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Carlos Caixeta de Queiroz

Fabiano José Alves de Souza

2ª edição atualizada por


Carlos Caixeta de Queiroz

Antropologia iv

2ª EDIÇÃO

Montes Claros/MG - 2015


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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES

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2015
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Chefe do departamento de Política e Ciências Sociais/Unimontes


Carlos Caixeta de Queiroz
Autores
Carlos Caixeta de Queiroz
Bacharel em Ciências Sociais – Antropologia pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFMG. Professor de antropologia
do Departamento de Política e Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes
Claros – Unimontes.

Fabiano José Alves de Souza


Doutorando em Antropologia pela Universidade de São Carlos. Mestre em
Sociologia – Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Ciências Sociais
– Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Professor de Antropologia
do Departamento de Política e Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes
Claros – Unimontes.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 Situando a Perspectiva Interpretativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.3 A Antropologia Interpretativa de Geertz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.4 A Perspectiva Interpretativa de Marshall Salhins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

1.5 Contribuição Teórica do Antropólogo Marshall Sahlins à Teoria Antropológica . . . . 21

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
A Antropologia Pós-Moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2.2 Antropologia Pós-Moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Referências Básicas e Complementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Atividades de Aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Ciências Sociais - Antropologia IV

Apresentação
A disciplina Antropologia IV é parte constituinte da estrutura curricular do Curso de Ciências
Sociais - Licenciatura da Universidade Aberta do Brasil (UAB), da Universidade Estadual de Mon-
tes Claros.
Esta disciplina é dedicada à reflexão sobre a abordagem interpretativa e a chamada antro-
pologia “pós-moderna” ou “crítica”. A antropologia interpretativa será abordada a partir de alguns
conceitos, temas e método forjados pelo antropólogo estadunidense Clifford Geertz, considera-
do um dos maiores expoentes da antropologia interpretativa ou simbólica. Abordaremos, ainda,
um aspecto da antropologia de Marshall Sahlins, a relação entre estrutura e história. E, por fim,
analisaremos alguns temas propostos pela chamada antropologia pós-moderna.
Os objetivos pretendidos são:
• Compreender e discutir as principais contribuições teórico/metodológica da antropologia
de Clifford Geertz e da chamada antropologia pós-moderna;
• Continuar a introduzir os estudantes no conhecimento das principais vertentes da teoria an-
tropológica;
• Possibilitar ao aluno uma incursão na constituição histórico-teórica da antropologia.
A disciplina está organizada, portanto, em dois eixos temáticos:
Tema 1 - A antropologia interpretativaAbordaremos a antropologia elaborada por Clifford
Geertz, centralizando as discussões em torno do método, conceitos e categorias forjadas por
Geertz para a compreensão da realidade sociocultural.
Tema 2 - Antropologia Pós-moderna
As discussões que faremos neste eixo temático estarão centralizadas nas críticas que um
grupo de antropólogos estadunidenses fez à antropologia, principalmente as críticas aos textos
etnográficos clássicos.

Os autores

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Ciências Sociais - Antropologia IV

Unidade 1
A Antropologia Interpretativa de
Clifford Geertz
Carlos Caixeta de Queiroz
Fabiano José Alves de Souza

1.1 Introdução
Apresentaremos nesta Unidade a Antropologia Simbólica ou interpretativa, que tem como
um dos seus maiores representantes o antropólogo estadunidense Clifford Geertz, que conce-
beu a antropologia como uma ciência interpretativa. O nosso objetivo, então, é mapear algumas
noções da antropologia fundada por Geertz. Inicialmente, mostraremos a concepção de cultura
como sistemas de símbolos e significados compartilhados. Em seguida, situaremos a orientação
teórica e metodológica de Geertz.

1.2 Situando a Perspectiva


Interpretativa
Antes de entrarmos propriamente na discussão sobre algumas noções da abordagem inter- Dica
pretativa na antropologia, vamos comentar rapidamente um texto de Roberto Cardoso de Oli-
veira com o objetivo de situar a perspectiva interpretativa diante de outras tradições do conheci- Além do texto de Ro-
berto Cardoso de Olivei-
mento antropológico. E, dessa forma, tentarmos compreender as contribuições da Antropologia ra, sugerimos a leitura
Interpretativa para a compreensão da dimensão simbólica da ação social. dos seguintes textos de
Roberto Cardoso de Oliveira em seu texto “Tempo e Tradição: interpretando a antropologia”, Clifford Geertz para se
publicado em seu livro Sobre o Pensamento Antropológico, ao elaborar uma perspectiva histó- ter uma compreensão
rica da Antropologia, chama a atenção para o seguinte aspecto: os paradigmas na Antropologia introdutória sobre a
concepção de antro-
coexistem no tempo, tendo cada um certa eficácia. Diferente das Ciências Naturais, em que um pologia interpretativa:
paradigma substituiria o outro via revoluções, nas Ciências Sociais os paradigmas se complemen- “Misturas de gêneros:
tam. Cardoso de Oliveira afirma, então, que a história da antropologia pode ser entendida a par- a reconfiguração do
tir de dois paradigmas: “paradigmas da ordem” e “paradigmas da desordem”. pensamento social” e
Para Cardoso de Oliveira os paradigmas da ordem caracterizam-se pela busca de uma ciên- “Do ponto de vista dos
nativos: a natureza do
cia marcada pelas ideias de razão e objetividade. Incluem-se nesse horizonte os paradigmas: entendimento antropo-
a) racionalista; representado pela Escola Sociológica Francesa, que se preocupa com questões lógico”, ambos publi-
da organização social e “com a descoberta do pensamento primitivo” (1998, p. 920); b) estrutu- cados no livro O Saber
ral-funcionalista; interessado em estrutura social e função social. Esse paradigma é representa- Local: novos ensaios em
do pela Escola Britânica de Antropologia; c) culturalista, representado pela “American Historical antropologia interpre-
tativa. Petrópolis, RJ:
School of Anthropology”. Esse paradigma “conduz a indagação para os processos culturais e ao es- Vozes, 1997.
tabelecimento de padrões ou regularidades culturais” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 93).
Esses paradigmas, substancializados sob a rubrica da “ordem”, segundo Cardoso de Oliveira,
inclinaram-se para domesticar alguns elementos conceituais, isto é, a subjetividade, o indivíduo
e a história. Esses paradigmas influenciaram eficazmente os estudos e as formas de conhecimen-
to antropológico.
O paradigma racionalista toma uma posição evolucionista, e os representantes desse para-
digma falavam em etapas de evolução. Assim o evento: a “particularidade não tem lugar no espa-
ço das linhas ou círculos evolutivos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 940).

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UAB/Unimontes - 4º Período

Os autores que se enquadram dentro do estrutural-funcionalismo se posicionaram contra a


história, mas também contra as teorias da evolução. O trabalho de campo constitui uma prática
fundamental para essa escola. E foi a partir do trabalho de campo como novo padrão para a pes-
quisa antropológica que se pôde argumentar que os evolucionistas elaboraram uma concepção
especulativa da história da humanidade ou das sociedades humanas.
Com os culturalistas, tanto a história quanto o indivíduo passam a ser considerados sistema-
ticamente. No entanto, indivíduo e história continuam domesticados. Falam de padrão, focalizam
muito mais a organização cultural da personalidade. Na busca de conhecimento objetivo, o indi-
víduo é culturalizado e a história é naturalizada.
Glossário Contra essas posições, irrompe-se o paradigma hermenêutico, representado pela antropolo-
Hermenêutica: talvez gia interpretativa, o qual Cardoso de Oliveira chamou de “paradigma da desordem”.
fosse interessante pen- A antropologia interpretativa se posicionou contra o discurso cientificista exercitado pelos
sar no significado ou na paradigmas da ordem. Libertando-se da preocupação objetivista, a antropologia interpretativa
definição de hermenêu- reformula os elementos domesticados pelos outros paradigmas. A subjetividade assume uma
tica. A hermenêutica
pode ser entendida forma de intersubjetividade, a história é desnaturalizada e é tomada como historicidade e o in-
como o ato de interpre- divíduo “toma sua forma personalizada e não teme assumir sua individualidade” (CARDOSO DE
tar, ou interpretação do OLIVEIRA, 1998, p. 97). A ação simbólica torna-se um elemento fundamental de compreensão ou
sentido das palavras. de estudo.
“O termo hermenêutica O paradigma hermenêutico pode ser tomado como uma reação ao iluminismo, ou seja, uma
provém do verbo grego
hermēneuein e signifi- crítica ao poder absoluto da razão e da ciência. Razão e ciência são postas em suspeita.
ca declarar, anunciar, Assim, a antropologia interpretativa resgata a noção de compreensão (Verstehen), em opo-
interpretar, esclarecer sição à explicação. Assim, a apreensão etnográfica torna-se “experimentos” e a crença em uma
e, por último, traduzir. verdade absoluta é dissolvida, agora não existe uma única verdade, mas verdades. A prática an-
Significa que alguma tropológica torna-se um encontro onde os pontos de vista (os horizontes do pesquisador e do
coisa é tornada com-
preensível ou levada pesquisado) são levados em consideração. “Elege-se com isso uma sorte de saber negociado,
à compreensão” (cf. produto de relações dialógicas, onde pesquisador e pesquisado articulam ou confrontam seus
http://pt.wikipedia.org/ respectivos horizontes” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 100).
wiki/Hermeneutica). Nesse contexto, a antropologia interpretativa vem contribuir com algumas noções impor-
“A hermenêutica é um tantes. Primeiro, com uma moderação na autoridade do autor de textos etnográficos. Segundo,
método de interpreta-
ção de texto que tem renova a elaboração da escrita. Terceiro, passa a preocupar-se com o momento histórico do en-
suas raízes na exegese contro etnográfico (pesquisador e pesquisado estão no mesmo momento histórico). Finalmente,
medieval, especialmen- leva-se em consideração a compreensão sobre os limites da razão científica.
te na Bíblia [...] Ela parte
do princípio de que
um texto é simultanea-
mente um conjunto de
partes individuais e um
todo inteiriço, e que
1.3 A Antropologia Interpretativa
de Geertz
interpretar o texto é
realizar um movimento
pendular entre esses
dois polos” (Eriksen e
Hylland, 2007, p. 127).
Passemos agora a situar minimamente a perspectiva interpretativa na antropologia a partir
de um de seus expoentes máximos: Clifford Geertz.
A antropologia simbólica, interpretativa ou chamada por alguns antropólogos de herme-
nêutica, constituiu-se e consolidou-se nos Estados Unidos a partir de 1960.
Os fundadores de uma antropologia simbólica são Victor Turner, David M. Schneider e Clif-
ford Geertz. No entanto, estaremos tratando aqui apenas de algumas noções da antropologia de
Geertz.
Geertz nasceu em São Francisco, Califórnia, em 1926, e morreu em Princeton, em 2006. Estu-
dou Filosofia e se doutorou em Antropologia por Harvard em 1956. Lecionou em várias Univer-
sidades americanas e tornou-se membro permanente da School of Social Science do Instituto for
Advanced Study da Universidade de Princeton. Junto com as atividades docentes, realizou pro-
longados períodos de trabalho de campo na Indonésia e Marrocos. Como afirma Celso Castro:

Geertz preocupa-se, acima de tudo, com a construção social do significado que


ordenam a experiência humana, rejeitando a tradição estruturalista que busca-
va alcançar os universais da cultura humana. A busca de universais para Geertz
nos afasta do mais produtivo da antropologia que é a etnografia suas ‘descrições
densas’. Através delas é que podemos admitir as limitações de nossa situação
particular de observadores e lidar com dados concretos, circunstanciados. Ao
mesmo tempo, é a etnografia, inscrita num saber necessariamente local, que

12
Ciências Sociais - Antropologia IV

possibilita – e exige – a comparação com outras experiências particulares, des-


sa forma enriquecendo a compreensão. A interpretação, nessa perspectiva, é o
resultado sempre inacabado de uma dialética contínua entre o menor dos deta-
lhes e a mais global das estruturas (CASTRO, 2006, p. 117):

De fato, Geertz é um autor renomado dentro da antropologia.

◄ Figura 1: Fotos de
Clifford Geertz.
Fonte: Disponível em
<http://www.joseferreira.
com.br/blogs/sociologia/
guia-de-autores-e-obras/
clifford-james-geertz/>.
Acesso em 10 out. 2014.

Grande parte de sua influência deve-se ao fato de ter proposto e praticado uma antropolo-
gia diferente, que ficou conhecida como antropologia interpretativa ou simbólica, como já res-
saltamos.
Dica
Geertz propôs que se estudem mais os significados do que comportamentos, que se pro-
cure o entendimento, a interpretação mais do que a busca de leis. Rejeita, então, as explicações Sugerimos a leitura do
mecanicistas baseadas nas Ciências Naturais em favor da análise (compreensão) interpretativa. capítulo 1 (Uma des-
crição Densa: por uma
Geertz busca as metáforas, as analogias como recurso para se conhecer e compreender as cul- teoria interpretativa
turas. A ação simbólica torna-se um ponto relevante para a antropologia interpretativa. E a com- da cultura) do livro de
preensão dos significados que os atores atribuem ao seu mundo é possível na medida em que se Geertz A Interpretação
busque tal compreensão a partir do ponto de vista dos atores. Geertz busca essa compreensão a das Culturas, traduzido
partir da redefinição do conceito de cultura. para o português pela
editora Zahar em 1978.

1.3.1 Geertz: a Definição de Cultura

Nesse sentido, Geertz, no capítulo introdutório do seu livro A Interpretação das Culturas, pu-
blicado em 1973 e traduzido para o português em 1978, após falar que a noção de cultura se
encontra em um pantanal conceitual, começa com uma definição de cultura para propor uma
antropologia interpretativa. Geertz, nesse livro, mostra sua teoria interpretativa como forma de
analisar a cultura.
Geertz concebe a cultura como um sistema de símbolos e significados compartilhados. Para
esse autor, o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Em vários momentos do seu livro
A Interpretação das Culturas, Geertz explicita a sua concepção de cultura. No capítulo 1, Geertz
afirma:

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam


demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o
homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, as-
sumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à
procura do significado (GEERTZ, 1978, p. 15).

No capítulo 4, do mesmo livro, Geertz argumenta:

De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui


referentes múltiplos nem qualquer ambigüidade fora do comum, segundo me
parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, in-
corporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em
formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e
desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (GEERTZ,
1978, p. 103).

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UAB/Unimontes - 4º Período

É a partir desse conceito que Geertz elabora uma análise interpretativa da cultura e explica
como é possível e de que modo deve ser feito uma análise da cultura. Para o autor, “a análise é
escolher entre as estruturas de significado [...] e determinar sua base social e sua importância”
(1978, p. 19). Portanto, é na análise que a etnografia torna-se “descrição densa”, ou melhor, a aná-
lise é feita através de uma descrição densa.
Para Geertz, a sociedade ou a cultura pode ser interpretada como um texto. Para esse autor,
os fenômenos sociais precisam ser lidos não somente pelos antropólogos, mas pelos próprios
membros da sociedade. A interpretação dos antropólogos é uma interpretação de segunda mão,
pois é uma interpretação da interpretação dos indivíduos de uma determinada sociedade. A an-
tropologia, portanto, na perspectiva fundada por Geertz, deve compreender as maneiras pelas
quais as pessoas entendem e interpretam o mundo ao seu redor.

1.3.2 O Credo Metodológico: “a Descrição Densa”


Assim, Geertz sustenta que os antropólogos devem procurar descrever o mundo a partir do
ponto de vista do nativo. E a descrição deve ser densa.
Geertz toma a noção de “descrição densa” da obra do filósofo Ryle para mostrar que uma
compreensão profunda é possível através da descrição profunda. A descrição densa consiste
na capacidade em que o etnógrafo tem de diferenciar um reflexo insignificante, uma contração
muscular de uma piscadela usada como recurso comunicativo conscientemente empregado. Ou
seja, há várias maneiras de interpretar uma piscadela. Uma piscadela pode significar simples-
mente uma contração involuntária das pálpebras ou pode significar um ato de comunicação,
como um convite à cumplicidade, ou ainda pode ser que alguém esteja imitando de forma debo-
chada um outro que esteja piscando.
A descrição densa proposta por Geertz é mais uma atitude do que um modelo ou um mé-
todo. Essa atitude exige do etnógrafo apreender as estruturas de significação mais profundas e
estabelecer bases para compreender diferentes interpretações em um determinado contexto.
A antropologia para Geertz é, então, um ato (ação) interpretativo. E esse ato vai da obser-
vação à etnografia. Agora, a verdade é parcial e é construída no texto produzido pelo etnógrafo,
aonde ele vai além da mera descrição dos fatos. Por isso, a descrição densa é baseada na reali-
dade do trabalho de campo, e é através da análise que a etnografia torna-se “descrição densa”.
Como afirma Geertz:

O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, na-
turalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é
uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas sobrepostas
ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e
inexplicáveis, e que ele tem que de alguma forma primeiro apreender e depois
apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de
campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, dedu-
zir os termos de parentesco, traçar linhas de propriedade, fazer o censo domésti-
co [...] escrever um diário. Fazer a etnografia é tentar ler (no sentido de construir
uma leitura) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências,
emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais con-
vencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modela-
do (GEERTZ, 1978, p. 20).

1.3.3 Como Compreender esse Emaranhado de Significado na Vida


Nativa

Geertz afirma que a cultura é pública. Na visão desse autor, a cultura é pública porque o
significado também é. Geertz, assim, refere-se ao caráter público das significações dos símbolos,
ou seja, as significações são públicas. A cultura se constitui de significados veiculados através de
símbolos. Os símbolos são algo que significa, são intersubjetivos, por conseguinte, são públicos.
Por isso, há possibilidades de comunicação.
A cultura é um documento ativo. Ela não é mental nem física. Ela não está na cabeça das
pessoas. Mas funciona como um mapa cognitivo, por meio do qual as pessoas se orientam. Por-
tanto, a cultura não é uma matriz que empurra as pessoas em uma mesma direção. Pelo contrá-
rio, permite que as pessoas sigam caminhos diversos.
14
Ciências Sociais - Antropologia IV

Se a cultura é um documento, ela pode ser tratada como um texto. A cultura inscreve seus
significados, suas instituições. Por isso, o etnógrafo pode compreendê-la como se fosse um texto
a ser desvendado. O que o etnógrafo faz é inscrever no seu texto a intencionalidade dos fatos.
Ele fixa o símbolo, fixa uma ação significativa. Nesse sentido, o texto etnográfico é o próprio ato
compreensivo, a própria interpretação.
Para Geertz, a compreensão não é empatia (penetrar na cabeça do outro), mas uma justa-
posição de pontos de vista. Para entender o outro e fazer etnografia, não é necessário tornar-se
nativo ou pensar como eles. O que o etnógrafo deve procurar é conversar com os nativos. Des-
sa forma, o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. Assim,
Geertz fala que esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta bem. Para
Geertz:

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria sím-


bolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao
qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os compor-
tamentos, as instituições ou os processos ela é um contexto, algo dentro do qual
eles podem ser descritos de forma inteligível, isso é, descritos com densidade
(GEERTZ, 1978, p. 24).

Percebemos, assim, que Geertz afirma que cultura é contexto, e que é preciso compreendê
-la a partir do ponto de vista dos nativos (isso quer dizer através de uma justaposição de pontos
de vista). Assim, para Geertz, (1978, p. 25) “nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros
povos devem ser orientados pelos atos”. . Geertz afasta-se das abordagens essencialmente ob-
jetivistas dizendo que as descrições das culturas partem da visão dos atores, mas a essas descri-
ções devemos acrescentar a análise. Assim, “começamos com nossas próprias interpretações do
que pretendem nossos informantes, ou que achamos que eles pretendem, depois passamos a
sistematizá-las...” Em resumo, “os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na ver-
dade, de segunda e terceira mão” (GEERTZ, 1978, p. 26).
Nessa linha de procurar uma antropologia que se afaste dos moldes da antropologia tradi-
cional, muitas vezes pautada nas premissas das Ciências Naturais, Geertz traça as características
da antropologia interpretativa e assim reformula a prática e a forma de escrevê-la. Então, para
esse autor, a descrição etnográfica deve ser interpretativa, “o que ela interpreta é o fluxo do dis-
curso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o dito num tal discurso da sua
possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (GEERTZ, 1978, p. 31). E isso é feito
em nível microscópico.
Mas, ao defender uma abordagem microscópica para a descrição etnográfica, Geertz fala
que as interpretações em grande escala são possíveis. Só que os antropólogos tendem a traba-
lhar em lugares “obscuros”. Eles abordam “análises mais abstratas a partir de um conhecimento
muito extensivo de assuntos extremamente pequenos” (1978, p. 31). Assim, as generalizações
são possíveis porque “as ações sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas;
de que, de onde vem uma interpretação não determina pra onde ela poderá ser impelida. Fatos
pequenos podem relacionar-se a grandes temas...” (GEERTZ, 1978, p. 24).
Pode-se dizer que a proposta de uma antropologia interpretativa acrescenta elementos im-
portantes que contribuem enormemente para revitalizar as Ciências Sociais. Assim, Geertz con-
trasta as qualidades ricas e densas da teoria interpretativa com as qualidades demasiadamente
reducionistas e mecanicistas das Ciências Sociais. Mas, o que Geertz nos fala sobre o papel da
teoria na nova antropologia que ele propõe? Parece que Geertz admite que as abordagens inter-
pretativas não são verificáveis. Se não, vejamos o que ele afirma:

O pecado obstruidor das abordagens interpretativas de qualquer coisa – litera-


tura, sonhos, símbolos, cultura – é que elas tendem a resistir, ou lhes é permitido
resistir, à articulação conceptual, e assim, escapar a modelos de avaliação siste-
máticas. Ou você apreende uma interpretação ou não, vê o ponto fundamental
dela ou não aceita-a ou não. Aprisionada na imediação de seu próprio detalhe,
ela é apresentada como autovalidante ou, o que é pior, como validada pelas sen-
sibilidades supostamente desenvolvidas da pessoa que a apresenta; qualquer
tentativa de ver o que ela é em termos diferentes do seu próprio é vista como um
travesti – como etnocêntrico, o termo mais severo do antropólogo para o abuso
moral (GEERTZ, 1978, p. 34).

Mas Geertz argumenta que a teoria interpretativa pode ser adequada para a tarefa central
da etnografia: o entendimento da vida nativa.

15
UAB/Unimontes - 4º Período

Geertz afirma, ainda, que em antropologia apenas pequenos vôos de raciocínio são permiti-
dos, pois vôos mais longos tendem a se perder em embrutecimentos acadêmicos. Então, o con-
ceito semiótico de cultura é a chave para que o antropólogo ganhe acesso ao mundo conceitual
de seus sujeitos e daí poder conversar com eles. Enfim, o papel da teoria na etnografia, conforme
Geertz, é “fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer
sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da cultura na vida humana” (GEERTZ, 1978, p. 38).
Podemos dizer que Geertz busca uma análise de formas simbólicas. Através da análise da
cultura, o etnógrafo inscreve, fixa o significado e a significação, salvando o discurso social de sua
possibilidade de extinguir-se e colocando-o sob formas observáveis. Através da compreensão
dos significados, veiculados através dos símbolos, que os atores atribuem ao seu mundo pode-se
chegar à base social. No entanto, Geertz admite:

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais pro-


funda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmações mais marcantes
são as que têm as bases mais tremulas, na qual chegar a qualquer lugar com um
assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você
não o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vida do etnógrafo,
além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas (GEERTZ, 1978, p. 39).

Geertz, no entanto, nos adverte que analisar as formas simbólicas não é perder o contato
com a superfície dura da realidade social. Geertz se posiciona no que se refere à questão do ob-
jetivismo, falando que sua própria posição “tem sido tentar resistir ao subjetivismo, de um lado,
e ao cabalismo de outro, tentar manter a análise das formas simbólicas tão estreitamente ligadas
quanto possível aos acontecimentos sociais e ocasiões concretas” (GEERTZ, 1978, p. 40).
Então, pode-se dizer que ao buscar uma ciência que aborde a ação simbólica, Geertz afasta-
se dos postulados da Ciência Natural, até então venerados pelas Ciências Sociais como forma de
manter a objetividade e o caráter nomológico como critérios de cientificidade.
De fato, Geertz busca inspiração em uma tradição filosófica que coloca o papel da Verstehen
(compreensão) na metodologia das Ciências Sociais. Como explica Fischer:

Fazia-se um esforço de combinar, através da noção de Versthen, as metas cien-


tíficas de objetividade com o reconhecimento de que pelo fato de os homens
refletirem sobe o que fazem (e agirem de acordo com essas reflexões) é difícil
tratá-los meramente como objetos (GEERTZ, 1983, p. 56).

As Ciências Sociais estavam comprometidas em explicar a cultura e a sociedade “naturali-


zando-as” ou, o que é a mesma coisa, em termos nomológicos, a antropologia interpretativa
tenta compreender o homem. Assim, coloca sob suspeita o conhecimento baseado na razão ins-
trumental e estabelece o sentido das ações observadas, o que implica um conhecimento inter-
subjetivo. Em outras palavras, a justaposição de pontos de vista é um elemento crucial para a
compreensão da cultura e da sociedade.
Pode-se dizer, então, que Geertz procura resolver o impasse entre o subjetivismo e o objeti-
vismo através dos símbolos. Ou seja, quando fala do caráter público das significações dos símbo-
los está falando da objetividade dos símbolos. Se as significações são públicas, são objetivas, por
conseguinte, é possível a comunicação. Fisher fala que “na medida em que a comunicação entre
os indivíduos é compreendida a cultura é pública, objetiva e, pelo menos teoricamente, passível
da análise” (GEERTZ, 1983, p. 59).
Assim, compreender, em uma descrição densa, consiste em desfiar os significados dos sím-
bolos. Nessa perspectiva, os símbolos são as imagens dominantes nos textos antropológicos que
se situam em uma vertente hermenêutica.

1.3.4 O Uso de Metáforas

Nesse sentido, Geertz propõe o uso de metáforas, de analogias para o estudo dos sistemas
culturais. Em seu texto “Gêneros Confusos”, esse autor anuncia uma convergência do pensamen-
to social para o uso de analogias como estratégia para se produzir conhecimento, ou seja, anun-
cia um movimento para a reconfiguração do pensamento social. Para Geertz:

Certas verdades sobre as ciências sociais parecem hoje em dia autoevidentes.


Uma delas é que em anos recentes tem havido uma enorme mescla de gêneros

16
Ciências Sociais - Antropologia IV

nas ciências sociais, assim como na vida intelectual em geral, e que tal confusão
de classes continua, todavia. Outra é que muitos cientistas sociais se tem apar-
tado de um ideal de explicação de leis e exemplos para outro ideal de casos e
interpretações, buscando menos a classe de coisas que conecta planetas e pên-
dulos e mais classe de coisas que conecta crisântemos e espadas. Outra verdade
é que as analogias que se têm traçadas desde as humanidades estão começando
a jogar o mesmo tipo de papel na compreensão sociológica que as analogias
traçadas desde as indústrias e a tecnologia têm jogado, desde faz tempo, na
compreensão dos fenômenos físicos. Não só penso que estas coisas são certas,
mas que são verdades em seu conjunto, simultaneamente, e o giro cultural que
faz que isto seja assim é o tema desde ensaio: a reconfiguração do pensamento
social (GEERTZ, 1991, p. 63).

Assim, Geertz mostra que o conhecimento se processa por analogias. A analogia do jogo,
do drama e do texto torna-se modelo fundamental como novo discurso. As analogias passam a
fazer parte do novo pensamento social como peças centrais no discurso científico. Qual a razão
de usar a analogia para explicar um fenômeno social? A analogia para compreender os fenôme-
nos humanos é mais esclarecedora do que os modelos das ciências naturais, pois o antropólogo
trabalha com fenômenos que o próprio homem construiu.
Geertz, então, mostra que a analogia do texto é a mais ampla das recentes reconfigurações
do pensamento social. O modelo para os “interpretativos” é a filologia, isto é, interpretar textos.
Assim, para esse autor, “a chave para a transcrição do texto ao análogo ao texto, da escritura
como discurso à ação como discurso é, como assinala Ricoeur, o conceito de fixação: a fixação do
significado” (GEERTZ, 1991, p. 73).

1.3.5 A Ideologia como Sistema Cultural

Uma outra forma de trabalhar os sistemas simbólicos encontra-se em um outro texto de


Atividade
Geertz: “A Ideologia como Sistema Cultural”. Nesse texto, Geertz procura entender a ideologia
como texto, em que a eficácia reside nas metáforas. Segue entrevista com
o antropólogo Clifford
Porém, Geertz diz que existem duas abordagens ao estudo dos determinantes sociais da
Geertz. Ao ler essa
ideologia: a teoria do interesse e a teoria da tensão. Para a primeira, a ideologia é uma máscara e entrevista, reflita sobre
uma arma. Para a segunda, a ideologia é um sintoma e um remédio (GEERTZ, 1978, p. 171). a perspectiva interpre-
Enquanto que para a teoria do interesse a ideologia é vista como uma luta por vantagens, a tativa na antropologia
teoria da tensão é vista como uma forma de amenizar as tensões sociopsicológicas. Naquela, os e como essa disciplina
poderia lhe auxiliar
homens perseguem o poder; nesta, os homens fogem da ansiedade.
em suas atividades de
No entanto, como ressalta Geertz, “interesse” e “tensão” são conceitos psicológicos e socioló- ensino.
gicos referindo-se simultaneamente a uma vantagem sentida por um indivíduo ou grupo de in-
divíduos e a estrutura objetiva da oportunidade dentro da qual se movimento um indivíduo ou
grupo – trata-se da interpenetração dos sistemas de personalidade e social (GEERTZ, 1978, p. 173).
Para Geertz, (1978) a questão de como os símbolos simbolizam, como funcionam para me-
diar significados não foi tratada.
Diante disso, sem recusar totalmente as duas teorias, o autor propõe que se considere a
ideologia como sistema de símbolos que constitui um mapa cognitivo que orienta o comporta-
mento dos indivíduos.
Porém, Geertz (1978) mostra as limitações das teorias que interpretam a ideologia e propõe
buscar na literatura uma solução para estudá-la. Para ver como opera o pensamento, a ideologia
dever ser entendida como texto, em que sua eficácia reside nas metáforas. Nesse sentido, inter-
pretar o sistema simbólico como ideologia é entender o próprio estilo como um texto. A ideo-
logia dever ser interpretada como um texto literário em sua profundidade, para se entender as
metáforas, as expressões e os significados.

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UAB/Unimontes - 4º Período

Box 1- Entrevista com Clifford Geetz


O norte-americano Clifford Geertz discute o futuro e os deveres de sua disciplina.

| O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de seu li-
vro, o sr. diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de antropologia, as coisas
não são mais como eram. Qual é o campo de trabalho da antropologia?
| Bem, não é bem que não dá para sobreviver com a antropologia, acho que os antropó-
logos estão sobrevivendo bem, mas está ficando mais difícil porque tudo está ficando mais
complicado. Nós lidamos com uma gama maior de sociedades, não apenas as chamadas so-
ciedades simples. Lidamos com sociedades grandes, como a Índia, o Brasil, o que torna as coi-
sas mais complexas do que quando nós ficávamos restritos a apenas povos tribais. Em segun-
do lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido, logo tudo é conectado a
tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso, há muito mais pessoas trabalhando
nessas áreas, em que antes costumávamos trabalhar sozinhos. Ninguém mais estava muito in-
teressado nos povos que estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a antropologia
seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de buscar
realizar, em outro.

| Mas qual seria o dever dos antropólogos?


| Não creio que possamos fazer muito mais do que seguir do jeito que estamos e conti-
nuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribuição particular _o tipo de con-
tribuição que a antropologia pode de fato dar eficazmente. A antropologia não pode mais ser
uma ciência completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o “Homem”. Ela tem que
perceber qual é, em um lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou o Marrocos, ou o Brasil, o seu
papel particular em interpretar o que ocorre _isso ao lado de outras disciplinas, como econo-
mia, política, história, literatura. Tudo isso deve ser levado em consideração, e a antropologia
deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos.

| Como o sr. se envolveu com a antropologia?


| Eu fiz faculdade depois da guerra – depois da Segunda Guerra Mundial – e estudei in-
glês e filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer a pós-graduação, um de meus
professores sugeriu que eu poderia me interessar por antropologia, em particular a que esta-
va então sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo ensinada como parte
de um departamento multidisciplinar, chamado relações sociais. Nesse departamento, esta-
vam reunidas as disciplinas de antropologia, sociologia, psicologia social e psicologia. Então
eu fiz isso e foi assim que entrei para a antropologia.

| O sr. acredita que a antropologia cultural, a chamada antropologia hermenêutica,


pode ser considerada uma ciência? Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de antropologia
praticada pelo sr. não é antropologia, e sim etnografia.
| Devo dizer que não sou da mesma categoria que Claude, mas não acho essa questão
particularmente importante. Não me importa se ele a chama de ciência ou não, eu mesmo
acredito que seja, mas isso depende do que significa “ciência”. Lévi-Strauss certamente está
certo ao dizer que a antropologia cultural não segue o mesmo modelo que as ciências natu-
rais, mas eu acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argumentos que pos-
sam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou menos es-
pecífico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas concordo que não como
a física ou a química etc. Porém não vejo por que compará-la à física. Eu mesmo não acho que
a questão de como chamá-la seja tão importante. Então, para ela ser vista como ciência, não é
necessário que a chamemos de ciência. Suponho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo,
bem, por questões políticas.

| Parafraseando Max Weber, a antropologia, tanto em campo quanto na academia, é


uma vocação?
| Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos. Espero que
continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples trabalho ou um lugar para
se receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as comunicações entre as pessoas, a com-
preensão entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocação. Nem todos na antropolo-
gia estão comprometidos com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores estão.

18
Ciências Sociais - Antropologia IV

| Quais são os limites da interpretação? Se a cultura é um texto _ou análoga a um


texto, e o antropólogo escreve um texto, e o leitor lê o texto e o interpreta também e
isso vai em frente... Quais são os limites?
| Bem, não sei, acho que você pára de interpretar quando não tem mais o que dizer. Por
exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez você leia, pense sobre o que significa no
contexto daquilo que você está fazendo. E, após um tempo, não há muito mais a ser dito, quer
dizer, nada muito mais interessante aparece, você pega o que pode e então segue em frente.
Acho que a corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que sabemos de
importante ou interessante já foi dito, ao menos naquela linha em particular, não como um
todo, mas nessa linha, sim. Então as coisas são abordadas de modo diferente, e vai-se em fren-
te com isso. Não creio que haja um ponto final óbvio que diga exatamente onde é o fim da
interpretação, mas, depois de um tempo, depois de 4.000 discussões acerca da briga de galos,
quem sabe baste.
| Mas é interessante, porque um estudante de antropologia brasileiro, lendo o ensaio so-
bre a briga de galos balinesa, terá uma visão completamente diferente da de um estudante de
antropologia balinês, que terá uma visão diferente da do sr. quando escreveu o ensaio. Cada
um está fazendo a sua própria interpretação.
| Bem, mas a decisão é pessoal. Uma coisa interessante a fazer seria confrontar as leituras
balinesas do texto com as brasileiras. Poderia nos ser útil, na verdade não faço idéia, depende
do que sairia disso. Mas costumo adotar uma visão a posteriori das coisas. Deve-se tentar pri-
meiro e depois ver se vale a pena. Não podemos prever o que será útil e o que não o será.

| Como se pode escapar do niilismo na interpretação?


| Eu não vejo qual é o papel do niilismo. Se você fosse niilista, nem começaria a interpre-
tar. Não tentaria ao menos começar a entender os outros. Acho que há uma diferença entre
o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações
antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterminação, contin-
gência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como o mundo é. Se você for realmente um
niilista, não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará
nada. Não escreveria – ao menos eu não vejo razão para que escrevesse – um longo livro so-
bre coisa nenhuma.

| Seu novo livro tem um capítulo intitulado “Anti Anti-Relativismo”. Diante das duas
atitudes dominantes na antropologia – defesa de um relativismo quase absoluto e de-
fesa de uma moral ou “natureza humana anterior a qualquer análise antropológica” –,
onde exatamente o sr. se situa?
| Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa posição seja mais co-
mum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no Brasil, embora eu não tenha certe-
za. Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do relativismo contra,
bem, essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc. O que dizem é que, a menos que
você se agarre a certas verdades absolutas, de certo tipo, você não pode acreditar em nada,
não pode fazer nada, agir etc., e eu obviamente me oponho a essa visão. Acho que é possível
agir sob a incerteza, é possível agir sob o indeterminável, porque este é o modo como todos
nós vivemos.

| Qual é a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalização, essa moda de
globalização que está tomando conta do mundo? Como isso afeta as culturas?
| Nos últimos capítulos do meu livro, eu falo sobre o que é o padrão, ao menos o que
acredito que seja um padrão. Ao mesmo tempo em que há muita comunicação e integração
em nível mundial e uma ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reação contra
isso, que busca aumentar auto-expressões culturais. Acho que devemos usar esse paradoxo
para entender exatamente o que acontece. Não me parece que nem a idéia de o mundo in-
teiro estar meio que subsumido em uma única hegemonia nem a noção de “cada um é seu
próprio eu” se imporão. Não sei bem o que dizer sobre a globalização como processo, a globa-
lização é um fato, está ocorrendo, o gado atravessa o mundo, há muita comunicação etc., mas
não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos em direções opostas.

19
UAB/Unimontes - 4º Período

| Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento avassalador de


culturas “menores”?
| Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará – quem é que
sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente fortes e, em certo grau, são
estimuladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas se-
rão esmagadas, embora muita gente ache que sim.

| O sr. tem uma visão otimista do futuro...


| Não diria que é uma visão otimista, mas que ao menos esse tipo de pessimismo não é o
meu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse.

| E qual é o seu tipo de pessimismo?


| Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mundo esteja prestes a se tornar,
por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados Unidos. Há certamente
pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem que isso acontece-
rá, mas creio que há vários motivos para questionar isso. Não acredito que o neoliberalismo vá
subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver.

| Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como particular-
mente interessante?
| Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de todos, ir
por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para
o Marrocos por vários anos. E então estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de
campo foi seguramente um dos pontos altos da minha vida.

| Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história anedótica...


| Escrevi sobre praticamente todos os eventos anedóticos que me aconteceram, é difícil
me lembrar de algum específico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele,
é semi-autobiográfico, ao menos em parte. E no meu trabalho eu já contei uma série de histó-
rias, coisas que me aconteceram: ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-
me envolvido com certas pessoas no Marrocos...

| Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de
campo influem no trabalho dos antropólogos?
| Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje, “observadores situa-
dos”. A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência possível desse fato
e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo como as coisas sim-
plesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-americano ou um bra-
sileiro ou um francês verão as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões é o
contexto cultural do qual eles vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios. Não
há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as pessoas não se conscientizam
disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que têm não precisa ser confrontada
com a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstra-
to. Isso não é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as
pessoas vêm, onde elas estão trabalhando etc.

20
Ciências Sociais - Antropologia IV

| E o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado “pós-moderno” na an-


tropologia?
| Frequentemente não se sabe bem de que se trata quando se fala em pós-moderno. Não
me considero um pós-moderno no sentido estrito, mas acredito que os pós-modernos estão
apresentando questões interessantes que precisam ser confrontadas até por aqueles de nós
que possivelmente não estão muito enamorados das respostas dadas por eles quanto pode-
riam estar. Mas as questões que eles trazem e as preocupações que eles têm são todas bem
reais, e essas questões e preocupações exigem algum tipo de resposta. Se a resposta que é
usualmente associada ao pós-modernismo, que é uma visão descentrada e altamente relati-
va das coisas, é a resposta ideal, eu não tenho certeza, mas acho que os pós-modernos de-
vem ser tomados como positivos para a construção da teoria antropológica. Eles contribuíram
muito, criticamente, fizeram com que algumas posições e argumentos se mostrassem simples
demais para serem mantidos e também trouxeram o tipo de pergunta que você fez momen-
tos atrás sobre a influência da sociedade de alguém na percepção desse alguém etc. Foi esse
tipo de coisa, entre outras, que nos foi trazido pelos pós-modernos. Um monte de outros pro-
blemas com relação à escrita, com relação à retórica, com relação à questão da prova etc.,
como nas ciências naturais, tudo isso vem à tona, ao menos em parte, devido à crítica pós-
moderna. Então, como crítica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como força
positiva e construtiva, sou um pouco mais cético.

| Quais são os seus planos para o futuro? O sr. pensa em escrever mais um livro?
| Não sei, não estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns ensaios e tenho
que dar algumas palestras, mas tenho 74 anos, então... Você sabe, nessa altura, a gente pensa
no futuro de um modo diferente. Não sei, talvez escreva algo, mas no momento não estou
trabalhando em um livro, estou trabalhando – bem, escrevo resenhas, tenho que falar com
algumas pessoas no mês que vem e coisas do gênero. Tenho que tentar cumprir algumas pro-
messas que fiz antes e não pude cumprir enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso
eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quando se toca de ouvido, quem sabe?

Fonte: Folha de São Paulo: MAIS, p. 4-5. A Mitologia de um Antropólogo. Autor: Victor Aiello Tsu. Editora MAIS. Edição
Nacional, 18 de fevereiro de 2001.

1.4 A Perspectiva Interpretativa


de Marshall Salhins
Prezado aluno, dando sequência ao trabalho, trataremos agora da contribuição teórica do
antropólogo Marshall Sahlins à teoria antropológica. Nesta etapa, todos os conhecimentos ad-
quiridos anteriormente deverão ser atualizados para uma melhor compreensão da proposta de
Sahlins à teoria antropológica. Sua obra oferece um rico debate sobre a relação entre história e
cultura, bem como uma interpretação simbólica da cultura bem longe do utilitarismo.

1.5 Contribuição Teórica do


Antropólogo Marshall Sahlins à
Teoria Antropológica
Marshall Sahlins é um dos principais expoentes das ciências sociais nas últimas décadas.
Professor emérito da Universidade de Chicago e autor de um conjunto de obras fundamentais
como Cultura e Razão Prática, Ilhas de História, Metáforas Históricas e Realidades Míticas.

21
UAB/Unimontes - 4º Período

A sua reflexão oferece uma ênfase à noção de dinâmica cultural, que marca sua obra, bem
como a ideia de que a cultura está sempre em transformação. Em suas próprias palavras, “as cul-
turas são como os rios: não se pode mergulhar duas vezes no mesmo lugar, pois estão sempre
mudando”.
A sua definição de cultura, portanto, chama-nos atenção para uma constante relação dinâ-
mica entre seus modelos internos e aqueles vindos de fora. Esses modelos de fora jamais são ab-
sorvidos de forma passiva, antes, passam por uma reavaliação a partir da própria estrutura. As-
sim, é preciso pensar na tensão entre a estrutura (cultural) e a história. Nesse sentido, a cultura
pode ser pensada como um conjunto estrutural de significação, no entanto, o conteúdo desses
conjuntos estruturais altera-se em função da história, através do que Sahlins denominou como
uma reavaliação funcional de categorias.
A partir desta definição de cultura, observamos que o grande esforço de Sahlins consiste em
“historicizar a noção de estrutura”, bem como pesquisar como a estrutura se realiza no interior da
ordem cultural (conjunto estrutural de significação). Nesse sentido, poderíamos falar aqui de um
estruturalismo histórico, por mais paradoxal que isto possa parecer, pois se pode observar uma
maior comunicação entre estrutura e história, superando as antigas dicotomias. O debate sobre
história e cultura poder ser resumido na frase seminal de Sahlins (2003, p. 4). Se a antropologia
foi por demasiado tempo o estudo dos ‘povos sem história’, a história andou, por mais tempo ain-
da, estudando ‘povos sem cultura’. Felizmente, toda essa história passada é também uma antro-
pologia (ultra)passada – se não vice-versa.”
Avançando um pouco mais, é preciso pensar, então, nas implicações que tais definições sus-
citam. Em primeiro lugar, é preciso focalizar a importância das histórias nativas, ou melhor, das
lógicas nativas, em um contexto atual em que se aponta para uma suposta dominação ou uma
injunção da cultura pela globalização. De acordo com Sahlins é possível pensar que através das
diferentes lógicas nativas, a leitura da globalização não pode ser pensada de forma monolítica
ou única, pois tais lógicas nativas absorvem, incorporam e muitas vezes desviam, de maneira
particular, as injunções da globalização.

Box 2 - Entrevista com Marshall Sahlins


Pergunta - De origem russa, o sr. nasceu em Chicago, berço de uma grande escola da an-
tropologia norte-americana. De onde lhe veio o gosto por essa disciplina?
Sahlins - A Universidade de Chicago de fato foi berço de uma grande escola de antropo-
logia, mas quando cheguei a ela, em 1973, esse movimento já tinha envelhecido. Foi a escolha
de Radcliffe-Brown para uma cadeira de professor, nos anos 1930, que fez de Chicago o pos-
to avançado, nos EUA, da antropologia social britânica, ao preço de várias conciliações com a
cultura local, como é o caso nesse gênero de situação colonial.
A universidade ficava no South Side, um bairro que, além da equipe de beisebol rival,
abrigava judeus alemães bastante esnobes, mais cultos e ricos que os judeus originários da
Europa Oriental que viviam no West Side. A gente não se misturava.
Sempre faço questão de acrescentar que tive uma criação inteiramente laica numa fa-
mília não praticante. Quanto à política, minha família não era filiada a nenhum partido, mas
minha mãe admirava Emma Goldman [1869-1940, militante anarquista] e, durante o levante
russo de 1905, quando ainda era criança, chegou a transportar folhetos revolucionários es-
condidos em sua mala escolar!
Havia, portanto, afinidades entre esse meio de imigrantes esquerdistas do Meio-Oeste
americano e as teorias antropológicas de Leslie White [1900-75], que foi meu mentor na Uni-
versidade de Michigan. White era um dos grandes “intelectuais orgânicos” contestatários que
a América rural e das pequenas cidades produziu na primeira metade do século 20, entre os
quais figuram também Thorstein Veblen, Clarence Ayres, Charles Beard e C. Wright Mills.
Eles eram, por assim dizer, os ateus da aldeia: universitários marginais em revolta contra
os exploradores, as classes dominantes, os dogmas ideológicos da sociedade americana.
Pergunta - Em 1965, em plena Guerra do Vietnã, o sr. lançou o primeiro “teach-in” [mani-
festação em forma de aula] dos EUA. Poderia nos relatar essa experiência e o papel que esse
evento exerceu em seu pensamento?
Sahlins - Lancei a ideia de um “teach-in”, em oposição ao projeto inicial de “teach-out”
lançado por cerca de 20 professores, que teria consistido em suspender as aulas para organi-
zar debates sobre a Guerra do Vietnã, fora do campus.
Diante das críticas virulentas de nossos colegas, propus, então, que ocupássemos as salas
de aula após as aulas, fizéssemos “teach-ins” e criticássemos a guerra até tarde da noite.

22
Ciências Sociais - Antropologia IV

É verdade que eu talvez tivesse uma predisposição para as oposições binárias, pois nos
anos 1960 os americanos estavam se apaixonando por [Claude] Lévi-Strauss.
Mas existiam, também, condições estruturais mais gerais, especialmente o abismo de ge-
rações, que se aprofundava nessa época: os estudantes, que até então vinham sendo aprendi-
zes de adultos burgueses, começavam a imitar a classe operária -Levi Strauss, os jeans, não os
livros!
No pós-guerra havia apenas um tipo de música popular que estava na moda nos EUA, e
era apreciada igualmente por adultos e adolescentes. Então surgiram Elvis e os Beatles, com-
provando que Confúcio e Platão tinham razão ao se preocuparem com a relação entre a músi-
ca e a harmonia política.
De fato, já existiam na juventude americana movimentos contraculturais e contestatá-
rios dignos desse nome antes mesmo da intensificação do conflito no Vietnã, em fevereiro de
1965.
Ao reavaliar o papel que desempenhei nessa conjuntura, cheguei à conclusão de que o
papel histórico dos indivíduos autoriza a si próprio uma estrutura, ou seja, uma posição no
interior de um sistema, mesmo se essa posição não basta para determinar o que eles farão.
O poder coletivo pode encarnar-se em um indivíduo: seja por uma iniciativa feliz e opor-
tuna -como no caso dos “teach-ins”, que tiveram grande sucesso-, seja pela autoridade consti-
tuída do indivíduo agindo na condição de dirigente designado de uma coletividade estrutu-
ralmente organizada para refletir e fazer ouvir tudo o que um George W. Bush pode fazer ou
suportar.
Em todos os casos, porém, se esse indivíduo determina o destino da coletividade, esta,
por sua vez, não determina sua própria individualidade. Como diz Sartre, o grupo é obrigado
a se realizar, da mesma maneira como se deixa personificar.
De maneira geral, na esteira da Guerra Fria, a Guerra do Vietnã exerceu impacto conside-
rável sobre praticamente todas as disciplinas universitárias nos EUA. Considerações políticas e
estratégicas afetaram ou até mesmo ditaram a escolha das pesquisas científicas a serem em-
preendidas, das línguas a serem ensinados, das regiões do mundo a serem estudadas.
Se consideramos até que ponto a Guerra Fria impregnou todos os campos de reflexão,
a época se prestava idealmente ao pensamento de Foucault, que, também ele, enxergava o
poder por toda parte.
Globalmente, as ciências humanas e as letras optaram por combater os poderes instituí-
dos, desenvolvendo uma crítica anti-hegemônica do nacionalismo, do imperialismo, do Esta-
do, do racismo, do sexismo e de outros demônios planetários. Elas correram o risco de se de-
baterem numa contradição inevitável, já que, privilegiando os contradiscursos libertadores da
anti-estrutura ou da desconstrução, implicitamente ratificaram certos discursos de dominação
como sendo relatos fundadores, mais especialmente a versão foucaultiana.
Mas se, para muitas pessoas, a lição dos anos 1960 foi a de se opor a todas as formas de
poder, a lição do Vietnã me ensinou, sobretudo, a celebrar todas as formas de cultura. O êxito
dos vietnamitas diante do poderio americano não reforçou minha confiança no determinismo
tecnológico que eu aprendera na universidade.
Iniciei uma série de estudos sobre o que chamei de a “indigenização da modernidade”,
fazendo referência aos diferentes métodos culturais empregados pelos esquimós, os povos da
Nova Guiné, os polinésios etc.
para inscreverem um “sistema mundial” invasor dentro de um contexto ainda mais englo-
bador: seu próprio sistema do mundo.
Pergunta - Em 1968 e 1969 o sr. trabalhou com Lévi-Strauss em Paris. O que tirou desse
confronto?
Sahlins - É impossível para mim sintetizar tudo o que aprendi nessa época no laborató-
rio de Lévi-Strauss no Collège de France. Permita que eu resuma essa experiência. Em 1969
apresentei uma pesquisa sobre determinados sistemas de troca tradicionais da Austrália e da
Melanésia, precisando bem, no preâmbulo, que eu não era estruturalista, pois não falava de
uma troca de mulheres ou de palavras, mas de uma infra-estrutura material bastante real e
concreta – cuja análise Lévi-Strauss já concedera a Marx.

23
UAB/Unimontes - 4º Período

Durante a discussão que se seguiu, ele afirmou que eu era estruturalista, sim: afinal, aqui-
DICA
lo que eu demonstrara com relação às trocas materiais correspondia a certas estruturas de
Caro aluno, se você está troca matrimonial que ele descrevera em “As Estruturas Elementares do Parentesco” [ed. Vo-
sentindo dificuldade zes]. Protestei, citando o trecho em “O Pensamento Selvagem” [Papirus] em que ele declara
em compreender a
revolução que estas que o estruturalismo é especificamente uma ciência de superestruturas.
ideias representam para “É verdade”, ele retrucou, “mas o sr. deve compreender que aprendi antropologia com
a teoria antropológica, Franz Boas [1858-1942] e Robert Lowie [1883-1957], que discutiam com índios de reservas os
recomendamos retomar costumes de gerações passadas” -ele chamava isso de “arqueologia do vivo”. “Ninguém pres-
os Cadernos anteriores tava atenção à existência de índios contemporâneos”, ele acrescentou. “Mas hoje é preciso es-
antes de seguir em
frente, em particular, tender o estruturalismo às infra-estruturas.”
aqueles que tratam Retruquei que eu acreditava que sua restrição do estruturalismo às superestruturas era
da noção de estrutura uma questão de princípio científico, e não pude me impedir de lhe perguntar: “O que é o es-
em Radcliffe-Brown e truturalismo, afinal?”. Ele me respondeu: “É a boa antropologia, em suma”. E, de fato, segundo
Claude Lévi-Strauss. esse critério, admito que eu era estruturalista.

Pergunta - Desde quando vem seu interesse pela Polinésia e por Fiji? Pode nos explicar
DICA sua opção por uma etnografia histórica, fundamentada nos arquivos mais que no trabalho de
Recomendamos uma campo? O que o sr. aprendeu sobre essas sociedades?
leitura atenciosa do “su- Sahlins - Como muitos homens de minha geração, minha iniciação na antropologia se-
plemento à viagem de
guiu, em sua própria escala modesta, a trajetória do primeiro grande mestre americano, Lewis
CooK; ou ‘le calcul sau-
vage”, primeiro capítulo Henry Morgan [1818-81]. Ele decidiu fazer um estudo de campo sobre as tribos iroquesas lo-
do livro Ilhas de História, cais e, com isso, inaugurou a tradição etnográfica americana.
pois trata-se de uma Da mesma maneira, minha infância – passada brincando de caubói e índio e lendo os
história nativa clássica romances de Fenimore Cooper [1789-1851, de “O Último dos Moicanos”], escritos em falsa lin-
das ilhas havaianas para
guagem indígena, levou-me a fazer um estudo de campo sobre um tipo de clã incomum, por
entender as implicações
que estamos tratando. ser hierarquizado, que qualificamos como “clã cônico”.
Em síntese, podemos Eu acabava de concluir um estudo das hierarquias políticas polinésias, e era em Fiji que
dizer que Sahlins nos se podia realizar um estudo etnográfico desse tipo de hierarquia de clã.
ajuda pensar que não
estamos condenados a
Pergunta - Por que o sr. escreve que a tradição nessas sociedades do Pacífico pode ser
uma homogeneidade
cultural imposta pela também uma modalidade de mudança?
lógica global. Sahlins - Desde o século 19, os povos do Pacífico, à medida que a sobrevivência de sua
comunidade o permitiu, continuaram a ser atores e motores de suas próprias histórias.
Emprego o plural desse termo propositalmente, pois é sobretudo em suas culturas res-
ATIVIDADE pectivas que eles foram buscar os recursos para continuar a serem atores de suas histórias.
Segue abaixo entrevista Logo, a tradição se tornou o mediador e a medida das transformações por que passaram. Bas-
com o Professor Mar- ta estudar dois exemplos muito distintos de cristianização, ambos seguindo um modelo pro-
shall Sahlins, realizada testante e até mesmo puritano: de um lado os urapmins da Nova Guiné, que não demoraram
por FRANÇOIS ARMA- a se perceber atingidos pelo pecado original e, portanto, se converteram em massa – por con-
NET e GILLES ANQUETIL.
Sahlins, nesta entrevis- tato com outros povos da Nova Guiné – antes mesmo de terem visto qualquer missionário eu-
ta, fala de sua expe- ropeu. E, de outro lado, os havaianos, sobretudo aqueles das camadas populares, que se man-
riência com os nativos tiveram “devassos” e resistiram à conversão durante décadas, porque, como freqüentemente
da Oceania e compara observaram os missionários americanos, “lhes faltava a aversão por eles mesmos”.
a Guerra do Iraque Eu me contentarei em mencionar alguns elementos culturais para demonstrar essa dife-
aos confrontos entre
Esparta e Atenas, entre rença. Para começar, o caráter fortemente centralizado da sociedade havaiana, segundo o qual
outros assuntos diver- a existência e a felicidade das camadas populares dependiam das ações de seus chefes. Inde-
sos. Destaque os temas pendentemente de suas próprias convicções, como repetiam aos missionários desesperados,
que julgar interessante as pessoas comuns se converteriam ao cristianismo quando seu chefe lhes desse o exemplo.
e em seguida realize Mas, em vista do valor político e material das relações eróticas no sistema – o famoso
seminários e discussões
com seus colegas. “espírito aloha”, que governava a sorte tanto dos chefes quanto dos não nobres –, era difícil
convencê-los a praticar a abstinência e a mortificação nas quais os protestantes enxergavam
o sinal da graça divina. Um missionário deplorou o fato de os havaianos disporem de 20 pala-
vras diferentes para designar o adultério: se ele escolhesse uma delas para traduzir o sétimo
mandamento, eles pensariam que as outras formas de adultério continuariam a ser lícitas.

24
Ciências Sociais - Antropologia IV

Inversamente, os urapmins formam um pequeno grupo, relativamente igualitário, de 360


pessoas que se casam entre si e se vêem envolvidas em relações recíprocas e complexas de
parentesco, intensas e freqüentemente incompatíveis. Seria possível dizer que, em seu siste-
ma tradicional, qualquer boa ação era também uma má ação na medida em que a escolha
de viver com alguém implicava deixar de lado outra pessoa, não menos próxima; ao dar um
presente a alguns, incentivava-se a crítica por ter desprezado suas obrigações em relação aos
outros.
Assim, não surpreende que, para traduzir o conceito cristão de pecado, os urapmins em-
preguem o termo “dívida”. Mas eles se enganavam ao crer que o cristianismo seria sua reden-
ção. Como não podiam renunciar pura e simplesmente a sua cultura tradicional, eles apenas
agravaram seu caso, pois sua cultura era incompatível com os ideais de harmonia cristã.

Pergunta - Qual o papel da cultura em sua pesquisa antropológica?


Sahlins - Para mim a cultura é tudo. Em suas formas e em suas transformações, seu papel
na história das sociedades e na organização dos indivíduos, a cultura é o objeto por excelên-
cia de todo saber antropológico.
A melhor maneira de ilustrar essa convicção talvez seja contestar o folclore do determi-
nismo genético que ficou tão em voga nos EUA: esse movimento pretende remeter toda for-
ma cultural a uma “natureza humana” universal fundamentada no interesse pessoal e no espí-
rito de competição.
Associadas às teorias econômicas da “escolha racional”, disciplinas vulgarizadas, como
são a sociobiologia e a psicologia evolutiva, estão criando uma ciência humana de múltiplos
usos, a ciência do “gene egoísta”. Naturalmente, é fácil reconhecer nessa suposta natureza hu-
mana o velho sujeito burguês.
Uma parcela grande demais dos americanos ainda está convencida de que “a espécie sou
eu”. Entretanto, como prova a antropologia mais elementar, viver sua vida em conformidade
com sua cultura permite que se tenha a possibilidade e que se reconheça a necessidade de
satisfazer nossas inclinações naturais no modo simbólico, segundo definições significantes de
nós mesmos, de nosso ambiente, de nossas relações e de nossas produções.
De fato, a cultura humana é bem mais antiga que nossa natureza enquanto espécie, pois
ela remonta a pelo menos 2 milhões de anos, sendo que o Homo sapiens surgiu há apenas
200 mil anos, engendrado dentro de e por um contexto cultural que tomava a reprodução hu-
mana a seu cargo. Se evoluímos biologicamente, isso se deu sob a pressão da seleção cultural,
ou seja, a necessidade de culturalizar nossa animalidade.
Isso não faz de nós ou de nossos ancestrais “páginas em branco” despidas de qualquer
imperativo biológico; quer dizer simplesmente que o que foi selecionado de maneira especí-
fica pelo gênero Homo foi a capacidade de realizar esses imperativos de mil maneiras diferen-
tes e pouco conhecidas, mas demonstradas pela história e pela antropologia.

◄ Figura 2: Surgimento
do Homo sapiens 1
Fonte: Disponível em
<http://cienciadouni-
verso.blogspot.com.
br/2010/12/homo-
-sapiens-sapiens.html>.
Acesso em 4 dez. 2014.

O fato mais pertinente para compreender as relações entre cultura e natureza humana
não é, por exemplo, o fato de que todas as culturas conhecem a sexualidade, mas que toda
sexualidade conhece a cultura. As pulsões sexuais são diversamente expressas e reprimidas
segundo as definições, específicas de cada cultura, de o que são os parceiros, as circunstân-
cias, os lugares, os momentos e as funções corporais apropriados.

25
UAB/Unimontes - 4º Período

Alguns chegam a praticar sexo por telefone. Outro exemplo de manipulação (o jogo de
palavras é proposital) conceitual é a célebre réplica do ex-presidente Bill Clinton: “Não fiz sexo
com essa mulher”.
Inversamente, sublimamos nossa sexualidade genérica de mil maneiras, incluin-
do a de transcendê-la e dar preferência à castidade, valorizada pelo pensamento cristão.
O mesmo se aplica à agressividade: podemos brincar de guerra, desancar impiedosamente o
livro mais recente de um acadêmico inimigo ou, mesmo, à moda nova-iorquina, responder a
um “tenha um bom dia” com “não preciso receber ordens de você!”.
Sejam quais forem nossas necessidades, pulsões, inclinações inatas, quer sejam de ordem
agressiva, egoísta, alimentar, social ou altruísta, elas são frutos de uma definição simbólica,
portanto de ordem cultural. Na espécie humana, a biologia é um determinante culturalmente
determinado.

Pergunta - O verdadeiro pensamento selvagem é o do capitalismo contemporâneo?


Sahlins - Não no sentido estrito do termo. Mais exatamente, o capitalismo contemporâ-
neo implica uma mesma lógica cultural do concreto sob a forma de valores de uso, que, uma
vez fetichizados como preços e colocados em ação para fins lucrativos, fazem inegavelmente
o efeito de um pensamento selvagem incontrolado. Por mais que nossa racionalidade pecu-
niária o tenha ocultado, se ergue sobre todo um sistema de valores culturais motivados que
associam sujeitos e objetos, logo, preferências e produtos, em razão de suas características
distintivas.
É claro que essa realidade passa despercebida aos olhos dos sujeitos burgueses – que ge-
ralmente vivem seus valores culturais como um hábito, sem prestar atenção a ele – e dos eco-
nomistas, que, tendo definido seu domínio como uma racionalidade prudente, enquadram as
formas culturais nos limbos dos fatores “exógenos” ou mesmo “irracionais”.
Não nos damos conta de que nossas escolhas racionais – por exemplo, não serviremos
hambúrgueres a convidados que respeitamos – são baseadas num código de valores que não
guarda relação nenhuma com o caráter nutritivo e que tem tudo a ver com a significação res-
pectiva dos órgãos e dos músculos, da carne e dos cortes, do cortado e do moído, dos pratos
e dos sanduíches etc.
Da mesma maneira, não são as qualidades concretas das roupas que explicam a diferen-
ça de estilo de vestimenta que manifesta a distinção social em vigor entre homens e mulhe-
res em situações de trabalho e de lazer, entre empresários e policiais, bailes de debutantes e
boates: basta pensar em todos os significados veiculados por uma peça de vestuário, como
[Roland] Barthes nos ensinou.
Vivemos hoje em um mundo que se encanta com objetos semioticamente construídos e
culturalmente relativos, como o ouro, a seda, as cepas de pinot noir, o petróleo, o filé mignon,
os tomates “primeira colheita” e a água pura de Fiji.
Assistimos a uma construção da natureza por meio de esquemas culturais historicamen-
te determinados, mas cujas qualidades simbólicas são transformadas em qualidades pecuniá-
rias, cujas fontes sociais são atribuídas a desejos individuais e cuja satisfação arbitrária é tra-
vestida em escolha universalmente racional.
Mas, como é impelido à competição pelo interesse financeiro, esse encantamento produz
uma infinidade de objetos, enquanto ainda for possível metamorfosear as distinções sociais
dos sujeitos e dos objetos em mercadorias rentáveis.

Pergunta - O sr. não hesita em traçar comparações entre civilizações geográfica e histo-
ricamente distantes, como, por exemplo, entre as guerras do Peloponeso narradas por Tucídi-
des e as de Fiji. O que lhe traz esse olhar cruzado?
Sahlins - O conflito entre os reinos fijianos de Bau e de Rewa (e seus respectivos aliados),
que durou de 1843 a 1855, foi a maior guerra travada nos mares do Sul antes da Segunda
Guerra Mundial.
Como Bau (como Atenas) era uma potência naval imperialista, e Rewa (como Esparta) era
uma velha potência terrestre, a guerra da Polinésia já tinha levado os visitantes europeus do
século 19 a traçar comparações entre ela e as guerras do Peloponeso.

26
Ciências Sociais - Antropologia IV

◄ Figura 3: Guerra do
Peloponeso 1
Fonte: Disponível em
<http://4.bp.blogspot.
com/_LbLAOO-
Wv3i4/TIAqD1CeCLI/
AAAAAAAACOk/
DMvJcpu06AQ/s1600/
guerra+de+Peloponeso.
jpg>. Acesso em 4 dez.
2014.

A diferença de estrutura política entre Bau e Rewa procedia de uma interdependência,


comparável à relação entre o parentesco de sangue (consanguinidade) e o parentesco por ca-
samento (afinidade), o que autoriza a pensar que os próprios fijianos teriam consciência de
que essas estruturas eram o espelho invertido (a antítese) uma da outra.
Da mesma maneira, Atenas e Esparta constituem antitipos estruturais e históricos: essas
duas cidades eram, respectivamente, cosmopolita e xenófoba, marítima e terrestre, comer-
ciante e autárquica, luxuosa e frugal, democrática e oligárquica, urbana e campônia, autócto-
ne e imigrante…
Poderíamos continuar ao infinito com essas dicotomias. O que lembra a injunção tão in-
fluente de Lévi-Strauss em “Race et Histoire” [Raça e História]: “É preciso evitar estudar a diver-
sidade das culturas humanas caso a caso, pois essa diversidade nasce menos do isolamento
dos diversos grupos que das relações entre eles”.
Como esse princípio é confirmado várias vezes em “Mythologiques” [Mitológicas], somos
tentados a concluir que, apesar de seu apego à sincronia, o estruturalismo é igualmente forte-
mente historicista. ]

Pergunta - O que as guerras do Peloponeso podem nos ensinar sobre a guerra do Ira-
que, hoje?
Sahlins - Substituindo os mitos de Heródoto pelo lógos, Tucídides usurpou o título de
“pai da história”, tornando-se o queridinho dos pragmáticos das relações internacionais e ou-
tros adeptos ocidentais da “realpolitik”.
Mas o paralelo mais esclarecedor com o Iraque nos é oferecido pela guerra civil anárqui-
ca (”estase”) que devastou Corcira, onde espartanos e atenienses se envolveram no conflito
interno que opunha os oligarcas locais aos democratas, disputando o controle da cidade. Em
Corcira, assim como no Iraque, quando as instituições de Estado perderam toda legitimidade
e a violência se tornou o recurso privilegiado de todas as causas partidárias, os valores sagra-
dos da justiça, da moral e da religião foram afogados no sangue e reduzidos a nada.

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UAB/Unimontes - 4º Período

Platão observou um dia que cada “pólis” é na verdade composta de várias “pólei”, pois ela
se divide em cidade dos ricos e cidade dos pobres, em guerra de um contra o outro, e cada
uma é dividida, ela própria, entre facções opostas. E, quando as causas e as forças internacio-
nais -como a dominação ateniense sobre Corcira ou a oposição entre democracia e funda-
mentalismo islâmico no Iraque- se somam às dissensões locais, tem-se a impressão de assistir
a um colapso da ordem cultural e à irrupção da natureza humana sob sua forma mais brutal.
Em Corcira, escreve Tucídides, “até as palavras foram obrigadas a renunciar a seu sentido
habitual e aceitar aquele que se lhes era dado”. Desse modo, a premeditação virou “legítima
defesa”; a moderação, “falta de virilidade”, a prudência, “covardia”.
Ecoando alguns argumentos dos sofistas, opondo o caráter superficial da cultura (”nó-
mos”) ao caráter irresistível da natureza (”physis”), o historiador antigo afirmava que essa ma-
nifestação desenfreada de hipocrisia e injustiça se produziria cada vez que o desejo natural de
poder e de lucro se chocasse com as frágeis convenções da ordem social.
E ainda encontramos os ecos dessa ideologia no comentário feito por Donald Rumsfeld
[então secretário da Defesa] sobre o caos que se seguiu à ocupação americana de Bagdá: “Isso
teria que acontecer, cedo ou tarde”, uma versão asseptizada de “Cedo ou tarde a coisa teria
que explodir”. É um defeito que os ocidentais sempre atribuem aos outros povos, mas eles
próprios tendem rapidamente a confundir natureza e cultura.
Quer seja em Corcira ou no Iraque, foi preciso uma combinação gigantesca de causas
morais e políticas conflitantes para produzir esse suposto estado de natureza. Em Corcira, as-
sim como no Iraque, a intervenção de fatores externos poderosos conferiu um valor novo e
absoluto aos cismas internos da cidade, tornando-os tão insolúveis quanto abstratos e ideo-
lógicos.
Daquele momento em diante, as pessoas passaram a lutar por ou contra generalidades:
a “liberdade”, a “escravidão”, a “democracia”, o “islã”, a “ditadura”, o “terrorismo”, o “imperialismo”.
Fato que prova simplesmente que é necessária muita cultura para criar um estado de natureza.

Fonte: Jornal Folha de São Paulo. Disponível: <http://www.folha.uol.com.br>.

Referências
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1998.

CASTRO, Celso. “Antropologia com Vocação: uma homenagem a Clifford Geertz”. Estudos Histó-
ricos. Rio de Janeiro. nº. 38. julho-dezembro de 2006, p. 116-119.

ERIKSEN, Thomas Hylland; NILSEN, Finn Sivert. Historia da Antropologia. 1. ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2010.

FISCHER, Michael. “Da Antropologia Interpretativa a Antropologia Crítica”. Anuário Antropoló-


gico 83. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

GEERTZ, Clifford. “Gêneros Confusos: la refiguración del pensamiento social. In: REYNOSO, Carlos.
(org.) El Surgimiento de la Antropologia. Pós-Moderna. México: Gedisa, 1991.

SAHLINS, Marshall David. Como Pensam os “Nativos”: Sobre o Capitão Cook, por exemplo. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

SAHLINS, Marshall David. Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

SAHLINS, Marshall David. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Sahar editora, 2003.

28
Ciências Sociais - Antropologia IV

Unidade 2
A Antropologia Pós-Moderna
Carlos Caixeta de Queiroz

2.1 Introdução
Como vimos, Geertz, ao elaborar uma nova concepção de antropologia, que ficou conheci-
da como antropologia interpretativa, posicionou-se criticamente frente às capacidades explicati-
vas dos modelos antropológicos clássicos de representações culturais. Geertz procurou entender
que a cultura é um texto e que pode ser interpretado como um texto. A cultura é uma tessitura
de significados elaborados pelo homem e que poderia ser lida e interpretada como se fosse um
texto. Caberia, então, à antropologia interpretar os significados da cultura e a interpretação seria
de segunda mão, pois quem faria a interpretação de primeira mão seriam os nativos.
Partindo dessa ideia de ver a cultura como texto, os antropólogos chamados pós-modernos
tomaram como objeto da antropologia o próprio texto antropológico ou, em outras palavras,
propuseram interpretar criticamente o texto etnográfico. As críticas dos pós-modernos se centra-
ram, principalmente, nos contextos de produção do texto etnográfico, sobre a autoria dos textos
etnográficos e a relação entre pesquisador e pesquisado. Procuraremos, então, situar algumas
das preocupações dos autores chamados pós-modernos.

2.2 Antropologia Pós-Moderna


Ainda no século XIX, a expressão “evolucionismo social” foi combatida e, em seu lugar, a “an-
tropologia”, em diversas manifestações distintas na França, Inglaterra, e Estados Unidos e outros
lugares, começou a ser divulgada e trabalhada.
Para pensar a emergência de uma antropologia moderna já em fins do século XIX e come-
ço do XX, como se sabe, o caso francês é marcado pelos trabalhos de Emile Durkheim e Mar-
cel Mauss para a terminação “etnologia”; na Inglaterra, Bronislaw Malinowski e Radcliffe Brown
contribuíram para aquilo que passou a ser chamado de “antropologia social”; e, finalmente, no
caso dos Estados Unidos, foi Franz Boas e a “escola de cultura e personalidade” (que foi mentor)
quem deu à terminação “antropologia cultural” a roupagem como um pensamento que ainda há
fortes traços neste país ainda hoje (Stocking Jr. 2004, p.15). Mas, nenhumas dessas formulações
deixaram de ser precedidas de discussões entorno de fenômenos sociais (e mesmo biológicos)
relevantes. Foi durante o século XIX que a Europa e os Estados Unidos passaram a colher dados
e informações de populações que possuíam a presença colonial em seus territórios: o Africano, a
Oceania, a Ásia, e as Américas.
Entre as inúmeras expedições, pode ser citada a do “Estreito de Torres” (The Cambridge An-
thropological Expedition to the Torres Straits), em 1898-1899, que foram organizadas pelos ingle-
ses Alfred Court Haddon (1855 - 1940), W. H. R. Rivers (1864 (1864-03-12) - 1922) e Charles Gabriel
Seligman (1873 - 1940); acrescentam-se, ainda, os trabalhos documental-bibliográficos de Fran-
cis James Gillen (1855 - 1912) e Walter Baldwin Spencer (1860 - 1929) que, em 1899, fazem uma
descrição das sociedades indígenas do centro australiano: “The native tribes of Central Austrália” e,
em 1904, das do Norte desse mesmo continente: “The northern tribes of Central Austrália”. Foram
esses conjuntos de descrições e pensamentos que deram posições que viraram referência pelos
dados etnográficos que produziram para obras célebres como: “Les formes élémentaires de la vie
religieuse” (1912), de Emile Durkheim; “Totem and Taboo: Resemblances Between the Mental Lives of
Savages and Neurotics” (1913), de Sigmund Freud; e “The family among the Australian aborigenes: a
sociological study” (1913), de Malinowski.

29
UAB/Unimontes - 4º Período

A partir disso, então, muitos casos como estes ecoaram no terreno acadêmico. Como é di-
vulgado na literatura antropológica, se com Durkheim já aparecia a ideia de “integração” e “as ló-
gicas próprias de cada povo”, foi com Franz Boas (1858 - 1942) de um lado para a “antropologia
cultural americana” e Bronisław Kasper Malinowski (1884 - 1942) de outro, para a “antropologia
social inglesa”, que o “método comparativo”, “trabalho de campo” e “o nativo” começam a parecer
em formas mais necessárias para aquilo que se convencionou chamar de “modernidade” antro-
pológica.
Mas, o ponto de maior interesse aqui não é bem trabalharmos essa produção antropológica
por diversos pesquisadores durante os anos, algo que já foi discutido em outras disciplinas do
nosso Curso, mas a efervescência de um pensamento que começou a questionar tais trabalhos
e o tempo em que foram escritos. Foram nos anos de 1980 que algumas discussões de antropo-
logia começaram a usar a roupagem de “pós-moderna” ou “crítica”. Contudo, já se deve advertir
aqui que nenhuma referência teórica que é construída, como se tentou previamente dizer, está
solta sem alguns desmembramentos ou referências. Vamos tentar mapear momentos circunscri-
tos de significativos desdobramentos para a chegada da antropologia “pós-moderna” ou “crítica”.
Para Ardener (1985), o “modernismo” antropológico se consolida com a instauração de gran-
des “escolas” de pensamento antropológico, e o momento de crítica aos pensamentos que se
prendem a essa fase se instaura na diversidade teórica contemporânea. O período dos “ismos”
(como é caracterizado a “modernidade” antropológica: Funcionalismo, Culturalismo, Estrutura-
lismo e outros), foi marcado por uma série de pensadores que contribuíram para afirmação de
tradições paradigmáticas em antropologia (Stocking Jr., 2006) em vários cantos do mundo. Even-
tos como as guerras mundiais e a crise dos modelos coloniais pelo mundo serviram para pensar
(entre muitas coisas) sobre o lugar da teoria, da produção do conhecimento, do lugar do objeto
e da posição do sujeito, elementos balizadores importantes do que se toma como clássico no
pensamento moderno. Críticas aos movimentos coloniais e de revolta no continente Africano e
outros, a produção literária, a emergência da ideia de conflito em começo dos anos 1970, a crise
dos modelos industriais e outros inúmeros acontecimentos no mundo ajudaram a postular um
pensamento crítico deste tipo de realidade moderna que até então dominou o cenário de pro-
dução intelectual pela antropologia sob a imagem de grandes “escolas”.
Na Europa, pensadores como M. Bakhtin, M. Foucault, J. Derrida, R. Barthes, P. Bourdieu se
destacaram em questionamentos sobre o “pensamento moderno” em vários campos de conheci-
mento, possibilitado principalmente pelas discussões da linguística que já estavam sendo divul-
gadas e foram mais consolidadas nas décadas do período de 1950 e 1970. Em conjunto aos seus
questionamentos, havia outros inúmeros antropólogos que se esboçaram em variadas obras
pelo mundo, como a “antropologia simbólica” e a antropologia interpretativa nos EUA.
Clifford Geertz, como o principal expoente da chamada antropologia hermenêutica ou in-
terpretativa, já advertia como saída do mal-estar da relação objeto x sujeito, observador x nativo,
a frase “somos todos nativos” (Geertz, 2001). Esta e outras inúmeras tentativas deram suporte a
pensamentos que veio a chamar de “pós-modernos” ou “críticos”: James Clifford, George Marcus,
James Boon, Paul Rabinow, Vincent Crapanzano, Michael Taussig, Stephan Tyler, Talad Asad e ou-
tros.
Os pontos mais gerais de várias das discussões estão na natureza do próprio empreendi-
mento clássico da antropologia: a etnografia, na escrita e da autoridade implicada neste proces-
so. Portanto, em meio a esta “crise representacional”, um conjunto de pensadores, talvez iniciado
pelo trabalho de Clifford Geertz, procurou dar uma resposta à suposta crise que a antropologia
passava (ou o que eles chamam de “crise da modernidade”). Entre os pontos centrais de (re)deli-
neamento está “a escrita etnográfica”.
Um fato importante que Geertz chama a atenção é quando a publicação dos diários de Ma-
linowski (este ícone da “antropologia moderna”) foi realizada e houve uma “nova” discussão so-
bre “a autoridade etnográfica”. Para Geertz, Malinowski retrata um tipo de pesquisador que “obli-
terou o próprio ego” em vez de procurar estudar o que ele chama de “sistemas simbólicos” de
uma dada sociedade, processo que deveria ser feito a partir da possibilidade de compreensão da
“cultura” (que é um contexto) do povo estudado, ou seja, uma antropologia da compreensão da
explicação do “outro” de sua experiência: a “antropologia interpretativa”. Portanto, nesse entendi-
mento, os textos antropológicos seriam estas construções ficcionais (“interpretações de segunda
ou terceira mão”), mas sempre como algo construído por “fatos cumulativos” (Geertz, 1989:10-
11). Afinal, para o autor estadunidense, os “antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades,
vizinhanças...) eles estudam nas aldeias” (GEERTZ, 1989, p.16).
Na verdade, os pressupostos da “objetividade” e da “neutralidade” estavam sendo postos em
questionamento. Para o “pai” da “antropologia interpretativa” (Geertz) o que se deveria é buscar

30
Ciências Sociais - Antropologia IV

trilhar o discurso social por meio de uma interpretação dada, por exemplo, da experiência dos
balineses contada pelos balineses, e não mais a proposta (“moderna”) do etnógrafo sobre os bali-
neses. Este domínio do discurso foi de certa forma a maior mola de debate.
Bem, outros autores que representam o pensamento “pós-moderno” consideram a existên-
cia, portanto, de uma crise como sinal de uma projeção nefasta à pretensa objetividade diante
de um “contexto” de mudança “culturais” e “sociais”, afinal: “las personas y las cosas están cada vez
más fuera de lugar” (CLIFFORD, 1998, p. 20).
Algumas propostas, como de George Marcus (1995), parecem procurar entender o sentido
mais “global” dos contextos construídos, em sua análise de um objeto “multi sited” tem como en-
foque que a etnografia possa romper os espaços convencionalizados por fronteiras, que levem
em consideração, em suma, outros aspectos mais abrangentes em conexões em várias escalas
etnográficas. A escrita, portanto, só faria sentido se estivesse circunscrita a esses aspectos mais
de esforços metalinguísticos.
A autoridade etnográfica, segundo essa perspectiva, não é a mesma, porque até mesmo
para eles “un poeta como Williams es un etnógrafo” (CLIFFORD, 1998, p. 24).
Os chamados antropólogos pós-modernos propõem, então, por um lado, o estudo dos tex-
tos das etnografias como texto e ressaltam a necessidades de novas estratégias narrativas. Por
outro lado, questionam o trabalho de campo dos antropólogos consagrados, sugerindo a neces-
sidade de reformular a relação entre pesquisador e pesquisado e o papel do antropólogo.

Referências
ARDENER, Edwin. “Social anthropology and the decline of modernism”. In: OVERING, Joanna
(org.), Reason and Morality. Londres: Tavistock Publications, 1985, p. 47-70.

CLIFFORD, James. “Trabalho de campo, reciprocidade e elaboração de textos etnográficos: o


caso de Maurice Leenhardt”. In:____. A Experiência Etnográfica: antropologia e Literatura no
século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998, p. 227-251.

STOCKING Jr, George W. “Introdução: Os pressupostos básicos da antropologia de Boas”.


In:_________ (org.). A Formação da Antropologia Americana. Rio de Janeiro: Contraponto-e-
ditora UFRJ, 2004.

STOCKING Jr, George W. “Tradições Paradigmáticas na história da antropologia”. In: Teoria & So-
ciedade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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Ciências Sociais - Antropologia IV

Resumo
Unidade 1

A Antropologia Interpretativa. Nessa parte do Caderno Didático discutimos, de forma introdutó-


ria, as questões:
• As principais contribuições teórico/metodológica da antropologia de Clifford Geertz, que foi
o fundador, do que se chamou de antropologia intepretativa ou simbólica.
• A antropologia interpretativa se posicionou contra o discurso cientificista e objetivista exer-
citado pela antropologia clássica.
• Geertz propôs que se estude mais os significados do que comportamentos, que se procure
o entendimento, a interpretação mais do que a busca de leis.
• Com a antropologia interpretativa, formulada por Geertz, a ação simbólica torna-se um ele-
mento fundamental de compreensão ou de estudo.
• A antropologia interpretativa resgata a noção de compreensão em oposição a explicação.
• A prática antropológica torna-se, ou tenciona-se tornar, um encontro entre pontos de vistas
distintos, o do antropólogo e do nativo.
• Geertz procurou redefinir o conceito de cultura, concebendo-o como um sistema de símbo-
los e significados compartilhados pelos indivíduos de uma determinada sociedade.
• Para Geertz é na análise que a etnografia torna-se “descrição densa”, ou melhor, a análise é
feita através de uma descrição densa.
• Geertz afirma que sociedade ou a cultura pode ser interpretada como um texto. Os fenôme-
nos sociais precisam ser lidos não somente pelos antropólogos mais pelos próprios mem-
bros da sociedade.
• Assim, a interpretação dos antropólogos é uma interpretação de segunda mão, pois é uma
interpretação da interpretação dos indivíduos de uma determinada sociedade.
• Para Geertz, a antropologia deve compreender as maneiras pelas quais as pessoas enten-
dem e interpretam o mundo ao seu redor.
• A antropologia é uma descrição densa, que consiste em apreender as estruturas de signifi-
cação mais profundas e estabelecer bases para compreender diferentes interpretações em
um determinado contexto.
• A cultura é um documento, ela pode ser tratada como um texto. A cultura inscreve seus sig-
nificados, suas instituições. Por isso o etnógrafo pode compreendê-la como se fosse um tex-
to a ser desvendado.
• Para Geertz, a descrição etnográfica deve ser interpretativa, “o que ela interpreta é o fluxo do
discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o dito num tal discurso
da sua possibilidade de extinguir-se e fixa-lo em formas pesquisáveis”.
• Marshall Sahlins propôs uma interpretação sobre a relação entre história e cultura, bem
como uma interpretação simbólica da cultura bem longe do utilitarismo.
• Para Sahlins, a cultura pode ser pensada como um conjunto estrutural de significação, no
entanto, o conteúdo destes conjuntos estruturais altera-se em função da história.
• O grande esforço de Sahlins consiste em "historicizar a noção de estrutura”, bem como pes-
quisar como a estrutura se realiza no interior da ordem cultural (conjunto estrutural de sig-
nificação).

Unidade II

A Antropologia pós-moderna. Nesta parte, situamos a perspectiva crítica na antropologia a par-


tir de alguns pontos:
• A chamada antropologia pós-moderna ou crítica pode ser entendida como um movimento
de crítica à antropologia clássica, que surgiu nos Estados Unidos, a partir dos anos 80.
• Os antropólogos, que se propuseram estabelecer um diálogo crítico com a antropologia, to-
maram a própria antropologia como objeto de estudo antropológico.
• Os textos antropológicos ou as etnografias clássicas foram objetos de estudo para os antro-
pólogos críticos.
• Os críticos à antropologia elaboram um estudo dos textos das etnografias como texto e res-
saltam a necessidades de novas estratégias narrativas.
33
UAB/Unimontes - 4º Período

• As novas narrativas deveriam diluir a oposição entre sujeito e objeto, ou entre pesquisador e
pesquisado.
• Os chamados “pós-modernos” na antropologia questionaram ainda a autoridade etnográfi-
ca. Assim, não seria possível uma descrição privilegiada e fixa da qual se possam fazer afir-
mações neutras.
• Os pós-modernos propuserem que a autoridade etnográfica fosse diluída a partir da cons-
trução de textos dialógicos, que expressassem o ponto de vista do nativo e o do antropó-
logo.
• Portanto, os textos deveriam ser polifônicos, ou seja, um texto que pudesse revelar as várias
vozes do discurso e do conhecimento antropológico.

34
Ciências Sociais - Antropologia IV

Referências
Básicas

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1978.

GEERTZ, Clifford. Nova Luz Sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

REYNOSO, Carlos (org.). El Surgimiento de La Antropologia Pos-moderna. Barcelona: Gedisa,


2008.

SAHLINS, Marshall David. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Sahar editora, 2003.

Complementares

ARDENER, Edwin. “Social anthropology and the decline of modernism”. In: OVERING, Joanna
(org.), Reason and Morality. Londres: Tavistock Publications, 1985, p. 47-70.

CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade na antropologia. In:


Novos Estudos, CEBRAP, nº 21, julho de 1988.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 1988.

CLIFFORD, James. “Sobre la autoridad etnografica”. In:____. Dilemas de la Cultura: antropología


literatura y arte em la perspectiva pos-moderna. Barcelona: Gedisa editorial, 2001, pp. 39-77.

CLIFFORD, James. “Trabalho de campo, reciprocidade e elaboração de textos etnográficos: o


caso de Maurice Leenhardt”. In:____. A Experiência Etnográfica: antropologia e Literatura no
século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998, p. 227-251.

FISCHER, Michael. “Da Antropologia Interpretativa a Antropologia Crítica”. Anuário Antropoló-


gico 83. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LCT, 1989

GEERTZ, Clifford. “Anti-Anti Relativismo”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 8, vol. 3,
outubro de 1988

GEERTZ, Clifford. “Gêneros Confusos: la refiguración del pensamiento social. In: REYNOSO, Carlos.
(org.) El Surgimiento de la Antropologia. Pós-Moderna. México: Gedisa, 1991.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1978.

GEERTZ, Clifford. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis-RJ:


Vozes, 1997.

GEERTZ. C. O saber local. novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes,


2001.

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Ethnography. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, California, vol.24

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pologia. São Paulo: USP, v. 37, p. 7-34, 1994

35
UAB/Unimontes - 4º Período

REYNOSO, C. El surgimiento de la antropologia posmoderna. México: Gedisa, 1991.

SAHLINS, Marshall David. Como Pensam os “Nativos”: Sobre o Capitão Cook, por exemplo. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

SAHLINS, Marshall David. Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

SAHLINS, Marshall David. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Sahar editora, 2003.

SHWEDER, R. “La Rebelión Romântica de la Antropologia Contra el Iluminismo, o el Pensamento


es más Razón y Evidencia”. In: REYNOSO, C. (org.) El Surgimiento de La Antropologia. Pós-Mo-
derna. México: Gedisa, 1991.

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Ciências Sociais - Antropologia IV

Atividades de
Aprendizagem - AA
1) Discorra sobre a reação de Clifford Geertz aos modelos de rerpresentação da antropologia
clássica.

2) Argumente sobre o conceito de cultura para Clifford Geertz.

3) Em que consiste a “descrição densa”?

4) Discorra sobre as principais características da antropologia intepretativa proposta por Geertz.

5) Discorra sobre a concepção de Geertz sobre a representação etnográfica.

6) Mostre como Sahlins interpreta a relação entre história e cultura.

7) Tomando como referência as discussões elaboradas por Sahins, argumente sobre culturas e
processos de globalização.

8) Discorra sobre as principais reações dos chamados antropólogos pós-modernos à antropolo-


gia clássica.

9) Qual a orientação metodológica proposta pela antropologia pós-moderna?

10) Em que consiste o objeto de interpretação da antropologia pós-moderna?

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