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ARTE E BELEZA: DIFERENTES FORMULAÇÕES FOUCAULTIANAS SOBRE

A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA
Ines Loureiro+

RESUMO
O artigo constata que Foucault utiliza vários termos para se referir à estética da
existência, como “forma”, “estilo”, “estética”, “arte” e “beleza”. Verifica-se que as
noções centrais são as de “arte” e “beleza” (e seus respectivos adjetivos), em geral
empregadas quase como sinônimos. Porém, tais noções possuem implicações diversas,
que são sumariamente examinadas. O artigo termina por sugerir que, no mundo
contemporâneo, a proposta de “construir a própria vida como uma obra de arte” talvez
faça mais sentido do que a de “construir uma vida bela”, exatamente por causa das
transformações sofridas por estes termos ao longo da história.

Palavras-chave: estética da existência; Michel Foucault; ética e estética; arte; beleza

ART AND BEAUTY: FOUCAULT’S DIFFERENT FORMULATIONS ON THE


AESTHETICS OF EXISTENCE
ABSTRACT
This paper discusses the various terms, such as “form”, “style”, “aesthetics”, “art” and
“beauty”, that Foucault deploys to refer to the aesthetics of existence. It shows that
Foucault’s core notions are those of “art” and “beauty” (and their respective
adjectives), which are used by and large as synonymous in his texts. However, such terms
have diverse implications, which are concisely examined here. Finally, this paper
suggests that the prospect of “building one’s life as a work of art” perhaps makes more
sense in contemporary world than “building a beautiful life”, precisely because of the
transformations these terms have undergone throughout history.

Keywords: aesthetics of existence; Michel Foucault; ethics and aesthetics; art; beauty.

+
Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade São Marcos; autora de O carvalho e o pinheiro - Freud e o estilo romântico (São Paulo,
Escuta/Fapesp, 2002). Endereço: Rua Itacolomi , 200/61,Cep: 01239-020, São Paulo – SP
E-mail: irblou@netpoint.com.br
Introdução
Uma das complexas tarefas com as quais se depara aquele que se dedica à história
da psicologia é, certamente, a de traçar – ou retraçar – os veios pelos quais o
“psicológico” chegou a se constituir. São múltiplas e heterogêneas as versões sobre tal(is)
processo(s) de constituição. Os vários estudos que mapeiam as condições de
possibilidade do surgimento da psicologia como território específico e desde sempre
partilhado por tendências distintas (cf. Figueiredo, 1995; Ferreira Filho, 1999; Jacó-
Vilela, 2001, dentre outros exemplos da produção nacional), mostram um contínuo
processo de desentranhamento do psicológico e da psicologia em relação ao solo da vida
social e de outros saberes – tais como a filosofia, as artes e a biologia1.
A busca de elementos para as diferentes genealogias do psicológico encontra nos
estudos sobre ética e a estética searas privilegiadas. (cf. Taylor, 1997; Campbell, 2001;
Ferry, 1994.). No que se segue, vamos retomar um momento em que ética e estética
entrelaçaram-se na constituição de um certo tipo de subjetividade marcada por
características que seriam decisivas para a formação do sujeito moderno: o início de um
“si” diferenciado, ativamente cultivado/moldado, com alguma dimensão de interioridade
e reflexividade, empenhado na busca de autodomínio e auto-aperfeiçoamento. Estamos
nos referindo às práticas de si vigentes na Antigüidade e extensamente estudadas por
Michel Foucault (1984/2001, 1984/1999).
O propósito deste artigo é lançar uma questão, preliminar a uma pesquisa mais
ampla e ainda em curso, sobre os termos utilizados por Foucault para falar do cuidado de
si e da “estética da existência”. Explico-me: nos textos e entrevistas de Foucault (mas
também no vocabulário de um Rorty) encontramos diferentes termos para descrever esta
ética de construção/cultivo/cuidado de si denominada “estética da existência” ou
estilística existencial. Tenho em mente, por exemplo, vocábulos como forma, estilo, arte,
beleza. Mais adiante, percorreremos algumas dessas formulações (que, ademais, são elas
mesmas belíssimas...). Por enquanto, basta assinalar que não raro esses termos aparecem
encadeados, quase como sinônimos e como se remetessem a um mesmo horizonte. Ora,
parece-me que vale a pena colocar em questão o vocabulário empregado para falar deste
instigante e polêmico tema. De meu ponto de vista, descrever o ideal de uma vida bela ou
de uma vida construída como obra de arte, por exemplo, tem ressonâncias bastante
diversas. E levando-se em conta o tipo de crítica recebida por esta noção, pode ser
relevante examinar com um pouco mais de cautela a nomenclatura utilizada. Para que um
propósito tão simples não se converta em simplório, convém situar melhor a discussão.

Considerações iniciais sobre a noção de estética da existência em Foucault


A noção de “estética da existência” tem em Michel Foucault um de seus
principais – mas não único – artífice. Na “Introdução” ao segundo volume da História da
sexualidade (O uso dos prazeres), Foucault explica seu interesse pela “problematização
moral” característica da cultura greco-latina. Percorrendo os escritos de epicuristas e
estóicos até o século II de nossa era, descobre que ela estava ligada a um conjunto de
práticas de grande importância nessas sociedades, as “artes da existência”. Diz ele:
“Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens
não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo” (Foucault, 1984/2001, p.
15, grifos meus). Essas artes da existência e técnicas de si perderam parte de sua
relevância no cristianismo e posteriormente foram integradas em outros tipos de prática.
“De qualquer modo, dever-se-ia, sem dúvida, fazer e refazer a longa história dessas
estéticas da existência e dessas tecnologias de si” (ibid.).
Encontramos aqui não apenas um esboço daquilo que Foucault entende por
estética da existência, como também a indicação de que a história dessas “artes da
existência” constitui um verdadeiro programa de pesquisas2.
No que se refere às origens da preocupação com a estética da existência na obra
de Foucault, sabe-se que é decorrência direta de seus estudos sobre o poder. Mais
especificamente, provém do problema da governabilidade, na medida em que governo
dos outros requer governo de si; daí para a noção de “cuidado de si“ (tema de um curso
já em 1981) e para o estudo dos procedimentos e técnicas que garantam alguma mestria
sobre si é apenas um passo. É importante frisar esse aspecto, fonte de vários mal-
entendidos: desde o início, e eu diria, quase que “por dentro”, de modo inerente, a estética
da existência articula-se com a questão do poder e com a esfera do político.
Como bem resume Pierre Hadot,
à luz dos temas antigos relacionados ao cuidado de si, ao trabalho de si sobre si, Foucault propõe
uma arte de viver, uma estética da existência, um estilo de vida, que não reproduziria,
evidentemente, os exercícios espirituais da Antigüidade, mas que abriria ao sujeito a possibilidade
de se constituir na liberdade, em oposição aos poderes exteriores. (...) O que caracteriza mais
particularmente a noção que Foucault tem do cuidado de si é, talvez, a introdução da perspectiva
estética, a de uma existência que se cria como um objeto de arte (Hadot, 1996, p. 22, grifos meus).

Os laços entre ética/estética/política ficam ainda mais explícitos em fórmulas


como essa, de Schmid: “A arte de viver é a invenção de uma micropolítica que não
abandona a política àqueles que representam o Estado ou qualquer outra instância
soberana que pretenda substituí-lo. Micropolítica – porque é também no nível do
minúsculo e quotidiano que pode surgir horror” (Schmid, 1996, p. 151).
A importância das últimas publicações foucaultianas e que viriam a integrar um
grande painel sobre a genealogia da ética (caso não tivessem sido interrompidos pelo
falecimento prematuro de Foucault, em 1984) aumenta ainda mais quando a estética da
existência torna-se uma espécie de “mote” para pensar uma alternativa ética para a
contemporaneidade. A esse respeito deparamo-nos com declarações cautelosas e
ambíguas por parte de nosso autor. De um lado, ele repudia com firmeza que os gregos
possam ser a fonte de soluções para os impasses éticos da sociedade atual: “Eu não estou
procurando uma alternativa; não se pode encontrar a solução de um problema na solução
de um outro problema, levantado num outro momento por outras pessoas (...)” (Foucault,
1983/1995, p. 256). No mesmo sentido, quando perguntado se podíamos aprender algo
com a Grécia clássica: “Na minha opinião, não há um valor exemplar num período que
não é o nosso (...) não se trata de algo a que possamos retornar” (idem, p. 259).
Por outro lado, insinua-se a possibilidade de a ética grega “inspirar” um olhar
crítico e uma ação transformadora ante a dificuldade de instituir princípios de uma nova
ética. Em certo sentido, o “descolamento” da ética grega em relação à religião, assim
como a existência de regras legais bem sistematizadas, indica alguma similaridade com o
contexto atual. Daí a possibilidade de afirmar:

Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de dispositivos, técnicas, idéias,


procedimentos etc. que não pode ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou
ajuda a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a
análise do que ocorre hoje em dia – e para mudá-lo. Não temos que escolher entre o nosso mundo
e o mundo grego. Mas desde que possamos ver claramente que alguns dos principais princípios de
nossa ética foram relacionados, num certo momento, a uma estética da existência, acho que este
tipo de análise histórica pode ser de utilidade (idem, p. 260-261, grifos meus).

Ou ainda: “E se me interessei pela Antigüidade [caracterizada pela busca de uma


ética pessoal, e não por uma moral como obediência a um sistema de regras] é que, por
toda uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código de regras
está agora desaparecendo, já desapareceu. E a essa ausência de moral responde, deve
responder uma busca, que é a de uma estética da existência” (Foucault, 1984b/2001, p.
1551).
Parece que em Foucault (e em autores como Rorty) os caminhos para o
delineamento de uma ética “pós moderna” passam, necessariamente, por parâmetros
estéticos. Pois se já não cremos em uma essência definidora da natureza humana
(fundamento último dos critérios de bem, de verdade, etc), se não compartilhamos uma
única moral nem a consideramos capaz de nortear o que seria uma vida ideal, então há de
se conceber a relação consigo e com os outros a partir da autocriação. Como diz Richard
Shusterman, “as razões mais fortes que levam os filósofos contemporâneos a rejeitar a
ética tradicional provêm de duas atitudes filosóficas gerais. A primeira consiste num anti-
essencialismo histórico e pluralista em relação à natureza humana, enquanto a segunda
aponta severas limitações na moralidade, o que a torna claramente inadequada para uma
ética satisfatória” (Shusterman, 1998, p. 200).
Certamente é devido ao fato de ser invocada como inspiração para a elaboração de
novos modelos éticos que a noção de estética da existência tem sido alvo de tantas e tão
ferozes críticas. Não é o caso de retomá-las aqui. Um trabalho primoroso de levantamento
dessas críticas, bem como de contundente resposta a elas, foi realizado por Jurandir Freire
Costa (1995). Só para dar uma idéia da natureza e do espectro de críticos implicados no
debate, basta reproduzir o primeiro parágrafo deste texto:

Os últimos trabalhos de Foucault sobre a ética do sujeito despertaram várias objeções. Penso em
retomar uma delas, procurando analisar os argumentos que a sustentam. A objeção é a seguinte:
Foucault defende a idéia de uma estética da existência voltada para a auto-perfeição e auto-
afirmação do sujeito. Esta estética dispensaria o compromisso com valores universais ou com os
princípios humanitários das democracias liberais. Os críticos universalistas, entre os quais
Charles Taylor, Rainer Rochlitz e Pierre Hadot, enfatizam o primeiro aspecto. Alegam que
Foucault se auto-engana ou se equivoca. Engana-se quando assume tacitamente valores universais
que desacredita; equivoca-se quando interpreta erroneamente textos histórico-filosóficos que
justificam sua teoria. Richard Rorty, representante do neo-pragmatismo, chama a atenção para o
segundo aspecto, criticando a insensibilidade de Foucault para com os princípios e ganhos das
sociedades liberais (Costa, 1995, p. 121).

O ponto em comum entre essas críticas seria o fato de apontarem um “descompromisso


de Foucault em relação à sua comunidade” (idem, p. 128) – e é contra isso que Jurandir
vai firmemente se posicionar.
Confesso ter reconhecido, dentre as críticas listadas por Costa, algumas que
faziam eco a meus próprios temores em relação à noção de estética da existência: risco de
um total relativismo de valores, de um mero esteticismo (com o correlato desengajamento
da esfera pública/social), recrudescimento do individualismo narcisista já tão
hipertrofiado em nossos dias, e assim por diante. Costa acaba por “desmontar” cada um
desses receios, mostrando que nada mais distante da postura teórica (e também pessoal)
de Foucault do que o menosprezo pela justiça e pelo sofrimento de seus semelhantes.
Sem entrar no mérito de tais polêmicas e tomando o projeto de uma ética-estética
em sua positividade, alguns psicanalistas brasileiros (como Joel Birman e Maria Rita
Kehl) vêm propondo a produção de um estilo pessoal como horizonte da prática
psicanalítica. A “psicanálise como uma modalidade, entre outras, de estilística da
existência” apresenta-se, em Birman (1996, p. 11), como um correlato da crítica radical à
noção de cura, bem como fruto de uma leitura da obra freudiana que acentua o
“indeterminismo” de Freud e privilegia certos conceitos, como os de desamparo,
masoquismo e feminilidade. Nesse sentido, a produção de um estilo pessoal está longe
de ser aleatória: passa, necessariamente, por aquilo que Birman denomina de
“feminilização da existência” (idem, p. 19). Já em Kehl (2002) encontramos a descrição
de alguns dos possíveis ganhos de uma análise: o humor e a possibilidade de rir de si
mesmo, o superego mais benevolente, a reinvenção do erotismo, a aceitação do outro em
sua dimensão alteritária, as produções sublimatórias, um uso poético da linguagem; um
sujeito “mais inventivo, mais arteiro, capaz de criar seu próprio estilo” (Kehl, 2002, p.
157) – eis uma maneira de se referir, creio eu, à dimensão estética da cura.
Tendo esse panorama introdutório como pano de fundo, passemos a uma breve
exposição sobre os termos empregados por Foucault para falar da estética da existência.
Arte e beleza: diferentes formulações foucaultianas sobre a estética da
existência
Para isso, é necessário elencar, sem nenhuma pretensão à exaustividade, certas
declarações foucaultianas recolhidas, sobretudo, na célebre entrevista concedida a
Rabinow e Dreyfus em 1983, a qual foi sofreu ligeiras modificações para a republicação
no ano seguinte.
Uma primeira constatação que salta aos olhos: em geral, os termos “estilo” e
“forma” se fazem acompanhar de alguma menção complementar, ora à arte ora à beleza.
Vejamos alguns exemplos:
a. “Mas me parece também possível fazer a história da existência como arte e
como estilo. A existência é a matéria primeira, a mais frágil, da arte humana, mas é
também seu dado o mais imediato” (Foucault, 1984a/2001, p. 1448-1449, grifos meus).
b. “Mas a vontade de ser um sujeito moral, a busca de uma ética da existência
eram principalmente, na Antigüidade, um esforço para afirmar sua liberdade e para dar à
sua própria vida uma certa forma na qual podiam se reconhecer, ser reconhecidos pelos
outros, e a própria posteridade poderia encontrar um exemplo. Esta elaboração de sua
própria vida como uma obra de arte pessoal, mesmo que ela obedecesse a cânones
coletivos, estava ao centro, parece-me, da experiência moral, da vontade de moral da
Antigüidade...” (Foucault, 1984b/2001, p. 1550, grifos meus). Ou ainda, ao falar sobre os
possíveis modos de sujeição: lei divina? regra racional? “Ou tentativa de dar à existência
a forma mais bela possível?” (Foucault, 1983/1995, p. 264, grifos meus).
A necessidade de associar “forma” e “estilo” às idéias de “arte” ou “beleza” (e
seus respectivos adjetivos) já mostra uma preocupação em particularizar algo nesses
termos tão vagos. Dizer simplesmente “forma” ou “estilo” é muito pouco, já que, de
algum modo, toda vida é forma; pode ser caótica, desorganizada, etc., mas certamente se
perfaz através do corpo, das falas, ações e produtos de um sujeito, que são ou possuem
forma. E se encararmos tal vida como um conjunto, é provável que certos elementos e
traços se repitam, dando origem a precipitados ou padrões mínimos que nos permitiriam
falar em um estilo reconhecível. As afirmações de Foucault sugerem, então, que os
termos arte (ou artístico) e beleza (ou belo) são evocados – talvez compulsoriamente
convocados – como predicados necessários ao procedimento de conferir uma forma ou
um estilo à existência. Não vale qualquer forma, não basta um estilo: eles hão de ser
artísticos e/ou belos. São estes adjetivos justificariam o caráter estético de tal forma ou
estilo. Eis-nos remetidos ao célebre emaranhado arte/beleza, cujos fios vêm se trançando
desde a filosofia antiga, mas cujo enovelamento decisivo ocorreu a partir do século
XVIII.
Não se nota, nessas falas de Foucault, qualquer esforço ou preocupação com a
“precisão” no emprego de um ou outro desses termos. Como disse, creio que arte e beleza
são usados quase como sinônimos e parece evidente que tanto uma quanto outra
justificariam o caráter “estético” de tal vida ou projeto ético. Em suma: a expressão
“estética da existência” talvez pudesse ser reduzida, sem grandes distorções, a duas
formulações básicas e intercambiáveis: construir a própria vida como uma obra de arte
e/ou construir uma vida bela.
É o que se mostra nos exemplos abaixo:
a. “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se
transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a
arte seja algo especializado ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não
poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Porque deveria uma lâmpada
ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (Foucault, 1983/1995, p. 261,
grifos meus). E, logo a seguir: “A partir da idéia de que o eu não nos é dado, creio que há
apenas uma conseqüência prática: temos que nos criar a nós mesmos como uma obra de
arte” (idem, p. 262, grifos meus).
b. “(...) o principal objetivo deste tipo de ética [dos estóicos] era estético (...). A
razão para esta escolha era o desejo de viver uma vida bela, e de deixar, como legado,
uma existência bela” (idem, p. 254, grifos meus). Ou, mais adiante na mesma entrevista,
quando resume o que chama de “modo de sujeição” grego (isto é, maneira pela qual as
pessoas são chamadas a reconhecer suas obrigações morais), pergunta-se: “Qual o modo
de sujeição? É o fato de termos que construir nossa existência como uma existência bela;
é um modo estético” (idem, p. 266, grifo meu).

Ora, após essas considerações, cabe perguntar: será, de fato, totalmente


indiferente falar em arte ou beleza quando se trata de caracterizar uma estética da
existência? Conforme disse anteriormente, a mim parece que cada um desses termos tem
ressonâncias e implicações bastante diversas.
Um breve parênteses a esse respeito. A proposta de distinguir arte e estética
(beleza), bem como as vantagens de se operar com tal distinção, tem em Hubert Damisch
um de seus mais vigorosos defensores. Em Le jugement de Pâris, Damisch denuncia a
existência de um automatismo tão corriqueiro quanto grave: a tendência a reduzir Estética
às belas-artes, “(...) tradição que nos faz sistematicamente ler ‘arte’ lá onde o texto - de
Freud, de Kant, mesmo de Platão - diz ‘beleza’, e vice-versa”(Damisch, 1997, p. 15). Isso
quando se sabe que a reflexão sobre o belo pode ser autônoma em relação à arte, pois não
necessariamente as referências à beleza implicam arte, e vice-versa. De modo que a
confusão entre o belo e o artístico é fruto de um longo percurso - histórico - que nada
tem de acidental. Entre nós, também Benedito Nunes assinala a especificidade de tais
domínios:

Assim, na acepção ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é tanto filosofia do
Belo como filosofia da Arte. Precisamos, no entanto, distinguir entre Estética e Filosofia da Arte.
A rigor, o domínio dos fenômenos estéticos não está circunscrito pela Arte, embora encontre nesta
a sua manifestação mais adequada [...]. Mas, por outro lado, a Arte excede, de muito, os limites
das avaliações estéticas. Modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno social e parte da
cultura (Nunes, 1989, p. 15).

Em suma: a linguagem corrente (e também alguns especialistas) legitimam o uso de


“estética” como sinônimo de teoria da arte, enquanto outros autores insistem em
diferenciar a reflexão sobre a beleza (estética) do pensamento sobre a arte.
Creio que assumir tal distinção pode conduzir a leituras bastante mais “refinadas”
de um texto ou autor, como demonstra o próprio trabalho de Damisch (cf. também
Loureiro, 2003). Não é o caso de enveredar pelas sempre ardilosas discussões
definicionais, mesmo porque as definições neste campo – como em outros – são sempre
porta-vozes de correntes ou tendências específicas, às voltas com problemas e discussões
que fazem sentido em um determinado tempo e lugar. Em outras palavras, em nada nos
ajudaria adentrar nas inúmeras proposições sobre a arte ou a beleza, uma vez que são
tributárias dos contextos histórico-culturais que lhes deram origem e significado.
Mas o mínimo que se pode dizer – e é nesta distinção mínima que iremos
permanecer – é que o termo arte, desde a filosofia antiga, implica atividade, produção.
Ou seja, nos remete ao âmbito da ação que, em geral, acaba por se materializar em um
objeto. Já a beleza diz respeito a uma qualidade, um atributo associado a uma idéia ou
objeto; requer, pois, a atividade de julgamento por parte de um sujeito capaz de atribuir
ou discernir em algo a existência de tal qualidade. E quando lembramos os mais variados
critérios pelos quais, ao longo da história, balizou-se o juízo de beleza (o que suscita
prazer ou agrado; perfeição; harmonia, etc.), é inegável que se encontra intimamente
associado a uma valoração positiva. Portanto, estamos às voltas com territórios distintos.
O trânsito indiscriminado entre um e outro campo só pode dar margem a imprecisões e
equívocos.
Claro que a tentativa de sublinhar as características, digamos, mais estáveis ou
“perenes” das noções de arte e beleza avizinha-se de um incômodo malabarismo; porém,
pode ser útil no estabelecimento de algumas balizas a partir das quais retomar as
afirmações de Foucault.
Antes de passarmos às considerações finais, cabe lembrar que o objetivo deste
artigo era tão-somente o de apontar um problema (as variações no vocabulário
foucaultiano) e mostrar sua pertinência (uma vez que os termos utilizados podem ser
compreendidos como pertencentes a universos distintos) – o que, quero crer, foi realizado
a contento. Seguem-se alguns comentários, de caráter mais geral e “especulativo”, a partir
do problema demarcado.

Considerações finais e (in)atuais


Não tenho a intenção de discutir o que significaria, nos dias de hoje, o propósito
de construir uma vida bela ou uma vida como obra de arte. Supondo que tal discussão
seja factível (sobre o que, aliás, alimento sinceras dúvidas...), certamente ela teria que ser
precedida por uma reflexão acurada sobre a infinidade de sentidos que circundam os
termos “arte” e “beleza” na atualidade. Ao mesmo tempo, não se pode perder de vista que
os estudos de Foucault ancoram-se na filosofia antiga. Assim, é importante lembrar que,
no paradigma da estética clássica, as noções de belo, bem e verdade compõem uma
“tríade” indissolúvel:

(...) justamente porque a estética clássica é uma ontologia, e que a ética e a teoria do conhecimento
são igualmente inseparáveis da perspectiva ontológica, as três noções (de belo, de bem e de
verdadeiro) mantêm relações de proximidade e de cumplicidade muito evidentes. Uma vez que
designa o ser, o belo é, ao mesmo tempo, bom e verdadeiro. Também por isso o verdadeiro é,
simultaneamente, bom e belo, e o bem, tão bom quanto belo (Sherringham, 1997, p. 51-52).

Daí se explica o desejo de “legar uma vida bela” para os póstumos, que Foucault
tão bem rastreou entre os antigos: a beleza detinha, então, um caráter de exemplaridade,
de virtude a ser admirada e seguida exatamente por sua ligação intrínseca com o bem e a
verdade3.
Por outro lado, Sherringham mostra que, no paradigma da estética clássica, a
supervalorização da beleza é acompanhada de uma relativa “inferioridade” da arte (cf.
Sherringham, 1997, p. 58-64); ora tida por mentirosa e inimiga da filosofia (versão
platônica), ora associada à fabricação de objetos característica da vida produtiva
(considerada inferior, na versão aristotélica), o fato é que a arte era indissociável do
domínio e exercício da técnica. Esta referência nos ajuda a compreender a ênfase
foucaultiana na prática das técnicas/tecnologias de si como o cerne das “artes da
existência”, artes que têm como matéria a própria vida4.
Eis alguns aspectos – e decerto não os únicos – que podem soar estranhos para
nós, contemporâneos. Rompeu-se qualquer ligação intrínseca entre beleza e outros
valores, mal se consegue conceber o que seria a arte dotada de um estatuto inferior ao da
filosofia, por exemplo. Na verdade, as convenções no plano da vida social e as
demarcações conceituais foram se diluindo progressivamente, até chegar à total ausência
de consenso em qualquer desses terrenos.
Ainda que a conjuntura seja nebulosa, et pour cause, é evidente que não se impõe
a escolha de um ou outro termo (arte ou beleza) para nos referirmos à estética da
existência. Mas com base nessas últimas indicações sobre a estética clássica, poderíamos
pensar que, nos dias de hoje, faria mais sentido a proposição de construir a vida como
uma obra de arte do que a de erigir uma vida bela. Isto se deve tanto ao total
“esvaziamento” da exemplaridade outrora associada à beleza, quanto à permanência da
noção de arte como ação transformadora (e inteiramente desvinculada de quaisquer
compromissos com originalidade, beleza, ou até mesmo com a materialidade). Ademais,
a noção de arte abriga, necessariamente, uma menção ao “outro” – ainda que implícita ou
imaginariamente, na forma de interlocutor ou destinatário; tal referência à alteridade é
imprescindível para que a arte possa se estabelecer e consolidar como parâmetro
norteador de uma nova ética.
De qualquer modo, mesmo que renunciemos à noção de beleza (ou, ao menos, à
beleza como um valor ou como ideal compartilhado), a idéia de uma estética da
existência talvez requeira que a atividade/ação empreendida pelo sujeito não seja
aleatória; isto é, que busque ou resulte em algum tipo de harmonia – seja nas (ou entre)
as múltiplas e parcelares experiências tal como vividas por ele, seja no conjunto desta
existência, tal como considerada pelos outros ou pelo próprio sujeito-artífice. Embora
a noção de harmonia seja altamente relativa e dê ensejo a discussões intermináveis,
parece-me que é o termo que melhor nomeia um certo tipo de configuração em que os
diversos aspectos de uma vida “ornam”, rimam, combinam-se entre si. Configuração que
é fruto de experimentação e trabalho constantes, mas também de reflexão e juízo
(estético, inclusive). Creio que é isso que Foucault tem em mente quando discorre sobre
seu próprio trabalho intelectual, questionando a relação entre as idéias de um filósofo e
sua vida filosófica, seu ethos pessoal; nesta ocasião, profere uma frase que, a meu ver,
sinaliza claramente que tipo de harmonia podemos buscar: “é preciso, a cada instante,
passo a passo, confrontar o que se pensa e o que se diz com o que se faz e o que se é”
(Foucault, 1984c/2001, p. 1404).

NOTAS

1
Tomo de empréstimo a Luiz Fernando Duarte a excelente idéia de “desentranhamento”, por ele utilizada
para designar o modo pelo qual as ciências sociais (sobretudo a antropologia e a sociologia) foram
progressivamente conferindo visibilidade e autonomia aos fenômenos da sexualidade até então dissolvidos
em várias esferas da vida social (sistemas de troca, parentesco, etc.). Duarte, por sua vez, indica que extraiu
a noção de “disembeddedness ” de Karl Polanyi. (cf. Duarte, 2003).
2
Pretendo investigar, em uma próxima etapa desta pesquisa, se a Bildung romântica alemã pode ser
considerada como uma modalidades na história das “estéticas da existência”.
3
O elo entre virtude/beleza é explícito em vários trechos como este, em que Foucault descreve as práticas
da Antigüidade: “Agiam de modo a conferir a suas vidas certos valores (reproduzir certos exemplos, deixar
uma alta reputação para a posteridade, dar o máximo possível de brilhantismo às suas vidas)” (...)
(1983/1995, p. 270).
4
“A ética grega está centrada num problema de escolha pessoal, de estética da existência. A idéia do bio
como um material para uma peça de arte estética é algo que me fascina” (Foucault, 1983/1995, p. 260; em
francês: “obra de arte estética”).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BIRMAN, J. (1996) Por uma estilística da existência. São Paulo: editora 34.

CAMPBELL, C. (2001) A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio


de Janeiro: Rocco.

COSTA, J. F. (1995) O sujeito em Foucault: estética da existência ou experimento


moral? Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo, 6 (1-2): 121-138.

DAMISCH, H. (1997) Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion.

DUARTE, L.F.D. (2003) A sexualidade nas Ciências Sociais: leitura crítica das
convenções (mimeog.). Trabalho apresentado no Seminário “Sexualidades e
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Primeira decisão editorial em: dezembro / 2003


Versão final: fevereiro / 2004
Aceito em: maio / 2004

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