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A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA
Ines Loureiro+
RESUMO
O artigo constata que Foucault utiliza vários termos para se referir à estética da
existência, como “forma”, “estilo”, “estética”, “arte” e “beleza”. Verifica-se que as
noções centrais são as de “arte” e “beleza” (e seus respectivos adjetivos), em geral
empregadas quase como sinônimos. Porém, tais noções possuem implicações diversas,
que são sumariamente examinadas. O artigo termina por sugerir que, no mundo
contemporâneo, a proposta de “construir a própria vida como uma obra de arte” talvez
faça mais sentido do que a de “construir uma vida bela”, exatamente por causa das
transformações sofridas por estes termos ao longo da história.
Keywords: aesthetics of existence; Michel Foucault; ethics and aesthetics; art; beauty.
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Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade São Marcos; autora de O carvalho e o pinheiro - Freud e o estilo romântico (São Paulo,
Escuta/Fapesp, 2002). Endereço: Rua Itacolomi , 200/61,Cep: 01239-020, São Paulo – SP
E-mail: irblou@netpoint.com.br
Introdução
Uma das complexas tarefas com as quais se depara aquele que se dedica à história
da psicologia é, certamente, a de traçar – ou retraçar – os veios pelos quais o
“psicológico” chegou a se constituir. São múltiplas e heterogêneas as versões sobre tal(is)
processo(s) de constituição. Os vários estudos que mapeiam as condições de
possibilidade do surgimento da psicologia como território específico e desde sempre
partilhado por tendências distintas (cf. Figueiredo, 1995; Ferreira Filho, 1999; Jacó-
Vilela, 2001, dentre outros exemplos da produção nacional), mostram um contínuo
processo de desentranhamento do psicológico e da psicologia em relação ao solo da vida
social e de outros saberes – tais como a filosofia, as artes e a biologia1.
A busca de elementos para as diferentes genealogias do psicológico encontra nos
estudos sobre ética e a estética searas privilegiadas. (cf. Taylor, 1997; Campbell, 2001;
Ferry, 1994.). No que se segue, vamos retomar um momento em que ética e estética
entrelaçaram-se na constituição de um certo tipo de subjetividade marcada por
características que seriam decisivas para a formação do sujeito moderno: o início de um
“si” diferenciado, ativamente cultivado/moldado, com alguma dimensão de interioridade
e reflexividade, empenhado na busca de autodomínio e auto-aperfeiçoamento. Estamos
nos referindo às práticas de si vigentes na Antigüidade e extensamente estudadas por
Michel Foucault (1984/2001, 1984/1999).
O propósito deste artigo é lançar uma questão, preliminar a uma pesquisa mais
ampla e ainda em curso, sobre os termos utilizados por Foucault para falar do cuidado de
si e da “estética da existência”. Explico-me: nos textos e entrevistas de Foucault (mas
também no vocabulário de um Rorty) encontramos diferentes termos para descrever esta
ética de construção/cultivo/cuidado de si denominada “estética da existência” ou
estilística existencial. Tenho em mente, por exemplo, vocábulos como forma, estilo, arte,
beleza. Mais adiante, percorreremos algumas dessas formulações (que, ademais, são elas
mesmas belíssimas...). Por enquanto, basta assinalar que não raro esses termos aparecem
encadeados, quase como sinônimos e como se remetessem a um mesmo horizonte. Ora,
parece-me que vale a pena colocar em questão o vocabulário empregado para falar deste
instigante e polêmico tema. De meu ponto de vista, descrever o ideal de uma vida bela ou
de uma vida construída como obra de arte, por exemplo, tem ressonâncias bastante
diversas. E levando-se em conta o tipo de crítica recebida por esta noção, pode ser
relevante examinar com um pouco mais de cautela a nomenclatura utilizada. Para que um
propósito tão simples não se converta em simplório, convém situar melhor a discussão.
Os últimos trabalhos de Foucault sobre a ética do sujeito despertaram várias objeções. Penso em
retomar uma delas, procurando analisar os argumentos que a sustentam. A objeção é a seguinte:
Foucault defende a idéia de uma estética da existência voltada para a auto-perfeição e auto-
afirmação do sujeito. Esta estética dispensaria o compromisso com valores universais ou com os
princípios humanitários das democracias liberais. Os críticos universalistas, entre os quais
Charles Taylor, Rainer Rochlitz e Pierre Hadot, enfatizam o primeiro aspecto. Alegam que
Foucault se auto-engana ou se equivoca. Engana-se quando assume tacitamente valores universais
que desacredita; equivoca-se quando interpreta erroneamente textos histórico-filosóficos que
justificam sua teoria. Richard Rorty, representante do neo-pragmatismo, chama a atenção para o
segundo aspecto, criticando a insensibilidade de Foucault para com os princípios e ganhos das
sociedades liberais (Costa, 1995, p. 121).
Assim, na acepção ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é tanto filosofia do
Belo como filosofia da Arte. Precisamos, no entanto, distinguir entre Estética e Filosofia da Arte.
A rigor, o domínio dos fenômenos estéticos não está circunscrito pela Arte, embora encontre nesta
a sua manifestação mais adequada [...]. Mas, por outro lado, a Arte excede, de muito, os limites
das avaliações estéticas. Modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno social e parte da
cultura (Nunes, 1989, p. 15).
(...) justamente porque a estética clássica é uma ontologia, e que a ética e a teoria do conhecimento
são igualmente inseparáveis da perspectiva ontológica, as três noções (de belo, de bem e de
verdadeiro) mantêm relações de proximidade e de cumplicidade muito evidentes. Uma vez que
designa o ser, o belo é, ao mesmo tempo, bom e verdadeiro. Também por isso o verdadeiro é,
simultaneamente, bom e belo, e o bem, tão bom quanto belo (Sherringham, 1997, p. 51-52).
Daí se explica o desejo de “legar uma vida bela” para os póstumos, que Foucault
tão bem rastreou entre os antigos: a beleza detinha, então, um caráter de exemplaridade,
de virtude a ser admirada e seguida exatamente por sua ligação intrínseca com o bem e a
verdade3.
Por outro lado, Sherringham mostra que, no paradigma da estética clássica, a
supervalorização da beleza é acompanhada de uma relativa “inferioridade” da arte (cf.
Sherringham, 1997, p. 58-64); ora tida por mentirosa e inimiga da filosofia (versão
platônica), ora associada à fabricação de objetos característica da vida produtiva
(considerada inferior, na versão aristotélica), o fato é que a arte era indissociável do
domínio e exercício da técnica. Esta referência nos ajuda a compreender a ênfase
foucaultiana na prática das técnicas/tecnologias de si como o cerne das “artes da
existência”, artes que têm como matéria a própria vida4.
Eis alguns aspectos – e decerto não os únicos – que podem soar estranhos para
nós, contemporâneos. Rompeu-se qualquer ligação intrínseca entre beleza e outros
valores, mal se consegue conceber o que seria a arte dotada de um estatuto inferior ao da
filosofia, por exemplo. Na verdade, as convenções no plano da vida social e as
demarcações conceituais foram se diluindo progressivamente, até chegar à total ausência
de consenso em qualquer desses terrenos.
Ainda que a conjuntura seja nebulosa, et pour cause, é evidente que não se impõe
a escolha de um ou outro termo (arte ou beleza) para nos referirmos à estética da
existência. Mas com base nessas últimas indicações sobre a estética clássica, poderíamos
pensar que, nos dias de hoje, faria mais sentido a proposição de construir a vida como
uma obra de arte do que a de erigir uma vida bela. Isto se deve tanto ao total
“esvaziamento” da exemplaridade outrora associada à beleza, quanto à permanência da
noção de arte como ação transformadora (e inteiramente desvinculada de quaisquer
compromissos com originalidade, beleza, ou até mesmo com a materialidade). Ademais,
a noção de arte abriga, necessariamente, uma menção ao “outro” – ainda que implícita ou
imaginariamente, na forma de interlocutor ou destinatário; tal referência à alteridade é
imprescindível para que a arte possa se estabelecer e consolidar como parâmetro
norteador de uma nova ética.
De qualquer modo, mesmo que renunciemos à noção de beleza (ou, ao menos, à
beleza como um valor ou como ideal compartilhado), a idéia de uma estética da
existência talvez requeira que a atividade/ação empreendida pelo sujeito não seja
aleatória; isto é, que busque ou resulte em algum tipo de harmonia – seja nas (ou entre)
as múltiplas e parcelares experiências tal como vividas por ele, seja no conjunto desta
existência, tal como considerada pelos outros ou pelo próprio sujeito-artífice. Embora
a noção de harmonia seja altamente relativa e dê ensejo a discussões intermináveis,
parece-me que é o termo que melhor nomeia um certo tipo de configuração em que os
diversos aspectos de uma vida “ornam”, rimam, combinam-se entre si. Configuração que
é fruto de experimentação e trabalho constantes, mas também de reflexão e juízo
(estético, inclusive). Creio que é isso que Foucault tem em mente quando discorre sobre
seu próprio trabalho intelectual, questionando a relação entre as idéias de um filósofo e
sua vida filosófica, seu ethos pessoal; nesta ocasião, profere uma frase que, a meu ver,
sinaliza claramente que tipo de harmonia podemos buscar: “é preciso, a cada instante,
passo a passo, confrontar o que se pensa e o que se diz com o que se faz e o que se é”
(Foucault, 1984c/2001, p. 1404).
NOTAS
1
Tomo de empréstimo a Luiz Fernando Duarte a excelente idéia de “desentranhamento”, por ele utilizada
para designar o modo pelo qual as ciências sociais (sobretudo a antropologia e a sociologia) foram
progressivamente conferindo visibilidade e autonomia aos fenômenos da sexualidade até então dissolvidos
em várias esferas da vida social (sistemas de troca, parentesco, etc.). Duarte, por sua vez, indica que extraiu
a noção de “disembeddedness ” de Karl Polanyi. (cf. Duarte, 2003).
2
Pretendo investigar, em uma próxima etapa desta pesquisa, se a Bildung romântica alemã pode ser
considerada como uma modalidades na história das “estéticas da existência”.
3
O elo entre virtude/beleza é explícito em vários trechos como este, em que Foucault descreve as práticas
da Antigüidade: “Agiam de modo a conferir a suas vidas certos valores (reproduzir certos exemplos, deixar
uma alta reputação para a posteridade, dar o máximo possível de brilhantismo às suas vidas)” (...)
(1983/1995, p. 270).
4
“A ética grega está centrada num problema de escolha pessoal, de estética da existência. A idéia do bio
como um material para uma peça de arte estética é algo que me fascina” (Foucault, 1983/1995, p. 260; em
francês: “obra de arte estética”).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BIRMAN, J. (1996) Por uma estilística da existência. São Paulo: editora 34.
DUARTE, L.F.D. (2003) A sexualidade nas Ciências Sociais: leitura crítica das
convenções (mimeog.). Trabalho apresentado no Seminário “Sexualidades e
saberes: convenções e fronteiras”. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Unicamp.
FERREIRA, A.A.L. (1999) A diferença que nos une: um estudo sobre as condições
de surgimento do saber psicológico em sua dispersão. Tese de Doutorado em
Psicologia Clínica, PUC-SP.
HADOT, P. (1996) Pierre Hadot: histoire du souci. Propos recueillis par François
Ewald. Magazine Littéraire. Le souci, étique de l’individualisme. n. 345: 18-23.
KEHL, M. R. (2002) Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras.