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A Construção da Enunciação
e Outros Ensaios
Valentin Nikolaevich Volochínov
Do Círculo de Bakhtin
A Construção da Enunciação
e Outros Ensaios
Organização, Tradução e Notas:
João Wanderley Geraldi
Edição e Supervisão da Tradução:
Valdemir Miotello
Copyright © Autor e Organizador
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida ou
arquivada, levados em conta os direitos do autor e do organizador.
Valentin Nikolaievich Volochínov
A construção da Enunciação e Outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores,
2013. 273p.
ISBN 978‐85‐7993‐169‐7
1. Enunciação. 2. Estudos de Linguagem. 3. Filosofia da Linguagem. 4. Autor. I.
Título.
CDD – 410
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
Revisão do Texto: Camila Caracelli Scherma; Marina Haber de Figueiredo
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel
do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade
Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Rogério Drago (UFES/Brasil).
Pedro & João Editores
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568‐878 ‐ São Carlos – SP
2013
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – O mundo não nos é dado, mas construído 7
João Wanderley Geraldi
1. Para além do social. Um ensaio sobre a teoria freudiana (1925) 29
2. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da 71
poética sociológica (1926)
3. As mais recentes tendências do pensamento 101
linguístico ocidental (1928)
4. Que é a linguagem (1930) 131
5. A construção da enunciação (1930) 157
6. A palavra e suas funções sociais (1930) 189
7. Sobre as fronteiras entre a poética e a linguística (1930) 213
8. Algumas ideias‐guia para a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem 251
APÊNDICES
1. Índice de “O problema da transmissão do discurso alheio: um 269
ensaio em pesquisa sociolinguística”(1925‐1926)
2. Índice de “Marxismo e filosofia da linguagem” (1927‐1928) 271
INTRODUÇÃO
O mundo não nos é dado, mas construído1
João Wanderley Geraldi
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites
para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem
limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do
passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados,
podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma
vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando‐se) no
processo de desenvolvimento subsequente, futuro do
diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do
diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos
esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo
desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos
serão relembrados e reviverão em forma renovada (em
novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada
sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande
tempo. (Bakhtin. Metodologia das ciências humanas)
I
Para construir o mundo, ninguém parte de nada! Sobre uma natureza
encontrada, dada, operamos todos nós e jamais sozinhos: é preciso
pensar que sobre ela atuam outros seres com que compartilhamos a vida.
Mas entre estes, somente nós “elaboramos” o mundo, pois lhe damos
sentidos, jamais dados, jamais acabados, jamais prontos, jamais
definidos. Das nossas elaborações, embora em muitos momentos
históricos a humanidade tenha sido obrigada a conviver com definições
1 O título desta introdução obviamente dialoga com o lema do grupo que se reúne em
Nevel, e de que participavam Kagan, Bakhtin e Volochínov entre outros: Mir ne dan, a
zadan (O mundo não está dado, mas a fazer ou O mundo não está dado, mas está por elaborar),
que por sua vez dialoga com Hermann Cohen “die Welt ist neich gegeben, sondern
aufgegeben” (Cf. Sériot, 2010, p.28).
7
ao estilo “Roma dixit”, conhecemos o caráter provisório. É para esta
provisoriedade que Bakhtin nos chama a atenção. E mais além: diz‐nos
que os sentidos elaborados jamais se constituíram fora das relações com
os outros, fora do diálogo, que existiu, que existe e que permanecerá
quando nos formos e nem mais lembrança houver.
Isto significa que também este mundo cheio de sentidos que
herdamos, o peso do passado que carregamos, é passado sempre
revisitado, sempre ressignificado. Os fatos (como os elementos da
natureza) não se modificam por si: são modificados pelo presente que
lhes dá novas interpretações e novos sentidos (e novos usos).
Assim é também com a vida dos textos. Aqueles que compõem esta
recolha, publicados por Valentin N. Volochínov entre 1925 e 1930,
acrescido de um texto não publicado mas anexado a um relatório de
doutoramento em 1928, têm uma longa história de leituras distintas, em
que até mesmo a paternidade de alguns foi posta em dúvida. Voltaremos
às questões das leituras e da paternidade posteriormente.
II
Valentin Nikolaevitch Volochínov nasceu em 30 de junho de 1895 em
São Petersburgo2. De 1904 a 1913 fez seus estudos secundários; aos 18
anos entra na Faculdade de Direito. Em 1917, tendo o pai abandonado à
família, nosso autor suspende seus estudos universitários para trabalhar
como instrutor e em 1918 assume o lugar de “Presidente do comitê
executivo dos colaboradores do tribunal popular do distrito de
Petrogrado” e de secretário do bureau dos assuntos criminais. No início
de 1919, a convite do amigo Boris Zubakin, vai para Nevel, onde começa
a surgir o grupo de amigos reunidos não institucionalmente, mas
informalmente para estudos e discussões, incluídas entre seus temas a
questão religiosa e a filosofia de Kant. Este grupo, bem mais tarde,
passou a ser denominado entre nós como “Círculo de Bakhtin”. Em 1920
o grupo constituído em Nevel se dispersa. Em 1922 Zubakin é preso e
posto em liberdade, e mais tarde preso e exilado. Volochínov vive em
Vitebsk para onde também foi Bakhtin. Em 1922 ele retorna para
Petersburgo, no mesmo ano em que Medvedev volta para a cidade.
2 Os dados biográficos foram extraídos de Sériot, P. (2010).
8
Bakhtin chegará mais tarde, e sempre a convite dos amigos. Volochínov
retoma seus estudos na Universidade: no departamento de literatura e de
artes da Faculdade de Ciências Sociais, conforme seu pedido de 29.08.22.
Em 1924 pede matrícula no doutorado no ILJaZV (Instituto de Línguas e
Literaturas do Oriente e do Ocidente), sucessor do Institut A. Veselovskij
criado em 1921. Este instituto recebeu o nome de ILJaZV em 1923, depois
foi denominado como IRK – Institut rec^evoj kil’tury ‐ e em 1932 passa a
Instituto de Linguística (cf. Sériot, 2010). Volochínov tinha como
pretensão a construção de uma sociologia da arte. Seu tema para o
doutorado era a transmissão da palavra do outro em obras literárias. Em
1925 faz curso no ILJaZV; em novembro de 1926 torna‐se doutorando
sem bolsa; em 1927 receberá bolsa a partir de novembro. Faz
rapidamente carreira: em 09.12.1927 assume a presidência (Presidium) da
seção de literatura; em 15.06.1928 é nomeado secretário da subseção de
metodologia da literatura e em 1930 obtém o posto de mestre‐assistente
do Instituto Pedagógico Herzen na cidade já agora denominada
Leningrado. A partir de 1934, passa mais tempo em hospitais e
sanatórios por causa da tuberculose. Morre aos 41 anos, em 13 de junho
de 1936, deixando uma tese inacabada e uma tradução igualmente
inacabada de Philosophie des formes symboliques de E. Cassirer.
É bastante significativo que os dois livros que publicou em vida ‐ O
Freudismo (1926) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) – tenham sido
precedidos de ao menos um artigo publicado, respectivamente em 1925
sobre Freud (ver aqui o texto Para além do social – Um ensaio sobre a teoria
freudiana) e em 1928 sobre a linguística (ver aqui o texto As mais recentes
tendências do pensamento linguístico ocidental). Note‐se que os três
primeiros textos de 1930, cujos temas e forma de tratamento têm a ver
com capítulos do segundo livro, foram publicados depois deste.
A controvérsia sobre a autoria, relativamente aos dois livros e ao
ensaio A palavra na vida, a palavra na poesia (ver neste volume) se iniciou
com a conferência proferida em 1970 pelo Prof. Ivanov na Universidade
de Moscou, na comemoração dos 75 anos de Bakhtin, e com seu texto
publicado em 1973. Neste, Ivanov atribui a Bakhtin a autoria de alguns
ensaios e dos livros Marxismo e filosofia da linguagem, publicado por
Volochínov e O método formal nos estudos literários, publicado por Pavel N.
Medvedev.
9
Depois disso, muita água rolou e muito se discutiu sobre a autoria
destes textos. Não vou retomar esta discussão em sua profundidade.
Apenas vou trazer alguns elementos para a defesa de um ponto de vista
não só meu, mas compartilhado com outros pesquisadores e estudiosos
das obras do chamado Círculo de Bakhtin.
Iniciemos por este batismo de “Círculo de Bakhtin”. Obviamente o
círculo jamais existiu como algo institucionalizado, vinculado a alguma
academia específica, em cujos arquivos se poderiam encontrar seus
rastros. Mas seus componentes, nem sempre os mesmos em todas as
cidades, se reuniam como comprovam tanto as repercussões na imprensa
(desde Nevel) quanto as fotografias que ainda circulam entre nós.
Obviamente, o batizado é posterior, como acontece nestes casos.
Interessa aqui salientar que o próprio Bakhtin, nas conversas com Viktor
Duvakin em 1973, se reconhece como pouco conhecido à época e como
participante de grupos de intelectuais numericamente restritos. Como
diz Ponzio (2011, p. 46),
O “círculo de Bakhtin” não era uma “escola” no sentido acadêmico do
termo, nem Bakhtin era “líder”, “diretor de escola”, nem, neste sentido,
um “mestre”; dessa forma, não apenas a expressão “círculo” é um
equívoco se for atribuído a ele um significado de escola, mas é ainda
mais a expressão “de Bakhtin”, se entendida em termos de derivação, de
pertencimento, de genealogia.
Trata‐se muito mais de um grupo, de uma intensa e afinada
colaboração, em clima de amizade, em pesquisas comuns, a partir de
interesses e competências diferentes.
Nestas mesmas conversas com Duvakin, Bakhtin explicitamente diz
que não é o autor de Marxismo e filosofia da linguagem:
B: Poetas? Poetas... conhecia poetas. Não estava particularmente
próximo a nenhum dos grandes poetas, mas conhecia muitos; os
conhecia quase todos. Bem, antes de tudo conhecia, mesmo não sendo
íntimo, ainda que fosse o meu poeta preferido e como pessoa eu
gostasse muito, Viatcheslav Ivánov... Mas não tinha particular
intimidade com ele.
D: Mas onde se encontraram?
10
B: Encontrávamos em Leningrado, à noite; me apresentaram a ele ali... o
caso é que eu tinha um amigo íntimo, Volochínov... é autor do livro
Marxismo e Filosofia da Linguagem, livro que, digamos, atribuem a mim.
Bem, indico o próprio Valentin Nikolaevich Volochínov. Seu pai era
amigo de Viatcheslav Ivánov, tanto que tratava até mesmo de “tu” a
Viatcheslav Ivánov... e assim me apresentaram para ele em uma noite
literária, ainda quando eu estava em Leningrado. (Duvakin, 2008, p.80)
Nas contínuas mudanças de cidades – até a fixação mais definitiva
em Petersburgo, donde mais tarde sairá Bakhtin novamente a convite –
sempre Bakhtin parece chegar depois, e sempre a convite dos amigos.
Por que razões o convidariam? Tentativa de ajudar o amigo, certamente.
Mas não um amigo qualquer: parece que sua presença era desejada pelos
demais membros do grupo, e a cada cidade novos parceiros se
aglutinavam. Parece indiscutível que Bakhtin tivesse alguma capacidade
de agregar e produzir interesse pelas discussões. Por isso, como ensina
Ponzio (op.cit.), o que se caracteriza como “bakhtinianos” são os temas,
os interesses, as perguntas, o modo de busca de respostas em diálogo
constante entre os membros do grupo. É neste sentido que se deve
entender o “Círculo de Bakhtin”.
Outro dado que pode ser levantado é relativo ao período de
produção do livro Marxismo e filosofia da linguagem. Em 1928, Volochínov
publica o artigo sobre as correntes que chamou de “objetivismo abstrato”
e “subjetivismo idealista”, um ensaio de apenas 9‐10 páginas. O assunto
renderá dois capítulos do livro, com 40 páginas na versão em português
(na versão em espanhol serão 43 páginas). Esta síntese, “audaciosa e
apressada”, segundo Sériot (op.cit., p.62), é considerada “menos uma
história das ideias linguísticas do que uma tipologia da filosofia da
linguagem” (p.73), mas passa logo depois a ser tratada como uma
distinção entre correntes linguísticas, casualmente fazendo referência aos
mesmos autores de base em que se baseara Volochínov para sua divisão
em “objetivismo abstrato” e “subjetivismo idealista”:
Em linguística, duas correntes muito diferentes vão iniciar uma crítica
radical ao método dos neo‐gramáticos: aquela que vem do
estruturalismo na escola de Genebra, com Ferdinand de Saussure, e o
11
“idealismo” da escola de Munique, com Karl Vossler. (Sériot, op. cit. p.
74)
Tomando por base o relatório de doutorado de 1927‐1928, certamente
entregue no final do período do calendário anual (possivelmente meados
de julho de 1928), que se faz acompanhar do texto Algumas ideias‐guia
para a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (ver neste volume) e de seu
respectivo sumário (ver Apêndice neste volume), e considerando que ao
final do texto apresentado no relatório em 1928 o autor faz referência a
seu ensaio, que não chegou a ser publicado, sobre o discurso relatado:
12
livro que vem à luz no começo do ano seguinte, houve muito o que
trabalhar!
Com base nestes elementos, penso que na verdade o Círculo de
Bakhtin realizava um trabalho coletivo: os temas eram discutidos, as
primeiras versões lidas e anotadas e, embora o texto final ficasse sob a
responsabilidade de um autor, não era a autoria em si que interessava ao
grupo. Neste mesmo sentido, aliás, há uma afirmação de Patrick Sériot,
surpreendente porque no resto do mesmo parágrafo interessa‐lhe
defender uma autoria individual:
Le plus vraisemblable est que tous ces ouvrages son le fruit de
discussions multiformes, que l’influence peut être multilatérale, et que
chacun des auteurs a elabore à sa façon des thèmes que étaient discutés
dans de nombreuses occasions avec des interlocuteurs variés. Il est
vraisemblable que le juriste Volochinov à Nevel’ et Vitebsk a
énormément appris des philosophes Bakhtine et Kagan, mais qu’à
Lenigrad le sociologue et phisofophe du langage Volosinov a plutôt
servi pour Bakhtine d’introducteur à la science nouvelle en train de se
mettre em place. À cette époque, Volochinov este de plus en plus
autonome par repport à Bakhtine sur des questions aussi essentielles
que le marxisme, le freudisme, le marrisme. Il a cesse dès 1926 de
participer aux discussions théologiques de ses amis, ce dont témoigne
indirectement la letre de Pumpjanskij à Kagan [...].
Certamente o autor está querendo dizer que Volochínov não mais
participava do grupo desde 1926, porque não está enumerado entre os
participantes listados por Pumpianski na carta a Kagan. Trata‐se de
encontrar argumentos para uma independência e autonomia que
justifiquem a autoria solitária de Marxismo e filosofia da linguagem. Talvez
sua posição de doutorando no ILJaZV efetivamente tenha afastado
Volochínov do grupo. Talvez. Isto não significa que as influências que
teve anteriormente tenham desaparecido, e mais, as relações com
Bakhtin aparentemente continuaram, como registra o próprio Sériot,
trazendo a passagem das memórias da colega de estudos de Volochínov,
Olga Frejdenberg, de manuscrito encontrado na casa da família
Pasternak nos anos 1970 em Oxford:
13
“Desnickij, que me criticava constantemente por minha “javétidologia”
e meu interesse pelo passado, não obstante me apreciava e gostava
muito de mim. Seu braço direito era N. V. Jakovlev, o antigo secretário
científico. Jakovlev por seu turno tinha seu próprio braço direito. Era
Volochínov, um jovem senhor elegante, esteta, autor de um livro de
linguística que tinha sido escrito para ele por Bloxin. Este Volochínov
me propôs cinicamente trabalhar para ele e em seu lugar, em troca do
que ele faria minha promoção por intermédio de Jakovlev e Desnickij.
Eu recusei e nossas relações tornaram‐se glaciais. (apud Sériot, op. cit.p.
39‐40)
Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar! No mesmo ano em que um
texto atribui a Bakhtin a autoria deste livro, Bakhtin o desmente nas
conversas com Duvakin. Considere‐se o que afirma Amalia Rodríguez
Monroy
A Rússia dos anos 1920 era uma autêntica encruzilhada de ideias e
fervores políticos, de mudanças profundas que alcançavam também a
atividade intelectual nos campos mais diversos. Surgiam movimentos
renovadores nas artes dispostos a irromper em todas as esferas da
cultura e do pensamento. A necessidade de dar um giro radical nos
estudos literários era não menos palpável e levava já mais de dez anos
preparando‐se nos escritos sempre controvertidos dos formalistas. Seus
detratores provinham quase sempre do marxismo de orientação
sociologista, mas com propostas que careciam de uma metodologia mais
depurada o que dava prestígio e solidez ao formalismo. (Monroy, 1994,
p.15‐16)
Não seria absolutamente descartável a hipótese de um trabalho mais
ou menos conjunto dentro do grupo, com partes da redação dos textos
alteradas, mil vezes modificadas por qualquer de seus integrantes3. Esta
3 Para todos aqueles que no Brasil têm tido a experiência de orientação de dissertações e
teses acadêmicas, o trabalho coletivo apresentado apenas pelo mestrando ou
doutorando não é nenhuma novidade! O que há do orientador e do orientando em tais
trabalhos? Certamente em muitos deles, tudo é apenas do orientando; mas certamente
em outros, há muito do orientador tanto em termos de ideias e temas quanto na forma
de apresentá‐los. Afinal, como orientadores estamos formando pesquisadores e futuros
orientadores. Por que este mesmo tipo de trabalho coletivo não teria sido praticado
pelo Círculo de Bakhtin?
14
é uma hipótese mais provável do que aquela trazida à baila quanto à
autoria do artigo vitalismo, publicado por Kanaiev, que poderia ter
escrito a carta endereçada a Bocharov dizendo que era trabalho de
Bakhtin porque tendo mudado de posição em relação ao vitalismo,
queria se ver livre de um artigo publicado muitos anos antes! (Sériot,
2010, p. 44)4.
Se aceita a hipótese de um trabalho coletivo, ainda que com um único
redator e publicado em nome deste enquanto integrante do grupo, cabe‐
nos hoje respeitar a decisão então tomada! E nossa escuta das vozes que
falam nas mesmas palavras de cada texto deve ter presente que a
paternidade não é o que importa, mas o que elas – estas vozes – nos
dizem, mesmo que as palavras escritas tenham sido apenas daquele sob
cujo nome os textos foram publicados. É por isso que os ensaios aqui
reunidos estão todos atribuídos a Valentin N. Volochínov.
Ainda sobre o Círculo, é interessante registrar aqui algumas poucas
palavras de David Shepherd (2004) na introdução ao livro “The Bakhtin
Circle in the Master’s Absence”, que reúne textos da Conferência
Internacional de Estudos Bakhtinianos de 1999:
Talvez o mais importante traço constante do Círculo de Bakhtin tenha
sido precisamente sua inconstância, flexibilidade e informalidade (p.6).
Dadas tais flutuações nos membros do Círculo, não parece irrazoável
aceitar que a fonte de sua estabilidade tenha sido na verdade o homem
cujo nome ele carrega. (p.7)5
Há ainda outras questões inevitáveis. Não se trata, mais uma vez, de
dizer sobre elas uma última palavra, mas de acrescentar à cadeia infinita
outras palavras. Duas destas questões precisam ser apontadas aqui.
4 Iniciei a leitura de Sériot (2010) certo de que teria, após a leitura, todos os argumentos
para dirimir minhas dúvidas quanto à autoria dos textos disputados. À medida que fui
estudando seu texto, fui me convencendo cada vez mais de que houve no Círculo um
trabalho coletivo, e que não vale a pena buscar o que escreveu um, o que escreveu
outro. Melhor dedicar este tempo para estudar as obras, aprender como eles
elaboravam seus conceitos, como trabalhavam, para poder no presente aproveitar esta
experiência intelectual para tratar dos temas que hoje nos assaltam.
5 Para os interessados nas discussões sobre o Círculo e seus membros, obviamente
pessoas de carne e osso, com suas ideias, interesses e escritas independentes, a leitura
do livro organizado por Brandist, Shepherd e Tihanov é fundamental.
15
A primeira diz respeito ao próprio título deste livro: ao usarmos a
expressão “enunciação” nos opomos à hipótese de que o grupo tratava
dos enunciados, enquanto tais (obviamente não com frases ou orações
como trabalhou a linguística por muito tempo). Interessava‐lhes a
totalidade do enunciado e neste sentido se aproximam muito mais das
análises de discurso do que das análises morfo‐sintáticas ou mesmo da
linguística textual. Ainda que Sériot afirme
... il nous semble três erroné de parler de “théorie de l’énonciation” à
propôs de Voloshinov (et de Bakhtine). Si l’on traduit sobytie
vyskazyvanija (littéralement: “l’événement de l’énoncé”)[...] par
“l’énonciation”, c’est non seulement um grave anachronisme, mais
encore une tout autre orientation, que entraîne dans une lecture du
“locuteur” de Volochínov comme s’il s’agissait d’un “sujet de
l’énonciation”: c”est lire Volochínov à travers les catégories de
Benveniste. (p. 72)
Sem dúvida, preferimos aqui o “anacronismo”, sem com isso querer
dizer que o locutor (do Círculo) seja o sujeito da enunciação de
Benveniste. Mesmo porque as teorias de sujeito que lhes subjazem são
extremamente distintas.
O sujeito da enunciação de Benveniste se “apropria” da língua, como
se ela existisse independentemente dos seus falantes, e a emprega
segundo suas intenções. O locutor do Círculo de Bakhtin é socialmente
constituído através da linguagem: sua consciência é sígnica, o que lhe é
interior é o mesmo que lhe é exterior, ele não pré‐existe a não ser como
organismo biológico sem desde sempre estar mergulhado no mundo da
linguagem, uma atividade constitutiva das línguas e dos sujeitos que as
falam. Em outras palavras
O falante não se manifesta no diálogo, como se fosse já dado fora dele,
como se tivesse um caráter já definido antes, nem o diálogo é prelúdio
para a sua realização fora dele. O falante se realiza no diálogo e apenas
nele. (Ponzio, 2011, p. 14‐15 – grifos do autor)
De que outra forma se deve entender a tradução literal “o
acontecimento do enunciado” senão como enunciação? Ele aconteceria
16
sem ter sido pronunciado, proferido em algum momento, num tempo e
espaço específico em que o acontecimento se daria? Poderia se pensar no
“acontecimento do enunciado” ao estilo de Foucault, em seu período
arqueológico: o enunciado estaria lá, numa camada do recorte
arqueológico, e retornaria enquanto “mesmo” em outras camadas em
que é retomado? Creio que uma das razões para Foucault abandonar a
arqueologia em benefício da genealogia seja precisamente o que chamou,
na Arqueologia do Saber, de “descontinuidades” dentro de uma mesma
formação discursiva. Como explicar as descontinuidades a não ser
fazendo uma genealogia da emergência dos enunciados? Em outras
palavras, era preciso ir às enunciações, aos seus contextos restritos e
amplos para explicar os processos de descontinuidades. É o que faz
magistralmente Bakhtin em seu estudo sobre Dostoiévski.
O segundo problema tem a ver com as leituras das obras do Círculo:
uma ‘recepção’ francofone em tempos em que se discutem os discursos,
em que se esgotam as análises estruturalistas. Uma ‘recepção’ que
influencia os demais países ocidentais. Um texto ressurge em suas
leituras. Seria possível uma leitura contextualizada num tempo que nos é
anterior? Seria possível desvestir‐se do que se sabe para ler como um
homem que nada leu do que se produziu depois da data do texto sobre
que se debruça? Nem os filólogos mais ferrenhos no estudo do que já
passou o conseguiram. Aliás, uma tal leitura, se possível, seria
cientificamente útil?
Aceitando as provisoriedades com que lidamos, tomemos da própria
teoria exposta em Marxismo e filosofia da linguagem uma indicação: toda
compreensão se faz com as contrapalavras com que chegamos aos textos
– orais ou escritos – com que operamos. A escuta e a leitura são
produtivas precisamente por isso: não repetem as palavras do
locutor/autor, mas constroem uma compreensão e a elas podem
acrescentar uma interpretação, tomando esta como a compreensão
associada a uma criação (crítica ou não, mas que leva adiante e para
frente aquilo que se compreendeu).
Uma compreensão necessariamente contém contrapalavras. Uma
tradução se faz com base numa compreensão, logo contém
contrapalavras do tradutor. As compreensões fazem parte da cadeia
infinita em que entram todos os enunciados uma vez proferidos no
17
contexto próprio de sua enunciação. Descontextualizar e recontextualizar
é próprio do funcionamento da linguagem. Afinal, “um sentido não se
realiza impondo‐se sobre os outros mas, ao contrário, através de uma
relação e reenvio com esse, e como tendência, como deslocamento, nunca
como determinado e pronto, mas sempre por determinar” (Ponzio, 2008,
p.14). Por isso, “reconstituir o que perdemos quando fazemos de MFL
[Marxismo e filosofia da linguagem] um texto sem idade, sem história, sem
contexto, sem origem, em outras palavras, sem dialogismo...” (Sériot,
2010, p.17) não é dar ao texto um seu sentido de origem: é também fazer
uma leitura datada, situada inclusive dentro dos interesses de pesquisa
muito mais amplos do que aqueles explicitados. Há um contexto
contemporâneo de recuperação do estruturalismo, e a ele não estamos
infensos quando retomamos concepções distintas que apontam para
outros caminhos.
Mais do que reconstruir um tempo passado, talvez interesse salientar
a influência na construção do novo que um texto do passado foi capaz de
exercer. Ao darmos novos sentidos ao que se enunciou, abrimos
porteiras para novos sentidos no presente que provisoriamente se
produzem alavancados nos sentidos novos que se dão ao que passou.
III
Sem resolver as questões levantadas, mas delas nos afastando,
podemos agora tratar das teses defendidas por Volochínov nos textos
que compõem esta recolha. Aqui estão todos os ensaios do autor,
excluídos seus trabalhos sobre música e músicos e suas resenhas. A
tradução destes textos demanda um conhecimento sobre música, e
espera‐se que venham a circular entre nós. Aqui nos limitamos aos textos
que têm a linguagem como foco, talvez com exceção do texto primeiro
publicado pelo autor (Para além do social, ver neste volume). Entre este
texto primeiro sobre Freud e o livro posterior, publicado dois anos
depois – 1927 – há uma diferença enorme de tratamento da questão.
Enquanto no texto aqui publicado o autor trabalha com a oposição entre
o “naturalismo” ou “biologicismo” de Freud e a perspectiva histórico‐
social do marxismo, no livro o autor aprofunda a análise crítica e a
constituição do inconsciente antes mesmo da consciência, já que esta se
18
constitui através da linguagem – atividade constitutiva da consciência,
cuja materialidade é o signo, como defenderá mais tarde em Marxismo e
filosofia da linguagem. A pergunta seria como se internalizam os valores
sociais que implicam nos recalques desde o começo da vida. Também a
questão epistemológica retorna no livro, mas é compreensível que à
época houvesse uma aposta na cientificidade moderna que agora se
relativiza.
O artigo seguinte, A palavra na vida e a palavra na poesia, para além de
uma filosofia da palavra e da análise detalhada de seu funcionamento no
cotidiano, há um ponto de vista pouco comum nos estudos literários: o
de que a compreensão do modo de funcionamento da linguagem fora da
arte é fundamental para compreender seu funcionamento artístico.
Segundo Ponzio (1980, p. 7), “A crítica de Volochínov 1926 ao modo
redutor de entender o “método sociológico” no estudo da literatura é
diretamente endereça ao livro de P. Sakulin de 1925, O método sociológico
na ciência da literatura, em que se distinguem na literatura um “núcleo
artístico imanente” e a ação causal do ambiente social extra‐artístico,
considerando somente esta como objeto de uma análise sociológica. Tais
considerações críticas podem todavia ser ainda endereçadas a Trostky,
que, como observa Ambrogio, acaba por estabelecer entre o método
formal‐estético e o método histórico‐sociológico uma relação de mera
coexistência, justaposição e a Bucharin (Sobre o método formalista na
arte, de 1925)”. Parece‐nos essencial, neste artigo, o fato de que a
compreensão da obra de arte verbal tenha como “ponto de passagem o
discurso cotidiano para entender o discurso artístico porque o cotidiano
contém a potencialidade que será desenvolvida no artístico” (Ponzio,
op.cit, p.7‐8).
No As mais recentes tendências do pensamento linguístico ocidental, o
autor elabora a distinção entre o objetivismo abstrato e o subjetivismo
idealista. O primeiro ainda é apresentado como uma perspectiva
liderada por Bally, aparecendo Saussure entre os linguistas desta
corrente, o que vai ser alterado no livro do ano seguinte.
Os três artigos sobre estilística retomam em parte a concepção de
linguagem já exposta na obra Marxismo e filosofia da linguagem (a partir
daqui, MFL), acrescentam análises de textos e chegam a propor ao leitor
exercício de estilística, apresentando textos para análise. É interessante
19
notar que em A construção da enunciação, o esquema‐guia de análise das
enunciações é apresentado com cinco itens (em MFL eram três, cf. p. l24).
Aqui se acrescentam: a organização da sociedade e o intercâmbio
comunicativo social; naquela para destacar os modos de funcionamento
da sociedade em que ocorrem os processos interativos; e no segundo
item para dar conta das diferentes esferas da comunicação social
existentes numa sociedade, que posteriormente serão importantes para a
noção de gênero do discurso. Obviamente serão produtivos para a
análise os conceitos de avaliação (orientação avaliativa), de seleção das
palavras e da disposição das palavras na enunciação. Em certos
momentos, as análises se aproximam do que muito mais tarde
chamaremos de “atos de fala”, mas com uma distinção fundamental:
como é a relação com a alteridade que funda toda a teoria dialógica, seria
o que na pragmática se chamou de “ato perlocucional” o que
efetivamente comandaria a enunciação e seria a essência de cada
“pequeno gênero” (pergunta, afirmação, promessa etc.). Associando o
que expõe Volochínov ao texto bem posterior de Bakhtin, talvez
possamos entender os “gêneros primários” de que este fala como estes
gêneros discursivos da vida cotidiana, que obviamente não se resumem a
estes (a totalidade interessa mais ao Círculo do que a análise de cada
“enunciado‐gênero” ao estilo da teoria dos atos de fala). Assim
...a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela pode
encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A modelagem das
enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não reiteráveis
das situações da vida corrente. Só se pode falar de fórmulas específicas,
de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando existem formas de
vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e
pelas circunstâncias. Assim, encontram‐se tipos particulares de fórmulas
estereotipadas servindo às necessidades da conversa de salão, fútil e que
não cria nenhuma obrigação, em que todos os participantes são
familiares uns aos outros e onde a diferença principal é entre homens e
mulheres. Encontram‐se elaboradas formas particulares de palavras‐
alusões, de subentendidos, de reminiscências de pequenos incidentes
sem nenhuma importância, etc.
Em As fronteiras entre a poética e a linguística, reaparecem as críticas às
análises linguísticas que constroem um objeto abstrato, discutem‐se as
20
relações necessárias entre os estudos linguísticos e a poética,
particularmente no que diz respeito ao estudo do estilo, buscando
delimitar um campo e outro sem negar suas correlações mútuas. Afinal “el
campo de estudios no puede ser independiente de otras ciências, de otros
saberes, como pretendia el formalismo stricto” (Monroy, 1994, p. 25).
O último texto desta coletânea não foi publicado pelo autor. Trata‐se
de documento recuperado dos arquivos do ILJaZV, e faz parte do
“relatório” para o ano de 1927‐1928. Neste texto, que será ampliado e
reformulado nos capítulos iniciais de MFL, o autor enfrenta a questão do
estudo das ideologias, vinculando‐o necessariamente à filosofia da
linguagem. Aqui estão as origens do que mais tarde se pode resumir na
expressão “a palavra como arena de luta de classes”: a importância dos
estudos da linguagem para o marxismo e a necessidade de dar uma base
material para os estudos da ideologia. O texto vale também como
documento. Cada vez mais as pesquisas nos estudos bakhtinianos vêm
apontando para a atribuição das autorias dos livros assinados por
Volochínov e Medvedev, não a Bakhtin, mas àqueles que assumiram sua
publicação, sem prejuízo das múltiplas influências que entre si tiveram
os membros do Círculo. Trata‐se de autoria e não de paternidade e fonte
única do que se escreve.
Listados os textos, mais do que apresentados, porque é cada leitura
de cada texto que definirá os elementos que lhes são essenciais, cabe
apresentar aqui as teses essenciais defendidas no conjunto destes textos
(e compartilhadas com outras obras de outros autores do Círculo).
Ponzio (1980) elenca em treze itens as ideias principais: (1) a não
autossuficiência do signo verbal, ou seja, a exigência da situação extra‐
verbal para produção e compreensão; (2) a dependência da forma da
enunciação à forma da interação social dos interlocutores; (3) o valor
extralinguístico do signo verbal porque exprime uma avaliação, uma
orientação, uma tomada de posição; (4) enumeração dos componentes do
contexto extra‐verbal essenciais para a construção da compreensão ‐ (a)
horizonte espaço‐temporal comum aos falantes, (b) saberes
compartilhados, (c) sistema extralinguístico de valores e (d) condições
materiais de vida do falante e ouvinte; (5) a função organizativa da
enunciação no confronto com a situação extra‐verbal: a fala intervém
ativamente na situação, organizando‐a, dando um sentido, um valor, em
21
certos casos constituindo‐a, contribuindo com a ação prática de seu
perdurar ou sua modificação e superação; (6) ideologicidade do signo
verbal; (7) o signo verbal tratado como um “entimema”: a fala dita está
impregnada de coisas supostas e não ditas: “O que é subentendido são
valores vividos, programas de comportamento, conhecimentos,
estereótipos, etc., nada é individual e limitado à consciência individual,
sendo as avaliações efêmeras, lábeis, ligadas unicamente ao horizonte
mínimo, da circunstância particular ou a valores estáveis, permanentes,
fortes, que são essenciais para um grupo e que quando as condições
materiais se modificam, são postos sob suspeição, explicitados, lutando‐
se então pela mudança; (8) a consciência individual se constitui sobre a
base da ideologia social; (9) o caráter ideológico‐social da forma da
enunciação: quando as formas de vida conhecidas entram em crise, põe‐
se em discussão o sistema de valores, explicitando‐os6; (10) entonação e
consenso: se imagino que não há consenso, a enunciação adquire outra
forma: quando alguém está rindo e percebe que ri sozinho, o riso cessa
ou muda de natureza, torna‐se histérico, perde a sua segurança e clareza;
(11) autor, destinatário e protagonistas como elementos da interação
social da enunciação: na enunciação se expressa o falante em sua dupla
orientação: ao ouvinte e ao objeto da fala; (12) os limites da linguística:
tanto o objetivismo abstrato quanto o subjetivismo idealista não dão
conta do enunciado concreto; (13) numa sociedade dividida em classes, a
comunidade linguística não coincide com uma única classe, e por isso,
por ser orientada ideologicamente segundo os interesses de classe, o
signo verbal não é mais de um sentido único, mas tem o caráter da
multiacentualidade, pois nele se intercalam, se conectam acentos
ideologicamente e diversamente orientados.
De forma um pouco menos detalhada, poderemos dizer que nestes
textos são defendidas as principais teses do Círculo de Bakhtin:
1. A linguagem como processo constitutivo da consciência, cuja
organização semiótica é idêntica àquela de seu exterior. A relação
de ‘identidade’ sígnica entre interior e exterior.
6 As recentes manifestações de rua no Brasil estão explicitando uma mudança de valores
na nossa cultura: felizmente os tempos da “lei de Gérson” de levar vantagem em tudo,
mesmo que sob artifícios e ao arrepio da moralidade, parece estar sendo posta,
felizmente, na cesta do lixo.
22
2. O atravessamento ideológico dos signos: marcados pelos seus
empregos sociais, os signos se deixam penetrar pelo ideológico,
de que são a materialidade.
3. A posição epistemológica na construção do objeto de pesquisa: o
enunciado concreto vinculado à sua situação, o acontecimento
enunciativo que não pode, quando se trata de texto escrito, ser
reduzido ao tempo de sua produção, porque sua leitura é
também um acontecimento enunciativo, mesmo que muito
distante no tempo e no espaço.
4. A relação entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos:
estes se alimentam do cotidiano e por seu turno o alimentam.
IV
Uma coletânea de textos de Volochínov foi publicada na Rússia em
1995, sob o título Filosofija i sociologija gumanitarnyx nauk (Filosofia e
sociologia das ciências humanas). São Petersburgo: Acta‐Press. Infelizmente
não obtive acesso ao sumário desta recolha de textos, para verificar quais
coincidências e distâncias há entre a coletânea aqui apresentada e a
coletânea então publicada.
É preciso, ainda, ressaltar que a tradução aqui apresentada é
tradução de traduções. Um alerta ao leitor: como já dissemos, uma
tradução se baseia também numa compreensão, não é neutra e as
palavras aqui presentes estão sobrecarregadas de vozes. Nenhuma
pretensão de que esta tradução diga o que “realmente disse Volochínov”.
Pretender isso seria imaginar um sentido fixo para as enunciações do
passado e contradizer a teoria que os textos apresentam: a orientação
dupla da palavra inclui o destinatário, entre os quais se inclui também o
tradutor.
Os textos aqui reunidos provêm das seguintes fontes:
1. Para além do social. Um ensaio sobre a teoria freudiana (1925):
“Po tu storonu social’nogo” – Zvezda, Lengiz, n. 5, p. 186‐214. Traduzido
com o título de Más ala de lo social. Ensayo sobre la teoria freudiana.
Tradução do russo ao francês de Guy Verret; tradução do francês para o
espanhol de Nilda Venticinque, com supervisão científica de Guillermo
23
Blanck. Publicado como a terceira parte do livro Bajtín y Vigotski: la
organización semiótica de la consciência, de Adriana Silvestri e Guillermo
Blanck, Barcelona: Editora Anthropos, 1993. Também publicado na
coletânea de três textos de Volochínov, organizada por Guillermo
Blanck, sob o título Que és el lenguaje? Buenos Aires: Editorial Almagesto,
1998. Nesta edição, a tradução é direta do russo, realizado por Guy
Verret e G. Blanck. Utilizamos as duas edições em espanhol para a
tradução para o português.
2. A palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema
da poética sociológica (1926): “Slovo v zîzni i slovo v poèzii: k voprosam
sociologičeskoi poètiki”, Zvezda, Lengiz, n. 6, p. 244‐267. Traduzido do
russo para o italiano por Rita Bruzzese, e publicado em Il linguaggio come
pratica sociale, organizado por Augusto Ponzio, Bari: Dedalo Libri, 1980.
Também traduzido do russo para o italiano por Luciano Ponzio e
publicado no livro Linguaggio e escritura, organizado por Augusto Ponzio,
Roma: Meltemi, 2003. A tradução do italiano para o português foi
realizada por Valdemir Miotello e Fabrício César de Oliveira e publicada
em Bakhtin, Mikhail. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da
enunciação. A palavra na vida e na poesia. Introdução ao problema da poética
sociológica, São Carlos: Pedro & João Editores, 2011, aqui republicada sob
o título A palavra na vida e a palavra na poesia. Agradeço aos tradutores
pela concessão para republicação do texto.
3. As mais recentes tendências do pensamento linguístico ocidental
(1928): “Novejsie tečenija linguističeskoi mysli na Zapade”. Literatura i
marksizm, n. 5, p. 115‐149. Traduzido do russo para o italiano por Rita
Bruzzese, e publicado em Il linguaggio come pratica sociale, organizado por
Augusto Ponzio, Bari: Dedalo Libri, 1980. Também traduzido do russo
para o italiano por Luciano Ponzio e publicado no livro Linguaggio e
escritura, organizado por Augusto Ponzio, Roma: Meltemi, 2003. Para a
tradução do italiano para o português utilizei as duas traduções italianas
aqui citadas.
4. Que é a linguagem? (1930): “Čto takoe jazyk?” Literaturnaja učeba
2, p. 48‐66. Traduzido do italiano por Ariel Bignami, supervisão científica
24
de Adriana Silvestri e publicada na coletânea de três textos de
Volochínov, organizada por Guillermo Blanck, sob o título Que és el
lenguaje? Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1998. Publicado
anteriormente como a terceira parte do livro Bajtín y Vigotski: la
organización semiótica de la consciência, de Adriana Silvestri e Guillermo
Blanck, Barcelona: Editora Anthropos, 1993. Utilizei na tradução para o
português as duas publicações em espanhol.
5. A construção da enunciação (1930): “Konstrukcija vyskazyvanija”.
Literatturnaja učeba, 3, p. 65‐87. A tradução para o português foi feita
com base nas duas edições em língua espanhola citadas acima.
6. A palavra e suas funções sociais (1930): “Slovo i ego social’naja
funkcija”. Literatturnaja učeba, 5, p. 95‐134. Traduzido do russo para o
italiano por Rita Bruzzese, e publicado em Il linguaggio come pratica
sociale, organizado por Augusto Ponzio, Bari: Dedalo Libri, 1980.
Também traduzido do russo para o italiano por Luciano Ponzio e
publicado no livro Linguaggio e escritura, organizado por Augusto Ponzio,
Roma: Meltemi, 2003. Na tradução para o português manuseei as duas
versões em italiano.
7. Sobre as fronteiras entre poética e linguística (1930): “O granicax
poètiki i lingvistiki” in. V bor’be za marksizm v literatunoj nauke.
Leningrado: Priboj, p. 203‐240. Traduzida para o italiano por Nicoletta
Marcialis e publicado Il linguaggio come pratica sociale, organizado por
Augusto Ponzio, Bari: Dedalo Libri, 1980. Também traduzido do russo
para o italiano por Luciano Ponzio e publicado no livro Linguaggio e
escritura, organizado por Augusto Ponzio, Roma: Meltemi, 2003. Na
tradução para o português manuseei as duas versões em italiano.
8. Algumas ideias‐guia para a obra Marxismo e Filosofia da
Linguagem. Publicado como material de arquivo em Brandist, Craig,
Shepherd, David e Tihanov, Galin. The Bakhtin Circle. In the Master’s
Absence, como material de arquivo, p. 228‐250. Não consta o tradutor do
russo para o inglês. Este mesmo texto foi publicado como apêndice da
recente tradução de Marxismo e Filosofia da Linguagem, diretamente do
25
russo para o francês, por Patrick Sériot e Inna Tylkowski‐Ageeva
(Limoges: Lambert‐Lucas, 2010, p. 487‐517, em edição bilíngue). Utilizei a
versão em inglês para a tradução para o português.
Apêndices: ambos foram traduzidos do inglês para o português, da
obra de Brandist et alii citada acima.
V
Como já explicitado, a organização deste volume dos textos de
Volochínov tem como objetivo colocar num só volume seus trabalhos,
excluídos obviamente os livros Marxismo e filosofia da linguagem e O
Freudismo.
Nesta edição dos textos, procurei manter as notas também dos
organizadores e tradutores apostas nos textos‐fonte desta edição. Assim,
as notas de rodapé sem qualquer indicação são do próprio autor; quando
as notas são do organizador ou do tradutor, seus respectivos nomes são
explicitados. Quando as notas são desta tradução, estão sempre
antecedidas por [N.T.].
Para que este volume fosse possível, recebi ajuda dos colegas:
Valdemir Miotello: editor deste volume, que se responsabilizou por
toda a tramitação e contatos para que as traduções fossem possíveis.
Além disso, fez a supervisão técnica desta experiência de tradução, tendo
ainda cedido, junto com o colega Fabrício César de Oliveira, a tradução
do texto A palavra na vida e a palavra na poesia;
Augusto Ponzio, que não só disponibilizou os textos em italiano
como incentivou a realização deste trabalho;
Galin Tihanov, que disponibilizou e autorizou a tradução do
material de arquivo publicado no livro The Bakhtin Circle. In the Master’s
Absence, de que é co‐organizador.
A eles, minha gratidão.
26
Referências
BAKHTIN, Mikhail. “Metodologia das ciências humanas” in. _____. Estética da
criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
393‐410.
______. O Freudismo. Um esboço crítico. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
______ (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução do francês de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2ª. ed. 1981.
______ (Pavel N. Medvedev). El método formal en los estudios literarios. Introducción
crítica a una poética sociológica. Tradução de Tatiana Bubnova. Madri: Alianza
Editorial, 1994.
______. Mikhail Bakhtin em diálogo. Conversas de 1973 com Viktor Duvakin.
Tradução do italiano de Daniela Miotello Mondardo. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2008.
BRANDIST, Craig, Shepherd, David & Tihanov, Galin. The Bakhtin Circle. In the
Master’s Absence. Manchester e New York: Manchester University Press, 2004.
MONROY, Amalia Rodríguez. “De la palabra y su fiesta de resurrección:
problemas de una poética formal”. Prólogo a Mijail Bajtin (Pavel N. Medvedev).
El método formal en los estudios literarios. Madri: Alianza Editorial, 1994, p. 13‐35.
PONZIO, Augusto. “Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta”.
Introdução a Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2011, p. 7‐57.
______. “Introduzione” a Il linguaggio come pratica sociale. Bari: Dedalo Libri,
1980, p. 5‐17.
______. “O símbolo e o encontro com o outro na obra de Bakhtin”. Prefácio à
Mikhail Bakhtin em diálogo, op. cit, p. 9‐20, 2008
______. “Introduzione” a Linguaggio e escritura. Roma: Meltemi, 2003, p. 7‐31.
SÉRIOT, Patrick. “Volochínov, La phisophie de l’enthymème et la double nature
du signe”. Prefácio a Marxisme et Philosophie du Langage. Les problèmes
fondamentaux de la méthode sociologique dans la Science du langage. Nouvelle édition
bilíngue traduit du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowski‐Ageeva. Limoges :
Lambert‐Lucas, 2010, p. 13‐109
SHEPHERD, David. “Re‐introducing the Bakhtin Circle”. Introdução a The
Bakhtin Circle in the Master’s Absence. Manchester e New York: Manchester
University Press, 2004.
VOLOSHÍNOV, Valentin N. El signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Buenos
Aires: Nueva Visión, 1976.
27
PARA ALÉM DO SOCIAL
UM ENSAIO SOBRE A TEORIA FREUDIANA
‐ Pessoalmente só tenho uma certeza... ‐ disse o
doutor.
‐ Qual é? – perguntei‐lhe, ávido para saber a
opinião de um homem que até então
permanecera calado.
‐ Que, cedo ou tarde, numa bela manhã,
morrerei.
‐ Pois sou mais rico que você – lhe repliquei – já
que além desta convicção, tenho outra: que
numa tarde terrível tive a desgraça de nascer.
Lérmontov, Um herói de nosso tempo.
I
Não cabe qualquer dúvida de que se numa bela – ou horrível – noite
eu não houvesse nascido, não teria havido para mim nem mundo
exterior nem interior, nem sequer conteúdo, nem resultados da minha
vida, e não haveria nem perguntas, nem dúvidas, nem problemas. O
fato do meu nascimento é a condição sine qua non de minha vida, como
de minha atividade. E a importância da minha morte não é menos
evidente. Mas se eu reduzo todo o universo nestes dois pontos extremos
da minha vida pessoal como determinantes de minha visão do mundo;
se eles se convertem no alfa e ômega de minha arte de viver e
pretendem erigir‐se em feitos históricos, se poderá dizer que minha
vida terá sido inútil e vazia. Para se contemplar o fundo de um vaso de
flores, é preciso que ele esteja vazio.
Quando uma classe social se encontra em estado de degeneração e
deve deixar o cenário da história, sua ideologia começa a repetir que o
homem é, antes de tudo, um animal e, à luz desta opinião, dedica‐se a
rever todos os valores do mundo, principalmente os da história, em
detrimento do segundo termo da fórmula aristotélica – “o homem é um
animal social” – de que se esquece absolutamente. A ideologia coloca
como centro de gravidade um organismo biológico abstrato e os três
29
fatos essenciais de toda a vida animal – nascimento, ato sexual e morte –
são chamados para destronar a história.
Isola‐se abstratamente a parte não social, a‐histórica, do homem
para fazer dela a medida e o critério supremo do que é social e histórico.
Como se as pessoas deste período desejassem abandonar a atmosfera da
história, que se tornou demasiadamente fria e inóspita, para refugiar‐se
na tibieza orgânica da animalidade! Mas, o que pode significar, para o
conteúdo e os resultados de sua atividade, o nascimento e a vida de um
homem biológico abstrato?
Com efeito, por si mesmo, com seus próprios recursos, o indivíduo
isolado não está absolutamente em condições de incorporar‐se à
história. Somente como membro de um grupo social, numa classe e por
uma classe, ele acede à realidade e à atividade históricas. Para entrar na
história, não basta nascer fisicamente como o animal, que permanece à
margem da história. É necessário, por assim dizê‐lo, um segundo
nascimento, um nascimento social. Não se nasce organismo biológico
abstrato, mas campesino ou aristocrata, proletário ou burguês, e este é o
ponto capital. A este se agrega o fato de nascer russo ou francês, etc., de
nascer em 18.. ou em 19.. E só com este nascimento social começa a
ideologia. É por isso que não devemos ignorar este segundo nascimento
social e reduzir tudo ao fato biológico do nascimento e da vida de um
organismo tomado isoladamente, num empreendimento vão e
destinado desde início ao fracasso. Não existe uma só ação do homem
integral, uma só de suas construções ideológicas que possa ser
explicada e interpretada desta maneira. E não existem sequer problemas
especificamente biológicos que possam ser resolvidos por inteiro sem se
considerar com precisão a situação social do organismo individual que
se estuda. Nem em biologia nem nas outras ciências se poderia – como
se fez até agora – levar em conta unicamente a maturação biológica do
indivíduo.
É precisamente este organismo biológico abstrato que se converteu
em protagonista da filosofia burguesa dos fins do século XIX e
princípios do século XX. A filosofia do “conhecimento puro”, do “eu
30
criador”, da “ideia e espírito absoluto”1 – a filosofia das épocas heroicas
da burguesia, à qual não faltava energia nem certa lucidez; a filosofia
que tinha uma preferência marcada pela história e pela organização, ao
modo burguês – esta filosofia cedeu o lugar a uma “filosofia da vida”
passiva e senil, pintada com cores da biologia e apenas capaz de
conjugar em todos os tempos e em todos os modos os verbos “viver” e
“reviver”.
A ideologia foi, em consequência, invadida por um vocabulário
biológico, extraído dos fenômenos orgânicos, e tudo se recobriu por
uma metáfora biológica apropriada para reanimar agradavelmente a
qualquer objeto que se tivesse congelado na atmosfera glacial do
conhecimento puro kantiano. Schopenhauer e Nietzsche foram os novos
mestres do pensamento e deram a escala emocional do biologismo em
seus dois polos: o pessimismo e o otimismo. Bergson, Simmel, Driesch,
James e os pragmatistas, inclusive Scheler e os fenomenólogos, para
terminar com Spengler – além dos russos Stepun, Frank e até certo
ponto Loski2 ‐ por diferentes que sejam seus pensamentos, estão de
acordo, no entanto, no essencial: centralizam em seus sistemas a vida
concebida em seu sentido orgânico – e fazem disto a base do todo, a
realidade última e todos estão unidos contra os kantianos e a filosofia
da consciência. Para a filosofia burguesa atual, o único que conta, o
único que tem valor, é o que pode ser vivido e assimilado
organicamente: a única realidade é o fluxo da vida orgânica.
1 Bakhtin se refere aqui a Kant, Fichte e Hegel, respectivamente (Nota de Guillermo
Blanck). [N.T.] Nesta nota, como no prefácio da coletânea, Guillermo Blanck atribui a
autoria deste texto (e dos demais) a Bakhtin. Manterei estas referências seguindo a
edição argentina.
2 Nesta passagem, Bakhtin se refere fundamentalmente aos seguintes escritos:
Bergson, A Evolução Criadora (no Brasil, editada pela Martins Fontes); Simmel,
Lebensanschauung (1919); Driesch, Der Vitalismus als Geschichte und als Lehre (1905). O
trabalho “Vitalismo Contemporâneo” de Kanáiev (Bakhtin) se refere principalmente a
Driesch. James, Pragmatism; Schele, Phenomenologie und Theorie der Sympathiegefühle
(1913) e Vom Ewigen in Menschem (1920); Spengler, Untergang des Abendlandes. (Loski
foi professor de Bakhtin na Universidade de Petrogrado) (Nota de Guillermo Blanck)
[N.T.] Quando possível, faremos referência apenas gerais a edições brasileiras,
mantendo, no entanto, as referências originais do autor ou do organizador.
31
Quanto ao problema da história, acomodam‐na à sua maneira.
Obstinam‐se em garantir a primazia do biológico. Tudo o que não se
deixe conter no marco asfixiante da vida biológica, tudo o que não se
deixe traduzir na língua da autossatisfação subjetiva da vida, decreta‐se
como ficção, abstração ressequida, maquinismo, etc. como o mostra
suficientemente o biologismo histórico desenvolvido de forma
sistemática por Spengler.
Os métodos de toda esta filosofia biológica são evidentemente
subjetivos, dado que o orgânico se experimenta e se apreende a partir
do interior. Assim, já não há conhecimento nem método racional –
transcendental – de análise, mas intuição, identificação interior com o
objeto do conhecimento, empatia: já não existe o subjetivismo lógico do
idealismo clássico, mas algo pior, o subjetivismo da vaga sensação
orgânica.
E o freudismo representa uma versão original desta filosofia
biológica atual. Nele se expressa de maneira talvez mais clara e
consequente esta tendência a deixar o mundo da história e do social,
para substitui‐lo pela sedutora tepidez da autossuficiência orgânica e o
vivido.
É este o objeto de nosso estudo.
Mas os limites deste artigo nos impõem a restrição de somente ater‐
nos às raízes da concepção freudiana – seu método e seu “inconsciente”
– nos quais trataremos de identificar o que nos interessa, isto é, uma
orientação geral da ideologia burguesa contemporânea. Precederemos
esta crítica com uma exposição em que nos ateremos, antes de tudo, aos
traços profundos e determinantes desta teoria, que lhe permitiram
exercer grande atração sobre tantos setores da burguesia europeia.
II
Muitos leitores objetarão, sem dúvida, que o freudismo não é uma
filosofia, mas a teoria empírica e ideologicamente neutra de uma ciência
particular; que Freud adere ao naturalismo e até ao materialismo; que
32
utiliza métodos objetivos, etc.3 E é verdade que o freudismo se apoia em
alguns pequenos fatos, cientificamente sólidos, seguidos de esparsas
observações empíricas. Mas neste núcleo empírico e relativamente
neutro – que veremos não ser tão importante quanto parece ser – não há
nada, começando pelo próprio Freud4, que não esteja envolto por
espessa capa de ideologia, o que não tem nada de neutro. E, se se
considera o freudismo como um todo, encontra‐se um oceano de
pretensas filosofias subjetivistas que faz desaparecer, pura e
simplesmente, a este desditado núcleo. O freudismo goza atualmente
de uma prodigiosa audiência em todo mundo, e este êxito junto a um
vasto público não se deve precisamente à sua neutralidade científica5.
Com o que se sonha, de fato, é descobrir um novo mundo, um
verdadeiro continente virgem em algum lugar para além do social, do
histórico e – podemos dizê‐lo veementemente – para além da
materialidade. Um continente novo que se poderia prever desde o início
– mesmo porque Freud não se preveniu imediatamente disso – se
situaria fora do espaço, fora do tempo e que seria por sua vez não lógico
3 Tanto na Rússia como na Europa ocidental, se procurou relacionar o freudismo ao
materialismo dialético. Estas tentativas têm sua origem, como mostraremos mais
adiante, num mal‐entendido. Eis aqui os principais artigos russos que nos últimos
anos foram utilizados para reconciliar Freud com o marxismo: A.B. Zálind,
“Freudismo e marxismo. Panoramas sobre a cultura da época revolucionária”; B.
Bijoski, “Fundamentos metodológicos da teoria psicanalítica de Freud” (Sob o
estandarte do marxismo, 1923, n.12); B. D. Fridman, “As grandes visões psicológicas de
Freud e a teoria do materialismo histórico” (in. Kornílov, ed. Psicologia e Marxismo); A.
R. Luria, “A psicanálise como sistema de psicologia monista” (idem). A atitude mais
reservada é a de A. M. Raisner em “As opiniões de Freud e sua escola sobre a
religião” (Imprensa e Revolução, 1924, n. 2). Conferir, pelo contrário, a posição
completamente justa tomada por V. Iurinets em seu excelente artigo “Freudismo e
Marxismo” (Sob o estandarte do marxismo, 1924, n. 8‐9).
4 Podemos citar seus dois recentes trabalhos Além do Princípio do Prazer (1921) e O Eu e
o Id (1923). São livros de filosofia pura que não deixam nenhuma dúvida sobre suas
raízes ideológicas.
5 No último congresso mundial de psicanalistas, em 1922, muitos participantes
expressaram o temor de que o aspecto especulativo da psicanálise fizesse esquecer
seu destino terapêutico original (veja‐se, a respeito deste tema, Dr. S. Fereneczi e Dr.
O. Rank, Entwicklungsziele der Psychoanalyses (1924) (A evolução da psicanálise) [N.T.]
No Brasil, há uma edição das obras completas de Sandor Ferenczi pela Editora
Martins Fontes.
33
(nele não há contradições nem negações) e imutável. Este mundo é o
“inconsciente”.
Não que o inconsciente seja algo novo. Conhecemo‐lo bem, quer no
contexto da filosofia subjetivista de Hartmann, quer no trabalho
científico de Charcot e de sua escola (Janet e outros). Mas o inconsciente
de Freud, embora em suas origens tivesse algo a ver com este último
(Charcot), e tenha se aproximado do espírito do primeiro (Hartmann)
mantém seu princípio básico perfeitamente original e extremamente
representativo de nossa época.
Desde 1889, em Nancy, Freud – então modesto médico vienense que
tinha ido aperfeiçoar sua formação na França – estava impressionado
com a experiência de Bernheim6: uma paciente hipnotizada havia
recebido a ordem de abrir, logo depois de despertar, um guarda‐chuva
que se encontrava em algum lugar da casa. Ao sair de seu sonho
hipnótico fez, com todos os detalhes, o que lhe havia sido ordenado: foi
até o lugar onde se encontrava e abriu o guarda‐chuva. Interrogada sobre
as razões de seu ato, respondeu que só queria certificar‐se de que era
realmente o seu guarda‐chuva – explicação totalmente estranha às causas
reais de seu procedimento, mas por não ter sido inventada no ato,
deixava a paciente de consciência tranquila. Depois disso, forçada por
perguntas e sugestões insistentes, Bernheim conseguiu que a enferma
recordasse a verdadeira causa de sua conduta e, ainda com muita
dificuldade, conseguiu fazê‐la tomar consciência da ordem que havia
sido dada durante sua hipnose: a amnésia hipnótica estava suprimida.
Esta experiência é adequada para nos conduzir às raízes da primeira
concepção de Freud7, que se define, em seus começos, por três
proposições de base:
1. por sincera que seja, uma motivação consciente pode não
corresponder às causas reais de um ato;
2. um ato é muitas vezes determinado por forças interiores do
psiquismo, sem que estas se manifestem na consciência;
3. utilizando certos meios, pode‐se levar estas forças à consciência.
6 A este respeito, veja‐se Freud, História do movimento psicanalítico (em Kleine Schriften
zur Neurosenlehre. Cuarta Série)
7 Para o que se segue, cfe. Dr. Breuer e Dr. Freud, Estudos sobre a histeria, primeira
edição: 1895, segunda edição: 1910; quarta edição: 1922.
34
Destas três proposições, Freud extraiu, com um colega e grande
amigo, o Dr. Breuer, seu primeiro método, chamado catártico.
Este método pode ser resumido da seguinte maneira: as afecções
nervosas psíquicas – quer dizer, resultantes de um trauma psíquico e
não orgânico ‐, a histeria em particular, provêm de formações psíquicas
das quais o enfermo não tem consciência, dada a amnésia que o afeta; e
é por sua incapacidade de eliminá‐las normalmente que elas
determinam os sintomas mórbidos da histeria8. É necessário, então,
extraí‐las da amnésia, levá‐las à consciência e conectá‐las ao fio
contínuo desta, de maneira que possam ser eliminadas, o que deve
acarretar o desaparecimento do sintoma. Isto constitui a catarse – termo
aristotélico: a catarse purga os sentimentos de terror e de piedade,
produzindo o resultado estético da tragédia.
Para chegar à supressão da amnésia e a esta eliminação, Freud e
Breuer recorreram à hipnose – total ou parcial. Nesta etapa, estavam
ainda muito próximos da escola de Charcot – sobretudo a de Janet – por
sua definição do inconsciente como um estado hipnoide – próximo à
hipnose ‐, como um corpo estranho alojado no psiquismo que, na
ausência de laços associativos sólidos com outros elementos da
consciência, rompe a sua unidade. Quase como faz, no estado normal
de nosso psiquismo, o sonho – sonho em estado de vigília – cuja forma
está menos sujeita aos laços associativos estreitos que penetram em
nossa consciência9. No entanto, o sexo e sua importância, no período
breueriano, não são enfatizados.
Assim se apresenta o inconsciente freudiano em seu nascimento.
Observemos o caráter puramente psíquico do recém‐nascido. No
entanto, embora Breuer se preocupasse em oferecer uma explicação
fisiológica a seu método10, Freud desde o início dá as costas à fisiologia.
Observemos também que os produtos do inconsciente não nos são
acessíveis senão por intermédio da consciência; em outras palavras, o
acesso ao inconsciente parte da consciência e passa pela consciência.
8 Idem (quarta edição), p. 1‐14
9 Ibidem, p. 188 e seguintes.
10 Ibidem, p. 161 e seguintes
35
A etapa seguinte da história do freudismo é essencialmente
marcada pelo fato de que o aparato psíquico se dinamiza e, sobretudo,
pela célebre teoria da repressão [Verdrängung]11.
Que é a repressão?
Nos primeiros estágios de desenvolvimento de nossa personalidade,
nosso psiquismo ignora a distinção entre o possível e o impossível, o
benéfico e o danoso, o lícito e o ilícito. O único princípio que o governa
é o princípio do prazer (Lustprinzip)12, a tal ponto que nesta fase de seu
desenvolvimento se povoará com representações, sentimentos e desejos
que florescem com toda liberdade. Mas os estágios posteriores deste
desenvolvimento tenderiam a horrorizar nossa consciência pelo seu
caráter criminoso e viciado.
O psiquismo infantil considera que tudo é permitido e – no que
pode soar estranho – aproveita amplamente este privilégio para
acumular uma enorme reserva de imagens, sentimentos e desejos
depravados. “Depravado” tem aqui o sentido que lhe daremos
posteriormente. No psiquismo infantil, segundo a hipótese de Freud, o
império exclusivo do princípio do prazer se faz acompanhar de uma
atitude para a satisfação alucinatória dos desejos13, o que permite à
criança ignorar a distinção entre real e irreal – para ele toda a
representação é já realidade – o que persistirá depois, ao longo de toda
nossa vida no sonho.
Depois disso, o desenvolvimento interno passará por outros
estágios, nos quais o princípio do prazer verá seu império disputado
pouco a pouco por outro princípio de funcionamento psíquico, o da
realidade. A tal ponto que todos os eventos psíquicos terão de passar por
um duplo exame, com cada um destes dois princípios. Já que não se
exclui que à falta de satisfação possível, o desejo e a promessa de prazer
se convertam em fonte de sofrimento ou que, satisfeitos, acarretem
consequências desagradáveis, no caso deverão ser reprimidos. Por isso,
haverá uma seleção psíquica, em virtude da qual só as formações
mentais que tenham passado pelo duplo exame, do ponto de vista dos
11 A este respeito, veja‐se Freud, História do movimento psicanalítico.
12 Freud, Os princípios do desenvolvimento psíquico (in. Kleine Schriften zur Neurosenlehre.
Terceira Série, p. 271) terceira edição.
13 Veja‐se Freud, A interpretação dos sonhos (Mocou, 1913, p.388‐391; p. 403‐405).
36
dois princípios, obterão o reconhecimento legal que lhes permitirá
aceder ao sistema superior da psique, a consciência, ou tenderão pelo
menos à possibilidade de fazê‐lo, tornando‐se pré‐consciente. As
experiências que não tenham passado pelo exame serão tomadas como
ilegítimas e serão reprimidas no sistema do inconsciente. Esta repressão
que nos acompanhará durante toda nossa vida se opera
automaticamente, fora de toda intervenção de nossa consciência. Disto resulta
que a consciência se faz responsável, numa forma completamente
acabada, asséptica, sem referir‐se de nenhuma maneira a um
inconsciente de cuja existência e constituição ela não pode sequer
suspeitar. Isto se deve ao fato de que a repressão depende de uma
instância psíquica particular, denominada metaforicamente por Freud
de censura, que se situa na fronteira entre os sistemas inconsciente e pré‐
consciente, pelos quais passa tudo o que chega à consciência ou tem a
possibilidade de chegar14.
É assim que se pode, do ponto de vista da dinâmica psíquica de sua
formação, definir o inconsciente como o reprimido.
Qual é, então, a constituição, o conteúdo, deste inconsciente? Para
sabê‐lo, observemos primeiro que nossa atividade psíquica está
desconectada dos estímulos sobre o nosso organismo, uns externos e
outros internos, de origem somática, nascidos no próprio corpo. São as
representações psíquicas destes estímulos somáticos internos que Freud
denomina de pulsões (Triebe)15. Estas, segundo sua finalidade e origem
somática – que praticamente não estuda – estão distribuídas em dois
grupos: o das pulsões sexuais, cujo objetivo é a perpetuação da espécie,
ainda que ao preço da vida do indivíduo, e o das pulsões do Eu (Ichtriebe),
que tendem à autopreservação do indivíduo – dois grupos irredutíveis
um ao outro, entre os quais os conflitos são possíveis e multiformes.
Detenhamo‐nos essencialmente nas pulsões sexuais, já que estas são
as grandes provedoras do sistema do inconsciente. Depois de seus
estudos particularmente profundos sobre este grupo de pulsões, pode‐
se ver nesta abordagem de Freud à sexologia seu principal mérito
14 Idem, p. 116 e 439; veja‐se também O Eu e o Id (Leningrado, 1925), caps I‐II.
15 Para o que se segue, veja‐se Kleine Schriften zur Neurosenlehre.
37
científico, abstração feita do papel monstruosamente exagerado que sua
ideologia confere à sexualidade no campo da cultura.
Dissemos antes que nos primeiros estágios de seu desenvolvimento
psíquico a criança acumulava uma enorme reserva de sentimentos e de
desejos considerados pela consciência como imorais. Esta afirmação,
sem dúvida, deve ter surpreendido e indignado fortemente o leitor
leigo, que terá se perguntado de onde pode uma criança extrair estes
desejos imorais.
A pulsão sexual ou libido – apetite sexual – habita a criança desde o
princípio, nasce com ela e nunca a abandona, ainda que possa até
mesmo perder sua força de tanto em tanto, mas nunca se extinguirá
completamente, tanto em seu corpo como em seu psiquismo. De modo
que, mesmo a puberdade marcando uma etapa deste desenvolvimento
da libido, ela não constitui de maneira alguma seu ponto de partida16
Nos primeiros estágios do seu desenvolvimento – estágios em que a
debilidade do princípio de realidade submete ainda mais o psiquismo
ao império do princípio do prazer e seu lema “tudo é permitido” – a
pulsão sexual se caracteriza essencialmente pelos seguintes traços:
1. Os órgãos genitais, que no futuro serão o núcleo somático
organizador desta pulsão sexual, nesta etapa não são mais que
uma zona erógena – parte do corpo susceptível a excitações
sexuais – que entra em competição com outras zonas, tais como
a cavidade oral – no momento da mamada – o ânus ou a zona
anal – no ato de defecar – a pele, o polegar ou o dedo grande do
pé que se chupa, etc.17, de sorte que se pode dizer que a libido da
criança se encontra disseminada por todo o organismo e que
qualquer ponto de seu corpo pode transformar‐se em fonte
somática. A esta primeira etapa, na qual os órgãos genitais não
exercem primazia ‐ e que a puberdade lhes permitirá comandar
tudo, assim como controlar tudo – Freud denominou de período
pré‐genital do desenvolvimento da libido18 .
16 Freud, Três ensaios sobre a teoria sexual.
17 Idem.
18 Ibidem.
38
2. As pulsões sexuais da criança não são, entretanto, perfeitamente
autônomas nem diferenciadas, e estão associadas estreitamente a
outras necessidades do organismo, como aos processos de
satisfação – alimento (mamada), micção, defecação, etc. –
conferindo a todas estas funções um colorido sexual.
3. A pulsão sexual da criança se satisfaz sobre seu próprio corpo
sem nenhuma necessidade de objeto – outra pessoa – como se vê
pelo que precedeu: a criança é autoerótica.
4. A diferenciação sexual da libido é, então, ambígua – não há
primazia dos órgãos genitais – de tal modo que, no primeiro
estágio, a pulsão sexual é bissexual.
5. A criança pode ser qualificada como perverso polimorfo, como
resultado destas características: pode ser levada a
homossexualidade – porque é bissexual e autoerótica ‐, ao
sadismo, ao masoquismo e a outras perversões, porque a libido
disseminada por cada ponto de seu corpo pode relacionar‐se
com qualquer fenômeno ou sensação orgânica. Para a criança, o
ato sexual normal é também o mais difícil de compreender19.
Disto resulta a concepção freudiana de um erotismo infantil que –
apresentados seus grandes traços – nos permite compreender a
formidável reserva de desejos sexuais – geradores de representações e
sentimentos – produz a libido infantil, reserva que será logo,
desapiedadamente, reprimida no inconsciente.
O fato capital que domina esta parte reprimida da vida sexual
infantil é a fixação da libido na mãe, acompanhada de um ódio pelo pai,
que se denomina complexo de Édipo, que constitui o ponto central de toda
a doutrina freudiana. Este pode ser resumido da seguinte maneira: o
primeiro objeto da pulsão erótica – no sentido de erotismo infantil
definido acima – é a mãe, com quem a criança tem desde o começo
relações agudamente sexualizadas20, a tal ponto que Otto Rank chega a
atribuir um caráter libidinoso à estada do feto no útero materno. Rank
19 Ibidem.
20 Sobre este ponto, veja‐se Freud, A interpretação dos sonhos (1913), edição russa p. 201 e
seguintes; também Três ensaios sobre a teoria sexual, assim como o trabalho de Jung (O
significado dos pais para a vida dos indivíduos) e os de O. Rank (1. O motivo do incesto na
poesia e na lenda; 2. O trauma do nascimento, 1923).
39
considerará que o começo da tragédia edípica se encontra no próprio
nascimento – a primeira e mais desgastante e cruel separação da mãe, já
que rompe a unidade com ela. Mas a libido continua orientando‐se
obstinadamente para a mãe, sexualizando todos os cuidados e atenções
que ela manifesta – amamentação, banho, ajuda na defecação, etc. não
sem os inevitáveis contatos com suas partes genitais, com sensações
agradáveis e que podem até provocar a primeira ereção21. O menino é
atraído para a cama de sua mãe, para seu corpo e uma obscura
reminiscência de seu organismo o leva ao útero materno, incitando‐o a
nele reintegrar‐se. Daí haver no menino uma tendência orgânica ao
incesto22, necessariamente geradora de representações, sentimentos e
desejos incestuosos. No curso destas atrações do pequeno Édipo para
sua mãe, seu pai se converte no rival, guardião do umbral materno e
possuidor da mãe num sentido que o menino pode vagamente
adivinhar por seu corpo. O pai termina por imiscuir‐se ativa e
indiscretamente nas relações do menino com sua mãe, proibindo a esta
de levá‐lo à sua cama, obrigando‐o a ser autônomo e privar‐se da ajuda
materna, etc. A tal ponto que o menino chega a odiar a seu pai,
desejando infantilmente a sua morte, o que lhe asseguraria a posse
exclusiva de sua mãe. O princípio do prazer reina quase absolutamente
no psiquismo infantil nesta etapa, não há limites para a produção de
desejos e tendências – tanto agressivas quanto incestuosas – e favorece a
eclosão de sentimentos e de imagens a eles associadas.
Depois disto, o princípio da realidade se faz forte, e a voz do pai
com todas as suas interdições começa a transformar‐se em vozes da
própria consciência moral da criança, vozes que entram em luta com
estes impulsos incestuosos e os reprimem no inconsciente. Assim,
determinarão uma amnésia que nos fará esquecer por completo nosso
complexo de Édipo – já que evita geralmente a emergência de
recordações do que nos ocorreu antes da idade de quatro anos – e as
21 Freud, Três ensaios sobre a teoria sexual. Nesta nota, Guillermo Blanck observa que o
autor abreviou seu título para Três ensaios.
22 Rank, O trauma do nascimento (1923).
40
tendências reprimidas cederão o lugar a um temor que, no caso de um
complexo de Édipo forte, poderá conduzir inclusive a fobias infantis23.
Este primeiro fato pré‐histórico de nossa vida se reveste, no
freudismo, de uma importância enorme e decisiva para tudo o que se
seguirá, já que este primeiro amor e este primeiro ódio ficarão para
sempre em nossos sentimentos, os mais autenticamente orgânicos, os
que em seu gênero não serão jamais apagados por nenhuma de nossas
relações posteriores. Este amor esquecido foi precedido por uma
completa unidade orgânica com seu objeto, a mãe, e a seu lado todas as
novas relações parecerão superficiais, racionais, estranhas à verdadeira
profundidade de nosso organismo e de nosso psiquismo. Rank chega
até mesmo ao ponto de considerar que todas nossas relações posteriores
são um simples sucedâneo (Ersatz) desta primeira relação, e a nossa
união carnal futura como uma simples compensação parcial da perda
de nosso estado intrauterino24. Desta maneira, todos os fatos de nossa
vida adulta extrairão sua força psíquica deste primeiro fato reprimido
no nosso inconsciente, brilharão com uma luz emprestada; o depois não
é mais que uma reedição indefinida – pois não temos consciência disso
– deste evento primordial do complexo de Édipo, transferindo para
nossos parceiros os sentimentos reprimidos e sempre vívidos, já que do
inconsciente nada desaparece, que nos inspiraram nosso pai e nossa
mãe. Não obstante, Freud, sempre mais prudente, considera que o êxito
de nossa vida amorosa depende amplamente de nossa atitude para
liberar nossa libido de sua fixação sobre a mãe – o primeiro amor do
homem jovem se parece comumente com este25 ‐ e que esta imagem da
mãe pode ter uma influência nefasta sobre a evolução de nossa libido. A
partir do momento em que aparece o temor à nossa consciência moral,
que desaprova as tendências incestuosas, nosso amor por nossa mãe é
desviado para uma espiritualidade forçada, um amor‐respeito alheio
até mesmo à ideia de sensualidade. Isto ao ponto de proibir‐nos às
vezes toda relação carnal com uma mulher respeitada e amada no plano
23 Freud, Análise da fobia de uma criança de cinco anos (in. Kleine Schriften zur
Neurosenlehere, terceira série, p. 1 e seguintes).
24 O. Rank, O trauma do nascimento.
25 Freud, Contribuição à psicologia da vida amorosa (in. Kleine Schriften zur Neurosenlehere,
quarta série).
41
espiritual – se nos evoca a imagem da mãe – causando uma impotência
psíquica determinada pelo funesto rompimento de nossa libido
essencialmente por uma das duas correntes: paixão sensual e apego
espiritual, incapazes de reunirem‐se num mesmo objeto26.
De outro lado, mesmo quando o complexo de Édipo – sol central do
sistema do inconsciente – exerce sua atração sobre grupos mais
reduzidos de formações psíquicas reprimidas, que ao inconsciente se
acrescentam depois ao largo de toda nossa vida, à medida que a cultura
e nosso próprio progresso cultural nos impõem novas repressões, pode‐
se dizer em geral que o essencial, o fundo de nosso inconsciente,
procede de pulsões infantis e de pulsões infantis de caráter sexual.
Quanto às pulsões do Eu, Freud praticamente não as estuda, e sua
contribuição ao inconsciente parece absolutamente ínfima. As únicas
que podem ser citadas são as pulsões agressivas, às quais o psiquismo
infantil e seu “tudo é permitido” conferem tal virulência, que a criança
deseja comumente a seus inimigos nada menos que a morte: por
motivos egoístas ou sob pretextos fúteis, condena à morte todos seus
próximos, particularmente seus irmãos e irmãs menores, que rivalizam
com ele pelo amor de seu pai e sua mãe. Quantos assassinatos
cometidos em pensamento! Ainda que a “morte”, tal como se apresenta
à criança, não tenha nada que ver com nosso conceito de morte;
significa simplesmente a partida, a expulsão do que prejudica – para
não falar do matiz favorável que lhe outorgam a criança e o selvagem,
nas palavras de Otto Rank, a saber, de um retorno ao útero materno.
Este é o conteúdo do sistema inconsciente e que pode ser resumido
da seguinte maneira: o inconsciente penetra tudo o que pôde fazer
nosso organismo a partir do momento em que era regido
exclusivamente pelo princípio do prazer, liberto do princípio da
realidade e da cultura; penetra tudo o que o organismo efetivamente
tenha desejado – ainda que o tenha satisfeito em grau insignificante –
nesta primeira infância, quando a pressão do princípio da realidade e
da cultura era débil, e quando, mais ainda, estava em disposição de
manifestar sua primeira autonomia, orgânica.
26 Idem.
42
III
Mas como conhecemos este inconsciente e inclusive os mínimos
detalhes de seu conteúdo? Em outras palavras, em que se baseia esta
teoria do inconsciente que acabamos de apresentar? Por quais métodos
se construiu e o que nos garante sua seriedade científica?
Ao falar da primeira concepção freudiana do inconsciente, notamos
que para aceder a ele metodologicamente havia que passar pela
consciência. Os progressos do método freudiano não invalidam esta
observação27, já que ainda hoje se dirige essencialmente a uma análise
interpretativa de algumas formações particulares da consciência, redutíveis
a suas raízes inconscientes. É conveniente deter‐nos um pouco mais em
detalhes destas formações particulares.
Vimos que o inconsciente não pode aceder diretamente à
consciência e nem ao pré‐consciente, cuja entrada é comandada pela
censura. Vimos também que as pulsões reprimidas não morrem, que a
repressão era incapaz de evitar sua atividade, sua energia e que se
encarniçavam para reingressar na consciência. A uma pulsão reprimida
não se pode chegar se não se encontra um compromisso ou um modo
de disfarçar, de enganar a vigilância da censura. Estas formações
psíquicas encobertam‐se no inconsciente e, enganando a censura,
podem passar sem problemas à consciência, na qual o especialista
terminará por descobri‐las e analisá‐las.
Todas estas formações de compromisso sobre as quais se apoia o
método freudiano podem ser divididas em dois grupos: as formações
patológicas – sintomas, concepções delirantes, fatos patológicos da vida
cotidiana tais como o esquecimento de nomes, lapsos de língua ou de
escrita, etc. – e as formações normais – sonhos, mitos, criações da arte,
ideias filosóficas, sociais e políticas; dito de outra maneira, todo o
domínio da criatividade ideológica humana. A fronteira entre os dois
grupos não é nítida.
27 “Tudo o que sabemos está tão constantemente relacionado com a consciência que até
o inconsciente deve, para ser conhecido, tomar a forma do consciente” (O Eu e o Id,
Leningrado, 1924, p.14).
43
O estudo mais notável de Freud foi o que realizou sobre os sonhos,
cujas imagens interpretou com métodos que se tornaram clássicos –
modelos para todos aqueles que estudam as formações de compromisso
em outros campos.
No sonho, Freud distingue dois fatores: seu conteúdo manifesto
(manifester Inhalt), a saber, imagens tomadas das impressões indiferentes
do dia e facilmente rememoradas; e seus pensamentos latentes (latente
Traumgedanken) que, temendo a luz da consciência, se camuflam
habilmente sob as imagens do conteúdo manifesto28. Então, como
aceder a estes pensamentos latentes? Em outras palavras, como
interpretar o sonho? Para este feito, propõe‐se um método: o da livre
imaginação (freie Einfälle) ou livre associação (freie Assoziation), operando
sobre as imagens do sonho considerado29 e procurando liberar
totalmente nosso psiquismo, mediante o afrouxamento de todas as
instâncias de repressão, de crítica e de controle. Consiste em recolher
tudo o que nos passa pela cabeça, até os pensamentos e imagens mais
vagas e rápidas que aparecem; aquelas que não têm aparentemente
nenhuma relação, nem sequer distante, com o sonho em questão;
implica deixar‐se invadir por tudo o que chega à consciência e
permanecer absolutamente passivo. O essencial é captar tudo o que
surge involuntariamente no nosso psiquismo.
Observemos, de início, que esta empresa se choca com uma forte
resistência de nossa consciência e que este projeto de interpretação do
sonho suscita em nós diversas formas de protesto, quer porque o sonho
nos pareça ter um conteúdo manifesto suficientemente claro em si,
mesmo que não necessite de explicação alguma; quer, pelo contrário,
porque o consideramos demasiado estúpido, demasiado absurdo para
poder implicar qualquer significação; quer porque, criticando os
pensamentos e representações que nos surjam, reprimimo‐los assim que
aparecem como estranhos a nosso sonho e perfeitamente fortuitos. O
que quer dizer que tendemos a preservar e manter o ponto de vista da
consciência legal sem alhear‐nos jamais das leis que regem esta zona
superior de nosso psiquismo. Para aceder aos pensamentos latentes do
28 Freud, A Interpretação dos sonhos (Moscou, 1913, p. 80 e seguintes).
29 Idem, p. 83‐87
44
sonho há que vencer esta resistência, pois o que sentimos resistir é a
força que, na sua qualidade de censura inconsciente, fez com que o
verdadeiro sentido do sonho tenha se disfarçado, convertido em
imagens manifestas e agora bloqueia os nossos esforços. Por sua ação
devemos esquecer nossos sonhos fácil e rapidamente, e disfarçá‐los
involuntariamente em nossa lembrança30. Porém, o fato de haver
resistência denuncia inquestionavelmente a presença de um impulso
inconsciente reprimido que busca penetrar em nossa consciência; essa é
precisamente a razão pela qual a força da resistência é mobilizada. As
formações de compromisso, neste caso as imagens manifestas do sonho,
são um substituto para o impulso reprimido, na única forma que a
censura poderia permitir.
Depois disso, uma vez vencidas todas as formas de resistência, os
pensamentos e imagens livres, que atravessam a consciência do sujeito
sem razão nem continuidade aparentes, se converterão nos elos de uma
cadeia que permitirão remontar a pulsão reprimida, isto é, o conteúdo
latente do sonho, ele mesmo uma realização disfarçada de um desejo31
geralmente erótico e de um erotismo frequentemente infantil. As
imagens manifestas do sonho são, portanto, as representações
substitutivas – os símbolos – dos objetos do desejo que tem, pelo menos,
alguma relação com a pulsão reprimida. A criação destes símbolos
substitutivos dos objetos da pulsão reprimida obedece a leis muito
complexas que conservam, essencialmente, uma relação com a pulsão,
ainda que seja distante, mas assumindo uma forma perfeitamente legal,
correta e aceitável para a consciência. Isto impõe a fusão de várias
imagens em uma composta; impõe recorrer a um certo número de
imagens mediadoras, uma sorte de elos interligados à representação
reprimida e aos dados manifestos do sonho; impõe a intervenção de
imagens de sentido diametralmente opostos; impõe a transferência de
emoções e afetos de seus objetos reais a outros objetos, para certos
detalhes insignificantes do sonho; impõe a mudança dos afetos por seus
contrários32. Não podemos nos dedicar aqui a analisar este trabalho do
30 Ibidem, p. 101 e seguintes.
31 Ibidem, p. 110 e seguintes.
32 Ibidem, p. 233 e seguintes.
45
sonho. Limitemo‐nos a fazer notar que para Freud as leis de formação
dos sonhos são as mesmas as leis de formação dos mitos e das obras de
arte – definido o mito como o sonho coletivo desperto.
Daí surge, com abundante documentação reunida pela interpretação
dos sonhos e os dados trazidos pelo folclore, a possibilidade de chegar a
uma tipologia detalhada dos símbolos do sonho, como em parte fez
Stekel33.
Mas em que consiste a função destas imagens substitutivas que são
os símbolos do sonho, dos mitos e da arte? Que são estes compromissos
que a consciência realiza com o inconsciente, do lícito com o ilícito, que
constituem sempre o desejado?
Servem de válvulas às pulsões reprimidas e asseguram uma
evacuação parcial do inconsciente; alivia nosso psiquismo das pressões
das energias acumuladas em suas profundezas. A atividade simbólica é
uma compensação parcial à proibição que o princípio de realidade nos
faz opor à satisfação de todos nossos desejos e pulsões orgânicas;
representa um compromisso para liberar‐nos parcialmente da realidade,
um retorno ao paraíso onde “tudo é permitido”, onde nossos desejos se
apazíguam com alucinações. O estado biológico de nosso organismo
reproduz parcialmente no sonho a posição intrauterina do feto.
Fingimos retomar este estado – obviamente de forma inconsciente –
simulando um retorno ao seio materno: desvestidos, envoltos em nossa
manta, as pernas encolhidas e a cabeça inclinada, voltamos à posição
fetal. Nosso organismo se fecha a todas solicitações, a todas as
influências externas. Por fim, os sonhos restituem ao princípio do
prazer uma parte de seu poder.
Encontramos o mesmo método e o mesmo resultado quando Freud
analisa outros tipos de formações de compromisso. Ainda que se
interesse, sobretudo, pelos fatos psicopatológicos, e possamos prever
que é neste campo que o psicanalista obterá seus resultados práticos
mais apreciáveis, muitos o reprovam precisamente porque transborde
para fora da psiquiatria; e o consideram essencial, ou quase
exclusivamente, como um método psicoterapêutico fecundo e como
uma hipótese de trabalho apoiada em êxitos práticos no tratamento das
33 Stekel, O simbolismo dos sonhos.
46
neuroses. Mas este aspecto da psicanálise é o que aqui menos nos
interessa, já que não são seus êxitos terapêuticos os que lhe valeram sua
enorme audiência nem os que conquistaram um grande público leigo
em medicina e incapaz de distinguir uma psicose de uma neurose. O
que para nós conta é precisamente o marco do transborde da psiquiatria
para a ideologia34.
Os jogos de palavras e o chiste são os dois principais fatos estéticos
aos quais Freud aplicou pessoalmente seu método de interpretação dos
sonhos e dos sintomas neuróticos35. As leis que regem a forma dos
chistes são as mesmas que dão às imagens do sonho sua estrutura
formal, a saber, as leis de formação das representações substitutivas. E
aí se encontra o mesmo mecanismo que torna legal o amálgama de
representações e de palavras, que opera substituições de imagens, que
pratica uma linguagem equívoca, mescla os planos de significação,
desloca as emoções, etc. Os jogos de palavras e o chiste são feitos para
distender o real, permitir escapar do sério da vida e liberar as pulsões
infantis reprimidas, sejam estas sexuais ou agressivas. Os chistes que
têm a ver com a vida sexual nascem da obscenidade e estão destinados
a prover‐lhe um substituto estético. Que é a obscenidade se não um
Ersatz [simples sucedâneo] de um ato sexual e da saciedade sexual? A
obscenidade, de fato, pressupõe a presença de uma mulher real ou
imaginária e sua intenção é induzir à excitação sexual da mulher. Dito
de outra forma, é uma técnica de sedução, nomeando aos objetos
obscenos como substitutos de sua visão, de mostrá‐los ou de tocá‐los.
Disfarçada na forma de chiste, a obscenidade é capaz de mascarar sua
verdadeira intenção e é mais aceitável para a consciência cultural. Um
bom chiste exige um ouvinte, uma terceira pessoa, já que seu objetivo
não é apenas burlar uma proibição, mas também implicar o ouvinte
mediante o riso, fazendo daquele que ri um cúmplice, socializando
assim, de alguma maneira, a transgressão.
34 Ferenczi e Rank, A evolução do objetivo da psicanálise, p. 54 e seguintes. Este livro
mostra claramente que o método psicoterapêutico da psicanálise busca sair de seu
isolamento: nele se reabilita a hipnose e se reconhece a necessidade de colaborar com
outros métodos.
35 Freud, O chiste e sua relação com o inconsciente.
47
Quanto aos chistes agressivos, eles mascaram sob uma forma literária
a livre expressão de uma hostilidade infantil contra toda lei, todo
regulamento, todo Estado, toda instituição para os quais foi transferida a
atitude inconsciente para com o pai e a autoridade paterna – complexo de
Édipo – hostilidade que termina por estender‐se a qualquer outro
indivíduo – autossuficiência infantil. De modo que o chiste em si mesmo
não é nada mais do que uma válvula de segurança manejada com as
energias reprimidas do inconsciente, que encontra finalmente no chiste
um servidor dócil, cuja forma e conteúdo dependem de suas exigências
para o maior benefício do organismo inteiro.
E se poderia seguir assim em todos os campos da criação ideológica!
Isto porque se faz proceder a tudo o que é ideológico das mesmas
raízes psicossomáticas. A constituição da forma e do conteúdo resulta
integralmente redutível, e cada um de seus componentes obedece a um
estrito determinismo biopsicológico. É o produto de um compromisso
entre forças que se enfrentam no seio de nosso organismo. É o signo de
que estas chegaram a um equilíbrio ou de que uma prevaleceu sobre a
outra, como o mostra o sintoma neurótico ou a ideia delirante, que
Freud considera análogos às formações ideológicas e que revelam que o
inconsciente tomou a dianteira ou que o conflito se exasperou
perigosamente.
Freud aplicou o mesmo método ao estudo de fatos religiosos e
sociológicos36, nos quais não nos deteremos, reservando para mais
adiante algumas palavras sobre suas conclusões nestes campos. Agora
temos que passar pelo essencial, quer dizer, por uma apreciação crítica
dos métodos e dos fundamentos do freudismo tais como surgem de
tudo o que expusemos.
IV
Iniciemos com a questão de fundo e perguntemo‐nos se o método
de Freud pode ser considerado objetivo.
36 Freud, Totem e tabu e Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921)
48
Freud e os freudianos afirmam ter realizado uma reforma radical na
velha psicologia e ter estabelecido as bases de uma ciência do psiquismo
totalmente nova.
Infelizmente, nem Freud nem os freudianos nunca se preocuparam
em elucidar, clara e detalhadamente, o que pensavam da psicologia do
seu tempo e de seus métodos. Esta falta constitui uma deficiência séria
do freudismo. A escola psicanalítica, depois de ter sido o alvo de um
unânime rechaço de toda comunidade científica, desdobrou‐se sobre si
mesma e adotou hábitos sectários de trabalho e de pensamento, um
espírito corporativo não aceito pelos homens de ciência. Quando Freud
e seus discípulos fazem uma citação, é deles mesmos; quando se
referem a alguém, é a um deles e mesmo que mais tarde alguns tenham
acrescentado alguma citação de Schopenhauer e de Nietzsche, isto não
impede que para eles o resto do mundo seja quase inexistente37.
Assim, Freud nunca fez uma tentativa séria de diferenciar sua
doutrina relativamente a outras correntes e métodos da psicologia,
deixando‐nos sem saber sua posição a propósito do método introspectivo,
do método experimental de laboratório, da escola de Würsburg (Messer e
outros), da psicologia funcional (Stumpf e outros), dos novos ensaios de
métodos objetivos empreendidos pelo que se chama de behaviorismo
norte‐americano, ou seja, a psicologia entendida como ciência do
comportamento, etc. Da mesma maneira, ignoramos qual foi sua
posição no célebre debate sobre o paralelismo psicofísico versus a
causalidade psicofísica, que tanto movimentou os psicólogos e os filósofos
de sua geração38.
Freud e seus discípulos opõem sua concepção do psíquico àquela de
todas as outras psicologias, sem sequer dar‐se ao trabalho, infelizmente,
de fazer distinção entre elas. A única coisa que lhes reprovam é a
37 Há que se reconhecer que, por sua parte, a ciência oficial não tenha reconhecido ainda
o freudismo e que até se considera de mau gosto falar dele nos meios da filosofia
acadêmica. Veja‐se Wittels, Sigmundo Freud, der Mann, die Shale, die Lehre (1924).
38 Pessoalmente Freud admite a causalidade psicofísica, mas ao mesmo tempo se
mostra, a cada passo, impregnado de concepções paralelistas. Quanto a seu método,
baseia‐se inteiramente neste postulado subjacente implícito: que sempre se pode
encontrar no corpo um equivalente psíquico que lhe corresponda – no psiquismo
inconsciente – e que em consequência é lícito rechaçar a realidade estritamente
somática, para operar exclusivamente com seus equivalentes psíquicos.
49
identificação do psiquismo com o consciente, enquanto que para a
psicanálise o consciente não é mais do que um dos sistemas do
psíquico39. Resta saber se esta diferença se reveste, efetivamente, de
importância suficiente e se abre um abismo tão profundo para que não
tenham nada em comum, no mínimo uma linguagem comum que lhes
tornaria possível ajustar contas e delimitar‐se uma em relação à outra.
Freud e seus discípulos aparentemente estão convencidos de que é
assim [nada há em comum].
Mas, isto é exato?
Porque, de fato, o freudismo transladou para suas construções todos
os vícios da psicologia subjetivista de sua época – sem sequer estar à
altura da “psicologia científica” em questão. Isto pode ser facilmente
comprovado, desde que se evite ser seduzido por uma terminologia
impactante, apesar de cheirar a sectária.
Em primeiro lugar, o freudismo se apropriou dogmaticamente da
antiga categorização dos fenômenos mentais – cuja origem está em J. C.
Tetens e que foi convertida num truísmo filosófico por Kant – em que se
distinguem vontade (desejos, tendências), sentimentos (emoções, afetos), e
conhecimento (sensações, representações e pensamentos). Mais ainda, o
freudismo retém exatamente as mesmas definições destas faculdades,
segundo o uso comum da psicologia de seu tempo. Uma vez que em
toda parte a psicanálise fala de desejos – por exemplo, quando Freud
afirma que o sonho é a realização de um desejo, proposição em que se
fundamenta sua interpretação dos sonhos, que se converte por si
mesma no fundamento de todo o freudismo; e como também fala de
representações e de sensações, de sentimentos e emoções, tomando‐os
como elementos estáveis e irredutíveis uns aos outros, o dogmatismo de
Freud mantém – e isto é o mais grave – a acepção corrente de todos
estes elementos psíquicos, ao transferi‐los para o domínio de um
inconsciente que se mostra, portanto, composto de representações –
lembranças‐cópias de sensações – de emoções, de afetos e de desejos, o que
significa que se lhe dá uma estrutura análoga à da consciência e isto até mesmo
nos mínimos detalhes.
39 Veja‐se A Interpretação dos Sonhos, p. 440‐448 e O Eu e o Id, p. 7‐12.
50
Resta, evidentemente, a saída de distinguir os sistemas
topograficamente, isto é, em função de sua localização em um espaço
apresentado sob uma forma figurada com uma consciência que se aloja
próxima aos centros sensoriais e um inconsciente que habita outro
extremo40. Restam também as relações dinâmicas que definem o
inconsciente como o reprimido, o esquecido, o rechaçado. Mas tudo isso
não pode nos impedir de sustentar que estas duas formações psíquicas,
situadas em lugares diferentes e em guerra uma com a outra, têm, aos
olhos de uma psicologia científica, uma estrutura rigorosamente
análoga. Trata‐se simplesmente do choque entre duas forças
constituídas pelos mesmos elementos. Então, o que é que as distingue
da “dupla consciência” de Charcot? Unicamente sua dinâmica.
Do ponto de vista de sua estrutura elementar – isto é, fazendo abstração
do conteúdo de seus pensamentos, sentimentos, representações, etc. –
pode‐se definir o inconsciente como uma segunda consciência, diferenciada de
maneira não menos complexa que a primeira.
Mas onde está, então, o abismo entre a psicanálise e a psicologia
subjetiva41, seja a de nossa época, seja a da época anterior? Por trás do
“inconsciente” e da “consciência” encontramos, veladamente, um velho
construto chamado de “vida mental”, com seus sentimentos, seus
desejos, suas representações e o que as une – as associações, isto é, tudo
aquilo de que nos falou e continua falando a psicologia subjetiva, posto
que dela o extraiu Freud, sem acrescentar nada mais que a máscara de
sua dinâmica. Estas são as noções que a psicologia subjetiva forjou
quando as fundava sobre uma identificação do psíquico com o
consciente! Como saber, então, se conservam um sentido fora desta
40 Vejam‐se os gráficos de Freud em A Interpretação dos Sonhos, p. 384‐388 e em O Eu e o
Id, p. 21.
41 É oportuno esclarecer aqui que concepção tinha o autor das correntes psicológicas de
sua época. Dentro das psicologias subjetivas considerava que a mais subjetiva seria sua
variante experimental, representada por Wundt, James e suas respectivas escolas, e na
Rússia por Chelpánov. Quanto às psicologias objetivas, a que dava uma importância
equivalente, era o comportamentalismo norte‐americano – que se chamava
behaviorismo ou “Ciência do Comportamento” – representado principalmente por
Watson e Dewey; e na Rússia pelas escolas de Kornílov e Blonski – que considerava
que marchavam na mesma direção – e também as escolas reflexológicas de Pávlov e
Békhterev. [Nota de Guillermo Blanck].
51
identificação? Em outras palavras, como saber se não valem unicamente
para a consciência?
De fato, há razões sérias para crer que no inconsciente existem
separados representações, desejos e sentimentos perfeitamente definidos
em sua qualidade e em sua relação com um objeto? Não seria melhor supor
que para que estas formas diferenciadas adquirissem “algo de
inconsciente” – digamos uma energia qualquer – se deve primeiro
penetrar na consciência e que só há a consciência? Dito de outra
maneira, a introspecção é que faz delas um desejo, uma representação de
objeto ou um sentimento preciso? De nossa parte, pensamos que sim.
O termo inconsciente pode designar legitimamente só uma atividade
produtora de efeitos – uma energia, uma força (talvez psíquica, talvez
somática). Só com sua entrada na consciência e só aí e pela consciência
adquire essas formas e esse conteúdo que, com desprezo de todo
sentido crítico, o freudismo projeta no que chama de seu “inconsciente”.
Pouco importa que, mal diferenciadas pela introspecção do sujeito, se
revelem mais claramente à interpretação do médico. Freud chega ao
ponto de fazer do inconsciente um mundo prodigiosamente complexo e
multiforme, onde, já que tudo tem seu próprio objeto, não se encontram
senão representações concretas, imagens resplandecentes, unidas por
relações de uma infinita complexidade, e desejos precisos – já que um
desejo inconsciente sabe o que quer; o desejo consciente só é capaz de
enganar‐se neste ponto! Etc.
Cremos que só uma suposição deste tipo constitui um modo de
reduzir o campo das hipóteses ao mínimo exigido para a explicação
adequada de todos os fatos reais empíricos que Freud e seus discípulos
localizaram no comportamento humano. Um mínimo de hipóteses para
além do qual a ciência não pode admitir.
Mas como devemos conceber esta “atividade produtora de efeitos”
que corresponde ao inconsciente freudiano?
Não se corre o risco de ir de Escila a Caríbdis e de substituir o Id
freudiano por uma essência metafísica ainda mais horrenda?
O leitor, entretanto, tranquilize‐se! Longe de nós a ideia de supor
aqui uma energia – sequer psíquica – sob uma forma indiferenciada.
Pensamos mais que aqui estamos envolvidos com mecanismos do tipo
daqueles que nos são familiares, sob o nome de reflexos (Pávlov e sua
52
escola), também em parte tropismos (J. Loeb)42 e outros quimismos, isto
é, processos puramente somáticos e materiais. Em todo caso, é só neste
plano que podem estar as definições científicas dos fenômenos do
inconsciente de Freud. Que sejamos, entretanto, evidentemente
incapazes de traduzir estes últimos nos termos de uma ciência
materialista, nada impede que saibamos, pelo menos neste momento,
em que direção esta tradução pode ser possível.
Não se tata, por certo, de concluir que o psiquismo não tem nenhum
tipo de existência, que escapa à ciência ou que deve ser, como na velha
psicologia, identificado com a consciência, já que é evidente que o
psíquico existe. O marxismo não admite nenhum agnosticismo e não há
razões para identificar o psiquismo com o consciente. Mas tampouco há
razões para dividi‐lo em duas esferas, segundo o critério de seu grau de
consciência, como o faz o freudismo: por um lado o consciente, por
outro lado o inconsciente. Se formos livres para dividi‐lo como
queremos – em consciência e não‐consciência, tanto como em
sentimento e não‐sentimento, ou em desejo e não‐desejo (segundo o
princípio da dicotomia), restaria dizer que o não sentimento não é
insensibilidade, que o não‐desejo não significa que não se deseja fazer
algo. Afirmamos que o que a psicologia científica – isto é, a psicologia
do comportamento – considera não consciente – sobre o que a
reflexologia constitui até o presente o único capítulo científico – não
tenha nada que ver com o inconsciente freudiano, pois está isenta
precisamente deste matiz de valoração afetiva que condiciona oposições
tais como “o Eu e o Mundo”, “o Eu e o Id”, “prazer e realidade”,
“consciente e inconsciente”, com as quais a ciência não tem nada a ver.
Se o inconsciente deve, por definição, ser hostil à consciência, o não‐
consciente enquanto tal não permite supor nada acerca de como serão
suas relações com o consciente no psiquismo43 e não seria, de qualquer
42 Bakhtin refere‐se aqui a J. Loeb, Znachenie tropízmov dlia psijologui, publicado em Novie
idei v filosofi, n. 8. Cfe. Jacques Loeb, Forced Movements, Tropisms nd Animal Conduct
(Philadelphia e Londres, 1918) [Nota de Guillermo Blanck]. [N.T.] Lembremos que o
organizador atribuía a autoria do texto a Bakhtin.
43 Aparentemente, Freud se dá conta de que seu inconsciente é tendencioso, que inclui
um juízo de ordem secretamente metafísico e em seu último livro (O Eu e o Id, p. 15 e
seguintes) trata de atenuar definindo o inconsciente como um não‐verbal que se
53
modo, uma questão de dois mundos ou de dois sistemas, pelo simples
fato de autorizar sem receios este tipo de hipótese.
Mas voltemos ao inconsciente freudiano para nos determos em
alguns pontos desta hipótese, cujo caráter particularmente curioso nos
confirmará a ideia de que há aqui uma enorme projeção do psiquismo
consciente e de sua interpretação – pelo analista e analisando
conjuntamente – num quase inconsciente que, de fato, é somático.
Tomemos, por exemplo, o trabalho da censura que Freud
considera totalmente inconsciente – já que ela se situa, como se sabe, no
limite entre o inconsciente e o pré‐consciente44 ‐ e daí se evoca
frequentemente o mecanismo. Há que ver com que delicadeza este
mecanismo inconsciente (e que pode ser mais mecânico, mais maquinal
do que uma máquina criada por nossa consciência?) penetra todos os
matizes de nossos pensamentos e de nossas representações, todos os
detalhes, até os mais sutis, de nossas imagens, etc. É claro que, em
comparação, os censores do czar Nicolau I eram uns verdadeiros
palermas!45
Não é assombroso que a “censura” freudiana seja mais consciente
que a consciência do enfermo, reforçada que é pela consciência do
psicanalista? De maneira que não é só o termo “censura” o que é
propriamente metafórico, mas toda a significação outorgada a esta
palavra por Freud. Trata‐se, pelo menos, de uma imagem semi‐literária
– talvez dotada em certos casos de grande utilidade prática – uma
imagem que designa a consciência – reforçada por uma segunda
transforma em pré‐consciente – daí poderá, em todo o caso, passar à consciência –
“graças à associação com as representações verbais correspondentes”, o que lembra a
definição behaviorista da consciência como “comportamento verbalizado”. Cfe.
Vigotski, “A consciência como problema da Psicologia da Conduta”, in. Kornílov (ed)
Psicologia e Marxismo. (Esta é uma das vezes em que Bakhtin cita Vigotski. Em troca,
não há qualquer evidência de que Vigotski tenha conhecido a obra de Bakhtin, como
afirmaram alguns. Por certo que existe a probabilidade de que pudesse tê‐lo
conhecido pelo fato de compartilharem o mesmo ambiente cultural, mas isto é apenas
uma mera conjectura [Nota de Guillermo Blanck]).
44 Veja‐se O Eu e o Id, p. 13‐14.
45 Como faz notar V. Iurinets em seu artigo e o Dr. Maag em seu livro A vida sexual e as
perturbações psíquicas. Contribuições a uma crítica da psicanálise.
54
consciência, a do psicanalista – tal como se nos mostra ao projetarmos
alguma parte sua até as profundezas do psiquismo.
Quanto aos outros mecanismos freudianos, que têm de mecânicos?
O mecanismo da repressão não responde somente a uma finalidade
biológica, mas testemunha também uma capacidade e uma informação
pouco comuns em matéria de cultura, evidenciando uma moral
burguesa um tanto estreita – mesmo quando se projeta no psiquismo de
um selvagem ou de um grego da antiguidade, tal como Édipo do mito,
etc. – e não está, em geral, à altura da cultura de nossa época e de suas
exigências. Vemos trabalhar, por todas as partes, uma consciência que
interpreta o não consciente, incluindo frequentemente fenômenos não
propriamente psíquicos. Uma consciência que nos faz perceber seu
trabalho nos fatos que estuda, da mesma maneira que sentimos o
contato de nossa pena com o papel. Na realidade, somente percebemos
a pressão da caneta em nossos dedos, mas projetamos esta sensação até
ao extremo, até a ponta da caneta. Há que se aceitar que escreveríamos
com dificuldade se não nos sensibilizássemos desta maneira, quer dizer,
se não sentíssemos a ponta da caneta – por isso esta sensibilização pode
ser de uma grande utilidade prática.
Outro mecanismo particularmente revelador: trata‐se da
transferência (Übertragung), noção muito importante tanto para a teoria
psicanalítica como para a prática do psicanalista. Freud a concebe como
o deslocamento inconsciente de uma pulsão reprimida – essencialmente
a libido – de seu objeto real para outro, que se converte em seu
substituto. Um testemunho da transferência é a pulsão orientada para a
mãe ou para ao pai, ou a hostilidade com respeito a eles – complexo de
Édipo – que no curso das sessões de psicanálise se transferem ao
médico e, por este fato, se eliminam. Mas como em nossa vida não
deixamos de transferir nossa libido reprimida para outras pessoas,
inconscientemente as obrigamos assim a representar para nós o papel
de pai, de mãe, de irmãos ou de irmãs, resultando disso uma espécie de
turbilhão e de eterno retorno da mesma situação, que recorda a
doutrina de Nietzsche ou a insaciável “vontade” de Schopenhauer.
Daí que não vale a pena dizer que o médico e o enfermo se limitam
a unir seus esforços para projetar num complexo inconsciente – paternal
ou maternal – as verdadeiras relações que o tratamento lhes impõe – e
55
cuja extrema complexidade os obriga a ater‐se melhor em certos
aspectos destas relações ou a suas linhas principais. Neste complexo,
convém ter em conta intuições precisas; o que o enfermo efetivamente
recorda; o que se explica por analogia de situações – isto não significa
que a transferência cria a analogia, mas pelo contrário, que a analogia
das situações leva a falar da transferência; por último – e talvez o mais
importante – o que se explica pela compleição orgânica do enfermo, que
devido a sua importância relativamente estável, colore mais ou menos
identicamente todas as situações por ele vividas. De maneira que o
mecanismo freudiano da transferência foi construído como uma
metáfora que permite abraçar, numa só imagem dinâmica, todos estes
elementos heteróclitos que determinam o comportamento global do
enfermo; uma metáfora aparentemente útil para a prática
psicoterapêutica.
Repitamos. Efetivamente, em muitos aspectos o freudismo toma em
conta nossas pautas reais de comportamento, das quais sabe, por outra
parte, extrair proveito na prática; porém não encontrou ainda os
verdadeiros métodos científicos que lhe assegurariam o conhecimento
teórico.
É assim como se se ativesse ao velho método da psicologia
subjetiva: a introspecção, com todos seus resultados – que nos
neuróticos são essencialmente de culpa – e sua interpretação. O que há
de novo é sua enorme concepção metafórica de uma dinâmica mental
sob a qual se esconde geralmente uma dinâmica material de fenômenos
somáticos46, cujo estudo científico resta por fazer; mas para apresentar‐
nos esta dinâmica – estes “mecanismos” – Freud emprega a velha
linguagem da consciência subjetiva.
V
Como considera Freud os fatores materiais objetivos que
determinam a subjetividade: fatores somáticos, biológicos, sociológicos?
Alguns veem nele um materialista e esta afirmação se baseia num
total mal‐entendido. Isto não significa que Freud não tenha invocado
46 E aí se refletem também em parte fenômenos exteriores ao organismo.
56
jamais o fator somático, pois fala das fontes somáticas de nossas
pulsões, das zonas erógenas de nosso organismo, etc. Pareceria que seu
pansexualismo deve ipso facto aproximar o psiquismo ao corpo. Da
mesma maneira, se poderia ter por materialista certos aspectos do
freudismo como sua teoria dos caracteres – anal e uretral – já que aí era
onde a velha psicologia idealista fazia intervir uma entidade espiritual e
ética. Freud o define pelo predomínio de uma ou outra das zonas
erógenas – anal e uretral – pela retenção da índole sexual das fezes ou
da urina e pelo que elas determinam como hábitos e reações mentais47.
Porém, ao examinar mais detidamente como os psicanalistas fazem
uso destes fatores somáticos, forçosamente há que concluir que seu
materialismo é perfeitamente ilusório. Freud e os freudianos jamais
tiveram nada que ver com o somático e com o material como tais, isto é,
enquanto determinantes do psiquismo e constituintes de uma realidade
exterior cujo estudo pertence à fisiologia e a outras ciências da natureza.
Freud não se interessou nunca pelo somático nem com a estrutura
objetiva e material, nem com os fenômenos materiais, mas somente pela
significação subjetiva de que o somático se reveste para o psiquismo.
Para seus olhos, só conta o reflexo do somático na alma,
independentemente da realidade que o somático possa ter fora desta
alma, como tem para os métodos objetivos das ciências da natureza –
que são autenticamente materialistas. Mostra‐o bem a célebre teoria
freudiana das zonas erógenas, das quais o autor não nos proporciona
uma teoria fisiológica, já que não apela – na divisão do trabalho
científico – nem à sua química, nem à sua relação fisiológica com outras
partes do corpo, etc. E isto se deve ao fato de que só lhe interessam seus
equivalentes psíquicos – portanto necessariamente subjetivos – e o lugar
que ocupam numa libido entendida no sentido psicanalítico do termo.
Também em lugar de falar da função dos órgãos genitais na
organização total do corpo, como os descreve a linguagem objetiva do
fisiólogo ou do biólogo, Freud se contenta em mostrar o papel de seus
equivalentes psíquicos na subjetividade, partindo desta, quer dizer,
empregando a linguagem da psicologia subjetiva.
47 Veja‐se
Freud, O caráter e o erotismo anal (in. Kleine Schriften zur Neurosenlehre,
segunda série).
57
Por isso, podemos afirmar resolutamente que para Freud o material
existe só na medida em que é traduzido no psíquico; digamos entretanto
mais: na medida em que é um fator deste psiquismo. Esta posição se parece
muito a um espiritualismo de que, de fato, não está demasiado distante,
desde o momento em que para Freud a realidade se reduz a um
“princípio” psíquico de “realidade”; em outras palavras, para ele nesta
realidade não existe mais do que o reverso psíquico.
É o que os freudianos (Rank, Pfister e sobretudo Groddeck)
expressam em termos um pouco diferentes quando pretendem que o
mundo de Freud não é nem psíquico nem material, mas outra coisa, e
que seu mérito foi descobrir um campo de formações no qual o físico e
o psíquico não são diferenciados, nem são autônomos, nem específicos:
as pulsões freudianas teriam um caráter neutro e marginal.
Mas no que nos respeita, vemos um grande perigo nestas formações
marginais e neutras: que sua neutralidade seja uma pura fachada! De
fato, Freud não deixa nenhuma dúvida sobre a verdadeira direção a que
o leva sua inclinação: o que o atrai é o espiritualismo sob sua forma
biologista moderna – corrente de que temos outro representante na
pessoa de Driesch.
Isto nos conduz à questão do biologismo de Freud, pois geralmente
se pretende que a psicanálise seja em essência uma biologia do psíquico,
uma biologia da alma.
Nas obras de psicanálise são abundantes conceitos e termos
biológicos introduzidos, porém, no contexto do freudismo, estes termos
perdem seu sentido biológico corrente como se, privados de seu som
fundamental, transportassem unicamente seus harmônicos. De modo
que o biológico se encontra, como o físico, submergido numa
subjetividade que o penetra por todas as partes, até fazê‐lo perder sua
consistência material, objetiva.
Em psicanálise, o organismo, enquanto dado biológico objetivo, não é mais
que o lugar no qual atuam as pulsões subjetivas da alma.
Freud, a princípio, parece apresentar a estas famosas “pulsões”
como um biólogo perfeitamente objetivo, como se elas fossem um dos
fatores da realidade material, estreitamente dependentes do meio
ambiente. Depois, passo a passo, faz da realidade total um simples
componente de certas pulsões – as pulsões do Eu – um simples
58
“princípio” psíquico de “realidade” posto no mesmo plano e sobre a
mesma base que o “princípio do prazer”.
Dito de outra maneira, Freud psicologizou o organismo, assim como a
todos os fenômenos orgânicos. Esta observação vale também para o
sociológico. Freud o define de maneira igual: unicamente por seu
componente psíquico individual e fora de toda necessidade
socioeconômica objetiva. As formas políticas e econômicas se
desprendem dos mesmos “mecanismos psíquicos” que já conhecemos:
transferência da libido ao chefe da tribo; alienação do “Ideal do Eu”;
identificação do indivíduo com os outros membros do grupo, o que cria
uma coesão e uma unidade sociais totalmente desprovidas de base material;
redução do capitalismo a um erotismo anal – a acumulação das fezes
sublimando a acumulação de ouro; e tantos exemplos que descreve
amplamente a sociologia freudiana48.
É assim que se vê por todos os lados de sua obra a mesma tendência
ideológica de dissolver a necessidade material exterior no psiquismo e
de opor à história social um organismo biológico psicologizado, enquanto um
microcosmos associal que se auto‐abastece.
O ser que determina a consciência é sempre um ser interior,
finalmente simples consciência invertida. Embora se comparado com o
do idealismo filosófico seja este ser mais elementar, mais trágico – o que
corresponde perfeitamente ao espírito de um tempo muito pouco
aficionado com a lógica e com o racional – não é no entanto nem mais
material nem mais objetivo.
Daí, em última análise, a possibilidade de definir o inconsciente
freudiano como a imagem obtida quando se projeta no seio, no fundo da
alma – do psiquismo – a necessidade material – física, fisiológica e
socioeconômica – traduzida para isso em termos originais da consciência
subjetiva, sob uma forma dramatizada e carregada de emoção.
E os métodos de Freud não são nada mais que os procedimentos
desta tradução original, o que faz tomar o essencial de seu vocabulário
da velha psicologia subjetiva.
Freud crê poder sustentar este edifício cambaleante transferindo de
maneira astuta e quase sub‐reptícia os fenômenos materiais –
48 Veja‐se uma excelente crítica desta “sociologia” no artigo de Iurinets.
59
geralmente não estudados – ao seio de uma alma convertida, segundo a
moda do momento, em “máquina” – com seus “mecanismos”, sua
“dinâmica”, etc.
E isto é o que alguns consideram como uma dialética materialista!
VI
Mas como chegou Freud a este tipo de projeção? E como conciliar
nossa afirmação com os êxitos terapêuticos inegáveis de seu método?
Na nossa opinião, uma projeção tão enorme se explica pelo fato
concreto, cuja repetição cotidiana impôs a Freud todos seus hábitos de
pensamento e mesmo sua ideologia.
Referimo‐nos às complexas relações que se dão entre o médico
psiquiatra e seu enfermo neurótico, miniuniverso social caracterizado
por seu estilo particular de luta, no qual o enfermo se esforça por
ocultar do médico alguns aspectos de sua vida, de enganá‐lo, de aferrar‐
se a seus sintomas, etc. Fato social mínimo, muito complexo, em que a
base econômica, os fatores psicológicos e o peso – tanto estético quanto
moral – da ideologia burguesa concorrem para definir globalmente as
relações concretas. A esta situação o médico responde tratando de
adivinhar as forças reais que a condicionam e aprendendo a dominá‐las.
No entanto, não pode integrá‐las, em sua complexidade, a uma teoria
científica – materialista ‐, o que é lógico, pois a fisiologia não foi ainda
estudada.
Quanto à sua sociologia, nem falemos! É sobre esta ignorância da
teoria que se filtra a metáfora como figuração dramatizada de uma orientação
prática, que é, como toda figuração, subjetiva e relativa – o que de fato
não lhe tira sua utilidade.
Em sua primeira etapa, o mecanismo freudiano não faz mais do que
traduzir sob uma forma metafórica, dramatizada e realçada com alguns termos
científicos, a batalha do médico contra a histeria, da qual sai vitorioso.
Não há nisto nada de assombroso, pois temos efetivamente o hábito
de dramatizar nossas relações práticas com os objetos e até os próprios
objetos. Para o artilheiro, seu canhão é um ser vivo; e o trabalhador, que
tem às vezes maior conhecimento prático dos “caprichos” de sua
máquina do que o douto engenheiro, não tem necessidade de saber dar
60
uma definição teórica da “vida” desta máquina para ser capaz de falar
dela em termos vivos e metafóricos. Nós mesmos às vezes, face a forças
adversas, começamos a responder e a dominá‐las – no ato, com nossas
mãos e nossos pés (ou com palavras e exortações verbais), se estas
forças estão num organismo humano e não temos outros recursos –
muito antes de estarmos em condições de dar uma definição teórica. E
supondo que quiséssemos descrevê‐las, não são elas de fato que
definiremos, mas nossas relações com elas, nossos hábitos, nossas
intenções e nossas ações.
Se há um campo em que é difícil não abusar do pensamento por
imagens, é justamente a psicologia. Talvez por causa da linguagem, que
para a tradução de nossos estados internos não nos oferece nada melhor
do que as metáforas: até o ponto em que não se pode dizer duas
palavras sobre o psiquismo sem empregar duas metáforas. Em nenhum
outro domínio o triunfo dos métodos de conhecimento objetivo foi mais
lento. Podemos afirmar que ainda hoje a psicologia subjetiva é
prisioneira da metáfora, e que não é ficando neste terreno, isto é,
limitando‐se a um método subjetivista, que terá oportunidade de
libertar‐se. Isto nos impede de surpreendermo‐nos com o fato de que a
psicanálise seja em essência metafórica.
É verdade também que, com sua habilidade pouco comum, Freud
revestiu este núcleo metafórico profissional com uma terminologia
científica que o camuflou e o dissimulou. Limitado a suas aplicações
profissionais, este tipo de método em imagens é provisoriamente
aceitável.
Porém, a metáfora nascida no consultório de um médico burguês de
Viena, correspondia perfeitamente às tendências ideológicas profundas
da uma burguesia deliquescente e era um nascimento feliz que ocorria no
momento e lugar apropriados. Apenas insinuando seu crescimento,
tomou proporções de um sistema geral de interpretação do mundo.
Na penumbra de seu consultório, com seu desafio e todas suas
peripécias de drama vivido, a sessão de psicanálise se converteu no
símbolo, na chave da dinâmica e do drama universal da humanidade. A
arena trágica em que foram representadas as tragédias de Orestes e de
Édipo se reduziu às dimensões de um consultório médico de última
moda, onde se imitava o célebre “complexo de Édipo”. Esta expressão é
61
muito característica da psicanálise, devido a seu estilo em que se
mistura a secura científica – o “complexo” – com o pathos estético –
“Édipo” e seu cortejo de associações estéticas ao gosto de O Nascimento
da Tragédia de Nietzsche. Ela põe um monóculo no olho cego de Édipo.
A relação privada entre dois indivíduos – médico‐enfermo – provê
para o freudismo o esquema de todas suas construções: um organismo
cindido em dois polos fundamentalmente opostos – pulsões do “Eu” e
pulsões sexuais; um psiquismo cindido em consciência e inconsciente;
em “Eu” e “Id”, etc. com forças acopladas que se hipostasiam e que se
convertem em atores de uma luta ideológica, transformando a relação
binária como o arquétipo de todas as relações sociais. É aí que convém
buscar uma das raízes do pansexualismo freudiano, neste par que
enquanto mínimo social é particularmente fácil de isolar e erigir em
microcosmos; um par que não espera nada de nada; um par que,
sexuado, nos diz que basta o amor para viver; que, apaixonados, não
precisam de mais nada e de ninguém no mundo.
Todas as épocas de decadência e de desagregação social se
caracterizam, tanto em sua ideologia quanto em sua vida, pela
importância exagerada que atribuem ao sexo. Também pela ideia
estreita que dele fazem invariavelmente, privilegiando sob uma forma
abstrata o associal, de modo que o sexual tende a transformar‐se num
Ersatz [sucedâneo] do social.
A distinção essencial e até exclusiva entre indivíduos se converte na
distinção entre homens e mulheres, e todas as outras referências são
consideradas acessórias. Não se compreendem nem se estimam as
relações sociais senão na medida em que se as possa sexualizar. O resto
se encontra desprovido de sentido e de importância. Esta era a situação
às vésperas de 1789, assim como na época da decadência romana, e é o
que observamos hoje na Europa burguesa. Daí o valor de sintoma e o
interesse particular que convém dar no freudismo à sexualização
integral da família e de todas as relações familiares, quaisquer que elas
sejam – complexo de Édipo. Esta família – base e esteio do capitalismo –
apenas pode ser compreendida enquanto realidade econômica e social,
mas sexualizando‐a integralmente se pode conferir, de alguma maneira,
uma significação nova ou, como diriam nossos “formalistas”, “produzir
um estranhamento”. De fato, o complexo de Édipo constitui um
62
magnífico estranhamento da célula familiar, onde em lugar de um pai
empresário e um filho herdeiro, temos agora um pai que não é mais do
que marido da mãe e um filho rival! Sabemos que o próprio mito de
Édipo não é o produto de uma temática sexual – o sexual não é aqui
senão, como sempre, uma cobertura – mas de uma realidade econômica:
a mãe é a proprietária – restos do matriarcado – e somente o casamento
com ela daria direito ao trono – herança por via feminina; o filho devia
ir‐se ou afastar seu pai. É unicamente esta situação que pode produzir o
tema de Édipo – Hildebrand e Hadugrand na velha epopeia germânica,
Rustem e Zorab na epopeia iraniana, o combate de Ilya Muromets e de
seu filho na epopeia russa49, etc. Freud, sexualizando este tema, se
serviu dele para tornar “estranha” a família.
Que a interpretação freudiana do mundo e da sociedade, mediante
uma sexualização de todos os objetos e de todas as relações, não tenha
passado em branco prova‐o seu êxito. As relações sexualizadas de dois
indivíduos levaram a descuidar de todo resto, para converter‐se no
arquétipo e na medida de todas as outras relações. A tal ponto deu certo
que o mundo asfixiado que a filosofia burguesa de nossa época elabora
para além do social está voltado necessariamente a encontrar na
sexualidade – entendida abstratamente – sua base talvez mais
importante.
***
Agora que apresentamos um juízo sobre os fundamentos do
freudismo, podemos extrair algumas conclusões relacionadas aos
aspectos mencionados em nossa exposição: a interpretação dos sonhos e
o chiste. Nossa apreciação de seu método e nossa definição do
inconsciente nos permitirão fazê‐lo em poucas palavras.
Não há dúvida de que para compreender as formações de
compromisso ou substitutivas – imagens dos sonhos, dos mitos e da
49 [N.T.] Esta passagem é citada por Marcos Antônio Moura‐Vieira, no artigo Bakhtin e
Freud em diálogo com Dostoiévski (Bakhtiniana, São Paulo, vol. 1, n. 2, 2º. sem. 2009),
página 77. Citando e traduzindo a versão francesa deste texto, esta referência tem a
seguinte redação: o combate da Ilíada de Mourom e de seu filho na epopeia russa. Preferi a
referência ao herói da epopeia de Kiev (Rússia) Ilya Muromets.
63
arte – a interpretação superficial da consciência é inoperante, já que
inclusive no sujeito mais sincero suas motivações não constituem uma
explicação objetiva de algumas construções ideológicas – admitamos
que os sonhos sejam uma forma embrionária destas construções. Mas
do fato de que todos os elementos de uma ideologia estejam
rigorosamente determinados – e mais, por forças puramente materiais –
deduz‐se acaso que todos sejam integramente redutíveis a uma base
socioeconômica como a única apta para dar contas de sua necessidade?
Evidentemente não, e o marxismo nunca afirmou tal coisa50. As
construções ideológicas implicarão sempre um fator – importante nos
sonhos – que será irredutível à sua base e cuja explicação corresponderá
à biologia, à fisiologia e, finalmente, à psicologia objetiva. De um lado,
este fator jamais deve ser considerado isoladamente. O biológico e o
psicológico não são mais do que abstrações que necessitam de uma
ideologia concreta para encarnar‐se na história e na realidade
socioeconômica – o que não é válido só para as formas da arte, do mito
e da filosofia, mas também para os sonhos. De outro lado, este fator
particularmente estável é o menos criativo da ideologia e, por
conseguinte, o que participa menos no conteúdo atual e vivo destas
formas. De modo que o muito geral – comum ao conjunto dos homens
ou ainda dos animais – e o muito individual é do que menos se fala. O
primeiro por subentendido, o segundo por não interessar a ninguém.
Uma construção ideológica é antes de tudo social.
Que faz Freud então? Ao não admitir os motivos conscientes como
explicações exaustivas do “conteúdo manifesto” da imagem – no que
evidentemente não pode ser reprovado – busca no inconsciente – sob a
forma de pulsão infantil – uma determinação puramente psíquica que defina
integralmente todos os aspectos desta imagem ideológica.
O que nos leva à conclusão temível de que toda cultura – e não só o
sonho – se nutre quase exclusivamente de pulsões infantis! Uma “base
infantil” – é com que pensa Freud poder substituir inteiramente a base
socioeconômica.
50 Para
mais detalhes, veja‐se Kautsky, O que quer e o que pode dar uma interpretação
marxista da história (in. Semkovski (ed) O materialismo histórico).
64
Porém, conhecendo o inconsciente freudiano, podemos dizer que o
“conteúdo latente” de Freud – desejos infantis exorcizados no sonho,
pulsões infantis dos mitos e da arte, etc. – não é mais que a forma
metafórica de um X construído segundo o modelo da consciência –
construção que já estudamos. Este X é a necessidade material –
socioeconômica, fisiológica, biológica e psicológica no sentido objetivo do
termo. Ainda que a necessidade material não seja consciente, isso não
significa que seja “inconsciente” no sentido que o entende Freud.
O método da associação livre tende a construir a metáfora – “o
inconsciente” – e a projetá‐la na incógnita X. Como estas associações
não são fortuitas, elas demandam uma explicação objetiva que, no caso de
uma imagem de sonho, deverá naturalmente dar um lugar importante
aos fatores biológicos e psicológicos. No entanto, no caso das imagens
dos mitos e da arte – particularmente quando se trata de jogo de
palavras ou da filosofia – tudo o que elas implicam de essencial e de
real – de criativo – terá que ter uma explicação socioeconômica.
Deste ponto de vista, poderia proceder‐se a uma análise interessante
de todas as formulações metafóricas – os complexos e seus
componentes – que povoam o inconsciente freudiano, mas isto
ultrapassa os limites de nosso artigo.
VII
Para provar a justeza de nossa opinião sobre a psicanálise, seu
núcleo metafórico profundo e suas enormes tendências ideológicas, não
poderíamos encontrar nada melhor do que o último livro de O. Rank,
Das Trauma der Geburt [O trauma do nascimento] (1924), que faz aparecer
o absurdo do freudismo.
Recordemos que Rank é o discípulo preferido de Freud, que passa
pelo mais ortodoxo dos freudianos e que, ao dedicar este livro a seu
mestre comemorando seu aniversário, autoriza‐nos a não ver nele um
efeito de causalidade, mas a última palavra em psicanálise, como o
confirmara o próprio Freud.
Para quem crê em Rank, toda nossa vida e toda nossa atividade
cultural tendem exclusivamente a apagar e a vencer, de distintas
65
maneiras e por métodos diversos, este traumatismo de nosso
nascimento.
É traumatizante vir ao mundo. O organismo expulso do seio
materno receberá neste momento um choque, ao qual somente o da
morte se igualará em horror. O espanto e o sofrimento do trauma
constituem o ponto de partida de nosso psiquismo. O temor sofrido no
nascimento se converte no primeiro elemento de nossa personalidade
que vai ser reprimido, cuja atração se exercerá sobre todos os demais. É
a raiz de nosso inconsciente e em geral de todo nosso psiquismo, pois
nunca mais no futuro poderemos nos livrar do espanto de nosso
nascimento. Como este espanto se faz acompanhar de uma nostalgia
por nossa estada no paraíso intrauterino, disto resultará em nós um
sentimento ambíguo relativamente ao seio materno, que
simultaneamente nos atrai e nos rechaça. É este desejo de voltar atrás,
unido a este temor, que fica em nós, para sempre, como a fonte de toda
criatividade.
O estado intrauterino se caracteriza por não separar a necessidade
de sua satisfação, isto é, nada separa o nosso organismo da realidade
exterior; o mundo externo do feto se reduz a um organismo materno
que de alguma maneira prolonga diretamente o do feto.
Quer se trate do que as mitologias e sagas nos ensinam do paraíso e
da Idade de Ouro, do que a filosofia nos ensina da unidade ideal do
mundo e da harmonia futura ou das utopias sociais, todas estas
representações mostram inequivocamente sua origem nesta nostalgia
pela vida intrauterina que algum dia conhecemos, de um paraíso que
realmente existiu e do qual não conservamos inconscientemente não
mais do que uma vaga lembrança, e neste sentido não são
representações fictícias.
Mas as portas do paraíso são guardadas por uma feroz sentinela – o
espanto do nascimento, que se reergue cada vez que aparece em nós o
desejo de voltar atrás e rechaça este desejo até o inconsciente.
O traumatismo do nascimento reaparece nos sintomas de algumas
enfermidades – fobias infantis, neuroses e psicoses adultas – nas quais o
corpo do enfermo o reproduz, sem por isso curar‐se. A cura não pode
vir mais que de nossa atividade cultural – economia e técnica incluídas.
O que leva Rank a definir a cultura como a soma de todos os esforços
66
que tendem a transformar o mundo no equivalente, no substituto
(Ersatzbildung) do seio materno.
Neste sentido, cultura e técnica são puramente simbólicas e este
mundo de símbolos em que vivemos termina sempre por nos remeter
ao útero materno e a suas vias de acesso – a caverna em que se
refugiava o homem primitivo, a habitação, a casa, o Estado, etc. são
somente sucedâneos, símbolos do protetor seio materno.
Rank trata de retrotrair as formas artísticas à mesma origem: daí,
por exemplo, estas estátuas arcaicas acocoradas que reproduzem, sem
equívoco algum, a posição do feto. Entretanto, a estatuária grega,
livremente projetada com seu jogo atlético ao exterior, marca sua vitória
sobre o traumatismo. Os gregos resolveram, assim, o enigma da
Esfinge, que não era outro, para Rank, que o enigma de nosso
nascimento.
Tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, toda criação se
encontra determinada pelo ato de nossa entrada no mundo, o que não
impede que, para Rank, o melhor substituto do paraíso, a maior
compensação do trauma do nascimento, resida em nossa vida sexual, na
união carnal que a coroa, único retorno parcial ao útero que nos foi
dado conhecer51. A morte também é percebida pelo homem como um
retorno ao útero – daí que seu temor seja um eco do espanto de nosso
nascimento – como o testemunham as mais antigas formas de sepultura:
o enterro num vão cavado na terra – na “Terra Mãe” ‐, a posição
sentada do cadáver com as pernas encolhidas – alusão ao feto ‐; o corpo
posto numa barca – o útero, o líquido amniótico ‐; a forma do féretro e
dos ritos de enterro, em que vemos sempre a morte interpretada
inconscientemente como um retorno ao útero materno. Até o costume
grego de incinerar o corpo marca, também, a maior vitória jamais
conseguida sobre o trauma do nascimento. Rank considera, por outra
parte, que os últimos espasmos da agonia sejam reprodução exata dos
primeiros espasmos do organismo no ato do nascimento.
É inútil dizer que, baseado em métodos absolutamente subjetivos, a
obra de Rank, em lugar de tratar de nos dar uma análise fisiológica
51 Sobre este ponto, veja‐se também Dr. I. Ferenczi, Ensaios sobre uma teoria genital
(1924).
67
objetiva deste trauma do nascimento e das consequências que possa ter
posteriormente na vida de nosso organismo físico, limita‐se a buscar sua
lembrança no nosso inconsciente, tratando de encontrar o fundo da
experiência subjetiva, convencido de encontrar aí também sua realidade
física.
Relativamente a isso, é significativo que Rank veja nas sessões de
psicanálise – a cura mesma dura normalmente uns nove meses – uma
simples réplica do nascimento. Nesta réplica, a libido se fixa
inicialmente no médico, e o consultório em penumbra – o enfermo é o
único que recebe luz, o médico fica na penumbra – representa para o
paciente – naturalmente para seu inconsciente – o útero materno. Até a
reprodução do trauma do nascimento – o fim do tratamento – o obriga a
libertar‐se do médico e a eliminar o fato traumático que o separou de
sua mãe, operação cujo êxito lhe permitirá vencer sua tentação estéril de
voltar atrás, ao útero, fonte última de todas as neuroses.
Aí se encontra posta em plena luz a significação metafórica de que se
reveste, aos olhos de todo o freudismo, a sessão psicanalítica. A
tendência ideológica desta teoria é levada ao extremo de sua própria
lógica, a ponto tal que todo comentário crítico se torna, sem dúvida,
supérfluo.
Isto nos leva ao nosso ponto de partida, em outras palavras, à noite
terrível em que nascemos, já que também para Rank estamos
condenados a passar toda nossa vida esperando a bela manhã em que
morreremos e que lamentavelmente não significará um progresso, já
que nossa agonia repetirá o traumatismo de nosso nascimento. O que
nos conduz à sabedoria de Pechorin – veja nossa epígrafe – que pelo
menos tem, relativamente a Rank, a vantagem de ser irônica, enquanto
que Rank, em seu livro, profetiza e vaticina – dir‐se‐ia um mal Spengler.
E tudo isso para nos revelar o quê? Que nosso organismo nasce com o
único fim de reeditar toda sua vida... o trauma do nascimento.
No fundo, a filosofia burguesa não tem mais que uma ideia, a de
edificar o mundo para além do social52, reunir nele tudo o que a abstração
pode isolar no homem integral, hipostasiar estas abstrações para depois
coroar o todo com uma ficção qualquer. A isto se dedicam, cada uma a
52 Cursivas de Guillermo Blanck.
68
sua maneira, as três correntes em que se divide o mundo burguês: trata‐
se do cosmismo da antropofagia (Steiner), o biologismo de Bergson e
outros dii minores53da filosofia vitalista, e por último do psicobiologismo
de Freud, que acabamos de analisar. Estas três correntes têm em comum
a mazela da maior abstração com a arte brilhante da imagem literária –
às vezes menos, às vezes plenamente – e deram ao burguês de nossa
época sua figura de Kulturmensch – steineriano, bergsoniano, freudiano
– assim como os três altares que confessa e adora: magia, instinto e
sexualidade. No freudismo os traços da decomposição se revelam mais
crus, mais nítidos e mais cínicos – será isso que o faz se parecer com o
materialismo?
Destes traços aqui expostos, tratemos de extrair o essencial, a saber,
a vontade de recorrer a uma projeção em imagens para atrair até o paraíso
asfixiante de um organismo psicologizado toda a necessidade material exterior,
apresentando‐a como o simples jogo de forças psíquicas internas – pulsões
sexuais e pulsões do “Eu”.
E para chegar a quê? Depois de ter feito de toda cultura e de toda
história um sucedâneo do ato sexual, chega‐se a fazer do ato sexual
mesmo um simples sucedâneo do estado intrauterino do feto. Daí, por
que não ir até suas últimas consequências e reconhecer que este último
é um sucedâneo do puro nada?
Seria pelo menos lógico!54
53 Em latim no original. Significa “deuses menores” (Nota de Guillermo Blanck).
54 Conclusão
da qual o próprio Freud não ficou atrás, embora lhe tenha dado uma
forma muito prudente e velada. Veja‐se Para além do princípio do prazer.
69
A PALAVRA NA VIDA E A PALAVRA NA POESIA
INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DA POÉTICA SOCIOLÓGICA
I
Na ciência literária, o método sociológico tem sido empregado qua‐
se exclusivamente para tratar as questões históricas, enquanto que os
problemas da chamada poética teórica – todo o complexo de problemas
relativos à forma artística, e seus diferentes aspectos, e seu estilo, etc. –
quase não têm sido abordados por este método.
Existe uma opinião errônea, compartilhada, não obstante, também
por alguns marxistas, de que a aplicação do método sociológico só é le‐
gítima quando a forma poética e artística, que a situação ideológica – de
conteúdo – torna mais completa, começa a desenvolver‐se historicamen‐
te nas condições da realidade social externa. Por sua vez, em si mesma,
a forma possui uma natureza e uma constituição de leis particulares,
que não é sociológica, senão especificamente artística.
Este ponto de vista contrasta radicalmente com as próprias bases
do método marxista: seu caráter monístico e histórico. A ruptura entre a
forma e o conteúdo, entre a teoria e a história é o resultado de seme‐
lhantes pontos de vista.
Vamos examinar estas opiniões falsas com certo detalhamento, posto
que são muito características de todos os estudos de arte contemporâ‐
neos.
É o Prof. Sakulin1 quem propõe um desenvolvimento mais preciso e
consequente deste ponto de vista. Distingue ele, na literatura e em sua
história, duas dimensões: a imanente e a causal. O “núcleo artístico” ima‐
nente da literatura possui uma estrutura particular, que lhe é própria, e
uma lei específica; é capaz, ademais, de sua própria evolução “natural”.
Neste processo de desenvolvimento, porém, a literatura se submete a
uma ação “causal” do meio social extra‐artístico. Um sociólogo nada tem a
fazer com o “núcleo imanente” da literatura; esta esfera apenas compete à
1 Cf. P. N. Sakulin. O método sociológico nos estudos literários [em russo], 1925.
71
poética teórica e histórica que são seus métodos específicos.2 O método
sociológico, por sua vez, pode estudar com êxito apenas a interação cau‐
sal da literatura com o meio social extra‐artístico que a circunda. A análi‐
se imanente (não sociológica) da essência da literatura e de suas leis au‐
tônomas e intrínsecas deve antecipar‐se à análise sociológica3.
Um sociólogo marxista não pode estar de acordo com uma afirmação
semelhante. No entanto, nos vemos obrigados a reconhecer que até agora
a sociologia vem elaborando, quase exclusivamente, as questões concre‐
tas da história literária; não tem produzido nenhuma tentativa séria de
estudar, com a ajuda de seus métodos, a chamada estrutura “imanente”
de uma obra artística. Esta última, de fato, está plenamente à disposição
do método estético e psicológico, e de outros que nada têm a ver com o
da sociologia.
Para assegurar‐se disso, basta revisitar qualquer trabalho sobre a po‐
ética, ou, em geral, os estudos teóricos de arte. Não acharíamos neles nem
rastro da aplicação das categorias sociológicas. A arte é tratada como se
“por sua natureza” fosse tão alheia ao sociológico como é a estrutura físi‐
ca ou química de um corpo. A maioria dos estudiosos de arte russos ou
europeus afirmam justamente isto acerca da literatura e de toda a arte, e
com este fundamento delimitam insistentemente os estudos da arte como
uma ciência especial, separada de qualquer enfoque sociológico.
Motivam sua afirmação mais ou menos da seguinte maneira: cada coi‐
sa que se tem convertido em objeto de demanda e de oferta, quer dizer, em
mercadoria, por seu valor e por seu movimento na sociedade humana, se
2 “Os elementos de uma forma poética (o som, a palavra, a imagem, o ritmo, a composi‐
ção, o gênero), os temas poéticos, o estilo artístico em geral se estudam previamente, de
um modo imanente, mediante os métodos que tem elaborado a poética histórica ao a‐
poiar‐se na psicologia, na estética, na linguística, métodos que na atualidade prática são
chamados método formal” (Sakulin, op. cit., p. 27)
3 “Ao reconhecer na literatura um fenômeno social, chegamos inevitavelmente ao pro‐
blema de seu condicionamento causal. Só que agora o historiador da literatura adqui‐
re o direito de assumir a postura de um sociólogo e de propor seus “porquês”, para
incluir os fatos literários no processo geral da vida social de um período determinado,
e para determinar imediatamente depois seu lugar em todo o movimento histórico.
Neste momento ganha força o método sociológico que, aplicado à história literária,
torna‐se histórico‐sociológico. “Em sua primeira fase imanente uma obra se concebia
como um valor artístico em sua importância social e histórica” (op. cit., pp. 27‐8).
72
submete às leis sócio‐econômicas; suponhamos que conhecemos perfeita‐
mente esta lei, porém, apesar disso, estamos distantes de entender algo da
estrutura física e química desta coisa convertida em mercadoria. Ao con‐
trário, o estudo mercadológico necessita antes de uma análise prévia físico‐
química da coisa. E só a um físico‐químico, com sua metodologia específi‐
ca, compete realizar uma análise semelhante. Segundo a opinião desses
estudiosos de arte, a situação em seu campo é análoga. Então a arte, sendo
um fator social submetido à influência de outros fatores também sociais,
está sujeita, por suposto, a uma lei sociológica geral, só que desta lei jamais
poderíamos deduzir sua essência estética, da mesma maneira que não po‐
demos deduzir nenhuma fórmula química da lei econômica de circulação
de mercadorias. Os estudos de arte e da poética teórica devem buscar uma
fórmula específica equivalente na obra de arte, com plena independência
da sociologia.
Uma concepção semelhante da essência da arte, como temos dito,
contradiz radicalmente os fundamentos do marxismo. Com efeito, é im‐
possível encontrar uma fórmula química mediante o método sociológico,
porém uma “fórmula” científica para qualquer esfera da ideologia somen‐
te se pode encontrar com os métodos sociológicos. Todos os demais mé‐
todos “imanentes” se embaralham com o subjetivismo. Até agora não
puderam sair de uma luta estéril de opiniões e pontos de vista, e menos
ainda são capazes de propor algo que sequer remotamente resulte seme‐
lhante a uma fórmula química, rigorosa e precisa. Por suposto, tampouco
o método marxista pode pretender a busca de uma fórmula: na esfera da
ciência da ideologia, pela própria natureza do objeto de estudo, resulta
impossível o rigor e a precisão das ciências humanas. Porém, um grau
máximo de aproximação de uma cientificidade efetiva no estudo da cria‐
ção ideológica chegou a ser pela primeira vez possível graças ao método
sociológico em sua concepção marxista. Os corpos físicos e químicos exis‐
tem também fora da sociedade humana, enquanto que todos os produtos
da criação ideológica se cultivam somente pela e para a sociedade. As
definições sociais nos chegam desde fora, como as definições dos corpos da
natureza: as formações ideológicas são internas e imanentemente sociológicas.
Com relação às formas políticas ou às do direito nada negaria esta reali‐
dade: qual é a essência imanente e não sociológica que se pode encontrar
nelas. Os matizes formais mais sutis do direito ou da ordem política são
73
igualmente acessíveis somente pelo método sociológico. Porém a mesma
explicação é válida para as outras formas ideológicas. Todas elas são
completamente sociológicas, ainda que sua estrutura, flutuante e comple‐
xa, se submeta a análises com grande dificuldade.
A arte é também eminentemente social. O meio social extra‐artístico,
a influenciar a arte desde o exterior, encontra nela uma resposta imediata
e interna. Na arte, o que não é alheio atua sobre o alheio, e uma formação
social influencia sobre outra. O estético, ou mesmo o jurídico, ou o cogni‐
tivo4, são tão somente uma variedade do social; portanto, a teoria da arte não
pode ser senão uma sociologia da arte.5 Não lhe sobra nenhum trabalho
“imanente”.
II
Para chegarmos a uma aplicação correta e produtiva da análise so‐
ciológica à teoria da arte, e em particular à poética, é preciso deixar de
lado dois pontos de vista falsos, que reduzem excessivamente as fron‐
teiras da arte isolando algumas de suas situações.
O primeiro ponto de vista pode ser definido como a fetichização de
uma obra de arte enquanto objeto. Esta fetichização atualmente predomina
nos estudos da arte. O campo de visão do investigador está limitado
pela própria obra de arte, que se analisa como se esta fosse à exaustão
toda a arte. Tanto o criador como os contempladores permanecem fora
do campo de visão.
O segundo ponto de vista, pelo contrário, se limita ao estudo da
psique do criador ou bem‐estar do contemplador (com maior frequência
se põe um signo de igualdade entre ambos). As vivências do ouvinte ou
do artista, deste ponto de vista, substituem a própria arte.
4 Volochínov utiliza aqui a divisão tripartite da atividade cultural do homem da mes‐
ma forma que podemos encontrar na obra de Bakhtin: o ético, o estético e o cognitivo
(vida/arte/ciência) [N.T.].
5 Distinguimos entre a teoria e a história da arte tão somente para uma divisão técnica
de trabalho. As categorias históricas se aplicam, sem dúvida, em todas as esferas das
ciências humanas, tanto das históricas quanto das teóricas.
74
Assim, para o primeiro ponto de vista, o objeto da investigação é
unicamente a estrutura da obra como objeto; enquanto que para o se‐
gundo, é solitariamente a psique individual do artista ou do ouvinte.
O primeiro ponto de vista, em uma investigação estética dá priori‐
dade ao material. A forma, entendida de um modo muito restrito, como
a forma do material, que o organiza como objeto único e acabado, chega
a ser o objetivo principal e quase único da investigação.
O chamado “método formal” é uma variante deste primeiro ponto
de vista. Para este método, uma obra poética é um material verbal, or‐
ganizado pela forma de uma maneira determinada. A palavra [slovo] não
se analisa como um fenômeno sociológico, a não ser de um ponto de
vista abstratamente linguístico. É compreensível: a palavra concebida
mais amplamente, como um fenômeno da comunicação cultural, deixa
de ser uma coisa centrada em si mesma e já não pode ser compreendida
independentemente da situação social que a tem engendrado.
O primeiro ponto de vista não pode ser desenvolvido até suas últi‐
mas consequências. Ao permanecer dentro dos limites do aspecto objetal
da arte, resulta impossível assinalar como se delimita o material e quais
são os aspectos que possuem um significado artístico. O material em si
mesmo se confunde com o meio extra‐artístico que o rodeia e possui um
número infinito de aspectos e definições: matemáticas, físicas, químicas
e, finalmente, linguísticas. Por mais que analisemos todas as proprieda‐
des do material e todas as combinações dessas propriedades, nunca po‐
deremos descobrir seu significado artístico sem contrabandear valores
de um ponto de vista distinto, que não remodele o marco inicial da aná‐
lise do material. Da mesma maneira, por mais que analisemos a estrutu‐
ra química de algum corpo, jamais entenderemos seu valor de mercado
sem adotar um ponto de vista econômico.
A tentativa do segundo ponto de vista por encontrar o estético na psi‐
que individual do criador ou contemplador sofre igualmente infiltrações e
influências [“infructuoso”]. Se continuarmos com nossa analogia econômi‐
ca, podia se dizer que uma tentativa similar havia sido a de pôr em mani‐
festação as relações objetivas de produção que determinam a posição do
proletário na sociedade mediante uma análise de sua psique individual.
Afinal de contas, os dois pontos de vista pecam em um mesmo er‐
ro: tentam encontrar uma parte na totalidade; fazem passar a estrutura de
75
uma parte separada do todo pela estrutura da totalidade. Enquanto o
“artístico” em sua completude não se encontra no objeto, nem na psique
isolada do criador ou do ouvinte, a não ser que abarque os três aspectos
por vez. O artístico representa uma forma especial da inter‐relação do cria‐
dor com os ouvintes, relação fixada em uma obra de arte.
Esta comunicação artística cresce sobre a base comum para todas as
formas sociais, mas conserva, sem esforço, igual às demais formas soci‐
ais, sua singularidade: trata‐se de um tipo especial de comunicação que
possui uma forma própria, característica somente deste tipo. A tarefa da
poética sociológica é compreender esta forma específica de comunicação social,
realizada e fixada no material de uma obra artística.
Uma obra artística, tomada fora desta comunicação e independen‐
temente dela, representa somente um objeto físico ou um exercício lin‐
guístico; se faz artística somente no processo de interação do criador
com o ouvinte como situação essencial no acontecimento desta intera‐
ção. No material de uma obra de arte, tudo aquilo que não pode ser in‐
tegrado à comunicação entre o criador e o ouvinte, tudo aquilo que não
pode ser o “meio” desta comunicação, nem sequer pode adquirir um
significado artístico.
Os métodos que subestimam a essência social da arte, tratando de en‐
contrar sua natureza e suas peculiaridades isoladamente na organização da
obra enquanto objeto, na realidade se veem obrigados a projetar [proietsiro‐
vat] a inter‐relação social do criador e contemplador sobre os diversos as‐
pectos do material e dos procedimentos de sua composição formal. Da
mesma maneira, a estética psicológica projeta as mesmas relações até a
psique individual do ouvinte. Esta projeção distorce a pureza dessas inter‐
relações e oferece um conceito falso, tanto do material como da psique.
A interação artística fixada em uma obra de arte, como dissemos, é
absolutamente singular e não pode se reduzir a outros tipos de intera‐
ção: ideológica, política, jurídica, moral etc. Se a interação política cria
as instituições e as formas de direito correspondentes, a interação estéti‐
ca organiza somente a obra de arte. Se negar esta tarefa, e se tratar de
criar, ainda que momentaneamente, uma organização política ou algu‐
ma outra forma ideológica, deixa, por isso mesmo, de ser interação esté‐
tica e perde sua singularidade. O traço característico da interação estética é
justamente o fato de se realizar plenamente na criação da obra e nas suas cons‐
76
tantes recriações mediante a contemplação criativa conjunta, e não necessita de
nenhuma outra objetivação. Mas, esta forma peculiar de comunicação não
aparece isolada: participa na corrente única da vida social, reflete em si a
base econômica comum e entra em interação e intercâmbio de forças
com outras formas de comunicação.
O propósito de nosso trabalho é uma tentativa de compreender a for‐
ma da enunciação poética como forma desta específica comunicação esté‐
tica realizada no material da palavra. Para isto, teremos que analisar mais
detalhadamente alguns aspectos do enunciado artístico fora da arte, o
discurso cotidiano comum, posto que já neste se encontram os fundamentos,
as potencialidades de uma forma artística futura. A essência social da pa‐
lavra aparece aqui mais clara e nitidamente, e a relação do enunciado
com o meio social circundante se submete com uma maior facilidade à
análise rigorosa.
III
A palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma.
Surge da situação extraverbal da vida e conserva com ela o vínculo mais
estreito. E mais, a vida completa diretamente a palavra, que não pode ser
separada da vida sem que perca seu sentido.
Eis aqui as características e as valorações que costumamos atribuir a
determinadas enunciações da vida real: “é mentira”, “é verdade”, “está
dito atrevidamente”, “não devia dizer isso” etc.
Então, essas e outras valorações semelhantes, não importa que crité‐
rio as dirige – ético, cognitivo, político ou outro – abarcam mais longe e
mais extensamente o que se encontra no aspecto propriamente verbal,
linguístico da enunciação: junto com a palavra abordam também a situação
extraverbal da enunciação. Esses juízos e valorações se referem a uma certa
totalidade, na qual a palavra diretamente entra em contato com o aconte‐
cimento da vida e se funde com ele em uma unidade indissolúvel. A pa‐
lavra tomada isoladamente, como fenômeno puramente linguístico, não
pode ser verdadeira, nem falsa, nem atrevida, nem tímida.
Como se relaciona, então, a palavra da vida real com a situação ex‐
traverbal que a tem engendrado? Analisemos em um exemplo intencio‐
nalmente simplificado.
77
Duas pessoas se encontram em uma casa. Estão caladas. Uma delas
diz: “Bem”. O outro não responde nada.
Para nós outros, que não nos encontramos na casa na situação da
conversação, todo esse “discurso” é absolutamente incompreensível. A
enunciação “Bem”, tomada isoladamente, é vazia e absolutamente carece
de sentido. Não obstante, essa singular conversação entre os dois, que
consta de uma só palavra expressivamente entonada, é plena de sentido,
de importância e está perfeitamente concluída.
Para descobrir o sentido e a significação dessa conversação, é neces‐
sário analisá‐la. Porém, o que podemos submeter dela em análise? Por
mais que nos esforcemos com a parte estritamente verbal da enunciação,
determinando da maneira mais fina o aspecto fonético, morfológico e sin‐
tático da palavra “Bem”, não nos aproximaríamos um passo sequer da
compreensão do sentido global da conversação.
Suponhamos que conhecemos a entonação com que foi pronunciada
nossa palavra: por exemplo, de uma repreensão indignada, suavizada,
não obstante, por certa dose de humor. Essa circunstância consegue pre‐
encher um pouco o vazio semântico do advérbio “Bem”, porém não che‐
ga a colocar às claras a significação do todo.
Que nos falta? Nos falta, justamente, aquele contexto extraverbal no
qual a palavra “Bem” apresenta um sentido para aquele que a ouve. Esse
contexto extraverbal da enunciação se compõe de três aspectos: 1) um hori‐
zonte espacial compartilhado por ambos os falantes (a unidade do visível: a
casa, a janela etc); 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação, i‐
gualmente compartilhados pelos dois, e, finalmente, 3) a valoração compar‐
tilhada pelos dois, desta situação.
No momento da conversação, ambos os interlocutores olharam pela
janela e viram que começava a nevar; os dois sabem que é mês de maio e
que faz muito tempo que devia ter iniciado a primavera; finalmente, aos
dois, o inverno tão prolongado é um mal; ambos esperam a primavera e a
queda da neve tão fora de época entristece os dois. A enunciação se apoia di‐
retamente em tudo isto: no visto conjuntamente (os flocos de neve pela jane‐
la); no sabido conjuntamente (é mês de maio), e no avaliado conjuntamente (o
inverno atrasado, o desejo de que chegue a primavera); tudo isso é abar‐
cado pelo sentido vivo, aparece absorvido por ele, e, sem dúvida, não es‐
tá expresso verbalmente, não está dito. Os flocos de neve estão atrás da
78
janela; a data, na folha do calendário; a valoração, na psique do falante,
porém tudo isso aparece compreendido pela palavra “Bem”.
Agora que nos inteiramos do subentendido, isto é, do horizonte espacial
e semântico compartilhado dos falantes, fica totalmente claro o sentido global
da enunciação “Bem”, como também fica compreensível sua entonação.
Como, então, se relaciona este horizonte extraverbal com a palavra,
como se relaciona o não‐dito com o dito?
Acima de tudo, aqui parece evidente que a palavra está longe de re‐
fletir a situação extraverbal da mesma maneira como um espelho reflete
um objeto. Em nosso caso, a palavra, ao contrário, resolve a situação, ao
proporcionar uma espécie de resumo valorativo. Com muito maior fre‐
quência, uma enunciação da vida real continua ativamente e desenvolve
uma situação determinada, assinala um plano para uma ação futura e a
organiza. A nós nos importa outro aspecto da enunciação da vida cotidi‐
ana: da forma que se dá, sempre relaciona entre si os participantes de
uma situação enquanto co‐partícipes, que igualmente conhecem, enten‐
dem e avaliam essa situação. Então, a enunciação se apoia em sua relação real
e material a um mesmo fragmento da existência, atribuindo a essa comunidade
material uma expressão ideológica e um desenvolvimento ideológico posterior.
Deste modo, a situação extraverbal não é tão somente a causa exter‐
na da enunciação, nem atua sobre esta como uma força mecânica externa.
Não; a situação forma parte da enunciação como a parte integral necessária de
sua composição semântica. Portanto, uma enunciação da vida real, enquan‐
to um todo pleno de sentido, compõe‐se de duas partes: 1) de uma parte
realizada verbalmente e 2) do subentendido. É por isso que se pode com‐
parar uma enunciação da vida real com um “entinema”.6
No entanto, trata‐se de um entinema sui generis. A própria palavra
“entinema” (em grego “entinema” é “o que se encontra na alma”, “o que
se subentende”), ou mesmo a palavra “subentendido” soa de um modo
demasiado psicologista. Poderia se pensar que a situação se dá em forma
de um ato subjetivo psíquico (representação, pensamento, sentimento) na
alma do falante. No entanto, isto não é assim: o individual e o subjetivo
neste caso ficam em segundo plano frente ao socialmente objetivo. O que eu
6 Na lógica, um “entinema” é um juízo em que não se enuncia uma das premissas, mas
a subentende. Por exemplo: “Sócrates é um homem, portanto é mortal”. Subentende‐
se “todos os homens são mortais”.
79
sei, vejo, quero e amo, não pode ser um subentendido. Somente aquilo
que nós, os falantes, sabemos, vemos, amamos e reconhecemos, no que
estamos ligados, pode chegar a ser a parte subentendida de uma enunci‐
ação. Logo, o social em sua base é plenamente objetivo: trata‐se antes de
tudo de uma unidade material do mundo, que forma parte do horizonte dos
falantes (a casa, a neve fora da janela em nosso exemplo), e da unidade das
condições reais da vida, que geram a comunidade das valorações: o pertenci‐
mento dos falantes a uma mesma família, profissão, ou classe social, a
algum grupo social e, finalmente, a uma mesma época, posto que todos os
falantes são contemporâneos. As valorações subentendidas aparecem en‐
tão não como emoções individuais, senão como atos socialmente necessá‐
rios e consequentes. As emoções individuais, por sua vez, somente podem
acompanhar o tom principal da valoração social em sua qualidade de matiz:
um “eu” somente pode realizar‐se na palavra se se apoia nos “outros”.
Desta maneira, cada enunciação da vida cotidiana é um entinema so‐
cialmente objetivo. É uma espécie de palavra‐chave que somente conhe‐
cem os que pertencem a um mesmo horizonte social. A peculiaridade das
enunciações da vida cotidiana consiste em que elas, mediante milhares de
fios, entrelaçam‐se com o contexto extraverbal da vida e, ao serem separa‐
das deste, perdem quase por completo seu sentido: quem desconhece seu
contexto vital mais próximo não as entenderá.
Porém este contexto próximo pode ser mais ou menos extenso. Em
nosso exemplo, o contexto é demasiado reduzido: determina‐se pelo ho‐
rizonte da casa mencionada e da situação, de modo que a enunciação tem
sentido tão somente para as duas pessoas. Porém aquele horizonte único
no qual se apoia a enunciação pode ampliar‐se tanto no espaço como no
tempo: existe o “subentendido” da família, da tribo, da nação, da classe social,
dos dias, dos anos inteiros e inclusive de épocas totais. À medida que se amplia
o horizonte geral e do grupo social que lhe corresponde, os aspectos sub‐
entendidos se tornam cada vez mais constantes.
Quando o horizonte real subentendido da enunciação é estreito,
quando coincide, como em nosso exemplo, com o horizonte real de duas
pessoas que se encontram em uma casa e veem as mesmas coisas, então a
mudança mais efêmera deste horizonte pode‐se contar entre os suben‐
tendidos. Porém, quando existe um horizonte mais amplo, a enunciação
80
pode somente apoiar‐se nos aspectos permanentes e estáveis da vida, e
nas valorações sociais essenciais e básicas.
Uma importância especial têm neste caso as valorações subentendidas.
Acontece que todas as valorações sociais principais que derivam dos traços
particulares da existência econômica de um grupo determinado não cos‐
tumam se enunciar, posto que formam parte da carne e do sangue de todos
os representantes de um grupo dado; são as que organizam atos e modos
de proceder, parecem haver se fundido com os objetos e os fenômenos cor‐
respondentes, e por isso não necessitam de fórmulas verbais. Cremos per‐
ceber o valor de um objeto junto com o de sua existência, como uma de
suas qualidades: por exemplo, junto com o calor e a luz do sol sentimos
também o valor que tem para nós. Deste modo, todos os fenômenos da
vida circundante se fundiram com as valorações. Se na realidade a valora‐
ção aparece condicionada pela própria existência de um coletivo dado, cos‐
tuma ser reconhecida dogmaticamente como algo subentendido e que não
está sujeito à discussão. Pelo contrário, quando a valoração principal tem
que se enunciar e se demonstrar, então já se tornou duvidosa, separou‐se
de seu objeto, deixou de organizar a vida, e, por conseguinte, perdeu seu
vínculo com as condições de vida da coletividade dada.
Uma valoração saudável permanece na vida e já a partir dela organiza
a própria forma da enunciação e sua entonação, apesar de estar distante de
aspirar a uma expressão adequada no conteúdo da palavra. Tão logo a va‐
loração migra das situações formais até o conteúdo, pode‐se dizer, com
toda segurança, que se está preparando uma re‐valoração. Uma re‐
valoração fundamentada desta maneira não se encontra no conteúdo da
palavra e não se pode deduzir desta, porém, ao contrário, determina a
própria seleção da palavra, assim como a forma da totalidade verbal; é na
entonação que a valoração encontra sua expressão mais pura. A entonação
estabelece um vínculo estreito entre a palavra e o contexto extraverbal: a
entonação viva parece conduzir a palavra além das fronteiras verbais.
Detenhamo‐nos com maior detalhamento no vínculo da entonação
com o contexto vital, no exemplo de enunciação que estamos analisando.
Isto nos permitirá realizar uma série de importantes observações sobre o
caráter social da enunciação.
81
IV
É importante ressaltar que a palavra “Bem”, semanticamente quase
vazia, de nenhuma maneira pode predeterminar com seus conteúdos a
entonação: qualquer entonação pode perfeita e livremente se apossar
desta palavra – uma entonação jubilosa (alegre), uma lúgubre (triste),
uma depreciativa etc.; tudo depende do contexto em que a palavra apa‐
rece. No nosso caso, o contexto que determina a entonação – cheia de
indignação e deboche suavizados com o humor – é a situação extraver‐
bal que analisamos acima, já que não existe um contexto verbal próxi‐
mo. Pode‐se antecipar que, inclusive quando existe um contexto verbal
imediato, autossuficiente em relação a qualquer outro ponto de vista, a
entonação de todos os modos nos conduziria mais além dos limites: esta
somente pode ser compreendida ao compartilhar as valorações suben‐
tendidas de um grupo social determinado, não importa quão extenso
seja o grupo em questão. A entonação sempre se encontra no limite entre o
verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito. Mediante a entonação, a pa‐
lavra se relaciona diretamente com a vida. E antes de tudo, justamente
na entonação o falante se relaciona com os ouvintes: a entonação é soci‐
al por excelência. É, sobretudo, sensível para com qualquer oscilação da
atmosfera social em torno do falante.
Em nosso exemplo, a entonação brotou da ânsia pela chegada da
primavera, compartilhada pelos interlocutores, do desgosto comum
com o inverno muito prolongado. A entonação, a transparência e clari‐
dade de seu tom, apoiaram‐se neste caráter compartilhado das valoriza‐
ções. Na atmosfera do sentir compartilhado, pode desvincular‐se livre‐
mente e diferenciar‐se no marco deste “tom” geral. Mas no caso em que
não exista um “coral de apoio” tão firmemente pressuposto, a entona‐
ção pode tomar outra rota, e se complicar no meio de outras tonalida‐
des: talvez, assumir tonalidades de desafio ou de irritação para com o
ouvinte, ou finalmente, ser deslocada e reduzida ao mínimo. Quando
uma pessoa pressupõe no outro um desacordo, ou bem quando sim‐
plesmente não está segura e duvida da aceitação, confere a suas pala‐
vras uma entonação diferente, além de estruturar suas enunciações de
outra maneira. Mais adiante veremos que não só a entonação, mas toda
a estrutura formal do discurso, em uma considerável medida, depende
82
da relação que reduz a enunciação às supostas valorações compartilha‐
das daquele meio social para o qual está orientada a palavra. Uma en‐
tonação criativamente produtiva, segura e rica somente é possível base‐
ada no suposto “coral de apoio”. Onde não existe este apoio, a voz se
corta como em alguém que ri e logo se perde por ser um riso solitário: o
riso se cala ou degenera, volta afetado, perde a segurança e definição e
já não é capaz de gerar palavras alegres e burlescas. A comunicação das
valorizações gerais representa o tecido sobre o qual o discurso vivo dos homens
borda figuras entonacionais.
Mas a orientação por uma possível valorização que a entonação
possui, a espera de um possível apoio coral, não esgota o sentido de sua
natureza social. Esse não é mais que somente um dos aspectos da ento‐
nação, aspectos esses dirigidos ao ouvinte, porém existe nela outra
questão de extrema importância para a sociologia da palavra.
Se examinarmos atentamente a entonação da enunciação de nosso
exemplo, encontramos nela um traço “enigmático” que requer uma ex‐
planação especial.
Prosseguindo, na entonação da palavra “Bem” não só se percebia
um desgosto passivo com o que acontecia (a nevasca), mas também
uma indignação e um deboche ativo. A quem é dirigido este deboche?
Claramente não se refere ao ouvinte, senão a qualquer um outro: esta
orientação do movimento entonacional com toda evidência alarga a si‐
tuação para dar lugar a um terceiro participante. Quem é este terceiro
participante? A quem se refere o deboche? À neve? À natureza? Talvez,
ao destino?
Obviamente, na nossa enunciação cotidiana simplificada, este ter‐
ceiro participante – herói de uma obra verbal ‐ ainda não aparece de
todo definido: a entonação já assinala com toda claridade seu lugar, mas
ele carece ainda de equivalente semântico e permanece não nomeado. A
entonação estabelece aqui uma atitude viva com o objeto da enunciação
que quase chega a apelar como se fosse um culpado encarnado e vivo,
de modo que o segundo participante, que é o ouvinte, se toma por tes‐
temunha ou aliado.
Quase qualquer entonação vivente de um discurso apaixonado
transcorre na vida real como se mais além dos objetos e das coisas se
direcionasse aos reais protagonistas da vida: lhe é própria, em alto grau,
83
a tendência à personificação. Se a entonação não aparece atenuada, como
em nosso exemplo, com certa dose de ironia, se aparece espontânea e
direta, engendra uma imagem mítica, dá lugar a uma fórmula mágica,
uma liturgia, como acontecia nas fases iniciais da cultura. Entretanto,
em nosso caso, temos que comparar com um fenômeno de extraordiná‐
ria importância na criação verbal: com a metáfora entonacional. A entona‐
ção soa como se a palavra desaprovara o inverno, causador real da úl‐
tima neve, como se fora um ser animado. Em nosso exemplo, temos
uma metáfora entonacional pura, que em nada transpassa os limites da
entonação; não obstante nela dormita, como em um berço, uma poten‐
cial metáfora semântica comum. Se se realizasse esta potencialidade, a
palavra “Bem” se desvincularia, aproximadamente, na seguinte expres‐
são metafórica: ʹAh que inverno tão obstinado, não quer ir embora, ainda
que já seja “hora!”ʹ. Contudo esta possibilidade patente na entonação
não foi realizada: a enunciação se bastou com o advérbio “Bem”, se‐
manticamente quase nulo.
Há que pontuar que a entonação no discurso cotidiano tem, em ge‐
ral, uma maior capacidade metafórica que as palavras: nela parece so‐
breviver a antiga alma mitopoética. A entonação soa de tal maneira co‐
mo se o mundo em torno do falante estivesse ainda repleto de forças
animadas: a entonação ameaça, se indigna, ou bem ama e acaricia os
objetos e fenômenos inanimados, enquanto que as metáforas comuns da
língua conversacional, em sua maioria, se extinguiram e, semantica‐
mente, as palavras são pobres e prosaicas.
A metáfora entonacional tem parentesco latente com a metáfora ges‐
tual (a própria palavra era inicialmente um gesto linguístico, um com‐
ponente de um complexo gesto que tomava o corpo todo), entendendo
por gesto tanto a mímica como os gestos do rosto. O gesto, igual à ento‐
nação, necessita do apoio coral dos circundantes: só em uma atmosfera
de simpatia social resulta possível um gesto livre e seguro. Por outra
parte, o gesto, o mesmo que a entonação, alarga a situação e introduz
um terceiro participante, o herói. Neste gesto, dormita sempre o germe
de agressão ou de defesa, de ameaça ou de carícia, e ao que contempla e
ouve lhe cabe o papel de aliado ou de testemunha. Com frequência o
“protagonista” do gesto é tão somente um objeto inanimado, um fenô‐
meno ou alguma circunstância vital. Quando estamos contrariados, por
84
exemplo, ameaçamos alguém com um punho ou simplesmente com o
olhar de viés, mas também sabemos sorrir a tantas coisas: ao sol, às ár‐
vores, aos pensamentos!
É preciso recordar constantemente o seguinte (o que esquece com
frequência a estética psicológica): a entonação e o gesto são ativos e objetivos
por sua natureza e tendência. Não só expressam um estado passivo de â‐
nimo do falante, mas implicam sempre uma relação viva, enérgica, que
vai até o mundo exterior e até o meio social circundante, no confronto
com os inimigos, os amigos, os aliados. Entonando e gesticulando, o
homem ocupa uma posição social ativa com respeito aos valores deter‐
minados, determinada pelas mesmas condições de sua existência social.
Justamente este aspecto social e objetivo, e não o lado subjetivo e psico‐
lógico da entonação e do gesto, deveria interessar aos teóricos das artes
respectivas, porque justamente aquele está cheio de cimento provindos
das forças destes fenômenos: forças estéticas e criadoras, construtivas e
organizadoras da forma artística.
Assim, toda entonação aparece orientada em duas direções: com res‐
peito ao ouvinte enquanto aliado ou testemunha, e com respeito ao ob‐
jeto da enunciação como se fosse um terceiro participante vivo; a ento‐
nação o molesta, o acaricia, rebaixa ou engrandece. Esta dupla orientação
social determina e atribui um sentido a todos os aspectos da entonação. Mas o
mesmo é válido para os demais aspectos de uma enunciação verbal: to‐
dos eles se organizam no mesmo processo da dupla orientação do falante:
esta origem social se manifesta mais facilmente na entonação, que é o
aspecto mais sensível, flexível e livre da palavra.
Deste modo (atualmente já temos o direito do dizer), toda palavra real‐
mente pronunciada (ou escrita com sentido), que está aconchegada em um
dicionário, é expressão e produto da interação social de três: do falante (autor), do
ouvinte (leitor), e daquele de quem ou de que se fala (protagonista). A palavra é
um evento social, não está centrada em si mesma como certa magnitude
linguística abstrata, nem pode ser psicologicamente deduzida da consciên‐
cia do falante subjetiva e ilhada. É por isso que o enfoque linguístico‐
formal e o psicológico disparam assim mesmo fora do neutro: a essência
concreta e sociológica da palavra ‐ a única que é capaz de convertê‐la em
verdade ou em mentira, em vil ou em nobre, em necessária ou em inútil – é
vista segundo essas duas perspectivas como incompreensível e inacessível.
85
Naturalmente, a “alma social” da palavra também se desenvolve artistica‐
mente como significante: bela ou disforme. Ainda que ao submeter‐se ao
enfoque principal mais concreto, que é o sociológico, os dois pontos de vis‐
ta abstratos – o linguístico‐formal e o psicológico – conservem sua impor‐
tância. Sua colaboração é inclusive necessária, porém em si mesmos, toma‐
dos isoladamente, são incapazes de explicar o todo.
Uma enunciação concreta (e não uma abstração linguística) nasce,
vive e morre no processo de interação social dos participantes da enun‐
ciação. Sua significação e sua forma em geral se definem pela forma e o
caráter desta interação. Ao arrancar a enunciação deste chão real que a
alimenta, perdemos a chave que abre o acesso de compreensão tanto de
sua forma quanto de seu sentido; em nossas mãos ficam ou uma moldu‐
ra linguística abstrata, ou um esquema abstrato de sentido (a consagra‐
da “ideia da obra” dos antigos teóricos ou historiadores da literatura):
duas abstrações que são irreconciliáveis entre si, posto que não existe
uma base concreta para sua síntese viva.
* * *
Agora somente nos resta recapitular em torno de nossas pequenas
análises da enunciação viva e daquelas potencialidades artísticas, germes
de uma futura forma e de um futuro conteúdo, que encontramos nela.
Quaisquer que sejam o sentido vital e a viva significação da enun‐
ciação não coincidem com a estrutura puramente verbal. As palavras
ditas estão impregnadas do suposto e do não‐dito. Aquilo que se cos‐
tuma chamar “compreensão” e “avaliação” da enunciação (acor‐
do/consenso ou desacordo/dissenso) sempre abarca, junto com a pala‐
vra, a situação cotidiana extraverbal. Deste modo, a vida não atua sobre
a enunciação desde o exterior: essa a impregna desde o interior da e‐
nunciação, enquanto unidade e comunidade, seja da realidade objetiva
que circunda os falantes, seja das substanciais valorações sociais que
brotam dessa realidade objetiva, fora das quais é impossível existir
qualquer enunciação plena de sentido. A entonação se situa na fronteira
entre a vida e a parte verbal da enunciação; parece bombear a energia
de uma situação vital à palavra, e atribui a tudo o que é linguisticamen‐
te estável uma dinamicidade histórica viva e uma unicidade irrepetível.
86
Finalmente, a enunciação reflete em si a interação social entre o falante,
o ouvinte e o herói, e vem a ser o produto e a fixação de sua interação
viva no material da palavra.
A palavra é uma espécie de “cenário” de certo acontecimento. A
compreensão autêntica de um sentido global deve reproduzir este acon‐
tecimento da relação recíproca dos falantes, “representar‐lhe” outra vez,
e o que compreende adota o papel de ouvinte. Porém para cumprir com
este papel deve compreender claramente também as posições de outros
participantes.
Para o ponto de vista da linguística não existe, a princípio, nem este
acontecimento, nem seus participantes vivos, posto que está mais ligada
à palavra abstrata e nua, com seus aspectos igualmente abstratos (o fo‐
nético, o morfológico etc.); é por isso que o sentido global da palavra e
seu valor ideológico – cognoscitivo, político, estético – são inacessíveis
para este ponto de vista. Como não pode existir uma lógica linguística
ou uma política linguística, da mesma maneira não pode existir uma
poética linguística.
V
Então, em que se diferencia uma enunciação verbal artística – uma
obra poética acabada – de uma enunciação cotidiana?
Desde o princípio está claro que em uma enunciação literária a pala‐
vra não se encontra, nem pode se encontrar, na mesma dependência es‐
treita de todas as situações do contexto extraverbal, do todo imediata‐
mente visível e conhecido como acontece na vida. Uma obra poética não
pode se apoiar nas coisas e nos acontecimentos circundantes mais próxi‐
mos como em algo subentendido, sem introduzir uma só alusão a eles na
parte verbal da enunciação. Deste ponto de vista, à literatura se deman‐
dam, desde logo, solicitações muito maiores: muitas coisas, que na vida
ficaram fora do cenário da enunciação, agora devem encontrar um repre‐
sentante verbal. Deste ponto de vista prático‐objetal, em uma obra artísti‐
ca não deve haver coisas não‐ditas.
Acaso a consequência disto seja que, na literatura, o falante, o ouvin‐
te e o herói se encontram pela primeira vez e não sabem um do outro,
87
carecem de um horizonte comum, e por isto não tem nada em que se a‐
poiar, não comportam subentendido algum?
Na realidade, uma obra poética também está envolvida e entretecida
com o contexto na enunciação da vida. Se na realidade o autor, o ouvinte
e o herói se encontram pela primeira vez como pessoas abstratas não re‐
lacionadas mediante nenhum horizonte, ou se tomaram suas palavras de
um dicionário, o resultado dificilmente teria sequer sido uma obra em
prosa, e certamente nunca seria uma obra poética. A ciência até certo
ponto se aproxima deste limite – uma definição científica possui um mí‐
nimo de subentendidos – porém, poderia se demonstrar que tampouco a
ciência pode prescindir dos subentendidos.
Na literatura são importantes acima de tudo os valores subentendidos.
Se pode dizer que uma obra artística é um potente condensador de valorações
sociais não expressadas: cada palavra está impregnada delas. São justamen‐
te essas valorações sociais as que organizam a forma artística enquanto sua ex‐
pressão imediata.
Acima de tudo, as valorações determinam a seleção das palavras pelo
autor e a percepção desta seleção (co‐eleição) pelo ouvinte. Porque o poe‐
ta não escolhe suas palavras de um dicionário, mas do contexto da vida
no qual as palavras se sedimentam e se impregnam de valorações. Deste
modo, escolhe as valorações relacionadas com as palavras, e, além disso,
desde o ponto de vista dos portadores encarnados destas valorações. Po‐
de‐se dizer que o poeta trabalha todo o tempo com a aprovação ou desa‐
provação, com a concordância ou a discordância do ouvinte. Ademais, a
valoração é ativa também com relação ao objeto da enunciação, que é o
herói (protagonista). O ouvinte e o herói são participantes permanentes do a‐
contecimento da criação. Este acontecimento jamais deixa de ser o da co‐
municação viva entre todos eles.
O problema da poética sociológica estaria resolvido se se conseguisse
explicar cada situação da forma como uma expressão ativa da valoração
destes dois sentidos: há o ouvinte e há o objeto da enunciação que é o he‐
rói7. Porém, para cumprir com tal tarefa atualmente se dispõe de muito
poucos dados. Somente é possível uma tentativa de assinalar apenas ca‐
minhos preliminares nesta direção.
7
Aqui abstraímos os problemas da técnica da forma, acerca da qual falaremos adiante.
88
A estética formal contemporânea determina a forma artística como
forma do material. Se formos consequentes com este ponto de vista, tere‐
mos que subestimar o conteúdo, porque para este não sobra lugar na o‐
bra de arte. No melhor dos casos o conteúdo vem a ser um aspecto do
material, e desta maneira somente indiretamente é organizado pela forma
artística, que se refere diretamente ao material.8
A forma, segundo esta concepção, perde seu caráter ativo e avalia‐
dor, e se converte somente em um estimulante das sensações agradáveis
absolutamente passivas no ouvinte.
A forma, por isso, está realizada mediante o material, porém sua sig‐
nificação ultrapassa os limites deste. A significação, o sentido da forma não se
refere ao material, mas ao conteúdo. Assim, se pode afirmar que a forma de
uma estátua não é a forma do mármore, mas a do corpo humano e “hero‐
íza” o homem representado; o “acaricia”, ou melhor, possivelmente o
“diminui” (estilo caricaturesco na plástica), isto é, expressa uma determi‐
nada valoração do representado.
Porém esta significação valorativa da forma se dá de modo mais evi‐
dente na poesia. O ritmo e os outros elementos formais com toda a certe‐
za expressam certa atitude para o representado: a forma faz cantar, faz
chorar ou o ridiculariza.
A estética psicológica o considera como “situação emocional” da for‐
ma. Para nós, não importa aqui o aspecto psicológico do assunto, não nos
importa quais são as forças psicológicas participantes da criação e da per‐
cepção criativa da forma: o que nos importa é a significação dessas vivên‐
cias, seu caráter ativo, sua orientação para o conteúdo. Mediante a forma
artística o criador ocupa certa posição ativa com relação ao conteúdo. A forma
em si não deve ser forçosamente agradável – sua fundamentação hedo‐
nista é absurda; a forma deve ser uma valoração convincente do conteúdo.
Assim, a forma do inimigo pode ser inclusive repulsiva, como estado fi‐
nal resultante. O prazer do ouvinte vem a ser a consequência do fato de
que se trata de uma forma digna do inimigo, e de que está realizada perfei‐
tamente desde o ponto de vista técnico pelo material.
A valoração ideológica expressada pela forma de nenhuma maneira
deve passar ao conteúdo por alguma sentença, por um juízo moral, polí‐
8 É o ponto de vista de V. M. Zhirmunski.
89
tico ou de qualquer outro tipo. A valoração deve permanecer no ritmo,
no próprio movimento valorativo do epíteto, da metáfora, ou por meio do
desenvolvimento do acontecimento representado; deve realizar‐se exclusi‐
vamente com recursos formais do material. Porém, ao mesmo tempo,
sem passar o conteúdo, a forma não deve perder vínculo com este, sua
referência ao conteúdo; caso contrário se converte em experimento técni‐
co, carente de qualquer sentido artístico.
Aquela definição geral de estilo proposta pela poética clássica e neo‐
clássica, assim como a divisão geral dos estilos em “alto” e “baixo”, põe
certamente às claras esta natureza valorativa da forma artística. A estru‐
tura da forma é, com efeito, hierárquica, e neste sentido se aproxima das
gradações políticas e jurídicas. Como estas, cria, em um conteúdo estru‐
turado artisticamente, um complexo sistema de inter‐relações hierárqui‐
cas: cada elemento seu – por exemplo, um epíteto ou uma metáfora – ou
eleva o definido ao grau máximo, ou o rebaixa e iguala. A escolha do he‐
rói ou do acontecimento determina já desde o princípio o grau geral de
elevação da forma e a conveniência de uns ou outros procedimentos for‐
mais. Esta exigência principal da adequação do estilo leva em conta a ade‐
quação hierárquica valorativa da forma e do conteúdo: estes devem ser igual‐
mente dignos um do outro. A escolha do conteúdo e da forma é um mesmo
ato que estabelece a posição principal do criador. Neste ato encontra sua
expressão uma mesma valoração social.
VI
Uma análise sociológica, supõe‐se, pode partir somente da composi‐
ção verbal e linguística de uma obra, e assim não deve e não pode se fe‐
char em seus limites como o faz a poética linguística. Porque inclusive a
contemplação artística na leitura de um poema parte do grafema (isso
equivale a dizer, da imagem visual de uma palavra escrita ou impressa),
mas já no momento seguinte da percepção esta imagem visual se abre e
quase se apaga pelos demais aspectos da palavra – pela articulação, pela
imagem sonora, pela entonação, pela significação ‐ e esses aspectos mais
adiante nos obrigarão a refazer as bases e limites da palavra em geral.
Então se pode dizer que o aspecto puramente linguístico da obra está para a
totalidade artística na mesma relação em que o grafema está para a totalidade da
90
palavra. Na poesia, a palavra é o “cenário” do evento, que uma pessoa
que tenha uma percepção artística profunda e válida, coloca em cena pre‐
nunciando com muita sensibilidade, nas palavras e nas formas de sua
organização, as relações vivas e específicas existentes entre o autor e o
mundo, assim como o autor as extrai, e de tal modo que entre nessas
relações como um terceiro participante, ou seja, como ouvinte. Ali onde
a análise linguística vê as palavras tão solitárias e as inter‐relações entre
seus aspectos abstratos (fonéticos, morfológicos, sintáticos e outros), para
uma percepção artística viva e para uma análise sociológica concreta se
manifestam as relações entre a gente, relações tão somente refletidas e fi‐
xas no material verbal. A palavra é o esqueleto que se enche de carne vi‐
va somente no processo da percepção criativa e, por consequência, so‐
mente no processo da comunicação social viva.
Na sequência, trataremos de ressaltar, de forma sucinta e preliminar,
aqueles três aspectos essenciais nas inter‐relações dos participantes de
um acontecimento artístico que determinam as linhas mais básicas e as
mais plenas de um estilo poético enquanto fenômeno social. Dentro dos
limites do presente artigo é impossível, supomos, uma pormenorização
em torno desses aspectos.
Ao autor, ao herói e ao ouvinte nos referiremos, não como antes, si‐
tuados fora do acontecimento artístico, senão sempre na medida em que
representam seus componentes necessários. Trata‐se daquelas forças vi‐
vas que determinam a forma e o estilo, que um ouvinte competente é ca‐
paz de perceber com clareza. Por outro lado, todas aquelas definições que
um historiador da literatura pode dar em volta do autor e de seus perso‐
nagens ‐ a biografia do autor, uma qualificação cronológica e sociológica
mais exata dos heróis etc., são aqui, logo, excluídas: não constituem parte
diretamente da estrutura da obra, permanecem fora dela. Assim mesmo,
somente tomamos em conta aquele ouvinte que é também considerado
pelo autor, aquele a que está orientada a obra; enfim, o ouvinte que em
virtude do dito determina internamente a forma. Mas, excluímos o públi‐
co real, aquele que representa de fato a massa leitora de um escritor de‐
terminado.
O primeiro aspecto do conteúdo que determina a forma é a categoria axi‐
ológica do acontecimento representado e de seu portador ou de seu herói
(que tenha um nome ou não); aspecto que examina a estrita correlação entre
91
a posição hierárquica do criador e do ouvinte. Aqui surge uma relação bilate‐
ral, como sucede analogamente no direito ou na política: senhor/escravo, so‐
berano/súdito, companheiro/companheiro, etc.
O tom principal do estilo de uma enunciação se determina, desta
maneira, em função da pessoa de quem se trata e em que relação se en‐
contra com o falante: se é superior, inferior ou igual a este na escala da
hierarquia social. Rei, pai, irmão, escravo, companheiro, enquanto heróis
de uma enunciação, determinam também sua estrutura formal. Este peso
específico da hierarquia do herói está, por sua vez, determinado por aquele
contexto valorativo não expressado, ao qual aparece também vinculado
estreitamente a enunciação poética. Como a “metáfora entonacional”, de
nosso exemplo, estabelecia uma atitude viva com respeito ao objeto da
enunciação, assim todos os elementos do estilo de uma obra poética estão
impregnados pela atitude valorativa do autor até o conteúdo e expressam
sua postura social principal. Ressaltemos mais uma vez que não nos refe‐
rimos àquelas valorações ideológicas que em forma de juízos e conclu‐
sões estão presentes no próprio conteúdo da obra, senão a uma valoração
por meio da forma, que é a mais radical e funda, e se expressa na mesma
modalidade da visão e da disposição do material artístico.
Algumas línguas, o japonês em particular, possuem um rico e diver‐
sificado arsenal específico de formas lexicais e gramaticais que se empre‐
gam estritamente de acordo com a categoria do herói da enunciação (o
protocolo na língua).9
Poderíamos dizer: aquilo que para um japonês é questão gramatical,
para nós é questão de estilo. Os componentes mais importantes do estilo de
uma epopeia heróica, uma tragédia, uma ode etc., determinam‐se justa‐
mente por esta posição hierárquica da enunciação com relação ao falante.
Não se deve considerar que na literatura contemporânea esta de‐
terminação hierárquica recíproca entre criador e herói tenha sido elimi‐
nada: ela se tornou mais complexa, não reflete mais com a precisão pró‐
pria, por exemplo, do classicismo a hierarquia sócio‐política contempo‐
rânea a ela; mas o princípio da variação do estilo em dependência da variação
9 Cfr. A descrição de Kavi [antiga língua de Java] in W. Humboldt, Gesammelte Schrif‐
ten, 1904‐36, vol. II, p. 335, e o manual de língua japonesa de Hoffman, Japan. Sprach‐
lhere, p.75.
92
do valor social do herói da enunciação obviamente permanece o mesmo e con‐
serva a mesma força de antes. O poeta, de fato, não odeia um inimigo pes‐
soal seu, não ama e não lisonjeia um amigo pessoal seu com a forma,
não se alegra ou se aflige por causa dos acontecimentos da sua vida
pessoal. Mesmo se o poeta atingisse uma parte considerável do seu pa‐
thos pelas vicissitudes da sua vida pessoal, deveria generalizar e socializar
este pathos e, consequentemente, deveria trabalhar sobre o evento cor‐
respondente até torná‐lo socialmente significativo.
O segundo aspecto que determina o estilo das correlações existen‐
tes entre o criador e o herói é o grau de proximidade existente entre os
dois. Tal aspecto tem em todas as línguas uma expressão gramatical di‐
reta, ou seja, o emprego da primeira, da segunda e da terceira pessoa, e
a modificação da estrutura da frase conforme o seu sujeito (o eu, o tu, o
ele). A forma que assume um julgamento sobre a terceira pessoa, a for‐
ma empregada, no entanto, em direção a uma segunda pessoa, e, enfim,
aquela usada para falar de si (e as variedades dessas formas) são já dife‐
rentes gramaticalmente. Portanto, na própria estrutura da língua se reflete o
acontecimento da inter‐relação dos falantes.
Em certas línguas, as formas puramente gramaticais são capazes de
transmitir com maior flexibilidade os matizes da inter‐relação social dos
falantes e os diversos graus de sua proximidade. Deste ponto de vista,
interessam as formas do plural em algumas línguas: as chamadas formas
inclusivas e exclusivas. De modo que o falante, ao dizer “nós”, leva em
conta o que lhe escuta, se o inclui no sujeito da enunciação, utiliza uma
forma especial. Mas se pressupõe a si mesmo e a um outro (“nós” no sen‐
tido de “eu” e “ele”), então emprega uma forma diferente. Tal é o uso do
número dual em algumas línguas australianas. Também para o número
ternário existem duas formas particulares: uma delas quer dizer “eu, tu,
ele”, e a outra significa “eu, ele, ele” (o “tu” ouvinte aparece excluído).10
Nas línguas europeias, as relações mencionadas e as semelhantes a
elas não têm uma expressão gramatical específica. O caráter dessas lín‐
guas é mais abstrato e não é capaz de refletir, no mesmo grau, a situação da
enunciação em sua mesma estrutura gramatical. Mas mais que isso, essas in‐
10 Cf. Matthews, Aboriginal Languages of Victoria. Assim mesmo, W,. Humboldt, op.
Cit.
93
ter‐relações encontram suas expressões – e de maneira infinitamente mais
fina e diferenciada – no estilo e na entonação da enunciação: mediante pro‐
cedimentos puramente literários a situação social da criação encontra um
reflexo pleno em sua obra.
Deste modo, a forma de uma obra poética em muitos aspectos se de‐
termina pela maneira como percebe o autor a seu herói, e qual vem a ser o
herói da enunciação. A forma de uma narração objetiva, a forma apelativa (o‐
ração, hino, algumas formas líricas), a forma de autoexpressão (confissão,
autobiografia, forma de declaração lírica, que é a forma lírica principal) se
determinam justamente pelo grau de intimidade entre o autor e o herói. Am‐
bos os aspectos ressaltados – o valor hierárquico do herói e o grau de sua
intimidade com o autor – tomados autônoma e isoladamente, são insufi‐
cientes para definir a forma artística. No jogo, intervém permanentemen‐
te um terceiro participante, o ouvinte (receptor), que modifica a inter‐
relação dos outros dois (o criador e o herói).
Isto acontece porque a inter‐relação do autor e herói jamais se dá
como uma inter‐relação íntima entre dois: a forma sempre leva em conta
um terceiro – o ouvinte, que exerce uma influência importantíssima sobre
todos os aspectos da obra.
De que maneira o ouvinte pode determinar uma obra poética? Neste
caso também temos de distinguir entre dois aspectos principais: primeiro,
o grau de proximidade entre o ouvinte e o autor, e segundo, seu compor‐
tamento em relação ao herói. Para a estética, não há nada mais pernicioso
que subestimar o papel ativo e independente do ouvinte/leitor. Existe uma
opinião, muito difundida, no sentido de considerar o ouvinte em pé de
igualdade com o autor, posto que a posição de um ouvinte competente
deve ser uma simples reprodução da posição do autor. Na realidade, as
coisas não são assim. Pode‐se antes propor um postulado inverso: o ou‐
vinte jamais é igual ao autor. Possui seu lugar próprio, lugar insubstituível
no acontecimento da criação artística. Deve ocupar uma posição especial,
bilateral, neste acontecimento: em relação ao autor e em relação ao herói, e
esta posição determina o estilo da enunciação.
Como percebe o autor a seu ouvinte? No exemplo da enunciação
tomada da vida cotidiana, temos visto em que medida o suposto acordo
ou desacordo do ouvinte estava determinando a entonação. O mesmo
serve também para todos os aspectos da forma. Figuradamente falando, o
94
ouvinte se encontra normalmente junto ao autor, na qualidade de seu ali‐
ado; mas este caso clássico da posição do ouvinte nem sempre ocorre.
Às vezes o ouvinte começa a aproximar‐se do herói da enunciação. A
expressão mais clara e típica disso é o estilo polêmico, que põe no mesmo
plano o herói e o ouvinte. Também a sátira pode envolver o ouvinte, con‐
siderá‐lo como alguém próximo do herói ridicularizado, e não próximo
do autor que o ridiculariza: se trata de uma espécie inclusiva de ridiculariza‐
ção, que se diferencia drasticamente da exclusiva, na qual o ouvinte é so‐
lidário com o autor que ironiza. No romantismo, frequentemente se pode
observar um fenômeno interessante, no qual o autor parece aliar‐se com o
herói contra o ouvinte (F. Schlegel, Lucinda; na literatura Russa, em parte
Um herói de nosso tempo, de Lérmontov).
A percepção do ouvinte pelo autor nas formas da confissão e da auto‐
biografia pode ser muito singular e interessante para uma análise. Todas as
gradações do sentimento, começando por uma piedosa humildade ante o
ouvinte, como se fosse um juiz conhecido diante uma desconfiança desres‐
peitosa e hostil, podem determinar o estilo da confissão e da autobiografia.
Um material extremadamente curioso para ilustrar essa situação pode ser
encontrado na obra de Dostoiévski. O estilo confessional dos “Apontamen‐
tos” de Hipólito em O Idiota está determinado pelo grau extremo de uma
desrespeitosa desconfiança e de hostilidade de todos que escutariam sua
confissão final. Os mesmos tons, só um pouco suavizados, determinam o
estilo das Notas do Subsolo. O estilo da “Confissão de Stavroguin” [de Os
Demônios] manifesta uma confiança e um reconhecimento dos direitos mui‐
to maiores do ouvinte, ainda que também, neste caso, às vezes irrompe um
sentimento próximo ao ódio para com o ouvinte, o qual cria violentas rup‐
turas estilísticas. A loucura santa [iurodstvo; holy foolness], modo de falar de
Jurodivi, uma forma especial de enunciação que se encontra no limite do
artístico, determina‐se antes de tudo por um conflito extremamente com‐
plexo e entrançado entre o falante e o ouvinte.
A forma lírica é especialmente sensível à posição do ouvinte. A condi‐
ção fundamental da entonação lírica é a inquebrantável confiança na simpatia
dos ouvintes. Mas se uma dúvida penetrar na situação lírica, o estilo da lírica
muda violentamente. Este conflito com o ouvinte encontra sua expressão
mais destacada na chamada “ironia lírica” (Heine, na poesia mais recente,
Laforge, Annenski, etc.). Em geral, a forma da ironia está condicionada pe‐
95
lo conflito social: trata‐se de um encontro, em uma mesma voz, de duas
valorações encarnadas e sua interferência mútua, uma interrupção.
Na estética contemporânea se propôs uma especial teoria da tragé‐
dia, a chamada “teoria jurídica”, cuja essência se reduz à tentativa de
compreender a estrutura da tragédia como a de um processo judicial.11
A inter‐relação do herói e o coral, por uma parte, e a posição geral do
ouvinte, por outra, em efeito se sujeitam, até certo ponto, a uma interpreta‐
ção jurídica. Entretanto, trata‐se evidentemente apenas de uma analogia. A
afinidade básica da tragédia, assim como de qualquer obra literária, com
um processo jurídico se reduz apenas à existência das “partes”, quer dizer,
de vários participantes que ocupam diversas posições. As definições de poeta
como “juiz”, “delator”, “testemunha”, “defensor” ou inclusive “carrasco”,
tão difundidas na fraseologia poética (na fraseologia de uma “sátira fusti‐
gante” de Juvenal, Barbier, Nevrásov, etc.) em forma de analogia, manifes‐
tam a mesma base social da poesia. Em todo caso, o autor, o herói e o ou‐
vinte não se fundem nunca em uma unidade indiferente, senão que ocu‐
pam posições independentes; consequentemente são “partes”, porém não
de um processo judicial, senão de um acontecimento artístico com uma
estrutura social específica, cujo “protocolo” vem a ser a obra literária.
Aqui não é necessário esclarecer outra vez que a todo o tempo conce‐
bemos o ouvinte como participante imanente do acontecimento artístico
que determina a forma de uma obra desde seu interior. Este ouvinte é, da
mesma maneira que o autor e o herói, um elemento interno necessário da
obra, e está longe de coincidir com o chamado “público” que se encontra
fora da obra e cujos requerimentos e gostos artísticos podem levar‐se em
conta deliberadamente. Esse tipo de cálculo deliberado não é capaz de de‐
terminar imediata e profundamente a forma artística no processo de sua
criação viva. E mais, se este cálculo deliberado ocupa um lugar minima‐
mente sério na criação de um poeta, esta, inevitavelmente, perderá sua pu‐
reza artística e se degradará até um plano social inferior.
Esse cálculo exterior confirma o fato de que o poeta perdeu seu recep‐
tor imanente, separando‐se daquele todo social que desde o interior, mais além
de toda consideração abstrata, é capaz de determinar suas valorações e a
11 Cf.
O desenrolar mais interessante deste ponto de vista em Hermann Cohen,
Äusthetik des reinen Gefüls, vol. II.
96
forma artística de suas enunciações poéticas, forma que justamente vem a
ser a expressão dessas valorações sociais essenciais. Quanto mais o poeta
está desvinculado da unidade social de seu grupo, tanto mais se inclinará
para levar em conta as exigências externas de um público determinado. So‐
mente um grupo social estranho ao poeta pode exercer desde o exterior um
papel determinante sobre a obra. Seu próprio grupo não cobra semelhante
definição externa; manifesta‐se na própria voz do poeta, em seu tom prin‐
cipal, em suas entonações, queira ou não o próprio poeta.
O poeta obtém as palavras e aprende a entoná‐las ao longo de toda a
sua vida, no processo da comunicação multilateral com seu ambiente soci‐
al. O poeta começa a empregar essas palavras e entonações já no discurso
interior, com cuja ajuda ele pensa e conhece a si mesmo, inclusive quando
não fala. É ingenuidade crer que seja possível assimilar uma fala exterior
que seja divergente de seu próprio discurso interior, com sua maneira in‐
trinsecamente verbal de tomar consciência de si mesmo e do mundo. Se
esta pode ser criada, a propósito de alguma circunstância da vida, sepa‐
rada de todas as fontes que a alimentam, então será incapaz de toda pro‐
dutividade criativa. O estilo de um poeta se origina a partir do estilo de seu
discurso interno, não sujeito ao controle, e este discurso vem a ser o produ‐
to de toda sua vida social. “O estilo é o homem”; e nós podemos dizer: o
estilo são pelo menos dois homens, ou mais exatamente, é o homem e seu
grupo social na pessoa de seu representante ativo – o ouvinte, que é o
participante permanente do discurso interno e externo do homem.
Qualquer ato de consciência minimamente coerente não pode se ma‐
nifestar sem o discurso interior, sem as palavras e sem a entonação, que
são as valorações e, por conseguinte, representa já um ato social, um ato
de comunicação. Inclusive o ato mais íntimo de uma autoconsciência já
representa uma tentativa de traduzir‐se a si mesmo em uma linguagem
comum, de levar em conta o portador das valorações daquele grupo soci‐
al ao qual pertence o portador da consciência. Nesta relação a consciência,
por mais que possamos prescindir de seu conteúdo, já não é apenas um
fenômeno psicológico, mas, acima de tudo, é um fenômeno ideológico, é um pro‐
duto da comunicação social. Este co‐participante permanente de todos os
atos de nossa consciência determina não só seu conteúdo, mas também a
própria seleção do conteúdo (e isto é o mais importante, o principal), a sele‐
ção daquilo que é conscientizado por nós e que, por consequência, deter‐
97
mina aquelas valorações que vão impregnando a consciência, e que a psico‐
logia chama “o tom emocional” da consciência. O ouvinte que determina a
forma artística se origina justamente deste permanente co‐participante
sempre presente em todos os atos de nossa consciência.
Não existe nada mais pernicioso que representar esta sutil estrutura da
criação verbal mediante a analogia com as especulações conscientes e cíni‐
cas de um editor burguês que “leva em conta a conjuntura do mercado
de livros” e da aplicação das categorias do tipo “demanda” e “oferta”
ao descrever os elementos estruturais permanentes da criação artística.
Nas condições da economia burguesa, o mercado de livros, obvia‐
mente, “regula” os “poetas”, mas este fenômeno não deve absolutamen‐
te ser confundido com o papel regulador que tem o ouvinte enquanto
elemento estrutural constante da obra artística. Para um historiador da
literatura da época capitalista, o mercado representa um elemento mui‐
to importante, mas a poética teórica, que pretende estudar a estrutura
ideológica fundamental da arte, não necessita deste fator externo. Entre‐
tanto, a história da literatura não deve confundir a história do mercado
de livros e dos negócios editoriais com a história da poesia.
VII
Todas as situações que temos examinado e que determinam a forma
da enunciação artística, a saber: 1) o valor hierárquico do herói ou do a‐
contecimento que representa o conteúdo da enunciação; 2) o grau de sua
intimidade com o autor; 3) o ouvinte e sua inter‐relação com o autor, por
um lado, e com o herói, por outro. Todas estas situações são pontos de apli‐
cação de forças sociais da realidade extra‐artística da poesia. Graças justamente
a esta estrutura intrinsecamente social, a criação artística está aberta por todos
os lados às influências sociais de outras esferas da vida. Outras esferas ideoló‐
gicas, sobretudo a estrutura sociopolítica, e finalmente a econômica, de‐
terminam a poesia não somente desde o exterior, mas também se apoiando
nestes elementos estruturais interiores. E vice‐versa: a interação artística
do criador, do ouvinte e do herói pode influenciar outras esferas da co‐
municação social.
Para a elucidação plena e multilateral a respeito da tipicidade dos
heróis literários em uma época determinada, é preciso considerar qual
98
seria a orientação formal típica do autor a respeito deles, e como seriam
as inter‐relações, tanto dos heróis quanto do autor, com o ouvinte, na to‐
talidade da criação artística. Isto necessariamente pressupõe uma análise
abrangente das condições econômicas e ideológicas da época.
Estas questões históricas concretas, porém, ultrapassam os limites da
poética teórica, a qual ainda deve encarar outra tarefa importante. Até
agora temos tocado tão somente aquelas situações que determinaram a
forma em sua relação com o conteúdo, isto é, enquanto valoração social
encarnada justamente deste conteúdo, e temo‐nos convencido de que ca‐
da aspecto da forma aparece como produto da interação social. Porém,
também temos evidenciado que a forma deve ser concebida desde outro
ponto de vista: enquanto forma realizada mediante um material determi‐
nado. Isso inaugura uma larga série de problemas relacionados com a téc‐
nica da forma.
Por isso, esses problemas da técnica da forma somente podem estar separa‐
dos dos problemas da sociologia de um modo abstrato: é impossível separar
realmente o sentido artístico de algum procedimento, por exemplo, de uma
metáfora, do conteúdo que expresse sua valoração formal (a metáfora
rebaixa o objeto ou atribui uma importância superior), da definição estri‐
tamente linguística de tal procedimento.
O sentido extralinguístico da metáfora, o reagrupamento dos valores
e seu revestimento linguístico – o deslocamento semântico ‐ não são se‐
não diferentes pontos de vista sobre o mesmo fenômeno. Porém, o se‐
gundo ponto de vista está subordinado ao primeiro: o poeta utiliza a me‐
táfora para reagrupar esses valores, e não para fazer um exercício linguís‐
tico.
Todos os problemas da forma podem ser vistos na relação com o ma‐
terial, neste caso com relação a uma língua compreensível desde o ponto
de vista linguístico; a análise técnica deste modo se reduz a uma questão
de recursos linguísticos mediante os quais se leva ao fim a tarefa sócio‐artística
da forma. Porém, a análise técnica se torna absurda caso não se leve em
conta essa tarefa e não se assimile previamente seu sentido.
As questões da técnica da forma, por isso, estão além dos alcances do
problema que temos colocado. Além disso, sua elaboração pressupõe
uma análise infinitamente mais diferenciada e aprofundada do aspecto
99
artístico‐social da poesia; por sua vez, aqui temos tão somente consegui‐
do indicar fugazmente as direções principais de uma análise como esta.
Se demos conta de mostrar ao menos uma possibilidade de um enfo‐
que sociológico da estrutura artística imanente à forma poética, conside‐
ramos cumprida nossa tarefa.
100
AS MAIS RECENTES TENDÊNCIAS DO PENSAMENTO
LINGUÍSTICO OCIDENTAL
Nos últimos tempos na Europa Ocidental os problemas da filosofia
da linguagem vêm sendo enfrentados com uma insólita seriedade e
agudeza. Pode‐se dizer que a filosofia burguesa contemporânea começa
a se desenvolver sob o signo da palavra, pela qual essa nova tendência
do pensamento filosófico ocidental está ainda nos inícios. Em torno da
palavra e de seu lugar sistemático está‐se desenrolando uma batalha
vivaz de que se pode encontrar alguma coisa de análogo somente na
discussão medieval sobre o realismo, nominalismo e conceitualismo.
Na própria linguística, depois da suspeitosa postura positivista para
uma desejável colocação coerente dos problemas científicos e depois da
hostilidade, característica do positivismo posterior, para tudo o que
exigisse uma visão de mundo, desperta‐se para uma escuta consciente
da própria premissa filosófica geral e dos próprios vínculos com os
outros campos do conhecimento. Em consequência, compartilha‐se uma
sensação de crise, percebendo‐se a linguística como incapaz de
satisfazer todas essas exigências.
Este artigo1 se propõe a caracterizar as principais tendências da
filosofia da linguagem ocidental a nós contemporânea.
Não é absolutamente fácil tentar definir qual é o efetivo objeto da
filosofia da linguagem. Cada vez que tentamos delimitar o objeto de
indagação e aproximar‐nos para reduzi‐lo a um complexo material
objetivo compacto, definido e observável, foge‐nos a própria essência
do objeto em exame, a sua natureza sígnica e ideológica. Se, por
exemplo, isolamos o som, enquanto fenômeno puramente acústico, não
teremos a linguagem como objeto específico. O som entra inteiramente
no campo de competência da física. Ainda que lhe acrescentemos o
processo fisiológico da produção do som e o processo da sua percepção
sonora, não nos avizinhamos de qualquer maneira deste objeto. Se
1 Este artigo é um resumo feito pelo próprio autor de três capítulos do livro Marxismo e
Filosofia da Linguagem (1929) [Nota da tradução italiana, posta ao final do parágrafo
precedente.]
101
reunirmos a experiência (os signos interiores) do falante e do ouvinte,
obteremos dois processos psico‐físicos que se desenvolvem em dois
sujeitos psico‐fisiológicos distintos e um complexo sonoro físico que se
realiza na natureza segundo as leis da física. Não temos ainda a
linguagem como objeto específico de exame e, no entanto, já abraçamos
três esferas da realidade objetiva – aquela da física, aquela da fisiologia
e aquela da psicologia – e obtivemos um complexo bastante elaborado e
compósito. Este complexo perde, porém, seu elemento unificador; suas
partes singulares são simplesmente postas uma ao lado da outra, mas
não estão reunidas neste complexo as regras internas que o
transformam no fenômeno da linguagem.
Que outros elementos teremos que juntar a este complexo que já
por si é assim compósito?
Acima de tudo, devemos inserir esse complexo num complexo
ainda mais vasto, que o compreende, ou seja, na esfera unitária da
relação comunicativa social organizada. Para poder observar o processo
de combustão, temos que colocar o corpo num ambiente em que haja ar.
Para poder observar o fenômeno da linguagem é necessário colocar
tanto o produtor quanto o receptor do som e o próprio som numa
atmosfera social. É necessário enfatizar que tanto o falante quanto o
ouvinte pertençam a mesma comunidade linguística, ou seja, que se
encontrem face a face dentro de um campo específico. A troca
comunicativa verbal é possível somente num campo específico, por
mais genérico e ocasional que possa ser esse campo comum.
A unidade do ambiente social e a unidade do acontecimento imediato da
troca comunicativa são condições absolutamente necessárias para que o
complexo físico‐psico‐fisiológico que indicamos possa entrar em relação
com a língua, a linguagem, e possa tornar‐se um fato de linguagem.
Dois organismos biológicos num ambiente exclusivamente natural não
gerarão nenhum fato linguístico.
Como resultado de nossa análise, em vez de conseguir delimitar o
objeto da pesquisa, nós o tornamos excepcionalmente complexo e
amplo.
O ambiente social organizado no qual inserimos nosso complexo e a
situação social imediata da troca comunicativa são, por si sós,
extremamente complexos, ricos de liames multiformes e muito diversos,
102
não todos igualmente necessários para a compreensão dos fatos
linguísticos, nem são todos fenômenos constitutivos da linguagem.
Enfim, esse complexo multiforme de fenômenos e de relações, de
processos e de objetos, precisa ser reduzido a um denominador comum,
fazendo todas suas linhas convergirem para um único centro: o ponto
focal do processo linguístico.
Quais tentativas foram feitas pela filosofia da linguagem e pela
linguística em geral para resolver esse problema e quais pedras
milenares, graças às quais poderemos conseguir as melhores
orientações, já estão fixadas na estrada que caminha para sua solução?2
Na filosofia da linguagem e nos setores metodologicamente
correspondentes da linguística geral, observamos duas tendências
fundamentais na solução do nosso problema, ou seja, do problema da
evidenciação e delimitação da linguagem como objeto específico de estudo. Isto
obviamente implica uma divergência radical dessas duas tendências,
talvez sobre todos os outros problemas conexos à ciência da linguagem.
A primeira tendência da ciência da linguagem pode ser chamada de
subjetivismo individualista, e a segunda, objetivismo abstrato3.
2 São poucos os trabalhos em história da filosofia da linguagem e, de costume, ela é
examinada juntamente com a história da linguística em geral: Th. BENTEG, Geschichte
der Sprachwissenschaft, 1869; STEINTHAL, Geschichte der Sprachwissenschaft bei den
Griechen und Römern, 1890. Existem ainda monografias sobre pensadores e linguistas
singulares (Humbolt, Wundt, Marty, etc.). No momento, o leitor tem à disposição um
trabalho alentado de história da filosofia da linguagem, o livro de ERNEST
CASSIRER, Philosophie der symbolischen Formen. Erster Teil: die Sprache, 1923, cap I “Das
Sprachproblem in der Geschichte der Philosophie, p. 55‐120. Em língua russa um
breve, mas fundamental, ensaio sobre a situação contemporânea da linguística e da
filosofia da linguagem aparece em R. Schor, no artigo “Krizis sovremennoj lingvistiki”,
Jafetischeskoj sbornik [Crise da linguística contemporânea. Recolha javética]. Uma
resenha geral, longe de ser completa, dos trabalhos em sociologia da linguística
aparece no artigo de M. N. PETERSON, “Jazyk kak social’noe javlenie”, Ulshennye
zapiski Instituta jazyka i literatury‐RANION [A língua como fenômeno social. Relatórios
científicos do Instituto de Linguística e Literatura RANION], 1927, p.3‐21.
3 Ambas as denominações, como sempre nestes casos, estão bem longe de ser precisas
e não cobrem a plenitude e a complexidade da tendência a que se dá o nome. Como
veremos, é particularmente inadequada a denominação da primeira tendência.
103
A primeira tendência considera como base da linguagem (entendido
como o conjunto de todos os fenômenos linguísticos sem exceção) o ato
criativo individual do discurso. A psique individual é por isso a fonte
do signo. As leis da criatividade linguística – e a linguagem é alguma
coisa em perene formação, criação – são as leis da psicologia individual:
é próprio que essas leis sejam estudadas pela linguística e pela filosofia
da linguagem. Explicar um fenômeno linguístico significa reduzi‐lo a
um ato de criação individual significativa (frequentemente deveras
sensato). Todo o resto do trabalho do linguista não tem mais do que
valor preparatório, de constatação, de descrição e de classificação e não
serve para outra coisa que não seja preparar uma interpretação do
fenômeno linguístico em termos de ato criativo individual ou servir
para fins práticos do ensino de uma língua.
A linguagem, vista sob esta ótica, é análoga aos outros fenômenos
ideológicos, em particular à arte, à criatividade estética.
As principais concepções sobre a linguagem da primeira tendência
podem ser condensadas nos seguintes quatro princípios fundamentais:
1) A linguagem é atividade, é um processo contínuo de criação
(energia) realizado por enunciações individuais.
2) As leis da criatividade linguística são as leis da psicologia
individual.
3) A atividade da criatividade da linguagem é uma atividade
consciente, análoga àquela da criatividade artística.
4) A língua como produto pronto (ergon), como sistema linguístico
fixo (vocabulário, gramática, fonética) representa a camada necrosada, a
lava endurecida da criatividade da linguagem e é abstratamente
construída pela linguística com o escopo de permitir um ensino da
língua como instrumento já constituído.
O representante mais significativo desta primeira tendência, aquele
que lhe deu os fundamentos é Wilhelm von Humboldt4
O potente pensamento de Humboldt obviamente ultrapassa os
âmbitos das quatro posições basilares de nossa exposição, pois é muito
amplo, complexo e contraditório, e por isso Humboldt pode se tornar
4 Seus predecessores nesta tendência foram Hamann e Herder.
104
fonte de duas tendências extremamente distantes uma da outra; todavia
o núcleo fundamental da sua teoria representa a expressão mais forte e
mais profunda dos aspectos fundamentais da primeira tendência como
a caracterizamos5.
Os mais importantes representantes da primeira tendência na
literatura linguística russa são Potebniá e seus discípulos6.
Os representantes sucessores dessa tendência não alcançaram a
profundidade e a síntese filosófica de Humboldt.
Essa tendência se torna ainda mais acanhada quando da passagem a
procedimentos positivistas e superficialmente empiristas. Já em
Steinthal não se encontra mais a abertura humboldtiana. Ao invés,
substitui‐a por uma maior precisão e sistematicidade metodológica. Os
princípios fundamentais desta primeira tendência tornam‐se
excepcionalmente pobres e limitados no psicologismo de Wundt e de
5 Humboldt expressa suas ideias de filosofia da linguagem no trabalho Uber die
Versheidenheiten des menschlichen Sprachbaues (Vorstudie zu Einleitung zum Kawirerk),
Gesemm. Schriften (Academie‐Ausgale), VI. Existe uma antiquíssima tradução russa de
P. BILIJARSKIJ, O raxlischii organizmov shelevesheskogo jazyka (Sobre a diferença dos
organismos da linguagem humana), 1859. Existe uma literatura vastíssima sobre
Humboldt. Citaremos o livro de R. Haym, Wilhelm von Humboldt, disponível em
tradução russa. Entre pesquisas mais recentes, pode‐se citar o livro de ED.
SPRANGER, Wilhelm von Humboldt, Berlim, 1909.
O leitor poderá encontrar notícias sobre Humboldt e sobre seu significado para o
pensamento linguístico russo no livro de B. M. Engelhardt, A. N. Vesselovski,
Petersburgo 1923. Recentemente saiu o interessante e arguto livro de G. Spätt,
Vnutrennai forma slóva (etiúdi e variatsii na tiému Gumboldta) [A forma interna da fala
(estudos e variações sobre o tema de Humboldt]. Ele procura reconstruir a figura autêntica e
original de Humboldt, libertando‐a dos estratos em que a deixaram as interpretações
tradicionais (existem algumas interpretações tradicionais de Humboldt). A concepção
de Spätt, muito sugestiva, demonstra um retorno ao que de complexo e contraditório foi
Humboldt. Suas mudanças sobre o tema são um tanto livres.
6 O principal trabalho filosófico de Potebniá é Mysl’i jazyk (O pensamento e a
105
seus discípulos. Nos dias atuais, todavia, o subjetivismo individualista
readquiriu um grande significado com a escola de Vossler (a
considerada “Idealistsche Neuphilologie)7.
A escola de Vossler se define antes de tudo pela sua decidida recusa
do positivismo linguístico que não vê além da forma linguística
(essencialmente a fonética, porquanto a mais “positiva”) e do elementar
ato psico‐fisiológico da sua produção8. Em consequência, traz para o
primeiro plano o aspecto ideológico significativo da linguagem. O
motor principal da criatividade linguística é o “gosto linguístico”, uma
variante particular do gosto artístico. O gosto linguístico representa a
verdade de quem vive a linguagem e que deve ser individualizada pelo
linguista em cada fenômeno da linguagem com o escopo de captar e
interpretar efetivamente aquele dado fenômeno. Somente a
individualização estilística da linguagem numa enunciação concreta será
histórica e criativamente produtiva. É o peculiar que dirige a formação
da linguagem, que em seguida se sedimenta na forma gramatical: tudo o
que se torna um fato gramatical foi antes um fato estilístico9.
Entre os representantes contemporâneos desta primeira tendência
da filosofia da linguagem é preciso ainda nominar o filósofo e
7 Karl Vossler, Leo Spitzer, E. Lerch, Lorck, etc.
8 À crítica do positivismo linguístico é dedicado o primeiro e fundamental trabalho
filosófico de Vossler, Positivismus und Idealismus in der Sprachwissenschaft, Heidelberg, 1904.
9 Os principais trabalhos filosófico‐linguísticos de Vossler, além do volume citado,
estão recolhidos em Philosophie der Sprache, 1926, o último livro de Vossler. Ele
apresenta uma ideia completa da sua concepção filosófica e linguística. Entre seus
trabalhos linguísticos, característicos do método vossleriano, citamos o seu Frankreichs
Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung, 1913. O leitor encontrará uma bibliografia
completa de Vossler (falecido em 1922) na recolha Festschrift für K. Vossler (1922) a ele
dedicada. Existem dois artigos seus traduzidos para o russo: “Grammatika i istoria
jazyka” [Gramática e história da língua], Logos, I, 1910 e “Istoria jazyka i istoria
literatury” [História da língua e história da literatura]. Ambos dão uma ideia básica
da concepção vossleriana. Na literatura linguística russa, as ideias de Vossler e de
seus discípulos não foram submetidas a nenhum juízo crítico. Algumas indicações,
entretanto, são dadas no artigo de V. M. Jirmunsky sobre a ciência literária alemã
contemporânea (Poetika, III, 1927, Academia). No ensaio de R. Schor por nós citado se
faz referência à escola de Vossler somente numa nota de pé de página.
106
historiador da arte italiano Benedetto Croce10. Suas ideias são, em muitos
aspectos, vizinhas àquelas de Vossler. Também para ele a linguagem é
um fenômeno estético. O termo chave fundamental da sua concepção é
expressão. Qualquer expressão é fundamentalmente artística. Disto
deriva que a linguística enquanto ciência da expressão par
excellence11coincide com a estética. Disto deriva que também para Croce
a enunciação individual é o fenômeno fundamental da linguagem.
Passemos a dar a característica da segunda tendência do
pensamento da filosofia da linguagem: o objetivismo abstrato.
O centro organizador de todos os fenômenos linguísticos, aquele
que se torna objeto específico de uma ciência particular da linguagem,
desloca‐se para um fator absolutamente diverso: o sistema linguístico
como sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua.
De fato, a diferença existente entre a primeira e a segunda tendência
é claramente ilustrada no que segue: a forma idêntica a si mesma que
constitui o sistema imóvel da língua (ergon) era, para a primeira
tendência, somente a crosta necrosada do real processo de formação
linguística, da verdadeira essência da linguagem, que se realiza com um
ato criativo individual irrepetível.
Para a segunda tendência, é este próprio sistema de formas idênticas a
si mesmas que representa a essência da linguagem; a interpretação e a
variação criativa individual das formas linguísticas são para esta tendência
somente um produto residual da vida linguística, ou melhor, da
imobilidade estatuária do linguístico, são somente variações
10 Existe uma tradução russa da primeira parte da Estética de Croce: Estetica como
scienza dell’espressione e linguística generale, Moscou, 1920. Já nesta primeira parte do
livro estão expostas as ideias gerais de Croce sobre língua e sobre linguística. [N.T.]
Há tradução para o português do Brasil de várias obras de Benedeto Croce.
11 Em francês no original. A tradutora aproveita a oportunidade para assinalar que todos
os termos estrangeiros presentes no texto são tais como estão no original e que a
tradutora escrupulosamente não utilizou por sua iniciativa qualquer termo estrangeiro
nem qualquer barbarismo ainda que comumente aceito na língua italiana. Fizemos
algumas exceções para alguns eslavismos, os quais, caso não registrados em algum
dicionário da língua italiana, foram anotados e explicados. Isto foi feito na esperança de
contribuir, no limite da modesta possibilidade do tradutor, para uma maior legibilidade
e clareza do texto. [Nota do tradutor para o italiano, Rita Bruzesse].
107
imperceptíveis e inúteis da imutabilidade tonal fundamental da forma
linguística.
O modo de ver da segunda tendência pode ser resumido, de forma
geral, nos seguintes princípios fundamentais:
1) A língua é um sistema fixo e imutável de formas linguísticas
normativamente idênticas que a consciência individual encontra já
pronta e que não pode contestar.
2) As leis da língua são leis linguísticas precisas que regulam o
vínculo entre os signos linguísticos ao interior do sistema linguístico
fechado. Essas leis são objetivas para qualquer consciência subjetiva.
3) Os vínculos linguísticos específicos não têm nada em comum
com os valores ideológicos (artísticos, cognitivos, etc.). Nenhuma
motivação ideológica está na base dos fenômenos da língua. Entre a
palavra e seu significado não existe nenhum liame natural e
compreensível para a consciência, nem qualquer vínculo artístico.
4) As enunciações individuais representam para a língua somente
refrações e variações individuais casuais ou simplesmente alterações da
forma normativamente idêntica; é próprio destas variações explicarem a
variação histórica da forma linguística, que enquanto tal, pelo sistema
da língua, é irracional e insensata. Entre o sistema da língua e sua
história não existe qualquer vínculo nem qualquer comunhão de
motivações. Sistema e história são estranhos um ao outro.
O leitor notará que os quatro princípios que acabamos de formular
da segunda tendência da filosofia da linguagem são a antítese dos
quatro princípios correspondentes da primeira tendência.
Examinar a vida histórica da segunda tendência é muito mais difícil.
Não há nela, nos inícios de nossa época, um representante ou um
fundador parecido em importância com W. Humboldt. É preciso
aproximar‐se das raízes desta tendência no racionalismo do século XVII
e XVIII. Essas raízes se fundam no terreno cartesiano12.
12 O profundo laço interno da segunda tendência com o pensamento cartesiano e com a visão
de mundo geral do neoclassicismo, com seu culto da forma autônoma, racional e fixa, não
pode ser posto em dúvida. Ainda que o próprio Descarte não tenha escrito nenhum
trabalho de filosofia da linguagem, em suas cartas fez declarações significativas a este
respeito. Observe‐se o primeiro capítulo do trabalho já citado de Cassirer, p. 67‐8.
108
A ideia da segunda tendência encontra sua primeira e claríssima
expressão em Leibniz na sua concepção da gramática universal13.
Característica de todo o racionalismo é a ideia de convenção, da
arbitrariedade da linguagem e não menos característica é a comparação do
sistema da língua com o sistema de signos matemáticos. Não a relação do
signo com a realidade objetiva refletida ou com o indivíduo que a
produziu, mas a relação entre signos, e do signo com o interior de um sistema
fechado, aceito e admitido definitivamente por todos, é que interessa aos
racionalistas, dada sua inclinação para a matemática. Em outras
palavras, eles estão interessados somente na lógica interna do próprio
sistema dos signos, fechado, como em álgebra, independentemente dos
significados ideológicos de que estão carregados. Os racionalistas
podem, no limite, ter considerado o ponto de vista do ouvinte, mas não
consideraram absolutamente o ponto de vista do falante enquanto
aquele que expressa sua vida interior. De fato, o signo matemático não
pode ser absolutamente considerado como expressão da psique
individual e o signo matemático era para os racionalistas o modelo ideal
de qualquer signo, incluído aí o signo linguístico.
É necessário notar neste ponto que o primado do ponto de vista do
ouvinte relativamente ao falante permanece uma característica constante
da segunda tendência. Disto deriva que nesta tendência não é possível
colocar os problemas da expressão e em consequência o problema da
formação do pensamento e da psique subjetiva na palavra (um dos
problemas fundamentais da primeira tendência).
Numa forma mais simplificada, a ideia da língua como sistema de
signos convencionais, arbitrários, fundamentalmente racionais, foi
elaborada no século XVIII por representantes do Iluminismo.
Nascida em solo francês, a ideia do objetivismo abstrato é até hoje
prevalecente essencialmente na França14.
13 As opiniões de Leibniz a este propósito podem ser conhecidas lendo o livro
fundamental de Cassirer, Leibiniz’ System in seinen wissenschaftlichen Grundlagen,
Marburg, 1902.
14 É interessante notar que a primeira tendência, diferentemente da segunda, difundiu‐
se principalmente na Alemanha.
109
A mais clara expressão do objetivismo abstrato nos dias atuais é
representada pela chamada “Escola de Genebra” de Ferdinand de
Saussure (hoje já falecido)15. Os representantes desta escola, sobretudo
Charles Bally, são os maiores linguistas contemporâneos.
A escola de Vossler é tão impopular na Rússia quanto é popular e
influente a escola de Saussure. Pode‐se dizer que a maioria dos
representantes de nosso pensamento linguístico sofreu influência
determinante de Saussure e de seus discípulos Bally e Séchehaye16.
Saussure parte da distinção de três aspectos da língua: a linguagem
(langage), a língua como sistema de formas (langue) e o ato individual
do discurso‐enunciação (parole). A língua (no sentido de sistema de
formas) e o ato de fala são os elementos constitutivos da linguagem,
compreendidos juntos todos os fenômenos físicos, fisiológicos e
psicológicos sem exceção que tomam parte na realização da atividade
verbal. A linguagem (langage) não pode, segundo Saussure, ser objeto
de estudos da linguística. Tomada em si mesma, está privada de uma
unidade interior e de uma regularidade autônoma e independente. É
necessário partir da língua (langue) como sistema de formas
normativamente idênticas e depois iluminar todos os fenômenos da
linguagem baseando‐se sobre esta forma fixa e autônoma (que tem suas
próprias leis).
Depois de ter distinguido a língua da linguagem – esta
compreendida como todas as manifestações da potencialidade verbal,
15 O principal trabalho de Saussure foi publicado depois de sua morte, a cuidado de
seus discípulos: Cours de linguistique general [Curso de Linguística Geral], 1916,
[tradução italiana de T. de Mauro, Bari, 1967, ’68, ’69, ’70, ‘72]. As citações são da 2ª
Edição, de 1922. Pode‐se encontrar uma breve exposição da teoria de Saussure no
artigo já citado de Schor e no artigo de Peterson, “Óbchtchaia Lingvistika” [Linguística
geral] in. Imprensa e Revolução, 1923, VI.
16 No espírito da escola de Genebra foi construído o trabalho de R. Schor, Jazyk i
obscestvo [Linguagem e Sociedade], Moscou, 1926. R Schor já no artigo “Krizis
sobremennnoj lingvistiki”, já citado, se revela um ardente apologista das principais
ideias de Saussure. Segue esta escola de Genebra também V.V. Vinogradov. As duas
escolas linguísticas russas, a escola de Fortunatov e a considerada escola de Kazan
(Krushevski e Baudouin de Courtnay) são uma clara expressão do formalismo
linguístico e pertencem ao âmbito da segunda tendência linguística por nós descrita.
110
sem exceção –, Saussure distingue a língua também dos atos individuais
de fala (parole).
“A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o
indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação e a
reflexão nela intervém somente para a atividade de classificação, da
qual trataremos na p.142 ss.
A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência no
qual convém distinguir: 1.º, as combinações pelas quais o falante
realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento
pessoal; 2.º, o mecanismo psico‐físico que lhe permite exteriorizar essas
combinações17.”
O ato de fala não pode ser objeto da linguística, tal como a entende
Saussure. Elementos linguísticos no ato de fala são somente as formas
normativamente idênticas da língua aí presentes. Todo o resto é
“acessório e casual”.
Sublinhemos a tese fundamental de Saussure: a língua está para o ato
de fala assim como o social está para o individual. O ato de fala é, portanto,
totalmente individual. Isto, como reveremos, constitui o proton pseudos
de Saussure e de toda a tendência do objetivismo abstrato.
O ato individual de fala, a expressão, assim decididamente excluído
da linguística, retorna, todavia, como fato indispensável na história da
língua. Esta última vem, em Saussure, decididamente contraposta, no
espírito desta segunda tendência, à língua como sistema sincrônico. Na
história, domina o “ato de fala” com a sua individualidade e
casualidade, por isso a história é regulada por um sistema de leis
completamente diferente daquele que regula o sistema da língua.
A concepção que Saussure tem da história é extremamente
característica do espírito do racionalismo, que até hoje predomina na
segunda tendência do pensamento filosófico‐linguístico, para o qual a
história é um elemento irracional que deturpa a pureza lógica do
sistema linguístico. Saussure e sua escola não representam a única
17 De Saussure, Curso de Linguística Geral, cit. p. 30 (trad. Italiana p.23‐24) [tradução
brasileira p. 22]
111
expressão do objetivismo abstrato de nossos dias. Junto a esta se perfila
outra, aquela da escola sociológica de Durkheim, representada na
linguística pela figura de Meillet.
Ao tentar resolver o problema da individuação e definição do objeto
específico de pesquisa, encontramo‐nos diante de duas séries de
respostas diametralmente opostas: a tese do subjetivismo individualista
e a sua antítese, objetivismo abstrato18.
Qual é, na verdade, o centro da atividade linguística: o ato
individual de discurso ‐ ou seja, a expressão ‐ ou o sistema da língua? E
qual é a forma desta realidade objetiva da atividade linguística: a
ininterrupta formação criativa ou a imutabilidade inerte da forma
idêntica a si mesma?
Até aqui, buscamos dar uma representação absolutamente objetiva
das duas tendências da filosofia da linguagem. A seguir, devemos fazer
uma análise crítica aprofundada. Somente depois poderemos responder
à pergunta que formulamos aqui.
Comecemos com a análise crítica da segunda tendência, aquela do
objetivismo abstrato19.
Antes de tudo, devemos perguntar: em que medida o sistema da
norma linguística idêntica a si mesma, tal como concebido pelos
representantes da segunda tendência, pode ser considerado real?
Nenhum dos representantes do objetivismo abstrato atribui,
obviamente, ao sistema da língua uma realidade objetiva, mas, como
sistema de formas normativamente idênticas, tem uma realidade
somente como forma social. Os representantes da segunda tendência
sublinham constantemente – e isso é um de seus princípios
fundamentais – que o sistema da língua representa para qualquer
consciência individual um fato objetivo externo, independente desta
18 No âmbito das duas tendências por nós indicadas, não expusemos, obviamente,
muitas escolas e tendências do pensamento linguístico, alguns dos quais, como por
exemplo o fenômeno dos “neogramáticos” cujos pilares coincidem parcialmente com
a primeira tendência, são muito significativos.
19 [N.T.] Na versão em italiano, aparece aqui “primeira tendência”, o que pode ser tanto
um problema de tradução quanto um problema de engano no original. Optamos pela
lógica da exposição do texto, mantendo o objetivismo abstrato como a segunda
tendência.
112
consciência. Mas de fato representa um sistema de formas imutáveis e
idênticas a si mesmas somente para a consciência individual e somente
do ponto de vista desta consciência.
Em efeito, se se mantém um ponto de vista verdadeiramente
objetivo, buscando ver a língua independentemente de como aparece
num dado indivíduo falante num dado momento, ela se apresenta como
um fluxo ininterrupto devido a um processo contínuo de transformações. Se se
observa a língua de modo objetivo, não existe um momento real em que
não se possa construir um sistema sincrônico.
Esse sistema sincrônico da língua existe, no melhor dos casos,
somente para a consciência subjetiva de um falante pertencente a um
determinado grupo linguístico num determinado momento do período
histórico. De um ponto de vista objetivo, tal sistema não existe em nenhum
momento real do período histórico. Podemos admitir que, para César, no
momento em que ele escrevia sua obra, o latim se afigurava a um
sistema imutável, incontestável de formas idênticas a si mesmas, mas a
história da língua latina, no momento mesmo em que César trabalhava,
estava desenvolvendo um processo de transformações linguísticas (não
importa que o momentâneo logre ou não se fixe com precisão).
Se disséssemos que a língua como sistema de normas incontestáveis
e imutáveis existe objetivamente, cometeríamos um erro grosseiro; mas
se disséssemos que a língua relativamente a uma consciência individual
representa um sistema de normas incontestáveis e imutáveis e que tal é
seu modo de existir para qualquer membro de uma comunidade
linguística, exprimiríamos com isso uma relação objetiva. Um outro
problema é estabelecer, depois, se efetivamente para a consciência do
falante da língua é somente um sistema imutável e estático de normas.
Por enquanto, deixemos esse problema em aberto. Em qualquer caso, a
questão é fixar uma relação objetiva qualquer.
Que posição têm a esse respeito os próprios representantes do
objetivismo abstrato?
A maioria deles está inclinada a afirmar a realidade não mediata, a
objetividade não mediata da língua como sistema de formas normativamente
idênticas. Nas mãos desses representantes da segunda tendência, o
objetivismo abstrato, assim, é decisivamente transformado num
objetivismo abstrato hipostasiado. Outros representantes dessa mesma
113
tendência (por exemplo, Meillet) são mais críticos e se dão conta do
caráter abstrato e convencional do sistema linguístico. Todavia, nenhum
dos representantes do objetivismo abstrato elabora uma concepção clara
e distinta do tipo de realidade que é inerente à língua como sistema
objetivo.
Além disso, porém, devemos perguntar: existe efetivamente, para a
consciência subjetiva do falante, a língua como sistema objetivo de
formas incontestáveis e normativamente idênticas? Ou, em outras
palavras, é efetivamente este o modo de ser da língua na consciência
linguística subjetiva?
A esta pergunta devemos dar uma resposta negativa. A consciência
subjetiva do falante não usa a língua mesma como sistema de formas
normativamente idênticas. Este sistema é somente uma abstração,
obtida com enorme esforço, que tem um escopo cognitivo prático
preciso. O sistema abstrato da língua é o produto de uma reflexão feita
sobre a linguagem, mas não pela consciência do falante nativo e nem
com o objetivo direto de falar.
Na realidade, o falante centra‐se sob aquela enunciação concreta que
ele está pronunciando. O centro de gravidade para ele não está na
identidade da forma, mas no novo e concreto significado que esta
identidade adquire naquele dado contexto. De fato, para o falante, a forma
linguística não é importante enquanto sinal fixo e igual a si mesmo, mas
enquanto signo sempre mutável e flexível.
O falante deve considerar o ponto de vista daquele que escuta e
compreende. Não poderia se dar que é neste ponto que entra em vigor a
identidade normativa da forma linguística?
Não é de fato assim. O trabalho principal da compreensão não
coincide de fato no reconhecer na forma linguística usada pelo falante
uma forma conhecida, “idêntica”, assim como às vezes se reconhece um
sinal não muito habitual ou uma palavra de uma língua pouco
conhecida. Fundamentalmente o trabalho da compreensão não coincide
com o reconhecimento da forma aplicada, mas o que é próprio para sua
compreensão naquele dado contexto concreto, com a compreensão daquela
forma naquela dada enunciação, ou seja, com a compreensão de sua
novidade e não com o reconhecimento da sua identidade.
114
Em outras palavras, também o ouvinte, pertencente à mesma
comunidade linguística, não considera uma dada forma linguística um sinal
fixo, idêntico a si mesmo, mas um signo mutável e flexível.
É necessário não confundir, absolutamente, o processo de
compreensão com o processo de reconhecimento. Eles são profundamente
diversos. Somente o signo pode ser compreendido, enquanto o sinal é
reconhecido. O sinal é algo isolado, internamente imóvel, que não está à
disposição de nenhuma outra coisa, não reflete nem refrata um objeto
(determinado e fixo) ou uma ação (também essa determinada e fixa)20.
Se uma forma verbal fosse somente um sinal e como sinal viesse a
ser reconhecida pelo ouvinte, não representaria para este uma forma
linguística. Não existe uma sinalidade pura sequer nos primeiros
estágios de ensino de uma língua. Também nesse caso a forma é
enquadrada no contexto e representa um signo, ainda que o objeto
correlativo de identificação esteja presente no momento do emprego do
signo ou que emprego e identificação se dêem ao mesmo tempo.
Obviamente não é necessário deduzir disto tudo que na língua não
existam o momento da codificação – ou signalização ‐ e o seu
correlativo, o da identificação. Existem, mas para a língua enquanto tal
não são essenciais. São dialeticamente cancelados, absorvidos face à
qualidade do signo (isto é, da linguagem enquanto tal).
A consciência linguística do falante e do ouvinte‐receptor, no
trabalho linguístico prático, vivo, nada tem a ver com o sistema abstrato
das formas normativamente idênticas da língua, mas com a linguagem
entendida como conjunto de possíveis contextos de utilização de uma
dada forma linguística. A palavra para um falante, na sua língua
materna, não é uma voz do dicionário, mas uma palavra utilizada nas
mais variadas enunciações do interlocutor A, do interlocutor B, do
interlocutor C e assim por diante, e nas mais variadas enunciações do
próprio falante. A isto é necessário acrescentar ainda uma observação
essencial. A consciência linguística dos falantes substantivamente nada
20 Karl Bühler, em seu artigo “Von Wesen der Syntax”, in. Festschrift für Karl Vossler,
distingue com inteligência e agudez os sinais e a combinação de sinais (por exemplo
aquele de uso dos marinheiros) e a forma linguística e as combinações das formas
linguísticas, ligadas com o problema da sintaxe (p.61‐69)
115
tem a ver com a forma linguística enquanto tal, nem com a língua
enquanto tal.
Na realidade, a forma linguística emerge para o falante somente
num contexto preciso de enunciação, em consequência emerge num
contexto ideológico preciso. Em substância, nós não escutamos nem
pronunciamos uma palavra, mas escutamos uma verdade ou uma
mentira, algo bom ou cativante, útil ou inútil, agradável ou
desagradável etc. A palavra preenche‐se de um conteúdo ou de um
significado ideológico ou cotidiano. Como tal, nós a recebemos e
respondemos somente à palavra que compreendemos no plano da
ideologia ou do quotidiano.
O critério de correção nós o aplicamos a uma enunciação somente
em casos anormais ou especiais (por exemplo, no ensino de uma
língua). Normalmente o critério de correção linguística vem
acompanhado de critério puramente ideológico: a correção de uma
enunciação vem eclipsada pela sua verdade ou falsidade, pela sua
poeticidade ou banalidade e assim por diante21.
Ter estabelecido uma separação entre a língua e o seu conteúdo ideológico é
um dos erros mais graves do objetivismo abstrato.
Em suma, o modo de ser efetivo da língua para a consciência dos
falantes nativos não é absolutamente aquele de um sistema de formas
normativamente idênticas. Se se parte da visão do falante, da prática
real da comunicação social, não existe um caminho direto que leve ao
sistema da língua do objetivismo abstrato.
O que representa esse sistema? Desde o início, fica claro que esse
sistema foi obtido por abstração e que ele se compõe de elementos
isolados abstratamente da unidade real do fluxo linguístico, ou seja, da
enunciação. Qualquer abstração, para ser legítima, deve ser justificada
por um objetivo preciso, seja teórico ou prático. A abstração pode ser
produtiva ou improdutiva, ou pode ser produtiva para alguns objetivos
e improdutiva para outros.
21 Sob essa base, como veremos em seguida, não se pode estar de acordo com Vossler,
que admite a existência de um gosto linguístico distinto e separado, que não
coincidirá com um gosto ideológico específico, ou seja, artístico, cognitivo, ético etc.
116
Quais escopos estão na base da abstração linguística que leva ao
sistema sincrônico da língua? De que ponto de vista esse sistema pode
ser considerado produtivo e necessário?
Na base desses métodos do pensamento linguístico que levam à
criação da língua como um sistema de formas normativamente
idênticas, está um interesse prático e teórico pelo estudo da língua
estrangeira, morta e conservada nos documentos literários.
É necessário sublinhar com muita clareza que essa orientação filológica
condicionou fortemente todo pensamento linguístico europeu. Este
pensamento se formou e amadureceu sobre os cadáveres da língua
escrita; quase todas as categorias fundamentais, as principais
afirmações e atitudes se formaram propriamente na tentativa de dar
vida a esses cadáveres.
A questão filológica é um aspecto inevitável da toda linguística
europeia, condicionada pelos destinos categóricos de seu nascimento e
seu desenvolvimento. Quanto mais longe se pode remontar na noite do
tempo, seguindo a história das categorias e dos métodos linguísticos,
em qualquer parte encontraremos os filólogos. Filólogos não foram
somente os alexandrinos, filólogos foram também os romanos e os
gregos (Aristóteles é um típico filólogo), filólogos foram também os
antigos hindus.
Podemos dizer claramente: a linguística surge onde e quando aparece
uma necessidade filológica. A necessidade filológica gerou a linguística,
embalou‐a e legou‐lhe seu canto. Esse canto deveria despertar os
mortos. Porém, não havendo sonos em quantidade suficiente, sobrou‐
lhe tempo para dominar a linguagem viva em seu ininterrupto processo
gerativo. O acadêmico N. J. Marr indica com grande precisão essa
essência filológica do pensamento indo‐europeu:
É natural que a linguística, dispondo de um objeto de indagação já
estabelecido e há longo tempo determinado – pelo estudo indo‐
europeu da época histórica – e partindo além disso quase
exclusivamente da forma rígida da língua escrita, sobretudo das
117
línguas mortas, não poderia esclarecer o processo do nascimento da
linguagem em geral e da origem de suas variedades22.
Ou em outra passagem:
O maior obstáculo [para o estudo das línguas aborígenes] não é a
dificuldade da pesquisa em si, mas do nosso pensamento científico,
paralisado por uma visão de mundo tradicional típica da filologia e da
história da cultura, não educado para percepções etnológicas‐
linguísticas da linguagem viva e da sua iridescente criatividade que é
profundamente livre23.
As palavras do acadêmico Marr são exatas não só a propósito da
linguística indo‐europeia, que deu o tom a toda linguística
contemporânea, mas também a propósito de qualquer tipo de
linguística por nós historicamente conhecida. A linguística, como
dissemos, é em toda parte filha da filologia.
Guiada pela exigência filológica da linguística, partiu sempre da
enunciação monológica completa, ou seja, do documento antigo, considerando‐a
uma realidade basilar. A linguística elaborou suas metodologias e suas
categorias trabalhando sobre essa enunciação monológica, morta, ou
melhor, sobre uma série de enunciações que eram somente ligadas pela
língua comum entre elas.
A enunciação, porém, é já uma abstração, e para dizer a verdade,
uma abstração natural. Qualquer enunciação monológica, em qualquer
parte, compreendendo também o documento escrito, representa um
elemento que não pode ser separado da comunicação verbal. Qualquer
enunciação, também aquela escrita, completa, responde a alguma coisa
e é orientada para uma resposta. Ela não é senão um anel da cadeia
ininterrupta constituída pelas enunciações. Qualquer documento escrito
continua o trabalho dos precedentes, polemiza com eles, espera uma
compreensão ativa, responsiva, antecipa‐a etc. Qualquer documento é
22 N. J. Marr, Poe tapam iafeticeskoi teori [As etapas da teoria javética], Leningrado 1926,
p.279
23 Idem, p. 94‐95.
118
em realidade uma parte indivisível da ciência, da literatura, da vida
política. O documento escrito, como qualquer outra enunciação
monológica, está destinado a ser compreendido no contexto da vida
científica ou da realidade literária do momento, ou seja, no processo de
formação daquela esfera ideológica de que representa um elemento constitutivo.
O documento é, portanto, uma parte, um componente, de um
campo real na criação, enquadra‐se no seu processo de criação e é
orientado para uma compreensão responsiva desde sua formulação.
O filólogo‐linguista extrai o documento deste campo real, recebe‐o
como se fosse uma entidade isolada, autônoma e não lhe contrapõe uma
compreensão ativa, responsiva, ideológica, mas uma compreensão
absolutamente passiva, na qual não há nenhum embrião de resposta,
como há, ao invés, em qualquer autêntica compreensão. Este
documento isolado, enquanto documento de uma língua, é posto pelo
filólogo em relação com outros documentos sob a base do elemento
comum que é a língua dada.
Os métodos e categorias do pensamento linguístico são assim
criados nesse processo de contraposição das interpretações recíprocas,
sob a base da língua comum, das enunciações monológicas isoladas.
A língua morta, estudada pelo linguista, é para ele obviamente uma
língua estrangeira. Por este motivo, o sistema das categorias linguísticas
não é produto de uma reflexão cognitiva da consciência de um falante
nativo. Não representa a reflexão sobre o modo de sentir a própria
língua materna, mas a reflexão de uma consciência que abre uma
passagem no mundo desconhecido de uma língua estrangeira.
Inevitavelmente a compreensão passiva do filólogo‐linguista se
projeta sobre o documento escrito que está estudando do ponto de vista
da língua, como se este tivesse nascido para tal tipo de compreensão, ou
seja, como se tivesse sido escrito para os filólogos.
Como resultado, tem‐se uma teoria da compreensão radicalmente
errada, a qual está na base não só dos métodos de interpretação
linguística do texto, mas também em toda a semasiologia europeia.
Toda teoria do significado e do tema da fala está impregnada da noção
errada de compreensão passiva, ou seja, de uma compreensão da fala
de que se exclui a priori uma resposta ativa a tal fala.
119
Essa compreensão de que a resposta está excluída a priori,
substancialmente não representa a compreensão da linguagem. Esta se
funde imediatamente com uma tomada de posição ativa nos confrontos
entre o que acaba de ser dito e compreendido. É característico de uma
compreensão passiva a percepção clara do momento de identidade do
signo linguístico, ou seja, a sua percepção como objeto‐sinal e, em
consequência, da predominância do momento da identificação.
A língua de que se ocupa a linguística é por definição uma língua
morta, estrangeira, escrita.
A enunciação isolada, completa, monológica, extraída de seu contexto
verbal e real, contraposta não a uma potencial resposta ativa, mas à
compreensão passiva do filólogo, é o ponto básico, o ponto de partida
do pensamento linguístico.
Nascido no processo de aprofundamento do conhecimento
científico de uma língua estrangeira morta, o pensamento linguístico
serve também a um outro objetivo que não é mais da pesquisa
científica, mas do ensino: seu escopo não é mais decifrar uma língua,
mas ensinar uma língua já decifrada. Os documentos escritos, os
documentos heurísticos, transformam‐se em modelo escolástico, em
clássicos da língua.
Este segundo escopo fundamental da linguística, aquele de criar um
aparato necessário para o ensino de uma língua já decifrada, aquele, por
assim dizer, de codificá‐la tendo presente sua transmissão escolar,
imprimiu sua marca sobre o pensamento linguístico. A fonética, a
gramática, o léxico: essas três seções do sistema da língua, estudadas
com categorias linguísticas que não organizavam seu centro próprio,
foram organizadas para servir aos dois escopos da linguística por nós
indicados: o heurístico e o pedagógico.
O que é um filólogo?
Por quanto possa se diferenciar muito, cultural e historicamente, a
figura dos linguistas, a partir dos sacerdotes hindus até o glotólogo
europeu contemporâneo, o filólogo sempre e em toda parte foi o
decifrador do discurso e da escritura “secreta”, estrangeira, o professor‐
transmissor do que havia decifrado ou do que lhe era transmitido pela
tradição.
120
Os primeiros filólogos e os primeiros linguistas sempre e em toda
parte foram os sacerdotes. A história não conhece nenhum povo cuja
escritura ou tradição sacra não fosse uma mistura qualquer de
linguagem artificial e incompreensível para o profano. Competia aos
sacerdotes‐linguistas decifrarem o segredo da palavra sagrada.
Sobre essa base nascem as mais antigas filosofias da linguagem: a
teoria védica da palavra, a teoria do Logos dos antigos pensadores
gregos e a filosofia bíblica da palavra.
Para entender esses filosofemas é preciso não esquecer em nenhum
instante que se trata de filosofemas de uma palavra estrangeira. Se um
povo tivesse conhecido apenas a própria língua materna, se a palavra
tivesse coincidido com a língua materna da própria vida, se no
horizonte não houvesse aparecido a misteriosa palavra estrangeira, a
palavra de uma outra língua, este povo jamais teria criado semelhantes
filosofemas24.
É um aspecto surpreendente: da mais longínqua antiguidade até os
dias de hoje, a filosofia da linguagem e o pensamento linguístico estão
fundados e se baseiam sobre a percepção específica da palavra estrangeira,
de uma outra língua e os problemas específicos que a fala estrangeira
põe para a consciência: decifrar e assinalar o que está sendo decifrado.
O sacerdote védico e o filólogo‐linguista contemporâneo são
fascinados e sugestionados, no seu pensamento linguístico, por um
mesmo fenômeno: o fenômeno da palavra estrangeira, de uma outra
língua.
A palavra da própria língua é percebida de outra maneira, ou
melhor, ela não é percebida como palavra, carregada de toda
categorização que gera no pensamento linguístico e que gerou no
pensamento filosófico‐religioso dos antigos. A palavra de nossa língua
materna, “a nossa irmã”, é considerada do mesmo modo que nossos
24 Segundo a religião védica, a palavra sagrada – em qualquer uso que não aquele do
sacerdote sábio consagrado – torna‐se soberana de todo Existente, incluindo os
deuses e os homens. O sacerdote‐sábio é definido aqui como aquele que controla a
palavra e nisso consiste todo o seu poder. A doutrina, neste sentido, é conhecida já no
Rgveda’V. O antigo filosofema do Logos e a doutrina alexandrina do Logos são bem
conhecidos.
121
sólidos hábitos, ou melhor, que a atmosfera sólida na qual vivemos e
respiramos. Nela não há mistérios; ela pode tornar‐se um mistério em
lábios diferentes e em dias hierarquicamente diferentes, sob os lábios de
um chefe, de um sacerdote, mas neste caso torna‐se também uma
palavra diferente, modifica‐se exteriormente quando eliminada do uso
cotidiano (tabus para a vida cotidiana ou arcaísmos linguísticos), se já
não era desde o início, nos lábios de um conquistador, uma palavra
estrangeira. Somente então nasce a “Palavra”, somente neste ponto
incipit filosofia, incipit filologia.
O fato de a linguística e a filosofia da linguagem serem orientadas
até a palavra estrangeira, a palavra artificial, não é fruto de um acaso ou
de um arbítrio da parte da linguística e da filosofia. Essa orientação é
expressão do enorme papel histórico que teve a palavra estrangeira no
processo de criação de toda cultura histórica. Esse papel foi exercido
pela palavra estrangeira em todas as esferas, sem exceção, da
criatividade ideológica, da estrutura sócio‐política, chegando aos
códigos comportamentais da vida de todos os dias. De fato, a palavra
desconhecida, a palavra de uma língua estrangeira, trouxe a civilização,
a cultura, a religião, a organização política (veja‐se, por exemplo, os
sumérios e os semitas babilônicos; os javéticos e os helênicos; Roma, o
cristianismo e os povos bárbaros; Bizâncio, os “varjaghi”[um dos povos
russos, possivelmente procedentes dos “wikings” que povoaram o
território russo], as tribos eslavas meridionais e os eslavos orientais
etc.). Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira,
portadora de uma força e de uma organização estrangeira ou inventada
na terra conquistada pelo jovem povo vitorioso sobre uma antiga e
potente cultura a que dava sepultura, podemos dizer, que esta submetia
a consciência ideológica do novo povo recém‐chegado, fazendo com
que a palavra estrangeira, na profundidade da consciência histórica dos
povos, se fundisse com a ideia de poder. Isso fez com que o pensamento
sobre a palavra fosse orientado essencialmente pela palavra estrangeira.
Todavia, nem a linguística nem a filosofia da linguagem até hoje
tomaram objetivamente consciência do enorme papel histórico da língua
estrangeira. Ainda hoje a linguística está a ela subordinada, mas a
linguística parece, em certo sentido, representar a última onda, junto a
nós, da avalanche da linguagem estrangeira que foi no passado
122
vivificante, e é o último reduto do papel ditatorial e criativo da cultura
desta linguagem.
Justamente por esse motivo, a linguística, sendo ela própria um
produto da palavra estrangeira, está muito longe de compreender
corretamente o seu papel na história da língua e da consciência
linguística. Ao contrário, a indo‐germanística elaborou as categorias
cognitivas da história da língua que excluíram completamente a
avaliação correta do papel da palavra estrangeira. Enquanto esse papel
é aparentemente enorme.
A ideia do cruzamento linguístico, como fator fundamental da
evolução da língua, é apontada com grande clareza pelo acadêmico N. J.
Marr. Ele reconhece que o fator do cruzamento linguístico foi
fundamental para a solução do problema da origem da língua. Escreve
Marr:
O cruzamento em geral, como fator de criação de línguas diversas, de
aspectos até das diversas variedades, o cruzamento como fonte da
formação de novas variedades foi observado e acompanhado em toda
língua javética e isto representa uma das maiores aquisições da
linguística javética... De fato não existe, não existiria e nem poderia
existir uma língua fônica primeira, uma língua de uma só tribo. A
língua é uma criação da sociedade, nascida sobre a base da
comunicação recíproca entre várias tribos, provocada pela necessidade
econômica e representa, portanto, a sedimentação deixada por essa
comunicação, que é sempre multitribal25.
Aqui acentuamos somente o significado da palavra estrangeira para
o problema do estudo da língua e da sua evolução. Os problemas
específicos estão fora dos limites do nosso trabalho. A palavra
estrangeira é, para nós, importante como fator que determina o
pensamento filosófico‐linguístico sobre a palavra e todas as categorias e
afirmações deste pensamento. Nós buscamos indicar essa
particularidade da concepção da palavra que se conservou no curso dos
séculos e que influenciou o pensamento linguístico contemporâneo.
25 N. J. Marr, Po etapam jafeticeskoi teorii, p. 268.
123
Justamente essa categoria encontrou sua mais clara e precisa expressão
na teoria do objetivismo abstrato.
Não nos resta senão concluir nossa análise crítica do objetivismo
abstrato. Ele não resolveu corretamente o problema que colocamos, ou
seja, o problema do modo de ser efetivo dos fenômenos linguísticos
como objeto específico e unitário de estudo. A língua como sistema de
formas normativamente idênticas é uma abstração que pode ser
justificada teórica e praticamente somente quando se tem em vista a
decodificação e o ensino de uma língua estrangeira morta. Este sistema
não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos
linguísticos vivos e em formação. Ao contrário, distancia‐se da
realidade viva, dinâmica da língua e de seu funcionamento social, não
obstante os defensores do objetivismo abstrato reivindicarem para sua
teoria um significado social. Na base teórica do objetivismo abstrato
estão os pressupostos de uma visão de mundo racionalista e
mecanicista que são incapazes de dar uma base correta à compreensão
da história, enquanto, ao contrário disso, a língua é um fenômeno
exclusivamente histórico.
Não se segue, então, que os princípios fundamentais da primeira
tendência, aquela do subjetivismo idealista, sejam exatos? Não poderia
se dar o caso de que ela tenha tido êxito em atingir a efetiva realidade
da linguagem? Ou não poderia se dar o caso de que a verdade se
encontra no meio e representa uma solução de compromisso entre a
primeira e a segunda tendência, entre a tese do subjetivismo
individualista e a antítese do objetivismo abstrato?
Nós mantemos que, como sempre, a verdade não se encontra no
meio nem representa uma solução de compromisso entre a tese e a
antítese, mas se encontra em outro lugar, depois de deixar de ser em
tempo próprio uma negação da tese e da antítese, isto é, representa uma
síntese dialética. Também a tese da primeira tendência, como veremos a
seguir, não resiste à crítica.
Dirijamos ainda a atenção ao que segue: o objetivismo abstrato,
mantendo que a única coisa substantiva para os fenômenos linguísticos
é o sistema da língua, recusa a enunciação, a expressão, enquanto
individual. Nisto está o proton pseudos do objetivismo abstrato. O
subjetivismo individualista sustenta que a única coisa substancial é a
124
própria enunciação, mas a considera um fato individual e busca por isso
explicá‐la a partir da vida psíquica individual do falante singular. Nisto
está o seu proton pseudos.
Na realidade, a enunciação, ou melhor, o seu produto, a expressão,
não pode de fato ser considerada um fenômeno individual no sentido
correto do termo e nem pode ser explicada tendo presente somente as
condições psicológicas e psico‐fisiológicas individuais do falante
singular. A enunciação é social.
A segunda tendência do pensamento filosófico‐linguístico, como
vimos, é ligada ao racionalismo e ao neoclassicismo. A primeira
tendência, a do subjetivismo individualista, é ligada ao romantismo. O
romantismo representa, numa medida considerável, uma reação à
palavra estrangeira e às categorias de pensamento por ela
condicionadas. O romantismo foi, mais imediatamente, a reação ao
último recrudescimento do poder cultural da palavra estrangeira, ou
seja, à época do Renascimento e do Neoclassicismo. Os românticos
foram os primeiros filólogos da própria língua materna, os primeiros a
buscar reconstruir radicalmente o pensamento linguístico sobre a base
da experiência em língua materna como médium para a formação da
consciência e do pensamento. Para dizer a verdade, os românticos
permaneceram filólogos no sentido estrito do termo. Eles obviamente
não estavam à altura para reestruturar o pensamento linguístico que
fora criado e sedimentado no curso dos séculos. Não obstante, novas
categorias vieram a inserir‐se neste pensamento e isso deu à primeira
tendência sua característica específica. É sintomático que ainda hoje os
representantes do subjetivismo individualista sejam os especialistas em
línguas modernas e em particular em línguas românicas (K. Vossler,
Leo Spitzer, Lorck etc.).
Todavia também para o subjetivismo individualista a enunciação
monológica era a realidade básica, o ponto de partida de seu
pensamento linguístico. Para dizer a verdade, isso não ajusta com o
ponto de vista da compreensão passiva do filólogo, mas com o ponto de
vista interno, com o ponto de vista do falante que expressa a si mesmo.
O que é a enunciação monológica segundo o subjetivismo
individualista? Vimos que este é um ato puramente individual, a
expressão de uma consciência individual, com seus objetivos, suas
125
intenções, seus impulsos criativos, seu gosto etc. A categoria da expressão
é a principal e mais ampla categoria sob a qual pode ser classificada a
enunciação‐expressão.
A teoria da expressão, que está na base da primeira tendência da
filosofia da linguagem, está radicalmente errada.
A experiência exprimível e sua objetivação exterior são feitas com
um único material. De fato não existe uma experiência fora de sua encarnação
sígnica. Em consequência não se pode falar de uma diferença qualitativa
de princípio entre o elemento interior e o exterior. E mais, o centro
organizador e formador não se encontra no interior (ou seja, no material
dos signos interiores), mas no exterior. Não é a experiência que
organiza a expressão, mas ao contrário, é a expressão que organiza a
experiência, lhe dá uma forma e define sua orientação.
De fato, qualquer que seja o aspecto da expressão‐enunciação
tomada para exame, observaremos que ela é determinada pelas
condições reais daquela dada enunciação e acima de tudo pela sua
imediata situação social.
A enunciação se constrói entre duas pessoas organizadas
socialmente e, se não há um interlocutor real, este vem pressuposto na
pessoa, por assim dizer, de um representante normal do grupo social a
que pertence o falante. A palavra é orientada para um interlocutor, é
orientada para quem poderia ser o interlocutor: uma pessoa pertencente
ou não ao mesmo grupo social, de grau superior ou inferior (graus
hierárquicos dos interlocutores), ligada ou não ao falante por um forte
vínculo social (o pai, o irmão, o marido etc.) e por fim com toda a massa
de relações que se criam entre os homens e que não fazem parte de uma
categoria bem determinada. Não pode haver um ouvinte abstrato; um
homem, por assim dizer, em si e por si, e ainda que existisse de fato não
poderíamos encontrar uma língua em comum com ele, nem em sentido
próprio nem em sentido figurado. Se às vezes pretendemos viver uma
experiência e expressá‐la urbi et orbi, em realidade nós perceberemos
obviamente seja a cidade, seja o mundo, através do prisma do ambiente
social concreto ao qual pertencemos. Ao fazer isso, na maioria dos
casos, mantemos que existe um horizonte social típico e estabilizado
para o qual é orientada a atividade ideológica do grupo e do período
social a que pertencemos, isto é, orientada por assim dizer ao
126
contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral e do
nosso direito.
O mundo e o pensamento interior de qualquer homem tem seu
auditório social estabilizado, em cuja atmosfera são construídos os seus
motivos, as suas razões interiores, as suas avaliações etc. Quanto mais
culto é um homem, tanto mais este auditório se avizinhará do auditório
normal da criatividade ideológica, mas em qualquer caso, o interlocutor
ideal não pode ultrapassar os limites de uma classe específica e de uma época
específica.
O significado da orientação da palavra para o interlocutor é de
excepcional importância. Em substância, a palavra representa um ato
bilateral. Ela vem determinada em igual medida seja de quem ela provém
quanto a quem ela é dirigida. Esta é uma palavra própria enquanto produto
de uma relação recíproca entre falante e ouvinte. Qualquer fala exprime
“um” na relação com “o outro”. No falar eu me conformo ao ponto de
vista de um outro, ou seja, em última instância, ao ponto de vista da
comunidade a que pertenço. A palavra é uma ponte lançada entre mim
e os outros. Se uma extremidade desta ponte se apoia sobre mim, a
outra se apoia sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum
existente entre o falante e o interlocutor.
Quem é o falante? Ainda que a fala não lhe pertença inteiramente,
sendo por assim dizer uma zona de limite entre ele e o interlocutor,
todavia esta lhe pertence por uma boa metade.
Existe um aspecto pelo qual o falante é indiscutivelmente o dono da
fala e que, por tal aspecto, não lhe pode ser expropriada: o ato
fisiológico da realização da fala. Mas a este ato, tomado em
consideração como ato puramente fisiológico, não se aplica a categoria
de posse.
Se não nos prendemos no ato fisiológico da realização do som, mas
aquele da realização da palavra como signo, o problema da posse se
complica. A parte do fato de que a palavra como signo seja tomada de
empréstimo pelos falantes da reserva dos signos existentes, a própria
formulação individual de tal signo é inteiramente determinada pelas
relações sociais. A própria individualização estilística da enunciação
daquele que fala, de que trataram os discípulos de Vossler, é um reflexo
das relações sociais em cuja atmosfera se constrói tal enunciação. A
127
situação social imediata e o seu mais amplo ambiente social
determinam inteiramente, e por assim dizer desde dentro, a estrutura
da enunciação.
Portanto, a teoria da expressão que está na base do subjetivismo
individualista deve ser repelida. O centro organizador da enunciação
não está no interior, mas no exterior: no ambiente social que circunda o
indivíduo. Somente o grito animal, inarticulado, é efetivamente
organizado no interior do aparelho fisiológico de um único indivíduo.
Não há nisso qualquer fator ideológico, mas diz mais respeito à reação
fisiológica. Mas já a enunciação humana mais primitiva realizada por
um único organismo, pelo que concerne a seu conteúdo, é organizada
de fora, nas condições orgânicas do ambiente social. A enunciação
enquanto tal é um produto da interação social, seja do tipo mais
imediato, determinado pela circunstância da enunciação, seja do tipo
mais remoto, determinado pelo todo em si mesmo das condições em
que ocorre tal dado coletivo falante. O ato de fala isolado (parole), não
obstante a teoria do objetivismo abstrato, está longe de ser um fato
individual que, enquanto tal, não pode ser submetido a uma análise
sociológica. De fato, se assim fosse, nem a soma desses atos individuais
nem aquelas características abstratas comuns a todos os atos (“a forma
normativamente idêntica”) teriam podido dar um produto social.
O subjetivismo individualista tem razão quando diz que os atos de fala
isolados representam a efetiva realidade concreta da língua e que esses têm
um valor criativo na língua. O subjetivismo individualista está errado
quando ignora e não compreende a natureza social do ato de fala e busca fazê‐lo
derivar do mundo interior do falante como expressão deste mundo interior.
A estrutura do ato de fala e da sua própria experiência que vem nele
expressa é uma estrutura social.
A formulação estilística do ato de fala é uma formulação social e o
próprio fluxo verbal, o fluxo dos atos de fala equivale de fato à
realidade da linguagem, é um fluxo social. Cada gota dele é social,
social é toda a dinâmica de sua formação.
O subjetivismo individualista tem plenamente razão quando afirma
que não se pode separar a forma linguística do seu conteúdo ideológico. Toda
palavra é ideológica e toda aplicação da linguagem estão dotadas de
uma modificação ideológica. O subjetivismo individualista está errado,
128
porém, quando faz derivar também o conteúdo ideológico da fala das
condições da psique individual.
O subjetivismo individualista está errado quando considera, tal
como o faz o objetivismo abstrato, seu ponto de partida fundamental o
ato de fala monológico. Para dizer a verdade, alguns seguidores de Vossler
começaram a defrontar‐se com o problema do diálogo e em
consequência começaram a avizinhar‐se de uma compreensão mais
correta da interação verbal. A este propósito, é de extremo interesse o
livro de Leo Spitzer Italienische Umgangssprache, em que se faz a
tentativa de analisar a forma da língua italiana corrente tendo presentes
os estreitos laços com as condições em que se efetua o ato de fala e
acima de tudo a impostação do interlocutor. Todavia, o método de Leo
Spitzer não tira de sua análise as conclusões sociológicas
correspondentes. O ato de fala monológico permanece para os
discípulos de Vossler a realidade fundamental.
Agora estamos preparados para dar uma resposta à pergunta que
colocamos no início deste trabalho. A efetiva realidade da linguagem
não é representada pelo sistema abstrato da forma linguística nem pela
enunciação, mas pelo acontecimento social da interação verbal, realizada com
uma ou mais enunciações.
A interação verbal é, portanto, a realidade fundamental da língua.
Em conclusão, podemos formular o nosso próprio ponto de vista
nos seguintes princípios:
1) A língua como sistema fixo de formas normativamente idênticas
é só uma abstração científica que é produtiva somente para objetivos
teóricos e práticos bem precisos. Essa abstração não é adequada à
realidade concreta da língua.
2) A língua está num processo ininterrupto de formação que se
realiza através da interação verbal dos falantes.
3) As leis que regulam o processo de formação linguística não são
absolutamente as leis psicológicas‐individuais, mas não podem ser
separadas da atividade dos falantes. As leis que regulam o processo de
formação linguística são leis sociológicas.
4) A criatividade linguística não coincide com a criatividade
artística nem com qualquer outra criatividade ideológica particular. Ao
mesmo tempo, porém, a criatividade linguística não pode ser
129
compreendida se se prescinde dos significados e dos valores ideológicos
que a preenchem completamente. O processo de formação linguística,
como qualquer outro processo gerativo histórico, pode ser percebido
como uma necessidade cega e mecânica, mas pode também tornar‐se
uma “necessidade livre”, uma vez que tenha se transformado numa
necessidade consciente e desejada.
5) A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A
enunciação enquanto tal se dá entre falantes. A enunciação individual
(no sentido estrito do termo individual) é uma contradictio in adjecto.26
26 [N.T.]
O leitor notará que esta passagem, com poucas modificações, equivale à
passagem de Marxismo e Filosofia da Linguagem (São Paulo: Hucitec, 1982, p. 127).
Como a edição brasileira desta obra se baseou na tradução francesa, fiz aqui a
tradução do italiano para que possíveis diferenças possam ser observadas.
130
QUE É A LINGUAGEM?1
A linguagem e a vida do intelecto nascem da
atividade conjunta dirigida por um objetivo
comum, do trabalho primitivo de nossos
antepassados (Ludwig Noiret).
1. A origem da linguagem
Um autor se dispõe a escrever algo, senta‐se diante da mesa e olha
impotente a folha de papel em branco diante dele. Antes de pegar a
caneta e dispor‐se a escrever, tinha tantas ideias em mente.
Precisamente ontem, havia contado a um amigo, com riqueza de
detalhes, o conteúdo de sua futura primeira novela. E agora, qualquer
frase com que pensa começar sua obra lhe parece estúpida, torpe,
estranha e artificial. Além disso, recém havia começado a escrever
aquela novela que em sua mente parecia já ter tomado uma forma
definitiva, e imediatamente teve que enfrentar uma série de problemas.
Em que pessoa fazer a narração? Deve ser ele próprio, o autor, aquele
que narra ou algum dos personagens da novela? E se o narrador é um
dos personagens da novela, qual deve ser a linguagem? De fato,
inclusive o próprio autor pode usar a chamada linguagem “literária”,
ou pode eleger travestir‐se de um narrador ignorante, semianalfabeto, e
neste caso deverá falar numa linguagem absolutamente distinta.
O jovem escritor se encontra, portanto, com um número enorme de
problemas que deve resolver antes de escrever sua obra.
Pode‐se notar que esses problemas se dividem, de modo amplo, em
dois grupos. O primeiro grupo inclui tudo o que está ligado à
linguagem mesma, à escolha das palavras. O outro grupo está ligado à
enunciação dessas palavras, à redação da obra inteira, em outras palavras,
à composição da obra. Num e noutro caso, o autor sente que a linguagem
1 [N.T.] Há uma tradução recente desse texto, diretamente do russo para o francês,
realizada por Patrick Sériot e Inna Tylkowski‐Ageeva, entre os anexos de Marxisme et
Philosphie du Langage, edição bilíngue de Lambert‐Lucas, 2010. Nessa versão, o título é
Qu’est‐ce que la langue et le langage, justificado pelos tradutores pelo fato de que a
palavra russa jazyk significa tanto língua quanto linguagem.
131
habitual que usa para conversar com outras pessoas, essa linguagem
com que reflete ou sonha em momentos de solidão, parece‐lhe agora
um fenômeno estranhamente difícil e complexo. Antes de começar a
refletir sobre a linguagem, tudo lhe parecia simples e linear. Mas, nem
bem começa a escrever uma obra literária, essa linguagem se torna para
o autor pesada, informe, com ela é muito difícil construir uma frase
bela, elegante e, sobretudo, que transmita aquilo que quer realmente
expressar. A linguagem parece ter‐se transformado num enorme bloco
de mármore, no qual é necessário esculpir a figura desejada. A
linguagem tornou‐se o material da criatividade artística.
Na verdade, o mármore, a argila ou as tintas que servem de material a
escultores e pintores se diferenciam substancialmente do material verbal.
O escultor pode, com efeito, dar ao mármore ou à argila qualquer
forma, pode transformar as menores partículas à sua vontade, obedecendo
somente à sua fantasia criadora ou a um projeto elaborado nos mínimos
detalhes. A palavra, ao contrário, não possui essa maleabilidade ou
condutividade exterior. Não se pode reduzi‐la ou alargá‐la, nem se pode
atribuir arbitrariamente um significado absolutamente impróprio,
imprevisto. Quando conversamos animadamente, sequer notamos até que
ponto as regras linguísticas são obrigatórias e severas. Sequer pensamos ao
perguntar “Como está o tempo?”. Nunca nos ocorreria perguntar “Hoje
corresponde a qual dos tempos?”. Ninguém compreenderia e todos
pensariam que estamos brincando ou que estamos loucos. Existem, pois,
leis linguísticas que não podem ser infringidas, ou a compreensão
recíproca se tornaria impossível.
***
Tudo o que apontamos contempla apenas as regras gramaticais, e
em particular a sintaxe, isto é, a disciplina que estuda as regras de
combinação das palavras em expressões de sentido completo. Mas
existe ainda uma diferença mais profunda entre o caráter do material
verbal e o de qualquer outro material exclusivamente físico.
Se confrontarmos uma palavra com um bocado de argila, por
exemplo, veremos que a palavra, diferentemente da argila, tem um
significado, denota um objeto ou uma ação, ou um acontecimento, ou
132
uma experiência psíquica. Argila, ao contrário, tomada isoladamente,
não significa nada. Assume um significado somente na totalidade da
obra; pode ser, por exemplo, a mão de uma estátua ou o martelo
manejado por esta mão. No entanto, o escritor não trabalha com um
material físico destituído de significado, mas com partes que já se
encontram elaboradas, com elementos linguísticos preparados, com os
quais pode construir uma totalidade somente se tem presente todas as
regras e as leis que não devem ser transgredidas quando da organização
desse material verbal.
No entanto, não poderia o escritor, de qualquer modo, modificar as
regras e as leis linguísticas, e criar novas? Na realidade, existiram na
Rússia czarista, não muito antes da Revolução de Outubro, poetas que
tentaram inventar uma nova língua, e que escreviam versos deste tipo2:
“Nemotichei los enemichei
Chama viskuiuschi suschel
E com novo rumor de espadas
Lhe responderá buduschel”
Um exemplo ainda melhor:
“Go osnieg kaid
Mr batulba
Sinu auksel
Ver tum dach
Guiz.”
Para evitar que o escritor tenha a sorte desses poetas, para evitar
que entrem para a história como anedota, e para que ocupe um lugar
sério e digno, é necessário que compreenda que é a linguagem, este
material tão característico e particular da criatividade artística.
2 [N.T.] A versão em espanhol que estamos manuseando traduziu apenas as palavras
aqui traduzidas para o português. Examinando a edição italiana (Il Linguaggio come
pratica sociale, Bari: Dedalo Libri, 1980), encontramos a mesma opção, traduzindo essas
mesmas palavras. Sem acesso à edição russa, seguimos o modelo das traduções aqui
utilizadas.
133
Se não compreendermos a essência da linguagem, se não
compreendermos o lugar e o destino que tem na vida social, não
podemos estudar corretamente o que chamamos estilística da arte verbal,
ou seja, a técnica mesma de construção da obra literária, técnica que
qualquer escritor que deseja se converter em mestre de sua própria arte,
e não um simples aficionado, deve conhecer necessariamente.
Que é a linguagem?
O melhor modo de esclarecer um fenômeno é observar o processo
de sua formação e desenvolvimento. Infelizmente, no que diz respeito à
linguagem, esse caminho se complica pelo fato de os embriões e as
primeiras etapas de seu desenvolvimento precederem nossa época por
alguns milhares de anos. Assim mesmo, apesar de sua antiguidade,
tem‐se tentado imaginar o nascimento da linguagem. Na verdade, os
homens sempre trataram de compensar suas lacunas cognoscitivas com
lendas “piedosas”, substituindo um exame científico com apelos a uma
“força divina”. Não obstante, as exigências da verdade científica se
impuseram, e hoje em dia podemos levantar a cortina de milênios e
observar, ainda que indiretamente, os tempos em que a linguagem
humana estava em formação.
O que se observa? A linguagem não aparece na sociedade humana
por ação do sobrenatural, nem como “invenção” consciente e meditada,
segundo se pensava no século XVIII.
Em tempos relativamente recentes, as teorias mais difundidas sobre
a origem da linguagem eram as seguintes: 1. a teoria da onomatopeia e
2. a teoria das interjeições.
O primeiro grupo de teorias afirma substancialmente que o homem
tratou de reproduzir os sons produzidos pelos animais, ou os sons que
acompanham os fenômenos naturais – o silvo do vento, o gotejar de
uma fonte, o ribombar de um trovão. Essas onomatopeias se tornariam,
depois, o modo natural de designar os objetos que produziam tais sons,
isto é, haviam se tornado palavras. Desta forma, era possível explicar
um número muito limitado de palavras, razão por que se defendeu que
o elemento de imitação podia consistir não no som em si mesmo, mas
no movimento dos órgãos fonadores – particularmente a língua –
tratando‐se, em certo sentido, de um gesto fônico.
134
O segundo grupo de teorias tratou de demonstrar que os primeiros
sons da linguagem humana foram as exclamações – interjeições –
involuntárias ou, como habitualmente as denominamos, reflexas, que o
homem emitia sob a influência de sensações fortes produzidas nele por
algum objeto. Ao repetirem‐se, essas exclamações se converteram em
signos fixos, significantes desses objetos, e se transformaram assim em
palavras.
Esses dois grupos de teorias estão hoje ultrapassados, até porque se
explicavam convincentemente a origem de algumas palavras de
algumas línguas – na verdade, muito poucas; essas teorias não podiam
esclarecer nem a efetiva essência da linguagem como fenômeno social,
nem outros problemas de excepcional importância.
Em 1876, Friedrich Engels elaborou uma saída excepcional,
aclarando em que direção se deveria buscar a resposta ao problema da
origem da linguagem:
Nossos antepassados macacos eram animais sociais; é evidentemente
impossível estabelecer a origem do homem, o mais social dos animais,
de antepassados não sociais. O domínio da natureza, que estava
começando, junto com o desenvolvimento das mãos e do trabalho,
ampliava a cada novo passo o horizonte do homem. Nos objetos da
natureza ele descobria novas qualidades, até então desconhecidas. Por
outra parte, o desenvolvimento do trabalho favorecia, à medida das
necessidades, a união mais estreita dos membros da sociedade, já que
graças a isto se tornaram mais frequentes os casos de ajuda recíproca, de
atividade em comum, e se tornou mais clara a utilidade desta atividade
em comum para cada membro individual da sociedade. Logo esses seres
humanos em formação chegaram ao ponto em que aparece a necessidade
de dizer algo um ao outro. A necessidade criou os órgãos da fala: a
garganta não desenvolvida do macaco se transformou, lenta, mas
inexoravelmente, graças a modulações que se tornaram gradualmente
mais fortes, e os órgãos de base se habituaram a pronunciar um som
articulado depois de outro. (Engels. O papel do trabalho no processo de
transformação do macaco em homem. Arquivo Marx e Engels, II, p. 93)3
3 [N.T.] Há traduções brasileiras desse texto, que compõe o livro “Dialética da
natureza”, de F. Engels.
135
Independentemente de Engels, um contemporâneo seu, o estudioso
alemão Ludwig Noiret, chegava à mesma ideia de que “a linguagem e a
vida do intelecto nascem da atividade conjunta dirigida por um objetivo
comum, do trabalho primitivo de nossos antepassados.” Essas ideias
tiveram uma confirmação especializada, linguística, nos trabalhos de
um estudioso russo, o acadêmico N. I. Marr.
Suas investigações – comumente chamadas de “teoria javética” –
afirmam sem sombra de dúvidas que
... a linguagem foi criada durante inumeráveis milênios, sobre a base
de um instinto de socialização de massa que se embasava nos
pressupostos das necessidades econômicas e da organização
econômica. (Marr, N. I. O estapam razvitia jafeticheskoi teorí, 1926, p. 28)
Obviamente, em seus primeiríssimos estágios, a linguagem não se
parecia com nenhuma das línguas contemporâneas, nem com outras
mais antigas. Nascida no processo de luta obstinada do homem contra a
natureza, luta em que o homem estava armado somente com mãos
fortes e instrumentos de pedra toscamente trabalhados, a linguagem
recorreu ao mesmo processo de desenvolvimento que a cultura material
econômica e técnica.
Segundo as suposições de N. I. Marr, ainda antes que se passasse à
linguagem sonora, articulada, a sociedade humana – uma sociedade de
grupos de caçadores – deve ter criado um meio de comunicação mais
simples e acessível, uma linguagem feita de gestos e de mímica, a
chamada linguagem gestual.
Muitos milênios se passaram antes que a esta linguagem, que se
usava na vida cotidiana, se acrescentasse a linguagem sonora, a
linguagem da magia, do culto mágico.
Os homens da idade da pedra, que conheciam apenas os métodos
mais simples para procurar alimento – a colheita de vegetais
comestíveis e a caça de animais selvagens –, contentaram‐se por largo
tempo com a linguagem gestual, a que poderíamos chamar
convencionalmente de linguagem das mãos, já que nela o movimento das
mãos desempenhava um papel fundamental. Evidentemente, sons
poderiam acompanhar essas “enunciações” mímicas, gestuais, mas
136
eram ainda inarticulados e consistiam principalmente em gritos de
emoção, ou seja, expressavam um estado de ânimo de forte excitação.
Portanto, a aparição da linguagem articulada não foi provocada pela
necessidade de comunicação social, já que existia uma linguagem mais
simples, feita de gestos e de mímica – a linguagem das mãos. É preciso
buscar a origem da linguagem sonora nas condições peculiares do
trabalho na vida da humanidade primitiva. A essas condições deve
também sua origem a arte, que por longo tempo conformou‐se na
associação indivisível da dança, do canto e da música, com sons de
instrumentos rudimentares. Tanto a linguagem sonora quanto essa arte
tríplice têm uma base comum: as ações mágicas que, aos olhos da obscura
e atrasada consciência do homem daquele período, pareciam condições
necessárias ao êxito de sua atividade produtiva, e por isso
acompanhavam sempre todos seus trabalhos coletivos. É dessa
complexa ação mágica, que compreendia tanto movimentos mágicos
das mãos e de todo o corpo quanto gritos mágicos que desenvolveram
gradualmente os órgãos de fonação, que se origina a linguagem fônica
articulada.
Não esqueçamos que para o homem da primeira idade da pedra, o
rito mágico era um ato ligado à economia, uma forma de ação sobre a
natureza, graças a qual esta deveria dar ao homem seu bem mais
importante e frequentemente único: o alimento4. Portanto, os primeiros
elementos da linguagem sonora humana, bem como os da arte, eram
elementos de um processo de trabalho, estavam ligados a necessidades
econômicas e representavam o resultado da organização produtiva da
sociedade.
Essa organização extremamente primitiva, que vinha se tornando
complexa gradualmente, gerou sucessivos estados da compreensão do
mundo circundante e da relação com ele, em outras palavras, da
4 Para uma informação mais detalhada sobre a magia primitiva e sua base econômica,
veja‐se o capítulo correspondente do livro de Nikolski (Ocherki o istori pervobiynoi
culturi. Sobre a História da Cultura Primitiva)
137
ideologia5 em formação do homem, experimentando reciprocamente sua
influência.
O estágio da cultura humana em que aparece a linguagem fônica se
chama mágico. Nesse estágio, elaboram‐se os elementos linguísticos
fundamentais que em geral se encontram na base de qualquer
linguagem fônica. Não se trata ainda de palavras, no sentido que hoje
atribuímos a esse termo, nem de denotações fônicas; não se trata de
signos que denotem um fenômeno ou um grupo de fenômenos, mas de
um conjunto de sons bem determinados que acompanha um rito
mágico, que por sua vez é uma forma do processo de trabalho coletivo.
No começo, segundo sabemos, eram gritos mágicos que, com seu
caráter iterativo, desenvolveram as cordas vocais e outros órgãos da
fonação. Faltava somente um passo para que esses complexos fônicos se
transformassem em palavras. Bastaria que o homem tivesse tido a
necessidade, empurrado pelas exigências econômicas, de compreender,
de explicar‐se. Uma vez alcançada a possibilidade de referir com esse
complexo fônico, ainda que somente fosse um grupo de fenômenos ou
de objetos, começou o desenvolvimento incontestável da linguagem
sonora, isto é, a expansão do círculo de objetos e fenômenos denotados
por cada um dos complexos, por combinações fônicas existentes.
Então, com a gradual passagem para a atividade pecuária e agrícola,
novos estágios de desenvolvimento linguístico são alcançados: o estado
totêmico – um dos seus signos distintivos foi a divinização de animais,
de vegetais etc., na qualidade de fundadores de uma determinada tribo
– e o estado cósmico – a divinização dos ciclos e dos fenômenos celestes.
Neste ponto, cada um dos complexos fônicos era utilizado
separadamente, embora não denotassem um só fenômeno, mas um
grupo inteiro de fenômenos que a nossos olhos parecem carecer de
qualquer vínculo. O complexo fônico primitivo se faz uma palavra
polissignificante, uma palavra que inicialmente estava ligada a todos os
significados conhecidos pela humanidade. Os primeiros objetos que
tiveram uma designação verbal foram, evidentemente, os que estavam
mais próximos à atividade econômica do homem e que, em
5 Por ideologia entendemos todo o conjunto de reflexos e interpretações da realidade
social e natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras,
desenhos, esquemas ou outras formas sígnicas.
138
consequência, eram por si mesmos objetos mágicos, de culto, quando
magia e trabalho se confundiam ainda em uma única totalidade na
consciência difusa do homem.
E a primeira palavra da humanidade foi a que denotou aquilo que
abriu o caminho da civilização, aquilo a que devemos o primeiro
instrumento de pedra, a primeira linguagem e os primeiros
resplendores do intelecto.
Esta palavra foi:
“Mão”, a mão do homem trabalhador.
Em continuidade, a palavra mão se funde com uma série completa
de significados de caráter sagrado, sobretudo com os grupos “céu +
água + fogo”.
Esses grupos de significados se dividem em novos grupos, por
exemplo: “água + céu” toma o sentido de “nuvem + fumaça +
escuridão”; “fogo + céu” significará “luz + resplendor + raio” e assim
sucessivamente. De fato, existiam muito poucas palavras sonoras
enquanto o número de objetos que entram no horizonte mental do
homem aumenta sempre mais, graças ao desenvolvimento da atividade
econômica. Haverá posteriormente a transferência de significado de um
fenômeno complexo, por exemplo “céu”, a suas partes constitutivas,
como o sol, as estrelas ou até os pássaros que, se traduzíssemos essa
palavra para nossa língua, se chamariam “filhos do céu”.
No entanto, esses complexos fônicos não poderiam se transformar
numa linguagem, se com as novas etapas do desenvolvimento da
atividade econômica não houvesse aparecido um novo fenômeno que
decidiu a sorte da linguagem humana: o processo de entrecruzamento
linguístico6.
É evidente que se o homem tivesse levado uma existência isolada,
não só não teria tido necessidade de criar uma linguagem, como não
teria criado qualquer cultura em geral.
Na base do desenvolvimento cultural humano – o trabalho – existe a
necessidade de unir‐se em grupo, em comunidade em que se dá um
entrecruzamento de tipo primitivo. Junto com o entrecruzamento de
6 [N.T.] O entrecruzamento refere‐se a algo mais forte do que aquilo que
denominamos como “empréstimo linguístico”, já que supõe um rearranjo entre as
“línguasʺ.
139
grupos humanos completos (externos: tribos, nações; internos:
profissionais, de classe) ocorre o entrecruzamento de elementos
linguísticos, que serão distintos para cada reagrupamento. Como
resultado, a bagagem lexical se enriquece, aparecem as palavras
entrecruzadas, constituídas por alguns elementos fundamentais. No
entanto, os sons são limitados, os elementos dessas palavras se
abreviam, se reduzem. Esses encadeamentos truncados são sentidos
como palavras novas e completas, que podem por sua vez servir como
base para a formação de outras palavras.
A etapa seguinte do desenvolvimento da linguagem será
constituída pela conjunção das palavras em frases, o que começou
ocorrendo de maneira muito simples – isto é, sem que se modificassem
as formas das palavras. Logo se acrescentaram determinadas partículas
verbais que definem a relação que a palavra tem na frase e, finalmente,
se transformou a forma mesma da palavra – por exemplo, com a
conjugação e a declinação.
De tudo o que dissemos, fica claro o papel que teve a organização
social do trabalho no nascimento e desenvolvimento da linguagem.
Podemos perceber essa relação não só no campo dos significados das
palavras – a chamada semântica – mas também na área da gramática.
Tomemos inicialmente um exemplo de representação semântica –
no campo do significado da palavra – da estrutura econômica.
Suponhamos que os encontros hostis entre tribos tenha levado à
completa submissão de uma tribo a outra, que passa a ocupar seu
território. Nesse reagrupamento de pessoas, a tribo vencedora se
converte na classe dominante, a que utiliza o trabalho gratuito – feito
por homens semi‐livres ou escravos – dos próprios inimigos
dominados. Ambas as tribos tinham suas próprias denominações
sagradas, o nome de seu totem ou do seu deus tribal. Obviamente o
nome da tribo vencedora passará a significar “bom”, “válido”, e o da
tribo vencida, “mau”, “péssimo”. Essa diferença passará, depois, a
designar as classes sociais. Dessa maneira, o nome da tribo dos
pelasgos7 – poderosa em seu tempo, mas logo dominada pelos romanos
– se transformou em Roma em “plebeus”, pessoas de classe inferior.
7 [N.T.] Habitantes pré‐históricos da Grécia e Itália, região do Peloponeso.
140
Assim também o nome da tribo dos “kolchov”, do Cáucaso, celebrada
nas lendas da antiga Grécia, em georgiano tomou o significado de
“camponês”, “escravo”, depois de a tribo ser dominada. Assim,
Os termos tribais – as denominações – incluindo os totêmicos, sofrem
uma revisão, são valorizados segundo a posição social das diversas
tribos que, ao entrecruzarem‐se no processo de formação de novos
tipos étnicos de população, se transformaram em classes sociais.
Portanto, os termos sociais, não só as denominações de classe,
representam antigas denominações tribais. (Marr, N. I., ibidem, p. 10)
Como exemplo de representação gramatical das relações sociais,
pode‐se referir à formação das partes do discurso. Especialmente
indicativa, para nossos propósitos, é a formação dos pronomes, que
nascem com o aparecimento da propriedade. Enquanto havia a
propriedade tribal e não privada, no começo os pronomes indicavam
número coletivo, o da tribo e seu totem – ou depois, seu deus protetor dos
direitos de propriedade desse grupo social determinado.
Somente com a aparição da propriedade privada, delineia‐se a
primeira pessoa de número singular – “eu” – e a segunda e terceira
pessoa, contrapostas a ela – “tu”, “ele”.
O que expusemos basta para convencer que a linguagem não é um
dom divino nem um presente da natureza. É o produto da atividade
humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização
econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou.
2. A função da linguagem na vida social
Em nossas conclusões há, no entanto, uma lacuna substancial. Não
tocamos no problema, que se impõe por si mesmo, da relação entre
linguagem e pensamento social. A seguir, falaremos disso, mas antes
enfrentaremos outro problema.
Se a linguagem, como vimos, é produto da vida social, sua criação e
sua representação, então que papel tem a linguagem no processo de
desenvolvimento da própria vida social? Em outras palavras, a
linguagem, que em certo sentido é uma superestrutura das relações
141
sociais, tem por sua vez influência inversa sobre essas relações que lhe
deram origem?
Esse problema é consideravelmente mais simples que o problema da
origem da linguagem, e por isso seremos muito concisos. Qualquer um
que não tenha pré‐juízos compreende claramente o enorme papel que
joga a linguagem na organização da vida social.
Já a primeira e primitiva linguagem da humanidade, aquela das
mãos ou linear, cujos traços se conservam até nossos dias como modo
auxiliar, usando junto com a linguagem, na gesticulação habitual das
mãos e na mímica facial durante a conversação, essa primeira
linguagem representa já uma brusca separação do mundo natural, e o
começo da criação de um mundo novo, o mundo do homem social, o
mundo da história social. É insuficiente ter como limite entre esses dois
mundos a ação de golpear com o primeiro instrumento criado pelo
homem, a lasca de pedra. Era necessário reforçar essa nova posição do
animal “bípede que cria o instrumento” e somente se poderia reforçá‐la
criando uma solidariedade mais estreita, uma intercomunicação mais
estreita entre os distintos reagrupamentos humanos. Na terrível luta
pela vida, da qual não temos sequer uma representação adequada, os
problemas de encontrar coletivamente o alimento, de defender‐se
coletivamente dos animais ferozes etc. eram problemas verdadeiramente
de sobrevivência. E a atividade coletiva somente era possível com a
condição de que houvesse pelo menos uma coordenação mínima das
ações, pelo menos uma capacidade mínima de representar‐se o objetivo
comum. Para fazê‐lo, era necessário que os homens se compreendessem
reciprocamente. Esse objetivo foi alcançado já com a linguagem gestual
ou mímica, o mais antigo meio de comunicação da humanidade. Essa
comunicação não só facilitava a organização do trabalho coletivo, mas
também a organização do pensamento social, da consciência social. O
psiquismo humano devia cumprir uma tarefa, ainda que elementar,
extremamente complexa para aqueles tempos. Em realidade, para a
realização da comunicação verbal é necessário que o significado, oculto
no gesto da mão de um homem, seja compreensível para outro homem;
que este homem saiba estabelecer – graças à experiência precedente – a
relação necessária entre esse movimento e o objeto ou acontecimento
em cujo lugar ele é empregado. Em outras palavras, o homem deve
142
compreender que esse movimento é portador de um significado, que
esse movimento expressa um signo. Mas isso não é ainda suficiente. O
signo expresso pelo movimento das mãos não deve ser casual,
passageiro. Somente se esse signo se torna constante poderá entrar no
horizonte cognoscitivo de um grupo humano, tornar‐se‐á necessário e
se converterá num valor social. Como é óbvio, com o crescimento e a
transformação da organização econômica, esse signo se modificará
gradualmente, mas numa medida quase imperceptível para uma
mesma geração de homens que o utilizam.
O que dissemos até agora é apenas um aspecto do processo de
comunicação verbal entre os homens: esse processo não se cumpriria se
o ato gestual – e depois verbal – permanecesse sendo nada mais que um
signo exterior. Ele deve converter‐se em um signo de uso interior,
tornar‐se linguagem interior, pois somente assim se realizará a segunda
condição necessária para a comunicação verbal para além da
transmissão do signo: a compreensão do signo e a resposta a ele.
3. A linguagem e a classe social
A linguagem se tornou assim a condição necessária para a
organização do trabalho humano. Com o desenvolvimento das
atividades econômicas, nessa organização do trabalho aparecem
pessoas determinadas que têm deveres e direitos diferentes. Isso está
relacionado com o nascimento da linguagem sonora, que por muito
tempo desempenhara funções de linguagem sagrada, mágica, e que por
isso era uma linguagem misteriosa. Gradualmente foram surgindo os
guardiões dessa linguagem secreta, os grupos de sacerdotes ou xamãs. Eles
são cercados por deferência e veneração especiais, já que são
“onipresentes” e “oniscientes”. De fato, conheciam aquelas palavras‐
exorcismo de que dependiam, segundo os homens primitivos, uma boa
colheita de ervas comestíveis, a derrota dos inimigos e, em geral, o bem‐
estar da tribo. Assim, desde o amanhecer da história humana, a
143
linguagem coopera involuntariamente para criar os embriões da divisão
de classes [sociais] e de patrimônios da sociedade8.
Numa etapa subsequente da história da humanidade, com a
aparição da propriedade privada e a formação do Estado, surge a
necessidade de uma fixação jurídica das relações de propriedade,
expressa numa língua oficial. Aparecem as fórmulas jurídicas, mas ainda
estreitamente ligadas às fórmulas religiosas. Em certo sentido, a palavra
sacraliza, com sua antiga autoridade mágica, as leis vantajosas para
uma minoria dirigente que favorecem a servidão da maioria submetida.
Seria totalmente impensável sem a linguagem o complexo sistema
jurídico que encontramos já entre os povos mais antigos, como os
sumérios e os egípcios.
Não só as leis jurídicas escritas, mas também as leis morais não
escritas, criam‐se, explicam‐se e se convertem numa força coercitiva
com a aparição da linguagem humana.
Finalmente, é óbvio que sem o auxílio da palavra não teriam
nascido nem a ciência nem a literatura. Nenhuma cultura poderia
realizar‐se se a humanidade estivesse privada da possibilidade de
comunicação social, de que a nossa linguagem é sua forma materializada.
4. A linguagem e a consciência
Tudo o que vimos não é senão o aspecto exterior do papel que
cumpre a linguagem na vida social, o aspecto que mais facilmente salta
à vista e se presta à análise.
Incomparavelmente mais complexo é o problema da influência da
linguagem em fenômenos da vida social que levam o nome de
“consciência de classe”, “psicologia social”, “sociologia social”, etc. E
com esse problema se enfrenta inevitavelmente outro, estreitamente a
ele ligado: que significado tem a linguagem para a consciência
individual, pessoal, do homem, para a formação de sua vida “interior”,
de suas “experiências”, para a expressão dessa vida, dessas experiências?
8 Abordaremos o problema da criação da linguagem “literária”, que representa a
linguagem da classe dominante, num artigo próximo. [O autor se refere ao texto “A
construção da enunciação”, publicado neste volume].
144
Todos esses problemas têm uma significação de primeiro plano para
qualquer um que queira tratar com a linguagem, seja como material, seja
como instrumento de criação. Não foi por acaso que iniciamos este artigo
com a imagem desse estado de ânimo especial do escritor, a que
habitualmente chamamos de “tormento da palavra”.
Costuma‐se atribuir esses “tormentos da palavra” tanto ao fato de
que não bastam as palavras para expressar nossas emoções quanto ao fato
de que nossas palavras são impotentes para transmitir tudo aquilo que “a
alma quer dizer”.
Nossa tarefa é aclarar se essas afirmações correspondem à realidade,
se de fato os “tormentos da palavra” são só consequência da
“insuficiência” das palavras ou de sua “impotência”.
Vimos que as condições de luta conjunta contra a natureza, que
assumiam a forma de um processo econômico‐mágico coletivo,
provocaram inicialmente a aparição de uma linguagem mímica
cotidiana, e depois de uma linguagem sonoro‐sagrada. Com o passar do
tempo, a linguagem sonora se tornou também patrimônio da vida
cotidiana, da comunicação na vida de todos os dias. Desenvolveu‐se
graças aos inumeráveis entrecruzamentos provocados pelo crescimento
posterior da atividade econômica do homem. Desde os primeiros
estágios de sua formação, as relações linguísticas dos homens estavam
estreitamente ligadas com outras formas de relações sociais. As relações
linguísticas nascem num terreno comum a todos os tipos de relações,
aquele das relações produtivas. A comunicação verbal sempre esteve
ligada, como veremos, à situação real da vida, às ações reais dos
homens: laborais, rituais, lúdicas e outras mais. Que ocorreu enquanto
isso na consciência do homem? Desenvolveu‐se, talvez,
independentemente da comunicação verbal, ou há um vínculo entre
elas? Nesse caso: que tipo de vínculo? Pode‐se demonstrar que o
crescimento da consciência determina o crescimento da linguagem, a
quantidade de palavras, de expressões. Acaso uma pessoa de
consciência confusa, apenas despertada, pode servir‐se de uma
linguagem rica e evoluída, com uma enorme bagagem de palavras
variadas, de frases construídas com precisão e de expressões exatas?
Obviamente, não. Graças a essa aparente obviedade, frequentemente se
cai em erro, um erro absolutamente idêntico àquele em que vivia a
145
humanidade até os notáveis descobrimentos de Copérnico9. Afinal, não
é evidente que o sol “sai” e “se põe” todos os dias e que, portanto, gira
ao redor da Terra? Essa evidência, no entanto, não é senão um erro de
nossos sentidos: na realidade é a Terra que gira ao redor do Sol e não o
contrário. A mesma “evidência” ocorre para quem observa o problema
das relações existentes entre a linguagem e a consciência.
Tratemos, antes de tudo, de definir o que é a nossa consciência.
Fechemos os olhos e comecemos a refletir sobre esse problema. A
primeira coisa que captaremos em nós mesmos será uma espécie de
fluxo de palavras, às vezes ligadas a frases definidas, mas na maior
parte das vezes soltas numa dança ininterrupta de mudanças de
pensamentos, de expressões habituais, de impressões gerais provocadas
por objetos e por fenômenos da vida fundidos num único conjunto.
Essa multicolorida caleça verbal se move o tempo todo, quer afastando‐
se, quer aproximando‐se ao tema fundamental, o problema sobre o qual
estamos refletindo. Mas tratemos de separar totalmente as palavras.
Que poderemos observar?
É possível que apareçam representações visuais ou acústicas,
retalhos de imagens da natureza ou fragmentos de melodias escutadas.
Esqueçamos também isso. Provavelmente sentiremos agora as batidas
do coração ou ouviremos o rumor do sangue ou nascerão
representações relacionadas com o trabalho de nossos músculos – as
chamadas representações “motoras”. Mas se conseguirmos, com
excepcional esforço, separar também essas representações motoras, que
restará de nossa consciência?
Nada.
A completa falta de ser, similar ao estado de inconsciência, ou ao
sono sem sonhos. Para voltar ao estado normal “consciente” deveremos
romper esse muro do não‐ser, regressar à confusão viva das palavras e
das imagens com que tomam corpo nossos pensamentos, desejos e
sentimentos; deveremos pronunciar palavras para nós mesmos, ainda
que seja somente uma pequena palavra, “eu”.
9 Nicolas Copérnico (1462‐1543) foi o principal astrônomo que demonstrou que o astro
central é o Sol em torno do qual giram todos os planetas, inclusive a Terra. Essa
teoria, em contraste com a Bíblia, provocou a oposição do clero, mas a verdade
científica se demonstrou mais forte que a ignorância religiosa.
146
Chamaremos a esse fluxo de palavras que observamos em nós
mesmos de linguagem interior. Se observarmos atentamente nosso
interior veremos que, no fim das contas, nenhum ato de consciência
pode ser realizado sem ela. Inclusive quando surge uma sensação
puramente fisiológica – por exemplo, a sensação de fome ou sede – para
“sentir” essa sensação, para tomar consciência dela, devemos
necessariamente expressá‐la de algum modo10, incorporando‐a ao
material da linguagem interior. Essa expressão de uma necessidade
puramente fisiológica está condicionada, desde o começo, pela vida
cotidiana e social, pelo ambiente em que vivemos, como o está também
a sensação.
5. A “sensação” e a “expressão”
Tomemos uma expressão verbal simplíssima de qualquer
necessidade, por exemplo, da fome. É possível uma expressão pura
dessa necessidade sem qualquer conformação com nenhuma
linguagem, nem interior nem exterior ou, para dizer melhor, que não
seja ideologicamente refractada? Obviamente não encontraremos nunca
semelhante expressão pura da fome – por assim dizer, a voz mesmo da
natureza – livre de todo elemento social.
Qualquer necessidade natural, para tornar‐se desejo humano
sentido e expresso, deve passar necessariamente pelo estágio da
refracção ideológica e social, da mesma maneira como a luz do sol ou
das estrelas pode alcançar nossos olhos: somente depois de ser
refractada inevitavelmente na atmosfera terrestre. Em realidade, o
homem não pode pronunciar nem uma só palavra permanecendo
homem puro e simples, indivíduo natural – biológico – variedade
bípede do reino animal. A mais simples expressão de fome: “quero
comer” pode ser pronunciada – expressa – somente numa determinada
língua – ainda que seja a linguagem mímica – e será pronunciada com
determinada entonação11, com uma gesticulação determinada. Assim,
10 Quer dizer, com qualquer signo, palavra, gesto, desenho, símbolo etc.
11 A entonação é dada pela elevação ou descenso da voz e expressa nossa atitude em
relação ao objeto da enunciação, atitude que pode ser feliz, aflita, entusiasmada,
interrogativa, etc.
147
nossa expressão mínima de uma necessidade biológica, natural, recebe
inevitavelmente uma coloração sociológica e histórica: da época, do
ambiente social, da classe social do falante, e a da situação real e
concreta em que a enunciação ocorreu.
Tratemos de suprimir todos os estratos que dão forma social e
histórica a nossa expressão de fome.
Para começar, esqueçamos da língua usada, depois da entonação da
voz, do gesto, etc. e finalmente... nos encontraremos na situação ridícula
da criança que queria encontrar o núcleo da cebola tirando, uma depois
da outra, as camadas que a compõem. Da expressão, assim como da
cebola, não resta nada. Como veremos imediatamente, sequer da
sensação resta algo.
Observemos com mais atenção o modo como a situação social
imediata, na qual se pronunciou a expressão da própria fome,
determina a forma da enunciação. Resolvendo esse problema, lançamos
uma ponte temática com nosso próximo artigo12e ao mesmo tempo
conduziremos a discussão às conclusões a que deveremos chegar.
Antes de tudo: a quem o falante evidencia seu desejo de comer? Se
ele fala com uma pessoa que tem o dever de alimentá‐lo – um escravo,
um servo etc. – expressará seu desejo na forma de uma ordem, com
clara entonação imperativa, ou ainda de uma maneira gentil, fará um
pedido, mas certo de sua imediata satisfação.
Vale a pena pensar até que ponto são distintas e variadas as formas
verbais que servem aos homens para expressar o desejo de comer, e que
dependem do lugar em que se encontram: se são hóspedes de alguém,
ou se estão em sua própria casa, se estão num restaurante ou à mesa,
num encontro social etc. Também é grande a distância entre as
entonações de vozes que ressoam na herança, ainda não acabada, dos
antigos cultos mágicos, na fórmula da oração “o pão nosso de cada dia
nos dai hoje” e no grito desesperado de Hestakov: “Tenho uma fome
terrível! E não estou mentindo!”.
Vemos, portanto, que o estado puramente fisiológico da fome por si
mesmo não pode ter uma expressão: é necessário que o organismo esteja
12 Refere‐se, mais uma vez, ao artigo “A construção da enunciação” que compõe esta
coletânea [Nota de Guillermo Blanck, organizador do volume editado em espanhol].
148
numa situação social e histórica bem definida. O elemento decisivo é
representado pelas perguntas: quem tem fome? em companhia de quem?
entre que pessoas? Em outras palavras, toda expressão tem uma orientação
social. Em consequência, ela é determinada pelos participantes do
acontecimento constituído pela enunciação, participantes próximos e
remotos. A interação entre os participantes desse acontecimento dá
forma à enunciação, faz com que soe de uma determinada maneira e
não de outra: como pedido peremptório ou como súplica, fazendo valer
os próprios direitos ou suplicando um favor, com um estilo simples ou
altissonante, com segurança ou com timidez.
Precisamente essa dependência da enunciação às circunstâncias
concretas em que ocorre tem para nosso exame um significado de
extrema importância. Se não levamos em conta essas circunstâncias, se
não temos em conta a correlação de classe existente entre os falantes,
não poderemos colocar corretamente os problemas que para nós são
mais importantes: os problemas da estilística artística. Só quando
tivermos estudado a relação existente entre o tipo de intercâmbio
comunicativo social e a forma da enunciação, quando tivermos visto
que qualquer “expressão” de qualquer “sensação” representa o
testemunho de um fato social, só então os problemas de estilística
poderão ser esclarecidos em profundidade.
Ainda temos que enfrentar outra tarefa. Como vimos, a expressão
de qualquer sensação necessita antes de tudo da linguagem, entendida
em seu sentido mais amplo, isto é, como linguagem exterior e interior.
Sem a linguagem, sem uma enunciação bem definida, verbal ou gestual,
não existe expressão; assim como não existe expressão sem uma real
situação social com participantes reais.
Mas, e a sensação? Também ela tem necessidade da linguagem?
Nossos sentimentos, o amor, o ódio, a felicidade, têm também essa
necessidade de apoio da linguagem e sem ela não podem alcançar sua
plenitude na consciência do homem? Responder a essa pergunta não é
difícil. Em realidade, até a tomada de consciência simples, difusa, de
qualquer sensação, mesmo da fome, inclusive no caso de não haver
qualquer expressão exterior, necessita de uma forma ideológica. Assim,
qualquer tomada de consciência tem necessidade da linguagem interior,
de uma entonação interior e de um embrionário estilo interior: a tomada
149
de consciência da própria fome pode ser suplicante, colérica, enojada,
indignada etc. A expressão exterior, na maioria dos casos, não faz senão
seguir aclarando a orientação social da linguagem interior e as
entonações que já estão nela contidas.
Tratemos de fazer uma experiência de introspecção.
Provavelmente todos já experimentamos uma sensação de alegria
imprevista. Imaginemos estar profundamente alegres por termos lido,
sem esperá‐la, uma bela resenha de um trabalho nosso que
considerávamos medíocre13. Qual é a mais importante força
organizadora de nossa sensação? Sem dúvida, tudo o que está ligado ao
aspecto exterior desse acontecimento: o fato de que em uma revista tenha
aparecido um belo comentário que esperávamos. Chamaremos situação à
circunstância de um acontecimento dado. A partir de agora usaremos
sempre esse termo, razão por que é importante recordá‐lo14.
Portanto, a situação é condição necessária para nossa sensação.
Como se compõe essa sensação? Antes de tudo, ocorre uma série inteira
de fenômenos ligados ao nosso organismo: a respiração se acelera, o
coração bate com maior frequência, há movimentos musculares – desejo
de esfregar as mãos – etc. Chamaremos de reações orgânicas a todo esse
conjunto de fenômenos que representam uma espécie de resposta
inconsciente de nosso organismo ao fato externo.
Essa reação orgânica, essas modificações corpóreas do organismo,
causadas pela ação da situação externa, quer dizer, da situação da
leitura de uma resenha elogiosa, vêm acompanhadas inevitavelmente
pelo fluxo de linguagem interior, graças ao qual podemos esclarecer a
nós mesmos tudo o que está ocorrendo.
No momento mesmo em que lemos, esse fluxo pode sair ao exterior,
na linguagem exterior, sob a forma de exclamações de alegria, que
13 [N.T.] Na edição em língua espanhola aparece neste parágrafo uma incoerência: o
encontro com a resenha inesperada passa, na sequência da exposição, a ser um
encontro com uma resenha esperada, desejada há longo tempo. Conferimos a
tradução italiana, em que a mesma incoerência aparece. Como não afeta a
argumentação do autor, mantivemos a incoerência, pois não temos acesso à versão
original em russo.
14 A situação – em francês: la situation – indica a circunstância, a condição em que algo
ocorre. Na maior parte das vezes, esta palavra é usada para indicar cada momento
particular da interação das personagens de uma obra teatral.
150
depois se transformam num discurso com uma forma mais precisa e
sistemática. Não existe uma diferença qualitativa entre a primeira
percepção do coração que bate ante tão esperada resenha e os
enunciados já claros e distintos que começamos a trocar com quem quer
que seja, talvez depois de alguns minutos.
Pode‐se dizer que todo campo da vida interior, todo o mundo de
nossas sensações, move‐se numa área que o situa entre o estado
fisiológico do organismo e a expressão exterior. Quanto mais se
aproxima este mundo das sensações a seu limite mais baixo, tanto mais
confusa e obscura é a sensação e por isso tanto mais confuso e obscuro
será seu conhecimento, sua percepção. Mas quanto mais nos
aproximamos do seu limite superior – a expressão acabada – mais
complexa é a sensação, mas ao mesmo tempo expressará toda a
complexidade da situação social com maior claridade, com maior
riqueza e maior plenitude. A linguagem interior é a esfera, o campo em que o
organismo passa do ambiente físico ao social. Nele se dá toda a
sociologização de todas as reações e manifestações orgânicas.
Obviamente nos estágios mais elementares de desenvolvimento,
a expressão verbal pode ser substituída por outros meios: a linguagem
das mãos, gritos inarticulados, mas entonados de modo expressivo etc.
A relação entre sensação e expressão, mesmo nesses casos, permanece a
mesma. Uma consciência que não se encarna no material ideológico da
palavra interior, do gesto, do signo, do símbolo, não existe ou não pode
existir.
6. A ideologia cotidiana
Estabeleçamos o acordo de chamar de ideologia cotidiana a todo
conjunto de sensações cotidianas – que refletem e refratam a realidade
social objetiva – e as expressões exteriores imediatamente a elas ligadas.
A ideologia cotidiana dá significado a cada ato nosso, a cada ação nossa
e a cada um de nossos estados “conscientes”. Do oceano instável e
mutável da ideologia afloram, nascem gradualmente as inumeráveis
ilhas e continentes dos sistemas ideológicos: a ciência, a arte, a filosofia,
as teorias políticas.
151
Esses sistemas são, no fim das contas, um produto do
desenvolvimento econômico, um produto do enriquecimento técnico e
econômico da sociedade. Por sua vez, esses sistemas exercem uma
influência fortíssima sobre a ideologia cotidiana e na maior parte das
vezes lhe dão o tom dominante. Ao mesmo tempo, esses produtos
ideológicos em formação conservam sempre um vínculo vivíssimo com
a ideologia cotidiana, se nutrem de seus jogos e, separados dela, se
deterioram e morrem.
Não se creia que a ideologia do cotidiano seja uma coisa inteira,
monolítica, uniforme em todas as suas partes. Nela devemos distinguir
uma série completa de estratos, desde os mais baixos que se movem e se
modificam mais facilmente até os superiores que são limítrofes diretos
dos sistemas ideológicos.
Neste momento, estamos pouco interessados nos estratos inferiores,
isto é, em todas as sensações e pensamentos confusos, pouco
desenvolvidos nas palavras casuais e inúteis que relampeiam em nossa
consciência. É mais importante para nós conhecermos os estratos
superiores da ideologia cotidiana que têm um caráter criativo.
Nesses estratos superiores acontece o intercâmbio comunicativo do
autor com seus leitores, que é para nós substancial. Aqui se elabora sua
língua em comum e sua correlação – para sermos mais precisos, sua
orientação recíproca. O autor e o leitor se encontram num plano
extraliterário comum, talvez ambos tendo a mesma profissão,
participando das mesmas reuniões e das mesmas sessões, discutindo
tomando o mesmo chá, escutando as mesmas conversas, lendo os
mesmos jornais e os mesmos livros, vendo os mesmos filmes. Aqui se
criam, se formam e se estabilizam seus “mundos interiores”. Aqui, em
outras palavras, ocorre o “entrecruzamento” de suas opiniões, de suas
ideias, como o entrecruzamento das línguas tribais de que falamos
anteriormente.
7. A criação artística e a linguagem interior
Do que dissemos, fica claro que o fenômeno habitualmente
chamado de “individualidade criativa” é na verdade a expressão de
uma linha rígida e constante da orientação social, seja de opiniões de
152
classe, de simpatias e antipatias de classe de uma pessoa dada, que
foram criadas e tomaram forma em sua linguagem interior.
A estrutura sociológica dos estratos superiores da linguagem
interior e as orientações sociais nela contidas determinam em grau
significativo a criação ideológica, e em particular a artística, de uma
pessoa dada e nessa criação encontram‐se seu desenvolvimento final e
sua conclusão. É muito importante ter isso presente. É necessário
recordar que qualquer obra significativa e original, para sermos
precisos, se cria no curso de toda vida do escritor, do artista ou do
compositor. Temos dito que, sobretudo, as principais orientações de
suas simpatias e antipatias de classe, de suas ideias, de seus gostos,
determinam e impregnam o conteúdo e a forma da obra, já elaboradas e
postas em evidência na linguagem interior. Elas não são transformadas
ao prazer do momento e suas exigências literárias. Em certo sentido,
elas foram dadas ao escritor, e o desenho artístico, o tema, o gênero etc.
são escolhidos e construídos em seus âmbitos, os quais, ainda que
amplos, são fixos e estáveis.
A linguagem artística exterior não pode entrar em colisão com as
orientações sociais fundamentais da linguagem interior. Ao tentar fazê‐
lo, perde sua produtividade e força, soa falsa como uma lição repetida
por um papagaio com uma entonação casual, descolorida e pouco
convincente. O estilo da linguagem interior deve determinar o estilo da
linguagem exterior, ainda que a linguagem exterior tenha uma
influência reversa sobre a linguagem interior. Entre o estilo interior e o
exterior, entre o estilo da “alma” e o estilo da obra, existe a mesma
interação que entre a ideologia cotidiana e o sistema ideológico já
formado, fixado: a linguagem interior reaviva, nutre com seus jogos,
tanto a linguagem exterior comum quanto a linguagem criativa, mas, ao
mesmo tempo, é determinada por essa linguagem exterior.
Normalmente não haveria aqui uma ruptura, um salto. O mesmo
grupo social que deu a uma pessoa a língua, que orientou suas ideias,
seus gostos, seus juízos, que, numa palavra, determinou o tom e o caráter
de sua vida interior, agora se contrapõe como ambiente exterior, como
massa de leitores, como grupo de apreciadores e críticos de sua obra
artística. Por isso, se nascem conflitos ou contradições entre a
153
linguagem interior e a linguagem exterior do escritor, existem razões
sociais particulares que causam esse conflito.
Com essas palavras, queremos indicar o caminho que leva à correta
solução do problema dos “tormentos da palavra”: deveremos,
entretanto, falar disso quando examinaremos, em continuidade, a
estrutura da obra artística e o papel da palavra nessa estrutura. Por
enquanto, tratemos de nos representar da maneira mais sistemática
possível o caminho percorrido pela criação artística.
A passagem da sensação, como expressão interior, à enunciação
realizada exteriormente, é o primeiro estágio da criação ideológica, em
nosso caso, da literatura. Nesse estágio se reforça a orientação social que
já estava presente na sensação, ou cuja possibilidade estava nela
esboçada. Aqui, em certo sentido, aparece e se leva em consideração o
potencial ouvinte, o potencial participante no acontecimento que
provoca a passagem da expressão interior à exterior. Nesse estágio,
ocorre a primeira prova e a primeira verificação das formas ideológicas
da sensação.
No segundo estágio de realização, a forma cotidiana primitiva se
torna já um produto ideológico, uma obra no sentido preciso do termo.
Aqui ocorre uma reestruturação substancial de toda a estrutura social
da expressão: o ouvinte, que antes era uma figura esboçada,
pressuposta – o ouvinte “interior” – agora se torna ouvinte efetivo,
realmente existente, e passa a ser considerado como representante de
uma massa organizada de leitores.
O momento mais fundamental desse segundo estágio é o domínio
do material, sua transformação em objeto de arte – em uma estátua,
quadro, sinfonia, poema, novela etc. No primeiro estágio, a passagem
da linguagem interior à exterior ainda se dava nas profundezas da
ideologia cotidiana. Por isso não era possível falar em maestria artística,
em procedimentos artísticos etc. Mas na literatura, o segundo estágio
aqui examinado se encontra muito próximo do estágio precedente, já
que a linguagem é tanto material como instrumento da criação.
Finalmente, no terceiro e último estágio de sua realização, o produto
técnico deve adaptar‐se às condições técnicas exteriores. Acontece aqui a
transformação técnica da forma do material. A obra deve assumir uma
154
orientação frente à redação, à casa editorial, à tipografia, ao mercado de
livros etc.
Nos três estágios, o processo de realização da obra de arte ocorre
num único ambiente – o ambiente social. Esse processo é contínuo: da
sensação confusa à impressão do livro, não corre mais que uma precisão
e um alargamento da estrutura social que já estava presente nos
primeiros vislumbres da consciência do homem. Não existem, nem
podem existir, fronteiras nítidas entre os diversos momentos desse
processo – entre a obra isolada e o encontro com o público: a sensação
interior era desde o começo uma expressão exterior – ainda em forma latente;
o ouvinte – ainda pressuposto – era desde o começo um elemento necessário
de sua estrutura.
8. Conclusões
Agora podemos extrair algumas conclusões. Dissemos que a
linguagem nasce da necessidade de comunicação dos reagrupamentos
humanos da primeira idade da pedra. Inicialmente se compõe de
gestos, da mímica, e depois do material sonoro. Servindo a estas
necessidades de comunicação dos homens, a linguagem serve ao
mesmo tempo como instrumento particular de um processo econômico,
serve de conjuro mágico. Sendo produto da vida social, refletindo‐a não
só no campo semântico mas também nas formas gramaticais, a
linguagem tem ao mesmo tempo uma enorme influência inversa sobre o
desenvolvimento da vida econômica e sócio‐política.
Com a ajuda da linguagem se criam e se formam os sistemas
ideológicos, a ciência, a arte, a moral, o direito, e ao mesmo tempo a
linguagem cria e forma a consciência de cada homem.
Toda a vida interior do homem depende dos meios que lhe servem
para expressá‐la. Sem linguagem interior não existe consciência, assim
como não existe linguagem exterior sem linguagem interior15.
15 [N.T.] Mantida aqui a forma de tradução tanto do espanhol quanto do italiano. No
155
A ideologia social, os sistemas ideológicos já formados não são
senão uma ideologia cotidiana sistematizada e fixada com signos
externos – “psicologia social”.
O caminho percorrido pela criação literária é o seguinte: da sensação
ou da expressão embrionária à enunciação expressa exteriormente. Na
base da sensação e na base da expressão há uma única estrutura social.
Qualquer fenômeno da realidade objetiva, qualquer situação, ao
provocar no homem uma reação orgânica, habitualmente faz emergir a
linguagem interior que facilmente se transforma em linguagem exterior.
Tanto a linguagem interior quanto a exterior se encontram
orientadas para o “outro”, para o “ouvinte”. Tanto o falante quanto o
ouvinte são participantes conscientes do acontecimento da enunciação e
ocupam nele posições interdependentes.
A enunciação artística, isto é, a literária, é tão sociológica quanto a
enunciação cotidiana.
Somente com uma investigação sociológica nos aproximaremos do
esclarecimento da essência dos fenômenos ligados aos conflitos da linguagem
interior com a linguagem exterior, que levam o nome característico de
“tormentos da palavra”. Mas disso falaremos noutra oportunidade.
156
A CONSTRUÇÃO DA ENUNCIAÇÃO
1. O intercâmbio social e a interação verbal
Em nosso artigo anterior1, esclarecemos a natureza social da
linguagem. Indicamos os fatores, as forças motoras que determinaram
as origens e o desenvolvimento da linguagem: a organização do trabalho
na sociedade e a luta de classes. Estamos convencidos do fato de que a
linguagem humana é um fenômeno de duas faces: cada enunciação
pressupõe, para realizar‐se, a existência não só de um falante, mas
também de um ouvinte. Cada expressão linguística das impressões do
mundo externo, quer sejam imediatas quer sejam aquelas que se vão
formando nas entranhas de nossa consciência e receberam conotações
ideológicas mais fixas e estáveis, é sempre orientada para o outro, até um
ouvinte, inclusive quando este não existe como pessoa real. Já vimos
que até as mais simples, as mais primitivas expressões de desejos, de
percepções puramente fisiológicas, têm uma clara estrutura sociológica.
Tudo isso nos dá a possibilidade de dar uma definição conclusiva
da linguagem e passar a um exame mais detalhado da enunciação da
vida cotidiana; e depois, da enunciação literária.
Antes de tudo, devemos recordar que a língua não é algo imóvel,
dada de uma vez para sempre e rigidamente fixada em “regras” e
“exceções” gramaticais. A língua não é de modo algum um produto
morto, petrificado, da vida social: ela se move continuamente e seu
desenvolvimento segue aquele da vida social. Este movimento
progressivo da língua se realiza no processo de relação entre homem e
homem, uma relação não só produtiva, mas também verbal. Na
comunicação verbal, que é um dos aspectos do mais amplo intercâmbio
comunicativo – o social –, elaboram‐se os mais diversos tipos de
enunciações, correspondentes aos diversos tipos de intercâmbio
comunicativo social.
1 Refere‐se ao artigo “Que é a linguagem?”, publicado neste volume. (Nota do
organizador da edição argentina, Guillermo Blanck).
157
Não compreenderemos nunca a construção de qualquer enunciação
– por completa e independente que ela possa parecer – se não tivermos
em conta o fato de que ela é só um momento, uma gota no rio da
comunicação verbal, rio ininterrupto, assim como é ininterrupta a
própria vida social, a história mesma.
Mesmo a comunicação verbal não passa de uma das inumeráveis
formas de desenvolvimento – “de formação” – da comunidade social na
qual se realiza a interação verbal entre pessoas que vivem uma vida
social. Por isso, seria uma tarefa desesperada tentar compreender a
construção das enunciações, que formam a comunicação verbal, sem ter
presente nenhum de seus vínculos com a efetiva situação social que as
provoca.
Assim, chegamos a nossa última conclusão: a essência efetiva da
linguagem está representada pelo fato social da interação verbal, que é realizada
por uma ou mais enunciações.
De que depende e em que ordem ocorre a mudança das formas da
linguagem?
O material do artigo precedente nos permite construir um esquema
do processo que provoca esta mudança, esquema que dá uma resposta
à pergunta feita:
1. Organização agrícola da sociedade.
2. Intercâmbio comunicativo social.
3. Interação verbal.
4. Enunciações.
5. Formas gramaticais da língua.
Esse esquema nos serve como guia na investigação dessa unidade
real da linguagem que chamamos enunciação.
Não devemos, obviamente, encerrar‐nos no exame dos problemas
ligados ao estudo das formas e dos tipos de vida econômica da
sociedade. Esses problemas são objeto de estudo de outras ciências, as
ciências sociais, e em particular a economia política.
Tampouco nos entreteremos muito no exame dos vários tipos de
intercâmbio comunicativo social. Para nosso objetivo, é suficiente indicar
os tipos mais essenciais e mais frequentes. Somente a um deles vamos
dedicar, em nossos sucessivos artigos, uma atenção particular,
precisamente o intercâmbio comunicativo artístico.
158
Se observarmos de perto a vida social, podemos individualizar
facilmente, além do intercâmbio comunicativo artístico já assinalado, os
seguintes tipos: 1. o intercâmbio comunicativo ligado à produção2 – nas
fábricas, nas indústrias, na agricultura3, etc.; 2. o intercâmbio
comunicativo dos negócios – nos escritórios, nas organizações sociais,
etc.; 3. o intercâmbio comunicativo da vida cotidiana – encontros e
conversas pela rua, a [conversação] permanente numa mesa social, na
própria casa, etc.; 4. o intercâmbio comunicativo social no sentido
próprio do termo: propagandístico, escolar, científico, filosófico, em todas
suas variações.
O que havíamos chamado no artigo precedente de situação não é
senão a efetiva realização na vida real de uma das formas, de uma das
variedades, do intercâmbio comunicativo social.
Qualquer situação da vida em que se organize uma enunciação, não
obstante, pressupõe inevitavelmente protagonistas, os falantes.
Chamaremos auditório da enunciação à presença dos participantes da
situação.
Cada enunciação da vida cotidiana – veremos isso mais adiante –
compreende, além da parte verbal expressa, também uma parte extra
verbal não expressa, mas subentendida – situação e auditório – sem cuja
compreensão não é possível entender a própria enunciação. Essa
enunciação, enquanto unidade da comunicação verbal, enquanto
unidade significante, elabora e assume uma forma fixa precisamente no
processo constituído por uma interação verbal particular, gerada num
tipo particular de intercâmbio comunicativo social. Cada tipo de
intercâmbio comunicativo referido anteriormente organiza, constrói e
completa, à sua maneira, a forma gramatical e estilística da enunciação,
sua estrutura tipo, que chamaremos a partir daqui de gênero.
2 [N.T.] Na edição argentina, a palavra “produção” foi omitida, mas ela aparece na
edição em italiano.
3 [N.T.] A edição em língua espanhola mantém aqui o termo russo “koljós”, que
segundo nota de Guillermo Blanck significa “cooperativa agrária”. Optei pelo
genérico “agricultura”, já que quando da publicação deste artigo, esta produção se
fazia coletivamente nas cooperativas de produção agrícola, o que já não ocorre, de
modo que o termo “koljós” passa a ter aqui um sentido metonímico. (N.T.)
159
Observemos, ainda que seja brevemente, a relação de um tipo de
intercâmbio comunicativo social – o da vida cotidiana – com seu
correspondente tipo de interação verbal.
Já vimos como a situação e o auditório provocam a passagem da
linguagem interior a uma expressão externa, a qual é parte integrante
de uma situação da vida que permanece não expressa – mas
subentendida – e se completa nela por meio de uma ação, de um ato ou
de uma resposta verbal dos outros participantes da enunciação.
... Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido são
enunciações completas típicas da vida corrente. Todas (particularmente
as ordens, os pedidos) exigem um complemento extraverbal assim
como um início não verbal. Esses tipos de discursos menores da vida
cotidiana são modelados pela fricção da palavra contra o meio
extraverbal e contra a palavra do outro.
Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela pode
encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A modelagem das
enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não
reiteráveis das situações da vida corrente. Só se pode falar de fórmulas
específicas, de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando
existem formas de vida em comum relativamente regularizadas,
reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias. Assim, encontram‐se tipos
particulares de fórmulas estereotipadas servindo às necessidades da
conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma obrigação, em que
todos os participantes são familiares uns aos outros e onde a diferença
principal é entre homens e mulheres. Encontram‐se elaboradas formas
particulares de palavras‐alusões, de subentendidos, de reminiscências
de pequenos incidentes sem nenhuma importância, etc. Um outro tipo
de fórmula elabora‐se na conversa entre marido e mulher, entre irmão
e irmã. Pessoas inteiramente estranhas umas às outras e reunidas por
acaso (numa fila, numa entidade qualquer) começam, constroem e
terminam suas declarações e suas réplicas de maneira completamente
diferente. Encontram‐se ainda outros tipos de serões no campo, nas
quermesses populares na cidade, na conversa dos operários à hora do
almoço, etc. Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui
um auditório organizado de uma certa maneira e consequentemente
um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A fórmula
estereotipada adapta‐se, em qualquer lugar, ao canal de interação
social que lhe é reservado, refletindo ideologicamente o tipo, a
160
estrutura, os objetivos e a composição social do grupo. As fórmulas da
vida corrente fazem parte do meio social, são elementos da festa, dos
lazeres, das relações que se travam no hotel, nas fábricas, etc. Elas
coincidem com esse meio, são por ele delimitadas e determinadas em
todos os aspectos. (Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 125‐126)4
4 [N.T.] Transcrição direta dessa passagem conforme aparece na edição brasileira do
livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (Mikhail Bakhtin (Volochínov), São Paulo:
Hucitec, 1981). Numa tradução direta da edição argentina que estamos manuseando,
a passagem teria a seguinte formulação:
Uma pergunta completa, uma exclamação, uma ordem, um pedido: eis aqui as
formas mais típicas da enunciação da vida cotidiana. Todas elas – sobretudo a ordem
e o pedido – necessitam de um complemento e de um começo extraverbal. O tipo
mesmo de execução desses pequenos gêneros cotidianos é determinado pelo impacto
da palavra com o ambiente extraverbal e pelo impacto da palavra com uma palavra
alheia – uma palavra de outras pessoas.
Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que pode encontrar, pelo
grau de obediência, etc. A execução do gênero, neste caso, depende das características
peculiares das situações da vida, que são casuais e irrepetíveis.
Pode‐se falar de tipos específicos de realização de gêneros da linguagem cotidiana
somente onde existam formas de intercâmbio comunicativo cotidiano que sejam de
algum modo estáveis, fixadas pelo hábito e pelas circunstâncias.
Assim, um tipo particular de realização de gênero se encontra na conversa de
salão, ligeira e casual, onde todos estão entre conhecidos e onde a diferenciação –
subdivisão – substancial entre os presentes – chamamos “auditório” – é a divisão
entre homens e mulheres. Aqui aparecem formas particulares de fala, a insinuação, as
frases veladas, a repetição de pequenas histórias de caráter notoriamente ligeiro.
Outro tipo de realização do gênero se encontra na conversa entre marido e mulher,
entre irmão e irmã. Pessoas heterogêneas, ao encontrarem‐se casualmente numa fila,
num escritório, etc. se manifestam e constroem suas réplicas de maneira
absolutamente distinta. Têm seus tipos particulares de enunciações os velórios
campesinos, as festas urbanas, as conversas dos trabalhadores na pausa de almoço,
etc. Cada situação fixa da vida corresponde a uma organização particular do
auditório, e em consequência a um repertório de pequenos gêneros cotidianos. O
gênero da vida cotidiana se situa sempre no leito do intercâmbio comunicativo social,
e é o reflexo ideológico de seu tipo de estrutura, seu objetivo e sua composição social.
O gênero da vida cotidiana é uma parte do ambiente social: da festa, do tempo livre,
da conversa de salão, da conversa no escritório, na oficina etc. Ele coincide com este
ambiente, é delimitado por ele e todos seus aspectos interiores resultam determinados
por ele. (V.N. Voloshínov/M. Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem).
Para leitores mais exigentes com a vida dos textos em suas múltiplas línguas,
transcrevo a seguir a versão em francês desta mesma passagem, tal como aparece em
Volosinov, Valentin Nicokaevic. Marxisme et Philosophie du Langage. Les
161
2. O discurso monológico e o discurso dialógico
Se se observa o processo de formação desses pequenos gêneros
cotidianos, não é difícil notar que a comunicação verbal, em cujo âmbito
eles nascem e se organizam, compõe‐se de dois momentos: a enunciação
feita pelo falante e sua compreensão por parte do ouvinte. Essa
compreensão contém sempre os elementos da resposta. Em realidade,
normalmente nós concordamos ou discordamos do que ouvimos.
fondamentaux de la méthode sociologique dans la Science du langage. Nouvelle
édition bilíngue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowski‐Ageeva.
(Limoges : Lambert‐Lucas, 2010):
... Une question, une exclamation, un ordre, une demande, voilà des touts achevés
parmi les plus typiques des énoncés de la vie courante. Tous (em particulier, l’ordre
et la demande) exigent un complément , tout comme une amorce. Le type même
d’achèvement propre à ces petits genres de la vie quotidienne est déterminé par le
frottement du Mot contre le milieu et le Mot d’autrui (le Mot des autres gens). Par
exemple, la forme de l’ordre est déterminé par les obstacles qu’il peut rencontrer, le
degré de soumission, etc. L’achèvement propre au genre reencontre ici les
particulatirés accidentelles et irréitérables des situations de la vie courante. On ne
peut parler de types de genres achevés dans la parole de la vie quotidienne que pour
autant qu’il existe des formes d’échange verbal dans la vie de tous les jours tant soit
peu stables, réglées par l’usage quotidien et les circonstances. Ainsi, un type
particulier de genre achevé est celui que prévaut dans la conversation légére de salon,
laquelle ne crée aucune obligation, où tous les participants appartiennen au même
cercle et où la différenciation principale de l’assistance (l’auditorie) est celle des
hommes et des femmes. Là naissent de formes particulères du Mot: allusions, sous‐
entendus, réminiscence de petits récits notoirement insignificantes, etc. Un autre type
de forme achevée reside dans la conversation du mari avec as femme, du frère avec as
soeur. C’est de façon intièrement diferente que des gens totalement étrangers les uns
aux autres, réunis par hasard quelque part dans une queue ou dans un bureau
quelconque commencent, finissent et construisent leurs affirmations et leurs
repliques. On observe encore d’autres types dans les veillés de village, les fêtes
populaires em ville, le bavardage des ouvriers pendant la pause à l’heure du
déjeuner, etc. Chaque situation quotidienne stable possède une organisation définie
de l’auditoire, et, par conséquent, une répertoire défini de petits genres du quotidien.
Partout, le genre du quotidien se coule dans le canal de l’échange social qui lui est
assigne, comme reflet idéologique du type, de la structure, de l’objectif et de la
composition sociale de cet échange social. Le genre du quotidien fait partie du milieu
social: la fête, les loisirs, la conversation de salon, l’atelier, etc. Il est en contact avec ce
milieu, qui le delimite et determine tous ses éléments internes. (p.324‐5).
162
Habitualmente respondemos a qualquer enunciação de nosso
interlocutor, se não com palavras, pelo menos com um gesto: um
movimento da cabeça, um sorriso, uma pequena sacudidela da cabeça,
etc. Pode‐se dizer que qualquer comunicação verbal, qualquer interação
verbal, se desenvolve sob a forma de intercâmbio de enunciações, ou seja,
sob a forma do diálogo5.
O diálogo – o intercâmbio verbal – representa a forma mais natural
da linguagem6.
Mais diretamente se pode acrescentar: as enunciações prolongadas
no tempo, de um só falante – o discurso de um orador, a conferência de
um professor, os raciocínios em voz alta de um homem solitário ‐, todas
essas enunciações têm de monológico apenas sua forma externa. Sua
essência, sua construção semântica e estilística são dialógicas. É
importantíssimo que todos os escritores que se servem do procedimento
do discurso monológico do herói o tenham presente.
De fato, em realidade, cada enunciação – um discurso, uma
conferência etc. – está dirigida a um ouvinte, quer dizer, a sua
compreensão e a sua resposta – obviamente não imediata, pois de fato não
se pode interromper um orador ou um conferencista para fazer‐lhe
observações ou dar‐lhe respostas – a sua concordância ou discordância –
em outras palavras, à escuta avaliativa do ouvinte, do auditório.
Qualquer orador ou conferencista tem presente esse aspecto dialógico
de seu discurso. Os atentos ouvintes que estão diante dele não são uma
massa indistinta, inerte, imóvel, de pessoas que o seguem com
indiferença. Ao contrário, diante do orador está um interlocutor vivo,
variado. Qualquer movimento de um ouvinte, sua postura, a expressão
do rosto, as tosses, a troca de posição, representam para o orador exímio
5 O diálogo é uma conversação recíproca entre duas pessoas, diferentemente do
monólogo, isto é, do discurso prolongado de uma só pessoa. As enunciações que trocam
os parceiros de um diálogo se chamam intervenções – podem‐se encontrar exemplos de
diálogo ou de monólogo em qualquer obra escrita para representação cênica.
6 A este propósito, leia‐se o artigo de L. P. Iakubinski – em realidade, bastante
complexo para um escritor principiante – na antologia A Linguagem Russa [Rúskaia
riech], com o título O discurso dialógico [O dialoguicheskoi riechi].
163
uma resposta clara e expressiva, que acompanha sem interrupções a seu
discurso7.
Muitas vezes um orador deve incluir improvisadamente uma
divagação, relatando um caso divertido ou uma anedota, não só para
reavivar o humor do auditório, mas às vezes também para sublinhar –
“acentuar” – um pensamento que de outra forma o ouvinte teria
deixado passar sem a devida atenção.
O orador que escuta somente sua voz, ou o professor que vê
somente seu manuscrito, é um mau orador, um mau professor. Eles
mesmos paralisam a forma de suas enunciações, destroem o vínculo
vivo, dialógico, com seu auditório e com isso tornam sem valor sua
intervenção.
3. A dialogicidade da linguagem interior
Poderiam objetar‐nos:
‐ Bem, admitamos que seja assim. Na realidade, nos exemplos
apresentados, o ouvinte‐interlocutor existe de fato e não é
surpreendente que o falante o leve em conta. Mas, como é quando esse
ouvinte não existe e o locutor se encontra sozinho? Acaso a construção
dos pensamentos mais íntimos, aqueles que se movem no fluxo da
linguagem interior ou são pronunciados em voz alta, acaso também
essas enunciações em segredo são socialmente orientadas, têm também
em conta um ouvinte? Essas enunciações solitárias não representam,
acaso, a fórmula mais pura do monólogo, não dirigido a nenhum outro,
senão ao próprio falante, e que não depende de ninguém além do seu
“estado de espírito”?
Afirmamos, decidida e categoricamente, que mesmo essas
intervenções verbais íntimas são totalmente dialógicas, estão totalmente
impregnadas com a valoração de um ouvinte potencial, de um auditório
potencial, mesmo quando o pensamento nesse ouvinte não tenha
passado pela mente do falante.
7 É interessante notar a curiosa sensação de impotência que experimentam
conferencistas habituados e artistas consagrados quando devem falar pela primeira
vez diante de um auditório absolutamente invisível e imperceptível, como diante de
um microfone durante uma transmissão radiofônica.
164
Isso ficou demonstrado no artigo precedente não só nas conclusões,
não só pela sociologicidade apontada por nós, da consciência humana –
das “sensações” e de suas “expressões”. Esse condicionamento social,
diremos inclusive mais precisa e francamente, esse condicionamento de
classe [social] sobre qualquer discurso monológico, cuja manifestação
externa é dada pela dialogicidade de tal discurso. Podemos verificar
isso por nós mesmos, com nossa experiência, sem nos servirmos de
material literário, diários, anotações íntimas, etc.
De fato, assim que começamos a refletir sobre um problema, assim
que começamos a examiná‐lo com atenção, de imediato nosso discurso
interno – às vezes pronunciado em voz alta – toma a forma de pergunta
e resposta, de afirmações e de sucessivas negações. Para dizê‐lo
resumidamente: nosso discurso se fragmenta em intervenções
separadas, maiores ou menores, toma forma dialógica.
Essa forma dialógica é claríssima quando temos que tomar uma
decisão. Nós vacilamos. Não sabemos qual é a melhor solução.
Começamos a discutir conosco mesmo, começamos a convencer‐nos da
exatidão de uma decisão. Nossa consciência parece quase dividir‐se em
duas vozes independentes que se contrapõem uma a outra.
E sempre uma dessas vozes, independentemente de nossa vontade e de
nossa consciência, coincide com a visão, com as opiniões e com as valorações da
classe a que pertencemos. A segunda voz é sempre a voz do representante
típico, ideal, de nossa classe.
“Minha ação será ruim?” “De que ponto de vista?” “Do meu,
pessoal?” Mas de onde extraí esse ponto de vista “pessoal” se não dos
pontos de vista daqueles com os quais fui educado, junto aos quais
estudei, cujas ideias tenho lido nos jornais e tenho escutado em encontros
e conferências? E se eu refuto as opiniões do grupo social a que até agora
pertencia, é somente porque a ideologia de outro grupo social começou a
dominar minha consciência, preenchendo‐a e obrigando‐a a reconhecer a
exatidão da realidade social objetiva que a gerou.
“Minha ação será ruim?”. Essa “voz da minha consciência”, de fato,
deveria soar assim: “tua ação será uma má ação do ponto de vista dos
outros, do ponto de vista dos melhores representantes de sua classe”.
Pode‐se demonstrar que nem sempre aceitamos esse “ponto de vista
dos outros” como necessário e concludente. De fato, às vezes
165
disputamos com ele, polemizamos com nosso invisível interlocutor‐
ouvinte. Mas suponhamos inclusive que uma pessoa esteja irritada com
a sociedade; ainda assim, quanto mais irreconciliável for sua hostilidade
contra ela, quanto mais pretenda afirmar o próprio “eu” individual, o
próprio “arbítrio” – como disse uma personagem de Dostoiévski – tanto
mais clara será a forma dialógica de seu discurso interno, tanto mais
claramente se observará o conflito num único fluxo verbal de duas
ideologias, de duas visões de classe que lutam entre si.
Assim, por exemplo, o ódio feroz pela sociedade proletária de um
contra‐ revolucionário, assim como o obtuso fastio de um “pequeno
burguês” não testemunham de fato a independência e a livre
“autoafirmação” de suas personalidades individuais. Seus monólogos,
pronunciados mentalmente ou em voz alta, embasam‐se
inevitavelmente na simpatia dos supostos ouvintes, isto é, de um
auditório invisível de “fragmentos da classe desfeita em mil pedaços”.
Todas as enunciações se construirão precisamente com base em sua
visão; suas possíveis opiniões e valorações determinarão a ressonância
interna ou externa da voz – a entonação ‐ e a escolha das palavras e sua
composição numa enunciação concreta. Uma simples exclamação mental
– do tipo do enojado “Chega! Acabemos com isto!” ou do indignado
“Nem pense nisso!” ‐ contém já o chamamento a um ouvinte possível,
seja companheiro, testemunha simpatizante ou juiz reconhecido.
É possível, obviamente, um caso muito mais complexo: aquele em
que ressoam na linguagem interna duas vozes contraditórias, mas de
igual valor, e não se saiba a qual delas dar prioridade, a qual das duas
seguir.
Esse caso – característico de uma época determinada – testemunha a
luta constante de duas classes, igualmente fortes para predominar na
luta histórica, luta que se internaliza na consciência individual.
Finalmente, um último caso: aquele em que a pessoa perdeu seu
ouvinte interno e em sua consciência se encontram desagregados todos
os pontos de vista sólidos e fixos; por isso toda a realidade objetiva do
indivíduo e todo seu comportamento social são conduzidos apenas por
inclinações e impulsos casuais, absolutamente irresponsáveis e sem
fundamento. Aqui estamos em presença de um fenômeno de desprendimento
ideológico do indivíduo do ambiente social, que habitualmente produz a
166
completa alienação do homem. Em condições sociais particularmente adversas,
essa separação do indivíduo de seu ambiente social ideológico, que o nutre, pode
levar à completa destruição da consciência, à loucura.
O caso que estamos examinando é riquíssimo em conflitos marcados
entre a linguagem interior e a linguagem exterior.
Quando o indivíduo se alheia da realidade social objetiva, quando
desaparece o sistema habitual de valoração e de pontos de vista, na
consciência devastada não resta nada que possa se converter numa
expressão reconhecida e autorizada de um comportamento social
produtivo e ideologicamente justificado. O mundo das novas palavras,
o mundo dos significados nascidos “da luz e da chama” das revoluções,
junto com a nova realidade social objetiva, ficou fora do umbral da
consciência, não entrou no horizonte do homem, não se tornou para ele
“algo próprio”. As velhas palavras perderam sua correspondência com
a realidade objetiva, deixaram de ser seus signos, seus símbolos; e o
indivíduo ficou só com seus confusos estados de ânimo e essas
sensações, em grande parte já fora das possibilidades de sua expressão
linguística e social. Esses estados de ânimo e essas sensações, à medida
que se alheiam de sua expressão e formulação ideológica – passagem
dos mais baixos estratos da ideologia cotidiana, limítrofes com o estado
fisiológico do organismo – se reagrupam cada vez mais em torno de um
único centro.
O indivíduo que se perdeu de seu mundo social encontra‐se então
no mundo de suas inclinações sensíveis, puramente naturais. Agora já
não se constituem como centro organizador os interesses sociais, os
chamados interesses “espirituais”, mas sim os interesses da vida sexual,
os interesses do sexo. Todas as épocas de crise e decadência,
acompanhadas de profundas mudanças econômicas e políticas,
conheceram esse triunfo do “homem animal” sobre o “homem social”.
Nas vísceras da classe moribunda, esse motivo ressoa mais forte
sempre. O sexo se torna o grande substituto – por falsificação e
substituição – do social. O amor, em sua forma mais elementar,
fisiológica, é declarado o valor máximo e, pelos lábios de seus porta‐
vozes literários, a consciência em decomposição da intelligentsia
167
burguesa da Europa ocidental do século XX tenta anunciar o “novo”
evangelho: “Em princípio era o sexo” (Przybyszewski)8.
Ainda antes, a literatura russa havia dado exemplos esplêndidos
dessa decomposição da personalidade social, obcecada pela devoradora
paixão sexual. Encontramo‐los – obviamente em outro terreno social –
sobretudo em Dostoiévski. Posterguemos a análise para o momento em
que nos ocuparemos da análise da estrutura do monólogo e do diálogo
artístico. Permitimo‐nos aprofundar bastante o problema da
dialogicidade de qualquer discurso cotidiano e de seu vínculo com um
ouvinte interior – pressuposto ou existente – porque desejávamos dar
ao escritor principiante uma interpretação estritamente materialista,
marxista, dos problemas que frequentemente são explicados de forma
muito psicologizante, acrescentemos idealista e por consequência
errônea. O escritor deve compreender os princípios e condições sociais
que na vida real criam as características e as situações que lhe
interessam. Na construção de seu herói, o escritor não pode esquecer
por nenhum instante que a força expressiva artística depende, em
medida considerável, da força da verdade da vida contida na obra.
A inexorável dialética dos acontecimentos sociais e a cruel coerência
da lei de causa e efeito devem ser as mesmas tanto na vida quanto na
novela.
4. A orientação social da enunciação
Voltemos ao nosso tema principal.
Estamos convencidos de que todo discurso é dialógico, dirigido a
outra pessoa, à sua compreensão e à sua efetiva resposta potencial. Essa
orientação a um outro, a um ouvinte, pressupõe inevitavelmente que se
tenha em conta a correlação sócio‐hierárquica entre ambos os
interlocutores. Como havíamos indicado em artigo precedente, a forma
da enunciação – por exemplo “quero comer” – muda segundo a posição
social do falante e do ouvinte, e segundo toda a situação social em que
tal enunciação se realiza. Chamemos, por convenção, de orientação social
8 Escritor polonês do movimento “Jovem Polônia”. Introduziu na literatura os temas
do inconsciente, da sexualidade, da psicopatologia e do irracional. [Nota de Rita
Bruzesse, uma das tradutoras do texto para o espanhol].
168
da enunciação a esta dependência do peso sócio‐hierárquico do auditório –
isto é, do pertencimento de classe dos interlocutores, de sua condição
econômica, profissão, hierarquia no serviço ou (como ocorria, por
exemplo, na Rússia antes da Reforma) pelo título, grau, quantidade de
servos da gleba, do capital, etc.
Essa orientação social estará sempre presente em qualquer
enunciação do homem, não só verbal, mas também gestual – através de
gestos ou mímica – independentemente da forma em que se realiza:
tanto se a pessoa fala consigo mesma – monólogo – quanto na
conversação participando duas ou mais pessoas – diálogo. A orientação
social é uma das forças vivas organizadoras que, junto com a situação
da enunciação, constituem não só a forma estilística mas também a
estrutura puramente gramatical da enunciação.
Nessa orientação social, encontra o seu reflexo o auditório da
enunciação – presente ou pressuposto – já que fora deste, como vimos,
não teria nascido, nem teria podido nascer nenhum ato de comunicação
verbal.
Para o escritor, que não constrói só enunciações, mas um complexo
perfil do herói, deve‐se notar que os chamados “bons modos” – o “saber
comportar‐se” em sociedade – são em essência a expressão gestual da
orientação social da enunciação.
A forma corporal exterior do comportamento social do homem –
movimentos das mãos, postura, tom de voz – que habitualmente
acompanha o discurso, é determinada pelo fato de ter em conta o
auditório presente e, em consequência, pela valorização que lhe é dada.
Que são as boas maneiras de Tchítchikov – que são diferentes segundo
se encontre em frente a Koróbotchka, a Pliúchkin ou do general
Betríchtchev9 – se não a expressão gestual do fato de ele ter sempre e
habitualmente em conta o auditório e compreender com sutileza tanto a
situação como a personalidade social do próprio interlocutor, atitude
que penetrou até a medula de Tchítchikov e que é necessária a todos
seus empreendimentos?
9 Trata‐se aqui de personagens de Almas mortas, de Gógol. (Nota de Guillermo Blanck,
organizador da edição argentina). Utilizei a grafia dos nomes das personagens tal
como aparece na edição brasileira de Almas Mortas (São Paulo: Abril Cultural, 1972).
169
A palavra e o gesto da mão, a expressão do rosto e a posição do
corpo são igualmente dependentes, são igualmente organizadas pela
orientação social. “Os maus modos” se devem ao fato de não levar em
conta o próprio interlocutor, por ignorar o vínculo sócio‐hierárquico
que existe entre falante e ouvinte; ao hábito – frequentemente
inconsciente – de não mudar a orientação social da enunciação – pela
palavra ou pelo gesto – quando muda o auditório.
Por isso o escritor, ao dotar seu herói de “maus” ou “bons” modos,
deve ter sempre presente que esses não podem ser explicados como
resultado de supostas “peculiaridades inatas”, quaisquer que sejam, ou
do “caráter” do herói. Poder‐se‐ia dizer que o herói recebeu seus modos
sobretudo pela educação. É óbvio que isso é parcialmente verdadeiro,
mas é preciso não esquecer que a educação mesma é a aspiração de
ensinar ao homem a ter constantemente em conta seu auditório – a que
se chama “saber comportar‐se em sociedade” ‐, de ensinar uma
expressão precisa e tática – a “cortesia” de Tchítchikov! – por meio de
gestos e de mímica, da orientação social das próprias enunciações.
5. A parte – subentendida – da enunciação
Cada enunciação, além dessa orientação social, contém um
significado, um conteúdo. Privada desse conteúdo, a enunciação torna‐
se um encadeamento de sons sem sentido e perde seu caráter de
interação verbal. “O outro” – o ouvinte – nada tem a fazer com tal
enunciação. Ela torna‐se incompreensível e deixa de ser condição e meio
de comunicação linguística. A essas enunciações privadas de sentido
pertencem os “versos” de Kruchónij: “Go osnieg kaid Mr batulba [...]10.
Essas enunciações podem ser interessantes por sua sonoridade, mas não
têm qualquer relação com a língua no sentido próprio do termo, e
portanto não nos cabe seu exame.
10 Trata‐se do poeta cubo‐futurista russo Alexeí E. Kruchóni (1886‐1969?), cujas poesias
consistiam em sequências de letras sem sentido. Em 1905, foi preso por sua militância
bolchevique. De origem camponesa, uniu‐se, depois da Revolução de Outubro, ao
grupo de esquerda em arte (o LEF), dirigido por Maiakovski. Kruchóni foi o teórico
mais produtivo e efetivo da “linguagem transracional” que buscou a destruição do
significado na poesia. (Nota de Guillermo Blanck).
170
Assim, cada enunciação efetiva, real, tem um significado
determinado. Entretanto, se tomarmos uma enunciação, inclusive a
mais comum – banal – nem sempre podemos fixar‐lhe imediatamente
seu significado. Muitos leitores, provavelmente, ouviram ou
pronunciaram as palavras “Ah, é assim!”. E a cada vez, por mais que se
quebre a cabeça, não se compreenderá o significado dessa enunciação se
não se conhecem todas as condições nas quais ela foi pronunciada. Em
condições distintas, em situações distintas, essa enunciação terá também
significados distintos.
Propomos a nossos leitores encontrar exemplos nos quais a mesma
enunciação verbal “Ah, é assim!” tenha um significado completamente
distinto: será um signo da surpresa, de indignação, de alegria, de
tristeza; em outras palavras, será nossa resposta, nossa réplica, a
acontecimentos e circunstâncias absolutamente diversos e
dessemelhantes. Quase todas as palavras de nossa língua podem ter
significados distintos, segundo o sentido geral de toda enunciação. Esse
sentido geral depende tanto da situação imediata que gerou
diretamente a enunciação, como de todas as causas e condições gerais
mais remotas daquele intercâmbio comunicativo verbal específico.
Assim, cada enunciação se compõe, em certo sentido, de duas
partes: uma verbal e outra não verbal.
Não esqueçamos que estamos examinando somente enunciações da
vida cotidiana, que já se tornaram ou que estão por se tornar gêneros
cotidianos. Somente essas simplíssimas enunciações nos dão a chave da
compreensão da estrutura linguística da enunciação artística.
Como podemos representar a parte não verbal da enunciação?
Aclaremos isto, servindo‐nos do seguinte exemplo:
Um homem de barba grisalha, sentado diante de uma mesa, depois
de um minuto de silêncio, diz “já!”. Um jovem, que estava de pé diante
dele, corou violentamente, deu a volta e se foi.
Que pode significar essa breve, mas por certo extremamente
expressiva enunciação “já!”? Por mais que se estude essa enunciação
sob todos os pontos de vista gramaticais, por mais que se recolham de
todos os dicionários os significados possíveis dessa palavra, ainda assim
não conseguiremos compreender essa “conversação”.
171
Mas essa conversação é plena de significado, sua parte verbal tem
um sentido preciso, e representa um diálogo completo, ainda que breve:
a primeira intervenção é realizada pelo “já!” verbal; a segunda
intervenção se dá pela reação orgânica do interlocutor – ficar vermelho
– e pelo seu gesto – seu afastamento silencioso.
Por que não compreendemos nada?
Justamente porque não conhecemos a segunda parte da enunciação,
a que determina o significado da primeira parte, a verbal. Antes de
tudo, não sabemos onde nem quando ocorreu essa conversação; em
segundo lugar, desconhecemos o tema da conversação; e, finalmente,
desconhecemos a relação que ambos interlocutores têm relativamente a
esse tema, suas respectivas valorações.
Suponhamos, no entanto, que esses três momentos da parte da
enunciação, desconhecidos por nós, se tornem conhecidos: o
acontecimento ocorre diante da mesa de um examinador; o examinado
não respondeu a uma das perguntas mais simples que poderiam lhe ser
propostas; o examinador com reprovação e com um pouco de
desagrado diz “já!”; o examinado compreende que foi reprovado,
envergonha‐se e se afasta.
Agora, em nosso campo visual, em nosso horizonte, entraram
aqueles aspectos escondidos da enunciação, que estavam, no entanto,
subentendidos pelos falantes. A pequena palavra “já!”, que à primeira
vista era vazia e insignificante, se adensa de significado, adquire um
sentido completamente definido e, se assim se quer, pode ser
descodificada como uma frase extensa, clara e completa, por exemplo,
do tipo: “Mal! Mal, companheiro. Por mais que me desagrade, devo
atribuir‐lhe uma nota insuficiente”. É deste modo que o examinado
compreende essa enunciação e concorda plenamente com ela.
Chamemos de situação, um termo que já conhecemos, aos três
aspectos subentendidos da parte não verbal: o espaço e o tempo em que
ocorre a enunciação – o “onde” e o “quando”; o objeto ou tema de que
trata a enunciação – “aquilo de que” se fala; e a atitude dos falantes face
ao que ocorre – “a valoração”.
Agora se torna claro que é precisamente a diferença das situações que
determina a diferença dos sentidos de uma mesma expressão verbal.
Portanto, a expressão verbal, a enunciação, não reflete passivamente a
172
situação. Ela representa sua solução, torna‐se sua conclusão valorativa e, ao
mesmo tempo, é condição necessária para seu posterior desenvolvimento
ideológico.
Propusemos aos leitores que fizessem uma experiência verificando a
mudança de significado das palavras “Ah, é assim!”, quer dizer,
propomos encontrar situações nas quais esta expressão assume, a cada
vez, um significado distinto.
Para aclarar, mostraremos uma mudança de significado da
exclamação “já!”.
Antes de tudo, mudemos a situação. Em lugar de uma banca de
exame, o portão de uma casa. O caseiro exibe um maço de bilhetes de
loteria e diz com uma voz quase imperceptível “já!”.
Nessa situação, o sentido geral da enunciação não corresponde a
uma reprovação, mas sobretudo a uma admiração um tanto invejosa:
“Que sorte teve esse”, “Ganhar um poço de dinheiro!”.
Tudo nos mostra de maneira bastante convincente o papel
importante que tem a situação na criação da enunciação. Se os falantes
não estivessem unidos por essa situação, se não tivessem uma
compreensão comum do que está ocorrendo e uma clara atitude a esse
respeito, suas palavras seriam incompreensíveis, insensatas e inúteis.
Graças ao fato de que para eles existe algo “subentendido”, pode
realizar‐se sua comunicação verbal, sua interação verbal.
Sobre a função que tem o subentendido na enunciação artística,
falaremos a seguir. Notemos, desde já, que nenhuma enunciação –
científica, filosófica, literária – pode efetuar‐se sem algo que seja
subentendido.
6. A situação e a forma da enunciação; a entonação, a seleção e a
disposição das palavras.
Uma vez estabelecido que o significado de qualquer enunciação da
vida cotidiana depende da situação e da orientação social face ao
ouvinte‐participante de tal situação, devemos agora examinar a forma
da enunciação. De fato, o conteúdo e o significado de uma enunciação
necessitam de uma forma que os realize, que os efetue, pois fora de tal
forma eles sequer existiriam. Ainda que a enunciação esteja privada de
173
palavras, bastará o som da voz – a entonação – ou somente um gesto. Fora
de uma expressão material, não existe enunciação, assim como também não
existe a sensação.
Já que estamos tratando de enunciações verbais, nossa tarefa
imediata consiste em esclarecer o vínculo existente entre a forma verbal
da enunciação, sua situação e seu auditório. Obviamente, aqui não
trataremos do problema da forma artística.
Consideraremos como elementos fundamentais, constitutivos da
forma da enunciação, sobretudo o som expressivo da palavra, quer dizer,
a entonação, e também a seleção das palavras e finalmente sua disposição
no interior da enunciação.
Esses três elementos, por meio dos quais se constrói qualquer
enunciação significativa, que tenha, portanto, um conteúdo e uma
orientação social, serão examinados brevemente e de modo
introdutório, já que na continuação, quando fizermos a análise da
construção da enunciação artística, serão os objetos principais de nossa
investigação.
O vínculo entre a enunciação, sua situação e o seu auditório se
estabelece, sobretudo, pela entonação. Já tocamos parcialmente no
problema da entonação no artigo precedente11. Agora sublinhemos o
fato de que a entonação tem um papel essencial na construção da
enunciação tanto da vida cotidiana quanto da artística. Existe um
provérbio bastante difundido: “o tom faz a música”. Precisamente esse
“tom” (a entonação) faz a “música” (o sentido, o significado geral) de
qualquer enunciação. Uma mesma palavra, uma mesma expressão,
pronunciadas com uma entonação diferente, toma um significado
diferente. Uma expressão depreciativa pode tornar‐se carinhosa; uma
expressão carinhosa pode tornar‐se depreciativa. Uma palavra
afirmativa pode ser uma pergunta – “Sim!” e “Sim?” – uma fórmula de
pedido de desculpas pode se tornar uma demanda: “Desculpe‐me,
peguei seu abrigo” e “Desculpe‐me, este é meu abrigo”.
A situação e o auditório correspondentes determinam precisamente
a entonação e, através dela, realizam a seleção das palavras e sua
disposição, dando um sentido à enunciação toda. A entonação é o
11 [N.T.] Refere‐se ao artigo “Que é a linguagem”, presente neste volume.
174
condutor mais dúctil, mais sensível, das relações sociais existentes entre
os falantes de uma dada situação. Quando dissemos que a enunciação
representa a solução da situação, tínhamos em mente sobretudo a
entonação da enunciação. Sem aprofundar mais nosso pensamento,
diremos que a entonação é a expressão sonora da valoração social.
Convencer‐nos‐emos em seguida da excepcional importância dessa
conclusão. Consideremos só um exemplo que ilustra brilhantemente os
pensamentos que acabamos de expor12:
É preciso dizer que aqui na Rússia, se ainda não alcançamos os
estrangeiros em alguma coisa, pelo menos no saber tratar já os
ultrapassamos de muito. Não é possível enumerar todos os matizes e
sutilezas do nosso tratamento. Um francês ou um alemão jamais
conseguirá distinguir ou compreender todas as suas peculiaridades e
diferenças; ele falará quase no mesmo tom tanto com um milionário
como com um vendedor de tabaco, embora, no seu íntimo, curve‐se
bem baixo diante do primeiro. Entre nós já não é assim: nós temos
sabichões consumados, que conversam com um proprietário rural
dono de duzentas almas de um modo totalmente diverso daquele com
que falam com um possuidor de trezentas, e com aquele que tem
trezentas, falarão diferentemente de como falam com aquele que tem
quinhentas, e, por sua vez, sua fala com o dono de quinhentas almas
não será igual àquela que usarão com o proprietário de oitocentas –
numa palavra, encontrarão matizes diferentes mesmo que cheguemos
a um milhão de almas. Suponhamos, por exemplo, que exista uma
repartição, não aqui, mas nos confins do mundo; e nesta repartição,
suponhamos, existe o chefe da repartição. Peço que reparem nele,
quando está sentado entre os seus subordinados – o temor não os
deixará articular uma palavra! Orgulho e nobreza, e sei lá o que mais,
estão expressos no seu semblante. É só lançar mão de um pincel e
pintá‐lo: é um Prometeu, nada menos que um Prometeu! Olhar de
águia, andar sereno, solene. Mas essa mesma águia, assim que sai da
sua sala e se aproxima do escritório de seu superior, corre apressada,
com passinhos de perdiz, com os papéis debaixo do sovaco, tão
prestimosa que chega até a perder o fôlego. Em sociedade e nas
12 [N.T.] O trecho citado, de Almas Mortas, de Nicolai Vassílievtch Gógol, foi aqui
transcrito diretamente de edição brasileira do romance, na tradução de Tatiana
Belinky (São Paulo: Abril, 1972).
175
recepções, onde nem todos ocupam cargos muito altos, o Prometeu
permanece o mesmo Prometeu, mas, assim que aparece alguém mais
graduado do que ele, o Prometeu sofre uma transformação tamanha,
que nem o próprio Ovídio seria capaz de inventar: vira mosca, menos
do que mosca, encolher até ficar do tamanho dum grão de areia! “Mas
este não é o Ivan Petróvitch”, dirão, ao vê‐lo. “O Ivan Petróvitch é mais
alto de porte, este aqui é baixote e magricela; aquele tem a fala sonora e
a voz de baixo e nunca ri, mas este aqui é uma coisa incrível, fala em
trinados como um pássaro e não para de rir”. Mas, chegando mais
perto, constatarão: é de fato Ivan Petróvitch! “Sim senhor, que coisa!”
pensarão consigo... (Gógol. Almas Mortas, p. 58‐60)
Neste fragmento extraído de Almas Mortas, Gógol pintou com
enorme agudeza a mudança brusca de entonação correspondente à
mudança de situação e de auditório da enunciação. Numa Rússia que se
regia pela servidão da gleba, com a burocracia oficialesca e com o
sufocamento policial de tudo o que existia de honesto, reto,
independente, aparecia claríssima a desigualdade social entre os
homens. Essa desigualdade social encontrava sua expressão nos
diversos matizes de entonação, desde aquele rudemente arrogante, até
o vilmente humilde. Esta entonação se expressava não só pela voz, mas
pelo corpo inteiro da pessoa: por seus gestos, por seus movimentos, por
sua mímica. É uma verdade exata que a águia se transforma numa
perdiz.
A mudança de auditório – uma troca de frases por razões de
negócios ou de simples vida cotidiana, não com um subordinado, mas
com um chefe – provocava obviamente uma distinta orientação social
da enunciação. Isso se refletia de imediato, como veremos, na entonação
– maneira de falar – e na gesticulação – maneira de comportar‐se13. Se
Gógol tivesse relatado, no fragmento, também o conteúdo verbal das
enunciações de Ivan Petróvitch, teríamos percebido de imediato que a
mudança da orientação social – consequência da mudança da situação e
auditório – se manifestaria não só na entonação, mas também na seleção
e na disposição das palavras na frase. Não esqueçamos que a entonação
13 Recordemos nossa indicação: os “modos de comportar‐se” de uma pessoa são a
expressão gestual da orientação social da enunciação. No exemplo dado observamos
precisamente isso.
176
é, sobretudo, a expressão da valoração da situação e do auditório. Por
este motivo, cada entonação necessita de palavras que lhe sejam
correspondentes – que se adaptem – e indica, assinala, a cada palavra, o
posto que deve ocupar na proposição, proposição na frase, a frase na
enunciação completa.
Em outra trama de Almas Mortas, na cena do primeiro encontro
entre Tchítchicov e Pliúchkin, temos uma representação precisa do
processo de seleção da palavra mais adequada à correlação social
existente entre o falante e o ouvinte, palavra que leva em conta
minuciosa e precisamente todos os detalhes da pessoa social do
interlocutor, sua posição econômica, sua classe, sua posição social etc.:
Pliúchkin já estava lá parado havia vários minutos sem pronunciar
uma palavra, mas Tchítchicov ainda não conseguira iniciar a conversa,
desconcertado tanto pelo aspecto do próprio dono como de tudo aquilo
que havia no seu aposento. Durante muito tempo, não conseguiu
encontrar uma maneira de abordar o assunto que motivara a sua visita,
e já ia enveredando pela explicação de que, impressionado com a fama
das raras virtudes e qualidades de caráter do anfitrião, sentira‐se no
dever de trazer‐lhe pessoalmente os protestos do seu respeito, mas caiu
em si, sentindo que assim já era demais. Relanceando mais um olhar de
soslaio sobre tudo o que enchia o quarto, Tchítchicov sentiu que as
palavras “virtudes” e “raras qualidades de caráter” podiam ser
vantajosamente substituídas pelas palavras “economia” e “ordem”; e
por isso, modificando neste sentido o seu discurso, acabou dizendo
que, impressionado pela sua fama de homem econômico e
extraordinário administrador de suas propriedades, considerou seu
dever fazer‐lhe essa visita, para conhecê‐lo e trazer‐lhe pessoalmente
os protestos do seu respeito. (Gógol, Almas Mortas, p. 143‐144)14
Aqui, na consciência de Tchítchicov trava‐se uma luta entre algumas
palavras, aquelas consideradas mais adequadas. Ele deve sopesar a
relação existente entre a desordem selvagem e a impressionante sujeira
da habitação de Pliúchkin, sua roupa incrivelmente ensebada, desfeita e
miserável, e o fato de que Pliúchkin é um proprietário riquíssimo, que
possui mais de mil servos de gleba.
14 [N.T.] Ver nota 12.
177
Por fim, depois de haver‐se orientado perfeitamente nesta situação,
de havê‐la compreendido e avaliado corretamente, Tchítchicov
encontrou também a entonação adequada e as palavras
correspondentes a ela. Coordenar essas palavras numa frase completa já
não representa mais dificuldade. A situação dada e o ouvinte dado –
situação e auditório – não requeriam nenhuma elaboração estilística
particular da frase. Podia contentar‐se com uma frase feita e de uso
comum, um “estereótipo”: “tinha ouvido falar de sua economia, [...]
considerou seu dever fazer‐lhe esta visita para conhecê‐lo [...]” etc.
7. Estilística da enunciação da vida cotidiana
Contudo, em outra situação, Tchítchicov não se encontra somente
diante do problema da seleção das palavras, mas principalmente diante
do problema da disposição das palavras, ou seja, de toda a construção
estilística de sua enunciação. O interlocutor já não é Pliúchkin, mas o
general Betríchtchev. E aqui o esmagador peso social, o grau de general
e mesmo o aspecto físico de Betríchtchev, obrigam Tchítchicov a
construir enunciações com afetação excepcional. Com a entonação
particularmente deferente e um pouco solene, a própria composição
verbal do discurso de Tchítchicov não se serve de palavras habituais,
cotidianas, mas vem carregada de palavras arcaicas, tomadas da
linguagem eclesiástica e livresca.
O princípio que guiou a seleção das palavras de Tchítchicov nesta
situação é muito simples: a alta posição social do ouvinte requeria
palavras “altas”, não uma linguagem cotidiana, e um estilo “alto”,
elevado. As palavras que usava habitualmente para conversar com
proprietários de linhagem média ou com funcionários de baixo escalão
eram, neste caso, inadequadas. Não só as palavras. A própria disposição
deveria ser particular, de modo tal que desse ao discurso um fluxo
regular, rítmico, uma certa musicalidade e poesia. Não era suficiente
expor com clareza e singeleza o próprio pensamento: era necessário
embelezá‐lo com comparações, reavivá‐lo com torneios de palavras
especiais, torná‐lo quase uma obra artística, fazê‐lo quase em verso.
178
Inclinando respeitosamente a cabeça para um lado e abrindo os braços
e as mãos, como se fosse apresentar uma bandeja cheia de xícaras, ele
fez uma reverência de corpo inteiro com extraordinária agilidade e
disse:
‐ Considerei meu dever apresentar meus respeitos a Vossa Excelência.
Nutrindo respeito para com as virtudes dos varões que salvaram a
pátria no campo de batalha, considerei meu dever apresentar‐me
pessoalmente a Vossa Excelência.
Obviamente, aquele preâmbulo não desagradou ao general. Com um
movimento de cabeça assaz benevolente, ele falou:
‐ Muito prazer em conhecê‐lo. Queira sentar‐se. Onde foi que o senhor
serviu?
‐ A minha carreira no serviço público – disse Tchítchicov, sentando‐se
não no meio da poltrona, mas de viés, e agarrando‐se com a mão ao
braço da poltrona – começou num departamento do Tesouro,
Excelência. Seu transcurso subsequente, porém, deu‐se em diversos
postos: trabalhei no Tribunal de Justiça, numa comissão de construções
e na Alfândega. Minha vida pode ser comparada a uma embarcação ao
sabor das ondas, Excelência. A paciência tem sido, por assim dizer,
minha eterna companheira, e eu mesmo sou, por assim dizer, a própria
encarnação da paciência... E o que sofri às mãos de inimigos, que
chegaram a atentar contra a minha própria vida, não existem palavras,
nem tintas, nem, por assim dizer, pincéis de artistas que possam
descrevê‐lo, de maneira que agora, no declínio da vida, procuro apenas
um recanto onde possa passar meus derradeiros dias.15 (Gógol, Almas
Mortas, p. 341‐342)
Qual é a característica mais importante da construção desta
enunciação? Deixemos de lado o conteúdo do discurso de Tchítchicov
que está, obviamente, ligado ao conteúdo da obra toda, e dediquemo‐
nos a examinar somente sua forma. Ao fazê‐lo, devemos esquecer
convencionalmente que estamos diante de uma obra literária – já que não
chegou ainda o momento de examinarmos sua estilística – mas diante
de um documento de enunciação real, pronunciada num tempo real e
numa situação real, por uma pessoa real.
Esse procedimento de interpretação convencional de uma
enunciação artística como enunciação da vida cotidiana é
15 [N.T.] Ver nota 12.
179
cientificamente perigoso, e admissível só em casos excepcionais. No
entanto, por não dispormos de uma fita magnética gravada que possa
transmitir‐nos a efetiva transcrição de uma conversação entre pessoas
reais, devemos utilizar o material literário tendo sempre presente sua
particular natureza artística.
Portanto, consideremos por um momento como se fosse da vida
mesmo essa invenção que reflete a realidade, sem nos colocarmos o
problema do grau de semelhança existente entre a realidade artística de
Almas Mortas e a realidade histórica da visa russa nos anos 20 e 30 do
século XIX. Suponhamos que diante de nós se desenvolve a
conversação, ocorrida há um século, entre estas duas pessoas: uma
excepcionalmente respeitável, poderosa e de aspecto majestoso – o
general Betríchtchev – e a outra, menos poderosa e menos
representativa, mas ainda de aspecto decididamente “respeitável” – o
conselheiro Tchítchicov.
Seguindo nosso esquema, deveremos antes de tudo fixar a relação
de dependência existente entre a vida econômica e política em geral da
Rússia daquele período, e o tipo de intercâmbio comunicativo social –
cotidiano – que estamos examinando. Obviamente, não temos o direito
de fazê‐lo. Não é possível passar diretamente da economia ou da
política reais ao tipo de intercâmbio comunicativo social representado
em uma obra literária. Mas podemos supor, sem temor de equívoco, que
a relação de dependência existente entre a “base” econômica – o
“fundamento” econômico da sociedade – e o tipo de intercâmbio
comunicativo cotidiano tenha‐se realizado no “poema” de Gógol do
mesmo modo que na vida real. Suponhamos que o mesmo ocorra também
para aquilo que concerne à relação de dependência existente entre o
tipo de intercâmbio comunicativo cotidiano e o tipo de interação verbal
que nele acontece.
Resta‐nos, portanto, mostrar como aquela situação dada e aquele
auditório dado encontraram sua expressão nos âmbitos de um gênero da
vida cotidiana já definido e completo, quer dizer, no diálogo entre as
pessoas que iniciam seu conhecimento mútuo e cuja posição na escala
social e hierárquica é distinta.
A situação e o auditório, como já dissemos, determinam sobretudo a
orientação social da enunciação e, finalmente, o próprio tema da
180
conversação. A orientação social, por sua vez, determina a entonação da
voz e a gesticulação – que dependem parcialmente do tema da
conversação – nas quais encontra sua expressão exterior a relação
dessemelhante do falante e do ouvinte naquela situação e sua diferente
valoração.
De que se constitui o conteúdo, a composição temática das
enunciações de Tchítchicov? Este fragmento contém dois temas: (1) o
tema da motivação do conhecimento e (2) o tema da narração da
própria vida.
Esses dois temas são expressos com excepcional obsequiosidade e
submissão. Para dizer a verdade, só podemos tratar de adivinhar qual
era a entonação de Tchítchicov. Ela não nos foi dada pelo chamado
“relato do narrador” que enquadra o discurso das personagens. Se
focalizarmos nossa atenção na expressão gestual da orientação social
das enunciações de Tchítchicov, indicada pelo “relato do narrador”
(Inclinando respeitosamente a cabeça... e sentando‐se não no meio da
poltrona, mas de viés, e agarrando‐se com a mão ao braço da
poltrona...) não podemos duvidar do fato de que também a entonação
de Tchítchicov harmonizava‐se com a transformação da “águia” em
“perdiz”.
Com esta entonação se harmonizava também a seleção das palavras.
Já notamos uma característica: o predomínio de palavras e expressões
emprestadas da linguagem livresca eclesiástica.
Uma segunda característica: a grande quantidade de palavras e de
expressões “descritivas” que substituem as denominações habituais de
alguns objetos.
Finalmente, a terceira característica: a completa ausência do
pronome pessoal “eu” – tanto no caso reto como em outros casos16.
O primeiro encontro entre Tchítchicov e o general Betríchtchev põe
a descoberto a efetiva correlação social existente entre ambos os
falantes, relação que determina todo o estilo de seus discursos. Para
dizer a verdade, a seleção das palavras que Tchítchicov tem a sua
disposição para suas intervenções é muito limitada e muito pouco
16 [N.T.] A tradução para o português não manteve essa característica da ausência do
pronome pessoal de primeira pessoa.
181
original. O gênero usado neste tipo de intercâmbio comunicativo
cotidiano, que já estava historicamente formado e havia alcançado sua
perfeição, não permitia variações muito livres nem diversas. Não
obstante, inclusive essas fórmulas tradicionais de apresentação de si
mesmo a uma pessoa hierarquicamente superior, convertidas em
estereótipos linguísticos, Tchítchicov conseguiu modificar de um modo
absolutamente imperceptível, não só na construção semântica, mas
também parcialmente na construção gramatical da frase: conseguiu
acrescentar gradações – “matizes” – tais que a distância social entre os
interlocutores expressa verbalmente ficasse um pouco mais assinalada.
A principal aspiração estilística de Tchítchicov é construir as
próprias enunciações de modo que sua pessoa fique o mais possível
descolorida e insignificante. O sentido direto de sua primeira frase é o
seguinte: “Vossa Excelência! Eu considero meu dever apresentar‐me já
que tenho por Vossa Excelência deferência... etc”.
Que faz Tchítchicov com esta frase? Omite o pronome pessoal [caso
reto], passa o verbo para o passado, abrevia a frase e, para dirigir‐se ao
general, substitui o vocativo com um dativo: “considerei meu dever
apresentar‐me pessoalmente a Vossa Excelência”17.
Obtém‐se um curioso espaço semântico que sublinha a nulidade de
Tchítchicov e a grande importância de seu interlocutor. A frase começa
a assumir um significado ligeiramente distinto, que pode ser
interpretado aproximadamente assim: alguém considerou seu dever
apresentar‐se... etc.
Por que alguém? Porque Tchítchicov, enquanto tal, era um
desconhecido para o general, e nesta circunstância o fato de que seja
conhecido é inútil: “Valerá a pena conhecer o nome e sobrenome de um
17 [N.T.] Mais uma vez há aqui distinção entre a tradução brasileira do romance e o
original em russo. Em português, “considerei meu dever apresentar‐me pessoalmente
a Vossa Excelência”, contém várias marcas da primeira pessoa. Tanto em espanhol
quanto em italiano as traduções utilizam a perífrase verbal “he considerado” e “ho
ritenuto” em que a marca de pessoa aparece no verbo auxiliar. No russo, pela análise
apresentada, não há esta marca e a sequência da argumentação se seguirá com base
no que em espanhol se diria “ha considerado”, isto é, o emprego da terceira pessoa.
182
homem que não se distinguiu por suas virtudes?” – disse noutro
momento Tchítchicov.18
Mas por que motivo o emprego de “considerei” [passado] e não
“considero” [presente]? Novamente, porque num primeiro vislumbre
de consciência desse dever exige que se o pense, que se o represente
como já cumprido. Mas há aqui o feliz e alegre acontecimento que se
verifica não mais no pensamento, mas na realidade: ele – um qualquer,
um desconhecido para o general – está frente à pessoa física da elevada
personalidade, esperando obsequiosamente os resultados de seu
atrevido empreendimento.
Assim, a fórmula linguística estereotipada com que se apresenta ao
general começa a brilhar com um novo significado, envolve‐se com
novos tons estilísticos e reflete como num espelho a verdadeira relação
sócio‐hierárquica dos interlocutores. No entanto, pudemos fixar,
compreender e sublinhar com clareza todas essas novas gradações –
matizes – do pensamento graças ao conhecimento da parte da
enunciação.
Vamos além. O fato de que Tchítchicov tenha cumprido o primeiro
passo, apresentando‐se, poderia de qualquer maneira parecer um
atrevimento. É necessário argumentar, justificar imediatamente o
próprio atrevimento. Esse é o objetivo da frase seguinte. Nela falta
também um acento gramatical na primeira pessoa. Estaria fora de lugar
sublinhar a própria existência usando um pronome pessoal e, além
disso, numa frase grandiloquente do tipo: “Eu respeito a coragem dos
generais que defenderam a Rússia... e por isso considero meu dever ...”
etc. De fato, por causa da posição social de Tchítchicov relativamente a
seu interlocutor, suas enunciações também devem ser modestas, breves
e terem um estilo elevado, que nasce inevitavelmente da consciência da
solenidade que é como ele estar frente a frente com o general
18 [N.T.] O autor está se referindo à cena em que o general apresenta a Tchítchicov sua
filha:
‐ Apresento‐lhe a minha menina travessa! ‐ disse o general a Tchítchicov. – Mas eu
ainda não sei o seu nome, patronímico e sobrenome...
‐ Valerá a pena conhecer o nome e sobrenome de um homem que não se distinguiu
por suas virtudes? – disse Tchítchicov modestamente, inclinando a cabeça para um
lado. (Almas Mortas, p. 344)
183
Betríchtchev em pessoa. Tchítchicov, vigarista hábil e aventureiro
inteligente que é, sabe muito bem os pontos frágeis de seus
interlocutores. A frase, ampla e desenvolvida, se abrevia de imediato,
desaparecem os pronomes pessoais, as denominações precisas dos
objetos são substituídas por expressões descritivas: “Sinto uma grande
estima”. Tinha o quê? Certamente não tinha a coragem, mas “tinha a
admiração”. Por quem? Não pelos generais, mas pelos homens [virtudes
dos varões]. Quais? Não daqueles que defenderam a Rússia, mas “que
salvaram a nossa pátria”. Onde? Não nos combates, mas “no campo de
batalha”.
Há motivos suficientes, além de que expostos convincente e
artisticamente – é óbvio, do ponto de vista só de Tchítchicov e do
general Betríchtchev – para legitimar o atrevido passo de Tchítchicov.
Por isso a proposição principal, a que conclui toda a frase e que desenha
uma nova luz semântica, graças à repetição, a primeira frase de
Tchítchicov (“considerei meu dever...”) se torna mais complexa com a
inserção da palavra “pessoalmente”. Esta palavra, cuja aparição foi
solidamente preparada pela exposição da soma de motivos que levaram
a esta apresentação, anuncia a possibilidade de uma passagem, de uma
transformação de toda a enunciação a um plano de relações distintas, de
um caráter mais pessoal, mais direto. E, com efeito, a resposta do
general, embora lacônica, fragmentária e estereotipada – resultado da
orientação social para uma pessoa de grau inferior – mostra, com sua
entonação afável, que a manobra verbal de Tchítchicov teve êxito. O tema
da “justificação da auto‐apresentação” pode transformar‐se agora no
tema “narração da própria vida”, e isto permite a Tchítchicov, na
enunciação seguinte, dirigir‐se ao general pondo seu título honorífico no
vocativo, além de lhe permitir inserir no discurso uma certa quantidade
de adjetivos possessivos – “minha carreira”, “minha vida” etc.
Também esse tema é desenvolvido usando termos eclesiásticos
livrescos – a suya carreira (onoi) – e expressões descritivas a que se
agregam também comparações – a vida, “uma embarcação ao sabor das
ondas” ou metáforas – “meus derradeiros dias” em lugar de “minha
velhice”. Comparações e metáforas demasiadamente vivas poderiam
sublinhar exageradamente a individualidade do estilo discursivo de
Tchítchicov, poderiam parecer muito rebuscadas e por isso atrair
184
inoportunamente a atenção sobre a pessoa do falante. Por este motivo,
Tchítchicov as acompanha de reservas, quase se desculpando, quase
olhando a seu interlocutor com ar de culpa: “A paciência tem sido, por
assim dizer, minha eterna companheira, e eu mesmo sou, por assim dizer,
a própria encarnação da paciência...”.
Todos os procedimentos indicados não são, obviamente, suficientes
para construir uma frase. A entonação, que expressa a orientação social,
não só exige palavras ou expressões de um estilo particular, não só lhes
dá um significado particular, mas também indica que lugar devem
ocupar e as distribui na enunciação.
Neste sentido, tem um papel de interesse particular o título
honorífico do general, a expressão “Vossa Excelência”. No uso
semântico direto, representa a fórmula com a qual se deve dirigir‐se a
uma pessoa com o grau de general e enquanto tal deveria encontrar‐se
no começo da frase. Ao mesmo tempo, nos gêneros de conversação da
vida cotidiana tem‐se a tendência de colocar essas palavras no final ou
no meio da frase – a maior parte das vezes depois da primeira
proposição. Tchítchicov lhes assinala um lugar ao final da frase, razão
por que elas, dividindo toda a massa verbal em cada fragmento
semântico, assumem claramente um significado compositivo. Essas
palavras representam ao mesmo tempo um acorde musical da
entonação que conclui essas diferentes partes da enunciação.
Inicialmente elas concluem uma frase breve (Considerei meu dever
apresentar meus respeitos a Vossa Excelência), depois uma frase mais
longa (Nutrindo respeito para com as virtudes dos varões que salvaram
a pátria...) e finalmente, na segunda intervenção, na narrativa, a
distância entre elas vai aumentando passo a passo.
Esse procedimento de Tchítchicov é compreensível. As palavras
“Vossa Excelência”, pelo lugar compositivo que ocupam, necessitam de
uma interrupção no movimento do discurso, isto é, de uma pausa.
Não temos, entretanto, o direito de nos determos nos problemas
vinculados à rítmica do discurso em prosa, embora possamos indicar essa
característica estilística da distribuição das palavras no discurso de
Tchítchicov.
O movimento rítmico crescente de cada uma das frases – no tema da
“justificação da auto‐apresentação” – ou do grupo de frases ligadas a
185
um único desenvolvimento semântico – no tema do “relato da própria
vida” – em certo sentido se resolve e se aquieta nas palavras “Vossa
Excelência”. Essas palavras constituem o que chamaremos de repetição
ou estribilho.
Ao mesmo tempo, esse estribilho sublinha a orientação fixa do
discurso para um interlocutor que se situa mais acima na escala
hierárquica. Essa orientação leva em conta a situação, e em
consequência tem presente também o tipo de interação verbal, isto é, o
próprio gênero da conversação: aqui não temos que nos ocupar com um
informe, com um comunicado, com uma petição – uma súplica – ao
general. Aqui Sua Excelência o general Betríchtchev concedeu aceitar
uma visita e uma conversação cotidiana com um simples mortal, com
um insignificante e modesto Tchítchicov. Fora outra a situação, outro
gênero apareceria, e toda a frase teria que ser composta de outra
maneira. As palavras “Vossa Excelência” não estariam ao final da frase,
não encerrariam o movimento da entonação e a fuga rítmica, mas
teriam servido de começo – de “partida” – e se situariam no começo da
frase. O gênero determinado por essa situação – por exemplo, um
informe ou um comunicado – requereria outra entonação, mais
impessoal e oficial. Em consequência mudaria também a seleção e a
disposição das palavras; mudaria todo o colorido estilístico da frase. De
fato, o gênero de um informe ou de um comunicado é condicionado por
outro tipo de intercâmbio comunicativo social, e dificilmente toleraria a
rítmica disposição das palavras que observamos na enunciação de
Tchítchicov. A situação de conhecer um general em seu ambiente
familiar permite muito bem essa rítmica discursiva, que é além de tudo
um pouco intencional e artificial. Neste caso, Tchítchicov persegue seu
objetivo brilhantemente, começando sua apresentação com uma
enunciação construída de modo magistral.
Como exemplo das particularidades estilísticas do discurso de
Tchítchicov, assinalemos o começo insolitamente rítmico de sua
segunda intervenção – tema do “relato da própria vida”.
Se tentarmos sublinhar fortemente os acentos das palavras da
primeira e da segunda frase, e tratarmos de aprofundar as pausas
depois das marcas de pontuação, notaremos facilmente o princípio
fundamental que guia a disposição dessas palavras.
186
Antes de tudo, impõe‐se a divisão, às vezes também posta em relevo
pelo autor, dessas frases em grupos rítmicos de três palavras. Já o
primeiro grupo se evidencia com o “relato do narrador” que segue ao
começo da frase de Tchítchicov: “A minha carreira no serviço público
(Poprishchie sluzhbi moei) – disse Tchítchicov, sentando‐se (...). Também o
segundo grupo se evidencia não com o “relato do narrador”, mas com o
estribilho de Tchítchicov: “começou num departamento do Tesouro,
Excelência” (nachalós v kazionoi palatie, vashe prievosjodítielstvo).
A divisão desses dois grupos verbais indica claramente a
possibilidade uma subdivisão posterior do discurso de Tchítchicov.
Com efeito, nada nos impede de fazer uma pequena pausa depois das
seguintes três palavras: “Seu transcurso subsequente” (dalneisheie ye
techenie onoi)19 – Tchítchicov poderia ter feito nesse ponto um gesto
correspondente – “deu‐se em diversos postos” (prodolzhal v raznij
miestaj). Veremos que também depois dessa nossa pausa aparece um
grupo de três palavras.
Seguindo este esquema, dividiremos também a seguinte frase:
“trabalhei no Tribunal de Justiça, numa comissão de construções e na
Alfândega” (bil i v nadvornom sudie i v komisi postroienia i v tamozhnie)20.
Tentemos agora ilustrar nossa subdivisão dispondo visualmente as
palavras de maneira tal que representemos imediatamente a construção
rítmica da enunciação examinada:
1 2 3
póprishchie sluzhbi moei
nachalós v kazionoi palatie
vashe Prievosjodítielstvo
dalneisheie ye techenie onoi
prodolzhal v raznij miestaj
bil i v nadvornom sudie
i v komisi postroienia i v tamozhnie21
19 As preposições, conjunções e prefixos não são contados, já que ritmicamente se
fundem com as demais palavras.
20 [N.T.] Interessante notar que também são enumerados três locais de trabalho.
seguinte]:
187
O que fizemos?
Marcando com ênfase os acentos, a duração das pausas e a
disposição dos grupos verbais, dispondo‐os em linhas diversas,
transformamos o discurso de Tchítchicov numa poesia!22
Obviamente, recorremos a esse exagero rústico e tosco – redução ao
extremo – da rítmica, só para dar uma exemplificação pedagógica. Era
necessário mostrar ao leitor, da maneira mais clara possível, a
peculiaridade estilística da enunciação cotidiana de Tchítchicov, com sua
entonação insinuante e bajuladora, com sua seleção particular de
palavras gradas ao interlocutor.
Essa particularidade linguística é determinada totalmente pelos
elementos sociais: a situação e o auditório da enunciação. E com isso, por
enquanto, devemos concluir.
por seu particular sistema de versificação, chamado “acentual”. Os representantes
modernos do “verso acentual” são Maiakovski, Tijónov e outros. Falaremos
detalhadamente dos sistemas de versificação em outro artigo. (N.T.: O autor se refere
ao texto “A palavra e sua função social” também aqui publicado).
188
A PALAVRA E SUA FUNÇÃO SOCIAL
1. A ideologia de classe e a estilística da enunciação
Vimos que o colorido estilístico da enunciação de Tchítchikov1,
como de resto de qualquer outra enunciação, não é de fato determinado
somente pela intenção psicológica individual, pelas “sensações”. Vimos
que o conjunto todo das condições de uma dada situação e de um dado
auditório (e em particular a distância sócio‐hierárquica existente entre
os falantes) determina toda a construção da enunciação: seja o sentido
geral da intervenção linguística de Tchítchikov, o tema e a entonação, a
escolha das palavras e a sua disposição nessa intervenção.
Procuremos agora imaginar como se desenrolou, na situação toda, a
apresentação ao general Betríchtchev não mais de um representante da
nobreza militar – o conselheiro do colégio Tchítchikov – mas de um
mercador da principal corporação, ou seja, uma variante russa do
“cavaleiro da ordem do trabalho”.
Sofrerá, porventura, a estilística do discurso de um rico mercador,
vindo apresentar‐se ao “respeitável” general por razões de negócios,
modificações substanciais?
A situação aparentemente é a mesma, mudando somente a
orientação social da enunciação: será suficiente isto para modificar
profundamente toda a estrutura estilística?
Responder a esta pergunta é muito simples. É suficiente recordar a
nossa definição de orientação social: ela representa a dependência da
enunciação do peso sócio‐hierárquico do auditório, isto é, do pertencimento de
classe dos interlocutores, da sua condição econômica, profissional, posição no
serviço ou, como, por exemplo, sucedia na Rússia antes da reforma, do seu
título, do grau, da quantidade de servos de gleba, da categoria, do capital etc.2
Se acrescentarmos a óbvia influência da cultura dos interlocutores,
ou seja, do seu grau de desenvolvimento intelectual e sócio‐moral, a
amplitude de seu horizonte ideológico, o problema proposto se resolve:
1 [N.T.] Ver neste volume o ensaio A Construção da enunciação.
2 Cf. nosso trabalho A construção da enunciação.
189
a orientação social da enunciação tem um papel decisivo para a construção da
estrutura estilística.
Um mercador, no lugar de Tchítchikov, teria construído sua frase de
modo completamente diverso. Nem lhe passaria pela cabeça, a pretexto
de sua apresentação, lembrar “a veneração pelo heroísmo dos homens
caídos no campo de batalha” 3. De fato, se o mercador é um milionário
que, graças a seus milhões, conseguiu acesso aos círculos dos nobres, e é
avesso às saletas e aos salões, se sentirá praticamente no mesmo plano
social do general Betríchtchev: é difícil que em sua vida tenha tido a
possibilidade de experimentar o fruto proibido da árvore da cultura
nobre e, por isso, tornar própria tal afetação no falar, tão apreciada
naqueles ambientes.
Para dizer a verdade, qualquer ex‐seminarista, um filho de um
padre, um raznotchinec4, que tivesse feito carreira não pelo talento ou
pela energia criativa, como realmente acontece na história, mas graças à
adulação, à astúcia e a outros métodos censuráveis, poderia construir
uma frase, estilisticamente falando, mais rebuscada e esplendorosa.
Ainda assim, não obstante sua semelhança temática exterior, os
discursos feitos na mesma situação por um pequeno nobre rural, por
um mercador ou por um raznotchinec de família eclesiástica
apresentariam uma diferença estilística enorme.
Por quê?
Por um único motivo: o pertencimento de classe do falante não
organiza de fato a estrutura estilística da enunciação somente
exteriormente, ou seja, com o tema da conversação. A ideologia de classe
entra para o interior (por meio da entonação, da escolha e da disposição
das palavras) de qualquer construção verbal que se realiza não só com o
conteúdo, mas expressa com a própria forma a relação existente do
falante com o mundo e os homens, a relação com aquela situação
específica e com aquele auditório específico.
3 [N.T.] Na versão em português do romance Almas Mortas de Gógol: “Nutrindo
respeito para com as virtudes dos varões que salvaram a pátria no campo de
batalha...”
4 Intelectual não pertencente à classe nobre. Na maioria das vezes proveniente de
família eclesiástica. Termo usado no século XIX [nota da tradutora para o italiano Rita
Bruzzese].
190
É esta relação própria com o mundo e com os homens, com a
situação dada e com o auditório específico, que é sempre de classe, que
representa o momento substancial da nossa pesquisa, e todo nosso
estudo procura focar esta relação.
De que maneira a relação de classe em geral pode estar na
enunciação e nela refletir‐se? Qual é o elemento que faz com que todo o
sistema de concepções, de opiniões, de ideias, de avaliação de classe (ou
seja, o aspecto ideológico de qualquer situação) adquira um papel assim
importante tanto na construção semântica quanto na organização
estilística da enunciação?
É possível responder a esta pergunta somente se se procura a
essência da palavra como signo ideológico.
2. A palavra como signo ideológico
Até agora, falando da linguagem e de sua base social, tivemos em
mente essencialmente a enunciação como um todo, independentemente
do número de palavras que a compõe. Esta totalidade, ou seja, esta
enunciação tematicamente concluída, pode conter somente uma única
interjeição do tipo “ah” ou “eh, eh, eh” etc. A seguir, devemos examinar
a unidade verbal singular à qual damos um significado semântico
muito preciso.
Que é a palavra?
Se olharmos atentamente a realidade que nos circunda, notaremos
que nessa existem dois tipos de objetos. Alguns objetos, por exemplo, os
fenômenos da natureza, os instrumentos de produção, os objetos da
vida cotidiana etc. não têm nenhum significado ideológico. Nós
podemos usá‐los, examiná‐los, estudar sua construção, especificar
perfeitamente tanto o processo de sua preparação quanto sua
destinação produtiva, mas, ainda que o desejássemos, não reteríamos
dele mais que o próprio objeto, uma botina ou um malho mecânico,
diferentemente dos signos, que representam um objeto ou
acontecimento diverso de si.
191
Tudo muda de aspecto se tomamos uma pedra e a embranquecemos
com cal e a colocamos nos limites entre duas kolchoz5. Esta pedra assume
um “significado” preciso. Ela, a partir disso, não denotará somente a si
mesma, somente uma pedra, uma parte da natureza, mas receberá um
novo significado. Indicará qualquer coisa que está situada fora de si.
Tornar‐se‐á um indicador, um sinal, ou seja, um signo, com um
significado fixo e imutável. Signo de quê? Signo dos limites entre duas
partes de terra.
Da mesma maneira, se nos dias das demonstrações do 1º. de Maio
tivéssemos visto ou houvesse sido mostrado um gigantesco malho
mecânico esmagando uma botina desenhada sobre um papel, não
compreenderíamos absolutamente nada. Mas bastaria desenhar sob o
malho mecânico o emblema soviético (a foice e o martelo) e sobre a
botina uma águia de duas cabeças, juntar um grupo de trabalhadores
que movimentam este malho mecânico e a mão de um general que
abandona às pressas e em pânico a botina, o significado deste quadro
“alegórico” tornar‐se‐ia imediatamente claro: a ditadura do proletariado
derrotou a contrarrevolução.
O malho representa neste caso o signo, o “símbolo” de toda potência
e inevitabilidade da ditadura do proletariado e a botina esmagada
representa o símbolo do naufrágio da trama da Guarda Branca. Desta
mesma maneira, a foice e o martelo não representam só os instrumentos
de produção, mas também o estado proletário. A águia de duas cabeças
é o símbolo da Rússia czarista.
Que aconteceu, precisamente? Aconteceu que um fenômeno da
realidade objetiva tornou‐se um fenômeno da realidade ideológica: o
objeto se transformou em signo (obviamente, igualmente objetivo,
material). O malho mecânico e a botina, representados no desenho,
refletem os acontecimentos que transcorreram efetivamente na vida e
que se encontram fora do desenho, fora da parte do papel marcado pelo
lápis.
É possível avizinhar‐se ainda só parcialmente dos objetos da cultura
material no campo semântico, no campo dos significados. Por exemplo,
pode‐se embelezar ideologicamente um instrumento de produção. Os
5 [N.T.] Lembremos que se trata de duas cooperativas de produção agrícola.
192
instrumentos de pedra dos homens primitivos às vezes foram cobertos
de desenhos e ornamentos, isto é, recobertos por signos. Obviamente o
objeto em si não se torna por isso um signo.
Pode‐se, além disso, dar a um instrumento de produção uma forma
artisticamente perfeita e por este meio fazer com que esta forma artística
combine harmonicamente com a destinação produtiva do instrumento.
Neste caso, chega‐se ao máximo de aproximação, quase uma fusão, do
signo com o instrumento de produção. Todavia, ainda aqui observamos
uma clara fronteira semântica: o objeto enquanto tal não se torna um
signo e o signo enquanto tal não se torna instrumento de produção.
Também um produto de consumo pode tornar‐se um signo ideológico.
Por exemplo, o pão e o vinho tornaram‐se símbolos religiosos no rito
cristão da comunhão. O produto de consumo por si, entretanto, não é
de fato um signo. Podemos unir os produtos de consumo, como
também os instrumentos, com os signos ideológicos, mas ainda depois
desta ligação não desaparece a clara fronteira semântica existente entre
eles. Assim, o pão é cozido com uma certa forma e esta forma não se
justifica de fato só com o uso ao qual é destinado, mas tem um
significado semântico, ideológico, quase primitivo (por exemplo, a
forma da rosca, da roseta).
São signos objetos materiais isolados; como vimos, qualquer objeto
da natureza, da técnica ou do consumo pode tornar‐se signo, mas com
isso adquirem um significado que está fora do âmbito de sua existência
isolada (do objeto da natureza) ou da sua destinação (o fato de que ele
sirva ou não aos objetivos de produção ou consumo).
Não acontece, quiçá, a mesma coisa com as nossas “palavras”? Não
é também a palavra um objeto material transformado em signo?
Obviamente a questão não pode ser posta nestes termos. De fato,
não existe inicialmente a palavra enquanto objeto da natureza ou da
técnica e que somente num segundo momento, em consequência de uma
transformação, se torna um signo. A palavra, por sua própria natureza
intrínseca, é desde o início um fenômeno puramente ideológico. Toda
realidade objetiva da palavra consiste exclusivamente na sua destinação
de ser um signo. Na palavra não existe nada que seja indiferente a esta
destinação e que não tenha sido por ela gerado.
193
Todavia, a palavra, sendo um fenômeno ideológico, é ao mesmo
tempo também parte da realidade material. Para dizer a verdade, o
material de que é composta é bastante particular e não se lhe pode tocar
com as mãos, nem provar seu gosto, nem medir com a régua, nem pesar
com a balança. Este material é o som que é produzido pelo movimento
dos nossos órgãos da fala e que, como sabemos hoje, é regulado pelas
leis da realidade material, pelas leis da natureza.
Para ser uma palavra, no entanto, não basta esta base acústica6 e
fisiológica7. De fato um som ainda que articulado não se torna uma
palavra se não “denotar” qualquer coisa que reflita e expresse
fenômenos da realidade objetiva – ou seja, os fenômenos da natureza ou
da consciência social. Sem esta compreensão a palavra não será palavra.
Isto que estamos chamando de compreensão não é, no entanto,
qualquer coisa “espiritual”, “imaterial”, um fenômeno que jamais se
expressa, um processo miraculoso, sobrenatural, que ocorre na “alma”
do homem. Já falamos, em nosso primeiro artigo, do que é a
consciência. Indicamos que sua estrutura é ideológica e, por
consequência, social e estamos convictos de que sem linguagem interior
a consciência não existiria. A linguagem interior consiste
principalmente de palavras, ou seja, de signos absolutamente materiais,
embora elas não sejam pronunciadas em voz alta, mas para si mesmo.
Quando nós compreendemos uma palavra ou uma sequência
organizada de palavras, em certo sentido traduzimos esta palavra do
discurso externo (escutado ou lido) de outro homem para o nosso
discurso interno e com isso reproduzimos novamente esta palavra,
circundamo‐la com outras palavras, encontramos seu lugar particular
no fluxo verbal completo da nossa consciência.
Ao fazer isso, a nossa compreensão, como já esclarecemos no
segundo artigo, contém sempre um caráter de resposta avaliativa, um
caráter de réplica.
É claro, mesmo sem especificações posteriores, que todos os signos
ideológicos (verbais, figurativos etc.) só podem formar‐se numa
6 Acústica: ramo da física que estuda os fenômenos ligados ao som.
7 Fisiologia: ciência que estuda o organismo humano.
194
comunidade de pessoas socialmente organizada. O mundo dos animais
não tem signos ideológicos.
No mundo dos homens, de qualquer maneira, não existem signos
ideológicos que conotem propriamente todos os fenômenos da natureza
e os acontecimentos da história. Em cada etapa do desenvolvimento da
sociedade existe um grupo particular e orgânico de objetos acessíveis à
atenção social. Somente este grupo de objetos recebe uma forma
semântica e torna‐se tema de uma troca comunicativa ideológica e por
consequência semântica.
Para fazer com que um objeto, qualquer que seja o tipo de realidade
à qual pertença, entre no horizonte social de um grupo e provoque uma
reação semântica, ideológica, é necessário que este objeto esteja ligado
com as premissas socioeconômicas essenciais da realidade objetiva do
grupo dado, é necessário que toque, mesmo marginalmente, a base da
realização material do grupo.
Neste campo, o arbítrio individual não pode, obviamente, ter
qualquer significado. O signo se cria, de fato, entre os indivíduos, no
ambiente social, na sociedade.
De fato, a humanidade conhece até hoje um único e importantíssimo
motor da história social: a luta de classes.
Por isso, qualquer signo ideológico, sendo produto da história
humana, não só reflete, mas inevitavelmente refrata todos os fenômenos
da vida social.
O que isto significa? Significa somente que (fato importantíssimo e
fundamental para qualquer escritor) num único signo se refletem e
acompanham‐no relações de classe diversas. Nenhuma palavra reflete com
absoluta precisão (“objetivamente”) o seu objeto, o seu conteúdo. A
palavra não é, de fato, a fotografia daquilo que denota. A palavra é um
som significante, pronunciado ou pensado por uma pessoa real num
momento preciso da história real e que, por conseguinte, tem o aspecto
de uma enunciação completa ou de uma de suas partes constituintes, de
um de seus elementos. Fora da enunciação, a palavra só existe no
dicionário, mas nesse é uma palavra morta, não é senão um conjunto de
linhas retas ou semicirculares, de marcas de tinta tipográfica sobre uma
folha de papel em branco. Os livros e os manuscritos ornamentados
somente são lidos pelos ratos, são objetos já caducos para o uso social,
195
para a utilização social, são rejeitados pela sociedade como vasos
quebrados inúteis ou lascas apodrecidas. Um navio naufragado,
submerso na lama e coberto de algas é um objeto da natureza numa
medida muito maior de que o é um pedaço de pedra com o qual, na
falta de um martelo, pregamos um prego ou rompemos a casca de
nozes.
A palavra torna‐se palavra somente no intercâmbio comunicativo
social vivo, na enunciação real, que pode ser compreendida e avaliada
não somente pelo falante mas também pelo seu auditório, seja este
potencial ou realmente existente.
3. O signo e as relações de classe
Recordemos mais uma vez que o falante pertence a uma classe, tem
uma profissão, tem certo grau de desenvolvimento cultural. Enfim, ele
pronuncia esta palavra (em voz alta ou para si mesmo) numa certa
circunstância diante de um ouvinte, presente ou pressuposto. Graças a
estas condições, a esta força (“fatores”) que organizam tanto o conteúdo
quanto a forma da enunciação, as palavras do falante estão sempre
embebidas de opiniões, de ideias, de avaliações que, em última análise,
são inevitavelmente condicionadas pelas relações de classe.
Qualquer palavra, dita ou pensada, exprime um ponto de vista a
respeito de vários acontecimentos da realidade objetiva, em diferentes
situações. De fato, esta realidade não é imóvel, não é uma realidade
estática como uma escultura de bronze; sem conhecer nem
desenvolvimento nem movimento, o homem estaria imóvel. A
realidade efetiva na qual o homem real vive é a história, este mar
eternamente agitado pela luta de classe, que não conhece quietude, não
conhece paz. A palavra, ao refletir esta história, não pode não refletir as
contradições, o movimento dialético, a sua “constituição”.
Qualquer palavra dita ou pensada não é somente um ponto de vista,
mas um ponto de vista avaliativo. De fato, quando pronunciamos ou
escutamos uma palavra, não a percebemos mais como algo destacado e
separado da realidade, que se auto‐satisfaz, que tem um valor próprio
autônomo, como um fenômeno puramente sonoro (como ocorre na
poesia “transmental”). Nós percebemos propriamente aquela realidade
196
objetiva (natural, histórica ou artística) que a palavra reflete enquanto dela é
um signo. Por isso, na comunicação verbal viva, na interação verbal viva,
nós não avaliamos a palavra enquanto som articulado, carregado de um
significado, nem avaliamos a palavra enquanto objeto de estudo
gramatical, mas avaliamos o significado, o conteúdo, o tema, incluídos na
palavra por nós escutada ou lida.
Quando dizíamos que as palavras são verdadeiras ou falsas, parciais
ou imparciais, inteligentes ou estúpidas, profundas ou superficiais, não
referimos nosso juízo sobre as próprias palavras, mas sobre a realidade
objetiva que elas refletem e refratam enquanto palavras‐signos. Por este
motivo, uma mesma palavra nos lábios de pessoas de classes distintas
reflete também pontos de vista distintos, mostra relações diferentes com
a mesma realidade, com o mesmo fragmento de realidade que constitui
o tema daquela palavra.
Tema da palavra [fala], porém, pode ser a própria palavra. De fato,
são possíveis juízos sobre um erro gramatical numa frase ou sobre a
utilização inadequada de um caso ou do plural de um substantivo, do
modo ou tempo de um verbo etc.
Isto não contradiz de fato as opiniões que expusemos acima. Uma
alteração gramatical de uma palavra não altera também o significado na
vida cotidiana, nem faz com que o signo verbal reflita erroneamente a
realidade, nem transforma a palavra num péssimo meio técnico e num
péssimo meio ideológico do intercâmbio comunicativo social. Isto vale
ainda mais se não falamos de um grosseiro erro gramatical, mas do
valor estilístico de uma palavra. Neste caso nos encontramos com maior
nitidez com as relações de classe que, organizando também o gosto
estético, impõem a escolha de dada palavra, de dada expressão, por
consequência a palavra torna‐se a arena da luta de classes, a arena da
dissidência de opiniões e de interesses de classe orientados de modos
distintos.
Talvez o desmentido mais categórico a nossa afirmação de que na
palavra se refletem opiniões orientadas de maneiras diferentes pode ser
constituída pela pergunta: é verdade que também palavras como
“mesa”, “cavalo”, “árvore” etc. refletem e se fazem acompanhar das
relações de classe? De fato, nas diversas classes, a avaliação destas
palavras deve ser idêntica uma vez que os conceitos da realidade que
197
representam permanecem idênticos em todas as classes: uma mesa é
uma mesa e não um cavalo, o cavalo é um cavalo e não uma árvore etc.
A esta observação devemos replicar como segue. Antes de tudo,
uma palavra singular, desbastada do fluxo da interação linguística, não
pode servir de exemplo. Além disso: a palavra, refletindo a realidade
objetiva, reflete em si mesma também uma posição socialmente
determinada sobre esta realidade, todavia não se pode confundir um
signo de identidade completa com seu significado objetivo, objetal da
palavra, e o ponto de vista expresso na palavra.
Cada homem, ao conhecer a realidade, a conhece de um
determinado ponto de vista.
O problema consiste em saber até quanto este seu ponto de vista
corresponde à realidade objetiva. De fato, um ponto de vista não
representa uma conquista pessoal do sujeito cognoscente, mas é o ponto
de vista da classe à qual este sujeito pertence. Em consequência, a
objetividade e a completude de um ponto de vista (a medida de
correspondência entre a palavra e a realidade) são condicionadas pela
posição de dada classe na produção social. Classes diferentes têm
também pontos de vista diferentes; na linguagem de cada classe existe
uma medida particular de correspondência da palavra com a realidade
objetiva. O proletariado, cujo ponto de vista subjetivo se aproxima mais
da lógica objetiva da realidade, naturalmente não tem necessidade de
alterar esta realidade com suas palavras.
Deste modo, em cada palavra da linguagem do proletariado o ponto
de vista coincide plenamente com o significado objetal, objetivo da
palavra.
Portanto, até no campo das palavras que a primeira vista têm um
mesmo significado constante, notamos uma contradição, seja nos
significados (dependentes da situação), seja nos pontos de vista
(dependentes da ideologia de classe ou do hábito profissional). Por
exemplo: uma árvore como material de trabalho é boa ou ruim; uma
árvore como objeto de observação é útil ou inútil; uma árvore como
exemplar de uma variedade é comum ou rara; uma árvore pode ser
objeto de prazer artístico, tema de um quadro, ou algo a ser regado pela
manhã etc.
198
Palavras como “classe”, “revolução”, “comunismo”, “kolchoz”,
“período de reconstrução”, “família”, “verdade”, “religião” etc. não
serão acompanhadas de avaliação diferente nas enunciações de um
lavrador e de um burguês, de um diarista e de um “kulak”8, de um
representante da “intelligentsia” soviética e de um concessionário‐
parasita? Sem dúvida, os magníficos versos de Maiakovski
Eu, toda minha força sonora de poeta
te entrego, ó classe! Ao ataque!
ressoariam de maneira idêntica na consciência de um homem que
sobrepujou a história e na consciência de um homem que gorgoleja no
pântano de velhas ideias e de velhas maneiras de viver?
Por isso, toda realidade objetiva, todo o ser do homem e da natureza
não só se refletem no signo, como são por ele refratados. Esta refracção
da realidade objetiva no signo ideológico é determinada pelo
entrecruzamento de interesses sociais orientados de maneiras diferentes
no âmbito de uma comunidade semântica, ou seja, pela luta de classes.
É necessário notar que a classe não coincide com a comunidade
semântica, ou seja, com a comunidade que utiliza os mesmos signos de
comunicação ideológica. Assim, classes distintas utilizam a mesma
língua. Em consequência, como já vimos, em cada signo ideológico
interpenetram‐se relações de classe orientadas de maneira distinta.
Este aspecto é excepcionalmente importante. Para ser exato,
somente graças a esta refracção das opiniões, avaliações e pontos de
vista o signo é vivo e móvel e é capaz de desenvolvimento. Um signo
separado do acordo de classes, um signo que pareça estar para além da
luta das classes, inevitavelmente se debilita, degenera em alegoria,
torna‐se objeto de compreensão filológica e não de uma compreensão
social viva. Destes signos ideológicos mortos, incapazes de se tornarem
arena dos interesses sociais vivos, está cheia a memória histórica da
humanidade. Mas, não obstante isso, na medida em que os filólogos e
os historiadores deles se recordam, mantêm ainda seus últimos
lampejos de vida.
8 [N.T.] Grandes proprietários rurais, fazendeiros do Império Russo, que empregavam
trabalhadores assalariados.
199
A classe dominante procura dar ao signo ideológico um caráter
supraclassista, eterno, procura constringir e apagar do interior da
palavra a luta das relações sociais, de fazê‐la expressão de um ponto de
vista único, fixo e imutável.
No discurso vivo, qualquer ofensa pode se tornar um elogio,
qualquer verdade soa para muitos, inevitavelmente, como uma enorme
mentira. Esta dialeticidade interna do signo se revela completamente só
em épocas de crise social e de movimentos revolucionários. Nas
condições habituais da vida social, esta contradição, contida no signo
ideológico, não pode ser aclarada em profundidade, porque o signo
ideológico da ideologia dominante que já tomou forma fixa é sempre
um tanto reacionário e busca em certo sentido fechar, fixar e imobilizar
o momento precedente do fluxo dialético do processo de formação
social, ou seja, dar relevo e reforçar a verdade de ontem, fazendo‐a
passar pela verdade de hoje. Isto determina a característica interpretante
e deformante do signo ideológico no âmbito da ideologia dominante.
Portanto, esta é a resposta para as duas primeiras questões que
havíamos colocado.
A realidade objetiva histórica e natural torna‐se tema de nossas palavras
enquanto signos ideológicos. A palavra, como qualquer signo ideológico, não
reflete simplesmente a realidade, mas a interpreta no intercâmbio comunicativo
social vivo, na interação verbal viva. Isto ocorre porque as relações de classe,
refratando‐se nas palavras, impõem‐lhe certo sombreamento do significado,
incluindo nela certo ponto de vista e dando‐lhe certa avaliação. Com isso, as
relações de classe entram na enunciação inteira como um fator, uma força
objetiva com influência determinante sobre sua estrutura estilística.
Acrescentemos somente que é próprio do sistema de relações sociais
criar um vínculo entre a situação e a enunciação e traduzir a sua expressão
acima de tudo na entonação que fixa o ponto de vista de classe, quer em relação
à realidade objetiva tornada tema da enunciação, quer relativamente ao ouvinte
a que se destina esta enunciação.
Mostraremos a seguir, com um exemplo, como numa mesma
palavra podem refletir e fazer aparecer relações de classe distintas, que
assumem a forma de ideologias diferentes.
Para fazer isso, é mais cômodo usar enunciações de pessoas
pertencentes a épocas em que os sistemas ideológicos se encontram na
200
forma mais aguda de contradições recíprocas, refletindo com isso as
enormes contradições econômicas das classes em luta.
Consideremos um de obra da literatura a nós contemporânea, o
romance Inveja de Jurij Olesha. Esta obra é particularmente apta ao
nosso objetivo, em função do estilo cáustico que caracteriza fortemente
a orientação social das enunciações das personagens.
Os exemplos que vamos reportar são duas intervenções linguísticas
que tratam do mesmo tema; são obviamente sucedâneos de enunciações
da vida cotidiana como eram as enunciações de Tchítchikov utilizadas
no ensaio anterior9.
Ainda dessa vez, depois das reservas feitas, suponhamos que estes
dois trechos não foram retirados de um romance, mas de uma
transcrição estenográfica das enunciações de duas personagens
realmente existentes: Nikolai Kavalerov e Ivan Babitchev.
Ambos falando da mesma pessoa, Andrei Babitchev, diretor de um
consórcio da indústria alimentícia, partidário entusiasta de uma
alimentação gostosa e econômica para as massas.
Eis o que diz Kavalerov:
Isto é o que tenho aprendido sobre sua história:
Numa manhã, ele, diretor de uma empresa, carregando uma pasta nas
mãos – um homem de aspecto muito respeitável, um homem
importante evidentemente – saiu por uma escada desconhecida, entre a
beleza da entrada de serviço, e bateu na primeira porta que encontrou.
O jovem Harun‐al‐Rashid tinha visitado uma das cozinhas de um
casario operário da periferia. Tinha visto a fuligem e a imundície, as
Fúrias raivosas que se acercavam do fogo, as crianças que choravam.
De repente começam a atirar contra ele. Grande e gordo como é,
perturbava todos: ele tomava muito espaço, luz e ar. Além disso, tinha
uma pasta, um pince‐nez e era lindo e elegante. As Fúrias haviam
concluído que se tratava, naturalmente, de um membro de alguma
comissão. As donas de casa, com cintos nas mãos, atracaram‐se contra
ele. Ele não andava. Por culpa sua – gritavam atrás dele – o forno havia
apagado, um cálice havia quebrado e a sopa tinha ficado muito
salgada. Não sairia sem dizer o que tinha em mente. Sem mentira.
Teria que falar assim:
9 [N.T.] Trata‐se de A construção da enunciação, também neste volume.
201
‐ Senhoras! Nós aqui daremos as costas à fuligem, liberaremos vossas
mãos do fogão e as orelhas do fracasso, obrigaremos as batatas a se
descascarem magicamente num átimo. Aqui restituiremos o ouro que
da cozinha daqui foi roubado: recuperai metade da vida! Tu, jovem
esposa, estás cozinhando a sopa de teu marido. A uma pequena porção
de sopa tu dedicas metade de seu dia! Nós transformaremos a vossa
porção em mar cintilante, serviremos um oceano de sopa de couve,
ajuntaremos uma montanha de polenta! O kisel10 deslizará como água!
Escutai, donas de casa, e esperai! Eis o que aqui prometemos: um
pavimento de sorvete inundado de sol, feixe de ramos resplandecentes,
pratos de esplendor lilás, um leite denso como mercúrio e uma sopa de
que sairá um cheiro que fará inveja a todos que não estão em sua
mesa.11
Obviamente, se esta enunciação, com este tema e nesta situação,
tivesse sido pronunciada por Andrei Babitchev em pessoa, o estilo do
discurso seria completamente diferente. Mas a enunciação foi
pronunciada pelo seu oponente Kavalerov, um típico representante da
intelligentsia decaída e desclassificada; Kavalerov odeia vilmente aquele
de quem está falando. Ele odeia tanto Andrei Babitchev e o sonho de
sua vida, a gigantesca mesa social “Tchevertak”12 . Ele utiliza este
possível discurso de outrem para torná‐lo objeto de sua ironia pessoal,
ironia habilmente mascarada, mas que, no entanto, estende‐se por toda
a estrutura estilística desta enunciação.
De fato, o tema do fogão doméstico – que se divide em dois
motivos: 1) a superação da gestão individual da cozinha e 2) a
transformação industrial do processo de preparação do alimento – é
camuflado por uma fraseologia excessivamente exuberante, cheia de
epítetos rebuscados ou de comparações grandiosas.
Todavia, a exorbitante poetização de um fenômeno da realidade
quotidiana quase sempre corre o risco de rebaixar bruscamente seu
10 Gelatina de fruta misturada com fécula de batata [Nota da tradutora italiana Rita
Bruzzese].
11 Invidia ed i tre grassoni, de Jurij Olesha, tradução de Giulio Dacosta, Torino: Einaudi,
1969, p.13.
12 Alimentação a vinte e cinco copeques [informação da tradutora italiana Rita
Bruzzese, no corpo do texto e aqui transformada em nota].
202
valor social a nossos olhos. Todos os procedimentos estilísticos de
Kavalerov, que ele vende como se fosse um discurso possível de
Babitchev, estão orientados para darem este tipo de efeito. De fato, se
durante a visita de estranhos àquela cozinha, Andrei Babitchev tivesse
tentado pronunciar um discurso diante das donas de casa – mulheres de
trabalhadores – idêntico ao discurso que pronuncia Kavalerov, com
aquela mesma entonação, provavelmente teria destruído
definitivamente aos olhos daquelas senhoras a ideia de alimentação
social.
Mas abstraiamos a ironia que colore esta bizarra tradução do
pensamento de Andrei Babitchev na linguagem caricatural da
intelligentsia de Kavalerov. Suponhamos que por um minuto Andrei
Babitchev em pessoa se tenha transformado em poeta e que, com uma
linguagem entusiástica, com uma entonação verdadeiramente
convincente, tenha falado de seu próprio sonho proibido e da sua
aspiração.
Que orientação de classe adquirem palavras como: cozinha, fuligem,
sopa, polenta, batata etc., ou seja, todo o complexo (grupo) de palavras
ligadas ao conceito de cozinha doméstica? Como seriam avaliadas na
consciência de classe do falante? Seriam pronunciadas com uma
entonação de solidariedade, de carinho, de doçura ou ao contrário?
Obviamente todas estas palavras nos lábios de Andrej Babitchev
assumiriam uma clara expressão ideológica de ódio por esta limitação
mental e pela estreiteza obtusa dos interesses da cozinha, que têm
conquistado e posto em cadeia as ideias e os humores pequeno‐
burgueses de uma enorme quantidade de núcleos familiares que não
caminham ainda na estrada da nova maneira de viver.
Citemos outra enunciação sempre sobre o tema da cozinha
doméstica pronunciada pelo irmão de Andrei Babitchev, Ivan:
Companheiros! Querem afastá‐los de vosso patrimônio pouco
significativo, de vosso fogão doméstico. Os ventos da revolução,
alterando ruidosamente com a distribuição das tarefas, maltratando as
nossas crianças, os nossos gatos, demolindo os fornos e os ladrilhos
que escolhemos, irromperam na vossa cozinha. Donas de casa, está em
perigo o nosso orgulho, a vossa glória: o fogão! Mães e esposas, os
elefantes da revolução querem esmagar vossa cozinha!
203
[...] Que coisa disse este homem? Escarneceu vossas panelas e
frigideiras, o vosso sossego, o vosso direito de enfiar o peito entre os
lábios de vossos filhos... Que ensina a esquecer? O que quer extirpar de
vosso coração? A casa materna, a casa, a casa dileta! Ele quer fazer de
vós vagabundos pelos campos selvagens da história. Esposas, ele cospe
na vossa sopa! Mães, ele sonha em acabar com a semelhança de vossas
criancinhas convosco, com o sagrado e belíssimo ar da família. Ele
irrompe em vossos espaços, anda pelos móveis como um rato, se
infiltra sob os leitos, sob a pele dos animais, sob os pelos de vossas
axilas. Mandai‐o ao diabo! [...] Eis um travesseiro. Eu sou o rei dos
travesseiros. Diga a ele: queremos dormir cada um com seu próprio
travesseiro. Não tocai em nossos travesseiros. Sobre este travesseiro
repousamos nossa cabeça ainda sem cabelos, coberta de lanugem
avermelhada como aquela dos pintainhos; sobre ele caíram os nossos
beijos nas noites de amor, sobre ele morreremos e sobre ele morrerão
aqueles que mataram. Não toquem em nossos travesseiros! Não
chamem! Não seduzam! Não tentem! Que coisa se pode oferecer em
troca de nossa capacidade de amar, de odiar, de esperar, de chorar, de
compadecer‐se e de perdoar? [...] Eis o travesseiro. A nossa arma. O
nosso estandarte. Eis o travesseiro. As bolas [de bilhar] aqui se
emaranharam. O travesseiro, nós te estraçalhamos...13
Os leitores notarão facilmente que não obstante o tratamento
externamente diferente do mesmo tema, a enunciação de Nikolai
Kavalerov e de Ivan Babitchev não se distinguem minimante na
substância, porque refletem a ideologia do mesmo grupo social, aquele
da intelligentsia pequeno‐burguês decadente, desclassificada, uma
ideologia hostil à Andrei Babitchev. Por isso tudo, o conjunto de
palavras que movem em torno do centro temático, a cozinha doméstica,
nos lábios de Andrei Babitchev será inevitavelmente permeado por uma
entonação que exprime seu desprezo e sua aversão por esta ideologia
(ainda mais uma vez, não pelas palavras como fenômenos gramaticais,
mas pela realidade que elas refletem).
Em conclusão, propomos ao leitor fazer a seguinte experiência,
extremamente útil para criar uma atitude de análise estilística.
13 Op. cit., p. 104.
204
Procure estabelecer qual ideologia de classe está na base das
enunciações citadas a seguir e ligadas ao 9 de janeiro14. Cada uma destas
enunciações é expressão de um agrupamento de classe específico, cuja
ideologia condicionou não só a diferença na maneira de ver um mesmo
acontecimento, mas também a diferença da estrutura estilística.
Em um dos próximos números examinaremos a resposta mais
característica para a análise por nós proposta15.
Trecho 1
Majestade! Nós, trabalhadores e habitantes da cidade de São
Petersburgo, de diversas categorias, as nossas mulheres e nossos filhos
e os nossos velhos e débeis pais, vimos a ti, Majestade, buscar verdade
e defesa.
Nós somos pobres, nós colhemos os frutos da terra, nós nos
sobrecarregamos com um trabalho superior às nossas forças, nós
somos ultrajados e não somos considerados como pessoas e somos
tratados como escravos que devem suportar seu amargo destino e
calar.
Nós suportamos, mas somos empurrados cada vez mais para o
sorvedouro da miséria, da falta de direitos e da ignorância; o
despotismo e o arbítrio nos oprimem e nós sufocamos. Não temos mais
força, Majestade. A nossa paciência está próxima do limite. Chegou
para nós aquele terrível momento em que é preferível antes a morte do
que continuar a sofrer dores insuportáveis.
Por isso abandonamos o nosso trabalho e avisamos a nossos patrões
que não retornaremos ao trabalho enquanto eles não atenderem a
nosso pedido. Não pedimos muito, desejamos somente aquele pouco
que quando falta faz da vida um eterno tormento, uma condenação ao
trabalho forçado.
14 Em 1905, em Petersburgo, ocorrem gravíssimas greves operárias provocadas pelo
descontentamento geral devido a numerosas causas concomitantes, entre as quais o
desastroso andamento da guerra contra o Japão. Em 9 de janeiro houve um dos
episódios mais graves deste período histórico, o considerado “Domingo de Sangue”,
durante o qual o exército czarista oprimiu uma imponente manifestação pacífica,
precedida pelo padre Gapon, provocando numerosas mortes e feridos e exasperando
a tensão social já gravíssima. [Nota da tradutora italiana Rita Bruzzese]
15 [N.T.] Até onde sabemos, não houve um ensaio publicado posteriormente que tenha
retomado o exercício aqui proposto.
205
Tudo isto, segundo os nossos patrões e a administração da fábrica,
parece ilegal, todos nossos rogos parecem um delito e nosso desejo de
melhorar a nossa situação parece um ato de insolência, ultrajoso para
eles.
Majestade, nós somos muitos milhares e somos todos homens não só
porque dos homens temos o aspecto, a exterioridade, no entanto na
realidade para nós, como para todo o povo russo, não é reconhecido
qualquer direito humano, nem o direito de falar, de pensar, de se
reunir, de discutir nossas necessidades, tomar medidas para melhorar
a nossa situação.
Nós fomos reduzidos à escravidão e o fizeram com a proteção de
teus funcionários, com a sua ajuda, com a sua colaboração. Qualquer
um de nós que tivesse ousado levantar a voz em defesa dos direitos da
classe trabalhadora e do povo teria sido atirado nas prisões ou
mandado para o exílio. Somos punidos, como por um delito, por nosso
bom coração, por termos um ânimo compreensivo... Ter piedade por
um homem oprimido, privado de direitos, torturado, significa praticar
um grave delito.
Todo povo, trabalhadores ou camponeses, estamos à mercê da
administração dos funcionários, composta por prevaricadores e
assaltantes que só não se interessam, de fato, pelos interesses do povo,
mas ao contrário o maltratam. A administração dos funcionários levou
a nação à ruína completa, enredada numa guerra vergonhosa que leva
a Rússia cada vez mais à ruína. Nós, trabalhadores e população, não
temos nenhuma voz no assunto e a nós concerne o custo das pesadas
taxas que de nós exigem. Não sabemos tampouco onde vai parar o
dinheiro recolhido entre a população miserável. O povo não tem
direito de exprimir seus desejos, as suas exigências, de participar da
criação dos impostos e da decisão de seu investimento. Os
trabalhadores estão proibidos de organizar‐se em associações para a
defesa de seus próprios interesses.
Majestade! Estaria isto de acordo com as leis divinas graças às quais
tu reinas? É possível viver com estas leis? Não é. Talvez seja melhor
morrer, morte para todos nós trabalhadores da Rússia? Deixemos,
então, que vivam e gozem os capitalistas, exploradores da classe
trabalhadora e os funcionários, corruptos e assaltantes do povo russo.
Olhe para nossa súplica sem ira, com atenção; não dirigimos nossa
súplica para fazer mal, nem a nós, nem a ti, Majestade. Não é a
insolência que fala em nós, mas a consciência da necessidade de
encontrar uma saída para uma situação insustentável. A Rússia é
206
muito grande, as suas exigências muito numerosas e variadas para que
só os funcionários possam governá‐la. É necessária uma representação
(popular), é necessário que o próprio povo se ajude e se governe. De
fato, somente o povo conhece suas reais necessidades. Não recuse a sua
ajuda, aceita‐o, ordene logo, agora mesmo, chamar os representantes
de toda Rússia, de todas classes, de todas condições, representantes
também dos trabalhadores. Deixa que o capitalista, o trabalhador, o
funcionário, o clérigo, o doutor, o professor, deixa que todos, qualquer
que seja sua condição, escolham seus próprios representantes. Faze
com que cada um seja igual e livre no direito ao voto: para fazer isso,
ordena que as eleições para a Assembleia Constituinte ocorram com
uma votação universal, secreta e paritária.
Este é nosso pedido mais importante; sobre ela tudo se baseia; este é
o curativo essencial, único para nossa dolorosa ferida, sem ela nossa
ferida muito sangrará e logo nos levará à morte.
Trecho 2
O tranquilo desenvolvimento da vida social de S. Petersburgo foi
rompido nos últimos dias pela interrupção do trabalho nas fábricas e
oficinas. Deixando de lado suas próprias ocupações com claro prejuízo
para si e para os próprios patrões, os trabalhadores apresentaram uma
série de exigências que mexem com as relações correntes entre eles e os
industrialistas. Deste movimento nascente se aproveitaram indivíduos
mal intencionados que escolheram os trabalhadores como instrumento
para a execução de sua trama e atraíram os trabalhadores para um
caminho falso com promessas enganosas e irrealizáveis. Como
consequência desta propaganda criminosa, praticaram inumeráveis
infrações da ordem na capital e a intervenção, inevitável nestes casos,
das forças armadas.
Estes fenômenos são profundamente lamentáveis. Provocando a
revolta, estes indivíduos mal intencionados não se detiveram diante da
dificuldade por que passa nosso país, suportando o período presente.
Em suas mãos, o povo trabalhador das fábricas e oficinas de
Petersburgo tornou‐se um forte instrumento sem se dar conta de que,
em nome dos operários, eles avançaram reivindicações que com a
necessidade dos operários nada têm a ver.
Ao apresentarem estas reivindicações e ao interromperem suas
ocupações habituais, os trabalhadores das fábricas e das oficinas de
Petersburgo esqueceram também que o governo está sempre
207
diligentemente preocupado com suas necessidades, assim como
continua agora e está pronto para escutar atentamente seus justos
desejos e a satisfazê‐los na medida das possibilidades. Mas para isso, o
governo precisa acima de tudo que se restabeleça a ordem e que os
trabalhadores retomem suas tarefas habituais. Num momento de
agitação, é impensável que se possa desenvolver uma atividade serena
e benévola do governo para o bem dos trabalhadores. A satisfação de
seus pedidos, por mais justos que possam ser, não pode ser conseguida
pela desordem e pela teimosia.
Os trabalhadores devem atenuar o fardo que recai sobre o governo
de melhorar a sua maneira de viver e podem fazê‐lo só de uma
maneira: distanciando‐se daqueles que necessitam da confusão para
tirarem vantagens, daqueles a quem são estranhos os vários interesses
da pátria e que agitam bandeiras e propostas como pretextos para
provocar desordem, com os quais os trabalhadores não compartilham
nenhum interesse comum. Eles devem retornar ao seu trabalho
habitual, que é necessário tanto para o Estado quanto para os próprios
trabalhadores, porque sem ele condenam à miséria a si mesmos, suas
próprias mulheres e filhos. E, retornando ao trabalho, sabe o povo
trabalhador que suas necessidades estão junto ao coração de Sua
Majestade, o Imperador, assim como as necessidades de todos os seus
fiéis súditos; que Sua Majestade recentemente dignou‐se ordenar, de
sua espontânea vontade, que se preparasse o exame do problema do
seguro social dos trabalhadores, que tem por objetivo garanti‐lo nos
casos de mutilação ou enfermidade; que as preocupações de Sua
Majestade, o Imperador, com o bem‐estar dos trabalhadores não se
esgotou nesta medida e que, simultaneamente a isto, por licença de Sua
Majestade, o Imperador, o ministro das finanças está por examinar a lei
para posterior redução do tempo de trabalho e esta medida dará ao
povo trabalhador meios legais para discutir e propor suas próprias
necessidades.
Saibam, além disso, os trabalhadores das fábricas, das oficinas e dos
outros complexos industriais que, retornando ao trabalho, poderão
contar com a defesa, por parte do governo, da inviolabilidade de cada
um, de sua família e do seu lar. O governo defenderá a vontade de
trabalhar do atentado delituoso à liberdade de trabalho, obra de
indivíduos mal intencionados que em alta voz proclamam a liberdade
de trabalhar, mas que pretendem esta liberdade como um direito que
não funcione, por meio da violência contra os próprios companheiros
que estão prontos a retomar pacificamente o seu trabalho.
208
Trecho 3
Os trabalhadores das fábricas e das oficinas de Petersburgo
decidiram encaminhar ao czar súplica de defesa e ajuda, para si
próprios e para todo o povo.
Os trabalhadores de Petersburgo não são camponeses que recém
saíram das vilas e chegaram à cidade em busca de um trabalho
temporário. Nem por isto, em sua súplica ao czar, os trabalhadores
esqueceram a miséria e a necessidade campesina.
Para si próprios, os trabalhadores pediram defesa contra os próprios
patrões e direções das fábricas, a fim de que nas fábricas e oficinas não
se roube, atormente e humilhe o povo trabalhador. Para todos os
campesinos, os trabalhadores pediram que fossem diminuídos e
distribuídos com justiça os tributos, que fosse dada terra ao povo, que
diante da lei fossem todos iguais, nobres e camponeses, que se
defendesse o povo contra os chefes dos zemstvo16 e de outros funcionários.
Os trabalhadores acreditavam que o czar quisesse o bem do povo e
que os funcionários opunham obstáculos. Destes derivava toda a
calamidade do povo e todas as desordens no estado. Os funcionários
formam um grupo que separa o czar do povo, oprimem o povo,
sugerem ao czar ordens injustas, leis ruins. Por isto, a principal súplica
dos trabalhadores era:
Que o czar não consultasse somente os funcionários sobre a
necessidade do povo nas questões de estado e que chamasse
representantes eleitos de todas os estratos sociais e que perguntasse ao
povo que coisas desejava e quais eram suas necessidades.
Às seis da manhã de 9 de janeiro de todas as partes da cidade se
moveu enorme massa de trabalhadores até o palácio imperial.
Caminhavam em ordem, calmos, em silêncio, com solenidade.
Caminhavam velhos, mulheres, crianças.
Na fábrica Putilovski os trabalhadores, antes de partirem, entoaram
o Te Deum em honra do czar e se moveram até o palácio imperial em
procissão, com o clero, os estandartes, os ícones. Na frente do cortejo,
levavam o retrato do czar. E o czar de encontro aos trabalhadores
mandou a tropa e ordenou a dispersão dos trabalhadores com armas.
16 O zemstvo, inicialmente órgão administrativo rural, no período crucial que precede a
revolução de outubro, tornou‐se um órgão administrativo centralizado que se ocupa
de todos os negócios econômicos de cada distrito. [Nota da tradutora italiana Rita
Bruzzese]
209
A infantaria e a cavalaria atacaram o povo desarmado, dispararam os
fuzis, feriram, atropelaram com os cavalos.
As mulheres avançavam na frente, dispararam contra elas. Os velhos
de joelhos pediam em coro a presença do czar, atiraram também contra
eles.
Atiraram contra a procissão, seus padres, sobre os ícones. As balas
furaram também o retrato do czar.
Pelos longos muros do palácio, onde o povo vinha “buscar verdade e
defesa”, as cornetas soavam os sinais de ataque, estouravam as rajadas
dos fuzis, cintilavam as espadas.
E as pessoas, que veneravam seu czar “como a um pai”, corriam
tropeçando nos cadáveres e atrás delas zuniam as balas.
Assim, o czar acolhe as súplicas dos trabalhadores.
Os trabalhadores não atacaram antes, não começaram nenhuma
revolta. Os ferozes comandantes, com injúrias e ameaças, obrigaram os
soldados a atacarem a multidão pacífica e desarmada.
Os soldados não sabiam de que se tratava. O comando havia dito
que os operários estavam incitando à revolta os inimigos internos, os
traidores, os amigos dos japoneses.
Mas ao verem aquela pacífica multidão de trabalhadores, os
soldados duvidaram, despertaram‐se suas consciências. Sobretudo no
início, foi evidente que os soldados agiam forçados e contra a vontade:
alguns se moviam com lágrimas nos olhos. Na infantaria, alguns
disparavam para o alto ou para o chão. Até entre os cossacos alguns só
simulavam agitar as espadas.
No entanto, muitos soldados, enganados pelo comando,
aterrorizados pela disciplina militar, derramaram o sangue de seus
próprios irmãos... Depois dos tiros de fuzis, também os trabalhadores
se enfureceram. Começaram a procurar armas, jogaram pedras nos
policiais, arranjaram de uma fábrica lâminas de espadas ainda não
prontas, não afiadas e sem empunhadura. Era uma arma miserável... e
com ela os trabalhadores avançaram com ostentação contra o exército.
Ao fim da jornada, também os soldados se enfureceram.
E nas ruas da capital russa, russos se bateram e se mataram, como
inimigos, como feras selvagens. Quantas pessoas morreram ninguém o
sabe. O governo anunciou 130 mortes, mas ninguém acredita no
governo.
O governo quer jogar a culpa sobre os trabalhadores. Foi ordenado
estampar em seus jornais que os trabalhadores, enganados por
traidores e delinquentes, tinham assinado uma petição ousada, sem
210
saber o que nela estava escrito e que era um movimento de uma
multidão revoltada, que eram rebeldes, estavam atacando o exército.
Foram afixados avisos segundo os quais os trabalhadores tinham sido
comprados pelos ingleses e pelos japoneses. Esta invenção foi repetida
ao povo pelos padres por ordem dos metropolitanos do sínodo.
Mas agora até o povo menor pouco crê nesta invenção.
Em Petersburgo, a coisa parece clara aos olhos de todos. Não era
nenhum estrangeiro agitador, eram os honrados homens russos que
não pensavam em outra coisa que não as necessidades quotidianas
fundamentais do povo russo, claras para todos. A petição era lida e
examinada pelos trabalhadores em reuniões: dezenas de milhares de
pessoas ouviram, meditaram, melhoraram esta petição e a
subscreveram de plena consciência; os trabalhadores não se rebelaram,
mesmo quando dispararam sobre eles; os trabalhadores foram
subitamente parados quando uma multidão de arruaceiros e
vagabundos começou a saquear as lojas e magazines.
A fábula do pagamento inglês de fato só piorou a imagem do
governo. O governo inglês anunciou que isto é uma mentira e o
governo russo teve que apresentar pedido de desculpas e retirar os
avisos.
Sobre os cadáveres dos companheiros mortos, os trabalhadores
juraram que jamais esqueceriam este dia, que jamais perdoariam o
governo por esta matança.
Os trabalhadores chamam o czar de assassino, traidor dos
trabalhadores. Não esperam nada e nada pedem ao czar. Aquilo que
antes pediam, agora obterão pela força.
Ninguém quer mais contar com o czar e seus funcionários. Eles só
sabem destruir e confundir todos os negócios do estado russo, quer
internos, quer externos. Nos assuntos externos, chegaram à guerra, não
souberam conduzir nem concluir a guerra. Nos assuntos internos,
falaram e prometeram ao povo todo bem de Deus, mas na realidade
lhe trouxeram a ruína e perseguiram os trabalhadores, os camponeses,
os estudantes.
Somente os eleitos pelo povo querem e podem ajudar o povo.
Os eleitos pelo povo russo concluirão com uma paz justa, em acordo
com os eleitos pelo povo japonês, uma guerra destrutiva e fatal para
ambos os povos.
E no estado russo os eleitos pelo povo farão cessar as desordens
internas, farão leis justas, darão ao povo uma defesa contra a
autoridade e os ricos; distribuirão mais equitativamente os tributos,
211
interromperão a rapina do tesouro estatal do dinheiro banhado de
sangue e suor do povo russo.
Somente se se convocar imediatamente um governo eleito pelo povo
se poderá dar à Rússia paz e tranquilidade e abrir para o povo o
caminho da luz, da liberdade e da felicidade.
212
SOBRE AS FRONTEIRAS ENTRE POÉTICA E LINGUÍSTICA1
Para N.V. Jakovlev
Tandem desine matrem
Tempestiva sequi viro (Horácio)2
I
Especificar os limites que separam a poética da linguística é um dos
principais problemas para a ciência da literatura marxista: enquanto se
confundirem de modo acrítico e cientificamente não fundamentado as
categorias artísticas com as linguísticas, permitindo assim que o
psicologismo e o positivismo se infiltrem na poética, será impossível
fundar uma teoria da literatura científica (marxista).
O triste resultado da confusão dessas categorias é evidente, em
primeiro lugar, no interior da própria linguística.
O desejo de criar uma síntese entre gramática e estilística, o medo de
uma progressiva diferenciação entre a ciência, que levará ao
enfraquecimento dos “laços entre a ciência da língua e a ciência da
literatura” que já não “estavam mais tão estreitos assim”3, leva Vossler e
seus discípulos a “produzir uma ponte entre ciência da literatura e
1 [N.T.] Embora esta tradução siga o texto italiano que aparece no livro Il Linguagio
como Pratica Sociale, como de resto os demais textos traduzidos do italiano, no título
deste ensaio preferimos o novo título que aparece no livro Che cos’é il linguagio, por
ser mais adequado ao título original em russo O granitsach poetiki i lingvistiki. (Cf. a
introdução a este volume). Infelizmente, como anotam os editores do original russo,
“por causas técnicas o ensaio é publicado com abreviações”.
2 [N.T.] Tradução de Valdemir Miotello: ʺAté quando vais seguir a mãe./É mais
garantido seguir um homemʺ.
3 Hans Sperber, “Motiv und Wort bei Gustav Meyrink” (Motiv und Wotstudien zur
Literatur und Sprachpsychologie, 1918, p.7). Ver também L. Spitzer “Slovesnoe
iskusstvo i nauka o jazyke” in. Problemy literaturnoj formy, Academia, 1928, p. 192 [“A
arte verbal e a ciência da linguagem” na coletânea Problemas da forma literária].
213
linguística”4: mas essa “ponte” destruiu as fronteiras metodológicas
correntes entre as duas disciplinas. Da luta contra a metafísica positivista,
que pretendia não só identificar e estudar os fatos, mas também
resolver os problemas de seu conteúdo “espiritual”, resultou a
vizinhança da metafísica com o idealismo: já em Benedeto Croce a língua
vinha privada da posição de autonomia que gozava em Humboldt, e
reduzida à sua função estética geral de expressão5. A língua passa assim
a fazer parte de um sistema filosófico geral, em que o elemento central é
a estética: o perigo de tal inclusão consiste no fato de que, devendo
identificar‐se com um dos elementos desse sistema, a língua passa a ser
identificada de fato com a estética como ciência geral da expressão: “... a
difícil ciência da linguística, Linguística Geral, naquilo que tem de
redutível à ciência, não é se não a Estética. Aquilo de que se ocupa a
Linguística Geral, ou seja, a linguística científica, são problemas
estéticos de que se ocupa a Estética e vice‐versa”. [...] A ciência da arte e
a ciência da linguagem [...] são uma única ciência”.
A este princípio responde plenamente a definição fundamental de
Karl Vossler: “Se é legitimamente fundada a definição da língua como
expressão espiritual, então a história do desenvolvimento linguístico
não pode ser outro que a história das formas espirituais de expressão e,
portanto, história da arte na acepção ampla da palavra”6. Um discípulo
de Vossler, L. Spitzer, parafraseando a fórmula de Locke: “Nihil est in
intellectu, quod non fuerit in sensu”, leva ao paradoxo este ponto vista,
afirmando “Nihil est in syntaxi, quod non fuerit in stylo”7.
Esta desmedida valorização do momento artístico na língua, uma
primazia tão dogmática do estilo sobre o linguístico, é naturalmente
inaceitável, seja para a ciência da literatura, seja pela linguística
marxista: o subjetivismo individualista, terminada sua tarefa histórica
(aquela de lutar contra o positivismo e chamar a atenção para o papel
4 L. Spitzer. Die groteske Gestaltungs und Sprachkunst Christian Morgensterns (idem, p.
94).
5 B. Croce, Estética come scienza dell’espressione e linguística generale, Milão, Sandron,
1902, p. 143 e seguintes. [V. N. Voloshinov cita a tradução russa, Moscou, 1920 – nota
da tradutora italiana Nicoletta Marcialis].
6 K. Vossler. Positivismus und Idealismus in der Sprachwissenschaft, 1904, p. 10.
7 Problemy Literaturnoj formy, Academia, 1928, p. 208
214
criativo da enunciação isolada), deve ceder o passo, na ciência sobre a
língua, às orientações sociológicas marxistas.
Mas se a esteticização da linguística operada pela escola de Vossler
abriu caminho para uma onda de psicologismo em todos os elementos
estabelecidos e objetivamente sociológicos da língua, não menos
aceitável é o fenômeno oposto: a gramaticalização de todas as categorias
teórico‐poéticas, que levou ao fetichismo positivista dos dados empíricos da
obra literária.
Fascinados pelo fato de que a poesia consiste de material verbal,
alguns pesquisadores elaboraram o conceito de “linguagem poética” e
adotaram em seus estudos os instrumentos que foram elaborados para a
análise dos fenômenos da língua positiva: a metodologia linguístico‐
formal tornou‐se dominante na escola dos “formalistas”.
Devemos interromper, por um tempo, todos os problemas de
fronteiras de estudos deixados pelo método estético na linguística;
também todos aqueles problemas legados pelas afirmações sobre a
esfera de competência do método linguístico na poética, pois devemos
nos limitar à análise crítica das posições metodológicas gerais de um só
autor, que seja o representante mais característico do método linguístico
formal na poética.
Ninguém pensa, obviamente, em opor‐se à afirmação segundo a
qual o estudo da arte verbal necessita do aporte de uma ciência da
palavra, isto é, da linguística.
É evidente que sem o conhecimento da gramática captaremos bem
pouco sobre a construção sintática de uma obra poética. Mas nenhuma
gramática dirá que função teria uma determinada construção sintática
na estrutura estética de qualquer obra: qual seria, por exemplo, a função
do discurso indireto livre na enunciação dos heróis de Pushkin ou de
Dostoiévski (Mazepa, Príncipe Myshkin etc)8.
8 Sobre este ponto de vista, coloquemos ao corrente (ainda que sem esgotar o
problema) a posição de G. Vinokur: “Decompor corretamente a estrutura poética
significa na prática resolver o problema do objeto da poética: a poética pode
interpretar a seu modo uma parte singular desta estrutura – não nos ocupemos com
isso por enquanto – mas isso não pode ser feito sondando‐a e buscando‐a somente como
linguista”. (G. Vinokur, Kul’tura jazyla [Cultura da Língua], Moscou, 1925, p. 167
(grifos do autor).
215
É esta a verdade indiscutível, o truísmo que os formalistas se
recusaram obstinadamente a reconhecer. Continuaram a querer captar
com métodos linguísticos o pássaro azul: o objeto estético ‐ e continuaram a
ter entre suas mãos uma mísera larva: o cinza, a incolor “soma dos
procedimentos” da produção empírica de uma coisa. Este misterioso
pássaro azul não foi encontrado nem por um dos pesquisadores mais sutil
e prudente, o linguista‐cientista da literatura par excellence V. V.
Vinogradov.
A posição linguística geral de V. V. Vinogradov é muito próxima
daquela orientação que em outro trabalho definimos como objetivismo
abstrato9.
Ele próprio alude a esta ligação quando toma emprestado de Albert
Séchehaye o termo “símbolo”, e dele aceita incondicionalmente a
definição10. Além disso, dele fala V. M. Jirmunsky, ainda que rapidamente,
no ensaio Zadaci poetiki11; P. N. Medvedev aponta a influência da “escola de
Genebra” sobre V. V. Vinogradov no seu livro Formal’nyj metod v
literaturovendenii [O método formal nos estudos literários]12.
Não parece de todo verdadeira e convincente a conclusão a que
chega Medvedev, segundo o qual as influências dos linguistas franceses
não determinaram a base da poética formalista: certo, se se quiser
limitar o método formal a seu primeiro período (1914‐1918, segundo a
subdivisão cronológica precisa de P. N. Medvedev); é evidente que as
declarações futuristas de V. B. Sklovski nada têm em comum com o
pensamento linguístico sério e plenamente responsável de Saussure, de
Bally etc. Este híbrido original, meio literato e meio cientista, movido
por interesses estritamente programáticos, e não de fato por pesquisa,
somente chamou atenção para difíceis problemas, sem ter, no entanto,
9 V. N. Volochínov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo: Hucitec, 1982, p. 77 e
segs. (Volochínov cita a edição russa, Leningrado, 1929, p. 58 e segs.)
10 Ver o ensaio de V. V. Vinogradov “O zadacach stilistiki” [Competências da
Estilística] na coletânea Russkaja rec, I, 1923, aos cuidados de L. Scerba, pp. 196‐197 e
205. Na maior parte dos trabalhos de Vinogradov, encontramos remessas a Saussure,
Séchehaye e outros representantes da “escola de Genebra”.
11 Na coletânea Zadaci i metody izucenija iskusstv [Competências e métodos do estudo da
arte], Academia, 1914, p. 146.
12 Leningrado, 1928, p. 75 e seguintes. [N.T.] Na edição brasileira do Método Formal
nos Estudos Literários, 2012, p.118 e seguintes.
216
forças não só para resolvê‐los, mas também para colocá‐los
corretamente. A irrupção organizada da ciência literária teórica,
proporcionada pelos fascinantes e pouco conhecidos confrades
“formalistas”, ocorrerá mais tarde, graças aos trabalhos de V. V.
Vinogradov, V. M. Jirmunski e outros representantes do método
formal13: estes se esforçaram para contrapor a uma aventura
metodológica sem princípios uma direção mais objetiva para a
pesquisa. Neste momento se realizou, como muito justamente notou P.
N. Medvedev14, a penetração do método linguístico na poética, por obra
principalmente de V.V. Vinogradov.
Colocando‐nos no ponto de vista da ciência da literatura marxista,
retenhamos que o primado da linguística sobre a poética no estudo de
uma obra de arte verbal soa profundamente errôneo: é óbvio que para
os fins da linguística qualquer que seja a obra literária pode e deve
funcionar como material de estudo, mas para os fins da poética uma
aproximação filológica tal como aquela de V. V. Vinogradov é
simplesmente desastrosa. Este pecado metodológico foi agravado pelo
fato de que a base linguística sobre a qual se funda V. V. Vinogradov é
atravessada de cima a baixo pelas influências do pensamento indo‐
europeu, hoje em dia profundamente reacionário, na sua versão mais
formalista (Saussure e sua escola).
Nossa tarefa é iluminar este duplo erro de V. V. Vinogradov e
indicar, ainda que de forma preliminar e incompleta, o caminho para
uma solução marxista de alguns problemas da estilística.
II
Todos os textos de V. V. Vinogradov publicados de 1920 até hoje,
com exclusão do ensaio O zadacach stilistiki15, do livro Poezija Anny
13 Devemos sublinhar, para evitar equívocos, a posição asperamente crítica de V.
Vinogradov nos confrontos dos “formalistas”. O pathos subjetivo da distância não
autoriza, porém, a afirmar um afastamento e uma independência objetivos.
14 P. N. Medvedev, op. cit, p. 118 e 119 (ed. brasileira) e 93 (ed. russa)
15
Na recolha Russkaja rec, I, 1929, p. 195‐293; O zadacach stilistiki. Nabjudenija nad stilem
“Zitija protopopa Avvakuma” [Competências da estilística. Observações sobre o estilo de
“Vida do protopapa Avvakum”]
217
Achmatovoj16 e de poucos outros trabalhos, estão reunidos na recolha
Evolucija russkogo naturalisma (Gogol’ i Dostoevskij), editada em
Leningrado em 192917. Na apresentação desta coletânea, V. V.
Vinogradov dá uma definição extremamente característica da
orientação da sua pesquisa: “estes [ensaios] representam só uma parte
do difícil caminho percorrido por um linguista, forçado pelo
desenvolvimento interno da sua ciência a dirigir‐se à história da
literatura em busca de novo material para o estudo dos problemas da
palavra”18. Caminho difícil que, através dos ensaios Naturalisticeskii
grotesk19 (sobre o enredo e a composição de Naso, de Gógol) de 1920 e K
morfologii natural’nogo stilja20 (ensaio de análise linguística do poema
peterburguês O Sósia), de 1921‐1922, foi definitivamente encerrado nas
abordagens e práticas de análise fundamentais em 1923 (O zadacach
stilistiki).
A partir de então, somente haverá refinamentos nos detalhes desta
tendência metodológica que, implicitamente, já estavam presentes nos
trabalhos por nós indicados. Assim, por exemplo, no livro de 1920
Poezija Anny Achmatovoj começa a precisar‐se o problema da
“linguagem poética”, baseado sobre o dualismo entre a “linguagem da
obra literária” e a “linguagem poética”. Duas direções de pesquisa serão
fortemente acentuadas: 1) “o estudo dos sistemas de correlações e
ligações entre as formas discursivas” e 2) “o estudo da estrutura”. A
tarefa da primeira diretriz é “aclarar e fundamentar a diferença entre os
diversos tipos, diversos sistemas de composição discursiva na estrutura
da obra de arte”; a tarefa da segunda é [caminhar] “do sentido unitário
da obra de arte como ‘símbolo’ à semântica de sua ‘unidade simbólica’
16 Stilisticeskie maboski. Poezija Anny Achmatovoj [Esboço estilístico. A poesia de Anna
Achmatowa], Leningrado, 1925.
17 O presente trabalho já estava no prelo quando surgiu o livro de V.V.Vinogradov, O
chudozestvennnoi proze [A prosa artística], 1930. Não foi necessário, entretanto, fazer
modificações substanciais: incluindo no livro material teórico tratado no trabalho
sobre Avvakum (de 1923), o autor de certo modo canonizou seu ponto de vista
metodológico precedente, o que não contradiz o quanto de novo há no livro.
Permanece plenamente o antisociologismo de V.V.Vinogradov.
18 Evoliucija russkogo naturalizma [A evolução do naturalismo russo]. Academia, 1929, p. 5.
19 Idem, p. 7‐88
20 Ibidem, p. 206‐290
218
na forma complexa de sua associação estrutural”21. Na perspectiva
metodológica de V. V. Vinogradov não ocorre nenhuma mudança
significativa: continuará a ser dominante o aspecto linguístico‐formal
do objetivismo abstrato, de que o citado O zadacach stilistiki é a primeira
e mais estável versão.
Dada a particular importância deste credo metodológico de V. V.
Vinogradov para a compreensão de todo seu percurso, extremamente
interessante e consequente, convém debruçar‐se sobre ele com a
máxima atenção.
Como configura V. V. Vinogradov as tarefas da estilística?
Antes de tudo, para ele é indiscutível a tese segundo a qual “todo
monumento literário é de competência do linguista”22. Este monumento
representa um tipo linguístico, desenvolvido (“organicamente”) num
determinado ambiente dialetológico e individualizado com limites
cronológicos precisos: sua característica linguística interessa à
linguística somente enquanto “caracteriza a fala de um grupo social
[cursivas de V. V. Vinogradov] em um dado momento de sua
existência; são resíduos cristalizados de um dialeto vivo. Rompida a
psique individual do autor, a obra atrai para seu interior uma cadeia de
fenômenos linguísticos homogêneos, e com isto expõe o
desenvolvimento da forma linguística”. Mas o trabalho do linguista não
deve terminar nisso, porque o monumento em questão é somente “uma
das manifestações da criação linguística coletiva; é também reflexo da
escolha individual e da transfiguração criativa dos meios linguísticos da
própria época com objetivos de construir a expressão esteticamente
eficaz de um circuito fechado de representações e emoções. A tarefa do
linguista é, então, “encontrar na escolha das palavras e na sua
organização sintática o sistema que o enlaça a uma comunidade
psicológica interna, e através deste sistema entrever o que está além da
apresentação estética do material verbal”. Nasce assim o conceito de
estilo poético individual, como “sistema que cumpre a seleção estético‐
criativa, fornece o sentido e dispõe os símbolos”.
21 “K postroeniju teorii poeticeskogo jazyka” [Para a construção de uma teoria da
linguagem poética], Petika, III, 1927.
22 Na sequência, em O zadacach stilistiki, p. 195‐206
219
O estilo individual (“um ‘dialeto’ sempre autônomo”), entretanto,
destruindo as formas tradicionais da língua literária e transformando‐se
em objeto de imitação, torna‐se um patrimônio de uma “escola
literária”: como consequência, seus fenômenos se tornam mecânicos,
transformam‐se em modelos (clichês) linguísticos e penetram nos
dialetos da língua falada. O que é o estilo de uma escola? É “uma
abstração da particularidade estilística de um grupo de pessoas unidas
pelas inclinações para uma única perspectiva artística”.
Mas há outro conceito de que deve se ocupar um ramo particular da
estilística: aquele do estilo de época, que só pode ser analisado por
intermédio do estudo da norma estética da linguagem quotidiana no
interior deste ou daquele dialeto. Assim como está fora de dúvida de
que em toda construção verbal monológica se verifica uma avaliação
estética e uma escolha das possibilidades de expressão do pensamento,
e que existem normas para tal escolha, válidas para um determinado
dialeto em uma determinada época, então “é possível, acompanhando
Vossler, falar de um ramo particular da estilística, uma espécie de
“história do gosto linguístico”, que deverá se servir do conceito de
‘estilo de época’. Delineamos deste modo dois possíveis aspectos da
estilística: 1) a estilística do discurso oral e escrito, em toda variedade de
seus fins e dos tipos de construção de que dependem; 2) a estilística do
discurso poético, isto é, do discurso que organiza a obra literária”.
Tendo concentrado sua atenção no segundo ramo proposto, o autor
depara‐se, à medida que considera a individualidade poética e o seu
reagrupamento, com dois problemas: 1) o estilo poético individual e 2)
o estilo da “escola literária” que definem as seguintes tarefas da
estilística histórica: 1) o estudo dos estilos poéticos individuais na sua
continuidade histórica, sob o fundo da história geral da língua e da
história do gosto linguístico, 2) o agrupamento em “escolas”, obtido
através de uma abstração das particularidades homogêneas e a
indicação das perspectivas pelas quais são orientados os estilos da
escola, 3) observações sobre o processo de desagregação do estilo de
uma escola e de sua transformação de série de modelos linguísticos e
sua reelaboração em novos estilos. Mas a individualidade poética pode
existir simultaneamente em mais de uma escola, utilizando diversos
procedimentos de construção discursiva (“dialetos poéticos”). Para
220
determinar o “estilo de uma escola”, necessita orientar‐se não com base
na homogeneidade linguística das pessoas, mas com base na afinidade
linguística da obra. Esta afinidade, esta “comunidade de meios
linguísticos”, não deve ser casual, mas, configurando um sistema
unitário, pode ser fruto somente de uma contaminação estética de dados
escritores pelas construções discursivas de um autor reconhecido como
guia. Além disso, é indispensável “levar em conta as variações funcionais
da linguagem poética” determinante da forma de articulação
“compositiva” e as características dos gêneros (língua da novela, dos
diálogos dramáticos, do verso lírico).
Em conclusão, o esquema geral de repartição da estilística consiste
em duas partes: simbólica e composicional (ou sintática), em que se divide
a descrição estilística da qualquer obra literária.
Este complexo sistema de pesquisa, impecavelmente desenvolvido a
partir de seu ponto de pertença, é adotado na análise de uma obra literária
do século XVII: A Vida do protopope Avvakum; no processo das análises
concretas se esclarecem e desenvolvem as posições teóricas, e se sente a
necessidade de extrair débeis conclusões, que se reduzem ao que segue.
Preliminarmente, a toda indagação histórica é indispensável
“conhecer o estilo individual do escritor, fora de toda orientação da
tradição, como completo e fechado em si mesmo, como um sistema
original de meios linguísticos organizados esteticamente”23; e isto graças
a uma descrição imanente de dada criação poética e uma classificação
da forma estilística, de suas funções e dos elementos do estilo. Toda
criação do poeta é um “organismo expressivo de sentido completo”
(B.Croce), “um sistema individualmente irrepetível de inter‐relações
estilísticas”. Mas, uma vez que toda obra de um poeta são manifestações
de uma única consciência poética, é possível colocar a nu, através da
comparação de uma série de obras do mesmo autor, o conteúdo
potencial de todo elemento componente da obra (por exemplo, de um
símbolo). Assim, é possível determinar o estilo de um ciclo de obras
homogêneas, como sistema de procedimentos estilísticos que são
comuns. Mas o método da descrição imanente tem em conta também a
dinâmica do estilo individual, que não é nada além do que “o revezamento
23 Idem, p. 286.
221
de um sistema a outro ou a transformação parcial de um único sistema,
cujo núcleo funcional permanece estável”. V. V. Vinogradov chama este
método de “imanente funcional”. Mas a tarefa de uma estilística deste
gênero não termina nas análises do estilo individual: “os monumentos
congelados do trabalho criativo de uma consciência linguística
individual extinta” exigem que se determine o seu lugar entre os estilos
artísticos que historicamente se modificam “entre as linhas da tradição
que se entrelaçam” e sua influência “sobre a sucessão da vida
linguística do ambiente intelectual”. Tudo isso obriga a recorrer a um
segundo método de “projeção retrospectiva”, cuja base está no princípio
da esquematização morfológica24.
III
Procuramos expor com plena objetividade, utilizando nos limites do
possível as próprias palavras do autor, a concepção metodológica de
base que, com retoques insignificantes, dominou toda pesquisa de V. V.
Vinogradov.
O traço mais distintivo desta concepção é o primado incondicional,
quase como se fosse subentendido, do linguista como único cientista da
literatura, que em verdade resta bem pouco a fazer: a gama inteira de
análises da obra literária, da definição de sua particularidade
puramente linguística (dialetológica, gramatical etc.) ao seu significado
histórico‐literário, tudo isto é de competência do linguista. Mas que
coisas vê da realidade fundamental da obra de arte este linguista que atribui
a si todas as funções do cientista da literatura?
Em primeiro lugar, são categoricamente postos de lado todos os
problemas conexos à definição da obra literária como monumento
especificamente artístico: não passa de um representante de um tipo
linguístico, vale somente enquanto resíduo cristalizado de um dialeto
vivo. É verdade que é “realizada esteticamente”, mas o segredo desta
realização está todo na escolha das palavras e na sua organização
sintática. A análise da obra de arte pode, assim, ser reduzida à análise
da língua: ao “simbólico” e ao “composicional”. Seguindo o exemplo
24 Ibidem, p. 292‐293.
222
dado por Saussure no campo da linguística, V. V. Vinogradov se põe,
também no campo da poética, sobre o terreno da língua, e a acolhe
indistintamente como norma para todos os fenômenos do evento da
relação artística. Aquilo que neste evento era um mero ingrediente
necessário, que era a parte do médium da narrativa, tornou‐se uma
entidade autossuficiente, abstratamente recortada e isolada. A obra, que
se faz “artística” só no processo de interação entre “criador” e
“contempladores”, esta obra em que todo elemento é axiologicamente
tenso e socialmente determinado25, vem transformada por V.
V.Vinogradov em uma enunciação monológica completa, pronunciada de
uma vez por todas no vazio e presa assim num sistema imóvel e idêntico a si
próprio de procedimentos estilísticos.
Tal enunciação monológica isolada é precisamente aquela abstração
que criou Saussure ao conceber a língua como sistema de formas
normativamente idênticas.
Mas a realidade efetiva da obra de arte enquanto tal se encerra
exclusivamente no momento da sua concretização no evento vivo, histórico,
da relação artística: esta realidade estética não tem absolutamente nada
em comum com o “sistema de procedimentos estilísticos”.
Poder‐se‐ia objetar que também a escolha das palavras e sua
organização sintática são “reflexo da consciência poética individual”26, e
que a tarefa do pesquisador é encontrar nela “o sistema que o enlaça a
uma comunidade psicológica interna”. Que dizer? Tanto pior para os
seguidores do objetivismo abstrato se tentam introduzir de contrabando
também o ponto de vista psicológico!
Surge um estranho dualismo: de um lado se concebe a obra de arte
como “expressão de um circuito fechado de representações e emoções”
(p.196), isto é, como um documento de vida psíquica, relativo à unidade
da consciência; de outro lado, “um sistema de relações estilísticas”, isto
é, um documento da vida linguística, relativo à unidade “dos
25 Devemos sublinhar para evitar equívocos que o nosso conceito de “valores” não tem
nada em comum com aquele do idealismo dos fins do século XIX, inícios do século
XX, seja em psicologia (por ex. Münsterberg), seja em filosofia (por ex. Rickert). Nós
aqui nos servimos do conceito de “valor ideológico”, que não aspira a qualquer
“omnisignificatividade”, mas cuja significação é social e mais precisamente de classe.
26 O zadacach stilistiki, p. 197.
223
fenômenos linguísticos homogêneos” (p.195) e, em última análise, à
unidade da língua como sistema.
Esta original simbiose metodológica de Croce com Saussure existe
só nas enunciações teóricas de V. V.Vinogradov: no ato de analisar
concretamente uma obra de arte qualquer, todo o apelo ao psicologismo
é esquecido, e a obra se apresenta não como “organismo expressivo de
sentido completo” (p.287), mas como sistema sintático abstratamente
recortado e de esquemas sintáticos motivados estilisticamente.
Assim, depois de ter elaborado uma concepção de dupla face da
natureza da obra literária, V. V. Vinogradov se serve da ponte
psicológica por ele lançada para passar para a obra concebida como
monumento do dialeto de um coletivo, a obra concebida como
monumento do estilo individual. Mas “o estilo individual” em poética,
assim como “a enunciação individual” (fala) na linguística, se revelará
muito flutuante e instável para o representante do objetivismo abstrato,
quando não exclui tudo isso como “acessório” e mais ou menos
“acidental” (“o que é acessório e mais ou menos acidental”)27; necessita,
então, colocar de lado este “acessório e acidental” (em que vem
compreendida a atividade axiológica da forma, a composição ideológica
do conteúdo, o caráter das inter‐relações sociais e hierárquicas entre
“autor”, “herói”, “ouvinte” etc.) e seguindo os passos de Saussure,
ocupa‐se com a “classificação sincrônica e a sistematização do material
linguístico, isto é, com a descrição unilateral da forma estilística e de
suas funções, e da “classificação dos elementos do estilo”.
Aqui nos permitimos duvidar de que seja possível evidenciar,
compreender e explicar cientificamente o estilo individual de um poeta
por meio dessa simples “descrição” e “classificação” das formas
estilísticas: aqui se propõe de fato conhecê‐lo “fora de toda orientação
da tradição, como completo e fechado em si mesmo, como um sistema
original de meios linguísticos organizados esteticamente”.
Mas o estilo individual de um escritor nasce e se desenvolve não no
sistema da língua, como fenômeno linguístico, mas na tensão da
definição recíproca e da delimitação axiológica com todos os outros
elementos da vida ideológica. Ele é inteiramente permeado pelas leis
27 F. de Saussure. Cours de linguistique générale, 1922, p. 30.
224
sociológicas, fora das quais é uma má abstração, uma função irreal que
nenhum método “imanente funcional” pode obrigar a crer.
Com este mesmo método “imanente funcional”, V. V.Vinogradov
procura resolver também o que ele chama “dinâmica do estilo
individual”. Aqui mostram aos ingênuos que imaginam que esta
dinâmica seja o reflexo do futuro dialético do horizonte ideológico do
autor e de seu grupo social, a modificação de seus acentos avaliativos,
ligada ao enriquecimento, ao empobrecimento ou à reorientação da sua
consciência de classe; não, a dinâmica do estilo individual é
simplesmente a substituição completa dos procedimentos estilísticos por
outros, ou também só sua “transformação parcial”. Em completa
conformidade com o espírito da “escola de Genebra”, V. V. Vinogradov
configura este sistema como uma formação fechada, estável e completa,
que pode ser substituída por outra numa sucessão exclusivamente
cronológica. Esta sucessão mecânica, verificando‐se no tempo, não cria
porém âncoras na história: a dinâmica do estilo individual é ao contrário antes
de tudo a modificação histórica das avaliações sociais que organizam a forma.
Este mesmo ponto de vista profundamente anti‐histórico e anti‐
sociológico é conservado por V. V. Vinogradov na solução dos
problemas conexos com a história da literatura. Não obstante, toda a
reserva do autor28, a história da literatura, tal como a concebe V. V.
Vinogradov, se apresenta como uma espécie de deserto, vazio de
valores, em que vagam “os monumentos petrificados da vida passada
da língua literária”29, certos abstratos “sistemas fechados de combinação
dos símbolos” (os estilos da obra singular), que mecanicamente
convergem juntos para um “mesmo sistema de inter‐relações do
material verbal” (os estilos dos escritores) e, no final, se reunificam na
enorme constelação, na “abstração das particularidades estilísticas
homogêneas na criação linguística de um grupo de pessoas unidas pelas
mesmas inclinações para uma única perspectiva artística”30 (os estilos
da escola literária). Mas existirá, contudo, qualquer necessidade,
28 Evoljucija russkogo bnaturalisma, p. 102.
29 Idem, p. 206.
30 O zadacach stilistiki, p. 197
225
qualquer lei inelutável a que são submetidas estas “substituições de
sistemas” cronológicas, que parecem absolutamente casuais?
Existe: não é naturalmente “o amor que move o Sol e as demais
estrelas” do céu dantesco; nem a tensão universal do quadro do mundo
de Kant e Laplace: é outra, entretanto inelutável, Ananke: a saturação.
Do ponto de vista de V. V. Vinogradov, os estilos poéticos se
desenvolvem por meio da “transformação” e da “utilização” da
“unidade dialetológica”31. Disto decorre estudar a história da sucessão
dos estilos “sob um fundo da história geral da língua e da história do
gosto linguístico” e não, digamos, sob o “fundo” do desenvolvimento
geral da ideologia, da mudança da psicologia social, da ordem sócio‐
política, das relações econômicas etc. como poderia pensar qualquer
leitor ingênuo, seguidor de Plechanov. No contexto da concepção
vinogradoviana da história da literatura, tal “fundo” é naturalmente um
luxo inútil, qualquer coisa de “acessório e acidental”: de fato, a
estilística histórica deve criar estes reagrupamentos por escola, só assim
“transmite uma abstração da particularidade homogênea”, sem temer
de fato, nem terminar estas abstrações acusadas de formalismo. Se,
todavia, ousarmos igualmente perguntar como então se explica que
improvisadamente alguns escritores concretos descobrem em si esta
“comunidade de meios linguísticos”, ou, em outras palavras, de que é
fruto este “conjunto de procedimentos comuns”, receberemos esta
resposta, acabada e categórica, do próprio V. V. Vinogradov: “somente
de uma contaminação estética de dados escritores por parte das
construções discursivas de um autor reconhecido como ‘guia’” (cursivas
de V. V. Vinogradov). É evidente como esta categoria da contaminação
estética não seja nem externa nem imutável: depois de certo intervalo de
tempo torna‐se menor, o estilo da escola se desagrega, transformando‐
se em clichês linguísticos. Acontece então um novo objeto sugestivo com
que se possa contagiar esteticamente: este objeto é o traço júnior da
literatura, que “irrompe ao posto daquele sênior e...” (em seguida se
reconhece V. Skolvski)32. Deste modo, o formalismo abre ao
psicologismo a sua porta hospitaleira.
31 Idem, p. 201 e seguintes.
32 Teorija prozy (Teoria da Prosa), 1924, p. 163
226
Evidentemente, e aqui temos que sublinhar isso, V. V. Vinogradov é
um estudioso muito fino e sensível para se permitir uma concepção do
desenvolvimento histórico‐literário aberto e grosseiro tal como aquela
presente, por exemplo, nas enunciações de V. Sklovski e, em parte, de B.
Eichenbaum; no entanto, a força motriz deste processo de substituição
de “sistemas estilísticos orientados para uma única perspectiva
artística” permanece uma “lei” formal, reduzível no fim das contas à
fórmula precisa: “automatização‐perceptibilidade; nova automatização‐
nova perceptibilidade” e assim ao infinito33. É suficiente, de fato, ler
atentamente as páginas 201‐202 do ensaio Skola santimental’nogo
naturalizma ou o capítulo 3 do ensaio Iz biografii odnogo neistovogo
proizvedenija34, para descobrir o aparato inteiro dos conceitos
formalistas, habilmente mascarados pelas felizes anotações estilísticas
do autor35.
Permanece um último problema, ligado ao estilo: o “estilo de
época”: mas o estilo de época não se esgota no estilo da escola
dominante: é necessário estudar também a norma estética da linguagem
cotidiana. Se chega assim à conclusão, inesperada para um
representante do objetivismo abstrato, que “é possível, seguindo o
caminho de Vossler, falar de um ramo particular da estilística, uma
espécie de história do gosto linguístico”36. Este gesto imprevisto, que
indica uma direção posta pela escola contrária ao objetivismo abstrato, é
plenamente compreensível: um método orientado para a enunciação
monológica isolada, sob monumentos petrificados, “resíduos
cristalizados” etc. etc. que se contrapõe não à compreensão ativa e
valorativa do sociólogo, mas à consciência passiva do filólogo, não tem
e nem pode ter relações com o fenômeno vivo de uma enunciação
33 Uma tentativa de fundar mais rigorosamente a concepção formalista do
desenvolvimento histórico‐literário em Ju.Tynianov, “O literaturnom fakte”, LEF,
1929, p.2‐6. A crítica de tal concepção em P.N. Medvedev, op. cit., p. 220 e seguintes da
edição russa.
34 Evoljucija russkogo naturalizma, p. 133‐135 e 342‐348.
35 A propósito das concepções histórico‐literárias de V. V. Vinogradov e de seu
Evoljucija russkogo naturalizma, ver a resenha de A. Ceitlin (in Russkij jazyk y sovietskoj
skole, 4, 1929) e N. Berkovskij (in.Zvezda, 4, 1929).
36 O zadacach stilistiki, p. 200.
227
quotidiana elementar, fruto de uma situação histórica viva, momento de
narrativa social.
Esta exigência não é satisfeita obviamente também pelo método
descritivo psicológico da escola de Vossler, mas ao menos alguns
representantes desta escola se esforçam para dar conta desta situação
concreta e do tipo de interação discursiva por ela criado.
Podemos perguntar: respondem os métodos elaborados por V. V.
Vinogradov à natureza efetiva dos fenômenos estudados?
Vimos a concepção anti‐histórica e anti‐sociológica que tinha V. V.
Vinogradov dos fenômenos como o estilo de uma obra literária, o estilo
de um escritor, o estilo de uma escola e o seu desenvolvimento
histórico: é evidente que métodos desenvolvidos na base desta
concepção serão eles próprios anti‐históricos e anti‐sociológicos, e assim
de nenhum modo se adaptam à análise de uma estrutura poética que é
sociológica.
Aquela “abstração das particularidades homogêneas” do estilo,
procedimento não eliminável para V. V. Vinogradov, aqui recorda de
modo incrível a abstração dos elementos linguísticos idênticos em toda
enunciação individual que é praticada na escola de Saussure.
A identidade normativa da forma linguística (por exemplo o
“discurso indireto”) abstraída de seu concreto preenchimento
ideológico, torna‐se protótipo de um procedimento estilístico
normativamente idêntico (por exemplo, o “skaz” etc.) abstraído de
preenchimento ideológico e da sua função axiológica na estrutura de
uma obra concreta (V. V. Vinogradov chama esta abstração de
“esquematização morfológica”37).
Estes elementos, (do estilo num caso e da língua noutro)
abstratamente reunidos, são reagrupados num sistema fechado, cujo
movimento no tempo não tem e não pode ter nada em comum com a
história: na série isolada de tais sistemas, o movimento pode ter
exclusivamente o caráter de substituição mecânica do sistema inteiro ou
de seus elementos (os “procedimentos”). Onde não está a dialética,
também não está a história: a pretensão do método “imanente
funcional” de estudar uma obra como um todo fechado em si mesmo,
37 Idem, p. 293.
228
atingindo uma “síntese extra‐temporal e super‐impessoal”38 cria uma
ruptura intransponível entre sistema e história, entre as categorias da
poética teórica e aquelas da poética histórica.
Esta ruptura entre obra singular, como sistema fechado de
combinação de símbolos, e história da literatura (como sua sucessão),
que encontramos em V. V. Vinogradov, não é outra coisa que a
transposição da linguística para a poética da ruptura existente na escola
de Saussure entre a língua como sistema de formas normativamente
idênticas e a língua como formação que se altera historicamente. Deste
ponto de vista também os métodos de V. V. Vinogradov, “imanente
funcional” e “projeção retrospectiva”, emparelham‐se com a original
interpretação dos métodos sincrônico e diacrônico de Saussure.
Não tocaremos aqui no problema da teoria da língua poética,
enfrentado por V. V. Vinogradov na coletânea Poetika, de 1927, e não
tocaremos também no problema dos resultados concretos da sua análise
estilística de uma obra singular, ou os problemas conexos com esta
análise: ultrapassariam os limites deste trabalho e deverão ser objeto de
um estudo independente. Mas somos obrigados a perguntar: em que
consiste o erro fundamental de V. V. Vinogradov, o seu proton pseudos,
graças ao qual um linguista de talento, dotado de visão ampla e de
gosto estético, acaba, quanto a sua posição metodológica, entre os teóricos
da arte de que já Platão escreveu que “se julgam conhecedores da
harmonia com base no fato de que ajustam uma corda na tonalidade
mais alta e mais aguda”?39
IV
Mantenhamos que o vício metodológico fundamental de V. V.
Vinogradov, graças ao qual muitas de suas observações estilísticas
extremamente interessantes e preciosas extraídas do contexto
sistemático para permanecerem isoladas fecham‐se na gramaticalização
das categorias estéticas, consequência inevitável da concepção, comum à
“escola de Genebra”, que contrapõe a língua à enunciação como “o que
38 Evoljucija russkogo naturalisma, p. 133‐135 e 342‐348.
39 Platão, Fedro, 268‐D‐E. (edição russa)
229
é social do que é individual”40. Estudando a obra literária como
enunciação individual, irrepetível, autossuficiente, o pesquisador se
priva de todas as possibilidades de uma abordagem sociológica: a
exclusão da unidade do contexto literário da sua época, extraída dos
vivos liames históricos, considerada não medium da relação artística,
mas “sistema fechado de inter‐relações estilísticas”, a obra se
transforma inevitavelmente num coágulo verbal, abstrata formação
linguística, cuja análise “imanente” pode resolver‐se somente na
“descrição” e na “classificação” das formas linguísticas isoladas.
Esta gramaticalização das categorias estéticas não é, no entanto, um
defeito metodológico pessoal de V. V. Vinogradov, é também de toda
corrente do objetivismo abstrato: é o pecado original de toda linguística
indo‐europeia, que analisa todo monumento literário sob um único
plano monológico: no leque de toda sua história, a linguística indo‐
europeia não reconheceu as coordenadas que abrem e dialogizam este
plano: a coordenada da relação (troca) social e da luta social. Esta
particularidade do pensamento linguístico indo‐europeu exerceu
também um papel nefasto nos estudos da poética.
É verdade que o destino histórico desta disciplina se realiza em
condições extremamente difíceis: desde seu nascimento, na antiga
Grécia e na Índia, a poética constantemente serviu de motivo para esta
estranha tarefa. Nascida do interesse filológico, organizada para a
catalogação e sistematização dos fenômenos estilísticos de uma língua
estrangeira, morta, escrita, assume solidamente a função de norma
estética incontestável também para as obras em língua materna a ela
contemporâneas, sem poder mais ou sem quase poder seguir sua
tendência objetiva de pesquisa. Sua dependência de outra disciplina foi
posteriormente aumentada pelo fato de os objetos de sua análise – a fala
na sua função estética – terem servido de material para outras
especulações, puramente filosóficas. O poder mágico da palavra antiga,
do totem celeste divino da tribo, deixou uma marca indelével sobre
todas as primeiras filosofias da palavra. A força que inelutavelmente
move a formação da linguagem humana, a necessidade econômica,
emerge na consciência não só dos primeiros filólogos, mas também dos
40 F. de Saussure, op.cit. p. 30.
230
linguistas do século XX. Todavia, se podemos captar isso perfeitamente,
como agora no Rigveda, o poder da palavra compara‐se à força do soma,
em que se afirma que na base da linguagem humana, que nasce e
morre, está a linguagem divina, eterna e imutável, que fornece a quem
pode (“a quem sabe”) a chave de todos os mistérios do mundo; se
conseguimos compreender perfeitamente o fato de que Heráclito
quisesse descobrir, através do “logos da língua”, o “logos do mundo”;
de que Platão na sua sétima obra, pela primeira vez na história do
pensamento, tenha se esforçado para definir metodicamente o valor
cognoscitivo da linguagem; ou que, em fim, até Leibniz concebia ainda
a linguagem exclusivamente como instrumento de conhecimento, cujos
graus definem os graus do ser; é de cair os braços ver que no século XX
reviva uma espécie de interpretação mágica e metafísica da palavra
artística, e que a arte se torne quase um meio de “conhecimento”
místico em diversas doutrinas simbolistas e “filosofias do nome”. Mas
não é de se admirar se se leva em conta a inevitável desagregação
ideológica da classe em declínio.
Afortunadamente, este resultado do esquecimento da base
socioeconômica da linguagem não influiu sobre a concepção de V. V.
Vinogradov, em que ao invés influiu outra coisa: o aspecto da concepção
linguística de Leibniz, conexo com a passagem da carta de Descartes a
Mersenne. Descartes, a propósito do problema da “língua universal”
(lingua universalis), disse: exatamente como com alguns poucos números
se constrói o sistema inteiro da aritmética, assim, com um número
limitado de signos linguísticos, reunidos segundo determinadas regras
de valor geral, se pode fundamentalmente determinar o corpus inteiro
que inclui o pensamento e a sua estrutura41. Esta analogia entre o sistema
matemático e o sistema da língua, expressa ainda mais claramente na
Charakteristik leibniziana, determinou numa medida notável o modo de
reportar‐se à palavra nos séculos XVII‐XVIII, da lógica à estética (a
notável pesquisa estilística de Diderot em “Lettres sur les sourds et
41 Cf.
Carta de Descartes a Mersenne, de 20 de novembro de 1629 (Corespond. Ed.
Adam‐Tannery, I, p. 80 e seguintes). A este propósito, mais detalhadamente, E.
Cassirer, Leibnizsystem in seinen wissenschaftlichen Grundlagen, 1902, e Philosophie der
symbolischen Formen, cap. 1: “Das Sprachproblem im der Geschichte des
philosophischen Idealismus (Platon, Descartes, Leibniz), p. 55‐72.
231
muets”). A língua é considerada uma invenção consciente do homem, e
seu lento e constante caminho, da invenção do primeiro signo linguístico
à frase e à proposição verbal completa, são vistos habitualmente em
paralelo com a construção metódica e sempre complicada da matemática.
Condillac vai da língua da fala à língua dos cálculos; Maupertius, em
suas Reflexões Filosóficas Sobre a Origem das Línguas, celebra o triunfo do
racionalismo abstrato: todos os fenômenos da língua devem ser reduzidos a
uma fórmula matemática. O ideal de conhecimento a que pode aspirar o
homem é aquele de descobrir a necessidade matemática em todas as
relações existentes no mundo.
Aqui devemos nos deter.
Não posso fornecer nos limites deste ensaio um tratamento ainda
que sumário do problema que tocamos aqui: a questão dos laços entre a
visão de língua de Descartes e Leibniz e a concepção linguística da
“escola de Genebra”, que ainda espera estudos. Mas é fora de dúvida
que em ambos ressoa um único motivo: a língua dos “símbolos” verbais e a
língua dos símbolos matemáticos são sistemas fechados rigorosamente análogos,
no interior dos quais agem leis imanentes e específicas, que não têm nada em
comum com as leis de ordem ideológica. A esta sistematicidade e a estas leis
está submetida também a obra poética: essa é “um sistema fechado de
inter‐relações estilísticas que encontram sua razão de ser funcional para
servir de escopo imanente realizado na sua criação”42. Substituindo
“estilística” por “matemática”, chegamos a uma definição
absolutamente precisa e correta de qualquer fórmula algébrica,
trigonométrica etc.
A analogia torna‐se identidade.
E assim como se pode analisar uma fórmula matemática somente
pondo‐se no ponto de vista da matemática, assim também a obra
artístico‐verbal deve ser submetida à análise com ajuda de uma
metodologia rigorosamente linguística. Assim, a obra de arte vem extraída
da unidade da relação social, fora dos limites da interação artística, e se congela
como forma de enunciação monológica, objetivamente contraposta seja ao
criador seja ao contemplador como sistema imutável e idêntico a si mesmo de
elementos fonéticos, lexicais e sintáticos.
42 Evoljucija russkogo naturalisma, p. 291.
232
O método do objetivismo abstrato entra direto na poética
linguística43.
Ignorando completamente os problemas da estética sociológica, V.
V. Vinogadov não pode superar este radical erro metodológico.
Enquanto não se colocar de modo correto o próprio objeto de
pesquisa, neste caso estético, nenhum método, ainda que o mais perfeito,
poderá chegar a resultados reais: vimos como V. V. Vinogradov se
esforçou para descrever e classificar diversos procedimentos estilísticos
porque para ele permanecia incógnito o “objeto estético”.
Deste ponto de vista, V. V. Vinogradov lembra muito um geógrafo
que se esforça para desenhar o mapa de um país exótico ainda
inexplorado, cuja magnificência e esplendor ele pressente confusamente
e prevê à força da intuição científica.
Mas o “objeto estético”, se não é uma “imagem construída no
sujeito”, como de todo psicologisticamente o configura B.
Christiansen44, não é também um conjunto de procedimentos
estilísticos, isto é, a obra como dado verbal‐material. Tal reificação
linguística do objeto estético leva inevitavelmente a um tratamento
positivista, mascarado por uma fraseologia psicologista.
Assim, V. V. Vinogradov se esforça de todos os modos para agregar
à receita não muito inebriante do objetivismo abstrato qualquer gota de
vinho forte de um descarado idealismo: tem‐se por isso um objeto
estético que “apreende a intuição intelectual do observador não nos
limites da faculdade perceptiva individual, mas na sua essência eterna,
supraindividual”45.
Nós, ao contrário, abstendo‐nos modestamente de acolher as
categorias do “eterno” e do “supraindividual”, mantemos que o objeto
43 Em tal concepção do fenômeno literário não permanece presente, naturalmente, a
“personalidade transformadora”, a “consciência criadora” etc., não obstante o fato de
que V. V. Vinogradov sublinhe continuamente este momento. Se pode, assim, referir
ao próprio Vinogradov a censura que move ao Prof. I. Mandelstam no livro Gogol’ i
natural’naja skila (Obrazovanie, Leningrado, 1925, p.5): “nem a evolução da forma
estilística de Gogol, nem a unidade orgânica de seu estilo como reflexo de uma
consciência poética individual foi posto à luz”.
44 B. Christiansen. Filosofija iskussiva [Filosofia da aarte], 1911, p.50.
45 V. V. Vinogradov, Etjudy o stile Gogolja [Estudos sobre o estilo de Gogol], Academia,
1926, p.8.
233
estético é antes de tudo um sistema dinâmico de signos axiológicos, uma
formação ideológica, produzido no processo de uma relação social
particular e fixado na obra como medium material desta relação.
O objeto estético não é mais um dado, como coisa pronta,
concretamente existente: ele é sempre proposto, posto como intenção,
como orientação do trabalho artístico criativo e da fruição artística co‐
criativa.
A realidade verbo‐material da obra é, então, somente o ambiente
material da relação em que se realiza o objeto estético, é a soma dos
estímulos da impressão artística. Componentes estéticos, sintetizados
nesta estrutura, serão de um lado o conteúdo, como realidade extra‐
artística tematizada, e de outro lado a forma, correlativa a este conteúdo,
como avaliação social desta realidade, recebida esteticamente.
É evidente, portanto, que com nenhum dos métodos da poética
linguística poderemos chegar ao sentido pleno dos signos verbais
(realizados graficamente por meio das tintas, da impressão etc.) em que
valores ideológicos fazem de um complexo verbal empírico uma obra
estética. Os representantes do objetivismo abstrato se revelam
igualmente impotentes na análise da enunciação cotidiana e na análise
da enunciação artística. Eles esqueceram uma verdade absoluta, que
afirma, para usar as palavras do acadêmico N. Já. Marr, que “a língua
é, em tudo e em todos os níveis, uma criação do coletivo humano,
imagem não só do seu pensamento, mas também do seu sistema social e
da sua economia, tantos nos aspectos técnico‐linguísticos quanto nos
semânticos”46. Esquecendo isso, eles substituíram o estudo das relações
entre os homens (refletidas e fixadas na realidade verbal da obra) pelas
relações entre as palavras e entre os seus elementos abstratos. Numa tal
abordagem, o fenômeno que nós definimos como “objeto estético”, e
que se faz intérprete das relações hierárquicas e axiológicas dos três
componentes da sua forma: “autor”, “ouvinte” e “herói”, se transforma
num “monumento de uma consciência criativa extinta”, imóvel, fora da
história e da sociedade.
Devemos, porém, nos opor categoricamente a esta reificação da
palavra: toda enunciação que tenha sido realmente pronunciada, e toda
46 N. Já. Marr, Jafeticeskaja teorija [Teoria Javética], Baku, 1928, p.79.
234
obra artística que tenha realmente sido percebida (trate‐se de um
poema, de uma estátua, de um quadro, de uma sonata), não é uma
coisa, mas um processo (que naturalmente recebe para sua objetivação
pontos materiais de apoio relativamente estáveis). Para dizer a verdade,
nós não conhecemos de fato “qualquer coisa” imutável, idêntica a si
própria, dada de uma vez por todas para sempre e existente
eternamente. “A grande ideia básica é que o mundo não consiste de
objetos belos e prontos, mas presentes como um conjunto de processos
em que os objetos que parecem imutáveis, assim como suas cópias [seus
significados], isto é, os conceitos, se encontram em perpétuo
movimento, surgem e desaparecem, esta grande ideia básica entrou, a
partir dos tempos de Hegel, na consciência geral, e praticamente
ninguém se atreverá a contestá‐la em sua formação geral. Mas uma
coisa é reconhecer a sua validade, outra coisa é aplicá‐la nos casos
singulares e em todos os setores da pesquisa” (Engels).
Não é este o lugar, naturalmente, para resolver os problemas
centrais da estética marxista como, por exemplo, aquele da estrutura
social do objeto estético: a nossa posição, orientada criticamente,
restringe‐se a indicar alguns caminhos para a solução do problema, fora
dos quais é impossível colocar a questão das “tarefas da estilística”.
V
Já na definição sumária e um pouco superficial do objeto estético
que demos no item precedente parece evidente que seu momento
organizador fundamental é a avaliação social.
Devemos insistir: enquanto a consciência da importância deste
problema não penetrar em todos os ângulos do pensamento
metodológico de nossos cientistas sociais da literatura, não se poderá
falar absolutamente de uma poética autenticamente marxista47.
47 Já
há na nossa literatura científica uma tendência a se ocupar deste problema. A
tentativa mais séria e interessante se apresenta em algumas passagens do Método
Formal de Medvedev (pp.261‐281; 162‐174 da edição russa). Ver também Z. El’Sberg,
“Sravnenija i metafory kak klassovaja, obrazcobaja ocenka ob’ekta opisanija”
[Confrontos e metáforas como avaliação, modelo de classe do objeto da descrição] in.
Okjabr’, janeiro 1927, pp. 123‐141.
235
Qualquer enunciação, da cotidiana à poética perfeita, contém em si,
inevitavelmente, como ingrediente necessário, um horizonte
subentendido não verbal: horizonte vivo e concreto que, com uma
abstração, podemos dividir em três componentes: espaço, sentido e
valores. Na organização da obra artística e particularmente em seus
aspectos formais, a função mais importante é dada ao horizonte
axiológico: fora disso não se pode realizar a relação estética.
Recordando como V. V. Vinogradov sublinhava constantemente o
momento da “individualidade poética”, podemos perguntar: é possível
uma avaliação individual?
Afirmamos que tal avaliação não existe.
A reação de um organismo individual, tal como, por exemplo, aquela
de um animal frente ao alimento (que esteja fechado) ou frente a um
inimigo (do qual foge) não pode ser explicada em termos dos valores do
alimento ou do inimigo, porque não há qualquer interpretação ideológica
do material significante. Para que a reação de auto‐conservação se torne
complexa pelo momento ideológico é necessário que ela ocorra num
ambiente social organizado e se oriente para os outros membros deste
ambiente: assim, por exemplo, o grito de um animal que adverte deste
modo o bando de um perigo iminente se avizinha de uma avaliação: já
podemos falar neste caso de certo “significado” do grito do chefe e de
uma “compreensão” por parte do bando48. Só uma reação social pode
complicar‐se pelo momento da avaliação: quanto mais organizada é a
sociedade, quanto mais complexos são os liames que relacionam
qualquer ato individual, tanto mais complexa e diferenciada será a
avaliação. Na sociedade humana o indivíduo não entra mais em contato
com o mundo e com as coisas como unidade biológica: sua orientação
ideológica nos confrontos com os objetos está sempre conectada à sua orientação
ideológica nos confrontos da sociedade. Esta dupla orientação encontra
expressão ideológica na avaliação.
Qualquer avaliação, por mais insignificante que possa ser, exprime
uma dada situação social: considera o objeto, mas ao mesmo tempo
ressoa no ato um desafio ao inimigo e um apelo aos amigos. A mais
48 Karl Bühler em seu Vom Wesen der Syntax vê deveras em tal fenômeno a raiz
biológica da sintaxe!
236
simples entonação da voz humana é a expressão mais pura e imediata
da avaliação: todos os outros elementos da linguagem articulada são
portadores de novas funções, não obstante também estes estão
permeados pela avaliação (um discurso privado do momento da
avaliação é uma abstração): devemos, porém, ultrapassar os limites da
expressão sonora da voz humana.
Convencionemos chamar toda avaliação encarnada no material de
“expressão avaliativa”49. O material primeiro e antigo desta expressão
avaliativa é o próprio corpo humano: o gesto (movimento significativo
do corpo)50 e a voz (da linguagem articulada). O terror, a alegria, a ira
etc. apossam‐se primeiro de nosso corpo e da nossa voz: frêmito
convulsivo, sorriso, expressão dos olhos etc. – e só depois a expressão
avaliativa pode passar, do próprio corpo e através dele, ao material
extra‐corporal que se limita ao próprio corpo e é quase sua extensão. É
absolutamente necessário que este liame com o corpo, efetivo ou
possível, seja percebido para que possa ter significado expressivo.
Assim, a expressão avaliativa está presente no material linguístico (é o
mais próximo do corpo), no material acústico dos sons emitidos pelos
corpos físicos (a entonação deixa o corpo e se transmite através da
pressão das mãos sobre a testa, a vibração das cordas vocais, a tensão
dos lábios e do peito que faz soar a respiração etc.). Um pouco mais
complexa é a passagem da expressão avaliativa no espaço nas artes
figurativas e sua emergência nas artes figurativas (arquitetura,
escultura, pintura).
Todo este material, acolhendo a expressão avaliativa que vem do
corpo e da voz do homem, torna‐se seu condutor inter‐corporal: a
capacidade da expressão avaliativa de penetrar no material não‐verbal
tornando‐o expressivo se explica somente com a sua natureza social: se
49 Aqui nos dissociamos categoricamente da concepção do termo “expressão” que
domina a estética idealista de Croce. Infelizmente não encontramos melhor definição
para a avaliação social que não nos termos “expressão avaliativa”. Do conceito de
valor já falamos na nota 25. [N.T.] Em Marxismo e filosofia da linguagem, na edição
brasileira, usa‐se a expressão “orientação avaliativa” para referir a este fenômeno.
50 Chamado de discurso cinético (linear) que precede o discurso sonoro. A ciência deve
a N. Marr (op. cit, p.88 e seguintes) esta aquisição. Uma exposição divulgadora desta
concepção pode‐se encontrar em I. Mescaninov, Vvedenie v jafetidologiju [Introdução
aos estudos javéticos], Leningrado, 1929, pp. 186‐189.
237
a avaliação expressa, por exemplo, pela entonação da voz humana fosse
efetivamente individual, ela permaneceria no organismo. Só aquilo que
tem significado inter‐orgânico pode apropriar‐se do material ideológico:
a própria formação deste material só é possível na relação organizada
entre corpos.
Qual a função estética desenvolvida pela expressão avaliativa no
material?
Antes de tudo, esta expressão cria a forma articulada do material:
define o início e o fim, o que é essencial e o que é secundário, o que
enaltecer e o que rebaixar. Cria a estrutura hierárquica do material, ou o
movimento hierárquico em seu interior. A expressão avaliativa determina
a localização de todo elemento material na escala axiológica da obra.
Nós sentimos a elevação axiológica de um elemento, isto é, percebemos
nele o peso hierárquico, antes mesmo de conhecer seu exato significado
objetal. O corpo material, impregnado da expressão avaliativa, entrando
no evento social da relação artística, se ideologiza, torna‐se objeto
estético.
Restituído assim vivo e provido de um sentido ligado aos valores, o
material pode também ser privado de qualquer significado objetal; assim
é, por exemplo, na música e em parte na coreografia e em algumas artes
figurativas (ornamentais etc.); a obra das artes figurativas é
profundamente expressiva e dotada de sentido, mas dotada de sentido
exatamente pela avaliação social diferenciada que a impregna. O
significado do material na arte se esclarece particularmente bem na
análise das artes não figurativas. Nada é mais funesto para a teoria da
arte do que o modo de ver, largamente difundido, pelo qual o material
se encharca de algum “sentido”, “ideia”, “noção”, formadas e
amadurecidas fora do material e malgrado o material; e que este sentido
pronto e perfeito só é transmitido “imperfeitamente” através do
material. A raiz desta concepção funda‐se naturalmente na
representação dualista da matéria e do espírito.
É verdade que às vezes já o primeiro clarão da consciência, a
primeira e confusa avaliação, é produzido desde o início só no material
da expressão: na mímica, no grito etc. O aumento da tomada de
consciência e a sua diferenciação só se realiza no aumento da atenção e
diferenciação do material correspondente: fora do material da expressão
238
não há emoção. Assim, a expressão precede a emoção, não é seu berço51.
Nenhuma etapa da criação artística por isso se desenvolve ou pode desenvolver‐
se fora do material. Nenhum elemento da intenção de um artista, a partir
de seu primeiro e confuso relampejar na consciência, até seu produto
final, lhe é dado de fora e malgrado o material; ao contrário, toda a
posterior precisão e clareza da intenção é fruto de uma diferenciação e
especificação do material.
Pode‐se falar somente da passagem de um material para outro: a
intenção do escultor ou do pintor se realiza, num primeiríssimo estágio
de desenvolvimento, ainda privado da responsabilidade artística, no
material do discurso interno, para depois passar para o espacial; a intenção
do músico se concretiza, já nos primeiros estágios, somente no material
musical, e a transposição é por isso interna ao material dado (por
exemplo, a orquestração). No que respeita ao poeta, não só sua intenção
poética, mas em geral todos os movimentos da sua “consciência
criativa” se realizam dentro do material verbal.
A falsa representação da criação artística como encarnação nas
“ideias”, “emoções”, “pensamentos” extra‐materiais produziu na
estética e na ciência da literatura um mau diletantismo que se esforça
por descobrir nas artes não figurativas elementos de intenção não
presentes no material: investigam assim determinadas ideias, emoções,
acontecimentos dentro da obra musical etc.
De fato esta interpretação objetal da obra musical não é outra coisa que a
tentativa de traduzi‐la na língua de outro material, verbal ou visual. Mas esta
tradução não entra de fato na intenção do músico: ao diletante pode
51 Nossa afirmação se sustenta numa conclusão extraída das palavras de Engels: “...
tudo o que leva o homem a agir deve passar pela sua mente: o homem prepara‐se
para comer e beber porque se reflete em sua mente a sensação de fome e de sede, e
para de comer e de beber porque na sua mente se reflete a sensação de saciedade. As
impressões produzidas sobre o homem pelo mundo externo se expressam em sua testa,
nela se refletem sob a forma de sentimentos, pensamentos, estímulos, movimentos
volitivos, em resumo, sob a forma de ‘tendência ideal”...” (Engels, Ludwig Feuerbach,
Moscou, 1923, p. 49‐50; cursivos meus). Fora da interpretação ideológica (se expressam
em sua testa) não existe para nós tampouco um sentir biológico (por exemplo a fome e
a sede).
239
parecer que a palavra expresse mais e melhor do que o som52, mas as
emoções artísticas do músico se realizam imediatamente no material
musical, nascem no seu interior.
O problema do material na arte se esclarece somente ligado ao
conceito de expressão avaliativa: esclarece‐se assim o significado
puramente sociológico do material. Pode tornar‐se material artístico não
qualquer corpo físico em si, mas somente um corpo que possa se fazer
condutor da relação social, que possa acolher a expressão avaliativa que
emana do corpo vivo humano. O material na arte, inteiramente
penetrado pela avaliação, é organizado como meio do evento social da
interação artística das pessoas.
É possível aproximar‐se da obra poética como um puro exercício
linguístico, definido pelas possibilidades gramaticais de uma dada
língua, mas na realidade a língua para o poeta é completamente
permeada por entonações vivas, avaliativas e por orientações sociais,
com as quais luta no processo da criação e entre elas escolhe esta ou
aquela forma linguística, esta ou aquela expressão.
Nenhuma palavra é dada ao artista de forma linguisticamente
virgem: ela está prenhe de todas as situações cotidianas e de todos os
contextos poéticos em que ela foi encontrada.
Surge aqui um problema extremamente importante para a poética
histórica: o poeta não introduz a sua nova expressão avaliativa num
material verbal privado de entonações: ele já foi preenchido de
entonações e avaliado socialmente, e nele a nova entonação se encontra
inevitavelmente com as velhas, introduzindo‐se no tecido vivo
ideológico das avaliações expressas e remanescentes no material. Por
isto o poeta, como todo artista, pode somente produzir algumas
reavaliações, deslocamentos entonacionais perceptíveis como tais por
ele e por seu auditório sobre o fundo das velhas avaliações das velhas
entonações. Eis o problema: dentro de que limites é possível esta renovação
das intenções que permeiam o material? Problema estreitamente ligado
àquele da tradição artística, que devemos aprofundar. Expressaremos
brevemente nossa opinião de forma dogmática: no interior de um dado
52 A
inadmissibilidade “logicizante” e “psicologizante” do fenômeno musical foi
demonstrada por nós em 1922 numa recensão do livro de I. Glebov sobre
Tchaikowski (em Zapiski peredviznogo teatra, 42, 1922).
240
grupo social a liberdade do artista é extremamente limitada: criar
entonações importantes novas não lhe é possível. Somente a aparição
em cena de um novo grupo social, no qual estas mesmas palavras
(“natureza”, “vida”, “estado”, “classe” etc.) são vividas desde o início e
receberam um sentido nas situações quotidianas e contextos avaliativos
completamente diversos, pode produzir uma revolução séria da forma
artística. Todas as revoluções literárias internas a um grupo, por quanto
radicais possam parecer, serão sempre estritamente estéticas,
construídas em mesas de bar e são pouco sérias. Naturalmente, no
interior de uma liberdade artística limitada permitida por um dado
grupo podem existir enormes diferenças individuais entre os diversos
artistas: o próprio material ideológico que está ao alcance das mãos de
um artista como inerte e inexpressivo será socialmente sensível e
flexível nas mãos de outro artista.
VI
A seguir, passemos a uma análise mais detalhada da expressão
avaliativa na atividade poética.
Em poesia, a avaliação social determina o próprio som da voz (a
entonação) e a escolha e a ordem de disposição do material verbal. Em
consequência, devemos distinguir duas formas de expressão avaliativa:
1) sonora e 2) tectônica, subdivididas em dois grupos: a eletiva (que
determina a escolha) e a compositiva (que determina a distribuição)53.
As funções eletivas da avaliação social acompanham a escolha do
material lexical (lexicologia), a escolha dos epítetos, metáforas e outros
tropos (semântica poética) e, por fim, a escolha do tema em seu sentido
específico (escolha do conteúdo). Mantemos por isso no grupo eletivo
toda a estilística e parte da temática.
As funções compositivas da avaliação determinam a posição
hierárquica e a ordem de todos os elementos verbais na totalidade da
obra e mais a estrutura do todo. Estão adscritos a este segundo grupo
53 Manteremos nossa terminologia que atende perfeitamente aos nossos objetivos,
embora saibamos que é possível naturalmente formular de forma distinta os próprios
fatos e fenômenos.
241
todos os problemas da sintaxe poética, da composição, no sentido literal
da palavra e, enfim, do gênero.
Todos os três aspectos da avaliação social: a entonação sonora, isto é, o
colorido avaliativo de todo o material sonoro, a escolha do material
verbal e, por fim, a sua disposição na totalidade verbal, estão
indissoluvelmente ligados entre si e são diferenciados somente em
abstrato. É toda uma única avaliação social: som, escolha e disposição
das palavras se desenvolvem da mesma forma, como uma flor se
desenvolve do botão.
A avaliação ressoa já na entonação de um grito humano
inarticulado, que, conectada a toda a situação do grito, fornece‐lhe um
sentido. O grito humano é social: lamenta‐se, invoca ajuda, adverte,
ameaça, amedronta etc., mesmo quando sua orientação social não se
reflete ainda na consciência (grito reflexo). O grito é uma pequena ponte
acústica material lançada entre organismos individuais; o fenômeno
acústico do grito, grosseiro e ainda inarticulado, está já permeado pela
entonação social primitiva e constitui‐se, portanto, em fenômeno já
ideológico, portador e intérprete de um evento social. Já se pode falar
de um auditório social do grito e de sua diferenciação, já que isto se
reflete na entonação do grito. A entonação mais a situação que lhe
corresponde: é este o mais simples aparato ideológico (precede o discurso
articulado), capaz de transmitir diversos e sutis matizes da inter‐relação
social entre os participantes. Sem esta importante função exercida pela
entonação sonora, a linguagem infantil não se desenvolveria: sobre o
material acústico ainda não articulado, ela exerce funções lexicais,
morfológicas, sintáticas e estilísticas (na presença naturalmente de uma
situação que esclareça a enunciação infantil). Estas funções da
entonação discursiva infantil não foram ainda suficientemente
estudadas, inclusive não foram calculadas plenamente a riqueza e a
complexidade social desta entonação.
Um esplêndido exemplo desta entonação infantil e do seu
significado é dada por Karl Bühler no seu Vom Wessen der Syntax, em
que diz: “Me surpreendeu notar numa criança, observada longamente e
cuidadosamente, com que presteza ela utilizava o registro e a
esplêndida melodia dos pedidos infantis, de forma insinuante e
sugestiva. Aos dois anos, quando caminhava com custo e falava sem
242
declinar nem conjugar, a criança enunciava pequenos pedidos que de
seu ponto de vista tinham pouca possibilidade de serem escutados (por
exemplo, “Papa Strasse gehen” etc.) com uma voz extraordinariamente
profunda e absolutamente suave, que se mantinha sempre na mesma
nota, sem por isso sair ou ascender nem durante nem depois, e com um
ritmo de dúvida levemente lento. Onde a criança tinha aprendido esta
insinuante melodia? Quando tento imitá‐la minha fala soa
extremamente afetada; encontro‐o ainda em outras crianças e posso
assegurar que é patrimônio comum e precoce da língua infantil. A
dúvida ele tomou de empréstimo dos adultos e devolveu mais marcada
pelo processo de imitação, como se observa nas crianças? Não posso
crer: a língua infantil é rica de nuances musicais, muito mais que
qualquer canção comparada com a da criança, que, como se sabe, por
longo tempo será executada de modo extremamente tosco”54.
Infelizmente o psicólogo subjetivista Karl Bühler não tentou
aprofundar sua análise sociológica; a situação, que ele considera bem, é
uma situação social, lugar de cooperação da criança com o ouvinte
adulto, e a entonação infantil é elemento inseparável deste pequeno
mundo social da criança. Só na unidade material indivisível deste
pequeno mundo social a entonação pode ser estudada e compreendida
como fato objetivo.
Do significado da entonação na linguagem cotidiana nem é preciso
falar. O discurso cotidiano, que se efetua habitualmente na presença de
visu [face a face], utiliza amplamente a entonação (cuja flexibilidade
social é enorme) para economizar outros elementos discursivos.
Na poesia, a entonação sonora atualizada não pode ter a mesma
importância que tem no discurso cotidiano: adivinha‐se em todas as
palavras, em todos os elementos da obra, mas não é de fato
indispensável na atualização efetiva por meio da voz, a densidade pode
não ser possível em sua plenitude: a gama de matizes possíveis para
uma voz humana é muito pouca para transmitir toda a complexidade e
a riqueza social do sistema entonacional de uma lírica, ainda que seja a
mais simples. A entonação sonora é percebida de preferência como
54 K. Bühler. “Vom Wesen der Syntax” (Idealistische Neuphilologie Festschrift für K.Vossler,
1922).
243
possibilidade do que como som efetivo! Só na música a avaliação e a
entonação interior entram plenamente na entonação sonora: na música
tudo isto é artisticamente significante e deve ter um som, a mais sutil
das nuances da avaliação deve encarnar‐se em som real.... O que não
tem som equivale a um zero55. Na poesia, sobretudo na sua forma
prosaica, os principais momentos artísticos são mudos. Por isto o papel
do executor é tão importante na música (em que ele é parte constitutiva
do evento artístico) quanto é insignificante na poesia. A percepção da
obra poética é o modo como é entoada internamente, mas os acentos
fundamentais e mais sutis desta entonação interna se efetuam na escolha
e na colocação do material verbal. É verdade que toda obra está envolta
pela possibilidade de ter uma entonação sonora, todos seus elementos
estão marcados por esta possibilidade, esta possibilidade deve ser
notada: mas um executor real não é obrigado, ele não pode em nenhum
caso realizar toda esta possibilidade. É preciso notar a este propósito
que é importante tanto a possibilidade acústica (para o ouvido, como na
música) quanto a fonética, para a abertura do organismo e seus órgãos
necessários para efetivar a entonação dada, e por isso o resultado
sonoro não importa tanto quanto a abertura entonacional56.
A execução de uma obra lírica “para si”, a meia voz, pode procurar
toda a plenitude da compreensão e do prazer estético acessível a dado
sujeito, enquanto a má execução de um péssimo conjunto musical,
ainda que “para si”, dificilmente satisfaz. A música não conhece a
categoria da diversidade das “possibilidades sonoras”, enquanto na
poesia, sobretudo nas condições contemporâneas da sua fruição (leitura
para si) esta categoria tem um enorme papel.
A entonação tem grande importância para a criação do ritmo: é a
própria entonação que transforma a abstração da métrica na realidade viva do
55 Aqui não me refiro obviamente às pausas internas do compasso de espera ou entre os
sons, que tem um significado expressivo muito preciso e são elementos estruturais
não suprimíveis de uma obra musical. Todos os conhecedores notam bem o efeito que
faz uma pausa inesperada depois de um grandioso crescendo.
56
É notório como os gestos corporais substituem a entonação sonora e como o uso de
um pode economizar o outro: um gesto fortemente expressivo não precisa ser
acompanhado de uma entonação expressiva tão forte quanto seria necessário sem o
gesto.
244
ritmo. Seria, no entanto, um grave erro pensar que o ritmo poético seja
um fenômeno puramente sonoro ou fonético‐sonoro57: mesmo no ritmo,
uma parte enorme pertence à categoria da possibilidade sonora (e
fonética). Toda a plenitude do fenômeno concreto do ritmo é muito
mais rica e mais complexa do que sua efetiva e possível encarnação
sonora e fonética.
Mas fatores do ritmo ainda estão na realização interior da escolha (a
percepção do ritmo é sempre acompanhada da percepção da escolha
ativa) e na realização da colocação composicional58.
A entonação reafirma e reforça estas funções técnicas da expressão
avaliativa, que estabelece o lugar hierárquico da palavra: os valores no
verso, do verso na estrofe, e da estrofe na totalidade da obra.
Podemos assim divisar os quatro fatores básicos do ritmo: 1) métrico,
2) entonacional, 3) eletivo e 4) compositivo.
Demorar‐se sobre o primeiro fator, o métrico, não entra em nossas
tarefas: como fator métrico entendemos todo o conjunto dos elementos
que entram no sistema estável da versificação.
No que diz respeito ao segundo fator, o entonacional, posso trazer a
ideia de cindi‐lo em duas modificações autossuficientes: 1) a entonação
sintática e 2) a entonação expressiva. Esta divisão a faz P. N. Medvedev:
“Diferentemente da entonação sintática, que é mais estável, a entonação
expressiva, dando certo colorido a cada uma das palavras da
enunciação, nela reflete a irrepetibilidade histórica... Obviamente a
57 A demanda, a que pertence o primado do ritmo: o ouvido, ou os órgãos fonadores,
não pode receber uma mesma resposta para todas as épocas de desenvolvimento da
poesia. Problemas deste gênero somente admitem uma perspectiva histórica. Este
problema é posteriormente complicado pelo enorme papel dos olhos, que se tornou
um mediador entre o ouvido e os órgãos fonadores: dada a difusão geral da palavra
artística fixada graficamente, a importância da imagem sonora é indubitavelmente
diminuída. O romance de aventura contemporâneo fundamental e indiscutivelmente
não é um fenômeno nem acústico nem fonético. Num momento e noutro, as técnicas
juntaram‐se ao que era artisticamente insignificante, ao mesmo tempo em que a
função principal, ainda técnica, foi desenvolvida pela imagem gráfica.
58 Esta última em parte é dada pelo olho, mais ou menos nas diversas línguas e nos
diversos estilos: a estrofe e o verso são de fato um fenômeno parcialmente espacial.
245
entonação expressiva não é de fato obrigatória, mas onde está presente
exprime muito claramente o conceito de avaliação social59
Parece que esta afirmação não é completamente exata. Antes de
tudo, qualquer entonação é expressiva, isto é, é uma avaliação social
encarnada no material sonoro.
Comete‐se a falha de pressupor que possa faltar uma entonação
“expressiva”, quando não existe no mundo um discurso privado do
momento da avaliação. Por outro lado, se se fala de uma entonação
“sintática”, por que não falar de uma entonação “gráfica” ou “lexical”?
Também a simbolização gráfica do som, a união dos sons no complexo
significante (semântica) e as combinações destes complexos sonoros nas
enunciações de sentido completo são condições linguísticas materiais da
entonação de qualquer enunciação, lida ou ouvida: privado do suporte
material, a entonação terá poucas possibilidades de existir, a menos que
naturalmente nós não pensemos num discurso “simples como um
mugido”60.
Naturalmente compreendemos o pensamento de P. N. Medvedv:
existe uma espécie de limite inferior da entonação expressiva, abaixo do
qual tem início outra esfera, aquela da gramática e de suas categorias
formais. Mas colocar no mesmo grupo os conceitos de entonação
expressiva e entonação sintática é um lapsus terminologiae.
O ritmo de uma poesia (assim como o ritmo de um discurso em
prosa) é dado acima de tudo pela entonação expressiva, livre e sempre
diversa. A mesma palavra terá entonações expressivas distintas em
duas proposições distintas; mais ainda, a mesma palavra terá entonação
expressiva distinta em duas proposições iguais, mas pertencentes a
totalidades diversas (imaginemos um verso idêntico figurando em duas
poesias distintas). Em fim, a mesma palavra terá uma entonação
expressiva completamente distinta em duas totalidades verbais iguais,
mas em situações (tipos de relações sociais) diferentes.
59 Op. cit. pp.165 da edição russa.
60 Responsável pela tendência dos nossos dias de atribuir à entonação “sintática” um
significado quase exclusivo é principalmente Ed. Sievers, que encantou não poucos
pesquisadores russos.
246
Construamos um exemplo. Suponhamos que eu fale com um amigo
(relação prático‐cotidiana) de uma biografia de V. I. Lenin que acabei de
ler e que lhe diga: “Quero ser igual a Lenin, a Vladimir Illich”.
Estas mesmas palavras poderão ser pronunciadas por um orador
num meeting [relação de propaganda] neste contexto: “Companheiros,
para mostrar‐se digno da honra de substituir o falecido chefe neste
período de grandes empreendimentos, numa época de construção
intensiva, qualquer um de vós deve dizer‐se: Quero ser igual a Lenin, a
Vladimir Illich”.
Imaginemos, enfim, ouvir estas palavras num palco, inseridas num
contexto poético (relação artística):
A nossa vida é espumante como o oceano
A nossa vida é ardente como um vulcão!
Quero ser igual a Lenin
A Vladimir Illich61
É clara a diferença de entonação e por isso de peso axiológico destas
palavras.
A expressão avaliativa, encarnada na materialidade da voz humana,
é então o principal fator sonoro (e fonético) do ritmo. É preciso ter
presente, a este propósito, que a entonação expressiva não é mais
realizada pela voz em toda a sua plenitude: esta plenitude existe só
como categoria de possibilidade sonora.
Registre‐se ainda outra característica da entonação expressiva, sua
capacidade de tornar concreto o auditório, próximo e quase
sensorialmente perceptível. Quanto mais sutilmente diferenciada e
singular é a entonação expressiva, tanto mais ela se orienta para um
auditório próximo e socialmente homogêneo. É assim, por exemplo, a
entonação na lírica íntima de Innokenti Annenski, cujo ritmo é
construído sob muito sutis matizes entonacionais, destinados à “alma
gêmea”, isto é, para um auditório íntimo, “de câmera”. Caráter
diferente tem a entonação expressiva na lírica do tipo canção como por
61 Levin, “Pesnja komsomolca” [A canção do komsomolec], in. Pervye pesni vozdju, 1926,
p. 164, (cursivos nossos). [N.T.] Komsomolec: ilha do Oceano Ártico pertencente à
Federação Russa.
247
exemplo em Esenin: esta entonação é mais simples, mais grosseira,
indiferente aos matizes de sentido da palavra, destinada a um auditório
amplo e um pouco barulhento, com uma emoção forte mas pouco
diferenciada.
Passemos aos últimos dois fatores do ritmo: o eletivo e o
compositivo.
Cada palavra é para o poeta um valor (semântico, fonético etc.) e a
escolha de uma palavra em lugar de outra é um ato de preferência. Esta
escolha ativa é percebida, sobretudo, quando não é feliz, quando sentimos
que a palavra é fraca, pálida, quando deveria ser mais forte etc. como
ocorrem em particular nos lugares métricos privilegiados (no início do
verso, antes da cesura, na rima). É muito difícil neste caso distinguir o fator
eletivo do compositivo, pois na realidade a escolha da palavra e a
sinalização de seu posto na totalidade verbal ocorrem num único ato. Quer
a escolha, quer a disposição da palavra‐valor procedem de acordo com seu
peso axiológico. Dispondo mal esta palavra‐valor de peso distinto no
verso, na estrofe e na totalidade da obra, arrisca‐se a matar o ritmo.
Todos os quatro fatores do ritmo por nós indicados estão
indissoluvelmente ligados entre si: somente em abstrato é possível
isolá‐los da unidade viva e concreta do ritmo. Ele tem uma única alma:
a avaliação social.
Com isso concluímos nossa análise da expressão avaliativa na sua
encarnação sonora. Não podemos examinar as funções tectônicas
(eletiva e compositiva) que determinam o gênero, a composição e o
estilo da obra poética. Mas o pouco que registramos é de todo suficiente
para os objetivos deste trabalho crítico que empreendemos.
Nenhum método que queira se descuidar do problema da expressão
avaliativa poderá se aproximar do monumento literário artisticamente
significativo. A tentativa de V. V. Vinogradov de ignorar a estrutura
sociológica da forma poética o levou a introduzir na poética o método
da linguística objetivista‐abstrata, método que inevitavelmente exige a
plena gramaticalização de todas as categorias estéticas. Mais ainda, a
este caminho metodológico se chega somente ao isolar a literatura de
todos os laços históricos e sociais, isto é, das forças vivas organizadoras que
a tornam ideologicamente significativa e dotada de sentido artístico,
restando apenas o fenômeno físico nu do som e do movimento. Só
248
depois de ter afastado da literatura tudo o que é avaliação expressiva,
depois de tê‐la esmorecido socialmente e transformado numa série de
monumentos linguísticos petrificados, foi possível a memorável
“conclusão das conclusões” com que V. V. Vinogradov encerra o seu
Etjudy o stile Gogolja (1926): “A novela natural, estudada sob um plano
puramente artístico, segue na sua evolução um processo curioso e
indicativo para os contemporâneos. Nasce da exigência de uma reforma
estilística. Consolidada a revolução linguística, ela adapta aos novos
princípios da construção estilística a psicologia da imaginação artística.
Elaborado um modelo de desenho ‘típico’, criado um esquema
complexo de reproduções fotográficas dos ‘tipos’, a poética natural se
coloca a serviço da ideologia e da sociologia. Realiza‐se assim na
realidade artística uma espécie de ‘método ao avesso’ sociológico”.
Uma assim brilhante reductio ad absurdum do método linguístico em
poética pode conduzir a pretender uma só coisa: a delimitação bem
nítida e precisa dos fenômenos linguísticos e fenômenos poéticos.
A poética, gerada e criada pela linguística, fá‐la finita em seu poder
despótico para encontrar finalmente sua plena independência
metodológica. Não um “método sociológico ao avesso”, mas um
autêntico método dialético marxista deve dar conta de todos os
problemas específicos. Tem razão Horácio: “abandone a saia da mãe/
está na hora de casar‐se”.
13 de novembro de 1929.
249
ALGUMAS IDEIAS‐GUIA PARA A OBRA
MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM1
1. Problemas de filosofia da linguagem adquiriram excepcional
relevância e importância para o marxismo atualmente. Pode‐se dizer que
numa série completa de trabalhos dos mais importantes e vitais
domínios da pesquisa acadêmica o método Marxista encontra
precisamente estes problemas, e não pode ir além, com avanços
produtivos, sem tematizá‐los num exame independente e resolvê‐los.
O primeiro e mais importante deles está verdadeiramente na base de
uma ciência marxista das ideologias (da criação ideológica): os fundamentos
do estudo da ciência, os estudos literários, o estudo da religião, a ciência
da moral e assim por diante – isto é, os fundamentos de uma completa e
extensa gama de domínios que em trabalhos não marxistas têm sido
chamada de ‘filosofia da cultura’. Os fundamentos das lições marxistas
sobre a refração ideológica nos processos sócio‐econômicos e naturais, sob
as leis e formas desta refração, necessitam ser descritos em detalhe com
precisão e, mais importante ainda, concretamente, com referência ao material
ideológico específico. Somente deste modo é possível estabelecer o
mecanismo concreto desta reflexão e refração. Sem tal concretização e
descrição detalhada, naturalmente é impossível chegar realmente ao
1 [N.T.] A edição deste texto em língua inglesa se fez acompanhar de inúmeras notas de
rodapé, elaboradas pelos editores (Craig Brandist, David Shepherd e Galin Tihanov),
em algumas delas, havendo identificação do autor e noutras não. Estas notas foram
escritas especificamente para a edição em inglês. Ver The Bakhtin Circle. In the master’s
absence, edited by Craig Brandist, David Shephered U& Galin Tihanov, Manchester e
Nova York: Manchester Universtity Press, 2004. Esta tradução é apenas do texto de
Volochínov, sem estas notas de rodapé. Este texto compõe o relatório acadêmico de
Volochínov relativo ao período de 1927 e 1928, cuja primeira parte é um sumário da
obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Em outro relatório anterior, referente a 1925‐
1926, apresenta um sumário para a construção de uma poética sociológica (ver Sériot,
Patrick, op. cit., p. 469‐475). Em função do valor histórico para a obra Marxismo e
Filosofia da Linguagem, dois sumários apresentados pelo autor (um manuscrito e outro
como parte do relatório do ano letivo de 1928) são aqui publicados como apêndices.
251
monismo metodológico, não apenas nas declarações gerais, mas em
todos os detalhes do trabalho acadêmico concreto.
É aqui que o marxismo se defronta com os problemas da linguagem,
pois a palavra é o fenômeno ideológico par excellence. E não só porque é
no material da palavra que os mais importantes domínios da ideologia
(ciência, literatura e num grau significativo religião e moral) alcançam
sua realização concreta, mas também porque a palavra acompanha, como
ingrediente necessário, toda a criação ideológica em geral. O processo de
compreensão de qualquer produto ideológico que for (uma pintura,
música, um ritual, um ato) não ocorre sem a contribuição do discurso
interno. Todos os produtos e manifestações da criação ideológica são
banhados pelo discurso, passo a passo, e não são susceptíveis de uma
separação ou isolamento reais. Cada refração ideológica, qualquer que
seja o material significante, no curso de seu processo, é acompanhada
pela refração ideológica da palavra, obtendo sua pureza e essência mais
elevadas precisamente na palavra. A palavra (mesmo que somente a
palavra interna) é um comentário para cada ideologema. A palavra é o
mais sutil, flexível e ao mesmo tempo o mais exato meio ideológico de
refração. É por esta razão que as leis da refração ideológica, suas formas e seus
mecanismos, devem ser estudados com referência ao material da palavra. A
introdução do método sociológico marxista em toda a profundidade e
sutileza nas até agora tidas como estruturas ideológicas “imanentes”,
somente é possível com base numa filosofia da linguagem também
elaborada pelo próprio marxismo.
2. Um dos problemas fundamentais do marxismo – o problema da
relação entre a base e a superestrutura – em seus momentos essenciais
enlaça‐se com os problemas da filosofia da linguagem. As relações de
produção e a estrutura sócio‐política diretamente condicionadas por elas
determinam os possíveis contatos verbais entre as pessoas: no trabalho, na
vida política, no intercâmbio ideológico (ciências, religião, artes). As
condições do intercâmbio discursivo também determinam a essência e a
extensão das palavras, determinam as formas e os temas dos desempenhos
discursivos como tais.
O que é conhecido como “psicologia social”, que, de acordo com a
teoria de Plekhanov e da maioria dos marxistas, é um elo de transição
entre a estrutura sócio‐política e a ideologia no seu sentido restrito
252
(ciência, arte etc.) na realidade acontece materialmente como interação
verbal. Tomada fora deste processo real de intercâmbio e interação
discursivos (ou signo‐baseados), a “psicologia social” se tornaria
metafísica ou até mesmo um conceito mítico (‘alma coletiva’ ou ‘psique
coletiva’ e assemelhados). Ela se dá não em algum lugar interior (‘alma’
dos indivíduos engajados no intercâmbio), mas inteiramente no exterior –
na palavra, no gesto, na ação. Nada há que não seja expresso, que seja
interno – nada está fora, tudo está no intercâmbio, tudo está no material
e, sobretudo, no material da palavra. A psicologia social é o primeiro e o
principal elemento das diversas performances discursivas que banha
todos os lados, todas as formas e todos os tipos de criação ideológica
estabelecida: discussões não‐oficiais, uma troca de opiniões no teatro,
num concerto ou em vários encontros sociais, ou simplesmente na troca
conversacional, nos modos de reação aos atos da vida do dia‐a‐dia
[zhinennye i zhiteiskie postupki], a maneira intra‐verbal de estar
consciente de si mesmo, a posição social de alguém e assim por diante. A
psicologia social aparece primariamente nas várias formas de
‘enunciação’, na forma dos menores gêneros discursivos que permanecem
completamente não estudados. Estes desempenhos discursivos contêm,
naturalmente, outros tipos de externalização signo‐baseados na interação –
mímica, gesticulação, atos convencionais e semelhantes. Estas formas de
interação verbal seguem as condições criadas pela estrutura sócio‐
política e diretamente pelas relações de produção. A interação discursiva
reflete de modo extremamente sensível todas as mudanças que aí
ocorrem, enquanto uma mudança na interação verbal, por sua vez, se
reflete nas formas e temas dos desempenhos discursivos. A história da
linguagem deve, então, ser construída não como uma história das formas
linguísticas abstratas (fonéticas, lexicais, morfológicas), mas como uma
história das formas de interação discursiva. As formas dos desempenhos
discursivos concretos, pertencentes à vida e à ideologia, são também
determinadas em cada interação, e é deste ponto de vista que a história
dos significados [znacheniia] e das construções da linguagem em si como
um sistema abstrato de normas linguísticas potenciais deve ser
compreendida. Um estudo produtivo da história da cultura é impossível
fora de uma história concreta da troca discursiva ideológica diretamente
determinada pela estrutura social e pelas relações de produção.
253
Algumas reflexões sobre “enunciados vivos”, sua significação e suas
formas foram desenvolvidas em meu artigo “A palavra na vida e a
palavra na poesia” (Zvezda, Lengiz, n.6, 1926, pp.244‐267).
3. Uma das tarefas fundamentais e mais urgentes do Marxismo é
construir uma psicologia genuinamente objetiva – no entanto, não fisiológica
ou biológica, mas sociológica. Neste sentido, o marxismo encara uma
difícil tarefa: encontrar uma objetiva, mas sutil e flexível, abordagem para a
consciência subjetiva psíquica, que normalmente cai no campo dos métodos
de introspecção. Nem a biologia nem a fisiologia são adequadas para esta
tarefa, naturalmente. É essencial prover uma interpretação científica
marxista da “experiência interna” para incluir esta experiência na unidade
objetiva da experiência externa. É neste ponto que o problema da
‘enunciação’ e da externalização signo‐baseada da psique subjetiva em geral
é abordado de forma nova. Pela introspecção também a vida interna se
dá como um processo discursivo interno em conexão com a situação externa
específica da experiência e das manifestações corporais específicas. A
própria experiência interna é também uma particular interpretação
ideológica de certos momentos da unidade objetiva da experiência externa. Este
problema é extremamente complexo e exige o desenvolvimento de uma
metodologia distinta e um método concreto para estudar a enunciação
como expressão – bem como traçar suas sutis conexões com a realidade
social circundante.
A importância do problema da enunciação (reação verbal) para a
psicologia objetiva foi discutida em meu livro Freudismo (Um esboço
crítico), Lengiz, 1927, Cap. II (Duas tendências da psicologia atual) e no
Cap. III ( O conteúdo do inconsciente como ideologia)2.
4. Em adição a estas tarefas puramente construtivas conectadas com
a filosofia da linguagem, o marxismo enfrenta algumas outras tarefas
polêmicas muito importantes. Deve ser dito francamente que o Método
Formal, contrariando o marxismo, não teve também nenhum sucesso.
Isto é evidente precisamente porque falta uma abordagem completa
elaborada pelo marxismo para a teoria e a história da linguagem. Isto
2 [N.T.] Na edição brasileira, são os capítulos II, pp. 13‐22 e cap. IX, pp. 85‐92 (cf.
Bakhtin, Mikhail. O Freudismo – Um esboço crítico, São Paulo: Perspectiva, 2001. A
edição inglesa do texto de Volochínov.
254
torna impossível para nós levantar problemas concretos na agenda dos
formalistas e em muitos casos obriga‐nos a limitarmo‐nos à repetição de
lugares comuns do marxismo. Fundamentos marxistas para os estudos
literários podem ser colocados somente se houver uma elaboração compreensiva e
especializada dos problemas da linguagem. Até lá nós inevitavelmente
teremos uma declaração de um monismo metodológico em teoria, mas na
prática um dualismo metodológico, uma combinação de argumentos
sociológicos gerais com análises formalísticas concretas.
5. No momento presente na Europa Ocidental (e aqui na USSR
também), problemas de filosofia da linguagem se tornaram excepcionalmente
relevantes e importantes questões de princípio. A filosofia burguesa
contemporânea, pode‐se dizer, está começando a se desenvolver sob o
signo da palavra, no entanto as novas tendências do pensamento filosófico
ocidental ainda estão em seus primeiros estágios. Nele, a palavra
assumiu uma força vigorosa e um lugar sistemático, tão forte que só
pode ser comparado com as disputas medievais entre realismo,
nominalismo e conceptualismo. Na verdade, as tradições destas
tendências filosóficas da Idade Média estão começando, em certa
extensão, a reviver no realismo dos fenomenologistas e no conceptualismo
dos neokantianos. Para esta última tendência, a ‘palavra’ ocupa um
terceiro lugar entre validade transcendental e realidade concreta, um
“terceiro reino”, isto é, de um lado entre o sujeito cognoscente psico‐
físico e a realidade empírica circundante e por outro lado o mundo
transcendental, a priori, dos seres formais. Ao mesmo tempo, a forma do
signo e do significado [znachenie] (forma simbólica) é comum a e une
todos os domínios da criação ideológica. Este é o lugar sistemático da
palavra segundo os ensinamentos dos neokantianos (ver o livro de
Cassirer Filosofia das Formas Simbólicas, 1925 – o principal trabalho
neokantiano em filosofia da linguagem). É precisamente no campo da
filosofia da linguagem que o cientificismo e logicismo da Escola de
Marburg e o eticismo abstrato da Escola de Freiburg avançam
atualmente. Por meio das formas internas da linguagem (semi‐
transcendental, em si) o movimento e abordagens históricas estão sendo
introduzidas no reino petrificado das categorias transcendentais‐lógicas.
É também neste campo que estão sendo feitas tentativas de reabilitar a
dialética idealista.
255
Há um renascimento do realismo medieval ocorrendo entre
fenomenologistas como parte de um renascimento geral da filosofia
medieval, especialmente de Thomas de Aquino. A filosofia da palavra e
do nome está adquirindo excepcional importância.
É essencial para combater estas tendências e direções no pensamento
filosófico, que encontraram expressão também em solo russo; mas o que
é necessário primeiro e principalmente é conhecê‐los seriamente e assimilar
a grande quantidade de material possivelmente válido que foi
acrescentada por estas correntes no processo de suas pesquisas (em
termos de material acrescentado, o livro citado de Cassirer é
extremamente válido). Do contrário, a tentativa de se contrapor a estas
tendências será fraca (como frequentemente tem sido o caso) e nada mais
serão do que declarações que desacreditam o marxismo.
6. Paralelamente a esta elaboração puramente filosófica do
problema da linguagem tem de ocorrer um extraordinário renascer,
dentro da própria linguística, de interesses pelas questões de princípio e
metodológicas. Depois do medo do positivismo ser superado e as questões
principais postas em termos científicos, pela hostilidade característica do
positivismo mais recente contra todas as contemplações do mundo, uma
consciência aguda e ousada das próprias premissas gerais filosóficas (um
traço indispensável de qualquer ciência positiva) e das tendências
metodológicas está sendo desenvolvida em linguística. Precisa‐se
mencionar a escola de Karl Vossler (idealista neo‐filólogo), que tem tido
sucesso em ampliar de modo desproporcional os horizontes [krugozor] do
pensamento linguístico e aprofundar a problemática linguística, embora
no campo de algum modo indeterminado do idealismo. Não menos
significativa é a escola do linguista Anton Marty, cuja filosofia da
linguagem, publicada no começo do século, está hoje exercendo enorme
influência. Em conexão com os ensinamentos de Marty, a velha doutrina
hulboldtiana da forma interna da linguagem está encontrando novas
formas de expressão no trabalho de especialistas em literatura como
Hefele, Walzel, Ermatinger e outros. Trabalhos puramente linguísticos e
força para tais trabalhos têm emergido da escola do filósofo hegeliano
Benedetto Croce. A escola de Sievers também tem considerável
significação metodológica geral entre os linguistas. Mas à parte destas
tendências propriamente linguísticas, uma disciplina distinta está
256
surgindo agora: a ciência da expressão, cujo principal representante é
Ottmar Rutz e o grafologista Klages (um intuitivista). Os trabalhos do
linguista genovês Bally são de interesse metodológico considerável. A
influência do objetivismo abstrato de Bally é muito grande não só na
Europa Ocidental, mas também aqui na Rússia. As premissas
metodológicas de linguistas como Saussure, van Ginneken (linguista
psicológico) e outros são também de fundamental importância. As
investigações psicolinguísticas de Karl Bühler e Erdmann ocupam um
lugar especial.
7. Este renascimento e renovação do pensamento filosófico e
linguístico foram precedidos por um inabitual crescimento de interesse
pela palavra como tal e pela mudança em suas funções na criação artística.
As origens desta nova percepção da palavra e da reavaliação de sua
significação devem ser procuradas no Simbolismo. É nele que o culto da
palavra em si foi proclamado pela primeira vez e foram feitas tentativas
de revelar nela novos aspectos e de identificar para ela um distinto e
excepcional lugar na vida e na cultura. É preciso antes de tudo
mencionar Stéphane Mallarm. Suas teorias e trabalhos têm e continuam a
ter influência decisiva sobre o desenvolvimento da poética europeia nos
dias presentes. De um ponto de vista estritamente histórico, a palavra
autossuficiente de nossos futuristas (Velimir Khlebnikov) é somente um
epígono tardio, simplificação e vulgarização do ímpeto criativo de
reavaliação da palavra procedido por Mallarmé e seu círculo. Podemos
observar desenvolvimentos análogos no simbolismo alemão,
especialmente no círculo de Stefan George (George‐Kreis). O órgão desta
tendência (Blatter für die Kunst) tem considerável importância na história
do desenvolvimento da poética alemã e sua filosofia da palavra: e
atualmente o círculo de George exerce uma influência poderosa sobre o
desenvolvimento do pensamento literário‐histórico e teórico literário. É
suficiente dizer que Gundolf pertence ao círculo. No Futurismo, e
subsequentemente no Expressionismo, a concepção da palavra e suas
funções mudam, mas sua significância – sua proeminência – se mantém.
Este culto da palavra como tal, este crescente interesse nas energias e
momentos puramente verbais eram totalmente alheios ao realismo,
naturalismo e impressionismo (tanto naturalista quanto psicológico). A
paixão pela palavra dos clássicos nada tem a ver com a excepcional
257
reavaliação da palavra em si, ou com as declarações de que ela seja uma
realidade superior. No classicismo não houve possibilidade de qualquer
radicalismo. Na visão de mundo clássica, no seu pensamento a respeito do
mundo, houve, ao contrário, outras coisas superiores à palavra, algo com que a
palavra tinha que se conformar e que tinha de servir piedosamente. A palavra
tem, é verdade, um papel honroso, mas, contudo, auxiliar. Nem o
racionalismo da época neoclássica tem qualquer sentido para a filosofia
da palavra no sentido contemporâneo (no sentido de uma ciência
filosófica independente e muitas vezes verdadeiramente fundamental).
São características desta época concepções como as ideias de Leibniz de
‘gramática universal’. A sábia paixão neoclássica pela palavra, uma
paixão não esquecida mesmo que a realidade [realia] esteja além da
palavra, é também um traço da filologia clássica. É característico que a
reavaliação contemporânea da palavra tenha nascido não no solo da
filologia clássica, mas no da filologia bárbara, isto é, no solo do
romantismo e dos estudos germânicos, que estão em oposição aos
métodos “conservadores” da filologia clássica.
8. Este crescente interesse pela palavra como o herói principal da
visão de mundo, este culto da palavra, se inicia na Rússia também com o
aparecimento do Simbolismo. Foi nestas ideias que as concepções
antropológicas da palavra Belyi tomaram forma, como o fez o realismo
místico de Viacheslav Ivanov (a doutrina da palavra como mito), o
magicismo de Bal’mont (a poesia como feitiçaria) e o mais contido e
menos científico interesse pela palavra de Briusov. A desintegração
relativa e o deslocamento deste culto simbolista da palavra foram
provocados pela ‘palavra autossificiente’ dos futuristas, que passou para a
teoria dos formalistas. Atualmente, o interesse pela palavra na Rússia
movimenta‐se em duas direções. Ambas as correntes emergem do
Simbolismo, mas divergem e foram tornadas mais complexas pela
influência das diferentes novidades da Europa Ocidental. A primeira
tendência, depois de passar pelo futurismo e complicada por influências
positivistas emitidas de certas correntes acadêmicas europeias de análise
da arte e da linguagem, forma o que conhecemos como o Método Formal.
Na outra corrente, que partilha a influência do pensamento neokantiano
da Europa Ocidental, nominalmente do pensamento fenomenológico
(Husserl) – encontra sua expressão na filosofia da palavra de Gustava
258
Shpet e seus alunos e seguidores. Esta corrente, ainda divorciada de toda
tradição filosófica, assume formas extremas na Filosofia do Nome de
Losey.
9. Como pode ser explicado este excepcional e completamente novo
papel da palavra na visão de mundo contemporânea? Este movimento
não é de modo algum acidental. O marxismo deve descobrir suas raízes
sociológicas.
A mudança da função da palavra na criação artística e a mudança na sua
percepção avaliativa no pensamento e na contemplação do mundo são
determinadas pela mudança nas formas do intercâmbio e interação discursivos.
A relação entre o desempenho linguístico e outros atos sociais também mudou.
Ocorreu um deslocamento, por assim dizer, da palavra na vida social.
Nestes campos da intelligentsia burguesa e pequeno‐burguesa que
deram expressão a este novo sentido da palavra ocorreu na realidade um
duplo estranhamento da palavra. Houve o que podemos chamar de
separação da palavra das coisas concretas, do real, proximidade que era
característica de todo o período médio do desenvolvimento burguês, do
realismo e do naturalismo. Se nestas correntes foram as descrições das
funções da realidade verdadeira que estiveram na vanguarda dos estudos da
palavra, nos períodos mais recentes há a tendência para a independência
da palavra: a palavra não descreve uma realidade externa a ela, ela a
transfigura ativamente através de suas próprias energias simbólicas
imanentes. Esta tendência alcançou seu extremo no expressionismo. Este
processo aumentou o interesse e sensibilidade aos aspectos da palavra
que produzem estranhamento da realidade, servindo como uma expressão
autossuficiente do falante (isto manifesta a predominância do lirismo no
simbolismo e expressionismo). Concomitante a este estranhamento da
palavra em relação às coisas em seu aspecto real, ocorre um
estranhamento da palavra em relação à ação [delo], isto é, um divórcio
[otryv] da palavra com suas reais potencialidades no campo de um
democratismo verbal extremo e de uma liberdade verbal política com
completa ausência do real. Isto se expressa num radicalismo utópico
extremo em questões políticas e sociais que é típica do simbolismo,
futurismo e expressionismo e que claramente se refletem aqui na Rússia
no anarquismo místico de Viacheslav Ivanov e Georgiii Chulkov, e no
Ocidente, particularmente no radicalismo dos expressionistas alemães.
259
Este radicalismo político em muitos casos está impregnado de
conotações místicas. Quaisquer que sejam as formas, sua essência pode
levar à reavaliação da força independente da palavra, uma excepcional fé em
suas energias criativas.
Estas mudanças são condicionadas por correspondentes mudanças
sócio‐econômicas na pequena e grande burguesia europeia.
De particular importância é a alteração nas formas dos desempenhos
discursivos associados a estas mesmas mudanças sociais. O intercâmbio
ideológico contemporâneo é caracterizado pela predominância de
gêneros “silenciosos”: na literatura – o romance, no trabalho cognitivo
dos maiores pesquisadores acadêmicos é conduzido pelo estudo em
gabinete. A forma fundamental de nossa percepção da palavra ideológica
é a leitura para si mesmo. A palavra é assim removida de seu espaço e
tempo reais e se faz estranha ao falante (o autor e o intérprete) e é
apresentada como uma formação autossuficiente.
Então, mudanças nas condições sociais e nas formas do intercâmbio verbal
ideológico encontram expressão tanto na mudança nas funções da palavra na
criação artística quanto em sua interpretação filosófica.
Cada palavra viva contém uma avaliação social ativa. É esta avaliação
social que transforma cada palavra‐enunciação (isto é, desempenhos
discursivos concretos) num ato social significativo (por mais
insignificante que seja, por exemplo, a significação de alguns enunciados
cotidianos). Em cada uma de suas enunciações a pessoa adota uma
posição social ativa. Estes desempenhos discursivos ativos são realizados
em todas as esferas da vida social: no trabalho ou intercâmbio
profissional, no intercâmbio político, no intercâmbio prático da vida (na
família, no meio de camaradas e semelhantes), finalmente, no
intercâmbio ideológico no sentido restrito da palavra. De maior
importância é o fato de que a avaliação é expressa com segurança na
palavra, é o mais ativo e socialmente significativo [smyslovoi] aspecto que
vem à tona na enunciação. Reciprocamente, quando a garantia e a
importância da avaliação são reduzidas, como consequência da
estratificação do grupo social a que o falante pertence, ou como
consequência de estar sendo empurrado para a periferia da vida social,
outros momentos da palavra começam a vir à tona na consciência
discursiva: suas peculiaridades subjetivas e individuais. A mudança temática
260
da palavra é reduzida, ela é reificada, torna‐se momento não de um
evento, mas da inércia da vida cotidiana. Ou seja, na sociedade
ideológica a palavra torna‐se convencional – um gesto, não um ato. Tudo
isso altera radicalmente a percepção da palavra e seu tratamento na
criação artística e no pensamento cognitivo filosófico. Assim é que, ao
mesmo tempo em que a palavra‐símbolo, nós encontramos na criação
artística a palavra reificada (no futurismo, nas teorias formalistas). As duas
direções dos estudos na Rússia estão fortemente conectadas, expressando
apenas dois lados de um e mesmo processo social.
Naturalmente, uma compreensão clara e completa destes destinos da
palavra na sociedade contemporânea será possível somente depois de
um estudo das formas e dos tipos de intercâmbio discursivo, da
interação verbal e das mudanças que sofrem sob a pressão direta da
estrutura sócio‐econômica e das relações de produção.
Concomitante às descobertas da gênesis social desta nova concepção
da palavra na arte e na cognição, deve ocorrer uma crítica ‘imanente’ de
todos os laços da filosofia contemporânea da palavra mencionados
anteriormente. Trazer luz para as raízes sociais de qualquer asserção
cognitiva está ainda longe, para se dizer qualquer coisa do que há para
ser dito a este respeito. É necessária uma crítica esclarecida de alguns
fenômenos ideológicos em sua essência, uma crítica que abra caminho
para uma solução positiva do problema posto pelo fenômeno. A
revelação da gênesis social, uma genética social, por assim dizer, de uma
teoria, e a crítica de sua essência, são inseparavelmente entrelaçadas e
são meramente dois aspectos de uma só orientação cognitiva em relação a
uma dada teoria.
10. A fim de construir uma sociologia marxista da linguagem deve‐se
antes de tudo tomar consciência dos caminhos metodológicos que levam
às abstrações linguísticas, ‘as formas da linguagem’. Donde exatamente
procede a abstração destas formas? Em que direção continua, quais as
premissas que a guiam?
Portanto, é necessário primeiro esclarecer o dado imediato da
linguagem. Todos os elementos linguísticos (fonemas, morfemas e
semelhantes) estão muito longe de constituírem dados imediatos. Os
fenômenos físicos do som e o processo fisiológico de sua produção (tanto
quanto as respostas físicas e as reações fisiológicas do interlocutor) não
261
constituem a realidade imediata e última da linguagem. A linguagem não
pode ser entendida dentro do sistema da natureza, mas somente dentro do
sistema da história. Tanto seus aspectos físicos e fisiológicos são apenas
momentos abstratos de um fenômeno social. Se permanecermos dentro dos
limites desta abstração, nós nunca chegaremos à completude do sentido
social e significativo do discurso. O físico, o corpo sonoro da fala e o
processo fisiológico de sua produção mergulham num mundo complexo
de relações sociais e conexões entre falantes dentro dos limites do
ambiente social a que pertencem. Se a abstração linguística tivesse sua
origem nos dados da fala físicos e fisiológicos, a linguística seria capaz de
construir somente o domínio da fonética fisiológica. Neste caso, seria
impossível falar do som semasiologisado, isto é, o fonema no sentido
preciso da palavra (como entendido, por exemplo, por Baudouin de
Courtenay). Nem, naturalmente, seria possível falar do morfema, do
sintagma, do semema – para um som que do ponto de vista físico e
fisiológico é o mesmo (se assumirmos sua absoluta identidade e todas as
condições necessárias físicas e fisiológicas para esta identidade: os
mesmos sons circundantes, a mesma ênfase, a mesma posição em relação
ao acento frasal etc.), no entanto será profundamente diferente se for parte
de uma raiz, de um sufixo, ou mudada a inflexão, se dada palavra é o
sujeito ou o predicado (independentemente da ênfase), o grau de
significância [smyslovoi] da palavra é alto e assim por diante. O destino
histórico de um dado som no desenvolvimento de uma linguagem
dependerá também das diferenças não da posição do som nem do
complexo físico e fisiológico, mas da complexa significação concreta da
linguagem como fato social. O som entra para a história da língua não como
um fenômeno físico ou fisiológico, mas como um elemento de um
fenômeno linguístico com todo seu peso. Além disso, não é o bastante
anotar sua situação física e fisiológica. O som e sua situação física e
fisiologicamente mutante é apenas uma abstração improdutiva. Por esta
razão, todas as tentativas de estabelecer leis fonéticas (Lautgesetze) em
bases físicas e fisiológicas foram improdutivas e infrutíferas. Adicionar
qualquer tipo de fator subjetivo‐psíquico não mudaria os problemas,
uma vez que estes fatores devem eles próprios ter realização na série de
manifestações externas (antes de tudo, verbais) a fim de se tornarem o
assunto de avaliação e estudo objetivos.
262
De fato, o dado concreto imediato de que procedem as formas
linguísticas abstratas é o significado monológico do enunciado. E o que se
opõe a este enunciado não é uma réplica ativa, mas uma compreensão
passiva. O enunciado compreendido (artístico, científico, prático, cotidiano):
esta é a realidade que serve de ponto de partida para os linguistas.
Todas as formas são encontradas pelos linguistas tendo por base e nos
limites de um só enunciado isolado (por exemplo, os mais importantes
trabalhos literários). Mas a enunciação como um todo está muito longe de ser
objeto do linguista. É no processo de abstração das formas linguísticas da
língua do todo dos enunciados que se criou a concepção da linguística da
língua como um sistema de normas linguísticas. A língua como um
sistema de normas é constitutiva de cada enunciado, mas só os
elementos do enunciado, e não da enunciação como um todo. É
característico que todas as conexões sintáticas também sejam dadas
somente nos limites do enunciado, enquanto as formas da enunciação
como um todo, ela própria não seja suscetível às definições sintáticas.
Nenhuma caracterização puramente linguística pode dar uma explicação
exaustiva da enunciação como um todo.
O que guia, então, a abstração linguística? Não os objetivos de
conhecimento e explicação, mas os objetivos do ensino prático da língua.
É por esta razão que as formas linguísticas não constituem a realidade
em que a história é possível. Não qualquer realidade histórica neste
mundo de abstrações. E elas próprias não podem criar uma série
histórica, não podem agir uma sobre a outra, uma condicionar a outra. É
por esta razão que a história da língua está cheia de construções
ficcionais de formas transitórias. Tais ficções tornam possível introduzir
certa lógica no desenvolvimento da língua, dar a um rearranjo das
formas uma semelhança de uma necessária sequencialidade, mas isto
não tem nada em comum com a história real.
11. Para chegar à vida real da língua, deve‐se alcançar uma
compreensão mais abrangente e mais fundamental de seus dados
imediatos. Estes dados não são o ‘enunciado compreendido’, mas o
evento social da interação discursiva de pelo menos duas enunciações. Somente
no diálogo a língua é real. O enunciado é somente um elemento da
interação discursiva, é orientado para uma reação responsiva,
independentemente de esta reação ocorrer ou não. A orientação do
263
entendedor também é ativa e dialógica. O monologismo da linguística
tornou uma série extremamente importante de fenômenos linguísticos
inacessíveis. Primeiro e antes de tudo, todas as diversas formas de
interação entre enunciados, por exemplo, entre as réplicas num diálogo,
ainda não foram compreendidas. A relação entre os enunciados como
um todo é profunda e essencialmente diferente das conexões e relações
(morfológicas e sintáticas) entre os elementos dentro do enunciado. As
conexões entre réplicas são por princípio profundamente diferentes das conexões
entre elementos sintáticos dentro de um enunciado‐réplica. A falta de
compreensão destas formas particulares de conexões entre os elementos
da interação discursiva (isto é, entre o todo das enunciações, uma
orientada para outra) tem também efeito no estudo das conexões internas
ao enunciado: ainda não se compreendeu que cada elemento do interior
do enunciado vai além de seus limites, cada um deles aponta para outro
enunciado (réplica). Conexões entre alguns elementos mais importantes
dentro do enunciado (por exemplo, entre parágrafos separados por uma
mudança de linha) são análogas, no tipo, àquelas conexões entre o todo
independente de enunciados (as réplicas num diálogo), mas não podem
ser comparadas à parataxe e à hipotaxe dentro de uma sentença
complexa. A perspectiva monológica da linguística até o presente ficou a
meio caminho na compreensão e estudo mais profundo destas conexões
linguísticas extremamente importantes.
12. O diálogo no sentido estrito do termo é uma (embora mais
importante) forma de interação discursiva. Mas o diálogo pode ser
entendido de forma ampla incluindo não só diretamente a troca em voz
alta, face a face, entre as pessoas, mas todo o intercâmbio discursivo de
qualquer tipo. O livro, isto é, um discurso impresso, é também um
elemento do intercâmbio discursivo. Ele pode ser discutido
imediatamente e viver no diálogo, pois é orientado a uma percepção
ativa implicando estudo aprofundado e resposta interna, e a uma reação
organizada, também impressa, nas várias formas que foram
desenvolvidas na respectiva esfera de intercâmbio discursivo (resenhas,
críticas, sumarizações, determinando sua influência sobre trabalhos
subsequentes e assim por diante). Além disso, este tipo de realização
discursiva é inescapavelmente orientado para realizações posteriores,
tanto pelo seu próprio autor como pelos outros, na mesma esfera em que
264
emerge de uma posição específica em relação ao problema científico ou
estilo artístico. Então, um discurso impresso entra em conversação
ideológica em grande escala: ele replica algo, refuta algo, confirma
alguma coisa, antecipa possíveis réplicas e refutações, busca apoio e
assim por diante. Qualquer enunciado, por mais significativo e completo
que seja, é somente um momento da troca discursiva ininterrupta (pertencente
ao quotidiano da vida, à literatura, à cognição, à política). Mas esta
cadeia discursiva ininterrupta é ela própria, por sua vez, um momento
do ininterrupto movimento da vida social de uma dada coletividade. Isto
levanta um importante problema: o estudo das conexões entre interações
discursivas concretas e a situação extra‐verbal – o contexto imediato e
aquele mais abrangente. As formas das conexões são diferentes, e
dependendo dos distintos momentos da situação adquirem significados
[znacheniia] diferentes (estas conexões com os diferentes momentos da
situação são diferentes na troca artística e na troca científica). O
intercâmbio discursivo nunca pode ser entendido e explicado sem
referência a estas ligações com a situação concreta. O intercâmbio verbal
está inseparavelmente ligado com outros tipos de intercâmbios, surge no
terreno comum do intercâmbio das relações de produção. A palavra não
pode, naturalmente, ser divorciada deste perpetuamente mutável e
unitário intercâmbio. Nesta ligação concreta com a situação, o
intercâmbio discursivo é sempre acompanhado pelos atos sociais de
caráter não verbal (atos de trabalho, atos simbólicos do ritual, cerimônias
e semelhantes), e frequentemente é só a suplementação destes atos e tem
meramente um papel auxiliar. É precisamente aqui, no intercâmbio
discursivo concreto, que a linguagem vive e se modifica historicamente, não
num sistema abstrato de formas linguísticas nem na psique individual dos
falantes.
A sequência metodologicamente fundamentada para o estudo da
linguagem deve ser a seguinte:
1) As formas e tipos de interação discursiva em conexão com suas condições
concretas;
2) As formas dos enunciados isolados e das execuções discursivas isoladas
em estreita conexão com a interação de que são elementos, isto é, os
gêneros, determinados pela interação discursiva, das performances
discursivas no cotidiano da vida e na criação ideológica;
265
3) A partir deste ponto, o reexame das formas da língua em seu tratamento
linguístico habitual.
Esta é a ordem em que as transformações da linguagem se dão: a
mudança da interação social ocorre (nos fundamentos da infraestrutura),
ocorre a mudança do intercâmbio e da interação discursivas; mais tarde ocorrem
as mudanças das formas de performance discursiva e as mudanças, finalmente,
se reflete na troca das formas da língua.
13. A linguística contemporânea adotou uma distinção entre as
funções da linguagem: estas funções geralmente são enumeradas como
cinco funções (alguns identificam mais funções): a função comunicativa,
expressiva, denominativa, estética e cognitiva (a linguagem como recurso do
pensamento). Esta ideia de funções da linguagem necessita ser
completamente retrabalhada sob novas bases metodológicas. É
metodologicamente inaceitável colocar a função comunicativa da
linguagem ao lado das outras funções (expressiva, denominativa etc.). A
função comunicativa não é uma das funções da linguagem como tal, mas
expressa sua verdadeira essência: onde há linguagem há comunicação. Todas
as funções da linguagem se desenvolvem com base na comunicação, são
meramente nuanças dela. Não há expressão de emoções ou afetos fora
da sua comunicação: expressar‐se a si próprio por meios verbais é
comunicar a si mesmo. Além disso, os nomes (denominativa) não existem
fora da comunicação. Nem há qualquer pensamento fora da
comunicação e interação discursiva. O pensamento torna‐se diferenciado,
faz‐se mais preciso, enriquece‐se somente no processo de diferenciação e
expansão do intercâmbio. Cada enunciação concreta (comunicativa em
sua essência) ordinariamente preenche várias funções, e nós podemos
falar somente da predominância de uma delas. Além disso, a ideia de
funções da enunciação deve ser elaborada concretamente e em detalhe
em forte conexão com as situações sociais particulares da enunciação.
14. Um lugar especial é ocupado pelo sentido da enunciação e pelos
problemas associados de mudança dos significados [znachenniia] na história
da linguagem. Este problema, que atualmente está sendo trabalhado com
intensidade pela escola de Anton Marty e pelos fenomenólogos, é de
particular importância para a sociologia da linguagem. O defeito básico
de todas as teorias que trabalham com este problema aparece face à
completa ausência de compreensão do papel da avaliação social na
266
linguagem. A avaliação social é um momento necessário e fundamental do
significado. Não há palavra que lhe seja indiferente. A avaliação não deve
ser confundida com a expressão de emoções, que é meramente uma
entonação opcional da avaliação social. A avaliação social forma o verdadeiro
conteúdo do significado da palavra, isto é, a definição concreta que a palavra dá
ao objeto. A notória forma interna da palavra está no trabalho da maioria
dos apologistas de forma distorcida e cientificamente improdutiva sem a
avaliação inerente da palavra. A avaliação social determina todas as
conexões concretas da palavra, tanto no limite do enunciado quanto nos
limites da interação de diversos enunciados. Enquanto a linguística não
tratar da enunciação completa como um ato social, ou a interação das
enunciações como um evento social, não estará apta a trabalhar com a
avaliação social. No estudo das formas abstratas da língua, o linguista
perde de vista as avaliações sociais, as formas do enunciado como uma
execução discursiva concreta, pois os significados são determinados
precisamente pelo sistema de avaliações sociais dominante numa língua.
Estabelecer o significado dentro do horizonte [krugozor] da linguagem,
estatuindo nela um sistema de significação, pressupõe que primeiro se
estabeleça o horizonte social axiológico de um dado grupo de falantes. A
teoria da avaliação social na palavra lança luzes sobre a história das
mudanças nos significados [znacheniia] das palavras na linguagem,
criando pela primeira vez uma base genuinamente científica para o
estudo destas mudanças.
O exposto acima define o esboço básico das fundamentações de um
método sociológico em linguística. Um ensaio na aplicação concreta de
minha concepção geral metodológica para o tratamento de questões
sintáticas especializadas pode ser encontrado no meu trabalho
“Problemas de transmissão do discurso alheio” (um ensaio em pesquisa
sociolinguística) que deve aparecer na coleção Contra o Idealismo em
Linguística (ILIaZV – Giz, 1928)3.
3 [N.T.] O tema é tratado na terceira parte de Marxismo e filosofia da linguagem, na edição
brasileira, pp. 139 e seguintes. Ver também o livro Palavra própria e palavra outra na
sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.
267
268
APÊNDICE I
O problema da transmissão do discurso alheio
Um ensaio em pesquisa sociolinguística4
Introdução
Cap. I – Exposição do problema
1) Definição de “discurso alheio”
2) O problema da recepção ativa do discurso alheio em conexão
com o problema do diálogo
3) A dinâmica das relações entre contexto autoral e discurso
alheio
4) O ‘estilo linear’ de transmissão do discurso alheio (a primeira
orientação da dinâmica)
5) O ‘estilo pictórico’ da transmissão do discurso alheio (a
segunda direção da dinâmica)
Cap. II – Discurso indireto, discurso direto e suas modificações em russo
1) Padrões fixos e modificações; gramática e estilística
2) O caráter geral da transmissão do discurso alheio em russo
3) Os padrões fixos de discurso citado
4) As modificações objetuais‐analíticas do discurso indireto
5) As modificações verbo‐analíticas do discurso indireto
6) A modificação impressionística do discurso indireto
7) Os padrões fixos do discurso direto
8) O discurso direto preparado
9) O discurso direto reificado
10) O discurso direto antecipado, disperso e ocultado
11) O fenômeno da interferência discursiva
12) Questões retóricas e exclamações
13) Discurso direto substituído
4 [N.T.] Este sumário é um manuscrito do artigo a que Volochínov faz referência no
último parágrafo do texto Algumas ideias‐guia para a obra Marxismos e Filosofia da
Linguagem, aqui publicado. O artigo não chegou a ser publicado, mas deve ter servido
de base para a terceira parte da obra citada.
269
14) Exemplo de um discurso indireto livre em russo
Cap. III – Discurso indireto livre em francês, alemão e russo
1) Discurso indireto livre em francês
2) A concepção de Tobler (discurso indireto livre como
‘aigentümliche Mischung directer und indirecter Rede)
3) A concepção de Th. Kalepky (o discurso indireto livre como
‘verschleierte Rede)
4) A concepção de Bally (discurso indireto livre como ‘estilo
indireto livre’)
5) Crítica à hipótese do objetivismo abstrato de Bally
6) Bally e Vossler
7) Discurso indireto livre em alemão (exemplos)
8) A concepção de Eugene Lerch (discurso indireto livre como
‘Rede als’ [parêntesis não fechado, sentença incompleta]
9) Concepção de Lorck (discurso indireto livre com ‘Erlebte
Rede’)
10) Ideia de Lorck sobre o papel da fantasia na linguagem
11) A concepção de Gertrand Lerch (discurso indireto livre e
empatia)
12) ‘Discurso alheio’ no francês antigo (como apresentado por G.
Lerch)
13) ‘Discurso alheio’ no francês da Idade Média e do
Renascimento (como apresentado por G. L.)
14) Discurso indireto livre em La Fontaine e em La Bruyère (como
apresentado por G.L.)
15) Discurso indireto livre em Flaubert (como apresentado por
G.L.)
16) O aparecimento do discurso indireto livre em alemão (como
apresentado por Eug. Lerch)
17) Críticas às hipóteses do subjetivismo de Vossler
18) Discurso indireto livre em russo
19) A transmissão da interferência discursiva quando lida em voz
alta (o problema da performance)
20) O lugar sistemático de nosso estudo na ciência das ideologias
270
APÊNDICE II
Marxismo e Filosofia da Linguagem
Parte I
A importância do problema da filosofia da linguagem para o marxismo
Capítulo I
1. A palavra como um fenômeno ideológico par excellence. 2. A palavra
como um esquema e como um ingrediente de toda formação ideológica.
3. A ciência das ideologias e a ciência da linguagem.
Capítulo II
1. Problemas da relação da base com as superestruturas ideológicas. 2.
A refração do ser na palavra. 3. A objetificação material na palavra da
‘psicologia social’. 4. A história da cultura e a história da linguagem.
Capítulo III
1. A psicologia objetiva e a ‘reação verbal’. 2. A palavra como meio
objetivo da consciência. 3. A unidade da experiência externa e interna. 4.
A personalidade interna como ideologema. 5. A teoria do enunciado
como revelação interna e externa da consciência‐psíque
Capítulo IV
1. Filosofia da linguagem e problemas de poética. 2. O método formal e
seu peso.
Capítulo V
1. Os objetivos polêmicos do marxismo. 2. A primazia da palavra no
pensamento filosófico burguês contemporâneo. 3. Um breve esquema da
filosofia da palavra no Ocidente e na Rússia.
Parte II
Capítulo I
1. Filosofia da linguagem e linguística. 2. Formas da linguagem e
formas da enunciação. 3. Sociologia da linguagem.
Capítulo II
1. Interação discursiva. 2. Problemas do diálogo. 3. Diálogo como
unidade real da linguagem‐como‐discurso.
271
Capítulo III
1. A estrutura sócio‐política da sociedade e as formas da interação
discursiva. 2. Gêneros discursivos (tipos de execução discursiva) no
cotidiano e na criação ideológica.
Capítulo IV
1. Ideia de funções da linguagem. 2. Os fundamentos comunicativos da
linguagem. 3. ‘Expressão” como momento da comunicação
[kommunikatsiia]. 4. ‘As mudanças do pensamento’ na linguagem como
um momento da comunicação. 5. Comunicação e interação. 6. As
mudanças na linguagem e as mudanças na interação.
Capítulo V
1. O sistema de avaliações sociais na linguagem. 2. Entonação
expressiva. 3. Sentido e avaliação. 4. Semântica e axiologia.
Capítulo VI
1. Linguística e poética. 2. Gramática e estilística. 3. Gramática e lógica.
Capítulo VII
1. A história da cultura e a história da linguagem. 2. A exclusão dos
fatores psico‐subjetivos na história da linguagem. 3. A importância dos
fatores fisiológicos. 4. Premissas sócio‐econômicas da história da
linguagem.
Capítulo VIII
1. Os fundamentos do método sociológico em linguística (resumindo)
PARTE III
Um ensaio de aplicação do método sociológico para o problema da
enunciação na história da linguagem
Capítulo I
1. O reflexo das condições do intercâmbio discursivo na estrutura da
linguagem e as formas do enunciado (performance discursiva). 2. A
descoberta e tomada de consciência das diferentes formas da palavra
[slovo] de acordo com as mudanças das condições da interação. A
dialética da palavra.
Capítulo II
1. O enunciado e o discurso alheio [chuzhaia rech’]. 2. O reflexo da
personalidade do falante na linguagem. 3. Esquema histórico das formas
272
de transmissão do discurso alheio como determinados pela mudança das
condições da interação discursiva.
Capítulo III
1. A vida do enunciado nas condições contemporâneas da interação
discursiva. 2. Os tipos dominantes de interação ideológica na cultura
contemporânea. 3. A redução na troca temática da palavra na literatura e
na vida. 4. Reavaliação da ‘palavra pura’.
Capítulo IV
1. A predominância dos ‘gêneros mudos’ e da ‘palavra muda’ (a
palavra para ser lida) na interação ideológica. 2. O estranhamento da
palavra ideológica de seu espaço e tempo reais. 3. O estranhamento da
palavra pelo falante. 4. Os destinos da palavra retórica. 5. Conclusão.
273