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e a topologia da exclusão
Silvana de Souza Ramos
resumo abstract
meiro lugar, o filósofo francês afirma que notamos que esse direito exige a igualdade
os direitos do homem não são uma espécie de condições dos diferentes atores sociais
de véu, pois sua função não é mascarar a para expressar seus interesses, perspectivas e
dissolução dos liames sociais em função da opiniões (Young, 2000), e para debatê-los em
prevalência do indivíduo, mas sim atestar e, público. Quer dizer, embora a liberdade de
ao mesmo tempo, suscitar uma nova rede expressão esteja no horizonte da experiência
de relações entre os homens (Lefort, 1991, democrática moderna, a esfera pública está
pp. 47-8). Em outras palavras, a liberdade de longe de ser um dado. Ela é tão somente
expressão não deve ser concebida a partir do algo a ser conquistado, pois sua instituição
modelo da propriedade dos bens materiais, é resultado de uma ação coletiva que cava
cujo portador é o indivíduo burguês, pois um espaço comum, sendo capaz de sustentá-
ela é, em seu aspecto mais fundamental, -lo ao longo do tempo. Essa exigência de
uma liberdade de relações. A liberdade de criação mostra que a igualdade de acesso
expressão admite que a cada qual seja dada ao direito à liberdade de expressão não é
a possibilidade de se dirigir aos outros, e natural, porquanto depende da construção
de ouvi-los: eis que um espaço simbólico se e da manutenção de um espaço artificial
institui, sem fronteiras definidas, subtraído de debate em que todos e todas poderiam
a toda autoridade que pretenda regê-lo ou gozar desse mesmo direito.
decidir em seu lugar sobre o que é ou não
pensável, sobre o que é ou não dizível. Nesse EXCLUSÃO E INCLUSÃO
espaço, a fala enquanto tal mostra-se inde-
pendente da sanção de qualquer indivíduo A democracia moderna, uma vez que ainda
particular, quer dizer, ela não é propriedade não garante a todos os mesmos direitos, deixa
de ninguém, e não deve ser, por isso mesmo, entrever, não uma exclusão nomeada e explí-
privilégio de alguns. cita, como no caso da Atenas antiga, mas
Essa formulação não deve ser lida como sim uma exclusão pautada pela invisibilidade
uma simples descrição do regime democrá- e pelo silenciamento de determinados gru-
tico, como se estivéssemos diante de seu pos sociais. Iris Young, ao analisar as cinco
quadro acabado. Pelo contrário, o que está faces da opressão no interior dos regimes
em jogo aqui é o horizonte a partir do qual democráticos, a exemplo do estadunidense,
a experiência democrática visa a realizar toca nesse assunto ao mostrar que a discri-
o debate público. Esse horizonte desvela minação, a injustiça e a opressão têm um
uma liberdade de expressão que não pode elo estrutural com uma determinada exclusão
se realizar no interior de uma experiência topológica (Young, 2004). Há muros invisí-
de isolamento em que a fala de alguém seria veis que impedem o livre acesso de todos e
livre à medida que se propagasse de maneira todas a lugares de fala e de decisão, tanto no
espontânea, sem encontrar diante de si, num âmbito social quanto nas instâncias políticas.
mesmo espaço e sob as mesmas condições, Assim, os marcados por certos traços étnicos
um outro com o qual estabeleceria um diá- e culturais, por diferenças de gênero, de idade,
logo. Ao compreendermos a liberdade de de classe e de formação são cotidianamente
expressão a partir desse espaço de relações, impedidos de decidir sobre a organização do
O POLITICAMENTE CORRETO
Mas isso não significa que nunca se fale
sobre o assunto. Na verdade, desde a emer-
gência no final dos anos 60 de uma série
de movimentos sociais e políticos cuja pauta por exemplo. Pelo contrário, a democracia
era predominantemente marcada por uma moderna pretende-se universalmente inclu-
recusa desse tipo de opressão – não ape- siva. Porém, uma vez que os direitos fun-
nas de classe, mas também de gênero, de damentais ainda não são desfrutados por
raça, de cultura, etc. –, há um esforço para certos grupos, para dar visibilidade a essa
que se produzam políticas públicas visando exclusão, estes assumem determinadas iden-
a sanar esse tipo de injustiça. Ao mesmo tidades – em busca de cidadania, eles se
tempo, há uma constante reivindicação des- apresentam como mulheres, gays, lésbicas,
ses grupos para que eles sejam representa- negros, índios, etc. – para que se torne explí-
dos e para que seja respeitado o seu lugar cita a injustiça e a opressão sofrida por eles.
de fala. É nesse novo contexto de luta que Ao demarcar identidades, esses grupos dão
a expressão “politicamente correto” inicia visibilidade à topologia da exclusão (como
sua história. Ela aparece no contexto das se dissessem: “nós, negros, mulheres, gays,
chamadas guerras culturais dos anos 1980 e pobres, migrantes, etc., nós não estamos aí”).
1990, nos Estados Unidos da América. Ainda A exclusão cotidiana os torna vulneráveis
que ela apareça em alguns textos da New a uma série de opressões, de modo que o
Left, foi seu uso pela direita estadunidense esforço para tornar audível à sociedade dis-
que lhe conferiu o sentido de acusação de cursos aos quais ela não costuma dar voz
certo autoritarismo policialesco da esquerda é uma forma de luta política.
no uso da linguagem. O ato de experimen- Os que reclamam das exigências do dis-
tar uma nomenclatura alternativa, na tenta- curso politicamente correto se incomodam
tiva de conformar a linguagem à identidade com a afirmação dessas identidades. Afir-
reclamada pelos grupos sujeitos à opressão, mam, por sua vez, falar em nome de todos,
de modo a incluí-los no debate, oferece a e não do interesse de alguns, acusam os
oportunidade, aos que defendem uma noção movimentos sociais de exigir privilégios.
abstrata de liberdade de expressão, de utilizar Mas o que acontece é exatamente o contrá-
a seguinte tática: vitimar-se para silenciar rio. Ao falar a partir de sua particularidade,
esse outro que tenta frequentar um espaço de sua identidade enquanto excluídos, esses
antes inacessível. grupos esclarecem aos demais que somente
Há aqui uma inversão do problema, pois, ao ouvi-los serão capazes de instaurar uma
lembremos, a democracia moderna abre o verdadeira universalidade. São esses gru-
horizonte de universalização dos direitos. pos, portanto, que enunciam a realização
Por consequência, ela não prescreve as carac- da universalidade democrática, ao passo que
terísticas que garantiriam a participação na os incomodados nada mais fazem do que
cidadania, incluindo-se aí o direito à fala defender uma igualdade abstrata.
pública. Uma vez que está aberta a todos, a Nestes termos, o caráter ideológico que
cidadania recusa o ato de identificar aqueles naturaliza a topologia da exclusão é deci-
que fazem parte da comunidade política. sivo. As ideologias fornecem uma carica-
Ela não diz que apenas são cidadãos os tura do outro, segundo a qual ele é visado
homens, os nascidos na cidade, os que pos- e julgado social e moralmente. O outro, no
suem determinada renda, os que são livres, caso, é exatamente aquele que está ausente
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