entendimento fundamental. Com três capitais notas
mais: somos postos perante uma solução estritamente jurídica do problema do
direito, que tanto é dizer uma solução “interna”, interna à juridicidade, em que
a autonomia também do direito se afirma e se reconhecerá, e com um funda-
mento que, não sendo jusnaturalista e necessário, nem por isso será histórico-
-culturalmente disponível ou arbitrário. Tudo o que só será, todavia, possível na
implicação de alguns pressupostos específicos, que adiante serão sumariamente
enunciados: um pressuposto filosófico-antropológico, uma recompreensão da
praxis humano-social e uma recuperadora compreensão do mundo existencial-
mente humano. Perspectiva esta que, no sentido do direito que propõe, na nor-
matividade que intenciona e no modelo de pensamento que ele convoca e será
chamado a actuá-lo, nos atrevemos a designar por jurisprudencialismo.

5. MENUETTO-ALLEGRETTO

5.1. O contraponto de outras propostas alternativas a considerar


Não podemos, porém, omitir que outras propostas aí estão, e numa vincada
pretensão no nosso tempo, a concorrer com esta que enunciaremos. Propostas
com as mesmas características formais de intencionalidade prático-normativa e
de sentido global e por isso a atender como dela também alternativas. Conside-
rar essas propostas como que numa mediação, digamos, de dialéctica negativa,
em que a nossa se verá melhor justificada, é o que torna necessário e em que se
traduz um terceiro andamento. E assim este como intermezzo também oportuno,
pois se existirem outras soluções e melhores para o nosso problema seremos
poupados à inépcia de propor a que anunciámos.
Outras soluções a que atenderemos só muito sinteticamente, numa rápida
referência crítica. Todas elas intentam, na sua índole global, a reconstituição
do sentido actual da juridicidade, ainda que sejam entre si muito distintas e que
diferenciaremos em dois grupos. O primeiro grupo incluirá as propostas que
diremos formais ou de índole juridicamente formal, já que renunciam elas a de-
finir quaisquer projectos normativo-jurídicos materiais: como que feita a expe-
riência, de que nos demos conta e nelas também pressupostamente implícita,
da erosão do próprio sentido do direito em consequência dos seus sucessivos
compromissos com heterónomas ou “externas” teleologias, fossem elas filosófi-
cas, políticas, sociais, económicas, etc., o direito só teria hoje sentido se no seu

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plano estritamente jurídico não fizesse dessas teleologias externas o seu projecto
imediatamente intencional, sem as excluir embora nos seus conteúdos, mas isto
por determinação secundária em que funcionalmente apenas as assimilaria. Fa-
lamos do neolegalismo (democrático) e do funcionalismo jurídico sistémico, por
um lado, e dos procedimentalismos liberal e democrático-discursivo, por outro
lado. Mais vincadas, no entanto, e em que se depositam as mais fortes intenções
de recuperação actual da juridicidade, são duas propostas de marcada índole
material, duas bem diferentes propostas materiais. Uma, a pôr a complacência,
se não a exclusividade, nos “direitos do homem”, outra, indo mais além num
projecto global que absorve em si também aquela primeira, afirma-se o neocons-
titucionalsmo e a identificar, num compromisso que se pensa decisivo, se não a
evidente praxis do nosso tempo, decerto a juridicidade com a constitucionalida-
de. E todavia em qualquer destas propostas não encontramos a solução que nos
poupe a atrevermos a nossa. Sumárias considerações críticas serão suficientes
para o compreendermos.

a) As propostas reconstitutivamente formais que integram o primeiro grupo


sustentam, contra a tendência que se reconheceu na sua erosão evolutiva, a au-
tonomia do direito — é-lhes própria, embora de modos diferentes, uma “tese de
autonomia” do direito, já a autonomia de uma apenas prescritiva normatividade,
já a autonomia de um funcional “sistema jurídico”.
1. É assim que o neolegalismo, referido ao pluralismo e ao relativismo
(deixemos agora de lado a distinção a fazer entre os dois) das actuais socieda-
des democráticas, entende que o direito, reduzido de novo e elementarmente
às prescrições legislativas, deveria descomprometer-se com quaisquer opções
normativas materiais e justamente, na única preocupação de dar regras formais
à prática social, para poder para admitir com neutralidade quaisquer dessas op-
ções. Invoca para tanto os argumentos da liberdade, da segurança jurídica, do
pluralismo e da democracia — argumentos de que facilmente se reconhecerá a
inconcludência, como julgo ter já apontado noutra oportunidade. Trata-se afi-
nal de uma proposta de cariz político — a autonomia do direito seria daquele
modo simplesmente uma pretensão funcionalmente política — e que na sua
abstracção de tudo o que pudemos antes reconhecer como a evolutiva realida-
de problemática, verdadeiramente apenas exprime um ideológico e regressivo
antes-da-história. Trata-se de uma pretensa solução empobrecida de tudo o que
é verdadeiramente relevante e ideologicamente esquecida do tempo entretanto
vivido — e ao passado pertence. Pelo que não temos realmente no neolegalismo
a solução crítica por que ansiamos.

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2. Quanto ao funcionalismo jurídico sistémico, o que importa sobretudo reco-


nhecer é menos a perspectivação funcionalística, afinal caracterizadora também
de outras diferentes concepções, do que a índole sistémica que a juridicidade
manifestaria, haveria necessariamente de manifestar por consequência evolutiva,
e no sentido muito particular e rigorosamente diferenciado de um novo conceito
de “sistema” e da correspondente realidade — conceito de sistema devido de
princípio à actual “teoria geral de sistema” e por último assimilado da biologia e
realidade enquanto a própria expressão das sociedades do nosso tempo. Sistema
que nada teria a ver com o entendimento anterior de totalidade unitária de todo
e partes ou sequer já com as formas autocontroladas de adaptação cibernética e
que antes afirmaria a estrutural clausura autorreferente e autopoiética, dinamiza-
da por relações de actos e comunicações de funcional equifinalidade no sistema,
perante um meio (mundo) exterior. A traduzir desse modo e igualmente uma
autonomia, a autonomia da autoconstituída e diferencial identidade do sistema
em referência a esse meio ou mundo, posto que simultaneamente em “abertura
cognitiva” ao mesmo meio-mundo, do qual viria, não a determinação, mas o
estímulo para as operações da sua autónoma autopoiésis. E também o direito, ou
melhor a juridicidade, se haveria de reconhecer como um sistema dessa índole
— um sistema autónomo funcionalmente autorreferente e autopoiético dinami-
zado decerto pelos seus “programas” de critérios contingentes, mas diferencial-
mente constituído pela estrutura invariante do seu “código” binário (“direito,
não direito”), e chamado a reduzir a complexidade social por uma selectiva
definição de expectativas programadas no quadro estrutural desse código siste-
micamente específico. O que se haverá de entender exactamente de modo a que
a funcional instrumentalização dos outros funcionalismos materiais, político,
tecnológico-social, económico, com as suas teleologias de objectivos estratégi-
cos, de fins ou de interesses, vai aqui neutralizada por uma perspectiva estrita
e radicalmente sistémico-funcionalística e assim, não de cariz material, mas
unicamente formal e da qual se haveria de dizer, em analogia com os sistemas
vivos, que o sistema jurídico é também um “purposeless system”. Por outras pa-
lavras: porque os elementos materiais são considerados numa mera compossi-
bilidade funcionalmente sistémica, o sistema admite-os ou concilia-se com eles
neutralizando-os. E tudo isto como inelutável consequência da exponenciada
complexidade e irredutível pluralismo das sociedades contemporâneas, já que a
vida nelas só seria possível mediante a neutralizante redução dessa complexida-
de nos termos sistémicos aludidos.
Breves notas estas de um simples chamada de atenção — com outro ri-
gor e desenvolvimento nos ocupámos já deste funcionalismo jurídico sistémi-
co num estudo que lhe dedicámos — e para servir agora apenas de base para

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reconhecermos que estamos perante uma concepção da juridicidade que, embora


supostamente pensada à altura dos tempos, consideramos de todo também in-
sustentável. Em primeiro lugar, trata-se de uma concepção do direito, e assim a
traduzir uma opção quanto ao seu sentido fundamental que as nossas sociedade
haveriam de aceitar, e não simplesmente de uma teoria também do direito, que
como tal se propusesse na verdade, como em geral sustenta, tão só a determina-
ção, a “descrição”, do que ele evolutivamente seja na sua actual efectiva reali-
dade. Penso ter mostrado isso mesmo naquele estudo. Pelo que será também no
plano do sentido e não no plano da verificação teórica que se haverá de ajuizar
da sua concludência e aceitabilidade. Importando para tanto ter presente, em se-
gundo lugar, que essa concepção se constrói em referência a quatro tópicos prin-
cipais. Concebido o direito apenas como um mecanismo estrutural e operatório
chamado a reduzir a complexidade social, também unicamente nas exigências de
subsistência e funcionamento da sociedade teríamos a perspectiva determinan-
te — estamos perante o tópico que se dirá da radical socialização do direito. A
esse segue-se um segundo tópico, o da não menos radical positivação do direito,
e a significar, na correlativa recusa de qualquer “externo” input normativo, uma
autoconstituição e autovalidação do sistema jurídico que excluiria a referência a
qualquer fundamento que lhe fosse transcendente, quer teológico, quer ontológi-
co, quer antropológico, quer histórico-cultural, etc. E daí a paradoxia que, como
todo o sistema autofundamentado, o sistema jurídico teria de aceitar. Um terceiro
tópico têmo-lo na, decerto bem estranha, radical anormatividade do direito — o
sistema jurídico, ao reduzir a complexidade social pela definição selectiva e sus-
tentação generalizada e coerente de certas expectativas, não ajuizaria com funda-
mento numa validade nem se imporia, já por isso, normativamente à sociedade,
o seu mundo, apenas por aquela redução a condicionaria, e assim indirectamente
a reorganizaria, nas suas possibilidades de acção; depois, se as expectativas se-
leccionadas, e enquanto expectativas socialmente emergentes, projectam a fac-
tualidade social no sistema jurídico, também o sistema jurídico através delas e
desse modo se exclui de um output normativo na sociedade. O quarto tópico,
mais estranho ainda, será o da radical simetria circular do sistema — trata-se da
ausência de hierarquias ou de relações de supra-infra ordenação entre as fontes e
as referências jurídicas entre si em resultado da horizontal recursividade da au-
torreferência de umas às outras na sua autopoiésis — da jurisdição à legislação e
desta àquela, da jurisdição aos contratos e destes à legislação e à jurisdição, etc.
No nosso estudo aludido, fizemos uma crítica detida à concepção do direito
que aqui temos, organizada por estes tópicos. Não vamos reproduzir aqui essa
crítica. Limitar-nos-emos a referir o seu sentido geral e as suas conclusões. As-
sim, pelo primeiro tópico, haveria de inferir-se que o sistema jurídico nestes

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termos pensado se revela afinal e paradoxalmente uma entidade sem direito. Pois
se o direito é inconcebível sem a sua referente polarização nas pessoas, enquanto
sujeitos de direito, sujeitos de direitos e sujeitos do próprio direito — o direito
só tem sentido pelas pessoas e para as pessoas —, o que a radical socialização da
juridicidade implica em último termo é não serem afinal as pessoas os sujeitos e
titulares do sistema jurídico, mas ao contrário o sistema jurídico na sua funcional
autonomia social o verdadeiro protagonista da juridicidade, vendo-se as pessoas
não só exteriores, mundo também elas próprias, para o sistema e assim apenas
funcionalmente assimiladas pelo sistema no programa dos seus “papeis”. Pelo
segundo tópico, analogamente o direito seria sem validade (normativa), valeria
sem validade, ou mais claramente teria vigência sem validade. Com efeito, a sua
radical positivação, no significado convocado, se afirma uma plena autofunda-
mentação do direito na sua própria decisória positiva manifestação, mais não
significará isso, e como aliás expressamente se reconhece no âmbito do pensa-
mento sistémico, do que uma paradoxo e uma tautologia em que se manifesta na
verdade a ausência de fundamento — o direito seria pura e simplesmente, como
pura e simplesmente são os factos, que o mesmo é dizer que se autoanulava no
seu sentido de direito. O terceiro tópico tem uma implicação não menos clara.
Um sistema jurídico como estrita heteronomia social de que se exclui a protago-
nização da autonomia responsabilizada das pessoas e em que se exprimiria uma
juridicidade de radical e paradoxal positivação e assim alheio a uma qualquer
referência de normativa validade, um sistema jurídico que se fecha na circu-
laridade da sua autorreferência e que no programa de expectativas sociais que
generaliza não é senão destinado a afirmar-se e subsistir na clausura dessa apenas
funcionalidade, o que verdadeiramente nos oferece é o absurdo de um direito
sem normatividade vinculante, verdadeiramente, pois, anormativo. No quarto
tópico, na radical simetria que afirma, temos em toda a sua evidência confirmada
essa mesma anormatividade, já que a normatividade exclui a mera horizontalida-
de e impõe sempre uma hierarquização — a autorreferência circular é um motu
contínuo subsistente apenas no seu próprio movimento. E pela conjugação de
todos este tópicos ou na globalidade da sua intencionalidade, a conclusão que se
impõe não pode ser outra senão esta: o direito seria verdadeiramente sem sentido
e “sem porquê”, com aquele sem-sentido e sem porquê que corresponde aos fac-
tos evolutivos, na sua apenas emergência como mero resultado da evolução — e
como resultado e facto socialmente evolutivo é, na verdade, entendida a mani-
festação do sistema jurídico no funcionalismo jurídico sistémico.
Nada, pois, é necessário acrescentar para podermos concluir que a recu-
peração crítica do sentido do direito não a temos nestas tentativas de recupe-
ração de autonomia formal da juridicidade, nem na postulada autonomia do

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neolegalismo formal, nem na formal autonomia sistémica. Ambas são atitu-


des de renúncia, propostas de resolução do problema que paradoxalmente o
excluem, já que o problema está na questão de saber se a crise que atinge a
subsistência e a diferenciação da normatividade jurídica, por que se manifeste
o direito enquanto tal, será superável, e em que termos, por uma sua normativi-
dade recuperável no nosso tempo e as duas soluções consideradas o que fazem
é suprimir a específica normatividade jurídica, seja por abstracção, seja por
neutralização, porque, como inadmissivelmente sustentam, estaria ela definiti-
vamente anulada ou seria já impossível.
3. Diferentes, sem deixarem de serem também formais, são os actuais pro-
cedimentalismos, a considerar especialmente o construtivista neocontratualismo
liberal de J. Rawls — na sua teoria da justiça a evoluir para um liberalismo
político — e o democrático comunicativo-discursivamente reconstrutivo de J.
Habermas. Também já estudámos e fizemos a crítica de ambos: do procedimen-
talismo de Rawls, a não oferecer juridicamente afinal mais do que a convocação
da rule of law, no seu tradicional sentido anglo-saxónico; e do procedimenta-
lismo, decerto mais complexo e radical, de Habermas, com a sua dedução (de-
dução transcendental) de um “sistema de direitos” como pressuposto de uma
reconstrutiva legitimação democrática, através de um comunicativo-racional
“princípio do discurso”, do democrático direito-legislação. Ainda aí a conclusão,
relativamente a ambos os projectos de uma procedimental reconstituição do di-
reito e apenas com estes resultados, foi no sentido de uma forte carência quanto
à necessária recuperação do autêntico sentido do direito e da sua específica nor-
matividade, seja para além dos apenas pensáveis pela rule of law, seja para além
dos que são possíveis a uma tentativa de relegitimação do já superado legalismo.

b) As propostas de reconhecimento de uma intencional normatividade ma-


terial do direito já dissemos serem as hoje mais geralmente invocadas, e dentre
elas sobretudo as duas mais fortes também já aludidas. Referimo-nos, em pri-
meiro lugar e em termos que se afiguram decerto paradoxais, à compreensão
do direito essencialmente pelos direitos do homem — nessa linha formulam-se
apotegmas como estes: “o direito é o direito do homem”, “o direito, de acordo
com o seu verdadeiro fim (…) ordena-se aos direitos do homem”, e então o que
se disse já sobre o sentido do direito, e em que veremos garantida da sua auto-
nomia, não deverá ser, se não totalmente substituído pelo menos corrigido, para
assumir esta outra dimensão constituens do direito? Consideramos, em segundo
lugar e de modo já mais geralmente compreensível, a convocação concorrencial
do político, tornado como vimos a última e predominante referência prática e

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subordinante do jurídico, a partir da modernidade, o político polarizado desde


o séc. XVIII, e hoje particularmente, como se sabe e dissemos também já, na
constituição, no sistema político-jurídico constitucional, com a consequência,
para nós da maior relevância, de ter-se de identificar então a juridicidade com a
constitucionalidade — pelo que agora o sentido do direito seria afinal também
outro. Outro sentido que, se porventura não excluiria de todo a autonomia do di-
reito, já obrigaria a repensá-la em exclusiva referência ao político constitucional.
1. Sobre a primeira perspectiva — a eventual necessária revisão do sentido
do direito pela consideração da centralidade jurídica dos direitos do homem — já
reflectimos com alguma extensão. Não iremos repetir essa reflexão — limitamo-
-nos agora a dizer que chegámos aí à grave, mas inevitável, conclusão de que
a fundante perspectiva individualista (consequência do moderno-iluminista in-
dividualismo) que foi a sua a partir do séc. XVIII, persiste no sentido último
dos direitos do homem, não obstante toda a sua evolução ético-humanamente
enriquecedora, se pensados eles em termos absolutos, que tanto é dizer se se
pensar o homem em todos os planos da sua existência como homem individual,
sui singuli, nómada autoassumida tanto na ordem do universo em geral com na
ordem do universo prático em particular — e assim com a consequência capital
de se poder compreender desligado, independente e mesmo contraposto à comu-
nidade, a realidade societária de convivência, e com as consequência dela, pró-
pria da prática existência humana. E então pensar o direito exclusivamente nessa
perspectiva — na perspectiva dos direitos do homem que não renuncie a esse seu
originário e fundante sentido — é realmente truncá-lo da dimensão axiológico-
-normativa, que lhe é essencial e irrenunciavelmente constitutiva, pela exclusão
justamente da normativa dimensão de integração e da, nesta implícita, respon-
sabilidade comunitária. Seria esquecer o outro e os outros nas consequências do
exercício desses direitos — e que a apenas universalidade da sua imputação de
todo não recupera, assim como a actual “ética da alteridade”, em que os “direi-
tos do homem” poderão porventura encontrar um outro e melhor fundamento,
também fundamentalmente não considera a integração comunitária, pois, como
vimos, essa consideração obrigaria a uma mudança de plano. Seria no limite
como que pensar o direito só de direitos, sem deveres nem responsabilidade —
seria, atrevamos a paradoxal conclusão, a justiça que pelos direitos do homem
se visa afinal uma justiça injusta. Pelo que é necessário pensar os direitos do
homem no direito ou interrogá-los, no seu sentido e nos seus limites, perante
o sentido do direito qua tale, o direito em si, na autonomia do seu específico
sentido axiológico-normativo e problemático-intencional. Só assim reconhecer
os direitos do homem não será truncar o próprio direito do seu sentido e das suas
dimensões capitais — sentido e dimensões que implicarão necessariamente um

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normativo e trransindividual vínculo axiológico-social. O prius está no direito e


não nos direitos do homem e estes só têm o sentido e a legitimidade que o direito,
na sua autonomia e a trancendê-los, lhes reconheça — só assim os direitos do
homem não serão uma mera ideologia política, no mercado e na cacofonia das
ideologias, e adquirirão a índole de uma dimensão importante do direito, direito
que conta também com outras dimensões e outras exigências e com sentido, glo-
balmente, para a não menos realização do homem na sua humanidade.
2. Quanto à segunda referência, o direito perante o político e sobretudo o
político constitucional, permita-se-nos que reproduza algumas breves páginas
que a esse mesmo propósito também já escrevemos.. E para responder a esta per-
gunta: não é a constituição o direito na sua última instância e do mesmo modo a
sede fatal do sentido do direito? Ainda aqui nos atrevemos a duvidar, como aliás
já hoje muito se duvida — e quanto a nós por duas linhas de argumentação. Pelo
próprio sentido da constituição, por um lado, e pelas implicações a reconhecer
para a juridicidade dessa sua identificação, em último termo, com a constitucio-
nalidade, por outro lado.
Abstraindo da história e génese do constitucionalismo e da sua generalizada
revalorização no pós-segunda guerra mundial e não pretendendo embrenhar-nos
também aqui na complexidade teórica da sua conceitualização, diremos simples-
mente, quanto ao primeiro ponto do sentido da constituição, o que noutra bem
distinta oportunidade entendemos poder dizer, já que continuamos fundamental-
mente a pensar o mesmo e com igual justificação — assim presumimos.
Assim, repetindo o lugar comum, podemos afirmar que a constituição é o
pacto político-social fundamental e o estatuto político-jurídico da comunidade
que através dela se define como comunidade política e se organiza em Estado —
que tanto é dizer que pela constituição a comunidade de define a si mesma, seja
em termos fundadores, refundadores ou revolucionários, na estrutura do poder
político, nas instituições e valores político-jurídico fundamentais e ainda no re-
conhecimento de direitos que tem também por fundamentais. Só que o volunta-
rismo e o positivismo dominantes, no seu compromisso político, vão mais longe
e postulam que o prius e o fundamento mesmo do direito os teríamos unicamente
na normatividade constitucional: os valores ético-sociais, os valores jurídicos e o
próprio sentido do direito a assumir pela ordem jurídica ter-se-iam de encontrar
nas intenções materiais e nos pressupostos formais prescritos na constituição. No
entanto, o próprio pensamento constitucionalista nos dá conta de uma normati-
vidade político-social mais exigente e noutro plano do que aquela que se defina
a estrito nível constitucional positivo — é, bem se sabe, o que significam as dis-
tinções, e não são as únicas, entre a constituição formal e a constituição material,

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entre constituição escrita e constituição não escrita, entre constituição jurídica


e constituição real, etc. —, além de que, e principalmente, o estatuto constitu-
cional o que traduz, na sua intencionalidade matricial, é a assimilação jurídica
de certos valores políticos, a instituição do projecto político-jurídico e político-
-institucional que ideológico-políticamente e por qualquer forma que seja — em
assembleia, revolucionariamente, plebiscitariamente, etc. — logram impor-se no
momento constituinte. Daí que o estatuto constitucional não só esteja longe de
esgotar o universo jurídico — o que se confirma com o reconhecimento do carác-
ter fragmentário da constituição nesse plano —, exprime apenas o jurídico que
se tem por politicamente mais relevante, como a sua intenção capital continua
a ser ideológico-política e, portanto, o que sobretudo se propõe é perspectivar
juridicamente uma certa intenção e um certo projecto políticos (cfr., ainda que
numa diferente perspectiva, a considerar a distinção entre o jurídico e o políti-
co, relativamente à constituição, e a pensar aí o “acoplamento estrutural” entre
ambos, LUHMANN, N. Das Recht der Gesellschaft, 1995, 468, ss.). Pelo que
insistirei em dizer, quanto a este ponto, que a constituição não é senão o esta-
tuto jurídico do político — formulação que vimos aceite e se repete em outras
análogas: “ordenação constitucional do político”, “forma jurídica do político”
(Gomes Canotilho). O que nos permite duas inferências imediatas, que acabam
por se traduzir numa alternativa. Ou se reconhece o que a própria objectividade
manifesta, que o estatuto constitucional está longe, mesmo no seu nuclear pro-
jecto político-jurídico, de esgotar todo o universo jurídico — repetimos, nesse
projecto apenas temos o jurídico considerado no momento e na intenção consti-
tuintes como o politicamente mais relevante — e então o direito, na autonomia
do seu sentido e na globalidade da sua normatividade, terá de procurar-se para
além e fora da constituição. Ou, num radicalismo político, recusa-se esta con-
clusão para impor a exclusiva aceitação do jurídico intencionado e proclamado
político-constitucionalmente, numa estrita identificação da juridicidade com a
constitucionalidade, e nesse caso, e por ser a constituição apenas o estatuto jurí-
dico do político, a substância do jurídico estará no político e o jurídico não será
mais do que a forma que normaliza esse político — o jurídico apenas positivará
normativamente, numa legalidade constitucional, as livres opções políticas. Com
o que o direito, substancialmente identificado com a política, perde, por um lado,
toda a sua autonomia normativamente material e fica anulada a sua vocação de
uma instância de validade e crítica perante o político e o seu poder — isto é,
desaparece como dimensão materialmente específica de um autêntico Estado-
-de-Direito —, e assume, por outro lado, o destino e toda a contingência do po-
lítico. Contingência que as sucessivas revisões da constituição, e por aleatórias
circunstâncias ideológico-políticas, como tem acontecido entre nós, só fazem
evidente. Destino esse que será actualmente o de crise, a crise que efectivamente

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

se reconhece à sua possibilidade “dirigente” ou regulatória (crise análoga àquela


com que tínhamos deparado no paradigma de legalidade moderno-iluminista) e a
reduzir a constitucionalidade afinal a um simples quadro aberto de possibilidades
ou a uma mera reflexividade sistémica que terá de encontrar os seus integrantes
critérios materiais e decisivos para além ou fora da constituição (são para aqui
concludentes as reflexões e conclusões de J. J. Gomes Canotilho, in Prefácio à 2ª
ed. de Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador). E por esta situação
é afinal a procura que fracassa no paradoxo que regressa: na constitucionalidade
procurou-se a solução crítica da crise a que o paradigma tradicional da juridici-
dade tinha chegado e afinal nessa aspirada solução só encontramos, além de tudo
o mais que se disse, uma nova crise. Ainda por aqui e de novo há que procurar a
crítica recuperadora da juridicidade noutra sede e com outro sentido.
E com isto nem tudo fica dito — há ainda uma outra consequência de me-
lindroso relevo a considerar, e em que aquela conclusão se confirma. Assim,
concentremo-nos embora nas dimensões constitucionais juridicamente nuclea-
res, tais como os direitos fundamentais, os princípios jurídicos (os “princípios
de justiça” constitucionais) e outras referências jurídicas — sem omitir, toda-
via, que será incorrecta a abstracção desses elementos no todo da constitui-
ção, dada a unidade desta e com relevo em todos os planos, do normativo ao
hermenêutico. E uma vez mais somos postos perante uma alternativa em que o
exacto sentido das coisas se esclarece. Nestes termos: aqueles direitos, princí-
pios jurídicos e referências jurídicas sustentam a sua vinculante normatividade
jurídica exclusivamente na constituição, unicamente porque esta os proclama e
enuncia, ou a constituição apenas lhes confere uma particular tutela e garantia,
a tutela e garantia justamente constitucional? No primeiro caso, a constituição
será deles autenticamente constitutiva — todas essas entidades jurídicas não
existem nem têm sentido antes da sua proclamação e enunciação pela constitui-
ção e as vicissitudes da constituição, de alteração ou mesmo supressão, serão
também as suas vicissitudes. No segundo caso, reconhecer-se-á à constituição
uma função tão só declarativa e constitucionalmente positivante desses valores,
princípios e referências. Se a opção necessária for a primeira, vemo-nos pura
e simplesmente remetidos para o que já considerámos, e teremos o regresso
do exclusivamento político e a anulação da autonomia do direito no que mate-
rialmente, e não só formalmente, importe — e o direito volta a ser só politica,
com o destino e a contingência desta, e o Estado-de-Direito converte-se acriti-
camente num Estado-de-Constituição. Se, pelo contrário, a segunda opção for
a correcta, terá então de concluir-se que o fundamento e a normatividade da-
queles direitos, princípios e outras referências jurídicas, cobertos e garantidos
eles embora constitucionalmente, não os temos na constituição, mas fora ou

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para além dela — digamos, na normativa intencionalidade específica do direito


referida à autonomia do seu sentido. Igualmente então a problemática desses
direitos, princípios e referências jurídicas não é materialmente uma problemá-
tica constitucional e sim especificamente uma problemática jurídica. E só não
é sempre explícito o reconhecimento desta conclusão, com as suas implicações
capitais, porque a compreensão dos mesmos direitos, princípios e demais refe-
rências jurídicas de positivação constitucional é envolvida por uma particular
ambiguidade: o histórico consenso sobre todas essas entidades jurídicas não
leva a pôr o problema do seu sentido, fundamento e normatividade, como nós
acabamos de pôr, e a sua positivação constitucional só reforça e dá garantia a
esse consenso — entre a constituição e as suas pressuposições normativo-jurí-
dicas como que deixa de haver distância problemática. Mas essa problemática,
ainda que oculta, não fica eliminada. Podem iludi-la as constituições, digamos,
consensuais — com terão sido, p.ex. e no seu momento histórico, a constituição
federal americana de 1776 e a Grundgesetz alemã do pós-guerra, de 1949 —,
mas ela ressalta com toda a sua gravidade no caso das constituições de ruptura e
revolucionárias, as quais nem sempre se inibem, como a história tem mostrado
e também a nossa, de ideológico-politicamente sobreporem imediatas inten-
ções políticas e mesmo, a favor dessas intenções ideologicamente discrimina-
tórias, de repelirem direitos e princípios jurídicos civilizacional-culturalmene
irrenunciáveis, porque adquiridos como dimensões do próprio sentido, e senti-
do autónomo, do direito. Problemática e consequências estas, pois, que se têm
de reconhecer sempre, na diferença e tensão que lhes vão implicadas entre o
político e o direito, não só perante as constituições “más”, digamo-lo assim,
mas como possibilidade perante todas as constituições — e pelas razões que
foram, também em geral, enunciadas. Daí que se possa subscrever esta conclu-
são do malogrado pensador-jurista que foi René Marcic, e que, nem por parecer
soar demasiado enfática, deixa de ser válida: “absoluta não é a constituição,
absoluto é o direito”. E na coerência do que — permito-me ainda acrescentar
e atrevendo porventura alguma outra surpresa — a constituição, nos seus mo-
mentos especificamente jurídicos, deverá ser interpretada conforme o direito,
desde que compreendido este na sua autonomia axiólogico-normativa e na sua
normatividade específica, com adiante se enunciará. Se é já comum o cânone da
“interpretação conforme a constituição” relativamente à lei, no pressuposto de
ser a constituição a última instância no sistema político-jurídico, analogamente
a última instância que, por tudo o que foi justificado, será o direito perante a
constituição jurídica imporá que esta, sem ver minimizado o seu relevo político,
mas reconhecendo que juridicamente não é a última palavra, se assuma e inter-
prete na sua validade jurídica em referência ou conforme o direito (e não por
estritos critérios políticos).

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

Posição esta que, aliás, vê atenuado o seu isolamento se convocarmos o caso


paralelo (embora só paralelo no ir além da constituição, já que o nosso plano
é exclusivamente jurídico e não político) de John Rawls (Politcal Liberalism,
1993, Part Two, §§ 6 e 7), quando refere o overlapping consensus, a superar e
integrar os limites da constituição, enquanto o último critério político-juridica-
mente hermenêutico e mesmo a instância final chamada a definir os princípios
fundamentais da comunidade política no seu todo.
E considerado tudo isto, para concluir nos bastará uma só palavra: a consti-
tuição não nos oferece necessariamente o sentido do direito, assim como a juri-
dicidade que criticamente ansiamos não no-la dá sem mais a constitucionalidade.

6. FINAL: ALLEGRO ASSAI

6.1. O jurisprudencialismo
Há, pois, que prosseguir, passando ao quarto e último andamento. Que se
ocupará directa e especificamente do enunciado esquemático da nossa proposta
jurisprudencialista — começando por uma referência tópica, e em brevíssimas
palavras, aos seus pressupostos já antes anunciados.

6.1.1. Os pressupostos
a) O pressuposto filosófico-antropológico. O problema prático e a sua solu-
ção procurada apenas serão validamente convocáveis com base no entendimento
específico do homem que implicam e a que simultaneamente se dirigem. E o
que nesse sentido imediatamente diremos é que não estamos perante um homo
institucionalis, que teríamos de referir a uma ordem pressuposta e só nela seria
compreendido, como foi o caso do homem estritamente comunitário do pensa-
mento prático pré-moderno. Também não, em contraponto, perante o homo in-
dividualis, próprio agora do individualismo moderno e concebido como mónada
social no quadro prático de uma mera racionalização convencional de liberdades
e interesses, garantidos umas e outros como “direitos”. Ou sequer mesmo peran-
te a entidade, digamos com outra consequência, de um homo subjectus, o sujeito
como causa sui das determinações e titular auto-nomos de racionalidade uni-
versal que era postulado do antropo-racionalismo também moderno. (Para uma
atenta consideração filosófica da distinção ente “indivíduo” e “sujeito”, e aquele
especialmente nos termos da filosofia, e metafísica, modernos, v. Alain Renaut,
L’Ère de l’individu, 1989). E sim perante o homo pessoalis, o homem-pessoa
que nem se reduz à comunidade, nem se assume num solipsismo prático-social,
nem se polariza como constitutivo racional do sentido, mas se compreende como
humano centro de imputação ética e de dignidade axiológica na interlocutora

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e responsabilizante convivência prático-comunitária. Homem-pessoa que igual-


mente recusa ser apenas homo socialis (referido funcionalmente à sociedade
convencional, que não já à comunidade histórica, como a categoria primeira e
ordenadora da coexistência), assim como simplesmente homo faber (homem
produtor num sistema de produção) e também tão só homo ludens (o homem do
prazer, seja utilitarista ou não, e do bem-estar), que recusa ser qualquer um des-
tes tipos humanos porque lhe é essencial uma constitutiva dimensão ética, numa
autonomia de transcensão axiológica e normativamente vinculante.
b) O sentido da praxis humano-social. Consideramos uma prática referida
a uma validade axiológico-normativa e crítica, posto que sempre problemáti-
ca, mas não dispensando nunca de se interrogar por ela, enquanto um projecto
responsabilizante da própria humanidade do homem, e não uma prática deter-
minada apenas por estratégias contingentes, políticas ou sociais, numa orienta-
ção só de oportunidade ou a não exigir mais do que programações finalísticas
actuadas ou por compromissos ideológicos ou por esquemas de uma operatória
eficiente, num combate ideológico e numa estratégia de interesses, e assim numa
existência apenas pensada quer por êxitos ou derrotas, quer tão só no modo de
racionalmente calculada. Praxis humano-social não de sentido apenas racional,
seja programático-estratégico, seja organizatório-funcionalista, mas de uma irre-
dutível dimensão axiológica.
c) O meio humano de existência. Vemos esse meio de existência na comuni-
dade, enquanto histórica e irredutível realidade humana, com ser a comunidade
universal condição de existência, condição de existência e condição ontológica
da histórica existência humana — isto no sentido que noutras oportunidades con-
siderámos e que prescindimos agora de explicitar — e nestes termos poder-se-á
dizer, para além da que é pensada na distinção paradigmática entre Gemeinss-
chaft e Geselschaft, proposta por Tönnies, já que não se confundindo decerto
com a sociedade como apenas possível ou disponível organização associativo-
-individualística da vida humana, contingente e de funcional convencionalidade,
também não refere uma realidade humana substancial e como que hipostasiada,
de uma transpessoal heteronomia apenas subordinante, e antes aquele universo
humano de convivência, nas suas dimensões imediatamente existenciais, condi-
cionantemente possibilitantes e herdadamente histórico-sócio-culturais em que
sempre decorre a vida humana, e que nem está no puro alvedrio, nem é absoluto
destino dos homens que a pressupõem e que do mesmo passo historicamente a
constituem e reconstituem com a sua própria prática.
Nesta base, ou no intencional compromisso destes pressupostos, enunciare-
mos sinteticamente a nossa proposta de reconstituição crítica do sentido hoje do

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direito — que será axiológico-normativa nos fundamentos, prático-normativa


na intencionalidade e judicativa no modus metodológico.

6.1.2. O esquema fundamental


Essa nossa crítica reconstituição da juridicidade organizar-se-á pela conju-
gação de dois momentos. a) Referindo, em primeiro lugar, uma certa intencio-
nalidade normativa a compreender na juridicidade e convocando, em segundo
lugar, um específico modelo de pensamento jurídico chamado à sua realização.
Serão três as dimensões fundamentais de cuja integração dialéctica atingiremos
o direito crítico que procuramos na ordem da intencionalidade: 1) uma perspec-
tiva; 2) um sentido a culminar numa intentio de validade; 3) uma determinante
normatividade. Haveria ainda lugar para uma quarta dimensão referida à estru-
tura diferenciadora, mas a essa deixamo-lo agora de lado; bastem-nos as alu-
sões que já atrás lhe fizemos, a completar com os desenvolvimentos que lhe de-
dicámos in A autonomia do direito hoje e o contributo do jurisprudencialismo,
III (em memória do Professor Ovídio Baptista da Silva). b) Assumirá, por sua
vez, uma perspectiva axiológico-prudencial e um particular modus judicativo-
-decisório o modelo de pensamento jurídico a considerar. Com uma advertência
— tudo o que vamos enunciar não será mais do que uma tentada síntese do que
a este propósito temos pensado.

a) 1. Assim, e começando pela perspectiva, entendemos que quanto a ela


há que proceder a uma alteração fundamental. Todas as propostas de crítica re-
compreensão da juridicidade que referimos — salvo a que se centra nos direitos
do homem, mas que se nos revelou insuficiente — se orientam pela perspectiva
da sociedade e, portanto, perspectiva de uma índole que se dirá macroscópica.
Interrogado constitutivamente na intencionalidade global da sociedade, o direito
propor-se-á ser um programa, uma sócio-tecnologia, um instrumento de orga-
nização e mesmo de transformação, etc., da sociedade, e a significar assim que
concorreria com a política, com a economia, com a administração (a tecno-ciên-
cia da administração), etc., nos mesmos ou análogos objectivos sociais, com a
só diferença do seu modus normativo, e por isso o vemos assimilar no seu con-
teúdo a política, a economia, a administração, não sendo mesmo materialmente
outra coisa do que essas dimensões prático-sociais convertidas a um modelo
regulatório ao serviço desses seus objectivos na procura de uma maior eficiên-
cia. E com uma outra consequência não menos assinalável e evidente: a nuclear
categoria jurídica com que o direito se proporia aqueles objectivos, e com que
acabaria mesmo por se identificar, seria a lei. Não decerto a lex no sentido da
teologia medieval, mandamento ético-normativo em que mais racional ou mais

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

voluntária e positivamente se exprimia a ordem essencialmente também teoló-


gico-ética (recorde-se o entendimento da lex de Santo Agostinho a S Tomás e a
F. Suarez), mas a lei secularizada do estadual e simplesmente politico direito da
modernidade a que começámos por nos referir e cuja crise igualmente conside-
rámos — e lei neste sentido não só, como vimos também, para a afirmação de
direitos, primeiro, mas como instrumento, sobretudo depois, das possibilidades
que justamente oferecia tanto de assimilação como de programação, organiza-
ção e racionalização dos objectivos contextualmente sociais. Ora, entendemos
que o direito só recuperará a sua autonomia, autonomia axiológico-normativa
que corresponde à vocação do seu sentido e tem sido sacrificada por aquela
assimilação, assim como superará os fracassos resultante daquela também con-
corrência e de que nos demos conta, se a perspectiva for outra, perspectiva não
da sociedade, mas perspectiva do homem, e assim não de índole macroscópica,
regulatoriamente macroscópica, e antes de índole microscópica, judicativamen-
te microscópica. Queremos dizer, o seu objectivo não estará na assimilação das
heterónomas teleologias sociais de todos os tipos e sim na solução de validade
normativa dos problemas da prática humana concreta, problemas imanentes a
essa prática, titulados pessoal e concretamente pelas pessoas em referência à
validade intencionada pelo encontro ou desencontro, em indeterminação ou em
controvérsia, dos homens-pessoas na sua histórico-situada coexistência e con-
vivência comunitárias. Isto nos termos que compreendemos corresponderem ao
intencional sentido do problema prático, antes enunciado Pelo que também, e
nessa coerência, o nuclearmente importante, por mediação embora de quaisquer
pressupostos fundamentos (axiológico-normativos) e critérios (dogmático-nor-
mativos) invocáveis, não estará na lei, mas no juízo prático-normativo por que
problemático-concretamente se afirme a axiológica normatividade, a validade,
que vai intencional e essencialmente no sentido do direito. Decisivo, no entanto,
é o sentido do direito que importa compreender e assumir.
2. Dissemos atrás que os sentidos são as referências espiritualmente culturais
que convocam o transcender da realização humana. E acrescentaremos agora
que a sua determinação resultará da resposta à pergunta pelo constitutivo da sua
emergência. Pelo que, quanto ao sentido do direito, do que se trata para o com-
preender é do especificamente constitutivo da sua emergência como direito, do
que ao direito com o sentido de direito o constitui. E, por analogia, a pergunta que
o enuncia não será também outra senão esta: “porquê o direito e não antes o não
direito?” Não se visa nessa pergunta — e utilizaremos uma distinção que não é
nossa, mas que adaptaremos ao nosso caso — nem a causa (factualidade genética
ou evolutivamente explicativa), nem a origem (cronológico começo histórico),
nem simplesmente o fundamento (que será apenas um elemento constitutivo,

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não o único), não se visa qualquer desses pontos, mas o conjunto das condições
humano-culturais, básicas condições de possibilidade, por um lado, e das dimen-
sões axiológico-normativas constitutivas, por outro lado, conjunto de condições
e dimensões que, na sua globalidade, também constitutivamente fazem surgir o
direito como uma específica e diferenciada, e nesses termos também autónoma,
dimensão humanamente cultural e prática. Pelo que aí, ou na resposta a essa per-
gunta, igualmente temos o que importa para atingirmos o seu sentido autêntico e
nesse sentido o seu relevo humano capital.
Começando, para tanto, por afastar modos de o perspectivar que apenas obs-
truem o acesso a esse seu sentido. Referimos a consideração do direito como
objecto, como discurso e como função, desde logo — pois que havemos de o re-
conhecer como validade, uma problemática e regulativo-normativamente cons-
tituenda e realizanda validade. A consideração do direito como objecto traduz
uma particular intenção epistemológica do pensamento jurídico consequente,
conjugadamente, ao positivismo e ao cientismo do séc. XIX, proposto a con-
verter o problema prático do direito num problema teórico desse pensamento,
conversão essa só acalentável ao intencionar-se o direito numa postulada sub-
sistência objectiva na sua exterioridade que punha entre parêntesis a imanência
problemático-normativamente constitutiva da sua juridicidade. O direito antes
de se oferecer numa manifestação objectivável, constitui-se ao resolver o seu
problema de uma regulativa validade prática numa intencional normatividade
para uma realização concreta — problema sempre aberto e normatividade sem-
pre constituenda e realizanda. Pelo que assim e verdadeiramente o direito não
é objecto, mas problema e o seu sentido, que em referência à sua problemática
normativa se haverá de pensar, é o que a sua objectivação ex post simplesmente
oculta. Como discurso, em que analogamente repercute agora o Linguistic Turn,
não menos o constitutivo problema normativo em que se assume o seu sentido
— o seu sentido convoca esse problema e visa resolvê-lo — o temos de dizer
também omitido, seja considerado o discurso em perspectiva semiótico-estru-
tural (como uma gramática do jurídico, uma deep structur) ou em perspectiva
semiótico-narrativa (como “relato”, num plano que acaba por não ultrapassa o
literário), seja mesmo ele chamado a manifestar-se constitutivamente através de
uma comunicativa argumentação, expressamente segundo um “princípio do dis-
curso” já antes aludido (e referido a Habermas), visando o consenso num certo
espaço político, já que a validade normativa ou de todo o modo a normatividade
que seria o próprio objectivo discursivo vai afinal fundamentantemente pressu-
posta e a possibilitar o próprio discurso com esse objectivo. Como função, mais
gravemente ainda o sentido do direito será sacrificado. Se a funcionalidade for
de índole material (neomaterialização funcional do direito), o que nela e através

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dela se imporá é a teleologia heterónoma, juridicamente heterónoma, para a qual


o direito será tão só um secundarizado e dependente instrumento, em que afinal
verdadeiramente como direito na sua validade normativa se apaga — não ele,
mas o político, o social-tecnológico, o económico, etc., ocuparão decisivamente
o campo. Se a funcionalidade for de índole formalmente sistémica, é a titularida-
de pessoal, a normatividade regulativa e a validade mesma do direito que, sem
mais, numa perspectivação apenas evolutivamente sociológica, se neutraliza
numa sua funda incompreensão a tirar mesmo sentido ao seu “porquê” prático-
-humano. Em todas estas perspectivações e outras análogas suscitadas embora
pelo jurídico, mas de uma intencionalidade e de uma problemática alheias às
juridicidade na sua irredutível especificidade, é afinal em algo diferente, que não
no direito, que verdadeiramente se pensa — o direito convoca-se para que outra
coisa para além dele avulte e se imponha.
Afastados, pois, esses obstáculos — que não diremos “obstáculos episte-
mológicos, como Bachelard os diria, mas obstáculos culturais de compreensão
de sentido —, há que convocar as condições possibilitantes da emergência do
direito e as dimensões directamente constitutivas do sentido da sua validade nor-
mativa. E isso, refira-se também, como um primeiro momento da nossa procura,
o da compreensiva determinação da validade do direito enquanto o axiológico-
-normativamente fundamentante, já que ainda um segundo momento se revela
exigível, e só o objectivante normativismo positivista pôde inconsiderar, o mo-
mento da problemático-concreta realização dessa regulativa validade, continua-
mente a reconstituir na sua normatividade por essa mesma problemática realiza-
ção. Um momento de validade, momento intencional e estritamente normativo,
e um momento de realização, momento metodológico de uma também específica
problemática e racionalidade — são os momentos a considerar.
Quanto às condições possibilitantes, quero invocar neste momento antes de
mais a que tenho considerado a essencial para a emergência, e a diferenciação,
do direito como direito, e que digo a condição ética — a convocar a pessoa
enquanto o referente e o titular da humana prática jurídica. Outra duas condi-
ções são também relevantes, uma primeira, que se dirá a condição mundanal, a
referir a social mediação do mundo, na sua fruição e repartição, e que, se de uma
aparente banalidade, não o será tanto, já que é ela que define o campo possível,
não ainda o sentido normativo mas o campo, da juridicidade, sendo que fora
desse campo não teremos problemas jurídicos. Uma segunda condição, bem
menos evidente e que mesmo hoje ainda em geral se recusa — recusa-a decerto
todo o individualismo, de ontem e de hoje, mas já não os pensamentos mais es-
clarecidos e menos ideologicamente cegos (cfr. desde logo, JAKOBS, Gunther.
Norm, Person, Gesellschaft. 2 ed., p. 117, e passim; CORTINA, Adela. Política,

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

Ética y Religión, passim) —, será a comunidade, a condição comunitária, na sua


irredutibilidade existencial, empírica e ontológica, e com a importância decisiva
de se haver de reconhecer aí o fundamento último da responsabilidade. Mas
voltando à condição ética e nela apenas insistindo, somos por ela postos perante
duas exigências capitais, a compreensão justificante da pessoa naquela sua re-
ferência e titularidade práticas e a determinação das suas imediatas implicações
normativas. A pessoa, já o considerámos, não é o indivíduo, nem o sujeito — o
indivíduo, apenas agora como termo biológico ou como o reivindicante solipsis-
ta dos interesses, o sujeito como causa sui das determinações e auto-nomos de
uma racionalidade universal —, o primeiro não conhece nenhuma ordem nor-
mativa em que se vincule (é relevante, quanto a esta ponto, a reflexão com essa
mesma conclusão de Gunther Jakobs, op. cit., 29, ss., e passim), o segundo pode
ser condição de um vínculo normativo, em imperatividade universal que trans-
cenda a vontade individual, mas essa apenas universal racionalidade não o pode
fundar, enquanto pela pessoa, traduzindo o transcender do antropológico e do es-
tritamente racional ao axiológico em transindividual reconhecimento ético, com
a sua dignificação e numa relacional convocação ética, é a própria eticidade da
normatividade que com ela também se institui. Assim o tenho pensado e encon-
tro reconfortante confirmação e refundamentação, posto que de perspectiva entre
si não coincidentes, certamente em Lévinas, mas também em Axel Honneth e
em Adela Cortina, inclusivamente em G, Jakobs (ao considerar a correlatividade
necessária entre normatividade pressuposta e pessoa), e em outros decerto. E
então podemos sem mais dizer — já o justifiquei e agora repito — que a pessoa,
enquanto sujeito ético, é ela em si mesma sujeito de direito, sujeito de direitos
e sujeito do próprio direito, com ser desse modo que a sua eticidade a investe
na comunidade prática assim como é nessa eticidade, que não simplesmente na
socialidade, que o direito sustenta a sua normatividade — pelo que o direito é-o
de pessoas e para as pessoas. Com isto não se diz que o direito seja uma ética —
excluem-no as duas primeiras condições referidas, e já considerámos este ponto
—, mas sustenta-se que tem, indefectível e constitutivamente, uma dimensão
ética. Depois, e é o outro aludido aspecto a considerar, do axiológico sentido
da pessoa na comunidade das pessoas inferem-se duas imediatas consequências
normativas, as inferências de um princípio de igualdade (no exacto, mas especí-
fico significado de não discriminação de estatuto, em referência à raça, à classe,
ao sexo, ao grupo social, etc.) e de um princípio de responsabilidade (é o que
implica a participação comunitária e a que só o acomunitário individualismo,
mesmo com o invocar dos “direitos do homem”, poderá tentar subtrair-se) e des-
se modo simultaneamente se reconhecerá que a pessoa, pela sua axiológica dig-
nidade de sujeito ético, não só é natural titular de direitos como correlativamente
natural imputável de responsabilidade — pelo que também para ela os deveres

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

são tão originários como os direitos. E se os direitos lhe conferem um titula-


do espaço de autonomia (autonomia de realização, por fruição e participação),
igualmente a autonomia se vê na realidade comunitária em irredutível dialéctica
com a responsabilidade. Dialéctica entre autonomia e responsabilidade que é
assim, reconheça-se, a matriz estrutural do direito e uma outra expressão da jus-
tiça, sendo que esta mais não é do que a exigência, normativamente integrante,
do reconhecimento de cada um pelos outros e da responsabilidade de cada um
perante os outros na coexistência em um mesmo todo comunitário constituído
por todos — e nesses termos a justiça coincide com o direito, verdadeiramente
mais não é do que o próprio direito.
E com isto passámos já da última condição de emergência do direito à pri-
meira das suas dimensões normativamente constitutivas. Referimo-nos à exigên-
cia ou implicação, naquela matriz e dialéctica, do direito como validade, como
validade normativa. Não simplesmente como norma (critério regulativo de uma
racionalidade sistematicamente horizontal), nem simplesmente como lex ou im-
perativo prescritivo, também não regra convencionalmente aleatória ou esque-
ma sistémico-social, mas referente fundamento de intencionalidade e expressão
axiológico-normativa a invocar como exigência normativo na prática humano-
-social e em todos os juízos decisórios suscitados por essa prática. Nestes termos
a validade do direito, e que o direito é, traduz um sentido normativo (nos valores
e princípios que a substantivem) que transcende as posições e as pretensões indi-
viduais de uma qualquer relação intersubjectiva e os transcende pela referência
e a assunção de uma fundamentante normatividade de sentido integrante e assim
vinculante para todos os membros de uma comunidade prática, e em que, por
um lado e por isso mesmo, os membros aí em relação se reconhecem nela de
igual dignidade e em que, por outro lado, obtêm uma imputável determinação
correlativa que não é o resultado de mera vontade, poder ou posição de prepon-
derância de qualquer dos membros da relação, mas expressão concreta das suas
posições relativas nessa unidade de sentido fundamentantemente integrante. E
uma tal validade, de sentido axiológico-normativamente material, como já a se-
guir compreenderemos — que terá o seu contrário já no sic volo, sic jubeo, já no
pro ratione voluntas — é decerto uma exigência implicada no sujeito ético que
no mundo prático é a pessoa, com a sua autonomia-liberdade e a sua integração-
-responsabilidade, posto que ele só pode propor-se uma qualquer reivindicação
ou admitir uma qualquer pretensão dos outros por referência a um fundamento
normativo que não pretira e antes reconheça as respectivas dignidades e justifi-
que as suas responsablidades. É deste modo que a ordem de direito, como ordem
de validade, não será simplesmente uma ordem social de institucionalização e
organização de poderes ou critério apenas de uma estratégia de objectivos sociais

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

e de conflitos de interesses, e que na sua intencionalidade e estrutura manifesta


uma normatividade que assimila regulativa e constitutivamente valores e prin-
cípios e não simplesmente fins, e em que o a priori do fundamento não cede ao
posterius dos efeitos.
Entretanto reconheça-se que a eventual compreensão do sentido do direito
como validade e as linhas da sua determinação a que se aludiu deixaram em
aberto a questão do fundamento que sustentará essa validade. Nesse fundamento
teremos uma terceira dimensão constitutiva desse sentido, pelo que não pode-
mos omiti-lo. Assim, recordaremos que o pensamento jurídico procurou esse
fundamento ou no ser ou na razão ou no contrato ou prescindiu mesmo dele,
substituindo-o pela imputação do direito à legitimidade política. No ser, pela
metafísico-ontológica e essencialista solução jusnaturalista, referindo já a ordem
constitutiva dos seres e da sua teleologia, já o pontualizado e concreto nomos re-
velado na”natureza das coisas”, já os objectivos realizandos que iriam na “natu-
reza do homem” — só que, por um lado, o ser em qualquer dessas suas manifes-
tações não era, como já atrás considerámos, um em si de imediata transparência
à consciência, mas uma onto-teleológica ou normativo-antropológica interpre-
tação dele de que o homem, na sua irredutível cultural mediação constitutiva,
e no caso praticamente orientada, era responsável, e, por outro lado, pensava-o
no essencial para a prática impossivelmente fora do tempo e na ahistoricidade
da inteligibilidade fundamental, mesmo na referência conciliadora ao “direito
natural histórico” ou ao “direito natural concreto” — e só por isso a necessidade
ontológica invocada mais não era, no fundo, do que a necessidade lógica. Na
razão, pela solução da modernidade e a culminar em Kant — só que, se essa
razão em referência prática não era uma razão tautológica, que só se pensava a si
própria na sua universalidade, não deixava de pensar também alheia ao tempo e
à história, e se nenhum pensamento concretamente transitivo pode ignorar a his-
tória menos ainda uma razão prática pode abstrair da historicidade. No contrato,
pelo “contrato social” particularmente invocado pelo individual-liberalismo do
séc XVIII — só que o contrato, se acordo apenas em si ou como vontades uni-
camente acordadas, não é susceptível de constituir uma qualquer validade pela
simples razão de que a vontade expressa é um mero factum que também só como
tal não vincula, apenas vincula se pressupuser um fundamento normativo que a
esse seu facto confira normatividade. É esta uma conclusão que outros igualmen-
te invocam (Cfr. JAKOBS, G. op. cit., 40; CORTINA, Adela. op. cit., 47, ss.) e
nos permite compreender o que já sabemos, que nos grandes teóricos do contrato
social (Hobbes, Locke, Rousseau, Kant) não faltasse afinal uma criptonormati-
vidade justificante. Fracassos de fundamentação estes que não legitimam — é
fundamental acentuá-lo — o contraponto do positivismo jurídico, a postular que

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o direito será tão só o resultado normativo de uma voluntas política orientada


por um finalismo de oportunidade e sob soberanos compromissos estratégico-
-sociais. Seria isso verdadeiramente renunciar a um fundamento de validade,
com a sua intencionalidade normativa e crítica, convertendo o direito num mero
facto político — o que, expressão do actual cepticismo quanto ao direito, que
se reconhecerá uma das consequências do positivismo jurídico, não deixa de
ser uma tendência a considerar e que justificaria uma reflexão aprofundada se a
circunstância fosse outra.
Só que a prática humano-cultural e de comunicativa coexistência, com a sua
tão específica intencionalidade à validade em resposta ao problema vital do sen-
tido — assim sobretudo, vimo-lo já, nas épocas de inumanidade e de colapso, e
numa dialéctica que é a da própria humanidade no homem, estruturalmente cons-
tituída pela distinção entre o humano e o inumano, o válido e o inválido, justo e
injusto —, refere sempre nessa sua intencionalidade e convoca constitutivamen-
te na sua normatividade certos valores e certos princípios que pertencem tanto
ao ethos fundamental como ao epistéme prático de uma certa cultura numa certa
época — e que são como que o resultado ético-prático da histórica aprendizagem
que o homem faz da sua humanidade. E que assim, sem se lhes ignorar a histori-
cidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural huma-
na, se revelam em pressuposição intencional-problematicamente fundamentante
e constitutiva perante as positividades normativas que se exprimam nessa cultura
e nessa época — são valores e princípios pressupostos e metapositivos a essa
mesma positividade, e assim numa autotranscendência de sentido, que é ver-
dadeiramente uma trancendentabilidade prático-cultural, de histórica criação
ou imputação humana decerto, mas de que o homem no momento da invocação
não pode dispor sem a si mesmo se negar, que deixaram nesse momento de esta-
rem na sua opção ou no seu arbítrio. E a que não pode decisivamente opor-se a
sempre pronta invocação do actual pluralismo — pois, se é este nomadológico,
suprime a comunicação e com esta a possibilidade mesma do mundo humano; se
não é nomadológico, a comunicação pressupõe e só é possível num comum de
sentido na intersubjectividade e que a sustente, não obstante as diferenças (cfr.
“A Revolução e o Direito”, In: Digesta, vol. 1, 129, ss.; v. agora também COR-
TINA, Adela. op. cit., 115,ss.). Autotranscendência de sentido e transcendenta-
bilidade prático-cultural em que antes a prática reconhece os seus fundamentos
de validade e os seus regulativo-normativos de determinação e relativamente aos
quais, pelo que acaba de dizer-se, poderemos falar, sem contradição nem para-
doxo, de um fundamentante e regulativo absoluto histórico. É este o fundamento
e o sentido dele que havemos de pensar relativamente à normativa validade jurí-
dica: fundamento histórico-culturalmente de constituição humana, mas que não

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obstante ao homem indisponivelmente vincula. Impõe-no-lo a história — para


além da sua negação, precipitada negação — com o sentido que dela vem.
3. Com o que somos remetidos para a terceira dimensão da nossa proposta
de reconstituição crítica, a dimensão de normatividade, ou de determinação de
normatividade que dê conteúdo à validade do direito. Considerámos o senti-
do fundamental e a determinação dessa normatividade mais do que uma vez.
Recordo: A Revolução e o Direito; Justiça e Direito; O Direito hoje e com que
sentido? Retomá-los neste momento exigiria desenvolvimentos excessivos para
esta oportunidade. Pelo que apenas diremos que uma particular analítica lhe di-
ferencia três planos de determinação normativa, um de maior contingência po-
sitivo-social, outro de uma específica principiologia jurídica e um terceiro de
uma substantiva e dialéctica axiologia essencial. E pensados esses planos, e as
suas respectivas normatividades, na unidade de uma dialéctica historicamente
constitutiva em que o direito encontra a sua manifestação e contínua determina-
ção intencional, unidade essa que se poderá designar a “consciência jurídica” do
momento histórico que se considere.
O que não significa, evidentemente, que na normatividade de validade que
referimos, nos seus três níveis de determinação, e com o seu fundamento últi-
mo, tenhamos toda a normatividade jurídica possível e relevante, que nela se es-
gote ou que com ela se confunda a que promane também das “fontes do direito”,
prescritivas ou judicativas, que, como imediatamente se dirá vão alimentando
constitutivamente a dialéctica do sistema jurídico. Mas já significa que esta
normatividade jurídica positiva haverá de manifestar-se em consonância com
aquela normatividade jurídica fundamentante, que haverá de concretamente
determinar-se e realizar-se sem a violar e assimilando-a — assim se cumprirá o
sentido do direito e respeitará a normatividade da sua validade. Foi deste modo,
e para que se não recusasse a afirmação irrecusável do sentido do direito mesmo
num momento em que a ruptura com ele parecia ir no movimento da história,
que sustentámos a sua axiológico-normativa validade ainda perante a revolução
(em particular, a revolução portuguesa de 1974 e também em geral), em termos
de aquela subsistir perante esta e não ter de ceder ao seu poder real (v. “A Re-
volução e o Direito”. In: Digesta, vol. 1, 51, ss.).

b) O primeiro momento da nossa proposta de reconstituição crítica do sen-


tido autónomo do direito fica assim compreendido, e manifesta-o a articulada
conjugação das quatro dimensões que ficaram enunciadas — uma particular
perspectiva, uma recompreensão desse sentido e da sua intentio de validade,
uma específica normatividade constituinte e a diferenciação de uma estrutura

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

própria. O segundo momento — dissemo-lo — convoca um correlativo modelo


de pensamento chamado a assumir esse sentido e a sua normatividade em ordem
à sua concreta realização judicativa — e será o momento metodológico da recons-
tituição crítica. Dispensamo-nos, no entanto, de o pormenizar, já que podemos
remeter-nos para duas monografias em que esse modelo se encontra no essencial
enunciado — Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais, 1993, e O actu-
al problema metodológico da interpretação jurídica, I, 2003. Limitamo-nos, por
isso, a chamar a atenção para alguns pontos decisivos. Todo o modelo se pers-
pectiva por uma específica compreensão do “problema metodológico-jurídico”
— o problema do problemático-concreto juízo jurídico —, assim como refere
um adequado “tipo de racionalidade” — nem teorética, nem tecnológico-social, e
antes prático-jurisprudencial —, e justifica o “caso jurídico”, o concreto problema
jurídico na sua específica autonomia problemática, como o “prius metodológico”
(que não apenas ponto de partida e objecto decisório) quer na intenção judicativa,
quer na identificação e delimitação da juridicidade — e neste último sentido, ver-
sus o sistema jurídico positivo-dogmaticamente pressuposto. Depois, organiza-se
segundo uma também específica estrutura que se traduz numa particular dialéc-
tica entre “sistema “ e “problema”, e que tem no “juízo”, no concreto decisório
juízo jurídico, a sua mediação normativa. Mas sistema, enquanto a adquirida ob-
jectivação da normatividade jurídica em todos os seus planos, de validade e posi-
tiva, que se reconhece como a unidade de uma estratificada totalização normativa
— constituem-na os princípios (o momento de validade), as normas (o momento
de autoridade de prescrição), a jurisprudência (o momento de experimentação
problemático-casuística, com a sua particular presunção de justeza) e a doutrina
ou dogmática (o momento de racionalidade sistemático-reconstrutiva). E sistema
com as características, além disso, de abertura problemática e de sentido normati-
vo regressivamente reconstrutivo a posteriori, e assim de uma unidade não pres-
suposta, mas sempre reconstituenda pela mediação problematicamente judicativa,
e que oferecerá à decisão concreta os fundamentos (nos princípios) e os critérios
(nas normas) imediatamente judicativos. O problema, por seu lado, manifesta o
caso jurídico no seu sempre novum de sentido concretamente problemático e sis-
tematicamente irredutível. O juízo, por último, é chamado a assumir a normati-
vidade jurídica oferecida prima facie pelo sistema e a projectá-la como solução
na decisão jurídico-normativa do caso, obedecendo para tanto — ponto capital
— a duas exigências diferenciáveis, mas e a integrar dialecticamente no decisão
judidicativa, pois haverá de ser tanto normativo-juridicamente fundado (em refe-
rência ao sistema) como problemático-concretamente adequado (em referência
ao caso decidendo), e operará segundo um esquema metódico complexo em que

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se reconhecerá a sua também irredutível constitutividade normativo-jurídica, e


que prescindiremos igualmente de expor aqui. Com duas notas relevantes, toda-
via, ainda a sublinhar. Neste modelo metodológico reconhece-se, por um lado,
a perspectiva microscópica, ou seja, a referência problemático-concretamente
jurídica, como o horizonte determinante da intencionalidade, e manifesta-se, por
outro lado, a juridicidade como validade normativa fundamentantemente refe-
rida e dialéctico-judicativamente realizanda e constituenda. A outra nota para
considerar que o problema da assunção determinativa dos critérios a invocar
pelo juízo — que tanto é dizer a “interpretação” na designação comum — vai
necessariamente compreendida como um problema, não analítico (exegético-
-analítico) ou sequer estritamente hermenêutico, e sim especificamente norma-
tivo, ou seja também ele com um sentido que vai na coerência da globabilidade
normativa deste modelo de pensamento.

6.1.3. Os corolários
O pensamento que pelo essencial ficou exposto e fundamentado implica
como consequência de desenvolvimento explicitante, e que temos por capital, já
que é nele que o seu relevo se poderá afinal reconhecer, três diferenciáveis coro-
lários. O reconhecimento da autonomia do direito no universo prático humano;
a definição dos limites do direito nesse mesmo universo; as diagnosticáveis
alternativas ao direito na evolutiva realidade humano-histórico-social.

a) A autonomia do direito. Atingido o sentido do direito, tal como o foi na


sua especificidade, compreendemos sem mais, e temos nesse sentido fundada, a
sua autonomia — autonomia já relativamente aos próprios “direitos do homem”,
já perante o político e também ao puramente ético e ainda no contexto de um
qualquer holismo prático-social.
Efectivamente, e em primeiro lugar, ao considerarmos directamente antes os
direitos do homem pela questão de saber se neles teríamos o núcleo de uma nova
perspectiva de reconstituição do sentido do direito que o nosso tempo exigiria,
concluímos que a só relevância desses direitos truncaria o direito de uma sua
essencial constitutiva, a dimensão axiológico-normativamente comunitária que,
em dialéctica responsabilizante com a autonomia pessoal, é matricialmente im-
plicada no próprio sentido do direito que, enquanto tal, nos cumpre assumir. Se-
ria um direito só de direitos e sem responsabilidade ou numa recusa impossível
do vínculo comunitário — recusa impossível, porque sem esse vínculo o direito,
enquanto validade, é impensável, tal como o vimos e o compreendemos.. O que
significa que o sentido da relação entre os direitos do homem e o direito que se

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quisesse pensar na perspectiva daqueles direitos deverá inverter-se, em termos


de ser antes na perspectiva do direito, compreendido no seu sentido específico e
autêntico, a intencionar uma validade normativa transindividual, que os direitos
do homem se poderão reconhecer: os direitos do homem pensados no direito ou
na coerência do sentido do direito, não o direito pensado segundo os direitos
do homem. Que tanto é dizer, afinal, que o sentido do direito na sua específica
autonomia se impõe a sustentar a própria autonomia do direito — autonomia do
direito em geral e não menos perante os direitos do homem.
Autonomia do direito que se reconhecerá, em segundo lugar, também relati-
vamente ao político — e se reconhecerá assim, porque tal como ao direito o com-
preendemos, no seu sentido, na sua normatividade e no seu pensamento ou racio-
nalidade específicos, é ele, na verdade, intencionalmente autónomo e irredutível
ao político. Autonomia tanto estrutural como, e é o mais importante, material.
Quanto ao ponto de vista estrutural, basta retomar as breves alusões que já antes
lhe foram feitas. Se no direito concorrem uma validade (axiológico-normativa),
uma universalidade (intencionalidade universal sem discriminação e em que as
diferenças tanto de atribuição beneficiadora como de imputação responsabiliza-
dora sejam apenas de sentido situacionalmente reversível no quadro da validade
pressuposta), um fundamento (racional determinante material de toda a concre-
tização) e um juízo (uma decisão problemático-normativamente judicativa), já
no político à validade contrapõe-se a estratégia (validade axiológico-normativa
versus estratégia selectiva de fins), à universalidade a partidarização (univer-
salidade versus a discriminação entre os que se situam pro e os que se situam
contra), ao fundamento contrapõem-se os efeitos (o fundamento versus a eficá-
cia consequencional) e ao juízo contrapõe-se a decisão (o juízo versus a decisão
na acção alternativa da voluntas). Sabendo-se, é certo, que a estrutura, enquanto
sustenta e organiza, é apenas uma condição, mas não assegura ou constitui o con-
teúdo e é neste que, materialmente, se decide da autonomia. Ora, abandonada,
pelo paradigma moderno da legalidade, a referência ao direito natural, com a sua
implicação normativo-material, o direito passou a ter uma índole só formal, o
direito apenas uma forma normativa de que o poder politico, em veste legislativa
e segundo a sua estratégia e intencionalidade, unicamente decidia o conteúdo.
Com o contraponto, vimo-lo também, da relativa autonomia que a concepção
paradigmática da legalidade e a elaboração dogmático-jurisprudencial podiam
lograr, mas que a erosão do próprio paradigma não deixou de progressivamente
ir também anulando, para ficarmos no que hoje reconhecemos, na aberta conver-
são da lei num mero facto político — que de todo abandona reservas de inten-
cionalidade, bastando-se tão só, quando muito, com a invocação de uma legiti-
midade, também ela política e sem quaisquer limites materiais. O que em último

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termo se traduziu no sacrifício de qualquer autonomia do direito, tornado mero


instrumento prescritivo, numa total funcional disponibilidade dele pelo político.
Com o resultado que sabemos, a manifestação de uma profunda crise da juridi-
cidade e do próprio sentido do direito que só uma reconstituição desse sentido,
revelada assim necessária, poderia superar. Reconstituição de sentido que tentá-
mos na nossa proposta, a recuperar o direito na sua autonomia — e autonomia
verdadeiramente material na validade e na normatividade axiológico-normativas
por que o direito é pensado. E todavia um ponto problemático se terá novamente
de suscitar, e que acaba por se relevar decisivo: a intencionalidade normativo-
-material autónoma do direito que pudemos compreender poderá porventura
concorrer hoje com a intencionalidade normativa da constitucionalidade — não
será à normatividade jurídico-constitucional que se deverá dar a incondicional
preferência? Se assim for, se a juridicidade de todo se identificar com a consti-
tucionalidade, volta então o direito, embora de outro modo e num outro plano, a
caber materialmente ao político. Só que esta politização do direito noutros ter-
mos apenas seria necessária se o direito o tivéssemos de continuar a pensar numa
estrutura formal vazia de uma específica intencionalidade material, como vimos
ter sido próprio do paradigma da legalidade nos seus começos modernos — en-
tão decerto que apenas a determinação constitucional dos conteúdos jurídicos se-
ria agora chamada a preencher esse vazio. Recuperados, no entanto, um sentido
e uma axiológica normatividade específicos para a juridicidade, aquela relação
de forma e conteúdo deixa de ser inevitável e poderá antes pensar-se a relação
entre a juridicidade e a constitucionalidade em termos materiais, exactamente no
modo e com as consequências que antes pudemos considerar. Pelo que a questão
passa a ser outra, passa a ser a questão de saber a qual das duas normatividades
materiais, à normatividade especificamente autónoma do direito ou à normativi-
dade jurídico-constitucional, caberá a prioridade, se não a exclusividade. A favor
da normatividade jurídico-constitucional invocar-se-á a legitimidade política —
posto o que, e como também vimos, o direito se verá simplesmente remetido
para o politico, deixando de haver distância de validade e crítica entre o direito
e o político. A favor da normatividade específica do direito estará justamente a
sua invocável autonomia — e nela teremos uma instância de distanciamento de
validade e crítica perante o político, e a sua contingente e disponível normati-
vidade. Validade que, aliás e em último termo, o político sempre acaba por ter
de invocar, se a legitimidade que se arrogue não se identificar apenas com um
poder logrado e haja de referir um fundamento normativo, como efectivamente
o pensamento constitucionalista sempre intenciona — sem o que, com efeito, o
poder não passará afinal de nua força. Quer dizer, em conclusão, que sacrificada
a autonomia do direito e as suas implicações normativas pela cedência apenas
ao político constitucional e aos seus projectos jurídicos, tudo acaba, qualquer

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

que seja o mérito normativo desses projectos, por remeter ao jogo do poder em
que o direito é verdadeiramente res in alia — apenas nos restando então falar de
alternativas para ele, de que adiante efectivamente falaremos.
Autonomia do direito que ainda relativamente à ética, em terceiro lugar, se
afirmará, tanto a nível problemático como intencional e institucional. A ética,
no “face a face” do seu absoluto intencional, dirigido sem mediações cada um
ao outro nas suas singularidades pessoais, e não excluindo embora o relevo de
uma “ética da responsabilidade”, só diferente nas condições circunstanciais que
não no limite absoluto da intencionalidade, remete a um universo só de man-
damentos e deveres em que se não assume, como pudemos ver, o problema
prático na sua especificidade, na comunitária dialéctica de autonmias-direitos e
obrigações-responsabilidades — dialéctica a que justamente ao direito, no sen-
tido autónomo da sua validade e na sua especificidade normativa e institucio-
nal, cumpre dar solução. Com o que o direito não é perante a ética quer apenas
um minus — como tão erradamente se pensava com o dizer-se ele “o mínimo
ético” —, quer um “caso particular” (Sonderfallthese), e numa só particulari-
zação procedimental e de critérios decisórios, do pensamento ético-prático em
geral — como sustenta, entre outros, Robert Alexy (vide, sobre essa tese e a sua
crítica, já a nossa Metodologia Jurídica, 72, ss.; e também criticamente depois,
HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. 3 ed., 281, ss.), mas verdadeiramente
um alium. Repita-se, um alium problemático e assim também um alium na res-
posta de sentido e de normatividade.
A autonomia do direito implica, por último, a recusa de um qualquer ho-
lismo prático, que funcionalmente o dissolveria. Porque sempre esse holismo,
qualquer que seja a sua índole, se parece convocar no direito o contexto global
da realidade humana e social e assim reconhecer nele todo esse mundo que,
sendo o nosso, é também o dele, o certo é que esse aparente enriquecimento do
direito, pela globalidade do compromisso e pelas suas determinações ab extra,
é realmente ilusório e de consequências desagregadoras, já que só arrasta à con-
fusão das essências, ao anular as intencionais autonomias diferenciáveis, com
os seus problemas próprios e irredutíveis — se em tudo está o todo, o todo não
será o critério imediato e específico de tudo — e com o resultado de o triunfo vir
a caber afinal, com o conferir boa consciência consequente ao apagamento da
sua autónoma distância de validade, a forças sociais mais poderosas, no poder e
nos meios que mobilizam, relativamente às quais a intentio do direito deverá ser
normativa instância crítica. É assim que o direito não será política, mas validade;
não será estratégia, mas normatividade; não actuará por decisão de alternativas
consequenciais, mas por juízo de fundamentante validade normativa. Pois, numa

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palavra, o direito não se propõe governar a sociedade, mas constituir uma valida-
de axiológico-normativa que ao homem dê o sentido da sua prática.

b) Os limites do direito. Reconhecida a autonomia do direito e como coro-


lário dessa mesma autonomia somos também postos, e sem paradoxo, perante
os seus limites, os limites do direito. Pois se ao direito o sustenta um sentido
em que se baseia o seu universo próprio e se implica a sua normatividade espe-
cífica, fica com isso definido o campo da juridicidade e assim simultaneamente
o direito se delimita — se delimita na sua intencionalidade e nas suas possibi-
lidades no todo da realidade humana. É este o tema dos limites da juridicidade,
que se podem especificar, conjugadamente, pela determinação problemática que
ao direito unicamente lhe corresponde — trata-se de compreender quando e em
que termos estamos perante um problema de direito, ou problema que ao direito
cumpre assumir — e pela normatividade constitutivamente coerente com o seu
sentido e intencionalidade em que essa problemática deverá encontrar resposta.
Tema de que também já nos temos ocupado, limitando-nos agora a chamar ainda
a atenção para o facto surpreendente de ser este tema desconhecido e ir de todo
incompreendido no pensamento jurídico dominante, ainda fundamentalmente
de cariz positivista. É no entanto um facto surpreendente que bem se justifica
no quadro desse pensamento — é que para o nominalismo jurídico positivista
o direito identifica-se com qualquer prescrição autoritariamente sancionada e,
não pondo assim exigências quanto ao conteúdo da prescrição, o direito pode
ser pensado formalmente sem limites. Ora, e para uma posição decisivamente
contrária, há que considerar o que antes foi reflectido, que o sentido do direito
como direito, ou autenticamente com o sentido de direito, resulta, e resulta só,
da integrada conjugação das três condições então referidas, uma condição mun-
dano-social, a manifestar a pluralidade humana na unicidade do mundo, uma
condição humano-existencial, a explicitar a mediação social no fundo da dialéc-
tica personalidade e comunidade, uma condição ética, a condição que implica
o reconhecimento axiológico da pessoa e que, já por isso, é verdadeiramente
a especificante condição constitutiva do sentido do direito como direito e que
simultaneamente implica a intentio a uma normativa validade (a uma valida-
de axiológico-normativa). E então, poderá dizer-se, numa imediata inferência,
que não haverá juridicidade, que não estaremos no domínio do direito ou no
espaço humano-social por ele ocupado e que o convoca, se não se verificarem
essas condições: se não estivermos perante uma relação socialmente objectiva
(constituída pela mediação do mundo e numa comungada repartição dele); se,
embora num quadro de mediação social, não se suscitar a dialéctica, a exigir uma
particular resolução, entre uma pretensão de autonomia e uma responsabilidade

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

comunitária; se, não obstante a pressuposição de uma concreta dialéctica desse


tipo, não estiver em causa a eticidade da pessoa — a pessoa como sujeito ético
do direito e assim tanto sujeito de autonomia e direitos como sujeito de deveres
e responsabilidade, fundados aqueles e estes numa pressuposta validade. É, no
fundo, pela referência à primeira condição que comummente se diz, depois de
Wolf e Kant, que o domínio do jurídico é a exterioridade, o mundo das humanas
relações exteriores e não o da pura interioridade; é em consideração da segunda
condição que se afirmará também que com o domínio da estrita e solitária ou
mesmo solipsística liberdade pessoal, que não seja correlativa ou em que não
esteja em causa a integração comunitária com as exigências implicadas, não tem
a ver com o direito; é finalmente com fundamento na terceira condição que cer-
tas relações de carácter social e de implicação comunitária, mas em que não se
manifesta activa (na sua ética irredução a objecto ou na sua absoluta indisponibi-
lidade) ou passiva (na sua ética responsabilidade) o reconhecimento impositivo
da pessoa, se excluem do direito. O primeiro ponto é decerto o mais tratado e
de aceitação comum; o segundo ponto logo se compreende, se pensarmos nos
compromissos religiosos, nas convicções ideológicas, nas determinações artís-
ticas, científicas, na mera sociabilidade, etc.; e claro é também o terceiro ponto,
se considerarmos a posição das pessoas nas puras relações de amor e amizade e
quaisquer outras análogas em que não tenha sentido a atribuição e a correlativa
reivindicação, a imputação e a sua responsabilidade, etc. — recorde-se de novo a
“parábola do filho pródigo”, a afirmar o amor para além da justiça, tenha-se pre-
sente a autonomizante e distanciadora relação de igualdade que Aristóteles via
como pressuposto das relações de justiça e de que, por isso, excluía (de acordo
decerto com a realidade cultural-social grega) as relações tanto entre pais e filhos
como entre os cônjuges, refira-se as relações no seio das comunidades dos pri-
meiros cristãos segundo os Actos dos Apóstolos, em que não havia “meu” nem
“teu”, e igualmente todas as filadélfias, todas as comunidades de amor, inclusive
as associações informais de amigos, etc. Tudo o que considerado e como uma
sua síntese nos permite enunciar esta conclusão: estaremos perante um problema
de direito — ou seja, um problema a exigir uma solução de direito —, se, e só se,
relativamente a uma concreta situação social estiver em causa, e puder ser assim
objecto e conteúdo de uma controvérsia ou problema práticos, uma inter-acção de
humana de exigível correlatividade, uma relação de comunhão ou de repartição
de um qualquer espaço objectivo-social em que seja explicitamente relevante
a tensão entre a liberdade pessoal ou a autonomia e a vinculação ou integração
comunitária e que convoque num distanciador confronto, já de reconhecimento
(a exigir uma normativa garantia), já de responsabilidade (a impor uma norma-
tiva obrigação), a afirmação ética da pessoa (do homem como sujeito ético). No
que temos afinal um determinado objecto (as relações mundano-sociais) num

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ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES

particular contexto prático (o contexto da convivência pessoal-comunitária) de


que emergem controvérsias ou problemas normativo-práticos a convocarem
para a sua solução judicativa um fundamento de validade normativa (a vali-
dade axiológico-normativa implicada na axiologia da pessoa, na axiologia do
reconhecimento da sua autonomia e da sua responsabilidade numa comunidade
ética de pessoas). E compreendendo isto, compreendemos que os limites do
direito vão implicados no seu próprio sentido, pois por esse sentido se delimita
a sua problemática específica, na intencionalidade e na possibilidade das suas
soluções. O direito, embora de uma importância decisiva, não é tudo na rea-
lidade humana e torná-lo aí um disponível para tudo é tanto ignorar o que ele
verdadeiramente significa como acrítica e inaceitavelmente instrumentalizá-lo.

c) As alternativas ao direito. Por último, e ainda como possível corolário des-


se sentido do direito que enunciámos, somos postos perante a eventualidade da
sua própria superação através de alternativas que para ele se forjem, e já hoje
na verdade se estão a forjar, na realidade histórico-cultural-social. Com efeito,
as intencionalidades sociais que não assumam esse seu sentido constitutivo e di-
ferenciador, na resolução embora do mesmo problema humano-histórico-social
para que o direito se tem constituído como uma específica solução, o problema da
integração da pluralidade humana na unicidade do mesmo mundo comunitário,
verdadeiramente abandonam o domínio do direito e constituem-se como suas al-
ternativas. — pondo-se assim em causa, no seu dogmatismo, o aforismo sempre
repetido, ubi societas, ibi ius. É este um tema que consideramos fundamentalmen-
te esclarecedor — ainda que não o vejamos também compreendido pelo pensa-
mento jurídico em toda a sua importância — e que, por isso, temos continuamente
retomado. Justifica-se assim que lhe façamos agora apenas uma breve alusão.
As alternativas ao direito — com a exclusão dele que postulam, se o não o
perspectivarmos pelo acrítico nominalismo jurídico positivista e antes pelo seu
sentido normativamente substantivo que definimos — são pensáveis e estão efec-
tivamente a afirmar-se na experiência prática contemporânea. É que, se o direito
só verdadeiramente o temos quando à terceira condição da sua constitutiva emer-
gência, a condição ética tal como a compreendemos na sua implicação de valida-
de, for conferido reconhecimento e realidade, bastará então que dela se abstraia
ou que ela realmente se recuse para que possamos ter ordens sociais sem que se-
jam ordens de direito. Recusá-la-á a alternativa do poder: todo o despotismo dos
poderes políticos, de que tivemos uma trágica experiência no século há pouco
consumado, já que, ao imporem-se como poderes totalitariamente absolutos que
se têm por causa sui, o que constituem, contra a ordem de validade própria do
direito, são ordens de necessidade — a invocada necessidade, que seria também

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JURISPRUDENCIALISMO – UMA RECONSTITUIÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO E AUTONOMIA DO DIREITO

uma legitimidade, já da história, já da raça, já da classe, etc. Recusa-a também


a alternativa científico-tecnológica, a ordem político-social que àquela ordem
de validade prefira uma ordem de possibilidade, uma ordem apenas socialmente
estratégica numa institucionalização funcional e consequencial, em que aos fun-
damentos (axiológico-normativos) se substituam os efeitos e actuando segundo
uma prática científico-tecnológica de administração eficiente (em que a própria
prática se converte em técnica, num qualquer modelo de “engenharia social” ou
“tecnologia social”). Recusa-a ainda a alternativa política, uma ordem político-
-social que, contra a opção por uma ordem de validade, prefira antes uma ordem
de finalidade, uma programática de objectivos também selectivamente estratégi-
cos em que, por sua vez, aos valores (na sua universalidade) se substituam os fins
(na sua subjectivação contingente), fins a cuja realização tudo também se funcio-
naliza e só preocupada com a institucionalização de poderes e dos meios que lhe
assegurem a eficiência e o êxito. Quer, pois, uma ordem social simplesmente de
poder, quer uma ordem social (económico-social) fundamentalmente referida e
apenas condicionada pela possibilidade científico-tecnológica, quer uma ordem
social (político-social) exclusivamente referida e apenas condicionada pela fina-
lidade política stricto sensu.
E todavia, numa palavra de conclusão: tudo que se disse cremos ter-nos es-
clarecido de que o direito é, perante todas estas alternativas, verdadeiramente a
alternativa humana — a única que no prático universo humano nos reconhece,
sem cedência a outros jogos, na nossa dignidade e na nossa responsabilidade.
E é tudo...

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CAPÍTULO II
PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS
(UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

Fernando José Bronze


Universidade de Coimbra

As minhas primeiras palavras são, naturalmente, de profunda gratidão pela


fidalguia do acolhimento e pelo honroso convite para intervir neste colóquio.
Participar é preciso, mesmo que o êxito da participação seja mais do que duvi-
doso — qualquer jurista mediano sabe que a tentativa nem sempre se consuma...
Permitam-me também que felicite a Faculdade anfitriã pela oportunidade e
pela sagacidade da iniciativa. Em tempos de turbulência é avisado questionar o
caminho a percorrer — só assim poderemos resistir às ilusões destemperadas e
aos “activos contaminados” que amiúde nos assediam...
O seminário que nos reúne é dedicado ao jurisprudencialismo. Uma opção
nada inocente, pois os Excelentíssimos Organizadores pensaram este encontro
como uma homenagem ao nosso comum Professor, Senhor Doutor Castanheira
Neves, que de há muito propõe aos juristas, como dever e como divisa, a exigente
e comprometedora compreensão do direito que a mencionada orientação traduz.
A desluzida, mas empenhada, comunicação que trouxe (originariamente
concebida com outra destinação específica...) versa um tema de metodonomo-
logia (como eu prefiro dizer, suscitando a crítica do Senhor Doutor Castanheira
Neves...) — o do apuramento do lugar do problema concretamente judicando na
esfera do exercício judicativo-decisório, decerto uma das suas questões nuclea-
res e que, de resto, abordarei em termos parcialmente heterodoxos.
Antes de entrar em matéria, gostaria, contudo, de aludir a uma inquietação e
de aduzir uma justificação.
A inquietação formulá-la-ei como segue. Steiner, em comentário a Keats,
não hesitou em perguntar: quem ousará afirmar-se “um poeta épico com aspira-
ções filosóficas”, sabendo que “Dante anda, por assim dizer, nas redondezas”?;
quem se atreverá a escrever numa “página em branco [...] a palavra ‘tragédia’
com Sófocles e Shakespeare [a espreitarem] por cima do seu ombro”?1 Ora o

1 Cf. STEINER, George. O silêncio dos livros. Trad. M. Sérvulo Correia. Lisboa, 2007, 33, e Os livros que
não escrevi. Trad. M. Serras Pereira. Lisboa, 2008, 68 s. e 211.

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FERNANDO JOSÉ BRONZE

risco que corro e a temeridade que assumo não são comparativamente menores,
porque o que me proponho é falar de “metodologia jurídica” na presença do Se-
nhor Doutor Castanheira Neves — que sempre vi (disse-o uma vez e atrevo-me
a repeti-lo aqui, parafraseando uma passagem de um livro de Nietzsche insisten-
temente convocado na sessão inaugural) como o mistagogo, por antonomásia,
do direito, do pensamento jurídico e dos juristas, nesta nossa tão perturbadora
contemporaneidade: como aquele que, com a paciência dos santos e a clarivi-
dência dos sábios, aponta ao direito o sentido mais pessoalmente interpelante,
assinala ao pensamento jurídico a tarefa mais lapidarmente nobilitante, e indica
aos juristas o rumo mais afinadamente responsabilizante.
Já a justificação da escolha de um tema de metodonomologia para esta minha
intervenção não me rouba o sossego, pois poderei dá-la acompanhando a lição
do também meu eminente Mestre. Em conferência recente, proferida ante um
auditório maioritariamente constituído por Colegas brasileiros, o Senhor Doutor
Castanheira Neves teve o ensejo de sintetizar a sua intelecção do jurisprudencia-
lismo. Esclareceu aí o Ilustre Homenageado que o jurisprudencialismo, criterio-
samente recortado, postula a adopção de uma singular perspectiva microscópica,
a assunção de um específico sentido de validade, a consideração de uma parti-
cular normatividade positiva e transpositivamente determinada, a instituição de
uma estrutura material e intencionalmente diferenciadora, e — é este o ponto
circunstancialmente relevante, sendo igualmente nele que o jurisprudencialismo
emblematicamente se cumpre... — a mobilização de um modelo discursivo po-
larizado num juízo prático-normativo colimado à histórico-concreta realização
prudencial do direito2. Sem ignorar as quatro primeiras das cinco notas acabadas
de referir (como poderia fazê-lo, se todas elas se imbricam?...), centrar-me-ei,
todavia, na última, e, no seu âmbito, privilegiarei apenas dois pontos: o da prio-
ridade do problema judicando na esfera do exercício metodonomológico e o do
tipo de raciocínio implicado por esse exercício.

I
1. A prática humana (se nos dispusermos a deixar entre parêntesis a sua in-
compreensão positivista — da versão primígena à dos últimos abencerragens —,
que a reduz a uma pura técnica inucleada no mero fazer eficiente, a uma opera-
tória produtiva de efeitos empírico-analiticamente mensuráveis, ou multiplica-
dora de resultados sócio-economicamente contabilizáveis, e, portanto, de todo

2 Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro.
Coimbra, 2008, 56 ss.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

alheia à assunção e cumprimento de sentidos axiologicamente polarizados…),


acentuámo-lo em inúmeras ocasiões, identifica o domínio do agir — da acção in-
tersubjectivamente significativa (da tangivelmente projectada — em planos vá-
rios e relações diversas — troca de exigências humano-culturalmente emblemá-
ticas, na esfera de uma determinada “comunidade de comunicação”, que assim
se vai institucionalizando como um locus existentiae, como uma Lebenswelt...)
—, emergindo, destarte, historicamente. Ora é precisamente este seu carácter
histórico — esta sua posição/realização na histórica — que, neste ensejo, nos
propomos especialmente abordar.
Antes, porém, acentuaremos — por também isso importar aqui — resul-
tarem as mencionadas acções da dialéctica em que se enredam experiências
interpelantes e exigências interpeladas, ou seja... problemas, pois sabe-se serem
estes a síntese de situações (consideradas na sua predicativa singularidade) e
intenções (tomadas na sua regulativa normatividade) — de perguntas postas
por aquelas primeiras que as segundas permitem formular e a que ajudam a
dar resposta. Lembraremos, além disso, que os aludidos problemas podem ser
de direito, se o referente viabilizador da respectiva tematização/resolução for
a juridicidade. E sublinharemos, finalmente — agora em menção conjunta aos
termos (e)levados ao título deste escrito breve —, que a prática se apresenta
como o horizonte enquadrante das reflexões que ousaremos, os problemas como
o seu paradigmático factor dinamizante e o direito como o referente intencional
circunstancialmente privilegiado.
Isto dito, tanto em jeito de nota de apresentação dos propósitos como de
súmula antecipante das conclusões, caminhemos então o caminho que foi sendo
traçado pela investigação levada a cabo, e que procurámos situar ao nível mais
radical possível — donde, o confessado pendor oblíquo (hoc sensu, inspirado
pela autêntica preocupação de tocar/questionar o originarium — o fundamen-
tantemente instituinte, que não o empiricamente tangível — e, portanto, mar-
cado por uma genuína intentio obliqua)3 frequentemente imprimido ao discur-
so. Todavia, não sem antes mencionarmos ainda o papel principal que, uma
vez mais, reconheceremos à analogia como o tipo de raciocínio adequado para

3 Acolhemo-nos aqui à lição de Nicolai Hartmann, que, na esfera da teoria do conhecimento, contrapõe a
intentio recta — “a directa orientação do conhecimento para o [seu] objecto” — à intentio obliqua — em
que, diferentemente, aquela atitude “natural” é substituída por uma outra, inucleada na “reflexio” (a com-
preender exactamente como “Rückbiegung”, ou seja, como uma “flexão para trás”, um “dobrar-se sobre
si”, e em que o objecto em questão deixa de ser o que se conhece e passa a ser “o próprio conhecimento”):
cf. “Die Erkenntnis im Lichte der Ontologie” (de 1949), In: Kleinere Schriften, I, Berlin, 1955, 136 s.; v.
ainda HRUSCHKA, Joachim. Das Verstehen von Rechtstexten. Zur hermeneutischen Transpositivität des
positiven Rechts. München, 1972, 11 e 43, e, entre nós, CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia Jurídica.
Problemas fundamentais. Coimbra, 1993, 23 s.

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FERNANDO JOSÉ BRONZE

articular os problemas emergentes e o direito referente no seio da prática, i. e.,


para co-implicar aqueles dois primeiros termini (os problemas interpelantes e a
juridicidade interpelada) na específica arena em que um e outro vêm à epifania
(a objectivada na praxis concretamente em causa), e para orientar a solução
judicativa dos citados problemas com base na apontada juridicidade, o que do
mesmo passo desvela o plano sem surpresa subjacente a grande parte das nossas
lucubrações — o da metodonomologia.

II
2. Relevando o metodicamente nuclear — que não o lapalissianamente evi-
dente... —, “é [sempre] difícil encontrar o começo. Ou melhor, é difícil começar
no começo. E não tentar recuar mais”4, em ordem a discernir o início do cami-
nho, a apreender a matriz do processo, a identificar a abertura da sequência. As
tarefas empreendidas devem, decorrentemente, iniciar-se pelo princípio. Acon-
tece, porém, que este, em virtude da sua natural incipiência5, não se apresenta
nunca como um absoluto alheio a contextualizações e indiferente a pressupostos,
sendo antes relativizado pela perspectiva adoptada, atentos os objectivos pros-
seguidos. Pois bem: é certo que as observações anteriores não impõem o iter
argumentativo, já a seguir entreaberto, como o único admissível. Mas supomos
que nos autorizam a preferi-lo como razoavelmente aceitável.

3. As palavras que utilizamos para verbalizar e comunicar o que experiencia-


mos e pensamos6 significam apenas conceitos (scilicet, meras construções intelec-
tuais7), ou apenas coisas (scilicet, entidades realmente existentes)8,ou, à uma, aque-
les e estas (scilicet, uma construção intelectual — um genus —, mas também uma

4 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. 471 — na edição bilingue. Trad. M. E. Costa. Lisboa, 1998, 135.
5 Tolerando a paráfrase, explicitemo-lo lapidarmente: “De toutes choses les naissances sont foibles et
tendres. Pourtant faut-il avoir les yeux ouverts aux commencements; car comme lors en sa petitesse on
n’en descouvre pas le dangier, quand il est accreu on n’en descouvre plus le remede” — MONTAIGNE.
Essais. Livre 3, X; na edição devida a Alexandre Micha. Paris, 1996, 232.
6 Sobre a incindível e reciprocamente implicada ligação da linguagem à experiência, ao pensamento e à
comunicação, que, deste modo, implicitamente se pressupõe, cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O actual
problema metodológico da interpretação jurídica — I. Coimbra, 2003, 273 ss.
7 Recorde-se a seguinte passagem de Th. W. Adorno, em Minima moralia, II, 82 — na edição trad. por A.
Morão, Lisboa, 2001, 129: “[a] distância do pensamento à realidade nada mais é do que o precipitado da
História nos conceitos”; ou estoutra de Umberto Eco, em Kant e o ornitorrinco. Trad. J. C. Barreiros,
Algés, 1999, 145: “a palavra conceito vem a significar apenas o que uma pessoa tem na cabeça”…
8 Cf. YALOM, Irvin D. A cura de Schopenhauer. Trad. C. Romão. Parede, 2006, 197.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

entidade realmente existente — um individuum9)? A questão convocou insistente-


mente o pensamento filosófico medieval, no âmbito do qual se defenderam três res-
postas distintas: as palavras significam primariamente conceitos e secundariamente
coisas (assim, S. Tomás e os seus epígonos); ou, ao invés, significam primariamen-
te coisas e secundariamente, e através delas, conceitos (foi a posição, entre outros,
de R. Bacon, de D. Escoto, de G. de Ockham); ou significam imediatamente quer
conceitos, quer coisas (como sustentou o nosso Sebastião do Couto)10.
Como se não ignora, a controvérsia a que acabámos de aludir encontra-se
estritamente associada às diversas posições assumidas pelos AA. que com ela se
confrontaram acerca do problema dos universais11 — i. e., da eventual existência
e relevância, a nível real ou apenas mental, de conceitos predicativos de um mais
ou menos amplo conjunto de entes individuais.
São conhecidas e encontram-se há muito arquivadas as soluções propostas
para este último problema: os nominalistas refutam a existência de conceitos
universais; os espiritualistas aceitam os universais como construções da mente
mas não lhes reconhecem existência objectiva; e os realistas dividem-se entre
aqueles que, mais radicalmente, sustentam a existência de universais, que, to-
davia, ninguém poderá apreender cognitivamente, e aqueles outros que, mais
atenuadamente, se limitam a admitir a objectividade de conceitos universais
como dimensão predicativa de entes individuais12. Centrando-nos na arena pro-
blemática de que os juristas se ocupam, ilustremos as duas orientações que mais
nitidamente se contrapõem (a que diz sim aos universais, e a que lhes opõe um
categórico não) com a atitude dos conceitualistas, que da essência excogitada
inferem a existência, da possibilidade intuída concluem a realidade, sustentando
a cognoscibilidade da categoria geral (do conceito) assim obtida(o) (recorde-se,
a título exemplificativo, o modo como von Tuhr caracteriza os direitos subjecti-
vos — meras “representações [intelectuais], que existem no espírito das pessoas
envolvidas”13), e com aqueloutra dos empiristas e dos seus parentes voluntaristas

9 Mencione-se, exemplificativamente, Civitas Nova enquanto designação de uma… cidade nova, ainda sem
nome próprio — o que precisamente corresponde à utilização de um genus para identificar um (…) indivi-
duum; assim nos aproximamos… e distanciamos de ECO, Umberto. Baudolino. 2 ed. Trad. J. C. Barreiros.
Algés, 2002, 152.
10 A necessária explicitação e a cumprida fundamentação do que acabámos de escrever ver-se-á em COXI-
TO, Amândio. “O que significam as palavras? O Curso Conimbricense no contexto da semiótica medie-
val”. Revista Filosófica de Coimbra, vol. 13, n. 25, 2004, esp.te 40 ss. E ainda, por exemplo, ECO, U. Kant
e o ornitorrinco, op. cit., esp.te 398 s., 402 ss., 407 s. e 408 ss.
11 Cf. COXITO, A. O que significam as palavras?..., op. cit., por exemplo, 46, 48 e 49.
12 No horizonte do pensamento jurídico, e entre nós, parece ser esta, tendencialmente, a posição de Paulo
Ferreira da Cunha: cf. Filosofia do Direito. Coimbra, 2006, 40.
13 Apud SCHAPP, Jan. Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewinnung. Berlin, 1977, 37.

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FERNANDO JOSÉ BRONZE

(v. gr., os paladinos do Movimento do Direito Livre), para quem apenas existe o
particular e o especial, o singular e o individual14, não passando as categorias ge-
rais de meros nomes desprovidos de efectiva realidade e, portanto, inacessíveis a
qualquer apreensão cognitiva15.

4. Globalmente consideradas e na sua óbvia imbricação estas duas quaestio-


nes vieram a projectar-se/refractar-se multimodamente — demo-lo já a entender
— também na esfera do pensamento jurídico16. De resto, sem surpresa. Pois não
é o direito uma específica validade, que tende a objectivar-se dogmaticamente
e que permite qualificar intencionalmente e solucionar judicativamente aqueles
problemas que, no horizonte de uma certa prática, fundamentadamente o convo-
cam como… referente intencional e como critério judicativo? Ora é bem de ver
que as duas mencionadas questões se deixam, mutatis mutandis, reconduzir aos
pólos irredutivelmente constitutivos da normatividade jurídica e à relação que
os articula: ao problema objectivado numa certa experiência da vida, à validade
exprimida por uma singular exigência de sentido, e à dialéctica que os enreda,
predicando aquele problema e densificando esta validade.
Em termos brevíssimos, diremos agora que a proposta do “conceito ge-
ral-concreto”17, o enquadramento “tipológico”18 e a teoria da “natureza das
coisas”19 são manifestações paradigmáticas (não obstante as reservas que deve

14 Note-se que já L. Cabral de Moncada — em referência a Ockham (e a Marsílio de Pádua) — sublinhava


que “nominalistas e voluntaristas [consideravam...] o indivíduo […] a única substância de toda a vida
social e histórica [, sendo] esta [última] e o Estado […] mero produto dos interesses individuais”: cf. Filo-
sofia do Direito e do Estado, vol. I., Coimbra, 2006, 91.
15 Cf. KAUFMANN, Arthur. “Freirechtsbewegung — lebendig oder tot? Ein Beitrag zur Rechtstheorie und
Methodenlehre”, JuS, 1965, 4 e 7.
16 Mas não só neste âmbito específico… A sua consideração, por exemplo no horizonte da linguagem —
haverá “universais da linguagem”?... Se sim, em que plano devem eles ser investigados?... No plano
fonológico?... No plano gramatical?... No plano semântico?... —, ver-se-á em STEINER, George. Depois
de Babel. Aspectos da linguagem e tradução. Trad. M. S. Pereira, Lisboa, 2002, esp.te 123 ss., sob 3.
17 Cf. CARVALHO, Orlando de. Critério e estrutura do estabelecimento comercial — I, O problema da
empresa como objecto de negócios. Coimbra, 1967, 823 ss.
18 Cf. Id., ibidem, 834 ss.; a última vez (tanto quanto nos demos conta…) em que o nosso saudoso Profes-
sor abordou o tema (re-afirmando, no fundo, a aludida posição já defendida no Critério…) foi nos seus
Escritos. Páginas de Direito, I, Coimbra, 1998, 19 ss. (e nestes em termos bem mais veementes, porque
indisfarçavelmente marcados pela circunstância determinante). Da Escola de Coimbra (não se nos levará
a mal que a privilegiemos…), v. ainda SOUSA RIBEIRO, Joaquim de. Cláusulas contratuais gerais e o
paradigma do contrato. Coimbra, 1990, 153 ss.
19 Cf. CARVALHO, Orlando de. Critério…, op. cit., 847 ss., e CASTANHEIRA NEVES, A. Questão-de-
-facto — Questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade. (Ensaio de uma reposição crí-
tica) I — A crise. Coimbra, 1967, 699 ss. e 760 ss., e “As fontes do direito e o problema da positividade
jurídica”. Boletim da Faculdade de Direito, LI, Coimbra, 1975, 168 ss.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

saber opor-se-lhes...) de diferentes equilíbrios entre as atrás indicadas catego-


rias polarizadoras. No “conceito geral-concreto” fundem-se, metafisicamente,
os “três momentos” constitutivos do conceito — a “generalidade” (que o parti-
cular se encarrega de negar), a “particularidade” (que é também ela negada no
processo de realização do conceito) e a “individualidade” (que denota a afirma-
ção resultante da negação de uma negação — instituidora da síntese, no concei-
to, do geral e do particular). A “abstracção integrativa” que o caracteriza, inclui,
decerto, o singular elidido no universal construído, permitindo, por isso, como
que a configuração de “uma universalidade particularizada” tradutora da “coi-
sidade das coisas”20. Mas o “conceito geral-concreto” não intenciona a densida-
de própria da “realidade objectiva”, antes traduz, na sua apriorístico-idealística
transcensão à praxis21 (não ensinava L. Cabral de Moncada que “[o] conceito
[em Hegel...] pressupõe já a Ideia”?...22) e no seu conceitualismo dialecticamen-
te insuperável (uma e outro corolários da fusão, que lhe é imanente, “do ser e
do pensar”), a “realidade absoluta” visada pelo hegeliano “espírito objectivo”23.
Por seu turno, o “tipo”, enquanto “equivalente [trans-]empírico” do “conceito
geral-concreto” (Larenz), é como que “dessacralizado” (hoc sensu, liberto do
“conteúdo apriorístico” apontado — e censurado — ao konkret-allgemeiner Be-
griff), mas enquanto (sincrético) “compromisso entre o geral e o individual”24

20 Cf. STEINER, George. Os logocratas. Trad. M. S. Pereira. Lisboa, 2006, 38.


Exemplifiquemos a mencionada “universalidade particularizada” com o “tigre arquétipo”, de que nos fala
Jorge Luis Borges, em “que o indivíduo [é], no seu caso, [...] toda a espécie” (cf. o poema “O tigre”, de
“História da noite” — In: Obras completas, III, 1975-1985, Trad. F. P. do Amaral, s./l., 1998, 177), ao jeito
do… “universal [includente da] individualidade de todos, no que eles [têm] de singular”, a que aludimos
em paráfrase a BESSA-LUÍS, Augustina. A Ronda da Noite. Lisboa, 2006, 325. Privilegiando um outro
registo (decerto mais conforme as leges artis tradicionalmente observadas no horizonte do discurso jurí-
dico…), lembremos ainda a husserliana “‘região’ de objectos empíricos” (“a unidade suprema e total dum
género que pertence a um concreto”), que é a síntese de uma “extensão eidética” (unificadora dos “géneros
subordinados que diferenciam a região”) e de uma “extensão individual” (abrangente da “totalidade ideal
dos indivíduos possíveis correspondentes a essas essências concretas”)... — as formulações são do próprio
Husserl, mas colhemo-las em FRAGATA, Júlio. “O conceito de ontologia em Husserl”. In FRAGA, Gus-
tavo de et al. Perspectivas da fenomenologia de Husserl. Coimbra, 1965, 24.
21 Denunciemo-la com uma réplica famosíssima: “[s]ou capaz de ver cavalos, Platão, disse Antístenes, mas
em parte alguma vejo o teu cavalo ideal”… (apud FEYERABEND, Paul. Contra o método. Trad. M. S.
Pereira. Lisboa, 1993,298). Cf. ainda a nota anterior.
22 Cf. Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, op. cit., 287.
23 Cf. CARVALHO, Orlando de. Critério…, op. cit., 829 ss.
Não surpreende, assim, que se aponte a proposta do “conceito geral-concreto” como um dos sinais desve-
ladores da tentativa de reconverter o discurso jurídico, independentemente de qualquer “acto do legisla-
dor” nesse sentido: cf. RÜTHERS, Bernd. Methodenrealismus im Jurisprudenz und Justiz, JZ, 2006, 55.
24 Se a tragédia ática, na densamente interpelante proposta de Nietzsche (cf. A origem da tragédia. 12 ed.
Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa, 2004, passim), resultou da conjugação do mundo individual e daqueloutro
ligado ao “fundo mais secreto das coisas” (à “essência eterna das coisas”, que o esforço individual não
consegue alterar — seria esta a chave para decifrar a recorrentemente treslida atitude de Hamlet: cf. ibi-
dem, 76 e 135), da presença em simultâneo do olímpico e do titânico, do encontro de Apolo com Diónisos

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(consistindo, todavia, mais em “uma individualização dentro do geral” — com


os pré-juízos teoréticos que a marcam — do que em “uma generalização dentro
do individual” — com a abertura prática que a predica), não deixa de constituir
uma mais ou menos artificiosa “construção” mental oponível (ainda que compa-
rável...) à realidade da vida25. Finalmente, a teoria da “natureza das coisas”, nas
suas diversas manifestações, centra na procura das “essências”, colhidas nos
entes existentes, a sua intenção precípua, recupera as clássicas preocupações
jusnaturalistas (Orlando de Carvalho identifica o pensamento da “natureza das
coisas” como “o substituto ‘laico’ do direito natural”26, e Castanheira Neves,
sem omitir a referência a esses laços de parentesco, di-lo uma tentativa “de
vincular o direito, e o valor, ao ser, em ordem a justificar a dedução do nor-
mativo e do seu dever-ser a partir do ser, ou melhor, em ordem a pensar o ser
como fundamento do dever-ser”27, ou a divisar no ser topicamente concebido
e tipologicamente sistematizado, i. e., “nas coisas” — nos “comportamentos
socialmente compreendidos”, nas “relações da vida”, nas “situações humano-
-sociais” —, “um sentido de valor”, uma “validade” ordenadora que exprimiria
a respectiva... “natureza”, com total omissão do acto instituinte da mencionada
validade 28) e acaba por colocar “entre parêntesis” a problemática da consti-
tuição da normatividade jurídica — que não depende da “lei das coisas” (tão
dessorada quanto “irreal” no seu ôntico redutivismo), mas da “lei do homem”

(da “aliança fraterna destas duas divindades”: cf. ibidem, 169), o problema em análise no texto e que de-
terminou a abertura desta nota, confronta-nos, por sugestão de Schopenhauer (a cujo pensamento, também
neste ponto, se acolhe Nietzsche: cf. ibidem, 131 s.), com algo de semelhante — com a co-implicação dos
casos particulares e das ideias gerais.
25 Cf. CARVALHO, Orlando de. Critério…, op. cit., 837 ss.
Note-se, porém — e não deixe de acrescentar-se: se em lugar da perspectiva subjacente às observações an-
teriores — que indisfarçavelmente põem a tónica na facticidade social da mencionada “realidade da vida”
(rectius, da “realidade da vida” reduzida à estrita facticidade social empírico-analiticamente apreensível),
segundo o modus operandi da Jurisprudência dos interesses — nos dispusermos a considerar o ponto de
vista da Jurisprudência da valoração — em que se relevam (em que se arrisca a relevância de) exigências
de sentido de uma “realidade da vida” axiológico-problematicamente intencionada, a comparar, através de
um raciocínio analógico, com as situações problemáticas concretamente judicandas (reconhecendo que,
as mais das vezes, os relata em causa se não articulam como o modelo padrão e o seu correlato objectivo,
antes apresentam semelhanças suficientes não obstante diferenças também evidentes), talvez divisemos
razões para propor uma re-compreensão do tipo como uma categoria aberta — uma “estrutura elástica
de características”, um referente historicamente realizando e constituendo por mediação dos problemas
que fundamentadamente lhe co-respondam (para as necessárias explicitações complementares, cf. agora
SOUSA RIBEIRO, J. de. Cláusulas contratuais gerais…, op. cit., 154 ss., esp.te n. 304).
26 Cf. Critério…, op. cit., 847.
27 Cf. Questão-de-facto…, op. cit., 699 e 760 s.
28 Cf. Id., As fontes do direito e o problema da positividade jurídica, op. cit., esp.te 170, 183, 188, 190 s. e n.
217, e 195.

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(pois só este poderá assumir-se como o demiurgo da referida normatividade, se


porventura se dispuser a constituí-la/realizá-la).29

5. Não podemos, todavia, suspender aqui a consideração do problema dos


universais — da “questão atinente à relação entre o geral e o particular”.30 Olhe-
mo-la agora como que... por um dos lados — por aquele lado (de resto, já entre-
visto...) que não hesita em considerar apenas (mais ou menos radicalmente...) o
singular atomisticamente recortado. Convocamos, assim, uma tradição antiga,
mas que chegou ao nosso tempo.
Na verdade, um ponto com relevante importância para o nosso propósito e
que, de facto, há muito desafia o discurso filosófico, é o da individuação: quando
poderemos dizer que estamos perante um ente individual criteriosamente com-
preendido na sua unidade? Se o pensamento jurídico metodologicamente com-
prometido se centra na decisão judicativa de problemas jurídicos concretos — de
casos particulares em que o direito se manifesta justificadamente implicado mas
incumprido —, percebe-se sem dificuldade que uma das coordenadas basilares
do mencionado núcleo temático seja o da rigorosa determinação da unitária sin-
gularidade do caso-problema concretamente decidendo.
Pois bem. A referida questão pressuponente tem suscitado reflexões elabora-
das e afinamentos marcantes. Na circunstância aludiremos, em termos esquemá-
ticos e por razões óbvias (ligadas ao apontado carácter primacial do caso judi-
cando na esfera da reflexão metodonomológica), às propostas de dois pensadores
que concorreram para acentuar a primordialidade do ente individual — o medie-
val (mas já com laivos de uma modernidade indisfarçável — pense-se, v. gr., na
intelecção do indivíduo singular como ultima realitas entis ou ultima solitudo...)
J. Duns Escoto, e o moderno (mas ainda com laivos de um medievalismo insu-
perado — pense-se, v. gr., na atitude ontológico-metafísica da consideração do
mundo da vida como o melhor dos mundos possíveis31, que haveria de encontrar
a sua derradeira expressão caricatural, a sua inspiradamente reconstruída versão
paródica,32 no Dr. Pangloss, e a sua crítica mais implacável na catilinária que
lhe serviu de palco: o Cândido, de Voltaire...) G. W. Leibniz —; e, algo mais

29 Cf. Id., Questão-de-facto…, op. cit., 842 s.


30 A formulação é de KAUFMANN, Arthur. Analogie und “Natur der Sache”. Zugleich ein Beitrag zur
Lehre vom Typus. 2 ed. Heidelberg, 1982, 55.
31 Cf., por exemplo, NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Uma História Alternativa da Filoso-
fia. Trad. V. Matos. Lisboa, 2005, 42, 45, 48 s., 51, 82, 84, 106, 151 ss., 233 e 249 s.
32 Pressupomos aqui o sentido de paródia relevado por AGAMBEN, Giorgio. Profanierungen. Trad. M.
Schneider. Frankfurt am Main, 2005, 30 ss., esp.te 32: o traduzir em burlesco, o pôr a ridículo, algo origi-
nariamente sério, grave.

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detidamente, atentaremos nas disquisições de um muito estimulante A. contem-


porâneo, a quem se deve um significativo contributo sobre o tema, que viria, de
resto, a projectar-se em sede metodonomológica — Wilhelm Schapp.

5.1. Aristóteles, é sabido, propugnara um entendimento dialéctico do indiví-


duo: por um lado, o indivíduo identificava-se com o permanentemente instável
“ponto de equilíbrio” das forças subjacentes à sua “identidade específica ou ge-
nérica” e das conformadoras da sua “identidade numérica”; e por outro, e para
que a construção se não corrompesse, as primeiras forças nunca consumiriam as
segundas, nem, ao invés, estas se diluiriam naquelas. Estávamos assim perante
uma intelecção do indivíduo radicada na bipolaridade universal/singular.
Ora foi precisamente este esquema bipolar que D. Escoto veio questionar.
Para ele, o indivíduo apresenta uma unidade absoluta e irredutível, diferente
daqueloutra da espécie, ulteriormente divisível pelos múltiplos sujeitos que a
integram, e igualmente “distinto de qualquer outro singular”. Se o pensamento
tradicional tendia a desvalorizar o singular, o Filósofo escocês não hesitou em
ver nele o originário “ponto de partida”, dispensando mesmo, para justificar a
respectiva emergência, a pressuposição de qualquer universal: o princípio da
individuação toca esta irrepetível unidade particular e esta irredutível singulari-
dade concreta, que estão na base de uma acabada entidade individual (portanto,
estaticamente concebida, não como processo contínuo; ou tomada como “resul-
tado” constituído, não como acto deveniente...). E se a singularidade do singular
(na terminologia do Doutor Subtil, a sua haecceitas33, a compreender como “es-
sência singular completamente determinada”) não é cognitivamente acessível,
isso não significa que o indivíduo singular concretamente existente, enquanto
forma phantasiabile, o não seja. Donde, a evidência da conclusão de que “o ver-
dadeiro ser [,inteligível e real,] é o singular, o ser individual e concreto”34.

5.2. Por seu turno, Leibniz veio ainda reacentuar a primordialidade do in-
dividual, que já se vislumbrava no escotismo. Com efeito, se D. Escoto ainda
remetia para uma haecceitas, de indisfarçável pendor formal (materialmente im-
bricado…), a matriz dos entes singulares (o que não deixa de revelar uma sua

33 De haec (esta coisa): cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil planaltos. Capitalismo e esquizofre-
nia 2. Trad. R. Godinho. Lisboa, 2007, 332, n. 24.
34 Para explicitações complementares, cf. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade.
IN-CM, 2001, esp.te 31 e 388 ss.

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cedência ao paradigma hilemórfico35...), Leibniz viu em cada ser individual uma


mónada — uma unidade total (entitas tota) inucleada na actividade (vis activa)
que lhe imprimia dinâmica/deveniência e em que o telos do movimento que a
animava lhe conferia perfeição (entelecheia), e que não carecia, para se recortar
com nitidez, de “qualquer instância anterior [ou] extrínseca ao próprio indivíduo
constituído”. Estamos assim diante de um pensamento radicalmente centrado no
ser individual enquanto ente singular e concreto — scilicet, enquanto unidade
numérica em que “cada indivíduo [identifica/] esgota uma espécie”. Mas se a
mónada apresenta essa dimensão de isolamento, ela não traduz menos uma rela-
ção que a articula com a totalidade do mundo (com o horizonte instituído pelas
demais mónadas), podendo, pois, dizer-se que cada uma é a expressão do “mundo
em ponto pequeno”, ou a manifestação do “mundo em miniatura” — e é, por isso
mesmo, o “ponto de vista” de consideração da pluriversidade do universo e o situs
demarcado pela identidade e pela diferença que a distingue de todas as outras.36

5.3. Olhemos, doravante, a proposta de Wilhelm Schapp. Sublinhemos, a


abrir, que o Filósofo por devoção W. Schapp foi, profissionalmente, advogado.
E que, naquela sua faceta, fez o Doutoramento sob a orientação de Edmund
Husserl — todavia, sem aderir irrestritamente às propostas do Mestre...37 Ora, se

35 O modelo hilemórfico “implica simultaneamente uma forma organizadora para uma matéria e uma matéria
preparada para a forma”. Ou, por outras palavras: “[u]ma forma invariável das variáveis [e] uma matéria
variável do invariante é o que funda o esquema hilemórfico” — … por isso mesmo insuficiente para
aprender “muitas coisas, activas e afectivas”, que ocupam o “espaço” que se abre (a “zona de dimensão
média e intermediária” que existe) “entre forma e matéria”. Assim, DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil
planaltos…, op. cit., 469 s. e 520 s.
36 Cf. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade, op. cit., 31 e 410 ss. Acrescente-se
apenas que a monadologia leibniziana não deixará de marcar a fenomenologia husserliana — que já convocá-
mos e a que de novo aludiremos já a seguir… —; a acentuação deste ponto (o lançamento desta ponte…) —
ligado(a) à “absorção do empirismo num racionalismo idealista” e ao decorrente esquecimento do “indivíduo
como indivíduo” com a polarização do discurso na “essência e [em] relações de essência”, caracterizadores
da proposta de Husserl (em Leibniz pré-nunciados pela referida articulação de cada mónada com as restan-
tes…) — ver-se-á em FRAGA, Gustavo de. De Husserl a Heidegger. Elementos para uma problemática da
fenomenologia. Coimbra, 1966, esp.te 60 e n. 3, e Fenomenologia e dialéctica, Coimbra, 1972, 139.
37 Seja apenas o seguinte exemplo: enquanto Ed. Husserl articula cada proposição (Satz) com um facto (Sa-
chverhalt), segundo o esquema conceito (Begriff)/objecto (Gegenstand) — o “facto representa a imagem
da proposição na realidade” objectiva —,W. Schapp refere cada proposição a algo histórico-concreto — a
história é, da sua perspectiva, o “lugar onde” de existência da proposição, pelo que, “fora da história”, a
mencionada proposição perde o “apoio” e, portanto, o sentido (ou, quando menos, ganha um sentido ou-
tro…). Ilustremos o que acaba de dizer-se acompanhando o próprio W. Schapp. A proposição “a rainha está
doente” — como, de resto, todas as proposições análogas —, do ponto de vista da lógica (o privilegiado pela
fenomenologia husserliana), não suscita qualquer reparo. Dessa mesma perspectiva, a proposição em causa
refere um facto mas não o atinge. Ao invés, no quadro de uma história concreta, a citada proposição deixa de
“errar pelo mundo, à procura, em vão, do seu facto”, e pode muito bem encontrá-lo. Contra aquilo que, prova-
velmente, os fenomenologistas sustentariam, o sentido da proposição transcrita não é, portanto, o mesmo se

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é inteiramente natural que um jurista prático centre a sua atenção nos casos que
o (pré-)ocupam, também se não ignora que o moto da fenomenologia, “para as
próprias coisas!” (Zu den Sachen selbst!) do mundo “físico”, ou “psíquico”, ou
“ideal” — como não citar as conhecidíssimas e quase panfletárias asserções de
Husserl “eu não vejo sensações cromáticas mas coisas pintadas, eu não ouço sen-
sações sonoras mas a canção desta intérprete”?...38 —, concorreu para deslocar
o discurso filosófico do abstracto para o concreto, do genérico para o singular
e do absoluto para o histórico.39 Isto pressuposto, ganha pleno sentido — e há-
-de revelar-se-nos rico de implicações... — o modo como W. Schapp abre o seu
ensaio atrás convocado: “Nós homens estamos sempre enredados em histórias”
(“Wir Menschen sind immer in Geschichten verstrickt”)40-41 — e a tal ponto é as-

a virmos por uma ou por outra das duas referidas lupas. Razão por que julgamos vir a propósito lembrar uma
revelação feita por Husserl aos seus alunos (e W. Schapp, já o mencionámos, foi discípulo do Caput Scholae
da fenomenologia e dá-nos testemunho do episódio), segundo a qual a reflexão fenomenológica talvez não
devesse ser confiada, em exclusivo, aos cultores da lógica (e aos matemáticos — como nos recorda Gustavo
de Fraga, “[a] formação universitária de Husserl foi essencialmente matemática”…: cf. Fenomenologia e
dialéctica, op. cit., 119; v. ainda 120 s., 123, 146… — e gramáticos…) — os historiadores também deveriam
ser admitidos a participar no exercício. Cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt. Zum Sein von Mensch und
Ding. 4 ed. Frankfurt am Main, 2004, 169 ss., esp.te 171 ss.; v., complementarmente, SCHAPP, Jan. Sein und
Ort der Rechtsgebilde. Eine Untersuchung über Eigentum und Vertrag. Den Haag, 1968, 7 e 19 ss.
38 Note-se que, neste ponto (v. a nota anterior), são nuclearmente coincidentes as posições de mestre e dis-
cípulo. Com efeito, W. Schapp acentua expressamente não ser possível “separar o [som — a palavra
utilizada pelo A. é Geräusch: “barulho”, “ruído”] produzido pelo carro em andamento do próprio carro
em andamento, ou a cor da casa da própria casa”: cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 72 ss., esp.te 75.
Por seu turno, para se compreender que a física matemática — rectius, o “racionalismo matemático e o
objectivismo fisicalista” —, considerada (os) por Husserl, idealiza(m) a irredutível e originária “experi-
ência ‘relativo-subjectiva’” do “mundo da vida”, que constitui o objecto da fenomenologia, cf. FRAGA,
Gustavo de. Fenomenologia e dialéctica, op. cit., 305 ss., sob 12.
39 Cf. o “Prefácio” de H. Lübbe a W. Schapp, In Geschichten verstrickt, op. cit., V ss., KAUFMANN, A. Frei-
rechtsbewegung — lebendig oder tot?..., op. cit., 2 ss., e SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde..., op.
cit., esp.te 96; entre nós, v. MORUJÃO, Alexandre Fradique. A doutrina da intencionalidade na fenomenolo-
gia de Husserl. Das Investigações Lógicas às Meditações Cartesianas. Coimbra, 1955, esp.te 32 s. e 129 ss.
40 Cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 1. E se no último capítulo do segundo parágrafo (o 19º) o A. reforça a
ideia, acentuando que “este enredamento forma uma unidade com as suas histórias” (“[d]iese Verstricktheit
ist eins mit seinen Geschichten”) — ibidem, 190 —, logo a abrir o 10º capítulo desse mesmo parágrafo W.
Schapp deixara bem claro que o núcleo das suas reflexões se prende não com o enredamento mediatizado
por qualquer narrativa (por exemplo, aquele de que alguém toma conhecimento ao ler uma história num
livro, ou aqueloutro, igualmente relativo a um terceiro, que é participado a um juiz ou a um funcionário,
atentas as respectivas competências institucionais), mas com o enredamento directamente experienciado
por uma determinada pessoa — ibidem, 120 — ... sendo certo, todavia, que um meu “hetero-enredamento
(Fremdverstrickung) é [sempre] um auto-enredamento (Eigenverstrickung) de outrem” — ibidem, 121 —;
e, um pouco mais adiante — cf. ainda ibidem, 123 ss. —, sublinhara mesmo que cada um de nós está, ab
origine (von jeher), enredado em histórias (i. e., que esse nosso enredamento remonta a um tempo bem an-
terior àquele em que … dele passámos a dar conta, podendo igualmente acontecer que sintamos muito mais
próxima uma história há muito ocorrida do que uma outra apenas recentemente experienciada — pense-se,
por exemplo, “em histórias [antigas,] ignoradas [pelos demais, mas] cuja descoberta ainda hoje tememos”,
uma vez que, não o esqueçamos, “a fuga das histórias também pertence às histórias”...).
41 As considerações que se seguem baseiam-se, fundamentalmente, no ensaio mais uma vez citado na nota pre-
cedente, que só não invocaremos a cada passo para evitar a multiplicação dos incisos em rodapé. Quando o

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sim que, por um lado, o essencialmente predicativo do homem (“das Wesentliche


[...] als sein Eigentliches”) não é a “carne” que lhe veste os ossos ou o “sangue”
que lhe forra as veias mas “a sua história”42 — o emblemático “agir” huma-
namente significativo “está [,também ele,] imerso [nessa mesma] história”...43
—, e, por outro, a própria história universal, olhada no seu “conteúdo interno”,
“radica fundamentalmente em histórias” (particulares e concretas como todas
as histórias, e, portanto, insusceptíveis de se miscigenarem umas com as outras
como as gotas de água no mar44...) em que há pessoas enredadas (não sentenciou
algures Carlyle que a história universal é escrita incessantemente por cada um de
nós?...). Ou, se preferirmos: “o estarmos enredados em histórias [rectius, o estar
cada indivíduo concreto, e não um qualquer eu fungível, enredado em histórias
— nos antípodas do propugnado pela “filosofia platónico-aristotélica”, dominada
por praticamente descaracterizadoras impostações generalizantes… — é a única
e última realidade” — “não são as histórias [em que cada um se encontra enre-
dado] que estão no mundo, antes o mundo só vem à epifania nessas histórias”45.
Ao considerar a problemática da articulação das histórias, em que estamos
enredados, com o mundo exterior, W. Schapp introduz no discurso filosófico
a categoria da “coisa para que” (Wozuding) — “uma obra criada [/tocada] por
mãos [/iniciativas] humanas”, com um determinado “plano” ou “fim” (chávenas,
mesas, cadeiras, casas, bicicletas, automóveis; mas também normas jurídicas,
direitos de propriedade e contratos46; ou a pedra que apanho para com ela me

apoio for outro, não deixaremos de o sublinhar. E sempre que se nos afigure decisivo o ponto, não omitiremos
a referência expressa, mesmo que esteja em causa o mencionado In Geschichten verstrickt, de W. Schapp.
42 Cf. ibidem, 105.
43 Cf. ibidem, 158.
44 Cf. ibidem, 1, 94, e 199 s. e 204 s. — páginas estas últimas em que, para além do acabado de sublinhar
no texto (e sem qualquer contradição…), W. Schapp acentua, primeiro, a compossibilidade das histórias
individuais e da história universal, na base da pertença do eu a um nós: cada um está enredado na sua
história, mas está também enredado na história universal por mediação do nós em que está co-enredado
(Mitverstrickten); e depois, o radical sem-sentido de uma história universal puramente objectiva, em que
ninguém estivesse enredado: o mencionado enredamento é conditio sine qua non da emergência de uma
história universal sensu proprio.
45 Assim, SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 9.
46 Cf. Id., ibidem, esp.te 76, 94 ss. e 120 s., e Hauptprobleme der juristischen Methodenlehre, Tübingen, 1983,
31 ss. E uma vez que, no texto que nos trouxe a esta nota, aludimos especificamente ao direito de proprieda-
de, acrescentemos que poderíamos ter convocado globalmente a categoria direito subjectivo — tema a que,
de resto, o A. dedicou outra importante monografia — Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewin-
nung, op. cit. —, em que sustenta uma impostação normativa da mencionada categoria (direito subjectivo),
atenta à radicação na (economicamente relevantíssima) “estrutura” constituída pelo “conflito de interesses”
concretamente emergente da pretensão “[garantida] ‘no espaço jurídico’” pela norma que hipoteticamente
o assimile; e em que ainda adverte que outro tanto poderá dizer-se, mutatis mutandis, da “propriedade”, por
ser, também ela, um singular “dado/realidade económico(a)” (que não um estrito “conceito económico”),
uma muito particular “relação construída sobre uma conexão de sentido” histórico-prática e, especialmente,
sócio-económica: cf. Das subjektive Recht…, op. cit., 14 ss., 23 ss., 36 ss. e 118 ss.

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defender do cão que me ameaça, o vale em que descanso o olhar, a montanha


que me exalta o espírito, o leão tão singular como o de Hércules...47). Também
não é difícil compreender que cada Wozuding tem a sua história — as “coisas
para que” têm sempre um “passado” e um “futuro” que as densifica e não ape-
nas um “presente” em que pontual e efemeramente se destacam: sem referência
a uma historicamente cunhada “conexão de sentido” (a um “horizonte”) não é
possível pensar a emergência de qualquer Wozuding48. Ora é precisamente este
horizonte — esta conexão de sentido entretecida por um passado e um futu-
ro — que faz de cada “coisa para que” uma “coisa singular” (Einzelding). A
Wozuding não se manifesta como “género” mas sempre como “indivíduo”. Um
dos exemplos a que se acolhe W. Schapp49 e que o filho, o nosso conhecido50

47 Deixemos apenas aludida a complexa questão de saber se, da perspectiva que estamos a analisar, para além
das Wozudinge — entre as quais há, aliás, diferenças assinaláveis quanto ao grau de intensidade com que
se podem dizer criadas pelo homem/tocadas por qualquer sentido humano (sirvam-nos de exemplo este
direito e esta bicicleta/o sol e as demais estrelas do céu…) —, haverá outras coisas — “coisas do mundo
exterior que ainda não tenham sido tocadas por mão humana”… Será que do outro lado das “coisas para
que” só há o “nada”?...: cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 4 e 33 ss., esp.te 38 ss. Ou será
antes que o mundo se não divide em “ser” e “pensar” (numa dicotomia de recíproca exclusão, com aquele
primeiro termo a intencionar a realidade empírico-objectiva e este segundo a compreensão do pensamento
como… “o pensamento do pensamento”: cf. JOYCE, James. Ulisses. Trad. J. Palma-Ferreira. Lisboa,
1989, 53), porque tudo quanto o com-põe integra o “horizonte de histórias polarizadas no eu e no nós (“Ich
und Wirgeschichten”)” — acentue-se que, para W. Schapp, o eu e o nós não se excluem reciprocamente
antes se integram dialecticamente, pois se o “nós tem como ponto de partida um eu, o eu está contido no
nós” —, pelo que “não tem qualquer sentido perguntar por uma existência fora destas histórias”?...: cf.
SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 164 ss., esp.te 166, e 190 ss., esp.te 191. Ora, ao formular-
mos aquela primeira pergunta, outra logo nos interpela: não estaremos aqui perante algo de parecido com a
conhecida aporia do ser?... Se “dizer de qualquer coisa ‘que é’ não acrescenta nada ao que já se deu por evi-
dente pelo próprio facto de nomear essa qualquer coisa como objecto do discurso” (assim, ECO, U. Kant e
o ornitorrinco, op. cit., 35) — e, por isso, “[p]ronunciar é verbalizar o que já lá estava”… (cf. STEINER,
G. Os logocratas, op. cit., 21) —, também a apreensão por qualquer sentido humano, de qualquer coisa,
faz dessa qualquer coisa, ipso facto, uma Wozuding, e no avesso da referida apreensão só não deparamos
com o nada porque tal pressuporia que nos era acessível a atopia (isto é, “a utopia da ausência de lugar”,
o estritíssimo “em ponto algum” — Irgendwo — em vez do bem menos inexorável “em parte alguma”
— Nirgendwo —: cf. WILLKE, Helmut. Atopia. Studien zur atopischen Gesellschaft. Frankfurt am Main,
2001, respectivamente, 35 e 13). Não nos encontramos sequer aqui, portanto, em situação paralela à de…
Adão e Eva, que ao comerem o fruto da árvore do conhecimento puderam observar também “o outro lado”
(cf. Id., ibidem, 116). Para nós, mesmo que admitamos a existência de jardins paradisíacos, de serpentes
enleantes e de frutos tentadores, não há, decerto, um “outro lado”; ou, no mínimo, ele só é concebível se
formos capazes de experienciar o limite e de assumir a antiquíssima sabedoria segundo a qual “o ser nasce
no não ser”, no que ainda nem sequer veio à epifania… (cf. LAOTSE. Das Buch vom Sinn und Leben.
Trad. R. Wilhelm, Wiesbaden, 2004, 108 e 204).
48 Cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 59. E é radicalmente assim, sublinhe-se, porque cada história tem
o seu “ritmo”, marcado pelo “antes” e pelo “depois” conformadores da “conexão de sentido” em que ela
emerge — v. agora ibidem, 140.
49 Cf. ibidem, 56 ss.
50 Cf. A metodonomologia entre a semelhança e a diferença (Reflexão problematizante dos pólos da radical
matriz analógica do discurso jurídico), Coimbra, 1994, 143 ss. e 150 ss.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

Jan Schapp, também recorda51, é o dos automóveis da “série X, da fábrica Y,


do ano de 1950”. Se reflectirmos um pouco, logo perceberemos que nenhum
desses veículos se confunde com qualquer outro: este foi sempre estimadíssimo,
aquele coleccionou acidentes; este tem um motor tão afinado como o melhor
relógio suíço, aquele gasta quase tanto óleo como gasolina; este continua a de-
vorar quilómetros, aquele jaz há muito num depósito de sucata... Ou seja: em
cada um desses milhares de automóveis “está enterrada [eingegraben] [toda]
a sua história”, e cada um deles, com a sua irresgatável individualidade, é “or-
denado” ou “seriado” na sua “série”, é integrado ou incluído no “círculo” a que
pertence52. Pelo que, se a linguagem comum equipara a série (Serie/Reihe), de
que há pouco falámos, ao “género” (enquanto “objecto geral”), nós deveremos
antes reconhecer que a mencionada série — conquanto também ela passível de
ser prolongada “até ao infinito”, e, portanto, extensível muito para além da sua
“parte [agora] visível”...53 — não passa nunca de “uma soma de [enumeráveis54]
objectos individuais”, i. e., de singulares Wozudinge,55 com as “conexões de sen-
tido”, o carácter histórico e a dimensão espiritual56 que como tal as constituem: o
género implica “algo de universal” (etwas Allgemeines), mas nós, nas concretas
experiências que fazemos, só nos confrontamos com “algo de único” (etwas Ein-
maliges) — se o conhecimento teorético se deixa re(con)duzir a categorias logi-
camente enquadrantes, do tipo daquela que mencionámos (género), a realidade
do mundo escapa-lhes de modo inapelável (nas incisivas e inspiradas palavras
de Heinrich von Kleist, “die Welt ist nicht so rund wie dein Wissen”...57). Vem
a propósito recordar, cremos, uma finíssima observação, invocada por Heideg-
ger: “Com o objectivo de caracterizar a generalidade do geral, Hegel menciona
o seguinte caso: certa pessoa quer comprar fruta numa loja. Entra e pede fruta.
Estendem-lhe maçãs, peras e ainda pêssegos, cerejas e uvas. Mas o comprador
recusa o que pretendem entregar-lhe. Custe o que custar ele quer fruta. Ora aqui-

51 Cf., deste último A., Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 14 s.
52 Cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 62 ss. e 193.
53 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações Filosóficas”, I, 218 — In: Tratado Lógico-Filosófico. In-
vestigações Filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa, 1987, 329.
54 Chamando a atenção para um ponto que reputamos fundamental — uma vez que sempre referimos ra-
dicalmente o direito à pessoa… —, lembremos que, da perspectiva que estamos a considerar, qualquer
ente, incluindo a própria “criatura humana” (Mensch), é, em virtude da irremissível individualidade que
a predica, (também) enumerável, podendo, pois, afirmar-se que “ser enumerável” (Gezähltsein) é um dos
modos possíveis de dizer “ser pessoa” (Personsein). Ora — e assim revertemos directamente à passagem
do texto que determinou a abertura desta nota… —, nas palavras de W. Schapp, “o que é enumerável não
é género algum”: apud SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 15 s.
55 A radical “individualidade da coisa para que” é insistentemente sublinhada por W. Schapp. A fórmula que sinte-
ticamente a enuncia e que acabámos de traduzir, aparece na monografia In Geschichten verstrickt, op. cit., 66.
56 A estreita interligação dos planos a que assim se alude é expressamente acentuada por W. Schapp: cf. ibidem, 69.
57 Cf. “Die Welt und die Weisheit”, In: Sämtliche Werke, Leipzig, s./d., 1000.

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lo que tentam pôr-lhe nas mãos é manifestamente fruta e, todavia, prova-se não
haver ali fruta para comprar”...58.
5.3.1. A (esquemática) apresentação que fizemos das (complexas) teses de
W. Schapp é bastante para permitir três conclusões, que logo compreenderemos
relevantíssimas no quadro amplo do pensamento jurídico e naqueloutro mais
restrito da reflexão metodonomológica.
Em primeiro lugar, a Wozuding, tanto pela sua estrutura semântica quanto
pela sua serventia pragmática, mostra-se consonante com a reconhecida centra-
lidade da “lei da finalidade” na esfera do prático-normativo: “[t]oda a acção é
intencional”59; “não há acção sem um fim”, o homem age sempre “para que”60.
O que significa harmonizar-se a proposta de W. Schapp com aquela linha de pen-
samento aberta pela decisiva viragem61 de R. v. Ihering do formalismo mais ou
menos dessorado para o finalismo inequivocamente vivificado — e que haveria
de dar origem tanto a orientações teleologicamente inspiradas62 como a deriva-
ções funcionalisticamente marcadas63.
Depois, e em segundo lugar, a radicação da prática, por parte de W. Scha-
pp, nas histórias singulares em que estamos enredados é condição pressuponen-
te da adequada intelecção dos problemas concretos como topoi polarizadores
do discurso metodológico-jurídico. Com efeito, e mesmo sem pagar tributo a
versões extremas de uma impostação narrativa64, sabe-se que os mencionados

58 Cf. HEIDEGGER, Martin. Identität und Differenz. 3 ed. Pfullingen, 1957, 64.
59 Assim, HABERMAS, Jürgen. “Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade
comunicativa”. In Racionalidade e comunicação. Trad. P. Rodrigues. Lisboa, 2002, 190.
60 Cf. agora CASTANHEIRA NEVES, A. Teoria do Direito, polic., Coimbra, 1998, 163.
61 Rectius, pela sua (não revolucionária) evolução de uma primeira fase, “receptiva” e “metódico-constru-
tivista”, sedimentada na monografia Geist des römischen Rechts auf verschiedenen Stufen seiner Entwi-
cklung, de 1852-1863, para uma segunda, “produtiva” e “metódico-finalista”, emblematicamente vertida
em Der Zweck im Recht, de 1877-1883, mas inequivocamente pré-nunciada no § 59 do Geistes…, em
que se defendia já, expressis verbis, ser o “fim” — e não a construção lógica… — o “criador” de “todo o
direito”, a verdadeira “força motriz” da juridicidade: cf. FIKENTSCHER, Wolfgang. Methoden des Rechts
in vergleichender Darstellung, III, Tübingen, 1976, esp.te 201 ss., 222, 237 ss. e 250 ss.
62 Por referência à (mais uma vez convocada) Wozuding, não deixe de acentuar-se que, se bem vemos, esta-
mos aqui ante uma teleologia que Nicolai Hartmann designaria de carácter “processual”: aquela em que o
“porquê” (warum) cede o lugar ao “para quê” (Wozu), centrada na ideia forte de que são os “fins imanentes
às coisas” (“ao processo de formação das coisas”) — rectius, a cada coisa singularmente considerada, uma
vez que, nesta modalidade, a teleologia “parte […] dos fenómenos” tomados na sua “especialidade” — que
determinam a respectiva “essentia”; cf. Teleologisches Denken. 2 ed. Berlin, 1966, 7 ss.
63 Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. “O funcionalismo jurídico — Caracterização fundamental e considera-
ção crítica no contexto actual do sentido da juridicidade”, RLJ, 136, 2006, n. 3940, 23 s.
64 Cf. Id., O actual problema metodológico da interpretação jurídica — I, op. cit., 394 ss.

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“problemas são, na realidade, histórias”65, i. e., situações-acontecimentos emer-


gentes “num universo de experiência humana” existencialmente densificado e
normativo-juridicamente intencionado.
O que, por seu turno, autoriza a convocação de uma terceira e última nota.
A do evidente paralelismo das (mencionadas) “conexões de sentido” referidas
por W. Schapp para caracterizar as “coisas para que”, de que tão inspiradamente
se ocupa, e do (conhecido) contexto de emergência/significação dos judicandos
problemas jurídicos concretos: se as Wozudinge — no fundo, as instâncias pola-
rizadoras das histórias singulares em que vivemos enredados — encontram na-
quelas “conexões de sentido”, repetimos, o horizonte intencional que as densifi-
ca (não a matéria — Stoff — de que são empiricamente feitas — o seu Auswas66),
os casos decidendos recortam-se em termos antropocronotopicamente balizados
— emergem sempre entre pessoas determinadas, num certo momento histórico,
num dado lugar onde e modo assim67.
5.3.2. E se o poiético rasgo filosófico de W. Schapp, sumariamente caracte-
rizado, cunhou sem a mínima dúvida, observámo-lo acima, as reflexões sobre a
propriedade e o contrato ensaiadas por J. Schapp, ainda na década de 6068, ele
não se manifesta menos presente na estimulante proposta metodonomológica
apresentada por este último A., já nos anos 80. Pois não vemos nós (de resto,
em inteira consonância com as notas assinaladas no subnúmero imediatamente
anterior...) a obra Hauptprobleme der juristischen Methodenlehre, de Schapp-
-filho (Jan), gravitar à volta de algumas das linhas mestras antes traçadas por
Schapp-pai (Wilhelm)?...: o carácter histórico-prático de qualquer experiência
juridicamente significativa (problema concretamente decidendo, norma jurídica,
direito subjectivo...), em virtude “da [radical] unidade [articuladora] do caso,
direito e mundo da vida”; a polarização no “caso” não só do direito jurispru-

65 Assim, expressamente, e por referência aos problemas jurídicos, SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt,
op. cit., 104. Para explicitações complementares, especialmente atinentes à tentativa de recortar com pre-
cisão “caso” e “história” — será o caso o mero “esqueleto” de uma história?...; a concepção/apresentação
tantas vezes estilizada do caso indiciará uma sua separação da história?...; o caso, ainda que comprima
a história, não a terá sempre como englobante pano de fundo?...; não será a singularidade de cada caso
(singularidade aquela exactamente radicada na… história que lhe subjaz) a razão determinante de que a
solução dada a um certo caso só valha para outro, semelhante, caeteris paribus, e que, portanto, autoriza
que casos jurídicos análogos possam ser julgados diferentemente (pense-se, em termos ilustrativos — e
os exemplos são do próprio W. Schapp —, em vários casos que impliquem o mesmo princípio da boa fé,
ou naqueles outros em que se imponha a fixação da pena concreta por violação do mesmo bem jurídico
criminalmente protegido)?... —, cf. também ibidem, 181 ss., esp.te 183 s. e 188 s.
66 “Ser feito-de-qualquer coisa” (Aus-etwas-sein) é uma nota especificantemente predicativa das “coisas para
que” : cf. W. Schapp, ainda ibidem, 15 ss., esp.te 17.
67 Cf. as nossas Lições de Introdução ao Direito. 2 ed. Coimbra, 2006, 887.
68 Cf., de novo, a monografia Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit.

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dencial judicial mas do próprio direito legislativamente criado, e a correlativa


“aproximação de direito judicial e direito legal”69 — todavia, e como é óbvio, se
ali tudo se concentra no caso concretamente decidendo, aqui o discurso expande-
-se, a partir de “casos concretos”, a genuínas “séries de casos” (scilicet, a lei de-
cide não “tipos de casos — categoria esta que, para o A., traduz uma “espirituali-
zação da série”, que tende a transmutá-la, subvertendo-a, em “género” — mas a
série concreta de concretos casos singulares”); a composição de “séries” (Reihe)
em que podem, decerto, ser seriados (eingereiht) todos os casos do conjunto,
mas sem que tal anule a individualidade de cada um como “experienciado” (er-
lebten) “caso enumerável” (erzählten Fall) e, portanto, como “caso singular”
(Einzelfall) — os casos emergem individualmente na história e integram-se in-
dividualmente na série70 —, razão por que a “série” não identifica, insista-se, um
“género” relativamente aos “casos singulares”, mas apenas “a síntese de todos
os casos singulares semelhantes (gleichgelagerten)”, numa como que reposição
da conhecida71 concepção analógica da identidade (hoc sensu: a identidade dos
casos singulares “seriáveis” em dada “série” é determinada não pela igualdade
dos predicados de cada um — identidade por igualdade esta que, afinal e por ab-
surdo, faria de todos esses casos... o mesmo caso —, antes admite uma diferença
nos referidos predicados, que, não obstante, ainda com-põem uma identidade
suficientemente semelhante para a não podermos negar qua tale — exactamente
uma identidade analógica); a inexistência de “factos [jurídicos] brutos” (Rohsa-
chverhalte), pertencentes a um como que “mundo empírico amorfo” (amorphen
Tatsachenwelt), uma vez que a emergência de um problema jurídico implica a
pressuposição de “valorações jurídicas” (juristische Wertungen)...72

III
6. Tudo quanto se disse, compreendemo-lo sem esforço, toca, de um prag-
maticamente interessado ponto de vista metodonomológico e entre outras,
duas questões nucleares: 1ª) a do modo como deve pensar-se a relação caso

69 Aliás, já divisada na monografia Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewinnung, op. cit.: cf. 51 ss.,
incluindo a importante n. 2, a p. 52.
70 Trata-se de uma paráfrase a MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. H. Caro. Lisboa, s./d., 517.
71 Cf. O que escrevemos em Pensamento Jurídico (Teoria da Argumentação), polic., Coimbra, 2003, 88 s.;
para explicitações fundamentantes, v. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade.
op. cit., esp.te 115 ss., 133 ss., 143 ss. e 548 ss.
72 Cf. Hauptprobleme der juristischen Methodenlehre, op. cit., esp.te 10, 15 ss., 31 ss., 50 ss. e 60 ss. A
respeito do último ponto acentuado no texto, sublinhe-se ainda, paralelamente, ser de todo inconcebível
uma metodologia jurídica sem uma fundamentante “ideia de direito”, naturalmente conexionada com o
horizonte cultural concretamente em causa: cf. Id., ibidem, 3 e 18.

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judicando-critérios / fundamentos orientadores e parcialmente desoneradores do


juízo decisório; 2ª) a da rigorosa caracterização como problema do mencionado
caso. Sobre uma e outra apenas as brevíssimas considerações seguintes. 1ª’) Os
casos judicandos e os critérios / fundamentos do respectivo juízo decisório são
perpassados pela normatividade jurídica. Com efeito, aqueles primeiros têm na
aludida normatividade a dimensão-referente que os faz problemas73; e os (cons-
tituídos ou constituendos, mobilizandos e realizandos) critérios/fundamentos
integrantes do corpus iuris encontram nela a marca-de-contraste da respectiva
juridicidade. Não surpreende, por isso, que os dois citados planos se impliquem
reciprocamente e enredem dialecticamente: os problemas judicandos e os crité-
rios / fundamentos que eles reclamam pressupõem constitutivamente e intencio-
nam predicativamente a normatividade jurídica74; e esta radica densificantemen-
te e projecta-se regulativamente naqueles. O que significa serem os primeiros
(os casos e os critérios / fundamentos que se lhes adequam) impossíveis sem a
segunda, e mostrar-se esta (a normatividade jurídica) inútil sem aqueles. Ora, no
horizonte da prática em geral (em que naturalmente se inclui a praxis jurídica...),
a impossibilidade e a inutilidade são as expressões superlativas do nonsense, o
grau máximo do diletantismo — o que as torna intoleráveis. Destarte fechado
o círculo argumentativo, não se requerem, a propósito, quaisquer explicitações
complementares… 2ª’) Por seu turno, um “problema jurídico concreto”75 traduz,
desde logo, uma pergunta desafiante — uma interpelação emergente e pertinente
naquele espaço em que se imbricam o “mundo da vida” e o “mundo do direito”,
as experiências do primeiro e as exigências do segundo. Postula, depois, um acto
predicativo — tendente à qualificação sub specie iuris da dificuldade que assim
se manifesta, referindo-a aos quadros da normatividade jurídica, ao sentido que a
abre, e/aos princípios que a inervam, e/aos critérios que a objectivam. E implica,

73 E note-se: o normativo-jurídico referente intencionado é constituendo (redensificado ou inovado) por me-


diação dos problemas que vão historicamente emergindo e que pertinentemente o convocam. Reconhece-
mo-lo assim experiencialmente radicado, que não refelibaticamente postulado — o que confina o poietica-
mente excogitável ao plano do praxisticamente conforme. Quer dizer, por um lado, que se não prescinde,
neste quadro, de um fundamentante arrimo de sentido que “[contrabalance o] casuísmo” atomístico a que
poderia, inadvertidamente, ceder-se (parafraseamos assim CLÁUDIO, Mário. Camilo Broca. Lisboa, 2006,
183); e, por outro, que se nos impõe, também aqui, uma atitude contida e uma reserva avisada, pois mesmo
quando “[julgamos] ir ao leme dos acontecimentos [não passamos, bem vistas as coisas, de modestos] re-
madores”… (trata-se agora de uma paráfrase a BESSA-LUÍS, Agustina. A Ronda da Noite, op. cit., 89).
74 Pelo que, atenta — ao lado dos problemas judicandos — a ineliminável intencionalidade… problemática
dos mencionados critérios / fundamentos metodonomologicamente relevantes, também nós poderemos
dizer (retomando pontualmente uma questão aludida logo no início deste estudo e em glosa muito livre a
um complexo pensamento, que não cabe analisar aqui…) que “o[s] problema[s são sempre] tanto a singu-
laridade concreta como a universalidade” enquadrante: cf. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.
L. Orlandi e R. Machado, Lisboa, 2000, 274.
75 Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. Questão-de-facto…, op. cit., 274, e Metodologia Jurídica…, op. cit., 159 ss.

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finalmente, um juízo analógico — i. e., uma reflexão judicativo-decisória pola-


rizada nos mencionados relata, no mérito normativo-jurídico do caso-problema
decidendo e na normativo-jurídica intencionalidade problemática dos apoios jus-
tificadamente seleccionados, tendente a “trazê-los-à-correspondência”76.

7. Todavia, e como se reconhecerá, as observações que precedem (as arru-


madas sob III, 6, 2ª), e particularmente a primeira (que condiciona as demais),
remetem a (implicam pressuponentemente) uma grave questão, a que, neste en-
sejo, não faremos mais do que uma fugidia alusão.
É, bem se sabe, comum — parece ter há muito caído no domínio público... —
a cisão ser/dever-ser (lembremos apenas a kantiana clivagem natureza/razão —
aquela polarizada no ser, esta no dever-ser...) e a decorrente afirmação segundo a
qual não é possível inferir o dever-ser do ser: “da descrição de um estado de coisas
(‘Há pessoas a morrer de fome no Burundi’) [não podemos concluir logicamente]
um juízo moral (‘Devíamos enviar-lhes comida’)”77. Ignorar a advertência ante-
cedente é incorrer em censurável “falácia naturalística” (recordem-se as palavras
do próprio George Edward Moore: “To hold that from any proposition asserting
‘Reality is of this nature’ we can infer, or obtain confirmation for, any proposition
asserting ‘This is good in itself’ is commit the naturalistic fallacy”78). Mas talvez
um humanamente comprometido olhar mais fino permita lançar uma ponte entre
as duas margens mencionadas e articular vectores primo conspectu antipódicos.
Prescindindo de explicitações filosoficamente pressuponentes e discursi-
vamente fundamentantes79, diremos apenas que, na sua ineliminável oposição
ontológica, realidade e valor, ser e dever-ser fundem-se no homem e, consonan-
temente, nas criações em que ele se re-cria: se o homem é um ser em perma-

76 Ou, respectivamente e em termos interrogativos: onde os problemas jurídicos singulares e concretos se


— por precipitada inércia discursiva — os re(con)duzirmos a espécies de géneros (antecipando, de certo
modo, o parêntesis seguinte, aproveitemos para sublinhar que, em uma particular acepção medieval, “a
espécie não subdivide o género, antes o apresenta”, pelo que não identifica um “indivíduo”, mas “qualquer
um” — assim, AGAMBEN, G. Profanierungen, op. cit., 54), a correlatos lógico-objectivos de critérios
gerais e abstractos (à como que versão em ponto pequeno, ou em escala reduzida, de uma estrutura enqua-
drante maior)?; onde as humano-praticamente significativas e devenientes exigências de sentido jurídico
se — absolutizando uma totalmente dessorada operatividade técnica — as não assumirmos nem realizar-
mos?; onde as normativo-juridicamente intencionadas argumentações fundamentantes se — na ânsia de
cumprirmos os requisitos de uma mais que duvidosa cientificidade — apenas relevarmos as axiomático-
-dedutivamente concebidas demonstrações apodícticas?
77 Cf. EDMONDS, David; EIDINOW, John. O atiçador de Wittgenstein. A história de uma discussão de dez
minutos entre dois grandes filósofos. Trad. J. P. Pires. Lisboa, 2003, 64.
78 Assim, Principia ethica. Cambridge, 1965, 114.
79 Oferece-no-las lapidarmente A. Castanheira Neves, no ensaio-comunicação O papel do jurista no nosso
tempo. Coimbra, 1968, 39 ss., esp.te 43-46.

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nente autotranscensão, um contínuo projecto de vir a ser, um ser que se realiza


à medida que se aproxima do dever-ser que sisifisticamente prossegue, o direito
é instância paramétrica de específicos problemas, intencionalmente densificada
por um também específico referente de sentido axiológico, i. e., pelo a-caminho
predicativo de uma específica exigência de dever-ser (aquela que, no tempo
histórico em que a questão se puser, traduzir a zenital expressão normativo-ju-
rídica da compreensão que o homem tiver de si mesmo). Ou, em paráfrase algo
ousada: se M. Heidegger discerniu o “ser” do nosso “ser-aí” no “cuidado”, nós
diremos que o ser do direito é (com assumida intenção dinamizante…) o sentido
que lhe dá o sopro humano, é (sem qualquer dualização compartimentante…)
o dever-ser que o humaniza. O ser não é, portanto, “uma mera realidade empí-
rica”, nem o dever-ser “um [puro] modelo construído”80 — no homem, ser e
dever-ser afirmam-se mundanalmente, manifestam-se unitariamente e articu-
lam-se dialecticamente, uma vez que significam a sua emergência, configuram
a sua existência e animam a sua deveniência: a emergência do homem com a
sua dignidade, a existência do homem com a sua espiritualidade e a deveniência
do homem com a sua possibilidade. E, sinepeicamente, o direito não é apenas
factum, nem tão somente principium, mas, simultaneamente, um e outro — um
constituendo conjunto de critérios de juízo metodonomológico axiologicamente
fundamentados em termos específicos, e de específicos fundamentos axiológi-
cos adequadamente convertidos em operatórios critérios de juízo metodonomo-
lógico. Ora estes fundamentos/critérios jurídicos interessam (pragmaticamente)
ao jurista decidente atenta a respectiva intencionalidade problemática, pois só
esta e a decerto metodonomologicamente controlada e ineliminável mediação
judicativa permitirão que eles venham a ser trazidos-à-correspondência com

80 Cf. Id., ibidem, 41. Poderemos ensaiar a formulação da mesma ideia básica — a da recíproca imbrica-
ção de ser e dever-ser, atentos determinados pressupostos… — aproveitando o modo como, reflectindo
especificamente a problemática metodonomológica, no-la apresenta um dos AA. com quem dialogamos
neste estudo. Jan Schapp — é nele que estamos a pensar — sublinha enfaticamente que o caso decidendo
não emerge na esfera do normativo-juridicamente indiferente, ou neutro, vindo posteriormente o direito
cobri-lo com o seu predicativo manto diáfano; pelo contrário, o caso vem à epifania já cunhado pelo
direito, irrompe ab origine como caso jurídico (conquanto a exacta determinação/comprovação da sua
relevância jurídica admita os afinamentos consonantes com as circunstancialmente realizandas exigências
metodonomológico-processuais…). Nas suas próprias (e bem expressivas) palavras: “não devemos com-
preender o caso como pré-formação (Vorgegebenheit) do direito”, pela elementar razão de que “ele é sem-
pre estruturado pela normatividade jurídica vigente (geltende Recht)”. Se quisermos pôr em evidência o
englobante do que acaba de dizer-se, acentuaremos, ainda com J. Schapp, a macroscópica “com-formação
(Mitgegebenheit) de mundo e direito” — rectius, naquele hemisfério civilizacional em que o direito tenha
vindo à epifania, um e outro completam-se dialecticamente, não se excluem reciprocamente —, razão por
que, em termos agora microscópicos, não surpreende a afirmação de que o caso identifica, “de certo modo,
o ponto de união (Verbindungsstelle) de realidade e direito”, instituindo aquele específico plano em que se
sintetizam o que é “pré-formador para o direito” e “con-formador do direito”: cf. SCHAPP, J. Hauptpro-
bleme der juristischen Methodenlehre, op. cit., 21 ss., esp.te 26.

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os circunstancialmente decidendos problemas concretos, viabilizando a sua


normativo-jurídica solução. O que do mesmo passo desvela a irredutível matriz
analógica do exercício, que nunca nos cansaremos de sublinhar. E concorre
ainda para manifestar a índole prático-histórica da reflexão metodonomológica:
prática, porque centrada nos mencionados problemas — nas interpelantes ex-
periências que os enunciam; e histórica, porque tanto aquela intencionalidade
problemática como estes problemas concretos vão emergindo na história — na
objectiva intersubjectividade que a vai constituindo.

8. A tudo o que se impõe acrescentar mais uma nota ainda. Com efeito, a
prioridade que assim se reconhece à dialéctica em que se enredam os proble-
mas concretos e a por sua mediação apurada intencionalidade problemática dos
fundamentos/critérios do juízo decisório projecta-se em outro importante coro-
lário: o de que não é mais tolerável insistir no carácter conservador do pensa-
mento jurídico81, pois se este implica uma inerme subordinação ao império do
sistema pré-objectivado, que circunscreveria a amplitude do possível — casos
novos juridicamente relevantes seriam apenas aqueles que viessem a irromper
em consonância com o postulado (e enquistado) ponto de partida, numa como
que abertura ocorrida em… circuito fechado —, o que se sustenta é antes, ao
invés e no limite, a superação do mencionado sistema operada pela irreprimível
novidade de um problema juridicamente relevante — i. e., de um problema sus-
ceptível de ser posto em virtude da pertinente pressuposição das constituendas
exigências constitutivas do direito, nomeadamente do sentido demarcador do seu
a-caminho, e a resolver com base no critério excogitado para o efeito, pela ins-
tância circunstancialmente competente, atentas aquelas mesmas exigências —,
que assim derruba as barreiras existentes e alarga a juridicidade a um espaço que
até então a não reclamara82. Ilustremo-lo com um exemplo colhido na esfera da
prática, em geral, mas obviamente transponível, mutatis mutandis, para o campo

81 Ponto este também recentemente acentuado — conquanto em um bem diferente contexto temático… —
por José de Faria Costa, no ensaio-conferência As linhas rectas do direito. Porto, 2007, 22.
82 No que, aliás, se toca algo de fundamental — hoc sensu, de autenticamente radical, não deixemos de o su-
blinhar (aproveitando um topos constante na lição de Castanheira Neves, pela última vez — em referência
ao momento em que escrevemos estas linhas… — convocado no denso ensaio sobre — as modalidades e
aporias de — “O funcionalismo jurídico — caracterização fundamental e consideração crítica no contexto
actual do sentido da juridicidade”, RLJ, 136, 2007, n. 3942, 150). Com efeito, só a abertura da normativi-
dade jurídica (ao novum que a interpela), acentuada no texto, se mostra consonante com a abertura também
do espírito humano (ao novum que o interpela), irredutivelmente predicado por uma liberdade responsabi-
lizante, com as decorrentes autoinstituição e empenhada assunção de um sentido e da tarefa da respectiva
realização no horizonte histórico da praxis, em ruptura com o — em superação do — propugnado pela
metafísica jusnaturalista, com as suas “evidências” pré-fixadas, que se nos impunham inelutavelmente
como “indisponíveis” que estávamos condenados a suportar.

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específico da prática jurídica (basta pensar, v. gr., pelo que a esta respeita, ontem,
nos problemas de abuso do direito surgidos com a superação do entendimento
tradicional do direito subjectivo, e, hoje, na mais ou menos arriscada qualifica-
ção, como juridicamente relevantes, dos chamados “problemas principais” — os
casos emergentes para lá das fronteiras dogmaticamente estabilizadas e incontro-
versas do direito, mas que, pelo seu mérito específico, se perfilam como capazes
de as ampliar). Na citada colectânea de ensaios Kant e o ornitorrinco, Umberto
Eco confronta, a dada altura, os leitores com a experiência vivida pelos primeiros
exploradores da Austrália quando depararam com o estranho animal: o ornitor-
rinco tinha bico de pato e cauda de castor, a fêmea punha ovos mas aleitava
as suas crias. Era um bicho sui generis, que escapava às taxonomias ao tempo
disponíveis e que só muito posteriormente viria a ser catalogado como um mo-
notrémato — um mamífero ovíparo83. Privilegiando as grelhas classificatórias
pré-fixadas, teríamos que concluir, com Hegel, que se os factos desmentem as
teorias “tanto pior para” aqueles (um so schlimmer für die Tatsachen)84. Todavia,
o híbrido zoológico não era uma ilusão dos sentidos — estava, manifestamente,
ante os olhos dos incrédulos recém-chegados. Se sairmos agora do território da
descoberta narrada e entrarmos naqueloutro que com ela visávamos considerar,
de imediato compreenderemos não ser um teoreticamente elaborado sistema pré-
-definido que impede a emergência de novos problemas práticos. Estes resultam
de uma dinâmica (a da própria história), que aquele não se mostra capaz de ab-
sorver, e apresentam uma dimensão (a referida novidade) que escapa ao poder
de filtragem de qualquer rede aprioristicamente instituída. E uma e outra — a
dinâmica histórica e a novidade problemática — implicam-se reciprocamente,

83 Cf. ECO, U. Kant e o ornitorrinco, op. cit., esp.te 66 s., 95 ss. e 239 ss. Para nos acolhermos a explicita-
ções basilares, lembremos que o habitat dos ornitorrincos se circunscreve a alguns cursos de água doce
de espaços geográficos muito confinados (que, portanto, se apresentam como um capsulado “centro único
de criação”, como um sitiado “berço único” imune a possíveis factores de “dispersão”), onde “as novas
formas [de vida se produzem] mais lentamente [e] as antigas formas [se extinguem] mais lentamente
ainda”. Os ornitorrincos são, por isso, “verdadeiros fósseis viventes” — como “têm habitado uma região
isolada e têm estado expost[o]s a uma concorrência menos variada e, por consequência, menos viva [,…]
constituem, até a certo ponto, uma transição entre [...] ordens hoje profundamente separadas na escala da
natureza” (in casu, a das aves e a dos mamíferos), ligando, no “estado flutuante” que se pode dizer o seu,
essas “duas grandes artérias da organização”: assim, DARWIN, Charles. Origem das espécies. Trad. J. D.
Mesquita Paúl, Porto (ed. da Livraria Chardron), s./d., 94, 117, 134, 346 ss. e 388 s.
84 Apud FIKENTSCHER, W. Methoden des Rechts…, III, op. cit., 604, n. 288. Acrescente-se telegraficamen-
te que, na extensa nota acabada de convocar, o nosso Professor de Munique chama a atenção para dois
pontos de inequívoco interesse na perspectiva deste estudo: 1º) Hegel utiliza a asserção transcrita no texto
“para ilustrar a dialéctica explicitação do sentido do conceito geral-concreto” — em inteira consonância,
portanto, com a idealização da realidade que, como dissemos (cf. supra, II, 4.), subjaz ao mencionado
konkret-allgemeiner Begriff; e, 2º) se não é legítimo inferir o dever-ser do ser (vimo-lo supra, em III, 7.) é
igualmente censurável a posição inversa, i. e., sustentar que “não pode ser o que não deve ser” — uma vez
que as exigências axiológicas não confirmam nem refutam os factos, ajuízam criticamente deles.

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pois se a primeira é a condição de possibilidade da segunda, esta é o acto de


realização daquela.
8.1. Os esclarecimentos acabados de fazer (sob 8.) sugerem ainda uma outra
explicitação, directamente centrada na esfera temática que prometemos privile-
giar — o fio argumentativo acima traçado estende-se também em nossa direcção.
Vejamo-lo esquematicamente.
Se, mais ou menos arriscadamente (ora em mais destemida, mas fundamen-
tada, ruptura com o iuridicus status quo ante, ora em mais contido, mas igual-
mente fundamentado, aprofundamento dessa invariante… variação) e em sede
metodonomológica, entendermos dever caminhar o caminho franqueado pela
abertura do sistema jurídico (pela sua exposição à erosão do tempo — que vai
eliminando as obsolescências da juridicidade, mas que, em compensação, tam-
bém vai aditando ao direito as experiências e as exigências que, no seu âmbito,
irrompam inovadoramente…), as questões decisivas que importa considerar são
as duas seguintes: 1a) quando se pode dizer que estamos perante um problema
juridicamente relevante?; e 2a) como deve então pensar-se a respectiva solução
judicativo-decisória?
Muito sucintamente, responderemos à primeira pergunta, assim: sempre que,
atenta uma dada situação concreta e com o objectivo de a qualificar, se impuser
pressupor as constituendas valências constitutivas do direito — scilicet, aque-
las que, em vista da controvérsia decidenda, se inscreverem na linha de uma
prático-normativamente sustentável continuidade, ou de uma também prático-
-normativamente sustentável descontinuidade da normatividade jurídica vigente
—, e se julgar que nela (na situação hipoteticamente em causa) se não encontra
cumprido esse quadro referencial (o instituído pelas mencionadas valências), é
mister concluir pela relevância jurídica do aludido problema. E à segunda, como
segue: aqueles mesmos critérios/fundamentos que, como pressupostos, viabili-
zam a resposta à primeira pergunta enunciada, hão de permitir — mas agora de
um modo menos holisticamente disperso na relação quaestio disputata / corpus
iuris e mais directamente centrado na co-respondência entre o apontado primeiro
termo (o caso judicando) e um sector já bem circunscrito do segundo (o que se
adequar intencional e problematicamente àqueloutro), e em resultado da meto-
donomológica “experimentação”85 a que sejam submetidos — responder à inter-
rogação formulada em último lugar.

85 O muito que aqui nos limitamos a pressupor esclarecer-se-á em CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia
Jurídica…, op. cit., 176 ss.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

8.2. O direito, rigorosamente compreendido — têmo-lo acentuado vezes sem


conta... —, remete, irredutivelmente, a uma co-respondência: àquela que se es-
tabelece entre certas situações-problemas e a intencionalidade problemática de
determinadas exigências de sentido — entre situações-problemas emergentes na
esfera da intersubjectiva partilha do mundo (variadíssimas ofensas à dignidade
da pessoa, inobservâncias de uns quantos princípios regulativos e/ou de deveres
estruturantes de uma convivência de rosto humano, violações de diversíssimos
bens comunitários, inúmeras polémicas sobre interesses...) e a intencionalidade
problemática das exigências de sentido susceptíveis de as predicar aquando da
posição e de as assimilar aquando da resolução (segundo Castanheira Neves86,
exigências de autonomia, de participação, de solidariedade e de corresponsabi-
lidade, e os respectivos e pluriformes corolários jurídico-dogmáticos no âmbito
do Direito Constitucional, do Direito Penal, do Direito Administrativo, do Direi-
to Fiscal, do Direito Privado87...). Por seu turno, o Estado de Direito, enquanto
instância-síntese (locus e modus) da prática política e da axiologia jurídica — da
prática política axiológico-juridicamente fundamentada e da axiologia jurídica
prático-politicamente comprometida, i. e., das constituendas valências… cons-
titutivas da pessoa e do quadro institucional de que, dialecticamente e sem con-
tradição, ela é demiurgo e em que vem à epifania —, converge também em uma
co-respondência: a que tem como pólos específicos problemas materialmente
densificadores da pessoa (as normativo-juridicamente cunhadas interpelações
que a provocam) e a intencionalidade problemática dos (normativo-juridicamen-
te significativos) referentes em que a pessoa, como tal, se re-vê. Finalmente, a
decisão judicativa — a prático-normativamente adequada resolução dos concre-
tos casos jurídicos — radica, de igual modo, em uma singular co-respondência,
há muito conhecida: a que articula o caso-problema concretamente decidendo e a
intencionalidade problemática do(s) constituído(s) ou constituendo(s) estrato(s)
do corpus iuris circunstancialmente pertinente(s). Ora uma co-respondência

86 Cf., por exemplo, O princípio da legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático.
Coimbra, 1988, 86 ss.
87 Privilegiando um registo mais imediatamente tributário das capitais intenções regulativas que se foram
histórico-diacronicamente sedimentando no nosso arco civilizacional e das suas múltiplas projecções e/
ou dimensões normativo-jurídicas (cf., elementarmente, as nossas Lições…, op. cit., 964, n. 271) — onde
tudo, afinal, radica… —, poderíamos aludir às racionalidades, à justiça e ao tribunal excogitados pelo
génio grego, aos referentes axiológicos da civitas romana e à respectiva precipitação nos tria praecepta
iuris, aos fundamentos irredutíveis da extraponência medieval, à ownership liberal e à égalité democrática
moderno-iluministas, aos pathe capitalista e socialista, à fairness implicada pelos Estados constitucio-
nais do nosso tempo… que hoje se sintetizam (em termos hegelianos e, portanto, numa dialéctiva de
conservação-superação, que converge na “concordância prática” das exigências que se afirmem como
circunstancialmente vigentes…) no ethos personalista (maxime, naquele feixe de direitos e deveres que, à
uma, con-formam o rosto jurídico da pessoa e co-instituem a autonomia da juridicidade).

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entre relata do tipo mencionado — rectius, entre termini polarizados em pro-


blemas — manifesta uma relação (coenvolvente daqueles relata) e traduz uma
analogia (pois o raciocínio implicado discorre univeladamente de particular a
particular, na pressuposição de um comparationis tertium, e reconduz os termos
em causa a uma unidade, todavia sem eliminar a diversidade que os identifica),
razão por que estamos autorizados a concluir que o direito, o Estado de Direito e
a decisão judicativa, não obstante as assinaladas diferenças que apresentam, são
categorias seminalmente instituídas por uma relatio analogica.
E insistamos um pouco mais neste último ponto. Para dizer agora que a deci-
são judicativa (maxime, a sentença jurisdicional) não poderá deixar de ser obtida
por mediação de um raciocínio adequado — scilicet, conforme à mencionada
problemática e às leges artis da específica reflexão (irremissivelmente perfor-
mativa) que ela implica —, sindicável — scilicet, criticamente controlável e,
portanto, viabilizador da singular objectividade inerente ao prático, em geral, e
ao jurídico, em especial (a da intersubjectividade) — e fundamentante — scili-
cet, capaz de garantir a concludência argumentativa e a pertinência normativa
das excogitações produzidas, articuladoras dos pressupostos circunstancialmen-
te tidos em conta e da conclusão inferida (em síntese, metodonomologicamente
lograda). Ora, a racionalidade que deverá predicá-la integra todos estes sinais
identificantes… da respectiva marca-de-água. Há muito que a reconhecemos
analógica — e, com efeito, convergem na analogia os tópicos precedentemente
sublinhados. Em primeiro lugar, a analogia é um tipo de raciocínio performati-
vo88, porque revelador do anteriormente… irrevelado, e heurístico, porque ins-
taurador do acesso ao até então… inacedido — recorde-se a afirmação comum
segundo a qual a analogia permite inferir o que se conhece pior (ou o que de todo
se desconhece) a partir do que se conhece melhor (ou a partir do que se conhece
menos mal). Acresce, em segundo lugar, que a analogia satisfaz a exigência da
criticibilidade que se manifesta no horizonte histórico-prático — a da objectivi-
dade da/na intersubjectividade —, na medida em que disponibiliza conclusões
entendíveis/aceitáveis por todos os membros de uma determinada “comunidade
de comunicação”, podendo cada um ajuizar criticamente das mencionadas con-
clusões. E em terceiro e último lugar, a analogia fundamenta, em termos argu-
mentativamente convincentes (que não demonstrativamente apodícticos) — e
normativo-juridicamente pertinentes, se o referente intencionado for a consti-
tuenda normatividade jurídica vigente —, as conclusões que propõe, uma vez

88 Sobre a performatividade, tanto na esfera da teoria da linguagem, como na do pensamento jurídico com
a sua predicativa normatividade especificamente intencionada, cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O actual
problema metodológico da interpretação jurídica — I, op. cit., 124 ss. e 233 ss., esp.te 238 ss. e 240 ss.

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PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RESPECTIVA INTERSECÇÃO)

que permite “trazer-à-correspondência”89 o caso-problema concretamente judi-


cando e a intencionalidade problemática do constituído e/ou constituendo crité-
rio circunstancialmente operativo, desde que um e outro intencionem o mesmo
referente (v. gr., a juridicidade, se o caso for um problema jurídico e o critério for,
também ele, um bordão jurídico) e integrem o mesmo “círculo de semelhança”
(i. e., se as respectivas relevâncias — se o mérito problemático-normativo do
caso e o âmbito também problemático-normativo do critério — se equivalerem).
8.3. Das considerações precedentes resulta claro — e apenas isto pretende-
mos (re-)acentuar como observação derradeira — haver todas as razões para
concluir serem problemas os dois pólos do discurso jurídico metodonomolo-
gicamente comprometido: o caso concretamente decidendo e o constituído ou
constituendo critério/fundamento orientador e parcialmente desonerador da
respectiva solução — o primeiro por emergir como (acolhendo-nos a uma for-
mulação já utilizada) pergunta antropocronotopicamente balizada, o segundo
por relevar atenta a sua intencionalidade problemática. Pois bem: o tipo de
raciocínio adequado para “trazer-à-correspondência” dois problemas, ambos
cunhados ab origine pelo mesmo referente — in casu, a juridicidade que lhes
subjaz90 —, é (temo-lo repetido ad nauseam, pelo que se nos não impõem aqui
quaisquer explicitações complementares) o analógico, que justamente procura
discernir a semelhança na diferença dos mencionados relata em ordem a pos-
sibilitar pertinentemente (i. e., através da mediação reflexiva conformadora do
exigível juízo decisório) a conclusão de que o critério/fundamento ómega é
aquele que convém ao caso jurídico alfa.

89 Cf. KAUFMANN, A. Analogie und “Natur der Sache”…, op. cit., 38.
90 A importância radical do “subjazer” de uma “verdade transcendente” — aqui, o referente juridicidade —
no exacto recorte da analogia é sublinhada por STEINER, G. Os logocratas, op. cit., 21 s.

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CAPÍTULO III
JURISPRUDENCIALISMO:
UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S)
DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

José Manuel Aroso Linhares


Universidade de Coimbra

“The birds fly home to these great trees,


Here too I am at home...”
Myfanwy Piper, after Henry James,
The Turn of the Screw, Act I, scene IV — The Tour

Permitam-me que comece por ousar um registo quase confessional. Por um


lado para, na pessoa do Senhor Doutor Nuno Santos Coelho, agradecer à Fa-
culdade de Direito de Conselheiro Lafaiete, à Universidade Presidente Antônio
Carlos e à Universidade Federal de Ouro Preto o privilégio de regressar a Vila
Rica de Albuquerque (e à praça de Coimbra… com a sua Pousada do Mondego).
E de regressar sentindo-me em casa (here too I am at home)...
Já no ano passado estive aqui mesmo, à porta da rota dos Diaman-
tes... e não posso deixar de renovar a minha profunda gratidão ao
meu Bom Amigo, Senhor Doutor Nuno Manuel Santos Coelho,
pela oportunidade que então me proporcionou de, por três ou quatro
dias inesquecíveis — sempre com encontros muito enriquecedores
com jovens mestrandos e doutorandos! —, me transformar num
viandante (deslumbrado!) dos córregos e cerrados, dos planaltos e
montanhas da Estrada Real... ou do seu caminho novo. Como se
se tratasse de seguir o percurso (os rastos do percurso) projectado
em 1698 pelo bandeirante Garcia Rodrigues… e de assim subir do
Rio de Janeiro até Ouro Preto... passando por Petrópolis, Juiz de
Fora, Barbacena e Conselheiro Lafaiete. Com uma pequena mas
significativa incursão pelo caminho velho... para me deslumbrar
com o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (e as
operáticas criações do Mestre Aleijadinho).

Por outro lado para manifestar a honra e o gosto imensos — mas também o
reconhecimento e a emoção — que sinto em intervir neste encontro, que se quer
expressamente em homenagem ao meu Professor, o Senhor Doutor Castanheira
Neves. Com o benefício de retomar a reflexão que tem estado presente em todo o

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

meu percurso (here too I am at home)... mas sobretudo com o privilégio de partici-
par — com queridíssimos Amigos das duas margens do Atlântico! — naquela que
(com Derrida) poderíamos dizer uma “comunidade” (uma “cidade”-refúgio?) de
perguntas e responsabilidades. Como se se tratasse assim de visitar (-construir) um
“lugar de hospitalidade soberana” (communauté de la question sur la possibilité de
la question1) : aquele lugar privilegiado que, não pondo em causa a liberdade refle-
xiva de cada um — antes a estimulando! —, nos une em torno dos desafios e das
exigências (se não da urgência prático-cultural) da “aposta” jurisprudencialista2.
As breves reflexões que se seguem concentram-nos numa das exigências
capitais do discurso jurisprudencialista ou do caminhar-procura com que este
nos responsabiliza (il faut parier (...) et (...) cela n’est pas volontaire, vous êtes
embarqué).3 Refiro-me à pressuposição de uma validade trans-subjectiva... ou
mais rigorosamente à exigência de vincular esta pressuposição (e o seu com-
promisso material) a uma experiência de realização e à praxis que a consuma
(dominada pela perspectiva da controvérsia-caso). Mais do que invocar aquela
pressuposição (enfrentando-isolando o discurso de fundamentação que a susten-
ta4), trata-se com efeito de considerar a circularidade constitutiva que — para

1 DERRIDA. L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967, p. 118.


2 Trata-se evidentemente de, já com Castanheira Neves, invocar a lição do pari de Pascal… para assim
mesmo reconhecer que, prosseguindo este caminho, podemos não ganhar nada... ou tudo ganhar: veja-se
desde logo O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito. Lisboa: Edições
Piaget, 2002, pp. 51-52, agora também em Digesta. Escritos acerca do direito, do Pensamento jurídico,
da sua Metodologia e outros. vol. 3. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p.61.
3 PASCAL. Les pensées, ed. 1671, VII (“Qu’il est plus avantageux de croire que de ne pas croire ce
qu’enseigne la Réligion Chrétienne”).
4 E este como núcleo do problema capital dirigido ao quê do direito, um dos três grandes problemas que a
reflexão recuperadora do originarium do direito hoje nos impõe. “O “quê” do direito — qual o fundamento
material que o seu sentido exige constitutivamente a sustentar a sua concreta normatividade? Se a funda-
mentação jusnaturalista invocava uma acrítica referência já ontológico-metafísica, já antropológica que se
revelou insustentável, e a fundamentação racionalista, sob os diversos modelos de autoconstituídas racio-
nalidades procedimentais, implicava afinal pressuposições que a invalidam nesse sentido, não fica excluí-
do que se reconheça na experiência (poderá dizer-se, humano-hermenêutica) da histórico-cultural prática
humana e da corresponsabilizante coexistência uma específica intencionalidade à validade em resposta ao
problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela distinção entre o humano e o inumano, o vá-
lido e o inválido, o justo e o injusto, intencionalidade que se refere sempre e convoca constitutivamente na
sua normatividade certos valores e certos princípios normativos que pertencem ao ethos fundamental ou ao
episteme prático de uma certa cultura numa certa época…” (CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da
filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva
reabilitação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 146). Ver também agora muito especialmente “Uma re-
flexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do direito?”. In:
Digesta, vol. 3, op. cit., pp. 93-94. Sem esquecer “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, texto da
conferência de abertura das I Jornadas da Associação de Teoria do Direito, Filosofia do Direito e Filosofia
Social (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 9 de janeiro de 2009). In: ALVES, João Lopes et
al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e
Filosofia. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 4-5 (1.2. “Uma Ursituation e os problemas implicados”).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

além do modus operandi de uma simples dialéctica entre duas dimensões ou


dois interlocutores irredutíveis — alimenta (prático-culturalmente) esta exigên-
cia: uma circularidade que há-de estar em condições de assumir a validade em
causa responsabilizando-a (simultânea e incindivelmente) como um contexto-
-horizonte de sentido (normativamente condutor) e como um correlato (perma-
nentemente reconstruído ou reinventado) de uma praxis de realização… mas
então também uma circularidade que nos obrigue a reconhecer nesta praxis
— e no “pensamento” que a “pensa”5 ou na autorreflexão que este lhe propor-
ciona (as a heightened degree of attention while performing in the practice6)... e
muito especialmente no discurso metodológico que (como patamar destes pen-
samento) criticamente a reconstrói7 — uma dimensão constitutiva da primeira
(e da vocação integradora que a onera, se não mesmo já do o sentido de juridi-
cidade que esta fundamenta)8.
Que outra exigência (de vinculação recíproca) senão aquela que
Castanheira Neves assume ao convocar uma filosofia do direito
problemática — a reflexão que a “hora” da nossa “realidade-
-existência” (humanamente significativa) está em condições de
nos impor9? Convocar (exigir) esta filosofia como autorreflexão
— defendendo que esta encontre o seu ponto de partida (ou o seu
problema inicial, dito do por-quê) no “transcender interrogante”
de uma prática10 — é com efeito pedir-lhe que se nos exponha
sob uma dupla face: aquela em que a recuperação do originarium

5 “[A] uma “teoria do direito” compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-reflexiva-
mente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da juridicidade (…) e
dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na unidade histórico-cultural entre aquelas
e estes o direito vem à sua existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser “objecto” de uma
reflexão teórica que nessa objectivação o queira compreender…” [CASTANHEIRA NEVES. Teoria do
direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra, 1998 (versão em fascículos)
pp. 50-51, (versão em A4) p. 28].
6 Para o dizermos com a ajuda insuspeita de Fish: “Insofar as one is ever critically reflective, one is critically
reflective within the routines of a practice. (…) What most people want from critical reflectiveness is precise-
ly a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree of attention while performing
in the practice. (…) Insofar as critical self-consciousness is a possible human achievement, it requires no
special ability and cannot be cultivated as an independent value apart from particular situations: it’s simply
being normally reflective. It’s not an abnormal, special — that is, theoretical — capacity…” [“Fish Tales: A
Conversation with ‘The Contemporary Sophist’” (entrevista concedida por Stanley Fish a Gary Olson), JAC
Online (12-02-1992), <http://www.cas.usf.edu/ JAC/122/olson.html>. Extraído em: 11/04/2003].
7 Ver muito especialmente Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra,
Coimbra Editora, 1993, pp. 9 e ss. (“O problema metodológico-jurídico”).
8 Cfr. a síntese proposta em “Pensar o direito em tempo de perplexidade”, op. cit., pp.18-22.
9 E que deverá começar por perguntar pelo “sentido do direito na realidade-existência e na prática huma-
nas”: ver “Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da
filosofia do direito?”. In: Digesta, vol 3, op. cit., pp. 91-199 (4. e 5.).
10 Ver muito especialmente “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as con-
dições da emergência do direito como direito”. In: Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de
Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra, 2002, pp. 837 e ss., agora também no Digesta, vol 3, op. cit., pp. 9 e ss.

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do jurídico se compreende especificando (autonomizando) uma


“intencionalidade ao fundamento”11 e a autodisponibilidade que
lhe corresponde12... e aquela em que esta mesma recuperação se
realiza identificando (distinguindo) um modelo inconfundível de
pensamento jurídico13 e o tipo de racionalidade que este cumpre.
Como se se tratasse afinal de articular dois momentos ou duas
“dimensões” (estruturantes) da “emergência constitutiva da juri-
dicidade”: a dimensão da validade e a dimensão metodológica14.
Bastando-nos aqui ter presente… que a primeira destas dimensões
(através da autorreflexão que a intensifica) se cumpre ela própria
numa (ou como uma) interpelação (prático-culturalmente con-
textualizada) de um “sentido” (também ele “civilizacionalmente
específico”) de “universalidade” — uma interpelação assim mes-
mo indissociável do modus operandi de uma reflexão interna e
do contraponto crise/crítica que a alimenta15... indissociável se
quisermos também da compreensão-experiência de uma criação
humano-cultural e do “contexto” a que “constitutivamente” esta se
refere (e que assim mesmo a torna possível ou que assegura a sua
identidade-continuidade)16. E que a segunda nos incita a conside-
rar uma compreensão específica do problema metodológico. Uma
compreensão que liberte este da demarcação (estanque) de territó-
rios imposta pelo discurso moderno dos Métodos17... e que assim

11 “Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do
direito?”. In: Digesta, vol 3, op. cit., p. 98.
12 Uma intencionalidade à validade precipitada numa perspectiva, num sentido, numa estrutura, numa nor-
matividade: para um desenvolvimento, ver “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”. In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Ed.). O direito e o futuro. O futuro do direito. Coim-
bra: Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a).
13 Dito jurisprudencialista stricto sensu: ibidem, pp. 58 e 66-67 (3.b).
14 Dimensões que Castanheira Neves faz de resto explicitamente corresponder às duas partes-núcleos de
um curso sobre O actual problema do direito: assim no “programa temático” da disciplina de Filosofia do
Direito e Metodologia Jurídica cumprido na Universidade Lusófona do Porto no ano lectivo de 2005 /2006
(programa que desde então tem sustentado o percurso desta disciplina) [Primeira Parte — A validade (I. A
crise/ II. A crítica) / Segunda Parte — A metodologia (o sentido da dimensão metodológica enquanto uma
segunda dimensão da emergência constitutiva da juridicidade)].
15 Já assim exemplarmente em Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juri-
dicidade (ensaio de uma reposição crítica) — I. A crise. Coimbra: Almedina, 1967, passim [ver muito es-
pecialmente pp. 63-84 (§ 3º “O processo que conduz da “crise” à “crítica” e § 4º “O objecttivo: a crítica”)].
Vejam-se também as páginas iniciais de O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito,
policop., terceira versão, Coimbra-Lisboa, 1997, pp. 3-9 (2. “A crise e a crítica” e 2.1. “Conceitualização
prévia: o conceito de crise e a sua relação com a exigência crítica”).
16 Para compreender a especificidade desta “particular criação cultural” e do seu contexto enquanto continui-
dade (projectado na experiência do tempo da “nossa civilização greco-romana, judaico-cristã e europeia”),
ver muito especialmente a síntese proposta em “O problema da universalidade do direito — ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas”. In: Digesta, vol. 3, op. cit., pp. 111 e
ss. (III). Ver também “Pensar o direito em tempo de perplexidade”, op. cit., 7-10 (II.”O contexto histórico-
-cultural civilizacionalmente global. As polaridades histórico-culturais”)
17 Uma demarcação que nos obrigaria a tematizar o Método como uma operatória (se não como uma técnica)
e então e assim não só a determiná-lo prescritivamente mas também a atribuir-lhe o território (analitica e

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

mesmo — sem deixar de confrontar a sua perspectiva e as opções


do seu campo temático, mas sobretudo o seu discurso (o seu tipo
de racionalidade), com aqueles que são propostos por modelos de
realização alternativos18 — esteja em condições de o assumir como
um problema normativo (sustentado numa perspectiva noetica-
mente judicativa e na autorreflexão crítica que a leva a sério)19. O
que é ainda, et pour cause, responsabilizá-lo como uma dimensão
constitutiva do próprio sentido da juridicidade. Como a “autocom-
preensão de algo — o direito — que no modo por que realiza o
seu sentido específico já em si mesmo se releva como acto, como
o processo prescrutante (fundamentante) de um logos — algo que
no seu próprio ser é meta-odos-logos...”20

Se, à luz da reflexão que nos ocupa, insisto na irredutibilidade e na interde-


pendência constitutiva destas duas “dimensões” de “emergência”, é no entanto
também para sublinhar que não se trata tanto de as convocar como dimensões
autónomas — para depois as responsabilizar por uma dialéctica — quanto de
identificar cada uma delas a partir da dinâmica em que ambas indissociavelmen-
te participam ou do movimento comum que sustentam. É com este alcance —
para exprimir uma certa unidade intencional de determinantes e determinados e a
textura de relações recíprocas que a torna possível (e que assegura um recomeço
permanente... na mesma medida em que constrói uma perspectiva institucional-
mente inconfundível!) — que me socorro da representação do círculo... ou das
possibilidades do pensar em círculo. Como me poderia afinal socorrer doutras...
Outras representações seriam certamente mobilizáveis... e com
contributos relevantes (e as acentuações diferenciadas que estes
permitem). Se não porventura a da sobreposição-trama de bottom-
-up e top-down programming — a impor-nos uma suspensão

cronologicamente) estanque de um posterus: como se se tratasse de reconhecer a técnica que vem depois da
ciência... ou pelo menos de autonomizar-isolar um conjunto de cânones (ou de regras de correcto proceder) que
pressuporiam a (que viriam depois da) estabilização dogmática (eventualmente, também depois da objectiva-
ção-especificação da validade que esta traduz ou pode traduzir).
18 Confronto que Castanheira Neves defende como uma das tarefas nucleares da teoria do direito de que hoje
precisamos (uma teoria que diz precisamente crítico-reflexiva). Para além da Teoria do direito. op. cit., passim,
vejam-se também as sínteses propostas em O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, poli-
cop., terceira versão, op. cit., pp.65-86, e muito especialmente em “Entre o ‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’
ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do
direito”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 1 e
ss., agora também no Digesta, vol. 3, op. cit., pp. 161 e ss. Como é sabido, trata-se de assumir uma proposta de
diferenciação (e de “explicitação sistemática”) das perspectivas (se não “paradigmas”) de compreensão “pelas
quais se oferece hoje a juridicidade”: uma proposta que nos autoriza precisamente a contrapor normativismo,
funcionalismo e jurisprudencialismo, mas também a distribuir o segundo pelas modalidades principais do fun-
cionalismo material e do funcionalismo sistémico.
19 Ver supra, nota 7.
20 Já assim na Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, op. cit.,
p. XI da Introdução.

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epistemológica iluminada pelos discursos da informação e pela sua


perturbadora inteligibilidade sistémica —, seguramente a da espi-
ral sem fim (Ricoeur) e a do percurso do arado que sulca persisten-
temente um único terreno (Weinrib, Fish): a primeira a identificar
um processo de passagens sucessivas pelo mesmo ponto cumpri-
das a altitudes distintas... e então e assim a acentuar uma dinâmica
de transformação e de irrepetibilidade, que é também de cresci-
mento ou de adequação progressiva (a cet égard, j’aimerais parler
plutôt d’une spirale sans fin qui fait passer la méditation plusieurs
fois par le même point, mais à une altitude différente21), a segunda
a evocar um traçado que deixa (que vai deixando) sempre rastos
diferentes e mais profundos... e então e assim a mostrar-nos que o
problema a ter em conta é antes de mais o de uma certa perspectiva
interna e o das práticas que a constituem-cumprem ou o do contex-
to a que estas se referem as doing what come naturally (inasmuch
as [this] (...) account of law does not strive for any standing point
beyond law, the most that it can do is plough over the same ground
in ever deeper furrows22).

Dizer que cada uma destas dimensões constitutivas deve ser identificada na
perspectiva da dinâmica em que participam… não significa no entanto invocar
uma conformação pré-determinada deste movimento (e muito menos garantir
aproblematicamente o seu êxito). É (será) de resto antes como um desafio explí-
cito — permanentemente assumido on the edge e sob o fogo de interrogações
radicais — que me proponho acentuar aqui esta experiência de irredutibilidade
(e a conclusion-claim de interdependência que lhe corresponde).
Como um desafio... e como um desafio situado. Um desafio que só estaremos
em condições de invocar (e de levar a sério) vivendo-experimentando o pathos
de “perdição” e de “autocriação” de uma hora de “abalo”23. E que hora de “aba-
lo” (enquanto representação-experiência de uma circunstância prático-cultural
irrepetível) senão aquela em que nos reconhecemos feridos pela crise de uma
certa ideia da Europa e da civilização de direito que esta construiu... se não já
também “comovidos” pelas possibilidades-promessas de uma pós-filosofia e de
um pós-direito24?

21 RICOEUR. Temps et récit. tome I. Paris: Éditions du Seuil, 1983, p. 111.


22 WEINRIB, Ernest J. “Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law”, The Yale Law Journal, vol. 97,
n. 6, 1988, p. 974. “Law’s justification (…) cannot properly be truncated. It must be allowed to expand com-
pletely into the pace that it naturally fills…” (Ibidem, p. 971, itálico nosso). Ver também Fish, Professional
Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon Lectures, 1993), Harvard, 1999, p. 22.
23 JASPERS. Einführung in die Philosophie, op. cit. na trad. portuguesa Iniciação filosófica. 6 ed. Lisboa:
Guimarães Editores, pp. 26-27.
24 “Em termos de estar inclusivamente a ser ultrapassado o que se houvesse de entender por “crise”, naquele
excesso problemático que a esta exactamente caracteriza...” (CASTANHEIRA NEVES. “Pensar o direito
num tempo de perplexidade”, op. cit., p. 3.)

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

Uma “hora” que — mais de um século depois da especificação pro-


gramática da Allgemeine Rechtslehre (e do seu exemplar tempo de
teoria do direito) — nos obriga a discutir outra vez a plausibilidade
de uma perspectiva interna? Podemos dizê-lo. Sem esquecer que a
discussão daquele primeiro tempo — como uma oportunidade de
justificar metadogmaticamente a relação juridicidade / cientificida-
de / Método — obedeceu a um traçado circunscrito — capaz de
descobrir possibilidades (ou pelo menos alternativas de solução-as-
similação) predeterminadas25 —... e que esta (a presente!) só pode
ser levada a sério se nos expuser aos riscos (imprevisíveis) de uma
interrogação radical. Ao ponto de devermos reconhecer que discutir
a possibilidade de uma perspectiva interna passa a ser agora inter-
pelar (não poder deixar de interpelar) a inteligibilidade-continui-
dade de uma certa criação cultural e do projecto de demarcação
humano/ inumano que lhe corresponde... ou porventura mais do
que isso, arriscar na renovação recuperadora de um certo contexto
(e do mundo humano que este constrói, condiciona e determina).

Que desafio é este... que se cumpre, como acabámos de ver, em nome da reci-
procidade constitutiva da dimensão intencional e da dimensão da realização? Na
nossa circunstância presente não será já só nem principalmente aquele que nos
incita a rejeitar em bloco a frente de reinvenção jusnaturalista (e os seus rastos,
mais ou menos persuasivamente defendidos)...
Isto na medida em que nos impede de conceber a validade pres-
suposta como um núcleo de significações pré-determináveis em
abstracto, reconduzíveis a uma “universalidade intencional” au-
tossubsistente — uma universalidade que pudesse (re)conhecer-se
antes (ou pelo menos independentemente) da sua realização con-
creta (e como um “modelo absoluto” desta realização)26...

Porque é antes e sobretudo aquele a que a exigência de um pensamento in-


tegralmente prático — livre do primado de um qualquer discurso teorético… e
então e assim apto a habitar um palco dominado pela tensão irredutível entre pre-
tensões de pluralidade discursiva e de unidade intencional27 — explicitamente

25 Acentuar esta predeterminação não significa evidentemente ignorar as “feridas” que a frente da Allgemeine
Rechtslehre abriu e a produtividade com que tais feridas vieram a ser assimiladas! Uma dimensão esta
que procurei explorar em “Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria”, In: ALVES, João Lopes et al.,
Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, op. cit., pp. 261 e ss.
26 Ver muito especialmente CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da filosofia do direito no contexto da
crise global da filosofia, op. cit., pp. 37-52.
27 Num outro texto, complementar deste [“Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em
espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema” (a publicar em breve)] — apresentado também
num encontro em torno de Castanheira Neves (Porto, Universidade Lusófona, 5 de Novembro de 2009)
—, a consideração dos problemas do mundo e do pensamento prático (no seu contexto global) alarga-se a
outras tensões (de que aqui não tratamos directamente): refiro-me ao contraponto dogmático / crítico (ao
problema de uma normatividade crítica), mas também ao contraponto juridicidade / moralidade.

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nos submete. Tensão ou tensões estas que nos obrigam a enfrentar o círculo va-
lidade /realização acentuando (hipertrofiando!) factores e representações que o
tornam particularmente vulnerável? Podemos concluir que sim. Não tanto por-
que se trate de admitir que os problemas a ter em conta se nos exponham ilu-
minados (amplificados) pela vertigem de uma configuração patológica (e pelo
traço grosso que esta exige) quanto porque se trata de reconhecer que a tensão ou
tensões em causa só nos atingem (e só se tornam enquanto tal experimentáveis)
se levarmos a sério uma situação-limite. Ora uma situação-limite de interpene-
tração e de incorporação recíproca, se não mesmo já de “oposição em ninho” (a
nested opposition is a conceptual opposition where the opposed terms “contain
each other”)28. Uma situação na qual o sofrimento-solidão provocado pela frag-
mentação e pela incomensurabilidade — eventualmente também pelo abismo
sedutor de uma discursividade em degraus, infinitamente prosseguida (e pela
vertigem de incomunicabilidade que esta agrava) — se torne indissociável da
procura de uma “intercompreensão na existência”29 (de uma exigência de comu-
nicação que não seja apenas de “entendimento para entendimento” ou de “espíri-
to para espírito”... mas de “existência para existência”30). Ou se quisermos, uma
situação-limite na qual a celebração (-consagração) prescritivamente feliz da plu-
ralidade (por uma vez livre da nostalgia da unidade perdida) se deixe permanen-
temente (mas nem por isso menos paradoxalmente!) ferir pela urgência de uma
cooperação (material!) entre experiências e formas racionais31. Uma situação-
-limite que — já mergulhando no universo específico do direito — nos autorize
a mobilizar a vocação integradora da intenção à validade (e a força condutora
da sua perspectiva normativa) na mesma medida em que reconhecemos que as
resistências à univocidade de uma coordenação material se tornaram dimensão
constitutiva tanto das práticas de realização juridicamente relevantes quanto das
práticas que exteriormente as condicionam. O que é ainda e significativamente
perguntar —arriscarmo-nos a perguntar — se (e até que ponto é que) assumir um
diagnóstico-experiência de pluralidade não nos condena à celebração regulativa
correspondente (obrigando-nos a aceitar diversos caminhos e as autorreflexões
que os orientam e que simultaneamente estes constroem).

28 Estamos evidentemente a mobilizar BALKIN. “Nested Oppositions”, Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp.
1669 e ss. Para um esclarecimento da categoria, ver infra, nota 112.
29 A expressão (convocada embora explicitamente a propósito de Habermas) é de Castanheira Neves, “Uma
reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do direito?”.
In: Digesta, vol 3, p. 90.
30 Jaspers, op. cit., p. 26.
31 No sentido do processo de “cooperação material” entre “formas vitais” que a transversale Vernunft (Ver-
nunft als transversale Vernunft, Vernunft als Dimension der materiale Übergänge) de Welsch nos incita a
descobrir: ver exemplarmente Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora, 1991,
pp. 315-318 (“Transversale Vernunft und postmoderne Lebensform”).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

Acentuação que nos basta para esboçar um percurso reflexivo: um percurso


que nos obriga a frequentar uma espécie de território-pagus — partilhado por um
espectro diversificado de diagnósticos e (ou) pela experiência que os concerta
[1.] — ... antes de o submeter o contraponto pluralidade/ unidade a dois exercí-
cios de contextualização distintos: o primeiro a remeter-nos para uma compre-
ensão global da praxis e do mundo prático, que o é também já explicitamente
da communitas ou do regresso desta [2.]; o segundo a concentrar-nos no mundo
prático do direito e na abordagem interna que a sua renovação exige [3.].

1. O primeiro passo cumpre-se recolhendo (acumulando) os sinais de frag-


mentação (de perda de unidade) que afectam as práticas juridicamente relevan-
tes.... mas sobretudo permitindo que estes sinais se distribuam (se decomponham)
em três grandes núcleos de emergência. Sendo certo que se trata menos de identi-
ficar três desafios de organização diferenciados do que de reconhecer (e isolar ana-
liticamente) três veios temáticos imprescindíveis e as resistências que estes geram.
1.1. Que sinais? Os primeiros a ter em conta são seguramente aqueles que
recolhemos quando nos concentramos na experiência da reflexão académica…
— e nas “situações institucionais” (e modos de fazer sentido) que a cumprem:32
sinais que nos confrontam com a impossibilidade de uma linguagem única — se
não com a perda de uma linguagem-centro —, na mesma medida em que teste-
munham esta impossibilidade ou este descentramento invocando o processo de
erosão-Detruktion de um certo paradigma33... ou a circunstância prático-cultural
que declara esta superação irreversível34.

32 Estamos evidentemente a dizê-lo com Fish... e então e assim a identificar a reflexão em causa com uma “teoria”
ou cálculo teorético (theoretical calculus): entenda-se — no sentido (amplíssimo) que o Autor de Doing What
Comes Naturally nos incita a reconhecer —, como uma prática discursiva ou como um projecto interpretativo
que, invocando o significante direito ou as expectativas que o determinam (dizendo-se dogmática ou metodolo-
gia jurídicas, teoria ou filosofia do direito), tem por objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra
prática ou acervo de práticas (também elas iluminadas por uma pretensão de juridicidade). Para uma considera-
ção do problema do cálculo teorético em Fish (com as indicações bibliográficas indispensáveis), veja-se o nos-
so Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas? A caixa negra do pensamento
jurídico contemporâneo, Porto, edição do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, 2007, pp.16-21 (1).
33 Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória (Handwerkzeug) que
o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros formalisms (e rule con-
ceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo iluminado pelas sínteses
fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of classification de Langdell.
34 Trata-se de partir da circunstância de um pensamento que — sendo discurso e prática (acervo de discursos e
de práticas) — perdeu (superou) o seu modelo (sem o ter substituído por outro). Sendo certo que a experiência
a ter em conta é menos a da consumação de um discurso dominante do que a da reacção-resposta a esta perda:
uma reacção que terá multiplicado as propostas de compreensão do direito (e os projectos interpretativos que
as especificam), enquanto permite que as práticas-labours dos juristas e das comunidades dos juristas — e as
situações institucionais que as estabilizam — sejam disputadas por um espectro sem precedentes de possibi-
lidades (com horizontes intencionais e processos de racionalização inconfundíveis, se não incomensuráveis).

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α) Aqueles que identificamos “ouvindo” — mobilizando, na sua imediata


inteligibilidade semântica (mas também na sua integridade) — cada um dos
testemunhos que a academic house (tanto no plano dogmático como nas diversas
instâncias meta-normativas), está (estará) em condições de produzir.
Como se enfrentar o processo de “descentramento” do formalismo
normativista — a recondução deste à condição de uma perspecti-
va entre outras possíveis — significasse antes de mais recolher os
“sinais” que os seus interlocutores-oponentes iluminam... e estes
indissociados das decisões de relevância que os seleccionam35 e
dos “códigos” que os decifram e hierarquizam — se não também
já das concepções do direito que explicita ou implicitamente os
sustentam como testemunhos.36

Com um resultado global que nos atinge como uma justaposição ou como
uma soma (eventualmente como uma sobreposição-overlapping) de experiên-
cias autorreflectidas — cada uma delas a procurar reagir à ausência de uma
linguagem comum... e neste sentido também a escolher um caminho37...
β) E aquele que reconhece os sinais da fragmentação-divisão (e os rastos
com que estes nos ferem) considerando exclusivamente a pragmática destes tes-
temunhos — ou esta enquanto pressupõe, mas também enquanto reproduz, a
experiência inconfundível de um confronto (entre testemunhos rivais).
Não um confronto qualquer — que nos surpreenda apenas pela
frequência e intensidade dos seus lances e pelos “resultados” de-
vastadores que estes provocam (the loth of faith concerning the
availability of objective criteria, the intensification of the conflict
among the community of legal actors, the dissolution of any ge-
nuine consensus over important values38) —, mas um confronto

35 Que os reconstroem como condições-constrangimentos a ter em conta (entre outras condições-


constrangimentos)… ou que os responsabilizam como materiais-recursos de um diagnóstico autónomo…
36 E então e assim acumular distintas “representações” do interlocutor-oponente “formalismo jurídico”: per-
ceber que a máscara deste interlocutor convocada pelo Rückgriff auf “Werte” de Esser (enquanto defende
uma perspectiva sistémico-dogmática dos Wertkonzense juridicamente relevantes) acentua traços comple-
tamente distintos daqueles que o “programa construtivo” de Unger (ao defender um uso puramente instru-
mental, politicamente comprometido, do jurídico) nos estimula a reconhecer — percebendo também que
são ainda outros traços (no limite do incomensurável!) aqueles que o teleologismo tecnológico de Hans
Albert e que a realistic pragmatic indeterminicy thesis de Anthony D’Amato desenham quando pretendem
identificar tal interlocutor.
37 Experiência paradoxal esta, enquanto nos condena a recolher-decifrar os sinais de fragmentação ou de
perda de unidade nas vozes que pretendem assimilar-superar tais sinais e constituir-se como alternativas
totalizantes. É este um paradoxo que considerei menos esquematicamente em “Jurisdição, diferendo e “área
aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?”, In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, volume IV, 2010, pp. 443-477.
38 ROSENFELD, Michel. “Deconstruction and Legal Interpretation: Conflict, Indeterminicy and the Tempta-
tions of the New Legal Formalism”, In: CORNELL, Drucilla; ROSENFELD, Michel; CARLSON, David
Gray (Ed.). Deconstruction and the Possibility of Justice. New York/London: Routledge, 1992, p.152.

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que acaba por condicionar as respostas (e por interferir nas princi-


pled solutions que estas propõem). Enquanto e na medida em que
ameaça perverter o cálculo teorético: um cálculo que tenderá as-
sim a esquecer a prática-alvo a que naturalmente se dirige… para
a substituir por outra — precisamente aquela que sustenta os teste-
munhos rivais (e estes como outras tantas principled solutions). O
que não é senão correr o risco de mobilizar discursos (e intenções
conformadoras)... que se alimentam menos dos problemas que pre-
tendem enfrentar (ou converter) do que das críticas que dirigem
aos outros discursos.
O risco de condenar a reflexão académica à confidencialidade (se
não privacidade acroamática) de uma comunidade de vanguarda
(e à experimentação da pluralidade que esta está em condições de
prosseguir)? Antes o de a fechar sobre si própria, sem que esta
clausura nos poupe no entanto ao ruído intenso que a dinâmica do
seu conflito interno provoca. O risco de a entregar a uma vertigem
autorreferencial? Também o de a incitar a produzir a cadeia de dis-
cursos e metadiscursos que alimenta esta vertigem39: como outras
tantas pretensões de racionalização que, dirigindo-se (as conclu-
sions-claims) às práticas (de realização) do direito, só conseguem,
no entanto, enfrentar-assimilar os problemas dessas práticas indi-
rectamente, enquanto se interpelam umas às outras como discursos
ou enquanto desconstroem reciprocamente os argumentos que as
sustentam (enquanto renunciam, mais ou menos explicitamente, à
vocação-destino de uma reflexão prático-normativa). Como se se
tratasse afinal de preservar uma intenção conformadora ou de optar
por uma das modalidades de determinação (normativa ou descons-
trutiva) que esta oferece, sem descobrir no entanto o caminho que
a(s) possa projectar directamente nas práticas-alvo (e na law in ac-
tion que lhes corresponde). Ao ponto de o sucesso obtido por este
espectro de vozes inconciliáveis se reduzir paradoxalmente a um
efeito de multiplicação de possibilidades equivalentes40...

39 Com o alcance que o diagnóstico (conjunto) de Levinson e de Balkin nos permite reconhecer: “[There is
an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that is about other legal scholarship,
rather than about primary legal materials like statutes and cases. Legal scholarship becomes an increas-
ingly self-contained, self-referential discipline, which is “about itself” as much as it is about the legal
world outside, either law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and
economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship to the work of
lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification. Legal interpretation is replaced
by legal theory, which is replaced by meta-theory, which is replaced by meta-meta theory, and so on…”
(LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack. “Law, Music and Other Performing Arts” (1991), University of
Pennsylvania. Law Review, vol. 139, 1991, p. 1652).
40 Um efeito que nos expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não impotência) dos
discursos teoréticos, na mesma medida em que entrega estes — enquanto desfazem e refazem a urdidura-
-trama que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O jogo que Duncan Kennedy
denuncia enquanto surpreende o movimento perpétuo dos discursos que recriam (positivamente) a pre-
tensão de neutralidade do julgador (how judges can and should be neutral). “ There is no extant theory
that threatens to end the current ideological conflict abut method by compelling a consensus about how

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Como se se tratasse por um lado de descobrir os “sinais”-problemas a ter em


conta nas — e através das (e de cada uma das) — reacções-respostas que se lhes
dirigem (ou no diagnóstico que explícita ou implicitamente estas pressupõem e
constroem) [α]... e de por outro lado reconhecer como problema o contraponto-
confronto destas respostas e o diferendo que estas geram [β].
1.2. O núcleo que se segue continua a confrontar-nos com a impossibilidade
de uma linguagem única. A pluralidade com que nos atinge é no entanto outra,
como outros são de resto os seus sinais. Se o percurso anterior nos expôs a uma
pluralidade de linguagens enquanto contraponto-confronto (semântica e pragma-
ticamente relevante) de vozes possíveis... — e de vozes que (conduzidas por uma
reflexão metanormativa) assumiam como tarefa procurar-prescrever exigências
de sentido e de realização (se não modelos de racionalidade… e esquemas me-
tódicos) comuns a todo o território do direito (que todos os discursos-práticas
que mobilizam o significante direito pudessem ou devessem partilhar)41... —, o
plano que agora nos importa descobre essa pluralidade distinguindo (separando)
grupos ou pequenas comunidades (experimentando um imediato processo de
separação-distribuição)… e então e assim permitindo que cada uma daquelas
práticas-discursos (sem excluir as que a academic house reúne) nos apareça —
enquanto tarefa e na imanência desta (ou da autorreflexão que a conduz) — vin-
culada a uma (determinada) experiência colectiva.
Experiência colectiva que as noções de grupo semiótico e de comunida-
de interpretativa (comprometidas embora com horizontes de compreensão in-
confundíveis42) nos ajudam a reconhecer. A primeira enquanto identifica um
“sociolecto”-território e a institucionalização de “correspondências” e “seme-
lhanças” que este defende — na mesma medida em que responsabiliza estas

judges can and should be neutral. Indeed, the current multiplicity of contradictory theories of neutrality
seems a powerful, though of course not conclusive refutation of all of them. I am an admirer of their work
of mutual critique. I endorse Dworkin’s critique of Richard Posner along with Andrew Altman’s critique
of Dworkin and Fiss’s doubtless forthcoming critique of Altman, and Posner’s critique of Fiss (if there is
one) and on around the circle. This is not musical chairs but more like a game of “Penelope”, in which each
writer simultaneously weaves his own and unweaves other’s work…” [KENNEDY, Duncan. A Critique of
Adjudication (fin de siècle). Cambridge Mass., Harvard University Press, 1997, p. 91, itálicos nossos].
41 Vozes que assumiam esta procura enquanto discutiam a possibilidade-impossibilidade de um paradigma-
centro… ou pelo menos, a oportunidade de reconstruir-propor (de determinar prescritiva e empiricamente)
uma canonicidade profunda (the background strucures of “law-talk” that shape conversation within and
concerning the law (…) including (…) characteristic forms of legal argument, characteristic approaches
to problems, underlying narrative structures, unconscious forms of categorization, and the use of canoni-
cal examples): assim em “Legal Canons: an Introduction”. In: BALKIN; LEVINSON (Ed.). Legal Can-
ons. New York, 2000, pp. 5, 14-24 (“Deep Canonicity”).
42 A primeira associada à gramática narrativa de um semiotic turn (susutentado na teoria do significado de
Greimas), a segunda vinculada ao convencionalismo pragmático de Fish.

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por uma “rede limitada de comunicação” e pela construção interna (inconfun-


dível) de uma pretensão de juridicidade (The sense of the expression the “law”
is constructed internally, and separately, within the discourse system of each
group: what is common is the signifier, the expression, not the signified, its me-
aning. Each semiotic group operates with its own system of semantic values, its
own system of meanings43). A segunda enquanto especifica tais correspondências
ou as actualizações contínuas de significado que estas prosseguem: por um lado
para as comprometer como critérios (mais ou menos explícitos) de “correcção
profissional” e com as rotinas que estes (enquanto projectos interpretativos) es-
tabilizam; por outro lado para acentuar a dinâmica de continuidade e de trans-
formação que distingue (que autonomiza) estes projectos — uma autonomia-
-distinctiveness que só a inteligibilidade retórica, internamente assumida, de um
exercício profissional, na persistência exemplar do território-círculo que suas
tarefas constroem, está (estará) em condições de sustentar (as if ploughing over
the same ground in ever deeper furrows44).
Seja como for, uma pluralidade de linguagens — melhor dizendo, de códi-
gos linguísticos e extralinguísticos — que corresponde a uma multiplicação de
“situações institucionais”, de projectos de realização, de materiais canónicos, de
processos de textualização-retextualização, de regras de procedimento, de inten-
ções de leitura, de destinatários e auditórios potenciais (se não de temas-proble-
mas, de materiais-objecto, de canais expressivos)... e ao cruzamento inevitável
destes, em todas as arenas da praxis — com expectativas e soluções de equilíbrio
distintas, elas próprias em conflito.45
Uma multiplicação-separação que nunca terá deixado de condicionar a ex-
periência dos juristas46… e que no entanto atinge especialmente a nossa circuns-
tância. Como uma intensificação das divergências provocada pela opacidade
crescente dos grupos e das comunidades envolvidas… se não potenciada pe-

43 JACKSON, Bernard S. Making Sense in Jurisprudence. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1996,
p. 346. Para uma consideração do problema da especificidade dos grupos semióticos juridicamente rele-
vantes (num diálogo com Greimas, Landowski e muito especialmente Jackson), veja-se o nosso Entre a
reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença. Coimbra: Coimbra Editora,
2001, pp. 582 e ss., 592 e ss., 610 e ss.
44 Ver supra, nota 22.
45 “[An] increasing divergence in canon construction among (…) sociolegal (…) groups may be a sympton of
an increasing differentiation in purposes among academics, lawyers, and judges (in addition to the profes-
sional differentiation that has always existed between lawyers and citizens). Each interpretative community
may have its own canon (or set of canons), and although these canons surely overlap, they may also diverge
in particular respects…” (BALKIN; LEVINSON. “Legal Canons: an Introduction”, op. cit., p. 11).
46 E que continuaria a condicionar-nos na sua insuperabilidade… ainda que admitíssemos que uma das vozes
em diferendo na academic house conseguiu finalmente impor-se às outras (e preparar o terreno para um
novo discurso dominante).

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los diagnósticos que se lhe dirigem e pelos meios-recursos que este mobilizam
(no limite também por um horizonte compreensivo sensível à pluralidade dos
contextos e das convenções performativas, se não mesmo à multiplicação dos
usos… e dos usos que constroem sentidos)? Não será difícil reconhecê-lo. Sem
esquecer no entanto um outro problema. O das ameaças que hoje se dirigem à in-
tegridade destes grupos e micro-grupos. Ameaças que comprometem a unidade
dos sociolectos e dos cânones profissionalmente mobilizáveis e a plausibilidade
das situações institucionais que estes garantem (se não a clausura que sustenta os
respectivos instrumentos de persuasão e a relação com os auditórios que estes
pressupõem). Antes porventura de imporem a fragmentação do projecto inter-
pretativo e das finalidades que o iluminam47. Ameaças que, como vemos, tornam
esta experimentação da pluralidade vulnerável à primeira. Como se os grupos
e micro-grupos em causa, preservando embora a identidade que os fecha uns
perante os outros, se nos expusessem enfim atingidos pela impossibilidade de re-
construir (teoreticamente) um projecto integrante e pelo contraponto-confronto
das vozes que pretendem reagir a esta impossibilidade — vozes que, como sabe-
mos, partem exclusivamente de um destes grupos...
Acentuação no entanto que não nos obriga a reconhecer um fogo unilateral
— desencadeado-desferido apenas pela academic house —, que antes nos incita

47 Como se tivesse deixado de fazer sentido falar por exemplo do modus operandi e dos procedimentos ca-
nónicos que distinguem (em bloco) a comunidade ou o grupo semiótico dos advogados, impondo-se-nos
antes reconhecer que as situações de leitura e que os processos de racionalização permitidos devem ser
hoje distribuídos (divididos) por um espectro de concepções possíveis e pelas “imagens” que lhes corres-
pondem. Imagens que nos expõem à(s) herança(s) do bad man de Holmes e às possibilidades (pluralmente
assumidas) de reconstituir empírico-explicativamente a sua estratégia-jogo (e a situação de incerteza com-
petitiva que o justifica)… na mesma medida em que — numa zona de fronteira alimentada pelas seduções
contrapostas das frentes law as science e law as politics (dos Progressive Legal Realists e dos Radical
Legal Realists, da Law and Economics Scholarship e dos critical scholars) — nos oferecem modelos de
escolha racional mais ou menos determinados (e a projecção operatória que os assimila). Imagens ainda
que nos obrigam a mergulhar no debate individualismo/comunitarismo: porventura para (com James Boyd
White) reconhecermos as “situações de leitura” (se não mesmo as formas de vida) dos advogados Euerges
e Euphémios — o primeiro comprometido com um certo pluralismo individualista (“liberal” latissimo
sensu), o segundo a assumir uma explícita vocação comunitária (e a “cultura retórica do argumento” que a
torna possível).
Imagens que se multiplicam… se quisermos considerar as “situações institucionais” do julgador, exigindo
agora que (entre muitos outros exemplos possíveis) se reconheçam (se demarquem) os territórios-projectos
do juiz administrador (consagrado pelo Estado Providência) e do juiz-”centro do sistema” (justificado
pela reprocessualização pós-instrumental), do juiz político do grande consenso constitucional (táctico
comprometido com uma grande estratégia material) e do juiz (ou juízes) da comunidade dos princípios…
sem esquecer decerto aqueles que vinculam o julgador a um critério de maximização da riqueza ou que o
responsabilizam por uma estratégia política alternativa… mas também aqueles que o incitam a convocar
o exemplum da ética da alteridade (se não a mergulhar num continuum “prático-poiético”). Para uma re-
constituição deste espectro com um número muito mais alargado de interlocutores, vejam-se os nossos “A
representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o “testemunho” crítico de um “diferendo”?” e “Ju-
risdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?”, op. cit., passim.

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a explorar um círculo de experiências partilhado por esta (enquanto feixe de


discursos “dirigidos” a outros discursos) e por todas as suas potenciais práticas-
-alvo. Na mesma medida em que justifica a autonomização de um último núcleo.
1.3. Um último núcleo… no qual a pluralidade emerge directamente deste
círculo de experiências interdiscursivas e da reciprocidade constitutiva que as
estimula? Importa admiti-lo. E desde logo porque os “sinais” que este núcleo
aglutina, interferindo directamente com os dois núcleos anteriores (ou com uma
dimensão que lhes é comum e que até agora silenciámos), atingem significativa-
mente — como outras tantas ameaças-desafios — todos os discursos justificados
por uma pretensão de juridicidade e (ou) os territórios que estes defendem (e isto
independentemente de os podermos ou devermos isolar como discursos teoréti-
cos ou como discursos-alvo48).
Como ameças–desafios? Antes como uma frente pluridimensional de hetero-
-referências — com arenas propulsoras que poderão ir da política à filosofia,
passando pela economia, pela ciência e pela ética (e por uma ética que, ora sub-
metida a um esforço de “trivialização” e “tecnicização”49, ora ocupada com a
reinvenção de um novo horizonte de sentido, se impõe cada vez mais como uma
“alternativa” ao direito50). As hetero-referências que se impõem às decisões ins-
titucionalizadas nas periferias (do legislador e da autonomia privada)51... mas

48 Mantendo-se a distribuição de Fish apenas como um meio expressivo (sem as implicações que o Autor lhes
atribui).
49 Neste sentido, cfr. Fernando Araújo, “Pontos de interrogação na filosofia do direito”, Revista de Direito e
de Estudos Sociais, ano XLVIII (XXI da 2ª Série), nos 1-2, 2007, pp. 148-149 (34.).
50 A ética suportada por uma política, se não por um processo de politicização permanente (e a exigir uma
espécie de continuum prático): neste sentido (invocando o problema das alternativas ao direito assumido
por Castanheira Neves e sustentando a possibilidade de reconhecermos uma quarta alternativa, precisa-
mente a da ética, com frentes de reinvenção muito distintas, que poderão ir da ética das virtudes comu-
nitarista à ética da alteridade da Desconstrução, passando pela(s) ética(s) do continuum das espécies),
cfr. o nosso “O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida”, Themis — Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, VIII, n. 14, 2007, p. 50, nota 165 [remetendo
para “A ética do continuum das espécies e a resposta civilizacional do direito. Breves reflexões”, Boletim
da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra, 2003, pp. 197 ss., 214-215 e “O logos da juridicidade sob o
fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law as literature, literature as law)
à analogia com uma poiesis-techné de realização (law as performance)”, Boletim da Faculdade de Direito
LXXX, Coimbra, 2004, op. cit., pp. 65-66, 132-135]. Para uma consideração do problema (acentuando
a importância de reconhecermos limites ao direito como “corolário” do “sentido da sua autonomia”), ver
muito especialmente CASTANHEIRA NEVES. “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva
do futuro”, op. cit., pp. 69-81 (III., 1.) e “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, op. cit., pp. 27-28
(V.2. “Os limites do direito”).
51 Com o sentido que Luhmann sustenta, enquanto nos ensina a descobrir a “forma de diferenciação inter-
na” (autopoieticamente construída e assim livre de qualquer “conotação hierárquica ou orgânica”) que
convoca o sub-sistema judicial para o centro do sistema. Uma forma de diferenciação que, mobilizando
a proibição da denegação da justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual todo o sistema
aparece afinal implicado), garante às decisões judiciais — em confronto com as decisões dos legisladores

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também aquelas que condenam a dogmática (se não todo o Juristenrecht) a as-
similar teleologias alheias (acompanhando assim um direito que, no seu ímpeto
regulatório, se pulveriza em muitos direitos52). Ou ainda aquelas que — indepen-
dentemente dos movimentos académicos que as mobilizam — se expõem nas
práticas dos movimentos sociais e nas identidades narrativas que as sustentam
(o género, a raça, a orientação sexual, a militância religiosa, a construção de uma
identidade ambientalista). Sem esquecer aquelas que são favorecidas (quando
não construídas) por dinâmicas internas (a começar certamente pela hipertrofia
normativa da constitucionalização). Ou ainda aquelas que (no plano já da teo-
ria do direito) nos obrigam a discutir verdadeiros problemas de fronteira(s)53:
bastando-nos aqui e agora convocar os percursos exemplares (e exemplares tam-
bém pelo espectro que os distingue) do narrativismo comunitarista, da Law &
Economics Scholarship e dos Crits da “terceira geração”54 (incluindo a(s) Femi-

e com as decisões da autonomia privada — um muito maior “isolamento cognitivo” (o isolamento que
as impede de reconhecer nos “efeitos sociais” critérios juridicamente relevantes). “In der Peripherie wer-
den Irritationen in Rechtsform gebracht ― oder auch nicht. Hier garantiert das System seine Autonomie
durch Nicht-entscheiden-Müssen. Hier wird sichergestellt, daß das Recht nicht einfach als willenlose
Fortsetzung rechtsexterner Operationen fungiert. Das Zentrum bedarf dieses Schutzes ― gerade weil es
unter der entgegengesetzten Prämisse operiert. Deshalb arbeiten Gerichte, verglichen mit Gesetzgebern
und Vertragschlieβenden, unter viel stärkerer kognitiven Selbstisolation…“ (Das Recht der Gesellschaft.
Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1993, p. 322). Para uma consideração deste modelo centro / periferia, na sua
relação decisiva com o paradoxo constitutivo do sistema jurídico — um sistema jurídico que só poderá
garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua), ou se pelo menos não excluir a negação desta
autonomia (e com esta também a negação das convenções que a protegem) [Ibidem, p. 545] —, vejam-se
os nossos “A “abertura ao futuro” como dimensão do problema do direito. Um correlato do pretensão de
autonomia?”. In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Ed.). O direito e o futuro. O futuro do direi-
to, op. cit., pp. 397-412, e “Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die
Gerichte ein Sicherheitsnetz?”. In: SCHWEIGHOFER et al. (Hg.). Komplexitätsgrenzen der Rechtsin-
formatik. Tagungsband des 11. Internationalen Rechtsinformatik Symposions IRIS 2008. Boorberg Verlag,
Stuttgart, 2008, pp. 464-467 (1.).
52 É um dos factores do diagnóstico de crise desenvolvido por Castanheira Neves em “Uma reflexão filosófica
sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do direito?”, op. cit., pp. 78-79.
53 Com o alcance que David Howarth (insitindo nos mesmos exemplos de base) nos ajuda a reconhecer: ver
“On the Question ‘What Is Law?’”, Res Publica, n. 6, 2000, pp.264-275 (“Boundary Disputes and Con-
cepts of Law”).
54 A “geração” da fragmentação (concentrada nas identidades narrativas da perspectiva interrogante) que
Minda propõe como terceira geração [MINDA, Gary. Postmodern Legal Movements. Law and Juris-
prudence at Century’s End. New York/London: New York University Press, 1995, pp. 106 e ss., 123-127
(“Late-1980s Critical Legal Studies”)]. Uma sistematização-divisão esta que sempre seguimos no nosso
programa de Teoria do direito [ver Sumários Desenvolvidos (A), “As alternativas da “violência mística”
e da “escolha racional” — I. A Correcção Situada das Injustiças ou a Procura Frustrada de uma Violência
Mística?”. Coimbra, 2001-2002, polic., pp. 3 e ss.], que vemos também assumida por Ana Margarida
Gaudêncio [Entre o centro e a periferia: a perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e
da decisão judicial no Critical Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-
-Filosóficas). Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 3 e ss., 6 e ss. (Parte I) ] — e que não obs-
tante se distingue daquela que Günter Frankenberg propõe em “Partisanen der Rechtskritik: Critical Legal
Studies, etc”, In: BUCKEL; CHRISTENSEN; FISCHER-LESCANO (Hrsg.). Neue Theorien des Rechts.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

nist Jurisprudence(s), a Critical Race Theory, os Lesbian, Gay and Transgender


Legal Studies… mas também a Internal Network for Labor Law, a Postcolonial
Law Theory, as Third World Approaches of International Legal Studies...55).
Mais uma vez o problema parece ser o do paradigma perdido. Já não por-
ventura apenas nem principalmente enquanto ausência de uma linguagem-centro
(com a renúncia ao modelo de unidade que esta constituiria) mas como superação
(desagregação) de uma pretensão de autonomia — ou de uma pretensão de autono-
mia que, traduzindo-se numa perspectiva interior, pudesse assegurar uma autêntica
demarcação de fronteiras (unânime ou pelo menos dominantemente reconhecida).
Avaliação esta que se cumpre em três passos:
(a) pressupondo uma experimentação da autonomia vinculada ao discurso
jurídico iluminista e aos diversos fluxos que este alimenta, se não já con-
centrada na “representação”-paradigma do Método Jurídico — uma expe-
rimentação que circunscreva tal pretensão a uma defesa explícita de atri-
butos formais (implicados na autossubsistência estrutural do texto-norma
e na reconstituição dogmática ou dogmático-sistémica da unidade destes);
(b) associando a plausibilidade desta pretensão ao destino deste paradigma
(tornando-a componente indissociável deste)... e então e assim apresen-
tando-no-la como elemento-núcleo de uma concepção do direito entre
outras possíveis (aquela que os normativismos do nosso tempo estão em
condições de assumir);
(c) admitindo que o “descentramento” irreversível daquele Método e de ou-
tros rule formalisms nos condena a uma explosão de modelos (e de filtros
de relevância) alimentados por arenas exteriores56...
1.4. Admitido este diagnóstico-testemunho, urge voltar à pergunta que o
suscitou: como é que podemos compreender a vocação integradora da inten-
ção à validade (e a força da sua perspectiva normativa)... num momento (numa

Stuttgart: Lucius & Lucius, 2006, pp. 96 e ss. [autonomizando uma primeira geração mais próxima da
teoria do direito neomarxista, uma segunda a superar esta sob a influência de Foucault (mas também já
da crítica feminista) e uma terceira (que corresponde à segunda autonomizada por Minda!) a assumir o
literary turn desconstrucionista… sem esquecer depois (como que num quarto tempo!) a fragmentação e
os Post-Critical Legal Studies que esta abre…].
55 Ibidem, pp. 101-102.
56 Será inevitavelmente assim no entanto? Até que ponto com efeito (e com que necessidade) é que os
passos desta avaliação se nos impõem? Não dependerá a sucessão que constroem ainda integralmente
da compreensão da autonomia (do direito e do pensamento jurídico) que é assumida pelo formalismo
normativista... uma compreensão que a avaliação em causa pretende rejeitar (cuja rejeição pelo menos
diagnostica como irreversível)?

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circunstância) em que a experiência das práticas de realização juridicamente


relevantes parece opor-se à univocidade de uma autorreflexão condutora?
Mais do que repetir esta pergunta, trata-se porém de a reformular. E de a
reformular sem romper o continuum com o diagnóstico anterior: antes confir-
mando a resistência efectiva que a fragmentação dos discursos exerce... e ao
ponto de admitir que o problema que assim nos atinge possa ser directamente
confrontado com as intenções e exigências de unidade (se não integridade) da
resposta jurisprudencialista.
Reformular a pergunta nestes termos será por exemplo querer saber se (e até
que ponto é que) a nossa circunstância nos permite reconhecer um commune de
intenções autónomas às quais (a cujo horizonte de inteligibilidade) possamos
referir as práticas discursivas juridicamente relevantes — sendo certo que, para
evitar um ponto de partida comprometido com a antecipação de um qualquer
commune, se entendem por tais práticas aquelas nas quais o significante direito
é invocado com uma pretensão (pelo menos) identificadora. De uma forma mais
clara e rigorosa, tratar-se-á no fundo de perguntar se (e até que ponto é que) es-
tamos em condições de invocar um tal horizonte-referente e de o experimentar
— com alguma univocidade! —... quando é certo que o testemunho global de
que podemos (e devemos!) partir reconhece ao fim e ao cabo que tais práticas
— independentemente de as vermos reunidas no seu território partilhado [1.1.]
ou separadas em pequenos territórios e outras tantas redes limitadas de comu-
nicação [1.2.] — se nos expõem invariavelmente disputadas por projectos de
integração inconciliáveis… ou mais do que isso, mergulhadas num (feridas por
um) contexto prático hostil — um contexto no qual as pretensões de identidade
e de continuidade (mas também de autonomia) do projecto cultural do direito se
tornaram dificilmente compreensíveis (e como tal insusceptíveis de serem uni-
vocamente mobilizadas57) [1.3.].
Formulação que, no seu deliberado nominalismo (aquele que o continuum
com o testemunho-diagnóstico lhe exige), está longe de ser neutra… porque nos
aponta já um caminho. Não se tratando tanto de reforçar o paradoxo que atrás
reconhecemos — o de um encontro com a pluralidade (e mesmo com a fragmen-
tação) justificado como uma sucessão-acumulação de reacções-respostas inte-
gradoras (orientadas pela intenção de esquecer ou pelo menos de domesticar essa
pluralidade) — quanto de o tratar como um falso paradoxo e de assim mesmo
reafirmar a solução organizatória que leva pressuposta.

57 A não ser porventura quando se trata de, pela negativa, identificar o programa de autonomia-Isolierung do
normativismo e outros formalismos…

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

Que solução organizatória? Aquela que, ao condenar-nos ao patamar de um


diferendo entre vozes equivalentes — ao reconhecer-identificar o diferendo (e a
incomensurabilidade que o alimenta) nas vozes que admitem tê-lo superado e
nas respostas que estas propõem (e que encontram nos testemunhos rivais uma
prática-alvo privilegiada) —, nos leva a tratar a resposta jurisprudencialista
como uma resposta entre outras possíveis... — uma resposta com uma frente de
conclusions-claims selectivamente construída... e que como tal só faz sentido à
luz de determinadas opções ou códigos (mobilizando o sistema de valores se-
mânticos e o modelo de antecipação pragmática que estes pressupõem)58...
Uma solução organizatória também que, em nome do mesmo continuum
com a celebração descritiva e prescritiva da pluralidade, nos obriga a tratar a exi-
gência de unidade intencional assumida pela resposta jurisprudencialista e a sua
compreensão (integrada) do projecto humano do direito — bem como o propó-
sito de uma renovação recuperadora do sentido originário deste — como outras
tantas manifestações de uma pretensão-aspiração de inter-semioticidade: uma
pretensão que, em nome de uma intenção de unidade ou de coerência normativa,
se descobre assim constitutivamente repetida... e isto enquanto e na medida em
que se dirige (com expectativas diversas embora) a todas as práticas que o signi-
ficante direito identifica (ou a todas que ela reconhece enquanto tal)59.
Uma pretensão de inter-semioticidade entre outras possíveis? Importa acres-
centar. Sem esquecer que as outras a ter em conta são precisamente aquelas que
as outras vozes em diferendo (enquanto alternativas de compreensão da juridici-
dade) efectivamente manifestam, sempre que explicita ou implicitamente convo-
quem a categoria de inteligibilidade sistema jurídico (e esta como especificação
de uma representação ou de um projecto de unidade ou de coerência). Mas sem
esquecer também por fim que reconduzir estas intenções a meras aspirações de
inter-semioticidade significa ainda — perante a ausência de um significado uni-
vocamente (consensualmente) determinável, no limite também perante a impossi-
bilidade de invocar um referente exterior (objectivamente reconhecível) — estar
em condições de as tematizar (entenda-se, de as comparar e de as distinguir)...
apenas no plano dos significantes (ou da teia argumentativa que os articula)...

2. É só quando rompemos o continuum com o testemunho da pluralidade — me-


nos porventura para reconhecer a impossibilidade de uma perspectiva equidistante

58 Mas então também hipertrofiando factores-elementos em detrimento de outros (e submetendo as práticas


em causa a equilíbrios diferenciados).
59 Para o dizermos ainda com Jackson: ver supra, texto citado na nota 43.

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(metadiscursivamente legitimada) do que para resistir, com este reconhecimento,


às seduções de um pluralismo nomológico (e no limite também ao abismo de uma
indiferenciação hipertélica) — que conseguimos pensar uma alternativa às interro-
gações anteriores (e às dificuldades em que estas nos aprisionam) [1.4].
A primeira etapa para levar a sério a relação de compossibilidade entre pre-
tensões de unidade intencional e de pluralidade discursiva, vamos cumpri-la,
com efeito, introduzindo um filtro de relevância... e reduzindo (circunscreven-
do) assim o círculo das vozes protagonistas. Trata-se na verdade de mobilizar-
-experimentar já uma certa concepção da praxis e do pensamento prático — não
certamente por acaso aquela que a aposta jurisprudencialista (uma destas vozes!)
assume como um dos eixos determinantes do seu corpus (e dos pressupostos
culturais que o constituem)60... —, na mesma medida no entanto em que também
se trata de admitir que esta experimentação, ao deter-se num patamar de repre-
sentação global, possa ainda (et pour cause!) abstrair dos problemas de sentido
e das exigências de institucionalização que o mundo prático do direito especifi-
camente suscita (ou pode suscitar).
Abstrair do modo como os diferentes discursos que se dirigem a
este mundo específico — ou que encontram neste (ou numa orga-
nização deste) a sua prática-alvo (entre os quais certamente aquele
que corresponde à abordagem jurisprudencialista) — se relacio-
nam com o referido horizonte. Abstrair, se quisermos, das diferen-
ças que, logo aqui, as referidas vozes nos impõem.61

Mas então e assim... de mobilizar-experimentar já uma certa concepção da


praxis e do pensamento prático... convocando ainda (sobretudo) o horizonte de
inteligibilidade global (aberto pela segunda metade do século XX) que a torna
reflexivamente possível (se não exigível). Ora um horizonte que se constrói as-
sumindo a indissociabilidade desta praxis e do seu discurso. Uma indissociabili-
dade que só a mediação reflexivamente autónoma de um mundo-referente — en-
quanto contexto-ordinans dos sentidos culturais mobilizados e construídos pela
praxis — nos autorizará decerto a compreender e (ou) a experimentar.

60 Para uma exploração deste corpus da compreensão jurisprudencialista (enquanto núcleo de “pressupostos
fundamentantes”), ver CASTANHEIRA NEVES. Apontamentos complementares de teoria do direito —
Sumários e Textos, policop., Coimbra, 1998, (versão em fascículos) pp. 71-86, (versão em A4) 40-47.
61 Diferenças inevitáveis e imediatas… não só porque as referidas vozes pressupõem diferentes especifica-
ções deste horizonte global, mas também porque, como veremos, lhe atribuem um papel ou um contributo
distintos: num espectro de possibilidades que poderá ir da assimilação pura e simples (no limite de uma
transposição-projecção aproblematicamente unilateral do mundo prático global para o mundo prático do
direito) até à construção de uma conversação responsável, na qual o referido horizonte seja tratado como
o interlocutor indispensável de um diálogo possível (sendo o outro interlocutor precisamente aquele que
assume as preocupações e a identidade institucionalmente específica do universo do direito). Importando
antecipar que é nas oportunidades deste último pólo que se inscreve a resposta jurisprudencialista…

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

Tratando-se por um lado de iluminar uma praxis que, sendo nucle-


armente energeia — enquanto estabelece um parentesco constituti-
vo com as coisas que mudam, mas também enquanto se nos expõe
indissociável das acções e dos juízos em que se consuma... —, só se
nos revela intencionalmente (só se especifica como interacção hu-
manamente significativa) ao assumir-realizar esse mundo e ao expe-
rimentar-construir este como um contexto-correlato plausível — um
contexto assim mesmo inevitavelmente limitado e aberto, disponível
e indisponível (ou com diversos degraus de autodisponibilidade).
Tratando-se por outro lado de insistir no desafio de um pensamen-
to integral e autossubsistente problemático... ou se quisermos na
oportunidade (circunstancialmente única) de o levar a sério. Que
desafio? O de um discurso que, oferecendo-se-nos como teia-
-contraponto e como dinâmica de logoi, possa não obstante con-
tinuar a orientar-nos (e a ferir-nos!) como resolução antecipante
(vorlaufende Entschlossenheit62). Por outras palavras (capazes de
abranger outras respostas), o de um pensamento que esteja em con-
dições de acolher a situação-problema sem a diluir no processo re-
flexivo ou deliberativo (sem a domesticar como etapa-componente
do seu iter) ...antes exigindo que esta (na sua irrepetibilidade) o
atinja como prius metódico ou perspectiva-visée de uma analítica
plena (de uma analítica que se quer e se diz quase sempre interpre-
tação existencial63). Que oportunidade? A de retomar o curso de
autonomização da praxis-prattein aberto pela secularização aris-
totélica... ou mais rigorosamente, a de reconhecer que, se o ciclo
moderno-iluminista interrompeu (mais ou menos drasticamente) o
curso principal dessa autonomização, a possibilidade-urgência de
o retomar (ou de engrossar alguns dos seus fluxos subterrâneos)
cumpre-se hoje — tem vindo a cumprir-se desde a segunda metade
do século XX! — como uma exigência única de desafiar-recusar o
predomínio do teorético64 e de assim nos expor a um pensamento de

62 HEIDEGGER. Sein und Zeit. 18. ed. (reimpressão da 15ª). Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001, p. 310.
63 Ver infra, 2.2.3.1.1.
64 Decerto do teorético especulativo que fora alimentado pela virtude intelectual da sophia (e pela institucio-
nalização pré-moderna da conexão telos / êthos) — aquele que “neutralizava” as coisas da prática como
objectos. Mas também do teorético científico justificado pela hipertrofia da episteme… e pela sua apropria-
ção irreversível da technê — hipertrofia aquela e apropriação esta (diria Heidegger!) consumadas, se não
convertidas em metafísica, pela experiência da modernidade. Sem esquecer por fim aquele outro teorético
filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar esta a esquecer a sua “proveniência” — Herkunft e a
romper assim o vínculo constitutivo com a tópica (para invocarmos o diagnóstico de Bubner!), se apro-
priou da história para a dizer racional e se pré-determinar como método ou discurso do método (BUBNER,
Rüdiger. Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen Theorie der Rationalität. Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1990, p.9, 79 e ss., 88-96).
Para uma exploração do sentido desta filosofia prática em geral e da sua recusa do primado do teorético
em particular, “tanto do teorético filosófico como do teorético puramente científico”, ver CASTANHEIRA
NEVES. O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira versão, Coim-
bra/Lisboa, 1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22 e ss., 24-27.

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“imanência constitutiva”65. O que sem qualquer paradoxo significa


superar a tradição galilaica… sem ter que voltar à tradição aristo-
télica (ou à “teleologia virtualmente necessária” que a sustenta)66.

Importando ainda acrescentar que, se o nosso percurso nos leva a encontrar-


-reconhecer um território comum... — “livre” da ameaça do diferendo (e assim
construído ou dinamizado por verdadeiros litígios67)68 —, se trata menos de o des-
cobrir como convergência empiricamente corroborável69 do que de o reconstruir

65 Oportunidade que é assim a de construir um discurso ou um pensamento integral e autossubsistentemente


práticos. Um pensamento “de imanência constitutiva” (digamo-lo ainda com Castanheira Neves) [ibi-
dem, pp. 23-24] que, ao expor-se-nos como “filosofia prática”, possa, numa intenção “comprometidamente
“ascritiva” ou normativa”, corresponder a uma “reflexão crítica” (imanente) sobre os “momentos funda-
mentantes, regulativos e constitutivos” da praxis, na mesma medida em que, explicita ou implicitamente,
reconhece que o núcleo dessa reflexão imanente (na autocompreensão e na autodeterminação que esta
mobiliza ou na autotranscendência que intenciona) convoca como problema maior (explícita ou implicita-
mente assumido embora) o da validade dessa prática: o de uma validade que, sem poder contar com uma
pré-determinação autossubsistente das suas significações normativas, se mostre no entanto em condições
de superar a singularidade aleatória e a contingência.
66 “A compreensão da praxis até aos nossos dias tem sido dominada pelas “duas tradições” — na expressão
de Wright —, encarnadas respectivamente em Aristóteles e em Galileu. Depois que a praxis foi por Aris-
tóteles explicitamente diferenciada da theoria e da poiésis, sempre o pensamento clássico procurou o seu
sentido último — não obstante a sua imediata remissão, também por Aristóteles e pela tradição cultural
que sustentou, para a phronesis ou prudentia, que a tópico-retórica devia racionalizar — numa pressuposta
ordo ontológico-metafísica que lhe implicaria uma teleologia inferível de uma essencial causa finalis e
que na polis teria a sua directa mediação prática. Desta compreensão se alimentou, como se sabe, o jusna-
turalismo também clássico. Só que o homem moderno rompeu com ela em dois pontos decisivos: por um
lado, reassumindo-se na sua “subjectividade” (a subjectividade moderna), fica perante o mundo concebido
e experimentado só empiricamente, não perante o mundo de uma ordem ontologicamente definida e per-
feita, que à ciência matemático-experimental, fundada por Galileu, cabe conhecer e que o racionalismo
sistemático-axiomático consequente deverá totalmente determinar; por outro lado, reivindicando a sua
autonomia-liberdade contra ordens metafísico-transcendentes e integrantes, afirma o seu individualismo
acomunitário e dessolidário. (…) Diferente de ambos estes sentidos deverá ser o sentido actualmente com-
preensível da praxis. Nem estruturada por uma integração de transcendência ontológica e actuando uma
teleologia virtualmente necessária, nem referida à mera contingência dos fins da vontade e dos interesses
a submeter a um esforço de racionalização que potencie e controle a eficácia, mas pressupondo e manifes-
tando a intersubjectividade (a interacção) histórico-social em que se reconhece, simultaneamente, a refe-
rência a um contexto comunitário-culturalmente significante e a abertura de uma dialéctica concretamente
problemático-constituinte — aquela praxis, como inter-acção de sujeitos pessoais, que está sempre em
condição comunitária ou em contextual situação e continuamente supera essa situação…” [CASTANHEI-
RA NEVES. Apontamentos complementares de teoria do direito — sumários e textos, op. cit., (versão em
fascículos) pp. 79-81, (versão em A4) 43-45].
67 Para continuarmos a usar os recursos expressivos do binómio de Lyotard.
68 Um território que nos autorizasse antes de mais a reconhecer que a resposta jurisprudencialista não está
isolada e que há outras vozes que, partilhando um certo núcleo de pressupostos e de pretensões reflexivas
(mobilizando desde logo uma certa compreensão global da praxis), se cruzam com ela (ou que pelo menos
desenham traçados paralelos).
69 Invocar a procura deste território partilhado enquanto tal (e reconduzir o discurso de razões a esta exi-
gência) significaria com efeito permanecer fiel a uma abordagem externa e à contingência a que esta nos
expõe. Como se se tratasse de, em nome das intenções-warrants de um testemunho empírico (empírico-
-descritivo, se não empírico-explicativo), isolar como backing os “factos” de um consenso logrado (e da
convergência inter-semiótica que o sustenta)…

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

(e explicitar reflexivamente) como pré-compreensão culturalmente significante70


— se não já mesmo como condição (transcendental) de possibilidade (indissociá-
vel da inter-acção que permite ou do universo de sentidos que inaugura).
Que condição de possibilidade? Aquela que associa a compreensão renovada
da praxis e os seus desafios de institucionalização ao compromisso (se não à res-
ponsabilidade ou à virtude) de um regresso da comunidade... na mesma medida
em que (explícita ou implicitamente) exige que um factor de pluralismo ou de
pluralidade — pluralidade que será já menos a dos interesses, a dos fins da vonta-
de ou a dos programas ideológicos71... do que a das situações singulares de escrita
e de leitura, a dos percursos vitais, a dos casos-acontecimentos irrepetíveis, a das
perguntas circunstanciadas, a das narrativas72... — venha a conformar os pressu-
postos constitutivos deste regresso. Ora a conformá-los positivamente. Para que
a experiência desta diversidade — longe de poder (e de dever!) corresponder a
um diagnóstico de limites ou de constrangimentos (que de alguma forma impu-
sesssem resistências àquele regresso) — se nos ofereça antes, e em contrapartida,
como uma das suas dimensões — e uma dimensão imprescindível! Que dimen-
são? Aquela que, ao responsabilizar-se por uma argumentação aberta (e ao admi-
tir o prolongamento metadiscursivo de uma reflexão crítica), esteja em condições
de restituir ao compromisso de identidade comunitário-culturalmente significante
uma dinâmica permanente de renovação. Mas então também e ainda aquela que,
ao assegurar um contraponto logrado com uma não menos imprescindível (e ir-
redutível) dimensão dogmática (e a sua “lógica” de finitude e de clausura), nos
autorize a compreender que as intenções condutoras da praxis (intenções que,
referindo-se a um commune culturalmente reconhecível, permitem precisamente
experimentá-la como unidade!) se nos exponham enfim constituídas, explicitadas
e transformadas por essa mesma praxis (e pelas suas múltiplas instâncias).
Acentuação esta última que nos restitui às seduções do pensar em círculo... na
mesma medida de resto em que nos autoriza a descobrir nos eixos da communitas e
da societas dois pólos racionalmente irredutíveis de experimentação-assimilação
da pluralidade (e então e assim também a distribuir por estes pólos e pelos seus
projectos os diversos sinais, elementos ou factores de uma tal pluralidade).
Acentuação que nos sugere um percurso? Admitamos que sim. Um percur-
so que nos autorize a “situar” o regresso (se não regressos) da comunidade e

70 Uma abordagem que nos permite tratar a convergência empiricamente determinável e os seus resulta-
dos contingentes como manifestações-sinais (mais ou menos explícitos) desta pré-compreensão… e neste
sentido discutir na perspectiva desta (e do commune que antecipa) a plausibilidade e os limites de tais
resultados e dos consensos que estes asseguram.
71 A pluralidade assimilável pelo projecto da societas.
72 Aquela que só o projecto cultural da communitas está em condições de assimilar.

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

a propor um esquema de distribuição plausível [2.1.]... antes de exigir que os


lugares assim recriados sejam habitados por outras tantas vozes exemplares...
e pelas “representações” do mundo prático (e do mundo prático na experiência
do tempo) — todas elas de resto (não certamente por acaso) alimentadas pelas
possibilidades luminosas do círculo (ou do pensar em círculo)... — com que o
nosso horizonte prático-cultural mais eloquentemente nos interpela (ou conti-
nua a interpelar-nos) [2.2.].
2.1. Falar do regresso da comunidade no contexto desta recompreensão
da praxis significa evidentemente poder (dever) mobilizar o binómio socieda-
de / comunidade... e então e assim estabelecer-desenhar um contraponto entre
dois projectos culturais inconfundíveis. Projectos que, correspondendo a dois
modos de determinação da identidade colectiva, representam também afinal
duas faces típicas (irredutíveis) de um certo teleological turn ou da compre-
ensão que este hoje nos exige… mas também (e muito especialmente) duas
tentativas de responder à circunstância presente ou de enfrentar o pluralismo
que a caracteriza.
(α) De tal modo que o projecto da societas seja aquele que, permanecendo
fiel à narrativa de uma criação ex nihilo e ao homem desvinculado (“indepen-
dente de toda e qualquer tradição”73) que por ela se responsabiliza — se não
mesmo ao status naturalis e (ou) à original position (universalmente represen-
tados) que a tornam possível —, nos incita a descobrir na emancipação lograda
dos interesses e na equivalência (ou mesmo na comensurabilidade quantitativa)
dos fins — mas também na redução dos referentes (e dos critérios) materiais a
um acervo de afirmações de preferência (subjectivamente experimentadas) —
as coordenadas decisivas do seu problema (e da ordem que o assimila).74 Mas
então também aquele que encontra a resposta instituinte (capaz de hierarquizar
estes interesses, fins ou preferências) num processo-modelo de decisão — e no
artefacto sócio-político que legitima colectivamente esta decisão (e a cadeia de
decisões em que esta se integra).

73 “[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate themselves from
the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal, tradition-independent
norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and is the project of
modern liberal, individualist society…” (MACINTYRE. Whose Justice? Which Rationality? London:
Duckworth, 1988, p. 335)
74 “[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham reconhecido como
autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…” (CAS-
TANHEIRA NEVES. “A imagem do homem no universo prático”. In: Digesta — escritos acerca do
direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. vol. 1 Coimbra: Coimbra Editora, 1995,
pp. 327-328)

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

(β) Para que o projecto da communitas abra a nossa experiência (e as nos-


sas possibilidades de practical deliberation) à consideração de um horizonte de
integração (justificado pela referência a responsabilidades e compromissos prá-
ticos partilhados), na mesma medida em que defende (e explora) um dualismo
insuperável entre objectivos e bens (subjective goals v. human goods) ou entre
fins e valores75 — na medida pelo menos em que revela a importância de fins in-
comensuráveis, cada um deles prosseguido como um fim em si mesmo e a exigir
enquanto tal um acervo de especificações plausíveis (non-commensurable (...)
qualitatively distinct and separate (…) ultimate ends, [each one pursued] for its
own sake76). O que, no plano dos tipos da racionalidade, significa decerto mais
do que resistir ao eixo discursivo da episteme-technê ou da technê-episteme — e
com este à exclusividade e unilateralidade do projecto da societas (ou à possi-
bilidade de o tratar como uma etapa evolutiva historicamente insuperável) —,
porque significa já vincular a communitas à “tradição” de uma praxis-prattein
autónoma (logistikon bouleuesthain to praktikon dianoètikon)… e às virtudes
intelectuais que a distinguem — à actividade-energeia da phronesis e ao movi-
mento-kinésis da poiesis-techné77...
Que dizer no entanto das respostas que assumem esta segunda frente e os
seus desafios? Mais do que um overlapping de intenções distintas (alimentadas
por uma herança comum), dir-se-ia com efeito que estas respostas — e os pro-
cessos de desenvolvimento que elas asseguram — nos impõem antes um elenco
de possibilidades alternativas (cada uma delas com diversos caminhos). Possibi-
lidades e caminhos que poderemos distribuir por três eixos principais:

75 “Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que convoca a
prática para o desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação ou com-
promisso, os fins desvinculados pelo “mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão só
opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...), decerto sempre condicionados
por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles — comunga-se nos
valores, diverge-se nos fins e nos interesses...” [CASTANHEIRA NEVES. Teoria do direito (versão em
fascículos), pp. 154-155, (versão em A4), pp.85-86]
76 NUSSBAUM, Martha. “Virtue Ethics: A Misleading Category?”, The Journal of Ethics, vol. 3, 1999,
pp.179-188 (“The Anti-Utilitarians; Expanding Reason’s Domain”). As formulações citadas no texto en-
contram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta de Martha
Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins), veja-se o
nosso “Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?” In: TRINDADE, André
Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Org.). Direito & Literatura: Discurso,
Imaginário e Normatividade. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2010, pp. 269-306, muito especialmente
o ponto 4.2.1. (pp. 290-291).
77 Não sendo preciso acrescentar que se trata também de libertar estas virtudes (e os discursos racionais que
estas geram) do horizonte de inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem que só a “con-
templação” iluminada pela sophia (enquanto exigência de experimentar a articulação telos / êthos como
uma energeia autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em condições de garantir.

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(β)’ O eixo dominado pelas exigências do narrativismo comunitarista e pelo


holismo ético-prático que as sustenta, a impor uma abordagem nuclearmente
macroscópica (pensada na perspectiva da comunidade, ainda que comunidade
de pequena escala). Com caminhos que se dividem78 entre a reinvenção de uma
filosofia sapiencial de inspiração pré-moderna (compossibilitada com as experi-
ências da historicidade e pluralidade) e a exploração culturalmente reflectida do
liberalismo como tradição — se quisermos, entre comunitarismos tout court e
comunitarismos liberais ou liberalismos comunitaristas79 —... na mesma medida
em que conjugam distintas interpretações-articulações das exigências (e signifi-
cações normativas) imputáveis a uma comunidade de memória e a uma comuni-
dade de ideias (e à dialéctica que as integra e lhes faz corresponder horizontes
antropológico-existenciais inconfundíveis)80...
(β)’’ O eixo vinculado ao sentido mais estrito (e mais genuíno) da reabi-
litação da philosophia practica — precisamente aquele que faz corresponder
a autossubsitência efectiva desta filosofia (emancipada do primado integrador
da sophia e da colonização da episteme-techné) a uma preocupação com a au-
tonomia constitutiva da phronêsis e com a racionalidade sujeito / sujeito que a
distingue (sem esquecer que se trata assim também de evitar a ameaça de um
continuum com a poiesis!). Com caminhos que se mostram capazes de acolher
discursos de fundamentação material e de determinação procedimental... e que
assim mesmo nos aparecem exemplarmente distribuídos (quando não fragmen-
tados) pelos pólos — exigências da recontextualização hermenêutica e da pro-
blematização retórico-argumentativa81.
(β)’’’ O eixo enfim que nos compromete com as exigências de uma comuni-
dade-promessa e com a experiência microscópica que a determina, se não com

78 Cfr. a síntese destas “modalidades” ensaiada por Kurt Seelmann em Rechtsphilosophie. München, Beck,
3 ed. (ampliada), 2004, pp. 193 e ss. (“Kommunitaristische Gerechtigkeitstheorien”). Sem esquecer as
reflexões de Castanheira Neves em A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, op. cit., pp.92-96 (2).
79 Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes exemplares de MacIn-
tyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o nosso “Humanitas, singula-
ridade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do direito na “ideia” da Europa
das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista”, Dereito. Revista xurídica da Universidade de
Santiago de Compostela, vol. 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53 (3.4. e 3.5).
80 Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha Nussbaum), veja-se o
nosso “Imaginação literária e ‘justiça poética’. Um discurso da ‘área aberta’?” op. cit., ponto 3.2. (pp. 285-287).
81 Cfr. a síntese proposta por Castanheira Neves na Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra:
Coimbra Editora,1993, pp.70-78. Para uma reconstituição crítica das exigências da hermenêutica compreen-
siva como “filosofia prática” e como “método” (nos seus cruzamentos exemplares com o discurso jurídico),
ver ainda O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2003,
pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss. e A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia.
Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, op. cit., pp. 58-68.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

a inevitabilidade de um continuum prático — um continuum prático que sendo


energeia não o seja menos kinésis e aisthesis, e que assim mesmo nos condene
a renunciar a uma phronesis autónoma. Eixo decerto ainda mais (internamente)
diversificado do que os anteriores... e agora porque expõe a representação do sen-
tido (e as possibilidades da vocação integradora que o alimenta, se não a ordem-
-ordinans que o traduz) às seduções (concertadas ou divididas) de uma moralida-
de política, de uma estética do sublime e de uma ética da alteridade — a primeira
preocupada com o encontro tentacular dos efeitos de poder e de resistência e com
o “entrincheiramento de hierarquias” que suspende (ou vai suspendendo) o seu
movimento perpétuo (mas também e muito especialmente com a possibilidade
de o inverter), a segunda a mobilizar a experiência do juízo ao qual “só o par-
ticular é dado” para reconhecer a singularidade irrepetível de um momento de
sensação-aisthesis e exigir um discurso que liberte a phronesis do pensamento
prático (de um pensamento prático sustentado numa validade normativamente
vinculante), a última a reconhecer que o contexto-correlato da procura da relação
singular (na unicidade e incomparabilidade do seu dizer) se descobre enfim na
perspectiva (determinante) de um “Eu de responsabilidade infinita”.82
2.2. Reconhecido este tríptico [(β)’-(β)’’-(β)’’’] de representações-experiên-
cias do mundo prático enquanto comunidade — que o são também indissocia-
velmente da dialéctica comunidade /sociedade —, admitamos distribuir pelos
painéis assim esboçados algumas vozes exemplares.
Nem todas porém a reconhecerem que esta libertação (ou que pelo menos a
resistência lograda aos perigos desta vertigem) deva ser procurada na referên-
cia recuperadora a uma dimensão axiológica (e nos sentidos de validade que
esta está em condições de proporcionar ao problema da realização). Algumas
a admitirem que só um discurso contra os valores estará em condições de abrir
o caminho (com a mediação lograda de uma nova perspectiva ontológica)...
outras a procurarem a resposta na superação de uma racionalidade material ou
na construção de uma dialéctica horizontal (determinável numa racionalidade

82 Para uma exploração das principais linhas destas promessas de comunidade, vejam-se os nossos: Entre
a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, op. cit., pp. 92 e ss. e
181-211 (o contributo de Foucault), 221 e ss. e 462-507 (a estética do sublime de Lyotard); e “Auto-
transcendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi” (2004), Ars
Iudicandi. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves (Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, número especial), volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008,
pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também “O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com
Levinas e Derrida” (2006), Themis — Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
VIII, n. 14, 2007, pp.5-56 e “Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische) Reflexion über
das Recht. Betrachtungen zu Derrida” (2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie (ARSP), Band 93
/ 2007, Heft 1, pp. 39-66].

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procedimental). Algumas a recuperarem as ambições integradoras de uma visão


unitária e integral da racionalidade humana (justificável como sophia)... outras a
exigirem a superação de toda e qualquer ontologia e a entrega a uma nova ética.
Mas então e numa palavra, todas a assumirem a inevitabilidade de uma refle-
xão imanente... sem prejuízo de pressuporem ou de experimentarem diferentes
perspectivas do que esta possa ou deva ser. Com opções antropológico-existen-
ciais que não se limitam a exprimir diversos graus de estabilização do mundo
prático ou distintas sensibilidades à transformação... que antes traduzem com-
preensões e experiências heterogéneas...
Com as vozes inscritas nos painéis extremos do tríptico [(β)’ e (β)’’’] a mo-
bilizarem os desafios da pluralidade (ou da relação comunidade / pluralidade)
como um tema expresso. Com o painel central [(β)’’] a diluir este topos no pro-
blema da historicidade (e na experiência prático-existencial de uma historici-
dade constitutiva)... mas então também (e não certamente por acaso) a temati-
zar metadiscursivamente o sentido positivo do círculo ou do pensar em círculo.
Diferenças de acentuação que nos bastam para iluminar também distintamente
os painéis em causa… sugerindo-nos (justificando) um caminho possível... e o
percurso selectivo (muito selectivo!) com que agora nos propomos atravessá-lo.
2.2.1. Percurso que nos autoriza a iluminar o primeiro painel [(β)’] ouvindo
apenas MacIntyre e Boyd White.
2.2.1.1. Ouvindo MacIntyre… decerto para reconhecer a dinâmica da tradu-
ção e do exercício de traduzibilidade /intraduzibilidade que lhe corresponde —
num confronto entre possíveis tradições rivais que nos aparece justificadamente
privado de um patamar exterior83 —... mas sobretudo para surpreender o “núcleo
duro” de uma certa compreensão das virtudes (ou da reinvenção recuperadora
que esta leva a sério).84
É que este núcleo (mobilizado “contra a ideia universalista da virtu-
de no singular”85) cumpre-se desvelando três condições contextuais
de emergência (tão irredutíveis quanto inseparáveis). Com a primei-
ra a abrir-nos para uma experiência situada da communitas enquanto

83 MACINTYRE. Whose Justice? Which Rationality?, op. cit., pp. 349 e ss. (“The Rationality of Tradi-
tions”), 370-388 (“Tradition and Translation”).
84 After Virtue. A Study in Moral Theory (1981), op. cit. na segunda edição (com Postscript), London: Duck-
worth, 1985, pp. 204-225 (“The Virtues, the Unity of a Human Life and the Concept of a Tradition”), 272
e ss. (“The Virtues and the Issue of Relativism”).
85 “Nietzsche ou Aristóteles?”, entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre. In: BORRADORI. Conversa-
zioni americane, 1991, op. cit. na trad. portuguesa A filosofia americana. Conversações. São Paulo: Unesp,
1998, p. 203.

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ensemble de práticas particulares86 — com “bens” a concorrer na


sua ineliminável diversidade... — e a exigir assim que as virtudes
se nos exponham como “qualidades da mente e do carácter”87 (as
qualities necessary to achieve the goods internal to practices88).
Com a última a permitir-nos pressupor aquela communitas enquanto
tradição societariamente vigente, estabilizada numa acervo de pa-
drões de comportamento ou de representações do bem comum (the
stage which (...) relates [the virtues] (...) to the porsuit of a good
for human beings, the conception of which can only be elaborated
and possesed within an ongoing social tradition89). Com a segunda
enfim a garantir a mediação indispensável: a mediação (se não reci-
procidade constitutiva de significações e de sentidos) que só um per-
curso vital assumido na sua integridade (as a complete human life)
— e como tal narrativamente reconstituível como unidade (unitary
life-story, unity of narrative) — estará por assim dizer em condições
de sustentar90 (the stage which (...) considers [the virtues] (...) as
qualities contributing to the good of a whole life91).

2.2.1.2. Antes de ouvir de novo MacIntyre... na (ou através da) proposta de


Boyd White... agora numa especificação-projecção particularmente eloquente
(já construída a pensar no mundo prático do direito... ou pelo menos a propó-
sito deste!). Especificação esta que, não certamente por acaso, retoma todos os
núcleos temáticos a que acabámos de aludir: ora isto enquanto e na medida em
que os projecta logradamente numa certa compreensão-experiência do “conti-
nuum” praxis /poiesis.92
Como se se tratasse de aplacar as tensões em causa (praxis versus poesis)
assumindo a oportunidade de pensar os mundos normativo e cultural em função
do sujeito que os interioriza...
Um sujeito-intérprete que possa assimilar os critérios e (ou) que
responda aos estímulos de “sentido” (virtual ou efectivamente)
neles comunicados, mas também um sujeito-autor que, ao pres-
cindir das (ou ao desvalorizar as) diferenças que separam os mun-
dos em causa, reconcilie os respectivos procedimentos (e a “dia-
léctica” que os ilumina).

86 MACINTYRE. After Virtue, op. cit., pp. 273-274.


87 “Nietzsche ou Aristóteles?”, entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre, op. cit., p. 203.
88 MACINTYRE. After Virtue, op. cit., p. 273.
89 Ibidem.
90 After Virtue, op. cit., pp. 216 e ss.
91 Ibidem, p. 273.
92 Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Boyd White (e as indispensáveis referên-
cias bibliográficas), vejam-se os nossos Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o tratamento
narrativo da diferença…, op. cit., pp. 679 e ss., “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e
do pathos...”, op. cit., pp. 66-84, “Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-
-territorial”, op. cit., pp. 53-59 (3.6.) e ainda “Imaginação literária e “justiça poética”…”, op. cit., passim.

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O que, sem qualquer surpresa, há-de cumprir-se nas (ou pela mediação das)
narrativas que alimentam (e que acompanham ou que renovam como memória)
um certo percurso existencial irrepetível. Só que aqui como uma (ou como a
antecipação regulativa de uma) ontogenética totalizante: na qual mais do que a
aprendizagem importe reconhecer o cultus (mais do que o iter de decantação a
vis de reconciliação) das “virtudes intelectuais” envolvidas. Como se se tratasse
ainda… de hesitar — e de hesitar em termos constitutivamente irredutíveis! —
entre uma comunidade de histórias partilhadas (prolongada numa pragmática
narrativa também comum) e a comunidade-praxis de um certo cuidado-Sorge
(iluminada pelo compromisso ético da “tradução”).
Ao ponto de, na intensificação reflexiva da compreensão (como ati-
tude originária), se inscrever já (mas agora como resposta ou solução
apaziguadora) a celebração de uma escolha (que é sobretudo aquisi-
ção e aposta) antropológica — precisamente aquela que transmuta
o homem finito em cultor triunfante do argumento, o “destinatário”-
-vítima da contingência em “tradutor” circular e fecundamente au-
topoiético”, o opositor estratégico em Vernunftsperson93. Perspecti-
va que nos autorizará a inscrever os critérios pressupostos e os seus
possíveis programas de fins numa teia argumentativa dominada
pelo prius da “situação retórica”... e isto enquanto (e na medida)
em que convoca recursos-armas inconfundíveis:
(a) recursos que nos incitam a descobrir o “arquétipo” performa-
tivo da prática e do pensamento prático na pragmática do texto
narrativo … e então e assim a desvendar um universo-polis94 de
“situações institucionais” — um universo que não só é habitado
pela linguagem prática (da interacção e da criação) e pela lingua-
gem cultural do “saber” (e dos materiais e recursos pressupostos)

93 WHITE. Heracles’ Bow. Essays on the Rethoric and Poetics of the Law. Madison: The University of Wis-
consin Press, 1985, pp. 227 e ss, Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal Criticism. Chicago
/London: The University of Chicago Press, 1990, pp. 264-267 “The central image is that of autopoiesis,
the organism making itself in interaction with its environment. In the process both organism and environ-
ment change. There is no one way the universe is constituted, no ultimate ontology upon which everything
can be grounded. All species, all individuals, all languages and cultures and communities, are engaged
alike in a process of reciprocal change” (Ibidem, 266).
94 “What kind of community shall it be? How will it work? In what language shall it be formed? These are the
great questions of rhetorical analysis. It always has justice and ethics — and politics, in the best sense of that
term — as its ultimate subjects. (…) Like lawyers, literary readers are also members of community defined by
their shared interest in a set of texts, and whether they know it or not, both groups are always asking and answer-
ing the central question: what kind of community shall we be? (…) Many-voicedness; the integration of thought
and feeling; the acknowledgment of the limits of one’s own mind and language (and an openness to change
them); the insistence upon the reality of the experience of other people, und upon the importance of their stories,
told in their words — these values, implicit in this kind of reading (…) are all in fact essential to our own best
ideas of justice. They are political as well as intellectual and aesthetic virtues. And they are political virtues not
only in the reading and writing of law, but in the reading and writing of anything …” (Heracles’Bow…, op. cit.,
pp. 39, 79, 132, itálicos nossos).

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como impõe a estas linguagens uma assimilação (se não fusão)


irreversível (the community as (...) a group of people who tells a
shared story in a shared language95, the narrative as the arche-
typal legal and rhetoric form (...), as the archetypal form of human
thought in ordinary life96);
(b) recursos que culminam na representação de um contexto de
significação-limite — um contexto de significação que se nos im-
põe para além das possibilidades que as diversas comunidades
interpretativas nos oferecem… mas então também para além do
horizonte das expectativas civilizacionais.
Que contexto-limite? Aquele que corresponde à afirmação de uma
pragmática de tolerância? Antes aquele que justifica o cuidado-
-Sorge com o “diálogo intercultural” como uma (como a) concep-
ção da justiça hoje possível. E que assim se confunde (e se quer
confundir) com a opção ética do tradutor (justice as translation)97.

2.2.2. Saltemos depois para o terceiro painel do tríptico [(β)’’’], privile-


giando também uma sequência de vozes... e estas ainda (et pour cause!) como
especificações assumidas umas das outras... num traçado paralelo que, como
o anterior, nos vai aproximando do mundo prático do direito (ainda que não
nos aproxime certamente das especificidades que o autonomizam ou dos pro-
blemas que o distinguem). É que se trata de ouvir Levinas [2.2.2.1.]... antes de
o ouvir também (concertado embora com outras vozes fundadoras) através de
Derrida [2.2.2.2.]... antes de redescobrir este último na proposta correctiva de
Balkin [2.2.2.3.]!
2.2.1.1. Com um primeiro patamar a ensinar-nos que a experiência do mundo
prático se abre e se consuma numa interrupção fundadora. Uma “interrupção”
que só se pode oferecer e legitimar como “exposição”-tempo (condição de toda a

95 Heracles’Bow…, op. cit., p.172 “The law is a way of creating a rhetorical community over time (…): it is a
culture that makes us members of a common world. This culture is not reducible to rules, but it is objective, in
the sense that it can be found and mastered and in the sense as well that it cannot be disregarded or unilateraly
changed. Like the text produced by a single mind, the text produced by the culture has a genuine force and
reality notwithstanding its irreducibility to rules or to scientific “knowledge”…” (Ibidem, p. 98).
96 Ibidem, p. 175.
97 Os ensaios decisivos são agora os dois últimos capítulos de Justice as Translation: pp. 229 e ss. (“Translation,
Interpretation, and Law”), 257 e ss. (“Justice as Translation”). Para uma compreensão da tradução por um
lado como núcleo (metódico) de um interdisciplinary work possível, por outro como especificidade do huma-
nistic work, ver também From Expectations to Experience. Essays on Law and Legal Education. Michigan:
The University of Michigan Press, 1999, pp. 69-71 (V), 97-102 (II). “For whatever the merits of the social
sciences as methods for making and informing social policy, they cannot be applied to what is more distinc-
tive about what lawyers and judges actually do, which is to discover, determine, interpret and compose legal
texts (…). [Scientific] “methods” cannot simply be applied to the law, any more than its “findings” can. There
must be a process of translation (…) [which] is at heart compositional and literary, in fact a form of writing
(…). Humanistic work can thus be seen as a species of “translation”.…” (Ibidem, pp. 70, 102).

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comunicação possível) se e na medida em que nos restituir à gratuitidade (à ge-


nerosidade) extravagante de um encontro assimétrico com o Outro ao dizer sem
dito que o cumpre98 (le Dire (...) qui n’est pas compris comme dialogue mais
comme témoignage de l’infini à celui à qui infiniment je m’ouvre99).
O que é decerto mais do que procurar o humano — as dimensões
(“probabilidades”) humanas do eu — na “realidade excessiva”
(tão estranha quanto vulnerável) do Rosto do Outro-Autrui e da
expiação pelo Outro (l’absolument Autre, l’Etranger qui trouble
le chez soi).100 Porque é já encontrar tais “probabilidades” (dever
encontrá-las) no movimento-continuum de uma resposta ou de um
ciclo de respostas (heteronomamente solicitadas): no des-interesse
fundador (sem expectativa e sem reciprocidade) de um “Eis-me
aqui”,101 que se quer “um-para-o-outro” (le mot Je signifie me voi-
ci, répondant de tout et de tous102)... mas então também (e muito
significativamente) na irredutibilidade constitutiva de uma “rela-
ção ética” pura (rapport non-violent à l’infini comme infiniment-
autre, [rapport] à autrui, passage et sortie vers l’autre103).

98 Trata-se evidentemente de convocar o contraponto Dit/Dire desenvolvido por Levinas em Autrement


qu’être ou au-delà de l’essence. La Haye, 1978, Paris, edição de bolso Kluwer Academic, 2004, pp. 16-20
(“Le Dire et le Dit”), 55 e ss. (“Temps et discours”), 78 e ss. (“Le Dire et la subjectivité”), 162 e ss. (“La
récurrence”), 179 e ss. (“La substitution”), 188 ess. (“La communication”), 206 segs. (“Subjectivité et infi-
ni”). Com um dizer que corresponde à sucessão temporal do jogo das significações — enquanto exposição
ao Outro e condição de toda a comunicação (Dire, c’est approcher le prochain (…) en tant qu’exposition,
(…)[une] exposition qui a un sens radicalement différent de la thématisation) [Ibidem, pp. 81-83]. Com
um dito (mas também escrito) que submete aquele dizer a uma representação temporalmente reversível,
justificada pela simultaneidade de uma “identificação” — entenda-se, de um processo de determinação que
possa emprestar aos entes-étants uma “identidade de sentido” (l’identique n’a de sens que par le kerygme
du Dit) [Ibidem, p. 66; cfr. ainda a síntese exemplar de “Diachronie et représentation” (1985), Entre nous,
op. cit., pp. 165 e ss.]. De tal modo que possamos reconhecer naquele o tempo da ética da alteridade e
neste o da ontologia — mas também, o da prescrição autossubsistente e o da tematização-comparação
(introduzida pela tertialité do jurídico). Para um desenvolvimento (e outras indicações bibliográficas), ver
o nosso “O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida”, op. cit., passim.
99 LEVINAS. “L’extra-ordinaire de la responsabilité” (1976), Dieu, la mort et le temps. Paris, edição de
bolso Grasset & Pasquelle, 1993, p. 221. “Au Dire sans Dit, il faut une ouverture qui ne cesse de s’ouvrir
et qui se déclare comme telle. Le Dire est cette déclaration…” [“La sincérité du Dire” (1976), ibidem,
p. 223]. Esclarecimento este que se nos impõe para afastar o misunderstanding de descobrir na ética de
Levinas (ou na tematização que esta admite) uma possível (ainda que especialíssima) filosofia do diálogo
[“Rien ne serait pire que d’interpréter la pensée de Levinas comme une philosophie du dialogue…” (Ibi-
dem, p. 221, nota de Jacques Roland)].
100 “O absolutamente Outro é Outrem-Autrui (…), o Estrangeiro. (…) Não faz número comigo. (…) Eu (…)
sou, tal como ele, sem género. Somos o Mesmo e o Outro…” (Totalité et Infini. La Haye 1961, op. cit. na
tradução portuguesa Totalidade e infinito. Lisboa: edições 70, 1988, pp. 26-27)
101 Autrement qu’être, op. cit., pp. 156 segs. (todo o capítulo IV, intitulado precisamente “La substitution”).
102 Ibidem, p. 180-181.
103 A fórmula é já de Derrida, no primeiro grande estudo que consagra a Levinas (a partir do qual passa tam-
bém ele próprio a assimilar o contraponto Dit / Dire): Derrida “Violence et métaphysique”, L’écriture et la
différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967, p. 123.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

2.2.2.2. Com um segundo patamar a exigir por sua vez que este mundo prá-
tico nos fira na (e através da) convocação (reflexiva) de uma escrita primordial
(archi-écriture ou écriture première)104 e da violência assimétrica (irredutível)
que esta gera (urgence précipitative, violence irruptive, précipitation essentiel-
le105). Uma violência que se impõe a todos os discursos... agora enquanto subme-
te o sujeito descentrado (humilhado) pela linguagem à condição estruturante de
uma cadeia de “citações” (substituições) — e com esta à prioridade de um jogo
de reenvios entre significantes (ao qual nenhum significado escapa).
À inevitabilidade do contexto ou das práticas de contextualiza-
ção (there is nothing outside context106)? Antes à inevitabilidade
da “abertura indefinida de todos os contextos” (the finiteness of a
context is never secured or simple, there is an indefinite opening
of every context, an essential nontotalization107). Uma abertura que
nos entrega a uma específica “interpretação da interpretação” e à
aventura-acontecer a que os seus exercícios singulares nos sub-
metem: àquela “interpretação da interpretação” que (enquanto de-
constructive (...) pragrammatological (...) way of reading) se mos-
tre capaz de assumir cada um dos contextos de significação e de
realização possíveis, reconhecendo simultaneamente o pagus de
estabilidade-instabilidade que estes especificam — na mesma me-
dida em que se dá conta do movimento-trama (espacial e tempo-
ralmente indefinido) em que tal contextualização se integra e dos
limites (de estabilização e superação) que a condicionam (decons-
truction (...) [as] the effort to take the limitless context in account,
to pay the sharpest and broadest attention possible to context and
thus to an incessant movement of recontextualization108).

104 Archi-écriture (ou écriture première) que, como se sabe, pretende iluminar as pressuposições (de repeti-
bilidade-espaçamento e de temporalização-substituição-transferência) que são comuns à palavra escrita
(concept vulgaire d’écriture) e à palavra falada — na mesma medida em que nos ensina a escapar à hiper-
trofia da substância fónica e do système du “s’entendre parler” (e a denunciar a máscara-disfarce imposta
pela “concepção ocidental da linguagem): De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967, pp. 15-21, 82 segs.
105 Force de loi. Le “fondement mystique de l´autorité”. Paris: Galilée, 1994, pp. 59, 60. Recordemos que esta é
a terceira e a mais completa das versões que Derrida propôs para este ensaio. As duas anteriores versões (pu-
blicadas respectivamente em inglês e alemão) são Force of Law: The “Mystical Foundations of Authority”
(1989) e Gesetzeskraft. Der “mystische Grund der Autorität”, (1991). Para uma consideração das especifici-
dades que distinguem estas três versões (e um comentário desenvolvido à proposta que lhes corresponde”),
veja-se o nosso “Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita”, op. cit.
106 DERRIDA. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, Northwestern University Press,
1988, p. 136.
107 Ibidem, p. 137
108 Ibidem, p. 136. “The ties between words, concepts and things, truth and reference, are not absolutely
and purely guaranteed by some metacontextuality or metadiscursivity. However stabilized, complex, and
overdetermined it may be, there is a context and one that is only relatively firm, neither absolutely solid
(fermeté) nor entirely closed (fermeture), without being purely and simply identical to itself. In it there is
a margin of play, of différence, an opening; in it there is what I have elsewhere called “supplementarity”
(…) or “parergonality”(…). These concepts come close to blurring or dangerously complicating the limits
between inside and outside, in a word, the framing of a context…” (Ibidem, p. 151)

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Numa experiência da pluralidade que se objectiva num espectro de significa-


ções pragmáticas singulares — espacial e temporalmente (mas também agonisti-
camente) determinadas — e que assim mesmo, na sua “radicalidade elementar”
(als grundsätzliche Pluralität),109 nos atinge e nos fere implacavelmente como
diferença: uma diferença que sendo “espaçamento”-espacement constitutivo da
“exterioridade”-dehors (mas também distância e incomensurabiulidade) não dei-
xe nunca de se nos impor como temporalização e circulação-devir: como aquela
différence que é infinitamente produzida pelo movimento da différance110.
2.2.2.3. Impondo-se-nos por fim uma brevíssima alusão a Balkin111. A uma
proposta que, sendo responsável por uma das mais sugestivas interpretações do
processo de pensar em círculo (reflectida na categoria de inteligibilidade nested
opposition112), parte explicitamente de uma interpelação da validade comunitária

109 Com o alcance que a reconstituição de Welsch nos autoriza a reconhecer: cfr. Unsere postmoderne Moder-
ne, op. cit., pp 143 ss. (“Jacques Derrida oder Differenz und Verstreuung”).
110 Contraponto différence / différance que nos remete para a lição capital de “La ‘différance’” (1968), op. cit.
na tradução alemã “Die différance”. In: ENGELMANN, Peter (Hrgb.). Postmoderne und Dekonstruktion.
Stuttgart: Reclam, 1990, pp. 76 e ss. “L’archi-écriture (…) qui est origine de l’expérience de l’espace et du
temps (…), première possibilité de la parole, puis de la “graphie” au sens étroit (…), cette trace est l’ouver-
ture de la première extériorité en général, l’énigmatique rapport du vivant à son autre et d’un dedans à un
dehors : l’espacement. Le dehors, extériorité “spatiale” et “objective” dont nous croyons savoir ce qu’elle
est comme la chose la plus familière du monde, comme la familiarité elle-même, n’apparaîtrait pas sans le
gramme, sans la différance comme temporalisation, sans la non-présence de l’autre inscrite dans le sens
du présent, sans le rapport à mort comme structure concrète du présent vivant…” (De la grammatologie,
op. cit., pp. 96, 103, itálicos nossos).
111 Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Balkin (e outras referências bibliográficas),
vejam-se os nossos “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., pp.
84-135, “Recht als dramatische und musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?”. In: SCHWEI-
GHOFER; LIEBWALD; DRACHSLER; GEIST (Hrsg.). E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht.
Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9. Internationalen Rechtsinformatik Symposions
Iris Wien 2006, Stuttgart/München, Richard Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475 “Autotranscendentalida-
de, desconstrução e responsabilidade infinita”, op. cit., pp. 651-655, e ainda “… literária e “justiça poéti-
ca””, op. cit., passim. Ver ainda Ana Margarida Gaudêncio, Entre o centro e a periferia, op. cit., passim [e
a recensão de Cultural Software proposta no Boletim da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra 2003, pp.
847 e ss.]. Sem esquecer MOSSO, Breno Pena. A assimilação da desconstrução por Jack Balkin. Disser-
tação de mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, policopiado, Coimbra, 2009, passim.
112 “To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition is a nested opposition
— in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well as mutual differentia-
tion. (…) [T]he concept of an indefinite, rather than an infinite, responsibility better corresponds to the very
important relationship of mutual differentiation and dependence that must always exist between law and
justice…” [“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, Jack Balkin Home Page, disponível
em: <http: /www.yale.edu/lawweb/jbalkin>. Extraído em: 29/11/2000), op. cit., parte II, “A Responsibility
Without Limits”, ps. web 14 e 15]. Para compreender o sentido das nested oppositions e da teoria-grelha
que as sustenta — e desta (teoria) como uma das peças decisivas do tratamento (“instrumental”) da des-
construção (as normative transcendental deconstruction) proposto por Balkin (every conceptual opposition
can be reinterpreted as some form of nested opposition / a nested opposition is a conceptual opposition
where the opposed terms “contain each other” / the deconstructive concepts of différence and “trace”

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

e da autotranscendentalidade que a distingue… — se não mesmo de uma repre-


sentação (retoricamente desconstrutiva) do “fosso” ou da solução de continuida-
de “normativamente” relevante (as a normative chasm or gap) que separa (que
distingue) “valores humanos” (as transcendent values in an inchoate sense) e
“convenções culturais” (as immanent cultural articulations)113...
Reconhecendo que o “argumento” que defende a “existência de
valores transcendentes” (e destes enquanto “exigências” ou “as-
pirações indeterminadas”) se nos impõe como uma “condição-
-pressuposto transcendental” (a necessary transcendental precon-
dition) da possibilidade (prática) da compreensão moral e política
e da retórica discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu con-
tinuum) — mas então também da análise ideológica em que esta
tematização culmina (the analysis of ideology as a special case of
the dialogic encounter) 114...

Na mesma medida, no entanto, em que defende uma concepção (ou pelo me-
nos um “tratamento”) “instrumental” da desconstrução — por uma vez assumida
como “método”.115 Na mesma medida, sobretudo, em que — recusando o apelo

implicitly rely upon notions of nested opposition /to deconstruct a conceptual opposition is to show that the
conceptual opposition is a nested opposition) —, cfr. (para além do texto decisivo que acabámos de citar)
também “Nested Oppositions”, Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp. 1669 e ss., 1683-1687 (“Nested Oppo-
sitions in Legal Doctrine”), Cultural Software. A Theory of Ideology, Yale 1998, pp. 221-222 (“Mediation,
Subcategorization and Nesting”), 226 e ss. (“The Economy of Oppositional Logic”), 230 e ss. (“Nested
Privileging”), 234–235 (“Categories As Nested Oppositions”), 235 e ss. (“Suppression and Projecting”).
113 É este problema que ilumina “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit. [ver muito
especialmente a Introdução e o ponto V (“Deconstruction as a Normative Chasm”), respectivamente parte
I, ps. web 1-8 e parte III, ps. web 1-4], antes de justificar um dos capítulos centrais de Cultural Software,
op. cit., pp. 142 e ss. (“Transcendence”).
114 “By a transcendental value, I mean (…) a value that is inchoate and indeterminate, which human beings
must articulate through culture but which is never fulfilled (…), a value whose existence is presupposed
by some essential human activity. Thus the argument for the existence of a transcendental value is tran-
scendental; the existence of the value must be presupposed given the nature of the activity. Hence we can
also speak of transcendent values as “transcendental” values. (…) Transcendent ideals of truth and justice
are presupposed in our understanding of encounters between people as encounters between subjects of
justice — that is, as a sort of entities that can be treated justly or unjustly. (…) We need them to understand
the meaning of human action in encounters with others … (…) Our encounter wiht the Other causes the
transcendent norm magically to spring to life” (Cultural Software…, op. cit., 144, 146, 147, 150)
115 Um contributo que se nos impõe na série constituída por “Deconstructive Practice and Legal Theory”,
Yale Law Journal, vol. 96, 1987, 743 e ss., “The Domestication of Law and Literature”, Law and Social
Inquiry, 1989, vol. 14, 787 e ss., “Tradition, Betrayal and the Politics of Deconstruction”, Cardozo Law
Review, vol. 11, 1990, 1623 e ss., “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., “Being
Just With Deconstruction”, Social and Legal Studies, vol. 3, 1994, 393 e ss., “Deconstruction”. In: PAT-
TERSON, D. (Ed.). A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory. London, 1996, “Decon-
struction’s Legal Career” (1998) [o primeiro e os cinco últimos disponíveis na Jack Balkin Home Page, op.
cit.]. “To be adapted to the needs and concerns of the legal academy, (…) as it moved from philosophy to
literature and then to law (…), deconstruction had to be translated and altered in significant ways, making
it more flexible, practical, and attentive to questions of justice and injustice. (…) Its transformation even-
tually produced a deconstructive practice in law that emphasizes a sensitivity to changes in interpretive

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

de uma responsabilidade infinita ou a possibilidade de o testemunhar (as an in-


finite duty toward the Other)… e privilegiando o caminho e os recursos de uma
political morality (se não do continuum prático-comunitário que a traduz) — as-
sume a pressuposição constitutivamente transcendental de uma exigência inde-
terminada de justiça (as an indefinite, but not infinite, demand for justice116)117.
2.2.3. Concentremo-nos enfim (não menos rapidamente) no painel central.
Já não para surpreender uma sequência de degraus paralela às duas anteriores (e
muitas seriam possíveis!)... mas para privilegiar duas linhas de acentuação, am-
bas dirigidas à tematização (mais ou menos explicitamente metadiscursiva) dos
desafios da circularidade: a primeira dominada pelo pólo da recontextualização
hermenêutica [2.2.3.1.], a segunda construída na perspectiva de uma problema-
tização argumentativa (e da dialéctica como tópica que a leva a sério) [2.2.3.2.].
2.2.3.1. Invocar a primeira é, com efeito, reconhecer (com Heidegger e com
Gadamer) uma recuperação ontologicamente positiva do círculo e do pensamen-
to de autotranscendência que este exige.
2.2.3.1.1. Uma tematização do círculo ou do mergulho no círculo que sa-
bemos inseparável da lição de Sein und Zeit... e da exigência de submeter
a conexão-Zusammenhang118 que vincula “resolução” e “antecipação” (Ents-
chlossenheit e Vorlaufen) a uma analítica autorreflexiva lograda (dita metho-
dische Besinnung119).
Que analítica? Aquela que possa denunciar o desconhecimento-
-Verkennung a que as diversas tentativas de “negar”, “ocultar” ou
“superar o círculo” nos condenam, na mesma medida em que reco-
nhece nestas tentativas outras tantas consagrações definitivas desse
“desconhecimento”. Mas então também aquela que, ao libertar-se
de (ao romper, ao vencer) um tal desconhecimento, experimen-
ta-ilumina a compreensão-Verstehen como modo fundamental

context, a pragmatic attitude towards conceptual distinctions, and a careful attention to the role of ideology
and social construction in legal thought” [“Deconstruction’s Legal Career”, Jack Balkin Home Page, op.
cit. (extraído em 24-11-2000), parte I, p. web 1].
116 “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., II, A. (“The Infinite and the Indefinite”),
op. cit., parte I, ps. web 12-14, Cultural Software, op. cit., toda a parte II, pp. 99 e ss. (“Ideology”).
117 “The encounter between deconstruction and justice has changed both parties; yet, of the two, deconstruc-
tion appears to be the more transformed. If deconstructive practice is to be of any use to the question of
justice, it must become a transcendental deconstruction. It must exchange the logic of the infinite for that
of the infinite. It must act in the service of human values that go beyond culture, convention and law. It
must recognize the chasm that differentiates human values from articulated conceptions of it, and it must
identify Deconstruction with that chasm…” (“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op.
cit., parte III, p. web 5).
118 HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 18 ed. (reimpressão da 15ª). Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001,
p. 309
119 Ibidem, p. 310.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

(Grundart) do Ser do estar-aí (Dasein), ao mesmo tempo que


(muito especialmente) confirma que este Ser se constitui (circular-
mente) como pré-ocupação ou cuidado120.
Mas então uma autorreflexão que, enquanto analítica da resolu-
ção antecipante (vorlaufende Entschlossenheit121), nos proporciona
um vollen Blick (als vollen Blick auf das zirkelhafte Sein des Da-
seins122) —, adquirindo assim o sentido de uma autêntica interpre-
tação existencial. A interpretação que poderá explicitar a tempora-
lidade do estar-aí e do seu poder-ser (no mundo) como totalidade
(enquanto ser-todo originário do Dasein)... na mesma medida em
que constrói (em que abre) uma compreensão autêntica do tempo
ontológico (die Zeitlichkeit als der ontologische Sinn der Sorge123).

Uma tematização então e assim não menos indissociável da lição de Vom


Wesen des Grundes… entenda-se, da exigência de uma reflexão sobre o fun-
damento que possa ser procurada no plano da transcendência constitutiva do
estar-aí (e neste sentido também encontrada e determinada com a mediação
constitutiva da existência).
Ao ponto de podermos concluir que o discurso a construir (e a re-
novar permanentemente) se move iluminado por uma exigência de
verdade ontológica, ou mais rigorosamente, pela consciência de que
as verdades ôntica (ontische Wahrheit) e ontológica (ontologische
Wahrheit), ao referirem-se “de modo diverso respectivamente, ao
ente (das Seiende) no seu Ser e ao Ser (das Sein) do ente”, devem
impor-se-nos como intenções-exigências nuclearmente “solidárias”
(Sie gehören wesenhaft zusammen auf grund ihres Bezugs zum Un-
terschied von Sein und Seiendem)124.

Sem esquecer que se trata assim também de exigir que a transcendência —


enfim livre do esquema de determinação sujeito-objecto125 — se nos imponha ela
própria como liberdade para o fundamento (im Sinne der Freiheit zum Grunde)126.
2.2.3.1.2. Uma tematização do círculo que nos atinge no entanto sobretudo
através da resposta de Gadamer. Uma resposta que faz corresponder o “esforço”
de “saltar” para o “interior do círculo” (e a interpretação do carácter “originá-
rio” e “pleno” deste “salto”127) a uma exigência de tematizar a universalidade

120 Ibidem, pp. 315-316.


121 Ibidem, p. 310
122 Ibidem, p. 315
123 É a epígrafe do famoso famoso § 65 (pp. 323-331).
124 Vom Wesen des Grundes. 3 ed. 1949, op. cit. na versão bilinge A essência do fundamento. Lisboa: Edições
70, 1988, pp.26-27.
125 Ibidem, pp.34-35.
126 Ibidem, pp. 106-107.
127 Ainda Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., p. 315.

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do compreender-Verstehen enquanto forma imediata e principal (originária-urs-


prünglich) de realização-consumação (Vollzugsform) do mundo prático-humano
e da vida social que lhe corresponde... vida social por sua vez que não só ha-
bita uma comunidade de linguagem (e de linguagem comum) como em última
instância (als letzte Formalisierung) se constitui enquanto tal — impedindo que
qualquer “experiência do mundo” dela se exclua ou deva excluir-se (Von dieser
Gesprächsgemeinschaft ist nichts ausgenommen) 128.
O que, como sabemos, significa restituir a compreensão ao mode-
lo privilegiado da phronesis (aristotélica) e exigir que o processo
autorreflexivo que a assume (enquanto prima filosofia, capaz de
reconstituir as condições transcendentais do compreender) se nos
exponha, sem hesitações, a constituir o território luminoso da fi-
losofia prática e este como um horizonte-compromisso (decisivo)
de integração129.
De tal modo que o sentido ontológico positivo do círculo se nos ex-
ponha já numa unidade intencional de determinantes e determina-
dos e na textura de relações recíprocas que o torna possível: aquela
que envolve (inextricavelmente!) finitude e transfinitude, auctori-
tas e razão, tradição e discurso prático-racional, texto e presente,
racionalidade prático-prudencial e existir situado, logos e ethos,
objecto e conteúdo interpretados... antes de se nos expor com toda
a transparência na applicatio e na conversação responsável com o
texto que esta constrói. Uma conversação aberta que, sendo cri-
tério de si própria (garantindo ela própria, na imanência do seu
percurso, uma selecção dos pré-juízos a reter ou a superar), está
no entanto longe de se desenvolver para garantir uma confirma-
ção “selectivamente anestesiante” à pré-compreensão do intérprete
— porque antes, e em contrapartida, submete os seus pré-juízos a
riscos permanentes! —, mas então também uma conversação que,
ao garantir a unidade de um movimento-kinésis (capaz de absorver
a dualidade dos horizontes do intérprete e do texto sem a abolir),

128 GADAMER. “Replik”. In: APEL; BORMANN; BUBNER; GADAMER; GIEGEL; HABERMAS. Her-
meneutik und Ideologiekritik. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1971, p. 289. Para um desenvolvimento, ver
Wahrheit und Methode, op. cit., na trad. castelhana da 4 ed. (Tübingen, 1975), Verdad y metodo. Salamanca,
Ediciones Sigueme, 1977, pp. 326 e ss. (14. “El lenguaje como horizonte de una ontología hermenéutica”).
129 “Am Ende ist die aristotelische Tugend der Vernünftigkeit, die Phronesis, die hermeneutische Grundtu-
gend selbst. Sie diente mir als Modell für meine eigene Gedankenbildung. So wurde in meinen Augen
die Hermeneutik, diese Theorie der Anwendung, das heisst des Zusammenbringens des Allgemeinen
und des Einzelnen, ein zentrale philosophische Aufgabe...” [GADAMER. “Probleme der praktischen
Vernunft”. In: DERBOLVA et al. (Hrsg.). Sinn und Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen Theodor
Litts. Stuttgart, 1980, p. 155]. Para além do desenvolvimento indispensável de Wahrheit und Methode
[Verdad y Metodo, op. cit., pp. 331-458 (nos 9, 10 e 11)], ver ainda “Die Begründung der praktischen
Philosophie”, o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro VI da Ética a Nicómaco
(ARISTOTELES. Nikomachische Ethik VI. hrsg. und übers. von Hans-Georg Gadamer. Frankfurt am
Main, Klostermann, 1998, pp. 61-67).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

encontra na consciência do seu próprio inacabamento — e na ex-


periência do tempo, da tradição e da História (também enquanto
Wirkunsgeschichte) que esta traz consigo... — a sua decisiva con-
dição de possibilidade130.

2.2.3.2. Que dizer, também em duas palavras, da acentuação tópico-argu-


mentativa e do modo como esta experimenta e tematiza o percurso do círculo e
o sentido do mundo prático que este revela?
(a) Que se trata, como em nenhuma outra, de iluminar a experiência do
novo... iluminando simultaneamente uma exigência de tratamento-assi-
milação131 — uma exigência capaz de converter (de autonomizar) este
novo como problema-controvérsia e de assim mesmo o inscrever num
contexto de referência.
(b) Como se trata ainda de, também como em nenhuma outra — graças sobre-
tudo à conexão entre argumento inveniendi e solução —, preservar a pers-
pectiva do problema (impedindo que este se dissolva no iter reflexivo).
Especificações que nos beneficiam com uma representação particularmente
persuasiva do mundo prático e do movimento que o constrói — enquanto refe-
rência a um commune que é sempre também procura desse commune…
Uma procura que só encontra a sua unidade na perspectiva do pro-
blema... no momento culminante em que a trama dos argumentos
construídos se articula logradamente com a tese defendida ou em
que, também em nome das exigências da phronesis, se garante a
superação da singularidade por uma certa participação no geral.

E no entanto também especificações que trazem consigo o perigo de perverter


uma tal representação... e de a perverter comprometendo-interrompendo precisa-
mente a exigência de circularidade: não decerto porque ponham em causa a racio-
nalidade sujeito/sujeito (porque persistam em não abandonar o esquema cognitivo
sujeito/objecto132) ou porque se mostrem relativamente insensíveis (quando não

130 Cfr. o referido nº 11 de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, op. cit., pp. 415 e ss., 446 e ss.(agora ex-
plicitamente a propósito do “carácter original da conversação”)]. A fórmula “selectivamente anestesiante”,
devêmo-la com alcuna licenza a Dunne (selective sedation) e à sua análise exemplar do wirkungsgechi-
chtliches Bewußtsein: DUNNE, Joseph. Back To the Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of
Technique. Notre Dame Indiana, University of Notre Dame Press, 1993, p. 117.
131 Ao contrário do que acontece decerto com a celebração da singularidade-irrepetibilidade justificada pelas li-
nhas desconstrutivistas… na qual a acentuação do novo não é acompanhada por esta exigência de tratamento.
132 Crítica decerto insustentável (perante uma perspectiva exemplarmente assumida como trama de logoi)... e
que no entanto vemos dirigida por Kaufmann (com alguma equivocidade embora... e sem acertar no alvo
pretendido!) a todas as chamadas teorias da argumentação jurídica... e depois recorrentemente glosada por
representantes incondicionais da vertente hermenêutica! Ver KAUFMANN. Rechtsphilosophie. München,
1997, op. cit. na trad. portuguesa Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pp.72-73.

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

hostis) ao topos pluralismo133, antes (e pelo contrário!) porque hipertrofiam o mo-


mento da realização. Uma hipertrofia que, no limite, poderá reconduzir a validade
pressuposta a uma mera contingência (objectivável num consenso a posteriori)...
na mesma medida em que, como já anunciámos, nos condena a superar uma ra-
cionalidade material... para assumir uma racionalidade procedimental.134
Um perigo enfim que só poderá ser reconhecido e atenuado se se levar a
sério aquela pressuposição-procura do commune... e de tal modo que o novo e o
antigo se fundam na perspectiva da participação (ou da comunidade de comu-
nicação) que internamente desenvolve uma tal procura (das Neue das Alte ist,
aber auf eine Weise, die nicht nur in der einseitigen Perspective eines dem Zwei-
fel ausgesetzten und nach Verteidigung suchenden Partners als Verbindung von
These und Argument gilt, sondern in der Perspective aller Teilnehmener diesen
Vorzug aufweist135). Se não para renunciar deliberadamente à equivalência em
abstracto dos topoi — e admitir uma compreensão mínima da sistematicidade136
(das topische System stammt aus der Rhetorik, bleibt ihr strukturell verbunden
und beschränkt sich darauf ein Argumentationssystem zu sein137) —, pelo menos
para exigir que, em nome da instituição fundante daquelas exigências de parti-
cipação, se recupere o vínculo originário (entretanto perdido) entre dialéctica
e controvérsia... e assim também entre dialéctica e prática quotidiana (Alltag),
dialéctica e disposições existenciais, dialéctica e mundo-da-vida (Lebenswelt).
O que — para o dizermos com Bubner — significa, numa palavra, libertar o
discurso dialéctico da colonização que lhe foi imposta pela episteme moderna
(e do discurso do método ou das pretensões de racionalidade aprioristicamente
concebidas que o quiseram aprisionar)… para assim mesmo (também regressan-
do a Aristóteles) renovar (reinventar) o compromisso com uma dialéctica en-
quanto tópica (Die Dialektik in ihrer topischen Gestalt tut nichts anderes als die
lebensweltlich begründete Rationalität auf den Begriff zu bringen, ohne damit
wissenschaftliche Verfassungsweisungen zu imitieren138).
2.3. Se convoco todos estes “intérpretes” do mundo prático-comunitário e dos
compromissos que o constituem, acentuando a tensão circular entre pluralidade

133 Outra das críticas (manifestamente injustas ou pelo menos desadequadas, porque dirigidas sem discrimina-
ção a um amplíssimo common ground) que vemos autonomizadas por Kaufmann, ibidem, p.73.
134 CASTANHEIRA NEVES. Metodologia Jurídica, op. cit., pp.71-74.
135 BUBNER. Dialektik als Topik, op. cit., p. 64.
136 Alimentada eventualmente (já na sua projecção no universo do direito) pelo horizonte de inteligibilidade
de uma Rhetorische Rechtstheorie, com o alcance que Viehweg nos ensina a reconhecer: ver neste sentido
Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-Baden, Nomos
Verlagsgesellschaft, 1995, pp. 191 e ss. (III. “Zur Rhetorische Rechtstheorie insbesondere”)
137 Ibidem, p. 106. Ver ainda CASTANHEIRA NEVES. “A unidade do sistema jurídico…”, op. cit., pp.114-116.
138 BUBNER. Dialektik als Topik, op. cit., p. 7. Para um desenvolvimento, ver pp. 79-87 (“Dialektik und Topik”)

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

discursiva e unidade intencional, radicalização hermética da diferença e renova-


ção dos compromissos de identidade (que o é sempre também implicitamente
entre pressuposição dogmática e reinvenção crítica, disponibilidade e indisponi-
bilidade, estabilidade e transformação139)...
... e esta tensão ou a dinâmica que lhe corresponde enquanto nos
ensinam a rejeitar as soluções da pura necessidade ôntica e do puro
arbítrio decisório (a primeira decerto compossível com a comuni-
tas pré-moderna, o segundo a expor-se-nos já como um resultado-
-limite da institucionalização da societas140)...

... não é no entanto decerto para explorar o contraponto que os seus percursos
e pretensões de equilíbrio determinam (ou para testemunhar o espectro de pos-
sibilidades que estes oferecem)141. É antes para reconhecer que a exigência de
enfrentar hoje o problema do direito e de o enfrentar interrogando a sua procura
— discutindo a plausibilidade — “pontualidade” (se não urgência) prático-cultu-
rais da demarcação humano / inumano que a sua praxis (de acontecimentos-de-
cisões-interpelações) está em condições de autonomizar — não pode cumprir-se
se nos contivermos neste patamar, entenda-se, se cedermos à tentação (fácil!142)
de admitir que o testemunho da juridicidade de que hoje precisamos...
…e de que hoje precisamos sempre que se trate de, resistindo ao do-
mínio do eixo episteme-technê/technê-episteme, querer reagir à co-
lonização ameaçadora da Zweckrationalität (e com esta a uma com-
preensão inteiramente determinada pelo horizonte da societas143)...

...possa (ou deva) construir-se na perspectiva destas representações da comu-


nitas (e da sua autotranscendentalidade) e como uma assimilação aproblemática
(mais ou menos lograda, mas sempre unilateralmente conduzida) dos pressu-
postos, códigos e categorias que estas mobilizam (quando não directamente das
situações institucionais a que estas nos expõem).
Quer se trate de privilegiar (escolher) um destes caminhos (e neste
um dos seus interlocutores-guias!), quer se trate de partir das suas
convergências (ou de algumas das suas convergências mais signi-
ficativas) para recriar um grande horizonte comum (ou um grande
contexto autorreflexivo e o consenso que o ilumina).

139 Tensões a que me refiro explicitamente em “Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em
espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema”, op. cit.
140 De uma societas no entanto que, na claridade matinal da sua concepção, encontrara o seu impulso constru-
tivo principal na pressuposição de uma outra necessidade (a da ratio, onto-antropologicamente sustentada).
141 Se assim fosse, não poderíamos deixar de convocar outros interlocutores indispensáveis à tematização do
pensar em círculo, a começar por Ricoeur e Jauss!
142 Sempre fácil... embora nos exija quase sempre também um percurso reflexivo eriçado de dificuldades!
143 Ou pelo menos alimentada pela convicção de que é possível ver na exclusividade deste horizonte uma
etapa evolutiva historicamente insuperável!

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Expor o testemunho da juridicidade de que hoje precisamos à inevitabilidade


desta assimilação — até ao ponto de confirmar que estamos condenados à me-
diação de uma teoria do direito externa puramente assimiladora144 (ou de que
precisamos de uma “filosofia no direito” e não de uma “filosofia do direito”!145)
— significa com efeito postular já (aproblematicamente) a diluição (irresistível)
do jurídico num continuum prático (se não já prático-poiético).
Como se se tratasse por um lado de reconhecer (mais ou menos explicita-
mente) a consumação-cristalização (historicamente insuperável) dos sentidos ou
dos contextos de significação que a procura do homo humanus autonomizada
(isolada) pelo direito está em condições de garantir…
... e nalguns dos casos mesmo de pressupor, implícita ou explicita-
mente, que o padrão de humanidade que a nossa circunstância exi-
ge deva ser procurado para além do direito ou pelo menos renun-
ciando à tértialité que o distingue ou à pretensão de comparação
correspondente (à dialéctica de autonomia e de responsabilidade
comunitária limitada que o constitui).

Como se se tratasse por outro lado de ceder à sedução das hetero-referên-


cias… admitindo sem mais que a exigência de resistir à exclusividade do prag-
matismo empírico-explicativo — e à pretensão de interdisciplinaridade a que este
expõe o jurídico — nos entrega sem alternativas à prioridade condutora de uma
outra pretensão de interdisciplinaridade (iluminada pelas Humanidades)146...

144 A expressão é de Castanheira Neves, tendo sido especialmente mobilizada na comunicação de abertura de
um Seminário de teoria de direito do Programa de Doutoramento e Mestrado em Direito da Universidade
Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 setembro de 2007), seminário no qual tive o gosto e a honra de par-
ticipar. A sistematização proposta distinguia de resto diversas teorias do direito externas (assimiladoras,
analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação assimiladora para a proposta exemplar
da Nova Hermenêutica e para o seu “optimismo” [para uma alusão a esta última atitude de resposta (“a
resposta está dada!”), ver “O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no
encontro humano-dialogante das culturas”, op. cit., p.118].
145 Uma exigência especialmente defendida pela proposta de Lénio Streck e que — com um importante con-
tributo do Autor (“Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta”) — constitui o núcleo
temático do quinto número da Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), Porto Alegre, 2007
(número este intitulado precisamente A filosofia no direito e a filosofia do direito).
146 De tal modo que a perspectiva-alvo (a que se resiste) seja aquela que nos aparece a consagrar o domínio
informativo e metódico das ciências sociais empírico-explicativas — se não a confimar-consumar uma das
profecias de Holmes (the man of the future (…) for the rational study of law (…) is the man of statistics
and the master of economics); de tal modo ainda que o exercício de resistência se cumpra à luz do apelo
não menos persuasivo do juiz Learned Hand — exigindo que as práticas e discursos do direito passem a
integrar a “nobre república das Letras”… ou pelo menos reconhecendo que estas práticas e os pensamen-
tos que as pensam permanecem “inacabados” (feridos na sua integridade ou entregues a arbítrios incon-
troláveis) se não forem “alimentados” pelas (ou se não encontrarem “apoio” e “exemplo”— edification
nas) “fontes de conhecimento externo” que “as humanidades” (incluindo a filosofia e a crítica literária)
lhes proporcionam. Para reconstituir este exemplar “tale of two speeches”, elenquentemente narrado por
Balkin e Levison, ver “Law and Humanities: An Uneasy Relationship”, Yale Journal of Law & the Hu-
manities, vol. 18, pp. 155-160 (“Introduction: Is Law Part of the Humanities? A Tale of Two Speeches”).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

Agora com arenas propulsoras que vão (poderão ir) da análise


linguística e da crítica literária à história e à filosofia... mas tam-
bém com experiências e recursos que, na sua recriação do mundo
prático — ou na sua interpretação do regresso da comunidade,
mas também no seu tratamento da pluralidade e da diferença —
se submetem a um espectro de eixos reflexivos alternativos (e aos
modos de organização que estes impõem). Espectro que, não cer-
tamente por acaso, se desenha assumindo os painéis atrás esboça-
dos [supra, 2.1. (β)’-(β)’’-(β)’’’]: contrapondo as possibilidades
da filosofia narrativo-sapiencial às da ética da alteridade... e in-
vocando como eixo central aquelas que a tematização ontológico-
-existencial permite.

Mas então, e numa palavra, como se uma reconsideração hoje possível do


problema do direito só conseguisse resistir à hipertrofia das instrumentally cal-
culating forms of reason — e impor-se a estas como uma alternativa lograda (ou
como núcleo polar de uma dialéctica) —... se (e na medida em que), invocando
em bloco o projecto de humanidade do mundo prático (e o continuum em que
as suas experiências são pensáveis), admitisse mais ou menos explicitamente
renunciar à especificidade prático-cultural da juridicidade... ou pelo menos à
possibilidade de lhe fazer corresponder uma pretensão de autonomia (capaz de a
distinguir das outras dimensões desse mundo).
Conclusão paradoxal esta — plausível embora... porque alimentada, como
ainda veremos, por uma compreensão redutora daquela pretensão de autonomia!
—... e que para além do mais nos expõe a um desafio particularmente difícil: o
de ter que optar por uma das representações em causa ou por um dos seus veios
principais (aqueles que o nosso tríptico quis identificar) [supra, 2.1. (β)’-(β)’’-
(β)’’’], evitando (impedindo) assim que a antecipação dos problemas do direito
ou que a atenção às suas condições específicas (ou às suas categorias de inte-
ligibilidade) — porventura porque estas se tornaram irreconhecíveis na nossa
circunstância! — intervenha de alguma forma nessa escolha.
O que é que significa com efeito invocar o prius de uma compreensão global
da praxis ou do seu ethos — e exigir que esta sustente (unilateralmente) uma re-
compreensão das práticas juridicamente relevantes — senão reconhecer que, na
sua relação com o mundo prático do direito, todas as interpretações desta com-
preensão global (interpretações que entre elas concorrem) devem à partida ser
tratadas como equivalentes? Se assim for, no entanto... a opção passa a depender
exclusivamente do diagnóstico da nossa circunstância que cada uma dos per-
cursos reflexivos assuma (dos factores ou dimensões que positiva ou negativa-
mente entenda dever sublinhar, em detrimento de outros também possíveis)... e
então e assim da maior ou menor sensibilidade a exigências de estabilidade ou de

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abertura, de determinação dogmática ou de problematização crítica que descriti-


va e prescritivamente manifeste (ou defenda)... — sensibilidade que (reflectindo
uma compreensão selectivamente construída do projecto global da humanitas e
a aposta correspondente) nos permita concluir que precisamos hoje sobretudo da
concepção do mundo e do homem que o projecto do comunitarismo sapiencial
nos oferece [2.1.(β)’]... ou daquela que a hermenêutica como filosofia está em
condições de justificar [2.1.(β)’’]... ou ainda daquela que só a ética desconstruti-
vista pode abrir [2.1.(β)’’’]147...

3. É precisamente a oportunidade de escapar a este plano de inteligibilidade


global ou à exclusividade dos seus problemas-perguntas — mas também (et pour
cause!) à equivalência das respostas que nele se multiplicam — que queremos
acentuar convocando o modelo de pensamento jurídico que Castanheira Neves
designa por jurisprudencialimo: ora este modelo enquanto nos expõe a uma as-
sunção recuperadora do mundo existencialmente humano do direito — se não ex-
plicitamente à procura de um “direito crítico” na “ordem da intencionalidade”148
(entenda-se, à assunção de um sentido materialmente vinculante, que é também
e indissociavelmente um fundamento axiologicamente crítico) —... mas também
e muito especialmente (aqui e agora!) enquanto enfrenta (faz seus) os desafios da
autotranscendentalidade prático-cultural.
A oportunidade de encontrar respostas-soluções para estes desafios e para a
autorreflexão que os expõe e intensifica? Antes uma oportunidade de procurar-
-ensaiar uma resposta diferente, diferente de todas aquelas que as interpretações
narrativas, ontológico-existenciais ou éticas (se não ético-políticas) — e estas
separadamente ou a convergirem num horizonte comum, eventualmente a as-
segurarem um overlapping consensus (resta saber qual!) — nos permitem reco-
nhecer. A oportunidade-exigência de interpelar o mundo prático-comunitário (e a
tensão entre estabilização dogmática e realização transformadora) na perspectiva
do direito e dos compromissos que o distinguem… que é também afinal a de nos
pôr perante a possibilidade de uma perspectiva interna.
Sendo certo que não se trata assim de esquecer as condições de representa-
ção-determinação impostas pelo contexto global — e pela nova compreensão
da praxis que este constrói —, como não se trata de propor especificações que

147 Podendo quando muito admitir-se que, num segundo plano (analítica e cronologicamente separado), se
procurem eventuais afinidades electivas que favoreçam a projecção no universo do direito de algumas das
interpretações do mundo prático, nomeadamente daquelas em que o eixo da phronesis apareça mais clara-
mente autonomizado...
148 CASTANHEIRA NEVES. “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., p. 57.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

neutralizem aqueles desafios (e a autorreflexão que os ilumina) — especifica-


ções que em nome de uma celebração (apologética) da autonomia-Isolierung
do jurídico pudessem ocultar-superar os problemas correspondentes. Porque se
trata antes de convocar “o originarium constitutivo do problema do direito”...
para experimentar a continuidade (e se quisermos, a plausibilidade contextual)
da procura que lhe corresponde.
Ora experimentar esta continuidade (e a identidade que esta preserva) sub-
metendo-a a uma provação reflexiva radical. Uma provação reflexiva que deven-
do apostar na possibilidade-exigência de responsabilizar este direito — enquanto
sentido e enquanto prática-pensamento, enquanto experiência diferenciadora e
enquanto ordem material — como um eixo-interlocutor indispensável da nossa
circunstância presente (e da Erschütterung com que esta nos fere), não deixe
no entanto de assumir sem equívocos a fragilidade prático-cultural do processo
de comparação-tematização que o distingue e das aquisições que este assume
(alimentadas pela identidade do problema-controvérsia e pelo tertium compara-
tionis de uma dialéctica suum/commune) — na mesma medida de resto em que
reconhece as alternativas que desafiam tais aquisições149.
Uma provação iluminada pelo problema da autonomia (ou pela indisso-
ciabilidade constitutiva dos problemas do sentido e da autonomia150)? Importa
acentuá-lo. E acentuá-lo insistindo em que se trata assim de assumir uma cer-

149 Que outro problema senão o que Castanheira Neves nos ensina a descobrir quando reconstitui as condições
de emergência da juridicidade e nos confronta com as “alternativas ao direito” que resultam da abstracção
da chamada condição ética? Trata-se, com efeito, de contrapor a ordem de validade do direito à ordem
de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas também à ordem de
finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente) possíveis. Para além
dos importantes desenvolvimentos propostos nas lições nos 7 (“O por-quê do direito”) e 8 (“As alternativas
ao direito”) de O problema actual do direito, op. cit., primeira versão, e muito especialmente em “Coorde-
nadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito
como direito”, op. cit., passim [este último conjugado com as últimas páginas de A crise actual da filosofia
do direito, op. cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda “O princípio da legalidade criminal”. In: Digesta, op. cit.,
vol 1, pp. 413-419, “O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o problema actual do
direito”, ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, op. cit., pp. 231-234, “Pes-
soa, direito e responsabilidade”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 6, 1996, pp. 38-40 e O direito
hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, op. cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos
também no Digesta, op. cit., vol.3, respectivamente nas pp. 154-155 e 62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses
mais recentes propostas em ““Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou
a recuperação da filosofia do direito?”, op. cit., pp.94-96, “O problema da universalidade do direito ou o
direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas”, op. cit., pp.118-121, “O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp.59-63, “Pensar o direito num tempo
de perplexidade”, op. cit., pp.11-15.
150 Ver especialmente “O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade”. In: RI-
BEIRO, J. A. Pinto (Coord.). O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto,
1999, pp. 87-114.

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ta compreensão da autonomia. Não decerto como uma experiência historica-


mente circunscrita, que um acultural way of understanding — invocando uma
sequência implacável de futuros presentes — pudesse tratar como um output
necessário e absolutizar como etapa-limite (reivindicada por todo e qualquer
processo evolutivo).151 Nem como uma concepção (entre outras concepções
possíveis), que importasse de alguma forma tecer à custa daquelas (de todas
aquelas) que se lhe opõem. Antes como uma preocupação condutora, na qual
a autonomia a ter em conta, interpelando-nos como prática-procura cultural e
civilizacionalmente comprometida — pré-ocupada com um certo exercício de
demarcação humano/inumano (e então também, hoje muito especialmente, com
a exigência de denunciar-desmascarar os intérpretes-defensores do inumano
que o desafiam!) —, não nos interpele menos como sentido-exigência inconfun-
dível e como experiência continuada de realização (mas também e ainda como
discurso culturalmente específico)152.
Uma preocupação condutora que emerge de um processo historicamen-
te situado de autonomia-Isolierung… e que encontra neste (e na comunidade-
-civitas que o assume) a sua “claridade matinal” (Steiner153)154... cujos sinais-

151 Trata-se de mobilizar a caracterização da “acultural” way of understanding the rise of modernity — em
contraponto com a “cultural” way — que Charles Taylor propõe em “Inwardness and the Culture of
Modernity”. In: HONNETH; MCCARTHY; OFFE; WELLMER (Hg.). Zwischenbetractungen im Prozess
der Aufklärung. Jürgen Habermas zum 60. Geburtstag. Suhrkamp, Frankfurt, 1989, pp. 601-623 [caracte-
rização que sintetiza também em “Two Theories of Modernity” (1993), The International Scope Review,
volume 3, n. 5, 2001, disponível em: <http://www.socialcapital-foundation.org/journal/volume%202001/
issue%205/ taylor_presentation.htm>. Extraído em: 02/10/2006.
152 Sem esquecer que as emergências destas três autonomias (“filosófica”, prático-jurisprudencial e cultural)
correspondem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da resposta direito (de um direito
que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação filosófica, como prática jurisprudencial
e como domínio cultural universitariamente reconstituído e comunicado) — numa conjugação-construção
que o discurso medieval (ao assegurar a terceira das autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas)
pôde traduzir na relação sapientia / scientia / pru-dentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido pro-
posto por Castanheira Neves na primeira sessão do II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito
de Coimbra, ano lectivo de 2001/2002), O actual problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a),
b) e c) [“Se para os gregos o direito era um problema filosófico — intencionalidade que se mantém na
dimensão teológico-filosófica — e para os romanos era uma prática, uma experiência socialmente pru-
dencial, volve-se agora numa dogmática (numa dogmática hermenêutica). Pelo que a autonomia do direito
passa a ser uma autonomia cultural: o direito não se especula apenas, nem se pratica só prudencialmente,
estuda-se e reconstitui-se dialéctico-culturalmente — o logos jurídico torna-se hermenêutico-dialéctico. O
que se manifesta secularmente no ius commune…” (Ibidem, 4)] — sistematização que vemos retomada e
desenvolvida em “O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro
humano-dialogante das culturas”, op. cit., pp. 111-116 (III).
153 A formulação é de Georges Steiner (sendo certo que o autor de The Idea of Europe não se refere aqui à
invenção romana do direito… mas ao “pensamento grego” e à “moral judaica”): The Idea of Europe, op.
cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa. Lisboa: Gradiva, 2006, p. 53.
154 Que outra “claridade matinal” senão aquela que inventa o “nome” humanitas (unter ihrem Namen wird
die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt) [HEIDEGGER. Über den Humanismus. Frankfurt:

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-rastos — permanentemente sulcados e convertidos (mas nem por isso menos


indeléveis) — nos expõem assim (ainda hoje) a uma experiência privilegiada
de continuidade. Uma experiência de continuidade que, partindo daquele ini-
tium luminoso, nos remete para o fogo criador da respublica christiana (e para a
conversão axiológico-existencional que este determina), como nos remete para a
reinvenção moderno-iluminista — e para as aquisições-desafios que a libertação
da subjectividade intencional e a institucionalização da relação direito / poder
(iluminadas pela emancipação dos direitos do homem) nos proporcionam —...
remetendo-nos ainda (e indissociavelmente) para os processos de superação ou
de reescrita a que uma tal reinvenção e a sua raison raisonnante (enfrentando
uma celebração assumida da singularidade e da diferença) hoje exemplarmente
se submetem. Mas então uma experiência que, graças ao espectro de intenções
assim convocado e às etapas que o estabilizam e distribuem — como outros tan-
tos ciclos de procura do homem-pessoa e da luta pelo reconhecimento que lhe
corresponde (os que nos integram no intellegere de um contexto ôntico comuni-
tariamente indisponível e o(s) que nos compromete(m) com a criação ex nihilo
da societas, mas também o(s) que nos responsabiliza(m) pela inventio de uma
intenção à validade e pela autodisponibilidade que a radicaliza) —, nos aparece
vinculada a uma cera “ideia da Europa” e ao “sentido civilizacionalmente cultu-
ral” que nos permite dizê-la (e continuar a dizê-la) “civilização de direito”155... —

Vittorio Klostermann, 1947, p.19]… e que o inventa como contexto e correlato de uma praxis de respon-
sa? Enquanto experimenta uma especificação inconfundível da virtude intelectual da phronêsis — uma
especificação que a “secularização” grega da praxis (ao assumir o problema da resolução de controvérsias
relativas a acontecimentos passados em continuum com as projecções éticas, político-arquitectónicas,
político-deliberativas e até económicas dessa virtude) não fora capaz de libertar [Bastará invocar a lição do
Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b23-1142a11)!] … —, mas sobretudo enquanto garante que
a procura correspondente e que o sentido da humanitas (e do homo humanus) que esta persegue — alimen-
tados embora pelo “fogo de Prometeu” da cultura grega (e pela sua filosofia da “justiça”) — se cumpram
como um processo (permanente) de correcção-especificação da ordem material pressuposta e da intenção
à validade que se lhe dirige (capaz de a reconhecer e de a assumir como ius)… e então e assim também
indissociados (constitutivamente indissociados, prático-culturalmente indissociáveis) de uma experiência
de realização. Daquela experiência que só o juízo-julgamento, enquanto tratamento prudencial das con-
trovérsias-casos (sustentado num cálculo de tipos e numa hipostasiação institucional radicalmente nova,
mas também num exercício determinante de relativização-comparação de sujeitos iguais e responsáveis)
está (estará) em condições de garantir [Invoque-se sempre a lição imprescindível do primeiro capítulo de
Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale. Milano: Giuffré, 1967, passim]
155 Se não dominada pelos dominada pelos pólos irredutíveis de Atenas e de Jerusalém — e pelos deveres de
fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estes (e as suas heranças) oneram uma certa “ideia da Europa”.
Sem esquecer que é esta mesma polaridade constitutiva (ferida no seu equilíbrio, porventura já submetida a
uma hipertrofia mais ou menos clara do segundo pólo) que nos condena a uma interrogação radical (ao dever de
perguntar se a nossa circunstância presente exige afinal um reencontro com a humanitas distinto daquele que a
resposta direito determina). Uma interrogação radical em que, no limite, é a própria “ideia da Europa” — para
além porventura da possibilidade de continuar a distingui-la como “civilização de direito” (ou de continuar a
ver neste um dos seus “pormenores” decisivos) —, que claramente se discute (de cuja identidade se duvida).

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o sentido que quis (e que quer continuar a ver) no direito uma solução específica
para o “problema do histórico-social encontro, se não desencontro, humano no
nosso espaço de coexistência e convivência156”.
Reconhecida a especificidade-responsabilidade deste compromisso, urge mos-
trar em que termos é que a aposta jurisprudencialista, ao reconstituir crítico-re-
flexivamente o mundo humano do direito — ao exigir uma reconstituição crítica
deste mundo humano que seja “axiológico-normativa nos fundamentos, prático-
-normativa na intencionalidade e judicativa no modus metodológico”157 —, en-
frenta (faz seus) os desafios do círculo (e do pensar em círculo)… e muito espe-
cialmente aqueles que o binómio unidade /pluralidade especifica158. Tratando-se
de resto de reconhecer (de acentuar) outras tantas respostas específicas, que só
esse mundo prático (condicionado embora pelas exigências e interpelações de
outros mundos práticos) está por assim dizer em condições de assumir. Res-
postas com uma identidade mas também com uma produtividade indissociáveis
desse mundo e da sua dimensão normativa… aptas, neste sentido, a solucionar
problemas — ou pelo menos a institucionalizar (a garantir institucionalmente) a
procura de soluções para problemas — que o referido horizonte global se limita
a considerar ou a manifestar-exprimir aporeticamente (a começar certamente por
aquele que confronta pressuposição dogmática e reflexão crítica ou que nos de-
safia a procurar-reconhecer os limites de cada um destes pólos159).
Respostas que não iremos evidentemente desenvolver. Que nos limitaremos
a acentuar (quase sempre a traço grosso), distribuindo-as analiticamente por três
eixos possíveis.
3.1. O primeiro eixo de respostas a ter em conta concentra-nos no processo de
institucionalização internamente assumido pelo mundo prático do direito — ou
mais rigorosamente na inter-relação constitutiva que vincula as oportunidades de
construção-reconstrução dos sentidos comunitários (e da validade fundantemente
crítica que os contextualiza) à exigência de projectar estas numa determinação
normativa plausível (que possa dar conteúdo à validade intencionada).

156 “O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante


das culturas”, op. cit., p. 105.
157 Assim expressamente no ponto IV (Finale) da conferência de abertura deste nosso encontro de Ouro Preto:
supra, “O “jurisprudencialismo” — proposta de uma reconstituição crítica do sentido do direito”.
158 A exploração directa de outros binómios levar-nos-ia a privilegiar (ou pelo menos a acentuar) outras res-
postas, no mesmo quadro de possibilidades oferecido pelo pensamento jurisprudencialista: neste sentido,
ver o nosso “Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a concepção
jurisprudencialista do sistema”, op. cit.
159 Problema que vemos exemplarmente acentuado por Joseph W. Singer em “Critical Normativity”, Law and
Critique, vol. 20 n. 1, 2009, pp. 27 e ss.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

3.1.1. A primeira das respostas (e primeira também no seu sentido gerador)


temo-la de resto na exigência de tratar os pólos da validade trans-subjectiva e
da controvérsia concreta (do compromisso axiológico assumido pela primeira
e da novidade irredutível introduzida pela segunda) como dimensões da ra-
cionalidade jurídica (da racionalidade que a realização judicativa do direito
postula)160. Mais do que reconhecer estas duas dimensões (por assim dizer axio-
lógica e problemática), trata-se com efeito já de lhes associar outras duas: a
que estabiliza a primeira numa mediação dogmática e a que responde à segun-
da com uma mediação judicativa ou judicativamente praxística (iluminada por
uma dialéctica prudencial)161. A possibilidade de compreendermos o discurso
problemático construído pelo direito (e o mundo de interrelação que cultural-
mente este reproduz) à luz destas quatro dimensões — e de tal modo que as duas
últimas (ditas dogmática e judicativa) possam expor-se-nos como condições de
institucionalização das primeiras ou da identidade prático-comunicativa que as
constitui (se não da dinâmica de objectivação-realização que situacionalmente
as integra) — confere à experiência do círculo e aos sulcos-rastos que a asse-
guram uma inteligibilidade inconfundível, que é também a de uma resposta
possível (simultaneamente conclusa e aberta): precisamente aquela que se cum-
pre na dialéctica sistema / problema (e no pensamento-prática integralmente
problemático que esta persegue)162.
3.1.2. Partamos desta resposta, enquanto compreendemos que esta nos incita
a desvelar uma convergência (e no limite também uma sobreposição lograda) de
outras procuras produtivamente circulares, se não já de outras dialécticas (e a
institucionalização de outras tantas possibilidades constitutivas).
3.1.2.1. A começar decerto pela experiência estratificado do sistema aberto,
ela própria também como prática-procura de um compromisso de unidade: um
compromisso que se postula como intenção e que permanentemente se renova
e reconstitui como tarefa, um compromisso que só a determinação autorrefle-
xiva (aposterioristicamente compreendida... e assim também sempre perma-
nentemente recomeçada) de uma totalização ordenadora há-de estar enfim em

160 Ver principalmente: “A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen)”.
In: Digesta — escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. vol. 2.
Coimbra: Coimbra Editora, 1995, pp. 134-155 (2. “Os pressupostos”), “O actual problema metodológico
da realização do direito”, ibidem, pp.251-256 (I, 2. e 3.), 272-281 (III 3.), Metodologia Jurídica. Pro-
blemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp.78-79, “O direito interrogado pelo tempo
presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 59 e ss., 66-67 (b).
161 Assim em “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, op. cit., pp.19-20 (IV.1.).
162 As leituras indispensáveis (entre muitas outras possíveis) são agora as de “A unidade do sistema jurídi-
co…”, op. cit., pp. 165-174.

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condições de reconhecer e de experimentar163. Acentuação tanto mais significati-


va quanto é certo que um dos estratos deste sistema se autonomiza reconhecendo
(como uma das suas dimensões nucleares) a realidade dos problemas–aconteci-
mentos juridicamente assimilados164.
3.1.2.2. Sem esquecer que a intenção desta procura encontra a sua condição
de possibilidade (e simultaneamente a sua experiência fundadora) num outro
círculo e na dialéctica que o assume: refiro-me evidentemente àquele ou àqueles
que relacionam valores e princípios (compromissos prático-comunitários e prin-
cípios normativos-fundamentos), inscrevendo esta inter-relação na experiência
de especificação-realização dos primeiros e dos projectos de ser (e de plenitude
de ser) que lhes correspondem… e então e assim também reconhecendo que
a emergência dos segundos nos remete para um insuperável território de fron-
teira: que não será apenas aquele que nos expõe a uma conexão-tensão entre
experiências de comunidade distintas (e outros tantos contextos, ditos geral e
especificamente jurídico) — se quisermos a uma conexão entre dois diferentes
modos de reivindicar-construir um sentido comunitário165 —, porque é também e
muito especialmente aquele que nos confronta com um processo permanente de
constituição-objectivação-realização: aquele que experimenta as objectivações
normativas (normativamernte materiais) dos princípios enquanto as submete às
exigências simultâneas de uma dimensão axiológica (histórico-problematica-
mente aberta) — dimensão que postulam (cuja experiência os constitui) e que
no entanto não esgotam (porque esta os excede sempre nas suas possibilidades
normativas) — e uma dimensão (vocação) dogmática desoneradora (“estabiliza-
dora”) — que os absorve como seu primeiro estrato e a cujo desenvolvimento
(-sistema) garantem por sua vez o dinamismo constitutivo de um normans166.

163 Ibidem, pp. 170-171. Ver também O Instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais.
Coimbra: Coimbra Editora, 1983, pp. 230 e ss., 251-269 [δδ) “Unidade de ordenação a posteriori”], sem
esquecer evidentemente o Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, policop., Coimbra, 1971-1972, pp.
328-330 [δ) “O direito é uma intenção axiológico-normativa que se manifesta como um sistema aberto de
realização histórica”], 331 e ss. [2. “O conteúdo do direito (análise do sistema jurídico)”]
164 Ibidem, pp. 347-351 [d) A realidade jurídica (as instituições jurídicas)].
165 Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de experimentar o
“absoluto histórico” dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da autotranscendentalidade prático-
-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a analítica da intencionalidade
normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem desenvolvido ao invocar uma certa
consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para cujas estações principais no entanto
imediatamente nos remetemos. São estas: “A revolução e o direito. A situação de crise e o sentido do di-
reito no actual processo revolucionário”. In: Digesta, vol. 1, op. cit., pp. 207-222 (11.), “Justiça e direito”,
ibidem, 273 e ss., “A unidade do sistema jurídico...”, op. cit., pp. 174-179, “Fontes do direito”. In: Digesta,
vol.2, pp.58-67 (“O momento de validade”), Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 278 e ss, “O direito inter-
rogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 63-65.
166 Ibidem, p. 155 e ss. Sem esquecer o Sumário de uma lição-síntese sobre “Os princípios jurídicos como
dimensão normativa do direito positivo (a superação de positivismo normativista)”, policop., Coimbra,

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

3.1.2.3. Sem esquecer ainda e por fim que a mais explícita das institucio-
nalizações do círculo é aquela que se cumpre distinguindo os diversos estratos
do sistema (e conferindo-lhes modos de vinculação-vigência institucionalmente
inconfundíveis). Trata-se com efeito de surpreender a regressividade problemá-
tico-constituenda deste sistema... ou de a surpreender reconhecendo um movi-
mento partilhado (determinado pela prioridade metodologicamente constitutiva
do caso-problema ou pela perspectiva que este assegura): aquele movimento que
se cumpre levando a sério diversos tipos de presunções (ditas de validade, auto-
ridade, racionalidade e justeza) e inscrevendo nelas (ou na assimilação dos tipos
de problemas experimentáveis) outras tantas possibilidades (metodologicamente
diferenciadas) de as refutar-ilidir (e de assumir os explícitos ou apenas implícitos
ónus de contra-argumentação).
Com os princípios a beneficiarem de uma presunção de validade
e a vincularem-nos enquanto validade, as normas a beneficiarem
de uma presunção de autoridade e a vincularem-nos enquanto au-
toridade (político-constitucional), o direito da jurisprudência ju-
dicial a beneficiar de uma presunção de justeza e a vincular-nos a
uma realização justa (prático-concretamente adequada) e à casu-
ística que a objectiva, o direito da jurisprudência doutrinal enfim
a beneficiar de uma presunção de racionalidade e a vincular-nos
prático-culturalmente nos limites discursivos da sua concludência
ou fundamentação críticas...

Acentuação que nos autoriza a responder directamente ao contraponto dog-


mático / crítico (a encontrar na experiência do direito uma caminho plenamente
institucionalizado para enfrentar este problema)… mas também a assumir um
sentido amplo de vinculação — irredutível ao modus prescritivo-autoritário (po-
lítico-constitucionalmente institucionalizado) que habitualmente (mas nem por
isso menos aproblematicamente) se postula167.
3.2. Se o primeiro eixo de respostas nos concentra no processo de institucio-
nalização interna, o segundo permite-nos já considerar a relação com o exterior

1976, sumário este permanentemente retomado e enriquecido em aulas preciosas, às quais tive o privilé-
gio de assistir.
167 “Fontes do direito”, op. cit., pp. 82-90 (4) e (5), Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 154 e ss., “O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 66-67(b). Ver também. o desen-
volvimento desta compreensão jurisprudencialista do sistema em geral e desta tectónica de presunções
em particular assumido por Fernando José Bronze em Lições de Introdução ao direito. 2. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2006, pp. 607-681… e ainda aquele que propus nos Sumários desenvolvidos de Introdu-
ção ao Direito II. Coimbra, 2009, disponível no material de apoio da página on line da respectiva unidade
curricular, <https://woc.uc.pt/fduc/>, pp. 86-123 (e também, autonomizado como “A compreensão juris-
prudencialista do sistema”, em <https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial. do?idclass=282&idyear=6>).

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

ou com os interlocutores-oponentes que nele se identificam (ou pelo menos com


aqueles que fomos encontrando).
3.2.1. Tratando-se desde logo de reconhecer que a exigência de reagir à unidi-
mensionalidade de um discurso pragmático e às calculating forms of reason que
o sustentam — exigência de reacção esta que descobrimos no contexto global
do regresso da comunidade e como condição-traço de identidade deste regresso
—, longe de se contentar com uma reafirmação de afinidades electivas — que
mais uma vez nos exporiam às mediações da retórica narrativa, da ontologia her-
menêutica ou da ética da alteridade, se não à convocação explícita do universo
das Humanidades e da linguagem que este garante (law can also be viewed from
the inside, by someone who lives on its terms, and thus seen as a field of life and
practice, as a set of intellectual and literary activities that are far closer to the
humanities than we normally imagine168) —, está agora em condições de nos
oferecer um percurso autónomo e a institucionalização correspondente (e esta
fixada-experimentada numa sequência de especificações metódicas). Refiro-me
a uma reinvenção do teleologismo que, superando a ameaça do instrumentalismo
pragmático e outros funcionalismos materiais (assumindo neste plano a herança
da Wertungsjurisprudenz),169 se cumpre levando a sério a distinção entre fins e
valores... e instalando assim uma polaridade irredutível170. Sem esquecer que
nestes termos se trata também e principalmente de respeitar um outro equilíbrio
e a indispensável dialéctica: que outro equilíbrio e outra dialéctica senão aqueles
que convocam simultanea e constitutivamente uma exigência de justeza proble-
mática e uma intenção de unidade (uma dimensão teleológica ou problemático-
teleológica e uma dimensão dogmática)171?
3.2.2. Tratando-se depois de mobilizar este mesmo teleologismo (de valores
e de fins) para enfrentar recto itinere o contraponto com a societas (entenda-se o
contraponto da communitas intencionada com a societas-artefacto)... mas então
também para propor uma especificação–institucionalização metodologicamente
construída: uma especificação que possa convocar como contexto imediato a
denúncia (se não desconstrução) de um certo paradoxo — um dos paradoxos que
a crise do paradigma moderno-iluminista nos permite reconhecer (o da procura
da autonomia do jurídico no parâmetro dos quadros constitutivos do Estado172)

168 WHITE, Boyd. From Expectation to Experience. Essays on Law and Legal Imagination, op. cit., 1999, p. 103.
169 Superação nem sempre lograda nalgumas das concepções que sacrificam a especificidade do jurídico a um
holismo prático-poiético.
170 Ver supra, nota 75.
171 Ver neste sentido Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 122-123.
172 Um dos paradoxos a que os fluxos da juridicização do poder e da politização do direito ou de instrumenta-
lização do direito pela política (potenciados pelos equívocos dos neoconstitucionalismos do nosso tempo)

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

— para a projectar no problema da realização do direito com a mediação da


norma... e mais especificamente ainda no problema da experimentação da norma
legal. Como se se tratasse de assumir o desafio da realização da comunidade (ou
da construção de um sentido comunitário) sem renunciar (sem poder e sem dever
renunciar) à relação dialéctica com a societas: antes reflectindo sobre o modus
operandi dessa compossibilidade ou dessa dialéctica.
Ora de assumir esse desafio microscopicamente: levando a sério a perspecti-
va do caso para reconhecer na norma legal seleccionada (ou na índole normativa
do seu critério e da presunção de autoridade de que este beneficia) duas faces
inconfundíveis e outras tantas perspectivas de problematização-interrogação.
Que faces?
(a) a da norma como “imperativo” e como “decisão impositivo-dogmática”
(como “manifestação optativo-teleológica” de uma voluntas em que se
“afirma a sua dimensão político-programática (...) legitimada pela autori-
dade que invoca para a sua prescrição”173)...
...a suscitar o problema da justificação-legitimação da voluntas...
e (ou) do poder que a exerce... mas também a admitir uma recons-
tituição racional dos seus “elementos”, agora não tanto daqueles
que correspondem à sua formulação como Konditionalprogramm,
quanto daqueles que envolvem a sua construção (alternativa) como
puro Zweckprogramm (manifesto ou oculto) — a saber, dos fins
(que prossegue) e dos meios (que mobiliza... ou cuja mobilização
prevê)... e das alternativas de decisão (que enquadra ou que tacti-
camente permite)174...

inevitavelmente nos expõem. Para uma consideração (selectiva) de distintas dimensões deste problema
(ou que nele convergem), ver CASTANHEIRA NEVES. O Instituto dos “assentos” e a função jurídica
dos Supremos Tribunais, op. cit., pp. 583 e ss. (III a)), O problema actual do direito. Um curso de filosofia
do direito, policop., terceira versão, op. cit., pp. 15 e ss. [“O sentido moderno (moderno-iluminista) e pós-
-moderno da normatividade jurídica”], 62-64 (o problema da “identificação da juridicidade com a consti-
tucionalidade”), Metodologia Jurídica, op. cit., pp.195-196 (“A interpretação conforme a Constituição”),
Teoria do direito, op. cit., (versão em fascículos) pp. 224-227,(versão em A 4) pp. 121-124, “A redução
política do pensamento metodológico-jurídico”. In: Digesta, vol 2, pp. 404-409, “O direito interrogado
pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp.51-56 (b)).
173 Metodologia Jurídica, op. cit., p.150.
174 Uma reconstituição racional esta última que se situa certamente para além do que habitualmente se espera
do elemento teleológico... Não se trata com efeito apenas de reconstruir a finalidade prática da norma
legal; trata-se também de estar em condições de reconstituir o programa final explícito ou implícito (na
sua maior ou menor intenção transformadora, na sua maior ou menor vinculação político-ideológica) que
a prescrição em causa estabelece ou que partilha com outras prescrições (programa às vezes oculto sob a
máscara do programa condicional!). Como se, numa palavra, se tratasse de reconhecer a lei na imanência
de uma racionalidade instrumental-estratégica... para experimentar a sua adequação e a sua eficiência ou
realizibilidade maximizadora (ou a antecipação em abstracto que estes problemas permitem)...

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(b) e a da norma como critério jurídico (se não mesmo como juízo problemá-
tico, autêntica expressão de um ius-dicere) constituído “no âmbito de um
sistema de normatividade jurídica” (sistema no qual é fundamentantemen-
te constitutiva uma intenção de validade).175
De tal modo que a prescrição legislativa nos apareça a respeitar os
limites de validade impostos pelos princípios normativos (dirigin-
do-se-nos como uma objectivação possível, entre outras objectiva-
ções possíveis, das intenções destes princípios). O que não é senão
exigir que a “decisão dogmática” que constitui a norma se mostre
“assimilável (ainda que só a posteriori) por um juízo-judicium”
singular e concreto (capaz de tratar-solucionar o problema-caso),
juízo decisório no qual “a prescrição” convocada como critério
“revele uma racionalidade de fundamentação normativa (a racio-
nalidade que a intenção de validade implica)”176.

Que perspectivas? As da ratio legis e ratio juris. Sendo certo que a interro-
gação da ratio legis nos concentra na procura do motivo-fim que determinou a
decisão da norma — na procura da sua justificação político-social e teleológico-
-estratégica (se quisermos na reconstiuição do seu argument of policy) —... e que
a problematização da ratio juris nos obriga já a confrontar esta teleologia com a
coerência normativa dos princípios (e dos correspondentes arguments of princi-
ple)... na mesma medida em que nos onera com a responsabilidade constitutiva
de “transcender aquela teleologia por estes fundamentos”177.
3.3. É a articulação dos dois eixos anteriores e das respostas que estes cons-
troem — numa última série de anotações indispensáveis — que nos vai permitir
voltar ao desafio da pluralidade. E para além decerto da experiência deste que
vemos assimilada pela prescrição-lex.
Para compreender enfim o modo como o mundo referido e construído pelas
práticas juridicamente relevantes institucionaliza a relação constitutiva unidade
/pluralidade? Antes para considerar o modo como este mundo (revisitado pela
reconstituição jurisprudencialista) pode e deve, na nossa circunstância presente,
institucionalizar uma tal tensão… — isto naturalmente se quiser estar à altura do
projecto-procura que o distingue (o autonomiza) na ordem da intencionalidade.
Institucionalizar esta tensão com que exigências? Sem renunciar à polaridade
que a dinamiza. E sem a reconduzir a uma conformação aporética. Mas também
sem que a reconstituição crítico-reflexiva que daqui resulte esteja condenada a

175 Metodologia Jurídica, op. cit., p.150-1.


176 Ibidem, p.150.
177 Ibidem, pp. 184-195. Ver também “Fontes do direito”, op. cit., pp.75-79 (o problema dos limites normati-
vos da lei).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

dirigir-se-nos como uma voz no diferendo com as outras vozes (e ao isolamento


apologético que a impostação-projecção reconhecível desta voz exige).
O que se compreende se tivermos presente que a reconstituição
em causa nos ajuda a resistir a esta fragmentação ou à sua supe-
ração unilateral. Mostrando que não estamos condenados a que o
fenómeno da multiplicação dos discursos e metadiscursos (que se
tornou uma dimensão inescapável da nossa circunstância) nos atin-
ja enquanto juristas — e enquanto juristas integrados numa deter-
minada comunidade de juristas (comprometidos com um socioleto
possível ou com um desempenho profissional específico e com as
“situações institucionais” que o(s) assumem) — apenas como uma
experiência de indeterminação178. Como não estamos condenados
à pragmática de indecidibilidade ou mesmo ao paradigma de de-
cisão que a consagração desta experiência como palavra última
inevitavelmente determinaria179.
Preocupações que nos reconduzem ao núcleo da institucionalização do siste-
ma jurídico e muito especialmente ao modo como a procura de unidade que este
traduz (recusando a clausura holística e a autossuficiência aproblemática justifi-
cadas pelo isolamento normativístico) nos submete a uma dialéctica (permanen-
temente recomeçada) entre práticas de estabilização e práticas de realização.
Acentuação que nos impõe uma última sequência de respostas ou pelo me-
nos o reconhecimento da dinâmica que as articula.
3.3.1. Com um primeiro passo iluminado pela distinção fundamentos / crité-
rios180 [3.3.1.1.] e (ou) pela a exigência de a precipitar numa certa compreensão
dos princípios enquanto jus [3.3.1.2.].
3.3.1.1. Permitam-me que sublinhe a importância da primeira distinção na
sua relevância metodológica181: aqui e agora (fundamentalmente) como uma

178 A alternativa que esboçamos no texto parte de uma conhecida distinção de Derrida. Trata-se de permitir
que a uma acentuação indiscriminada (e como tal trivial) da indeterminação da linguagem — que só pode
remeter-nos para um exercício de discricionaridade (demitindo-se de explorar este e as condições de
relevância que o singularizam) — se contraponha uma representação da necessidade da contextualização
e da abertura infinita de todos os contextos que (enquanto oscilação pragmática entre sentidos possíveis),
Derrida autonomiza precisamente como indecidibilidade: “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”,
Limited Inc, Evanston-Illinois, Northwestern University Press, 1988, pp. 148-149 (1.). O recurso a esta
distinção não implica no entanto que atribuamos à pragmática da indecidibilidade o alcance assumido por
Derrida (um alcance que a torna indissociável da experiência da différance e do movimento de recontex-
tualização que se diz dissémination). Trata-se muito simplesmente de invocar dois degraus da experiência
da indeterminação, o primeiro radicalmente aberto, o segundo já racionalmente controlado.
179 Este é um problema que tratei expressamente em “Jurisdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma
“teoria” do direito como moldura?”, op. cit., passim.
180 Já assim no Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da Facul-
dade de Direito de Coimbra, op. cit., pp.331 e ss (“Os “princípios normativos” não são ‘normas’”).
181 Trata-se de autonomizar no fundamento a racionalização justificativa da inteligibilidade de um certo do-
mínio ou compromisso prático… e neste sentido de lhe atribuir o papel de um warrant argumentativo

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distribuição de possibilidades e experiências que, levada a sério na perspectiva


do caso-problema, confronta modos distintos de assimilação do binómio uni-
dade / pluralidade (ou se quisermos já do binómio práticas de estabilização /
práticas de realização).
Permitam-me ainda que acentue esta importância construindo parafrastica-
mente uma narrativa... e mobilizando para tal recursos exteriores: concertando as
imagens do farol e da bússola propostas respectivamente por Drucilla Cornell e
Adela Cortina182... e permitindo que estas nos sirvam de estímulo para simplificar
plasticamente o nosso problema.
Trata-se, com efeito, de comparar os fundamentos (e muito especialmente os
princípios) à luz projectada por um farol ou à orientação determinada por uma
bússola. Como se tratar-solucionar uma controvérsia juridicamente relevante e
o problema-caso em que esta se transforma (ou vai transformando) — ou muito
simplesmente considerar um problema de direito (independentemente do pla-
no de objectivação mais ou menos abstracto com que este se nos expõe e da
urgência reflexivo-decisória com que nos estimula) — correspondesse afinal à
travessia de um território desconhecido... ainda e sempre por percorrer — com
especificidades-novidades que se descobrem caminhando... e que nos obrigam a
enfrentar-inventar um caminho irrepetível.
Travessia que não se poderia cumprir adequadamente se o caminhante (à pro-
cura da decisão-juízo) contasse apenas com a sua inventio... ou se esta inventio

autonomamente pressuposto (o fundamento justifica uma conclusão racionalmente plausível mas não nos
propõe uma solução ou tipo de solução, não nos dispensando assim do esforço discursivo de a obter). Como
se trata ainda de invocar o critério como “operador” (“técnico”) disponível, um operador que pode ser
imediatamente convocado para resolver um determinado tipo de problemas e (ou) que pré-esquematiza a
solução (exigindo não obstante um esforço discursivo de concretização-realização). Como se os critérios se
nos oferecessem como “objecto(s) da interpretação” e os fundamentos como os “elementos de concludência
racional que possibilitam, condicionam ou sustentam a própria interpretação”. O que nos permite reconhe-
cer que os princípios normativos (prolongados por algumas explicitações-objectivações da doutrina) se
nos ofereçam (e devam ser tratados metodologicamente) como fundamentos, devendo em contrapartida as
normas, os precedentes ou prejuízos jurisdicionais e a maior parte dos modelos dogmáticos ser assumidos e
experimentados como critérios.
182 A primeira (com um piscar de olhos a Virgínia Woolf!) a considerar globalmente o problema dos princípios
jurídicos, a segunda a referir-se já apenas ao contributo de Kant e à sua construção da “Paz perpétua” ou
aos princípios que esta assume (e então e assim a defender Kant de uma “injusta” crítica de Hegel). “A
principle (...) is not a rule (...). A principle is instead (…) a guiding light. It involves the appeal to and
enrichment of the “universal” within a particular nomos. We can think of a principle as the light that comes
from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going into wrong direction…” (COR-
NELL, Drucilla. The Philosophy of Limit. London: Routledge, 1992, p. 106). “La mejor aportación (...)
consiste en no ofrecer un solo camino (…), sino en ofrecer una brújula, en vez de un mapa de carreteras.”
(CORTINA, Adela. “Cosmopolitismo y Paz. La brújula de la razón en su uso político”, Revista Portuguesa
de Filosofia, 2005, vol. 61, fasc. 2, p. 390).

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

(decerto indispensável!) não beneficiasse de apoios e orientações trans-subjec-


tivamente (racionalmente) vinculantes — entenda-se, das práticas de estabilli-
zação e realização do sistema jurídico, práticas estas cumpridas, em planos-ter-
ritórios muito distintos, por outros caminhantes anteriores (legisladores, juízes,
juristas dogmáticos!)... práticas que assim mesmo constituem (e lhe proporcio-
nam) um património precioso!
Travessia então que não se poderia cumprir adequadamente... se o caminhan-
te não beneficiasse de dois tipos de apoios-guias. Que tipos de apoios?
α) Aqueles que, sem preverem os problemas (ou tipos de problemas) que ele
irá enfrentar (sem anteciparem as encruzilhadas e os obstáculos, as armadilhas e
os atalhos!) lhe proporcionam não obstante uma orientação (constitutiva) funda-
mental — comprometendo o seu percurso com a realização de certas exigências
(seguir a luz, caminhar para o Pólo Norte)... e então e assim mostrando-lhe
(muitas vezes apenas pela negativa) que não deverá seguir um percurso que o
afaste de tais exigências...
β) E aqueles que lhe proporcionam já itinerários ou mapas mais ou menos
pormenorizados — itinerários ou mapas que, mesmo no seu maior grau de con-
cretização (o dos critérios jurisprudenciais), não se confundem decerto com o
caminho a percorrer... e que no entanto antecipam (prevêem183, exemplificam184
ou reconstroem reflexivamente185) situações-problemas (tipos186 ou exempla187
ou modelos188 de situações-problemas), na mesma medida em que propõem (es-
quematizam189, exemplificam em concreto190 ou reconstituem racionalmente191)
soluções, alternativas ou tipos de soluções plausíveis para estes problemas...
Sendo certo que a travessia deve submeter-se a duas exigências fundamen-
tais e às advertências que as iluminam.
(1) A de não tratar a orientação oferecida pelos princípios-fundamentos como
se esta correspondesse ao apoio proporcionado pelos critérios-mapas...

183 As normas legais.


184 As decisões judiciais mobilizadas como critérios (pré-juízos-exempla, precedentes).
185 Os modelos dogmático-doutrinais que se nos oferecem como critérios.
186 Ainda as normas legais.
187 Ainda os critérios judiciais.
188 Ainda os modelos dogmáticos.
189 De novo as normas…
190 … os pré-juízos jurisdicionais…
191 … e os modelos dogmáticos.

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Os princípios não são critérios-regras (nem se distinguem destas


apenas por serem mais indeterminados ou abertos)... e neste senti-
do exigem metodologicamente um outro tratamento!

(2) A de não se satisfazer com os critérios-mapas...


O nosso caminhante não pode com efeito pretender construir o per-
curso como se este fosse uma mera desimplicação dos itinerários ou
dos mapas! Mesmo que tenha seleccionado itinerários ou mapas e
os tenha à sua disposição (e o primeiro passo deve sempre o da pro-
cura destes!192), não poderá assim dispensar-se de por um lado os
experimentar no terreno (em dialéctica com as situações-problemas
concretos) e de por outro lado mobilizar inteligentemente as suas
instruções — o que, como veremos, significa sempre atender à luz
do farol ou à indicação da bússola... (nunca caminhar em sentido
oposto ao destas, sejam quais forem as indicações dos critérios!).

3.3.1.2. Mais do que a distribuição de possibilidades em si mesma, importa-


nos no entanto a exigência de submeter o tratamento dos princípios a este con-
traponto rigoroso. Ou muito simplesmente a conclusão de que a reabilitação dos
princípios falhará se os tratarmos como critérios mais indeterminados (ainda que
façamos corresponder o tratamento dessa indeterminação a uma pragmática de
optimização de comandos).
Ao assumir uma compreensão dos princípios normativos como autêntico193
direito vigente (princípios como jus)194, no seu sentido forte e pleno195 — ao re-

192 O passo por assim dizer mais natural: aquele que leva o jurista de um sistema de legislação a procurar a
norma legal e o jurista do common law a procurar o precedente vinculante... que assimilem a relevância do
seu problema-caso!
193 Recorde-se a distinção entre princípios como ratio, como intentio e como jus, na qual Castanheira Neves
tem exemplarmente insistido desde a sua citada lição-síntese… e que aqui e agora reconstituímos invocan-
do a mediação privilegiada das suas aulas e ensinamentos orais.
As concepções que vêem nos princípios apenas ratio (condições epistemológicas de uma racionalização
cognitivo-sistemática das normas legais) são, na verdade, herdeiras da compreensão normativística dos
princípios gerais de direito (e muito especialmente daquela que o positivismo conceitual desenvolveu na
segunda metade do século XIX) — uma compreensão que reduz o direito ao estrato das normas para ver nos
princípios gerais “normas mais abstractas e mais gerais” obtidas por abstracção generalizante ou concen-
tração-classificação (se não por indução) a partir das normas vigentes e com o objectivo claro de conseguir
um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas últimas e da unidade horizontal (por coerência)
que estas constituem… — normas que assim mesmo os princípios gerais não excedem normativamente, às
quais nada acrescentam no plano das “soluções” prático-normativas, com as quais (enquanto axiomas ra-
cionalmente imanentes) nunca entram em confronto (às quais nunca põem exigências de validade!)... cujas
significações se limitam a reproduzir-sintetizar...
Outra é a compreensão dos princípios como intenções (intentio). Segundo esta linha de compreensão (na
qual reconhecemos a herança neo-kantiana de Stammler), trata-se de admitir que as intenções-exigências
dos princípios têm já um sentido prático-normativo... excluindo no entanto a possibilidade de vermos nelas
autêntico direito vigente. Para constituirem direito vigente (para adquirirem juridicidade), estas intenções
têm, à luz desta perspectiva, que ser assimiladas pelas normas legais (a começar pelas leis constituticio-
nais) e (ou) pelos precedentes vinculantes — têm, numa palavra, que se manifestar em critérios positivos

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

conhecer nestes os fundamentos constitutivos da validade do direito (em todos


os planos de afirmação e experimentação da juridicidade) —, a reconstituição
jurisprudencialista não só nos expõe a uma experimentação permanente do ex-
cesso normativo dos princípios — enquanto intenções constitutivas de um nor-
mans (inesgotáveis nos critérios e nas realizações que fundamentam) — como
também exige que ao problema do tratamento destes warrants corresponda uma
experiência de constituição-manifestação-realização inconfundível.
Acentuação esta última que nos permite reconhecer uma institucionalização
particularmente expressiva da relação entre a pressuposição integradora de um
horizonte de validade e a abertura permanente a uma pluralidade de contextos
de realização — se não já explicitamente do círculo ontologicamente produtivo
em que esta inevitavelmente se inscreve. O que aqui e agora significa testemu-
nhar uma especialíssima consonância prática entre os princípios que se invo-
cam como compromissos e projectos de ser ou de ser-com-os-outros (a cuja
orientação-condução nos submetemos) e o “conteúdo normativo-concreto” da
realização destes compromissos (indissociável dos problemas-controvérsias e do
novum irredutível que estes introduzem)196. Decerto porque os princípios não
antecipam problemas ou tipos de problemas (ainda a imagem do farol ou da bús-
sola!)... na mesma medida em que, furtando-se a uma qualquer pré-determinação
em abstracto das suas exigências, só fazem sentido (só atingem a sua integridade
normativa) realizando-se (e neste sentido também transformando-se e transfor-
mando-se inevitavelmente em cada nova experimentação concretizadora). Como
se, numa palavra, se tratasse de experimentar um continuum (sem soluções) de

vinculantemente institucionalizados, recebendo destes (ou da autoridade-potestas que os sustenta) a sua


força jurídica (ou a dimensão constitutiva que a traduz). Há aqui de resto duas possibilidades (que podem
ser defendidas em conjunto ou separadamente... se não concebidas como meras diferenças de grau). (1) A
possibilidade de ver nos princípios intenções regulativas (manifestação de expectativas sociais ou de com-
promissos comunitários sem carácter jurídico) capazes de orientar directamente (mas apenas de orientar!)
a construção-produção de critérios jurídicos (especialmente legislativos) [função regulativa para a nor-
mativa constituição do direito positivo (os princípios como intenções regulativas, não constitutivas, que a
política legislativa deverá ter em atenção ou que a poderão orientar na busca de soluções mais adequadas)].
(2) A possibilidade de ver nos princípios intenções regulativas com um carácter metodológico: intenções
que, não constituindo como tal direito vigente, podemos convocar como apoios-arrimos (se não como câ-
nones ou regras secundárias de juízo... ou até mesmo como razões argumentativas) quando interpretamos
uma norma legal ou um critério jurisprudencial... e muito especialmente quando temos que enfrentar um
caso omisso e resolver um problema (dito) de integração [função regulativa no direito positivo constituído
e na prática de integração ou desenvolvimento deste].
194 A preferência pela formulação princípios normativos permite-nos desde logo distinguir esta concepção
(dos princípios como jus) da concepção dos princípios como ratio directamente associável à expressão
princípios gerais do direito. Ver neste sentido BRONZE, Fernando José. op. cit., pp. 627-628 e nota 61.
198 Algumas propostas tratam os princípios como jus mas atribuem-lhes um carácter subsidiário (estes se-
riam apenas convocados quando os critérios não nos dão uma resposta!).
196 CASTANHEIRA NEVES. Metodologia jurídica, op. cit., pp. 203-204

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constituição-manifestação-realização — exemplarmente distinto daqueles que


os critérios legislativos, jurisprudenciais ou dogmáticos nos impõem197 —... mas
então e assim também de permitir um outro tratamento da singularidade... — um
tratamento que não fique prisioneiro de uma assimilação da pluralidade previa-
mente decidida ou experimentada (e da violentação-domesticação do novum que
todos os critérios, em termos mais ou menos drásticos, representam)198.
3.3.2. O segundo passo parte do primeiro e do seu ponto de chegada. Introduz
no entanto uma dinâmica distinta (aparentemente perturbadora). Trata-se, com
efeito, de mobilizar o estrato do sistema no qual as controvérsias se manifestam e
o direito se realiza: o estrato da realidade jurídica que, como sabemos, está longe

197 “[A] ausência de hipótese-previsão nos princípios ou a sua indeterminação referencial, já que essencial
para eles é só o seu regulativo compromisso axiológico e prático, não impõe apenas que a sua normativi-
dade se determine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não simplesmente dogmática
ou lógica) dessa sua normatividade só possível de atingir-se mobilizando a dialéctica entre o seu regula-
tivo, que convoca à realização, e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a manifeste realizada.
Se as normas são autossuficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os princípios são
fundamentos “para tomar posição perante situações, a priori indeterminadas, que venham a determinar-
-se concretamente” (Zagrebelski). Em síntese: as normas legais esperam a sua aplicação e em último
termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência abs-
tracta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstracto, e só
em concreto, porque só em concreto logram a sua determinação, e se lhes pode atingir o seu autêntico
relevo...” (CASTANHEIRA NEVES. O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito,
policop., terceira versão, op. cit., pp. 59-60).
198 Partindo embora de um horizonte radicalmente distinto (comprometido com a ética da alteridade e com
a desconstrução como filosofia) — e não deixando por isso de preservar com alguma ambiguidade os
topoi da indeterminação e das diversas alternativas de resposta —, Drucilla Cornell chega a uma exigên-
cia de diferenciação paralela (tanto mais exemplar precisamente quanto sustentada em pressupostos que
previsivelmente a levariam a trilhar um outro caminho). Tratando-se muito claramente de confrontar
a pretensão de autossuficiência e autossubsistência dos critérios-rules e o modo como esta legitima
uma “violência contra a singularidade” — legitimação que encontrará na compreensão do positivismo
jurídico (latissimo sensu) a sua consagração-forma (ontologicamente totalizante) — com a pretensão de
universalidade dos princípios e com o modo como esta é (ou deve ser) histórico-pragmaticamente assu-
mida (as for which principles we adopt within the nomos (…) of the law (…), we are left with the process
of pragmatic justification based on the ability of a principle to synchronize the competing universals
embodied in the nomos) [The philosophy of the limit, op. cit., p. 106]. Princípios que, não deixando de
perturbar a pureza do encontro ético e de “violentar” a diacronia do jogo das significações (principles
inevitably categorize, identify, and in that sense violate différence by creating analogies between the like
and the unlike) [ibidem, 105] nos aparecem não obstante a orientar uma prática racional de “redução”
da violência (e de respeito pelas diferenças). Decerto porque as exigências-compromissos que os distin-
guem vão ser experimentadas na perspectiva de cada situação-problema. Sem impor o “exacto caminho
a percorrer”, antes assumindo um potencial de fundamentação que supera as pretensões da resposta
única. Mas então e muito simplesmente excluindo as respostas que naquele contexto pragmaticamente
reconhecível — e naquele horizonte historicamente determinado — devam dizer-se “incompatíveis”
com a realização do seu compromisso. We can think of a principle as the light that comes from the light-
house, a light that guides us and prevents us from going in the wrong direction [ibidem, 106]. Ver ainda
“From the Lighthouse: the Promise of Redemption and the Possibility of Legal Interpretation”, Cardozo
Law Review, 11, 1990, pp. 1689 e ss.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

de poder ser compreendido como um mero campo de aplicação histórico-social


de uma normatividade dada ou pressuposta199...
De o mobilizar em que termos? Por um lado para o descobrir como um território
privilegiado de explosão (e de enquadramento prático-normativo) da pluralidade.
Importando-nos agora menos a dimensão dinâmica (como que
microscopicamente “pontualizada”) desta realidade, que até agora
privilegiámos — aquela que se esgota na emergência das contro-
vérsias-casos e no seu tratamento judicativo-decisório — do que
a sua dimensão institucional. A dos institutos de direito privado
e a das instituições de direito público200 que, enquanto tipos de
relação-actuação,201 se nos expõem como manifestações de um au-
têntico law in action202? Também a daqueles “modos concretos de
organização e de associação que se impõem na vida social como
entidades a se”.203 Só que também e ainda (permita-se-nos acres-
centar!) uma terceira frente, hoje absolutamente indispensável.
A daquela realidade jurídica que, enquadrando-assimilando o diag-
nóstico que começámos por propor (ou um dos seus painéis204), nos
atinge sobretudo como um ensemble plural de “situações institu-
cionais” e de cânones205 — sustentados pelas práticas profissionais
das distintas comunidades de juristas (advogados, juízes, juristas

199 CASTANHEIRA NEVES. Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, op. cit., pp. 347-351, “A unidade do
sistema jurídico...”, op. cit., pp. 172-174, “Fontes do direito”, op. cit., pp. 56-58, Metodologia Jurídica, op.
cit., pp.149,151 ess, 157 e ss., 176 e ss., 182-184.
200 Se as expressões rechtprivatlichen Institute e rechtöffentlichen Institutionen nos remetem para Carl Sch-
mitt, importa esclarecer que as usamos aqui apenas para distinguir os domínios normativos em causa e
contrapor assim o instituto da propriedade à instituição do habeas corpus, o instituto do casamento à ins-
tituição do contrato administrativo, o instituto do poder paternal às instituições do Estado-de-Direito (sem
as implicações que o konkretes Ordnungsdenken atribui a esta dicotomia).
201 Distintos assim dos “institutos” que, ao lado dos “conceitos”, o positivismo científico do século XIX isola-
va-construía como puras “individualidades lógicas”... na mesma medida em que irredutíveis aos princípios
ou critérios que normativamente os conformam... ou ao law in the books que os enquadra ou disciplina.
202 Um law in action assim mesmo conformado por uma precipitação-cruzamento (e interpenetração recipro-
camente constitutiva) de intenções normativas e de factores e experiências e práticas sociais (política, eco-
nómica ou culturalmente relevantes)... suficientemente estabilizadas para poderem ser reconhecidas como
realidades (“estruturas, esquemas ou tipos jurídico-sociais de actuação e de relação”): Curso de Introdução
ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano
lectivo de 1971-72, op. cit., p. 349.
203 Ibidem, pp. 349-350. Trata-se de identificar as realidades simultaneamente jurídicas e sociais que cor-
respondem ao exercício da autonomia privada (correlativas por exemplo da consagração pelas partes A
e B de um certo contrato ou cláusula contratual)... ou às práticas de especificação-realização de um certo
estatuto, mais ou menos convencionalmente objectivado (a realidade normativo-social que descobrimos
nas sociedades, associações e outros corpos autónomos ou nas práticas que os constituem).
204 Ver supra, 1.2.
205 Cânones que incluem evidentemente as regras ou bordões procedimentais autonomizadas por Fernando
Bronze como um dos estratos do sistema jurídico (aquelas que, segundo o Autor, beneficiarão de uma
presunção de prestabilidade): BRONZE, op. cit., pp. 670-671.

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

dogmáticos, juristas académicos) e então e assim precipitados em


experiências colectivas inconfundíveis... se não já distribuídos por
outros tantos grupos semióticos ou comunidades interpretativas
(também eles divididos ou fragmentados). Situações institucionais
e cânones que se nos impõem como outras tantas experiências de
determinação-especificação e de realização do sistema jurídico
(capazes de iluminar diversamente os seus fundamentos e critérios
e de reconhecer dimensões e possibilidades distintas nos compro-
missos práticos e nos modelos-mapas que os estabilizam)

Por outro lado para considerar esta realidade plural na sua relação cons-
titutiva com os princípios: o que significa interpelá-la circularmente… tanto
como aquela realidade-referente que os princípios, na sua realização-determi-
nação, conformam (e que por isso mesmo “adquire” um “sentido juridicamente
valioso”206), quanto como aquela prática de casos-acontecimentos e de decisões
judicativas na qual as exigências dos princípios (frequentemente manifestadas
nos critérios, mas nem por isso menos abertas a uma historicidade constitutiva)
se tornam enfim plenamente inteligíveis e determinadas.
Sendo precisamente da conjugação destas duas vertentes que resulta a per-
turbação anunciada. Uma perturbação que podemos concentrar numa pergunta:
a de saber se — e até que ponto é que — a fragmentação (no limite do diferendo)
que afecta hoje as comunidades interpretativas e as suas situações institucionais
(os projectos de realização, os materiais canónicos, os códigos linguísticos e
extralinguísticos)... não ameaça afinal a própria manifestação constitutiva dos
princípios — aquela que se descobre in action na teia destas comunidades restri-
tas e no jogo que, em cada contexto histórico, as inter-relaciona —... ameaçando
também, através dela, a pretensão de unidade do sistema (e no limite, a inteligibi-
lidade reconhecível do mundo humano do direito ou do projecto que o ilumina).
Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação das situações institucionais (e
dos códigos que estas mobilizam) suscita processos de realização-determinação
incompatíveis com um sentido material (ou com a partilha deste), o compro-
misso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade comunitária esta-
rão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente aquela que
reconduz tal validade à solução contingente de um puro consenso a posteriori
— a ameaça que associámos a uma possível hipertrofia tópico-problemática —,
porque é já aquela outra que, reconhecendo a impossibilidade deste consenso (ou
de uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de evocar

206 O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, op. cit., p. 60
(citando Zagrebelsky).

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uma tal validade ou o princípio que a especifica (e que na situação em apreço a


representa) como se de um puro nomen (mais ou menos apelativo) se tratasse.
3.3.3. Pergunta que nos restitui ao último patamar de institucionalização.
Aquele em que tudo se recupera? Aquele pelo menos em que a exigência de
uma articulação lograda entre validade comunitária e contextos de realização,
entre unidade intencional e pluralidade discursiva (se não mesmo entre clausura
dogmática e problematização crítica) encontra enfim a oportunidade de uma
determinação reflexiva e a consciência estabilizadora que a torna possível. Que
determinação reflexiva? Aquela que a nossa circunstância exige de uma dog-
mática doutrinal pratico-normativamente reinventada207? Antes aquela que só
uma articulação lograda das jurisprudências judicial e doutrinal — reconduzida
à unidade prático-prudencial de um direito de juristas208, mas também (e sig-
nificativamente) amplificada por um encontro com patamares metadogmáticos
(permitida por um diálogo fecundo com a reflexão universitária209) — estará em
condições de enfrentar.
Para a dogmática em causa, responsabilizada pelo continuum em que se
inscreve ou pela “conjugação” (entre os “tribunais” e a “universidade”)210 que
mediatiza, a hora já não é certamente apenas a de renunciar aos despojos (sobre-
vivos) de um paradigma perdido e aos simulacros de autonomia que estes apa-
rentemente lhe garantem — quer se trate de discutir as pretensões cognitivistas
da dogmatische Rechtswissenschaft do século XIX… ou de reconhecer hoje as
suas cicatrizes, nos códigos-rotinas ou nos sociolectos-territórios das diversas
comunidades de juristas —, porque é também a de resistir a novos apelos e de
assumir autorreflexivamente estas resistências…
A de resistir à conversão que a preserva (no seu cognitivismo
categorial-classificatório) como autêntica “organização das re-
dundâncias” e rede de segurança — na mesma medida em que
a responsabiliza por uma efectiva desparadoxização da jurispru-
dência judicial (Luhmann). A de resistir sobretudo aos apelos-
-programas que a superam ou substituem: àqueles que a subme-
tem às soluções de uma tradução marginalista (as free market
jurisprudence) [Law & Economics] ou às opções éticas de uma

207 CASTANHEIRA NEVES. Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, op. cit., pp. 343-347, “A unidade do
sistema jurídico…”, op. cit., pp. 172, “Fontes do direito”, op. cit., pp. 89-90, Metodologia Jurídica, op.
cit., pp. 157, 184 e ss.
208 “Fontes do direito”, op. cit., pp.90-93, Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 185-186, O problema actual do
direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, op. cit., pp. 54-F a 54-Q.
209 O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, op. cit., pp. 74-75 (também
no Digesta, op. cit., vol.3, pp.71-72).
210 Ibidem, p. 74 (e 71).

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JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

microfísica de poderes e resistências e à analítica interpretativa


(as deviationist doctrine) que a prossegue (Critical Legal Scho-
lars), quando não a substituem pelas possibilidades-promessas
(já radicalmente exteriores) de uma tecnologia social (social en-
gineering) ou de uma crítica de ideologia (teorias crítico-dialéc-
ticas, postmodern jurisprudences)211...

Sem ficarmos por aqui. Porque é também a hora desta dogmática se debater
com a pluralidade de vozes que (já para além destas grandes opções-modelos)
internamente a fragmentam... vozes que, disputando também a jurisdictio e a
academic house que com ela convergem (e muito especialmente esta última…
quando não são directamente produzidas por ela!), ameaçam ainda a inteligibili-
dade unitária de um autêntico Juristenrecht.
A hora, entenda-se, de se debater conscientemente com esta pluralidade.
Como se não pudessemos confiar já apenas na dinâmica que inter-relaciona
communis opinio e fluxos desviantes — no contraponto-ordinans entre as cor-
rentes que ocupam o centro ou que dominam a superfície e os pequenos rios
periféricos ou subterrâneos (que se vão impondo... muitas vezes para ocupar
o lugar dos primeiros!) — ou nesta dinâmica pressuposta (garantida) as doing
what comes naturally. Mas então também como se uma comunicação critica-
mente lograda com as diversas comunidades interpretativas e as suas redes
limitadas de codificação (ou pelo menos com os problemas que a pluralidade
dos seus diagnósticos nos autoriza a detectar) se tivesse tornado indispensável
para garantir que a dogmática doutrinal possa efectivamente desempenhar a
sua tarefa desoneradora.
Não tanto nem apenas para impedir que as suas dimensões descri-
tivo-empírica e lógico-analítica (empenhadas respectivamente na
descrição reconstitutiva do direito vigente e no esclarecimento de
categorias ou usos linguísticos) possam ser sustentadas autonoma-
mente (em nome de uma intenção cognitiva ou de uma intenção
analítica), entenda-se, para exigir que todas estas práticas-tarefas
sejam levadas a sério na perspectiva de uma unidade intencional
normativo-prática (e assumindo um discurso sujeito / sujeito) —
intencionalidade e discurso estes especialmente visíveis na tarefa
que explicita-constitui princípios ou que constrói modelos-crité-
rios212. Também e muito especialmente para garantir que… entre o
desempenho desonerador (e o contrôle sistemático-racional) que a
dogmática cumpre dirigindo-se à prática judicativo-decisória por

211 Para um confronto esquemático de algumas destas propostas, veja-se o nosso “Rechtsdogmatik, Autono-
mie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die Gerichte ein Sicherheitsnetz?“, op. cit., passim.
212 Trata-se, como é evidente, de partir da distribuição de dimensões proposta por Alexy: Theorie der juristis-
chen Argumentation. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1978, pp. 308 e ss.

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JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?

um lado, e a invenção autónoma (heurístico-antecipante) de funda-


mentos e critérios específicos que ela assume fazendo novas per-
guntas e esboçando respostas também novas por outro lado, passe
a impor-se uma conexão muito mais reflectida (que não se limite
a intensificar discursivamente a natural convergência destas duas
tarefas)213. Ora uma conexão que se cumpre internamente, desem-
penhando uma outra (uma terceira) tarefa; aquela que responsabi-
liza a dogmática por uma reelaboração estabilizadora do próprio
sistema (pela reconstitução prática das normas, pela explicitação
normativa da experiência constituinte da casuística e da prática
judicativa, pela mediação manifestante e reconstitutiva dos princí-
pios), na mesma medida em que lhe exige que reconheça neste sis-
tema a unidade-ordinans de uma pluralidade historicamente reali-
zada. Reconhecimento que exige hoje por sua vez uma tematização
crítico-reflexiva (com o apoio precioso das arenas metadogmáticas
da teoria, metodologia e filosofia jurídicas!)... dependendo desta
afinal a possibilidade de corresponder ao desafio de uma intenção
que se possa dizer simultanea e incindivelmente hermenêutico-
sistemática, prático-judicativa e prático-realizanda.

Uma comunicação criticamente lograda (e por isso mesmo muito exigen-


te)... mas não certamente equidistante... porque comprometida com a procura
hoje possível do projecto humano do direito (se não com a “proclamação”
contextualmente plausivel, mas nem por isso menos “incondicional”, de um
direito autónomo214).
O que, como se vê, corresponde a uma institucionalização com condições
específicas. Condições que, permitindo-nos levar a sério uma dialéctica entre
unidade e pluralidade, integração e diferença, não são partilhadas pelos outros
mundos práticos, nem podem ser reconhecidas e experimentadas projectando
unilateralmente os problemas e soluções que estes enfrentam... e muito menos
desvelando (sem mais!) o horizonte compreensivo (e as categorias de inteligibi-
lidade) em que todos estes mundos participam.
Especificidade que a reconstituição crítica do sentido do direito assumida
pelo pensamento jurisprudencialista nos ensina privilegiadamente a reconhecer
e a experimentar? Importa acentuá-lo. E agora para concluir. Respondendo à
pergunta que nos conduz. Já não só para dizer que a compreensão jurispruden-
cialista abre uma resposta possível em tempo(s) de pluralidade e de diferença.
Mas para afirmar que em tempos de pluralidade e de diferença como são os

213 Trata-se ainda de mobilizar (selectivamente) a especificação das funções da dogmática proposta por Ale-
xy: ibidem, pp. 326-332 (2.4.5.).
214 CASTANHEIRA NEVES. O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito,
op. cit., p. 74 (e 71).

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nossos, esta corresponde, cada vez mais claramente, a uma aposta prático-cul-
turalmente indispensável. Il faut parier (...) et (...) cela n’est pas volontaire,
vous êtes embarqué.

Coimbra e Ouro Preto, Outubro de 2008

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CAPÍTULO IV
JUSTIÇA TRANSCENDENTE E
AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA:
UM CONTRAPONTO ENTRE JACK BALKIN
E CASTANHEIRA NEVES*

Ana Margarida Simões Gaudêncio


Universidade de Coimbra

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES DOUTOR CASTANHEIRA NEVES, DOUTOR SEBASTIÃO


TROGO, DOUTOR PINTO BRONZE, DOUTOR AROSO LINHARES, DOUTOR NUNO SANTOS
COELHO, DR. ANTÔNIO SÁ DA SILVA, DR. BRUNO CAMILLOTO ARANTES, Senhores Dou-
tores Presentes, Caríssimos Colegas, Senhores Estudantes, Senhoras e Senhores:
Antes de mais, não posso deixar de fazer referência à grande honra que é
para mim estar presente neste Seminário, e dirigir-me a Vossas Excelências, nesta
belíssima sala, na sequência do convite que tão gentilmente me foi dirigido pelo
Senhor Doutor Nuno Coelho — e que mais uma vez agradeço—, na envolvência
desta cidade extraordinária que é Ouro Preto, inserida no historicamente riquís-
simo Estado de Minas Gerais, no Brasil — que tão próximo está afinal de Portu-
gal —, e numa homenagem ao nosso caríssimo Mestre, o Excelentíssimo Senhor
Doutor Castanheira Neves. E para tratar um tema tão premente quão inquietante
como é este que aqui nos congrega: “Direito interrogado hoje”, com uma acentu-
ação especialíssima na pergunta “o Jurisprudencialismo: uma resposta possível?”.
Esta pergunta, mote do nosso encontro, de imediato nos conduz à considera-
ção do sentido do direito, e do seu sentido hoje, num mundo globalizado e plural
em que a voragem do tempo consome, paradoxalmente, a possibilidade de sedi-
mentação, no tempo, das essenciais valorações agregadoras daquele mesmo sen-
tido. O que leva a perguntar, de novo, por esse sentido, hoje.1 Um perguntar que,

* O presente texto corresponde à participação, em 18 de Outubro de 2008, no Seminário Internacional de


Filosofia do Direito, em homenagem ao Senhor Doutor António Castanheira Neves, organizado pela Facul-
dade de Direito de Conselheiro Lafaiete, pela Universidade Presidente Antônio Carlos e pela Universidade
Federal de Ouro Preto, nos dias 17 e 18 de Outubro de 2008, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil,
tendo como tema geral “Direito interrogado hoje — o Jurisprudencialismo: uma resposta possível?”.
1 Vide, entre outras reflexões de CASTANHEIRA NEVES, António. “O direito como alternativa humana.
Notas de reflexão sobre o problema actual do direito”. In: Digesta — Escritos acerca do direito, do pen-
samento jurídico, da sua metodologia e outros. vol. I, Coimbra, 1995, p. 287-310; “Entre o ‘legislador’,

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

seja qual for o ponto de partida, há-de cruzar-se no caminho, inevitavelmente,


com a perspectiva jurisprudencialista, e com a possibilidade — ou impossibilida-
de — de nesta proposta, ou a partir desta proposta, encontrar respostas, diríamos
respostas-projectos, pois que o que se trata é de projectar para a frente um sentido
que se quer para o direito e para o papel que há-de desempenhar na prática. Ou,
talvez, mais perguntas do que respostas, perguntas ao futuro sobre as respostas
que podemos e as que não podemos já admitir no presente.

I
Nesta minha alocução proponho que tomemos como ponto de partida um con-
traponto — um dentre múltiplos contrapontos alternativos possíveis —, mobiliza-
do aqui como experimentação, para que a enfatização das diferenças e semelhanças
torne mais nítidos os problemas em causa e as (im)possibilidades de solução, a
fim de melhor aferir das virtualidades da resposta jurisprudencialista, sobre a qual
aqui reflectimos, para o problema da fundamentação do direito. Tentemos então um
desses caminhos, talvez com mais perguntas do que respostas: o de um contraponto
que se impõe, pela aparente proximidade — até, por vezes, terminológica — de
opções e pelo distanciamento de pressupostos e mesmo de conclusões. Um contra-
ponto que visa também ser um esclarecimento. Das semelhanças e das diferenças,
evidentemente, mas também da abordagem crítica que imediatamente suscitam.
O contraponto que agora se propõe — para o dizer muito sinteticamente —
consistirá em colocar frente a frente, no que à fundamentação do direito respeita,
os sentidos de “justiça transcendente”, desenhado por Jack Balkin — um Critical
Legal Scholar de segunda geração2, e aquele que com maior acuidade, e, por que

a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ — os modelos actualmente alternativos


da realização jurisdicional do direito”. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 130º, 1997-98, n.
3883, p. 290-300, e n. 3884, p. 322-329, e ano 131º, 1998-99, n. 3886, p. 8-14, e também no Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, p. 1-44 (versão citada);
“O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade”. In: PINTO RIBEIRO, J. A.
(Coord.). O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto, 1999, p. 87-114; O
direito hoje e com que sentido? Lisboa, 2002; “A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise
global da Filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. Stvdia Ivrica, 72, Coim-
bra, 2003; “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”. In: AVELÃS NUNES,
António José; MIRANDA COUTINHO, Jacinto de (Coord.). O direito e o futuro. O futuro do direito.
Coimbra, 2008, p. 9-82 (também no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.
LXXXIII, Coimbra, 2007, p. 1-73); “Uma reflexão filosófica sobre o direito — ‘o deserto está a crescer…’
ou a recuperação da filosofia do direito?”. In: Digesta…, op. cit., vol. III, Coimbra, 2008, p. 73-100; “O
problema da universalidade do direito — ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante
das culturas”. In: Digesta…, op. cit., vol. III, p. 101-128.
2 O movimento Critical Legal Studies desenvolveu-se em diferentes gerações: uma geração inicial, moder-
na, surgida em meados dos anos 70 e projectando-se no início dos anos 80 do século passado; uma geração

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

não dizê-lo desde já, alguma autonomia (ainda que num sentido muito específi-
co que adiante se esclarecerá), identifica e especifica esta problemática —, e de
“autotranscendentalidade axiológica”, configurado pelo Jurisprudencialismo,
na conformação que nos oferece Castanheira Neves — enquanto compreensão
materialmente densificante e fundamentante da normatividade e da autonomia
do direito. Dois rumos de resposta, portanto, para uma mesma questão, e que é
a nossa: a da interrogação pelo direito hoje. Posto agora o problema não apenas
numa intencionalidade filosófica, e assim reflexivo-especulativa, mas também
teórica, e neste sentido crítico-reflexiva. Com o propósito, portanto, não apenas
de compreender a reflexão metanormativa última acerca do direito que subjaz a
cada uma das propostas aqui confrontadas, mas também de analisar as respecti-
vas possibilidades ao nível da Teoria do Direito3.

posterior, pós-moderna, a partir da segunda metade dos anos 80 daquele século; e uma eventual terceira
geração, que consiste na ramificação do núcleo dos Critical Legal Scholars por diversas Jurisprudences
temáticas, sob a mesma orientação crítica. — Vide MINDA, Gary. “Critical Legal Studies”. In: MINDA,
Gary. Postmodern Legal Movements — Law and Jurisprudence at Century’s End. New York/London,
1995, p. 106-127, p. 116. Sobre o Critical Legal Studies Movement pudemos reflectir mais detidamente no
nosso Entre o centro e periferia: a perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e da decisão
judicial no Critical Legal Studies Movement. Coimbra, 2004, em que, especificamente sobre Jack Balkin e
a temática aqui desenvolvida, poderá ver-se, sobretudo, p. 109-132, 139-146, 169-170, 180-188, 194-203,
211, 214, 220-221, 230, 238-241, 246, 263-266; e, especificamente acerca do confronto com a concepção
de Castanheira Neves, p. 267-277. Para uma abordagem mais geral acerca do Critical Legal Studies Move-
ment, vide o nosso “Critical Legal Studies Movement: uma deriva política do pensamento jurídico (?)”. In:
COELHO, Nuno Manuel Morgadinho dos Santos; MELLO, Cleyson de Moraes (Org.). O Fundamento do
Direito — Estudos em Homenagem ao Professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro, 2008, p. 262-284. Jack
Balkin é o Critical Legal Scholar mais influenciado pela análise desconstrutivista de Derrida, aplicando-a
à crítica interna da sociedade: “Although deconstructive arguments may be found in critical race theory,
feminist, and postmodern legal scholarship, deconstruction first emerged most clearly in the work of the
Critical Legal Studies Movement. CLS scholars were attracted to deconstruction for three reasons. First,
CLS scholars emphasized the instability and indeterminacy of legal doctrines and the political ideologies
that lay behind legal reasoning. Deconstruction’s discovery of mutability in meanings and conceptual
boundaries seemed to support these views. If deconstruction showed that all legal decisionmaking and all
legal categories were flexible and mutable, this might seem to buttress the claim that something other than
legal reasoning — like political judgment — lay behind legal decisionmaking.
Second the force of the deconstructive critique applied beyond legal meanings to all social meanings.
Deconstruction seemed to suggest that social structures themselves were also unstable and indeterminate.
This meshed well with CLS claims that legal consciousness was based on the “false necessity” of social
and legal structures that seemed reasonable in theory but were oppressive in practice.
Finally, deconstruction seemed attractive to CLS scholars because it held that all texts undermined their
own logic and had multiple and conflicting meanings. CLS scholars could use deconstructive techniques
to “trash” traditional legal arguments and legal distinctions by showing that they were fundamentally in-
coherent”. — Jack Balkin, “Deconstruction’s Legal Career”, 1998, Part I <http://www.yale.edu/lawweb/
jbalkin/opeds/Deconstruction’s Legal Career --Part I.htm>, Part II <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
opeds/Deconstruction’s Legal Career --Part II.htm> Recolhido em 07/08/2003. Também em Cardozo Law
Review, vol. 27, n. 2, 2005, p. 719-740), Part II, p. 2.
3 Vide CASTANHEIRA NEVES. Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/99, policop.,
Coimbra, 1998, p. 43-45, 48-49 (p. 23-24, 26-27, na versão A4).

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

Questão prévia ao problema principal que aqui avocamos é a da sua contextu-


alização: o hodierno contexto cultural humano, que nem no singular poderá já ser
enunciado, pauta-se por uma pluralidade e mesmo relativismo radicais, a já tantas
vezes reconhecida ausência de referentes materialmente agregadores da intersub-
jectividade humana. Acarretando para a prática social inúmeros problemas. Isto,
se pudermos ainda dizer que estamos perante efectivos problemas. É que a prática
tem demonstrado que a redução do domínio da valoração material — tantas vezes
mesmo moral — e o constante alargamento do campo dos direitos e liberdades
individuais está a instituir-se como paradigma nas relações intersubjectivas, numa
teia crescentemente complexa de opções e sentidos que poderão coexistir paci-
ficamente desde que procedimentalmente compossibilitados num grau mínimo
de delimitação. Com o que o direito haveria de demitir-se, em último termo, de
compromissos e valorações axiológicas susceptíveis de influir na orientação sub-
jectiva dos sujeitos. Sujeitos que só poderemos perceber, diga-se também desde
já, nesta contextualização, como indivíduos, solipsisticamente ensimesmados nas
suas células individualizadas de circunspecção, seja ela axiológica, e talvez mes-
mo moral ou religiosa, seja já sociológica, económica, tecnológica, ou outra, mas
seguramente, sempre, neste segundo sentido, finalisticamente delineada.4
Ora, sendo o direito, na nossa experiência civilizacionalmente circunscrita
daquilo que é direito, uma complexa rede de significantes e significados, pressu-
pondo valorações lentamente sedimentadas pelo tempo, poderá agora abdicar-se
de todo esse sentido para abraçar uma alternativa funcionalizada aos rigores das
regras de uma sociedade tecnológica e globalizada? Talvez. Talvez seja este um
momento de viragem, de reavaliação e reflexão, com exigências específicas para a
autocompreensão do homem no tempo e no espaço, para a conformação da praxis,
em geral, e, naquilo que aqui directamente nos importa, para a fundamentação
do direito. Poderá ainda hoje o direito convocar uma matriz axiológica de base
que o distinga materialmente das outras ordens sociais e o mantenha como marca
da nossa civilização? Aqui está, de novo, e directamente, o “Direito interrogado
hoje”. E, perante a multiplicidade de respostas possíveis, cabe agora procurar per-
ceber se o Jurisprudencialismo é hoje uma “resposta possível”. Para o que mobi-
lizaremos então o contraponto que começámos por enunciar.
Posta esta brevíssima contextualização das questões a tratar, e do iter que
seguiremos, enfrentemos agora os problemas presentes no caminho seleccionado.
E serão esses problemas, no presente contraponto, essencialmente os seguintes: a

4 Vide idem, p. 127-191 (p. 70-106, na versão A4).

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

consideração da transcendentalidade das propostas de fundamentação do direito


aqui em causa, as respectivas opções quanto à dimensão histórica, a integração
comunitária e o papel a assumir pela pessoa, e a consideração da (im)possibilida-
de de reconhecer hoje ao direito uma autonomia fundamentante.

II
1. Em primeiro lugar haverá então que mobilizar as expressões convocadas no
título desta reflexão: justiça transcendente e autotranscendentalidade axiológica. E
em primeiro lugar porque será este o ponto de partida para o contraponto, que nos
permitirá percorrer as opções essenciais de ambas as propostas, embora podendo ser
este também o ponto de chegada, uma vez percorridos os trilhos que as densificam.
A transcendent justice delineada por Balkin, enquanto horizonte metanorma-
tivo de referência, surge não tanto como um ideal nunca apreensível — e, assim,
absolutamente inatingível —, mas antes como um ideal-projecto que paira per-
manentemente sobre a intersubjectividade, embora não completamente atingível-
-realizável. Portanto, uma justiça — valor de cariz indeterminado, a que é essen-
cial uma dimensão ideológico-política, de emancipação individual e colectiva,
e assumida enquanto intenção regulativa, a prosseguir normativamente. Cons-
tituindo a respectiva intenção à justiça (“justice demand”) uma intenção mate-
rialmente projectante, também metanormativa, e assumida como autenticamente
transcendental5, condição de possibilidade da realização histórica do direito (e

5 “By a transcendental value, I mean: (…) A value that can never be perfectly realized and against which all
concrete articulations and exemplifications remain imperfect or incomplete. A transcendent value is also
a transcendent ideal. (…) A value that appears to us as a demand or longing. (…) A value that is inchoate
and indeterminate, which human beings must articulate through culture but which is never fulfilled. (…)
A value whose existence is presupposed by some essential aspect of human life or some essential human
activity. Thus the argument for the existence of a transcendental value is transcendental; the existence of
the value must be presupposed given the nature of the activity. Hence we can also speak of transcendent
values as “transcendental” values. (…)”. — BALKIN, Jack. Cultural Software. A Theory of Ideology.
New Haven/London, 1998, p. 144. “Transcendent ideals of truth and justice are presupposed in our un-
derstanding of encounters between people as encounters between subjects of justice — that is, as a sort
of entities that can be treated justly or unjustly”. — Idem, p. 146. Vide AROSO LINHARES, José Ma-
nuel. “Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita: os enigmas de Force de Loi”
(2004). In: Ars Ivdicandi — Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, Volume
I — Filosofia, Teoria e Metodologia. Stvdia Ivridica, 90, Ad Honorem — 3, Coimbra, 2008, p. 551-667,
especialmente 5.2.4.2., p. 651-655: “Reconhecendo que o “argumento” que defende a “existência de valo-
res transcendentes” (e destes enquanto “exigências” ou “aspirações indeterminadas”) se nos impõe como
uma “condição-pressuposto transcendental” (a necessary transcendental precondition) da possibilidade
(prática) da compreensão moral e política e da retórica discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu
continuum) — mas então também da análise ideológica em que esta tematização culmina (the analysis of
ideology as a special case of the dialogic encounter)…”. — Idem, p. 651.

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

este enquanto dimensão constituinte do cultural software individual e colectivo


de uma comunidade espácio-temporalmente localizada, e, tal como este, de de-
senvolvimento mimético6).
Transcendência e transcendentalidade que vão aqui directamente associadas
à análise desconstrutivista de Derrida, aplicada à crítica interna da sociedade,
em geral, e, em especial, à compreensão do próprio direito7-8. Trata-se agora de

6 O cultural software seria, parcialmente, inato, e, complementarmente, um produto cultural: o tipo de racio-
nalidade desenvolvido através da cultura não será uma racionalidade meramente formal ou instrumental,
mas substancial, recursiva e reflexiva. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 138-140. A racio-
nalidade humana seria, assim, um artefacto histórico, desenvolvido através da escrita e reescrita colectiva
e cumulativa de cultural software, num processo de bricolage, rectior, de cultural bricolage: cumulativo
— as categorias de inteligibilidade (tools of understanding) que o sujeito cria dependem amplamente dos
materiais disponíveis —, envolvendo utilizações não intencionadas, económico e recursivo — um número
limitado de categorias é utilizado em situações muito diferentes para cumprir um amplo número de tarefas
—, e, por conseguinte, com consequências não intencionadas, positivas ou negativas. — Idem, p. 31-34. E
a análise deste pensamento sobre si próprio constituiria uma metabricolage: “The advantage of the theory
of cultural software is that it allows us to see how very different research projects can be reinterpreted and
united under the umbrella of memetic evolution. Appropriately, this approach is itself a form of bricolage,
for it cobbles together different ways of understanding human understanding in the hope of providing a
more powerful and unified account. Because human understanding is itself a process of bricolage, we might
think of this method as a sort of “metabricolage””. — Idem, Part III, p. 171 ss., p. 175.
7 “The term “deconstruction” is much used in legal writings these days and in this Article I propose to
explain its philosophical underpinnings. Many persons who use the word “deconstruction” regard it as no
more than another expression for “trashing” that is, showing why legal doctrines are self-contradictory,
ideologically biased, or indeterminate. By the term “deconstruction”, however, I do not have in mind
merely stinging criticism, but specific techniques and philosophical ideas that Derrida and his follow-
ers have applied to various texts. These techniques often do involve teasing out the hidden antinomies
in our language and thought, and that is primarily how I came to be interested in them. However, I hope
to demonstrate that “deconstruction”, as I use the term, is not simply a fancy way of sticking out your
tongue, but a practice that raises important philosophical issues for legal thinkers”. — BALKIN, Jack.
“Deconstructive Practice and Legal Theory”, The Yale Law Journal, vol. 96, n. 4, 1987, p. 743-786, p.
743-744. “Critical scholars in the feminist and critical legal studies movements made the most frequent
and familiar use of deconstruction in law. They employed deconstructive techniques to discover and cri-
tique ideological commitments they claimed underlay legal doctrine. Deconstruction has proved useful for
ideological critique because ideologies often work through forms of privileging and suppression: Certain
features of social life are privileged in thought and discourse, while others are marginalized or suppressed.
Deconstructive arguments try to recover these subordinated or forgotten elements in legal thought and
legal doctrine”. — BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 4. “If one is to
adapt deconstruction to the critical study of law, the practice of deconstruction must, in fact, be altered,
changed, modified, and, I would even say, improved. Certain features of Derrida’s texts, for example, must
be emphasized and others deemphasized and regarded as mistaken. Only in this way can deconstructive
argument be made a useful tool of critical analysis. Only in this way can it escape the many criticisms of
nihilism that have been leveled at it”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent
Justice”, Michigan Law Review, vol. 92, n. 5, mar. 1994, p. 1131-1186, p. 1132. Vide ainda BALKIN, Jack.
“Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p. 764; MINDA, Gary. “Critical Legal Studies”, op.
cit., p. 117; PÉREZ LLEDÓ, Juan A. El Movimiento Critical Legal Studies. Madrid, 1996, p. 182-194.
8 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 112. Balkin compreende todos os fenómenos sociais como
construções subjectivamente elaboradas, pretendendo afastar-se, assim, de teorias que reconhecem entida-
des supra-individuais determinantes da constituição cultural dos sujeitos, por as considerar insusceptíveis
de oferecer uma explicação causal das convicções culturalmente partilhadas, e/ou da presença de dissenso

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

uma compreensão normativa e crítica da argumentação descontrutivista e das


suas projecções, permitindo uma crítica interna do pensamento jurídico, cujos
argumentos se vão autodesconstruindo, de forma a demonstrar que as diversas
perspectivas da dogmática jurídica ocultam um carácter ideológico inerente.9-10
Uma abordagem cratológica da ideologia, numa teoria da ideolo-
gia que a afirma ambivalente11, e assumindo simultaneamente uma

no seio das culturas e das comunidades (idem, p. 96), recusando, deste modo, e neste domínio, um deter-
minismo evolutivo. O cultural software é diferente em cada momento histórico, e o homem é agente da sua
transmissão e da sua evolução histórica: “Cultural evolution proceeds, but not toward any particular goal.
We are its agents but not its puppets. We are its bearers but not its slaves”. — Idem, Preface, p. xi. Porém,
Balkin vai mais longe, pretendendo fundar a constituição cultural dos sujeitos em unidades subindividu-
ais existentes em cada indivíduo — unidades subindividuais essas que seriam unidades de transmissão
cultural participantes na formação dos indivíduos, criando uma economia de desenvolvimento e troca
cultural; em suma, essas unidades subindividuais constituiriam o cultural software. Apresenta, assim, uma
construção culturalmente cunhada da subjectividade, em que as próprias formas de entendimento seriam
informadas pela comunidade: “...our very forms of understanding — including the very notion of the ‘self’
that ostensibly understands — are shaped by the community…”. — BALKIN, Jack; LEVINSON, San-
ford. “The ‘Bad Man’, the Good and the Self-Reliant”, B. U. L. Review, 78, 1998, p. 885-902, p. 897. “I
believe that a theory of culture must account for the uniqueness of each human being, while showing how
the social and cultural forces shape us and produces our individuality. And I believe that individuality, like
human freedom, is produced through culture, not in spite of it. The theory of cultural software offered in
this book tries to explain why this is so”. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., Preface, p. x.
9 Ao assumir uma crítica interna ou imanente da cultura e do direito, Balkin apresenta como pressuposto
aquela justiça, assumida como transcendência de valor, não de posição, em conformidade com a rejeição
de uma perspectiva de análise exterior. A concepção ambivalente da ideologia assume como fundamental
o problema da autorreferência. Seria esta abordagem, dialéctica, assumidamente crítica, e mesmo inevita-
velmente autocrítica. Crítica no sentido de constituir um processo de autorreflexão e autodescoberta que
é parte da análise ideológica. Inevitavelmente autocrítica porque se volve para si própria, pelo que o auto-
exame crítico não é, em sentido estrito, uma pura introspecção, mas um processo de exame comparativo.
Esta autocrítica pretende, não obstante, ser desinteressada, não no sentido da neutralidade, mas no sentido
da justiça ou correcção — uma justiça e uma correcção aferidas pelo cultural software. — Vide BALKIN,
Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 128-129.
10 Para Balkin, as razões que levam a querer desconstruir o direito e a doutrina jurídica podem ser diversas.
Uma tem a ver com a prossecução da justiça: pode pretender-se demonstrar que o direito, ou uma parte
dele, é injusto. Por outro lado, pode pretender-se mostrar que o direito, ou parte dele, oculta aspectos da
vida social considerados importantes, e que o seu fracasso em lidar com estes aspectos leva à injustiça.
Para o A., este é um uso “crítico” da desconstrução, no sentido mais usual da palavra “crítica”. — Vide
BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 2. Em Balkin não existe uma autên-
tica reflexão metodológica, o que implicaria recorrer a um discurso jurídico autonomamente considerado,
separado da ideologia, o que cairia fora dos seus intentos. Vide AROSO LINHARES. “O logos da juridi-
cidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos — da convergência com a literatura (Law as Literature,
Literature as Law) à analogia com uma poiêsis-technê de realização (Law as Musical and Dramatic Per-
formance)”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXX, Coimbra, 2004,
p. 59-135, p. 117-121, e n. 139, p. 120-121.
11 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 14-15, 92-94. Apesar de o termo ideologia poder ser as-
sumido em sentidos muito diversos, todos esses sentidos exprimem, normalmente, segundo Balkin, uma
de duas concepções: uma concepção neutra, que considera a ideologia como uma concepção do mundo,
uma estrutura intelectual ou um conjunto de convicções que participam na construção da experimentação
do mundo, sem tomar posição; ou uma concepção pejorativa, em que a ideologia surge como um tipo de
mistificação ao serviço de interesses de classe, promove uma falsa perspectivação das relações sociais,

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

perspectiva descritiva e normativa, considerando que também a


teoria do cultural software oferece uma perspectiva de poder ide-
ológico12, que se projecta no direito pressupondo a consideração
dos valores da verdade e da justiça, não apenas em si mas tam-
bém em interferência recíproca13. Numa assimilação normativa da
desconstrução que surge a partir da inadequação entre direito e
justiça. E influência de mas não completa adesão a Derrida, cuja
abordagem desconstrutivista da justiça se orienta para um sentido
de justiça como impossível e não desconstruível, enquanto que o
direito — ou a justiça como direito — seria desconstruível, pos-
to que a “indéconstructibilité” da justiça e a “déconstructibilité”
do direito assegurariam a possibilidade da desconstrução; e, pa-
radoxalmente, a desconstrução seria, em último termo, justiça14.

ou produz injustiça. — Idem, p. 3, e p. 295 (n. 3 da p. 3). Não tencionando seguir qualquer uma destas
orientações, Balkin enuncia uma terceira via, uma concepção ambivalente da ideologia (“the ambivalent
conception of ideology”), com que visa substituir as outras perspectivas referenciadas, e segundo a qual
quer a concepção neutra quer a pejorativa de ideologia descrevem aspectos diferentes de um fenómeno
mais profundo, o dos efeitos produzidos pelos instrumentos de compreensão cultural (“tools of human cul-
tural understanding”). — Idem, p. 3-4. As categorias de inteligibilidade (tools of understanding) seriam,
nesta perspectiva, simultaneamente úteis e prejudiciais, dependendo do contexto em que e do modo como
fossem mobilizadas, e o reconhecimento das vantagens e desvantagens simultâneas das categorias de inte-
ligibilidade seria fundamental. — Idem, p. 126-127. Tal como a perspectiva neutra, esta perspectiva ambi-
valente pretende analisar descritivamente o modo como as concepções do mundo e os sistemas de discurso
são produzidos. Porém, diferentemente, não pretende adoptar uma posição neutral ou descomprometida
relativamente aos seus efeitos, ao reconhecer que, quando participa no estabelecimento ou manutenção de
condições injustas, o cultural software produz efeitos ideológicos. — Idem, p. 124-129.
12 Em Balkin a ideologia desempenha um papel determinante na construção e difusão culturais, como ele-
mento fundamental da denúncia da injustiça: “I sometimes like to think of ideology as a sort of “cultural
software” — a set of tools for understanding the social world, a copy of which is distributed to each of us.
Our individual subjectivity employs and is constituted by this cultural software. If our copies are roughly
similar — if we have internalized roughly the same cultural frameworks of understanding — then the con-
tributions of each subject to the object of understanding will also be roughly similar. In this way, a shared
subjectivity creates a shared objectivity. Hence, when I speak of “the legal subject” or the contributions of
“subjectivity” I am invoking two complementary ideas: first, the individual’s contribution through the act of
understanding to her experience of the social world, and second, the individual’s social construction, which
helps shape the forms and bounds of her understanding. A jurisprudence of the subject is above all a cultural
jurisprudence, for it is culture that creates legal subjects as subjects”. — BALKIN, Jack. “Understanding
Legal Understanding: The Legal Subject and the Problem of Legal Coherence”, The Yale Law Journal, vol.
103, 1993, p. 105-176, também disponível em versão online em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
articles/under1.htm>, Part I; <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/under2.htm>, Part II, e <http://
www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/under3.htm>, Part III, Acedido em: 07/08/2003, p. 107-108. Assu-
me, assim, na formulação da sua teoria do cultural software, uma específica perspectiva crítica, firmando as
categorias de inteligibilidade mobilizáveis na consideração do homem enquanto ser cultural. — BALKIN,
Jack. Cultural Software…, op. cit., Preface, p. ix-x, e idem, por exemplo, p. 15-16, 25, 102, 264-269.
13 Idem, p. 111.
14 Nas palavras de Derrida: “... le droit est essentiellement déconstructible, soit parce qu’il est fondé, c’est-à-
dire construit sur des couches textuelles interprétables et transformables (et c’est l’histoire du droit, la pos-
sible et nécessaire transformation, parfois l’amélioration du droit), soit parce que son ultime fondement par
définition n’est pas fondé. Que le droit soit déconstructible n’est pas un malheur. On peut même y trouver la
chance politique de tout progrès historique. Mais le paradoxe que je voudrais soumettre à la discussion est
le suivant: c’est cette structure déconstructible du droit ou, si vous préférez, de la justice comme droit qui

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

Já em Balkin não sustentando, necessariamente, uma qualquer


concepção específica de justiça, antes afastando a possibilidade de
enunciar qualquer concepção estável do justo e do injusto15. O con-
ceito histórico e culturalmente determinado de justiça seria, então,
expressão de um ideal transcendente, de ordem normativa16. E a
desconstrução não seria, afinal, completamente identificável com
a justiça, diferentemente da asserção de Derrida, pois entre o valor
transcendental da justiça e a prática existirá sempre uma diver-
gência, a prática nunca logrará realizar completamente o valor da
justiça. A desconstrução será precisamente essa divergência, daí
que nem a justiça nem a desconstrução sejam totalmente possíveis
ou impossíveis17. Enquanto Derrida vê na justiça uma “exigência

assure aussi la possibilité de la déconstruction. La justice en elle-même, si quelque chose de tel existe, hors
ou au-delà du droit, n’est pas déconstructible. Pas plus que la déconstruction elle-même, si quelque chose
de tel existe. La déconstruction est la justice. C’est peut-être parce que le droit (que je tenterai donc réguliè-
rement de distinguer de la justice) est constructible, en un sens qui déborde l’opposition de la convention et
de la nature, c’est peut-être en tant qu’il déborde cette opposition qu’il est constructible — donc déconstruc-
tible et, mieux, qu’il rend possible la déconstruction, ou du moins l’exercice d’une déconstruction qui
procède au fond toujours à des questions de droit et au sujet du droit. D’où ces trois propositions:
1. La déconstructibilité du droit (par exemple) rend la déconstruction possible.
2. L’indéconstructibilité de la justice rend aussi la déconstruction possible, voire se confond avec elle.
3. Conséquence: la déconstruction a lieu dans l’intervalle qui sépare l’indéconstructibilité de la justice et
la déconstructibilité du droit. Elle est possible comme une expérience de l’impossible, là où, même si elle
n’existe pas, si elle n’est pas présente, pas encore ou jamais, il y a la justice. Partout où l’on peut remplacer,
traduire, déterminer le X de la justice, on devrait dire : la déconstruction est possible, comme impossible,
dans la mesure (là) où il y a X (indéconstructible), donc dans la mesure (là) où il y a (l’indéconstructible)”.
— DERRIDA, Jacques. Force de loi: le “fondement mystique de l’autorité”. Paris, 1994 (a primeira publi-
cação, em língua inglesa, surgiu na Cardozo Law Review, vol. 11, n. 5-6, July-August 1990, p. 919-1045,
sob o título “Force of Law: ‘The Mystical Foundation of Authority’”; posteriormente, foi publicado em
CORNELL, Drucilla; ROSENFELD, Michel; CARLSON, David Gray (Ed.). Deconstruction and the Pos-
sibility of Justice. New York/London, 1992, p. 3-67; também publicado, em versão castelhana, sob o título
“Fuerza de Ley: El ‘fundamento místico de la autoridad’”, Doxa, 11, 1992, p. 129-191), p. 34-36 ; e em trad.
portuguesa, Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Porto, 2003).
15 “Using deconstructive techniques to make political and legal arguments raises the obvious question wheth-
er there is any connection between deconstruction and politics or deconstruction and justice. In fact, I
believe that there are important connections between deconstruction, justice, and politics. But deconstruc-
tion itself does not have a politics, or rather, it has only the politics of those who make use of it. And
deconstruction itself is not just, although it may be used to pursue justice”. — BALKIN, Jack. “Tradition,
Betrayal, and the Politics of Deconstruction”, Cardozo Law Review, vol. 11, 1990, p. 1623 ss., citado na
versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/trad1.htm>, Part I, e <http://
www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/trad2.htm>, Part II. Acedido em: 03/11/2003. Part I, p. 1.
16 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 166.
17 “It is possible that, when Derrida speaks of “Deconstruction” in his more mystical pronouncements, he has in
mind something like this normative chasm, this essential inadequation between transcendent human values
and human culture. If so, then no human practice of deconstructive argument is “Deconstruction”, because
no argument ever fully describes the relationship between value and articulation. Indeed, such a complete
description would be impossible. It would not follow, however, that “Deconstruction” itself was impossible,
only a fully adequate account of it. So Derrida’s equation between Deconstruction and justice is flawed.
Justice is “impossible” only in the sense that one never finds a fully and categorically just act in this world.
Yet “Deconstruction” is not impossible, even though one never finds a fully deconstructive argument. The re-
lationship of mutual dependence and differentiation that exists between culture and value is not impossible;

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

infinita”18, e a experiência da justiça como uma experiência do


impossível, Balkin considera-a um valor transcendente, indetermi-
nado e indefinido, nunca completamente realizado pelo direito po-
sitivo19. A divergência entre direito e justiça seria um caso especial
de inadequação fundamental entre valor e cultura, um hiato ou di-
vergência que Balkin diz Desconstrução (agora propositadamente
com maiúscula). Por outro lado, Balkin afasta-se de Derrida quan-
do este equaciona a Desconstrução com aquele valor impossível da
justiça20. Na impossibilidade assumida de articular completamente
a inadequação entre direito e justiça nos seus argumentos descons-
trutivistas, a prática retórica da desconstrução encontra-se neces-
sariamente limitada; não pode ser idêntica à Desconstrução em si
própria. Para Balkin, a própria Desconstrução não é impossível; é
uma verdadeira condição da cultura21.

it is the case. Moreover, it is simply not true, as Derrida asserts, that Deconstruction is justice. This assertion
is a confusion of the normative chasm between culture and value with a particular inchoate and indefinite
human value. Derrida’s mystical formula simply obscures a valuable insight”. — BALKIN, Jack. “Transcen-
dental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1179. “In other words, if Derrida were correct that
Deconstruction is justice because both are impossible of attainment, then Deconstruction would not only be
justice, but also beauty, wisdom, and temperance, as none of these virtues is perfectly realized in this world.
A more appropriate view would be Derrida’s assertion that “deconstruction takes place in the interval that
separates the undeconstructibility of justice from the deconstructibility of droit (authority, legitimacy, and so
on)”. In other words, Deconstruction is the gap itself, rather than one side or another of this gap.
If by Deconstruction Derrida means this normative gap, Deconstruction would not even be an activity of
human beings. Instead Deconstruction would simply be the case that there is a fundamental inadequation”.
— Ibidem, n. 119, citando DERRIDA, Jacques. Force of Law..., op. cit., p. 945.
18 BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1144-1148, 1157. “The
first connection between justice and deconstruction that Derrida hopes to demonstrate concerns the defi-
nition of who is a subject of justice, that is, who can be treated justly or unjustly. Throughout Western
civilization, Derrida argues, the category of subjects of justice has been limited. Deconstruction furthers
justice, he insists, because it calls these limitations into question”. — Idem, p. 1142. “Derrida posits a
second possible relation between deconstruction and justice — it is “the sense of a responsibility without
limits”. This responsibility is “necessarily excessive, incalculable, before memory”. Deconstruction leads
to justice because it reveals the limitlessness of our responsibility. Nevertheless, a responsibility without
limits is not the same thing as justice”. — Idem, p. 1149.
19 “Yet the claim of an essential disproportion between law and justice simply restates the point that there is
an idea or value of justice that transcends any specific example of justice, whether embodied in law, cus-
tom, or convention. Indeed, as Derrida later notes, “the deconstruction of all presumption of a determinant
certitude of a present justice itself operates on the basis of an infinite ‘idea of justice’ ”. This is perhaps the
closest Derrida comes to the transcendental conception. He hesitates at this point because he does not wish
“to assimilate too quickly this ‘idea of justice’ to a regulative idea (in the Kantian sense), to a messianic
promise or to other horizons of the same type””. — Idem, p. 1156-1157, citando DERRIDA, Jacques.
Force of Law..., op. cit., p. 965. “(…) the deconstructive approach I advocate is not based on a fixed and
determinate Idea of justice, but an indeterminate and indefinite human value. This value is the very sort of
“demand” that Derrida identifies with justice: an insatiable urge that is never fully realized in the products
of human law, culture, and convention”. — BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent
Justice”, op. cit., p. 1157.
20 BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 4.
21 “In equating deconstruction and justice, Derrida has attempted to take the moral high ground in the face
of the assaults leveled at deconstruction (and at himself) following the de Man affair. But what Derrida

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

Em Balkin, a descontrução apresenta-se não já como ponto de partida ou


fundamento, mas instrumento22, método possível para a análise e crítica ideo-
lógica das oposições entre as construções (regras, conceitos, doutrinas e argu-
mentos) jurídicas, e das respectivas hierarquias — ainda que não para se render
à indecidibilidade23, inútil para uma perspectiva “crítica” da desconstrução24,
antes para ensaiar as potencialidade dessas oposições, contradições, e mesmo

and his followers have not fully faced, I think, is that in practice deconstructive argument is a species of
rhetoric, and, like all rhetoric, it can be used for good or for ill depending on how it is wielded. Deconstruc-
tion is no more and no less noble than the forms of rhetoric that deconstructionists repeatedly discover
in philosophical and literary texts. Deconstruction cannot flee from its own rhetoricity, or the normative
consequences of that fact. The deconstructive claim that “iterability alters” — that texts take on new and
conflicting meanings when they are inserted into new contexts — surely applies as much to deconstruction
itself as to any of its objects. Thus, it is not surprising that deconstructive arguments can be invoked by the
political right as well as the political left, and that they can serve many different and conflicting positions”.
— BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 4-5. “Because deconstruction is
justice, and because justice is impossible, deconstruction is impossible. However, the undeconstructibility
of justice and the deconstructibility of law make deconstruction possible. Hence, deconstruction is both
possible and impossible”. — BALKIN, Jack. “Being Just With Deconstruction”, Social and Legal Studies,
n. 3, 1994, p. 393 ss., citado na versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/opeds/
Being Just With Deconstruction.htm>. Acedido em: 07/08/2003, n. 6, p. 1.
22 “(…) when we view deconstruction and its purported enemy, logocentrism, in this light, we arrive at a
paradoxical conclusion. Deconstruction, in and of itself, has nothing particular to tell us about justice, or
ethics, or any questions of value. For any such conclusions we might reach would be by their nature order-
ing, prioritizing, evaluative, in a word, logocentric. Deconstruction thus becomes important to questions
of value to the extent that it is not fully deconstructive to the extent that it depends upon and nourishes
itself upon some form of preexisting logocentric practice”. — BALKIN, Jack.“Tradition, Betrayal, and the
Politics of Deconstruction”, op. cit., Part II, p. 1. “…deconstruction, as a political practice, or as a pragmat-
ics (that is, a theory of use or action) cannot avoid logocentrism, either at its beginning, its middle, or its
end. To deconstruct is always to engage in a form of logocentrism. It is always to obey a certain law of
where to begin and where to end, which turns of phrase to subvert and which to leave untouched. For after
we have ground our ax, it directs what we shall execute with it. Moreover, each deconstruction bears the
traces of the intellectual roads not taken, the metaphors and arguments not questioned”. — Idem, Part II, p.
1. “One might object that describing deconstruction as guided by the preexisting commitments and values
of the individual deconstructor mistakenly assumes a relatively autonomous subject who controls what to
deconstruct and what to leave untouched. Yet deconstruction also requires us to question the existence of
this relatively autonomous self. Perhaps, then, deconstruction has a distinctive politics which nevertheless
escapes logocentrism — it would be a politics that denies the full coherence and autonomy of subjects,
and sees subjects as largely or even wholly constructed by the intersection of various cultural and political
forces. In contrast, viewing deconstruction as an instrument employed by a subject reasserts logocentric
assumptions about the self that deconstruction is designed to explode.
Yet this is not an objection to my argument. Rather, it is my argument — that deconstruction, as actually
performed by individuals, is always and already parasitic on some form of logocentric practice. This is
every bit as true of critics of the autonomy of the self as it is of critics of any other subject of deconstruc-
tion”. — Idem, Part II, p. 3. Vide ainda AROSO LINHARES. “Autotranscendentalidade, desconstrução
e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 652: “(…) uma concepção (ou pelo menos um “tratamento”)
“instrumental” da desconstrução — por uma vez assumida como “método”…”.
23 DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, Evanston, 1988, p. 111 ss..
e Force de Loi..., op. cit., p. 51-55.
24 BALKIN, Jack. “Being Just With Deconstruction”, op. cit., p. 3-5.

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autocontradições, enquanto “nested oppositions”25. Identificando uma dessas

25 “When we deconstruct conceptual oppositions, we are not necessarily trying to show that they form a false
dichotomy. We are trying to show that they form a nested opposition. A nested opposition is a conceptual
opposition in which the two terms “contain” each other. The metaphor of “containing” one’s opposite
stands for a number of related concepts — similarity to the opposite, overlap with the opposite, being a
special case of the opposite, conceptual or historical dependence upon the opposite, and reproduction of
the opposite or transformation into the opposite over time. These forms of containment share a sort of
Wittgensteinian family resemblance — they all bear similarities to each other, although one cannot point
to a single property that all have in common.
The most general way of stating the relationship between the terms of a nested opposition is that they bear a
relationship of mutual dependence and differentiation. The point of deconstructive analysis is to show how
this similarity or this difference has been suppressed or overlooked. It tries to find difference and antinomy
in purported similarity and similarity and mutual dependence in purported differentiation. As a result, de-
constructive arguments usually emphasize the contextual nature of judgements, because the relationship
between conceptual opposites and the relative meanings of the opposed concepts change as they are inserted
into new interpretive contexts”. — BALKIN, Jack.“Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 7.
Assim, uma oposição “nested” será uma oposição conceitual em que os dois termos comportam uma rela-
ção de mútua dependência e diferenciação — a différance, em Derrida. Enquanto a iterabilidade se mantém
no domínio da imanência das hierarquias e da sua inversão, no domínio da dissémination passa-se para lá
da inversão, alcançando a différance. — Vide DERRIDA, Jacques. “Hors Livre”, La Dissémination. Paris,
1972, p. 11 ss. “As Robert Gordon has observed, people “build structures, then act as if (and genuinely
come to believe that) the structures they have built are determined by history, human nature, economic law”.
Deconstruction allows us to see that ideologies are signs or metaphors that describe social life. They are
privileged conceptions of social reality; they are supplements, which can in turn be supplemented. Like Der-
rida’s signs, they are not self-sufficient, but ultimately depend upon the very aspects of human life that they
deny and from which they differentiate themselves. Every ideology suffers from an elementary lack: its de-
pendence on what it denies, on what it is exalted over. This lack, this differance, is what we seize upon and
exploit in a deconstructive reading (…) By contesting “necessity”, deconstruction dissolves the ideological
encrustations of our thought”. — BALKIN, Jack. “Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p.
764. “If one begins with an egalitarian ideology, one can easily be misled into thinking that the “emancipa-
tory ideal” that Derrida endorses is the same as deconstruction. But this assumption is based on an implicit
opposition or conceptual homology — namely, that deconstruction is to logocentrism as emancipation is to
slavery, or as expansion of the subjects of justice is to contraction of the subjects of justice. Of course, one of
the most important deconstructive techniques is the demonstration that the homology “A is to B as C is to D”
is reversible; one deconstructs ideologies by subverting the conceptual homologies upon which they rest.
My point is that this technique can be performed as easily with the present set of conceptual oppositions as
with the opposition between speech and writing in Of Grammatology”. — BALKIN, Jack.“Transcendental
Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1146. Vide BALKIN, Jack. “Nested Oppositions”, The
Yale Law Journal, n. 99, 1990, p. 1669-1704, também disponível em versão online, em: <http://www.yale.
edu/lawweb/jbalkin/articles/nestedoppositions.pdf>. Acedido em: 03/11/2003, p. 1676-1677. “The nested-
ness of a nested opposition often becomes apparent when we attempt to understand what each of the terms
in the opposition means. Debates over the meaning or content of each side of a nested opposition replicate
the debate over the terms of the original opposition. The struggle over the meaning or the content of the
concept as it is introduced into new contexts is a struggle that recapitulates the original struggle of differen-
tiation”. — Idem, p. 1679. “To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition
is a nested opposition — in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well
as mutual differentiation. For example, we might discover that they have elements in common, which be-
come salient in some contexts, but that in other contexts we note very important differences between them,
so that they are not the same in all respects. In fact, we would note that the meaning of each depends in part
on our ability to distinguish it from the other in some contexts”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Decon-
struction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1153. Uma “nested opposition” será uma “oposição em ninho”,
na tradução de Aroso Linhares —, oposição conceitual em que os dois termos opostos se “contêm” um ao

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

oposições conceituais na tensão entre direito e justiça, envolvendo, portanto,


simultaneamente, dependência e diferenciação — a différance, em Derrida26 —,

outro, isto é, têm relações simultâneas de diferença e similaridade consoante os contextos (pois, embora a
teoria das nested oppositions defenda que todas as oposições conceituais podem ser vistas sob a forma de
nested oppositions, não afirma que todas as nested oppositions sejam falsas oposições ou falsas dicotomias
— o facto de dois conceitos serem pensados como similares ou mutuamente dependentes em determinados
contextos não significa que sejam idênticos em todos os contextos): um dos termos pode, em certos con-
textos, ser similar ao outro, um caso especial do outro, lógica ou praticamente dependente do outro, ou ir
evoluindo para uma forma ou variante do outro. — Vide AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob
o fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., n. 89, p. 97-98, e “Autotranscendentalidade, desconstrução
e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 655.
26 Rejeitando a oposição, fundadora da filosofia tradicional, entre sensível e inteligível, Derrida propõe uma
outra ordem, um tertium genus intermédio, que resista àquela oposição, e, não obstante, a inclua, num mo-
vimento de simultânea identidade e diferenciação: “(...) de ce point de vue, la différence marquée dans la
“différ()nce” entre le e et le a se dérobe au regard et à l’écoute, cela suggère peut-être heureusement qu’il
faut ici se laisser renvoyer à un ordre qui n’appartient plus à la sensibilité. Mais non davantage à l’intelli-
gibilité, à une idéalité qui n’est pas fortuitement affiliée à l’objectivité du theorein ou de l’entendement; il
faut ici se laisser renvoyer à un ordre, donc, qui résiste à l’opposition, fondatrice de la philosophie, entre le
sensible et l’intelligible. L’ordre qui résiste à cette opposition, et lui résiste parce qu’il la porte, s’annonce
dans un mouvement de différance, (avec un a) entre deux différences ou entre deux lettres, différance qui
n’appartient ni à la voix ni à l’écriture au sens courant et qui se tient, comme l’espace étrange qui nous ras-
semblera ici pendant une heure, entre parole et écriture, au-delà aussi de la familiarité tranquille qui nous
relie à une et à l’autre, nous rassurant parfois dans l’illusion qu’elles font deux”. — DERRIDA, Jacques.
“La Différance”, Marges de la Philosophie, Paris, 1972, p. 5. O termo “différance”, de ambiguidade e po-
lissemia propositadas, sintetizaria os dois significados do verbo diferir-“différer” (provindo do particípio
presente respectivo, “différant”, a indicar um movimento, um deslocamento-déploiement): o diferimento
— temporalização-temporisation, um diferimento do passado e do presente, uma não presença — e a
diferenciação — espaçamento-espacement, no sentido de “...ne pas être identique, être autre, discernable,
etc.” (“(...) la différance comme temporalisation et la différance comme espacement”). — Idem, p. 10.
“(...) le mot différence (avec un e) n’a jamais pu renvoyer ni au différer comme temporisation ni au dif-
férend comme polemos. C’est cette déperdition de sens que devrait compenser — économiquement — le
mot différance (avec un a)”. — Idem, p. 8. “(...) la différance, qui n’est pas un concept, n’est pas un simple
mot, c’est-à-dire ce qu’on se représente comme l’unité calme et présente, auto-référente, d’un concept et
d’une phonie”. — Idem, p. 11. Différer (e différance), e não différencier (e différenciation), pois que neste
último se perderia o segundo termo da polissemia: “(...) formé sur le verbe différencier, il annulerait la si-
gnification économique du détour, du délai temporisateur, du ‘différe’”. — Idem, p. 14. “(…) la différance
n’est pas, n’existe pas, n’est pas un étant-présent (on) quel qu’il soit ; et nous serons amenés à marquer
aussi tout ce qu’elle n’est pas, c’est-à dire tout; et par conséquent qu’elle n’a ni existence ni essence. (…)
La différance est non seulement irréductible à toute réappropriation ontologique ou théologique — onto-
théologique — mais, ouvrant même l’espace dans lequel l’onto-théologie — la philosophie — produit son
système et son histoire, elle la comprend, l’inscrit et l’excède sans retour”. — Idem, p. 6. Vide idem, p.
22. “Derrida has a special term for the chicken-and-egg quality of mutual dependence and difference that
the terms of hierarchical oppositions have for each other: differance. Differance is a pun based upon the
French word differer, which means both to differ and to defer. Derrida replaces an “e” with “a” in differ-
ence to make it differance; the two words sound exactly the same in French.
Differance simultaneously indicates that (I) the terms of an oppositional hierarchy are differentiated from
each other (which is what determines them); (2) each term in the hierarchy defers the other (in the sense of
making the other term wait for the first term), and (3) each term in the hierarchy defers to the other (in the
sense of being fundamentally dependent upon the other).
From differance, we can understand the idea of “trace”. Both of the terms in a hierarchical opposition
rely for their coherence on the differentiation between them. The relation between identity and difference,
serious and non-serious, langue and parole, is one of mutual dependence and difference, or differance.

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

esta desconstrução crítica do direito decorre da assunção de valores, tal como


a justiça, e também a verdade, transcendentes e transcendentais27 — respecti-
vamente, exigências que se encontram para lá das possibilidades da experiência
e pré-condições necessárias à conformação da praxis, numa convocação ine-
quívoca de Kant28. Assim, um uso normativo e crítico da desconstrução, que

However, Derrida would also say that in each case the first concept bears the traces of the second concept,
just as the second concept bears the traces of the first.
The word “trace” is a metaphor for the effect of the opposite concept, which is no longer present but has
left its mark on the concept we are now considering. The trace is what makes deconstruction possible; by
identifying the traces of the concepts in each other, we identify their mutual conceptual dependence.
One might ask whether the ideas of differance and trace between two opposed concepts could form a new
ground for explaining both. However, differance and trace are not stable conceptions; they simply repre-
sent the play of differences and dependencies between two mutually opposed concepts. Neither differance
nor trace could serve as a foundational concept”. — BALKIN, Jack.“Deconstructive Practice and Legal
Theory”, op. cit., p. 752. Vide BALKIN, Jack. “Nested Oppositions”, op. cit., e “Transcendental Decons-
truction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1152.
27 Concomitantemente, se o conceito de justiça, tal como o de verdade, for compreendido com um mero
produto de um particular desenvolvimento do cultural software, se se considerar em exclusivo o desen-
volvimento mimético da cultura, talvez a justiça possa ser dita uma mutação arbitrária, própria de cada
cultura ou mesmo da história mimética evolutiva de cada indivíduo. Nessa hipótese, segundo Balkin,
não seria possível estar moralmente comprometido com os outros. E, em conformidade, afirma: “I shall
argue that ideological analysis, and indeed all moral discourse, must presuppose a transcendent value
of justice. Tools of understanding produced by cultures to pursue justice are articulations of this value.
Because the conception of what is just is necessarily related to what is true… moral discourse also
presupposes a transcendent value of truth”. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 143.
Não é, todavia, esta a sua proposta — não obstante a contingência que se lhe venha a apontar —, antes
afirma que nem todos os valores e ideais humanos são transcendentes, mas a justiça e a verdade são-no.
Embora a noção de verdade como “valor” possa parecer estranha, Balkin afirma não pretender analisar
o conteúdo das afirmações como sendo verdadeiro ou falso, mas antes considerar a verdade não apenas
como uma qualidade das afirmações, mas também como uma exigência para o entendimento e o reco-
nhecimento; quando Balkin diz que a verdade é um valor, não pretende oferecer uma definição analítica,
mas significar a verdade como exigência. — “I mean that human beings have an inexhaustible drive to
understand what is the case and what is not in the world around them. It is this value that we experience
as a demand”. — Idem, p. 145.
28 “The argument for a transcendent value of justice is “transcendental” because it claims this value a nec-
essary pressuposition to deconstructive arguments about justice”. — BALKIN, Jack.“Deconstruction’s
Legal Career”, op. cit., Part II, p. 7, n. 30 da p. 6. “Hence the argument for transcendent values is tran-
scendental”. — BALKIN, Jack. Cultural Software..., op. cit., p. 145. “Para Balkin trata-se, com efeito, de
reconhecer que o “argumento” que defende a “existência de valores transcendentes” (e destes enquanto
“exigências” ou “aspirações indeterminadas”) se nos impõe como uma “condição-pressuposto transcen-
dental” (a necessary transcendental precondition) da possibilidade (prática) da compreensão moral e po-
lítica e da retórica discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu continuum) — mas então também da
análise ideológica em que esta tematização culmina… (...)
Sem deixar assim mesmo de ter presente que tanto a experiência de representação da transcendência
(concentrada nos “ideais regulativos” da verdade e da justiça) quanto a justificação autossubsistente de
uma certa crítica transcendental (assumida como problema do homo noumenon) — se não mesmo já o
reconhecimento da “tensão” que constitui o binómio transcendente/transcendental e a interrelação que o
traduz — se nos oferecem afinal como expressões indiscutíveis de uma certa cultura positiva (ou dos ciclos
que esta tem vindo historicamente a cumprir)”. — AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o
fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., n. 81, p. 91-92.

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Balkin designa, na discussão de questões referentes à justiça, por desconstrução


“transcendental”29, e que presume a existência daqueles transcendent human
values30, os valores transcendentes da verdade e da justiça, pré-condições neces-
sárias para a análise ideológica31. Sendo a ideia de justiça indefinida e indeter-
minada, a indeterminação das suas fronteiras constituirá parte do seu carácter
transcendente32. Um conceito indeterminado, ilimitado, de justiça, enquanto exi-
gência pressuposta33: a justiça assim como conceito indefinido — sem fronteiras
concretas, mas parcialmente concretizável, ainda que com contornos diversos,
em cada específico contexto histórico-social —, e não infinito — insusceptível
de definição concreta —, o que também o distingue de Derrida34 —, embora a

29 “If deconstructive practice is to be of any use to the question of justice, it must become a transcendental
deconstruction. It much exchange the logic of the infinite for that of the indefinite. It much act in the
service of human values that go beyond culture, convention, and law. It must recognize the chasm that
differentiates human value from articulated conceptions of it, and it must identify Deconstruction with
that chasm. Finally, one must understand deconstructive practice as a rhetorical practice that employs
Deconstruction but is not identical to it. Because deconstructive practice is a practice, it is repeatable,
teachable, and alterable like any other human convention. Because it is rhetorical, it can be used for good
or for ill”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1183.
“The essence of what I am calling transcendental deconstruction, then, is to note the interval between the
human capacity for judgment and evaluation that inevitably and necessarily transcends the creations of
culture, and the prescriptions and evaluations of that culture, which in turn articulate and exemplify hu-
man values like justice. It is in this sense that transcendental deconstruction depends, as Platonism itself
does, on a conception of values that “go beyond” the positive norms of culture and convention. But these
transcendent values do not come to us in a fully determinate form; they need culture to turn their inchoate
sense into an articulated conception. And these transcendent values do not exist in an imaginary Platonic
Heaven; they exist rather in the wellsprings of the human soul”. — Idem, p. 1139.
30 Idem, p. 1149-1154, e n. 58. Vide ainda AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado
do ethos e do pathos...”, op. cit., p. 95-98.
31 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 144.
32 “(…) recusando o apelo de uma responsabilidade infinita ou a possibilidade de o testemunhar (as an infi-
nite duty toward the Other) — assume a pressuposição constitutivamente transcendental de uma exigência
indeterminada de justiça (as an indefinite, but not infinite, demand for justice) e o caminho privilegiado de
uma political morality (se não do continuum prático-comunitário que a traduz)”. — AROSO LINHARES.
“Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 653.
33 “Yet if human legal creations are always to some degree unjust, justice cannot be fully and finally determined
by any positive norms of human law, culture or convention; for these positive norms must also fall short of
our value of justice. Thus, we must think of justice as an insatiable demand that can never be fulfilled by
human law. We must postulate a value of justice that transcends each and every example of justice in hu-
man law, culture and convention. In this way deconstructive argument brings us to recognize a transcendent
value of justice. Hence, the critical use of deconstruction becomes “transcendental” deconstruction, because
it must presuppose the existence of transcendent human values articulated in culture but never adequately
captured by culture”. — BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 5-6.
34 “(…) la justice comme possibilité de la déconstruction, la structure du droit ou de la loi, de la fondation,
ou de l’auto-autorisation du droit comme possibilité de l’exercice de la déconstruction”. — DERRIDA,
Jacques. Force de loi…, op. cit., p. 36. “Le droit n’est pas la justice. Le droit est l’élément du calcul, et il
est juste qu’il y ait du droit, mais la justice est incalculable, elle exige qu’on calcule avec de l’incalculable ;
et les expériences aporétiques sont des expériences aussi improbables que nécessaires de la justice, c’est-
à-dire de moments où la décision entre le juste et l’injuste n’est jamais assurée par une règle”. Idem, p.
38. “(…) we must offer an alternative account of “a responsibility without limits” that saves it from these

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relação entre estes dois termos seja ela própria configurável como uma nested
opposition35, ela própria desconstruível (a própria estratégia da desconstrução
transcendental36 seria uma estratégia de nested opposition37). O direito, não

difficulties. This account inevitably leads us to the transcendental conception of deconstruction. A limitless
responsibility could be an infinite responsibility, or it could be a responsibility whose full contours cannot
be defined in advance. This is the distinction between the infinite and the indefinite. We can say, both in the
case of the infinite and the indefinite, that one cannot draw determinate and clear boundaries, so that in both
cases we are, in a sense, “without limits”. The meaning of “without limits”, however, is different in each
case. The infinite cannot be bounded because it is infinite. The indefinite has no clear boundaries because its
scope is so heavily dependent on context, and not all possible future contexts can be prescribed in advance.
The indefinite has boundaries, but we do not know precisely where they are. The infinite has no boundaries,
and we know this for certain”. — BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”,
op. cit., p. 1151. “Thus, the indefinite is unlimited, but not in the way that the infinite is. It makes perfect
sense to say that an individual’s responsibility is “without limits” because it is always indefinite — that is,
because the full contours of this responsibility can never be completely articulated — but it is nevertheless
limited in another sense because it is not infinite”. — Idem, p. 1151-1152. “We can also apply the distinc-
tion between the infinite and the indefinite to the meanings of texts. People often associate deconstruction
with the claim that the meaning of texts is indeterminate. Yet there are two ways to claim that meaning is
indeterminate: One can say that a text’s meaning is infinite — that is, that it means everything — or one can
say that its meaning is indefinite. If the meaning of every text is infinite, then all texts mean the same thing,
because all texts have every meaning. But if one says that the meaning of every text is indefinite, we mean
that the contexts in which the text will take its meaning cannot be specified in advance, and therefore the text
will always have an excess of meaning over that which we expect (or intend) it to have when it is let loose
upon the world. The first view of texts is consistent with a nihilistic account of deconstruction; the second
is consistent with the type of deconstruction I advocate”. — Idem, p. 1152.
35 “The distinction between transcendental deconstruction and its unworkable alternative rests upon the
distinction between the indefinite and the infinite. However, since one can deconstruct any distinction,
one should also be able to deconstruct the distinction between the indefinite and the infinite. Even here,
however, we need to ask what conception of deconstruction we should use to critique the theory — the
transcendental or the nihilistic. If we use a nihilistic conception, we would be effacing this distinction.
We would say that there is no difference between the indefinite and the infinite in any circumstance or
situation. So, for example, we would be saying that everything with indefinite boundaries is infinite in
extension. It would follow that each day is infinite in length because the boundary between day and night
is indefinite. Thus, the use of nihilistic deconstruction leads to an untenable position, just as it leads to the
destruction of many other useful distinctions. But this is a reason to think that the nihilistic conception of
deconstruction is seriously flawed.
Instead, we might deconstruct the distinction between the indefinite and the infinite using the technique of
transcendental deconstruction”. — Idem, p. 1153.
36 “It is important to note that not all deconstruction has this critical or ameliorative purpose. After all, we
might simply deconstruct texts in order to discover their multiple meanings and internal tensions. In order
to distinguish these other possible uses of deconstruction I call give this normative and critical form of de-
construction a special name. For reasons to be described presently, I call it transcendental deconstruction.
If we deconstruct law for a critical purpose it must be because we believe that there is some gap or diver-
gence between the law and what justice requires. In other words, the critical use of deconstruction presup-
poses a conceptual opposition between law and justice. However, deconstructive theory also tells us that
every conceptual opposition can be reinterpreted as a nested opposition. So there is a complex relationship
of mutual dependence and differentiation between these two concepts. What is this relationship?
Laws apportion responsibility, create rights and duties, and provide rules for conduct and social ordering.
But law can never achieve perfect justice. Law is always to some extent unjust. At the same time, our no-
tions of justice can only be articulated and enforced through human laws and conventions. Although we
may have an ideal of a justice that always escapes human law and human convention, the only tools we

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logrando realizar totalmente esta justiça, procura, contextualizadamente, uma


sua concretização parcial38. Dependendo a similaridade e a diferença entre os
dois pólos de uma nested opposition do contexto, o que traduz a sua iterabi-
lidade39. E esta concepção transcendental da desconstrução implica, para lá

have to express and enforce our ideal are laws and conventions. Our conception of justice relies for its
articulation and enforcement on the imperfect laws, conventions and cultural norms from which it must
always be distinguished.
This, then, is the nested opposition of law and justice: Human law, culture, and convention are never
perfectly just, but justice needs human law, culture, and convention to be articulated and enforced. A
fundamental inadequation always exists between our sense of justice and the products of culture, but we
can only express this inadequation through the cultural means at our disposal”. — BALKIN, Jack. “De-
construction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 5.
37 A estratégia da desconstrução transcendental consiste na convocação da teoria das nested oppositions, da
desconstrução de oposições conceituais que resulta no reconhecimento da relação de différance entre os
termos opostos: “The choice between these two approaches also corresponds to two different explanations
of how one deconstructs a conceptual opposition. The strategy of the nihilistic view is one of total efface-
ment — all conceptual distinctions are imaginary because the meanings of each side of the opposition are
infinite. Therefore both sides mean the same thing. The strategy of transcendental deconstruction is one
of nested opposition. A nested opposition is an opposition in which the two sides “contain” each other —
that is, they possess a ground of commonality as well as difference”. — BALKIN, Jack. “Transcendental
Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1152-1153.
38 “(...) law is never perfectly just, but justice needs law to be articulated and enforced. This argument is ex-
emplary of a transcendental approach to deconstruction, the only approach that can rescue deconstruction
from the nihilistic abyss of infinite meaning. It assumes that human values like justice transcend the positive
norms of human culture, even as they depend upon these norms for their articulation and expression. Human
values like justice are always indeterminate; they must be constructed and articulated through culture, law,
and convention. Yet any articulation of human value never fully exhausts the scope of human evaluation.
We may offer a theory of what is just, and this theory may assist our judgments of what is just, but it does
not ever fully displace our sense of justice. We always retain the ability to understand that our conventions,
laws, and theories of justice fall short of our value of justice. Thus, our indeterminate values continue to
demand more from us than our articulations of them can ever give; our urge to evaluate serves as a perpetual
reminder of the gap between our values and their articulations in law or convention”. — Idem, p. 1155.
39 A “iterabilidade” enquanto a propriedade que os signos têm de serem reproduzíveis em diferentes momen-
tos, lugares e contextos, o que é essencial para toda a comunicação: “Un signe écrit s’avance en l’absence
du destinataire. Comment qualifier cette absence? On pourra dire qu’au moment où j’écris, le destinataire
peut-être absent de mon champ de perception présente. Mais cette absence n’est-elle pas seulement une
présence lointaine, retardée ou, sous une forme ou sous une autre, idéalisée dans sa représentation? Il ne le
semble pas, ou du moins cette distance, cet écart, ce retard, cette différance doivent pouvoir être portés à un
certain absolu de l’absence pour que la structure d’écriture, à supposer que l’écriture existe, se constitue.
C’est là que la différance comme écriture ne saurait plus (être) une modification (ontologique) de la pré-
sence. Il faut, si vous voulez, que ma “communication écrite” reste lisible malgré la disparition absolue de
tout destinataire déterminé en général pour qu’elle ait sa fonction d’écriture, c’est-à-dire sa lisibilité. Il faut
qu’elle soit répétable — itérable — en l’absence absolue du destinataire ou de l’ensemble empiriquement
déterminable des destinataires. Cette itérabilité — (iter, derechef, viendrait de itara, autre en sanskrit, et
tout ce qui suit peut être lu comme l’exploitation de cette logique qui lie la répétition à l’altérité) structure
la marque d’écriture elle-même, quel que soit d’ailleurs le type d’écriture (pictographie, hiéroglyphique,
idéographique, phonétique, alphabétique, pour se servir de ces vieilles catégories). Une écriture qui ne
serait pas structurellement lisible — itérable — par-delà la mort du destinataire ne serait pas une écriture”.
— DERRIDA, Jacques. “Signature événement contexte”, Marges de la Philosophie, op. cit., p. 374-375. E
Balkin: “Iterability is a property of signs. If one makes a sign, one can make the sign again at another time,
in another place, in another context. In a simple sense, words are like signs. We are able to communicate

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dela, uma reconstrução alternativa, pelo que a descontrução depende sempre


da reconstrução, sendo mesmo esta susceptível de nova descontrução40. Numa
compreensão da justiça que exige uma tradução da linguagem do Outro, uma
ética da alteridade, ou mesmo uma ética da tradução, ainda que esta sobretudo
numa outra perspectiva, a de Boyd White41. Mas a implicar, não obstante, uma

because we can use words and combinations of words over and over again. If we had to create new signs
to express our thoughts every time we attempted to communicate, we would never be able to communicate
with anyone. Thus, iterability, or the property of being able to be repeated in many different contexts, is
essential to any form of communication”. — BALKIN, Jack. “Deconstructive Practice and Legal Theory”,
op. cit., p. 749. “The essential property of the sign is its iterability. It follows from Derrida’s theory of the
sign that we can use signs if and only if they are separable from our intent — if and only if they “mean”
whether or not they mean what we intend. (…) Language can signify only if it can escape the actual present
meaning it had to the person who used it”. — Idem, p. 779. Vide ainda idem, p. 779-783, e BALKIN, Jack.
“Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 1. “...in translating the insights of deconstructionists to
the study of law, I was also working a transformation — for to translate is to iterate, and iterability alters”.
— BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1131, remetendo
para BALKIN, Jack.“Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p. 743-745, e ibidem, n. 8, e n.
56, p. 761. No sentido de que a indeterminação linguística dos textos é susceptível de uma determinação
contextual de sentido, vide DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited
Inc., op. cit., p. 136-137; DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris, 1967, p. 227-228: “Il n’y a
pas de hors-texte. [...] Ce que nous avons tenté de démontrer en suivant le fil conducteur du “supplément
dangereux”, c’est que dans ce qu’on appelle la vie réelle de ces existences “en chair et en os”, au-delà de
ce qu’on croit pouvoir circonscrire comme l’œuvre de Rousseau, et derrière elle, il n’y a jamais eu que de
l’écriture; il n’y a jamais eu que des suppléments, des significations substitutives qui n’ont pu surgir que
dans une chaîne de renvois différentiels, le “réel” ne survenant, ne s’ajoutant qu’en prenant sens à partir
d’une trace et d’un appel de supplément, etc. Et ainsi à l’infini car nous avons lu, dans le texte, que le pré-
sente absolu, la nature, ce que nomment les mots de “mère réelle”, etc., se sont toujours déjà dérobés, n’ont
jamais existé; que ce qui ouvre le sens et le langage, c’est cette écriture comme disparition de la présence
naturelle”. Derrida esclarece o sentido da afirmação “Il n’y a pas de hors-texte”, assumindo-a como uma
expressão da determinação contextual: “The phrase which for some has become a sort of slogan, in general
so badly understood, of deconstruction (“there is nothing outside the text” [il n’y a pas de hors-texte])
means nothing else: there is nothing outside context. In this form, which says exactly the same thing, the
formula would doubtless have been less shocking. I am not certain that it would have provided more to
think about”. — DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, op. cit., p.
136. Mais. O contexto compreende-se como irredutivelmente aberto ao exterior, o que influenciaria o seu
interior, pressupondo: “…that there are only contexts, that nothing exists outside context, as I have often
said, but also that the limit of the frame or the border of the context always entails a clause of nonclosure.
The outside penetrates and thus determines the inside”. — Idem, p. 152-153.
40 “Thus, the transcendental conception of deconstruction is premised on the possibility of an alternative re-
construction that is superior to the given target of deconstruction. In this sense, deconstruction always de-
pends on reconstruction, even though this reconstruction may be subject to further deconstructive critique.
At the same time, theoretical (re)construction always depends on the tools of deconstruction. If we wish
to construct a just account of moral or legal responsibility, we must be able to choose between compet-
ing alternatives and discard those that prove unsatisfactory. However, to critique the various possibilities,
and discover their hidden incoherences, we need the critical tools of deconstruction”. — BALKIN, Jack.
“Transcendental Deconstruction, Trancendent Justice”, op. cit., p. 1156.
41 Balkin convoca o conceito de justiça como tradução, de James Boyd White: “…as James Boyd White has
recently noted, the problem of justice is inherently a problem of translation. For judges or other parties
to speak in the language of another, they must translate the Other’s language into their own. But transla-
tions are always imperfect. They never fully convey the sense of the original. Hence the very necessity

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responsabilidade perante o Outro que não é absoluta, também aqui diferente-


mente de Derrida, antes constitui um dever indefinido, não infinito, cujos contor-
nos são contextuais, apenas definíveis em cada caso42.

2. Em contraponto, surge, como dissemos, face a esta construção da prática


cultural histórica como realização temporal e imperfeita do valor transcendente e
transcendentalmente vinculante da justiça, a noção de valor transcendente que a

of translation renders it impossible fully to speak in the language of the Other”. — Idem, p. 1158, com
referência a WHITE, James Boyd. Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal Criticism. Chi-
cago, 1990, p. 257-269. “Justice demands that we speak in the language of the Other to the extent that it
is appropriate to do so because this would further justice, but it equally demands that we not do so when
it would increase injustice”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”,
op. cit., p. 1164. Vide ainda AROSO LINHARES. Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o
tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de “passagem” nos limites da juridi-
cidade (imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso). Stvdia Ivrica, 59, Coimbra, 2001, p. 679
ss., especialmente p. 714-715. Mas também a percepção do Outro em Jacques Derrida: “We may connect
this point to our earlier criticism of the notion of a “responsibility without limits”. Derrida has argued that
the ethics of Otherness imposes upon us a responsibility to speak in the language of the Other. However,
because justice is a responsibility without limits, we might ask as before whether this responsibility to the
Other is an infinite responsibility or merely an indefinite one.
Thus, there are two different interpretations of the ethics of Otherness. The first imposes an infinite duty;
the second imposes only an indefinite duty. The first corresponds to a nihilistic conception of deconstruc-
tion; the second to the transcendental conception. (...) In the first case, the demand of justice is never satis-
fied because this demand is infinite; in the second case, we can never be certain that the demand of justice
is satisfied because the duty it imposes is indefinite”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction,
Transcendent Justice”, op. cit., p. 1165. “(…) a invocação-especificação de um princípio da heteronomia e
deste como compromisso prático (se não como farol de uma provação interior) se cumpre afinal em nome
de um reencontro com a humanitas. Em nome, se quisermos, da “vinda” ou da “ressurreição” do homo
humanus que a nossa circunstância presente exige”. — AROSO LINHARES. “O dito do direito e o dizer
da justiça — diálogos com Lévinas e Derrida”. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lenio
Luiz (Org.). Entre discursos e culturas jurídicas. Coimbra, 2006, p. 181-236, p. 182-183, (também The-
mis, VIII. 14, 2007, p. 5-56). Vide ainda AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado
do ethos e do pathos…”, op. cit., p. 60-84, e Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento
narrativo da diferença…, op. cit., p. 679-774.
42 “The postulation of an infinite duty is untenable. Yet we might still make sense of the ethics of Otherness
by viewing the duty to understand as indefinite rather than infinite. We have some duty to speak in the
language of the Other, but our duty is not infinite. Instead, justice demands that we make just the right
amount of effort to understand the Other. Beyond that point, it is not only appropriate but necessary for us
to recognize that the Other’s views are incoherent or unjustified, and that our own position is more reason-
able. We have a duty to be open to and absorb that part of the Other’s point of view which furthers justice
while disagreeing with the rest.
But if we have this responsibility, how will we know when to cease our efforts at understanding? How will
we know when we have done all that justice requires? We cannot know the full contours of our responsibil-
ity in advance of our encounter with the Other. Each situation will be different, and our responsibility in
each situation will depend heavily on the context of the encounter. Hence our responsibility to the Other,
while not infinite, is nevertheless indefinite.
There is a further reason why our duty to the Other must be indefinite. It has to do with the symmetrical nature
of Otherness”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1167.

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perspectiva jurisprudencialista de Castanheira Neves reconhece na coexistência


comunitária43, ao referir que a dimensão fundamentante do direito, pressupondo
uma contextualização comunitária, assenta numa axiológica “autotranscendên-
cia ou transcendentalidade prático-cultural”44. Ponto de contacto este que está

43 A comunidade ética é aqui compreendida como axiologicamente fundada: “E esta constituir-se-á apenas
se o estatuto dos direitos e dos deveres, que em cada um dos participantes venha a definir concretamente
a sua correspectiva posição, se revelar fundado ou puder fundamentar-se num “valor”, num fundamento
axiológico graças ao qual a posição afirmada se transcenda num sentido de validade. Valor transcenden-
te, posto que se revela à consciência ética das pessoas que comungam na situação ao transcenderem-se
elas mesmas na compreensão de membros comparticipantes e corresponsáveis dessa mesma situação”.
— CASTANHEIRA NEVES. “O papel do jurista no nosso tempo”. In: Digesta…, op. cit., vol. I, p. 9-50,
p. 40. “Dir-se-á, de outro modo, que o direito só será autenticamente como tal se for manifestação da
“volonté générale” — mas da “vontade geral” nos termos em que ela pode ser compreendida e é efectiva-
mente compreendida pelo pensamento jurídico do nosso tempo. Uma “vontade geral” que não tem já nada
a ver com uma redução formal (quer idealizante, quer generalizante) da vontade de todos, nem exprime
um qualquer voluntarismo (de estrutura racional ou não), e muito menos um dado sociológico (um “facto”
social que traduzisse uma “convicção” generalizada ou um “consenso”, de base psicológica ou de qualquer
outra, mas de carácter puramente empírico). Significa antes o transcender de uma intenção axiologicamente
fundamentante de sentido comunitário: a intenção axiológica que se assume como uma tarefa permanentemente
suscitada a partir da convivência comunitária das pessoas humanas e que nessa convivência concreta se terá de
realizar. (...) por um lado, a transcendência (melhor: o transcender) de que aqui se fala é de carácter estritamente
histórico-concreto — e, por outro lado, o sentido axiológico que implica não é imposto “heteronomamente”,
mas assumido pela (e revelado à) pessoa moral ao transcender-se e realizar-se ela própria na sua dimensão
comunitária”. — Idem, p. 42. Vide ainda CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o
problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito”. In: Estudos em Ho-
menagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço. Coimbra, 2002, vol. II, p. 837-871, p. 863-864.
44 “Pois a prática humana histórico-cultural e de comunicativa coexistência (quer a prática ética em geral,
quer particularmente a prática jurídica), com a sua tão específica intencionalidade à validade em resposta
ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela distinção entre o humano e o inumano, o
válido e o inválido, o justo e o injusto, refere sempre nessa intencionalidade e convoca constitutivamente na
sua normatividade certos valores e certos princípios normativos que pertencem ao ethos fundamental ou ao
seu epistéme prático de uma certa cultura numa certa época. E que assim, sem se lhes poder ignorar a histo-
ricidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural humana, se revelam em pressu-
posição problematicamente fundamentante e constitutiva perante as contingentes positividades normativas
que se exprimem nessa cultura e nessa época — são valores e princípios metapositivos e pressupostos dessa
mesma positividade, como que numa autotranscendência ou transcendentalidade prático-cultural, em que
ela reconhece os seus fundamentos de validade e os seus regulativo-normativos de constituição.
É assim que se poderá dizer que só no direito positivo (histórico-socialmente vigente) o sentido fundamen-
tante de validade realiza o direito, mas só por esse sentido o direito positivo existe como direito. Pelo que a
exclusão da necessidade ontológica no domínio da praxis — que temos de reconhecer como consequência
e herança excessivamente gregas da compreensão da mesma praxis, e que já não poderá ser a nossa hoje
— não nos condena à mera contingência político-social, no domínio do prático-jurídico. A posição exacta
é a de um tertium genus dado numa autopressuposição axiológico-normativa fundamentante e regulati-
vamente constitutiva”. — CASTANHEIRA NEVES. Apontamentos complementares de Teoria do Direito
— Sumários e Textos. Coimbra, 1998-1999, p. 62 (p. 34- 35, na versão A4). Vide ainda CASTANHEIRA
NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia…, op. cit., p. 146-
147, e “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., p. 11, no sentido de
que o direito “(…) terá de referir-se a uma autotranscendência axiológico-normativa de transcendentali-
dade prático-cultural em que reconheça os seus fundamentos de validade e os seus regulativo-normativos
de constituição. Autotranscendência de que assim o homem é responsável, mas sem que esteja no seu
arbítrio, numa transcensão que a prática experiência histórica solicita e justifica — e como que numa

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longe de significar coincidência, ou até mesmo larga concordância, dadas as pa-


tentes diferenças estruturais de base. Divergências de base essas que implicam
necessariamente pilares fundantes e opções de realização diversas, mas tendo em
comum esta ideia de projecto simultaneamente constituído e constituinte — o
constituens — que afinal o direito é.45
Desde logo, em oposição àquela opção pela analítica linguística baseada na
indeterminação e mobilizando como método a desconstrução, a perspectivação
crítica que a proposta crítico-reflexiva de Castanheira Neves pressupõe sustenta
positiva e normativamente as suas opções, de um ponto de vista material, optan-
do por uma consideração normativamente constitutiva do pensamento jurídico,
interna, e mesmo crítico-dialéctica, na abordagem que a Teoria do Direito há-de
fazer da juridicidade,46 muito longe se posicionando da tensão desconstrução-
-reconstrução de que Balkin parte.
Depois, quanto ao sentido da convocação de uma dimensão de transcendên-
cia de valor, no Jurisprudencialismo o que se encontra é, ab initio, uma auto-
transcendência. E isto com implicações essenciais na presente problematização:
o conjunto de valores que hão-de fundamentar o direito, na proposta jurispru-
dencialista que Castanheira Neves nos oferece, não resulta de um ideal heteró-
nomo relativamente à praxis, antes do conjunto das valorações essenciais que
nessa praxis se vão formando e desenvolvendo. E, assim, o conjunto dos padrões
culturais vigentes num determinado contexto espácio-temporal, construídos na

histórica, histórico-cultural, aprendizagem de humanidade”. Vide ainda AROSO LINHARES. “Humanitas,


singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do Direito na “ideia” da
Europa das Nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista”, Dereito. Revista Xurídica da Universi-
dade de Santiago de Compostela, vol. 15, n. 1, 2006 (Separata de A organización territorial dos estados e a
integración europea), p. 17-67; p. 22-23; “Jus Cosmopoliticum e Civilização de Direito: as “alternativas”
da tolerância procedimental e da hospitalidade ética”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, vol. LXXXII, Coimbra, 2006, p. 135-180, p. 174-179, especialmente p. 176; e “O dito do direito
e o dizer da justiça — diálogos com Lévinas e Derrida”, op. cit., p. 219-220, 226-236.
45 “O direito é (…) um sentido normativo, uma intenção axiológica que assimila aqueles valores específicos
que o justificam como direito e lhe conferem uma dimensão superadora e também constituinte”. — CAS-
TANHEIRA NEVES. “A revolução e o direito”. In: Digesta…, op. cit., vol. I, p. 51-239, p. 56. “O direito e
o tempo ou o direito referido ao tempo, que tanto é dizer o direito na história — decerto agora a história in
fieri, das res gestae, a história que hoje se faz, que não a história facta ou das res gestarum, a história já só
passado — e para lograr compreender que o tempo-história em e por que as culturas civilizacionalmente,
não só se manifestam, mas verdadeiramente se constituem, é ele também o constituens do direito — e falo,
não elementarmente das suas objectivações, e sim do seu próprio sentido, da sua intencionalidade consti-
tutiva e dele diferenciadora no universo das culturais realidades humanas”. — CASTANHEIRA NEVES.
“O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., p. 9-10. “(…) o direito é
constituendo em função daquilo que o homem (intersubjectivo-intencionalmente, que não subjectivo-vo-
luntaristicamente) quer que seja direito — e não em função daquilo que é direito”. — PINTO BRONZE,
Fernando José. Lições de Introdução ao Direito. Coimbra, (2002), 2006, p. 176.
46 CASTANHEIRA NEVES.Teoria do Direito, op. cit., p. 43-45, 50-51 (p. 23-24, 29, na versão A4).

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autodisponibilidade comunitária, simultaneamente constituem: por um lado, a


construção histórica — a manifestação da irredutível dimensão de historicidade
constitutiva que o direito pressupõe —, num primeiro nível, das valorações que,
num segundo nível, hão-de manifestar-se juridicamente nos princípios (nor-
mativos) fundamentais, e, num terceiro nível, da assunção da crucial aquisição
axiológica do homem como pessoa, e da reciprocidade do reconhecimento da
dignidade ética de cada pessoa47; e, por outro lado, o horizonte de referência
regulativamente projectante e materialmente densificante da autovinculação
normativamente comunitária do direito. Uma densificação axiológica que não
implica o regresso a um jusnaturalismo, pois que coloca a sua base de sustenta-
ção ao nível das valorações socialmente agregadoras histórica e empiricamente
construídas, e também recusando um estrito consenso societário (overlapping
consensus)48 ou uma determinação apenas discursivo-procedimental49, antes

47 Sobre os três planos da consciência jurídica geral, vide CASTANHEIRA NEVES. A revolução e o direi-
to, op. cit., p. 208-222; PINTO BRONZE. Lições de Introdução ao Direito, op. cit., p. 476 ss.; AROSO
LINHARES. Sumários desenvolvidos (C): “O Jurisprudencialismo”, Coimbra, 2001-2002; p. 4-9. Vide
ainda, quanto ao conceito de pessoa como aquisição axiológica, entre outras reflexões de CASTANHEI-
RA NEVES. Apontamentos complementares de Teoria do Direito…, op. cit., p. 71-79 (p. 40-43, na versão
A4); e “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 863-871.
Vide também, por exemplo, PINTO BRONZE. Lições de Introdução ao Direito, op. cit., p. 170-196, 480,
490-543, 570-579; AROSO LINHARES. “Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade
cívico-territorial…”, op. cit., p. 59-60, 64, e “A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz:
o ‘testemunho’ crítico de um ‘diferendo’?”, Revista Lusófona de Humanidade e Tecnologias. Estudos e
Ensaios, n. 12, 2007-2008, p. 101-120, p. 117.
48 “(…) o liberalismo político tenta responder à seguinte questão: como é possível que possa haver uma so-
ciedade estável e justa cujos cidadãos livres e iguais estejam profundamente divididos por doutrinas religiosas,
filosóficas e morais conflituantes e mesmo incomensuráveis? (…) a primeira fase da exposição da justiça como
equidade como uma perspectiva independente que se dirige a esta questão. A primeira fase indica os princípios
da justiça que especificam tanto os justos termos da cooperação entre os cidadãos como as circunstâncias em
que as instituições básicas de uma sociedade são justas.
A segunda fase da exposição (…) considera o modo como a sociedade democrática bem-ordenada da justi-
ça como equidade pode estabelecer e preservar a unidade e a estabilidade, dado o pluralismo razoável que
a caracteriza. Numa sociedade deste tipo, uma doutrina abrangente razoável não pode assegurar os funda-
mentos da unidade social, como igualmente não pode prover o conteúdo da razão pública nas questões po-
líticas fundamentais. Consequentemente, para observar o modo como uma sociedade bem-ordenada pode
ser unificada e estabilizada, introduzimos uma outra ideia básica do liberalismo político que acompanhará
a ideia de concepão política da justiça: a ideia de um consenso de sobreposição de doutrinas abrangentes
razoáveis”. — RAWLS, John. Political Liberalism. Columbia, 1993, op. cit. na trad. portuguesa O Libera-
lismo Político. Trad. João Sedas Nunes. Lisboa, 1996, p. 141. Vide especialmente p. 141-174.
49 “Von den bislang konkurrierenden Rechtsparadigmen unterscheidet sich das prozedurale nicht dadurch,
daβ es „formal“ im Sinne von „leer“ oder „inhaltsarm“ wäre. Denn mit Zivilgesellschaft und politischer
Öffentlichkeit zeichnet es energisch Bezugspunkte aus, unter denen der demokratische Prozeβ für Ver-
wirklichung des Systems der Rechte ein anderes Gewicht und eine bisher vernachlässigte Rolle gewinnt.
In komplexen Gesellschaften sind weder die Produktivität einer marktwirtschalftlich organisierten Wirt-
schaft noch die Steuerungskapazität der öffentlichen Verwaltung die knappsten Ressourcen. Einen shonen-
den Umgang verlagen in erster Linie die Ressourcen des erschöpften Naturhaushaltes und der im Zerfall
begriffenen gesellschaftlichen Solidarität. Und die Kräfte gesellshaftlicher Solidarität lassen sich heute nur

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vendo naqueles valorações, enquanto projectos de ser, ideais regulativos, e,


nessa medida, autotranscendentais — autênticas condições de possibilidade,
mas na autodisponibilidade dos membros de uma comunidade histórico-con-
creta, portanto nem de pura contingência empírica, pois que se assumem como
ideais vinculantes, nem de origem heterónoma, pois que de constituição e re-
constituição histórica e humana.
Para além disso, a expressamente assumida como patente e essencial di-
mensão ideológico-política da fundamentação do direito no projecto emancipa-
tório de Balkin encontra-se afastada na proposta jurisprudencialista em análise:
a dimensão axiológica de fundamentação do direito radica no reconhecimento
recíproco do homem como pessoa50, sem enveredar nem por qualquer descons-
trução linguística formal ou material da linguagem do direito, nem pela consi-
deração partisan de minorias, e nem mesmo, em último termo, por uma ética
da alteridade, em que a ampliação, ainda que não absolutização, da responsa-
bilidade pelo Outro implicaria uma radical aproximação, se não mesmo uma
parcial diluição, do jurídico na ética, acarretando inevitavelmente a perda de
autonomia da juridicidade que esta opção jurisprudencialista toma como pilar
crucial da afirmação do direito.
Por outro lado, a referência ideológica subjacente à noção de justiça em
Balkin é excluída na noção jurisprudencialista de validade. O que o Jurispru-
dencialismo aqui em análise pretende afirmar é, diferentemente, a possibilidade,
civilizacionalmente traçada, de identificar os valores-projectos comunitariamen-
te assumidos como vectores essenciais à intersubjectividade que define a rele-
vância jurídica — aquela em que algo inter-est, que justifica a relativização dos
sujeitos intervenientes, que não aquela que se reporte às relações de absoluto,

noch regenerieren in den Formen kommunikativer Selbstbestimmungspraktiken“. — HABERMAS, Jür-


gen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats.
Frankfurt am Main, 1992, p. 536.
50 Vide, entre outros textos, CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema
universal do direito…”, op. cit., p. 863-865. “(…) a categoria fundamental na ordem prática não a
temos no homem-sujeito-indivíduo, mas na pessoa, no homem pessoa e com todas as implicações da
sua imediata referência ético-comunitária, de realização e de responsabilidade. Pelo que, e já por aqui,
se terá de concluir que o vínculo social não pode fazer tabula rasa de outros vínculos humanamente
pressupostos, no postulado de um vazio aberto ao incondicional alvedrio da vontade política, ainda
que por mais de uma vez na história, e sempre tragicamente e em vão, assim se pensasse e tentasse na
acção”. — CASTANHEIRA NEVES. “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”, op. cit., p. 19. “(…) a pessoa implica a relação ao outro num recíproco reconhecimento ético,
como ser de dignidade em relação que é, como ainda em si mesma e pela sua eticidade constitutiva é
não menos um ser de responsabilidade — em si e nos seus próprios direitos — e portanto é impensável
sem o vínculo comunitário. Também aqui o homem não se reduz ao “sujeito” moderno”. — Idem, p.
47. Vide ainda AROSO LINHARES. “Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade
cívico-territorial…”, op. cit., p. 28, 40-41, 59-60, 64-67.

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em que uma definição-medida da posição subjectiva relativa, sob a forma de


critério, não possa objectivamente definir-se. E, mais do que isso, e culminando,
enquanto intenções à validade, em contínua construção e redensificação histó-
rica, condições de possibilidade de pensar um projecto comunitário de huma-
nização do homem, autotranscendentais, que não transcendentais intenções à
justiça que vejam nesta uma justice demand nunca completamente alcançável
e de contornos partisan ideológicos. A intenção à justiça apontada por Balkin
parte de uma ideia de justiça global, talvez mesmo universal e intemporal, que
imperfeitamente se vai realizando em cada comunidade histórica. Se compreen-
dido em sentido estrito, este entendimento diverge neste ponto, essencialmente,
da concepção jurisprudencialista de Castanheira Neves, quer pela referência a
um ideal absoluto de justiça quer pela sua definição como ideal heterónomo —
transcendente — de fundamentação. Mas já quanto à transcendentalidade que
lhe corresponde — de ver nessa intenção à justiça um ideal-projecto a prosse-
guir, como horizonte de referência essencial à configuração histórica do direito
— a oposição não será completa, pois que também a intenção à validade que o
Jurisprudencialismo propugna se assume como condição de possibilidade — e,
por isso, transcendental, só que, agora, autotranscendental — da fundamenta-
ção, construção e realização prática do direito51.
Por outro lado ainda, as ideias de comunidade e — pressuposta e a pressupor
esta — de pessoa, subjacentes a ambas as propostas em análise, também se não
confundem52. No Jurisprudencialismo aqui em análise, se o direito surge para
dar resposta a um problema universal, o da coexistência/convivência humana, as
soluções apresentadas para a resolução desse problema hão-de ser historicamente

51 “(…) a validade é a manifestação de um sentido normativo (de um valor ou de um princípio) transindivi-


dual: o sentido fundamentante, argumentativamente invocável pro ou contra, que transcende os pontos de
vista individuais de uma qualquer relação intersubjectiva (…) e os transcende pela referência e a assunção
de uma unidade ou de um comum de sentido integrante (…) em que, por um lado, os membros da relação
se reconhecem iguais e em que, por outro lado, obtêm uma determinação correlativa que não é o resultado
da mera vontade, poder ou prepotência de qualquer desses membros, mas justificável pelas suas posições
relativas nessa unidade de sentido e comum integrante. Um sentido normativo, numa palavra, que se im-
ponha como uma justificação superior e independente das posições simplesmente individuais de cada um
e que, como tal, vincule simultânea e igualmente os membros da relação”. — CASTANHEIRA NEVES.
“Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 868-869.
52 Sobre o problema da relação entre história e direito em Castanheira Neves, e a questão de saber se o direito
é uma resposta necessária ou apenas possível para um problema necessário, o da coexistência/convivência
social do homem, problemática em que, designadamente no que diz respeito à possibilidade de uma consi-
deração universal do direito, ou apenas de direitos historicamente localizados, confronta uma perspectiva
ahistórica, uma perspectiva histórica e uma perspectiva de historicidade, vide CASTANHEIRA NEVES.
“Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 837-840. Vide ainda
o nosso “Do historicismo materialista à historicidade da sociedade aberta: poderá o direito ser reflexo ou
instrumento da História?”. In: Ars Ivdicandi — Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira
Neves, Volume I — Filosofia, Teoria e Metodologia, op. cit., p. 515-550.

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contextualizadas53. O direito é condicionado pela evolução histórica, e, simulta-


neamente, condiciona-a, assumindo-se numa autodisponibilidade comunitária de
conformação da validade, e, por isso, uma intrínseca historicidade54. Na comunida-
de desenhada por Balkin os imperativos morais são vinculativos porque reflectem
uma vontade colectiva, comunitária, e não individual; os seus membros assumem
os direitos, deveres e responsabilidades que dessa inserção decorrem — uma comu-
nidade de participação, em que o sujeito é livre enquanto membro da comunidade
e através desta55. Uma construção que de certo modo se aproxima da proposta ju-
risprudencialista em análise, ao nível da definição de comunidade e da integração
comunitária do homem-pessoa56 — com a decorrente responsabilidade jurídica,
sobretudo ao nível dos princípios da igualdade e da corresponsabilidade: uma res-
ponsabilidade que não se reduz a um neminem laedere, mas que se assume enquanto
correlato da vivência comunitária, expressa em “responsabilidade perante as con-
dições da existência comunitária”, “responsabilidade por reciprocidade” e “res-
ponsabilidade de integração comunitária”57, a assentar num princípio de justiça,
que não se remete a uma pura coexistência, antes exige e exprime uma verdadeira
convivência comunitária. Comunidade (Communitas-Gemeinschaft) que em am-
bas as concepções em discussão se distingue de sociedade (Societas-Gesellschaft),

53 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit.,
p. 840-841.
54 A juridicidade compreendida agora “(...) como expressão de uma validade (exigência axiológico- -normati-
va) a assumir pela prática concreta da coexistência histórico-socialmente das pessoas, no seu encontro e de-
sencontro, na sua convergência ou na sua divergência e controvérsia prático-concretas”. — CASTANHEIRA
NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia…, op. cit., p. 105.
55 “The polar position opposite individualism is communalism. For the communalist, moral imperatives are
binding because they reflect the will of the community, and not the individual. Members of a community
owe allegiance to its mores, ideals, and goals. All members of the community have duties and responsibili-
ties to all other members. These duties and obligations are not the result of voluntary choice but preexist
the self. If for the individualist duty was inseparable from self-legislation, for the communalist, duty is
inseparable from communal participation. Self-realization only is possible through embracing the shared
values and goals of the community. The fact that preexisting mores of the community are imposed upon
the self does not negate the self’s freedom, for the self is part of the community that creates these duties.
Under the communalist vision, one is truly free only when one can share in the benefits of participation
in the community and enjoy the protection and security which membership in the community offers”. —
BALKIN, Jack. “The Crystalline Structure of Legal Thought”, Rutgers Law Review, vol. 39, Fall 1986,
n. 1, p. 1-103, p. 13-14, citado na versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
articles/crystal.pdf>. Acedido em: 03/11/2003.
56 Cfr. CASTANHEIRA NEVES. Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da
juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) — I. A crise. Coimbra, 1967, p. 539-540, 571-579; “O papel
do jurista no nosso tempo”, op. cit., p. 9-50; “O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o
problema actual do direito”, op. cit., p. 287-310; “Pessoa, direito e responsabilidade”, Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, n. 6, 1996, 9-43, p. 32-43; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal
do direito...”, op. cit., p. 848-861 e 863-866; O direito hoje e com que sentido?, op. cit., p. 69-75.
57 CASTANHEIRA NEVES. “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 43; “Coordenadas de uma
reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 867-868.

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e, assim, distinta da vinculação contratual que a modernidade introduziu, e para


além desta, pois que a postular uma verdadeira comunhão, com estabelecimen-
to de laços pré-jurídicos, de interdependência, capazes de considerar a dimensão
comunitária como indissociável da dimensão individual. Só que a comunidade,
em Castanheira Neves, é compreendida enquanto horizonte de referência histo-
ricamente construído. E em Balkin como uma experiência de espontaneidade co-
lectiva, livre da dominação intersubjectiva, uma experiência de reconhecimento e
de compromisso recíprocos, resultantes de “moral obligations” cuja densificação,
tendo um núcleo irredutível — aquele em que se encontrarão as noções de dignida-
de humana, justiça, igualdade —, é historicamente contingente. Comunidade que,
neste último sentido, assenta num altruísmo — ética da alteridade — susceptível
de alargar a dimensão da juridicidade a domínios além daqueles que a proposta de
Castanheira Neves admite. E se em Balkin se compreende a pessoa por referência
e através da comunidade, em Castanheira Neves o homem é pessoa na comunidade
e em confronto com a comunidade, sua condição vital, existencial e ontológica, não
é pessoa senão em comunidade, mas não se dissolve nela, coloca-lhe múltiplas exi-
gências, decorrentes da sua autonomia, na tensão dialéctica suum/commune.58 Em
Balkin, a pessoa coloca igualmente exigências à comunidade, ao mesmo tempo
que depende dela — o seu cultural software individual é depois complementado
pelas comunicações dialecticamente entretecidas com o cultural software colectivo
—, mas aqui o domínio da diferença altera o equilíbrio, o grau de vinculação e as
exigências da intersubjectividade, alargando a dimensão da vinculação comunitária
numa proporção que implica um esbatimento da fronteira entre o direito e a ética.
No comunitarismo proposto por Balkin o pluralismo social e ético que domina as
sociedades actuais acaba por prevalecer, na medida em que se admite uma multi-
plicidade de grupos, eventuais subcomunidades de convicções partilhadas — en-
quanto comunidades restritas no seio da comunidade alargada —, sob a égide do
respeito pela diferença, em que, numa radical contingência, os valores se assumem
— quando perspectivados de fora — como continentes cujo conteúdo é densifi-
cado consoante as bases e as reivindicações ideológico- axiológico-políticas dos
membros de cada grupo. Com o que talvez não perca o sentido falar-se de valores,
embora a designação valores seja aqui mobilizada para significar alguns dos pos-
tulados essenciais para a fundamentação (justificação) do seu projecto ideológico
— assumindo-se um irredutível respeito pelas diversas matrizes axiológicas fun-
damentantes das múltiplas orientações intragrupos. Se a comunidade definida por
Balkin combina uma opção ética — o altruísmo/comunitarismo enquanto projecto

58 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op.
cit., p. 844-861; “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 32-43.

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fundado na dignidade do Outro — com uma assunção axiológica — a exprimir a


igualdade (enquanto efectiva equiparação material de oportunidades...) e a justi-
ça (enquanto realização material da liberdade e igualdade) como ideais — e uma
ideologia política — a emancipação das minorias e a efectivação de um direito
ideologicamente determinado que realize aquelas opções ética e axiológica —,
procura, ainda assim, evitar uma pura instrumentalização do direito à política,
convocando simultaneamente uma realização de valores, mesmo que através da-
quela política. Nesta comunidade, recuperada na convergência empírica e con-
tingente de valores-projectos políticos de realização prática, funda-se a praxis
numa political morality de sentido difuso que abarca valores e objectivos políti-
cos59. Uma comunidade assumida como unidade na diferença, e unidade que se
baseia no respeito recíproco e à qual não é menos essencial o reconhecimento da
dignidade da pessoa. Num paralelismo possível, que não identificação, de novo,
com a comunidade proposta pelo supra referido Jurisprudencialismo, em que o
horizonte de referência axiológico, encontrando-se embora na autodisponibili-
dade dos seus membros, se compreende — sem, todavia, negar a historicidade
— como condição prévia necessária à agregação axiológica e à fundamentação
autovinculante da praxis60.

59 O que, no que diz respeito a Balkin, Aroso Linhares enuncia do seguinte modo: “Uma political morality
que combate a hipertrofia da Zweckrationalität — mas também o isolamento individualista dos direitos e
dos arbítrios (dos direitos sem deveres e dos arbítrios sem liberdade) — enquanto e na medida em que as-
sume a promessa de uma ética da alteridade — e com ela a representação condutora de uma responsabili-
dade indeterminada (as an indefinite duty towards the Other (…), which is neither infinite nor nonexistent,
but dependent on facts and circunstances that are never fully clear, and whose precise contours cannot
fully be determined in advance). Promessa enfim que se especifica numa compreensão da controvérsia
juridicamente relevante (in a situation where each part is an Other to the other, and each is an Other to the
judge who must decide the case). Mas então também (et pour cause!) numa compreensão da controvérsia
em que as categorias de inteligibilidade (se não tools of understanding) são afinal as dos papéis reversíveis
(de agressor ou de vítima, de opressor ou de oprimido) que as partes ocupam na “hierarquia” (naquela
“hierarquia” que só pode ser reconstituída em concreto)”. — AROSO LINHARES. “Autotranscendentali-
dade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 654.
60 A pessoa vai aqui compreendida num sentido muito próximo daquele que Castanheira Neves apresenta.
Vide CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filo-
sofia..., op. cit., p. 105; “O papel do jurista no nosso tempo”, op. cit., p. 38-41; “A imagem do homem no
universo prático”. In: Digesta..., op. cit., vol. I, p. 311-336. A afirmação do homem como pessoa a convocar
uma específica transcendência: “Fé na transcendência a que é convocado o homem e para que aí se recu-
pere como pessoa — pessoa e não substância, ser pessoal e não ser individual, não apenas o ser titular da
liberdade e dos interesses, mas o ser da dignidade ética que é chamado por isso mesmo ao diálogo ético e
à responsabilidade. Pessoa que no seu absoluto ético transcende o político e o económico e que nessa sua
eticidade, com que unicamente tem sentido e se reintegra em si e com os outros reconstituirá uma nova
validade com que na intersubjectividade se vinculará axiologicamente a fundamentos normativos que darão
também sentido aos seus direitos, aos seus deveres e à sua responsabilidade. A pessoa como núcleo autên-
tico de um novo universo prático de sentido e também de um novo direito, de um verdadeiro direito — o
direito que recuse o mero juridismo e se não confunda com uma política ou instrumental legalidade...”. —
Idem, p. 336; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 862.

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

Também quanto à realização histórica e à própria historicidade do direito


não existe sintonia. A partir da inexistência de um conceito indeterminado de
justiça, Balkin afirma um relativismo cultural, admitido como consequência não
necessária, que implica que as diferentes culturas comportem articulações dife-
rentes dos valores transcendentes. E, em conformidade, rejeita outras expressões
de relativismo em que não exista qualquer elemento materialmente agregador —
que resultem, afinal, em indeterminismos. Assim, a diversidade cultural consis-
tirá aqui na multiplicidade de articulações históricas dos valores transcendentes
e transcendentais. Recusando a opção, que diz historicista e pragmatista, que
exclui aquelas transcendência e transcendentalidade por considerar ser a trans-
cendência ela própria específica de uma particular tradição cultural, o pensamen-
to filosófico ocidental. Para afirmar, de forma que diz também pragmática, que
a ideia de valor transcendente é seguramente produto de uma particular história
cultural, contingente no sentido de que é um produto da evolução mimética, mas
que isso não significa que as features of human predicament expressas através
deste conceito sejam elas próprias completamente contingentes61. Para Balkin,
uma concepção historicista da cultura humana e dos valores humanos não só
é consistente com a noção de ideais transcendentes, como os exige: só que por
historicismo não entende já uma teoria que defenda que o conteúdo dos valores
substantivos é sucessivamente revelado através do progresso da história, mas an-
tes uma perspectiva segundo a qual os valores são formados pelo momento his-
tórico — o historicismo, neste sentido, seria o correlato do relativismo cultural,
pressupondo que o presente deve ser compreendido à luz do passado, e o futuro
à luz do presente. Neste sentido, historicismo e transcendência seriam interde-
pendentes: a compreensão da transcendência como tal acontece através do co-
nhecimento das suas diferentes articulações históricas; a variação histórica seria
coerente porque compreendida “...against the background of transcendence...”.62
E a construção racional do homem apresenta-se igualmente de cariz predomi-

61 A própria concepção pragmatista teria, em certo ponto, de utilizar ideais transcendentes, pois também ela
resulta de uma evolução histórica e pertence a uma determinada cultura, objecção que coloca ao conceito
de valor transcendente. — BALKIN, Jack. Cultural Software..., op. cit., p. 168-169.
62 “The experience of historicism makes the concept of transcendence emergent; the concept of transcend-
ence makes the language of historicism coherent”. — Idem, p. 170. Este relativismo espelha-se na concep-
ção de história subjacente à teoria da ideologia de Balkin, admitindo que o passado e o presente se influen-
ciam reciprocamente, como construção e compreensão que o homem faz de si próprio. De novo se poderá
aqui encontrar um paralelo com o Realismo Jurídico Americano, designadamente em Jerome Frank, que
assumia um relativismo histórico, inspirado em Carl Becker, segundo o qual o presente influi na ideia de
passado e esta naquele, e a narrativa do passado será construída de modo diverso, consoante as características
de cada presente... — vide BECKER, Carl. “What are Historical Facts?”, The Western Political Quarterly, vol.
VIII, n. 3, september 1955, p. 327-340, 336-337, apud CAHN, Edmond. “Jerome Frank’s Fact Skepticism and
our Future”, The Yale Law Journal, vol. 66, 1957, p. 824-832 (também em TWINING W.; STEIN, Alex (Ed.).
Evidence and Proof. Aldershot, 1992, p. 234-241), p. 826.

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

nantemente histórico, numa conformação que o autor diz cumulativa63 — embo-


ra constatemos que é, mais propriamente, dialéctica —, tentando afastar quais-
quer determinismos, à excepção da transcendência de valor. Porém, ao assumir
uma transcendência de valor, Balkin parece aproximar-se de uma determinação
supra-individual da cultura (em que inclui Gadamer) que, afinal, expressamente
rejeita64. Diferentemente, com a transfinitude compreendida através da experi-

63 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 32. “Moral incoherence in individual belief may result
from the internalization of cultural norms that are themselves the sedimentation of different historical
practices. If culture is bricolage — the catch-as-catch-can assemblage and juxtaposition of tools of under-
standing accumulated over history — this bricolage resides in us as well as in the culture we inhabit. To
exist in history is just to internalize the untidy mélange of conflicting traditions, values, and norms that
constitutes historical consciousness. Thus, history and politics can be the cause of normative incoherence
if we recognize that the relics of history and previous political struggle already exist within us. On the
other hand, by blaming normative incoherence on politics or history conceptualized as events external to
us, we make invisible history’s previous construction of our selves. We imagine ourselves to be the seat of
rationality surrounded by an external world of unreason. We see history and culture without us but not within
us. Once again, we imagine the self’s autonomy from the forces that make the self what it is”. — BALKIN,
Jack. “Understanding Legal Understanding…”, op. cit., p. 175.
64 Conceito de transcendência de valor este que Balkin não substitui por um outro, o de imanência axiológi-
ca, que seria provavelmente mais adequado, mais logrado e mais consentâneo com os sentidos definidos
e os desenvolvimentos apresentados no que diz respeito à cultura, à comunidade e à própria ideologia,
enquanto conjunto de efeitos ideológicos histórico-socialmente contextualizados. Um tal conceito de
contextualização histórica da cultura pressupõe uma radical abertura da praxis ao devir histórico (neste
sentido também Karl Popper convoca a historicidade, mas, diferentemente de Balkin, sem convocação
de qualquer transcendência, antes com uma radical abertura à contingência. — Vide POPPER, Karl. The
Open Society and Its Enemies. vol. II — The High Tide of prophecy: Hegel, Marx, and the Aftermath
(1945), Princeton, New Jersey, 1971, p. 270 ss.. “... o “significado” da história é algo que escolhemos. Pois
enquanto este “plano” — ou, em face dos diferentes tipos de conhecimento, estes “planos” — são algo que
nos foi dado pelas escolhas feitas pelos nossos antepassados, está claramente nas nossas mãos fazer deles
o que nos aprouver. Podemos pegar neles e alimentá-los ou podemos virar-lhes as costas”. — POPPER,
Karl. “Uma abordagem pluralista à filosofia da história”, The Myth of the Framework. London, 1994, op.
cit. na trad. portuguesa O mito do contexto. Trad. Paula Taipas. Lisboa, 1999, p. 163-188, p. 170). E pres-
supõe ainda uma perspectivação de cada momento histórico como concretização localizada, isoladamente
concebida, de um sentido ahistórico — no que se poderá dizer, afinal, uma opção historicista. — Vide
BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 17, e ainda BALKIN, Jack. “Understanding Legal Un-
derstanding...”, op. cit., p. 152. A existência histórica não seria apenas uma existência no tempo, mas uma
existência num tempo em que a pessoa é constituída por uma específica forma particular (colectivamente
criada) de cultural software. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 17. Balkin convoca aqui
Hans-Georg Gadamer, na medida em que assume que o human cultural understanding é possível devido
à localização do homem numa tradição historicamente gerada, que nos confere certos pré-juízos ou pré-
-conceitos (prejudices or prejudgments) que transporta para a compreensão-understanding. O cultural
software desempenha, de certa forma, uma função similar à do conceito gadameriano de tradição, ainda
que noutros termos: conferir instrumentos e pré-compreensões imprescindíveis à análise cultural. — Idem,
p. 9. Embora Gadamer não perspective a sua teoria da tradição como uma teoria da ideologia, Balkin en-
contra nela, não obstante, um ponto de partida para afirmar que a ideologia é um caso especial de ordinary
cultural understanding: “Indeed, we might be tempted to substitute the word tradition directly for the
word ideology. We need only modify Gadamer’s comparatively rosy view of the effects of prejudgments
and prejudices on the understanding by emphasizing that these prejudices and prejudgments can as easily
mislead as facilitate social understanding”. — Idem, p. 7. Os problemas de causation e differentiation es-
tariam, então, relacionados com um problema final, o problema da mudança ou transformation: a tradição

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ANA MARGARIDA SIMÕES GAUDÊNCIO

ência da finitude, o horizonte de validade é, na proposta de Castanheira Neves,


concebido como expressão histórica da axiologia constitutiva duma e vigente
numa comunidade histórico-espacialmente concreta65, sem convocar uma on-
tologia ou uma determinação transcendente/transcendental, mas com uma au-
totranscendentalidade que pretende subtraí-la ao puro indeterminismo, à pura
contingência histórica. Balkin assume também, na consideração da problemática
da existência comunitária, a admissibilidade de valores transcendentes histórico-
-concretamente expressos de modos diversos consoante a comunidade que se
considere, e, neste sentido, não se mantendo naquela contingência histórica, e
nela um específico entendimento de uma certa validade comunitária66. Nesta
dimensão, em que a justiça se constrói cumulativamente, sucedendo-se diacro-
nicamente planos dialogantes entre si, a historicidade deste diálogo intersecta
o historicismo da sucessão de planos. Parece, por isso, afinal, encontrar-se esta
compreensão da comunidade, da justiça e do direito, entre um historicismo — no
sentido de que não vai além do plano da contingência — e uma historicidade que
se assuma verdadeiramente constitutiva da cultura e do direito67.
Ora, se em Balkin se encontra subtraída a possibilidade de conferir uma fun-
damentação autónoma ao direito, a sua proposta também não reduz as possibi-
lidades de resposta à instrumentalização do direito à política. Se o problema se

altera-se ao longo dos tempos, porém continua a ser partilhada, não obstante o conteúdo partilhado se ir
alterando. — Idem, p. 10. Acerca do sentido da tradição em Gadamer, vide GADAMER, Hans-Georg.
Wahrheit und Methode. Grunzüge einer philophischen Hermeneutik. Tübingen, 1960, op. cit. na trad.
castelhana a partir da 4. Auflage, Tübingen, 1975, Verdad y Método. Trad. Ana Agud Aparicio e Rafael
de Agapito. Salamanca, 1977, p. 348-353. A teoria do cultural software pretende oferecer um desenvolvi-
mento distinto relativamente às perspectivas de compreensão cultural que Balkin designa por historicistas,
como seria o caso da de Gadamer. Por conseguinte, aquilo que alguns autores designam por consciência
colectiva ou espírito do tempo (spirit of the age — Zeitsgeist), não seria uma causa das semelhanças na
produção cultural dos indivíduos, mas antes um efeito produzido por uma economia de troca entre indiví-
duos com cultural software suficientemente semelhante. Uma economia de cultural software distinguir-
-se-á não apenas pelo conteúdo mas também pela distribuição das diferentes espécies de cultural software.
Esta distribuição relativa de semelhanças e diferenças determinaria o grau de consenso e dissenso numa
cultura, pelo que as alterações na distribuição do cultural software envolveriam igualmente alterações de
conteúdo. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 92-97, 142-170.
65 CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia...,
op. cit., p. 93-94; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 863.
66 Veja-se a consideração deste sentido de validade comunitária, pressupondo uma específica exigência
indeterminada de justiça e uma sua correspondente political morality, em AROSO LINHARES. “Au-
totranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., especialmente p. 651-655:
“Uma proposta que parte de uma interpelação assumida da validade comunitária (na sua autotranscenden-
talidade)… se não mesmo de uma representação (retoricamente desconstrutiva) do “fosso” ou da solução
de continuidade “normativamente” relevante (as a normative chasm or gap) que separa (que distingue)
“valores humanos” (as transcendent values in an inchoate sense) e “convenções culturais” (as immanent
cultural articulations)…”. — Idem, p. 651.
67 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op.
cit., p. 841.

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JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIOLÓGICA...

coloca numa comunidade enquanto construção empírica contingente, há-de ser à


luz da political morality de cada momento que hão-de aferir-se as opções a to-
mar pelo direito, que assim se instrumentaliza a um ideário híbrido de valoração
material e realização político-ideológica. Todavia, o problema aqui em análise
— o problema do direito hoje68 — implica já compreender a possibilidade de,
como pretende o Jurisprudencialismo, concretamente a proposta de Castanheira
Neves, conferir ao direito uma matriz fundamentante materialmente autónoma,
uma base comunitária civilizacional que o leve pressuposto como possibilidade
de resposta a um problema necessário, o da convivência humana no mundo —
que de imediato implica uma condição ética como pressuposto fundamentante69.
O que significa que optar por aquela political morality seria tomar redutivamente
a questão, transformando o direito numa construção contingente à luz de exigên-
cias heterónomas. Em contraponto, de novo, haverá que considerar o direito como
resposta autónoma para o problema da convivência humana, ou não será já, de
todo, sequer uma possibilidade de resposta para esse problema.

III
Concluindo, e repondo o problema da possibilidade do direito entre um plano
ideológico centrado numa political morality e um projecto de autonomia assen-
te numa fundamentação axiológica, caberá relembrar que, no actual cenário de
pluralismo (quase) radical, em que a desagregação de referentes afasta as subco-
munidades, outrora grupos (des)integrados num contexto civilizacionalmente co-
munitário — e para convocarmos apenas este —, cumpre perguntar pelos limites

68 CASTANHEIRA NEVES. O direito hoje e com que sentido?, op. cit., p. 9-21.
69 “Não curamos do direito que no mundo das entidades objectivas (objectivo-histórico-culturais) aí estará
inegável, para sabermos o que ele é ou tem sido nessa sua objectivação histórico-cultural e para como tal
o determinarmos — interrogamo-lo antes constitutivamente na origem fundamentante de onde será ou não
será, no cumprimento ou não de uma intenção humana válida, e origem essa que é assim a própria prática
humana problematicamente consciente de si.
Só que enunciar o problema do direito nesta radical universalidade não postula a sua necessidade — em
termos de o direito ter de ser, porque o homem é. É pensável a não existência do direito — vê-lo-emos, ao
considerar as suas “alternativas” — sem que todavia também por isso se haja de concluir, não obstante as
tendências actuais, que esse pensável se tenha verificado ou se venha a verificar. E todavia o problema do
direito é um problema universal — e num duplo sentido. Não só o homem se porá sempre o seu problema,
como esse seu problema se enunciará também sempre do mesmo modo e com a mesma significação essen-
cial. O primeiro destes dois pontos, no entanto, não deve entender-se, repita-se, como se a universalidade
do problema implique a universalidade do próprio direito — ou como se a resposta ao problema formulado
não possa ser negativa e tenha de traduzir-se necessariamente na constituição e existência do direito. Ire-
mos, com efeito, compreender, que o direito é só uma resposta possível para um problema necessário — e
daí as suas alternativas. Isto, porque o direito apenas surgirá, enquanto tal, se se verificarem certas con-
dições e essas condições — ou algumas delas — não são de verificação necessária”. — CASTANHEIRA
NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 839.

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que se colocam à definição axiológica do jurídico70. Deverá, rectior, poderá ainda o


jurídico ser o delinear do domínio material intersubjectivamente relevante das rela-
ções sociais, ou estará cada vez mais reduzido a ser uma fronteira-limite formal da
intersubjectividade? Haverá ainda lugar a uma autêntica convivência comunitária,
ou estaremos já condenados a uma formalização de coexistências? Terá ainda lugar
hoje a afirmação de uma autonomia fundamentante do direito, que o não reduza
a discursos paralelos, fazendo da Teoria do Direito uma reflexão interdisciplinar,
senão mesmo pluridisciplinar, acerca da prática social? Fará sentido uma trans-
cendência de valor, e a autotranscendentalidade da sua relevância fundamentante?
Se em Balkin, como vimos, se procura uma resposta materialmente fundada,
mas com base numa matriz híbrida, ideológico-axiológica, que, se parte das no-
ções de justiça e comunidade, compromete a capacidade de autónoma fundamen-
tação do direito, a resposta jurisprudencialista, por seu turno, procura os referen-
tes materialmente densificantes do direito, que permitam uma sua fundamentação
autónoma, sem cair num relativismo axiológico. E autonomia que exclua a redu-
ção do direito ao sociológico, ao político, ao económico, ao tecnológico... Uma
autonomia que reflicta a densificação sistemática dos mencionados referentes de
sentido como princípios normativos71. Princípios sempre constituendos, sempre

70 Vide os desenvolvimentos propostos por Castanheira Neves, em O direito hoje e com que sentido?, op. cit.,
passim; “O funcionalismo jurídico — caracterização fundamental e consideração crítica no contexto actual
do sentido da juridicidade”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 136º, 2006, n. 3940, p. 3-31
a ano 136º, 2006, n. 3942, p. 122-151; também em Digesta…, op. cit., vol. III, p. 199-318; “Uma reflexão
filosófica sobre o direito — ‘o deserto está a crescer…’ ou a recuperação da Filosofia do Direito?”, op.
cit., p. 73-100; e “O problema da universalidade do direito — ou o direito hoje, na diferença e no encontro
humano-dialogante das culturas”, op. cit., p. 101-128.
71 “Se a fundamentação jusnaturalista invocava uma acrítica referência já ontológico-metafísica, já antropo-
lógica que se revelou insustentável, e a fundamentação racionalista sob os diversos modelos de autocons-
tituídas racionalidades procedimentais, implicava afinal pressuposições que a invalidam nesse sentido,
não fica excluído que se reconheça na experiência (poderá dizer-se, humano-hermenêutica) da histórico-
-cultural prática humana e da corresponsabilizante coexistência uma específica intencionalidade à validade
em resposta ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela distinção entre o humano e
o inumano, o válido e o inválido, o justo e o injusto, intencionalidade que refere sempre e convoca cons-
titutivamente na sua normatividade certos valores e certos princípios normativos que pertencem ao ethos
fundamental ou ao seu episteme prático de uma certa cultura numa certa época. E que assim, sem se lhes
poder ignorar a historicidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural humana,
se revelam em pressuposição problematicamente fundamentante e constitutiva perante as contingentes
positividades normativas que se exprimem nessa cultura e nessa época — são os valores e princípios
metapositivos e pressupostos dessa mesma positividade, como que numa autotranscendência ou transcen-
dentalidade prático-cultural, em que ela reconhece os seus fundamentos de validade e a que refere os seus
regulativo-normativos critérios de constituição prática. Pelo que a exclusão da necessidade ontológica no
domínio da praxis — que temos de reconhecer como consequência e herança excessivamente gregas da
compreensão da mesma praxis — não nos condena à mera contingência político-social, no domínio do
prático-jurídico. A posição exacta é a de um tertium genus dado numa transcendental autopressuposição
axiológico-normativa fundamentante e regulativamente constitutiva”. — CASTANHEIRA NEVES. A cri-
se actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia..., op. cit., p. 146-147.

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em diálogo com a prática, sempre filtrados a partir desta… Mas inconfundíveis


com projectos puramente ideológicos, mesmo que de emancipação de minorias.
E não por ser alheio a este tipo de problemas, antes por partir de uma densi-
ficação que, assente no reconhecimento recíproco da Pessoa, como sujeito de
uma ineliminável dignidade ética, não exige, nem mesmo admite, a considera-
ção isolada desses constrangimentos ideológicos. Daí que, em vez de convocar
uma moralidade política (political morality) — maioritária ou minoritária, mas
sempre ideologicamente cunhada —, se refira à autonomia fundamentante supra
analisada. O que, se permite, por um lado, a busca de consenso material acerca
das opções a tomar pelo direito, permite também, por outro lado, responder à
questão da consideração das diferenças, ou da actualmente constatável comu-
nidade de comunidades. Efectivamente, não se opta pela estrita neutralidade e
igualdade formalmente compreendida pelas concepções neoliberais, que presu-
mivelmente garantirá a igualdade de tratamento, liberdade e autonomia. Pelo
contrário, essas neutralidade, igualdade, liberdade e autonomia são compreen-
didas materialmente, e sempre numa dialéctica suum/commune que implica a
respectiva responsabilidade comunitária72.
O problema permanece, todavia. E em dois contextos fundamentais. O intra-
comunitário, por um lado, e o intercomunitário, por outro. Ou, de outro modo, e
mais amplamente, o intracivilizacional e o intercivilizacional73. O primeiro a exi-

72 “Para além da responsabilidade pode considerar-se a solidariedade. (...) Só que — ponto essencial —
distinguindo bem responsabilidade (jurídica) e solidariedade (humana). E nesse caso não terá sequer de
convocar-se uma responsabilidade que seja compreendida a exorcizar o absurdo da dor humana na as-
sunção de uma culpa originária que nos solidarize, simplesmente aí — e uma vez mais naquele não já
jurídico, mas transjurídico princípio de responsabilidade radical que é o Anspruch des Seins no homem e
para o homem —, humanidade, responsabilidade e solidariedade identificam-se. De novo e como sempre
o amor está para além da justiça e consuma-a — só o dom acaba por dar sentido e admite a reivindicação
do outro”. — CASTANHEIRA NEVES. “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 43.
73 Vide Castanheira Neves: “(…) o direito nesta nossa “idade de homens” é — e com Vico, um factum da poi-
ésis humana, no autoprojecto de humanidade que na existência comunitária o homem civilizacional-cul-
turalmente se constitua e nele se assuma e exprima (e neste sentido, mas apenas neste sentido, podemos
referir-lhe uma sua veritas quia factum)”. — “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”, op. cit., p. 10. “Reconheça-se, com efeito, que no contexto histórico-cultural e social global dos
nossos dias se pretende orientar a prática humana para outras orientações, distintas das que ainda há pouco
eram aceites, em resposta, que justamente teria de ser diferente, a também outras exigências político-
-sociais e humanas vividas numa surpreendente e exponenciada complexidade. Daí, por um lado, diversas
intenções determinantes que tendem a ser mais fortes do que a do direito, no seu apelo apenas a validades,
a critérios normativos e a juízos perante a força mobilizante e eficaz da acção — intenção do direito que
parece, aliás, esgotar-se em declarações e reivindicações, a ocuparem hoje o lugar e com a mesma intenção
fundamental que correspondeu ontem ao “direito natural”, e numa insistência tão enfática como vã, dos
“direitos humanos”, e mesmo essas mais na retórica política do que reflectidos no sentido que criticamente
lhes corresponde no último e decisivo sentido do direito, a que adiante se aludirá. Intenção ao direito
aquela, no entanto, que o olha apenas no seu disponível e acrítico objectivo regulatório e para fazer dele
um funcionalizado instrumento sancionador de quaisquer outras e externas teleologias. Por outro lado, e

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gir que as crescentes diferenças internas sejam integradas e assimiladas em prin-


cípios e critérios jurídicos objectivos, gerais e abstractos, reconhecendo afirmati-
vamente essas diferenças. O segundo a comprovar que matrizes comuns podem
conduzir — e historicamente conduziram — a modelos radicalmente diversos,
pelo menos enquanto macroscopicamente entendidos. No primeiro, as maiores
dificuldades, pensamos, prendem-se com a urgência das soluções versus a neces-
sária sedimentação e ponderação a que uma solução jurídica deveria submeter-se.
No segundo, o caminho é longo e árduo, com obstáculos talvez intransponíveis, e
nesse ponto, se a igualdade não for suficiente, então talvez seja de convocar, em
sentido ético, mas também, porque não, material — que não procedimental — e
especificamente jurídico, a tolerância. Mas não como mera referência lateral. A
tolerância não operará na indiferença, sem diálogo e sem reconhecimento.
Num mundo, como é este nosso, em contínua e acelerada transformação,
torna-se cada vez mais difícil definir e sedimentar referências materiais de senti-
do, como fundamento e valor. Os paradigmas político-ideológicos e axiológicos
são diariamente colocados em causa. Se o direito participar normativamente,
como em tantas outras vezes na história, na construção deste mundo novo — que

como que num contextual horizonte, o próprio também actual mundo humano-cultural, tão profundamente
problemático e dissolvente e a convocar todas as reduções, da compreensão do homem sobre si próprio,
do seu mundo de existência e do seu tempo, como que fomenta um outro nebuloso holismo cultural e
prático, em que uma desintegrada indeterminação vai simultânea com uma fragmentarização à outrance,
mais radical do que os mais extremos pluralismos, holismo em que todas as referências valem tanto como
as suas contrárias e umas às outras se anulam, porque afinal nenhuma tem verdadeiro valor, e a não fazer
absurda a invocação como que de um pré-cultural e regressivo caos civilizacional”. — Idem, p. 13-14. Vide
ainda“O problema da universalidade do direito — ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-
-dialogante das culturas”, op. cit., passim. Vide ainda Aroso Linhares: “Aquela vinculação civilizacional
que nos permite descobrir no direito um “pormenor” decisivo de uma certa “ideia da Europa”? Certamen-
te. Um pormenor culturalmente frágil (ameaçado por uma crise de identidade profunda)… mas nem por
isso menos decisivo.
Decisivo apenas porque o seu homo humanus se nos oferece como um “pormenor” partilhado — com-
possível com o “mosaico” das “pluralidades linguística, cultural e social” que iluminam o território desta
mesma Europa e com os “pormenores” a que estas pluralidades nos expõem? Decerto também porque a
institucionalização lograda deste homo humanus e da procura que o reinventa (na identidade material do
seu projecto) nos proporciona a condição por excelência dessa pluralidade ou da santificação-sancire que
esta exige (a oportunidade, se quisermos, de resistir à “avidez da uniformidade”… e à “onda detersiva” que
a propaga). Mas não só nem principalmente. Decisivo também e ainda porque esta procura e a experiência
do homem-pessoa que ela renova — e que leva a sério como uma “aquisição axiológica” (emancipando-
-o de qualquer pré-determinação ontológica universalizável) — continuam a interpelar-nos como um dos
eixos-interlocutores indispensáveis da nossa circunstância presente (e do processo ou promessa de “de-
marcação” humano/inumano que lhe responde). Como uma procura que não se consumou — nem ficou
prisioneira (de qualquer um) dos ciclos de intellegere-inventio que a foram construindo —… e que assim
mesmo confronta a nossa circunstância com a possibilidade-exigência de reinventar uma intenção con-
dutora”. — AROSO LINHARES. “A “abertura ao futuro” como dimensão do problema do direito”: um
“correlato” da pretensão de autonomia?” In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Coord.). O direito e
o futuro. O futuro do direito, op. cit., p. 391-429, p. 426-427.

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não queremos que seja o admirável da sátira de Huxley, nem o do Big Brother
de Orwell —, haverá sempre uma voz de ponderação e diálogo que, se mais não
puder, fará pelo menos parar para reflectir os sentidos que, como horizontes de
referência, na sua autotranscendentalidade, seja de intenção à justiça seja à vali-
dade, foram historicamente mobilizados. De novo a historicidade, não o histori-
cismo. De novo o convite, a urgência mesmo, da reflexão, da prudência. Mesmo
que essa reflexão tenha lugar na confluência de múltiplos discursos, mesmo que
ideológicos, políticos, económicos, tecnológicos... Se desses discursos externos
conteúdos houver a mobilizar para uma reflexão interna, crítica, autocrítica, do
direito acerca de si próprio, mas sem se deixar dissolver neles.
O direito só será, nestes termos, resposta para o nosso tempo se o pensa-
mento jurídico puder reflectir metanormativamente a prática, com uma relativa
distância, a fim de, normativamente, aquele se poder projectar nesta como factor
de racionalização da intersubjectividade. Por mais difícil que se apresente este
desafio e esta tarefa, na correria em que se tornou a vivência do homem neste
nosso mundo74. O direito só será verdadeiramente projecto humano se o homem
se reconhecer, a si e aos outros, na sua finitude, mas também na sua dignidade...
Pois, como diz o poeta mineiro Drummond de Andrade, em Igual-Desigual:

“(...)
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
bicho ou coisa. Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho ímpar”.75

74 REIS MARQUES, Mário. “O direito: a gestão da urgência ou uma normatividade com um tempo pró-
prio?”. In: Ars Ivdicandi — Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, Volume
I — Filosofia, Teoria e Metodologia, op. cit., p. 725-764.
75 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. “Igual-desigual”. In: A Paixão Medida. Rio de Janeiro, 1980
apud DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia Completa. Edição do Centenário. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2001, vol. II, p. 1185-1228, p. 1207.

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CAPÍTULO V
A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO:
A (IM)POSSIBILIDADE DE UM MODELO JURÍDICO-
DECISÓRIO NOS ARGUMENTOS DE A. CASTANHEIRA
NEVES E DE MARTHA C. NUSSBAUM*

Antonio Sá da Silva**
Universidade Federal da Bahia

SUMÁRIO: 1. A introdução — 2. A dimensão antropológica e a perspectiva comunitarista do direito: pro-


ximidades e distanciamentos das propostas — 3. A procura do método: a ruptura com o paradigma mo-
derno da decisão jurídica e as diferentes imagens do juiz que os dois autores proclamam: 3.1. A concepção
de imaginação literária; 3.2. A pressuposição do direito como sistema e a idêntica recusa do sistema moderno de
legalidade; 3.3. A idêntica rejeição do utilitarismo econômico e a divergência quanto ao problema da autonomia
do direito; 3.4. A divergência dos autores quanto à pertinência de uma racionalidade narrativa no direito.

1. A INTRODUÇÃO
O direito, quando adequadamente o compreendemos na perspectiva jurispru-
dencialista de A. Castanheira Neves, é a última instância crítica através da qual
os homens se socorrem da arbitrariedade dos outros homens e até mesmo do pró-
prio Estado.1 Mais que reconhecer nesse direito um projeto civilizacional — eu-
ropeu, de raízes greco-romanas e judaico-cristãs — e humano que se afirma hoje
como resposta possível para um problema necessário,2 o jurisprudencialismo vê
neste projeto uma verdadeira alternativa humana: “uma dimensão capital, e irre-

* Apresentado como parte integrante do I Seminário Internacional de Filosofia do Direito de Ouro Preto/
Minas Gerais/Brasil, em Outubro de 2008.
** Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra/Portugal. Professor, Coordenador de Apoio Acadêmico do Curso Noturno e Coordenador do
Observatório do Ensino Jurídico da Faculdade de Direito da UFBA. Professor da Faculdade Baiana de
Direito e do Centro Universitário Jorge Amado. Ex-Pesquisador-Bolseiro do Instituto de Investigação
Interdisciplinar da Universidade de Coimbra/Portugal.
3 “E para ser ele [o direito] aquilo que verdadeiramente deve ser e para que possa cumprir a sua autêntica
função de direito — afirmar-se como a última instância crítica (axiológico-normativamente crítica) da co-
munidade, através da qual o homem se afirmará na sua dignidade indispensável à prepotência do poder, seja
do poder dos outros homens, seja o poder do poder político” (cf. NEVES, António Castanheira. A redução
política do pensamento metodológico. In: Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da
sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, vol. 2, p. 413. O itálico é do próprio autor).
2 NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia.
Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 146.

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ANTONIO SÁ DA SILVA

nunciável, da humanidade do homem”.3 Disto decorre que aquela compreensão


teórica, ante as implicações práticas da sua realização, volve-se também — e
com justiça! — num terreno metodológico para reconhecer o método jurídico
como um problema fundamental da filosofia do direito4. E neste terreno se revela
como uma das muitas “imagens do julgador” que Aroso Linhares — testemu-
nhando aquele diferendo que hoje fragmenta o pensamento jurídico e buscando
um fio de inteligibilidade para esta fragmentação5 — e Pinto Bronze — reto-
mando a crítica do Mestre à “anestésica tranquilidade” do paradigma moderno-
-iluminista e acentuando o caráter analógico da racionalidade jurídica6 — bem
em tempo souberam compreender.
Uma compreensão difícil para uma inteligência limitada e um resultado
certamente precário para esta intervenção de neófito. Daí que quando aceitei o
convite para participar deste painel de discussões sobre o jurisprudencialismo
não o fiz com a certeza de estar à altura de inscrever o meu nome entre aqueles
que nestes dias, com tanta vivência e maestria, sabem expressar as mais bem
elaboradas reflexões sobre a razão prática, e especialmente sobre os problemas
agudos que o direito tem enfrentado neste nosso tempo. Eu o fiz, certamente, na
mais pura das convicções de poder contar com a intervenção direta e com mais
este gesto de paciência dos mestres de Coimbra, os quais durante estes anos têm
me dispensado uma generosa e igualmente profunda atenção na construção da
minha trajetória acadêmica. É, portanto, com esta humildade da reflexão, e bem
assim com a expectativa do devido e oportuno reparo que me proponho aqui a

3 Cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia, op. cit., p. 147.
4 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Edi-
tora, 1993, p. 9.
5 Para os sinais dessa fragmentação, na perspectiva da decisão jurídica, conferir especialmente LINHARES,
José Manuel Aroso. “A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o “testemunho” crítico de
um “diferendo”?”, Revista Lusófona de Humanidades e Tecnologias, n. 12. Porto: Universal Lusófona de
Humanidades e Tecnologias, 2008, parte I; para uma exploração daquele testemunho, conferir a mesma
obra na sua parte II; e mais que isso: para uma esperança e para o contributo a uma teoria do direito que
não se contente apenas em acrescentar mais um fio à teia de Penélope que Dunkan Kennedy denunciou,
no horizonte de uma proposta radical que se interroga a si mesma e quer se afirmar como um projeto cul-
tural e humano entre outros projetos, conferir igualmente a obra citada em toda a sua parte III. Para um
estudo suficientemente detido acerca do estatuto ontológico do diferendo, e ainda sobre a sua presença na
composição dos litígios e na solução das controvérsias judiciais, conferir do mesmo autor Entre a reescrita
pós-moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de
“passagem” nos limites da juridicidade (Imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso). Coimbra:
Stvdia Iurica 59 / Coimbra Editora, 2001, p. 316 e segs.
6 BRONZE, Fernando José. Breves considerações sobre o estado actual da questão metodonomológica. Bo-
letim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, vol. LXIX,
p. 177-199, especialmente p. 185 e segs.

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A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO...

apresentar umas poucas considerações sobre o problema específico da realização


do direito, especialmente sobre a sua (im)possibilidade na perspectiva de um
modelo narrativo-metodológico.
Cumpre-me acima de tudo colocar o assunto na perspectiva de um problema
e não propriamente de uma resposta, uma vez que o estudo não somente vai lidar
com a dificuldade da proposta em si, mas também com a dificuldade de analisar
a questão do ponto de vista de dois pensamentos que se têm alguma coisa em co-
mum, têm ao mesmo tempo profundas e visíveis dessemelhanças: o jurispruden-
cialismo de A. Castanheira Neves e o narrativismo ético-jurídico de Martha C.
Nussbaum. Dois pensamentos que levam, certamente, a conclusões igualmente
distintas: o primeiro para denunciar a imprestabilidade de um modelo narrativo
no universo próprio do direito, o segundo para convocar os pressupostos da nar-
ratividade como instrumentos auxiliares mas decisivos para a solução adequada
das controvérsias judiciais. Propostas e conclusões distintas que decorrem, é cla-
ro, de diferentes concepções de homem, de comunidade, e, consequentemente,
de diferentes concepções de justiça. E isto me obriga a percorrer estes caminhos
antes mesmo de refletir sobre o que cada uma das diferentes propostas tem a
dizer sobre o modo como o juiz deve decidir um caso jurídico.

2. A DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA E A PERSPECTIVA COMUNITA-


RISTA DO DIREITO: PROXIMIDADES E DISTANCIAMENTOS DAS
PROPOSTAS
Como temos visto em outras ocasiões neste Seminário, a concepção juris-
prudencialista de A. Castanheira Neves na sua dimensão antropológica propõe
uma ruptura muito profunda com aquela que se infere do pensamento moderno,
sem com isto ter que regressar àquela humanitas que se conhece da antigui-
dade. Uma ruptura que nos permite distinguir o homem enquanto sujeito, do
homem enquanto pessoa: o homem enquanto sujeito, tal como nele insistia o
pensamento moderno, era representado simplesmente como um dado natural ou
antropológico, daí que o estatuto de liberdade que se lhe atribuía não era fator
impeditivo à sua renúncia e para a sujeição da humanidade de um pela humani-
dade de outro homem7. O homem enquanto pessoa, tal como vemos acentuado
no jurisprudencialismo, sugere uma conquista axiológica, e a dignidade que
lhe é imputada, primeiro recobrando Kant com a impossibilidade de ser o ho-
mem um meio ao invés de puro fim, notabiliza-se no reconhecimento que lhe
atribuía Hegel: no ser pessoa e ver no outro uma pessoa igualmente dignatária

7 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal. Ano 6, Fasc. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 33.

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daquele reconhecimento. De outro modo, a ideia do homem-pessoa sugere uma


aquisição axiológica que admite várias respostas na dialética suum/commune, e
permite com isto enxergar no discurso da modernidade uma hipertrofia do suum
em prejuízo da commune.
A compreensão do homem tal como estamos vendo aqui não prescinde do
conceito de liberdade, ainda que não seja naquela conceituação moderno-ilu-
minista que mais adiante terei a oportunidade de retomar. E assumir o homem
enquanto tal nos remete para um campo um pouco diferente daquele que Martha
C. Nussbaum prefere trilhar: a compreensão do homem sem a inteira recusa
daquela dimensão trágica que encontramos na literatura clássica. É certo que
não há de tudo incompatibilidade entre os dois pensamentos, mas a acentuação
e o papel que a professora de Chicago dá à leitura das tragédias pode nos levar a
conclusões muito diferentes sobre o direito.
Parece-me oportuno nesta ocasião considerarmos as lições de Werner Jae-
ger, e veremos com isto que não existe propriamente um conceito universal de
tragédia, mas haveremos de reconhecer os traços fundamentais que os poetas
clássicos lhe imprimiram: “a representação clara e vívida do sofrimento nos êx-
tases do coro, expressos por meio do canto e da dança, e que pela introdução de
vários locutores se convertia na representação integral de um destino humano,
encarnava do modo mais vivo o problema religioso há muito candente, do misté-
rio da dor enviada pelos deuses à vida dos homens”.8 Mas Martha C. Nussbaum
destaca sempre uma característica comum dos poetas gregos, consistente em
abordar a condição humana de um modo muito semelhante à de outros seres da
natureza: tal como as plantas, somos igualmente dependentes de circunstâncias
que não estão dentro de nós, e inclusive a beleza da excelência reside mesmo
nessa vulnerabilidade.9
Com efeito, a abordagem antropológica que a autora de The fragility of
goodness nos apresenta é certamente uma concepção trágica do homem, não sig-
nificando necessariamente uma aposta na irracionalidade da vida humana. Cha-
ma especialmente a nossa atenção para o caráter complexo das nossas decisões,
muitas das vezes apenas possíveis mediante certa gama de sofrimento pessoal10.

8 Cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 206.
9 Cf. NUSSBAUM, Martha C. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy.
Cambridge: Cambridge University Pressy, 1986, p. 01 e segs., e pág. 70.
10 Cf. NUSSBAUM, Martha C. The fragility of goodness, op. cit., p. 44 e seg.

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A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO...

Sabemos que já mesmo Aristóteles em seu conceito de tragédia a descrevia como


sendo uma imitação das ações humanas cuja origem na boa e na má fortuna das
pessoas, suscita o terror e a piedade no auditório, alcançando com isto a purifica-
ção das nossas emoções (katharsis)11.
Não deixa de estar aqui um distanciamento da proposta jurisprudencialista
— e talvez do próprio direito — uma vez que pressupõe uma ação humana não
totalmente inserida num contexto de liberdade e de escolha, subjugada ao arbí-
trio do destino como vemos na angustiante decisão do Orestes de Ésquilo que
tem de matar a própria mãe para vingar a morte do pai:
“Não, não me vai trair o poderoso oráculo de Lóxias, que me or-
dena que corra este risco, eleva sem cessar a sua voz e me anuncia
desastres capazes de me fazer gelar o sangue, se eu não perseguir
os responsáveis pela morte de meu pai, tratando-os como eles o
trataram, matando quem matou, vingando, com a fúria de um tou-
ro, a perda dos nossos bens. Caso contrário, pagarei com a própria
vida, no meio de múltiplas e cruciantes dores”12.

A mim me parece certa essa divergência uma vez que o nosso autor, da sua
concepção de homem-pessoa, infere uma concepção de comunidade, ainda que
também fundada na ideia de responsabilidade, mas muito diferente daquela que
vamos encontrar na concepção trágica. E o mesmo rejeita expressamente a pos-
sibilidade de uma re-fundação do direito partindo dessa concepção arcaica “em
que a humanidade como que se assumia a si própria em cada um”13, dado que
nela “o homem respondia pelas transgressões aos deuses tutelares, e portanto ao
nomos comunitário, na imputação objectiva da acção violadora, com a sua exem-
plaridade e os seus efeitos”14. A aposta do jurisprudencialismo é naquela subje-
tividade que possibilita a comparação entre sujeitos de direitos e obrigações, e
isto nos mostra que se ambos os pensamentos aqui analisados têm em comum
uma visão de direito que tem em conta o regresso da comunidade, numa crítica
assumida a alguns dos pressupostos que herdamos da tradição liberal, outras são,
no entanto, as consequências advindas de cada um deles.
E disto também se retira outra concepção de direito. Com efeito, disse-nos
A. Castanheira Neves que as condições de emergência do direito como direito
são a condição mundanal — as inter-relações subjetivas de direito dão-se pela
mediação do mundo, pela correspondência de direitos e obrigações na partilha

11 Cf. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 6. ed. Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000,
1449b-1450a.
12 Cf. ÉSQUILO. Coéforas. In: Orestéia. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70, 1992, 269-277.
13 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, op. cit., p. 12.
14 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, op. cit., p. 11.

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de um só mundo para muitas pessoas —, a condição antropológico-existencial


— a inespecialização do homem para lidar com os desafios da sobrevivência
impõe-lhe a tarefa de “acabar-se”, de construir o seu próprio mundo humano
pela ação e pela cultura, de abrir-se para o futuro e a superar-se a si mesmo
—, a condição ética,15 esta que eu já disse na abertura e que agora me parece
importante acentuar: o direito somente se compreende na afirmação da pessoa,
no reconhecimento recíproco dessa condição. Decorre desta observação que
a juridicidade, entre os modernos tendo sido pensada ao nível puramente das
liberdades e da mais absoluta individualidade, recobra agora aquela dimensão
comunitarista de que o homo juridicus se esqueceu. A concepção de homem que
se proclama não mais se compreende fora da comunidade: a responsabilidade
é inerente à pessoa, isto é, “a pessoa, pela simples razão de ser, se vê investida
não só em direitos, mas igualmente em responsabilidade — a pessoa é chamada
a respondere em termos comunitários — já que os deveres são para ela tão ori-
ginários como os direitos”.16
É claro que a autora de Chicago também postula uma compreensão da justiça
que se inscreve na responsabilidade da pessoa para com a sua comunidade, do
que penso ser possível dizer que é uma recusa do simples direito sem obrigações.
Assim o é na medida em que sugere certo regresso às virtudes clássicas17, mas
também assim o é na medida em que recusa uma “análise econômica do direito”
e as demais compreensões tecnicistas do direito. Ela mesma relaciona os seus
estudos do direito com o seu comprometimento pessoal em outras práticas so-
ciais18, num apelo à compreensão da justiça enquanto responsabilidade social,
mas também decididamente convencida de seu papel na construção da dignidade
da pessoa humana19.
É importante frisar que a perspectiva de uma dimensão social da justiça en-
contrada em Martha C. Nussbaum a distancia de certo modo da proposta de A.

15 Cf. NEVES, António Castanheira. Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito —
ou as condições de emergência do direito como direito. In: Estudos em Homenagem à Professora Doutora
Isabel de Magalhães Collaço. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, vol. II, p. 841 e segs.
16 Cf. NEVES, António Castanheira. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”,
op. cit., p. 868.
17 Cf. NUSSBAUM, Martha C. “Virtue ethics: um misleading category?”, The Journal of Ethics, v. 3, n. 3,
Norwell, 1999, p. 180, assim como a conclusão, contida na p. 200.
18 “I also become involved in public life in a completely different area” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic
Justice: the literary imagination and public life. Boston: Unitarian Universalist Association of Congrega-
tions, 1995, p. XV).
19 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. XVIII, e especialmente da mesma autora, Cultivat-
ing Humanity: a classical defense of reform in liberal education. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1997, capítulos 2, 4, 5 e 6; Sex and social justice. Oxford: Oxford University Press, 1999; Women
and human development: the capabilities approach. New York: Cambridge University Press, 2000.

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A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO...

Castanheira Neves, não porque o mesmo a compreenda como uma realidade


a-histórica e divorciada da realidade social20, mas porque faz a necessária dis-
tinção do direito para com as outras dimensões da racionalidade prática. Com
efeito, o autor de Coimbra não somente insiste em nos mostrar a dimensão do
“ser-com-outros” imbricada no direito21, mas também põe à prova e sustenta
a sua especificidade enquanto projeto autônomo de realização da experiência
humana22. Disto decorre que enquanto da autora americana temos uma com-
preensão da justiça que sugere uma certa diluição do direito num continuum de
experiências da vida prática, o jurisprudencialismo nos adverte para os riscos da
instrumentalização do direito e da sua convocação para justificar um qualquer
projeto, inclusive contrário à ordem de direito. Basta saber o quanto uma obra
mais recente de Martha C. Nussbaum, Frontiers of Justice23, 2007, não somente
discute as teorias atuais da justiça partindo da já conhecida concepção de justiça
social, mas também a aborda sempre no limite de um território indiviso onde
a filosofia, a política, a ecologia e o direito se convergem na construção de um
novo projeto global que possa fazer justiça àquelas pessoas que física e mental-
mente estão excluídos da cidadania, bem como aos “animais não humanos” e às
pessoas do mundo inteiro.
Não é demais também acentuar, na oportunidade que esta leitura de Chicago
nos conduz, para mais uma observação que a distancia da proposta jurispruden-
cialista: o problema da universalidade do direito. É que a nossa autora, especifi-
cando naquela publicação que referi um projeto desenvolvido em outras obras24,
assume como um problema altamente relevante a extensão da justiça para todos
os povos da terra, tentando demonstrar teoricamente como podemos realizar
uma concepção universal de justiça onde as questões acidentais de raça e nação
não sejam impedimentos à fruição das oportunidades de realização humana25. É
certo que tal como vemos em A. Castanheira Neves26, o pensamento de Martha
C. Nussbaum recusa expressamente aquele contratualismo abstrato ou aquela

20 “O homem habita e comunga o mundo numa condição social...” (cf. NEVES, António Castanheira. “Co-
ordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”, op. cit., p. 844).
21 Cf. NEVES, António Castanheira. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”,
op. cit., p. 848 e segs.
22 Para esta questão, conferir especialmente NEVES, António Castanheira. “O direito como alternativa hu-
mana. Notas de reflexão sobre o problema actual do direito”. In: Digesta, op. cit., vol. 1, p. 287-310.
23 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice: disability, natinality, species membership. Cambridge/
London: The Belknap Press of Warvard University Press, 2007.
24 Sobre a questão da mundialidade, conferir da autora especialmente Los límites del patriotismo: identidad,
pertenencia y “ciudadanía mundial”. Trad. Carme Castells. Bacelona: Paidós, 1999.
25 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice, op. cit., p. 2.
26 Cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia, op. cit., p. 69 e segs.

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concepção procedimentalista que encontramos, sobretudo, em John Rawls27, mas


daquele também aqui se faz distanciar. É que para o jurisprudencialismo o direito
é uma experiência concreta, histórica e problematicamente situada que sugere
diferentes respostas para iguais problemas28. Com isto pode-se dizer que a única
universalização possível no direito é no seu problema, e nunca nas soluções que
a ele são apresentadas.
Disto tudo é que diferentes métodos de realização são sugeridos para o direito.

3. A PROCURA DO MÉTODO: A RUPTURA COM O PARADIGMA MO-


DERNO DA DECISÃO JURÍDICA E AS DIFERENTES IMAGENS DO
JUIZ QUE OS DOIS AUTORES PROCLAMAM

3.1. A concepção de imaginação literária


A imaginação literária — “the narrative imagination” —, disse com proprie-
dade Martha C. Nussbaum num trabalho publicado em 1997 acerca da educação
— Cultivating Humanity: a classical defense of reform in liberal education —,
é a capacidade de transportarmos a nós mesmos para outros mundos sem a re-
núncia da nossa individualidade, de sairmos do sossego provinciano das nossas
vidas para conhecermos outras coisas, de libertarmos das próprias cegueiras para
conhecermos outras formas de vida e de nos tornarmos mais compreensíveis
para com aqueles que são diferentes de nós29. É que segundo ela, só o acúmulo
de conhecimentos não basta para tomarmos uma decisão acertada em nossas
relações intersubjetivas30.
O que a autora disse ali fazia parte de uma concepção de racionalidade
para a vida pública, desenvolvida anteriormente, em 1995, numa obra intitulada

27 “I argue that the classical theory of the social contract cannot solve these problems, even when put in its
Best form. It is for this reason that I focus throughout the book on Rawls, Who to my mind expresses the
classical Idea of the social contract in its strongest form and makes the strongest case for its superiority to
other theories (cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice, op. cit., p. 2).
28 “E aí se saberá que o direito é só uma resposta possível (civilizacional-culturalmente tão condicionada
como frágil) a um humano-social problema necessário e a que por isso mesmo não ficam excluídas res-
postas diversas enquanto eventuais alternativas ao direito — embora se deva bem esclarecer o que por
essas alternativas humanamente se ganhará ou perderá”. (cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual
da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, op. cit., p. 14. Os itálicos são do autor).
29 “It is the political promise of literature that it can transport us, while remaining ourselves, into the life
of another, revealing similarities but also profound differences between the life and thought of that other
and myself and making them comprehensible, or at least more nearly comprehensible” (cf. NUSSBAUM,
Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 111).
30 “Marcus Aurelius insisted [...], we must not simply amass knowledge; we must also cultivate in ourselves a
capacity for sympathetic imagination that will enable us to comprehend the motives and choices of people
diferent from ourselves, seeing them not as forbiddingly alien and other, but as sharing many problems and
possibilities with us” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 85).

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Poetic Justice: the literary imagination and public life31. E lá ela se esforça para
dizer que o fim político da literatura não é o único que podemos esperar dela,
mas ele é adequado e urgente, especialmente para nos fazer ver com interesse
a situação das pessoas que em um determinado momento e por circunstâncias
muito variadas são muito diferentes daquela em que vivemos32. E parece mesmo
muito convencida de que esse olhar empático, sobre o outro que ocupa um lugar
diferente do nosso, permite-nos enxergar como as circunstâncias condicionam
as ações da pessoa, suas aspirações, desejos, esperanças, temores e amor pró-
prio. Insiste na acentuação de que essa abertura ao problema alheio permite
melhorar a qualidade das nossas decisões em relação àqueles sobre os quais
devemos emitir certo juízo.
A insistência de Martha C. Nussbaum no papel da literatura nas deliberações
públicas tem uma explicação: acredita no poder das histórias para formar a nossa
consciência moral, e inclusive de nos fazer buscar a nossa identidade dentro de
tais histórias33. Aqui também está presente a adesão da autora ao aspecto filosó-
fico da tragédia que Aristóteles expressamente se referiu, mas também ao que
acredito poder ser chamado do aspecto agregador ou a dimensão pública que
literatura ocupa em nossas vidas: como disse o filósofo grego na sua Poética, a
Literatura é mais filosófica que a História, uma vez que o historiador nos ensina
o que aconteceu, e o poeta nos faz pensar naquilo que poderia ter acontecido34.
Saber ainda que os poetas nos fazem imaginar outras formas de vida é um con-
tributo inestimável, segundo a autora, ao dever-ser que instrui a racionalidade
pública. E nisto pode-se dizer também que a literatura tem um caráter subver-
sivo — “a manner that subverts that science’s norm of rationality” — que não
encontramos, por exemplo, na economia e nas demais ciências que orientam as
decisões na vida pública35.

31 “It is, instead, to present a vivid conception of public reasoning that is humanistic and not pseud-scientific,
to show how a certain type of narrative literature expresses and devolops such a conception, and to show
some of the benefits this conception might have to offer in the public sphere” (cf. NUSSBAUM, Martha
C. Poetic Justice, op. cit., p. xviii).
32 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 88.
33 [...] the moral and social aspects of these literary scenarios become increasingly complex and full of dis-
tinctions, so that they gradually learn how to ascribe to others, and recognize in themselves, not only hope
and fear, happiness and distress — attitudes that are ubiquitous, and comprehensible without extensive
experience — but also more complex traits such as courage, self-restraint, dignity, perseverance, and fair-
ness (cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 90).
34 Cf. ARISTÓTELES. Poética, op. cit., 1431a39 — 1431b6.
35 “Literature expresses, in its structures and its ways of speaking, a sense of life that incompatible with the
vision of the world embodied in the texts of political economy; and engagement with it forms the imagina-
tion and the desires in a manner that subverts that science’s norm of rationality (cf. NUSSBAUM, Martha
C. Poetic Justice, op. cit., p. 1).

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Dentro desta tese do papel da literatura na vida pública a professora de Chi-


cago busca responder também, especialmente atraída pelos romances de Charles
Dickens, a tese do porquê romances — “why novels” — e de quais romances —
“which novels”. Seu objetivo é esclarecer, primeiro, que este gênero de narração
supera todos os demais, seja porque está mais engajado na cultura americana,
seja porque nos leva a fantasiar — “ability to see one thing as another, to see one
thing another”36 —, imaginar outras realidades e experiências possíveis dentre
aquelas que o gênero dos romances normalmente enfrentam: aqueles que têm
a ver com o cotidiano das pessoas comuns, contribuindo decisivamente para o
estabelecimento da igualdade democrática.37 Depois disto, a autora americana
busca resolver uma questão mais complexa: a simples leitura de romances por si
só seria o bastante para instruir o julgador no momento da decisão? Mas a esta
questão retornarei mais adiante quando tentarei um cruzamento desta ideia com
a compreensão jurisprudencialista do direito como sistema.
Por ora importa considerar mais uma questão pressuposta na abordagem
da autora americana sobre a imaginação literária: a racionalidade das emoções.
Sabe-se que o final do séc. XX reascendeu as discussões acerca desta ques-
tão, especialmente com as descobertas científicas no campo da psicologia e
da neurociência, só para relembrar, dois importantes estudiosos: o neorologista
português António Damásio e o psicólogo americano Daniel Goleman, respec-
tivamente os autores de O erro de Descartes e Emotional intelligence. Não é
propriamente daí que Martha C. Nussbaum constrói o seu pensamento, mas tem
se tornado uma respeitada estudiosa desta questão, com estudos muito aprofun-
dados sobre a matéria38.
Com efeito, desde Platão a cultura ocidental olhou com desconfiança o mun-
do das aparências (phainomena), governado pelos sentidos, dignificando sobre-
maneira o mundo das essências (ousia), governado pelo intelecto. A tentativa de
rever o papel dos sentimentos na construção das decisões é, segundo a autora,
recuperar uma tese que Aristóteles mesmo já tinha desenvolvido, na esteira do
debate travado entre seu mestre e os poetas trágicos: o homem é frágil demais
para dele se pretender uma deliberação baseada exclusivamente nos critérios

36 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 36.


37 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 4 e segs.
38 Para uma breve apreciação da proposta da autora, ver especialmente Poetic Justice, op. cit., p. 35 e segs:,
para um desenvolvimento maior da questão, ver Upheavals of thought: the intelligence of emotions. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2001, assim como The fragility of goodness, op. cit., a parte III,
dedicada ao estudo de Aristóteles.

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científicos39. A razão moderna hipertrofiou a razão intelectual, praticamente des-


prezando a razão prática ou phronesis que Aristóteles investigou minuciosamen-
te no Livro VI da sua Ética a Nicômaco40. Mas importa com isto anotar que a
racionalidade narrativa, da qual Martha C. Nussbaum é apenas uma das auto-
ras41, é também apenas uma das propostas de reabertura do debate sobre a razão
prática, justificada pela crise da razão moderna e da qual A. Castanheira Neves é
atualmente um dos críticos mais autorizados no campo do direito.

3.2. A pressuposição do direito como sistema e a idêntica recusa do sistema


moderno de legalidade
Permitam-me agora analisar esta concepção de deliberação prática constru-
ída pela professora de Chicago, partindo de sua tese filosófica-jurídica sobre a
racionalidade das emoções (rational emotions). E isto significa primeiramente
enxergar ali uma certa recuperação da tese do juiz espectador (judicious spec-
tator) de Adam Smith no séc. XVIII, e em segundo lugar significa interrogá-la
dentro do universo decisional e específico do direito que A. Castanheira Neves
também insiste em defender. E aqui parece que encontrarmos alguma coisa em
comum entre os dois autores: a preocupação de pensar a decisão jurídica dentro
de um universo muito mais amplo que aquele encontrado nas propostas reducio-
nistas daquela decisão. Como tive a oportunidade de dizer anteriormente, a auto-
ra americana não acredita que a simples leitura de um romance, ou ainda a atitu-
de empática do julgador, seja suficiente para uma boa deliberação: pressupõe de

39 Para o estudo destas conclusões da autora, conferir a parte III de sua The fragility of goodness, op. cit.,
dedicado ao estudo de ARISTÓTELES, especialmente o cap. 8.
40 A partir daquela investigação vê-se como Aristóteles realizou o seu exercício de autonomização da praxis
do discurso filosófico da sua época, abrindo as portas para uma abordagem que mudaria para sempre o
discurso prático na tradição ocidental, especialmente para o seu tratamento no universo do direito, do
qual os juristas romanos puderam se servir. Com efeito, o contraponto “virtudes morais/virtudes inte-
lectuais” apresenta o logos nas suas dimensões geral e específica, o primeiro abordando os elementos
constitutivos da excelência humana (arete) e as respectivas orientações dadas pelos hábitos (hexis) e pela
reta razão (orthos logos), e o segundo atentando para a dualidade constitutiva da dimensão intelectual
(dianoia). Seja pelo ponto de vista do tratamento dos objetos necessários (epistemonikon), seja do ponto
de vista dos objetos contingentes (logistikon/bouleuesthain), a imagem que o estagirita nos mostra é a de
que a nossa dimensão ativa tem seus modos específicos de realização e de fins, mas tecem entre si uma
teia indissociável de exigências e de compromissos.
41 Para um conhecimento da ideia central desta escola, vista a partir da ideia jurisprudencialista de racio-
nalidade prática, num diálogo especial James Boyd White, ver LINHARES, José Manuel Aroso. “O
logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law
as literature, literature as law) à analogia com uma poieses-technê de realização (law as musical and
dramatic performance)”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 59-135; para uma abordagem geral desta escola, cf. MINDA, Gary. Post-
modern Legal Movements: law and jurisprudence at century’s end. New York: New York University
Press, 1995, 149-166.

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suas lições que a mesma sinaliza para uma ideia de sistema de direito que vincula
a decisão jurídica42.
Com efeito, a proposta jurisprudencialista aponta para uma compreensão
do direito que reconhece nele um sistema: não um qualquer sistema, até porque
não se confunde com o sistema de legalidade que herdamos da modernida-
de e nem com outras teorias sistêmicas da atualidade; é, sim, um específico
sistema de direito que dialoga em concreto com o problema, de modo que
podemos dizer que a decisão jurídica é igualmente um momento constitutivo
daquele direito. Partindo da compreensão do homem e da comunidade que já
fiz referência anteriormente, A. Castanheira Neves recusa aquela vinculação
ontológica que nos era dada pelo jusnaturalismo, aquela autonomia formal e
alienada do sistema moderno, assim como o instrumentalismo dissolvente dos
sistemas atuais. Isto tudo para propor uma autonomia que assume “uma vali-
dade normativa material que numa prática problemática e judicanda se realiza,
e se orienta por uma perspectiva polarizada do homem-pessoa, que é o sujeito
dessa prática”.43
Uma iurisprudentia, diz o autor, que seja axiológico-normativa nos funda-
mentos, prático-normativa na intencionalidade e judicativa no modus metodo-
lógico.44 Com os apelos a um sistema que lhe é inerente, isto é, àquela “unidade
de totalização normativa que se analisa em quatro elementos — os elementos
constitutivos da sua normatividade, organizados em quatro estratos distintos e
entre relacionados num todo integrante”.45 Um conceito de sistema, vale dizer,
que tem em conta os princípios de direito, a jurisprudência, a dogmática jurídica
e as normas desse direito. E aqui posso destacar um ponto em comum entre A.
Castanheira Neves e a autora americana: a recusa da norma jurídica como cri-
tério único e decisivo do caso em concreto. É que para o jurisprudencialismo a
norma é “só um ponto de partida, apenas um factor (factor-critério) da dialética
judicativo-decisória do caso concreto”,46 uma vez que “uma proposição jurídica

42 “But the subtle differences between those theories need to be thrashed out by philosophical arguments.
Novel-reading all by itself will not supply those arguments, which might at some points lead us to reject
the insights of our reading itself [...] As I said in the preface, novel-reading will not give us the whole story
about social justice, but it can be a bridge both to a vision of justice and to the social enactment of that
vision” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 12).
43 Cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’ ou entre ‘Sistema’, ‘Fun-
ção’ e ‘Problema’: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, vol. LXXIV, p. 32.
44 Cf. Cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’ ou entre ‘Sistema’,
‘Função’ e ‘Problema’”, op. cit., p. 32.
45 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 155.
46 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 154.

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A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO...

nunca será uma definição axiomaticamente conclusa, mas sempre uma proposi-
ção com aquela intencionalidade aberta (indeterminada) que corresponde à sua
função normativa referida ao concreto — intendendo para a realidade e o sentido
históricos dos casos concretos a que visa aplicar-se”47.
Ora, também em Martha C. Nussbaum também posso ver essa pressupo-
sição de um sistema jurídico que leva em conta, primeiramente, a necessidade
de normas e precedentes: “In all cases, the law must first of all be there, or no
judge can do anything”.48 Depois do reconhecimento de que seu juiz-espectador
precisa de uma diretriz normativa, reconhece ao mesmo tempo a incompletude e
a imprestabilidade de tais normas quando interpretadas de forma fria e descon-
textualizadas49. Tanto quanto A. Castanheira Neves50, mostra-nos que os fatos
juridicamente relevantes não são quaisquer fatos cujo objeto se apreende empi-
ricamente, mas são fatos humanos, acontecimentos prático-humanos e que como
tais o julgador deve se esforçar para compreender — “The relevant facts, then,
are human facts of the sort the literary judge is well equipped to ascertain”51. E
com isto apela para Aristóteles, na sua construção teórica da equidade, para nos
mostrar que a regra jurídica não tem em si mesma a medida apropriada para a
justiça que visa realizar52, daí que além do perfeito domínio dos recursos técnico-
-legais o bom julgador deve dispor de um bom conhecimento dos precedentes
judiciais53, em outras palavras, daquele “momento de objectivação e estabili-
zação de uma já experimentada realização problemático-concreta do direito”54
(jurisprudência) da qual nos fala A. Castanheira Neves. E também neste parti-
cular, nota-se mais uma aproximação entre os dois autores: levando em conta a
simpatia do autor português pelo sistema jurisdicional dentre os três tipos de ex-
periência jurídica — a consuetudinária, a legislativa e a jurisprudencial — pela
natureza prático-prudencial do seu juízo55, levando em conta a simpatia da autora
americana pelo sistema common law pelo fato de o mesmo permitir a necessária
imparcialidade do julgamento56, pode-se dizer que ambos dão um grande relevo
ao papel da jurisdição na realização constitutiva do direito.

47 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 173.


48 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 117.
49 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 115.
50 Cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’ ou entre ‘Sistema’, ‘Fun-
ção’ e ‘Problema’”, op. cit., p. 40.
51 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 105.
52 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 80, 86 e 108.
53 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 121.
54 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 156.
55 NEVES, António Castanheira. Digesta, op. cit., vol. 2, p. 28 e segs.
56 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 82.

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3.3. A idêntica rejeição do utilitarismo econômico e a divergência quanto ao


problema da autonomia do direito
Postas então estas breves considerações sobre os dois pensamentos aqui ana-
lisados, resta-me partir para a etapa final que é o momento da decisão jurídica, na
perspectiva da imaginação literária que a autora americana nos propõe. Primei-
ramente devendo esclarecer que o principal alvo de seu projeto, ao que parece, é
a Análise Econômica do Direito (Law Economics Movements), especialmente na
proposta de Richard Posner que há muito declarou uma guerra em bloco contra
o movimento Direito e Literatura (Law and Literature Movement). E não posso
deixar de assinalar aqui — apenas assinalar! — mais este ponto de contato entre
Martha C. Nussbaum e o jurisprudencialismo, não pelos motivos que são muito
distintos e neste último caso já muito bem analisadas por Aroso Linhares57 e
pelo próprio A. Castanheira Neves58, mas pela rejeição em si que alimenta uma
forte divergência entre os nossos autores e a proposta metodológico-jurídica da
análise econômica do direito.
Mas esta afinidade de oposição ao modelo de análise econômica do direito
nem por isto coloca A. Castanheira Neves e a professora de Chicago no mesmo
lugar quando temos de falar da concreta realização jurídica, vale dizer, no que
se refere aos critérios a serem utilizados pelo juiz na hora de decidir uma con-
trovérsia jurídica. Com efeito, a análise econômica do direito é acusada pelo
autor português de querer reduzir os problemas da decisão jurídica a problemas
de eficiência que o juiz haveria de solucionar: “aos valores e outros factores a
que tradicionalmente se imputava a determinação do direito substituía-se nessa
mesma determinação um valor ou factor económico, o da eficiência definido pela
economia”59. E dirigindo-se especialmente a Richard Posner, acentua a indife-
rença deste aos postulados da justeza da decisão para perspectivá-la apenas no
horizonte dos critérios maximizadores da riqueza.
É outra, porém, a motivação que leva Martha C. Nussbaum a se insurgir
contra a análise econômica do direito, mas igualmente lhe opõem sérias objeções
metodológico-jurídicas. Refere-se a este movimento como sendo uma forma de-
rivada de utilitarismo que vê as pessoas como lugares ou coisas onde se realizam
desejos, dores, prazeres..., mas diferindo da modalidade clássica por subtrair

57 Cf. LINHARES, José Manuel Aroso. “A unidade dos problemas da jurisdição ou as exigências e limites de
uma pragmática custo/benefício: um diálogo com a Law & Economics Scholarship”, Boletim da Faculda-
de de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 65-178.
58 Cf. NEVES, António Castanheira. Apontamentos complementares de teoria do direito: sumários e textos.
Coimbra: Policopiado, s/d, p. 17-22.
59 Cf. NEVES, António Castanheira. Apontamentos complementares de teoria do direito, op. cit., p. 17.

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dele toda forma de altruísmo e pensar as ações humanas apenas na perspectiva


da realização de interesses pessoais60. A autora também acusa aquela proposta de
colocar sempre a quantidade no lugar da qualidade, de ignorar a complexidade
da vida humana e de querer tratar as nossas decisões como se não fôssemos pes-
soas mas pura e simplesmente máquinas.
Mas se assim é na objeção comum ao modelo economicista da decisão jurídi-
ca, parece que daqui para diante os autores seguem caminhos distintos. Primeira-
mente, há que considerar uma profunda divergência do jurisprudencialismo para
com a poetic justice. Com efeito, a racionalidade narrativa proposta pela autora
de Chicago não tem em vista exclusivamente o direito, mas como a mesma insiste
em dizer, trata-se de uma proposta deliberativa para todos os segmentos da vida
pública: tanto quanto o julgamento poético precisa da norma legal, o legislador
precisa exercer a imaginação literária61, de modo que esta ajuda o juiz a julgar, o
legislador a legislar e o administrador encontrar a medida exata para implementar
suas políticas atuais e futuras em vista da qualidade de vida das pessoas62.
Disto tudo, verifico que a crença em um modelo decisório que faça frente
a todas as ordens de decisões da vida pública não é, certamente, a mesma que
A. Castanheira Neves defende em sua claríssima anti-funcionalização da praxis
jurídica. Não vejo aqui a possibilidade de se falar de uma autêntica instrumen-
talização do Direito pela Literatura, mas talvez mais uma instrumentalização
da Literatura pelo Direito quando fica claro que nossa autora vê nos poetas um
instrumento daquela justiça que acredita ser necessária nos tempos atuais63. Não
obstante, a pesquisa por um método específico do direito levado a cabo pelo ju-
risprudencialismo nos impõe separar os problemas do jurídico em relação aos do
político, do econômico, do científico, do ético, etc.64 E o que vejo na nossa autora

60 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 14 e segs.


61 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 117.
62 “I shall focus, then, on the characteristics of the literary imagination as a public imagination, an imagina-
tion that will steer judges in the judging, legislators in their legislating, policy makers in measuring the
quality of life of people near and far” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 3).
63 “[...] Here Whitman summarizes his account of the poet’s democratizing mission. It is a mission of imagi-
nation, inclusion, sympathy, and voice. The poet is the instrument through which the ‘long dumb voices’
of the excluded come forth from their veils and into the light” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Jus-
tice, op. cit., p. 119).
64 “[...] perante o funcionalismo, na sua perspectivação macroscópica da realidade social em que o direito
é visto só como um elemento de organização e de administração-direcção gerais da sociedade conside-
rando a própria decisão concreta inserida no quadro estratégico dessas organização e direcção”, o juris-
prudencialismo “traz ao primeiro plano de preocupação os concretos problemas práticos, os conflitos e as
controvérsias prático-problematicamente concretos, que naquela perspectivação macro-social iam pura e
simplesmente omitidos” (cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’
ou entre ‘Sistema’, ‘Função’ e ‘Problema’”, op. cit., p. 34).

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não é exatamente isto, ainda mais com a nota já anteriormente referida da incli-
nação de seu modelo decisório dirigir-se mais à construção de uma justiça social,
objeto que mais propriamente se imputa a uma ordem político-administrativa e
do que ao direito.

3.4. A divergência dos autores quanto à pertinência de uma racionalidade


narrativa no direito
Mas uma outra divergência se evidencia entre os dois autores estudados,
sobre a qual haverei de deter um pouco mais: a (im)prestabilidade de uma racio-
nalidade narrativa para o direito, em outras palavras, sobre o que se pode esperar
de um juiz-espectador diante de uma controvérsia que haverá de decidir. De fato,
depois de construídos os pressupostos filosófico-jurídicos do seu modelo de de-
cisão, no capítulo 4 da sua Poetic Justice Martha C. Nussbaum passa a analisar
especificamente a figura do julgador. A autora parte já do pressuposto de que o
poeta é o árbitro da diversidade, sendo ele talvez o melhor juiz para passar da-
quela universalidade e abstração da regra jurídica para o contexto específico do
julgamento65, não estando de modo algum comprometido com a irracionalidade
como dizem as críticas assacadas contra a imaginação literária em geral. O poeta
seria, portanto, o mais talentoso arquiteto da vida pública, o depositário de certa
excelência moral que lhe transforma na mais completa expressão da racionali-
dade política. Não é demais lembrar que a autora americana, em todas as suas
obras, encara sempre os poetas como porta-vozes das pessoas que não têm voz,
que de algum modo estão excluídas do processo de tomada de decisão no espaço
público ou têm reduzida essa participação: as mulheres, as lésbicas, os gays, os
negros, os estrangeiros, os pobres e todas as vítimas do sofrimento humano.
No dizer da professora de Chicago, quando o juiz se liberta da visão pseudo-
-matemática da decisão jurídica ele não está avocando para si outro papel que
não o de julgar, mas observando a singularidade do caso como já encontramos na
concepção aristotélica da vida prática e preservando a riqueza da diversidade que
é inerente à vida humana66. De fato, nossa autora rejeita, como o faz também A.
Castanheira Neves67, qualquer saída jusnaturalista ou qualquer solução meta-his-
tórica, recusando a equiparação do pensamento jurídico com o discurso científico-

65 [...] Whitman, like Aristotle, claims that this flexible context-especific judging is not a concession to the irra-
tional, but the most complete expression of the politically rational: not ‘in him’ but ‘off from him’ things ‘are
grotesque, eccentric, fail of their full returns’” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 80).
66 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 81 e seg.
67 Para uma análise desta passagem do direito natural ao direito positivo, bem como da “superação” de am-
bos por um novo movimento de reabilitação da filosofia prática, cf. NEVES, António Castanheira. A crise
actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, op. cit., p. 23 e segs.

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-tecnológico que resulte numa aplicação mecânica e fácil das normas de direito68.
O direito é, insiste a professora de Chicago, uma ciência humana tal como Aristó-
teles demonstrou ao falar da impossibilidade da aplicação dedutiva da norma e da
necessidade do julgador observar as circunstâncias históricas e a particularidade
do caso. E disto tudo fica claro que a ciência do direito, enquanto domínio da cul-
tura, não pode estar inscrito em outro campo que não o das humanidades.
Mas a pesquisa de um método de decisão estranho àquele proposto pelo
modelo científico não significa dizer que a decisão jurídica haverá de ser uma
aposta no relativismo da vida69. A autora americana parte do pressuposto de uma
“comunidade de leitura” que supera aquele ceticismo que nega a ausência de
justificação para as nossas crenças políticas e jurídicas; a própria experiência
da convocação dos precedentes judiciais comprova, segundo ela, a falácia do
discurso da indeterminação legal. Além disto, o juiz-espectador não decide em
prejuízo da imparcialidade que se espera de todo o julgamento70. Insiste em di-
zer que o julgamento literário é um modelo quase científico que garante tanto a
imparcialidade como o cultivo das outras habilidades necessárias ao papel insti-
tucional do julgador71.
O que a experiência trágica ou de leitura nos mostra é que a vida é feita de
sucessos e de insucessos nos quais todas as pessoas podem estar envolvidas, e a
literatura nos permite ver os acontecimentos que nunca tínhamos visto antes72.
Isto não significa subjugar a lei aos sentimentos do julgador73, mas sim criar
um mundo de possibilidades para que o juiz possa olhar com interesse para o
problema daqueles que de algum modo sofrem/sofreram uma injustiça, mas não
significa nunca que o mesmo tenha que ceder a eventuais interesses de qualquer
uma das partes ou de qualquer grupo de pressão. As emoções que o juiz-espec-
tador mobiliza em si mesmo não são as mesmas das partes, mas as emoções
de quem vai além daqueles sentimentos para enxergar do seu próprio ponto de
vista o sofrimento daquelas pessoas e o impacto desse sofrimento nas suas vidas
e nas suas ações74. Melhor exemplo para ela não poderia existir que não aquele

68 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 83 e segs.


69 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 84 e segs.
70 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 86.
71 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 82.
72 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 86.
73 “In none of the cases do I suggest that ordinary legal reasoning, including prominently the consideration of
precedent, should be subordinated to untethered sentiment. The judge is not a legislator, and is imagination
must conform to tight institutional constraints” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 118).
74 “The judicious spectator must go beyond empathy, assessing from her own spectatorial viewpoint the
meaning of those sufferings and their implications for the lives envolved” (cf. NUSSBAUM, Martha C.
Poetic Justice, op. cit., p. 90).

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que vemos no Filoctetes, naquela tragédia onde Sófocles leva o coro a perceber
o sofrimento de um homem completamente desfigurado e vilipendiado na sua
dignidade pessoal e humana75.
No intuito de exemplificar as possibilidades concretas da sua proposta, a auto-
ra analisa o resultado de diferentes processos, com um caso particularmente sur-
preendente: uma decisão do juiz Richard Posner. É que do estudo de uma sentença
que reconheceu o assédio sexual sofrido por Mary J. Carr no ambiente de trabalho
da Allison Gas Turbine Division/General Motors Corporation, a professora de
Chicago constata que inclusive o seu principal adversário intelectual realiza um
julgamento poético: o fundamento da sua decisão não revela somente que ele re-
conhece as narrativas do processo como sendo acontecimentos verdadeiramente
humanos, mas igualmente aprecia empaticamente o caso, de uma maneira bastante
especial comparando tais acontecimentos com outras narrativas já conhecidas76.
Com efeito, de todos os lados que posso olhar vejo que Martha C. Nussbaum
constrói um verdadeiro sistema de decisão, e parece não ser possível imputar a
ela um reducionismo poético77. Mas será oportuno agora perguntar, como prova-
velmente A. Castanheira Neves também perguntaria, se o peso dado às emoções
basta para qualificar uma decisão jurídica, especialmente diante dos desafios do
presente e da urgência do futuro. Com efeito, ele mesmo interpela diretamente
Ronald Dworkin, dirigindo-lhe a seguinte pergunta: será a racionalidade narra-
tiva a mais adequada para a solução de uma controvérsia jurídica? O direito é,
segundo ele, um projeto axiológico-normativo de constituenda realização78 onde
tem lugar um holismo interpretativo: “na interpretação jurídica converge a plu-
ralidade das dimensões, e numa sua consideração globalmente integrada, que
participa no todo prático-normativo da manifestação concreta do direito — o
caso, as normas positivas (os critérios jurídicos positivos), os princípios funda-
mentalmente constitutivos da normativa validade jurídica”.79
De fato, a escola jurisprudencialista reconhece que o caso é certamente um
elemento de peso na decisão, mas não seria possível aceitar como critério último

75 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 103. Para uma ligeira abordagem da imagem do Fi-
loctetes no nosso tempo, na pessoa portadora de cuidados especiais, ver SILVA, Antônio Sá da; COELHO,
Nuno M. M. S. O ensino do direito no nosso tempo: história, diagnósticos e exigências éticas para uma
educação jurídica de qualidade no Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010, cap. VI.
76 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 104 e segs.
77 De tudo que já tive oportunidade de referir, sugiro uma olhada especial em NUSSBAUM, Martha C. Poe-
tic Justice, op. cit., p. 82, 117 e 120.
78 Cf. NEVES, António Castanheira. Dworkin e a interpretação jurídica — ou a interpretação jurídica, a her-
menêutica e a naratividade. In O actual problema metodológico da interpretação jurídica — I. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003, p. 363.
79 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 365.

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da decisão a tese da “integridade narrativa” que um dworkiano juiz-Hércules


haveria de realizar80. É que A. Castanheira Neves começa por fazer uma carac-
terização daquilo que se pode chamar de uma racionalidade narrativa: ela deter-
mina os acontecimentos num todo integrante que alarga o contexto pragmático,
não se reduzindo, assim, ao discurso das ciências81. Seu objetivo é o de narrar
bem um caso e fornecer um exemplo paradigmático, enquanto a racionalidade
jurídica é outra coisa inteiramente diferente: ela dispõe de uma intencionalidade
transfactual, de validade, de dever-ser, cujo objeto final é decidir uma controvér-
sia jurídica. A simples compreensão de um fato narrado não o torna aceitável do
ponto de vista da juridicidade82.
Esta é, portanto, uma clara demonstração da insuficiência puramente narrativa.
O autor português, tal como Martha C. Nussbaum, acredita que o abandono da
normatividade reduziria o “monismo narrativo” a um fracasso absoluto, embora o
modelo silogístico e lógico-dedutivo seja hoje visivelmente superado83. Mas já pelo
que acabei de dizer posso ver uma clara distância que separa os dois autores. É que
A. Castanheira Neves não entra no mérito de uma imaginação literária, do valor da
empatia na construção do juízo decisório tal como Martha C. Nussbaum o faz. Ele
centra a sua análise na questão da coerência narrativa e no problema da validade, e
ela por sua vez não faz de Ronald Dworkin seu principal interlocutor e conseqüen-
temente não entra diretamente na discussão sobre a integridade. Mas uma coisa
é certa: ambos pressupõem a existência de normas validamente integradas num
sistema de direito e reconhecem a insuficiência de um modelo puramente narrativo.

4. A CONCLUSÃO
E agora tenho de concluir. E penso ser possível fazê-lo lembrando que é
na constatação final da divergência dos autores que podemos enxergar o prin-
cipal valor das duas propostas: o de demonstrar quão longe estamos de uma

80 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 367.
81 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 370.
82 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 411.
83 “Cremos mesmo que o deliberado abandono da intencionalidade normativa, da axiológica normatividade
que diferencia o direito como direito, condena aquela intenção a um fracasso de raiz, na sua tentativa de
redução narrativista. Deixemos de lado a reconhecível persistência do tradicional (e já hoje sabidamen-
te superado) esquema silogístico-subsuntivo naquela comparação entre narrativas, em que se traduziria
na sua estrutura a concreta decisão jurídica, não obstante a também afirmada unidade constitutiva entre
‘interpretação’ e ‘decision-making’: essa comparação poderá não ser já de tipo lógico-dedutivo e as pre-
missas a articular na conclusão-decisão poderão ser obtidas de modo diferente do tradicional e com outra
determinação, mas que a realização do direito se reduziria a uma ‘aplicação’ de regras gerais a factos parti-
culares, determináveis em princípio umas e outros com autonomia entre si e para uma relação posterior ou
sucessiva a essa dupla e autônoma determinação, é o que manifestamente continua a pensar-se — e todavia
vimos já suficiente e fundamentadamente que não é isso validamente pensável” (cf. NEVES, António
Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 407).

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pacificação dos juristas e do pensamento jurídico no que tange a um modelo


de decisão. Neste caso o juiz não estará nunca “órfão” de uma diretriz para jul-
gar, mas sempre estará “relativamente incapaz” de encontrar um caminho seguro
para proferir a sua decisão. O igual reconhecimento do papel das regras gerais
— as normas jurídicas e os precedentes judiciais — e de sua experimentação
prática — as decisões dos tribunais —, combinado com a pressuposição de uma
consciência jurídica geral da qual nos fala A. Castanheira Neves, assim como a
combinação com aquela fragilidade da vida humana, aqueles limites pessoais, a
pressuposta humildade cultural e intelectual do julgador e as exigências de se co-
locar no lugar das partes e sentir o que cada um está sentindo no processo..., tudo
isso do que nos fala Martha C. Nussbaum, não constitui certamente uma resposta
definitiva ao problema da decisão, mas penso poder reconhecer a legitimidade
deste ponto de partida. Cuja continuidade imputa a cada um de nós a urgência
sempre presente de re-pensar.
Urgência porque certamente a imaginação literária pode fazer diferença no
momento de julgar84, tal como nos ensina a professora de Chicago, e há de reco-
nhecer mesmo que o poeta é mesmo genial! Mas é de se perguntar como fica-
mos diante das lições de Walter Benjamim: o narrador, o autêntico narrador, é o
depositário e transmissor daquela experiência comunitária que anda de boca em
boca85. É ele aquela figura pública hoje em extinção, daí que o romance seja o
primeiro indício de morte da autêntica narrativa, o fruto do isolamento e da perda
de autoridade sobre os sentimentos86. E se uma primeira vez a magna poesia lusa
— a dos feitos lusitanos ou de Os Lusíadas — começava o primeiro canto ca-
moniano por invocar os próprios limites do narrador para contar a grandiosidade
daqueles feitos87, penso ser necessário prestar atenção uma vez mais nas lições
do jurista luso que até aqui tentei pôr em diálogo com a filósofa americana: o
mundo do direito pode ser narrado, mas a narração por si só omite o sentido
axiológico-normativo, amputando a decisão jurídica daquela qualificativa e inar-
redável tomada de posição diante do fato narrado88. A exigência de uma tomada
de posição, ante o futuro do direito, é o que acredito ser de um lado e de outro o
maior apelo que cada um dos autores hoje nos dirige.

84 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 117.


85 BENJAMIM, Walter. O narrador: reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In: Sobre arte, técnica, lin-
guagem e política. Trad. Maria Amélia Cruz. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p. 27 e segs., bem
como 48 e segs.
86 BENJAMIM, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 32 e segs.
87 Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. 5. ed. Braga: Ulisseia, 1997, canto primeiro, 2 e 5.
88 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 402 e segs.

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CAPÍTULO VI
SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO:
O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA
NO DIREITO E A FILOSOFIA

Nuno M. M. Santos Coelho


Universidade de São Paulo

SUMÁRIO: 1. Introdução — 2. PRIMEIRA PARTE: Direito, Racionalidade e Pessoa no Jurispruden-


cialismo: 2.1. “Direito” e teorias do Direito do nosso tempo; 2.2. Direito como pensamento crítico-problemá-
tico comprometido com a reafirmação do humano como pessoa — 3. SEGUNDA PARTE: Filosofia, racio-
nalidade e pessoa na fundação socrática do Ocidente: 3.1. Sócrates e a zetesis como traço fundamental do
pensamento na nova atitude; 3.2. Sócrates e o cuidado da alma (de si) como tarefa e desafio — 4. Conclusões
— 5. Referências Bibliográficas.

No actual universo prático em que se nos impõe a opção entre alternativas


(...) compreende-se que se diga, como temos dito, que o Direito é a “alter-
nativa humana”. E sendo-o, com o sentido que também tentamos explicitar,
não menos vemos justificados a retomar, uma vez mais, uma paráfrase a
Hannah Arendt para sublinhar que então o verdadeiro, o capital e o último
Direito fundamental do homem (homem-pessoa) é o “Direito ao direito”.
A. Castanheira Neves

1. INTRODUÇÃO
Entre tanto o que distingue o trabalho do Professor Castanheira Neves, está
seu compromisso com a realização mais própria do Ocidente enquanto civili-
zação do direito. O humano inevitavelmente marca-se como ser-com-o-outro,
mas a forma da convivência pode configurar-se de muitas diferentes formas,
nem todas elas de direito. O direito não é uma resposta universal ao problema da
convivência, mas uma resposta possível, apenas e simplesmente possível, a qual
resulta de um esforço, de um processo de construção histórica que se confunde
com a construção da própria civilização ocidental. Neste capítulo, gostaríamos
de destacar dois dos traços distintivos do pensamento jurídico, na obra do Pro-
fessor Castanheira Neves, tentando entendê-los enquanto expressão de uma certa
compreensão da coexistência singularmente jurídica. Tais traços serão, um, me-
todológico, dizendo do tipo de pensamento que o direito é ou mobiliza — e um
outro, substancial, dizendo de um certo conteúdo também singularizador do di-
reito como direito. O primeiro respeita ao pensamento jurídico como pensamento

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

crítico que interroga as relações humanas, problematizando-as ao mesmo tempo


em que institui (sempre novos) casos jurídicos, cujo enfrentamento transforma
permanentemente o sistema de normas existentes (e assim a própria ordem da
coexistência). Nesta face, vemos o direito como expressão de um contínuo per-
guntar, dirigido à convivência humana, capaz de a por sempre em causa e de a
transformar. O segundo traço diz respeito a um certo pensamento, a uma ideia
que fundamentalmente anima a compreensão do direito como direito: trata-se da
afirmação do humano como pessoa. Para o Jurisprudencialismo, no entanto, não
há lugar para um conceito metafisicamente delimitado do direito. A ideia de pes-
soa aparece também sob a forma de uma pergunta, ou como aquilo que estrutura
o perguntar que se dirige à convivência humana (de sorte que ambos os traços
acabam por encontrar a sua unidade): o permanente interrogar que o direito é um
perguntar pela pessoa, a qual não se encontra simplesmente dada, mas se cons-
trói na história pela experiência deste mesmo perguntar.
Esta é a forma como lemos, em grandes linhas, o pensamento do Professor
Castanheira Neves. Traços que gostaríamos de retomar para enfatizar o quanto
estas suas tão inspiradoras intuições reforçam o compromisso civilizacional do
Direito, enquanto fundamento permanente (mas não infalível, porque sempre de-
pendente de nossa crítica reassunção) do Ocidente. Gostaríamos de sublinhá-lo
ao tentar mostrar como esta compreensão do direito apresenta homologia com a
concepção de Filosofia como forma de vida devotada à busca da verdade, e da
correspectiva reconstrução do humano em seu empenho em manter-se digno dela,
tal como encontramos em Sócrates e, assim, entre os elementos historicamente
constitutivos do Ocidente como forma de viver e de pensar fundada da Filosofia.
Argumentamos em favor de que a concepção de pensamento jurídico e de hu-
mano, no Jurisprudencialismo, lança raízes na concepção socrática de pensamen-
to e de humano. Não obstante o fato de não se encontrar, entre os gregos, ainda
forjada a pessoa de direito tal como viríamos a testemunhar desde os romanos, há
uma importante homologia entre as concepções socrática e jurisprudencialista de
racionalidade e de humano-tarefa-de-si-mesmo, cuja compreensão pode contri-
buir para a explicitação do compromisso (genético) entre direito e Ocidente — e
assim do compromisso que a nós incumbe como herdeiros desta tradição.

2. PRIMEIRA PARTE: DIREITO, RACIONALIDADE E PESSOA NO


JURISPRUDENCIALISMO

2.1. “Direito” e teorias do Direito do nosso tempo


O Prof. Castanheira Neves, em nota introdutória ao seu O Actual Proble-
ma Metodológico da Interpretação Jurídica, esboça o panorama da Teoria do

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

Direito nas últimas décadas, quando tudo está em permanente discussão e re-
visão: o contexto cultural que condiciona o horizonte significante dos juris-
tas e a concepção fundamental do Direito que lhe corresponde, a perspectiva
epistemológica-metodológica do pensamento jurídico, assim como os objetivos
práticos imediatos da realização do Direito.1
É impressionante a multiplicação de descrições do Direito, todas compro-
metidas com pressupostos filosófico-culturais muito diferentes (ontologias, an-
tropologias, epistemologias etc.). Neste contexto, falar em Direito requer sem-
pre um esclarecimento sobre o que queremos dizer.
Apesar da polifonia que marca a filosofia e a teoria do Direito contempo-
râneas, há traços comuns na forma como as diferentes propostas pensam o Di-
reito, desde a crise do positivismo jurídico e na reabilitação da razão prática, a
partir da segunda metade do séc. XX. Embora não haja mais uma “teoria esta-
bilizada e dominante”, possível de ser exposta “nas suas linhas características”
(NEVES, 2003B, p. 9), há uma mudança geral de atitude que tem a ver com a
superação da identificação entre Direito e lei e com a retomada do problema
autônomo e específico da realização do Direito, que deixa de ser concebida
como simples aplicação de normas legais. A teoria do Direito volta-se para o
processo decisório, enfatizando o caráter constitutivo do ato de julgar. Agora,
se o julgamento não deixa de recorrer ao critério de solução oferecido pela
norma, já não se esgota numa simples aplicação dedutivo-silogística. Ao con-
trário, reconhece-se que julgar é cumprir, no caso concreto e sempre por força
de uma situação peculiar, as intenções axiológicas e normativas do Direito.
(NEVES, 2003B, p. 12)2

1 No mesmo sentido, inicia A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Fi-
losofia: “Dúvidas profundas sobre o sentido do Direito no nosso contexto histórico-social e cultural,
com quebra do modelo tradicional e dominante da normatividade jurídica, e a provocarem forte per-
plexidade pela opção necessária entre perspectivas divergentes da juridicidade que se oferecem como
actualmente possíveis — é esta uma situação que bem se reconhecerá num diagnóstico generalizável.”
(NEVES, 2003A, p. 1).
2 A polifonia referida afirma-se especialmente quando se trata do que possibilita e do que está implicado
nos processos de realização prática do Direito. A ênfase em seu modo de operação, em seus funda-
mentos e em suas consequências assume sempre matizes muito singulares. Linhares (2007-2008, p.
101) empenha-se em uma abordagem que permita lidar com a diferença que passa a marcar o discurso
(os discursos) da Teoria do Direito: “Dirigirmo-nos à jurisdição como intenção de realização e como
discurso — reconhecendo explicitamente as “situações institucionais” que constituem (ou podem cons-
tituir) o modus operandi deste discurso e o(s) “projectos” ou exigências de sentido que iluminam (ou que
devem iluminar) aquela intenção — é hoje enfrentar uma diversidade sem precedentes de representações
possíveis. (...) Sem esquecer que este problema é menos o da diversidade de representações enquanto
tal — inscrita numa pluralidade (não menos complexa) de concepções do Direito — do que o da pos-
sibilidade e o da exigência de a testemunhar — e então e assim também o de encontrar o caminho e o
idioma indispensáveis”.

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

A ampla revisão do pensamento jurídico responde a uma crise da forma le-


gal, e revaloriza as suas dimensões tópico-retóricas e prudenciais. Ela recupera
a dimensão ética do Direito (DOUZINAS; WARRINGTON, 1993, p. 3), nunca
pela simples assimilação entre Direito e moralidade no plano abstrato, mas pela
reconstrução do pensamento jurídico em sua abertura a argumentos de outra or-
dem que não a simplesmente legal, embora, ainda assim, de Direito — argumen-
tos jurídicos extralegais legítima e necessariamente convocados na construção
do juízo jurídico concreto.

2.2. Direito como pensamento crítico-problemático comprometido com a re-


afirmação do humano como pessoa
O Jurisprudencialismo oferece uma lúcida descrição do Direito com ênfase
e a partir de sua realização, sempre em diálogo com os mais contemporâneos
paradigmas linguístico-filosóficos, dando conta da crise do positivismo jurídico
sem recorrer a qualquer retomada jusnaturalista, mas fazendo justiça à autocom-
preensão pós-essencialista que singulariza o homem contemporâneo.
O Prof. Castanheira Neves concebe o Direito como uma intenção de vali-
dade, e não simplesmente como um sistema de normas ou de objetivações de
qualquer outro tipo. O Direito é assumido como uma racionalidade específica,
como uma forma de pensar, e não como um certo objeto do pensamento.
Segundo o Jurisprudencialismo, a racionalidade jurídica (que o Direito é,
como processo concreto de solução de casos jurídicos) estrutura-se em duas
diferentes coordenadas ou dimensões capitais: o sistema e o problema. Na in-
teração entre ambos, o pensamento jurídico constrói a decisão, respondendo às
exigências normativas que o caso impõe, ao mesmo tempo em que o próprio
sistema se reconstrói, por força da sua utilização pela decisão do caso. Come-
cemos pelo sistema.
O sistema jurídico, “unidade de totalização normativa”, é composto por qua-
tro níveis normativos “entre si relacionados num todo integrante”: os princípios
(que funcionam como fundamentos), as normas (que servem como critérios), a
jurisprudência (Richterrecht) e a doutrina (Juristenrecht).
Os princípios, instância fundante do sistema e de todo pensamento jurídi-
co, respondem pela intenção fundamentante do Direito. Devem ser entendidos
como o “momento em que a intenção axiológica-normativa se assume”. Trata-se
da dimensão verdadeiramente normativa, em que a “validade fundamentante se
postula”. (NEVES, 1993, p. 155 e ss. passim). O Autor ressalta que os princípios
não devem ser considerados como objetividades. Os princípios não são elemen-
tos prontos e acabados, passíveis de uma apreensão cognitiva, mas constituem

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(orientando-o como um farol, e não como um mapa3) o processo de compreen-


são pelo qual o sistema mesmo constitui-se.4
Já no estrato das normas, encontram-se objetivadas as opções político-estra-
tégicas (legais e constitucionais) do sistema jurídico. São prescrições resultantes
dos atos de positivação jurídica, frutos da decisão da autoridade.
O estrato da jurisprudência consigna o chamado Direito dos juízes, fruto de
“uma já experimentada realização problemático-concreta do direito” (NEVES,
1993, p. 156), enquanto a doutrina jurídica consigna o resultado do trabalho da
ciência do Direito.
Todos os estratos do sistema integram-se numa unidade dinâmica de sentido,
em que há relações de subordinação hermenêutica. Especialmente os três tipos
de objetividades jurídicas, por fim referidos (normas, jurisprudência e doutrina),
dependem sempre do primeiro (princípios), na medida em que os princípios fun-
cionam como instância fundamentadora. Não apenas cada um deles mantém-se
dependente da fundamentação pelos princípios, como também a sua relação re-
cíproca (entre jurisprudência e norma, entre doutrina e jurisprudência etc.) deter-
mina-se sob o impulso fundamentador dos princípios — assim que, por exemplo,
a objetivação da dogmática jurídica apenas será secundum juris na hipótese de
a reconstrução que propõe de normas e de posições jurisprudenciais dar-se pela
assimilação dos princípios. (NEVES, 1993, p. 157).
Passemos agora à explicitação do caso, a outra coordenada fundamental do
pensamento jurídico (ao lado do sistema). É o caso o que desafia o pensamento
jurídico. É sempre a partir dele que ocorre qualquer mobilização do sistema e do
pensamento jurídico. Por isso, o caso mantém-se na sua prioridade metodológica
diante do sistema.
É o problema que está sempre implicado num caso que exige o juízo jurídico
concreto, juízo este que mobiliza o sistema tanto como fundamento (convocando
os princípios) quanto como critério racional material (convocando as normas). A
“justeza decisória” apura-se sempre pela problematicidade do caso, o que quer
dizer que a correição da decisão sempre se mede por sua adequação ao problema
que o caso apresenta.

3 Esta imagem foi expressa por J. M. Aroso Linhares em conferência sobre o Jurisprudencialismo.
4 Os princípios concebem-se como “normatividade jurídica que exprime o dinamismo constitutivo de um
normans, capaz de conferir ao direito-sistema a índole de um ordinans. É assim que o Direito não será
nunca tão só “objeto” e sempre também sujeito, i. é, não se oferece apenas em termos de transcendência
objectiva, mas numa intenção de transcendens constituinte.” (NEVES, 1993, p. 155).

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O caso, objeto da decisão, materializa-se com a “objectivação do seu con-


creto e específico sentido problemático-jurídico”. Isto significa que ele, põe um
problema (problema este que é um problema jurídico) numa circunstância pecu-
liar (pois o problema dá-se sempre no contexto de uma situação histórico-social
determinada e singular) (NEVES, 1993, p. 159).
O caso, em sua problematicidade, esclarece-se como uma pergunta. Ele tem
a forma de uma pergunta. Quem pergunta, pergunta algo (sentido do problema:
sobre o que se pergunta?), a algo (objeto problemático: a quem se pergunta?), por
algo (o fundamento: por o que se pergunta?). Tal como nos esclarece Heidegger,
todo perguntar implica um saber já alguma coisa a respeito5, ao mesmo tempo
em que admite haver um não saber a vencer — razão pela qual não há problemas
para quem está “no início ou no fim da história”. (NEVES, 1993, p. 160). O
aumento do saber não elide o perguntar — os problemas sempre se podem por
de modo diferente, ou mesmo ser inteiramente novos. De toda sorte, sempre se
exigirá a mesma atitude metódica do jurista, que está sempre diante da posição
problemática de cada caso sobre o qual tem que pensar e decidir. Por esta razão,
a solução de qualquer caso não pode ser simplesmente deduzida de um saber
anterior, até porque apenas o “tipo de problema se pode repetir, mas o problema
enquanto tal nunca deixará de ser novo no modo concreto e individualizado do
seu pôr-se” (idem, ibidem).
Parte essencial da lição jurisprudencialista consiste em que o caso não se
torna um caso apenas por força de poder ser reconhecido como tal pelo sistema
jurídico que vai ser utilizado para resolvê-lo. Ao contrário, o caso mantém uma
autonomia problemática com respeito ao sistema — e esta é a razão pela qual ele
se mantém como “prius metodológico” do pensamento jurídico. O caso deve ser
assumido em sua intencionalidade jurídica originária.
Sua originalidade e sua autonomia decorrem do fato de ele não retirar sua
problematicidade jurídica do sistema jurídico. Ele não é um caso jurídico porque
o sistema o declara, já que o sistema jurídico não tem respostas prontas para to-
dos os casos que o desafiam — casos estes que, no entanto, não deixam mesmo
assim de ser compreendidos como casos jurídicos.
A compreensão de um caso jurídico como tal não resulta da sua remissão a
priori ao sistema. No momento em que uma situação da coexistência humana é

5 “Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação prévia do procurado. Para isso, o sentido
do ser já nos deve estar, de alguma maneira, disponível. Já se aludiu: nós nos movemos sempre numa com-
preensão do ser. É dela que brota a questão explícita do sentido do ser e a tendência para o seu conceito. Nós
não sabemos o que diz ‘ser’. Mas já quando perguntamos o que é ‘ser’ nós nos mantemos numa compreensão
do ‘é’, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ‘é’”. (HEIDEGGER, 2000, v. 1, p. 31).

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problematizada, estabelece-se uma exigência jurídico-axiológica (que nasce com


o caso, e que faz surgir o caso como um caso) — e apenas então se impõe a con-
vocação do sistema — tenha este resposta para o problema em questão, ou não.6
Como se vê, sistema e problema são dialeticamente implicados, revelando a
específica intencionalidade metodológica do pensamento jurídico:
Entre o “sistema” e o “problema” opera a dialética (...) que
queremos sublinhar na sua particular dinâmica. Assim, se pode
aceitar-se que o sistema jurídico começa sempre por delimitar e
pré-determinar o campo e o tipo dos problemas no começo de
uma experiência problemática — posto que, obedecendo a pro-
blemática, pelo menos neste domínio, ao esquema de pergunta-
-resposta, os problemas possíveis começam, de um lado, por ser
aqueles que a intencionalidade pressuposta no sistema (com as
possibilidades interrogativas dos seus princípios) admita, e os
modos de os pôr serão, de outro lado, aquele que sejam correla-
tivos das soluções (respostas) que o sistema ofereça — já não é
lícita a unilateral sobrevalorização do sistema que se traduza no
axioma de que os problemas a emergir dessa experiência serão
unicamente os que o sistema suscite e no modo apenas por que
os aceite. Isso porque a experiência problemática, enquanto tam-
bém experiência histórica, vem sempre a alargar-se e a aprofun-
dar-se, em termos de exigir novas perguntas (problemas) e outro
sentido para as respostas (implicadas em novas intenções que
entretanto, e através dos novos problemas, se vão assumindo)
(NEVES, 1993, p. 157).

De um lado, problemas jurídicos são aqueles que o sistema jurídico admite,


e assim a proposição dos problemas é correlativa das soluções sistematicamen-
te disponíveis. Ao mesmo tempo, no entanto, os problemas jurídicos não são
apenas aqueles que o sistema jurídico suscita e aceita. A experiência proble-
mática alarga-se e aprofunda-se na história, impondo novas perguntas (novos
problemas), assim como novos sentidos para as respostas já antes oferecidas. A
historicidade da experiência jurídica revela a insuficiência ou a limitação do sis-
tema como conjunto de respostas disponíveis. Exatamente aí o problema revela
sua autonomia, mostrando-se não como pergunta por uma resposta (solução) já

6 O que constitui uma situação da convivência humana num caso jurídico “é aquela pergunta, dirigida às
situações e relações em que se localiza e em que se traduz o convívio social dos homens uns com os outros,
que se vê fundada e é orientada pela pressuposição de uma particular exigência de sentido a realizar,
ou que se intenta ver cumprido nessas situações e relações; mas as quais no modo como imediatamente
(fenomenologicamente) se oferecem são, do mesmo passo, a base e a ocasião da negatividade problemá-
tica. (Recorde-se o étimo de ‘problema’: pro-blatos — se não necessariamente uma aporia, um problema
é sempre a expressão de um obstáculo, de uma perplexidade, de uma dúvida nascida na relação entre uma
intencional pressuposição, com as suas exigências de cumprimento, e uma situação real que resiste ou é
opaca a esse cumprimento).” (NEVES, 1993, p. 159-160 — grifos nossos).

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disponível, mas como “experiência aporética”, como pergunta de Direito para a


qual o sistema jurídico não tem, a priori, resposta.
A decisão de cada caso impõe uma transformação de sentido ao sistema, que
se reconfigura por força do problema proposto pelo caso. Pela experiência de
cada caso concreto, o pensamento jurídico transcende o sistema em direção a um
novo sistema, numa permanente autotranscensão do sistema jurídico:
Numa palavra de síntese: do sistema que se parte chega-se a um
novo sistema como resultado, pela mediação do problema — ou
mais exactamente, pela mediação da experiência problemática
que entretanto superou o primeiro sentido do sistema e exige
a reconstrução-elaboração de um outro sentido sistemático que
assimile regressiva e reconstrutivamente essa experiência (NE-
VES, 1993, p. 159).

Novos problemas propiciam o enriquecimento do contexto intencional do


sistema, com a criação de novas intenções e soluções integradas na totalidade
normativa. A superação do problema pelo sistema (que dele não sai idêntico a
como era, mas reintegrado) resulta em um novo sentido de sistema como totali-
dade. A reinvenção do sistema por força da experiência de cada problema dá-se
não apenas pela inclusão nele de uma nova resposta (solução), mas também pela
exigência de reintegração sintética (síntese reintegradora) de forma a recobrar
sua congruência (restabelecendo a “convivência correlativa numa totalização in-
tegrante”). Isto é, a absorção de novos elementos de sentido no sistema exige a
sua acomodação sistemática, com impacto assim sobre a totalidade do sistema.
Não se trata da simples adição de mais uma resposta, pois esta adição exige um
esforço hermenêutico de integração sistemática que potencial impacto sobre to-
dos os elementos do sistema.
Esta reintegração (que é um esforço pelo restabelecimento da harmonia do
sistema, por complementaridade, convergência, limitação recíproca ou compro-
misso, ou tensão dialética) ocorre com a assimilação de cada novo problema,
efetivando-se com a realização prático-normativa mesma do Direito. Isto é, o
próprio pensamento do/no caso, que institui o desafio de reintegração sintética,
deve promovê-la.
Tudo isto indica que o sistema jurídico, como totalidade integrada, como
ordem de sentido, não é um dado, mas uma tarefa, não é pressuposto, mas é ob-
jetivo a cumprir, a cada assimilação de resposta (decisão) exigida por cada caso
(e pela pergunta sempre em alguma medida nova que põe). Por força de sua per-
manente transformação, o sistema deve ser admitido como aberto (problemati-
camente aberto), não pleno (intencionalmente não autosuficiente) e autopoiético
(como racionalidade prático-normativa autônoma).

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

Apenas por força do pensamento jurídico, contemporâneo do caso (pensa-


mento fundamentante que pensa o caso como um caso jurídico), inaugura-se a
problematicidade a cada vez,
através da autopressuposição da histórica juridicidade consti-
tuenda, e se oferecem na juridicização de certas novas intenções
axiológico-culturais, quando modalizadas através da referência ao
sentido último do Direito. Não são de outra natureza as intenções
axiológico-jurídicas que fundamentam as objetivações do sistema
normativo positivo; e se com elas se não basta o ordenamento ju-
rídico, é porque não cessa com a definição formal desse sistema
— a traduzir apenas a explicitação de uma experiência jurídica-
-problemática já realizada — o processo histórico da intenção
axiológico-jurídica da comunidade de Direito, permanentemente
impulsionada pela incessante prospecção dos casos jurídicos con-
cretos (NEVES, 1993, p. 161).

Os princípios, como “saber”, são “um compreender antecipado na forma de


um ‘saber do não saber’ prescrutante e fundamentante, sem o qual o procurar não
teria direção e o problema careceria de sentido” (NEVES, 1993, p. 161).
Com isto, o Jurisprudencialismo segue afirmando com grande ênfase que o
Direito é pensamento fundamentante, e não objetivação dada. Para ele, sempre
permanecerá válida a afirmação, muitas vezes reafirmada: “o Direito não se iden-
tifica com o sistema de normas positivas ou sequer com o global sistema jurídico
constituído e vigente (onde já não só as normas participam) num certo momento
histórico” (NEVES, 1993, p. 205).
O pensamento jurídico — a juridicidade que engloba (ou, antes, que mobi-
liza) mas que não se esgota no sistema de objetividades jurídicas — responde
pela atribuição do caráter jurídico ao caso assim como pela normatividade das
normas do sistema jurídico (da normatividade da jurisprudência e da correição
dos resultados da dogmática).7
Vê-se que está em causa a explicitação da juridicidade para além do siste-
ma posto (como um conjunto de objetividades, de normas postas), mas não de

7 “Se a juridicidade se revela assim uma intenção de radical historicidade e como tal terá de ser necessa-
riamente entendida, já por isso é forçoso reconhecer que não é o sistema positivo o titular definidor da
juridicidade, antes, pelo contrário, terá de ver-se nela apenas a precipitação explícita, mas histórica e a
compreender inserindo-a no ritmo histórico, de uma juridicidade que o transcende e que ao realizar-se
historicamente do mesmo passo continuamente o supera. Tocamos, pois, já aqui o decisivo problema da ju-
ridicidade — no qual tudo converge e do qual tudo depende — e revela-se-nos ele assim mais o problema
de uma “intenção” do que o problema de um ‘dado’ ou de um ‘objeto’ e em termos de ter ficado também
claro não ser a sua perspectiva correcta aquela que se orienta do ‘sistema’ para os casos jurídicos, e sim
aquela que se oriente dos casos jurídicos para o sistema.” (NEVES, 1993, 228).

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acordo com uma pretensão do tipo jusnaturalista. Nenhum retorno ao direito


natural é possível, mas se percebe a necessidade de superar as aporias impostas
pelo modelo juspositivista, redutor do Direito ao Direito posto. É isto o que en-
contramos no Jurisprudencialismo, e que o torna uma proposta consistente para
lidar com o direito contemporâneo: trata-se de um modelo não jusnaturalista e
pós-positivista que não que ignora o Direito como pensamento jurídico auto-
fundamentante, em permanentes autotranscendência e reconstrução por força
da historicidade que marca a existência humana. Trata-se de uma proposta de
reconstrução metodológica do direito (isto é, uma explicação daquilo que os ju-
ízes e operadores do direito em geral fazemos) que mais adequadamente explica
a experiência do direito positivo e que, assim, pretende uma melhor teoria do
direito positivo.8
A recusa em identificar o direito com o sistema de objetividades jurídicas
(direito posto) resulta do reconhecimento de que há um sentido de direito, ima-
nente à história mas não simplesmente dado pela história. Um sentido de direito
que não se encontra simplesmente nas respostas jurídicas legadas pelo passado
(seja pelo legislador, seja pela Jurisprudência ou pela doutrina), mas que está em
causa na pergunta que todo problema jurídico impõe, questionando o mundo da
convivência (o homem em comunidade). Que sentido é este? Para o Jurispruden-
cialismo, trata-se do projeto axiológico comunitário, fruto da verificação de três
condições que o possibilitam e condicionam: uma condição “mundano-social”,
outra “antropológico-existencial”, e uma última e essencial “dimensão ética”:
O direito emerge, enquanto uma dimensão específica da realidade
humana, com o sentido e a intencionalidade que resulta da síntese
de três condições: 1) uma condição mundano-social — a dizer-nos
que a primeira condição da exigência e constituição do direito se
manifesta pela pluralidade humana na unicidade do mundo, mundo
único (embora a considerar nele todos os ‘mundos’, natural, social,
cultural) que comungamos e partilhamos através de relações de um
certo tipo situacional-comunicativo e justamente pela mediação
desse mundo (em referência a ele e nos modos por ele possibilita-
dos), as relações sociais. 2) uma condição humana-existencial, em
segundo lugar, e uma vez que aquela relacionação através da so-
cial mediação do mundo o é de seres, nós os homens, que existem
como tais — que só podem existir como tais ou humanamente —
numa dialética de personalidade e de comunidade, de autonomia

8 A necessidade de um melhor tratamento científico da experiência do direito positivo está na raiz do ad-
vento do chamado pós-positivismo jurídico, de que o Jurisprudencialismo é representante. Tal necessidade
decorre das aporias legadas pelo próprio positivismo. Para os limites intensivos e extensivos que invalidam
metodologicamente o modelo positivista-subsuntivo de realização do Direito, que postula uma autonomia
(um ‘em si’) de direito e fato envolvidos no juízo concreto, vide Neves (1967, p. 251-422).

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pessoal e convergência comunitária (...) dialética que já em si ou


sem mais se manifesta numa tensão de contrários, e que sobretudo
pela transfinitude intencional, a mutação temporal e a trancensão
de sentido e axiológica de cada um desses dois pólos, faz surgir
um problema de totalizante integração ou de ordem, enquanto é
uma solução nesse sentido condição mesma da possibilidade da
existência humana (...); 3) uma condição ética, e a condição cujo
reconhecimento é verdadeiramente especificante do direito como
direito, a postular que nas mundanais relações sociais e na ordem
que dê o critério a essas relações pela solução dos problemas hu-
manos da necessária integração comunitária se reconheça a cada
homem a dignidade de sujeito ético, a dignidade da pessoa e assim
um valor indisponível para o poder e a prepotência dos outros e co-
munitariamente responsabilizado (corresponsável e solidário) para
com os outros — só assim ele poderá ser, também simultaneamen-
te, titular de ‘direitos’ (dirigidos aos outros) e de obrigações (exigi-
das pelos outros), em todos os níveis, segundo todos os princípios
e em todas as modalidades estruturais que normativamente se têm
objectivado a constituírem o direito (o direito como específica rea-
lidade objectivo-intencional). (NEVES, 1993, p. 231-232).9

É central o compromisso do direito com um certo sentido de humano, como


desafio e exigência permanentemente reafirmados pelo pensamento jurídico,
enquanto se mantém como pensamento instituidor da juridicidade e do mundo
intersubjetivo estruturado juridicamente. A pergunta que institui um caso como
um caso jurídico, e que está na base de todo pensamento jurídico, é a pergunta
acerca do humano, é a pergunta por uma certa forma de vida em que o humano
se afirma como pessoa — é a pergunta pela pessoa como igualdade, liberdade
e responsabilidade.
Na explicitação da intenção fundante da juridicidade de cada caso e de toda
norma, passa-se da metodologia jurídica à filosofia do Direito. A pergunta que o
Direito é/põe, ao dirigir-se à convivência, é uma pergunta do humano acerca de
si mesmo. E é uma pergunta posta, desde o início, sob a forma de uma exigência:
a exigência da realização do humano como pessoa, vista não como um dado an-
tropológico, mas como uma conquista, como um desafio e uma tarefa.
Para o Jurisprudencialismo, o que fundamentalmente orienta a progressiva
autotranscendência do humano na experiência do Direito (em que o sistema se
reconstitui permanentemente por força de cada caso em sua específica autono-
mia jurídica) é a ideia de Direito como projeto de humanidade, (re)assumida por
uma comunidade que se quer manter como uma comunidade de Direito, que vive

9 Já tratamos destas chamadas condições de emergência do Direito como Direito em outra oportunidade.
(Vide COELHO, 2005).

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

na forma do Direito, a implicar isto em uma certa configuração total da sua forma
de vida no que diz respeito ao modo como responde ao problema universal da
convivência, com o desafio da integração que sempre impõe.
O esclarecimento do tipo de exigência e pergunta pela validade, que o Direi-
to é e institui, dá-se pela apresentação das diferentes condições de emergência
do Direito como Direito, a revelar em que sentido a experiência que o humano
faz de si mesmo na forma do Direito não é necessária nem universal, mas sim-
plesmente possível. Trata-se de uma possível configuração da humanidade, fruto
de uma decisão axiológica (um salto em direção ao ser-pessoa) que tem as suas
condições de possibilidade radicadas na constituição ontológica e antropológica
do humano, mas que não resultam necessariamente dela.
A condição mundanal do humano evidencia a existência humana na dimen-
são inelutável da intersubjetividade. A partilha do mundo impõe a convivência
como condição ontológica da existência, a implicar por sua vez a possibilidade
de toda exigência, e a justiça como questão que põe sempre em causa a comum
fruição do mundo. (NEVES, 2002A, p. 839).
A condição antropológico-social revela o humano em sua abertura e não es-
pecialização. Como ser aberto, o humano reconhece-se como tarefa de si mesmo,
a partir do poder-ser que é a nota característica de seu ser (autotranscendentali-
dade). Como ser não especializado, o humano descobre-se um animal singular-
mente inacabado, indeterminado, carente de ultimar-se (com que as duas notas
implicam-se reciprocamente). A condição antropológica revela-o ainda como
sujeito — sujeito diante de um objeto — e como ser de linguagem, tudo quanto
“culmina na condição axiológico-normativa do próprio homem”, capaz de va-
lores — “sentidos fundamentantes com que o homem compreende e assume os
projectos na sua realização histórica, e enquanto são antecipações de uma pleni-
tude a que ele se abre no seu transcender” (NEVES, 2002A, p. 848).
O ser-com-outros que distingue ontologicamente o humano — “condição de
possibilidade” da “humanidade do homem” e “base constituinte de tudo o que
de essencialmente humano pode advir no mundo humano” — traz o problema
universal da convivência, na forma da tensão entre o próprio e o comum, sempre
potencialmente conflituoso. O eu pessoal e o eu social estabelecem um difícil
equilíbrio. A autonomia mantém-se como atributo das “pessoas que participam
nessa comunidade sem se esgotarem nessa participação”, as quais ao mesmo
tempo retiram sua própria humanidade (como seres de linguagem a partilhar um
mesmo mundo da vida) da coexistência comunitária. Trata-se do problema da
integração, a marcar todas as

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

comunidades de homens que coexistem uns com os outros como


seres de um transcender aberto e que nessa sua aberta coexistência
simultaneamente tanto constituem uma sociedade em que conver-
gem e comungam como assumem uma personalidade em que se
diferenciam e se dispersam (NEVES, 2002A, p. 856).

A tensão estabelece-se entre as duas dimensões essenciais do humano: sua


abertura pessoal e sua autonomia, de um lado, e sua necessária integração comu-
nitária, de outro, de tal sorte que
o comunitário se vê permanentemente ameaçado pela dispersão
e ruptura e não pode, por isso, suspender um contínuo esforço de
organização. Dispersão e ruptura que no plano existencial é diver-
gência e separação; e ao nível dos interesses na fruição do mundo
é contradição e conflito (NEVES, 2002A, p. 847).

Trata-se de um problema “que emerge das próprias dimensões essenciais da


coexistência humana”, a que responde o permanente esforço de institucionali-
zação como “esforço cultural da constituição de uma ordem”. Neste momento,
o Jurisprudencialismo afasta-se da concepção vulgar de que o Direito é um
fenômeno coextensivo ao humano. Diferentemente do lugar comum que iden-
tifica o Direito com qualquer ordem de institucionalização, o Prof. Castanheira
Neves compreende que o Direito não encontra simplesmente já aí seu sentido.
Ele pergunta:
Estamos nestes termos de posse das condições essenciais do direi-
to? Não será o Direito uma intersubjectividade institucionalizada?
E todavia a resposta é negativa: são estas condições necessárias,
mas ainda não as condições suficientes do Direito. Pois nem to-
das as ordens sociais são, só por isso, ordens de Direito (NEVES,
2002A, p. 860-861).

O Direito não é “uma qualquer institucionalização, mas uma institucionali-


zação de uma certa índole”, cuja configuração não resulta simplesmente de sua
natureza. A condição decisiva da emergência do Direito como Direito é a condi-
ção ética, que surpreende o humano como pessoa, possibilidade axiológica, não
necessidade ontológica (nem antropológica). Trata-se do homem como sujeito
ético, marcado pela liberdade, pela pessoalidade de que decorrem as inferências
axiológicas-normativas de sua igualdade e responsabilidade.
Como sujeito, o homem recusa-se enquanto objeto disponível para os outros.
Em sua liberdade, como poder-ser, funda e possibilita todo dever-ser. Ao mesmo
tempo, a liberdade distingue o humano enquanto initium, capaz de inserir a no-
vidade no mundo, e como autor, capaz de biografia.

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

Para além da liberdade, a pessoa afirma-se no reconhecimento, pelo outro, do


ser-pessoa do humano, a denunciar o caráter histórico e a coexistencialidade de
todo valor: o valor do humano não é dado, mas constrói-se enquanto o humano
afirma-se e mantém-se, em sua relação de coexistência histórica, como dignida-
de, no recíproco reconhecimento do seu valor:
Os outros não me reconhecem só porque sou, como quer que onto-
logicamente seja (seja embora sujeito e livre), pois de novo se terá
de afirmar quer isso não impedirá a esse meu “ser” um domínio
que me degrade a mero objecto — só ao reconhecerem-me como
pessoa, os outros imputam a esse meu ser um valor. Que podem
não imputar ou que não têm que imputar necessariamente — a
escravidão foi e é uma realidade humana. (...) É esse valor querido
(...) que me é imputado no meu reconhecimento como pessoa: é o
valor que recusa a minha mera objectivação no mundo da objecti-
vação (manipulável ou disponível) e compreende o meu eu de li-
berdade como um ser indisponível, como um ‘fim em si’ a respeitar
como tal — numa palavra, de novo se diga, com a dignidade da
pessoa. Há, pois, aqui um salto do ontológico-antropológico para
o axiológico — e, possível ele embora à trancensão espiritual do
homem, é preciso querer dá-lo (NEVES, 2002A, p. 865).

O salto axiológico que funda o humano como pessoa é reconhecido como a


transcensão fundamentante que inaugura o Direito como forma (coexistencial)
de vida humana. Este salto — que pode mas não precisa ser dado, e que reinau-
gura a convivência humana como uma vida na forma do Direito — é decisão
existencial que responde ao problema instituído sempre pela experiência que o
humano faz do outro, e de si mesmo diante do outro (de si e da comunidade em
sua tensão constitutiva da integração como um problema e um desafio). Diante
do problema universal da coexistência, o Direito é o pensar em que o humano
lança sobre a situação uma pergunta acerca da sua validade, com que (re)põe
a si mesmo como pessoa, como valor, como dignidade. O salto axiológico do
humano em direção à pessoa dá-se a cada vez em que se põe a pergunta sobre a
juridicidade de um caso e de um critério proposto para resolvê-lo — dá-se toda
vez, portanto, em que o pensamento jurídico se mobiliza e exercita.
Na se trata de um salto que já tenha sido dado e consumado em qualquer
momento da história, a integrar um patrimônio definitivamente adquirido e ga-
rantido. Muito embora seja possível reconstruir os momentos históricos em que
a “humanidade da humanidade” foi (vai) problematicamente (re)construindo-se,
a pessoalidade não passa de ser um atributo problemático de nossa constituição
humana. O ser-pessoa da humanidade permanece um problema e um desafio re-
novados a cada experiência do humano em comunidade, e pode ser confirmado
ou desconfirmado sempre, mantendo-se na dependência da decisão existencial

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e civilizacional do humano, a tomar-se a cada caso jurídico, a cada experiência


concreta do pensamento jurídico.10
Ao chamar a atenção para o sentido civilizacional desta decisão em favor do
Direito — afirmada como decisão instituidora de uma forma de vida caracteris-
ticamente ocidental — o Jurisprudencialismo integra-se em uma vasta reflexão
sobre nossa civilização, sobre sua origem e especialmente sobre seu destino. O
Direito é visto como forma de vida que marca o Ocidente, experiência historica-
mente apenas possível — e não inevitável.
Fenômeno apenas possível, mas não necessário, o Direito não se identifica
com qualquer sistema de normatividade coercitivo regulador da coexistência. Se
é certo que a coexistência sempre exige uma resposta em termos de regulação
público-comunitária, o Direito não se confunde com qualquer resposta. Entre
as diferentes formas possíveis de dar conta do desafio da coexistência humana,
a jurídica é a marcada por uma certa intencionalidade, cuja especificidade dá a
nota de autonomia do jurídico como jurídico. O Direito — mais do que sistema
de objetivações já disponíveis para regular a vida comum (em transcendência
portanto da lex em direção ao jus) — é pensamento crítico-problemático que
interroga o humano em sua experiência comunitária, dirigindo-lhe uma pergunta
pela validade, que é uma pergunta pela justiça no modo como se supera a tensão
entre a autonomia do indivíduo e a sua comunitária integração, ao mesmo tempo
em que é uma pergunta pelo sentido do humano que está em causa ali.
Continuamente reposta em cada experiência microscópica do Direito, a per-
gunta pela validade (que funda cada caso como um caso jurídico e cada elemen-
to do sistema jurídico como de direito) mantém em aberto o que somos como
comunidade e como humanos, instituindo a vida sob a forma do Direito — e
assim a humanidade do humano como liberdade, igualdade e responsabilidade
(a pessoa, em sua dignidade) — como tarefa infinita.

3. SEGUNDA PARTE: FILOSOFIA, RACIONALIDADE E PESSOA NA


FUNDAÇÃO SOCRÁTICA DO OCIDENTE
O Jurisprudencialismo mostra a Pessoa, assim, como uma tarefa, como
um esforço do pensamento que, enquanto pensamento jurídico, retoma para

10 Como assinalamos já: “O fundamento do Direito não pode ser um sentido disponível, mas é a pergunta que
o homem propõe interrogando a sua existência comunitária, seu próprio ser-com-os-outros, e cuja resposta
constitui o princípio fundamental de todo Direito, como decisão ético-existencial fundante: a pergunta
e a resposta instituidora da opção entre o Direito e o não Direito. Em termos radicais, este é o problema
mesmo do Direito, a pergunta que está na base da compreensão de qualquer questão ou caso como um
problema de Direito, e em que pulsa a pergunta fundamental da juridicidade”. (COELHO, 2005, p. 226).

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

permanentemente problematizar a coexistência humana, impondo-lhe a pergunta


pelo sentido de humano que está, a cada caso jurídico, sendo afirmado. Nes-
te sentido, o Direito, como pensamento, continuamente retoma o universo de
normas postas, a cada situação jurídica, reconstituindo este mesmo universo.
Ao fazê-lo, mantém-se a coexistência em permanente e crítica revisão. O pen-
samento jurídico mostra-se como um interrogar sem fim, dirigido às relações
intersubjetivas, que põe sempre em causa o que é o humano, em busca sempre
de sua reafirmação como Pessoa. Este processo, de constante retomada crítica
dos fundamentos da convivência, singulariza a civilização ocidental como civi-
lização fundada no Direito, e faz dela também a civilização em que o humano é
problematicamente afirmado como Pessoa.
Nesta segunda parte, gostaríamos de examinar um dos marcos histórico-
-filosóficos do advento do Ocidente, indicando em que medida esta civilização
nasce exatamente afirmando a infinitude do pensamento, do perguntar, como
seu fundamento. Neste sentido, convidamos o leitor a refletir sobre o sentido da
figura de Sócrates de Atenas na invenção de uma nova atitude diante do mundo
e especialmente da coexistência humana, para sugerir, em conclusão, em que
medida a concepção jurisprudencialista do Direito acerta o alvo, ao indicar o
Direito, em seu compromisso com a Pessoa e como pensamento problematizador
da coexistência, como traço singularizador do Ocidente como Ocidente.

3.1. Sócrates e a zetesis como traço fundamental do pensamento na nova


atitude
Sócrates representa, na alvorada da civilização ocidental, um momento pa-
radigmático do nascimento da Filosofia e da crise da autocompreensão humana
mito-poeticamente fundada. Ele é o símbolo do irredutível criticismo que marca
a nova atitude, fundamentalmente contradogmática.
Com a problematicidade inaugurada, no contexto do séc. VI a.C., pela per-
manente tensão estabelecida entre o sabido e o que sempre é possível concluir
em razão do mostrar-se agora da coisa (sua presença, como fenômeno, como fio
condutor de toda compreensão do mundo, desde quando ruíra a fundamentação
narrativa do mundo, substituída agora por uma fundamentação científica), insta-
la-se a crítica como traço característico da nova forma de pensar. Esta tensão en-
tre o sabido e a presença da coisa não se dá apenas quando o sabido tem origem
e fundamento dogmático-tradicional, mas também quando resulta já da atividade
do pensar no contexto da nova atitude científica. Isto é, todo o saber resultante
da investigação mundana, a partir das coisas enquanto presentes, não deixará de
se por em tensão com a presença da coisa, face à qual poderá desconfirmar-se: a
crítica universal característica da nova forma de pensar dirige-se também contra

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

seus próprios resultados. A presença mantém-se como instância de fundamenta-


ção do saber e assim de confirmação ou desconfirmação do sabido, também face
aos frutos da nova atitude mesma, em que todo saber é permanentemente posto
em questão. Tal criticismo é a marca de nossa civilização como civilização fun-
dada na ciência, e ajuda a compreender em que sentido a ciência é tarefa infinita,
tal como Husserl descreve.11
Este invencível criticismo esclarece outro traço fundamental da Filosofia
como nova atitude: seu caráter investigativo (zetesis). A zetesis é a palavra que
melhor resume a nova atitude (a Filosofia), assinalando o traço fundamental do
novo tipo de pensamento e forma de vida que então inauguram o Ocidente. O
pensamento filosófico mantém-se na condição de uma permanente procura, im-
posta pela presença da coisa como guia para a compreensão do mundo, a tornar
sempre potencialmente insatisfatória qualquer resposta que o passado legue (seja
fundada numa narrativa, seja resultante já de uma zetesis anterior). O homem
filosófico mantém-se na dimensão da procura, e é isto o que o distingue. O que
singulariza a humanidade ocidental não são as respostas que acalenta, mas o
tipo de pergunta que faz: indisponível a explicação sobrenatural e/ou tradicio-
nal (típica fundamentação mito-poética do mundo), narrativamente fundante do
saber, mas agora exposto, todo saber, à presença da coisa, que se mostra sempre
agora, mas nunca sensorialmente na mesma forma, a pergunta sobre o seu sen-
tido renova-se a cada mostração da coisa, a cada olhar a coisa — renovando-se
o desafio e a experiência do pensar (fenômeno). Mais do que as respostas a que
pôde chegar desde seu advento (e são extraordinárias as conquistas da humani-
dade que se forja com a Filosofia, em comparação com os milênios de humani-
dade pré-filosófica), o que distingue o Ocidente como forma de pensar e viver
é o manter-se sempre na posição de quem pergunta, na interrogação do mundo,
numa postura antidogmática que mantém em tensão o sabido e a coisa em sua
presença (mostração, fenômeno).
É evidente que todo perguntar não se compreende senão pelo interesse pela
resposta, e é um endereçar-se do pensamento ao sentido da coisa — perguntar
é querer saber. Mas o manter-se na atitude zetética — na atitude de quem inter-
roga, investiga, pergunta — indica a condição geral da forma de pensar/viver
que é a Filosofia, que não se dá por satisfeita com a resposta: seja ela qual for,
há ensejo e necessidade de novamente perguntar. Paradoxalmente, a civilização
fundada na ciência, tantas vezes exaltada por seus sucessos da razão e conquistas
da certeza, é a civilização fundada na dúvida, que sempre impulsiona o pensar

11 Mobilizamos aqui, para compreender o sentido do Ocidente em sua gênese grega, a interpretação que
Edmund Husserl nos oferece em A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia.

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

através de uma nova pergunta. Não há lugar para certezas absolutas no horizonte
da nova atitude. Ou, talvez, apenas para uma: a de que sempre é possível saber
mais e melhor, de que as respostas até então disponíveis podem e devem ser re-
vistas, por força da presença da coisa.
Nada representa melhor o ponto de vista da Filosofia, como zetesis infinita,
que a vida e o pensamento de Sócrates, com a sua insistente advertência sobre o
valor da consciência do não saber.
Sócrates tem um significado muito especial no advento da Filosofia, e, des-
ta forma, do Ocidente. Assim, por exemplo, ele contribui muito especialmente
para a passagem do pensamento concreto para o pensamento abstrato — que é a
passagem do múltiplo ao Um: a história da filosofia atribui-lhe nada menos que
a invenção do conceito.12 Sua investigação visa não os dados dos sentidos (que
se dão sempre em sua multiplicidade e diversidade invencíveis), mas o conceito,
a partir do que os sentidos nos oferecem (ele é igualmente reconhecido como o
inventor do método indutivo de pesquisa).
No horizonte da ética (que é sempre o seu) sua zetesis dirige-se a:
a essência conceitual de predicados como o bom, o belo, o justo,
etc. (...) Efetivamente, nos diálogos que (...) devem ser considera-
dos como as primeiras obras de Platão, todas as investigações de
Sócrates assumem a forma de perguntas e respostas sobre concei-
tos universais. O que é a coragem? O que é a piedade? O que é o
autodomínio? E até o próprio Xenofonte nota expressamente, em-
bora só de passagem, que Sócrates desenvolvia incessantes inves-
tigações deste tipo, esforçando-se por chegar a uma determinação
de conceitos. (JAEGER, 2001, p. 506-7).

12 Sócrates dá, com isto, um passo importante da passagem do concreto para o abstrato, aprofundando e
estruturando metodicamente o compromisso da nova atitude com a presença da coisa, ao outorgar-lhe
um método (a indução) que lhe permite arrancar-se da ingênua observação (sensível), para atingir a sua
inteligibilidade. O método indutivo permite a passagem da coisa tal como se mostra aos sentidos para a
coisa em sua inteligibilidade, sem implicar qualquer recurso ou remessa para um mundo transcendente. A
inteligibilidade do mundo, que se redescobre com a invenção do conceito, não é um outro mundo, ao lado
ou acima do mundo da natureza, mas é uma dimensão desse mundo mesmo. Sócrates tem, ainda, na inven-
ção da dialética, uma outra extraordinária contribuição para a conformação do pensamento como zetesis.
A dialética permite a descoberta da verdade e a identificação e destruição do erro com recurso apenas ao
logos. Mesmo sem dispor da presença sensível da coisa (que pode estar indisponível em sua mostração aos
sentidos, não podendo ser observada — impossibilidade que pode não ser circunstancial, mas da natureza
mesma da coisa, como é o caso da virtude) a zetesis pode ainda assim progredir, uma vez que a investigação
dialética recorre apenas ao desempenho da linguagem para concluir ou conhecer. O método dialético proce-
de pela comparação de uma certa afirmação com suas consequências, verificando sua compossibilidade, e a
partir disto pensa a sua verdade. Este método pressupõe a linguagem e o pensamento (a ciência) como um
universo de compossibilidades, identificando a verdade com a concordância e a falsidade com a discordân-
cia do logos consigo mesmo — tudo quanto eleva o pensamento a um novo poder de abstração.

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

Sua investigação (zetesis) sobre a virtude, no esforço revolucionário por


compreender o que é o humano e qual sua tarefa enquanto humano, persegue
sempre, a partir do fenômeno, o conceito. Assim é que rejeita a enumeração de
virtudes do saber ético tradicional, em favor da afirmação da existência de uma
virtude — sua investigação não persegue outra coisa senão a virtude, concebida
pela primeira vez no plano do conceito.13
O método socrático (dialética) revela que o pensamento e a linguagem fun-
dam-se numa estrutura de perguntas e respostas, que vale tanto para a procura no
diálogo como no homem sozinho — cujo simples pensamento também se revela
uma zetética estruturada como pergunta-resposta.
Tal estrutura é marcada, no entanto, pela prioridade da perguntar, coetânea
da afirmação socrática de nada saber. O sentido da afirmação de que sua “gran-
de” sabedoria (o oráculo não o tinha indicado como o mais sábio entre os ate-
nienses?), que reside exatamente em saber não saber, encontra-se na indicação
de que todo saber é necessariamente precário, provisório, e que o humano se
encontra sempre em seu encalço. Trata-se da síntese da nova atitude como forma
zetética de viver e de pensar. A Filosofia mantém-se na atitude de quem pergunta,
não cessando como procura pelo saber, porque provocada indefinidamente pela
consciência do não saber.
Também importa observar como a zetesis é, ela mesma, um desafio, uma
tarefa — a qual deve ser assumida pelo homem enquanto se mantém na nova
atitude — mas que pode ser abandonada ou esquecida — com que também a
Filosofia deixa de vigorar como forma de vida. A vida sob ideias infinitas, no
horizonte crítico-problemático de quem se mantém na situação fundamental da
pergunta, da vida zetética e assim contradogmaticamente orientada, não é uma
conquista que se possa considerar definitiva, mas é sempre tarefa, é missão, é
desafio. Trata-se de um esforço, que é preciso sustentar. Os primeiros represen-
tantes da humanidade ocidental, nos sécs. VI, V e IV a.C., tinham consciência
da Filosofia como tarefa e explicitamente assumiram-na como uma missão, com
consciência da originalidade e do ineditismo de sua forma de vida, do desafio
que implica e dos riscos que acarreta.
Uma volta a uma vida dogmaticamente fincada em si mesma sempre é possí-
vel. O polemos que a Filosofia instaura contra a forma dogmática de vida (contra
um mundo marcado por respostas que calam as perguntas, porque inúteis, incon-
venientes ou tolas) mantém-se sempre vigente.

13 Com que também se forja o conceito de homem. Para isto, vide Reale (2002).

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

Ninguém parece tê-lo compreendido melhor do que Platão, cujo retrato de


Sócrates é minuciosamente elaborado para representar a Filosofia como nova
forma de vida problematicamente afirmada como tarefa, a mobilizar todas as
dimensões da alma e a comprometer-lhe inteiramente a vida.

3.2. Sócrates e o cuidado da alma (de si) como tarefa e desafio


Ao mesmo tempo em que afirma o pensar como um permanente perguntar,
Sócrates propugna por uma reforma do humano, tal que o torne capaz desta nova
enorme tarefa. Com isto, o próprio humano se torna tarefa, e se estabelece a pe-
dra fundamental do processo histórico de construção do humano como Pessoa.
Temos aqui, sem dúvida, um primeiro importante passo deste processo, embora
evidentemente não o último — primeiro passo que Sócrates dá ao reformular o
conceito grego de alma.
O papel de Sócrates na história da palavra psyche tem sido acentuado des-
de os trabalhos de A. E. Taylor e J. Burnet, que pioneiramente lhe imputaram
a autoria do conceito de alma tal que dominaria o pensamento ocidental.14 Há
uma certa tendência em seus trabalhos — e em parte também na argumentação
de quem fundamentalmente os acompanha — em diminuir a importância das
outras contribuições do séc. V e do séc. VI a este processo. Com respeito aos
pré-socráticos, não se lhes poderia atribuir a invenção da alma (e assim do hu-
mano, tal como o Ocidente o passaria a conceber) porque seu uso da palavra
psyche apenas acentuaria a desindividuação do humano, também característica
do pensamento homérico.1516

14 Taylor (1961, p. 111): “não há uma só passagem, na literatura anterior, em que a psyche signifique o que
alma tem significado para nós durante tantos séculos: a personalidade consciente que pode ser sábia ou
estúpida, virtuosa ou viciosa, de acordo com a tendência e a disciplina que recebe.”
15 Taylor (1961, p. 112) não deixa de ressalvar Heráclito, a quem, no entanto, não concede os créditos pela
invenção do conceito ocidental de alma: “É verdade que na filosofia de Heráclito a alma — que supõe que
não é “ar”, mas “fogo” — era muito importante; mas existe uma forte contradição em seu pensamento
quando diz, por uma parte, que deve ser uma espécie de individualidade permanente que se mantém ao
passar pelas vicissitudes do nascimento, da morte e do renascimento, e, por outra, que é unicamente uma
porção temporalmente separada do fogo cósmico.”
16 De fato a integração da investigação sobre a alma e o humano nos quadros da pesquisa mais ampla sobre
o universo, no séc. VI, concebe a alma em sua integração à ordem cósmica. Embora seja de admitir que
“é na segunda metade do séc. V que encontramos os primeiros documentos seguros e é esta época que de-
vemos considerar como o momento em que teve início o processo de intelectualização da palavra psyche”
(SARRI, 1997, p, 147), vale recuperar alguns destes passos em seu sentido fundamental, no esforço por
compreender como o modo como nos autocompreendemos como humanos transforma-se neste período, e
como esta transformação participa essencialmente do que vimos chamando de Filosofia como nova atitude
(ou com ela se confunde).

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SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZAÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA

Falar sobre o papel de Sócrates impõe problemas difíceis com respeito à de-
terminação de seu lugar na história do pensamento grego. Acerca desta questão,
há posições tão extremas como a dos referidos Taylor e Burnet, de um lado —
para quem quase toda a filosofia de Platão é socrática (eis que, segundo os auto-
res da escola escocesa, sempre que Sócrates aparece em seus diálogos, ele expo-
ria o pensamento do Sócrates histórico) — e de O. Gigon (no polêmico Sokrates.
Sein Bild in Dichtung und Geschichte), de outro (para quem nada podemos saber
sobre o Sócrates histórico e seu pensamento, além de que nada sabemos).17
Para o nosso intento, basta verificar o sentido revolucionário que o conceito
de humano, em razão da mudança na compreensão da alma, adquire no séc. V. À
revolução em causa, o nome de Sócrates, de uma forma ou de outra, está ligado:
A originalidade do ensinamento socrático é formada pelos temas
específicos que a tradição reconhecerá como aqueles que com-
põem para a história a figura do Sócrates moralista e de sua doutri-
na. Esses temas são o tema do homem interior (psyche), o tema da
verdadeira sabedoria (sophrosyne) e o tema da virtude (arete). O
tema do homem interior ou da “alma” (psyche) no sentido especi-
ficamente socrático, e que assinala a profunda revolução no curso
do pensamento antropológico grego, constitui o motivo dominante
da interpelação dirigida por Sócrates aos cidadãos de Atenas, tendo
em vista mostrar-lhes que o verdadeiro valor do homem reside no
único bem inatingível pela inconstância da fortuna, a incerteza do
futuro, a precariedade do sucesso, as vicissitudes da vida: o bem da
alma. (VAZ, 1999, p. 95).

Já discutimos o significado de Sócrates na afirmação da Filosofia como nova


forma de vida forjada na Grécia antiga. Ele sintetiza e simboliza a essência da
nova atitude, assumindo o não saber como o ponto de partida insuperável de sua
investigação. A zetesis socrática, diferentemente da ciência do séc. VI, dirige-
-se ao humano e aos problemas humanos. Ao fazê-lo, consuma a alma como o
problema filosófico por excelência. Trazer a filosofia do céu para a cidade é um
empenho do séc. V, em que se integra também o magistério dos sofistas, sempre
dedicados a pensar os problemas da cidade e do homem. Sócrates participa deste
movimento, mas de uma forma muito peculiar. Sua reflexão sobre o humano é
uma reflexão sobre a alma. Toda a sua crítica à tradição e aos seus contemporâ-
neos tem por ponto de partida o problema da alma. Sua crítica e sua procura são
permanentemente impulsionadas pela pergunta sobre a alma, e sobre o sentido
da vida humana a partir da identificação do homem com sua alma enquanto sede
da consciência, liberdade e responsabilidade morais.

17 Para a questão socrática, vide Magalhães-Vilhena (1984), G. Reale (1992, p. 247 e ss.) e Vaz (1999, p. 94):
“Numa perspectiva da história das ideias, devemos dar primazia ao Sócrates platônico”.

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NUNO M. M. SANTOS COELHO

A identificação socrática do homem com a alma18 é o ponto de chegada do


processo de interiorização do valor ético, lançando as bases permanentes da
autocompreensão humana ocidental, que não por outro motivo reiteradamen-
te convoca Sócrates entre os seus fundadores (muitas vezes, ao lado de Jesus).
Consuma-se uma revolução dos valores humanos, adquirindo prioridade os bens
internos (os bens da alma: sabedoria, temperança, coragem, justiça) em detri-
mento dos bens externos (braços ágeis, pés ligeiros, propriedades e exércitos):
Nesse ínterim, fora conquistada uma consciência da psyche que
invertia radicalmente a concepção homérica: de vã sombra, priva-
da de sensibilidade e de conhecimento, passou-se a fazer coincidir
com ela a natureza do homem. Consequentemente, a expressão da
“psyche” vinha a impor-se como expressão da própria essência
do homem. (REALE, 2002, p. 135 — grifos no original).

A zetesis socrática tem por objeto estes bens descobertos como essenciais.
Na medida porém em que são virtudes da alma, e sendo a alma a sede da inteli-
gência, as virtudes da alma não são mais que uma, a sabedoria. Todas as virtudes
humanas, se são verdadeiramente virtudes, são formas de sabedoria. A identifi-
cação do humano com sua alma (sede da sua consciência inteligente) permite
compreender a convicção de Sócrates de que toda má ação e todo vício tem a
ignorância por fundamento. Não pode ser outra a conclusão de Sócrates, desde
quando identificou o humano com a alma — que é o que está no humano, no
final das contas, a comandar todas as ações. Toda ação boa decorrerá de um bom
funcionamento da inteligência (que o homem essencialmente é, ou pode ser —
ser for virtuoso), assim como toda ação má decorrerá de um mau funcionamento
da inteligência, de um déficit de inteligência, de um déficit de alma: de um vício
da alma (da ignorância). Ser bom ou mau — inteligente ou ignorante — porém,
está ao alcance do homem.19
A alma é capaz de virtudes e vícios porque aberta à autoconformação, o que
impõe ao humano a tarefa de diligenciar para que ela seja tão boa quanto possí-
vel. Muito embora todo vício e toda má ação decorram da ignorância, o homem
vicioso não está por isso desde sempre desculpado. O intelectualismo socrático

18 Lembremo-nos de Sócrates investigando a alma como a essência e comando do corpo com recurso ana-
lógico à atividade do pintor; a forma exterior (o que se passa com o corpo) apenas exprime a alma, que,
embora invisível, é o decisivo. (Vide XENOFONTE, 1972, p. 126 — Memoráveis, III, 10).
19 Há o problema, de que não cuidamos aqui, da afirmação socrática de que apenas o homem grávido do
saber pode-se tornar sábio (PLATÃO, 1974, p. 897 — Teeteto, 150) — que põe sérios problemas à questão
da responsabilidade moral, se interpretarmos que ela implica haver homens condenados ao mal porque
condenados à ignorância (estéreis). Não deve ser esta a hermenêutica que deslinda, porém, a questão, eis
que Sócrates considera-se entre os estéreis — razão pela qual mantém-se em seu não saber.

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não elide a responsabilidade do homem por o que ele mesmo é — sábio ou igno-
rante, e, assim, virtuoso ou perverso.
A descoberta do homem como alma, e a afirmação da alma como consciência
e inteligência, impõem ao homem o desafio de cuidar de si mesmo, de cuidar da
própria alma:
A identificação da alma, cujo “cuidado” é nosso primeiro dever,
com o eu normal, significa, naturalmente, que o cuidado não con-
sistirá na prática de abstenções e purificações rituais, mas no cul-
tivo do pensamento racional e da conduta racional. O dever de um
homem consistirá em “dar conta”, de ter uma justificação racional
do que crê e do que faz. (TAYLOR, 1961, p. 115).

Cuidar da alma é propiciar que ela seja tão boa quanto possível. A ideia gre-
ga de excelência está ligada à plenitude da coisa: cuidar da alma é diligenciar
sempre para que ela seja sempre e a cada vez, maximamente, alma. O que quer
dizer: torná-la (tornar-se) inteligente, sábia, no domínio da verdade e não refém
da opinião. A opinião é a expressão da ignorância e a raiz de toda perversidade,
de que o homem pode livrar-se ao manter-se lúcido (sábio, inteligente).
Manter-se lúcido é o desafio permanente e insuperável da nova atitude, tal
como Sócrates a viveu, com a consciência de que se trata de uma tarefa sem
fim, de um programa sempre reinstituído a partir da assunção de que o saber de
que dispomos é sempre precário, provisório, insuficiente. O cuidado de si, como
cuidado da alma, mantém-se como tarefa infinita na medida em que o homem
sabe que não sabe.
A zetesis infinita que caracteriza fundamentalmente a nova atitude, e que é
exemplarmente proposta por Sócrates como forma de vida, torna-se uma pro-
cura por si mesmo. A alma que tem o logos afirma a si mesma como problema
e desafio perpétuos, a serem indefinidamente retomados por cada homem e por
cada geração.
Sócrates tem consciência do caráter revolucionário da nova concepção de
humano que propõe, e de que participa do nascimento de uma nova humanidade,
mais autenticamente humana porque comprometida consigo mesma enquanto
alma — consciência, lucidez, inteligência. Está, porém, também consciente de
que o soerguer desta nova forma de vida, desta nova humanidade, é tributária e
dependente de um permanente esforço, de uma dedicação ao que ele chama de
cuidado da alma, a confundir-se com o estado de vigília antidogmático de quem
se mantém na dimensão da pergunta, não importa o quanto se saiba já (vide
PATOČKA, 2003, p. 335). A nova humanidade em vigília instaura e depende de

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um homem que se mantém no encalço de si mesmo, que assume o cuidado da


alma, como zetesis, como o fundamento de sua vida.
Ao mesmo tempo em que é um ponto de partida, Sócrates significa um ponto
de chegada muito importante na história da construção da autocompreensão do
humano como pessoa. Se em Homero já encontramos alguns dos traços anteci-
padores20, se mais um passo pode ser verificado em Hesíodo e outras expressões
da arte e da literatura, e outro com a nascente ciência jônica, é no séc. V que se
pode testemunhar a cabal transformação acerca do que se concebe como o ser
humano. Os contemporâneos de Sócrates, atenienses do séc. V, estavam ainda
habituados a usar a palavra psyche no sentido com que Homero o usava.21 Mas
este sentido foi progressivamente lançado para o segundo plano na cultura e na
língua grega nos decênios seguintes22, vindo a instalar-se aquele que seria o seu
significado por milênios, como cerne da civilização ocidental. Desde então,
Durante mais de dois mil anos o europeu civilizado supõe que tem
uma alma, algo que é a sede de sua inteligência e de seu caráter
moral, normais e em estado de vigília, e que, uma vez que esta
alma confunde-se com ele mesmo, ou é, em todo caso, o mais im-
portante nele, sua tarefa suprema na vida é fazê-la o melhor possí-
vel. (TAYLOR, 1961, p. 110).

Sócrates, retratado por Platão, expressa a consciência da nova atitude acerca


de seu significado civilizacional. A Filosofia sabe, já então, que mudaria o mundo:
Sobre o futuro, porém, desejo fazer-vos um vaticínio, meus con-
denadores; com efeito, eis-me chegado àquele momento em que

20 Aspecto que não pode discutir-se aqui. Mas não há dúvidas de que toda a história da construção da pessoa
encontra em Homero importantes condições de possibilidade, se não mais do que isto. Assim, por exemplo,
pense-se no tema do autodomínio e nos rudimentos de uma psicologia da decisão presentes na passagem
que opõe Aquiles e Agamenon na disputa por Briseida — em que Atena intervém. Mesmo a comparação
entre a Ilíada e a Odisséia (que não são contemporâneas, a análise filológica e histórica mostrando nítida a
anterioridade do primeiro poema) poderia ser convocada para mostrar como este processo evolve também
ali: “A Odisseia supõe, pois, uma mais fina percepção das diferenças que há entre os homens (...) Também se
afina a percepção das mudanças que o indivíduo experimenta ao longo do tempo.” (SNELL, 2003, p. 84-85).
21 Razão da estranheza face ao pensamento socrático e condição sine qua non da graça das piadas dirigidas
contra Sócrates em As Nuvens, em que Aristófanes brinca com os conceitos homérico e socrático de alma
ao chamar os membros do pensatório de “pensadores meditabundos”. (ARISTÓFANES, 1978, p. 182 —
As Nuvens 100).
22 Esta nova forma de dizer o homem, que sucede a passagem de Sócrates pela cena de Atenas, é o principal
argumento em favor de sua realidade histórica. Taylor (1963, p. 110-111): “o notável é que este conceito
de alma, como sede da inteligência e do caráter normais, é já coisa corrente na literatura da geração que
seguiu imediatamente à morte de Sócrates: o terreno comum de Isócrates, Platão e de Xenofonte, e que
portanto não pode ser descoberta de nenhum deles. Não aparece, ou quase não aparece, na literatura das
épocas anteriores. Portanto, deve ter sua origem em algum contemporâneo de Sócrates, e não temos notícia
de nenhum pensador contemporâneo ao qual se possa atribuir este conceito que não seja o próprio Sócra-
tes, que se apresenta ensinando-o, tanto nas páginas de Platão como nas de Xenofonte.”

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os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos


afianço, homens que me mandais matar, que o castigo vos alcan-
çará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro
que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que
vos livraríeis de dar contas de vossa vida; mas o resultado será
inteiramente oposto, eu vô-lo asseguro. Serão mais numerosos os
que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não o per-
cebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens,
e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens,
evitareis que alguém vos repreenda a má vida estais enganados;
essa não é uma forma de libertação, nem é inteiramente eficaz,
nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em
vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor pos-
sível. Com esse vaticínio, despeço-me de vós que me condenas-
tes. (PLATÃO, 1972, p. 31-32 — Apologia de Sócrates, 39 c-d).

Sócrates morre convicto de ter plantado a nova atitude, que sobreviverá —


e com ela, Sócrates. O pior castigo acometerá quem, injusto, condena-o. Mas
nunca a nova atitude se imporá mecanicamente: mas apenas pela reassunção da
tarefa. Por isso pede, aos seus amigos, que reassumam como modelo a forma
como ele viveu a vida, o que implica não pensar o que ele pensou, mas manter-
-se, como ele, na situação de quem pergunta:
Contudo, só tenho um pedido que lhes faça: quando meus filhos
crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormen-
tos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da
riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter
um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não
cuidares do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se
vós o fizerdes, eu terei recebido de vós a justiça; eu, e meus filhos
também. (PLATÃO, 1972, p. 33 — Apologia de Sócrates, 41d).

A humanidade descobre-se (afirma-se) tarefa: manter-nos no domínio de


nós mesmos, em vigília. Manter-nos lúcidos, em permanente postura crítico-
problemática, tarefa que é o cuidado de si — que é zetesis — afinal de contas,
“uma vida sem exame não é digna de um ser humano.” (PLATÃO, 1972, p. 28
— Apologia de Sócrates, 38 a).

4. CONCLUSÕES
A contribuição de Sócrates ao processo de construção do Ocidente como
civilização fundada em uma nova atitude espiritual (marcada pela infinita e crí-
tica problematização do mundo, e em especial da coexistência humana) consiste
assim na indicação do caráter infinito do pensamento enquanto procura, o qual,
dirigido ao homem e titularizado pelo homem, coincide com o esforço huma-
no em manter-se virtuoso. Se a virtude é sabedoria (lucidez, inteligência), se

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é excelência no pensar (que torna o homem capaz de ser corajoso, temperante,


generoso, justo, uma vez que sem lucidez nenhuma virtude subsiste — todas as
virtudes são formas de sabedoria), e se o pensar é um desafio infinito, sempre
devendo ser renovado (dado que o não saber é sempre de alguma forma inven-
cível) — então o esforço por conquistar e manter-se na virtude é também um
esforço infinito, confundindo-se a afirmação do valor do homem (titular e objeto
da procura) e o desempenho da própria procura (do pensar).
Com isto, o valor do humano mantém-se, em Sócrates, como algo sempre
por conquistar, como algo sempre por determinar, a cada experiência da procura,
da zetesis. O problema da realização humana, dependente agora do desempenho
no cuidado da alma, vincula-se à justiça como desafio permanente. A justiça, no
séc. V, com os sofistas e Sócrates, confirma-se como o problema por excelência
do novo pensamento, vindo a marcar o esforço do humano por pensar a sua
própria natureza (com que se aprofunda a revolução da forma de pensar que o
advento da nova atitude ao mesmo tempo é).23
A constante problematização do mundo e do humano é ao mesmo tempo o
empenho e a pergunta sempre reposta acerca do valor do humano como humano.
Neste momento, saltam aos olhos as homologias entre a compreensão do
Ocidente como civilização fundada pela Filosofia como atitude espiritual, pa-
radigmaticamente reconstruída aqui com recurso ao pensamento socrático, e a
compreensão do Ocidente como civilização fundada no Direito, como propõe o
Prof. Castanheira Neves, que o mostra como pensamento crítico-problemático
infinitamente empenhado na reconstrução do sistema jurídico por força de cada
experiência jurídica (caso) particular — pensamento pelo qual ao mesmo tempo
o humano constrói a si mesmo como pessoa, em sua liberdade, igualdade e res-
ponsabilidade. O Jurisprudencialismo sugere o Direito como forma de pensar e
viver a coexistência humana que singulariza a civilização ocidental, concebida
como tarefa. Ao fazê-lo, propõe uma Teoria do Direito que está à altura do signi-
ficado civilizacional do Direito como Direito.
Assim como Sócrates, porém, ele nos adverte de que não se trata de uma
conquista de uma vez por todos assentada, mas de um desafio a cada vez renova-
do. Compreendendo embora que o Direito é a possibilidade humana do humano,
não deixa de admitir que o Direito seja apenas uma forma possível de viver e

23 Representando aqui por Sócrates, o novo pensamento pensa e forja o novo homem como o problema da
justiça, o que fica sempre muito claro na forma com que o problema do homem (reconstruído como alma,
que se torna problema filosófico central) e o problema da polis se integram. A teoria da polis e a teoria da
alma, para o grego, estão sempre implicadas.

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de pensar a coexistência. Não sendo necessário, o Direito pode ser ultrapassa-


do, pelo esquecimento desta que é uma possibilidade própria de nossa civiliza-
ção. Como simples possibilidade, o Direito mantém-se como desafio e esforço:
nele mantemo-nos enquanto reafirmamo-nos como pessoas, pelo pensamento
crítico-zetético-problemático-racional.
O pensamento de Sócrates, assim como o do Prof. Castanheira Neves, con-
sistem em um autoesclarecimento cultural, acerca do sentido próprio de nossa
forma de vida. Ao mesmo tempo, porém, consistem em um chamado, convidan-
do-nos e desafiando-nos a mantermo-nos dignos dela.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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