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Tom G.

Palmer

O FIM DO ESTADO
ASSISTENCIALISTA
Introdução

Hoje, os jovens estão sendo privados de seus direitos, de sua liberdade, de sua dignidade e de seu
futuro. Os culpados? A minha geração e as de nossos antepassados. Nós, ou criamos o Leviatã (por meio da
mutação radioativa de nossas demandas sociais) ou fomos negligentes quanto aos tentáculos que lhe
permitiram crescer (roubo, degradação, manipulação e controle social). Atualmente, o Leviatã é conhecido
como Estado de bem-estar.
O Estado de bem-estar é responsável por duas crises atuais: i) a crise financeira que reduziu, anulou
ou mesmo tornou negativo o crescimento das economias ao redor do mundo, e ii) a crise da dívida que afeta
a Europa, os Estados Unidos e outros países. Além de colocar o fardo da dívida nas costas dos vulneráveis –
crianças e jovens – o Estado de bem-estar fez promessas que não podem ser cumpridas. A crise das obrigações
não financiáveis dos governos está chegando, e será severa.
Os ensaios aqui publicados não pretendem ser a última palavra com respeito ao passado, presente
e futuro do Estado de bem-estar; justamente o contrário: são apresentados na esperança de que venham a
estimular a reflexão e a investigação sobre o seu papel na vida em sociedade. Alguns deles são apresentados
em um estilo mais acadêmico, enquanto outros, mais jornalístico; eles são inspirados em diversas disciplinas
intelectuais. Espera-se que, na prática, ofereçam algo de valor para os leitores.
À medida que o estado de bem-estar começa a quebrar, implodir ou recuar em escopo, vale a pena
questionar o porquê de tal desenrolar dos acontecimentos. Qual o papel que o Estado de bem-estar teve e
tem nas grandes crises internacionais? Qual é a sua origem, como ele funciona, e o que ele substituiu? Por
fim, o que se seguirá ao insustentável sistema atual? Esse pequeno livro tem como objetivo ajudar os leitores
a interpretar essas questões e muitas outras.
Algumas pessoas consideram o Estado de bem-estar como sacrossanto, acima de qualquer suspeita,
e inerentemente bom. Intenções, e somente intenções, importam para elas. De fato, intenções são
importantes para avaliar o comportamento humano; todavia, ao avaliar instituições, também deveríamos
focar na evidência e, assim, investigar os incentivos que levaram a resultados particulares. Pessoas que se
detêm somente em intenções ignoram evidências e perguntas difíceis, optando por esta linha dedutiva: se
uma pessoa questiona o Estado de bem-estar, é porque ela tem más intenções, isto é, é uma pessoa má; não
devemos ouvir pessoas más, pois elas tendem somente a enganar; a melhor coisa a fazer, portanto, é fechar
os ouvidos para não ser enganado.
Mas nem todas as mentes estão fechadas. Pessoas com mentes abertas acreditam que deveríamos
investigar i) se os incentivos estabelecidos pelo Estado de bem-estar tendem a instigar a instabilidade social,
e a promover um sistema de pilhagem recíproca ao invés de solidariedade mútua, ii) se os sistemas do Estado
de bem-estar são insustentáveis, iii) se os políticos têm respondido ao incentivo de prometer – e os cidadãos,
de exigir – muito mais do que pode ser entregue, iv) se, em vez de ser um complemento do liberalismo
democrático, o Estado de bem-estar nasceu como uma forma antidemocrática de manipulação e tende a
miná-lo, às vezes súbita, e outras vezes, espetacularmente, e v) se o que o Estado de bem-estar destruiu foi,
na verdade, mais humano, mais efetivo, e mais sustentável do que ele colocou em seu lugar. O Estado de
bem-estar deveria ser avaliado não por meio de respostas emocionais e teorias de conspiração, mas sim à luz
de disciplinas como história, economia, sociologia, ciência política e matemática. Esse pequeno livro destina-
se àqueles que preferem fazer as perguntas difíceis e buscar as respostas com a mente aberta. É hora de
refletir sobre o que o Estado de bem-estar trouxe, se ele é sustentável, e o que deveria vir depois dele.

Tom G. Palmer
Jerusalém
Seção I

Pilhagem recíproca e promessas insustentáveis


A tragédia do Estado de bem-estar

Por Tom G. Palmer

Muitas reflexões sobre o Estado de bem-estar focam exclusivamente nas intenções daqueles que o
apoiam, ou oferecem meras descrições dos programas atuais de transferência de renda. Esse ensaio se baseia
na teoria econômica dos recursos comuns para examinar o Estado de bem-estar como um sistema dinâmico
e em expansão, uma tragédia dos comuns que criou incentivos para seu próprio esgotamento.
O Estado de bem-estar tem algo em comum com a pesca. Se ninguém é proprietário ou responsável
pelos peixes de um lago, e você se torna dono de tudo que pescar, a tendência é que todos tentem pescar o
maior número de peixes. O raciocínio é simples: “se eu não pescar, alguém pescará”. Mesmo que eu saiba
que pescar muitos peixes hoje pode gerar escassez de peixes no futuro, se vocês puderem pescar o que eu
não pescar, nenhum de nós terá incentivo a limitar a pesca, e a população de peixes não terá como se
reconstituir 1. Os peixes são capturados mais rapidamente do que podem se reproduzir, nada sobra no lago e,
no final, todos acabam em pior situação.
Ambientalistas, economistas e cientistas políticos chamam tal processo de tragédia dos comuns. É
um problema sério e que está na origem de muitas das crises ambientais do mundo atual: do esgotamento
do estoque de peixes à poluição do ar e da água, entre outros problemas. Mas ela não se resume aos
problemas ambientais. O Estado de bem-estar também funciona como um comum, e a tragédia está tomando
forma enquanto você lê esse ensaio. No Estado de bem-estar moderno, todas as pessoas têm um incentivo a
agir como os pescadores irresponsáveis que lutam pelo último pescado do lago: cada pessoa busca obter o
máximo que puder de seus vizinhos; mas, ao mesmo tempo, seus vizinhos estão tentando obter o máximo
que puderem dela. O Estado de bem-estar institucionaliza o que o economista francês Frédéric Bastiat
chamou de “pilhagem recíproca 2”.
Já que podemos saquear uns aos outros, o raciocínio é o seguinte: “se eu não obtiver aquele subsídio
governamental, alguém o obterá”. Logo, cada pessoa tem incentivo a explorá-lo à exaustão. Elas justificam a
tomada de fundos governamentais afirmando que “estão somente recuperando o que pagaram em tributos”,
mesmo quando algumas delas estão recebendo muito mais do que já lhes foi tirado. O incentivo a tomar
fundos é universal. Essa tragédia tem uma dimensão ausente no caso dos recursos haliêuticos: ao saquearmos
uns aos outros, não usamos recursos somente para saquear nossos vizinhos, mas também para evitar sermos
saqueados por eles - o que nos coloca, de fato, em pior situação. Não somente somos saqueados, mas sim
saqueados acima de níveis sustentáveis. O resultado é o esgotamento. E esse é o caminho trilhado,
atualmente, pelo Estado de bem-estar:

• Os governos prometem benefícios aos eleitores, tudo à custa de todos, e o sistema torna-
se insustentável, afinal, nenhum dos beneficiários quer abrir mão de seus benefícios. Poderíamos fazê-lo em
troca de impostos menores, porém, nem temos essa opção. Os governos podem tomar dinheiro emprestado
e adiar o aumento de tributos por algum tempo, isto é, até a próxima eleição, quando farão mais promessas,
que serão financiadas com mais empréstimos.
• O beneficiário exige um aumento do seu benefício, sob o argumento de ser apenas o retorno
justo após anos de contribuições previdenciárias. Esses benefícios são financiados através do chamado
sistema de repartição, onde as contribuições pagas pelos trabalhadores atuais são destinadas ao pagamento
dos beneficiários atuais. Qualquer superávit nessa relação entre fontes de custeio e pagamento de benefícios
é simplesmente “investido” em títulos da dívida pública governamental, isto é, em promessas de que esse
dinheiro será retornado com a arrecadação de tributos futuros. É isso que a Previdência Social é: uma simples

1 “Se a terra não tem dono, embora o formalismo jurídico possa qualificá-la de propriedade pública, as pessoas utilizam-na sem se

importar com os inconvenientes de uma exploração predatória. Quem tiver condições de usufruir de suas vantagens – a madeira e
a caça dos bosques, os peixes das extensões aquáticas e os depósitos minerais do subsolo – não se preocupará com os efeitos
posteriores decorrentes do modo de exploração. Para essas pessoas, a erosão do solo, o esgotamento dos recursos exauríveis e
qualquer outra redução da possibilidade de utilização futura são custos externos, não considerados nos cálculos pessoais de receita
e despesa. Cortarão as árvores sem qualquer consideração para com as que ainda estão verdes ou para com o reflorestamento. Ao
caçar e pescar não hesitarão em empregar métodos contrários à preservação das reservas de caça e pesca”. MISES, Ludwig Von.
Ação Humana. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 748. Disponível em:
http://www.mises.org.br/files/literature/A%C3%A7%C3%A3o%20Humana%20-%20WEB.pdf
2
BASTIAT, Frédéric. Frederic Bastiat. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 85. Disponível em:
http://mises.org.br/files/literature/Fr%C3%A9d%C3%A9ric%20Bastiat.pdf
promessa de pagamento, despachado para a última gaveta de um arquivo governamental qualquer 3. De fato,
não existe um “fundo de capitalização” a ser usado no pagamento de benefícios futuros. É um golpe de
proporções homéricas. Os jovens de hoje estão sendo forçados a pagar pela aposentadoria de seus avós, de
seus pais e – se tiver sobrado algo – terão que financiar a sua própria aposentadoria. Os esquemas de
benefícios da previdência pública são indistinguíveis, em sua estrutura, dos clássicos “esquemas de pirâmide”,
também conhecidos como “esquemas Ponzi” ou “correntes”, sempre exigindo que a base de pessoas
(contribuintes) ingressantes no sistema aumente indefinidamente; quando a base para de crescer, a pirâmide
colapsa. Os governos podem adiar o inevitável ao imprimir moeda ou tomar empréstimos, no entanto, isso
não passa de um adiamento, e a cada adiamento, a situação piora. Os sinais do colapso do sistema já podem
ser vistos agora, ao seu redor, em todo o lugar.
• O agricultor demanda subsídio para suas plantações, que vem à custa do imposto pago pelos
metalúrgicos; as empresas automobilísticas e os metalúrgicos que delas fazem parte demandam i) “proteção”
contra importações de automóveis mais baratos, assim como ii) resgates financeiros para empresas do setor
em processo de falência. As restrições comerciais aumentam os preços dos veículos para os fazendeiros, e os
resgates financeiros às empresas automobilísticas aumentam os tributos pagos pelos fazendeiros. Os
metalúrgicos são saqueados em benefício dos fazendeiros, e os fazendeiros são saqueados em benefício dos
metalúrgicos. O ciclo de pilhagem recíproca segue indefinidamente, com a vasta maioria dos “vencedores”
sendo perdedores após o final do ciclo. (Alguns, é claro, que se especializam na manipulação do sistema
político - prática que Ayn Rand chamou “aristocracia do pistolão 4 - ganham muito mais que perdem. Empresas
politicamente conectadas de Wall Street como a Goldman Sachs, grandes conglomerados agropecuários como
a Archer Daniels Midland, entre outras, têm lucrado descaradamente por meio dela.
• O sistema tributário geral nos força a aceitar o sistema de seguro saúde (nos Estados Unidos,
o pagamento de seguro privado é atrelado aos salários, enquanto tributos sobre salários são usados para
financiar o Medicare; na Europa, tais seguros são atrelados a tributos e, em alguns casos, a serviços de seguro
privados); esse “financiamento por terceiros” afeta as escolhas disponíveis ao indivíduo. Como tal ‘seguro’
pré-pago normalmente cobre tanto tratamentos de rotina, como eventos catastróficos (lesões por acidentes
de carro, tratamento de câncer, ou doenças comuns), temos que pedir permissão ao segurador, seja público
ou privado, antes de termos acesso ao tratamento. Na maior parte dos casos, o “seguro saúde” não é
realmente um “seguro”, embora assim seja chamado; o tratamento médico pré-pago cria i) incentivos à
sobreutilização entre os consumidores, e ii) incentivos à monitoração de elegibilidade dos beneficiários por
parte de companhias de seguros e governos. Como consumidores, perdemos nosso poder de escolha (o qual
temos com respeito a outros bens importantes), sendo forçados a agir como suplicantes: o tratamento médico
é, então, racionado por administradores, em vez de adquirido por consumidores.
Benefícios a grupos particulares são normalmente concentrados, enquanto os custos desses são
amplamente difusos entre um grande número de pagadores de impostos e consumidores. Tal dinâmica
incentiva os beneficiários a querer mais, enquanto desestimula os saqueados a defender seus interesses.
Obter um benefício à custa de outrem é ótimo, porém, quais são os custos disso para a sociedade? Quando
todo mundo age dessa forma, todavia, os custos tornam-se enormes. Os pobres são os que mais sofrem, pois,
sob um aparente aumento de benefícios, sua própria pobreza é perpetuada pelo Estado de bem-estar, e
aprofundada pelas transferências ocultas dos sem poder para os poderosos por meio do protecionismo,
licenças, e outras restrições sobre a liberdade no mercado de trabalho, e de todos os outros privilégios e
negócios escusos que os poderosos, os educados, os articulados e os fortes criam para si à custa dos fracos,
dos deseducados, dos sem voz e dos desamparados.
Imigrantes são sistematicamente demonizados por, supostamente, “estarem aqui para tomar
nossas prestações sociais”. Ao invés de bem acolherem pessoas que vem para gerar riqueza, os beneficiários
do Estado de bem-estar agem para proteger “suas prestações sociais” ao excluírem de seu convívio imigrantes
potenciais, demonizando-os como sanguessugas e saqueadores 5. Enquanto isso, as elites políticas afirmam
publicamente que estão ajudando os pobres do exterior ao usar o dinheiro de tributos para financiar a
parasítica indústria da ajuda internacional, repassando o superávit agrícola que tem sido gerado por políticas

3 USA Today. Social Security trust fund sits in West Virginia file cabinet. 28 fev. 2005. Disponível em: www.usatoday.com/news/

washington/2005-02-28-trust-fund_x.htm
4
RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. São Paulo: Arqueiro, 2012. Vol. II, cap. II “A Aristocracia do Pistolão”.
5 Muitos das alegações sobre os imigrantes são factualmente incorretas. Nos Estados Unidos, pelo menos, os imigrantes

normalmente pagam mais ao Estado de bem-estar em tributos do que recebem em benefícios e, no passado, contribuíram
enormemente para o dinamismo econômico e à prosperidade das sociedades para as quais emigraram ao criar novos negócios. As
questões são tratadas no cap. 3 do livro – RILEY, Jason L. Let Them In: The Case for Open Borders. New York: Gotham Books, 2008.
p. 91–125.
assistencialistas (para subsidiar agricultores ao garantir preços mínimos pelos seus produtos) a governos
autocráticos: em resumo, a internacionalização do Estado de bem-estar. O processo como um todo tem sido
um desastre, pois i) prejudica a responsabilização democrática em nações em desenvolvimento, já que os
líderes políticos sabem que são as expectativas dos mestres da ajuda internacional que devem ser atendidas,
e não aquelas dos cidadãos locais, pagadores de impostos, ii) alimenta o despotismo militar e a guerra civil e,
iii) leva à destruição de instituições produtivas autóctones 6.
Enquanto se perpetua uma situação de conflito entre cidadãos, e de cidadão contra imigrante, em
um vasto sistema de pilhagem recíproca (e defesa contra pilhagem), as burocracias estatais estendem seu
controle e tanto criam como alimentam os círculos eleitorais que as sustentam.
Mas a pilhagem recíproca não é única característica saliente do moderno Estado de bem-estar. Ele
gerou uma crise após a outra, sendo elas consequências não intencionais de políticas equivocadas adotadas
por políticos que não têm que assumir as consequências de seus atos. Duas delas estão afligindo o mundo
nesse exato momento.

A crise financeira e o Estado de bem-estar

A crise financeira emergiu na intersecção entre motivações humanas e incentivos ruins. Esses
incentivos foram criados por políticas insensatas, as quais têm origem na filosofia de que é missão do governo
controlar nosso comportamento, tirar a Pedro para dar a Paulo, e usurpar a responsabilidade de nossas vidas 7.
As sementes da crise atual foram plantadas em 1994 quando o governo dos Estados Unidos anunciou um
plano grandioso para aumentar o número de proprietários de imóveis nos Estados Unidos de 64% para 70%
da população, por meio de um Plano Nacional da Moradia, uma parceria entre o governo federal e bancos,
construtoras, financiadores, corretores de imóveis e outros com algum tipo de interesse especial.
Como Gretchen Morgenson e Joshua Rosner documentam em seu livro Reckless Endangerment:
How Outsized Ambition, Greed, and Corruption Led to Economic Armageddon, “a parceria alcançaria seu
objetivo ao ‘tornar mais acessível a aquisição de imóveis, expandir o financiamento criativo, simplificar o
processo burocrático, reduzir os custos de transação, modificar métodos convencionais de design, construir
casas mais baratas, entre outras coisas 8’”. Essa incursão do Estado de bem-estar no setor imobiliário parecia
razoável para muitos: por que as pessoas deveriam ser impedidas de ter sua casa própria por motivos tão
banais como não terem poupado para dar a entrada, não terem histórico positivo de crédito, ou não terem
empregos?
Por que não tornar a aquisição de imóveis “mais acessível” por meio de “financiamento criativo”?
Agências governamentais como a Federal Housing Administration (tradução livre, Administração Federal de
Habitação), e “empresas apadrinhadas pelo governo” como a Fannie Mae, foram orientadas a transformar
inquilinos em proprietários - baixando o valor de entrada, reduzindo drasticamente os padrões de empréstimo
entre os bancos, aumentando a quantidade de dinheiro destinada ao mercado imobiliário através da compra
e “securitização” de mais hipotecas, além de um conjunto de outras medidas. Foi um esforço bipartidário de
engenharia social. Sob a administração Bush, o FHA ofereceu garantias de empréstimos em hipotecas com 0%
de entrada. Como Alphonso Jackson, secretário-adjunto do Department of Housing and Urban Development
(tradução livre, Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano) proclamou em 2004, “oferecer
hipotecas com o apoio do FHA, sem nenhuma entrada, permitirá a realização do sonho da casa própria para
centenas de milhares de famílias americanas, em particular, as que fazem parte das minorias”. Ele adicionou:
”nós não antecipamos nenhum custo aos pagadores de impostos 9”.
O governo americano deliberada e sistematicamente enfraqueceu os padrões bancários tradicionais,
e encorajou – na verdade, exigiu – empréstimos cada vez mais arriscados. Riscos que não se concretizassem
gerariam lucros privados, enquanto que riscos que se concretizassem gerariam perdas socializadas, pois “um

6 A abrangência internacional do Estado de bem-estar também teve consequências hediondas, que são bem-documentadas em

diversos estudos, incluindo - MOYO, Dambisa. Dead Aid: Why Aid Is Not Working and How There Is Another Way for Africa. London:
Allen Lane, 2009; HANCOCK, Graham. Lords of Poverty: The Power, Prestige, and Corruption of the International Aid Business. New
York: Atlantic Monthly Press, 1989; e MAREN, Michael. The Road to Hell: The Devastating Effects of Foreign Aid and International
Charity. New York: The Free Press, 1997, entre obras importantes. Um estudo pioneiro dos efeitos da ajuda externa pode ser
encontrado em BAUER, P. T. Dissent on Development. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1976.
7
Veja o debate sobre a responsabilidade e o poder estatais em SCHMIDTZ, David e GOODIN, Robert E. Social Welfare and Individual
Responsibility: For and Against. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
8 MORGENSON, Gretchen e ROSNER, Joshua. Reckless Endangerment: How Outsized Ambition, Greed, and Corruption Led to

Economic Armageddon. New York: Times Books, Henry Holt & Co., 2011. p. 2–3.
9
SICHELMAN, Lew. Bush to Offer Zero Down FHA Loan. Realty Times. 20 jan. 2004. Disponível em: http://realtytimes.com/rt-
pages/20040120_zerodown.htm
banqueiro que deparasse com esses novos requerimentos poderia vender quaisquer empréstimos de risco
para Freddie e Fannie, responsáveis por financiar as hipotecas residenciais de milhões de americanos. 10” Os
lucros privados e as perdas socializadas caracterizaram a intersecção entre o estatismo de bem-estar e o
capitalismo de compadrio.
Os preços das casas subiam à medida que mais dinheiro era injetado no mercado hipotecário. Era
uma festa: todo mundo estava se sentindo mais rico, afinal, o preço de sua casa estava disparando. As pessoas
tomavam “hipotecas com taxas de juro variável” para comprar casas maiores do que, de outra forma, seriam
capazes de comprar, pois esperavam vendê-las antes que as taxas de juro subissem novamente. O crédito era
fácil e os americanos tomaram segundas hipotecas para financiar férias e adquirir barcos. Mais e mais casas
foram construídas com a perspectiva de preços mais altos. O resultado foi uma bolha imobiliária de enorme
magnitude. As pessoas compravam imóveis apenas para vendê-los logo depois para novos compradores.
Enquanto isso, os reguladores financeiros dos governos ao redor do mundo classificaram empréstimos como
de baixo risco quando eram, na verdade, de alto risco – entre eles, a dívida governamental (títulos) e títulos
lastreados em hipotecas 11. Bancos alemães compraram títulos da dívida grega, enquanto bancos nos Estados
Unidos e ao redor do mundo adquiriram títulos lastreados em hipotecas que, supostamente, estavam cobertos
pelo governo americano.
As políticas intervencionistas do governo dos Estados Unidos para tornar a aquisição da casa própria
mais acessível - expandir o “financiamento criativo” e destruir as práticas padrão do setor bancário – se uniram
à arrogância dos reguladores do sistema financeiro global quanto ao seu real conhecimento da magnitude dos
riscos – enquanto os participantes do mercado, cujo capital estava em jogo, de nada sabiam. O resultado foi
que o sistema financeiro global foi contaminado por empréstimos de risco, títulos de dívida sem lastro e ativos
tóxicos, com resultados desastrosos. O calote das hipotecas subprime cresceu ao ritmo do crescimento das
taxas de juros - e esses títulos lastreados em hipotecas de baixo risco, que as instituições tinham sido
encorajadas a comprar, acabaram, por fim, não sendo de tão baixo risco. Poupanças foram perdidas,
proprietários de casas se viram incapazes de pagar as hipotecas, instituições financeiras ruíram, e a economia
afundou em recessão. Como culpados, apontamos as numerosas distorções de incentivos causadas por todo
o sistema de intervenção nos mercados imobiliário e financeiro; não obstante, sem a política do Estado de
bem-estar americano de “tornar a moradia mais acessível” via “financiamento criativo”, a crise financeira não
teria ocorrido. A crise financeira global foi o resultado de uma má política após a outra, tendo como principal
agente o Estado de bem-estar 12.

A crise da dívida e o Estado de bem-estar

Enquanto os governos dos Estados Unidos e de alguns países europeus estavam furiosamente
inflando uma gigante bolha imobiliária, a explosão das despesas em programas assistencialistas (pensões e
cuidados médicos, por exemplo) havia mergulhado os governos do mundo em uma crise de dívida pública.
Enquanto muita atenção tem sido dada ao grande aumento da dívida governamental – de fato, estarrecedor
– pouco se reflete que esses números são pequenos quando comparados aos montantes acumulados de
obrigações não financiáveis, isto é, promessas feitas aos cidadãos (que nelas confiam), para as quais não existe
receita correspondente. Se uma firma privada enganasse o público e seus acionistas sobre a magnitude de
suas obrigações - como os governos sistematicamente o fazem – os seus representantes legais seriam presos
por fraude. Os governos eximem-se de quaisquer práticas contábeis e, deliberada e sistematicamente, iludem
o público sobre as obrigações que estão colocando nas costas das gerações futuras. Os governos acham fácil
comprar o presente e hipotecar o futuro. Mas o futuro está chegando muito rápido.
Em 2006, os economistas Jagadeesh Gokhale e Kent Smetters calcularam (de forma conservadora)
que o desequilíbrio total do orçamento federal do governo dos Estados Unidos em 2012 seria de US$ 80

10 MORGENSON, Gretchen e ROSNER, Joshua. Reckless Endangerment: How Outsized Ambition, Greed, and Corruption Led to

Economic Armageddon. p. 38
11 Qualquer hipoteca que uma empresa apadrinhada pelo governo securitiza era, sob as regras de Basel [as regulamentações globais

adotadas pelos governos] lucrativa para os bancos emissores americanos – e lucrativa para eles, novamente, ao serem compradas
em forma de títulos lastreados em hipotecas (as famosas, mortgage-backed securities). FRIEDMAN, Jeffrey. A Crisis of Politics, Not
Economics: Complexity, Ignorance, and Policy Failure. Critical Review, Vol. 21, Nos. 2–3. 2009. p. 127–183, p. 144.
12
Para mais detalhes sobre a combinação das políticas do FED para reduzir as taxas de juros, a “securitização” dos títulos lastreados
em hipotecas, e as regulamentações financeiras internacionais que classificaram a dívida governamental e as mortgage-backed
securities como “de baixo risco”, veja NORBERG, Joan. Financial Fiasco: How America’s Infatuation with Home Ownership and Easy
Money Created the Economic Crisis. Washington, DC: Cato Institute, 2009. Veja também Critical Review, “Special Issue: Causes of
the Crisis,” edit por Jeffrey Friedman, Vol. 21, Nos., 2–3 (2009), e FRIEDMAN, Jeffrey e KRAUS, Wladimir. Engineering the Financial
Crisis: Systemic Risk and the Failure of Regulation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2011.
trilhões de dólares. O desequilíbrio orçamentário é definido como “a diferença entre o valor presente da
despesa projetada do governo sob a lei atual em todas as suas categorias - benefícios (direitos adquiridos),
defesa, estradas (infraestrutura) e todo o resto – e a receita projetada de tributos em todas as contas de
receita 13. Gokhale está atualizando os dados, e a previsão é de que o desequilíbrio seja maior que o previsto
em 2006. Como Gokhale escreveu “some a ele o aumento provável dos custos relativos ao sistema de saúde
após a aprovação de novas leis para o setor, e esse número é provavelmente muito otimista, contudo, não
saberemos até que meu projeto esteja quase concluído. Para a Europa, estimo um desequilíbrio total de EUR
53,1 trilhões de euros a partir de 2010. Isto é, 434% do PIB anual combinado de 27 países europeus, no valor
de EUR 12,2 trilhões de euros. Essa também é uma estimativa otimista, visto que as projeções foram feitas
somente até 2050 (ao contrário das projeções dos Estados Unidos, que se estendem ao infinito 14)”.
Isso significa que aquelas promessas não podem e não serão cumpridas: para que mesmo uma
fração das promessas atuais fosse cumprida, os tributos teriam que ser elevados a níveis astronômicos. É
muito mais provável que os governos não somente deem calote em suas dívidas publicamente reconhecidas
(títulos públicos em poder de credores), mas também renunciem às promessas feitas aos cidadãos sob a forma
de pensões, saúde pública e outros benefícios. Por anos, mentiram sobre as condições reais das finanças; e
essas mentiras, hoje, ficam explícitas quando promessas são quebradas porque, simplesmente, não podem
ser cumpridas, como estamos vendo desdobrar-se perante nossos olhos na Grécia. Uma forma de os governos
renunciarem às suas promessas é pagando-as por meio de impressão de moeda, com mais e mais zeros
adicionados a cada nota, isto é, as moedas nas quais as promessas são redimidas são dramaticamente
desvalorizadas. (A inflação é especialmente danosa como forma de negociar a dívida, pois ela tanto distorce
o comportamento geral dos agentes do mercado, como recai desproporcionalmente sobre os pobres e os
incapazes de se proteger dela). Os estados de bem-estar que conhecemos podem estar desmoronando em
câmara lenta em alguns países, enquanto rapidamente em outros, mas o fato é que estão desmoronando; e,
como sempre, o peso cairá nas costas dos que não têm conexões políticas e sofisticação para evitar as
consequências.
De forma indignada, muitas pessoas respondem a tais fatos citando suas intenções, sem respeitar
as consequências. “Nosso objetivo era ajudar as pessoas; nossa intenção não era causar o colapso do sistema
financeiro global através de uma intervenção no mercado imobiliário, e tampouco quebrar nosso país!”,
dizem. Como o filósofo Daniel Shapiro pertinentemente notou “instituições não podem ser adequadamente
caracterizadas pelos seus objetivos 15”. “Os melhores objetivos do mundo, se combinados com maus
incentivos via instituições erradas, podem gerar consequências terríveis 16”. As intenções dos defensores do
Estado de bem-estar são irrelevantes para as consequências de suas políticas 17. A filosofia política, como
normalmente praticada, se resume a uma comparação dos pontos fortes e fracos de uma instituição perante
a outra. Francamente, isso não é muito útil na tarefa de criar instituições que funcionam, que são sustentáveis,
e que são justas. Para tal, necessitamos muito mais do que mera comparação de instituições: necessitamos,

13 GOKHLAE, Jagadeesh e SMETTERS, Gokhlae. Do the Markets Care About the $2.4 Trillion U.S. Deficit? Financial Analysts Journal.
vol. 63, No. 3. 2007.
14 Conversa particular com o autor em 26 mar. 2012.
15 SHAPIRO, Daniel. Is the Welfare State Justified? Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 5. O livro de Shapiro oferece uma

comparação justa dos argumentos feitos em defesa do estado de bem-estar, tendo como evidência o seu desempenho.
16 Um exemplo é a insistência do defensor do Estado de bem-estar, James P. Sterba, que a deliberada morte por inanição de cidadãos

produtivos é apropriada para induzi-los a produzir mais de forma que o Estado possa confiscar e redistribuir o resultado de seus
esforços produtivos. Sterba argumenta que o direito à assistência social é um “direito negativo” consistente com a liberdade de
todos e propõe, com base unicamente em sua intuição, ameaçar confiscar os “recursos não produtivos” das pessoas produtivas, a
saber, não somente o excedente sobre o que é necessário para sobreviverem, mas o alimento necessário para a sobrevivência física,
de forma a induzir os produtivos a produzirem mais para o Estado redistribuir. Esse professor de filosofia acredita que é consistente
com o respeito à liberdade das pessoas produtivas ameaçá-las com a inanição deliberada, pois “nosso produtor poderia responder
ao não fazer nada. O pobre [na prática, é claro, o Estado, supostamente agindo em nome do pobre] poderia então se apropriar dos
recursos não excedentes do produtor e, então, ao não produzir mais, o produtor simplesmente pereceria, porque não estaria
disposto a ser mais produtivo”. “Simplesmente pereceria” é o eufemismo de Sterba para o catabolismo, o edema, a falha dos órgãos
e outros sintomas da morte por inanição. STERBA, James P. Equality is compatible with and required by liberty. em NARVESON,
James e STERBA, James P. Are Liberty and Equality Compatible?: For and Against. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p.
23. Para descrições macabras de como a proposta de Sterba funcionaria na prática, veja SNYDER, Timothy. Bloodlands: Europe
Between Hitler and Stalin. New York: Basic Books, 2010 e DIKOTTER, Frank. Mao’s Great Famine: The History of China’s Most
Devastating Catastrophe, 1958–1962. New York: Walker Publishing Co., 2010. Propostas radicais baseadas puramente em intuições
sobre moralidade e justiça, não testadas contra qualquer conhecimento de economia, sociologia ou história geralmente levam ao
desastre e são, no mínimo, moralmente irresponsáveis.
17 Existe literatura abundante quanto às asserções morais com respeito ao Estado de bem-estar, principalmente começando com

intenções e terminando com intenções. Eu trato de parte daquela literatura em meu ensaio – PALMER, Tom G. Realizing Freedom:
Libertarian Theory, History, and Practice. Washington, DC: Cato Institute, 2009. p. 41–83.
sim, de história, de economia, de sociologia e de ciência politica, e não meramente de teoria moral divorciada
da prática.

O futuro está em perigo, mas não está perdido

Os estados de bem-estar atuais são diretamente responsáveis por duas grandes crises econômicas
que estão afligindo o mundo: i) a crise financeira global que tornou negativa a taxa de crescimento econômico
em muitos países e extinguiu trilhões de dólares do valor de ativos, e ii) a crise da dívida que tem sacudido a
Europa e ameaça derrubar alguns dos governos, das moedas e dos sistemas financeiros mais poderosos do
mundo. Mesmo as melhores intenções podem gerar consequências terríveis quando implementadas por meio
de instituições e incentivos perversos.
A história não se resume à tristeza e desolação, todavia. Nós podemos nos livrar do Estado de bem-
estar e o que lhe acompanha: dívida pública, burocracia e pilhagem recíproca. Não será fácil, e é necessária
muita coragem para se opor a interesses especiais e políticos calculistas. Contudo, isso pode e deve ser feito.
Os que se manifestam nas ruas contra “cortes orçamentários” (quase sempre meras variações de
contabilidade criativa) estão, na verdade, se manifestando contra a boa e velha matemática. A soma de mais
e mais números negativos não gerará um número positivo: a conta, simplesmente, não fecha. Nós precisamos
de protestos nas ruas em nome da razão, da responsabilidade fiscal, da redução do tamanho do Estado, da
liberdade para as pessoas decidirem seu próprio destino. Nós necessitamos fazer com que o poder do Estado
retroceda a ponto de ser limitado à proteção de nossos direitos, e não à tentativa de tomar conta de nós.
Precisamos de decisões claras de parte dos políticos. É chegada a hora de por um fim ao Estado de bem-estar.
Como o Estado de bem-estar acabou com o sonho italiano

Por Piercamillo Falasca

O jornalista e pesquisador Piercamillo Falasca nos conta a história de como políticas sensatas
lançaram a Itália como uma história de sucesso econômico nas décadas de 1950 e 1960. E como, em contraste,
políticas assistencialistas iniciadas quando a população era jovem, a economia estava crescendo, e o futuro
parecia distante, quebraram o país. Falasca é vice-presidente da associação liberal clássica Libertiamo.it e
pesquisador no think tank italiano Instituto Bruno Leoni.

“O crescimento da economia, da indústria e do padrão de vida nacionais nos anos do pós-guerra tem
sido verdadeiramente fenomenal. Uma nação outrora em ruínas, assolada por desemprego e inflação,
expandiu sua produção e seus ativos, estabilizou seus custos e sua moeda, criou novos empregos e
novas indústrias em um ritmo inigualável no mundo ocidental”. Presidente John F. Kennedy

Durante reuniões oficiais, palavras cordiais de enaltação são costumeiras. No entanto, o que foi dito
pelo presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy em 1963, durante um jantar dado em sua honra pelo
presidente da Itália, Antonio Segni, em Roma, foi a constatação de um fato. De 1946 a 1962, a economia
italiana cresceu a uma taxa anual média de 7,7%, um desempenho brilhante que continuou praticamente até
o fim da década de 1960 (o crescimento médio nessa década foi 5%). O chamado Miracolo Economico tornou
a Itália numa sociedade moderna e dinâmica, ostentando firmas capazes de competir globalmente em
qualquer setor – de máquinas de lavar e refrigeradores a componentes mecânicos de precisão, do setor
alimentício à indústria cinematográfica.
A década de 1956 a 1965 viu um crescimento notável na Alemanha Ocidental (70%), na França (58%)
e nos Estados Unidos (46%), todavia, todos ficaram à sombra do desempenho espetacular da Itália (102%).
Grandes firmas como a empresa automobilística Fiat; a fabricante de máquinas de escrever, impressoras e
computadores Olivetti; as companhias de energia Eni e Edison; entre outras, cooperaram com um grande
grupo de pequenas empresas, cuja gestão, em sua maioria, era familiar - seguindo a forte tradição da
sociedade italiana. Pelo menos 1/5 da população de 50 milhões mudou-se do pobre e árido sul para o rico e
industrializado norte, alterando seu estilo de vida, comprando carros e televisores, dominando a língua
italiana culta, matriculando suas crianças em escolas, poupando dinheiro para comprar casas, além de ajudar
parentes que ainda viviam no interior. Depois de 1960, o rápido aumento no padrão de vida em conjunto com
as oportunidades crescentes de negócios e emprego puseram fim à diáspora italiana que, durante quase um
século, havia levado cerca de 20 milhões de pessoas a deixar sua terra natal com destino a outros países da
Europa, ou mesmo às Américas.
Qual foi a fórmula mágica do crescimento econômico italiano? Muitos anos depois, um senador do
Democrazia Cristiana (“Democratas Cristãos”, um partido cristão de centro-direita), disse em uma entrevista:
“Nós entendemos e imediatamente percebemos que não poderíamos gerir a sociedade italiana. O país era
mais forte que a política, e muito mais talentoso. Não fazer nada era uma escolha melhor que muitas medidas
governamentais”. A quem Piero Bassetti se referia por “nós”?
Logo após o fim da II Guerra Mundial, um grupo de economistas e políticos de cunho liberal, pró-
mercado, assumiu posições-chave no governo, extinguiu a legislação fascista, e instituiu políticas
democráticas e reformas de livre mercado. A figura central desse grupo era o economista e jornalista
antifascista Luigi Einaudi, um dos liberais clássicos italianos mais proeminentes, que retornou à Itália e serviu
após a guerra como presidente do Banco Central, depois ministro das finanças e, finalmente, presidente da
república. Ele teve grande influência sobre as políticas econômicas implementadas pelo primeiro-ministro
Alcide de Gasperi (1945-1953) e, depois da morte de De Gasperi, por seu sucessor, Giuseppe Pella.
Embora algumas dessas figuras possam não ser reconhecidas fora da Itália, elas representaram uma
‘exceção’ extraordinária à cultura política europeia. Vinte anos depois do regime fascista de Mussolini e dos
horrores da guerra, aquele grupo de liberais clássicos representava a única esperança de a nação emergir das
profundezas de seu passado totalitário para a liberdade do capitalismo democrático. O contexto em que
operavam dificilmente poderia ser considerado fácil: a Itália era um país pobre que tinha sido devastado pelo
coletivismo fascista e pela guerra; a maioria da população estava desempregada e, para piorar, era analfabeta;
a infraestrutura era inexistente ou muito precária; um poderoso Partido Comunista ameaçava substituir o
coletivismo fascista pelo coletivismo comunista; e as estatais dominavam grande parte da economia.
A influência do pensamento de Luigi Einaudi foi de suma importância. Uma política monetária
cuidadosa segurou a inflação por, pelo menos, 20 anos (em 1959, o Financial Times celebrou a lira como a
moeda mais estável do mundo ocidental); acordos de livre comércio ajudaram a Itália a retornar ao mercado
internacional; e uma reforma fiscal (a Lei Vanoni, assim nomeada em honra ao ministro que a concebeu)
reduziu os impostos e simplificou o sistema tributário. Em uma época dominada pelas ideias keynesianas, o
gasto público da Itália permaneceu relativamente controlado: em 1960, o gasto público mal chegava ao nível
de 1937 (30% do PIB, com uma parcela significativa de investimentos em capital fixo), ao passo que, em outros
países europeus, ele havia crescido dramaticamente.
O famoso jurista Bruno Leoni foi um dos pensadores que advertiu sobre os perigos potenciais caso
as pessoas se esquecessem do que tinha gerado essa recente prosperidade. O aumento da prosperidade
parecia a ocasião perfeita para novos gastos e intervenções governamentais. Já na década de 1950, o governo
italiano criou a Cassa del Mezzogiorno (similar ao Tennessee Valley Authority de Roosevelt, embora localizada
no pobre sul da Itália). Na década de 1960, o governo italiano aprovou legislação visando a redistribuição de
riqueza, a expansão do controle governamental da economia (por exemplo, a nacionalização do fornecimento
de energia elétrica), e o estabelecimento de um Estado de bem-estar mais forte.
Em uma Itália relativamente próspera, movimentos redistribucionistas obtiveram amplo apoio
popular. Em 1962, durante negociações relativas ao contrato de trabalho dos metalúrgicos, os sindicatos
solicitaram jornada de trabalho mais curta, ampliação do período de férias, e mais poder para organizar
atividades sindicais nas fábricas. O Partito Socialista Italiano (Partido Socialista Italiano) uniu-se ao
Democrazia Cristiana na coalisão governante, formando o primeiro “governo de centro-esquerda”. Em 1963,
um programa de moradias públicas que se deu através da nacionalização de terras provocou uma forte
oposição de associações privadas (entre elas, a Igreja Católica), que convenceram a Democrazia Cristiana a
abandonar a ideia. No entanto, essas causas coletivistas dominariam o resto da década de 1960, e parte da
década de 1970.
Diversas decisões de política pública adotadas naquele período lançaram as bases para a crise atual
da Itália. A primeira foi o afrouxamento da disciplina fiscal: em 1966, o Tributal Constitucional decidiu
reinterpretar, arbitrariamente, os limites constitucionais que asseguravam o equilíbrio orçamentário; tal
estratagema permitiu ao Parlamento aprovar leis cujas despesas anuais passavam a ser cobertas pela emissão
de títulos do Tesouro, e não mais pela receita fiscal (tributação). A consequência? Um rombo cada vez maior
no orçamento público, ano após ano. Luigi Einaudi faleceu em 1961 e todos seus apelos por disciplina fiscal
foram rapidamente esquecidos. Ate o início da década de 1960, o déficit primário, que é o valor dos gastos da
administração pública direta menos o valor total da arrecadação tributária, excetuando-se o pagamento de
juros do principal, era praticamente zero; ele subiu rapidamente depois da decisão do Tribunal, e acelerou
depois de 1972, quando o gasto via déficit (deficit spending) tornou-se uma estratégia política sistemática. Em
1975, o déficit primário já tinha chegado a perigosos 7,8% do PIB.
A segunda foi a introdução de um generoso sistema de pensões em 1969 (a Lei Brodolini). O antigo
mecanismo baseado em contribuição compulsória foi substituído por um sistema redistributivo, isto é, os
aposentados passaram a receber pensões não determinadas pelo valor total da poupança compulsória
recolhida durante sua vida laboral, mas sim, meramente, por seus salários anteriores. Uma “pensão social”
foi estabelecida para todo cidadão, junto com regras de usufruto, permitindo aos trabalhadores se
aposentarem mais cedo. Além disso, uma abordagem complacente foi adotada na concessão de pensões por
invalidez no sul da Itália, que foi considerada um substituto para políticas pró-crescimento mais efetivas.
Poucos, todavia, prestaram atenção à questão da sustentabilidade financeira. Afinal, os eleitores do futuro
não votam no dia de hoje.
A terceira foi a regulamentação mais forte do mercado laboral por meio da adoção, em 1970, do
chamado Estatuto do Trabalhador, incluindo o artigo 18, o qual estipula que, se um tribunal considerar injusta
a demissão de um empregado de uma firma com mais de 15 empregados com contratos fixos de longo prazo,
então o empregado tem o direito de ser recontratado. O ônus da prova repousa totalmente nas costas do
empregador. Ao tornar muito caro demitir empregados, concomitantemente, a lei tornou muito caro
contratar empregados, fato que tanto reduziu a mobilidade laboral como encorajou o trabalho ilegal.
A quarta decisão, produto de atos sucessivos entre 1968 e 1978, foi a criação de um sistema público
de saúde quase em sua totalidade financiado por tributos, significando que havia pouco incentivo para os
consumidores economizarem no uso dos serviços médicos.
Por fim, em janeiro de 1970, o governo impôs uma regra compulsória para todos os funcionários dos
setores de engenharia e de metalurgia, que regulou e limitou substancialmente sua jornada de trabalho.
Os efeitos negativos de longo prazo dessas e doutras politicas foram obscurecidos no curto prazo
pelo crescimento ainda forte da Itália e pela baixa idade média da população. Pensões generosas e despesas
de saúde para um pequeno número de aposentados foram pagas por um grande número de jovens
trabalhadores. Ano após ano, essas políticas, junto com uma regulamentação cada vez mais pesada dos
mercados laboral e de serviços, reduziram a produtividade e tornaram o mercado de trabalho mais rígido,
aumentando, assim, os custos de contratação. De quebra, houve aumento paulatino do gasto público e,
consequentemente, da dívida pública, a qual, por sua vez, absorvia fatia cada vez maior da poupança privada
para seu financiamento.
Com o passar do tempo, o envelhecimento da população reduziu a razão entre a população
economicamente ativa (PEA) e a população aposentada, tornando os sistemas de pensão e de saúde mais
onerosos e menos sustentáveis. Durante as décadas de 1960 e 1970, houve aumento geral do gasto público
entre os países europeus, embora o destaque negativo tenha sido a Itália, que perdeu o posto de país
fiscalmente sustentável, conquistado a duras penas na década de 1950. Na Itália, o gasto público aumentou
de 32,7% do PIB em 1970 para 56,3% em 1993, estimulado em parte por uma política irresponsável de
aumento do funcionalismo público para compensar a falta de empregos no setor privado, especialmente no
sul. (A falta de emprego era, em grande parte, causada pelos custos extremos de contratação impostos à
iniciativa privada). Enquanto a dívida pública tinha permanecido estável em uma média de 30% do PIB durante
as décadas de 1950 e 1960, ela alcançou o espantoso total de 121,8% em 1994.
Assim acabou o milagre italiano. A taxa média de crescimento do PIB ainda era de 3,2% na década
de 1970, mas caiu para 2,2% na década de 1980. Graças à desvalorização sistemática da lira, as empresas
italianas poderiam manter sua competitividade internacional por algum tempo (o primeiro-ministro Bettino
Craxi anunciou que o país tinha superado o PIB da Grã-Bretanha em 1987), mas a inflação alta e a dívida
pública estavam claramente comprometendo o futuro.
Várias tentativas de reforma foram feitas na década de 1990, especialmente depois da crise político-
financeira de 1992-1993, quando o país esteve próximo a um calote soberano, e o sistema político pós-guerra
foi varrido por acusações de corrupção. Algumas privatizações de empresas estatais ajudaram a reduzir a
dívida publica para um nível relativamente mais viável. Pequenas mudanças foram feitas no sistema de
pensões e, em 1997, o parlamento italiano aprovou legislação para modernizar as leis trabalhistas, mas os
obstáculos políticos à abolição das provisões do Artigo 18 (com respeito ao direito de recontratação de
empregados dispensados) levaram ao estabelecimento de um mercado de trabalho de dois níveis, incluindo
contratos hiper-regulados e antiquados, assim como novos contratos com termos fixos.
Essas reformas deram um gás a uma economia já combalida, postergando por um tempo o acerto
de contas. A farra, todavia, tinha acabado.
A Itália ainda é um país rico, mas o sistema político italiano age como um barão empobrecido que
se vê incapaz de se adaptar a sua nova condição. A consequência mais nefasta do Estado de bem-estar italiano
e suas intervenções assistencialistas no mercado de trabalho não é política ou econômica, mas cultural. A
cultura da dependência do Estado de bem-estar é o que tem tornado a mudança muito difícil mesmo nos anos
recentes, quando a Itália está experimentando uma nova crise da dívida.
Os italianos contemporâneos não parecem dispostos a arregaçar as mangas, como fizeram seus pais
e avós, para produzir riqueza em uma economia livre e competitiva, abdicar dos benefícios insustentáveis do
Estado de bem-estar em troca de mais liberdade, renda e prosperidade. A Itália pode retornar às lições liberais
clássicas de Einaudi, recuperando o crescimento econômico e a possibilidade de um futuro promissor? Como
já ocorreu no passado recente, o que acontece na Itália pode servir de bom ou mau exemplo para o resto do
mundo.
O Estado de bem-estar

A Grécia como uma fábula cautelar do Estado do bem-estar

Por Aristides Hatzis

Poucas democracias contemporâneas oferecem uma fábula de fracasso institucional tão


surpreendente quanto a da Grécia. Apesar de uma história política turbulenta no século XX, a economia grega
progrediu durante décadas de real criação de riqueza, até que os principais partidos do país passaram a
disputar o poder recorrendo a instâncias como o estatismo de bem-estar, o populismo barato e a patronagem.
O estudioso de Direito e Economia Aristides Hatzis mostra como a busca de vantagem política no curto prazo
via políticas estatistas gerou corrupção, endividamento e colapso político. Hatzis é professor de Filosofia do
Direito e Teoria das Instituições na Universidade de Atenas e escreve sobre a crise grega no website
GreekCrisis.net

A Grécia atual tornou-se um símbolo de falência econômica e política, um experimento natural em


fracasso institucional. Não é fácil encontrar um país que sirva como caso clássico de tantas distorções,
deficiências e rigidezes institucionais; ainda assim, o governo grego conseguiu tal feito. O caso da Grécia é
uma fábula cautelar para todos os outros países.
A Grécia costumava ser considerada algo como uma história de sucesso. Poder-se-ia até mesmo
argumentar que a Grécia foi uma história de sucesso por várias décadas. A taxa média de crescimento da
Grécia no período de 1929 a 1980 foi de 5,2%; no mesmo período, o Japão cresceu, em média, somente 4,9%.
Esses números são impressionantes se você levar em conta que a situação política na Grécia durante
esses anos foi tudo, menos normal. De 1929 a 1936, a situação política foi anômala - com golpes, rixas políticas
e ditaduras de curta duração. Ao mesmo tempo, o país se esforçava para assimilar mais de 1,5 milhão de
refugiados da Ásia Menor (número que representava, aproximadamente, 1/3 da população grega da época).
De 1936 a 1940, a Grécia teve uma ditadura de direita muito semelhante às outras ditaduras europeias da
época e, durante a II Guerra Mundial (1940-1944), esteve entre as nações mais devastadas em termos
percentuais de baixas em relação à população. Logo após o final da II Guerra Mundial, houve uma feroz e
devastadora guerra civil (em dois estágios: 1944 e 1946-1949) iniciada por uma insurreição organizada pelo
Partido Comunista. De 1949 a 1967, a Grécia proveu um exemplo típico de uma democracia paternalista
iliberal, com estado de direito debilitado. Em 21 de abril de 1967, uma junta militar tomou o poder e governou
a Grécia até julho de 1974, quando ela, finalmente, se tornou uma democracia constitucional liberal. A
economia grega conseguiu crescer apesar de guerras, insurgências, ditaduras e vida política turbulenta.
Sete anos após abraçar a democracia constitucional, os (então) nove membros da Comunidade
Europeia (CE) aceitaram a Grécia como décimo membro (mesmo antes da Espanha e de Portugal). Por quê?
Embora tenha sido, em grande parte, uma decisão política, não se pode desconsiderar o seu viés econômico,
afinal, a Grécia já acumulava décadas de forte crescimento do PIB, a despeito de todos os contratempos e
obstáculos no caminho. Quando a Grécia entrou para a CE, a dívida pública do país representava 28% do PIB;
o déficit orçamentário era inferior a 3% do PIB; e a taxa de desemprego estava entre 2% a 3%.
Mas esse não foi o fim da história.
Em 1º de janeiro de 1981, a Grécia se tornou membro da Comunidade Europeia. Dez meses depois,
em 18 de outubro de 1981, o partido socialista de Andreas Papandreou (Pasok) chegou ao poder com uma
agenda radical estatista e populista, que incluía a saída da Comunidade Europeia. Obviamente, ninguém seria
tão tolo de cumprir tal promessa. Embora a Grécia tenha permanecido na Comunidade Europeia, o Pasok
conseguiu mudar o clima político-econômico grego em apenas alguns anos.
A crise atual na Grécia resulta, principalmente, das políticas de curto prazo do Pasok, em dois
aspectos importantes:

(a) As políticas econômicas do Pasok foram catastróficas; elas criaram uma mistura fatal de
estado de bem-estar expansivo e ineficiente com intervenção sufocante e excesso de regulamentação do
setor privado.
(b) O legado politico do Pasok foi ainda mais devastador no longo prazo, dado que seu sucesso
político transformou o Partido Conservador da Grécia (Nova Democracia) em uma cópia mal feita do Pasok.
De 1981 a 2009, ambos os partidos ofereceram unicamente o populismo, o rentismo, o estatismo, o
nepotismo, o protecionismo e o paternalismo. E assim permanecem até hoje.
O desfecho atual é consequência da concorrência desastrosa entre partidos para oferecer
patronagem, populismo assistencialista e estatismo predatório aos seus eleitores.

Qual é o motor do crescimento econômico?

A riqueza é criada por meio da cooperação e da troca voluntárias. Uma troca voluntária não é um
jogo de soma zero em que ganhos são compensados por perdas. É um jogo de soma positiva que leva à criação
de valor adicional a ser compartilhado entre os participantes. (Transações involuntárias são, com frequência,
jogos de soma negativa, já que, nesses casos, as perdas dos perdedores são muito maiores que os ganhos dos
vencedores; um assaltante pode te esfaquear em um beco e obter EUR 40 de sua carteira, mas a despesa
médica e o sofrimento da vítima serão certamente muito maiores que meros EUR 40. Da mesma forma,
esforços políticos de redistribuição de riqueza sempre envolverão o gasto de recursos escassos de ambos os
lados – para espoliar ou evitar ser espoliado – e o total desses gastos pode ser muito superior ao valor da
riqueza redistribuída).
A prosperidade, quer seja chamada riqueza, desenvolvimento econômico ou crescimento, relaciona-
se positivamente ao número de transações voluntárias que ocorrem. O papel do governo nesse processo é i)
proteger os direitos de propriedade e os contratos em que as trocas voluntárias são baseados, ii) permitir que
as pessoas gerem riqueza (tornando, assim, os mercados “regulares” - que é o significado original de
“regulamentação”), e iii) intervir de forma cirúrgica quando uma falha de mercado for detectada – sem
distorcer o mercado e causar uma falha governamental ainda maior e mais desastrosa do que a que ele está
tratando.
Infelizmente, a maioria dos governos contemporâneos assumiu outro papel, mais ambicioso e
perigoso: ao invés de “regulamentar” por meio do estabelecimento de regras claras que tornam o processo
de mercado “estável”, decide “intervir” de forma arbitrária; ao invés de facilitar as transações de mercado,
decide obstruí-las; ao invés de proteger as transações de soma positiva, geradoras de riqueza, prefere
substituí-las por transações de soma negativa, destruidoras de riqueza, como subsídios e gastos
governamentais. Hoje, a maioria dos políticos acredita que se você gastar o suficiente, haverá crescimento; e
que, se não houver crescimento, não foi gasto o suficiente. Esse caminho de aceleração do gasto público levou
à crise grega, mas não afeta unicamente à Grécia, pois a mesma dinâmica levou ao primeiro rebaixamento da
nota de crédito da história dos Estados Unidos, e à crise atual da dívida soberana europeia.
O gasto é popular entre os políticos porque compra votos no curto prazo; afinal, no longo prazo,
todos estaremos mortos, ou, pelo menos, não no poder. Da mesma forma, é popular entre os eleitores, porque
tendem a ver os benefícios governamentais como uma receita inesperada: eles não veem o dinheiro como
arrecadado de seu próprio bolso, mas como presenteado pelo governo ou, pelo menos, retirado do bolso de
outrem.
Desde 1974, os políticos gregos abandonaram os fundamentos econômicos. Depois da queda da
ditadura militar, até mesmo o governo conservador nacionalizou bancos e corporações, subsidiou firmas, e
aumentou os poderes do Estado de bem-estar. Não obstante, suas ações foram tímidas em comparação com
as postas em prática no primeiro governo socialista Pasok, durante a década de 1980. Após 1981, a
intervenção estatal aumentou, e a regulamentação e o rentismo tornaram-se a regra. Essa foi também a
política dos governos até 2009, com duas pequenas exceções: i) um curto período no início da década de
1990, sob reformistas conservadores, durante o qual praticamente todas as tentativas de reforma
fracassaram miseravelmente e ii) o período anterior à entrada na Zona do Euro em 2002, sob reformistas
socialistas. Mesmo então, os números foram mascarados e as reformas estruturais, mínimas.
Como tanto gasto foi possível, tendo em conta que Atenas pode muito bem ser considerada a capital
da sonegação fiscal do mundo? Como a receita governamental estava limitada por sonegação fiscal e um
sistema tributário ineficiente, o resto do dinheiro veio de transferências da União Europeia e, é claro, de
empréstimos. Como o colunista Thomas Friedman do The New York Times acertadamente comentou “a
Grécia, infelizmente, logo após ter aderido à União Europeia em 1981, de fato, tornou-se simplesmente outro
país petrolífero do Oriente Médio – só que, ao invés de poços de petróleo, ela tinha Bruxelas, que
regularmente bombardeava subsídios, ajuda, e euros com taxas de juros baixas”.
A tomada de empréstimos tornou-se mais fácil e barata depois que a Grécia adotou o euro em 2002.
Depois de 2002, a Grécia desfrutou de um longo boom baseado em crédito barato e abundante, já que os
mercados de títulos de dívida pública não mais se preocupavam com inflação alta ou moeda desvalorizada, o
que permitiu à Grécia financiar grandes déficits em conta corrente: o resultado disso foi uma dívida pública
insustentável de EUR 350 bilhões de euros (metade da qual devida a bancos estrangeiros). Contudo, mais
importante, ela também levou a um efeito negativo que é raramente trazido à tona: as transferências da
União Europeia e o dinheiro dos empréstimos foram alocados diretamente para financiar consumo, e não
poupança, investimento, infraestrutura, modernização ou desenvolvimento institucional.
A “festa” grega paga com o dinheiro alheio durou 30 anos e – devo admitir – realmente nos
divertimos muito! A renda média per capita alcançou US$ 31.700 dólares em 2008, a 25ª do mundo, maior
que a da Espanha ou a da Itália, e 95% da média da União Europeia. O gasto privado foi 12% maior que a
média europeia, dando à Grécia o 22º lugar no IDH. Se você está impressionado, lembre que mesmo esses
dados subestimavam de maneira grosseira a realidade, já que a economia informal grega é responsável por,
aproximadamente, 25 a 30% do PIB!
A renda não declarada é, sobretudo, relacionada à sonegação fiscal. Mesmo em 2010, cerca de 40%
dos gregos não pagaram qualquer tributo, e perto de 95% das declarações fiscais eram por menos de EUR
30.000 euros por ano. Tal sonegação fiscal generalizada custou aos cofres do Estado um valor estimado de
EUR 20 a 30 bilhões de euros por ano, isto é, pelo menos 2/3 do déficit para 2009.
A Grécia estava moral e economicamente mergulhada em corrupção. Considere a tragicômica, para
não dizer infame, questão das piscinas em Atenas. Como uma piscina é indicação de riqueza na Grécia, nada
mais normal que a Receita Federal grega usar tal informação para detectar sonegação fiscal. Em 2009,
somente 364 pessoas declararam que tinham piscinas em casa. Fotos de satélite revelaram que existiam, na
verdade, 16.974 piscinas privadas em Atenas. Isso significa que somente 2,1% das pessoas que eram
proprietárias de piscinas submeteram declarações verdadeiras. A questão interessante não é por que 97,7%
mentiram, mas sim por que 2,1% não mentiram, afinal, a sonegação fiscal na Grécia é uma prática tão comum.

Dívida Grega em comparação à média da Zona do Euro

Fonte: Eurostat. Veja também: http://www.rooseveltmcf.com/files/documents/ BULLX-Greece-


Aug-2011.pdf

Mentir tornou-se um estilo de vida na Grécia. Ainda assim, poder-se-ia argumentar que mentir para
proteger o que se criou é justificado. Na Grécia, todavia, a riqueza não fora criada, mas simplesmente tomada
emprestada. Em 1980, a dívida pública representava 28% do PIB; já em 1990, 89% e, no inicio de 2010, já
passava de 140%. O déficit orçamentário foi de menos de 3% em 1980 para 15% em 2010. Em 1980, o gasto
governamental representava somente 29% do PIB; trinta anos depois (2009), tinha chegado a 53,1%. Esses
números foram omitidos pelo governo grego até o ano de 2010 quando ele admitiu formalmente que não
tinha cumprido os critérios de adesão (Critérios de Copenhague) para se unir à Zona do Euro. O governo grego
tinha mesmo contratado firmas de Wall Street - com destaque para a Goldman Sachs - para ajudá-lo a
mascarar os números e enganar os credores.

Esse estado deprimente da economia grega foi o resultado de dois fatores:

• a grave ineficiência e corrupção do Estado de bem-estar grego; e


• o emaranhado de obstáculos criados por intervenções assistencialistas a transações
econômicas voluntárias.

De acordo com a publicação do Banco Mundial Doing Business 2012, a Grécia estava na 100ª posição
entre 183 países ao redor do mundo em termos de facilidade geral de fazer negócios. Foi, é claro, o pior
colocado entre os países da União Europeia, e os da OECD. A Grécia, membro da União Europeia nos últimos
30 anos, membro da Zona do Euro nos últimos 10 anos, o 25º país mais rico do planeta, ficou classificado atrás
de Colômbia, Ruanda, Vietnã, Zâmbia e Cazaquistão. Como o Wall Street Journal coloca: “um país tem que
trabalhar duro para ir tão mal”. A política governamental grega era hostil ao livre comércio e à propriedade
privada, obstruindo severamente a mobilidade do capital e do trabalho, geralmente em nome da
“solidariedade social” e da “justiça”.

A Grécia odeia os negócios (a lista de indicadores você pode verificar aqui para montar a planilha)

Fonte: http://online.wsj.com/article/SB10001424052748703961104575226651125226596.html

Para abrir um negócio na Grécia em 2010, você precisava de, em média, 15 dias e EUR 1.101 euros,
quando a média no resto da EU era de 8 dias e somente EUR 417 euros. O pagamento de impostos tomava
224 horas por ano na Grécia; no estado mais rico da UE, Luxemburgo, levava somente 59. O ranking de
proteção aos investidores era deplorável: 154º entre 183 países. O melhor tópico da Grécia era a facilidade
de fechar um negócio: 43ª posição. Praticamente todas as profissões na Grécia são, em certa medida,
altamente regulamentadas e cartelizadas, o que impõe custos aos consumidores, e obstrui a criação de
riqueza. Some a isso uma burocracia terrivelmente ineficiente que custa à Grécia 7% do seu PIB, o dobro da
média da EU.
Burocracias intervencionistas tendem a alimentar a corrupção. De acordo com o relatório da
Transparência Internacional, o custo da corrupção de pequena escala foi em torno de EUR 800 milhões de
euros (EUR 1,08 bilhão) em 2009, um aumento de EUR 39 milhões de euros em relação a 2008.

Tamanho da Economia informal em 2007, em % do PIB

Fonte: http://online.wsj.com/article/SB10001424052748704182004575055473233674214.html

De acordo com o World Investment Report da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD), a Grécia está classificada em 119º de 141 países em investimentos externos
diretos (IED).
Não é de admirar que mais de 50% dos jovens gregos esteja desempregado. É esse o resultado de
um ambiente de negócios que desencoraja o empreendedorismo, em que os custos burocráticos são altos e
existe muita corrupção na política. O Estado de bem-estar grego convenceu muitos de que seus benefícios
tem o status de “direitos sociais”. Seria suicídio político para um político ou um partido político fazer cortes
significativos quando uma população foi acostumada a tantos “direitos” concedidos pelo Estado, e quando a
uma população em processo de envelhecimento foi prometido um pacote generoso de benefícios de saúde e
pensões.
A Grécia é o exemplo clássico da geração de “direitos” insustentáveis. O governo gasta EUR 10.600
euros por pessoa em benefícios sociais que geram somente EUR 8.300 euros por pessoa em receitas. Isso
deixa um déficit de EUR 2.300 euros por pessoa!

A Tragédia Grega – um olhar sobre a crise econômica grega

Menos da metade da PEA está empregada


Mais de 1/3 da mão de obra jovem está desempregada
Tamanho estimado da economia informal
O governo gasta aproximadamente metade do orçamento em benefícios sociais
Fonte: http://fxtrade.oanda.com/analysis/infographics/ greece-economic-crisis

Ao mesmo tempo, os salários no setor público aumentaram em termos reais (de 1996 a 2009) em
44%. Em alguns setores, 86%. Os empregados receberam o equivalente a 14 salários por ano, incluindo dois
pagamentos adicionais como bônus (um no Natal, e outro dividido em duas partes: na Páscoa e nas férias de
verão). As pensões também aumentaram substancialmente.
Um homem grego com 35 anos de trabalho no setor público tinha o direito de se aposentar com
uma generosa pensão aos 58 anos de idade. Uma mulher grega poderia se aposentar ainda mais cedo; se uma
mulher menor de idade tivesse um filho, ela poderia se aposentar com 50 anos. A idade média de
aposentadoria na Grécia era 61 anos de idade; na Alemanha, 67. Projeta-se que a população grega acima de
65 anos crescerá de 18% da população total em 2005 para 25% em 2030.
Poder-se-ia argumentar que, apesar do custo do Estado de bem-estar (19% do PIB em 1996, mas
29% em 2009), pelo menos, ele oferece alguma sensação de segurança, além de limitar a desigualdade. Não
na Grécia! Mesmo que a saúde e a educação sejam providas “gratuitamente” pelo Estado, a família grega
paga 45% do gasto médico total (sobretudo em propinas a médicos, enfermeiras e servidores públicos para
fazerem o seu trabalho). Muitas famílias gregas (2,5%) entram em falência todos os anos por causa de altos
custos médicos. O mesmo se aplica à educação. Mesmo que seja “gratuita” em todos os níveis, as famílias
gregas gastam mais com a educação de seus filhos (com aulas particulares) do que qualquer outro país da
União Europeia.
A grande festa financiada por empréstimos está acabando, e a ressaca se avizinha. Agora é hora de
recuperar a sobriedade, em vez de buscar novamente o licor da dívida publica. Rentismo e corrupção deveriam
ser combatidos; e os mercados, liberados. As pessoas deveriam ter liberdade para criar riqueza por meio da
troca voluntária. A cleptocracia grega deveria ser substituída pelo estado de direito. Uma rede de proteção
para os pobres não deveria ser desculpa para benefícios exorbitantes a poderosos e ricos que deixaram pobres
e incapazes em situação pior que, de outra forma, estariam.
A lição é que o desenvolvimento econômico e a prosperidade não advêm de empréstimos e gastos
governamentais. A prosperidade advém do mercado, das transações voluntárias, da poupança, do
investimento, do trabalho, da produção e do comércio. O governo tem um importante trabalho a fazer: criar
e fortalecer o estado de direito, a segurança, e as instituições legais que viabilizam aquelas transações
voluntárias; o governo negligencia suas responsabilidades quando cria, ao invés disso, grandes burocracias,
privilégios insustentáveis, e um sistema de roubo, corrupção, privilégio e desonestidade.
O problema da Grécia é severo e não será resolvido de um dia para o outro. No entanto, ele pode
ser resolvido com o remédio adequado.
Seção II

A história do Estado de Bem-Estar


O Estado e o que ele substituiu
O legado de Bismarck
Por Tom G. Palmer

Para entender o funcionamento e o impacto do Estado de bem-estar, é fundamental entender a sua


origem. Neste ensaio, dedico-me a revelar a natureza do Estado de bem-estar como sistema político projetado
para perpetuar o poder daqueles que o criaram. A origem do Estado de bem-estar remonta à introdução de
esquemas de seguro obrigatório na Alemanha Imperial, passando pelos sistemas contemporâneos existentes
na Europa e nos Estados Unidos. Apesar de ele ter, indiretamente, desmantelado as instituições voluntárias
preexistentes, elas servem de exemplo de que é possível a formação de sociedades de pessoas independentes,
responsáveis, dignas de respeito e prósperas – sem a existência de um Estado de bem-estar.

Estado de bem-estar é distinto de Estado socialista. Socialismo implica, no mínimo, a tentativa de


planificar a economia como um todo – planejamento central – e, o mais das vezes, o total controle estatal dos
meios de produção; em resumo, implica a tentativa consciente de usar o planejamento estatal para a alocação
de capital e trabalho entre usos concorrentes. Um Estado socialista tentará, portanto, planejar e gerir a
produção de papel, de veículos, de alimentos, de remédios, de roupas, etc. Exemplos de tentativas de criação
de estados socialistas incluem a União Soviética e seus países-satélites, Cuba, e a República Popular da China
antes de sua reforma parcial em direção à liberalização de mercados e à instituição da propriedade privada.
Em contraste, um Estado de bem-estar não exige o controle estatal dos meios de produção como um todo,
embora nele seja comum a manutenção do controle estatal sobre alguns setores diretamente ligados à
provisão dos chamados bens públicos, a saber, educação, saúde, recreação e habitação.
O estado de bem-estar não busca centralizar a gestão de toda a atividade produtiva, contudo, toma
para si a responsabilidade pelo bem-estar da população. Ele é mais abrangente que o governo limitado dos
liberais clássicos, o qual provê justiça, segurança, estado de direito e, talvez, uma lista restrita de “bens
públicos”. Um estado liberal clássico limita-se a criar condições pacíficas dentro das quais as pessoas são livres
para buscar seu próprio bem-estar. Em contraste, o estado de bem-estar assume a responsabilidade por
assegurar o bem-estar das pessoas, e não somente de criar as condições sob as quais elas poderiam buscá-lo
por conta própria; dessa forma, o estado de bem-estar tende a dominar, ou mesmo a monopolizar, a provisão
de pensões e aposentadorias, saúde, educação e renda básica, além de organizar programas substanciais de
transferência de renda amiúde justificados em nome da transferência de renda dos “ricos” para os “pobres”,
embora, normalmente, a maior parte das transferências ocorra entre os ricos 18.
O estado de bem-estar não transfere recursos exclusiva ou mesmo primariamente para os pobres.
De muitas maneiras, o estado de bem-estar vitimiza os pobres em benefício dos que são capazes de manipular
o sistema. (O mesmo estado de bem-estar que disponibiliza “vale-refeição” e outros subsídios de alimentação
aos pobres é o mesmo que aumenta o preço do alimento na gôndola via subsídios agrícolas, restrições à
importação de alimentos mais baratos, e aprovação de resoluções e decretos, por exemplo). O estado de bem-
estar alcança estabilidade política ao criar grandes eleitorados em todos os estratos sociais, dos mais ricos aos
mais pobres. Ele não está essencialmente focado na “redistribuição” de renda para os mais pobres, haja vista
que grande parte da redistribuição de riqueza ocorre, de fato, na direção contrária, dos pobres para os ricos.
Nas sociedades ricas, a maior parte da redistribuição de renda se dá na classe média, com o dinheiro sendo
tirado de um bolso e colocado em outro, menos os custos de transação e ineficiências gerados pela burocracia,
pela politicagem e pelo capitalismo de compadrio 19.

Origens do Estado de bem-estar

Em sua forma moderna, o estado de bem-estar se origina ao final do século XIX na Alemanha, em
uma manobra política e de “construção do Estado” proposta pelo estadista alemão Otto von Bismarck - o
chanceler de ferro - que derrotou militarmente a França e a Áustria, e unificou, “à ferro e fogo”, todos os

18 Eles também geraram um conjunto de medidas de “legislação moral” para direcionar o comportamento ao que é considerado
virtuoso pelas elites políticas. Entre as medidas aprovadas, a criminalização da prostituição, a esterilização dos “moralmente
degenerados”, a proibição de intoxicantes variados (álcool, maconha, ópio, etc), o banimento do casamento interracial, a
perseguição e criminalização de práticas sexuais de minorias, a coibição de comportamento considerado muito arriscado e, de forma
geral, a supressão de substâncias e comportamentos julgados incompatíveis com o bem-estar do povo. Nos anos recentes, com a
mudança de tradições e costumes populares, o estado de bem-estar tendeu a se adequar a elas, mas a história de tais estados
“progressistas” é, sobretudo, uma história de censura e repressão moralista.
19 SHAPIRO, Daniel. Is the Welfare State Justified? p. 149. Daniel Shapiro destaca que o “racionamento governamental normalmente

favorece a classe média instruída, conectada e bem-motivada”.


estados germânicos em uma única nação, o II Reich. Bismarck travou uma longa guerra política com os liberais
clássicos na Alemanha, os quais preferiam o uso de meios pacíficos para a criação de uma nação próspera,
assim como a manutenção da paz para com os países vizinhos, em vez da guerra, da colonização e do
militarismo. Como parte de seu programa de “construção do Estado” na Europa Central, Bismarck foi pioneiro
do estado de bem-estar, o qual, desde então, tem colonizado grande parte da esfera política do mundo.
Bismarck introduziu o estado de bem-estar alemão através de uma série de regimes de seguros obrigatórios
contra acidentes, doença, invalidez e velhice - aprovados por lei na década de 1880. O chanceler militarista
Bismarck chamou essas medidas de “socialismo de estado” e, em 1882, declarou que “muitas das medidas
que temos adotado para a grande benção do país são socialistas, e o Estado terá que se acostumar com um
pouco mais de socialismo 20”.
O historiador A. J. P. Taylor explicou que “Bismarck queria tornar os trabalhadores mais dependentes
do Estado e, portanto, dele 21”. Acima de tudo, esse foi um estratagema político para criar uma população
dependente imbuída de uma ideologia de coletivismo nacional.
Bismarck confirmou que o propósito de seu “socialismo de estado” era gerar a dependência e, por
conseguinte, a lealdade, de que uma Alemanha poderosa necessitava para dominar a Europa:

Quem tem uma pensão por idade avançada é muito mais feliz, e muito mais fácil de controlar que
alguém sem tal perspectiva. Olhe a diferença entre um funcionário privado e um funcionário público
da chancelaria ou da corte; o último trabalhará muito mais, afinal, ele tem uma aposentadoria a sua
espera 22.

Considerarei um grande avanço quando tivermos 700 mil pequenos pensionistas sacando suas
anuidades do Estado, especialmente se pertencerem àquelas classes que, de outro modo, não tem
muito a perder se rebelando e acreditando erroneamente que podem ganhar muito mais ao fazer
isso 23.

Taylor concluiu que “a seguridade social tem certamente tornado as massas menos independentes
em todos os lugares; ainda assim, mesmo o apóstolo mais fanático da independência hesitaria em
desmantelar o sistema inventado por Bismarck que todos os outros estados democráticos vieram a copiar 24”.
De fato, o estado de bem-estar tornou as massas “menos independentes em todos os lugares”, isto é, mais
dependentes em todos os lugares. Hoje, todavia, chegamos ao ponto em que podemos e devemos ousar
desmantelar “o sistema inventado por Bismarck”, pois os estados de bem-estar do mundo, fatalmente,
passaram dos limites.
Foi o colapso do inchado / sobrecarregado estado de bem-estar da República de Weimar na década
de 30, reconhecido, na época, como o estado de bem-estar mais avançado do mundo 25, que introduziu a
ditadura, a guerra, e o estado de bem-estar mais predatório e cruel que se tem notícia, o III Reich. Como o

20 Citado em LINDSEY, Brink. Against the Dead Hand: The Uncertain Struggle for Global Capitalism. New York: John Wiley & Sons,

2002. p. 33.
21
TAYLOR, A. J. P. Bismarck: The Man and the Statesman. (1955). New York: Sutton Publishing, 2003. p. 204. Taylor salienta que uma
das partes do plano de Bismarck foi derrotada no Reichstag; ele desejava que uma parte da “contribuição” adviesse diretamente do
orçamento estatal. Em vez disso, o Reichstag só impôs uma contribuição a ser paga diretamente pelo empregado, e outra,
supostamente, a ser paga “pelo empregador”. Como os economistas sabem, todavia, 100% do peso de ambas as “contribuições”
recaia sobre o empregado, pois era extraída totalmente do que, de outra forma, seria pago em salários; os empregadores pagarão
o valor pelo trabalho feito e nada mais, tendendo à indiferença quanto ao valor que o empregado recebe em dinheiro. Bismarck foi
precursor da ideia de um estado formado por “associações corporativas”, que representavam grupos de interesse, ao invés de
associações de cidadãos com direitos individuais. Como Taylor nota, “o conceito foi levado adiante em sua ênfase nos grupos de
interesse ao invés de princípios elevados, cuja expressão e meios seriam retomados novamente pelos exponentes do Fascismo no
século XX”. p. 204. O empilhamento de tributos adicionais sobre o trabalho na forma de “parcela patronal” das contribuições de
previdência social colaborou para o colapso do sistema parlamentar da República de Weimar. Como Jürgen von Kruedener nota, o
colapso “foi a consequência da expansão de políticas assistencialistas do Estado, para as quais o salário e o encargos salariais
contribuíram como uma grande causa”. p. 376. KRUEDENER, Jürgen von. Die Überforderungen der Weimarer Republik als
Sozialstaat. Geschichte und Gesellschaft, 11, no. 3 (1985), p. 358–376.
22 TAYLOR, A. J. P. Bismarck: The Man and the Statesman. p. 203.
23
Speech of May 18, 1889. In KELLEY, David. A Life of One’s Own: Individual Rights and the Welfare State. Washington, DC: Cato
Institute, 1998. p. 39.
24 TAYLOR, A. J. P. Bismarck: The Man and the Statesman. p. 203. Taylor destaca que Bismarck foi pioneiro em uma ampla gama de

esquemas de assistencialismo estatal, e “ao final, falou do ‘direito ao trabalho’ e do plano de seguro-desemprego – o passo final
para o Estado de bem-estar do século XX”. p.204.
25 KRUEDENER, Jürgen von. Die Überforderungen der Weimarer Republik als Sozialstaat. Geschichte und Gesellschaft. Jurgen mostra

os resultados exatos do pioneirismo de Bismarck; o peso sobre os empregados da chamada “parcela do empregador” à seguridade
social aumentou dramaticamente durante a República de Weimar. Kruedener conclui que “a grande cilada, de fato, a tragédia desse
Estado, foi ter se tornado objetivamente um Estado de bem-estar” (p.376).
historiador Gotz Aly mostra em sua obra Hitler’s Beneficiaries: Plunder, Racial War, and the Nazi Welfare State,
o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista)

estava vendendo dois sonhos antigos dos alemães: unidade nacional e de classes. Essa era a chave da
popularidade nazista, da qual eles derivavam o poder que necessitavam para perseguir seus fins
criminosos. O ideal de Volksstaat – estado popular, de e para as pessoas – seria o que hoje
chamaríamos estado de bem-estar para alemães com a linhagem racial apropriada. Em um de seus
principais pronunciamentos, Hitler prometeu: “a criação de um estado socialmente justo”, um modelo
de sociedade que “continuaria a erradicar todas as barreiras [sociais] 26”.

Aly prossegue dizendo “de forma historicamente sem precedentes, eles [os líderes políticos do III
Reich] criaram as precondições para o moderno estado de bem-estar 27”. O estado de bem-estar nacional-
socialista, que instituiu tal sistema abrangente de clientelismo, de dependência, e de lealdade entre a
população alemã foi financiado, como Aly documenta minuciosamente, pela apropriação da riqueza dos
judeus (dinheiro, negócios, casas, obturações dentárias, brinquedos e, até mesmo, cabelos), pelo confisco das
posses dos inimigos do Estado, e pela pilhagem do resto do Europa via exigências e inflação deliberada das
moedas dos países ocupados. Além disso, era também um esquema de pirâmide que requeria uma base cada
vez maior de contribuintes para canalizar o roubo até os níveis mais altos da hierarquia. Como todo esquema
de pirâmide, o III Reich estava fadado ao fracasso. O estado de bem-estar nacional-socialista foi certamente
o mais destrutivo e cruel da história do mundo, e tem relação muito mais próxima com estados de bem-estar
atuais menos malignos do que se imagina. Todos os estados de bem-estar têm como ponto de partida a
rejeição dos princípios liberais clássicos de governo limitado e liberdade individual: eles criam sistemas de
controle político sobre o comportamento dos eleitores por meio de dependência deliberadamente induzida,
tipicamente justificada por intermédio de uma ou outra doutrina de identidade e propósito coletivos.
Nos séculos XVIII e XIX, o liberalismo clássico eliminou a escravidão e a servidão, libertou os judeus
e outras minorias religiosas de seu status de segunda classe, lutou por liberdade religiosa, e liberou o
comércio, o empreendedorismo e a criatividade, resultando no aumento mais espantoso do padrão de vida
das massas na história humana. Tais mudanças geraram uma reação político-cultural contra o liberalismo, e
uma nostalgia de um passado imaginário de harmonia e solidariedade, em que motivos “egoístas” eram
dissolvidos pelo amor comunal; o sucesso do liberalismo despertou respostas reacionárias. Friedrich Engels,
que posteriormente trabalhou com Karl Marx para forjar uma das críticas mais influentes do liberalismo,
condenou o liberalismo precisamente por promover a paz e a realização do bem comum por meio da liberdade
de comércio:
Civilizaram os confins da Terra para conquistar um campo de expansão para a sua ambição
rasteira, criaram uma confraternização de povos que é apenas uma confraria de ladrões, e diminuíram
as guerras para ganhar muito mais em tempo de paz, para elevar a nível extremo a hostilidade
particular e a guerra infame da concorrência! Quando é que fizeram alguma coisa por puro
humanismo, com a consciência do que opõe o interesse geral ao interesse particular? Quando é que
se mostraram morais sem estar interessados, sem acalentar no fundo motivos imorais e egoístas?
Depois de a economia liberal ter feito tudo para universalizar a hostilidade decompondo as
nacionalidades, transformando a humanidade numa horda de bestas ferozes (acaso não são bestas
ferozes os que se dedicam à concorrência?) que se entredevoram precisamente porque cada um
partilha com todos os outros dos mesmos interesses 28.

26 ALY, Götz. Hitler’s Beneficiaries: Plunder, Racial War, and the Nazi Welfare State. New York: Henry Holt & Co., 2006. p. 13. Aly

descreve a pilhagem dos judeus na Alemanha, antes do mesmo ocorrem em nível continental: “ao final de 1937, os servidores
públicos do Ministério das Finanças já tinham estourado o limite de crédito do Estado. Forçados a propor formas cada vez mais
criativas para refinanciar a dívida nacional, eles voltaram sua atenção para a propriedade dos judeu-alemães, que foram logo
confiscadas e acrescidas ao chamado Volksvermögen, ou ativos coletivos do povo alemão. O conceito fortemente ideológico de
ativos coletivos, que não foi, de manheira nenhuma, restrito à sociedade alemã, implicava a possibilidade de desapropriar os
considerados ‘estrangeiros’ (Volksfr emden) ou ‘hostis’ (Volksfeinden) ao mainstream étnico”. O trabalho forçado, longe de ser um
subsídio às grandes firmas privadas, era uma redistribuição da riqueza de judeus, poloneses, ucranianos escravizados para os cofres
do Estado. Depois de calcular os tributos arrecadados pelo Estado sobre os “salários” do trabalho forçado, pagos pelas firmas (“60%
a 70% dos salários pagos por essas firmas”), Aly conclui que isso representou, de 1941 a 1945, 13 bilhões de marcos alemães (hoje,
cerca de EUR 150 bilhões de euros): “o tamanho dessa cifra desmente a hipótese histórica tradicional de que foram as companhias
que mais lucraram com o trabalho forçado. Em vez disso, a exploração foi perpetrada em uma escala muito maior, por toda a
sociedade. Os bilhões em receitas estatais oriundos do trabalho forçado tiraram um peso significativo das costas dos pagadores de
impostos alemães. E essa foi somente uma das vantagens que os “camaradas étnicos” extraíram de sua aceitação de uma campanha
governamental não somente para entrar em guerra contra os outros, mas para desapropriá-los de tudo que tinham” (p. 162–63).
27 Ibid., p. 303
28 ENGELS, Friedrich Engels. Outlines of a Critique of Political Economy. In STEPELEVICH. The Young Hegelians: An Anthology.

Amherst, N.Y.: Humanity Books, 1999. p. 278–302, p. 2. Tradução de Maria Filomena Viegas e revisão de José Paulo Netto. Retirado
da Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Livr. Ed. Ciências Humanas, 5: 1-29, 1979. Disponível em
http://docslide.com.br/documents/esboco-de-uma-critica-da-economia-politicapdf.html
Ademais, Engels e outros reviveram o antigo ódio irracional à cobrança de juros sobre empréstimos,
um ressentimento antigo que combinava antiliberalismo e antissemitismo:

A imoralidade do empréstimo a juros — derivada do fato de se receber sem trabalho pela simples
ação de emprestar —, embora já contida na propriedade privada, apesar de tudo salta logo aos olhos
e foi há muito denunciada pela consciência popular que, na maior parte das vezes, tem razão nesta
espécie de coisas 29.

O dinamismo, o fluxo constante em que o livre mercado colocava as relações econômicas e sociais
enraiveceu os críticos da elite que ansiavam por estabilidade, constância e certeza moral nas relações
econômicas:

A eterna flutuação dos preços, tal como é posta pelas relações concorrenciais, retira do comércio o
último traço de moralidade… Neste turbilhão, onde fica a possibilidade de uma troca que assente
numa base moral? Nesta oscilação perpétua, cada um deve procurar compreender o instante mais
favorável para comprar e vender, cada um deve fazer-se especulador, isto é: recolher onde não
semeou, enriquecer com a perda de outrem, calcular sobre a infelicidade alheia ou deixar a sorte jogar
em seu favor… o ponto culminante da imoralidade é a especulação na Bolsa, pela qual a história e,
nela, a humanidade são assimiladas ao conjunto dos meios próprios para satisfazer a cupidez do
especulador calculista ou felizardo 30.

O antiliberalismo e o antissemitismo andavam de mãos dadas. Em seu ensaio A questão judaica, Karl
Marx ataca a liberdade empresarial por judaizar toda a Europa Cristã; por, em efeito, dissolver antigas formas
de solidariedade e transformar os cristãos de Europa em sua própria caricatura dos judeus 31. Esse foi um tema
que seria repetido diversas vezes no século seguinte. À medida que o liberalismo clássico continuava a levar
liberdade a mais e mais pessoas, o ataque reacionário contra ele cresceu, chegando à maturidade ao final do
século XIX e início do século XX, nas doutrinas antiliberais do nacionalismo, do imperialismo, do racismo e do
socialismo. Como Sheri Berman, ela mesma uma defensora ferrenha do estado de bem-estar (também
conhecido como ‘socialdemocracia’), argumenta em sua obra Primacy of Politics: Social Democracy and the
Making of Europe’s Twentieth Century:

A marcha dos mercados tinha causado um terrível mal estar nas sociedades europeias. Críticos
lamentavam a glorificação do autointeresse e do individualismo desenfreado, a erosão dos valores e
das comunidades tradicionais, e o aumento do deslocamento social, da atomização e da fragmentação
que o capitalismo trouxe em seu encalço. Como resultado, o fin-de-siècle foi testemunha de um surto
de pensamento comunitário e de movimentos nacionalistas, os quais afirmavam que somente o
renascimento das comunidades nacionais poderia prover o senso de solidariedade, de vínculo, e de
propósito coletivo que as divididas e desorientadas sociedades europeias tanto necessitavam 32.

Embora o socialismo marxista fosse uma resposta política popular, e tivesse atraído alguns
intelectuais por suas alegações aparentemente científicas sobre a inevitabilidade da substituição do
capitalismo pelo comunismo, outros o abandonaram quando notaram que eram falsas, buscando outros
meios de ação direta de modo a atacar e eliminar o individualismo liberal. Como Berman nota:

Conquanto patentemente divergentes em alguns pontos críticos, fascismo, nacional-socialismo e


social-democracia têm similaridades importantes que não foram devidamente apreciadas. Todos
abraçaram a primazia da política e divulgaram abertamente seu desejo de utilizar o poder político para
remodelar a sociedade e a economia. Todos apelaram para a solidariedade comunitária e o bem
coletivo. Todos construíram modernas organizações políticas de massa, e se apresentaram como
“partidos do povo”. Ademais, todos adotaram uma posição intermediária quanto ao capitalismo - nem

29 Tradução de Maria Filomena Viegas e revisão de José Paulo Netto. Retirado da Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo,

Livr. Ed. Ciências Humanas, 5: 1-29, 1979. Disponível em http://docslide.com.br/documents/esboco-de-uma-critica-da-economia-


politicapdf.html
http://docslide.com.br/documents/esboco-de-uma-critica-da-economia-politicapdf.html
30 Tradução de Maria Filomena Viegas e revisão de José Paulo Netto. Retirado da Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo,

Livr. Ed. Ciências Humanas, 5: 1-29, 1979. Disponível em http://docslide.com.br/documents/esboco-de-uma-critica-da-economia-


politicapdf.htmlhttp://docslide.com.br/documents/esboco-de-uma-critica-da-economia-politicapdf.html
31 Veja, MULLER, Jerry Z. The Long Shadow of Usury: Capitalism and the Jews in Modern European Thought, em seu Capitalism and

the Jews. Princeton: Princeton University Press, 2010. p. 15–71.


32 BERMAN, Sheri. The Primacy of Politics: Social Democracy and the Making of Europe’s Twentieth Century. Cambridge: Cambridge

University Press, 2006. p. 13–14


desejando sua destruição, como os marxistas, nem o venerando de maneira acrítica, como os liberais
- mas buscando uma “terceira via”, baseada na crença de que o Estado poderia e deveria controlar os
mercados sem destruí-los 33.

A maioria dos “partidos dos trabalhadores” da Europa que prepararam o caminho para os estados
de bem-estar atuais perderam grande parte da empolgante retórica que os conduziu ao poder. O que restou,
todavia, são as obrigações não financiáveis que sustentaram as promessas grandiosas de proteção do berço à
lápide, as dívidas e as promessas não cumpridas pelos esquemas de pirâmide, e a turbulência econômico-
social das sociedades por elas afetadas. (As eleições de 6 de maio de 2012 na Grécia, cuja razão foi a
incapacidade de financiamento do estado de bem-estar, levaram ao parlamento a populista e extremista
Coligação da Esquerda Radical [Syriza], além do fascista Partido da Aurora Dourada, fato esse que deveria
causar séria preocupação para os defensores da democracia liberal que tem o mínimo conhecimento da
história europeia do século XX).

O estado de bem-estar cria raízes nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, o estado de bem-estar chegou de uma forma um tanto diferente, embora com
fortes semelhanças com os movimentos iliberais europeus. Políticas que promoviam “transferências” de
recursos, muitas vezes através da concessão de privilégios especiais de vários tipos, tornaram-se arraigadas
depois do caso da Suprema Corte Munn versus Illinois (1877), que concedeu às legislaturas estatais o poder
de regulação / controle de preços e tarifas das ferrovias, dos silos e de outros negócios: essas mesmas
legislaturas tinham o poder para beneficiar alguns interesses à custa de outros. O presidente da Suprema
Corte, Morrison Waite, escreveu sobre a opinião da maioria:

A propriedade torna-se de interesse público quando usada de maneira pública, gerando


consequências para o público, isto é, afetando a comunidade em geral 34.

Assim começou uma nova fase do que se passou a chamar rent-seeking (tradução livre, caça à renda),
isto é, a busca do lucro para si à custa dos outros pelo uso das vias políticas. Agricultores buscaram benefícios
à custa das ferrovias; ferrovias, à custa dos concorrentes; produtores, à custa dos consumidores; e assim por
diante. Durante a chamada era progressista, o Estado-transferência floresceu no continente americano.
O colapso econômico da Grande Depressão foi resultado de decisões desastrosas do FED, além do
acúmulo sucessivo de políticas legislativas catastróficas, incluindo a tarifa Smoot-Hawley, que originou uma
onda de protecionismo que varreu o mundo, levando ao colapso do comércio internacional. Causa espanto,
todavia, que essa debacle tenha levado muitos a culpar a severidade e a duração da Grande Depressão
justamente em políticas insuficientemente protecionistas, e não o contrário. Durante a eleição presidencial
de 1932, o presidente republicano Herbert Hoover vangloriou-se de ter aumentado o intervencionismo para
lidar com as consequências de intervenções anteriores:

Havia dois caminhos a seguir: i) não fazer nada e encarar a ruína completa ou ii) propor medidas
conjuntas (público-privadas) para responder à crise. Felizmente, optamos pela segunda opção 35.

Hoover prometia mais intervencionismo caso fosse reeleito. Franklin Roosevelt, candidato da
oposição, fez campanha contra a administração fervorosamente intervencionista de Hoover. Roosevelt
prometia tanto abolir a desastrosa política de proibição do álcool (que foi, provavelmente, tão importante
quanto qualquer outra coisa para assegurar sua eleição) como esbravejava contra a política de gastos
excessivos de Hoover:

Eu acuso a presente administração de ser a que mais gastou em tempos de paz na história dos Estados
Unidos. Ela não só criou ministério após ministério e comissão após comissão, mas também falhou em
antecipar as grandes necessidades, e em impedir a redução do poder de compra da população.

33Ibid., p. 16–17
34
94 US 126 (1877), citado em NORTH, Douglass C, ANDERSON, Terry L. e HILL, Peter J. Growth & Welfare in the American Past: A
New Economic History. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 1983. p. 146.
35HOOVER, Herbert. Address Accepting the Republican Presidential Nomination. Aug. 11, 1932. Disponível em
www.presidency.ucsb.edu/ws/ index.php?pid=23198&st=&st1=#axzz1rUPyI5Ew. Veja também ROTHBARD, Murray N. Herbert
Hoover and the Myth of Laissez-Faire. in RADOSH, Ronald e ROTHBARD, Murray N. A New History of Leviathan. New York: E. P.
Dutton & Co., 1972. p. 111–145.
Ministérios e burocratas, comissões e comissários têm sido mantidos à custa do pagador de
impostos 36.

Apesar de fazer campanha contra as políticas intervencionistas de Hoover, a nova administração


Roosevelt de pronto adotou e remodelou as políticas da administração Hoover, lançando o New Deal, uma
incoerente série de intervenções sobre os processos econômicos que prolongou a Grande Depressão,
tornando-a a maior da história americana 37.
Muito do programa intervencionista herdado de Hoover e ampliado por Roosevelt incluía medidas
para evitar a deflação (que era a resposta normal da economia à redução drástica na oferta monetária por
parte do FED), entre elas: i) a destruição de grandes quantidades de alimentos, e a criação de um sistema
nocivo de subsídios agrícolas que ainda hoje é pilar fundamental do estado de bem-estar americano, ii) a
criação de grandes projetos de obras públicas, que atrasavam o ajuste econômico e prolongavam a Depressão,
e iii) o estabelecimento de um sistema de “seguridade social” de contribuição compulsória para a
aposentadoria, espelhado no sistema alemão que extorquia metade do tributo sobre o trabalho disfarçando-
o de “contribuição do empregador”. A criação de centenas de programas assistencialistas (frequentemente
propostos em nome dos “pobres”, mas, na realidade, abarcando segmentos cada vez maiores da população
até se tornarem universais) é o que caracteriza o estado de bem-estar moderno, e as semelhanças entre o
sistema americano e o europeu são, de fato, surpreendentes 38.
Muitos americanos não sabem que vivem em um estado de bem-estar, pois foram ensinados a
identificar o termo “bem-estar” exclusivamente com programas governamentais de transferência de renda
para os pobres – não percebem, infelizmente, que ao pagarem contribuições para a seguridade social, para o
Medicare e para tantos outros programas assistencialistas falidos estão a ele presos. Pior, embora os afro-
americanos sejam uma minoria do total de beneficiários de programas assistencialistas, a maioria dos
americanos associa a “assistência social” exclusivamente com pobreza e afro-americanos, sobretudo devido
à introdução de medidas contraproducentes como a “guerra à pobreza” e os programas da Great Society
(grande sociedade) lançados na década de 1960 pela administração Lyndon B. Johnson. O resultado não foi
exatamente o prometido: a proliferação e a expansão de programas dirigidos aos pobres e, principalmente,
aos afro-americanos, resultaram em colapso social, destruição das cidades americanas, enfraquecimento das
organizações voluntárias da sociedade civil, evisceração da instituição familiar, aumento das taxas de
criminalidade, e níveis sem precedentes de desemprego entre os jovens.
O sociólogo Frances Fox Piven notou que a “Guerra à Pobreza” e a “Grande Sociedade” faziam parte
da luta político-partidária nos Estados Unidos. Na década de 1950, o eleitorado negro já tinha se tornado peça
importante para o resultado das eleições nacionais. Em 1952, o candidato republicado à presidência, Dwight
Eisenhower, tinha recebido 21% dos votos de eleitores negros, e esse número subiu para 39%, em 1956.
Richard Nixon recebeu 32% dos votos dos eleitores negros em 1960 39. Como Piven observou,

Em 1960, os democratas já tinham sentido que o voto dos negros, especialmente nas cidades, tinha
se tornado crucial nas eleições presidenciais. (A história de como Kennedy tinha conquistado Illinois
por uma margem ínfima de 8000 votos, e o resultado esmagadoramente favorável em Chicago devido
à votação maciça de negros da zona sul da cidade, rapidamente se internalizou na tradição
democrata). Os negros ainda não estavam integrados aos partidos políticos nas cidades, e tampouco
detinham uma parcela importante do poder e dos serviços prestados pelas municipalidades em
proporção ao seu eleitorado. Para corrigir esse desequilíbrio, as administrações federais Kennedy-
Johnson gradualmente propuseram uma abordagem em duas frentes: primeiro, desenvolveram uma
série de novos programas focados em favelas e guetos, contornando os governos estadual e

36 ROOSEVELT, Franklin D. “Campaign Address on Agriculture and Tariffs,” The public papers and addresses of Franklin D. Roosevelt.

Volume one, The genesis of the New Deal, 1928–1932. New York: Random House, 1938. p. 742.
37 Veja SHLAES, Amity. The Forgotten Man: A New History of the Great Depression. New York: Harper, 2007; IRWIN, Douglas A.

Peddling Protectionism: Smoot-Hawley and the Great Depression. Princeton: Princeton University Press, 2011; e SMILEY, Gene.
Rethinking the Great Depression. Chicago: Ivan R. Dee, 2002.
38 Para um exame das similaridades (combinadas com repetidas ponderações das diferenças existentes), veja GARRATY, John A. The

New Deal, National Socialism, and the Great Depression. The American Historical Review, Vol. 78, No. 4 (Out. 1973), p. 907–94, e
SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Three New Deals: Reflections on Roosevelt’s America, Mussolini’s Italy, and Hitler’s Germany, 1933–1939.
New York: Henry Holt & Co., 2006. Em 1934, Mussolini, de fato, via o New Deal com bons olhos: “o experimento americano deveria
ser acompanhado de perto. Nos Estados Unidos, a intervenção governamental nos negócios é direta; e, às vezes, toma uma forma
peremptória. Os códigos não são nada mais que contratos coletivos que o presidente obriga ambos os partidos a aceitar. Nós
devemos esperar antes de fazer qualquer julgamento sobre tal experimento”. MUSSOLINI, Benito. Speech in the Senate on the Bill
Establishing the Corporations. 13 jan. 1934. In MUSSOLINI, Benito Mussolini. The Doctrine of Fascism. Rome: Ardita, (1935);
republicado por New York: Howard Fertig, 2006. p. 69.
39 WALTON, Hanes. Invisible Politics: Black Political Behavior. Albany: State University of New York Press, 1985. p. 123
municipal; segundo, encorajaram várias táticas para pressionar agências municipais a prestarem mais
serviços a negros 40.

A chave do sucesso da estratégia era contornar os níveis governamentais dominados por grupos que
viam os eleitores negros como ameaças ao seu sistema clientelista, notavelmente, os governos estaduais
administrados por democratas, frequentemente hostis a eleitores negros (especialmente nos estados sulistas
então controlados pelo Partido Democrata), e os governos municipais dos estados do norte, com frequência,
administrados por coalisões de “etnias brancas” (poloneses, italianos, eslovacos, etc). De fato, os democratas
não estavam dispostos a dividir os despojos do clientelismo e do poder político com os negros. Assim, “o
governo federal tinha que tomar uma iniciativa direta, isto é, estabelecer uma relação direta entre o governo
federal e os guetos, contornando os governos estadual e municipal... se os fundos passassem pelas mãos de
líderes políticos de etnias brancas, provavelmente, nunca chegariam ao gueto 41”.
A evidência da natureza estrategicamente política da “Grande Sociedade” era que os republicanos,
ao tomarem o poder, simplesmente trabalharam para direcionar os benefícios assistencialistas aos seus
eleitores. Grandes somas de dinheiro que tinham sido canalizadas diretamente para comunidades negras
foram transformadas em subvenções globais cuja administração ficava por conta dos governos estaduais (na
maioria dos casos, controlados por democratas ou republicanos brancos), e novas formas de clientelismo
foram criadas para servir às suas agendas políticas, pois, como Piven notou, essas medidas “não estão sendo
implementadas pelo fato de a política republicana ser baseada em uma abordagem clara da natureza de
nossos problemas domésticos, como [Daniel Patrick] Moynihan e outros críticos preferem acreditar, mas
simplesmente porque as propostas republicanas são projetadas para lidar com diferentes imperativos
políticos 42”.
Os “programas antipobreza” do estado de bem-estar americano não só asseguraram um grande
bloco eleitoral para um partido (polarizando, assim, a política partidária americana em linhas raciais), mas
também tiveram consequências enormes para o bem-estar econômico de milhões de pessoas. Enquanto
escrevo, a taxa de desemprego entre jovens negros é aproximadamente o dobro daquela de jovens asiáticos
e brancos, e 50% maior que a dos jovens de origem hispânica 43. O desemprego entre os jovens negros era
comparável a, e normalmente menor que, o desemprego entre jovens brancos até os programas da “Grande
Sociedade” ser iniciados, ponto onde os números começaram a divergir 44. A taxa de pobreza nos Estados
Unidos, que apresentava queda acentuada nas décadas de 1940, 1950 e 1960, permaneceu estável na década
de 1970, quando os programas da Grande Sociedade foram consolidados, e começou a crescer lentamente,
enquanto a participação de jovens afro-americanos na força de trabalho caía substancialmente 45.
Devido às falhas visíveis da “Guerra à pobreza”, muitos americanos, independentemente de sua
raça, associaram “bem-estar” com programas focados nas populações negras da periferia. Na verdade, o
dinheiro envolvido em programas focados nos pobres e em minorias representa uma fração do total
controlado e alocado pelo estado de bem-estar americano. Grande parte do dinheiro gasto na “Guerra à
pobreza” é, de qualquer forma, consumido pela própria burocracia. “Com extrema consistência”, escreveu
Daniel Patrick Moynihan em 1973, “os profissionais da classe média – independentemente de sua raça ou
etnia – quando convidados a elaborar formas de melhorar as condições de grupos da classe baixa proporiam
esquemas nos quais o primeiro efeito seria o de melhorar as condições destes mesmos profissionais, e o
segundo, o de melhorar ou não a condição dos pobres 46”. De acordo com Richard A. Cloward e Frances Fox
Piven, “as burocracias do estado de bem-estar foram criadas em nome dos pobres, embora os pobres não

40
PIVEN, Frances Fox. The Great Society as Political Strategy. In CLOWARD, Richard A. e PIVEN, Frances Fox. The Politics of Turmoil:
Poverty, Race, and the Urban Crisis. New York: Vintage Books, 1975. p. 271–83, p. 271–72.
41 Ibid. p. 276–77.
42 Ibid. p. 283.
43
Disponível em: http://bls.gov/news.release/youth.t01.htm.
44 WILLIAMS, Walter E. Race and Economics: How Much Can Be Blamed on Discrimination? Stanford: Hoover Institution Press, 2011.

p. 41–43
45 MURRAY, Charles. Losing Ground: American Social Policy, 1950– 1980. New York: Basic Books, 1984. p. xviii.
46 MOYNIHAN, Daniel P. The Politics of a Guaranteed Income. New York: Vintage Books, 1973), p. 54. O economista Walter E. Williams

notou em 1980 “no final das contas, se fôssemos somar todas as despesas em nível nacional, estadual e local justificadas com base
na luta contra algum aspecto da pobreza, concluiríamos que mais de US$ 250 bilhões de dólares são gastos nesses programas. Se,
ao invés disso, tivéssemos doado esse dinheiro aos pobres diretamente, cada família pobre de quatro membros teria recebido US$
40,000 por ano. No entanto, elas não receberam essa quantia. A maior parte do valor perde-se no caminho, indo para burocratas e
profissionais cuja responsabilidade é cuidar dos pobres. É como alimentar os pardais por meio dos cavalos. WILLIAMS, Walter E. The
Poor as First Victims of the Welfare State. Imprimis, Vol. 9, No. 7 (July 1980), p. 6. No livro The State Against Blacks, Williams
apresentou uma acusação convincente e bem-documentada contra todo o sistema intervencionista do Estado de bem-estar,
afirmando que ele, na verdade, prejudicava àqueles que supostamente deveria ajudar. Alguns dos dados foram atualizados em seu
livro Race and Economics: How Much Can Be Blamed on Discrimination?
fossem a sua verdadeira clientela. Com efeito, as agências serviam ativamente a grupos muito mais poderosos
que lhes podiam conceder a legitimidade e o apoio político que elas necessitavam para sobreviver e expandir-
se 47”.
O estado de bem-estar não é meramente uma coleção de programas pontuais e desconectos de
transferência de renda; ele é uma estratégia política coerente, levando consigo restrições perigosas /
prejudiciais à habilidade de os pobres melhorarem sua situação (protegendo, ao mesmo tempo, grupos
privilegiados de terem que competir com eles), conjugada com subsídios de renda para compensar
parcialmente os pobres por seus terríveis malefícios. Os mesmos políticos que se apresentam como amigos
dos pobres quando distribuem subsídios de alimentação são os mesmos que votam em manter os preços dos
alimentos altos via políticas de preços mínimos; os mesmos que impõem restrições à entrada no mercado de
trabalho por meio de licenças e que tiram trabalhadores não qualificados do mercado por meio de leis de
salário mínimo oferecem seguro-desemprego para mitigar os efeitos de suas políticas. Walter Willians notou,

As leis do salário mínimo e outras restrições ao mercado de trabalho efetivamente reduzem


oportunidades de trabalho e, portanto, a renda daqueles que são excluídos do mercado. Esse fato
sugere que, como parte de tal união de estratégias restritivas, deve haver alguma estratégia politica
pedindo vários tipos de programas de manutenção para prover renda àqueles que estão
desempregados como resultado do fechamento dos mercados: se a alternativa ao desemprego fosse
a miséria, apresentar-se-ia, aí, um clima social volátil. Portanto, é muito provável que as uniões
sindicais liderariam o apoio aos programas de subsídios de renda (vale-refeição, bem-estar, Job Corps
(similar ao PRONATEC), projetos de emprego em serviços públicos e vários tipos de programas de
empregabilidade) que representam a redistribuição da renda da sociedade em geral àqueles que
restringiram o mercado de trabalho em primeiro momento. Eles disfarçam os verdadeiros efeitos das
restrições à entrada no mercado de trabalho geradas pelos sindicatos e outros agentes econômicos
ao jogar algumas migalhas para aqueles a quem lhes foi negado o emprego para mantê-los calados,
assim, criando uma classe permanentemente do estado de bem-estar 48.

O Estado de bem-estar foi, é e continuará sendo, na essência, uma estratégia política de manipulação
de eleitorados políticos (e não de geração de bem-estar para a sociedade), em uma nova versão da antiga
relação de “reis” e “vassalos”. A manipulação se estende a todos os membros da sociedade, não somente aos
pobres.
Na obra Political Control of the Economy, o cientista político Edward Tufte mostrou como os
programas de transferência de renda, principalmente os direcionados à classe média, são sistematicamente
manipulados de acordo com o ritmo estabelecido pelo calendário das eleições, de forma a reforçar os “ciclos
econômico-eleitorais”, uma vez que os governos compassam os pagamentos de transferências de renda de
forma a maximizar a receita disponível logo antes das eleições, o que tende a reforçar o apoio do eleitor ao
partido da situação.

Ao redor do mundo, o ciclo econômico-eleitoral (dirigismo) gera uma economia instável, de “arranca
e para”. Os governos manipulam as transferências de renda, tornando o ano eleitoral a devassa do
sistema de seguridade social e do orçamento governamental. Existe um viés em prol de politicas
imediatistas com benefícios muito visíveis e custos ocultos diferidos - políticas míopes para eleitores
míopes. Interesses especiais induzem coalisões de políticos a impor pequenos custos a muitos de
modo a conceder grandes benefícios a poucos. O resultado é instabilidade econômica e ineficiência
geral 49.

O sistema de patronagem e clientelismo conhecido como estado de bem-estar finalmente depara


com algo que, em última instancia, não pode ser manipulado: a aritmética.
O total dos compromissos / obrigações do governo, sobretudo para pensões estatais, saúde, e outros
programas assistencialistas alcançou níveis insustentáveis. Tal fato é visível nas ruas de Atenas, onde
multidões de manifestantes “antigoverno”, compostas quase em sua totalidade de funcionários públicos,
lançaram coquetéis molotov contra outros funcionários públicos, os policiais. É visível, também, nos Estados
Unidos, onde as últimas duas administrações se endividaram mais que todos os governos anteriores na
história do país, não só para financiar suas ações militares em âmbito global, mas principalmente para pagar
as novas obrigações criadas pelos presidentes Bush (Medicare Prescription Drug, Improvement, and
Modernization Act) e Obama (Patient Protection and Affordable Care Act - vulgo Obamacare). A insensatez do

47 CLOWARD, Richard A. e PIVEN, Frances Fox. The Politics of Turmoil. p. 4.


48 WILLIAMS, Walter E. Black America and Organized Labor: A Fair Deal? Washington, DC: Lincoln Institute for Research and
Education, 1980. p. 25.
49 TUFTE, Edward. Political Control of the Economy. Princeton: Princeton University Press, 1978. p. 143.
presidente Bush por si só adicionou de US$ 17 a 18 trilhões de dólares ao desequilíbrio orçamentário 50. As
obrigações / compromissos não financiáveis oriundas da leviandade do presidente Obama são difíceis de
calcular, devido às incertezas sobre sua implementação, embora uma estimativa cautelosa do Office of the
Actuary do Center of Medicare and Medicaid Services gire em torno de US$ 17 trilhões de dólares no horizonte
de 75 anos 51. Em 2008, o presidente do FED de Dallas, Richard Fisher, descreveu “a matemática do Medicare”,
o programa de assistência médica do governo americano, de maneira categórica:

O programa é dividido em três partes: Medicare (PARTE A – seguro de assistência


hospitalar), que cobre os custos relativos a internações hospitalares; Medicare
(PARTE B – seguro de assistência médica), que cobre as despesas de visitas dos
médicos; e Medicare (PARTE D – plano de receita médica), que cobre os custos de
medicamentos e entrou em vigor 29 meses atrás. O valor presente descontado
das obrigações não financiáveis do Medicare A é de U$ 34,4 trilhões de dólares.
A obrigação não financiável do Medicare B é um adicional de 34 trilhões de
dólares. O déficit do Medicare D acrescenta outros US$ 17,2 trilhões de dólares.
O total? Se você quisesse cobrir as obrigações não financiáveis de todos os três
programas hoje, a conta seria de US$ 85,6 trilhões de dólares. Isso representa
uma conta seis vezes maior que a conta da seguridade social. É mais de seis vezes
o valor do PIB dos Estados Unidos 52.

Essas obrigações não serão honradas, pois, simplesmente, não existe riqueza suficiente para tal. Elas
podem ser repudiadas por meio da inflação, o que significa que o peso dela cairia sobremaneira nas costas
dos pobres e desfavorecidos, e ao custo de distorções graves na poupança do mundo; ou elas podem ser
repudiadas pelo velho e conhecido calote; ou ainda, podem ser repudiadas ao “mudar as regras” para
desqualificar grupos ou categorias quanto ao recebimento dos benefícios prometidos. As dívidas oficiais dos
estados de bem-estar do mundo já estão em níveis preocupantes, no entanto, os desequilíbrios
orçamentários, quando calculados para incluir o total das obrigações não financiáveis – promessas de
benefícios futuros, para os quais não existe receita disponível - ofuscam as dívidas oficialmente reconhecidas.
Dívidas não serão pagas, e promessas não serão cumpridas. Cada dia mais, as pessoas – especialmente, as
mais jovens – precisam começar a pensar em alternativas para o estado de bem-estar.

Antes do Estado de Bem-estar… e depois

Os políticos adoram apontar o que aconteceu depois de terem aprovado uma lei. “Veja!” eles nos
dizem: “desde a introdução de nossa lei contra acidentes de trabalho, o número deles caiu!”, levando, assim,
todo o crédito por qualquer melhoria posterior à implementação da nova lei. Para testar a eficácia da lei,
recomenda-se ver a tendência antes que a lei fosse aprovada. Se a tendência já era de queda, talvez em um
ângulo ainda mais acentuado, ela enfraquece a credibilidade da afirmação que a nova lei foi responsável pelas
melhorias posteriores 53. A análise de linha de tendência é uma forma útil de verificar se as políticas
efetivamente melhoraram a situação. O que estava ocorrendo antes de a lei ser aprovada? Talvez outra coisa
seja responsável pelas melhorias.
Os defensores do estado de bem-estar querem nos fazer crer que, antes do estado de bem-estar,
nenhum tipo de assistência estava disponível (assistência médica, educação, pensões para a velhice, etc). Isso
não é verdade. Com efeito, em muitos casos, o estado de bem-estar simplesmente assumiu o controle de
instituições e de arranjos criados por associações voluntárias, levando o crédito por elas.
Antes de sua substituição pelo estado de bem-estar, havia uma proliferação interessante de
instituições voluntárias que ajudavam pessoas a lidar com os problemas da vida, de cuidados médicos a uma
mão amiga em tempos de dificuldades financeiras. Historiadores têm documentado a história marcante das

50 Citado no testemunho de Jagadeesh Gokhale do Cato Institute no Committee on Homeland Security and Government Affairs,

Subcommittee on Federal Financial Management, Government Information, and International Security, 109th Cong. 22 Set. 2005,
disponível em www.hsgac. senate.gov/download/092205gokhale. Veja também FISHER, Richard. Storms on the Horizon: Remarks
before the Commonwealth Club of California. Disponível em www.dallasfed. org/news/speeches/fisher/2008/fs080528.cfm.
51
President’s Health ‘Reform’ Grows Unfunded Obligations By $17 Trillion. Disponível em
http://budget.senate.gov/republican/public/index.cfm/2012/3/president-s-health-reform-grows-unfunded-obligations-by-17-
trillion.
52 FISHER, Richard. Storms on the Horizon.
53
A análise de linha de tendência é explicada em MURRAY, Charles. What It Means to Be a Libertarian: A Personal Interpretation.
New York: Broadway Books, 1997. p. 47–56.
“sociedades amigáveis” que proviam tal “ajuda mútua” (soliedariedade, seguro contra doenças e acidentes,
apoio moral) de maneira voluntária, antes de o estado de bem-estar tê-las destruído. No caso da Inglaterra,
de acordo com o historiador Simon Cordery,

Essas organizações coletivas de ajuda mútua ofereceriam aos trabalhadores a segurança do seguro
mútuo, além de oportunidades para solidariedade regular e ritualizada. Elas constituíram o maior
conjunto de associações voluntárias na Inglaterra, atingindo cerca de 6 milhões de membros –
equivalente a 1/2 de todos os homens adultos – em 1904 54.

Poucas pessoas estão cientes de que as “sociedades amigáveis”, documentadas em outros capítulos
desde livro, tinham mais membros que os maiores sindicados registrados na história, e muito mais apoio que
os movimentos socialistas que tomaram o poder em muitos países, oferecendo sistemas amplamente
superiores de prestação de serviços sociais, e assegurando dignidade para a classe trabalhadora 55.
O estado alemão imperial-socialista de Bismarck usou a força para obrigar os trabalhadores alemães
a pagar o “seguro”, enquanto a Inglaterra, mais liberal, confiou no voluntarismo. Como o historiador E. P.
Hennock observou:

Na Prússia, e subsequentemente no Império Alemão, o seguro era compulsório para categorias


específicas da população. Na Inglaterra e no País de Gales, um escrivão-chefe tentou de modo
infrutífero monitorar a ação de uma multidão de associações voluntárias. No entanto, mesmo nos
anos 1870, sob as condições sociais e culturais da Inglaterra, o seguro voluntário tinha conquistado a
população de forma mais profunda que a compulsão local e seletiva empregada na Prússia. No início
dos anos 1890, mesmo depois de a compulsão ter sido introduzida em todo o Império Alemão, ela
ainda não tinha o mesmo poder de adesão do sistema voluntário praticado na Inglaterra. Com o passar
do tempo, todavia, a compulsão em nível nacional foi assimilada pela população, gerando confiança
política em seu funcionamento: esse modelo se expandiu rapidamente e produziu resultados bem
acima dos alcançados por meios voluntários. A vantagem da compulsão burocraticamente
administrada era que procedimentos politicamente aceitos poderiam ser progressivamente impostos
sobre outros setores da população 56.

Quão valioso foi qualquer alegado aumento de extensão da cobertura do seguro quando isso
significou, de fato, a substituição do autogoverno dos trabalhadores pela governança burocrática que
atenuava ou mesmo eliminava drasticamente a concorrência entre os provedores de serviços?
Além disso, como Hennock notou em outro momento, o sistema da Alemanha Imperial foi
estabelecido, desde o principio, sob uma base insustentável, a saber, o sistema de repartição. Referindo-se
ao sistema corporativista compulsório conhecido como Berufsgenossenschaften (associações ocupacionais),
para as quais os trabalhadores eram designados, e para as quais deveriam pagar seu seguro, Hennock destaca:
Bismarck “descobriu que um Berufsgenossenschaften de participação plena não necessitaria acumular
grandes reservas de capital para cobrir suas obrigações futuras. Como quaisquer outras instituições estatais,
elas seriam capazes de operar no princípio da repartição, cumprindo suas obrigações anuais mediante o
aumento da contribuição necessária de seus membros no ano seguinte. Como as obrigações se acumulariam
somente de forma gradual, esse arranjo reduziria os custos nos primeiros anos, tornando viáveis os níveis
propostos de compensação. Conquanto isso fosse alcançado à custa da acumulação de problemas no futuro,
por ora, a preocupação com subsídios estatais era colocada de lado 57”.
Em outras palavras, os políticos se deram conta que poderiam fazer o que quisessem no presente,
deixando a conta para o futuro, afinal, eles não estavam negociando com pessoas livres para fazer suas
próprias escolhas, informadas por preços e outros indicadores presentes de obrigações futuras. O socialismo
de estado de Bismarck substituiu a preocupação responsável com o futuro pela lógica do curto prazo, do

54
CORDERY, Simon. British Friendly Societies, 1750–1914. New York: Palgrave Macmillan, 2003. p. 1.
55 BEITO, David. From Mutual Aid to the Welfare State: Fraternal Societies and Social Services, 1890–1967. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 2000; GREEN, David. Working Class Patients and the Medical Establishment. New York: St. Martin’s Press,
1985; MARQUES, Nicolas. Le monopole de la sécurité sociale face à l’histoire des premières protections sociales. Journal des
Économistes et des Études Humaines, vol. X n° 2, Set-Out. 2000, disponível em: www.euro92.com/acrob/marques%20mutu-
elles.pdf; GREEN, David G. e CROMWELL, Lawrence. Mutual Aid or Welfare State: Australia’s Friendly Societies. Sydney: Allen &
Unwin, 1984; GREEN, David. Reinventing Civil Society: The Rediscovery of Welfare Without Politics. London: Institute of Economic
Affairs, 2000; HOWES, Anton. Friendly Societies, the State and the Medical Profession in Great Britain 1900–1939. tese não publicada,
King’s College, London, 2012.
56 HENNOCK E. P. The Origin of the Welfare State in England and Germany, 1850–1914. Cambridge: Cambridge University Press,

2007, p. 176. Hennock parece não entender (como muitos, na época) que a chamada “contribuição do empregador” era debitada
em sua totalidade do pacote salarial do empregado e não representava uma transferência dos empregadores para os empregados,
mas meramente uma redução do salário do empregado.
57 Ibid., p. 92.
oportunismo, por meio de um sistema de repartição que transferia o acerto de contas para as gerações
futuras. Esse modelo compulsório enfraqueceu sobremaneira as associações voluntárias que tinham sido o
alicerce da sociedade alemã e, quando exportado para a Inglaterra e outros países, teve os mesmos efeitos.
Não é verdade que antes do Estado de bem-estar não havia nada. Havia algo melhor, mas que foi destruído
pelo Estado.
Da mesma forma, serviços educacionais providos de forma voluntária já vinham espalhando o
alfabetismo antes de o Estado aboli-los, revertendo a tendência. O historiador da educação E. G. West
observou que “em 1833, quando o governo passou a interferir na educação, principalmente no papel de
subsidiador, presenciou-se a situação da pessoa que chega atrasada e quer sentar na janela 58”. Como
documentado à exaustão pelo estudioso da educação James Tooley, hoje, praticamente todos os estados
alegam oferecer educação pública e de qualidade, embora seja difícil encontrar exemplos disso na prática.
Onde a solução estatal da educação “gratuita e compulsória” está falhando, a provisão voluntária está
funcionando, mesmo para os mais pobres entre os pobres, como Tooley documenta em seu livro The Beautiful
Tree: A Personal Journal into How the World’s Poorest Are Educating Themselves 59.
Em alguns casos, as instituições voluntárias da sociedade civil que ofereciam serviços sociais,
cuidados médicos e educação foram deliberadamente condenadas à extinção; em outros, foram meramente
tornadas redundantes. Associações voluntárias de trabalhadores engajadas em resolver seus próprios
problemas eram um grande impedimento a vários partidos e causas estatistas. “A grande maioria de nós tem
uma crença forte no principio voluntário em oposição à compulsão estatal”, entoou um escritor em uma
edição da revista Oddfellows Magazine de 1909 60. As sociedades amigáveis da Alemanha e da Inglaterra foram
condenadas à extinção precisamente porque estimulavam independência, e não coletivismo, nas massas da
população. As associações voluntárias da sociedade civil definhavam nos Estados Unidos à medida que o
Estado impunha políticas projetadas para criar eleitorados políticos e dependência. Em todos os lugares, as
pessoas se acostumaram a recorrer ao Estado para melhorar sua situação. Nós podemos desmantelar o estado
de bem-estar, e evitar os efeitos catastróficos de seu colapso. Se a Grécia não é um exemplo grave o suficiente,
o destino da República de Weimar deveria ser, despertando, assim, a nossa atenção para a necessidade de
lidar com o prejuízo imposto à sociedade pelos estados de bem-estar. Nós podemos evitar a catástrofe, e
substituir o estado de bem-estar por instituições mais justas, mais honestas, mais eficientes, e mais prestativas
àqueles que estão em situação difícil.
A missão de gerir transições pacíficas e ordenadas da dependência induzida pelo estado, de um lado,
à liberdade e independência, do outro; da pobreza perpetuada à mobilidade ascendente; e do clientelismo à
cidadania ativa recai sobre a geração que hoje está chegando à fase adulta. Seus antepassados a
decepcionaram. É hora dessa geração se expressar por meio do envolvimento sistemático e construtivo no
debate público e nas decisões políticas de forma a externalizar sua revolta contra o desperdício, a
irresponsabilidade, e a imprudência de seus antepassados que pensavam que deixar o problema para o futuro
faria o problema desaparecer. Nós estamos no futuro, e essa geração não tem tempo a perder. É o fim da
linha para o estado de bem-estar.

Depois do Estado de bem-estar

O estado de bem-estar está em crise. As promessas feitas em seu nome são uma mistura de ilusão
e mentiras descaradas. Ele emergiu como um mecanismo de poder; ele substituiu, afastou, e extinguiu
instituições voluntárias e participativas; ele enfraqueceu e atomizou sociedades, além de comprometer a
responsabilidade pessoal; ele substituiu independência e direitos por dependência e clientelismo. Ao usurpar
a responsabilidade dos cidadãos por seu próprio bem-estar, tornou-os clientes, vassalos, súditos e suplicantes.

58 58 Citado em BARTHOLOMEW, James. The Welfare State We’re In. London: Politico’s, 2004, p. 153. Em seu livro,
Bartholomew mostra como o Estado de bem-estar tem sido creditado por avanços que se deram por outras causas, e, de quebra,
documenta os efeitos negativos desse, tais como a deterioração da civilidade e o aumento da dependência, da criminalidade e de
outras patologias das sociedades modernas. Os livros de West foram pioneiros no estudo da educação sem o Estado. Um breve
ensaio sobre o tópico, The Spread of Education Before Compulsion: Britain and America in the Nineteenth Century, pode ser
encontrado no The Freeman, vol. 46, 7ª edição (Jul. 1996), disponível em www. thefreemanonline.org/featured/the-spread-of-
education-before-compulsion-britain-and-america-in-the-nineteenth-century/. Para uma visão geral da questão, veja TOOLEY,
James. Education Without the State. London: Institute of Economic Affairs, 1998, especialmente, cap. 3, The Secret History of
Education Without the State. Disponível em: www.iea.org.uk/sites/default/fi les/publications/fi les/ upldbook56pdf.pdf.
59 TOOLEY, James. The Beautiful Tree: A Personal Journal into How the World’s Poorest Are Educating Themselves. Washington, DC:

Cato Institute, 2009.


60 Oddfellows’ Magazine, No. 414 (Jun. 1909). In CORDERY, Simon. British Friendly Societies, 1750–1914, p. 155
A ideologia do estado de bem-estar apoia-se em uma confusão entre processos e resultados. Os
defensores do estado de bem-estar afirmam que se focam em resultados nobres, embora prestem pouca ou
nenhuma atenção aos processos pelos quais esses podem ser obtidos. Mesmo declarados liberais, que tinham
lutado para derrubar sistemas opressores de poder e subjugação no passado, passaram a acreditar que
resultados benéficos poderiam ser legislados. Herbert Spencer chamou o emergente estatismo de bem-estar
de “liberalismo social” de seu dia, um “novo tradicionalismo”, isto é, um novo conservadorismo, já que os
ideólogos do assistencialismo estavam a adotar os métodos de sistemas conservadores e hierárquicos de
controle social na busca do que pensavam ser objetivos progressistas.

A obtenção do bem popular, sendo um traço visivelmente externo comum às medidas progressistas
no princípio (então, em cada caso, obtido pelo relaxamento de algumas restrições), sofreu uma
mutação, e o bem popular, antes para os progressistas um fim a ser atingido indiretamente pelo
relaxamento de restrições, passou a ser um fim a ser diretamente obtido. De que forma? Através de
métodos intrinsecamente opostos aos usados originalmente 61.

Assim, “o liberalismo social” passou a divergir do liberalismo autêntico, hoje chamado “liberalismo
clássico”. O foco da reforma já não era princípios, regras e instituições, mas sim tentativas de se chegar a
regras diretamente através do uso de poder coercivo. Resultados só muito raramente são sujeitos à escolha.
Normalmente, escolhemos meios (incluindo regras e processos), e não resultados, na esperança de que esses
meios trarão os resultados esperados 62. Quando os legisladores se esquecem da importância dos meios – e,
no caso da cooperação humana, que incentivos importam, e que não existem varinhas mágicas a serem
balançadas sobre o mundo de forma a atingir resultados diretamente – a tendência é que, caso sigamos as
políticas que nos são impostas, tenhamos terríveis consequências não intencionais. O dia está chegando
rápido – e já chegou em alguns países – quando as consequências não intencionais dos estados de bem-estar
se tornarão incontestáveis. É hora de acabar com o show de mágica, fechar as cortinas e revelar que os
mágicos são somente políticos e burocratas – seres humanos normais, como todos nós.
Os que acreditam no valor da moral, da dignidade e dos direitos de seres humanos deveriam se
postar como o liberal clássico Benjamin Constant:

Eles [os detentores da autoridade] estão prontos para nos pouparem de todos os problemas, exceto
dos que se referem a obedecer e a pagar! Eles dirão: o que, no final, é o objetivo de seus esforços, o
motivo de sua labuta, o objeto de todas as suas esperanças? Não é a felicidade? Bem, deixe essa
felicidade conosco e nós a daremos a você. Não, senhores, não devemos deixar isso nas mãos deles.
Não importa quão comovente tal compromisso possa ser, é hora de pedir que eles permaneçam
dentro dos limites da lei. Que se limitem a ser justos. Nós devemos assumir a responsabilidade por
nossa própria felicidade 63.

Os estados de bem-estar que conhecemos estão fracassando. É hora de nos prepararmos para o que
virá depois deles. Se os líderes intelectuais e políticos insistirem em mais e mais intervenção estatal para
resolver os problemas de intervenções estatais anteriores, nossas sociedades mergulharão ainda mais em
corporativismo, autoritarismo populista, e ressentimento para com mais promessas não cumpridas. O que é
necessário é mais liberdade, mais escolha, mais comportamento responsável, e mais atenção para evitar a
grave injustiça de transferir as dividas para o futuro, e de oferecer benefícios aos eleitores atuais. A força não
substitui a liberdade, e tampouco produz segurança, felicidade, prosperidade e paz.
É hora de se preparar para liberdade, responsabilidade e prosperidade após o estado de bem-estar.

61
Herbert Spencer. The New Toryism [1884]. In SPENCER, Herbert. Political Writings, ed. por John Offer. Cambridge: Cambridge
University Press, 1994. p. 69.
62 Veja também PENNINGTON, Mark. Robust Political Economy: Classical Liberalism and the Future of Public Policy. Cheltenham:

Edward Elgar, 2011. Para expansão do ponto geral que processos, em vez de resultados, são o tópico normal da escolha política.
63
CONSTANT, Benjamin. The Liberty of the Ancients Compared with that of the Moderns. (1819). In CONSTANT, Benjamin. Political
Writings, ed. por Biancamaria Fontana. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 326.
A evolução da ajuda mútua

Por David Green

Autoajuda e caridade não são as únicas alternativas ao estado de bem-estar, como frequentemente
tem sido afirmado. A ajuda mútua, como exemplificado nas sociedades amigáveis descritas pelo historiador e
cientista político David Green, provia solidariedade, assistência, benefícios médicos, entre outros, além de uma
plataforma para propagação de valores morais. David Green é fundador e diretor da Civitas, um instituto para
o estudo da sociedade civil com sede em Londres. Em seus livros, ele mostra como a provisão estatal de seguro
saúde (iniciada na Inglaterra em 1911) e outros elementos do estado de bem-estar minaram a existência das
sociedades amigáveis. Green é o autor de diversos livros, incluindo Working Class Patients and the Medical
Establishment e Reinventing Civil Society: The Rediscovery of Welfare Without Politics (London: Civitas, 2000),
do qual esse capítulo foi extraído.

A maioria dos registros de provisão de proteção social tende a concluir que a melhoria dos serviços
assistenciais muito se deve ao aumento do envolvimento governamental no processo. Ao longo do tempo, o
estado de bem-estar supostamente ocupou um espaço deixado pelo mercado. Contudo, um exame mais
cuidadoso das evidências mostra que não a realidade era muito diferente. Pessoas em necessidade devido a
sua incapacidade, temporária ou permanente, de obter o suficiente para sua subsistência eram apoiadas de
várias formas. Pelo seu caráter informal e não documentado, a ajuda de família e vizinhos tende a ser
subestimada pelos historiadores. As instituições de caridade também foram importantes e se supõe que a
assistência organizada antes do estado de bem-estar ficava sob sua responsabilidade, no entanto, sem dúvida,
o método organizado mais importante pelo qual as pessoas atendiam às necessidades de seus irmãos era a
ajuda mútua. Na Inglaterra, as sociedades amigáveis foram os provedores mais importantes de assistência
durante os séculos XIX e XX 64.
As sociedades amigáveis eram associações autônomas de benefício mútuo, fundadas por
trabalhadores como uma forma de proteção contra tempos difíceis. Elas se distinguiam fortemente em sua
filosofia orientadora da filantropia, a qual estava na essência das obras de caridade. As sociedades amigáveis
não eram administradas por um grupo de pessoas com a intenção de ajudar outro grupo, mas sim uma
associação de indivíduos que se comprometia com a ajuda mútua quando a ocasião assim exigisse. Qualquer
assistência não era questão de generosidade, mas sim de direito, esse obtido por contribuições regulares
pagas a um fundo comum por todo membro, e alicerçada na obrigação de se fazer o mesmo caso outro
membro estivesse passando por dificuldades. Primeiro, como clubes locais, mantinham seu fundo comum em
uma caixa de madeira ou cofre, depois, de forma gradual ao longo do século XIX, tornaram-se federações
nacionais com centenas de milhares de membros, dotadas de investimentos cuidadosamente administrados.
Durante o século XIX até o início do século XX, a maioria das famílias se orgulhava de ser autônoma,
contudo, os salários eram tais que se o chefe de família ficasse doente ou morresse, a privação era o resultado
invariável. A filosofia forjada por essa dura realidade foi a ajuda mútua. Nos primeiros anos do século XX, as
sociedades amigáveis já tinham um longo histórico de funcionamento como clubes sociais e benevolentes,
além de como provedores de benefícios como i) auxílio-doença, quando o chefe de família não era capaz de
obter um salário por motivo de doença, acidente ou idade avançada, ii) cuidados médicos tanto para o
membro como para seus dependentes e iii) benefício por morte para viúvas e órfãos de membros falecidos.
Os serviços médicos eram quase sempre fornecidos por um médico da Loja ou da região, o qual era escolhido
pelo voto dos membros, embora as cidades maiores já contassem com uma clínica médica que oferecia os
serviços hoje prestados por postos de saúde. Essas sociedades também ofereciam uma rede de suporte que
permitia aos membros viajarem em busca de trabalho.
Entre as mais antigas estava a Incorporation of Carters, fundada em 1555, na cidade de Leith, Escócia.
Contudo, foi apenas no século XVIII que o número de sociedades expandiu-se rapidamente.
A adesão às sociedades amigáveis cresceu firmemente durante o século XVIII. Em 1801, um estudo
oficial de Sir Frederic Eden estimou que houvesse aproximadamente 7.200 associações, totalizando 648.000
membros do sexo masculino de uma população total de nove milhões de habitantes. Tal informação pode ser
comparada com os números do relatório da Poor Law para 1803, quando se estimou que houvesse 9.672
associações com 704.350 membros, e isso só na Inglaterra e no País de Gales 65.

64 Para uma comparação com as sociedades amigáveis australianas veja GREEN, David G. e CROMWELL, Lawrence. Mutual Aid or
Welfare State.
65 GOSDEN, P. H. J. H. The Friendly Societies in England 1815–1875. Manchester: Manchester University Press, 1961. p. 4–5.
Em 1911, quando o governo inglês introduziu o seguro social compulsório para 12 milhões de
pessoas via o Nacional Insurance Act, pelo menos nove milhões já estavam cobertas por associações de seguro
voluntárias registradas e não registradas, principalmente, sociedades amigáveis. Em 1910, o último ano inteiro
antes da lei de 1911, havia 6,6 milhões de membros nas sociedades amigáveis registradas, muito acima dos
números das não registradas. De 1881 a 1910, a taxa de crescimento das sociedades amigáveis já vinha
aumentando 66. Em 1877, a adesão registrada tinha sido de 2,75 milhões. Dez anos depois, 3,6 milhões,
aumentando a uma taxa média de 85.000 ao ano. Em 1897, 4,8 milhões, tendo aumentado a uma taxa de
média de 120.000 ao ano. Em 1910, 6,6 milhões, tendo aumentado a uma taxa anual, desde 1897, de 140.000.
Foi no auge de sua expansão que o Estado interveio, introduzindo o seguro de saúde nacional
compulsório.

Origens

No início, as sociedades eram formadas por grupos de homens que se conheciam e se encontravam
regularmente para socializar, sempre em um estabelecimento público. Todos os membros pagavam uma
contribuição regular que lhes concedia direito a um benefício. Algumas distribuíam os lucros anualmente,
pouco antes do Natal; outras acumulavam fundos por mais de um ano. Algumas delas não tinham regras
escritas; outras tinham regulamentos elaborados. Cada sociedade era completamente autônoma, e essa
característica de autogestão era um dos seus maiores atrativos, já que ela se adaptava rapidamente para
atender, sempre e quando necessário, as necessidades de seus membros. Quando o governo introduziu um
sistema de registro, muitas sociedades preferiram não se registrar, por que fazê-lo significava uma limitação
legal à sua capacidade de adaptação. Como P. H. Gosden, o principal historiador das sociedades amigáveis,
comenta: “se a maioria dos membros quisesse gastar parte de sua contribuição em uma festa anual, eles
queriam ter a opção de realiza-la sem o risco de qualquer interferência de agentes do governo 67”.
Muitos dos primeiros clubes eram organizados como associações repartidoras, isto é, cada membro
pagava uma quantia igual ao fundo comum e se houvesse, ao final do ano, um saldo após o pagamento de
benefícios, esse era dividido igualmente entre os membros. Tais sociedades mantiveram sua popularidade
durante o século XX, mas suas desvantagens logo se tornaram evidentes. Primeiro, a falta de um fundo
acumulado fazia com que, às vezes, elas ficassem sem dinheiro; segundo, por causa da renovação anual da
filiação, muitas pessoas doentes eram, amiúde, expulsas no final do ano. Essas falhas levaram ao surgimento
de federações com reservas acumuladas e um direito à filiação continuada - desde que as contribuições
fossem pagas de acordo.
As federações começaram a se desenvolver no início do século XIX, e se tornaram conhecidas como
ordens filiadas. Quando da Comissão Real sobre Sociedades Amigáveis em 1874, havia 34 delas com mais de
1.000 membros cada, com a Manchester Unity of Oddfellows e a Ancient Order of Foresters sendo
responsáveis, sozinhas, por quase um milhão de membros.
O surgimento de federações teve implicações consideráveis para a governança interna das
sociedades. A ética prevalente nos primeiros clubes era de que todo mundo deveria ter igualdade de voto nas
decisões comuns. E como era possível a reunião de todos os membros num local escolhido, a prática normal
era a tomada de decisão em uma assembleia geral. Essas reuniões iniciais não se destinavam somente à
tomada de decisões, mas também à diversão, como as regras dos primeiros clubes refletiam. De forma
ordeira, os membros podiam socializar entre si, bebendo uma boa cerveja.
As primeiras instituições de trabalhadores tentaram diversos métodos diferentes de autogestão.
Primeiro, o referendo: membros que não podiam se encontrar num único local ainda poderiam votar.
Segundo, um braço executivo, com poder rotativo de filial para filial. Terceiro, uma reunião de delegados,
sendo cada delegado estritamente vinculado às instruções dos membros de sua filiada. Quarto, uma
assembleia representativa, composta por membros eleitos livres para tomar as decisões que julgassem ideais,
à luz dos fatos dos quais estavam cientes, e dos desejos e interesses de seus membros.
Gradualmente surgiu uma estrutura federal em três níveis – filial, distrital e nacional – que
combinava autonomia local significativa com representação em níveis distrital e nacional. Nas ordens filiadas,
as filiais – conhecidas como Lojas entre os Odd Fellows e Cortes entre os Foresters – retinham amplos poderes,
embora a autoridade com capacidade de decisão final estivesse com as assembleias anuais e bianuais.

66 GOSDEN, P. H. J. H. Self-Help. London: Batsford, 1973, p. 91; BEVERIDGE, William (Lord) Voluntary Action. London: Allen & Unwin,

1948, p. 328.
67
GOSDEN, P. H. J. H. The Friendly Societies in England. p. 18.
O oficial mais importante era o Mestre Secretário, às vezes com esse título e, em outras, Secretário
Correspondente, Secretário Permanente ou Escriba da Alta Corte. As sociedades se orgulhavam da
ausência de barreiras ao avanço de qualquer membro a cargos superiores: os direitos de cada membro
individual são cuidadosamente respeitados e protegidos; cada indivíduo tem direitos e privilégios
iguais; o mérito é o único meio pelo qual se pode chegar a cargos de honra, e nenhum tipo de barreira
artificial é autorizada para impedir que a virtude e o talento ocupem seu lugar de merecimento 68.

Foi somente no decorrer do século XIX que um nível intermediário de organização foi introduzido
entre as filiais locais e o nível nacional. Considerou-se aconselhável distribuir o passivo do benefício de morte
de forma mais ampla do que unicamente entre os membros de cada filial, onde mesmo algumas poucas
mortes em um curto período de tempo poderiam exaurir o fundo. Muitas sociedades desenvolveram uma
estrutura distrital para dividir o risco. Cada distrito derivava sua autoridade do órgão central, embora fosse
governado por um comitê de representantes das filiais. Além do controle dos fundos funerais, os distritos
também serviam como tribunais de recurso e supervisavam a administração de várias Lojas, examinando
contas e intervindo quando necessário. As Lojas eram obrigadas a enviar balanços e relatórios anuais ao
distrito, assim como ao órgão central 69. No entanto, algumas filiais não gostavam do controle adicional que o
sistema distrital implicava, preferindo não se afiliarem.
Na metade do século XIX, o processo de evolução de clube local, com sua democracia participativa,
para a estrutura de três níveis, com uma assembleia representativa e um diretor geral, já estava consolidado.
Mas o ideal original de democracia pura ainda tinha muita força e era, com frequência, o critério com base no
qual mudanças propostas à estrutura de tomada de decisão eram julgadas. Durante o auge das clínicas
autônomas locais, a opinião geral era a de que todo mundo estava igualmente preparado para ocupar um
cargo, uma crença comum em outras organizações de trabalhadores. Por exemplo, em um importante artigo
publicado no Clarion pouco antes da fundação do Partido Trabalhista Independente em 1893, o editor (na
opinião de Sidney Webb, o membro mais influente daquele partido), declarou:

É praticamente certo que, consoante aos deveres ordinários de oficiais e delegados, tal como sucede
com membros do comitê ou com membros do Parlamento, um cidadão comum, se for totalmente
honesto, será considerado perfeitamente capaz de fazer tudo que for necessário... que todos os
oficiais desocupem o cargo depois de um ano de serviço, e que novos sejam eleitos em seu lugar 70.

As sociedades amigáveis mantiveram muito desse espírito e, ao longo de muitos anos, a sua
estrutura evoluiu ao equilibrar a necessidade de desempenho satisfatório dos deveres organizacionais e o
desejo de participação máxima dos membros.

As associações e a democracia participativa

As sociedades amigáveis são de especial interesse porque buscaram combinar alto nível de controle
individual com administração eficiente. O estado de bem-estar é normalmente criticado por centralização
excessiva, mas esse não tem sido um problema só enfrentado por governos. Tão logo as ordens filiadas
deixaram de ser somente clubes locais, o equilíbrio de poder entre o centro e as filiais se tornou uma
preocupação constante.
As associações filiadas produziram um conjunto de soluções únicas para esse velho problema,
soluções que minimizaram os custos e maximizaram as vantagens da eficiência que um alto nível de
participação pode trazer. A abordagem adotada pelos Foresters foi a de que toda a autoridade legal era
originada “de e para os membros em geral”. O poder dos membros, diz a primeira lição dos Foresters, “é como
a luz do sol – natural, original, imanente e ilimitada – e o poder dos representantes, somente emprestado,
delegado e limitado pela vontade dos membros, a qual é referência, e pelo que todos os oficiais são
responsáveis”. Na filial, todos os Foresters reuniam-se em pé de igualdade:

No tribunal, e perante a lei, ninguém é maior que o outro. Todos lá se encontram em pé de igualdade...
nenhum cargo é tão elevado que o mais pobre a ele não possa aspirar; nenhum dever é tão humilde
que o rico possa desprezar. A inteligência para governar, a habilidade para liderar com firmeza, ainda

68
Ancient Order of Foresters, General Laws, Observations on the Advantages of Forestry. 1857.
69 BAERNREITHER, Josef Maria. English Associations of Working Men. London: Swan Sonnenschein, 1893. p. 380; LANGRIDGE, G. D.
Lecture on the Origin, Rise and Progress of the Manchester Unity Independent Order of Odd Fellows. Melbourne: Manchester Unity,
1867. p. 20–21.
70
WEBB, Sidney and Beatrice. Industrial Democracy. London: The Authors, 1913. p. 36, nota 1.
que de forma humilde, e a conduta pessoal para conquistar o respeito são todas as qualificações que
um cargo requer; essas podem ser adquiridas por qualquer membro que assim o desejar 71.

Os primeiros clubes concederem ao presidente da filial o poder de aplicar multas por má conduta, e
as ordens filiadas seguiram seu exemplo. A filial Court Old Abbey dos Foresters, sediada em Guisborough,
concedeu poderes ao seu Guardião-Chefe para multar membros em três pence por interromper outrem ou
em seis pence por xingamento ou uso de linguagem abusiva ou insultante 72.
Ao mesmo tempo, as federações, assim como os primeiros clubes, estavam perfeitamente
conscientes da necessidade de evitar que os presidentes em exercício abusassem de seu poder. A maioria das
associações deixava isso claro na cerimônia de posse do novo presidente. Em seu juramento de posse, o
Guardião-Chefe dos Foresters dizia:

Eu, [nome], tendo sido eleito Guardião-Chefe, solenemente prometo e declaro perante vocês e os
irmãos presentes, que farei tudo em meu poder para promover o bem-estar, a paz, e a harmonia geral
do tribunal, e que eu me esforçarei para agir com imparcialidade em todas as questões ligadas ao
cargo para o qual fui nomeado 73.

As sociedades não confiavam totalmente em apelos morais: havia regras claras do que o presidente
poderia ou não fazer. As Leis Gerais dos Foresters, por exemplo, estipulavam que se o presidente em exercício
deixasse seu posto “sem a permissão da irmandade reunida, ou sem primeiro apontar alguma pessoa para
sucedê-lo”, ou se recusasse a levar à votação “qualquer proposição legalmente feita”, ele poderia, se a ofensa
não fosse “tão descarada a ponto de gerar uma moção para sua deposição”, ser multado em cinco xelins pela
primeira ofensa, dez xelins pela segunda, e até 21 xelins por ofensas subsequentes 74.
Em um número de sociedades, a cerimônia de abertura de uma Loja também servia para suprimir
quaisquer tendências dos titulares dos cargos a se tornarem muito poderosos. Na unidade de Manchester, no
início de todas as reuniões, cada titular tinha que declarar solenemente a sua obrigação para com os membros
da Loja. O secretário de finanças, por exemplo, dizia: “manter uma contabilidade justa e imparcial entre todos
os membros e a Loja; explicar e demonstrar, sempre e quando requerido por um membro ou pela maioria da
Loja, e até o momento que estiver em meu poder, os registros contábeis 75”.
Nos primeiros clubes, a rotação era empregada para assegurar a partilha equilibrada das
responsabilidades e vantagens do cargo. De forma gradual, todavia, a rotação deu lugar a eleições regulares.
Na unidade Manchester, por exemplo, com exceção do secretário de finanças, que permanecia no cargo até
segunda ordem, era normal que os cargos de liderança mudassem de mãos a cada eleição semestral ou anual.

Preparação para a democracia

Embora cada sociedade amigável tivesse suas peculiaridades, as ordens filiadas partilhavam uma
tradição e eram, para a maioria dos efeitos, comparáveis. Na unidade Manchester, um novo membro era
elegível para qualquer cargo assistente: supervisor, guardião, mestre de cerimônias e secretário assistente. A
tarefa do guardião era proteger a porta e assegurar que a senha correta fosse dada. O mestre de cerimônias
ajudava os membros ao longo da cerimônia de iniciação. O supervisor examinava cada pessoa para
estabelecer o seu direito de estar presente, e tinha tutela sobre os bens da Loja. Cada Loja também tinha duas
secretárias, o secretário eletivo e o secretário financeiro. A principal tarefa do secretário eletivo era
cronometrar a duração da reunião. Esperava-se que cada um desses cargos, exceto o de secretário financeiro,
mudasse de mãos a cada eleição.
Além das duas secretárias, cada Loja também tinha três cargos maiores: o grão-nobre ou presidente,
o vice-grão nobre ou vice-presidente e o grão-nobre anterior. Esses cargos mudavam de mãos regularmente.
Esperava-se que todos os membros buscassem ocupar essas posições – “passar por cada cadeira”, como se
dizia, – e lhes era exigido ocupar os cargos menores, além de passar pelos graus da ordem.
Mas o que se esperava não era apenas a rotação de cargo, mas que, ao assumi-lo, o membro pudesse
desenvolver novas habilidades. Para muitos trabalhadores, a Loja oferecia oportunidades de automelhoria no
ambiente de trabalho. A política de troca de presidente a cada seis meses também carregava consigo o risco

71
Ancient Order of Foresters. Lecture 1. 1879. p. 41–42.
72 Ancient Order of Foresters. Court Robert Gordon, Rules 53 e 55. 1877.
73 Ancient Order of Foresters. Formularies. 1879. p. 12.
74 Ancient Order of Foresters. General Laws. 1857. Rule 82.
75
Independent Order of Oddfellows - Manchester Unity. Lodge Ritual and Lecture Book with Procedure. 1976. p. 9–10.
de que o novato pudesse ser incompetente. Para superar esse perigo, e para assegurar que aconselhamento
estivesse disponível ao novato, cada grão-nobre apontava dois assessores. Esses sentavam ao seu lado nas
reuniões, sussurrando conselhos enquanto procedia a reunião. Tradicionalmente, o grão-nobre escolhia um
braço-direito experiente, que tinha anteriormente ocupado o cargo, e que detinha conhecimento das regras
e procedimentos. O braço-esquerdo era um amigo cuja tarefa era dar suporte moral inabalável. Dessa forma,
a alta rotatividade de cargos combinava-se com desempenho eficiente. E os trabalhadores, amiúde restritos
a um papel secundário no ambiente de trabalho, eram capazes de desenvolver seus talentos e compartilhar
da satisfação de estarem fazendo sua parte para manter o ideal de serviço mútuo que servia de inspiração ao
movimento das sociedades amigáveis.
Um membro que tinha ocupado cargos na Loja poderia ainda buscar cargos / posições superiores.
Um indivíduo que tinha servido em quatro cargos inferiores, obtido os graus mais baixos, servido como vice-
grão Nobre, grão nobre, e grão nobre imediatamente superior, tornava-se apto a tentar se qualificar para o
grau acima do grão ou grau roxo. Se tivesse êxito, tornava-se um membro da Loja dos além grão e era elegível
a um cargo nos níveis distrital e nacional. Os oficiais distritais eram o secretário distrital, grão mestre distrital,
grão mestre deputado distrital, e grão mestre distrital imediatamente superior.
Acima do distrito estava o grão mestre, o grão mestre deputado, e o grão mestre imediatamente
superior. Essas posições estavam sujeitas a eleições naturais. O conselho de diretores era composto por três
oficiais e nove outros indivíduos eleitos pela conferência anual. Eles se afastavam anualmente, mas poderiam
tentar reeleição. Para ser elegível a esses cargos, exigia-se a posse do grau roxo. O grão secretário era
nomeado em tempo integral, eleito inicialmente pela conferência anual, e permanecendo no cargo enquanto
quisesse.

Respeito às regras e ao próximo

As sociedades mais avançadas tinham invariavelmente um elaborado código normativo, que era
quase sempre um objeto de reverência aos trabalhadores manuais que faziam parte dela. As regras eram
iguais para todos os membros, não sendo impostas de dentro para fora, mas sim elaboradas pelos próprios
membros: adotadas, adaptadas, anuladas e revisadas regularmente de acordo com as circunstâncias. Se as
regras impunham restrições, como, de fato, o faziam, eram restrições livremente aceitas por todos os
membros.
Os membros das sociedades amigáveis tinham orgulho de suas regras. Eles não tinham orgulho das
regras em si, mas sim dos princípios que incorporavam. As regras estipulavam como cada membro deveria
contribuir e quais eram seus direitos, além dos deveres dos titulares dos cargos. Elas limitavam os poderes
dos titulares e asseguravam uma partilha equilibrada das responsabilidades e das vantagens do cargo. E as
regras mantinham a autonomia das filiais dos níveis distrital e nacional dentro de cada federação. Com efeito,
as associações eram comandadas por regras em vez de homens e, assim, eram centros preparatórios
admiráveis para o processo democrático de uma nação.

Sociedades amigáveis na virada do século

Durante a parte final do século XIX, novos tipos de sociedades começaram a se desenvolver frente à
mudança de condições. Quando se classificam os tipos de sociedades é normal distinguir entre sociedades
que ofereciam auxílio-doença (associações gerais) e aquelas que não o faziam (associações especializadas).
Para a maioria das associações, o pagamento do auxílio-doença era a sua maior tarefa.
Em 1910, antes da Lei Nacional de Seguros de 1911 ter tido aprovada, havia 26.877 associações de
todos os tipos com 6.623,000 membros registrados 76. As associações gerais são subdivididas abaixo:

Adesão a sociedades amigáveis gerais em 2010

76 BEVERIDGE, William (Lord). Voluntary Action, Table 20.


Fonte: Beveridge, Voluntary Action, Tabela 21.

A adesão total das sociedades amigáveis especiais em 1910 era de 1.888,178, das quais 855.962
eram associações de morte e enterro; 403.190 em associações de prestação de apoio a naufrágios e perdas
em geral; e 329.240 em associações que proviam serviços médicos 77.

Conclusão

As sociedades amigáveis, portanto, tomaram variadas formas e tamanhos e era essa flexibilidade o
seu maior atrativo. Como Beveridge argumentou em Voluntary Action, surpreendente que tantas das grandes
instituições que se provaram populares tenham começado com um encontro de uma dezena ou mais de
pessoas depois do trabalho, frequentemente em um local público. Algumas fracassaram, outras tiveram êxito.
Ao fazê-lo, argumentou Beveridge, elas mudaram o mundo:

Em um estado totalitário ou em um setor já tornado monopólio estatal, os insatisfeitos com as


instituições atuais podiam mudar a situação ao buscar a mudança do governo do país. Em uma
sociedade livre, eles tinham uma solução diferente; indivíduos descontentes com novas ideias podem
criar novas instituições para atender às suas necessidades. O caminho está aberto para
experimentação, sucesso e fracasso; a sucessão é a parteira da invenção.

77
Ibid., Table 22.
Ajuda mútua em lugar de assistencialismo: o caso das sociedades fraternais americanas

Por David Beito

O historiador Dumavid Beito documenta como os americanos usaram sua liberdade de associação
para criar uma vasta rede de associações de ajuda mútua. Com possível exceção das igrejas, as sociedades
fraternais eram as principais provedoras de assistência social nos Estados Unidos antes da Grande Depressão.
Estima-se que o número de filiados alcançou 30% da população masculina adulta, sendo particularmente forte
entre imigrantes e afro-americanos. Ao contrário das relações adversariais produzidas tanto por programas
assistencialistas do governo, como por caridade privada, a assistência das sociedades fraternais baseava-se
na reciprocidade entre doador e recipiente. Nos anos 1920, sociedades e outras instituições de ajuda mútua
entraram em um período de declínio do qual nunca se recuperaram. Dentre as possíveis razões para tal declínio
estão o crescimento do Estado de bem-estar, as regulamentações restritivas com respeito ao seguro-saúde, e
a concorrência de seguradoras privadas. David Beito é professor de História na University of Alabama em
Tuscaloosa, e autor de diversos livros.

De todos os diversos exemplos que poderiam ser citados, incluindo o apoio da Igreja, de parentes e
de vizinhos, a sociedade fraternal se destaca como um dos mais fascinantes, e um dos mais negligenciados
pelos historiadores do Estado de bem-estar. Somente as igrejas rivalizavam com as sociedades fraternais
como provedoras institucionais de assistência social antes do advento do Estado de bem-estar. Em 1920, cerca
de 18 milhões de americanos faziam parte de sociedades fraternais, isto é, aproximadamente 30% de todos
os adultos acima de 20 anos 78.
As sociedades fraternais eram controladas por seus membros, e organizadas em torno de um
sistema descentralizado de Lojas em nível local. Com frequência, elas incluíam um rito secreto - coleção de
rituais, cerimônias e outras práticas. A maioria dos membros não acreditava nas qualidades “mágicas” do
ritual: sua principal função era servir como entretenimento e testar a solidariedade dos membros. A Loja (com
suas rifas, venda de bolos, festas e piqueniques) era também centro da vida comunitária em diversos centros
urbanos e pequenas cidades. Igualmente importante, elas forneciam aos membros e suas famílias um amplo
sistema de ajuda mútua em prol do bem-estar social 79.
Embora as diferenças sejam tênues, as sociedades fraternais podem ser divididas em duas
categorias: sociedade secreta e sociedade fraternal de seguros. A principal diferença entre as duas era de
ênfase, e não de tipo. As sociedades secretas se especializavam nos componentes social e informal da ajuda
mútua. Entre as maiores estavam os Maçons, os Elks, e os Odd Fellows. O número de membros da maçonaria
atingiu surpreendentes 12% da população masculina adulta branca em 1930. Em contraste, os sindicatos só
atingiram mais de 10% da força de trabalho na década de 1930. Como a maioria das sociedades secretas, os
Maçons evitavam contratos escritos ou garantias regularizadas de seguro para seus membros. “Como regra”,
Lynn Dumenil escreveu, “os porta-vozes da maçonaria se horrorizavam pela mera possibilidade de homens se
unirem à maçonaria por razões mercenárias, enfatizando repetidamente que um dos juramentos maçons
incluía a promessa de que o iniciado não tinha sido influenciado pelo desejo de ganho pessoal 80”.
Apesar dessas restrições oficiais, as sociedades secretas serviram como os principais canais de ajuda
mútua da história americana. Um maçom de boa reputação poderia ter a certeza que, se assim pedisse, a
ordem não só pagaria o seu funeral, mas também realizaria uma cerimônia elaborada. Se doente e em

78As estimativas de número de membros são retiradas do Report of the President’s Research Committee on Social Trends, Recent

Social Trends in the United States. vol. 2. New York: McGraw-Hill, 1933. p. 935. Os dados demográficos de americanos acima de 20
anos foram retirados do US Department of Commerce, Historical Statistics of the United States: Colonial Times to 1970, pt I.
Washington, DC: US Government Printing Office, 1975. p. 15–20. Desse número, as sociedades fraternais foram responsáveis por
cerca de 10 milhões de membros, enquanto as sociedades secretas eram responsáveis pelo resto. Os dados constantes no Recent
Social Trends funcionam bem como estimativa aproximada da adesão às sociedades fraternais. Recomenda-se cautela, todavia: ao
falhar em compensar aqueles indivíduos que se associam a mais do que uma organização, esses dados superestimam a adesão às
sociedades fraternais. Por outro lado, elas subestimam a adesão ao não incluir os membros de diversas sociedades (muitas das quais
operadas por afro-americanos e imigrantes), e sociedades de ajuda mútua organizadas nos âmbitos comunitário ou ocupacional.
Embora as sociedades de ajuda mútua ministrassem ajuda mútua, lhes faltava os atributos fraternais de Loja e Ritual. Para mais
detalhes sobre sociedades de ajuda mútua, veja HENDERSON, Charles Richmond. Industrial Insurance in the United States. Chicago:
University of Chicago Press, 1908. p. 63–83
79 A melhor discussão do papel funcional do ritual permanece sendo GIST, Noel P. Secret Societies: A Cultural History of Fraternalism.

University of Missouri Studies 15 (1 Out. 1940). Veja, também, CARNES, Marc C. Secret Ritual and Manhood in Victorian America.
New Haven, Yale University Press, 1989.
80
BASYE, Walter. History and Operation of Fraternal Insurance. Rochester: the Fraternal Monitor, 1919. p. 35–36: DUMENIL, Lynn.
Freemasonry and American Culture, 1880–1930. Princeton: Princeton University Press, 1984. p. 225, 22.
necessidade, poderia geralmente contar com seus irmãos da Loja para passar um chapéu, arrecadar donativos
no altar ou apontar um comitê de visita. Ser membro da maçonaria poderia abrir portas para o progresso no
emprego e nos negócios. O maçom Samuel Gompers, mais conhecido como o presidente da American
Federation of Labor (Federação Americana do Trabalho), relatou um incidente particularmente elucidativo.
Em 1897, Gompers, enquanto caminhava na rua, encontrou um estranho, que coincidentemente era um
irmão da Loja. Após trocarem sinais maçônicos, o estranho admitiu que tinha sido contratado por uma
empresa de mineração para monitorar o líder sindical. Ele então entregou os negativos das fotos que tinha
tirado de Gompers. Gompers recorda: “minha filiação à ordem maçônica tem sido uma proteção para mim 81”.
Havia também um lado mais visível dos programas de ajuda mútua das sociedades secretas. Durante
o final do século XIX e início do século XX, muitas das ordens maiores se dedicaram a projetos de construção
de orfanatos e casas de repouso para membros mais velhos e suas esposas. Trinta e nove jurisdições
maçônicas e quarenta e sete dos Odd Fellows já tinham construído casas para seus membros idosos em 1929.
Em 1914, o valor médio gasto pelas casas maçônicas para cuidar de cada residente era maior que US$ 1,800
dólares. Embora fosse uma época sem Previdência (Seguridade) Social, poucas casas eram ocupadas em sua
capacidade máxima 82.
De modo geral, a sociedade fraternal de seguros tinha um impacto mais substancial na assistência
social que a sociedade secreta. Ambas partilhavam os atributos organizacionais do sistema de Lojas, incluindo
ritos e prestação informal de assistência. A principal diferença entre elas era que a sociedade fraternal de
seguros oferecia aos seus membros apólices de seguro formais, enquanto a sociedade secreta, não. O pilar da
proteção fraternal de seguro era o benefício por morte (na verdade, um tipo de seguro de vida) pago ao
beneficiário do membro falecido. Ele foi especialmente popular entre os assalariados. “Homens ricos fazem
seguro em grandes seguradores para criar um patrimônio”, observou um artigo da Everybody’s Magazine de
1910, “homens pobres fazem seguro nas ordens fraternais para criar pão e carne. Em resumo, um seguro em
nome da necessidade, do abrigo, da caridade e da degradação 83”.
Grande parte da ajuda mútua concedida por sociedades fraternais de seguro, tal como a provida por
sociedades secretas, não era registrada. Virtualmente todas as organizações, independentemente de sua
classe e/ou composição étnica, ressaltavam a responsabilidade de os membros individuais oferecerem ajuda
aos “irmãos” e “irmãs” em necessidade. Nesse sentido, um porta-voz da Modern Wooden of America (que
chamava seus membros de “vizinhos” e suas Lojas de “Campos”) escreveu em 1934: “alguns dólares aqui,
uma pequena quantia acolá para ajudar um membro em necessidade a dar a volta por cima ou manter sua
proteção em vigor durante uma crise em suas finanças; um vizinho doente tem a sua colheita de trigo feita,
seus grãos levados ao mercado, sua cota de lenha cortada para o inverno ou uma casa construída em lugar da
destruída por um incêndio – é assim que a fraternidade tem trabalhado com um milhão de membros em
14.000 Campos”. O sociólogo Peter Roberts descreveu como as sociedades fraternais entre os trabalhadores
das minas de carvão da Pensilvânia na virada do século regularmente patrocinavam rifas para ajudar os
membros que excediam o limite de tempo de seu auxílio-doença 84.
O guia mais recente disponível de informação histórica (pelo menos com respeito às grandes
sociedades) são os registros da National Fraternal Congress (NFC), a principal câmara de compensação de
organizações fraternais de seguro. As sociedades afiliadas a NFC ostentavam nove milhões de membros e
120.000 Lojas em 1919. Elas pagavam um seguro de vida no valor anual médio de US$ 1.100 dólares (cerca de
US$ 91 dólares por mês), equivalente à média anual das receitas de um trabalhador americano na época 85.
As sociedades menores (muitas delas em nível local e não membros do NFC) pagavam,
normalmente, valores menores de benefícios por morte. Para termos uma ideia melhor do valor médio das

81 DUMENIL, Lynn. Freemasonry and American Culture, 1880–1930. p. 21.


82 US Department of Labor, Bureau of Labor Statistics. Care of Aged Persons in the United States. Washington, DC: US Government
Printing Office, 1929, p. 162, 15, 163; e DUMENIL, Lynn. Freemasonry and American Culture, 1880–1930, p. 20. Em 1929, o bureau
identificou 112 casas fraternais para idosos nos Estados Unidos, a maioria das quais operada por sociedades secretas para
indigentes, tendo uma população de mais de 7.000. Muitas sociedades fraternais de seguro também construíram tais lares, mas,
em geral, confiavam mais nos seguros para ajudar seus idosos. Sobre orfanatos fraternais, veja ARESON, C. W. Areson e HOPKIRK,
H. W. Child Welfare Programs of Churches and Fraternal Orders. The Annals of the American Academy of Political and Social Science
121 (Set. 1925). p. 85–95.
83 DICKSON, Harris e MANTZ, Isidore P. “Will the Widow Get Her Money? The Weakness in Fraternal Life Insurance and How It May

Be Cured. Everybody’s Magazine 22 (Jun. 1910). p. 776.


84
BUFFUM, Este Erwood. Modern Woodmen of America: A History. vol. 2. Modern Woodmen of America, 1935. p. 5; e ROBERTS,
Peter. Anthracite Coal Communities: A Study of the Demography, the Social, Educational and Moral Life of the Anthracite Regions.
New York: Macmillan, 1904. p. 309.

BASYE, Walter. History and Operation of Fraternal Insurance. p. 15–16: e US Department of Commerce. Historical Statistics of the
85

United States: Colonial Times to 1970, pt. 1, p. 168.


apólices fraternais de seguro de vida, muitos estudos locais realizados durante o período tiveram que ser
consultados. Um dos melhores foi um levantamento de posse de seguro de vida entre famílias de assalariados
em Chicago conduzida em 1919 pela Illinois State Health Insurance Commission. A Comissão concluiu que
74,8% de esposos, 58,8% das esposas, e 48,8% das crianças abaixo dos 14 anos possuíam seguro de vida. Um
pouco mais da metade das apólices em posse dos esposos eram em ordens fraternais. Essas apólices valiam
em torno de US$ 768 dólares, que se traduz em uma média mensal acima de US$ 64. Não contabilizados nesse
número estavam os muitos indivíduos que tinham apólices de seguro de vida tanto em companhias privadas
como em sociedades fraternais 86.
Como prática comum, as sociedades permitiam que seus membros mais idosos sacassem o valor de
seu certificado de seguro de uma só vez ou sob a forma de rendas mensais. Com frequência, o beneficiário
utilizava o dinheiro para montar um pequeno negócio. Apesar disso, seria um equívoco classificar o benefício
por morte da sociedade fraternal como uma “pensão por velhice” no sentido de uma aposentadoria
permanente. De acordo com um estudo realizado em 1930 pela New York Commission on Old-Age Security
(Comissão Nova-iorquina sobre Pensões por Velhice), o benefício por morte normalmente complementava
outras formas de renda. A comissão estimou que cerca de 40% dos idosos no estado se sustentavam via
emprego remunerado, pensões, poupança ou outras formas de renda, enquanto família e amigos
complementavam os outros 50% (incluindo donas de casa). Menos de 4% dos idosos de Nova York dependia
da caridade pública ou privada 87.
Quais comparações podem ser feitas entre o benefício por morte fraternal e o auxílio-pobreza
governamental? Provavelmente, o programa governamental mais próximo ao benefício por morte fosse o
programa de pensão para mães viúvas, antecedente ao Aid to Families with Dependent Children (Assistência
a famílias com crianças dependentes). O número de beneficiários atendidos (assim como o valor dos
benefícios) era muito inferior ao contemplado pelas sociedades fraternais. Em 1931, 93.620 famílias (de
45.825 em 1921) receberam auxílio dos programas de pensão para mães, cada família obtendo um cheque
mensal de US$ 22 dólares. Por outro lado, pelo menos 9 milhões de indivíduos (principalmente, da classe
trabalhadora) portavam o seguro fraternal naquele ano. No mínimo, a afirmação de Michael B. Katz de que
“fundos públicos sempre assistiram mais pessoas que os privados” parece muito controversa 88.

O seguro saúde e o seguro contra acidentes da sociedade fraternal

Durante o século XIX, a proteção do seguro fraternal centrava-se no benefício por morte. Isso assim
se manteve, mas, no início dos anos 1990, muitas sociedades passaram a oferecer também seguro-saúde e
contra acidentes. Em 1917, estima-se que 45 de 59 ordens fraternais na Califórnia ofereciam seguro saúde ou
contra acidentes, enquanto 140 de 159, em Illinois. Esses números são menos impressivos que parecem,
todavia. Por um lado, a implementação ou não do seguro-saúde ficava a critério das Lojas locais. Igualmente
importante, mesmo quando havia um fundo de auxílio-doença, os membros individuais com frequência
decidiam não se inscrever. Se estudos locais e estaduais servem de guia, provavelmente não mais que 40%
dos membros das sociedades fraternais se inscreveram em fundos de auxílio-doença na década de 1920. No
entanto, a porcentagem coberta vinha aumentando rapidamente nas duas décadas anteriores 89.
Dependendo da ordem ou da Loja particular, o tamanho, a qualidade e o pacote de benefícios
médicos variavam muito. O típico benefício médico era um pagamento semanal em dinheiro. Os membros da

86 Illinois Health Insurance Commission. Report of the Illinois Health Insurance Commission of the State of Illinois (1919). p. 224–25.
154.
87 US Department of Labor. Care of Aged Persons, 158: and New York Commission on Old-Age Security, Report of the New York State

Commission. Albany: J. B. Lyons, 1930), p. 312–13. Citado em WEAVER, Carolyn L. The Crisis in Social Security: Economic and Political
Origins. Durham: Duke University Press, 1982. p. 41–42. Em 1928, cerca de 14% da força de trabalho estava associada a planos
privados de pensão. O número total de planos privados de pensão em operação, na verdade, aumentou durante o início, e nos
piores anos da Depressão. A percepção comum – amplamente propagada tanto antes como depois do estabelecimento da
Previdência Social – que os idosos eram fortemente dependentes de auxílio-pobreza, é um mito. Menos de 1% dos idosos vivia em
asilos em 1923, quase a mesma porcentagem de 1880. WEAVER, Carolyn N. The Crisis in Social Security. p. 48, 63.
88 US Department of Labor. Children’s Bureau, Mothers’ Aid, 1931. Washington, DC: US Government Printing Office, 1933). p. 8, 17;

E KATZ, Michael B. In the Shadow of the Poorhouse: A Social History of Welfare in America. New York: Basic Books, 1980. p. xii. Para
um bom resumo da literatura recente sobre a frequência da adesão da classe trabalhadora em ordens fraternais nativas de brancos,
tais como a Odd Fellows, Knights of Pythias e Ancient Order of the United Workmen, veja CLAWSON, Mary Ann. Constructing
Brotherhood: Class, Gender, and Fraternalism. Princeton: Princeton University Press, 1989. p. 87–110.
89 Report of the Social Insurance Commission of the State of California. Sacramento: California State Printing Office, 1917. p. 81, 89;

e Report of the Illinois Health Insurance Commission of the State of Illinois, p. 464. Em 1919, a Illinois Health Insurance Commission
estimou que 25,8% dos assalariados de Chicago tinham seguro (em sua maioria, em sociedades fraternais) contra doença, e 23,7%
contra invalidez. Muitas sociedades que não ofereciam seguro tinham, para esses casos, métodos informais para atendimento dos
problemas médicos de seus membros. Report of the Illinois Health Insurance Commission of the State of Illinois. p. 216, 218, 221.
sociedade fraternal na Califórnia tinham direito a um auxílio-doença que variava de US$7 a US$10 dólares
semanais em 1917, enquanto o período de elegibilidade máxima era de, em média, 13 semanas. Como a
duração média da doença por trabalhador (em termos de dias úteis perdidos) era, normalmente, inferior a
duas semanas, só uma pequena minoria dos beneficiários utilizava o auxílio pelo período total de necessidade.
Além disso, na situação de o tempo limite ser estourado (somente 10% dos subscritos ao seguro saúde
fraternal utilizavam o benefício a cada ano), era prática comum em muitas sociedades estender o tempo /
período de elegibilidade ou fazer uma vaquinha 90.
Antes da Grande Depressão, as sociedades fraternais dominavam completamente o mercado de
seguros de saúde (pelo menos, entre a classe trabalhadora), enquanto seus concorrentes no mercado ficavam
muito para trás. Em grande parte, o segredo do sucesso fraternal residia nas forças competitivas peculiares à
sua própria estrutura. Diferentemente das companhias privadas, as sociedades fraternais estavam muito bem
posicionadas para verificar a ameaça do “risco moral”, o vilão da indústria de seguros. Para o seguro-saúde, o
principal “risco moral” é os indivíduos tirarem proveito do seu status de seguro, sobrecarregando o sistema
com reivindicações sem fundamento. A validade de uma reivindicação de seguro saúde é altamente subjetiva
e, assim, difícil de ser verificada. O seguro de vida tem risco moral potencialmente menor porque os
beneficiários podem reclamar somente se apresentarem o certificado de óbito. Isso explica, em parte, porque
as sociedades fraternais continuaram a dominar o mercado de auxílio-doença mesmo depois de terem
perdido sua vantagem competitiva com os seguros de vida 91.
A sociedade fraternal tinha diversas armas em seu arsenal para se proteger do risco moral nas
reivindicações de seguro saúde. Primeiro, cada novo filiado tinha que apresentar um atestado médico de boa
saúde. Segundo, e mais importante, as sociedades fraternais, diferentemente das companhias privadas,
poderiam contar com reservas significativas de solidariedade dos membros. Como a Social Insurance
Commission of California notou: “a natureza de “benefício mútuo” das sociedades fraternais tende
indubitavelmente a neutralizar a tendência a se fingir de doente. Pessoas que poderiam ser inescrupulosas ao
negociar com uma companhia comercial tendem a ser mais cuidadosas ao lidar com uma organização cuja
condição financeira é diretamente ligada ao comportamento dos membros”. A história do seguro-saúde
fraternal corrobora a previsão da economista Jennifer Roback que o “risco moral” poderia ser monitorado
mais eficientemente dentro do grupo que fora dele... Em poucas palavras, a irresponsabilidade pode ser mais
facilmente detectada por pessoas que partilham os mesmos valores e funções de utilidade. Os segurados de
uma sociedade fraternal têm um tipo de contrato social entre si 92.
Na segunda década do século XX, o benefício do auxílio-doença fraternal também passou a incluir
cuidados médicos. Para citar dois exemplos: os Foresters of Reading da Pensilvânia ofereciam cuidado médicos
(incluindo atendimento em casa) por US$ 1 ao ano, enquanto por US$ 2, a Fraternal Order of Eagles cobriam
tudo exceto obstetrícia e tratamento de doenças venéreas. “A prática da Loja” estabelecia um ponto de apoio
especialmente forte em grandes regiões urbanas. No Lower East Side de Nova York, 500 médicos tinham
contratos com Lojas judaicas 93.
O método favorito das sociedades ou das Lojas individuais era fechar contratos com médicos para
tratar os membros e suas famílias em uma base per capita. Esse método tinha mais que uma mera semelhança
com a organização de manutenção de saúde moderna. Ele atraía, em particular, médicos jovens ansiosos por
formar uma clientela, ou médicos mais velhos buscando um trabalho de meio período. Anos mais tarde,
Samuel Silverberg, um médico de Loja durante esse período, relembrou que a “sociedade pagaria certa
quantia para cobertura de certo número de pacientes – cinquenta centavos por cada membro a cada três

90 Report of the Social Insurance Commission, 82, 89, 302: Report of the Illinois Health Insurance Commission of the State of Illinois.

p. 123, 474; e ROBERTS, Peter. Anthracite Coal Communities. p. 309–10. Em 1929, cerca de 9% dos funcionários de fábricas nos
Estados Unidos perderam 8 ou mais dias de trabalho por doença. US Public Health Service. Public Health Reports 47. January 15,
1932. p. 136.
91 Agradeço a Jennifer Borace por destacar as possíveis vantagens do seguro fraternal em lidar com risco moral. Veja o seu livro

“Social Insurance in Ethnically Diverse Societies,” mimeograph, Center for Study of Public Choice. George Mason University, Out
1989. Para mais sobre os primeiros experimentos de empresas comerciais para o fornecimento de seguro-saúde e o subsequente
risco moral com o qual depararam, veja HOFFMAN, Frederick L. History of Prudential Insurance Company of America, 1875–1900.
Prudential Press, 1900. p. 6–62. Em 1909, o proeminente executivo de seguros, John F. Dryden, que não era defensor das sociedades
fraternais, afirmou “a garantia de um valor estipulado como auxílio-doença somente ser transacionado com segurança, embora de
forma limitada, por organizações fraternais que têm conhecimento perfeito de, e completa supervisão sobre seus membros
individuais. DRYDEN, John. Addresses and Papers on Life Insurance and Other Subjects. Newark: The Prudential Insurance Company
of America, 1909. p. 32.
92 Report of the Social Insurance Commission of the State of California, p. 110; e ROBACK, Jennifer. Social Insurance in Ethnically

Diverse Societies. p. 10.


93
BURROW, James G. Organized Medicine in the Progressive Era: The Move Toward Monopoly. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1977. p. 121–23.
meses, 75 centavos ou um dólar por família. Todo membro tinha o direito de chegar a meu escritório e pedir
para que fosse à sua casa... esse mesmo membro recomendaria o médico a seus amigos, e, assim, você
poderia crescer na carreira. Mas era difícil, muitos e muitos lances de escadas de prédios residenciais 94”.
A popularização dessa prática despertou oposição dos principais médicos que temiam que isso
prejudicasse sua prerrogativa de remuneração por serviço. Entre eles, H. T. Partree, que, como Silverberg,
tinha anteriormente trabalhado para uma Loja em sua carreira, criticava a prática de contrato como
“competição indigna”. Ele amargamente recordou que:

O serviço médico era prestado aos membros ao custo de US$ 1 per capita por ano, embora o número
e a variedade de doenças que requeriam atenção era algo alarmente. O trabalho era extremamente
desagradável, e a minha ira se inflamava ao pensar que qualquer Loja poderia exigir serviço médico
em tais condições degradantes.

A Shasta County Medical Society of California refletiu os medos anticompetitivos da profissão


quando advertiu que a prática da Loja, se não limitada em escopo, “igualaria o valor de nosso serviço ao de
um engraxate ou de um vendedor de amendoim 95”.
Por volta de 1910, as sociedades médicas e as comissões estatais ao redor do país partiram para o
ataque para destruir a maligna “prática da Loja”, ou pelo menos, reduzir sua influência. A sociedade médica
estatal da Câmara dos Deputados da Califórnia fez sua parte ao ameaçar expulsar qualquer médico contratado
por uma organização para oferecer atendimento para famílias com rendas mensais acima de US$ 75 dólares.
A sociedade médica do Committee on Contract Work of the Erie County (Comitê de contrato de trabalho de
Erie County), Nova York, recomendou “medidas agressivas” contra o profissional por contrato “caso a
persuasão falhar em convencê-lo de seu erro 96”.

Ajuda mútua entre imigrantes, afro-americanos e mulheres

Um feito histórico impressionante, embora amplamente desconhecido, das instituições fraternais e


de outras instituições de ajuda mútua foi seu papel no reassentamento de grandes populações de imigrantes
do final do século XIX ao início do século XX. Imigrantes representavam 40% da população das 12 maiores
cidades dos Estados Unidos em 1900; um adicional de 20% eram filhos desses. Cada grupo específico de
imigrantes poderia recorrer a, pelo menos, uma sociedade de ajuda e, normalmente, a várias outras para
obter moradia, lições de inglês e informação sobre empregos disponíveis 97.
A sociedade fraternal de imigrantes, uma parente próxima da sociedade de ajuda de imigrantes,
contribuiu para as altas taxas de seguro entre grupos de imigrantes, incluindo os vindos de áreas
empobrecidas do sul e do leste europeu. Em 1918, o número de filiados nas maiores organizações tchecas
ultrapassou 150.000. Um relatório da Massachusetts Immigration Commission em 1914 identificou duas ou
mais sociedades gregas em cada cidade que possuía uma colônia grega. Springfield, Illinois, com uma
população de origem italiana inferior a 3.000 habitantes em 1910, ostentava uma dúzia de sociedades
italianas. Apesar de seu rápido crescimento, a sociedade fraternal de imigrantes tinha seus detratores. O
desprezo vinha, especialmente, dos reformadores progressistas do início do século XX. Como bom
progressista, Theodore Roosevelt declarou que:

O próprio povo americano deveria prover tais coisas aos imigrantes. Se permitirmos que sejam
ajudados por representantes de nações estrangeiras, por sociedades estrangeiras, por instituições
conduzidas em língua estrangeira e no interesse de governos estrangeiros, e se permitirmos que
existam como grupos estranhos dentro de nossa sociedade, teremos, sem dúvida, problemas no
futuro 98.

94 Samuel Silverberg, citado em ROSEN, George. Contract or Lodge Practice and its Influence on Medical Attitudes to Health

Insurance. American Journal of Public Health 67 (Abr. 1977). p. 374–75.


95 PARTREE, H. T. Contract Practice: Its Ethical Bearings and Relations to the Lodge and Industrial Insurance. Bulletin of the American

Academy of Medicine 10. Dez. 1909), p. 596; e BURROW, James G. Organized Medicine in the Progressive Era, p. 126.
96 ROSEN, George. Contract or Lodge Practice and its Influence on Medical Attitudes to Health Insurance. p. 378; e BURROW, James

G. Organized Medicine in the Progressive Era. p. 128, 131.


97
HAYS, Samuel P. The Response to Industrialization: 1885–1914. Chicago: University of Chicago Press, 1957. p. 95.

98 Citado em TISHLER, Hace Sorel. Self-Reliance and Social Security, 1870–1917. Port Washington: National University Publications,

1971. p. 95. Para mais detalhes sobre sociedades fraternais (e de ajuda mútua) de grupos particulares de imigrantes, veja EMMONS.
David M. The Butte Irish: Class and Ethnicity in an American Mining Town, 1875–1925. Urbana: University of Illinois Press, 1989. p.
94–132: WEISSER, Michael R. A Brotherhood of Memory: Jewish Landsmanshaftn in the New World. New York: Basic Books, 1985;
É digno de nota que a sociedade fraternal era ainda mais popular entre os afro-americanos que entre
os imigrantes. Excluídos das principais ordens brancas, os afro-americanos fundaram suas próprias
organizações paralelas. Em 1910, o sociólogo Howard W. Odum estimou que, no Sul, o “número total de
membros de sociedades negras, pagantes e não pagantes, era praticamente igual ao número total de
membros de igrejas... um pequeno vilarejo com não mais de 500 habitantes de cor não raramente tinha de
15 a 20 Lojas subordinadas, cada qual representando uma ordem diferente”. Odum caracterizou as sociedades
fraternais como “parte vital” ou quiçá o centro da “vida comunitária” dos afro-americanos 99.
A mais antiga e famosa sociedade afro-americana foi a Prince Hall Masonic Order. William Muraskin
estima que, durante as décadas de 1920 e 1930, a ordem filiou mais de 30% dos homens adultos afro-
americanos em pequenas vilas em todo o sul do país. As Lojas locais e estatais ofereciam uma ampla gama de
serviços de ajuda mútua, incluindo seguro-saúde, orfanato, agências de emprego, e lares para idosos. A
filiação ao Prince Hall Masons parecia um “Quem é Quem” da história afro-americana: Adam Clayton Powell
Jr., Oscar DePriest, Thurgood Marshall, Carl Stokes, Booker T. Washington, e W. E. B. Du Bois 100.
Os maçons representavam só uma pequena fração das sociedades fraternais afro-americanas. Os
afro-americanos organizaram versões paralelas da Odd Fellows, da Elks e da Knights of Pythias. Muitas outras
sociedades, tais como a True Reformers, a The Knights and Daughters of Tabor, e a Grand United Order of
Galilean Fishermen não tinham homólogas brancas. Em 1904, as versões afro-americanas da Prince Hall
Masons, da Knights of Pythias, e da Odd Fellows tinham ao todo 400 mil membros e 8.000 Lojas espalhadas
ao redor dos Estados Unidos. Cinco anos antes, W. E. B. Du Bois tinha estimado que, pelo menos, 70% dos
afro-americanos adultos do 7° distrito da Filadélfia pertenciam ou a sociedades fraternais ou a sociedades
menos estruturadas de ajuda mútua ou de pequenos seguros 101.
Sociedades fraternais e outras organizações de ajuda mútua possibilitaram o acesso ao seguro aos
afro-americanos de todas as classes. Ao contrário de suas homólogas brancas, as sociedades secretas afro-
americanas eram mais propensas a oferecer seguro de vida e auxílio-doença formais, assim como ajuda mútua
informal. Em 1919, a Illinois Health Insurance Commission estimou que 93,5% das famílias afro-americanas
em Chicago tinha, pelo menos, um membro com seguro de vida. Os afro-americanos eram o grupo étnico
mais segurado na cidade, seguido de boêmios (88,9%), polacos (88,4%), irlandeses (88,5%), e brancos nativos
(85,2%). O fato de os afro-americanos trabalharem em sua maioria em empregos de baixa remuneração e em
ocupações não qualificadas, tais como de empregado doméstico e de servente, torna esses números ainda
mais surpreendentes, servindo de testemunho da resiliência das famílias afro-americanas em uma era de
segregação institucionalizada e marginalidade econômica via leis Jim Crow 102.
As altas taxas de seguro entre afro-americanos não eram específicas a Chicago. Um relatório de 1919
de migrantes sulinos afro-americanos na Filadélfia revelou que 98% das famílias (independentemente da
renda) tinham um ou mais membros segurados, acima de 40% deles em sociedades fraternais. Na cidade
mineradora de Homestead, Pensilvânia, em 1910, 91,3% das famílias afro-americanas possuíam seguro de
vida, levemente atrás dos eslavos, com 93%, mas à frente dos brancos nativos, com 80%. Estatísticas deste
tipo surpreenderam tanto a Isaac Rubinow, defensor ferrenho do seguro governamental para velhice que, em
1913, ele destacou afro-americanos e imigrantes como grupos “onde o hábito do seguro mútuo por meio de
associação voluntária desenvolveu-se ao grau mais elevado nos Estados Unidos 103”.

THOMAS, William I. The Polish Peasant in Europe and America, vol. 2. New York: Dover Publications, 1958. p. 1578–1643: e NELLI,
Humbert S. Italians in Chicago, 1880–1930: A Study in Ethnic Mobility. New York: Oxford University Press, 1970. p. 156–99.
99
ODUM, Howard W. Social and Mental Traits of the Negro: Research into the Conditions of the Negro Race in Southern Towns. New
York: Columbia University Press, 1910. p. 102–3, 109, 99.
100 MURASKIN, William A. Middle-class Blacks in a White Society: Prince Hall Freemasonry in America. Berkeley: University of

California Press, 1975. p. 118, 133–59, 54–56.


101
WASHINGTON, Booker T. The Story of the Negro, The Rise of the Race from Slavery. vol. 2. New York: Negro Universities Press,
1969. p. 148–70; DU BOIS, W. E. B. Economic Cooperation Among Negro Americans. Atlanta: Atlanta University Press, 1907. p. 109,
115, 122; e DU BOIS, W. E. B. The Philadelphia Negro: A Social Study. New York: Schocken Books, 1967. p. 185–86, 221–27. Os
mexicanos-americanos também formaram versões dessas sociedades “brancas” como os Masons e os Woodmen of the World. A
maioria das sociedades fraternais mexicanas-americanas (mutualistas), todavia, não tinham homólogas brancas. HERNANDEZ, Jose
Amaro. Mutual Aid for Survival: The Case of the Mexican American. Malabar, Florida: Robert E. Krieger Publishing Co., 1983. p. 65–
66.
102 Report of the Illinois Health Insurance Commission of the State of Illinois. p. 222.
103
MOSSELL, Sadie Tanner. The Standard of Living Among One Hundred Negro Migrant Families in Philadelphia. Annals of the
American Academy of Political and Social Science 98. Nov. 1921. p. 200; BYINGTON, Margaret F. Homestead: The Households of a
Mill Town. New York: Charities Publication Committee, 1910. p. 91; e TISHLER, Hace Sorel. Self-Reliance and Social Security. 1870–
1917, p. 96. Essa alta incidência de apólices de seguro de vida entre afro-americanos persistiu até o final dos anos 1960. Em 1967, o
Survey Research Center da University of Michigan concluiu que uma porcentagem maior de afro-americanos que brancos tinha
seguro de vida em todo grupo de renda. Aproximadamente 80% das famílias de afro-americanas tinham algum tipo de seguro de
Apesar de sua tradicional conotação de gênero, a Loja fraternal não era uma instituição
exclusivamente masculina. A grande participação de mulheres nas sociedades fraternais não tem sido
devidamente registrada por historiadores. Muitas sociedades fraternais tinham auxiliares mulheres, tais como
a Eastern Star for the Masons e a Rebekahs for the Odd Fellows. Uma das maiores sociedades fraternais
administrada e financiada unicamente por mulheres era a Ladies of the Maccabees. Suas Lojas se chamavam
“colmeias”, e ela oferecia aos seus membros serviços como o de seguro-maternidade. As ordens fraternais
também afetavam a vida das mulheres de outras formas. A maioria dos lares fraternais para idosos admitiam
as esposas dos membros nos mesmos termos que os seus esposos. Embora as estatísticas nacionais não
estejam disponíveis, a Pennsylvania Commission on Old Age Pensions constatou que as mulheres constituíam
76% dos residentes dos lares fraternais e benevolentes para idosos naquele estado. Além disso, as mulheres
eram as principais beneficiárias dos benefícios por morte 104.

A adequação da ajuda mútua

Quão adequada era a proteção de ajuda mútua oferecida por uma sociedade fraternal? Para ser
devidamente tratada, a questão precisa ser abordada em diversos níveis. Primeiro, você poderia perguntar,
adequada para quê? A sociedade fraternal atendia a uma ampla gama de necessidades individuais:
fraternidade étnica, entretenimento, networking, assim como seguro e benefícios de assistência social. Não
surpreende que cada sociedade se diferenciasse marcadamente nos objetivos que enfatizava. O historiador
que deseja encontrar a “forma ideal de sociedade fraternal” está fadado ao fracasso. Por exemplo, maçons e
Odd Fellows destacavam-se pelo sigilo e por rituais solenes, enquanto Knights of Maccabees e Ancient Order
of United Workmen concentravam-se em proteção via seguros. Outras ainda, tais como a Ancient Order of
Hibernians e a Polish National Alliance, tinham a solidariedade étnica como principal crença 105.
Como um provedor de assistência social, a sociedade fraternal de seguro não era uma panaceia;
todavia, no contexto da época, ela realizava um trabalho confiável para satisfazer as necessidades dos
membros e de suas famílias. Na vasta maioria dos casos, como vimos, o auxílio-doença fraternal cobria o
tempo de enfermidade para o qual tinha sido contratado. O mesmo poderia ser dito da utilidade do benefício
por morte: ele ajudava a atenuar o impacto financeiro depois da perda de um membro da família (quase
sempre, o chefe de família).
Para os americanos da década de 1990, a “adequação” da assistência social tomou um significado
claro e inequívoco, reduzindo-se à questão do valor a ser pago. O conceito de adequação prevalente antes da
Grande Depressão, não somente entre as sociedades fraternais, mas entre os americanos em geral, tinha
conotação além dos dólares e centavos. Ele estava intimamente ligado a questões de caráter, de autorrespeito
e de independência. Como o Fraternal Monitor, a principal voz do movimento fraternal, colocou, “o
fraternalismo tem como preocupação principal as questões que dizem respeito à autoajuda, à liberdade
individual e à manutenção dos direitos individuais, enquanto tais direitos não interfiram com os direitos do
próximo”. Em numerosas ocasiões, ele previu que um papel expansivo do governo na assistência social
desencorajaria a ajuda mútua e o sentimento comunitário. “O problema da pensão estatal”, culpava, “é que
ataca a base da vida e do caráter nacionais, destruindo a noção de responsabilidade individual 106”.
Se medida por esses padrões menos quantificáveis de adequação, a sociedade fraternal fornecia aos
seus membros vantagens lamentavelmente ausentes nos programas assistencialistas do governo. Em seu
estudo da vida social em comunidades carvoeiras de imigrantes em 1904, Peter Roberts identificou
“independência, autocontrole e visão estratégica” como qualidades estimuladas pelas sociedades fraternais
que ele observou. E completa:

os trabalhadores encontram prazer em suas Lojas porque a administração das coisas está em suas
mãos... os resultados obtidos pelos membros da gestão de seus assuntos podem não ser os melhores,

vida em comparação com 77,5% de famílias brancas. Estimativas mais recentes são mais difíceis de encontrar, mas, à luz da rápida
expansão do estado de bem-estar desde 1967, seria fascinante verificar se as taxas relativas de seguro entre afro-americanos e
brancos mudaram. Citado em BAYLEY, Roland W. Black Business Enterprise: Historical and Contemporary Perspectives. New York;
Basic Books, 1971. p. 167.
104
US Department of Labor, Bureau of Labor Statistics, Monthly Labor Review 28 (Mar. 1929). p. 421, 424; FERGUSON, Charles W.
Fifty Million Brothers: A Panorama of American Lodges and Clubs. New York: Farrar and Rinehart, 1937. p. 144; e Report of the
Pennsylvania Commission on Old Age Pensions. Harrisburg, 1919. p. 67.
105 Os hibernians, é claro, eram irlando-americanos. Veja FUNCHION, Michael F. Irish American Voluntary Organizations. Westport:

Greenwood Press, 1938. p. 51–61.


106 Fraternal Monitor 22 (1 dez. 1911), p. 16; e Fraternal Monitor 19 (21 Jan. 1908): p. 10–11.
porém eles assim obtêm experiência e adquirem tato nos negócios, em resumo, uma visão sobre a
natureza do mundo econômico que é de maior valor social que meras considerações financeiras 107.

Pobres merecedores e não merecedores

Tornou-se um rito de iniciação para os historiadores do bem-estar menosprezar a legitimidade das


preocupações pré-Depressão sobre a responsabilidade, o caráter e a iniciativa na provisão de assistência
social. Tais ideias têm sido invariavelmente rejeitadas como instâncias de moralidade banal da época
vitoriana, ou ainda pior, como fundamento de uma campanha elitista para controlar os pobres. Pela mesma
razão, os historiadores têm considerado falaciosa a antiga distinção entre pobres “merecedores” e “não
merecedores”, e elogiado os esforços para tornar a ajuda governamental aos pobres um benefício ou um
direito humano básico. Na visão de Katz, essa distinção “sempre foi uma ficção conveniente, mas destrutiva”
que “desviou a atenção das reais causas [sociais] da pobreza”. Influenciado pelas visões de Michael Walzer,
Katz responde que distinções desse tipo estigmatizam cruelmente os pobres como “objetos de caridade”,
privando-os do que lhes é justo como membros iguais da comunidade. Ele direcionou seus ataques às
distinções “merecedores/não merecedores” adotadas por entidades de caridade durante o final do século XIX
e início do século XX 108.
Katz e outros historiadores do bem-estar têm sido muito rápidos em rejeitar o raciocínio que
fundamenta essas dicotomias entre instituições de caridade e sociedades. Deve-se respeitar, todavia, o fato
de os trabalhadores de caridade estar dispostos a confrontar as complexidades e as sutilezas de um dilema
espinhoso. Essa distinção merecedor / não merecedor entre os pobres, embora imperfeita, baseava-se em
uma premissa racional: que a pobreza, como qualquer condição humana, tem uma infinidade de causas e
soluções. Nesse sentido, Mary Richmond, líder proeminente no movimento de caridade, observou em 1899:

Para responder a pergunta ‘quem são os pobres?’ cabe, primeiro, esclarecer que, dentre eles, existem
tipos amplamente divergentes de caráter - o egoísta e o altruísta, o nobre e o rude, o trabalhador e o
parasita – e que, em nossa relação, devemos estar preparados para encontrar seres humanos
frequentemente diferentes de nós, quer em coisas triviais ou extrínsecas, porém como nós em todo o
resto 109.

O diagnóstico convencional da pobreza por parte dos historiadores do bem-estar parece superficial
por comparação. Se aplicado à política pública, a teoria dos direitos que eles defendem traduz-se em um credo
simplista (e enganoso) de que “não existem pobres indignos / não merecedores”. Embora não seja sua
intenção, o efeito prático disso é juntar os pobres em uma massa indiferenciada. Tal abordagem é muito mais
condescendente com os pobres que a das instituições de caridade, embora especialmente injusta para com
os pobres trabalhadores que, embora elegíveis para assistência social, recusam-se a solicitar o benefício
porque se orgulham de permanecerem independentes. Pela lógica dos teóricos do assistencialismo, essas
pessoas são tolas por tentarem sobreviver por conta própria.
Dito isto, os historiadores do assistencialismo têm razão em um ponto. Os assistentes sociais, tanto
públicos como privados, durante o final do século XIX e início do século XX, podiam recorrer a medidas
condescendentes, intrusivas e paternalistas para investigar o “merecimento” dos recipientes. O caráter
paternalista das técnicas de investigação dos casos, como a “visita amigável”, era tanto inequívoco como
perturbador 110.
Enquanto a crítica de Katz à “categorização” do auxílio-pobreza como um produto desinformado de
indivíduos “mais afortunados” é adequada para descrever burocracias governamentais e instituições de
caridade, ela perde seu valor como ferramenta explanatória das práticas das sociedades fraternais. Primeiro,
mesmo as sociedades fraternais controladas por grupos mais pobres e oprimidos restringiam o auxílio a
membros “merecedores”. Era uma missão muito difícil encontrar uma sociedade fraternal de qualquer classe
econômica ou grupo étnico que distribuísse auxílio como um benefício incondicional. O capítulo da Geórgia
do Prince Hall Masons foi bem emblemático ao proibir as Lojas de “receber ou manter como membro...

107 ROBERTS, Peter. Anthracite Coal Communities. p. 263–64.


108 KATZ, Michael B. In the Shadow of the Poorhouse. p. 291; e KATZ, Michael B. The Undeserving Poor: From the War on Poverty to
the War on Welfare. New York: Pantheon, 1989. p. 179–80, 184, 239.
109 RICHMOND, Mary E. Friendly Visiting among the Poor: A Handbook for Charity Workers. Montclair, NJ: Patterson Smith 1969. p.

11–12.
110 Sobre as práticas investigativas das organizações de caridade durante o início do século XX, veja TRATTNER, Walter I. From Poor

Law to Welfare State: A History of Social Welfare in America. New York: Free Press, 1989. p. 89–92.
qualquer homem que seja um profanador vulgar, um pretenso libertino, um bebedor compulsivo ou que seja
culpado de qualquer crime envolvendo corrupção moral ou prática desmoralizante 111”.
William Muraskin considera essas restrições ao auxílio fraternal como uma tentativa de os grupos
oprimidos obterem respeitabilidade ao imitar a moralidade vitoriana da classe média. Esse argumento não é
convincente. Por exemplo, como ele pode explicar a popularidade de restrições similares em programas de
ajuda mútua administrados por sindicatos radicais? A socialista e autoconsciente Western Miners´ Federation
(uma predecessora da International Workers of the World) costumava negar benefícios a membros quando
“a doença ou acidente era causado por intemperança, imprudência ou conduta imoral”. É claro, os
historiadores podiam se proteger alegando que os trabalhadores que apoiavam esses tipos de restrições eram
vítimas de “falsa consciência” ou “mistificação”. Isso em nada desqualifica a atitude dos trabalhadores, mas
sim prova que os historiadores recorrem, em suas análises, ao ideal marxista de um mundo em que cada um
recebe de acordo com suas necessidades. Esse ideal, todavia, não oferece orientação para a realidade de um
mundo em que os recursos são limitados e o comportamento é, frequentemente, autodestrutivo 112.
Quando vista por esse prisma, todo esse esforço de traçar analogias entre as restrições de
elegibilidade ao auxilio (por parte das caridades e dos governos) e as das organizações fraternais torna-se, na
melhor das hipóteses, contestável. A distinção adotada por instituições de caridade e governos foi um alvo
fácil de críticas não tanto por causa de seu conteúdo específico, mas porque vinha de estranhos, a maioria
dos quais nunca tinha sido pobre. Muito semelhante aos burocratas de bem-estar modernos, os trabalhadores
do ramo de caridade do início do século XX nunca puderam verdadeiramente entender as condições dos
pobres, nem totalmente ganhar seu respeito. Não surpreende que os pobres ressentissem e não confiassem
no sistema impessoal e burocrático que lhes dava esmolas 113.
As restrições de caridade e de assistência social giravam em torno de uma relação contraditória entre
doador e recipiente, enquanto as das sociedades fraternais repousavam em princípios de reciprocidade. As
relações contraditórias entre doadores e recipientes pareciam endêmicas a qualquer sistema de assistência
aos pobres (público ou privado, baseado em direitos ou testado empiricamente) controlado e financiado por
burocratas distantes e outros estranhos (incluindo os pagadores de impostos). Na sociedade fraternal,
doadores e recipientes eram membros da mesma organização. Eles se conheciam bem, quase em nível
pessoal. Embora o processo de decisão da elegibilidade do auxílio tivesse sua cota de tensão, ele raramente
tinha a qualidade degradante e paternalista da caridade ou do assistencialismo governamental, sobretudo
porque tudo se resumia a algumas pessoas pobres avaliando o merecimento do auxílio a outras pessoas
pobres.
Essa ideia fraternal de reciprocidade, é claro, implicava obrigações mútuas entre os membros e a
organização a qual pertenciam. A sociedade fraternal era totalmente contrária à ideia de que o doador deveria
distribuir benefícios sem contrapartida do recipiente. Para destacar esse ponto, Walter Basye, editor do
Fraternal Monitor, declarou que “a fraternidade, à semelhança da religião ou de uma poupança, rende mais
para os que mais depositam. E o melhor depósito no banco da fraternidade é o interesse e o apoio sincero 114”.
Embora os benefícios da sociedade fraternal não fossem incondicionais, tampouco podiam ser
classificados como caridade. Os líderes das sociedades fraternais eram tão críticos da caridade paternalista
quanto os modernos historiadores do bem-estar. O manual dos Colored Knights of Pythias declarou que “os
doentes entre nossos irmãos não são deixados na mão fria da caridade pública; eles são visitados, e suas
necessidades atendidas pelo fundo para o qual eles próprias contribuíram e ao qual, em tempos de
necessidade, honoravelmente reivindicam sem a humilhação de ter que recorrer ao auxílio paroquial ou
individual – que a consciência do irmão repele com desdém”. Em 1910, um jornal fraternal (mutualista)
mexicano-americano anunciou orgulhosamente que “você nunca verá um mendigo mexicano, nem mesmo o

111
KATZ, Michael B. The Undeserving Poor. p.184; e MURASKIN, William A. Middle Class Blacks in a White Society. p. 46 As sociedades
fraternais entre afro-americanos livres do Norte antes da Guerra Civil tinham restrições similares. Em 1832, um grupo de afro-
americanos observou que, na Inglaterra, “os membros dessas sociedades são ligados por regras e regulamentos que tendem a
promover diligência e moralidade entre eles. Qualquer negligência ou violação dessas regras por intemperança ou imoralidade de
qualquer tipo pode levar à suspensão ou expulsão do membro”. CURRY, Leonard P. The Free Black in Urban America, 1800–1850:
The Shadow of the Dream. Chicago: University of Chicago Press, 1981. p. 203–4.
112 MURASKIN, William A. Middle Class Blacks in a White Society. p. 84–85; e DERICKSON, Alan. Workers’ Health, Workers’

Democracy: The Western Miners’ Struggle, 1891–1925. Ithaca: Cornell University Press, 1988. p. 66.
113
Gostaria de agradecer a Jeffrey Friedman por apontar o contraste entre ajuda e restrições caritárias, baseadas em relações
adversariais, e aquelas de sociedades fraternais, centradas em torno de laços de reciprocidade.
114 BASYE, Walter. History and Operation of Fraternal Insurance. p. 20; e KATZ, Michael B. The Undeserving Poor, p. 179. De acordo

com Terence O´Donnel, o “espírito de solidariedade inerente à sociedade fraternal é seu ativo mais valioso, e é muito superior à
‘boa vontade’ das companhias puramente comerciais. O´DONNELL, Terence. History of Life Insurance in its Formative Years. Chicago:
American Conservation Company, 1936).
mais indigente, porque ele sempre trabalha, independentemente de sua idade ou de sua condição social ou
educacional, para ganhar seu pão de cada dia com dignidade 115”.
A restrição ao auxílio das sociedades fraternais era baseada em uma ética de solidariedade. Ao
limitar os benefícios aos membros tidos como merecedores de sua solidariedade, elas tinham algo em comum
com os sindicatos. Nos sindicatos, os membros que violavam certas restrições (como não pagar contribuições
ou trabalhar durante uma greve, por exemplo) perdiam seu direito a benefícios. A única grande diferença
entre o sindicato e a sociedade fraternal era que o primeiro poderia e, de fato, fazia uso da força para coagir
recalcitrantes, enquanto a última dependia totalmente do consentimento voluntário e de sanções morais.

Ajuda mútua: ontem e hoje

O rico registro histórico da ajuda mútua e da autoajuda apresenta um contraste notável à condição
socioeconômica atual dos mais pobres. Quando consideramos as condições de moradia, a renda e os bens de
consumo, a população das favelas do início do século XX teria uma boa razão para invejar a “subclasse” atual.
A inveja provavelmente mudaria de lado, todavia, ao analisarmos a força dos laços comunitários, da
solidariedade familiar, da independência, da esperança no futuro e da segurança das ruas. Essas e outras
medidas são vitais mesmo se não facilmente quantificáveis 116.
Algumas das descrições mais convincentes dessa transformação foram documentadas pelo
sociólogo William Julius Wilson. Embora Wilson rejeite o retorno ao papel limitado do governo da era pré-
estado de bem-estar, ele apontou repetidamente para o declínio evidente nas condições de vida dos que
habitam as favelas atuais: “negros em Harlem e em outros guetos”, escreve, “não hesitavam em dormir em
parques, em saídas de emergência, e em telhados durante as noites escaldantes de verão nas décadas de
1940 e 1950, e brancos frequentavam tavernas e clubes noturnos na periferia das cidades. Havia crime,
obviamente, mas não a ponto de as pessoas sentirem medo de caminhar na rua de noite, mesmo com a
pobreza avassaladora na área 117”.
James Borchert também notou o contraste entre a periferia no passado e no presente. Em Alley Life
in Washington, ele analisa extensamente a ausência do que poderia ser hoje chamado psicologia da
dependência entre moradores brancos e afrodescendente de favelas em Washington, durante o início do
século XX. Como Borchert coloca, os residentes dessas áreas “não estavam, em sua maioria, sob custódia do
Estado. Em vez de serem indolentes “trapaceiros do sistema”, eles assumiam responsabilidade por suas
próprias vidas, demonstrando orgulho, independência e força. Contrário às descrições de transtornos e
patologias por parte de estudiosos e reformadores sociais, eles eram “capazes de manter seu próprio padrão
de cultura no novo ambiente, adaptando e ajustando-o quando necessário”. Boschert atribuiu essa situação
à extensa “rede de segurança” composta por família, ajuda mútua e autoajuda nas favelas 118.

Da ajuda mútua ao Estado de bem-estar 119

Embora os historiadores mal tenham começado a documentar (ou, realmente, a confirmar) o


declínio da ajuda mútua, um fato é claro: a sociedade fraternal, um componente-chave da ajuda mútua, tem
sofrido perdas dramáticas em número de filiados entre os pobres e a classe média. Para as sociedades de
seguro brancas, os números mais acessíveis, porém incompletos, são da National Fraternal Congress (NFC).
Em 1906, as sociedades membros do NFC representavam 91.434 Lojas; em 1925, chegaram ao seu apogeu de
120.000 Lojas. Depois disso, o número de Lojas estabilizou e caiu. O ritmo de queda acelerou, lentamente,
durante a Depressão e, depois, rapidamente, no pós-II Guerra Mundial. Em 1986, restavam apenas 52.655
Lojas. Durante os anos 1970, o NFC perdeu mais de 20% dos membros de suas Lojas. Embora algumas tenham

115 History and Manual of the Colored Knights of Pythias. Nashville: National Baptist Publishing Board, 1917. p. 448–49; e
HERNANDEZ, Jose Amaro. Mutual Aid for Survival, p. 93.
116 Para um olhar detalhado sobre as consequências do declínio na ajuda mútua, veja MURRAY, Charles. In Pursuit: Of Happiness and

Good Government. New York: Simon and Shuster, 1988.


117
WILSON, William Julius. The Truly Disadvantaged: The Inner City, The Underclass, and Public Policy. Chicago: University of Chicago
Press, 1987. p. 3.
118 BORCHERT, James. Alley Life in Washington: Family, Community, Religion, and Folklore in the City, 1850–1970. Urbana: University

of Illinois Press, 1980. p. 98, 215–17.


119
Eu tomei emprestado o título desse tópico do livro: GREEN, David G e CROMWELL, Lawrence. Mutual Aid or Welfare State:
Australia’s Friendly Societies. As sociedades amigáveis foram as versões australiana e inglesa das sociedades fraternais americanas.
sobrevivido à tempestade melhor que outras, as principais sociedades secretas brancas, incluindo os maçons,
os Odd Fellows e os Knights of Pythias também sofreram grandes reveses 120.
Traçar o destino das instituições de ajuda mútua afro-americanas é uma tarefa mais difícil. Quando
comparada às suas homólogas brancas, as estatísticas são, de fato, inconsistentes. Pelo que se tem registro,
o número total de filiados alcançou seu topo na década de 1920, e então caiu durante a Depressão. A ordem
afro-americana mais conhecida, a Prince Hall Masons, recuperou-se ligeiramente nas décadas de 1940 e 1950,
somente para entrar em declínio novamente na década de 1960 121.
Mesmo assim, durante e muito depois da Depressão, as sociedades fraternais afro-americanas
mantiveram uma força impressionante. Em 1934, o sociólogo Guy Johnson observou que dificilmente “existe
uma comunidade negra no Sul que não ofereça aos negros dois ou mais tipos de afiliação à Igreja e de duas a
20 denominações de filiação secreta fraternal”. Dez anos depois, o estudo referencial de Gunnar Myrdal An
American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy assegurou que afro-americanos de todas as
classes eram mais propensos que brancos a se filiarem a organizações sociais tais como as sociedades
fraternais. Ele estimou que mais de 4.000 associações em Chicago atendessem as necessidades de 275 mil
afro-americanos da cidade 122.
Em lugar de elogiar esse alto nível de organização social afro-americana, Myrdal via nisso uma
fraqueza. Ele taxava as sociedades fraternais afro-americanas de imitações baratas de suas homólogas
caucasianas, e reflexão de uma patologia social. Myrdal declarou que “apesar do fato de serem
predominantemente da classe mais baixa, os negros são mais inclinados a aderir a associações que os brancos;
nesse respeito também os negros são americanos ‘exagerados’”. Para Myrdal, grande parte das organizações
sociais de afro-americanos representava um “esforço perdido”. Vale pensar se Myrdal teria revisto seus
comentários caso pudesse ter previsto a existência individual isolada de um morador atual dos projetos de
moradia das periferias 123.
Neste ponto, o estado da pesquisa não oferece respostas fáceis à importante questão do por que
instituições fraternais e de ajuda mútua perderam tanto terreno na segunda metade do século XXI. Na melhor
das hipóteses, a literatura tem sido superficial e sugestiva. As teorias mais prevalentes da decadência fraternal
destacam o papel dos problemas atuariais, originados por uma base contábil errôneo de muitas sociedades
formadas entre 1870 e 1910. Inicialmente, era prática comum a todos os membros, independentemente de
risco ou idade, pagar o mesmo prêmio. Embora tenha funcionado bem inicialmente, esse sistema sofreu forte
pressão com o envelhecimento dos membros. Com o aumento da mortalidade, o valor dos prêmios tendia a
subir, levando os membros mais jovens (de menor risco) a abandonarem a sociedade. Após a década de 1910,
as grandes sociedades começaram uma transição frequentemente dolorosa para sistemas de prêmio
baseados no risco. Os estados adotaram legislação para agilizar o processo de ajuste, o que forçou muitas das

120 Statistics of Fraternal Benefit Societies (1906–86). Sobre o declínio das principais sociedades secretas, veja GIST, Noel P. Secret
Societies: A Cultural History of Fraternalism. p. 42–43; DUMENIL, Lynn. Freemasonry and American Culture, 1880–1930. p. 225; e
SCHMIDT, Alvin J. e BABCHUK, Nicholas. Formal Voluntary Organizations and Change Over Time: A Study of American Fraternal
Organizations. Journal of Action Research 1 (Jan. 1972). p. 49.
121 MYRDAL, Gunnar. An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy New York: Harper and Brothers Publishers,

1944. p. 953; PALMER, Edward Nelson. Negro Secret Societies. Social Forces 23 (Dez. 1944), p. 211; e MURASKIN, William A. Middle-
class Blacks in a White Society. p. 29.
122 JOHNSON, Guy B. Some Factors in the Development of Negro Social Institutions in the United States. American Journal of

Sociology 40 (Nov. 1934), p. 336; e MYRDAL, Gunnar. An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy, p. 952.
Nos últimos 30 anos, alguns levantamentos sobre associações voluntárias também registraram porcentagens de filiação fraternal.
Em Long Beach, California, um relatório de 1966 concluiu que 14,6% dos brancos pertenciam a grupos fraternais em comparação a
27,5% de afro-americanos. S. John Dackawich, “Voluntary Associations of Central Area Negroes,” Pacific Sociological Review 9 (Out.
1966), p. 77. Em 1967, na cidade de Tampa, Florida, 8% dos afro-americanos pertenciam a Lojas de “ajuda mútua” enquanto 11%
pertenciam a Lojas “regulares”. Nenhuma porcentagem de brancos foi tabulada. ROSS, Jack C. e WHELLER, Raymond H. Black
Belonging: A Study of the Social Correlates of Work Relations Among Negroes. Westport: Greenwood Publishing Company, 1971), p.
106–8. Em 1969, na cidade de Austin, Texas, a % de filiação fraternal era de 16,9% para homens afro-americanos e 13,3% para
mulheres afro-americanas contra 10,3% para homens brancos e 2% para mulheres brancas. WILLIAMS, J. Allen. Voluntary
Associations and Minority Status: A Comparative Analysis of Anglo, Black, and Mexican Americans. American Sociological Review 38
(Out. 1973), p. 644. Em 1972, na cidade de Nova York, a participação da sociedade fraternal foi de 7% para homens afro-americanos
e 2% para mulheres afro-americanas comparado com 12% para homens brancos e 3% para mulheres brancas. COHEN, Steven Martin
e KAPSIS, Robert E. Participation of Blacks, Puerto Ricans, and Whites in Voluntary Associations: A Test of Current Theories. Social
Forces 56 (Jun. 1978), p. 1063.
123 Nem todos os estudiosos concordam com a interpretação da sociedade fraterna afro-americana como imitativa. Veja, em

especial, KUYK, Betty M. The African Derivations of Black Fraternal Orders in the United States. Comparative Studies in Society and
History 25 (Out 1983). p. 559–92. Kuyk cita evidência de que as sociedades afro-americanas tomaram emprestado muito dos rituais
e formas de organização de antecedentes afro-americanos.
sociedades pequenas, em sua maioria, de afro-americanos (que poderiam ainda operar eficientemente em
uma base de rateio) fora do negócio 124.
Richard de Raismes Kip, J. Owen Stalson e outros identificam a concorrência do entretenimento de
rádio, filmes e televisão como contribuindo para a perda de membros das sociedades fraternais. Sim, esse
argumento tem algum mérito na explicação do destino das sociedades secretas, embora não seja tão
convincente quando aplicado às sociedades fraternais de seguro. Com efeito, o principal argumento de venda
de tais sociedades (pelo menos, como refletido em seus anúncios para novos membros) era o seguro em si.
Além disso, o argumento do entretenimento falha em explicar porque tantos trabalhadores antes da década
de 1920 se filiavam às sociedades fraternais de seguro em vez de aos clubes sociais (sem seguro) ou às
sociedades secretas disponíveis. Se o entretenimento era o que atraía filiados, então, como justificar os
esforços frequentes para instituir e manter programas de seguro particularmente caros? 125.
Outros fatores da decadência incluíam impedimentos jurídicos ou coercivos que limitavam o poder
de resposta das sociedades fraternais frente a novos competidores privados ou governamentais. No século
1920, as sociedades médicas, protegidas por restrições de licenciamento e barreiras certificatórias, tinham
vencido (pelo menos, temporariamente) sua luta incessante contra a prática contratual da Loja. O efeito disso
não foi somente o aumento do custo de assistência médica, mas também a impossibilidade de maior
participação fraternal no mercado de planos de saúde 126.
Uma variação provocativa na questão da interferência legislativa foi apresentada por Roger L.
Ransom e Richard Sutch. Eles afirmam que a proibição legal por parte dos estados de certas formas de seguro,
tais como o seguro de tontina – uma forma de seguro de velhice individual – encorajava dependência do
trabalhador dos planos de benefícios dos empregadores ou de programas governamentais tais como a
seguridade social. Apesar de promissora, a teoria de Ransom e Sutch necessita de muito mais
detalhamento 127.

124 CHODES, John. Friendly Societies: Voluntary Social Security and More. The Freeman 40 (Mar. 1990). p. 98; e BASYE, Walter. History

and Operation of Fraternal Insurance. p. 113–22.


125 KIP, Richard De Raismes. Fraternal Life Insurance in America. Philadelphia: College Offset Press, 1953. p. 182–83; STALSON, J.
Own. Marketing Life Insurance: Its History in America. Bryn Mawr: McCahan Foundation, 1969. p. 460–61. Um bom lugar para
encontrar anúncios de uma ampla gama de sociedade é qualquer edição do Fraternal Monitor.
126 Sobre o declínio da prática contratual durante a década de 1920, veja DUFFY, John. The Healers: The Rise of the Medical

Establishment. New York: McGraw, 1976. p. 198–99.


127 RANSOM, Roger L. e SUTCH, Richard. Tontine Insurance and the Armstrong Investigation: A Case of Stifled Innovation, 1868–

1905. Journal of Economic History 47 (Jun. 1987). p. 390.


Praticamente o mesmo pode ser dito de explicações que propõem uma relação causal entre o
surgimento do Estado de bem-estar e o declínio da ajuda mútua. Está bastante claro que entre brancos e afro-
americanos, o enfraquecimento da ajuda mútua coincidiu com o crescimento do papel de assistência social
do governo. O envolvimento governamental no bem-estar social (muito além, é claro, dos abrigos) pré-datava
o New Deal. Antes da Grande Depressão, a maioria dos estados americanos já tinha adotado leis de
indenização aos trabalhadores, além de pensões para mães. Em 1913, 20 estados tinham pensões para mães;
em 1931, 46 estados. A década de 1930 trouxe o primeiro envolvimento federal substancial no bem-estar
social, incluindo o Social Security e Aid do Dependent Children (ADC) 128.
Mesmo que a correlação entre o aumento do envolvimento governamental e a decadência da ajuda
mútua seja clara, a relação causal ainda não foi provada. Contudo, o senso comum, se nada mais, exige mais
investigações sobre as possíveis conexões entre essas duas tendências. Ao longo da história, a ajuda mútua
tinha sido um produto da necessidade. O governo, ao tomar para si a responsabilidade pelo bem-estar social,
o qual estava sob a guarda das instituições voluntárias, deve ter reduzido muito dessa necessidade. Neste
ponto, existem alguns pequenos rastros de evidência circunstancial para a reflexão dos historiadores. Com o
surgimento da indenização laboral nas décadas de 1910 e 1920, as sociedades de benefício mútuo organizadas
por trabalhadores dentro das fábricas deixaram de prover o seguro contra acidentes industriais. Além disso,
como os fundos de compensação dos trabalhadores eram direcionados para planos médicos selecionados
pelos empregadores, o efeito indireto pode ter sido um ataque aos serviços concorrentes oferecidos por
sociedades 129.
Paradoxalmente, embora defenda o estado de bem-estar, Katz especula que os programas de
transferência governamental contribuíram para um declínio substancial na ajuda mútua entre os pobres. Ele
reconhece que antes do surgimento do Estado de bem-estar, o pobre contava com “uma rede complexa e
intercruzada” baseada em “cadeias íntimas de atos de reciprocidade, generosidade espontânea e
extraordinária entre os próprios pobres”, e cita as iniciativas de bem-estar federal como fatores que “podem
ter enfraquecido essas redes de apoio das periferias, transformando a experiência da pobreza e contribuindo
para o aumento no número de moradores de rua 130”.
A relação, se, de fato, existe, entre a decadência da ajuda mútua e o destino recente da família -
outra instituição fundamental de assistência social - também merece uma análise mais cuidadosa.
Contrariamente à escassa literatura sobre sociedades fraternais, a história da família afro-americana tem sido
um tópico de pesquisa muito procurado desde a década de 1960. O estudo recente mais conhecido
permanece sendo The Black Family in Slavery and Freedom, 1750–1925 de Herbert Gutman.
Gutman refutou o estudo de Daniel Patrick Moynihan (1965) (ainda popular em alguns círculos), que
concluía que a experiência da escravidão tinha deixado a família afro-americana totalmente “desorganizada”
e incapaz de lidar com a mudança social. Com base nos registros do censo de diversas localidades, Gutman
constatou que, pelo menos, até a década de 1920, as famílias afro-americanas eram tão propensas quanto às
famílias brancas a terem dois chefes de família. Enquanto os afro-americanos tinham mais crianças que os
brancos fora do casamento, era uma prática aceita a de incorporar pais solteiros e seus filhos ao sistema
familiar. Em 1983, pelo contrário, 41,9% das famílias afro-americanas não tinham mais presente a figura do
pai. Como o estudo de Gutman indica, a grande incidência atual de lares monoparentais nas famílias afro-
americanas parece ser um produto do século XXI, e não um legado da escravidão 131.
Embora importante, a raridade da estrutura duploparental de família entre os afro-americanos mais
pobres não é, por si só, um indicador claro do aumento do colapso da família. Estudiosos recentes de famílias
afro-americanas têm acertadamente apontado que as formas de família monoparentais ou estendidas têm
funcionado perfeitamente bem em alguns contextos históricos. Indicador mais preciso desse “colapso”,
embora ausente de conotações normativas, seria o grau ao qual uma família (seja qual for sua composição)

128
TRATTNER, Walter I. From Poor Law to Welfare State. p. 202–5.
129 Para o efeito atenuante da compensação dos trabalhadores em seguro contra acidentes e invalidez por associações de benefício
mútuo, veja US Department of Labor. Bureau of Labor Statistics. Monthly Labor Review 25 (Jul. 1927). p. 20; Monthly Labor Review
28 (Jan. 1929), p. 74; e WILLIAMS, Pierce. The Purchase of Medical Care Through Fixed Periodic Payment. New York: National Bureau
of Economic Research, 1932. p. 278–79.
130
KATZ, Michael B. The Undeserving Poor. p. 190–91.
131 GUTMAN, Herbert G. The Black Family in Slavery and Freedom, 1750–1925. New York: Pantheon, 1976; MOYNIHAN, Daniel

Patrick. The Negro Family: The Case for National Action. Washington, D.C.: Office of Policy Planning and Research, US Department
of Labor, 1965; e WILSON, William Julius. The Truly Disadvantaged. p. 65. Na década passada, além de Gutman, outros historiadores
descobriram evidências que confirmam a prevalência de famílias biparentais afro-americanas tanto no Norte como no Sul durante
o final do século XIX e início do século XX. Para um breve sumário da literatura no tema, veja BORCHERT, James. Alley Life in
Washington. P 57-99. E WILSON, William Julius e NECKERMAN, Kathryn N. Poverty and Family Structure: The Widening Gap between
Evidence and Public Policy Issues. In DANZIGER, Sheldon H. e WEINBERG, Daniel H. Fighting Poverty: What Works and What Doesn’t.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986. p. 232–59.
tornou-se dependente, para sua subsistência, de relações e instituições não recíprocas. Por essa medida, é
claro, houve aumento no colapso da família desde a Grande Depressão. O sinal mais evidente do aumento da
dependência da família de recursos externos (em oposição às instituições de autoajuda ou ajuda mútua tais
como a sociedade fraternal) tem sido a multiplicação do número de casos de assistencialismo. Em 1931,
93.000 famílias estavam nas folhas de pagamento de auxílio-maternidade (muito abaixo de 1% da população
americana). Por comparação, hoje, 3,8 milhões famílias recebem o AFDC, incluindo cerca de 1/5 de toda
população afro-americana 132.
A transição da ajuda mútua e autoajuda para o sistema assistencialista envolveu mais do que o
simples ajuste contábil inerente à transferência da provisão de serviço de um grupo de instituições para outro.
Como os líderes das sociedades fraternais temiam, muito foi perdido na transição que transcendeu as
considerações monetárias. A antiga relação de reciprocidade e autonomia que as sociedades fraternais
tinham exemplificado foi lentamente substituída por laços paternalistas de dependência. O crescimento do
Estado de bem-estar não só colaborou para o fim do controle endógeno das instituições de ajuda mútua, mas
também deixou burocracias impessoais dominadas por desconhecidos em seu lugar 133.

132 US Department of Commerce. Historical Statistics of the United States: Colonial Times to 1970. p. 15; US Department of Labor.
Mothers’ Aid, 1931, p. 3; Social Security Bulletin 53. Aug. 1990. p. 37; e GLAZER, Nathan. The Limits of Social Policy. Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1988. p. 43. O antropólogo Carol Stack oferece um quadro de referência para medir a “estabilidade
e o poder coletivo da vida familiar”. Stack (cuja perspectiva é similar àquela da Regulating the Poor) define família “como a menor
rede organizada de parentes e não parentes que interagem diariamente, provendo as necessidades domésticas da criança,
assegurando a sua sobrevivência”. STACK, Carol B. All Our Kin: Strategies for Survival in a Black Community. New York: Harper and
Row, 1974. p. 31, 90.
133 Piven e Coward não somente descrevem, mas também aplaudem o que entendem como a maior disposição dos pobres de hoje

a buscar dependência da ajuda governamental em vez de confiar em seus próprios recursos ou aceitar oportunidades de trabalho
disponíveis. PIVEN, Frances Fox, CLOWARD, Richard A, EHRENREICH, Barbara e BLOCK, Fred. The Mean Season. p. 21–22. A atitude
atual (como relatado por Piven e Cloward) está em claro contraste com a exposta por James Borchert (veja acima) em sua descrição
dos residentes das favelas afro-americanas e brancas do estado de bem-estar e sua forte aversão à caridade e à dependência do
auxílio-pobreza. Um subproduto da troca de relações reciprocas por dependentes tem sido o declínio da famosa “ética profissional”.
A famosa hegemonia dos valores da ética do trabalho entre pobres e a classe média já foi notada por vários historiadores. Veja,
RODGERS, Daniel T. The Work Ethic in Industrial America, 1850–1920. Chicago: University of Chicago Press, 1978. p. 168–70. De
muitas formas, a aceitação crescente das relações de dependência segue uma tendência mais ampla em todos os estratos sociais.
O Estado de bem-estar como esquema de pirâmide

Por Michael Tanner

O financiamento via sistema de repartição pode ser uma opção atraente para os políticos, afinal, o
usufruto de sua aposentaria se dará antes do colapso do sistema. Chega um momento em que o número de
beneficiários cresce e o número de entrantes (contribuintes) cai, deixando lacunas cada vez maiores entre a
renda estatal e seus gastos. Ao redor do mundo, os sistemas de pensão governamental, assim como os de
financiamento ou administração do sistema de saúde, estão se aproximando do ponto de colapso. As
obrigações não financiáveis trarão encargos enormes e insustentáveis às gerações atuais. Michael Tanner é
membro sênior do Cato Institute e autor de diversos livros, incluindo Leviathan on the Right: How Big
Government Brought Down the Republican Revolution e The Poverty of Welfare: Helping Others in Civil Society.

Margaret Thatcher certa vez brincou sobre o problema com que deparavam os modernos estados
de bem-estar: “eles só duram até acabar o dinheiro dos outros”. Hoje, vários países estão constatando a
veracidade de sua profecia. Os noticiários têm sido dominados por problemas dos chamados PIIGS (Portugal,
Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), que enfrentam uma crise econômica mais imediata. Contudo, mesmo países
com economias relativamente robustas, tais como França e Alemanha, estão enfrentando níveis de
endividamento sem precedentes. Em 2010, a França teve déficit igual a 7,1% do PIB, enquanto a Alemanha,
4,3% do PIB, apesar de elas não terem se comprometido com medidas de estímulo tão caras quanto as de
outros países em resposta à recessão. Os déficits se somam ao serviço total da dívida governamental anual. A
dívida da França era de 81,7% de PIB; a da Alemanha, 83,2%. A dívida da Inglaterra atingiu 68% do PIB. Na
verdade, a dívida da Inglaterra está crescendo tão rapidamente que, em 2040, os pagamentos de juros, por si
só, consumirão 27% do PIB do país.
Colocando em perspectiva, cada trabalhador alemão leva consigo uma dívida de €42,000 (US$
52.565). A dívida nacional da Inglaterra, por sua vez, atinge os £90.000 (U$$ 140.322) por família. Cada
homem, mulher e criança na França carrega uma dívida de €24.000 (US$ 30.037).
Todos esses cálculos podem minimizar significativamente o nível real da dívida confrontado por
esses países, visto que não incluem as obrigações não financiáveis de seus sistemas estatais de pensão e
seguridade social. Em toda a União Europeia, a soma das obrigações pensionais não financiáveis chega, em
média, a 285% do PIB. Em alguns países, as obrigações futuras são tão imensas que vão além de nossa
compreensão. Por exemplo, se a Grécia fosse contabilizar integralmente suas obrigações pensionais futuras,
a sua dívida total excederia 875% do PIB, isto é, quase 9x o valor de seu PIB atual. Na França, a dívida total
sobe para 549% tão logo se contabilizam todas as promessas de pensões; na Alemanha, o nível da dívida total
subiria para 418%.
Tais desequilíbrios orçamentários (o valor presente da diferença entre o gasto projetado e a receita
projetada de um governo) levarão à alguma combinação de aumento excessivo de impostos, repúdio de
obrigações (quer seja o pagamento da dívida e/ou dos benefícios prometidos) ou mesmo o repúdio indireto
via inflação, período em que os bancos centrais criam moeda para fechar a conta e reduzir relativamente o
valor da dívida e de outras obrigações. Esse tipo de inflação tem diversos efeitos prejudiciais, em especial,
sobre os pobres, pois são os menos capazes de se protegerem do imposto inflacionário. Richard Disney da
Universidade de Nottingham estima que, se as políticas assistencialistas atuais permanecerem inalteradas, as
nações europeias serão forçadas a aumentar as alíquotas de imposto de 5% para 15% do PIB (não com base
nas alíquotas atuais, mas, sim, de 5% para 15% do PIB). Em poucas palavras, a tributação variaria de 45% a
60% do PIB; e isso só para evitar o aumento do montante da dívida atual, e nada mais.
Em resumo, os países europeus não têm como dispor de tributação adicional para vencer a crise.
Embora os números supracitados sejam assustadores, focar em tributos e dívida é confundir os
sintomas com a doença. Como Milton Friedman explicava, a real questão não é como você paga pelos gastos
governamentais – dívida ou tributos – mas o gasto em si.
Hoje, o gasto médio dos governos da União Europeia representa 52% do PIB do bloco. Conquanto o
gasto governamental não seja todo direcionado ao estado de bem-estar – afinal, o governo executa várias
funções – o gasto com políticas assistencialistas representa uma parcela crescente do gasto dos governos
europeus, atingindo 42% do PIB na maioria dos países-membros da União Europeia. A dívida é o sintoma, e o
estado de bem-estar, a causa.
Os Estados Unidos não estão em um estado significativamente melhor. Na verdade, somente dois
países europeus têm déficits orçamentários maiores em porcentagem do PIB. As coisas estão ligeiramente
melhores quando se analisa o tamanho da dívida pública nacional dos Estados Unidos, que hoje ultrapassa
US$ 15,3 trilhões, ou seja, 102% do PIB. Somente quatro países europeus têm dívidas nacionais maiores que
a dos Estados Unidos – Grécia e Irlanda novamente, mais Portugal e Itália. Se se adicionar as obrigações não
financiáveis da Previdência Social e do Medicare à dívida nacional oficialmente reconhecida, os Estados Unidos
devem, na verdade, US$ 72 trilhões de dólares – de acordo com os números conservadores das projeções da
administração Obama, que levam em conta “futuras economias” no Medicare devido às mudanças
implementadas no Obamacare. As projeções mais realistas, todavia, indicam valores tão elevados quanto US$
137 trilhões, isto é, 480% do PIB. Nas projeções mais realistas, o desequilíbrio orçamentário dos Estados
Unidos pode alcançar 911% do PIB. A situação na Grécia e nos Estados Unidos pode não ser tão diferente,
afinal.
E, embora o tamanho do estado de bem-estar americano ainda não seja igual ao da Europa, ele está
crescendo rapidamente. Hoje, o governo federal dos Estados Unidos gasta mais de 24% do PIB. Projeta-se um
aumento para 42% do PIB em 2050. Somando os gastos estadual e municipal, os gastos excederão 59% do PIB
- maior que qualquer país europeu nos dias de hoje.
Ainda assim, como o economista Herbert Stein notoriamente observou, “quando algo não pode
durar para sempre, ele terá um fim”. O estado de bem-estar moderno simplesmente não pode continuar a
perseguir gastos cada vez maiores, com tributos cada vez maiores. Tampouco podem países como Grécia,
Portugal, Itália e Espanha continuarem a depender de resgates de países relativamente mais estáveis como
França e Alemanha, dado que, eventualmente, esses países também enfrentarão suas próprias dívidas
acumuladas e obrigações futuras não financiáveis.
Felizmente, existem alternativas ao estado de bem-estar. Tome, por exemplo, as três maiores contas
da maioria dos estados de bem-estar: aposentadoria por idade avançada, sistema de saúde e assistencialismo.
O livre mercado oferece formas mais baratas – e mais efetivas – para a consecução de tais objetivos.
Por exemplo, os programas governamentais de aposentadoria por idade, que transferem dinheiro
dos contribuintes atuais para os beneficiários atuais, estão se tornando cada vez mais insustentáveis em face
do envelhecimento das sociedades. Tais sistemas são frequentemente populares do ponto de vista político
quando lançados porque são financiados por um sistema de repartição e têm a mesma estrutura financeira
de um “esquema de pirâmide”. À medida que o número de beneficiários aumenta, e o número de
contribuintes cai, o sistema entra em colapso. Para evitar tal colapso, os governos poderiam substituir os
sistemas de transferência por repartição por sistemas em que os indivíduos poupam para sua própria
aposentadoria por meio de investimento privado na economia, gerando riqueza.
Diz-se que os impostos extraídos na fonte são “investidos” em um “fundo fiduciário”; todavia, isso
não é nada mais do que um IOU (eu devo a você) do governo federal, que se compromete a pagar benefícios
no futuro com arrecadação tributária futura. Não existe nenhum “investimento”; quando o sistema registra
superávits de receita sobre gastos, a receita é “tomada emprestada” para o pagamento dos gastos
governamentais atuais, e um título da dívida governamental – um eu devo a você para tributar trabalhadores
no futuro – é posto em seu lugar. O dia do acerto de contas, quando os gastos superarem as receitas e essas
notas promissórias (os IOU - eu devo a você) forem convertidos em tributos adicionais, está a poucos anos de
acontecer.
Hoje, mais e mais governos percebem que os planos de pensão estatais são frágeis, injustos e
insustentáveis. Hoje, mais de 30 nações já começaram a reformar seu sistema de pensão, permitindo que os
trabalhadores poupem e invistam, pelo menos, uma parcela do que tinham previamente pagos sob a forma
de impostos sobre rendimentos.
Uma tendência geral e crescente em países com sistemas nacionais de saúde é se distanciar do
controle governamental centralizado - que promove filas, aumento de custos, acesso limitado, racionamento
– introduzindo, em seu lugar, mais elementos de mercado, incluindo competição, opções para o consumidor
e financiamento privado. Países como a Suíça, e em menor medida, Holanda e França, estão flexibilizando
regulamentações governamentais e injetando mecanismos de mercado, incluindo repartição de custos entre
pacientes, precificação de bens e serviços, e concorrência crescente entre seguradoras e fornecedores.
A assistência aos pobres permanece sendo a área em que a maioria dos governos ainda não começou
a realizar reformas. Alguns, é claro, têm sido forçados a reduzir o nível de assistência; outros começaram a
tornar alguns benefícios condicionais, ao requerer que os beneficiários, por exemplo, trabalhem ou, pelo
menos, busquem emprego. No entanto, poucos têm seriamente repensado a ideia da primazia governamental
no cuidado aos necessitados.
No entanto, reformas sérias são necessárias. Não é meramente a questão de financiamento de
programas em tempos de dificuldades financeiras dos governos. Além do custo monetário, esses programas
estão corroendo as estruturas sociais necessárias para sociedades prósperas e cooperativas. Em vez de acabar
com a pobreza, o efeito das transferências de renda, de projetos habitacionais públicos e de outros programas
que exigem qualificação para o recebimento de assistência é alimentar e perpetuar subclasses de pessoas que
não são capazes de se virarem por conta própria. Tais subclasses não podem contribuir para o crescimento
necessário à produção dos recursos que financiam os programas assistencialistas.
Gradualmente, a responsabilidade pelo bem-estar deveria ser transferida dos governos para a
sociedade civil, particularmente para associações de ajuda mútua, de autoajuda, e de caridade para os
verdadeiramente necessitados. Associações de ajuda mútua e caridades têm realizado um trabalho muito
superior, ajudando as pessoas a lidar com infortúnios, adquirir habilidades, e escapar da pobreza. É uma das
maiores tragédias de nosso tempo que essas organizações tenham sido praticamente extintas e substituídas
pelo Estado.
Pode-se debater o sucesso ou fracasso do estado de bem-estar no atendimento das necessidades
de seus cidadãos. O que não é discutível é que o Estado de bem-estar não é mais sustentável. É hora de buscar
alternativas que não vão falir as gerações futuras. Felizmente, existem alternativas voluntárias que fazem um
trabalho muito melhor na proteção dos vulneráveis de nossa sociedade. Cidadãos e governos em todos os
lugares deveriam começar a transição de estados de bem-estar coercivos, paternalistas, manipulativos e
insustentáveis para soluções voluntárias efetivas, justas, eficientes e sustentáveis.
Como o direito à “moradia acessível” criou a bolha que resultou no colapso da economia mundial

Por Johan Norberg

O economista e historiador sueco Johan Norberg mostra como as políticas governamentais


projetadas para tornar a moradia “mais acessível” criaram uma imensa bolha imobiliária, resultando no
colapso do sistema financeiro global. Norberg é um membro sênior do Cato Institute, autor de diversos livros,
incluindo When Mankind Created the World e In Defense of Global Capitalism, além de produtor de diversos
documentários, incluindo Globalization is Good para UK Channel 4 e Overdose: The Next Financial Crisis. Esse
ensaio foi extraído do capítulo II de seu livro Financial Fiasco: How America’s Infatuation with Home Ownership
and Easy Money Created the Economic Crisis (Washington, DC: Cato Institute, 2009), que apresenta em mais
detalhes a história de como uma série de intervenções estatais manipulativas nos mercados – crédito fácil via
FED, “financiamento criativo” mandatório nos empréstimos bancários, securitização de hipotecas por
empresas apadrinhadas pelo governo (Fannie Mae e Freddie Mac), e regulamentação bancárias que
encorajara a aquisição de títulos de alto risco – resultou no colapso do sistema financeiro global.

“Venha ver a vitória, numa terra chamada fantasia”.

— Estrofe de uma música da banda Earth, Wind, and Fire, que animou a grande festa de Natal
da Fannie Mae em 2006.

Quando Fannie Mae e Freddie Mac pediram falência em 2008, a administração Bush logo circulou a
história de como ela tinha visto os problemas se agravando e tentado obter controle das operações, quando
os democratas do Congresso bloquearam a tentativa. Os oficiais da Casa Branca até mesmo redigiram um
memorando com tópicos para discussão intitulado “GSEs – We Told You So”, que descrevia um relatório de
2003 de Armando Falcon Jr. do Office of Federal Housing Enterprise Oversight, cujo trabalho era auditar as
empresas Fannie e Freddie, em que ele advertia que elas estavam engajadas em práticas irresponsáveis de
empréstimo e gestão de riscos que poderiam torná-las insolventes. De acordo com Falcon, isso poderia gerar
um efeito-dominó, gerando problemas de liquidez no mercado.
Há um pequeno detalhe que os assessores de Bush deixaram de fora do seu memorando: no mesmo
dia da publicação do relatório de Falcon, ele recebeu uma ligação do Departamento de Recursos Humanos da
Casa Branca informando-o que ele tinha sido demitido 134.
O objetivo do presidente Bush era criar a “sociedade da casa própria”, em que o cidadão estaria no
controle de sua própria vida e riqueza através da propriedade, o que, por sua vez, promoveria tanto
independência como responsabilidade. No entanto, isso não significava a busca do livre mercado via direitos
de propriedade privada – mas sim a disposição de, por meio das alavancas governamentais, tratar a
propriedade imobiliária de forma mais favorável que outra relação contratual no mercado. Um dos objetivos-
chave de Bush era aumentar a porcentagem de proprietários de imóveis, e dois de seus melhores amigos
nesse plano se chamavam Fannie e Freddie.
Em um dia ensolarado de junho de 2002, o presidente Bush visitou a casa do oficial de polícia Darrin
West em Park Place South, uma vizinhança pobre em Atlanta, Geórgia. West só tinha sido capaz de comprar
uma casa graças ao empréstimo governamental que tinha coberto o pagamento da entrada. A visita do
presidente tinha por objetivo explicar a West a razão pela qual o fato de negros e latinos não terem casa
própria na mesma proporção que brancos era um problema, e o que ele, Bush, pretendia fazer a respeito. O
número de membros de diversos grupos minoritários que tinha casa própria seria 5,5 milhões maior em 2010,
e tal meta seria atingida por meio de Fannie, Freddie, empréstimos federais e subsídios governamentais. Nas
próprias palavras de Bush:

Usamos o grande poder do governo federal em combinação com os governos local e estadual para
realizar o sonho da casa própria 135.

De fato, os republicanos aprovaram virtualmente todas as decisões tomadas pelos oficiais


democratas Henry Cisneros e Andrew Cuomo – e pediram mais. Bush propôs novos subsídios federais para

134 BECKER, Jo, STOLBERG, Sherly Gay e LABATON, Stephen. White House Philosophy Stoked Mortgage Bonfire. New York Times. 21
dez. 2008.
135 BUSH, G. W. President Calls for Expanding Opportunities to Home Ownership: Remarks by the president on homeownership. 17

jun. 2002. Disponível em: http://georgewbush-whitehouse.archives. gov/news/releases/2002/06/20020617-2.html


novos compradores, quem ele desejava que fossem cobertos pelo seguro federal mesmo se não depositassem
um único centavo como entrada. Em 2004, era chegado o momento de traçar novas metas para as “empresas
apadrinhadas pelo governo”. Cisneros tinha exigido que 42% das hipotecas de Fannie e Freddie fossem
dedicadas a trabalhadores de baixa renda, Cuomo elevou tal índice para 50% e a administração Bush, não
querendo ficar para trás, elevou-o para 56% em 2008. E uma mudança ainda mais marcante foi a proporção
de empréstimos a serem concedidos a pessoas com baixíssima renda: de 20% para 28% do total.
“Ninguém queria estourar aquela bolha”, comenta Lawrence Lindsey, ex-conselheiro econômico de
Bush. “Isso teria conflitado com as próprias políticas do presidente 136”. E, em grande medida, a política
habitacional havia adquirido um ímpeto próprio. Quanto mais facilmente as pessoas financiavam hipotecas,
mais delas entravam no mercado imobiliário e os preços se elevavam. Isso, por sua vez, dificultava a aquisição
da casa própria por novos entrantes, obrigando a novas intervenções políticas para facilitar ainda mais a
obtenção de uma hipoteca, que fazia com que os preços subissem ainda mais. E, mesmo assim, esse número
astronômico de hipotecas parecia inofensivo, exatamente porque os preços continuavam a subir e você
poderia facilmente tomar um novo empréstimo sobre sua antiga casa.
A atitude da administração para com Fannie e Freddie não começou a mudar até depois de um
escândalo inusitado. Em junho de 2003, apenas alguns meses após uma auditoria governamental ter reiterado
que as contas de Freddie Mac eram “precisas e confiáveis”, relevou-se que a empresa havia acumulado lucros
de US$ 6,9 bilhões de dólares nos três anos anteriores para uso em tempos difíceis. O escrutínio das contas
das agências apadrinhadas pelo governo então mostrou que Fannie Mae também havia manipulado seus
registros contábeis, declarando lucros maiores para assegurar que seus chefes recebessem suas bonificações
por completo. Outras irregularidades também foram expostas e os funcionários de alto escalão foram
demitidos.
Foi, portanto, um choque ver que as empresas apadrinhadas pelo governo, vistas por muitos como
instituições de caridade – o presidente Bush gostava de dizer que elas fechavam negócios com o coração –
pareciam ter aprendido lições de contabilidade com a Enron, empresa do ramo de energia que tinha falido
em 2001. Apenas alguns dias antes do estouro do escândalo da Freddie Mac, seu superior, o Office of Federal
Housing Enterprise Oversight (OFHEO), tinha declarado o seguinte em um relatório ao Congresso:

O sistema de gestão de risco patrimonial da Freddie Mac é eficaz. A gestão passa uma mensagem
efetivamente confiável de integridade e valores éticos. A filosofia e o estilo operacional de gestão são
compartilhados por todos. A estrutura organizacional e a delegação de responsabilidade
proporcionam contabilidade e controle 137.

Agora, em vez disso, a OFHEO tinha que prestar contas sobre uma fraude milionária em uma
empresa apadrinhada pelo governo e multá-la de acordo, no valor de US$ 500 milhões de dólares. As fraudes
contábeis fortaleceram a posição dos céticos em relação à Fannie e Freddie na administração Bush.
Alan Greenspan criticou-as fortemente por exporem a economia ao risco, e o presidente Bush
recontratou Armando Falcon Jr., o crítico de Fannie e Freddie demitido anos antes por seu bom trabalho como
supervisor. A administração decidiu reforçar a supervisão das duas empresas, estipulando que, em caso de
crise, estabelecer-se-ia um processo de liquidação judicial semelhante ao praticado no setor bancário, em que
o governo federal não seria responsável pela quitação de todas as suas obrigações. Esse teria dado um golpe
desastroso no modelo de negócios dessas empresas, que se sustentavam unicamente pela diferença entre as
baixas taxas de juros ao tomar empréstimos (graças à garantia federal) e as taxas de mercado que recebiam
ao emprestar. Nas palavras de Greenspan, uma “grande e gorda, diferença 138”.
Mas a administração não teria a última palavra. Em uma assembleia de investidores em 1999, o CEO
da Fannie Mae, Franklin Raines, tinha declarado “nós manejamos o nosso risco político com a mesma
intensidade que manejamos os nossos riscos de crédito e de taxa de juros 139”. No mínimo, essa era uma
subavaliação. Como Fannie perdia cada vez mais controle sobre as hipotecas que adquiria, ela passou a
devotar mais tempo e dinheiro para monitorar todas as ameaças políticas à sua posição financeira. Durante

136
BECKER, Jo, STOLBERG, Sherly Gay e LABATON, Stephen. White House Philosophy Stoked Mortgage Bonfire. New York Times. 21
dez. 2008.
137 Office of Federal Housing Enterprise Oversight. Report to Congress. Washington, DC, Jun. 2003, p. 38. A OFHEO se pronunciou da

mesma forma sobre Fannie Mae, p.36.


138 APPELBAUM, Binyamin, LEONNIG, Carol D. e HILZENRATH, David S. How Washington Failed to Rein in Fannie, Freddie. Washington

Post. 14 Set. 2008.

139
WALLISON, Peter J. e CALOMIRIS, Charles. The Last Trillion-Dollar Commitment: The Destruction of Fannie Mae and Freddie Mac.
American Enterprise Financial Services Outlook. Set. de 2008.
anos ela tinha usado seus lucros para construir uma grande rede lobista com escritórios locais e políticos
dedicados que poucas instituições poderiam igualar. Na década passada, Fannie tinha gasto US$ 170 milhões
de dólares em lobby e doações a candidatos políticos 140.
Com frequência, Fannie e Freddie contratavam parentes de políticos para trabalhar em seus
escritórios locais, e políticos dedicados à causa poderiam até mesmo conseguir um emprego bem-remunerado
e estável em projetos financiados por elas, caso tivessem necessidade. Em troca de apoio político, Fannie e
Freddie regulamente permitiam aos membros do Congresso anunciar grandes projetos habitacionais para
pessoas pobres – na prática, decisões políticas que nunca tinham sido, de fato, aprovadas via processos de
decisão política. Por outro lado, os membros do Congresso que quisessem acabar com os privilégios de Fannie
e Freddie seriam inundados de ligações e cartas de ódio, além de os seus eleitores receberem SMS com a
mensagem: “seu congressista está tentando tornar as hipotecas mais caras. Pergunte a ele porque ele se opõe
ao sonho americano da casa própria 141”.
Essa estratégia era extraordinariamente exitosa, e os críticos das duas empresas tinham sido
repelidos repetidas vezes. Em 1999, o secretário do tesouro na administração Clinton, Lawrence Summers,
estava preocupado com Fannie e Freddie, mas sua proposta de reforma foi recusada. Elas tinham o poder,
inclusive, de quebrar as regras da New York Stock Exchange (NYSE), sob as quais uma corporação pode ser
removida caso não apresente relatórios financeiros anuais. Quando a Fannie não o fez, a NYSE introduziu uma
exceção, aplicável se “a remoção de uma empresa da bolsa fosse significativamente contrária ao interesse
nacional”. A SEC aprovou a isenção, e Fannie permaneceu listada 142.
Um dos políticos que provou da fúria de Fannie e Freddie foi o deputado Richard Baker (R-LA), que,
em 2003, tinha obtido informações da autoridade fiscalizatória sobre quanto elas pagavam aos seus
executivos. Fannie e Freddie ameaçaram processá-lo se ele fosse divulgasse a informação, o que o fez manter
a informação em segredo por um ano. Baker, que agora deixou o Congresso, confessou ao The Washington
Post que nunca havia passado por nada igual: “a arrogância política exibida em seu auge, nunca na história
houve uma entidade privada que exerceu tal poder político 143”.
Quando a administração Bush deu-lhes as costas, Fannie e Freddie colocaram em ação sua máquina
de lobby em um ataque violento às propostas de reforma. Elas mobilizaram a indústria de financiamento
imobiliário, além de grupos ativistas para os quais tinham doado dinheiro, e lançaram uma grande campanha
de propaganda no rádio e na TV. “Mas isso significa que não seremos capazes de financiar uma casa nova”,
uma mulher de cara abatida concluía em um dos comerciais de TV sobre as consequências das propostas.
Fannie e Freddie venceram. Os Democratas montaram forte resistência, conseguindo remover vários itens da
lei na Câmara dos Deputados, desvirtuando-a a tal ponto de nem mesmo a administração querer apoia-la. No
Senado, Robert Bennett (R-UT) conseguiu enfraquecer as provisões relativas à transparência dos títulos e
exigências de capital.
O segundo maior doador de campanha do senador Bennett era a Fannie Mae. Seu filho trabalhava
para a Fannie em Utah.

Qualquer pessoa poderia ter visto o que estava para acontecer

Para Fannie Mae e Freddie Mac, a derrota que impuseram à administração Bush foi tão custosa
quanto a vitória do comandante grego Piro sobre os romanos em Asculum. Elas costumavam desfrutar de
amplo apoio de ambos os partidos políticos, mas agora que a administração tinha se voltado contra elas, o
que restava era confiar mais e mais nos congressistas democratas, que desejavam uma expansão ainda mais
rápida de sua operação mais popular: empréstimos a trabalhadores e minorias de baixa renda. A única chance
de sobrevivência de Fannie e Freddie era cultivar o apoio democrata, relevando todos os tipos de restrições
ao crédito e empréstimos. Como tinham perdido muito tempo com escândalos contábeis, novos players tinha
tomado parte de seu mercado. Naquele momento, a maioria dos trabalhadores de baixa renda que poderia
obter uma hipoteca em termos normais de mercado já o tinha feito. A única alternativa era arriscar mais para
tentar recuperar o terreno perdido.
Daniel Mudd, CEO de Fannie Mae, não deixou dúvidas sobre a estratégia futura. Ele disse aos seus
funcionários “sejam agressivos na tomada de riscos, ou saiam da empresa”. Um ex-funcionário explicou ao
New York Times que todo mundo sabia da insustentabilidade do ritmo de compras de hipotecas, “mas nossa

140 LERER, Lisa. Fannie, Freddie Spent $200M to Buy Influence. Politico.com. 16 de jul. 2008.
141 DUHIGG, Charles. Pressured to Take More Risk, Fannie Reached a Tipping Point. New York Times. 5 de out. 2008.
142 APPELBAUM, Binyamin, LEONNIG, Carol D. e HILZENRATH, David S. How Washington Failed to Rein in Fannie, Freddie. Washington

Post, 14 de set. 2008.


143 Ibid.
missão era nos mantermos relevantes e servir os tomadores de empréstimos de baixa renda. Então, foi isso
que fizemos 144”. Na metade de 2004, o CRO da Freddie Mac, David Andrukonis, disse ao CEO, Richard Syron,
que as avaliações de crédito tinham se tornado cada dia mais negligentes, e que isso expunha tanto a
companhia quanto o país a grandes riscos financeiros. Syron, todavia, não lhe deu ouvidos, explicando
melancolicamente a Andrukonis que Freddie Mac não poderia mais se dar o luxo de dizer não a ninguém 145 ”.
Mesmo a administração Bush tendo criticado Fannie e Freddie por seu risco desmedido, ajudou-as
a prosseguir com tais medidas ao decretar, em outubro de 2004, no auge da loucura creditícia, um aumento
drástico em sua meta para o número de hipotecas para trabalhadores de baixa renda. Como previamente
mencionado, a participação de tais hipotecas deveria aumentar a cada ano, de 50% em 2000 para 56% em
2008. A porcentagem de empréstimos para pessoas de baixíssima renda deveria aumentar de 20 para 28%.
Mesmo naquele momento, havia uma atmosfera derrotista nos corredores da Fannie Mae e da
Freddie Mac. Seus executivos tinham desistido de servir a dois mestres: a demanda dos acionistas por
lucratividade no longo prazo não poderia ser reconciliada com as diretivas dos políticos de acelerar a compra
de hipotecas. Um funcionário descreveu que o tema das discussões internas era quanto tempo até que fossem
expostos:

Não era necessária muita sofisticação para notar o que estava acontecendo com a qualidade dos
empréstimos. Qualquer pessoa poderia ter notado. Mas ninguém de fora estava nos questionando
sobre isso 146. Na verdade, havia razões políticas para não querer ver o que estava acontecendo. As
intenções eram boas, e os objetivos, quase fora do alcance da crítica. Até julho de 2008, Paul Krugman,
um economista keynesiano que logo venceria o prêmio Nobel, atacou os críticos de Fannie e Freddie,
apontando que as duas nada tinham que ver com empréstimos de risco, por não terem concedido
nenhum empréstimo subprime 147. Krugman pode ter confundido as coisas: é verdade que Fannie e
Freddie não emprestaram para tomadores de empréstimo SUBPRIME, porque elas não emprestavam
mesmo; mas elas compravam os empréstimos, e uma parcela crescente desses empréstimos era
subprime. Não contentes, Fannie e Freddie tentaram maquiar seus empréstimos de risco ao aplicar
definições mais estritas de “subprime” que as práticas pelo mercado. Em julho de 2007, o CRO da
Countrywide orgulhosamente afirmou a analistas durante uma conferência que a sua instituição
estava vendendo hipotecas à Fannie Mae que estavam “muito abaixo” mesmo dos limites mais
generosos para o subprime que eram ainda considerados “prime” por Fannie 148.

O comunicado enviado por Fannie e Freddie ao longo de 2004 que estariam comprando
praticamente qualquer tipo de hipoteca foi uma das principais razões pelas quais bancos e outras instituições
começaram a lançar novas hipotecas subprime ou Alt-A. “O mercado sabia que precisávamos daqueles
empréstimos”, um porta-voz de Freddie Mac explicou 149. Alt-A era um tipo de empréstimo considerado mais
arriscado que “prime”, embora menos arriscado que “subprime”. Como esses empréstimos normalmente
eram rotulados dessa forma, pois não havia documentação que provasse a renda dos tomadores, foi-se dado
outro nome para eles ‘empréstimos de mentira’. Na prática, eles se tornaram de risco igual ao dos
empréstimos subprime, e se sugeriu que subprime e Alt-A deveriam ser fundidos em uma categoria com um
nome menos genérico de “títulos-lixo”. Em 2003, os “títulos-lixo” representavam somente 8% de todas as
hipotecas dos Estados Unidos, mas esse número aumentou para 18% em 2004 e 22% no terceiro trimestre de
2006. Cerca de 40% das hipotecas que Fannie e Freddie compraram no período 2005-2007 eram subprime ou
Alt-A 150.
Objetivos grandiosos tinham forçado Fannie e Freddie a mudar sua estratégia. Em vez de só comprar
hipotecas, securitizando-as, elas passaram a comprar mais e mais desses títulos dos outros. Na verdade,
Fannie e Freddie logo se tornaram os maiores compradores da “fatia” mais segura – isto é, o grupo específico
com a melhor avaliação de crédito – de cada título. Muitos comentaristas pensam que isso foi decisivo para a
expansão descontrolada de títulos hipotecários subprime ao redor do mundo. A razão é que o rendimento da
‘fatia’ mais segura era pouco maior que os juros pagos por bancos sobre depósitos, significando que os
investidores não estavam exatamente fazendo fila para comprar.

144
DUHIGG, Charles. Pressured to Take More Risk, Fannie Reached a Tipping Point. New York Times. 5 out. 2008.
145 DUHIGG, Charles. At Freddie Mac, Chief Discarded Warning Signs. New York Times. 5 ago. 2008.
146 WALLISON, Peter J. e CALOMIRIS, Charles. The Last Trillion-Dollar Commitment: The Destruction of Fannie Mae and Freddie Mac.

American Enterprise Financial Services Outlook. Set. de 2008.


147 KRUGMAN, Paul. Fannie, Freddie and You. New York Times. 14 jul. 2008.
148Seeking Alpha. Countrywide Financial Q2 2007 Earnings Call Transcript. 24 jul. 2007. Disponível em:
http://seekingalpha.com/article/42171-countrywide-financial-q2-2007-earnings-call-transcript.
149
LEONNIG, Carol. How HUD Mortgage Policy Fed the Crisis. Washington Post. 10 jun. 2008.
150 WALLISON, Peter J. e CALOMIRIS, Charles. The Last Trillion-Dollar Commitment: The Destruction of Fannie Mae and Freddie Mac.
Mas para Fannie e Freddie, que foram capazes de tomar emprestado com taxas de juros mais baixas,
o negócio continuava atrativo. E como tinham provido capital para aquela fatia era fácil encontrar outros
investidores dispostos a pagar pelos títulos de maior risco, com retorno muito maior – às vezes, até 20x. Isso
fez com que companhias tais como a New Century e a Ameriquest criassem títulos unicamente para Fannie e
Freddie: não foi coincidência que o número de hipotecas baseadas nesses títulos estava justamente abaixo
dos US$ 417,000 - o teto para empréstimos que poderiam ser parte dos portfólios de Fannie e Freddie 151.
A exposição conjunta de Fannie e Freddie ao mercado imobiliário era enorme. Ao final de 2007, a
soma dos déficits e dos títulos baseados em hipotecas que tinham garantido e emitido se igualava à dívida
nacional dos Estados Unidos. Para cada US$ 100 que tinham garantido ou emprestado por meio de títulos,
elas tinham somente US$ 1,20 de ativo real 152. Em agosto de 2008, Fannie e Freddie detinham empréstimos
e títulos baseados em empréstimos podres no valor de US$ 1 trilhão de dólares – mais que 1/5 do total de seu
portfólio de hipotecas 153. Nas palavras de Nassim Nicholas Taleb, autor do livro O Cisne Negro, sobre como as
pessoas subestimam riscos de baixa probabilidade, elas estavam sentadas sob “uma pilha de dinamite”. Seu
exército de analistas, todavia, afirmou que os riscos eram pequenos. Elas tinham modelos sofisticados para
gerir riscos. Isto é, todos os riscos menos um – a queda no preço das casas 154.
Quando o antigo CEO da Freddie Mac, Richard Syron, olhou para trás, buscando as razões do
fracasso, pôs a culpa pelas hipotecas ruins nas costas de políticos que buscavam a expansão do índice de casas
próprias mesmo entre famílias que não tinham condições de pagá-las. Esse foi o preço que elas tiveram que
pagar pelos seus privilégios. Mas 15 anos antes, tinha sido sob a supervisão de Syron que o FED de Boston
tinha começado seus esforços sistemáticos de afrouxamento dos requerimentos dos bancos para concessão
de empréstimos, e foi no Freddie Mac que ele conduziu uma grande expansão do mercado SUBPRIME.
Quando o New York Times recentemente o questionou se não havia nada que ele pudesse ter feito de forma
diferente, ele respondeu: “se eu tivesse uma previsão mais acurada, talvez pudesse ter feito algo melhor.
Agora, francamente, se eu tivesse uma previsão mais acurada, eu nunca teria aceitado esse trabalho 155”.

151 SHENN, Jody. Fannie, Freddie Subprime Spree. Bloomberg. Com. 22 set. 2008. Disponível em: www.bloomberg.com/apps/news?
pid=20601109&sid=a.6kKtOoO72k&refer=home.
152 LOCKHART, James. Reforming the Regulation of the Government Sponsored Enterprises. Statement before the US Senate Banking,

Housing, and Urban Affairs Committee, 7 fev. 2008.


153 WALLISON, Peter J. e CALOMIRIS, Charles. The Last Trillion-Dollar Commitment: The Destruction of Fannie Mae and Freddie Mac.
154
TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable. London: Penguin Books, 2008. p. 225–26.
155 DUHIGG, Charles. Pressured to Take More Risk, Fannie Reached a Tipping Point. New York Times. 5 out. 2008.
Seção IV

Pobreza e o Estado de bem-estar

Pobreza, moralidade e liberdade

Por Tom G. Palmer

A definição de pobreza e as formas para combatê-la evoluíram com o passar do tempo. Com base
na perspectiva liberal clássica, esse ensaio faz uso da filosofia moral, da economia, da história e de outras
disciplinas para explicar a natureza e as origens da pobreza e da riqueza, de forma a determinar o papel da
autoajuda, da ajuda mútua, da caridade e da compulsão estatal no processo de redução da pobreza. Uma
versão mais extensa desse ensaio foi publicada pela primeira vez no livro Poverty and Morality: Religious and
Secular Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, editado por Peter Hoffenberg e William
A. Galston.
“Liberalismo clássico” ou “libertarianismo” faz referência à tradição de pensamento econômico,
politico, ético e legal que coloca a liberdade do indivíduo no centro da preocupação política, e que vê essa
liberdade como, nas palavras de John Locke, o prazer individual da “liberdade, para cada um, de dispor e
ordenar sobre sua própria pessoa, ações, possessões e tudo aquilo que lhe pertence, dentro da permissão das
leis às quais está submetido, e, por isso, não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa, mas seguir
livremente a sua própria vontade 156.”
Apesar de profundas divergências entre si sobre os fundamentos da liberdade e os limites
apropriados do poder estatal, os liberais clássicos têm, em geral, aceitado a tese da presunção da liberdade,
isto é, que é a interferência na liberdade alheia que deve ser justificada, e não o livre-arbítrio em si. O exercício
do poder requer justificação; o exercício da liberdade, não 157.

Os três elementos centrais do pensamento liberal clássico são:

1. A convicção, expressa de diversas formas distintas, que “indivíduos têm direitos. E há coisas
que nenhuma pessoa ou grupo podem fazer com os indivíduos (sem violar os seus direitos) 158.
2. O reconhecimento da capacidade de uma ordem e harmonia sociais emergirem de forma
espontânea, sem a direção consciente de uma mente centralizadora ou a imposição de um plano, mas
sim como uma consequência não intencional da interação livre de pessoas, baseada em direitos (de
propriedade) bem-definidos, fundamentados e estruturados por regras legais que facilitam os
contratos;
3. O compromisso com um governo constitucionalmente limitado que é autorizado a fazer
cumprir as regras de justa conduta.

Assim, a tradição do pensamento liberal clássico baseia-se primariamente em três disciplinas:


filosofia moral, ciência social e ciência política (jurídica), complementadas por disciplinas auxiliares como
psicologia, história e sociologia. Os três elementos se reforçam mutuamente para produzir uma teoria
coerente da relação entre liberdade, direitos, governo e ordem.
Adam Smith, decano da tradição liberal clássica e colaborar ativo nas três disciplinas primárias –
filosofia moral (Teoria dos Sentimentos Morais), ciência social (A Riqueza das Nações), e ciência política ou
jurídica (Leituras sobre Jurisprudência) – consagrou esse tripé em uma declaração famosa:

Pouco mais é necessário para levar um Estado do mais ínfimo barbarismo ao mais elevado grau de
opulência, do que paz, impostos leves e uma administração razoável de justiça; todo o resto é
resultado do curso natural das coisas. Todos os governos que contrariam esse curso natural, que fazem
as coisas caminharem noutra direção, ou que procuram travar o progresso da sociedade num

156 Ibid., Second Treatise, IX, pp. 123, 350. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Note que para Locke o termo
“propriedade” abrange muito mais do que o termo o faz no inglês contemporâneo, no qual é limitado ao que Locke chamou
“patrimônio”. Locke, todavia, se refere a “Vidas, Liberdades e Patrimônios, o qual eu chamo pelo termo geral, Propriedade”.
Comparar também com o que James Madison disse em seu ensaio Sobre a Propriedade. “Esse termo em sua aplicação particular
significa ‘aquela posse a qual um homem reivindica e utiliza sobre as coisas externas do mundo, em exclusão de todos os outros
indivíduos.’ É um significado maior e mais justo, ele abraça tudo o que um homem pode atribuir valor e ter direito, e o qual deixa
qualquer outro com vantagem similar.” National Gazette, 29 mar. 1792.
157 Veja, JASAY, Anthony de. Liberalism, Loose or Strict. Independent Review 9, n° 3. p. 427–32.
158
Tradução de Jorge Zahar. NOZICK, Robert, Anarchy, State, and Utopia. New York: Basic Books, 1974. p. ix.
determinado ponto, são antinaturais e, para se manterem, são obrigados a ser despóticos e
tiranos 159".

Definições

A preocupação do liberalismo clássico com a questão da pobreza é de longa data, em parte, devido
à sua íntima relação com a ciência econômica, em particular, e com o estudo das formas espontâneas de
ordem social e progresso, em geral. Os liberais clássicos têm insistido que a questão da “riqueza das nações”
é logicamente anterior à da “pobreza das nações”. A pobreza só tem sentido quando comparada à riqueza; e
a riqueza deve ser produzida. A pobreza é o estado natural contra o qual a riqueza é mensurada; a pobreza é
o que você tem se a riqueza não for produzida.
O economista liberal clássico Peter Bauer da London School of Economics famosamente rebateu os
argumentos de John Kenneth Gailbrath sobre as “causas da pobreza”: “a pobreza não tem causas. Já a riqueza,
sim”. Como os historiadores Nathan Rosenberg e L. E. Birdzell Jr afirmam “se analisarmos a história humana,
julgando a situação econômica de nossos ancestrais pelos padrões atuais, temos uma história miséria
praticamente constante 160”. A pobreza generalizada é uma norma histórica; a explosão de riqueza dos últimos
dois séculos é a anomalia que requer uma explicação.
A prosperidade, tal como hoje entendida, é um fenômeno tipicamente moderno. A experiência de
grande parte da raça humana pela maior parte de sua existência, até recentemente, tinha sido a experiência
de morte precoce, de doença, de ignorância, de esforço físico praticamente sem fim, e de provisão incerta de
alimentos suficientes para sobrevivência. O retrato do passado adotado por muitos intelectuais é
profundamente enganoso, posto que se deriva quase totalmente dos escritos de outros intelectuais, isto é,
daquela ínfima minoria afortunada o bastante para desfrutar o tempo livre para escrever sobre suas vidas.
Dificilmente tais relatos representam as vidas de grande parte da raça humana. A diferença entre as condições
materiais de existência no passado e no presente é substancial. Nas palavras da historiadora econômica liberal
clássica Deirdre McCloskey,

O cerne da questão é o número 12. Doze é o fator pelo qual a renda real per capita hoje excede a de
1780, na Inglaterra e em outros países que experimentaram o crescimento econômico moderno...
Medida de forma mais conservadora, o cidadão médio tem cerca de 12x mais pão, livros, transporte
e divertimento inocente que o cidadão médio dos idos de 1800. Nenhum episódio anterior de
enriquecimento se aproxima do crescimento econômico moderno – nem o da China ou do Egito em
seu auge, nem a glória da Grécia ou o esplendor de Roma 161.

Tabela 1

Nível do PIB per capita nos países colonizadores europeus e suas antigas colônias – 1500-1998 (em
dólares internacionais de 1990)

159 Citado por Dugald Stewart deum manuscrito hoje perdido em STEWART, Dugald. Account of the Life and Writings of Adam Smith,
LLD. In SMITH, Adam. Essays on Philosophical Subject. Indianapolis: Liberty Fund, 1982), p. 322.
160 ROSENBERG, Nathan e BIRDZELL Jr, L. E. How the West Grew Rich: The Economic Transformation of the Industrial World. New

York: Basic Books, 1986. p. 3.


161 McCLOSKEY, Deirdre. 1780–1860: A Survey, In The Economic History of Britain 1700, vol. I: 1700–1860. Cambridge: Cambridge

University Press, 2000. p. 242.


Fonte: MADDISON, A. The World Economy, vol. 1: A Millennial Perspective e vol. 2: Historical
Statistics. Paris: OECD, 2006. p. 92.

Só os últimos 100 anos testemunharam a explosão da energia produtiva, conforme demonstra a


enorme variação da renda per capita de 1500 a 1998 (Tabela 1). Os dados são mais surpreendentes quando
analisados graficamente do ano 1 ao presente (Figura 1).
O aumento súbito e sustentável na renda do período inicial, por volta da metade do século XVIII (na
Europa Ocidental e na América do Norte; um século ou mais depois para os outros) não tem precedentes em
toda história humana. É a mudança repentina de uma linha praticamente horizontal para uma linha quase
vertical que exige explicação.
As condições de vida da maioria das gerações anteriores de humanos – tendo como critério os
padrões atuais – não são nada menos que terríveis. O foco de pesquisa histórica, econômica e legal do
liberalismo clássico está em explicar as causas dessa grande mudança, e o consenso geral é que a mudança-
chave foi o crescimento de instituições conducentes à produção de riqueza.
Os liberais clássicos insistem que a explicação da produção de riqueza – do que tornou possível a
súbita tendência ascendente na Figura 1 – é central não só pela subtaneidade da mudança, mas também por
razões de clareza conceitual. A pobreza é o que resulta se a geração de riqueza não ocorre, enquanto a riqueza
não é que resulta se a produção de pobreza não ocorre.

Figura 1

Figura 1 – Desenvolvimento Econômico Global. In GOKLANY, Indur M. The Improving State of the
World. Washington, DC: Cato Institute, 2007. p. 43.

A subtaneidade da explosão de riqueza mostrada na Figura 1 é a razão porque a narrativa dominante


na tradição liberal clássica tem sido uma de prosperidade em relação à norma de pobreza generalizada, e não
em termos de bem-estar relativo.
Os liberais clássicos buscam explicar a existência da riqueza em vez de considerar um enigma
fundamental a sua ausência. A ideia de um “círculo vicioso de pobreza” como explicação para a ausência de
riqueza foi criticada pelo economista desenvolvimentista P. T. Bauer:

Ter dinheiro é o resultado do êxito econômico, e não sua precondição. A prova disso é a própria
existência de países desenvolvidos, os quais originalmente devem ter sido subdesenvolvidos e, mesmo
assim, progrediram sem doações externas. O mundo não foi criado em duas partes, uma com
infraestrutura pronta e estoque de capital, e outra sem esses recursos. Além disso, muitos países
pobres progrediram rapidamente nos séculos antes do surgimento do desenvolvimentismo e da
compra de votos do círculo vicioso. De fato, se a ideia do círculo vicioso fosse válida, a humanidade
ainda estaria vivendo na Idade da Pedra 162.

Praticamente todos os humanos superaram a Idade da Pedra. Nos países que registraram aumentos
na renda per capita, o efeito foi particularmente importante para os pobres, cujo status e definição mudaram
dramaticamente. Como Carlo Cipolla notou do impacto da “Revolução Industrial”, é inegável que uma das
principais características da Europa pré-industrial, como de todas as sociedades agrícolas tradicionais, estava
em flagrante contraste entre a miséria abjeta das massas e a afluência e magnificência de um número limitado
de muito ricos 163. “Pobres” era a definição de pessoas à beira da miséria:

A maioria das pessoas vivia ao nível de subsistência. Elas não tinham poupança e muito menos
seguridade social para ajudá-las em caso de infortúnio. Se permanecessem desempregadas, sua única
esperança de sobrevivência era a caridade. Nós procuramos em vão o termo “desempregado” nos
dicionários da época. O desempregado era confundido com o pobre, e o pobre, com o mendigo, e a
confusão dos termos refletia a dura realidade dos tempos. Em um ano de má colheita ou de
estagnação econômica, o número de necessitados crescia visivelmente... os povos da era pré-
industrial estavam acostumados com flutuações drásticas no número de mendigos. Especialmente nas
cidades, o número de pobres aumentava em anos de escassez de alimentos, pois os camponeses
famintos fugiam do interior pobre, aglomerando-se nos centros urbanos, onde a caridade era
facilmente acessível e havia mantimentos na despensa dos ricos. Dr. Tadino relatou que, em Milão,
durante a fome de 1629, em poucos meses o número de mendigos cresceu de 3.554 para 9.715.
Gascon constatou que, em Lyon, “em anos normais, os pobres representavam de 6% a 8% da
população; em anos de fome, seu número aumentava de 15 a 20%”.
A característica fundamental dos pobres era que não tinham renda independente. Se conseguissem
sobreviver, era porque a renda era voluntariamente transferida para eles por meio da caridade 164.

O crescimento notável da indústria fez com que os pobres – na forma de grande número de
trabalhadores urbanos – tivessem contato com moradores urbanos alfabetizados como nunca antes. Mas eles
não eram mais uma multidão de camponeses famintos em busca de esmolas. O seu status era decididamente
diferente. O aumento da população tornado possível pelo industrialismo não se deu devido a um aumento
nas taxas de natalidade, mas a uma queda nas taxas de mortalidade, em especial, de morte prematura. Hayek
escreveu: “se perguntarmos o que os homens devem em primeiro lugar às práticas morais dos chamados
capitalistas a resposta é: sua própria vida. A literatura socialista que atribui a existência do proletariado à
exploração de grupos que já eram capazes de se manter é totalmente fictícia. A maioria dos indivíduos que
agora constitui o proletariado não teria condições de existir se outros não lhes proporcionassem os meios de
subsistência 165”.
Os liberais clássicos têm trabalhado para desmistificar esse falso retrato do passado – comum a
socialistas e a conservadores, no qual camponeses felizes brincavam nos prados, sua vida era tranquila e sem
estresse, e cada família desfrutava de uma cabana pequena e confortável 166. Um falso saudosismo por uma

162
BAUER, Peter. From Subsistence to Exchange. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000. p. 6.
163 CIPOLLA, Carlo. Before the Industrial Revolution: European Society and Economy, 1000–1700. New York: W. W. Norton, 1980. p.
9–10.
164 O historiador da economia Robert William Fogel deu grande ênfase ao papel do acesso à nutrição para eliminar a mendicância:

“o programa relativamente generoso contra a pobreza desenvolvido no Reino Unido durante a segunda metade do século XVIII, e
os ataques amargos de Malthus e outros ao programa, deram a impressão injusta de que as transferências feitas pelo governo
tinham um papel principal na diminuição da mendicância e do número de sem-teto. Apesar da generosidade relativa do auxílio aos
pobres na Inglaterra entre 1750 e 1834, a mendicância e o desalojamento variaram entre 10% e 20%. Mesmo com a redução
substancial da proporção da renda nacional transferida para os pobres como resultado das Leis dos Pobres de 1834 e anos seguintes,
o número de sem-teto diminuiu drasticamente durante o final do século XIX e início do século XX. “O fato é que as transferências
de renda do governo não foram capazes de resolver o problema da mendicância e dos sem-teto durante os séculos XVIII e XIX, pois
a causa do problema era a desnutrição crônica. Até mesmo durante a época mais generosa do programa de auxílio, o quintil mais
pobre da população britânica estava tão desnutrido que lhes faltava energia para trabalhar em padrões adequados. “Ao final do
século XVIII a agricultura britânica, mesmo quando suplementada por importações, não era produtiva o bastante para produzir
calorias suficientes para o trabalho manual de mais de 80% da população. Foi o enorme aumento de produtividade durante o final
do século XIX e o começo do século do XX que tornou possível alimentar até os pobres com um nível calórico maior. A mendicância
e o número de sem-teto foram reduzidos para números extremamente baixos, quando em comparação com o resto do século XIX,
somente quando o quintil mais pobre da população recebeu calorias o suficiente para permitir o trabalho em um nível aceitável.”

165 Tradução de Ana Maria Capovilla e Candido Mendes Prunes. HAYEK, F. A. Hayek. The Fatal Conceit: The Errors of Socialism.
Chicago: University of Chicago Press, 1988. p. 130–31
166 A clássica refutação que pode ser encontrada na resenha de Thomas Babington Macaulay de janeiro de 1830 sobre o ataque Tory

ao industrialismo feito por Robert Southey. Lacaulay, Critical and Historical Essays, ... vol. 2 (New York: Dutton, 1967), pp. 187–224.
See also for a summary T. S. Ashton, The Industrial Revolution: 1760–1830 (Oxford: Oxford University Press, 1997).
“Era Dourada” ainda está conosco (“Ah, nos anos 1950, quando todo mundo...”), foi descrito e rejeitado pelo
historiador liberal clássico Thomas Babington Macaulay na metade do século XIX:

Hoje a moda é colocar a Idade de Ouro da Inglaterra nos tempos em que os nobres eram destituídos
de conforto, cujos desejos seriam intoleráveis para um lacaio moderno; em que agricultores e lojistas
tomavam café da manhã ingerindo pão cuja aparência teria causado um motim em uma prisão
moderna; em que ter uma camiseta limpa uma vez por semana era um privilégio dos membros da
nobreza.

O estilo de vida da geração de Macaulay seria hoje considerado intolerável até mesmo pelos mais
pobres entre nós, como Macaulay prudentemente reconheceu:

Deveríamos, também nós, ser superados, e, também nós, ser invejados. Pode ser que, no século XX,
[...] diversos confortos e luxos que hoje são desconhecidos, ou reservados a poucos, possam estar ao
alcance de todo trabalhador diligente e austero. E, ainda assim, pode então ser moda afirmar que o
aumento da riqueza e progresso da ciência beneficiou poucos à custa de muitos 167.

Como entendido por Macaulay, não existe uma linha divisória claramente discernível entre
“pobreza” e “riqueza”. O pobre de hoje desfruta de comodidades indisponíveis ao rico do passado, mesmo de
um passado recente. (Se você duvida disso, compare o atendimento odontológico entre os muitos ricos da
década de 1950 com o prestado aos pobres dos países desenvolvidos nos dias atuais; quem pode duvidar que
os ricos do passado dariam tudo para ter acesso à anestesia e outras técnicas modernas disponíveis até aos
mais pobres dos países industrializados?).
Abordagens comparativas não têm faltado na tradição liberal clássica. Em uma obra influente
publicada no mesmo ano que A Riqueza das Nações de Adam Smith, Éttiene Bonnot fez uma distinção entre
a falta de riqueza e a pobreza, pois “só existe pobreza quando as necessidades básicas não são atendidas, e
não é ser pobre não ter um tipo de riqueza que não supre uma necessidade, ou que nem mesmo se
conhece 168”. O progresso das artes e das ciências, bem como a criação de riquezas cada vez maiores, geram
novas necessidades, a satisfação das quais leva a novas formas de consumo.
Adam Smith acrescentou um elemento novo: a pobreza consiste não só na consciência de uma
necessidade insatisfeita, mas também na comparação do status de um indivíduo com o dos outros, de uma
forma que produz vergonha. A vergonha é uma característica determinante do que é uma “necessidade”, isto
é, algo sem o que alguém seria considerado pobre:

“Por artigos de necessidade entendo não somente os bens indispensáveis para o sustento, mas
também tudo aquilo sem o que, por força do costume do país, é indigno passarem pessoas
respeitáveis, mesmo da classe mais baixa. Assim, por exemplo, uma camisa de linho não é um artigo
de necessidade para se viver, no sentido estrito. Suponho que os gregos e romanos viviam muito bem,
mesmo sem terem linho. Mas nos tempos de hoje, na maior parte da Europa, um trabalhador diarista
respeitável se envergonharia de aparecer em público sem uma camisa de linho, cuja falta
supostamente denotaria aquele desonroso estado de pobreza no qual, como se presume, ninguém
pode cair a não ser por conduta extremamente má... Por artigos de necessidade entendo, pois, não
somente as coisas que por natureza são necessárias para a camada mais baixa da população, mas
também as que o são em virtude de leis correntes da decência. Todas as demais coisas eu as denomino
artigos de luxo… Por natureza, elas não são necessárias para o sustento da vida e nem o costume faz
com que em parte alguma seja indigno viver sem elas 169”.

167 MACAULAY, Thomas Babingtom. The History of England from the Accession of James II Philadelphia: E. H. Butler, 1849. p. 291–
92. Como Macaulay observou em seu Southey’s Colloquies, “se fôssemos fazer uma profecia que no ano de 1930 uma população
de 50 milhões de pessoas, mais bem alimentada, vestida e abrigada que os ingleses de nossos tempos, fosse cobrir essas ilhas, que
Sussex e Huntingdonshire serão mais ricas que as partes mais ricas de West Riding of Yorkshire são atualmente, e que o cultivo, rico
como de um jardim de flores, será feito até o topo de Ben Nevis e Helvellyn, que as máquinas construídas nos princípios ainda
desconhecidos estarão em todas as casas, que não existirão estradas, mas sim ferrovias, transporte exclusivamente à vapor, que a
nossa dívida, vasta como aparenta ser, será para nossos bisnetos um encargo insignificante, o qual poderá ser facilmente pago em
um ou dois anos, muitas pessoas achariam que estamos malucos.”
168 BONNOT, Étienne. Commerce and Government Considered in Their Mutual Relationship. Cheltenham: Edward Elgar, 1997. p. 103.

169
SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, vol. 2. Indianapolis: Liberty Fund, 1981. p. 869–
70.
Em ambas as concepções – absoluta e comparativa - a riqueza e a pobreza são padrões em constante
mudança. O valor patrimonial que qualifica, hoje, um indivíduo como rico pode, já no ano seguinte, qualificá-
lo como pobre; e uma pessoa rica em uma sociedade pode ser pobre em outra.
Consistente com seu foco na riqueza como o fenômeno a ser explicado, os liberais clássicos se
dedicaram assiduamente à análise do por que alguns se saem melhor ou pior que outros.
O livro de Smith foi celebremente chamado Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da
Riqueza das Nações. A maioria dos escritores anteriores tinha identificado a riqueza de uma nação (sua
natureza) com a riqueza da elite dominante. Em contraste, Smith começou seu trabalho identificando a
natureza da riqueza de uma nação, não com seu poder militar ou com o valor em metais preciosos do tesouro
real, mas sim com a produção anual da força de trabalho da nação, dividida pelo número de consumidores,
um conceito que ainda persiste na definição atual de PIB per capita 170.
A riqueza de uma nação deve ser medida, então, não pelo poder de seu governante ou pela riqueza
em metais preciosos de seu tesouro real, mas sim pelo acesso à riqueza por parte de qualquer membro
aleatoriamente escolhido que dela faça parte: “tal estado é adequadamente opulento, no qual a opulência é
facilmente alcançável, ou em que um pouco de trabalho, propriamente e criteriosamente empregado, é capaz
de prover a qualquer homem uma grande abundância de todas as necessidades e conveniências da vida 171”.
As causas primárias ou determinantes da riqueza são as instituições que criam incentivos para a produção de
riqueza. A pobreza, então, dentro de um contexto de riqueza, representa o fracasso em cria-la (ou mantê-la),
e as causas de tal fracasso são aquelas instituições ou práticas que geram desincentivos para a produção de
riqueza e/ou incentivos a transferências predatórias que diretamente empobrecem alguns em benefício de
outros.
Se por oportunidades se entende a liberdade para exercer atividades voluntárias criadoras de
riqueza - e se afirma que são desigualmente distribuídas - é provável que isso leve a uma distribuição desigual
de riqueza, não porque o somatório da riqueza “socialmente criada” foi dividido injustamente, mas porque as
oportunidades de criação de riquezas têm sido negadas a alguns, que, como consequência, são capazes de
produzir menos. Os liberais clássicos enfatizam que todo ato de produção é, em si, um ato de distribuição. Se
a liberdade para produzir é desigual, a posse de riqueza também será desigual. Por exemplo, os beneficiários
de concessões estatais de monopólio podem cobrar preços maiores na ausência de concorrência,
desfrutando, como consequência, de rendas de monopólio - um processo (conhecido como rent-seeking) que
tanto transfere riqueza de um grupo para outro e, no processo, diminui a riqueza agregada produzida, já que
recursos são desviados para o próprio rent-seeking e afastados da geração de valor, tornando, assim, a
sociedade menos rica do que teria sido na ausência do comportamento de rent-seeking 172.
Se uns têm o poder de forçar outros a produzir não em seu próprio benefício, mas em prol do
benefício dos poderosos, eles transferirão riqueza dos coagidos para os que coagem, às vezes, com enorme
prejuízo em produtividade. Escravidão, servidão, conscrição e outras formas de trabalho forçado transferem
riquezas de uns para outros. Roubo e outras formas de transferências involuntárias confiscam parte da
produção de uns em benefício dos confiscadores 173. Restrições à concorrência geram rendas aos que têm
poder monopolístico à custa de seus consumidores e concorrentes potenciais. Numa sociedade em que uns
são proibidos pela força da lei de ser proprietários de terra, realizar certos negócios, ou adquirir mercadorias
a preços negociados livremente provavelmente verá uma diferença na renda per capita entre os grupos que
sofreram impedimentos legais e os que não. Há numerosos exemplos disso na história 174.

Vulnerabilidade à pobreza

A vulnerabilidade à pobreza é vista pelos liberais clássicos como significativamente dependente dos
arranjos institucionais. Quando se recompensa a violência ou a obtenção de poder político, os violentos e os

170 “Conforme, portanto, essa produção, ou o que com ela se compra, estiver numa proporção maior ou menor em relação ao

número dos que a consumirão, a nação será mais ou menos bem suprida de todos os bens necessários e os confortos de que tem
necessidade”.
171
SMITH, Adam. Lectures On Jurisprudence. Indianapolis: Liberty Fund, 1982. p. 567.
172 Veja TULLOCK, Gordon. The Welfare Costs of Tariffs, Monopolies, and Theft. Western Economic Journal 5, no. 3. p. 224–32, e

KRUEGER, Anne. The Political Economy of the Rent-Seeking Society. American Economic Review 64. no. 3 (Jun. 1974). p. 291–303.
173
Para uma descrição mais detalhada do exemplo mais notório do século XX, ver GOTZ, Aly. Hitler’s Beneficiaries: Plunder, Racial
War, and the Nazi Welfare State.
174 As origens e o funcionamento do sistema de apartheid são explicados pelo economista liberal HUTT, W. H. The Economics of the

Colour Bar. London: Andre Deutsch, 1964. Sindicatos dominados por pessoas de cor branca tiveram sucesso em impor restrições às
habilidades de os negros gerarem riqueza, portanto os eliminando como competidores e tomando para si benefícios especiais. Ver
também HORWITZ, Ralph. The Political Economy of South Africa. New York: Frederick A. Praeger Publishers, 1967.
politicamente ambiciosos se beneficiarão ao tomar do diligente a riqueza que produziu, empobrecendo- o e
diminuindo os incentivos a maior produção de riqueza, para o empobrecimento relativo de todos. A história
da civilização é a história da limitação ao poder e à violência, alcançada por diversos meios 175.
Em ordenamentos jurídicos caracterizados por direitos de propriedades bem-definidos, legalmente
seguros e transferíveis, com fortes limitações ao comportamento predatório, a pobreza tende a se
transformar de uma linha divisória entre sobrevivência e miséria em uma questão de riqueza relativa, com a
riqueza inferior do pobre, no mais das vezes, sendo uma questão de incapacidade ou relutância dele em
produzir riqueza ou poupar, ao invés de esbanjar. Assim, “caráter” (também conhecido como posse de
virtudes 176) é um fator, porquanto o diligente e o regrado estão em ordenamentos jurídicos improváveis à
experiência de pobreza, constatado em termos absolutos ou relativos.
Em sociedades relativamente livres e prósperas, o melhor indicador de pobreza relativa tende a ser
o grau de dependência da assistência estatal, a qual, argumentam, tende a fomentar os vícios da indolência e
da irresponsabilidade. O exemplo clássico foi a promulgação das Poor Laws (Leis dos Pobres) na relativamente
próspera Inglaterra e, especialmente, a “Lei Speenhamland” de “proteção social” que subsidiava os
trabalhadores pobres 177. Como Alexis de Tocqueville argumentou em seu Memoir on Pauperism (Ensaio sobre
a Pobreza), escrito após uma viagem à Inglaterra, a disponibilidade de “caridade pública” em países ricos como
a Inglaterra, antes das Leis dos Pobres, foi ela própria uma causa da pobreza, pois ela tinha, ele argumentou,
criado um estado permanente de pobreza. Sua investigação visava solucionar um aparente paradoxo: “os
países que parecem ser os mais pobres são aqueles que, na realidade, têm menos indigentes, enquanto que,
entre os povos mais admirados por sua opulência, parte da população é obrigada a contar com doações de
outros para poder viver 178".
Como Tocqueville concluiu em sua investigação, “qualquer medida que estabeleça a caridade legal
de forma permanente e lhe dá uma forma administrativa cria, com isto, uma classe ociosa e preguiçosa, que
vive à custa da classe trabalhadora e industrial 179”. Além de criar incentivos à dependência de uns pelos
outros, as Leis dos Pobres criou incentivos para os diligentes tentarem controlar o movimento dos
beneficiários da “proteção social”, de forma que os indigentes não se tornassem fardos para os contribuintes.
De acordo com Tocqueville,

A caridade legal vai afetar tanto a liberdade do indigente quanto sua moralidade. Isto pode ser
facilmente provado. Quando as com unidades locais têm a obrigação rigorosa de ajudar os indigentes,
elas devem ajudar apenas aqueles que necessariamente se encaixam em sua jurisdição. Esta é a única
maneira justa de equacionar o fardo público que resulta da lei, e lhe proporcionar os meios daqueles
que devem mantê-lo. Já que a caridade individual é quase desconhecida em um país onde a pública é
organizada, qualquer um que, por infelicidade do destino ou por seus próprios vícios, venha a ser
incapaz de ganhar a vida, está condenado a permanecer no mesmo local em que nasceu - do contrário,
poderá padecer. Se tal pessoa dirigir-se a outros lugares, estará movendo-se em território inimigo. O
interesse privado das paróquias, infinitamente mais ativo e poderoso do que a melhor e mais
organizada polícia estatal, nota sua chegada, fareja cada um de seus passos e, caso ele queira
estabelecer uma nova residência, informa as autoridades públicas, que o levam até a fronteira. Através
das Leis dos Pobres, os ingleses imobilizaram um sexto de sua população, presa à terra como os
camponeses medievais. A gleba forçava o homem a permanecer, contra sua vontade, no local de
nascimento. A caridade legal faz com que dela não queiram se afastar 180.

175 Controlar a violência como um meio para criar incentivos para poupança, investimento e produtividade é o tema de BATES,

Robert H. Prosperity and Violence: The Political Economy of Development . New York: W. H. Norton, 2001.
176
Para uma análise das virtudes do liberalismo, leia McCLOSKEY, Deirdre N. The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Commerce.
Chicago: University of Chicago Press, 2006 Veja também HASKELL, Thomas L. Capitalism and the Origins of the Humanitarian
Sensibility. American Historical Review 90, no. 2 (Abr. 1985), p. 339–61 e no. 3 (Jun. 1985). p. 547–66.
177 “Depois de 1795, muitas paróquias do sul, seguindo a política dos magistérios de Speenhamland, começaram a dar auxílio ao ar

livre de acordo com a escala baseada no preço do pão e no tamanho da família. Não existe nada a ser contestado nisso: era apenas
sensível e humano assistir os pobres para que sua renda não caísse abaixo do mínimo para a subsistência. Mas muitas das
autoridades, confundindo o problema do trabalhador assalariado com o do pobre, buscaram compensar o valor dos salários dos
trabalhadores, que estavam abaixo de seu padrão. Uma garantia de auxílio que varia inversamente aos ganhos é a pior forma de
subsídio, já que destrói o incentivo do trabalhador de exigir, ou do empregador a oferecer, salários maiores.” ASHTON, T.S. The
Industrial Revolution. p. 89.
178 TOCQUEVILLE, Alexis de. Memoir on Pauperism. Chicago: Ivan R. Dec. 1997. p. 37.
179 Tocqueville fazia distinção clara entre “caridade voluntária” e “caridade legal”, apoiando a primeira como a que estabelecia um

“laço moral” “entre membros de duas classes cujos interesses e paixões frequentemente conspiravam para separá-los e que, apesar
de divididos pelas circunstancias, estavam dispostos a se reconciliar. Esse não é o caso quando se trata da caridade legal. A última
permite que as esmolas persistam, mas não a moralidade. A lei extirpa o homem de uma parcela da sua riqueza excedente sem
consultá-lo, e vê o homem pobre apenas como um estranho ganancioso, convidado pelo legislador a partilhar de sua riqueza”.

180 Ibid., p. 62–63.


Uma dinâmica similar de controle posta em prática pelo estatismo de bem-estar explica as políticas
profundamente iliberais de restrições à liberdade de movimento através das fronteiras internacionais, pois os
imigrantes são, amiúde, considerados pelas populações de Estados de bem-estar como parasitas que
ameaçam consumir a riqueza dos locais, em vez de produtores potenciais de riqueza para benefício mútuo 181.

Institucionalização dos meios políticos e econômicos de aquisição de riqueza

O principal – de fato, o mais importante – fator de produção é o arcabouço institucional que facilita
a cooperação voluntária em prol do benefício mútuo. A geração de riqueza é o resultado de mudanças
institucionais que geram incentivos à produtividade e aos ganhos mútuos resultantes do comércio. Como
Benjamin Friedman nota: “este novo e ousado conceito tinha um forte conteúdo moral. Pela primeira vez, as
pessoas viram a possibilidade de obter riqueza de uma forma que não seria, necessariamente, exploradora.
No âmbito individual, a ideia de troca voluntária implicava ganhos mútuos em qualquer transação. E o mesmo
conceito se aplicava ainda mais claramente na sociedade como um todo. O segredo da riqueza nacional era o
comércio, e não a conquista 182”. Seguindo esse insight, os liberais clássicos têm destacado dois meios de
aquisição de riqueza: os “meios econômicos” de produção e troca, e os “meios políticos” de utilização da
força 183. Herbert Spencer distinguiu entre dois tipos ideais de sociedade: a “militante” e a “industrial”: a
primeira caracterizada pelo comando e hierarquia; a segunda, pela cooperação e contrato 184.
Os privilégios especiais institucionalizados geram diferenças na riqueza e na renda, daí o porquê da
luta dos liberais clássicos para identificar e eliminar esses privilégios especiais que prejudicavam uns em
benefício de outros 185. Desta forma, os liberais clássicos se opuseram ferozmente i) a privilégios de guilda que
restringiam a acesso às profissões, ii) às barreiras raciais, étnicas, religiosas e de gênero à posse de
propriedade privada ou ao acesso aos ofícios, iii) às barreiras protecionistas às importações de menor preço,
que aumentam o preço para os consumidores em benefício de uma pequena minoria de produtores
domésticos; iv) a uma ampla gama de obstáculos aos esforços individuais para tentar melhorar sua situação.
Igualdade jurídica, liberdade de comércio e carreiras abertas ao talento foram palavras-chave de teóricos
liberais clássicos do progresso social 186.
Os liberais clássicos se orgulhavam dos resultados de seus esforços. Como o jornalista liberal clássico
E. L. Godkin nota nas páginas do The Nation em 1900 “aos princípios e preceitos do liberalismo, o prodigioso
progresso material dessa era foi amplamente devido. Livre da vexatória interferência dos governos, o homem
se dedica à sua tarefa natural, a melhora de sua condição, com os resultados magníficos que nos rodeiam 187”.

Riqueza e desigualdade

Assim como os liberais clássicos não veem a pobreza como a “causa” da pobreza (argumento do
“círculo vicioso da pobreza” criticado por P. T. Bauer), eles não veem a existência da riqueza como a causa da
pobreza (opinião de alguns socialistas), que argumentam que não dar ao pobre bens e serviços é a “causa” da
pobreza daquela pessoa 188. A riqueza voluntariamente adquirida é, com efeito, a causa da riqueza, e não da

181 RILEY, Jason L. Let Them In: The Case for Open Borders. p. 91–125. Como Riley conclui, “Se conservadores estão preocupados
demais com muitos infiltrados mamando nas tetas do governo - e que estão remotamente interessados em qualquer tipo de
consistência ideológica - eles deveriam estar trabalhando para restringir os pagamentos assistencialistas, e não os imigrantes”.
182 FRIEDMAN, Benjamin M. The Moral Consequences of Economic Growth. New York: Alfred A. Knopf, 2005. p. 39
183 Ver, por exemplo, OPPENHEIMER, Franz. The State. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1914. “Como existem dois meios

fundamentalmente opostos pelos quais o homem, buscando sustento, é impelido a obter pelos meios necessários para satisfazer
suas necessidades. Esses são o trabalho e o roubo, o trabalho próprio de alguém e a apropriação forçada do trabalho dos outros.”
(p. 24) Oppenheimer rotulou o primeiro como “meio econômico” e o segundo, “meio político.” Ver também PARETO, Vilfredo.
Sociological Writings .Totowa, NJ: Rowman and Littlefield, 1976, especialmente as discussões sobre “espoliação”.
184 Veja, por exemplo, SPENCER, Herbert. Structure, Function and Evolution. New York: Charles Scribner’s Sons, 1971. p. 153–65
185 Ver, em contexto do estado autoimposto de desvantagens com base racial. WILLIAMS, Walter. The State against the Blacks.
186
Henry Summer Maine descreveu “o movimento das sociedades progressistas” das relações herdadas, baseadas na afiliação
familiar, à liberdade pessoal e sociedade civil como “um movimento do status ao contrato.” MAINE, Henry Summer. Ancient Law.
New Brunswick, NJ: Transaction, 2003. p. 170.

187 GODKIN, E. L. The Eclipse of Liberalism. The Nation, 9 ago. 1900. Ele prossegue, de forma bem pessimista: “agora parece que o
conforto material cegou a geração atual da causa que o tornou possível. Na política do mundo, o liberalismo está em declínio, quase
uma força defunta”.
188
Veja COHEN, G. A. Incentives, Inequality, and Community. In The Tanner Lectures on Human Values, vol. 13, ed. B. Peterson. Salt
Lake City: University of Utah Press, 1992. p. 263– 329, e GREEN, Phillip. The Pursuit of Inequality. New York: Pantheon Books, 1981.
pobreza, dos outros. “A Lei de Say”, de acordo com a qual “é a produção que gera a demanda por produtos”,
postulou que a riqueza de uma pessoa ou de uma nação beneficia aqueles que com ela comercializam 189.

O que pode fazer um produtor, ou um comerciante, em um vilarejo pequeno, deserto e semibárbaro


em um canto remoto da Polônia? Embora não tenha concorrentes, ele vende pouco, pois pouco é
produzido; enquanto em Paris, Amsterdã ou Londres, apesar da concorrência de uma centena de
vendedores em sua própria área de atuação, ele pode fechar negócios em grande escala. A razão é
óbvia: ele está rodeado de pessoas que produzem muito, de várias formas, e que compram, cada qual
com seus respectivos produtos, isto é, com o dinheiro gerado pela venda do que ele pode ter
produzido 190

Instituições criam incentivos, e incentivos moldam comportamento. Como Douglass North coloca
“instituições oferecem a estrutura de incentivos de uma economia; com a evolução dessa estrutura, ela
conduz a mudança econômica em direção ao crescimento, à estagnação ou à retração 191”.
Os resultados não estão, em geral, sujeitos à escolha; na melhor das hipóteses, você pode escolher
entre processos, e não entre resultados. O que pode parecer a escolha de um resultado (por exemplo,
“salários altos”) é, na verdade, a escolha de um processo (proibir a criação ou o cumprimento de contratos de
trabalho abaixo de certo salário). Processos nem sempre geram os resultados esperados pelos tomadores de
decisão. Daniel Shapiro nota que “as instituições não podem ser devidamente caracterizadas por seus
objetivos 192”. Assim, os liberais clássicos têm criticado muita da intervenção na troca voluntária sob o
argumento de que ela não gera os resultados prometidos. As leis do salário mínimo, por exemplo, não
aumentam os salários – o aumento do produto marginal do trabalho, sim; e esse não está sujeito ao controle
legislativo – embora, de fato, aumentem o desemprego, levando as pessoas à informalidade, pois impedem
as pessoas de baixo produto marginal (normalmente, as menos capacitadas, as incultas e as jovens) de
oferecer seus serviços a preços que atraíram empregadores 193.
Assim como sociedades caracterizadas por liberdade e direitos iguais exibem desigualdade de renda,
o mesmo se dá em sociedades fechadas (nenhuma ordem social elimina a desigualdade de renda, somente a
oculta – como Mancur Olson argumentou em seu ensaio The Theory of Soviet-Type Autocracies 194. O que
caracteriza as sociedades livres é uma circulação geral das elites – artísticas, culturais, políticas e econômicas.
Em seu estudo geral sobre a “circulação das elites” em tipos diferentes de ordens sociais, Vilfredo Pareto
notou que, à semelhança das sociedades militares, as sociedades liberais e industriais também são
caracterizadas pela circulação de elites, mas com base em processos totalmente diferentes. Em uma
sociedade militarista (belicosa), a guerra prove o incentivo para “um soldado raso se tornar um general”,
todavia, nas “sociedades comerciais e industriais”, para o mais pobre alcançar a riqueza se requere tanto a
liberdade quanto “o desenvolvimento comercial e industrial em escala suficiente para torná-la uma
possibilidade real para um número apreciável de cidadãos 195”. Relações comerciais fundamentadas na
produção e na troca voluntária tendem a produzir sistemas dinâmicos de desigualdade, em vez de sistemas
rígidos de desigualdade; isto é, pessoas e famílias sobem e descem na escala relativa de riqueza, à medida
que a riqueza agregada de toda sociedade aumenta 196.
A distinção-chave que sociólogos e economistas liberais clássicos constataram ao analisar a
“distribuição de riqueza” em constante mudança numa sociedade livre é aquela entre “propriedade”, um

189 SAY, Jean-Baptiste. A Treatise on Political Economy. New York: Augustus M. Kelley, 1971. p. 133
190 Ibid., 137. Veja também SAY, Jean-Baptiste Say. Letters to Mr. Malthus. London: Sherwood, Neely, and Jones, 1821. p. 3–4.
“Voltemos 200 anos no tempo, e suponhamos que um negociante tivesse levado ao local onde hoje estão construídas as cidades de
Nova York e Filadélfia mercadoria de alto valor; ele poderia tê-la vendido? Suponhamos, ainda, que tivesse vencido as dificuldades
naturais e que, ali, tivesse fundado uma fazenda ou uma fábrica: teria ele conseguido vender sequer uma unidade de seus produtos?
Sem dúvida, não. Ele mesmo teria que consumi-los. E por que hoje vemos o contrário? Por que quando se leva ou se fabrica uma
mercadoria para Filadélfia ou Nova York, o produtor está seguro que a venderá a preços correntes? Parece-me certo que é porque
os agricultores, comerciantes e até mesmo os fabricantes de Nova York, da Filadélfia e dos estados vizinhos ali produzem e ali fazem
chegar produtos por meio dos quais adquirem o que é oferecido de outras partes”.
191 NORTH, Douglass C. Institutions. Journal of Economic Perspectives 5, no. I (1991), p. 97. Veja também NORTH, Douglass C.

Structure and Change in Economic History.New York: W. Norton, 1981. p. 201–2: “Instituições são um conjunto de regras, medidas
de observância, e normas comportamentais de cunho moral e ético desenhadas para restringir o comportamento de indivíduos com
o interesse de maximizar a riqueza ou a utilidade dos princípios.”
192 SHAPIRO, Daniel. Is the Welfare State Justified?. p. 5
193
FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago: University of Chicago, 2002. p. 180
194 OLSON, Mancur. Power and Prosperity. New York: Basic Books, 2000. p. 111–34

195PAREDO, Vilfredo. Sociological Writings. p. 162.


196
Para dados atuais, COX, W. Michael e ALM, Richard. Myths of Rich and Poor. New York: Basic Books, 1999), especialmente a
discussão sobre mobilidade de renda. p. 69–78.
conceito jurídico, e “riqueza”, um conceito econômico. Trocas voluntárias levam à realocação não somente
de direitos de propriedade, mas também da riqueza; e não somente entre as partes contratuais na troca.
Quando Henry Ford comprava aço, borracha e vidros de vendedores, e empregava trabalhadores na
produção, o efeito resultante era a transferência de propriedade entre os envolvidos na compra/venda do
carro, bem como a valorização dos recursos utilizados em sua fabricação. As transferências de riqueza
envolvidas eram muito maiores que o valor do bem que mudou de mãos. Mudanças de valorização de um
ativo afetam a sua utilidade, isto é, a riqueza que ele representa para seu proprietário. Valores e gostos
mudam regularmente, logo, variando a riqueza relativa dos indivíduos.
A economia de mercado é, portanto, vista como um processo de nivelamento. Numa economia de
mercado, o processo de redistribuição de riqueza nunca para, tornando o processo político de mesma função
(assistencialismo) comparativamente insignificante, se não por outra razão que o mercado concede riqueza a
quem pode administrá-la, não a utilizando como moeda de troca eleitoral, em mãos improdutivas 197.
Os liberais clássicos rejeitaram a teoria da riqueza dos “recursos naturais”, preferindo uma
abordagem industrial, isto é, que a riqueza verdadeira é produzida, e não encontrada aleatoriamente. Assim,
o influente economista liberal Jean-Baptiste Say distinguiu “matérias existentes” (o que hoje é chamado de
“recursos naturais”) de “riqueza”: “tudo o que podemos fazer é reproduzir essas matérias sob outra forma
que as torna apropriadas a um uso qualquer que não possuíam anteriormente ou que simplesmente aumenta-
lhes a utilidade que antes já podiam ter. Nessas circunstâncias, há criação de utilidade, não de matéria, e,
visto que esta utilidade lhes confere valor, há produção de riquezas 198”.
Existem muitas sociedades com grandes reservas de recursos naturais cujas populações são muito
mais pobres que sociedades com muito menos recursos, mas governadas por instituições que facilitam a
criação de riqueza. Já é sabido da economia do desenvolvimento, há centenas de anos, que o recurso natural
não é um determinante significativo de riqueza 199. O liberalismo clássico caracteriza-se pela crença de que a
produção de riqueza é promovida, e a pobreza absoluta, eliminada, por instituições legais de direitos bem-
definidos e seguros que podem ser trocados livremente com base em um sistema de contrato e lei, ou, como
resume Smith: “paz, impostos simples, e a administração tolerável da justiça 200”. Além disso, a liberdade
produtiva e comercial enfraqueceu hierarquias, castas e outras formas rígidas de desigualdade.
Contudo, a produção de riqueza por meio do livre mercado nunca foi a única resposta liberal clássica
à pobreza. Essas trocas são apenas um elemento de um amplo leque de atividades cooperativas de combate
à pobreza.

Autoajuda, ajuda mútua, caridade e assistência pública

A igualdade jurídica é um elemento central da tradição liberal clássica, e os liberais clássicos foram
pioneiros na expansão das ideias de igualdade entre gêneros, raças, nações e grupos sociais. A defesa da
igualdade de direitos no mercado de trabalho, sem exclusão oficial via lei trabalhista com base no gênero,
assim como o direito de adquirir, possuir e dispor de propriedade têm sido promovida não só por razões de
coerência moral, mas para melhorar a situação das mulheres, e eliminar sua dependência involuntária dos
homens. Como a feminista e abolicionista liberal clássica do século XIX, Sarah Grimké, notou “existem poucas
coisas que representam maior obstáculo à elevação da mulher a sua esfera apropriada de utilidade e dever
do que leis que têm sido decretadas para destruir sua independência e esmagar sua individualidade; leis de
cuja criação não participou, e que a furta de seus direitos essenciais 201”.
A liberdade para exercer seus talentos levou à melhora significativa da condição dos oprimidos, dos
desprovidos, dos desamparados, dos pobres. A autoajuda foi promovida pela eliminação dos obstáculos à
autoajuda e à afirmação ativa de responsabilidade pessoal.
Mas outros meios também estavam disponíveis. O primeiro, amplamente associado ao liberalismo
clássico, é a defesa da caridade como meio de melhora da situação dos pobres. As instituições de caridade
assistem os que foram vítimas do infortúnio, ou os que precisam de assistência alheia, a qual é mais bem

197 LACHMANN, Ludwig. The Market Economy and the Distribution of Wealth. In LACHMANN, Ludwig. Capital, Expectations, and the
Market Process. Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977. p. 313.
198 SAY, Jean-Baptiste. A Treatise on Political Economy. p. 62.
199 APPLEBY, Joyce. Economic Thought and Ideology in Seventeenth-Century England. Princeton, NJ: Princeton University Press,

1978), p. 96. Em seu capítulo Os holandeses como uma fonte de evidência, ele explica porque os holandeses, relativamente “pobres
em recursos”, alcançaram níveis enormes de riqueza per capita: “Os holandeses estavam dispostos a cultivar essa organização social
complexa de mercado ao proteger a iniciativa individual”.
200 SMITH, Adam. Essays on Philosophical Subjects. p. 322.
201
GRIMKÉ, Sarah. Legal Disabilities of Women. In MCELROY, Wendy. Freedom, Feminism, and the State. Oakland: Independent
Institute, 1991. p. 107.
provida por associações voluntárias. Os liberais clássicos queriam evitar condições de dependência
permanente. Até Bernard Bosanquet, um grande defensor da Charity Organisation Society na Grã-Bretanha,
era um crítico ferrenho da institucionalização da pobreza, de ver “a instituição ‘do pobre’ como classe,
representando, como uma noção ética na mente moderna, um objeto permanente de compaixão e
autosacrifício. A ‘pobreza’, tem sido dito, ‘se tornou um status’. Os ‘sem classe’ se tornaram uma classe social,
com a função social passiva de estímulo à bondade dos outros 202”.
O propósito da caridade não era aprofundar a dependência, mas sim fomentar a habilidade de os
beneficiários da caridade assumirem a responsabilidade por suas vidas e de suas famílias. Bosanquet
argumentou que o socialismo econômico, baseado em controle e planejamento central, produziria egoísmo,
enquanto a cooperação voluntária produziria respeito pelos outros e sentimento de companheirismo. A
experiência de vida sob o socialismo real parece ter validade essa previsão 203. E mesmo no caso dos estados
de bem-estar modernos, como Norman Barry nota, “a experiência contemporânea indica que, longe de
encorajar um ‘eu’ comunitário, preocupado com o próximo, as instituições do estado de bem-estar
simplesmente reproduziram o tradicional Homo economicus em um contexto diferente 204”.
Depois da autoajuda - promovida, sobretudo, pela remoção dos obstáculos ao livre exercício das
faculdades - os liberais clássicos defenderam ativamente as “sociedades amigáveis”, as “sociedades
fraternais” e as “sociedades de ajuda mútua” que agregavam tanto os esforços, como os riscos enfrentados
por pessoas de meios limitados. Em seu auge, as sociedades amigáveis envolveram ativamente milhões de
pessoas em movimentos sociais que ofuscaram os movimentos sindicalistas da época – não obstante, mais
conhecidos atualmente. Embora algumas delas tivessem suas raízes nas sociedades funerárias da Roma
Antiga, elas floresceram como nunca antes no século XVIII, XIX, e do início à metade do século XX. Como Otto
von Gierke observou em 1868 das “Leis das sociedades”: “Em nosso século, inciativa e poder criativo foram
devolvidos ao povo: a livre associação pessoal, que nunca foi extinta por completo, se desenvolveu em um
grande número de diferentes ramos, proporcionando uma forma capaz de abranger os mais diversos
propósitos 205”.
Tais sociedades não proviam somente seguro contra doença, acidente, morte e outras catástrofes,
mas também promoviam a boa índole e outras virtudes como civilidade, respeito pelas mulheres (membros
que batessem em suas esposas eram normalmente expulsos), sobriedade e caridade. Por meio da associação
voluntária, elas transcendiam a responsabilidade pessoal frequentemente associada ao liberalismo clássico,
voluntariamente abraçando várias formas de responsabilidade coletiva - essas normalmente subvalorizadas
no entendimento liberal clássico de liberdade e ordem social. David Schmidtz argumentou que “é a
responsabilidade internalizada (em vez de individual, per se) que faz com que algumas pessoas tenham uma
vida melhor. Instituições que levam as pessoas a assumirem responsabilidades por si mesmas dentro de um
grupo também ajudam a internalizar a responsabilidade, ainda que de forma coletiva. Elas também podem
melhorar a vida das pessoas 206”. Historicamente, a ajuda mútua foi um elemento-chave na abordagem liberal
clássica no tocante à ordem social e progresso. Como o casamento, essas associações são vistas pelos liberais
clássicos não como restrições à liberdade, mas como exercício dela.
As sociedades amigáveis representam talvez o movimento social menos documentado na história.
(Veja os ensaios de David Green e David Beito neste livro). Em muitos países, elas floresceram à medida que
os obstáculos à associação civil eram reduzidos ou eliminados; elas desapareceram, todavia, com o
surgimento de firmas com fins lucrativos que competiram com elas ao oferecer apólices de seguro com solidez
atuarial (com efeito, algumas sociedades amigáveis se transformaram em companhias de seguro, tais como a
Modern Woodmen of America, a Prudential Insurance e a Metropolitan Life 207), e com o estado de bem-estar

202 BOSANQUET, Bernard. Institutions as Ethical Ideas. in The Philosophical Theory of the State and Related Essays. South Bend, IN:
St. Augustine’s Press, 2001. p. 280.
203
BUKOVSKY, Vladimir. To Build a Castle: My Life as a Dissenter. London: Andre Deutsch, 1978. p. 150–51.
Como o dissidente soviético e liberal clássico Vladimir Bukovksy pontuou em suas memórias, “Khrushchev não estava muito longe
quando disse em um de seus discursos: ‘ Se as pessoas de nosso país parassem de roubar por um único dia, o comunismo poderia
ter sido construído há muito tempo’. Mas o que ele falhou em entender é que, sem esse roubo, o sistema soviético não funcionaria
de jeito algum. Sem todos esses números falsificados e manipulados, dificilmente algum objetivo seria alcançado, e sem essa
iniciativa privada, portanto ilegal, nada seria produzido em nosso país. Todos esses coletivos e fazendas estatais não teriam
sobrevivido por um só minuto se não fossem administradas por vigaristas”.
204 BARRY, Norman. Welfare. Buckingham: Open University Press, 1990. p. 120.
205
GIERKE, Otto von. Community in Historical Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. p. 205. Veja também
BLACK, Antony. Guild and State. New Brunswick, NJ: Transaction, 2003. p. 167–83.

206 SCHMIDTZ, David. Taking Responsibility. In SCHMIDTZ, David e GOODIN, Robert E. Social Welfare and Individual Responsibility.
p.95.
207 BEITO, David. From Mutual Aid to the Welfare State: Fraternal Societies and Social Services, 1890–1967. p. 24.
que a sucedeu 208. Os próprios membros da classe trabalhadora traçavam distinções entre os pobres
merecedores (dignos) e pobres não merecedores (indignos).
Ao invés de reconhecer qualquer direito incondicional à assistência, grupos de pobres que reuniam
seus recursos para ajuda mútua distinguiam entre dignos e indignos de assistência, ou por causa de sua
própria indisposição a assistir os outros quando poderiam, ou porque sua situação era produto de suas
próprias ações. Tanto os pensadores liberais clássicos como os líderes de organizações voluntárias focavam
em estimular os traços de caráter compatíveis com o sucesso na sociedade civil. Nas palavras de Green, os
membros das sociedades amigáveis “estavam unidos não por sua proximidade física, mas por seu vínculo a
ideais compartilhados”. Central ao propósito dessas sociedades estava a promoção da boa índole, uma
consideração de grande importância para o pensamento liberal clássico, cujos defensores tendem a
considerar a boa conduta e o desejo de uma vida melhor como algo fundamental na vida do indivíduo 209. A
assistência de uma sociedade amigável era, realmente, uma questão de direito, mas não um direito imerecido
ou incondicional. A ajuda mútua permitia aos pobres fugir da condescendência paternal que acompanhava a
caridade, normalmente associada a casos de extremo desespero. Ser necessitado era uma condição que
deveria ser evitada, e não adotada.
A caridade permaneceu intimamente ligada ao pensamento liberal clássico, embora normalmente
fosse terceira na lista de métodos de ajuda aos pobres, depois da autoajuda e da ajuda mútua. A transferência
de renda dos pagadores de impostos era considerada o meio menos desejável, a ser empregado somente
quando outras formas de melhora da situação dos pobres estavam indisponíveis. Em seu ensaio The Claims of
Labour, John Stuart Mill notou:

Dar esmolas nunca foi, nesse país ou na maioria dos outros, uma virtude incomum. Instituições de
caridade e movimentos comunitários para auxílio dos destituídos já existiam em abundância; e se
novas formas de flagelo, ou classes de doentes anteriormente ignoradas, fossem trazidas à tona, nada
era mais natural que fazer por eles o que já havia sido feito por outros 210.

O recolhimento da esmola já era muito associado com obrigações sagradas e, sem surpresa,
frequentemente organizado por instituições religiosas. O ato de dar esmolas aos necessitados tem geralmente
sido entendido na tradição liberal clássica como um exercício das virtudes da generosidade e da compaixão 211.
Daí os liberais clássicos reconhecerem uma obrigação moral a assistir aqueles em necessidade devido ao
infortúnio, e promoverem uma ampla variedade de arranjos voluntários para prover tal assistência. Enquanto
a assistência voluntária era digna elogiosa e virtuosa, a compulsão não o era. Uma visão representativa pode
ser encontrada na obra A Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith.
Embora o sentimento de beneficência fosse um elemento necessário para atividade virtuosa
(nenhuma ação pode ser propriamente chamada virtuosa se não for acompanhada do sentimento de
aprovação em si 212), beneficência e caridade eram superadas por considerações de justiça: ele notou que:
“que sentimo-nos sob a obrigação mais estrita de agir de acordo com a justiça, do que segundo o que é
agradável à amizade, caridade ou generosidade; que a prática das virtudes recém-mencionadas parece ter
sido deixada em certa medida à nossa própria escolha, mas que, de um modo ou de outro, sentimo-nos de
maneira peculiar atados, forçados e obrigados ao respeito à justiça 213”. De acordo com Smith, numa passagem
que representa um dos compromissos morais centrais dos liberais clássicos: “Sempre devemos, entretanto,

208 David Green explica o envolvimento da profissão médica na promoção da Lei Nacional de Seguros de 1911, a qual substituiu um
mercado competitivo criado por múltiplas sociedades amigáveis da classe trabalhadora por um monopsônio controlado por médicos
e seus aliados políticos. Ver GREEN, David. Working Class Patients and the Medical Establishment; o resultado da substituição de
pagamentos voluntários por impostos involuntários como fonte de pagamento era, como Green observa de maneira seca, “muito
mais fáceis de obter que no mercado.” (p. 115). O outro resultado foi o declínio das sociedades amigáveis, pois as pessoas se
encontraram pagando o dobro pelo mesmo acesso aos serviços médicos - uma vez à sociedade amigável ou ao instituto médico
afiliado, e novamente ao Estado.
209 GREEN, David G. Reinventing Civil Society. p. 46
210
MILL, John Stuart. The Claims of Labour. In The Collected Works of John Stuart Mill, vol. 4: Essays on Economics and Society.
Toronto: University of Toronto Press, 1967. p. 372.
211 Nas palavras de Bernard Bosanquet, “Moralidade consiste em propósito social que trabalha com sua própria força sobre a

vontade individual. O socialismo econômico é um arranjo para conseguir o propósito social executado não apenas por sua própria
força, mas pela força daqueles motivos compulsórios ou sanções que estão sob o comando do poder público.” BOSANQUET,
Bernard. The Antithesis between Individualism and Socialism (1890). In Bosanquet, Bernard. The Philosophical Theory of the State
and Related Essays. p. 329. Veja também MACHAN, Tibor R. Generosity: Virtue in Civil Society. Washington, DC: Cato Institute: 1998.
212
SMITH, Adam. The Theory of Moral Sentiments. Indianapolis: Liberty Fund, 1982. p. 178
213 Ibid., p. 80.
distinguir cuidadosamente entre o que é apenas censurável, ou objeto adequado de desaprovação, e a força
que se pode empregar quer para punir, quer para prevenir 214”.
O argumento utilitarista posterior, que a redistribuição da riqueza dos ricos para os pobres
meramente tomaria o que é de pouco valor para o primeiro para dar o que era de grande valor ao último era
solidamente rejeitado pelos liberais clássicos, que viam na ideia uma ameaça às regras gerais sobre as quais
dependem as sociedades livres e prósperas 215. Assim, nas palavras de Smith: ”um indivíduo nunca deve se
preferir tanto a outro a ponto de ferir ou prejudicar esse outro para beneficiar a si mesmo, ainda que o
benefício de um fosse muito maior do que a dor ou prejuízo do outro. O homem pobre não deve defraudar
nem roubar o rico, embora a aquisição possa beneficiar muito mais a um do que a perda poderia prejudicar o
outro.” Fazê-lo violaria “uma das regras sagradas, de cuja razoável observação depende toda a segurança e
paz da sociedade humana 216”.
Bertrand de Jouvenel abordou diretamente os argumentos utilitários em prol da redistribuição: um
nivelamento de renda ou riqueza para maximizar o bem-estar (pequenas reduções no bem-estar dos ricos
sendo muito mais que compensadas por grandes melhorias no bem-estar dos pobres) efetivamente eliminaria
os gastos em alta cultura associados à riqueza, problema que os defensores da redistribuição resolveriam por
meio da tributação para redirecionar recursos para o apoio de projetos culturais. Segundo Jouvenel: “todos
os defensores da redistribuição extrema a unem a medidas mais generosas de apoio estatal para toda a
superestrutura das atividades culturais 217”. Ele os acusava de inconsistência, pois o argumento utilitário da
maximização do bem-estar via redistribuição de renda era enfraquecido pelo redirecionamento da riqueza via
Estado para instituições culturais favorecidas: “é uma inconsistência, muito evidente, intervir com apoio
estatal para atividades culturais que não conseguem encontrar um mercado. Aqueles que, de forma
espontânea, equilibram seus esquemas de redistribuição de forma a obter tal apoio estão, na verdade,
negando que a alocação ideal de recursos e atividades seja aquela na qual a soma das satisfações é
maximizada 218”.
J. S. Mill notou que a imposição de uma “obrigação moral ou legal, sobre as classes mais altas, de
responder pelo bem-estar e prosperidade das classes mais baixas” era característica de sociedades iliberais.
Como ele argumentou, “o estado ideal de sociedade pelo qual os novos filantropos [defensores do
assistencialismo compulsório] lutam” era o dos “servos russos”. Ele continuou: “existem outros operários, não
apenas aradores do solo, mas trabalhadores em grandes empreitadas manufatureiras, por quem as leis de
nosso país, mesmo em nosso próprio tempo, compeliam seus empregadores a prover comida saudável, abrigo
e roupas decentes. Quem são eles? Os escravos em uma propriedade no oeste da Índia 219”.
A assistência compulsória era associada na mente dos liberais clássicos não somente à
condescendência, mas também com sistemas de controle paternalista e perda de independência e liberdade.
A experiência das Leis dos Pobres e os controles associados do comportamento estavam ainda vívidas nas
memórias para os liberais dos séculos XIX e XX. Como Mill notou: “existem governos na Europa que encaram
como parte de seu dever tomar conta do bem-estar físico e conforto das pessoas […] mas com o cuidado
paterno vem a autoridade paterna. Nesses estados encontramos restrições severas ao matrimônio. Ninguém
pode se casar, a não ser que convença as autoridades de sua capacidade de sustentar uma família 220”. O temor
de tais controles motivou grande oposição liberal a, ou, pelo menos, desconforto com esquemas de “reforma
social” que requerem serviço ao Estado como condição para recebimento de assistência.
Uma preocupação central quanto à redistribuição compulsória para a crítica às Leis dos Pobres, e
até hoje presente nos debates da política de bem-estar e “ajuda externa”, é se tais medidas estatais realmente
aumentam o bem-estar dos pobres, ou se meramente fazem os que as defendem se sentir bem consigo
mesmos, como se eles tivessem cumprido uma obrigação moral, não ao ajudar os outros, mas ao defender
políticas. Para a maioria dos liberais clássicos, consequências, e não intenções declaradas, importam na

214 Ibid.
215 Ibid, p. 163
216 Ibid., p. 138.
217
JOUVENEL, Bertrand De. The Ethics of Redistribution. p. 42
218 Ibid., p. 44.
219 MILL, John Stuart. The Claims of Labour. p. 374

220Bernard Bosanquet observou a história pouco promissora da provisão de bem-estar pelo Estado: “Alega-se frequentemente que
o tempo do desenvolvimento fabril há 100 anos era um tempo de individualismo econômico. Mas não foi assim; talvez o pior dos
males daquele tempo surgiu diretamente da negligente ou ‘socialista’ Lei dos Pobres. Foram as instituições públicas responsáveis
pelas crianças maltratadas.” Bosanquet. The Antithesis between Individualism and Socialism. p. 330.
avaliação das políticas 221. Assim, a questão de se o auxílio estatal calcado na compulsão, de fato, melhora a
condição dos pobres tem sido uma preocupação central dos liberais clássicos quando abordam planos de
redistribuição.
Ao listar a ordem das preferências entre os liberais clássicos, Wilhelm Röpke afirmou que “por regra
e norma nosso ideal deveria ser a segurança obtida através do esforço individual e responsabilidade,
suplementada pela ajuda mútua 222. Röpke divergia de alguns liberais clássicos ao aceitar a provisão estatal de
um mínimo de assistência:

“Nós não podemos, hoje, renunciar a certa quantidade mínima de instituições estatais compulsórias
para a seguridade social. Aposentadorias por idade, seguro-saúde, seguro-acidente, benefícios para
viúvas, seguro-desemprego - deve haver naturalmente um espaço para todos eles em nosso conceito
de um bom sistema de seguridade social em uma sociedade livre, independentemente de quão pouco
estejamos entusiasmados com a ideia. Não é o princípio deles que está em questão, mas sua extensão,
organização e espírito 223.”

Muitos liberais clássicos têm aceitado alguma provisão estatal, mas não sem relutância, e como o
método menos preferível de assistência aos pobres. Milton Friedman, por exemplo, ofereceu duas razões para
apoiarmos um nível limitado de compulsão estatal para efeitos de assistência aos pobres. A primeira era o
exercício da obrigação legal de forçar as pessoas a ter algum tipo de aposentadoria em sua velhice, pois “o
imprevidente não só sofrerá as consequências de suas próprias ações, como também imporá prejuízos e
custos aos outros. Não seremos capazes de permitir que um ancião indigente sofra necessidades. Acabaremos
dando-lhe assistência por meio de caridade privada ou pública. Portanto, o homem que não garantir sua
velhice tornar-se-á um peso em termos sociais. Obrigá-lo a comprar uma apólice de seguro fica justificado não
pelo seu próprio bem, mas pelo bem de todos nós 224”. (Como ele rapidamente notou, “o peso desse
argumento claramente depende do fato”). A segunda era o exercício da obrigação legal de forçar os pagadores
de impostos como uma classe a sustentar os necessitados, sob a alegação de que o uso da coerção estatal
para o fornecimento de um bem coletivo (ou público) é aceitável em termos liberais: “pode-se levantar a
observação de que a caridade privada é insuficiente porque seus benefícios se estendem a pessoas que não
os merecem… Fico angustiado com a visão da pobreza, e me beneficio pela sua redução; mas sou igualmente
beneficiado, quer seja eu ou outra pessoa, que contribua para tal fim. Portanto, os benefícios da caridade de
outras pessoas estendem-se a mim.” De acordo com Friedman, tais preocupações elevariam “o padrão de
vida de cada pessoa da comunidade 225”.
Embora não um entusiasta do Estado de bem-estar, Hayek também argumentou, em razão da
provisão de bens públicos, que alguma provisão estatal limitada de bem-estar era compatível com os
princípios liberais clássicos: “todos os governos modernos têm organismos de previdência para os indigentes,
os incapacitados e os deficientes e cuidam de áreas como saúde e difusão de conhecimentos. Com o
crescimento da riqueza, seria concebível que essas atividades, essencialmente de serviços, também se
ampliassem. Há necessidades comuns que só podem ser satisfeitas com a ação coletiva e que podem assim
ser atendidas sem restrição da liberdade individual 226”.
O argumento dos bens públicos de Friedman e Hayek foi rejeitado por Robert Nozick, o qual ofereceu
uma interpretação mais consistentemente antiestatista do liberalismo clássico. Depois de uma discussão
sobre economia e ética dos bens públicos, Nozick concluiu: “uma vez que violaria limitações morais obrigar
indivíduos que têm direito a suas propriedades a contribuir contra sua vontade, os proponentes dessa
obrigação deveriam tentar convencer as pessoas a ignorar os relativamente poucos que não “topam” o
esquema de contribuições voluntárias. Ou são relativamente muitos os obrigados a contribuir, embora não o
façam de boa vontade, por aqueles que não querem se sentir ‘bobocas’ 227?”
Os debates sobre esses problemas entre liberais clássicos têm sido vigorosos, focando-se em um
número de questões, tais como quão competentes e confiáveis as instituições estatais – mesmo sujeitas à
supervisão democrática – podem ser, se qualquer obrigação em si é consistente com os princípios do
liberalismo, e se a provisão estatal de mesmo uma “rede de segurança” desencadearia um processo de

221 Veja o ensaio de David Schmidtz em SCHMIDTZ e GOODIN. Social Welfare and Individual Responsibility.
222
RÖPKE, Wilhelm. A Humane Economy: The Social Framework of the Free Market. Indianapolis: Liberty Fund, 1971. p. 177.
223 Ibid., p. 175
224 FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. p. 188.
225 Ibid., p. 191
226
HAYEK, F. A. The Constitution of Liberty. Chicago: University of Chicago Press, 1960. p. 257.
227 NOZICK, Anarchy, State, and Utopia. p. 268.
expansão da dependência, desalojando a rede de associações de ajuda mútua que estava intimamente
associada ao liberalismo clássico.
O jurista A. V. Dicey manifestou seu medo para com a provisão estatal, geral entre os liberais
clássicos:

O efeito benéfico da intervenção estatal, especialmente sob a forma de legislação, é direto, imediato
e, por assim dizer, visível, enquanto seus efeitos maléficos são graduais e indiretos, e ficam fora de
vista [...] poucos são aqueles que percebem a verdade inegável que o Estado ajuda a destruir a
autoajuda. Por isso, a maioria da humanidade deveria quase necessariamente ver com maus olhos a
intervenção governamental. Esse viés natural pode ser combatido somente pela existência, em uma
dada sociedade, como a inglesa entre 1830 e 1860, de uma presunção ou preconceito em favor da
liberdade individual, isto é, laissez faire. O mero declínio, portanto, da confiança na autoajuda – e que
ele, de fato, ocorreu – é, em si, suficiente para explicar o crescimento da legislação tendente ao
socialismo 228.

Herbert Spencer, ao final de sua vida, viu o crescimento da provisão estatal de serviços e das medidas
para substituir a ação voluntária pela coerção como o “novo Tory” e a “escravidão vindoura 229”. Como outros
liberais clássicos do fim do século XIX, ele uniu o crescimento do nacionalismo, do imperialismo, do racismo,
do socialismo e do estado de bem-estar como frutos de uma árvore comum, o coletivismo 230.
O temor da provisão estatal não se limitava aos anglo-saxões, mas estava – e ainda permanece –
uma característica comum do pensamento liberal clássico. Como François Guizot notou “nada é mais evidente
ou sagrado que o dever de o governo prestar assistência às classes menos favorecidas pelo destino, de forma
a aliviar sua miséria e ajudá-las em seu esforço de ascensão à benção da civilização. Isso se dá, todavia, graças
aos defeitos na organização social que são a razão da miséria de tantos seres humanos, e impor ao governo a
tarefa de garantia e distribuir igualmente as coisas boas da vida é ignorar absolutamente a condição humana,
abolindo a responsabilidade inerente à liberdade humana e despertar as paixões ruins por meio de falsas
esperanças 231”. Wilhelm von Humboldt desprezava as Leis dos Pobres por destruir a caridade e endurecer os
corações: “Será que algo tende tão eficazmente a matar e destruir a verdadeira simpatia - toda súplica
modesta, ainda que esperançosa - toda confiança no homem sobre o homem? Não são todos que odeiam o
pedinte, que considera mais conveniente ser cuidado em um asilo, em vez de, após lutar contra a necessidade,
encontrar não apenas uma mão que lhe joga uma esmola, mas sim um coração solidário 232?”
Subsistem algumas perguntas quanto à extensão das obrigações morais para com os pobres. Essas
são não facilmente respondidas de dentro da tradição liberal clássica, pela simples razão de que o pensamento
liberal clássico distingue – como o fazem muitas outras tradições – entre aqueles deveres e obrigações que
são exequíveis e aquelas que não o são. Um liberal clássico pode adotar a obrigação de pagar o dízimo ou dar
o zakat e, ao mesmo tempo, insistir que ela não se torne compulsória; é uma expressão das obrigações
religiosas e morais – e não legais – dos indivíduos. Em geral, a tendência universalista do liberalismo clássico
tem promovido a preocupação sincera com o próximo per se, em vez de com correligionários ou compatriotas.
A responsabilidade de não prejudicar os outros é aplicável a todos, independentemente de serem moradores
de uma comunidade vizinha ou pessoas totalmente estranhas vivendo em uma nação muito distante. Como
Adam Smith notou: “a mera justiça é, na maior parte das ocasiões, apenas uma virtude negativa, pois apenas
nos impede de ferir nosso vizinho. O homem que tão-somente se abstém de violar a pessoa, a propriedade
ou a reputação de seus vizinhos certamente tem muito pouco mérito positivo. Cumpre, no entanto, todas as
regras do que é peculiarmente chamado justiça, e faz tudo o que seus iguais podem com conveniência força-
lo a fazer, ou que o podem punir por não fazer. Frequentemente podemos cumprir todas as regras da justiça
sentando-nos, quietos e sem fazer nada 233. As obrigações positivas, na visão liberal clássica, são normalmente

228 DICEY, A. V. Lectures on the Relation between Law and Public Opinion in England during the Nineteenth Century. Indianapolis:
Liberty Fund, 2008. p. 182.
229 SPENCER, Herbert. The Man vs. the State.
230 Veja BERMAN, Sheri. The Primacy of Politics: Social Democracy and the Making of Europe’s Twentieth Century para as raízes

intelectuais comuns do marxisto, fascismo, nacional-socialismo e democrocia.


231 GUIZOT, François. Mémoires pour server à l’histoire de mon temps. In Western Liberalism: A History in Documents from Locke to

Croce. London: Longman Group, 1978. p. 335–36.


232
HUMBOLDT, Wilhelm von. The Limits of State Action. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. p. 40. Veja também a
descrição da oposição dos liberais alemães ao moderno estado de bem-estar de Bismarck em RAICO, Ralph. Der Aufstieg des
modernen Wohlfartsstaates und die liberale Antwort. In Raico. Die Partei der Freiheit: Studien zur Geschichte des deutschen
Liberalismus. Stuggart: Lucius & Lucius, 1999. p. 153–79.

233 SMITH, Adam. The Theory of Moral Sentiments. p. 82.


adquiridas com base nos atos do individuo (eles são adventícios em vez de inatos 234), isto é, ele não nasce
com, ou tem obrigações particulares preestabelecidas frente aos outros segundo sua pobreza relativa. Devido
ao seu foco na eliminação da injustiça, definida como os danos infligidos por alguns sobre outros, os liberais
clássicos lideraram os movimentos internacionais de abolição do trabalho forçado e da escravidão 235, os quais
promoviam a liberdade e o bem-estar dos membros mais necessitados e abusados da humanidade. Da mesma
forma, a tensão moral do caso liberal clássico em prol da liberdade de comércio concedeu muita atenção à
recusa de oportunidades de aumento de bem-estar entre povos de nações pobres, os quais são sacrificados
por políticas protecionistas de nações mais ricas. Libertar os pobres do controle coercivo sobre seu
comportamento beneficia os pobres, assim como todos que se engajam no comércio; os liberais clássicos
veem os ganhos do comércio como mútuos. Não se trata de uma concessão aos outros remover as restrições
na sua própria capacidade de comprar livremente. Como o economista alemão liberal clássico do século XIX,
John Prince Smith, argumentou: “a remoção das tarifas de importação é uma forma de concessão econômica,
primeiro, a nós mesmos, e não meramente a países estrangeiros 236”.
A mesma lógica é aplicada à imigração, tendo os liberais clássicos promovido tanto a liberdade de
circulação como a liberdade de comércio 237. Como tal, os liberais clássicos têm sido proponentes ativos da
“globalização” por meio da liberdade de expressão, de comércio e de circulação 238. É irônico que socialistas e
estatistas de bem-estar frequentemente posem como defensores dos pobres e, ao mesmo tempo, defendam
vigorosamente as restrições à imigração que usam arame farpado, patrulhas armadas e outras formas de força
para manter os verdadeiramente pobres longe de suas fronteiras, onde esses poderiam ter oportunidade para
melhorar suas vidas. Tradicionalmente, os liberais clássicos têm se oposto a essas restrições, favorecendo a
liberdade de comércio, viagem e migração, as quais consideram uma alternativa superior aos programas
redistributivos do Estado que, argumentam, são malsucedidos em tirar as pessoas da pobreza.
Os pensadores liberais clássicos, apesar de seus desacordos, têm concordado que a criação de mais
riqueza é a solução para a redução da pobreza e pelos resultados não estarem, eles próprios, sujeitos à
escolha, instituições justas e eficientes são a chave para aumentar a riqueza e reduzir a pobreza. Além disso,
embora muitos concedam espaço para a provisão estatal de assistência aos pobres e indigentes, todos
concordam que existe uma hierarquia de meios para a redução a pobreza, desde a responsabilidade pessoal
e autoajuda, ajuda mútua, caridade, até a opção menos preferida, a compulsão estatal.

234 Samuel Putendorf compara os termos “congênito” e “adventício” quanto às obrigações: “A obrigação pode, por razão de sua
origem, ser dividida em congênita e adventícia. A primeira pertence a todos os homens logo no momento de nascimento por virtude
do fato do nascimento, exercendo-a completamente assim que puderem, por consideração de sua idade, entender sua força e
regular sua ação através da razão… Obrigações adventícias são aquelas voluntariamente assumidas pelos que já nasceram, ou para
os que já tiveram obrigações impostas por comando de um superior ou pela lei.” The Political Writings of Samuel Pufendorf. Oxford:
Oxford University Press, 1994. p. 50.
235 Veja, por exemplo, os esforços de Anne Robert Jacques Turgot para eliminar o trabalho servil forçado (a corvée) na França,

descrita em STEPHENS, W. Walker. The Life and Writings of Turgot. New York: Burt Franklin, 1971. p. 124–49.
236 SMITH, John Prince. On the Significance of Freedom of Trade in World Politics em BRAMSTEAD e MELHUISH. Western Liberalism.

p. 357. A insistência no valor do livre comércio unilateral pelos liberais clássicos tem recebido muito destaque nos últimos anos.
Veja SALLY, Razeen. Trade Policy, New Century: The WTO, FTAs, and Asia Rising. London: Institute of Economic Affairs, 2008.
237
Para trabalhos recentes, veja LEGRAIN, Philippe. Immigrants: Your Country Needs Them. London: Little, Brown, 2006, e RILEY,
Jason L. Let Them In: The Case for Open Borders.
238 O termo “globalização” tem muitos significados. O projeto da União Soviética, por exemplo, implicaria a imposição de um
regime comunista unipartidário; esse é um tipo de “globalização”. Até mesmo forças nacionalistas e anticosmopolitas promovem
certa “globalização” na forma de um movimento global de nacionalismos competidores, uma ideia que contem as sementes do
conflito eterno. Liberais clássicos promoveram certos padrões universais para a interação pacífica através do comércio voluntário,
turismo, viagem, migração e troca de ideias. O resultado é compatível como uma enorme variedade de diferentes formas culturais,
apesar de hostis a quaisquer que forem impostas pela força ou por partes onde não há consentimento. Liberais clássicos foram
desacreditados por críticos socialistas como “neoliberais”, um termo que virtualmente nenhum liberal clássico aceitou, parcialmente
porque o termo não é utilizado somente para se referir a um comércio mais livre, a mais liberdade de ir e vir, nem a uma imigração
livre, mas normalmente a vários programas de desenvolvimento bastante iliberais de cunho estatista, promovidos por organizações
apoiadas por Estados, tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a USAID, organizações que tradicionalmente
sofreram oposição dos liberais clássicos. PALMER, Tom G. Globalization and Culture: Homogeneity, Diversity, Identity, Liberty. Berlin:
Liberales Institut, 2004. Disponível em: http://tomgpalmer.com/wp-content/uploads/papers/liberales2.pdf, e Globalization,
Cosmopolitanism, and Personal Identity. Etica & Politica, no. 2 (2003), disponível em: http://tomgpalmer.com/ wp-
content/uploads/papers/palmer-globcosmoidentity.pdf

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