Sie sind auf Seite 1von 210

ARQUEOLOGIA | PATRIMÓNIO | HISTÓRIA LOCAL

GRANDES PROJECTOS
DA ARQUEOLOGIA
PORTUGUESA
Conimbriga
Tongobriga
Mesas do Castelinho
Alcalar
Herdade dos Perdigões
Vale do Côa

adenda electrónica
N.º 16 | Dezembro 2008

O Povoado Tardo-Republicano
IIª Série |n.º 16 do Monte dos Castelinhos
Dezembro 2008
10 euros Dinâmica Urbana
da zona ribeirinha de Faro
0871-066X

9 770871 066160

Minimizar em Arqueologia
um novo rumo?
ISSN

C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A
há mais al-madan
na versão
em papel

Dossiê
temático

Eventos

Notícias

Arqueologia

Escavando online
Crónicas

Livros Actualidade

Património
Opinião

outros conteúdos... o mesmo cuidado editorial


SUMÁRIO
al-madan online | adenda electrónica
s
adenda electrónica

N.º 16 | Dezembro 2008 I Sumário


[http://www.almadan.publ.pt] II Editorial | Jorge Raposo
Arqueologia
p. 5-12 III Dois Bronzes de Entidades IX A Faiança Portuguesa p. 61-93
Tutelares da cidade romana no Mosteiro de S. João de
de Bracara Augusta | Rui Morais Tarouca: metodologia e
p. 13-21 IV resultados preliminares
Escavações Arqueológicas
| Luis Sebastian e Ana
no Quarteirão dos Antigos
Sampaio e Castro
CTT (Braga): resultados
preliminares | Luís Fontes et al. X Sepulturas Escavadas na p. 95-101
Rocha do Monte do Biscaia
p. 23-34 V A Necrópole Romana da | Joana Valdez, Filipa Pinto
Qtª da Torrinha / Qtª de Stº e João Nisa
António: incursão ao universo
funerário, paleodemográfico e XI Pertinência da análise
p. 103-114
morfométrico | Sandra Assis e bioantropológica em espólio
Rui Pedro Barbosa osteológico humano
descontextualizado: A
p. 35-39 VI Levantamento Necrópole da Igreja Matriz
Arqueológico do Concelho de Montalvão | António
de Tábua | Suzana Pombo Matias e Cláudia Costa
dos Santos
XII A Musalla do Hisn Turrus / p. 115-140
p. 41-52 VII Uma Primeira Leitura da / Torrão: uma hipótese de
Carta Arqueológica de Avis trabalho | António Rafael
| Ana Ribeiro Carvalho
p. 53-59 VIII A Faiança Portuguesa nas XIII Os Sítios do Paleolítico p. 141-144
Ilhas Britânicas: um projecto Médio na Margem Esquerda
de investigação | Tânia Manuel do Estuário do Tejo
Casimiro | Rui Miguel Correia
Opinião
p. 145-155 XIV A Relação entre o Parque XVI A Ausência da Análise p. 165-172
Arqueológico do Vale do Etnográfica e Experimental
Côa e a População Local: no estudo da cerâmica
balanço da primeira década | pré-histórica em Portugal
António Batarda Fernandes et al. | Gonçalo de Carvalho Amaro
p. 157-163 XV O Papel da Bioantropologia: XVII A Influência dos Modelos p. 173-176
violência interpessoal, ritual e de Importação de Cerâmica
guerra primitiva nos restos Fina nas produções
osteológicos humanos madeirenses do século XVII
| Luís Faria e Eunice Gomes | Élvio Duarte M. Sousa
Património
p. 177-182 XVIII Um Passeio Geológico na Almada Oitocentista | José M. Brandão

p. 183-189 XIX Livros


p. 191-196 XX Notícias: eventos científicos
p. 197-209 XXI Notícias: actividade arqueológica
al-madan
online
adenda
I electrónica
ficha técnica
EDITORIAL
al-madan online | adenda electrónica
e
al-madan IIª Série, n.º 16, Dezembro 2008
al-madan online / adenda electrónica Capa Jorge Raposo
Propriedade
Centro de Arqueologia de Almada Vale do Côa e Quinta da Ervamoira.
Apartado 603 EC Pragal
Fotografia © António Martinho Baptista / PAVC
2801-601 Almada PORTUGAL
Tel. / Fax 212 766 975
E-mail secretariado@caa.org.pt
Registo de imprensa 108998
Http://www.almadan.publ.pt
ISSN 0871-066X Depósito Legal 92457/95
Director Jorge Raposo (director.almadan@clix.pt)

U
Conselho Científico Amílcar Guerra, António Nabais,
Luís Raposo, Carlos Marques da Silva e Carlos Tavares da Silva ma das consequências não despiciendas da extinção do Instituto
Redacção Rui Eduardo Botas, Ana Luísa Duarte, Português de Arqueologia (IPA), cujas atribuições e competências
Elisabete Gonçalves e Francisco Silva
foram remetidas para o actual Instituto de Gestão do Património
Colunistas Mário Varela Gomes, Amílcar Guerra, Víctor Mestre,
Luís Raposo, António Manuel Silva e Carlos Marques da Silva Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR), foi a redução do panorama editorial
Colaboram na edição em papel Ass. Prof. Arqueólogos, Mila da Arqueologia portuguesa, com os responsáveis da tutela a entenderem
Abreu, Alexandrina Afonso, Mª José Almeida, Miguel Almeida, “não prioritária” a manutenção da Revista Portuguesa de Arqueologia e da
Clementino Amaro, Thierry Aubry, A. Martinho Baptista, Patrícia
Bargão, Lília Basílio, José Bettencourt, Francisco Caramelo, série monográfica Trabalhos de Arqueologia. Ambas haviam sido lançadas ou
Guilherme Cardoso, António Chéney, Com. Org. 1º CPAE, Mónica retomadas pelo IPA, com a primeira a registar 19 edições (duas por ano entre
Corga, Dalila Correia, Miguel Correia, Virgílio H. Correia, Eugénia 1998 e 2006 e uma última em 2007) e a segunda a chegar ao número 50
Cunha, Lino T. Dias, Ana L. Duarte, José d’Encarnação, Carlos
Fabião, Luís Faria, A. Batarda Fernandes, Mª Teresa Ferreira, António (atingido com as quatro edições de 2007), materializando a aposta consequente
Fialho, Jorge Freire, Mauro Frota, Eunice A. Gomes, M. Varela Gomes, no fomento da publicação científica, uma das atribuições cometidas a esse
António Gonzalez, Raquel Granja, Amílcar Guerra, Martine Guindeira,
Rosa Jardim, António Jerónimo, Patrícia Jorge, Miguel Lago,
Instituto na respectiva Lei Orgânica. É verdade que documento equivalente
Alexandra C. Lima, Luís Luís, Isabel Luna, Ludovino Malhadas, também confere aos IGESPAR a missão de “coordenar, no âmbito do Ministério
Andrea Martins, Isabel Mateus, Simão Mateus, Henrique Mendes, da Cultura, a actividade de divulgação editorial e de promoção nas áreas do
Marta Mendes, Víctor Mestre, Mário Monteiro, Elena Móran, Nuno
Neto, César Neves, Mª João Neves, José Norton, Luiz Oosterbeek, património cultural arquitectónico e arqueológico”. Mas, assumidamente, o seu
Rui Parreira, Rodrigo M. Pereira, João Pimenta, Mª João Pina, Filipe exercício não é prioridade... pelo menos no que respeita à RPA e aos TA.
S. Pinto, J. Carlos Quaresma, Sara Ramos, Jorge Raposo, Luís
Sucede isto numa altura em que se agravam as condições de sobrevivência
Raposo, Paulo Rebelo, Aldina Regalo, Fabian Reicherdt, Anabela P. Sá,
Jorge D. Sampaio, André T. Santos, Raquel Santos, António M. Silva, para outros projectos editoriais de continuidade, sejam estes de natureza
Carlos M. da Silva, André Teixeira e António C. Valera estritamente científica ou de âmbito mais geral, direccionados para a divulgação
Colaboram na Adenda Electrónica Elisa Albuquerque, Miguel e promoção da cultura científica junto de públicos diversificados, enquanto
Almeida, Gonçalo C. Amaro, Sandra Assis, Thierry Aubry, Rui P.
Barbosa, Pedro Barros, Lília Basílio, Delfina Bazaréu, Cristina Vilas instrumentos de mediação, partilha e sociabilização do conhecimento
Boas, José Braga, José M. Brandão, António R. Carvalho, Com. Org. arqueológico e da sua interacção crescente com outras áreas do saber.
1º CPAE, J. Muralha Cardoso, Bárbara Carvalho, Tânia M. Casimiro, Face ao alheamento da administração pública central, à situação vão resistindo,
Ana Sampaio e Castro, Dalila Correia, Rui Miguel B. Correia,
Cláudia Costa, Eugénia Cunha, Fernando Dias, José d’Encarnação, melhor ou pior, revistas e seriados produzidos em contexto universitário,
Luís Faria, A. Batarda Fernandes, Mª Teresa Ferreira, Luís Fontes, com apoios da administração local ou resultantes de estratégias de afirmação
Eunice Gomes, Sérgio Gomes, Amílcar Guerra, Vítor O. Jorge,
Ângela Junqueiro, Mª Fernanda Lourenço, Luís Luís, Fernanda
empresarial. Porém, a resistência é mais difícil quando o suporte assenta em
Magalhães, Jaime J. Marques, Andrea Martins, Manuela Martins, estruturas organizativas independentes e de recursos económicos e financeiros
António Matias, Samuel Melro, Marta Mendes, Rui Morais, César mais frágeis.
Neves, Mª João Neves, Lurdes Nieuwendam, Susana Nunes, Filipa
Pinto, Pedro Pinto, João Nisa, Ana Ribeiro, Jorge Sampaio, É o caso da Al-Madan e do Centro de Arqueologia de Almada, que se
Constança G. Santos, Raquel Santos, Susana P. Santos, Luís debatem com uma evidente contradição. Por um lado, é crescente o número de
Sebastian, José Sendas, Francisco Silva, Élvio Duarte M. Sousa, Joana
autores que procuram a revista como meio de divulgação dos seus trabalhos,
Valdez, Ana M. Vale e Gonçalo Leite Velho
Publicidade Elisabete Gonçalves
quer na edição impressa quer na complementar Al-Madan Online - Adenda
Apoio administrativo Palmira Lourenço
Electrónica (http://www.almadan.publ.pt). Por outro, avolumam-se os
Resumos Jorge Raposo (português), Luisa Pinho (inglês) constrangimentos orçamentais decorrentes da subida dos custos de produção
e Maria Isabel dos Santos (francês) e da diminuição das receitas − reduzem-se as vendas, não porque a revista perca
Modelo gráfico Vera Almeida e Jorge Raposo interesse junto dos potenciais leitores, mas porque crescem as dificuldades de
Paginação electrónica Jorge Raposo distribuição, reduzem-se os postos de venda e aumenta o número dos que não
Tratamento de imagem e ilustração Jorge Raposo pagam a tempo os materiais facturados; diminuem as receitas de publicidade
Revisão M.ª Graziela Duarte, Fernanda Lourenço e Sónia Tchissole porque a crise afecta as instituições potencialmente interessadas; por fim,
Impressão A Triunfadora, Artes Gráficas Ld.ª com honrosa excepção dos municípios de Almada e do Seixal, diminuem
Distribuição CAA | http://www.almadan.publ.pt também os apoios institucionais que vêm contribuindo para o equilíbrio
Tiragem da edição em papel 1000 exemplares
sustentado do projecto.
Periodicidade Anual
Enfim... veremos o que o futuro nos reserva.
Apoios Câmara Municipal de Almada e Câmara Municipal do Seixal

Jorge Raposo
al-madan
online
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica II al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Dois Bronzes de r e s

Estudo de dois pequenos bronzes de


u m o

Época Romana, que o autor interpreta

Entidades Tutelares da como personificações da antiga cidade


de Bracara Augusta (Braga), no contexto
da sacralidade do locus.
Trata-se de um busto feminino e de uma
coroa, que permitem tecer considera-
ções sobre o significado deste tipo de fi-

Cidade Romana de guras no mundo helenístico e romano,


ilustradas com alguns dos exemplos
mais conhecidos.

p a l a v r a s c h a v e

Bracara Augusta Época romana; Bracara Augusta (Braga);


Sacralização; Bronze.

a b s t r a c t

Study of two small bronzes (a female


por Rui Morais bust and a crown) from Roman Times,
which the author believes to be person-
Universidade do Minho ifications of the old city of Bracara Au-
gusta (Braga), within the context of the
locus sacredness.
The author makes some considerations
on the meaning of this type of figure in
the Hellenistic and Roman world and
1. Breves considerações
refers to some of the best known exam-
sobre as origens sagradas da cidade ples.

k e y w o r d s
“À antiguidade dá-se vénia para
Roman times; Bracara Augusta (Braga);
tornar mais augustos os primórdios
Sacralization; Bronze.
das cidades pela mistura do humano
com o divino.”

(Tito Lívio, Desde a Fundação r é s u m é


da Cidade, Prefácio, 7;
Etude de deux petits bronzes de l’Épo-
Trad. Rocha-Pereira, 2005, que Romaine, que l’auteur interprète
Fig. 1
5ª ed., p. 209) comme la personnification de l’ancienne
ville de Bracara Augusta (Braga), dans le
contexte de la sacralité du locus.
Il s’agit d’un buste féminin et d’une cou-
á dois milénios, César Augusto enobre- augural, associado a uma ara sacrificial (ara sagrada)

H ceu a cidade de Braga com o título de


Augusta. Do seu nome facilmente se de-
preende a fusão de dois elementos, um nome de raiz
colocada junto ou sob a fossa de fundação da cidade,
pressupondo que esta teria sofrido um ritual purifi-
cador, à semelhança da “Roma Quadrada” do perío-
ronne, qui permettent de tisser des con-
sidérations sur la signification de ce type
de figures dans le monde hellénistique et
romain, illustrées par des exemples plus
connus.
indígena, materializado a partir do nome de um dos do de Augusto.
povos mais poderosos da região, os Bracari (Bráca- Não deixa assim de ser interessante que recente-
m o t s c l é s
ros), e outro romano, retirado do epíteto do próprio mente se tenha descoberto um altar romano num de-
imperador, Augustus. saterro na área urbana de Braga, na periferia imedia- Époque romaine; Bracara Augusta (Braga);
Estava sancionada a origem sagrada de Bracara ta da antiga cidade romana. Sacralisation; Bronze.
Augusta. Assim o testemunham um conjunto de ins-
crições, das quais destacamos uma inscrição associa-
1 [...] CONDITVM•SVB•/IMP(eratoris)•CAESARIS•/PATRIS•PATRIAE
da à fundação ou refundação da cidade, hoje integra-
da na fachada do Largo D. João Peculiar (Fig. 1) 1. (ad. CIL. II 2421). Segundo MONTERO e PEREA (1996), esta inscrição data de
um momento aproximado entre 5 e 2 a.C. A reconstituição proposta por
Como tivemos oportunidade de salientar (MO- estes autores parece-nos sugestiva: [Fulgur dium (?)] / CONDITIVM SVB
RAIS 2005), é muito provável que esta inscrição pos- [divo ex iussu] / IMP(eratoris) CAESARIS [Augusti divi f(ilii)] / PATRIS PATRI
sa estar relacionada com a edificação de um templum [ae pontif(icis) max(imi)] / [ --- (HEp. – 07, 01162).

al-madan
III online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Num estudo recente (CARVALHO mento de cerâmica, aparentemente sem importância.


et al. 2006), sugere-se que este altar E, por vezes, exuma-se a mais bela peça sem lhe atri-
possa estar relacionado com o mo- buir o sentido último da sua existência.
mento fundacional da cidade, poden- Para nossa surpresa, numa das vitrinas do Museu
do fazer parte de um local de culto, de Arqueologia D. Diogo de Sousa, aberto ao públi-
provavelmente um pequeno templo, co muito recentemente, deparámos com dois peque-
um fanum 2, situado junto à via XIX, nos bronzes cujo significado tem passado despercebi-
que fazia a ligação Bracara Augusta do aos investigadores. Trata-se de um busto femini-
a Lucus Augusti (Fig. 2). Como sali- no em bronze encimado por uma coroa 4 (Fig. 3a, b),
entam os autores, esta peça é muito e uma coroa de maiores dimensões, que pensamos
interessante pelo facto de aí se assi- ter pertencido a uma estatueta similar (Fig. 4).
nalar em caracteres bem gravados (al- O primeiro bronze foi recuperado na Colina do
guns do tipo monumental), incluí- Alto da Cividade 5. Representa uma cabeça de Tyche
dos em tabula ansata 3, a inscrição ou Cibele, neste caso uma personificação da própria
SACRVM (consagrado). cidade. A cabeça está coroada por um diadema com
Será este um dos testemunhos a sete torres estilizadas delimitadas por um sulco em
que fazíamos alusão, ou somente ziguezague, que julgamos poder corresponder ao
mais um exemplo da importância número de portas da cidade. O rosto, ovalado, está
Fig. 2
sagrada da cidade? levemente inclinado para a direita e para baixo. A
expressão do rosto está acentuada pelo tamanho dos
olhos, grandes e salientes, com a íris marcada por um
2. Os dois bronzes de ponto, e pela representação das pálpebras acentuada
entidades tutelares recolhidos na cidade pela incisão das sobrancelhas. Os lábios (pouco per-
ceptíveis) estão entreabertos, vendo-se, em cima e
Nas últimas décadas, especialmente graças ao em baixo, dois pequenos pontos incisos. O cabelo re-
projecto integrado do “Salvamento de Bracara Au- parte-se em ondas simétricas, ocultando as orelhas e
gusta”, a cidade tem sido dada a conhecer. Mas da apanhado no alto da cabeça. Do chinó escapam-se
Dives Bracara, como se lhe refere Ausónio (Ordena- duas longas mechas ondulantes, que se dividem so-
ção das Cidades Famosas, XIV), muito está por re- bre os ombros. Apesar do estado de fragmentação do
velar. De segredo em segredo levanta-se o véu. bronze, vê-se parte de uma túnica de mangas curtas,
Pouco a pouco, pacientemente, camada descaídas, deixando os ombros nus; o fino paneja-
após camada, como se de um palimpses- mento permite fazer transparecer o volume dos
to se tratasse, “percorrem-se” as várias seios. Na manga conservada vê-se uma série de sul-
fases do urbanismo, dos vários edifícios cos dispostos em espinha. Entre o braço esquerdo e
que o compunham, e, como dádiva após o corpo figura um atributo que julgamos poder cor-
dádiva, é-nos dada a conhecer a sua es- responder a um símbolo ritual. Sobre este e o seu sig-
crita, gravada no abundante granito em nificado falaremos mais adiante. As características
que a região é rica ou num simples frag- acima descritas e a forma de representação da boca,
com os lábios entreabertos, pressupõe um trabalho
realizado no século II.
O segundo bronze foi recolhido sem contexto e
igualmente na Colina da Cividade. Corresponde, co-
mo referimos, a uma coroa, tendo-se apenas conser-
vado cinco das ondulações que compunham a peça.

Figs. 3a e 3b

0 3 cm

Fig. 4 0 3 cm

al-madan
online III
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
3. As representações de entidades
tutelares no mundo helenístico e romano

O motivo da coroa presente nestes dois bronzes


de Bracara Augusta é particularmente interessante.
Como se sabe, este tipo de representação era já co-
nhecido do mundo helénico, em particular como re-
compensa honorária nos jogos atléticos (PÍNDARO,
Odes Olímpicas IV.36; PLÍNIO, História Natural XV.
39). No mundo romano esta representação foi, to-
davia, redefinida. Grande é a variedade de usos, uti-
lizando-se diversos materiais, cada uma com uma
designação diferente e apropriada a uma finalidade
particular 6.
No caso presente dos dois bronzes de Braga es-
tamos perante coroas honoríficas, integráveis nas
designadas corona muralis. Sobre as origens deste 2 Sítio consagrado.
tipo de coroa dão-nos conta AULIO GÉLIO (Noites 3 Suporte ou marca de uma
Áticas V.6) e TITO LÍVIO (Desde a Fundação da Ci- inscrição romana de forma
dade XXVI.48), quando referem que esta era usada rectangular com ansas. No caso
desta inscrição, os lados são
para ofertar ao primeiro homem que escalasse uma
Fig. 5 reentrantes, em V, e é do vértice
muralha de uma cidade sitiada ou fortaleza inimiga, desse V que partem as ansas, em
e colocasse nelas um estandarte próprio. A coroa era jeito de cauda de andorinha.
realizada em ouro e decorada com umas pequenas 4 Este bronze foi estudado por
torres, recordando a proeza de quem a ostentasse. António José Nunes Pinto na sua
Tratava-se ainda de uma das mais altas condecora- tese de doutoramento, publicada
ções militares, apenas atribuída depois de acurada em 2002 pela Fundação Calouste
Gulbenkian (vd. PINTO 2002: 404,
investigação (TITO LÍVIO l. c.; SUETÓNIO, Vida de Au- est. 170).
gusto 25). É também atributo obrigatório da deusa 5 Esta peça foi encontrada em
Cibele ou Fortuna (LUCRÉCIO, Sobre a Natureza das 1977, no sector H 14b1, camada 8,
Coisas II, 607, 610; OVÍDIO, Fastos IV.219), sendo da Colina do Alto da Cividade. De
frequente associar-se à coroa uma torre e os torreões acordo com os antigos cadernos
de uma cidade. Neste caso, trata-se de uma nítida de campo, este bronze encontrava-
se “numa bolsa”, junto à superfície,
inspiração a partir de exemplares helenísticos de es-
acompanhado de outros materiais
cultura que representavam esta deusa, como aquela não datáveis. Uma análise mais
cópia romana (Museu do Vaticano) alusiva à cidade atenta dos perfis da escavação
de Antioquia (Fig. 5). Trata-se de uma obra atribuída permite constatar que se trata de
a Eutíquides de Sikyon (aluno de Lisipo), que a teria uma vala de saque de um muro
que se encontra associado a uma
esculpido em bronze depois de 300-290 a.C. Está
Fig. 6 construção que carece ainda de
representada sentada numa rocha, com um pé repou- interpretação.
sando no ombro de um jovem a nadar abaixo dela e 6 No Dictionary of Greek and
que personifica o rio Orontes. O antebraço direito es- Roman Antiquities reeditado por LL.
tá restaurado. A cabeça, ainda que antiga, é de outra D. William SMITH (1859), são
estátua. Possui uma coroa de torres que representa as mencionadas duas classes distintas
de coroas para a Época Romana: as
muralhas urbanas e na mão um molho de espigas,
honoríficas e as emblemáticas. As
símbolo da abundância. As direcções contrastantes primeiras eram conhecidas pelos
das pregas, cabeça, tronco e braços dão animação a seguintes nomes: I. Corona
uma posição relativamente calma da Tyche. Obsidionalis; II. Corona Civica; III.
Deste período conhecem-se também represen- Corona Navalis ou Rostrata; IV.
Corona Muralis; V. Corona Castrensis
tações em moedas com figuras femininas torreadas,
ou Vallaris; VI. Corona Triumphalis;
alusivas a deusas e a entidades tutelares das cidades. VII. Corona Ovalis; VIII. Corona
Na magnífica colecção de moedas gregas em ouro e Oleagina. Na segunda classe, a das
prata da Fundação Calouste Gulbenkian, figuram duas emblemáticas, eram designadas
moedas macedónicas alusivas à deusa Afrodite/As- por: I. Corona Sacerdotalis; II.
Corona Funebris e Sepulchralis; III.
tarte (Figs. 6 e 7) e, mais interessante, um conjunto
Corona Pactilis; IV. Corona Sutilis; V.
significativo de dez moedas com a esfinge de Tyche, Corona Tonsa ou Tonsilis; VI. Corona
Fig. 7
da Grécia Oriental e de cidades fenícias da costa Radiata; VII. Coroa com folhas de
asiática (vd. JENKINS e HIPÓLITO 1989). videira (pampinea).

al-madan
III online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

As primeiras estão represen- Fig. 10


tadas por dois exemplares do Mar
Negro (Figs. 8-9), da cidade de
Sinope (c. 250 e 200-160? a.C.,
respectivamente) e seis da região
costeira da Iónia (Figs. 10 a 15),
todas da cidade de Esmirna (as
Fig. 8 duas primeiras de c. 170-140 a.C.;
as restantes de c. 105-75/50 a.C.).
As duas moedas fenícias retratam
as cidades de Sídon (c. 61-62 a.C.)
e Tiro (c. 102-101 a.C.), duas das
maiores cidades daquela região
costeira da Ásia Menor (Figs. 16 Fig. 11
e 17).
Tal foi o sucesso destas repre-
sentações que encontramos ima-
gens semelhantes dispersas um
pouco por todo o Império 7. Na
Península, é já bem conhecida a
cabeça esculpida de Tycke ou
Fortuna encontrada em 1972 na
cidade de Itálica (Fig. 18). Cor-
responde a uma cabeça colossal
Fig. 9 da deusa com diadema e uma torre cilíndrica datada
do século II, atribuída a uma das melhores oficinas
de escultura daquela cidade (CORZO SÁNCHEZ 1999: Fig. 12
582).
O sucesso destas representações está ainda do-
cumentado em imagens com corona civica, com ca-
rácter mais ou mesmo oficial, cujos bustos, em co-
mum com as anteriores imagens, estão representados
com uma coroa com muralhas e torreões. Damos
como exemplo um denário de C. Sulpício Platorino
(Roma, 13 a.C.), onde se vê no anverso o busto de

Fig. 13

Fig. 14
Fig. 15

al-madan
online III
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 16

Fig. 17 Fig. 18

Agripa (Fig. 19), encimado por uma coroa com


muralhas e torreões ofertada por Augusto (ZANKER
1989: 231, fig. 168), ou de uma interessante escultu-
ra que recorda um cidadão de Thugga (hoje Dougga,
na Tunísia), honrado no templo de Saturno daquela
cidade, construído em 195 (Fig. 20). Neste último
caso, a personagem togada representa um beneméri- Fig. 21
to citadino, provavelmente no acto de realizar uma

Fig. 19

libação sacrificial; o atributo específico da coroa Fig. 20


com torres que encima o busto eleva-o certamente a
génio protector da cidade (BANDINELLI 1991: 218-
-221, fig. 202). Por vezes, estas imagens podem apre-
sentar interpretações híbridas, como no caso de uma 7 Refiram-se, entre outras, imagens de Tyche nos Museus Paul Getty

escultura encontrada no teatro de Leptis Magna (Malibu, Califórnia) e Torlonia (Roma, Lácio). A estas acrescente-se ainda
(Fig. 21). Esta imagem é frequentemente interpreta- outra que constava do catálogo da Sotheby’s (Antiquities) de 7 de Junho
de 2007 (pp. 100-101).
da como Ceres Augusta, uma divindade “materna”,
ainda que os traços do rosto e o penteado correspon-
dam na verdade à iconografia de Lívia (ZANKER
1989: 252, fig. 185).
al-madan
III online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Na Península, as imagens de Tyche, como per-


sonificações das cidades, estão maioritariamente do-
cumentadas em termas ou nas suas proximidades.
O famoso exemplar, já referido, encontrado em
Itálica foi recuperado nos jardins perimetrais das ter-
mas menores ou “de los Palacios” (CORZO SÁNCHEZ
1999: 582); outra imagem de
Tyche, datada do segundo quar-
tel do século II (Fig. 22), foi re-
cuperada perto de Tarragona, nu-
mas termas da uilla de “Els
Munts”, Altafulla (KOPPEL 1993:
222 e 233, fig. 2; 1999: 345).
Conhece-se ainda uma ca-
beça de Tyche de grandes pro-
porções (Fig. 23) em Mértola
(Beja), recuperada nas escava-
ções da Igreja da Misericórdia
daquela cidade (SOUZA 1990: 9,
fig. 1-2; INVENTÁRIO… 1995: 54-
-55), uma estatueta acéfala
(Fig. 24) representada segundo o
modelo helenístico, proveniente
da Quinta das Antas (Tavira)
(FABIÃO 2006: 45), e (com algu-
mas dúvidas) um fragmento
marmóreo (não ilustrado) recu-
perado em Chãos Salgados (Mi-
Fig. 22 Fig. 24
róbriga?), em depósito no Mu-
seu Municipal de Santiago do
Cacém (BARATA 1997: 20-21; Tal é o caso de uma coroa cultual, datada de
QUARESMA 2003: 14). A estes meados do século I, encontrada no acampamento
exemplares deve agora acres- legionário de Vetera I, em Fürstemberg (Xantos,
centar-se os dois bronzes reco- Alemanha), que estaria inserida numa estátua de
lhidos na Colina do Alto da Ci- pedra um pouco maior do que o tamanho natural
vidade, nas proximidades das (MENZEL 1978: 66-67).
termas romanas da cidade. Dos bronzes recolhidos em Braga cabe destacar
o mais completo, com o busto e parte superior do
corpo. Apesar do seu estado de fragmentação, vê-se
4. Exemplares em bronze de junto ao braço direito da figura feminina um atribu-
entidades tutelares to que nos parece poder ser interpretado como um
lituus 8. Trata-se de uma espécie de cajado usado
No mundo romano, conhe- pelos áugures, com o qual dividiam a área do céu em
cem-se alguns exemplares em regiões para realizar actos divinatórios (CÍCERO, Div.
bronze de figuras femininas en- I. 17; LÍVIO, Desde a Fundação da Cidade, I.18).
quanto entidades tutelares das Podemos vê-lo representado em diferentes suportes
cidades ou de representações do mundo romano, como, por exemplo, em moedas
(mais raras) da deusa Fortuna e relevos escultóricos. Como ilustração das pri-
que, à semelhança da anterior, meiras refira-se um aureus de Octaviano (36 a.C.),
Fig. 23
possuem uma coroa com a rep- onde se representa o templo do Divus Iulius (à data
resentação de muralhas. Exem- ainda em construção) e um denário de C. Antistio
plificamos aqui com dois bronzes encontrados na Veto (16 a.C.), com a representação dos quatro
Gália: o primeiro (Fig. 25) proveniente de Abbeville objectos sagrados, símbolos dos principais colégios
(Somme) (BOUCHER 1978: 51) e o segundo (Fig. 26) sacerdotais de Roma (Figs. 28 e 29); como exemplo
de Savigny-sous-Mâlain (Bourgogne) (ROUSSEL dos relevos escultóricos, refira-se um altar aos Lari
1978: 51). Conhecem-se também coroas isoladas em (Fig. 30), em cujo centro se vê a figura de Augusto,
bronze, outrora pertencentes a figuras tutelares de representado como áugure com littus (vd. ZANKER
bronze ou de pedra (Fig. 27). 1989: 39, fig. 26; 137, fig. 103; 133, fig. 101).
al-madan
online III
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 25

Fig. 27

Fig. 26

Fig. 28

Fig. 29

8 Insígnia dos augures, uma espécie de cajado recurvo em espiral que


se utilizava para traçar o templum no interior do qual eles observavam
os sinais divinos: fenómenos meteorológicos, voo das aves, movimento Fig. 30
dos animais terrestres, incidentes ocorridos durante os auspícios.

al-madan
III online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

5. Considerações finais sistia em reunir à sua volta uma grande multidão de


pessoas de origem obscura e humilde, fingindo que
Conhece-se agora a face da cidade. Da sacrali- a terra tinha feito brotar para si uma nova raça. E
dade fundacional da cidade já não restam dúvidas. no sítio onde existe agora uma cercadura, na encos-
Está pois sancionada a importância sagrada do solo ta situada entre os dois bosques sagrados, criou um
da vetusta Braga. Também esta, à semelhança de Ro- lugar de Asilo. Aí se veio a refugiar, oriunda das
ma, foi motivo de rituais sagrados que lhe propor- povoações vizinhas, uma turba de todo o tipo, cons-
cionaram uma importância cada vez maior. Relem- tituída por uma amálgama indistinta de homens
bremos assim Ausónio, na sua Ordenação das Cida- livres e de escravos, ansiosos por novas oportuni-
des Famosas (XIV), referindo-se a ela como Dives dades. E foi este o primeiro reforço da grandeza en-
Bracara, orgulhosa, portanto, da sua riqueza. tão iniciada.”
Edificantes ainda são as palavras de Tito Lívio (Tradução inédita de Delfim Leão)
(Desde a Fundação da Cidade, I.8.4-6), quando ten-
cionou expor a origem do povo romano e da funda- Bracara Augusta, à semelhança de Roma, teria
ção de Roma, cidade berço de todo o império. certamente proporcionado às populações que habita-
Diz aquele historiador o seguinte: vam a região condições favoráveis, levando-as a
“Entretanto, a cidade crescia, ocupando com as abandonar os locais de residência para aderir a um
suas muralhas uma extensão cada vez maior, já mais novo projecto, num local sagrado e agraciado com o
na expectativa de vir a acolher futuras multidões do nome do Imperador.
que os habitantes que então possuía. Em seguida, Resta-nos, de momento, contemplar a brônzea
para não deixar vazia uma cidade tão grande e para face da cidade, a da vetusta Bracara, protectora de
atrair uma população numerosa, [Rómulo] valeu-se todos os lares, que tranquilamente zelava pela ordem
da velha táctica dos fundadores de cidades, que con- estabelecida por Augusto.

Bibliografia

BANDINELLI, R. B. (1991) – Roma. La Fine KOPPEL, E. M. (1999) – “La Escultura Ideal Ro- ZANKER, P. (1989) – Augusto e il Potere delle
dell’Arte Antica. 5ª ed. Milano. mana”. In Hispania. El legado de Roma. Zara- Immagini. Torino.
BARATA, M. F. (1997) – “Ruínas de Miróbriga”. goza, pp. 338-349.
In Santiago de Cacém: da arqueologia à histó- MENZEL, H. (1978) – “Les Ateliers d’Artisans
ria. Pelo caminho das pedras. Santiago do Ca- Bronziers”. Dossiers de l’Archéologie. Fontai- Edições, comentários e traduções
cém: Museu Municipal de Santiago de Cacém, ne-les-Dijón. 28 : 58-71.
pp. 19-21. MONTERO, Santiago e PEREA, Sabino (1996) – ÁULIO GÉLIO
BOUCHER, S. (1978) – “Les Dieux de la Gaule “Augusto y el Bidental de Bracara (ad. CIL II, MARACHE, Réne (1978) – Aulu-Gelle. Les Nuits
d’Après les Monuments de Bronze”. Dossiers 2421)”. In BLÁZQUEZ, J. M. e ALVAR, J. (eds.). Attiques. Paris. Tome II. Livres V-X.
de l’Archéologie. Fontaine-les-Dijón. 28: 42-56. La Romanización en Occidente. Madrid: AUSÓNIO
CARVALHO, H.; ENCARNAÇÃO, J. d’; MARTINS, M. Editorial Actas, pp. 299-319. EVELYN-WHITE (1951) – Ausonius. Cambridge.
e CUNHA, A. (2006) – “Altar Romano Encon- MORAIS, R. (2005) – “Ab urbe condita. Desde a LCL (2 vols.).
trado em Braga”. Forum. Braga. 40: 31-41. fundação da cidade de Bracara Augusta”. Sa- LUCRÉCIO
CORZO SÁNCHEZ, R. (1999) – “Catalogo de Pie- guntum. Valência. 37: 125-138. ERNOUT, A. (1948) – Lucrèce. De la Nature.
zas”. In Hispania. El legado de Roma. Zarago- PINTO, A. J. N. (2002) – Bronzes Figurativos Ro- Paris. Tome Premier.
za, p. 582, n.º 135. manos em Portugal. Lisboa: Fundação Ca- PÍNDARO
FABIÃO, C. (2006) – A Herança Romana em Por- louste Gulbenkian (Textos Universitários de PUECH, Aimé (1949) – Pindare. Olympiques.
tugal. CTT Correios. Ciências Sociais e Humanas). Paris. Tomo I.
INVENTÁRIO do Museu Nacional de Arqueologia. QUARESMA, J. C. (2003) – “Terra Sigillata Sud- PLÍNIO-O-ANTIGO
Colecção de Escultura Romana (1995) – Lis- gálica num Centro de Consumo: Chãos Salga- ANDRÉ, J. (1960) – Pline L’ Ancien. Paris. Li-
boa: Comissão de Inventário do Património dos, Santiago do Cacém (Miróbriga?)”. Traba- vre XV.
Cultural Móvel / IPM. lhos de Arqueologia. Lisboa: IPA. 30. SUETÓNIO
JENKINS, G. K. e HIPÓLITO, M. C. (1989) – A Cata- ROUSSEL, L. (1978) – “Dieux Romains en Gaule: AILLUOD, H. (1931) – Suétone. Vies des Douze
logue of the Calouste Gulbenkian Collection of découverte à Mâlain de huit figurines en bron- Césars (César-Auguste). Paris. Tome I.
Greek Coins. Lisboa: Fundação Calouste Gul- ze gallo-romaines”. Archéologia. Fontaine-les- TITO LÍVIO
benkian. Part II (Text and Plates). Greece to -Dijón. 118: 48-51. BAYET, Jean e BAILLET, Gaston (1944) – Tite-
East. SMITH, LL. D. W. (1859) – Dictionary of Greek -Live. Histoire Romaine. Paris. Tome I. Livre I.
KOPPEL, E. M. (1993) – “La Escultura del Entor- and Roman Antiquities. 3ª ed. Londres, pp. JAL, Paul (1991) – Tite-Live. Histoire Romai-
no de Tarraco: las villae”. In NOGALES BASAR- 359-363. ne. Paris. Tome XVI. Livre XXVI.
RATE, Trinidad (coord.). Actas de la I Reunión SOUZA, V. (1990) – Corpus Signorum Imperii
sobre Escultura Romana en Hispania. Mérida, Romani. Corpus der Skulpturen der Römischen
pp. 221-238. Welt. Coimbra.

al-madan
online III
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Escavações Arqueológicas r e s u

Resultados de intervenção de Arqueo-


m o

logia urbana realizada em 2008 na área

no Quarteirão dos da cidade romana de Bracara Augusta


(Braga), onde se identificou parte do
traçado da Via XVII, importante eixo
viário de ligação a Asturica Augusta (As-
torga, Espanha).
Associado a esse troço de via, está pre-

Antigos CTT (Braga) sente uma necrópole de incineração e


de inumação com utilização entre os sé-
culos I e VII, bem como uma área arte-
sanal que inclui um forno de fundição de
vidro, em pleno funcionamento nos sé-
resultados preliminares culos V-VI.

p a l a v r a s c h a v e

Época romana; Período Suevo-Visigóti-


por Luís Fontes e Manuela Martins (*), Cristina Vilas Boas, José Braga, José Sendas e Fernanda Magalhães (**) co; Necrópole; Cremação; Vidro.

(*) Arqueólogos directores.


(**) Arqueólogos co-responsáveis.
a b s t r a c t

Results of the urban archaeology inter-


vention carried out in 2008 at the
Bracara Augusta (Braga) Roman city site,
where it was possible to identify part of
1. Introdução the Via XVII route, an important road
connection to Asturica Augusta (Astorga,
Spain).
m Janeiro de 2008 foram ini-

E ciados trabalhos arqueológi-


cos no quarteirão dos antigos
Correios de Portugal (CTT), situado na
A cremation and inhumation necropolis
used between the I and VII centuries
was found in the vicinity, as well as a
crafts area which includes a glass fusing
kiln used in the V-VI centuries.
Avenida da Liberdade, em Braga (Fig.1),
os quais têm por objectivo a sua esca-
k e y w o r d s
vação integral, uma vez que o mesmo
vai ser objecto de um projecto imobiliá- Roman times; Suevo-Visigothic Times;
rio de grande envergadura, que contem- Necropolis; Cremation; Glass.
pla a construção de caves.
Considerando as condicionantes ar-
queológicas existentes para esta zona de r é s u m é
Braga, onde desde os anos 40 do século
passado foram referenciados vários acha- Résultats de l’intervention d’Archéolo-
dos relacionados com a necrópole roma- gie urbaine réalisée en 2008 dans la zone
de la cité romaine de Bracara Augusta
na da Via XVII, a Unidade de Arqueolo-
Figura 1 (Braga), où a été identifiée une partie du
gia da Universidade do Minho (UAUM) tracé de la Voie XVII, important axe
assumiu a responsabilidade científica das Localização do quarteirão dos antigos CTT, Avenida da Liberdade, Braga (Folha 70; escala 1: 25000). routier de liaison avec Asturica Augusta
escavações, que se inserem no âmbito (Astorga, Espagne).
do Projecto de Salvamento e Estudo de Associée à ce tronçon de voie, se trou-
ve présente une nécropole d’incinéra-
Bracara Augusta. De entre os vestígios romanos mais significati-
tion et d’inhumation utilisée entre le Ier
As áreas intervencionadas até ao momento vos destacam-se um troço da via romana que revela et le VIIème siècle, ainsi qu’une zone
(Fig. 2) permitiram identificar vários vestígios roma- várias repavimentações, dois sectores da necrópole artisanale qui inclut un four de fonderie
nos, bem como estruturas modernas e contemporâ- situados, respectivamente, a Norte e a Sul da via e de verre, en plein fonctionnement aux
neas, associadas estas quer à Cerca do antigo Con- vários elementos associados a uma área artesanal de Vème et VIème siècles.
vento dos Remédios, quer aos jardins que se situa- produção de vidro.
m o t s c l é s
vam a Poente das casas que bordejavam a antiga Rua Este artigo pretende dar a conhecer alguns dos re-
d’Agoas, de origem medieval, destruída na primeira sultados mais relevantes da intervenção ainda em cur- Époque romaine; Période Suevo-visigo-
metade do século XX para a abertura da actual Av. da so, particularmente daqueles que se associam à via, thique ; Nécropole; Crémation; Verre.
Liberdade. à necrópole e ao complexo artesanal identificado.
al-madan
IV online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Estas representações demonstram que a via foi


fossilizada como caminho usado ao longo dos tem-
pos, tendo-se mantido até ao século XX. Os traba-
lhos arqueológicos em curso permitiram identificar a
longa utilização deste eixo viário, traduzida em su-
cessivas repavimentações.
Tendo por base os dados obtidos na escavação,
parece possível apontar três grandes fases de reorga-
nização deste importante eixo viário, datadas da
Época Romana, materializadas em alterações signi-
ficativas ao nível da largura, assim como em subs-
tanciais aumentos da cota do piso, particularmente
visíveis na parte Nascente da via. A sucessão de pa-
vimentações identificadas parece resultar da necessi-
dade de manutenção periódica que uma estrutura
desta natureza naturalmente exigiria.
A primeira fase construtiva da via sugere uma
engenharia relativamente simples, mas suficiente-
mente robusta e funcional para suportar a circulação.
Constatou-se a existência do statumen, que se situa-
va no eixo da via, correspondente a um nível de pe-
dras graníticas de diversas dimensões, integradas em
sedimentos areno-limosos. Sobre o statumen dispõe-
-se o rudus, constituído por níveis de areão granítico,
muito homogéneos e compactados, alternados com
depósitos de sedimentos areno-limosos que integram
raras pedras. A disposição do conjunto configura
uma morfologia abaulada ao centro da via, garantin-
do o necessário escoamento das águas para as valas
laterais.
A largura média do pavimento inicial deveria
Figura 2 2. A Via XVII aproximar-se dos 15 pés, não tendo sido detectados
quaisquer vestígios de calçada.
Localização das áreas
intervencionadas do quarteirão dos
Sob um corredor situado no interior do quartei- Não foram identificadas margines na parte Norte
antigos CTT / Arquivo UAUM. rão dos antigos CTT, que ligava o parque de estacio- do pavimento, que permanece por escavar. Em con-
namento da Portugal Telecom (PT) e o quintal de trapartida, no seu limite Sul foram identificados ves-
uma das casas com fachada para a Rua de S. Lázaro, tígios de muros que podem ter servido para susten-
foram identificados os vestígios de uma via, obser- tação lateral da via, recurso habitual para evitar alui-
vada numa extensão de cerca de 24 metros (Fig. 3). mentos pela força da água, causa fundamental da
A sua orientação O/E e a sua localização, no pro- destruição das calçadas romanas. Contíguo ao muro
longamento do que seria o eixo do decumanus má- corria um valado para drenagem das águas prove-
ximo da cidade romana, permitem considerar que es- nientes do pavimento.
tamos perante os vestígios da Via XVII do Itinerário A segunda grande fase de reorganização da via
de Antonino, que saía de Bracara Augusta pela por- corresponde a um substancial aumento dos enchi-
ta Nascente, fazendo a ligação a Asturica Augusta mentos de preparação do rudus, observando-se vá-
(Astorga, Espanha) por Aquae Flaviae (Chaves). rios níveis arenosos, sobrepostos e dispostos de for-
Através das evidências fornecidas pelas escava- ma a regularizar a superfície. Sobre estes foi aplica-
ções, sabemos agora que a Via XVII passava na zona da uma camada de saibro, com a espessura máxima
correspondente ao centro do quarteirão dos CTT, de 0,30 m, provavelmente misturada com cal e muito
traçado já sugerido pela análise da cartografia antiga compactada. Nesta fase, a via conheceu uma primei-
da cidade. Com efeito, o troço da via agora descober- ra deslocação para Norte, mantendo a mesma largu-
to encontra-se representado em diferentes plantas, ra, registando-se a presença de um valado contíguo
designadamente, no Mapa de Braga Primas de 1755, na parte Sul.
na planta topográfica de Francisco Goullard, datada O eixo longitudinal, zona abaulada da via, sobre-
de 1883-1884, e na planta de José Teixeira, de 1910, põe-se ao anterior, não tendo igualmente sido identi-
onde está representada a Cangosta das Águas. ficados quaisquer vestígios de calçada associada.
al-madan
online IV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
A terceira fase corresponde a uma re-
estruturação profunda da plataforma viária,
tendo-se registado uma deslocação da via
para Norte. A nova plataforma foi realizada
através da sobreposição de vários aterros de
nivelamento de matriz arenosa, misturados
com blocos graníticos de diversas dimensões,
que serviram para nivelar o terreno, entre os
quais se detectou um fragmento de uma este-
la funerária. Sob o pavimento foi identifica-
da uma espessa camada de preparação cons-
tituída por fragmentos de quartzo de diversas
dimensões, consolidados por meio de argila
e areia fina. O recurso ao quartzo prende-se
certamente com as características desta ma-
téria-prima, nomeadamente a sua dureza, que
seria suavizada pelo ligante em argila, forman-
do uma camada elástica, suficientemente du-
ra para sustentar a pressão sobre o pavimen-
to. Este nível específico pode corresponder ao
nucleus, ou seja, ao nivelamento de reforço
que era aplicado sempre que a génese do ter-
Figura 3
reno o exigia, tendo em vista o reforço da
solidez da via. Essa parece ter sido a situação Perspectiva da Via XVII na Área 1 / Arquivo UAUM.
no caso vertente, uma vez que o nível de quart-
zos apenas se detecta na parte da via que se
sobrepôs a enchimentos menos compactos, situados 3. A necrópole
a Norte do anterior traçado.
No troço escavado da via verificou-se que a 3.1. Antecedentes
mesma foi dotada de um dreno transversal, que per-
mitia a circulação da água de Norte para Sul, a favor A localização de uma necrópole nas imediações
da pendente. Trata-se de uma estrutura constituída do quarteirão dos antigos CTT de Braga era já co-
por paredes irregulares, coberta com grandes lajes nhecida anteriormente à realização das actuais esca-
graníticas, que drenava directamente para o vallum vações. Entre os numerosos achados sugestivos da
existente a Sul. existência de uma necrópole romana neste sector da
Reduzindo a largura da fase anterior, a via pas- cidade podem referir-se várias inscrições funerárias
sou a possuir um pavimento em calçada (summum e sepulturas, ou espólio associado.
dorsum), constituído por pedras graníticas de várias Assim, nas obras realizadas para a construção do
dimensões, compactadas em saibro e, presumivel- próprio edifício dos CTT, foram identificadas, ante-
mente, em cal. O pavimento identificado revelou ves- riormente a 1952, três estelas funerárias (CUNHA
tígios de uso, correspondentes ao desgaste longitudi- 1953; LE ROUX e TRANOY 1973: 186-191). Em fren-
nal dos rodados. Com esta terceira reestruturação, a te à fachada Nascente do referido quarteirão, perto
via passou a corresponder a uma plataforma per- do Largo do Rechicho, foram encontradas, em 1967,
feitamente horizontal, no sentido E/O, com mais de quatro sepulturas de incineração, três das quais em
1,20 m de altura relativamente ao solo original. cova e uma em caixa, feita de material laterício. No
Sobre a plataforma correspondente ao piso da mesmo ano e nos alicerces do prédio que faz gaveto
terceira fase da via foram sucessivamente sobrepos- entre a Av. da Liberdade e o Largo João Penha, foi
tos outros pavimentos, circunstancialmente observa- encontrada uma outra sepultura com restos de cre-
dos, que registam restos de calçada. Estes últimos mação que forneceu um significativo espólio votivo.
pavimentos encontram-se bastante mal conservados Nas suas imediações foi igualmente encontrada uma
devido aos rebaixamentos realizados no terreno por estela funerária (SOUSA 1973: 13; LE ROUX e TRA-
construções recentes. No entanto, é possível indivi- NOY 1973: 185).
dualizar mais três calçadas. Uma corresponderá a A bibliografia arqueológica refere ainda o acha-
uma fase talvez datada da Antiguidade tardia, sendo do de lucernas associadas a presumíveis sepulturas
a seguinte presumivelmente medieval e a mais re- procedentes da Rua do Raio, rua que limita o supra-
cente já da Época Moderna. citado quarteirão, a Sul (SOUSA 1966; 1973: 14).
al-madan
IV online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Também a Norte da Rua Gonçalo Sampaio, que Do conjunto das sepulturas detectadas até ao
constitui o limite setentrional do quarteirão, foram momento cabe destacar as que se articulam com o
encontradas duas estelas funerárias, uma procedente ritual da cremação, que apareceram em maior quan-
do muro da cerca do Convento dos Remédios (CIL tidade, sendo possível, todavia, assinalar a existência
2425) e outra presumivelmente da própria cerca, co- de algumas inumações em caixa, quer de forma rec-
nhecida desde o século XVIII (CIL 2431). tangular, quer com cobertura de duas águas, cons-
Nos inícios dos anos 80 do século passado, quan- truídas com material laterício, as quais se localizam
do se procedeu ao desaterro dos terrenos para a cons- todas na parte Norte do troço identificado da via ro-
trução do Centro Comercial de Santa Cruz (MARTINS mana.
e DELGADO 1989-90: 91), foram destruídas numero-
sas sepulturas, tendo sido apenas possível escavar 3.2.1. Sepulturas associadas ao ritual de cremação
uma delas, que se encontrava no limite do terreno.
Trata-se de uma sepultura em caixa feita de tijoleiras As áreas escavadas até ao momento permitiram
que ofereceu um rico espólio votivo, datado dos iní- detectar um total de 17 urnas funerárias associadas
cios do século II (DELGADO 1984). ao ritual de cremação, depositadas em covas sim-
Também em 1994, quando se procedeu à abertu- ples, maioritariamente de perfil em U, com profun-
ra do túnel de ligação à Avenida Central, foram iden- didade, largura e comprimento variáveis.
tificadas e escavadas algumas sepulturas na parte Apesar do estado de relativa destruição de algu-
Leste da Av. da Liberdade. mas das sepulturas identificadas, foi possível detec-
Outros achados que podem ser articulados com tar alguns enterramentos bem conservados, que pre-
esta necrópole são as várias inscrições funerárias servaram as urnas, predominantemente em cerâmica
descobertas em diferentes momentos nos terrenos de fabrico comum, que continha restos ósseos cre-
envolventes do Hospital de S. Marcos (VASCON- mados.
CELOS 1918: 360; SOUSA 1973: 14; OLIVEIRA 1978: Sob uma das sepulturas de inumação em caixa,
28; CIL 2442), que se encontram mais próximos dos foi identificada a Sep. II, implantada no saibro, que
limites da cidade romana e da sua porta Nascente, se destaca das demais. Na verdade, tudo leva a con-
que deveria situar-se perto do limite actual da Rua siderar que o enterramento dos restos da cremação
dos Falcões, que assinala o traçado do sector Nas- foi feito em caixa de madeira, da qual se identifica-
cente do decumanus máximo (MARTINS 2004). ram as ferragens, juntamente com um conjunto voti-
As escavações realizadas pela Unidade de Ar- vo bastante rico, constituído por um pequeno pote de
queologia, em 1987, nos terrenos adjacentes à cha- cerâmica comum, três amuletos em faiança egípcia,
mada “Cangosta da Palha” permitiram identificar uma conta de madeira, uma medalha de bronze e
um conjunto significativo de sepulturas associadas a uma lucerna de produção centro-itálica. Este enterra-
esta necrópole, sendo de destacar algumas de inci- mento foi datado dos inícios do século I.
neração e um grupo bastante mais significativo de Digna de destaque é a sepultura individualizada
sepulturas de inumação datadas da Antiguidade tar- como Sep. XX, também ela com matérias ósseas
dia (MARTINS e DELGADO 1989-90: 104-142). cremadas, em cova simples, em forma de U alonga-
O conjunto dos achados supracitados permitia do. Possuía uma urna selada por um bloco granítico
antever o interesse arqueológico da área correspon- de talhe e forma irregulares, sistema que é bastante
dente ao quarteirão dos antigos CTT onde se pre- recorrente neste núcleo da necrópole (Fig. 4). Após a
sumia ser possível encontrar vestígios conservados remoção do bloco foi possível observar a presença
da necrópole da Via XVII, hipótese que veio a ser de uma taça de vidro canelada, de cor verde azulado,
comprovada pelas escavações já realizadas. bastante fragmentada, que fechava o topo da urna.
Esta albergava no seu interior restos de cremação e
3.2. Resultados da intervenção em curso um pequeno unguentário.
Paralelamente, foi identificada uma extensa
Os trabalhos de escavação arqueológica realiza- mancha de cinzas, misturadas com fragmentos de
dos até ao momento colocaram a descoberto uma carvão e vestígios de material osteológico cremado
área de necrópole com cerca de 480 m², permitindo (Sep. XIII). Este enterramento destaca-se pelo espó-
registar uma grande concentração de sepulturas na lio votivo que forneceu, que compreende duas lucer-
metade Poente do quarteirão, quer a Norte, quer a nas inteiras e uma outra fragmentada, associadas a
Sul do troço identificado da Via XVII. uma moeda onde se identifica o busto do imperador
A grande maioria das sepulturas encontrava-se Trajano com a seguinte legenda [IMP CAES NER-
implantada na área de alteração granítica, a qual VA] TRAIAN AVG GERM. Tendo em conta o con-
parece ter sofrido um processo de regularização para junto votivo identificado, é possível sugerir para esta
obtenção de uma área nivelada, cuja superfície fun- sepultura uma cronologia em torno dos finais do
cionaria como solo de circulação da necrópole. século I-inícios do século II.
al-madan
online IV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 4

Urna cinerária (Sepultura XX) / Arquivo UAUM.

Nas imediações dos enterramentos anteriores


assinalámos a presença de uma outra sepultura,
Sep. XVII, correspondente a uma fossa com cerca de
0,45 m de profundidade, que se encontrava preenchida
por um enchimento homogéneo composto por abun-
dantes carvões, cinzas e restos ósseos cremados, que
se dispunham sobre uma urna, em cerâmica comum,
selada por uma massa endurecida (Fig. 5).
O enterramento assinalado como Sep. XXI pos-
sui a particularidade da urna cerâmica ter sido colo-
cada no interior de uma estrutura muito tosca, com-
posta por quatro lascas de granito dispostas vertical-
mente, que formavam uma espécie de caixa de pe-
dra. Nas imediações da sepultura foi descoberta uma
urna em vidro, depositada numa fossa simples, ajus-
tada à medida do vaso.
Dignas de referência são ainda algumas estrutu-
ras identificadas que parecem articular-se com a uti-
lização da necrópole. Uma delas caracteriza-se por
um conjunto de três sapatas de muros, com os res-
pectivos alicerces, que parecem definir um recinto
funerário, onde foram reconhecidos os vestígios da
preparação de um pavimento que deveria definir o
espaço interior do presumível recinto.
Foi ainda assinalada a presença de outras duas
sapatas, com cerca de 4 x 1,80 m, admitindo-se que
possam pertencer a uma outra construção de funcio-
nalidade desconhecida. No entanto, não seria estranho
que a mesma pudesse estar relacionada com a monu-
mentalização do espaço funerário (CAETANO 2002:
315), podendo corresponder ao suporte de um altar
ou de uma edícula, completamente destruídos. de uma urna de pedra, de forma oval, seccionada a Figuras 5 e 6
No espaço contíguo a estas estruturas, foi identi- meio da sua altura e selada por quatro grampos de
Em cima, urna cinerária em fossa
ficado um enterramento em que o ossilegium (SILVA ferro, colocados a uma distância de 0,35 m entre si (Sepultura XVII) / Arquivo UAUM.
2007: 25) foi depositado directamente numa fossa (Fig. 6). A peça tem uma altura de 0,55 m e um diâ-
pouco profunda, que revelou, para além dos restos metro aproximadamente com 0,45 m. Embora pos- Em baixo, urna em pedra
ósseos da cremação, abundantes cinzas e carvões. sua uma tipologia rara, esta urna possui paralelos na encontrada na Sondagem 3 /
Neste enterramento não foi exumado qualquer tipo cidade de Uxama, onde foram encontradas três peças Arquivo UAUM.
de espólio votivo, sendo, contudo, possível balizá-lo semelhantes com uma cronologia júlio-claudiana
cronologicamente nos finais do séc. I, tendo em con- (ABÁSOLO ALVAREZ 2002: 152).
ta a datação do nível que sobrepõe o enterramento. Até ao momento não foram encontrados elemen-
Digna de referência é ainda a urna identificada na tos epigráficos, ou qualquer outro sistema de sinaliza-
parte Sudeste do quarteirão, na sondagem 3. Trata-se ção em conexão com os enterramentos observados.
al-madan
IV online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

3.2.2. Sepulturas de inumação

Na área situada na parte Noroeste do quarteirão,


correspondente à sondagem 1, foram descobertas
quatro sepulturas em caixa de duas águas. Deste con-
junto merecem destaque três delas, devido às suas
particulares condições de conservação, bem como
aos materiais que incorporaram.
Duas destas estruturas (Sep. I e VI), com orien-
tação E/O, formadas por paredes e lastro de tégulas,
com juntas fechadas com ímbrices e pedras, permiti-
ram exumar dois esqueletos inteiros, em mau estado
de conservação (Esqueletos n.ºs 5 e 6), correspon-
dentes a um indivíduo adulto e a um outro jovem
(Figs. 7 e 8).
Uma outra sepultura, presumivelmente uma cai-
xa de duas águas, com orientação N/S (Sep. III), in-
corporou na composição do lastro um conjunto de ti-
joleiras trapezoidais, que apresentavam na parte mais
estreita uma decoração ondulada. Este facto permite
supor que podemos estar na presença de elementos
arquitectónicos em material laterício reaproveitados,
os quais formariam parte do arco de uma porta de um
possível mausoléu. Neste enterramento, atestou-se a
presença de restos de matéria orgânica (não identifi-
cada), à mistura com restos de material osteológico
(Esqueleto n.º 3).
Foram ainda detectadas duas caixas de secção
rectangular. Uma delas, identificada no limite da
sondagem 1 (Sep. XXXII), não foi ainda escavada.
Uma outra, bastante destruída por uma extensa vala
(Sep. VII), forneceu apenas os vestígios de uma man-
díbula humana (Esqueleto n.º 4).
Uma das inumações identificadas corresponde a
um enterramento feito em cova simples (Sep. VIII),
com a deposição feita directamente sobre o solo.
Nesta sepultura foi possível detectar os membros in-
feriores de um esqueleto em mau estado de conser-
vação (Esqueleto n.º 1).
Nenhum dos enterramentos referidos forneceu
qualquer tipo de espólio que permitisse definir a sua
cronologia. Todavia, atendendo às características ti-
pológicas das sepulturas e à cerâmica associada aos
enchimentos que as rodeiam, é possível admitir que
estamos perante um nível de utilização da necrópole
que pode ser balizado entre os séculos IV-V e o sécu-
lo VII.

4. A área artesanal

Na zona escavada até ao momento no quadrante


Sudeste do quarteirão foi possível identificar um
Figuras 7 e 8 conjunto de vestígios que sugerem a existência de
uma área artesanal, situada a Sul da via, onde pare-
Sepultura de inumação em caixa de duas águas e respectivo enterramento /
Arquivo UAUM.
cem estar ausentes os enterramentos.
Os vestígios exumados, que contemplam vestí-
gios de muros, dois tanques, a base de um forno de
al-madan
online IV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
fundição de vidro, bem como restos de fabrico, de- fundição de vidro. No interior deste espaço foram
signadamente fragmentos de lingotes de vidro e de identificados alguns embasamentos, feitos com
peças acabadas, permitem afirmar que estamos pe- grandes blocos graníticos, predominantemente qua-
rante um estabelecimento artesanal, localizado extra- drangulares, que serviam para assentar silhares, um
muros, anexo à via e contíguo a uma área da necró- dos quais se encontrava in situ, presumivelmente
pole onde se registam apenas incinerações. destinados a sustentar elementos de pedra ou de ma-
As estruturas que poderão estar relacionadas deira que suportariam uma cobertura.
com a ocupação inicial da área artesanal encontram- Nesta fase regista-se uma expansão da área arte-
-se reduzidas praticamente às fundações. sanal para Norte, ocupando parte da via. Este facto
Salvaguardando o facto de não se ter concluído encontra-se assinalado pela implantação de grandes
ainda a escavação da totalidade deste espaço arte- silhares, de forma quadrangular, para criação daqui-
sanal, podemos admitir que a primeira fase de ocu- lo que julgamos poder corresponder a um pórtico,
pação está relacionada com a construção de um con- que resguardaria a zona de entrada da oficina. Para-
junto delimitado por um forte muro com aparelho de lelo ao alinhamento dos silhares encontra-se um mu-
tipo opus vittatum, com cerca de 0,60 m de largura, ro, orientado E/O, de características semelhantes aos
orientado N/S, reforçado por uma sapata de arga- anteriormente referidos, identificado no perfil da son-
massa muito consolidada. Este muro serve de limite dagem 5. Torna-se claro que o volume de constru-
a dois pequenos tanques que se desenvolvem para ções implantadas sobre as preparações da via elevou
Nascente, apenas parcialmente escavados. o nível de circulação da mesma, fazendo-a avançar
O reforço do muro, bem como a separação dos para Norte, naquela que foi considerada a terceira re-
tanques utilizam paredes de tijoleira, consolidadas modelação deste eixo viário.
por uma boa argamassa de cal e areia. Os tanques Na parte Poente da sondagem 5 foram encontra-
apresentam dois tipos de revestimento: o da base, dos os vestígios de um forno de fundição de vidro de
constituído por uma argamassa bastante semelhante tipologia romana, composto por uma câmara de fun-
ao opus signinum, ainda que mais friável, e o das pa- dição circular, com cerca de um metro de diâmetro,
Figura 9
redes, constituído por uma argamassa de opus signi- ligada a uma câmara de alimentação de calor, de for-
num mais depurada e consolidada. ma trapezoidal, com cerca de 1,50 m de comprimen- Base de um forno de fundição de
Ainda não se encontra definido o conjunto de es- to (Fig. 9). vidro / Arquivo UAUM.
truturas que pode ser enquadrado numa segunda fase
de utilização desta área artesanal, pese embora a
identificação de alguns muros que podem ser atribuí-
dos a este momento construtivo. Entre eles desta-
cam-se os vestígios de dois muros paralelos, orienta-
dos E/O, com cerca de 0,52 m de largura, que regis-
tam uma técnica construtiva bastante semelhante,
recorrendo a argamassas de argila idênticas. É de
supor que fechassem um compartimento, já que dei-
xam adivinhar uma relação de contemporaneidade
não só pela semelhança formal dos aparelhos, mas
também pelo facto de assentarem directamente em
cima das estruturas precedentes, reaproveitando, num
dos casos, parte da parede de um dos tanques.
Paralelamente foram identificados pavimentos e
aterros de enchimento que fornecem os fragmentos
de “casco” de fundição de vidro, constituído por vi-
dros partidos, pingos, escórias e peças imperfeitas
(CRUZ 2001: 36). Deste modo, é provável que os dois
muros representem o que inicialmente começou por
ser a área artesanal já dedicada à produção de vidro,
embora esta hipótese tenha que ser confirmada
aquando do alargamento da área de escavação para
Nascente. Na parte melhor preservada da estrutura per-
Uma fase posterior de utilização deste espaço cebe-se um arranque da parede abobadada de cober-
prende-se com a construção de dois grandes muros, tura da câmara, formada por tijoleiras sobrepostas,
com orientação E/O, com aparelho composto por revestidas de argila, tanto no interior, como no exte-
blocos regulares e material de construção. Estes dois rior. Este revestimento destinava-se a isolar a câmara
muros parecem definir os lados Norte e Sul de uma e a garantir a conservação das altas temperaturas ne-
grande área onde se terá instalado uma oficina de cessárias à fundição do vidro.
al-madan
IV online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

As unidades sedimentares identificadas como As escavações permitiram ainda testemunhar a


aterros de lixo da oficina ou aterros de demolição utilização do espaço anexo à via, quer como área de
forneceram elementos que se ligam inequivocamen- necrópole, quer como área artesanal.
te à produção vidreira. Entre eles contam-se alguns No que respeita à necrópole é possível admitir,
fragmentos de tijoleira com pasta de vidro, fragmen- face aos dados disponíveis, que as áreas de enterra-
tos de cadinhos, escórias, espuma, fragmentos de mento tenham variado ao longo dos tempos. Com
anilhas, pingos e repuxados, bem como canas e pon- efeito, a maioria dos enterramentos que se associam
téis de vidreiro e inúmeros fragmentos de “casco”, ao ritual de cremação concentram-se na parte a Sul
ou seja, uma amálgama de pequenos fragmentos que da via, enquanto as inumações surgem apenas a
não foram alvo de reciclagem (CRUZ 2001: 37). Entre Norte da mesma, algo que parece confirmado pela
o material recolhido foram ainda descobertos frag- escavação do núcleo de sepulturas de inumação da
mentos de lingotes de vidro (vidro em bruto), facto “Cangosta da Palha”, realizada em 1987, o qual se
que permite considerar que esta oficina não reali- inscreve na mesma necrópole (MARTINS e DELGADO
zaria a produção primária de vidro, que exigiria uma 1989-90).
instalação artesanal mais elaborada (FUENTES et al. Neste sentido, parece possível admitir que no
2001: 161). Alto Império os enterramentos se fizeram de ambos
O estabelecimento artesanal identificado parece os lados da via, enquanto na Antiguidade tardia eles
ter estado em pleno funcionamento ainda durante os passam a privilegiar a parte Norte. Este facto poderá
séculos V-VI, ocupando uma área de construção ex- estar relacionado com a utilização artesanal de al-
tensa, numa das principais saídas da cidade. guns dos espaços anteriormente usados como necró-
A última fase construtiva deste espaço surge re- pole.
presentada pela implantação de muros, provavel- Os dados obtidos nesta intervenção são bastante
mente na época medieval ou moderna, que compar- relevantes no que respeita ao conhecimento da evo-
timentam a área oficinal, obliterando completamente lução dos rituais funerários em Bracara Augusta.
a organização daquele amplo espaço. O que restou Por outro lado, merece destaque o facto do sector es-
dessas estruturas foram apenas os enchimentos das cavado da necrópole revelar vestígios de cremação,
valas de saque, os negativos das valas de fundação e, que incluem abundantes fragmentos de ossos, situa-
por vezes, alguns elementos do lastro e das sapatas ção que nunca havia sido registada nas escavações
dos muros que escaparam ao saque. anteriormente realizadas nas diferentes necrópoles
de Bracara Augusta (MARTINS e DELGADO 1989-90).
O bom estado de conservação dos restos de crema-
5. Considerações finais ção, grande parte dos quais depositados em urnas, irá
permitir realizar estudos antropológicos que se con-
Pese embora o facto das escavações realizadas figuram susceptíveis de fornecer dados relativos ao
até ao momento terem permitido identificar algumas ritual de cremação, bem como às populações ali en-
estruturas reportáveis ao período moderno e contem- terradas. Neste contexto, importa referir também a im-
porâneo, que se sobrepõem à ocupação tardo antiga portância da detecção de material osteológico asso-
desta zona de Braga, os vestígios mais significativos ciado ao ritual de inumação, datado da Antiguidade
que foram encontrados são os que se reportam à uti- tardia, o que constitui uma novidade no quadro dos
lização do espaço suburbano da Braga romana e tar- conhecimentos relativos aos espaços funerários co-
do antiga. nhecidos até ao momento.
A identificação de um troço da Via XVII, asso- Resultado não menos importante é o que se rela-
ciado a um sector da respectiva necrópole e a uma ciona com a identificação de uma área artesanal liga-
área artesanal, com uma longa ocupação, represen- da à produção do vidro, contígua à necrópole. Tra-
tam um inestimável contributo, não só para o estudo tando-se do primeiro espaço deste tipo escavado em
dos vestígios referidos, como também para o conhe- Braga, ele vem confirmar a convivência dos espaços
cimento do modo como se organizava e evoluiu um de enterramento com zonas fabris, à semelhança do
espaço periférico da cidade romana, cruzado por um que acontece noutras cidades, designadamente em
importante eixo viário que ligava Bracara a Asturi- Mérida, onde foram identificadas várias oficinas de
ca, articulando igualmente a cidade com a rica veiga cerâmica e de vidro nas áreas periféricas da cidade,
do rio Este. junto a necrópoles (NOGALES BASARRATE e MAR-
A escavação da via permitiu verificar as suas ca- QUEZ PÉREZ 2002: 114-115).
racterísticas construtivas e a sua longa permanência Por outro lado, o registo deste espaço fabril pa-
como eixo viário, conseguida com sucessivas repa- rece documentar um processo característico das ci-
vimentações. Estas, permitiram ir subindo a cota da dades romanas relacionado com o progressivo afas-
via, diminuir-lhe a pendente E/O, horizontalizando-a tamento das actividades artesanais para a periferia
e, finalmente, deslocá-la para Norte. urbana, quer por razões de segurança, quer devido à
al-madan
online IV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
pressão urbanística que exigia o alargamento das ELENA, G. A.; MAR, R. e MARTINS, M. (2008) – “A Fonte
áreas habitacionais (FUENTES et al. 2001: 26). do Ídolo: análise, interpretação e reconstituição do san-
Se considerarmos que os vestígios detectados se tuário”. Bracara Augusta. Braga: UAUM / NARQ (Esca-
localizam na proximidade do santuário da Fonte do vações Arqueológicas, 4).
FUENTES, Angel; PERALTA, Juan Á. Paz e PALOMAR, Es-
Ídolo (ELENA et al. 2008) e perto de um presumível
peranza Ortiz (2001) – Vidrio Romano en España: la re-
balneário, identificado a Sudoeste, na zona dos Gran- volución del vidrio soplado. Real Fabrica de Cristales de
jinhos, vemos ainda mais reforçado o carácter pluri- la Granja, Fundación Centro Nacional del Vidrio.
funcional desta área suburbana de Bracara Augusta, LE ROUX, P. e TRANOY, A. (1973) – “Rome et les Indigènes
que regista um grande dinamismo desde o Alto Im- dans le NO de la Péninsule Ibérique: problèmes d’épi-
pério até à Antiguidade tardia. graphie et d’histoire”. Mélanges de la Casa de Velaz-
quez. Madrid. 9: 177-231.
MARTINS, M. (2004) – “Urbanismo e Arquitectura em Bra-
cara Augusta. Balanço dos contributos da Arqueologia
Urbana”. In Simulacra Romae. Roma y las Capitales
Provinciales del Occidente Europeo. Estudios Arqueo-
lógicos. Tarragona, pp.149-173.
Bibliografia MARTINS, M. e DELGADO, M. (1989-90) – “As Necrópoles
de Bracara Augusta. A. Os dados arqueológicos”. Ca-
ABÁSOLO ALVAREZ, J. A. (2002) – “El Mundo Funerario dernos de Arqueologia. Braga. Série II. 6-7: 41-187.
Romano en el Centro y Norte de Hispana: aspectos dife- NOGALES BASARRATE, T. e MÁRQUEZ PÉREZ, J. (2002) –
renciales”. In VAQUERIZO, D. (ed). Actas del Congreso “Espacios y Tipos Funerarios en Augusta Emerita”. In
Internacional Espacios y Usos Funerarios en el Occi- VAQUERIZO, D. (ed). Actas del Congreso Internacional
dente Romano. Córdoba: Universidad de Córdoba. Vol. I, Espacios y Usos Funerarios en el Occidente Romano.
“Seminario de Arqueología, pp. 145-162. Córdoba: Universidad de Córdoba. Vol. I, “Seminario
CAETANO, J. C. (2002) – “Necrópoles e Ritos Funerários no de Arqueología, pp. 113-144.
Ocidente da Lusitânia Romana”. In VAQUERIZO, D. (ed). OLIVEIRA, E. P. (1978) – “O Salvamento de Bracara Au-
Actas del Congreso Internacional Espacios y Usos Fu- gusta. 4. Apontamentos arqueológicos de Braga de José
nerarios en el Occidente Romano. Córdoba: Universidad Teixeira”. Minia. Braga. 2ª Série. 1 (1): 20-44.
de Córdoba. Vol. I, “Seminario de Arqueología, pp. 313- SILVA, F. C. (2007) – “Abordagem ao Ritual Funerário da
-334. Cremação”. Al-Madan. IIª Série. 15: 40-48.
CRUZ, Mário da (2001) – Vidros Romanos de Bracara Au- SOUSA, J. J. R. (1966) – “Inventário de Materiais para a Ar-
gusta. Dissertação de Mestrado em Arqueologia. Braga: queologia Bracarense (Lucernas)”. Bracara Augusta.
Universidade do Minho. Braga. 20 (43-44): 165-178.
CUNHA, A. da (1953) – “Novíssimas Inscrições Romanas SOUSA, J. J. R. (1973) – “Subsídios para a Carta Ar-
de Braga”. Bracara Augusta. Braga. IV (4): 242-252. queológica de Braga”. Studia Archeologica. Santiago de
DELGADO, M. (1984) – “Sepultura Romana Encontrada Compostela – Valladolid. 23.
Junto ao Largo Carlos Amarante”. Lucerna. Porto, pp. 179- VASCONCELOS, J. L. (1918) – “Braga Romana”. O Arqueó-
-196. logo Português. Lisboa. 23: 356-360.

PUBLICIDADE

AGENDA ONLINE
toda a informação...
... à distância de alguns toques

reuniões científicas | acções de formação


novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt

al-madan
IV online
adenda
9 electrónica
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
A Necrópole Romana r e s

Abordagem do universo funerário,


u m o

paleodemográfico e morfométrico

da Quinta da Torrinha / da necrópole romana da Quinta da


Torrinha / Quinta de Santo Antó-
nio (Almada), datada dos séculos III
a V d.C.
Os autores integram os dados an-
tropológicos de campo e de labo-

/ Quinta de Santo António ratório, sintetizando as práticas e a


arquitectura funerária, bem como
os indicadores que permitem saber
mais sobre os habitantes da região
à época.

Monte da Caparica (III-V d.C.) p a l a v r a s

Época romana; Antropologia; Prá-


c h a v e

ticas funerárias; Arquitectura fune-


incursão ao universo funerário, rária.

paleodemográfico e morfométrico
a b s t r a c t

Account of the funeral, palaeode-


mographic and morphometric uni-
verse of the Roman necropolis at
por Sandra Assis (*) e Rui Pedro Barbosa (**) the Quinta da Torrinha / Quinta de
Santo António (Almada), from the
(*) Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamen- 3rd to the 5th centuries AD.
to de Antropologia, Universidade de Coimbra The authors integrate anthropolog-
(sandraassis78@yahoo.com). ical laboratory and field data, sum-
(**) Palimpsesto: Estudo e Preservação do Património Cultural Lda marising the funeral architecture
(halbarbosa@yahoo.com). and rites and the indicators that
provide more information on the
region’s inhabitants at the time.

k e y w o r d s
1. Introdução
Roman times; Anthropology; Funeral
e entre os receios que povoam a mente minantes para a construção dos perfis populacionais

D
rites; Funerary architecture.
humana, a morte e o reflexo negativo que (LARSEN 2002). Em suma, o esqueleto humano é um
exerce sobre os grupos humanos, ocu- reflexo de vida na morte, é uma pista descurada pela
pam, indiscutivelmente, um lugar cimeiro, tendo con- mesma, que capacita um diálogo profícuo entre r é s u m é
dicionado temporalmente práticas e comportamen- mundos antagónicos, o mundo dos vivos e o mundo
tos sociais. A morte caracteriza-se por introduzir um dos mortos. Approche de l’univers funéraire,
terminus no percurso ontogénico dos indivíduos, obli- paléo-démographique et morpho-
terando experiências e vivências aparentemente irre- 1.1. O universo funerário romano métrique de la nécropole romaine
de la Quinta da Torrinha / Quinta
cuperáveis, mas não é a assassina perfeita… (ASSIS de Santo António (Almada), datée
2005). O comportamento funerário romano assentava du IIIème au Vème siècle a. J-C.
O esqueleto humano, objecto de estudo da ciên- no pressuposto de que a alma sobrevivia para além Les auteurs intègrent les données
cia paleoantropológica, é uma prova inquestionável da morte. Como tal, era determinante oferecer ao anthropologiques de terrain et de
da morte física. No entanto, a sua leitura cuidadosa morto um espaço que se assemelhasse, em tudo, à laboratoire, synthétisant les prati-
ques et l’architecture funéraire, ain-
permite recuperar pistas fulcrais para a reconstrução habitação e modos de vida terrenos. Subscrevendo si que les indicateurs qui permet-
das populações do passado, já que os ossos registam CLEARY (2000: 127), “gone but not forgotten […] tent d’en savoir plus sur les habi-
episódios da vida dos indivíduos relativos aos pa- the dead may form an extension of the society of the tants de la région à l’époque.
drões ocupacionais, à dieta, à saúde e à doença, aos living, indeed they may have a society (often idea-
estilos de vida, entre muitos outros (LARSEN 2000; lised) of their own over against that of the living m o t s c l é s
ROBERTS e GRAUER 2001). […]”. Deste modo, toda a simbologia utilizada no Époque romaine; Anthropologie; Pra-
Concomitantemente, fornecem informações re- ritual funerário deveria materializar a vida social, tiques funéraires; Architecture funé-
lativas à ancestralidade e a determinados atributos como “[…] an interpretation of the meaning of dai- raire.
biológicos, tais como o sexo e a idade à morte, deter- ly life” (MORRIS 1992: 1).
al-madan
V online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Se para alguns períodos, os mortos eram inuma- pologia. Apesar de surpreendente, esta descoberta não
dos na proximidade das habitações, na Época Ro- foi inusitada. De facto, SANTOS e co-autores (1996:
mana o espaço funerário localizava-se fora da área 229) apontam a existência de vestígios de ocupação
habitacional, mas a curta distância. Apesar dos ro- romana, quer como villae, quer como necrópole, “[…]
manos nutrirem um profundo respeito pelos seus an- nos terrenos actualmente ocupados pela Universi-
cestrais, não deveria haver mistura entre o universo dade Nova de Lisboa no Monte da Caparica […]”.
dos vivos e dos mortos (FRADE e CAETANO 1995; Neste âmbito é descrita a presença de “[…] diversas
MORALES 1999). Esta medida tinha subjacentes pre- sepulturas de inumação, com caixa e cobertura em
ocupações de natureza sanitária e algum medo de tijoleira, sem qualquer espólio” (IDEM: 230).
corrupção da alma, já que a morte era tida como uma A intervenção arqueológica revelou estarmos
fonte de poluição social, que impunha aos sobre- perante uma necrópole de inumação, de período ro-
viventes toda uma ritualização funerária de purifica- mano, com uma cronologia compreendida entre os
ção (TOYNBEE 1971). O funus 1 translaticum inicia- finais do século III e inícios do século V (BARBOSA
va-se no momento da morte. Na eminência do fim, e ALDANA 2006).
os familiares e amigos acercavam-se do moribundo, A datação proposta fundamenta-se não somente
cabendo ao parente mais próximo dar-lhe o último pela presença de uma moeda do reinado de Maxi-
beijo, como forma de capturar a alma (IDEM). Ainda mianus Herculius, cunhada em Londres entre os anos
segundo o mesmo autor, o defunto era posteriormen- de 306-308 d.C. (SUTHERLAND e CARSON 1967), em
te preparado, velado e ungido e transportado para o relação directa com o Ossário 1, mas também pelos
cemitério. À chegada à necrópole, o morto era sepul- vestígios anfóricos que se encontravam a cobrir os
tado, acompanhado daquilo que necessitava na vida esqueletos 8, 9, 11 e 13 e as sepulturas dos esquele-
eterna: vasilhas para beber e comer e objectos vários tos 14 e 16. As ânforas identificadas na Quinta da
que relembrariam o seu quotidiano (IDEM). Torrinha são predominantemente de fabrico lusitano,
No período romano, o enterramento poderia de- dos tipos Almagro 50, Almagro 51a-b e Almagro
correr por inumação ou cremação 2. Apesar da ideia 51c, não obstante ainda se identificarem contentores
corrente de que a cremação terá dominado os rituais de origem bética de tipo Dressel 23, todos eles inse-
funerários até ao século II d.C., tal não parece ver- ridos na cronologia proposta para a necrópole
dade, na medida em que existem vestígios arqueoló- (SCIALLANO e SIBELLA 1991).
gicos que apontam para uma coexistência de rituais no
mesmo período e espaço (FRADE e CAETANO 1995). 1.3. Objectivos
Independentemente do tipo de enterramento ou da ri-
queza sepulcral, todo o ritual funerário tinha um pro- O presente trabalho tem como objectivo unificar
pósito: “o respeito pelos mortos e o desejo de lhes dar os dados provenientes da antropologia funerária ou
uma morada condigna no Além” (IDEM: 333), perpe- de campo com alguns elementos paleoantropológi-
tuando assim a sua memória ad vitam aeternam... cos auferidos durante o estudo laboratorial do espó-
lio ósseo.
1.2. A necrópole romana: contexto arqueológico, No domínio funerário, fazer-se-á referência ao
localização e cronologia tipo de inumação e deposição dos esqueletos, à ar-
quitectura funerária, à orientação, à posição do crâ-
O sítio arqueológico da Quinta da Torrinha / Quin- nio, dos membros superiores e inferiores, e ao espó-
ta de Santo António 3 encontra-se no Lugar da Torri- lio associado, congregando assim informações es-
nha (coordenadas geográficas: Latitude 38º 39’ 54” clarecedoras sobre as práticas e as ideologias funerá-
N; Longitude 09º 12’ 21” O; Altitude 93 m e UTM rias vigentes. Concomitantemente, os dados, paleo-
29SMC821799, segundo a Carta Militar 442, de demográficos e morfométricos, dos quais se desta-
1 O termo funus incorpora todos 1993), integrado administrativamente na freguesia cam a determinação do sexo, a estimativa da idade à
os procedimentos compreendidos do Monte da Caparica, concelho de Almada e distri- morte, a estatura, os indicadores de robustez e acha-
entre a morte e as cerimónias to de Setúbal. Localiza-se na Península de Setúbal, tamento, assim como a descrição dos caracteres dis-
pós-deposicionais (TOYNBEE 1971).
2 Em virtude da ambiguidade
entre o estuário do Tejo e o oceano Atlântico (BAR- cretos presentes, irão incrementar o conhecimento
BOSA e ALDANA 2006). sobre os indivíduos que terão vivido e morrido na
terminológica que medeia os
conceitos de incineração e de No ano de 2005, durante o estudo de impacto margem Sul do Tejo.
cremação, optou-se por utilizar ambiental para a construção do Metro Sul de Tejo,
o termo cremação de acordo com foram descobertos vestígios osteológicos humanos
as recomendações de CORTESÃO na Quinta da Torrinha. Esta descoberta motivou uma 2. Material e métodos
SILVA (2007).
intervenção arqueológica de emergência adjudicada
3 Doravante, e como forma de
à empresa de arqueologia Palimpsesto: Estudo e Pre- A intervenção arqueológica no sítio da Quinta da
simplificar a nomenclatura do sítio
arqueológico, o mesmo será
servação do Património Cultural Lda, e coordenada Torrinha abrangeu uma área total de 604 m², dis-
apenas denominado por por Rui Barbosa e Pedro Aldana, no domínio da Ar- tribuída por 14 sondagens arqueológicas (Fig. 1).
Quinta da Torrinha. queologia, e por Sandra Assis, no âmbito da Antro- Contudo, apenas foram identificados vestígios osteo-
al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Sondagens efectuadas na 2ª fase de escavação

Sondagens efectuadas na 3ª fase de escavação

Sondagens efectuadas na 4ª fase de escavação

Sondagens efectuadas na 4ª fase de escavação

lógicos humanos em quatro, de dimensões irregula- Já a caracterização morfométrica seguiu duas Figura 1
res: sondagem 2: 8 x 8 m; sondagem 3: 8 x 6 m; son- orientações distintas, centradas na pesquisa de carac-
Planta das sondagens arqueológicas
dagem 5: 10 x 10 m e sondagem 6: 10 x 4,5 m (BAR- teres discretos do esqueleto craniano e pós-craniano realizadas na Quinta da Torrinha /
BOSA e ALDANA 2005), o que consubstanciou num (FINNEGAN 1978; SAUNDERS 1978; HAUSER e DE STE- / Quinta de Santo António,
total de 25 indivíduos exumados. Não obstante a FANO 1989), e no cálculo de indicadores morfológi- com destaque das que revelaram
área intervencionada, é imperativo ressalvar que a cos, tais como a robustez e o achatamento dos ossos vestígios osteológicos humanos
escavação não contemplou todo o espaço funerário, longos (OLIVIER e DEMOULIN 1990) e a estimativa da (BARBOSA 2008).
circunscrevendo-se aos condicionalismos inscritos estatura (OLIVIER et al. 1978; MENDONÇA 2000;
no plano de obra. SANTOS 2000).
Os procedimentos inerentes ao exercício de cam-
po foram idênticos para todas as sondagens, incluin-
do, após a escavação / exposição / limpeza, o registo 3. Resultados e discussão
fotográfico, o levantamento topográfico, o preenchi-
mento de uma ficha antropológica de campo (SAN- 3.1. Os dados da antropologia de campo
TOS et al. 1991-1992), e a exumação do espólio, com
decorrente etiquetagem e acondicionamento. Na necrópole da Quinta da Torrinha foi notada
Após a intervenção de campo, o espólio osteoló- uma grande concentração de enterramentos a Este da
gico transitou para o Departamento de Antropologia, sondagem 5, sem eco no restante espaço (Fig. 2).
local onde decorreu o seu estudo. A investigação em Esta circunscrição parece estabelecer o limite Oeste
questão compreendeu numa primeira fase a limpeza, da necrópole. Se tal conjectura se confirmasse, algo
o restauro e a marcação dos vários elementos ósseos, que permanecerá incerto por se desconhecerem as
à qual se seguiu a análise laboratorial. Neste âmbito, reais dimensões da necrópole, a curiosa proporção
e como parâmetros paleodemográficos, aferiu-se a de indivíduos não adultos poderia entrever algum
diagnose sexual (FEREMBACH et al. 1980; WASTER- tipo de estratificação do espaço funerário por grupo
LAIN 2000; BRUZEK 2002) e a estimativa da idade à etário, já que surgiram maioritariamente localizados
morte para os indivíduos adultos (MASSET 1982; na periferia, ou seja a Oeste. Em referência a MAR-
LOVEJOY et al. 1985; MACLAUGHLIN 1990; BROOKS TIN-KILCHER (2000: 63), no período romano parece
e SUCHEY 1990) e não adultos (STLOUKAL e HANÁ- existir alguma diferenciação no modo de preparação
KOVÁ 1978 in FEREMBACH et al. 1980; UBELAKER do corpo dos não adultos (ou “mors immatura”) quan-
1989; SCHEUER e BLACK 2000). do comparado com os adultos, reflectindo-se esta as-
al-madan
V online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

sondagem 5

construção ou cobertas por ânforas e/ou ímbrices.


Como peculiaridade, destaque-se a inumação em cai-
xa, assinalada para duas inumações de não adultos.
Oss.2 E.20 Na cobertura da sepultura 7 foram identificadas
E.9
Figura 2 sondagem 6 E.22 E.16 E.10 E.12 oito ânforas do tipo Almagro 50, dispostas horizon-
E.15 E.13 talmente e alternando fundos com bocas (Fig. 6). A
Distribuição espacial dos E.19 E.21 E.11
E.17 E.14 utilização de ânforas enquanto coberturas de inu-
indivíduos adultos, não adultos e
E.18
mação não é exclusiva da Quinta da Torrinha, tendo
dos ossários pelas sondagens que
revelaram vestígios osteológicos N sido observada em necrópoles coevas. Em Espanha
E.8
humanos. destaquem-se as necrópoles romanas de San Antón,
Cartagena, séculos IV-VI d.C. (CAPARRÓS e REVERTE
E.2
sondagem 2 E.3 1992); Estruc, Empúries, L’Escala, IV-V d.C.
Oss.1 E.6 (AGUSTÍ et al. 1998) e de Sta. Maria Roses e Port
Roses, séculos IV-VII d.C. (AGUSTÍ et al. 1998). Em
E.1 E.5
território nacional são escassos os exemplos, sobres-
saindo a necrópole de Porto dos Cacos (Alcochete,
séculos III-V d.C.) (SABROSA 1996) e a de Tróia
E.7
(Grândola, séculos IV d.C.) (BALTASAR 1982). Na
sondagem 3
necrópole de Porto dos Cacos foram assinaladas três
Indivíduos adultos sepulturas cobertas por ânforas com a mesma dispo-
E.4
Indivíduos não adultos sição alternada e de tipologia Almagro 50 e 51c (SA-
BROSA 1996).
Ossário
Segundo AGUSTÍ e co-autores (1998), as necró-
poles costeiras caracterizam-se por uma maior diversi-
dade de estruturas funerárias, com numerosos de-
pósitos de ânforas e de tégulas. A justificar esta pre-
simetria no tipo de tratamento e deposição do corpo, ferência poderão estar implícitas condicionantes de
mas também no espólio associado e na localização natureza cultural ou de disponibilidade local. O uso
da sepultura, dentro ou fora do espaço cemiterial. Es- de ânforas surge representado em povoados com
ta diferenciação etária poderá, eventualmente, corro- uma forte ligação geográfica e/ou económica ao ele-
borar as observações descritas para a Quinta da Tor- mento líquido, reflectindo talvez as ocupações vivi-
rinha. das. FABIÃO (1992), referindo-se ao território nacio-
Na necrópole em análise não foram identificadas nal, salienta que a exploração de recursos marinhos
estruturas funerárias monumentais, predominando as no período romano implicava, para além da pesca,
sepulturas anónimas sem lápide. Subscrevendo MO- actividades paralelas como a construção naval e a ex-
RALES (1999), esta tendência para o anonimato das ploração de sal. Como grande parte do pescado se des-
sepulturas é característica das necrópoles do Baixo- tinava à exportação, desenvolvia-se em concomitân-
-Império, reflectindo uma nova tendência ideológica cia uma forte indústria de produção de ânforas.
emergente com o Cristianismo. Apesar da aparente Para o estuário do Tejo são várias as evidências
4 Dada a grande homogeneidade simplicidade, as sepulturas apresentaram uma gran- arqueológicas que sustentam esta interdependência
dos sedimentos, não foi possível de diversidade de coberturas e de materiais na cons- económica (BUGALHÃO 2001). Em conformidade,
identificar com precisão os limites trução, que poderão reflectir os estilos de vida da co- refiram-se os centros de produção oleira da Quinta
e a forma das sepulturas.
munidade romana aí inumada. do Rouxinol (Seixal) e de Porto dos Cacos (Alcoche-
Pelas suas características,
as fossas seriam preenchidas, Em conformidade, foram definidos seis tipos de te), com uma tipologia de fabrico idêntica às ânforas
após a deposição do indivíduo, arquitectura funerária (Tabela 1), distribuídos por 21 recuperadas na Quinta da Torrinha. Esta poderá ser
pelas mesmas terras sepulturas 4 (Fig. 3). Do conjunto descrito, sobressaí- uma possibilidade interpretativa para o tipo de sepul-
(BARBOSA e ALDANA 2005). ram 20 sepulturas individuais (Fig. 4) e uma sepul- cro utilizado na necrópole em discussão, já que
5 Associadas à dispersão do
tura dupla: a sepultura 14 (Fig. 5). Como possível se- “[…] cada família tê-los-ia construído utilizando os
material poderão estar
pultura individual foi identificado um núcleo de dis- materiais a que a sua capacidade económica permi-
perturbações pós-deposionais
motivadas por trabalhos agrícolas, persão osteológica na Sondagem 1, referenciado em tia ter acesso, ou aproveitando os de mais fácil
já que nas imediações se campo como Ossário 1, mas cuja análise laboratorial obtenção” (FRADE e CAETANO 1995: 333).
encontram pomares, podendo revelou tratar-se de um indivíduo não adulto, com No período romano a inumação poderia ocorrer
ainda dever-se à acção da fauna, uma idade à morte situada entre os 12 e os 14 anos 5. directamente sobre o solo ou com recurso a caixão.
ou mesmo a saques. A hipótese de
A sepultura simples em “covacho” sem elemen- Durante o processo de escavação foram recuperados
reutilização do espaço funerário ou
de uma inumação secundária foi tos associados foi o tipo de estrutura funerária mais pregos junto a sete esqueletos (2, 4, 5, 6, 7, 20 e 21),
rejeitada pelas evidências observada, totalizando oito casos. Este valor foi secun- e em associação com os vestígios do não adulto iden-
recolhidas in situ. dado pelas sepulturas delimitadas por materiais de tificado no Ossário 1 (Fig. 7).
al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
0 3m

Figura 3 Figura 4

Planta e localização das sepulturas Inumação individual de um

Foto: Palimpsesto Lda.


identificadas na Quinta da Torrinha / não adulto (10-13 anos),
/ Quinta de Santo António o esqueleto 12 da sepultura 11.
(BARBOSA 2008).

Tabela 1
Distribuição e Caracterização do Tipo de Estrutura Funerária
Observada na Necrópole Romana da Quinta da Torrinha

Sepultura
N.º Esqueleto Tipologia
Oito 2, 3, 6, 7, 10, 19, 21, 22 Covacho simples. Ausência de tampa ou cobertura
Cinco 1, 4, 5, 17, 20 Covacho simples. Delimitação por materiais de construção
Quatro 8, 9, 12, 15*, 16* Covacho simples. Cobertura de ânforas ou ímbrices
Quatro 18 Inumação sobre tégula
11, 14 Inumação em caixa (utilizando tégulas como base e
fragmentos de ânfora ou telha como invólucro lateral e tampa).

Foto: Palimpsesto Lda.


13 Inumação em “concha” (utilizando dois ímbrices)
* Esqueletos pertencentes à sepultura dupla

Figuras 5 e 6

Em cima, Sepultura 14: enterramento duplo de não adultos, o esqueleto 15


(12-15 anos) e o esqueleto 16 (2-4 anos).
Mais abaixo, ânforas do tipo Almagro 50 na cobertura da sepultura 7
do esqueleto 8, um adulto do sexo masculino.

A presença deste tipo de espólio, e o seu alinha-


mento, corroboram o uso de caixão que, na necrópo-
le da Quinta da Torrinha, somou uma frequência de
36,4 % (8/22). Todavia, a ausência de pregos numa
sepultura não constitui, por si só, um indicador para
a inexistência de caixão. O mesmo poderá ter sido
utilizado com recurso a outro tipo de construção, por
sistema de juntas ou de cravos de madeira (SIM-
Foto: Palimpsesto Lda.

MONDS et al. 2008).


Nalgumas inumações foram ainda detectados in-
dícios de reutilização do espaço funerário. Como
al-madan
V online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

também se obteve um padrão de orientações muito


semelhante ao da Quinta da Torrinha, com a direcção
E-O a predominar (72 %) sobre a O-E (28 %) (PAGÉS
2000). Ainda em referência a PAGÉS (2000), a orienta-
ção E-O entraria em declínio a partir do século IV d.C.
com a extensão do Cristianismo, generalizando-se, a
partir de então a colocação da cabeça a poente. São
vários os exemplos de necrópoles romanas transfron-
teiriças que apresentam esta tendência. Em confor-
midade, refira-se a necrópole del Camino de El Mo-
nastil, VI d.C., Alicante, Espanha (HERRERO e GUA-
RINOS 1998), e em Portugal as necrópoles de Cerro
da Vila, I-? d.C. (LUCAS 2006); Miroiço, IV-VII d.C.
(MACEDO 2002; SILVA 2003); Talaíde, Cascais, III-
Foto: Palimpsesto Lda.

VIII d.C. (CARDOSO e CARDOSO 1992); e a necrópole


da villa romana de Milreu (Estói), IV-V d.C. (MA-
CEDO et al. 2002). A possível sobreposição de ideo-
logias e crenças poderá explicar as frequências apro-
Figuras 7 e 8 ximadas de orientação E-O e O-E, auferidas para a
Em cima, esqueleto 2 da
Quinta da Torrinha. As restantes direcções registadas
Sondagem 2: não adulto (6-8 anos) poderão ter subjacentes alguns constrangimentos es-
ao redor do qual foram paciais ou de estruturação da necrópole. Contudo
observados pregos (assinalados CARDOSO e CARDOSO (1992: 409) referem que as pe-
por elipses). Possível inumação em quenas variações na orientação dos enterramentos po-
caixão.
derão estar também correlacionadas com “a varia-
ção anual do azimute de nascimento do sol”.
À direita, Esqueleto 20 da
A asserção ao tipo de deposição dos esqueletos
Sondagem 5 (adulto do sexo
masculino), com indícios de revelou a sua normalização em decúbito dorsal para
reutilização do espaço sepulcral a totalidade dos indivíduos considerados. Segundo
consubstanciado pelo Ossário 2 BARBER e BOWSHER (2000 in SIMMONDS et al. 2008:
(seta). 131), esta realidade poderá espelhar “[…] a require-
ment for the body to be facing the mourners for the
speeches which mourners addressed to the corpse”.
Os crânios presentes, ou minimamente preservados,
permitiram constatar a inexistência de um padrão de-
finido de arrumação. No que concerne aos membros
superiores e inferiores, predominou a posição esten-
dida e paralela ao corpo, somando uma frequência de
Foto: Palimpsesto Lda.

39,1 % (9/22). Contudo, foram notadas algumas va-


riações nesta disposição (Fig. 9), designadamente, as
observadas no esqueleto 10 da Sondagem 9. Indepen-
dentemente destas intercorrências, a deposição dos
exemplo salienta-se o Ossário 2 da Sepultura 20, que indivíduos reflecte uma extrema preocupação com o
determinou um caso de redução de corpos, ou seja, o corpo e a escolha deliberada de quem conduziu todo
“[...] regroupement de tous les os d’un individu, ou o cerimonial fúnebre (SIMMONDS et al. 2008).
du moins de la majorité d’entre eux, à l’intérieur de O espólio votivo associado surgiu representado,
l’espace où a été effectué le dépôt initial” (DUDAY et al. maioritariamente, por peças cerâmicas de uso utili-
1990: 44), como forma de obter espaço para uma no- tário como potes, copos e jarros (Tabela 2, Fig. 10); um
va deposição (Fig. 8). aro metálico, possivelmente um brinco ou anel (?),
A orientação dos enterramentos é de suma im- recuperado junto ao crânio do esqueleto 16 da sepul-
portância para a interpretação das crenças cosmológi- tura 14; cardas de ferro e os resquícios de uma arma,
cas vigentes nas populações do passado (SIMMONDS recolhidos junto ao esqueleto 1 da sondagem 2. Em
et al. 2008). Na Quinta da Torrinha verificou-se um referência a PHILPOTT (1991 in SIMMONDS et al.
predomínio da orientação E-O, presente em 34,8 % 2008), as cardas são mais frequentes em necrópoles
dos casos, seguido do alinhamento O-E (30,4 %) e rurais do que em espaços funerários urbanos, encon-
SO-NE (21,4 %). trando-se associadas a um calçado mais robusto e
Na necrópole tardo-romana de Paredes, Siero adaptado a estilos de vida mais exigentes. Como es-
(Principado das Astúrias), datada dos séculos IV-V d.C., pólio mais significativo, refira-se a presença de duas
al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Tabela 2
Distribuição do Espólio Recolhido na Quinta da Torrinha
por Grupo Etário e por Sexo

Tipo de Espólio Adultos Não adultos


masculino feminino
Moedas 2 1 3
Objectos de adorno 0 0 1
Vestígios de calçado 1 0 0
Arma 1 0 0
Pote cerâmica 1 1 0
Copo cerâmica 0 1 (2 peças) 1

Figura 9 Jarro cerâmica 0 1 0


Figuras antropomórficas 0 0 1 (2 estatuetas)
Variação no padrão de disposição dos membros superiores e inferiores.
Total 5 4 6
A: esqueletos 12 e 21; B: esqueleto 9; C: esqueleto 2; D: esqueleto 10.

Foto: Palimpsesto Lda.


figuras antropomórficas em terracota junto ao indi- cral. Quando considerados os valores de preservação
víduo não adulto do Ossário 1. Ainda nesta temática, sobressaíram os ossos longos, quer nos indivíduos
foram resgatadas seis moedas, distribuídas equitati- adultos (úmero, rádio e cúbito – 80 %; fémur – 70 %),

3 cm
vamente pelos indivíduos adultos e não adultos e que quer nos não adultos (peróneo – 76,9 %; fémur e tí-
reflectem um continuum na tradição do óbolo a Ca- bia – 69,2 %; úmero e cúbito – 61,5 %). As costelas,
ronte (TRANOY 2000). Este costume, frequente nal- as vértebras e o esterno foram os elementos do es-

0
gumas latitudes do Império, consistia em colocar na queleto menos preservados. Esta constatação poderá
boca do defunto, ou junto do seu corpo, uma moeda dever-se à sua composição rica em tecido esponjoso, Figura 10
que lhe iria permitir atravessar o rio Styx em di- menos resistente aos agentes destrutivos, que con-
Objecto cerâmico recolhido junto
recção à Eternidade (TOYNBEE 1971; TRANOY 2000). trasta com o predominante tecido cortical dos ossos ao Esqueleto 6 da Sondagem 2
A análise da distribuição destes objectos por grupo longos, mais denso e forte (MAYS 1998). Ainda no (adulto do sexo feminino).
etário e por sexo não revelou, contudo, diferenças domínio tafonómico, verificaram-se algumas altera-
assinaláveis. ções de coloração e textura, estas últimas provocadas
pela acção da flora local. Como alteração de colo-
3.2. Incursão à biologia do esqueleto ração sobressaíram manchas verdes nos ossos da mão
direita do esqueleto 7 da sondagem 3, resultantes do
O esqueleto humano pode ser ilustrado como um contacto com uma moeda de cobre (Fig. 11). A acção
6 Tafonomia foi um termo
livro aberto que nos permite olhar para o passado da vegetação foi responsável, por seu turno, pela
biológico e sociocultural dos nossos antepassados, produção de uma matriz de erosão dendrítica na su- proposto por Efremov em 1940
para designar os processos que
sendo a qualidade da informação reunida propor- perfície óssea. Paralelamente, a sua profusão no es- operam nos restos orgânicos após
cional ao seu grau de preservação. Assim, existe uma paço sepulcral reflectiu-se na extensa fragmentação a sua morte (GARLAND e JANAWAY
multitude de factores intrínsecos e extrínsecos que observada nalguns elementos do esqueleto. 1989).
podem afectar a preservação do esqueleto, revelando
a histórica tafonómica 6 do mesmo, um jogo com-
plexo entre agentes antitéticos de preservação e des-
truição (GARLAND e JANAWAY 1989; MICOZZI 1991).
O material osteológico proveniente da necrópole
romana em discussão caracteriza-se, em termos ta-
fonómicos, por um excelente estado de preservação.
No entanto, constatou-se alguma sub-representação
de elementos ósseos. Esta aparente incoerência pare-
ce decorrer não tanto da acção de agentes intrínsecos
ou extrínsecos ao processo de decomposição, mas
sim de alguma intervenção humana no espaço sepul-

Figura 11
Foto: Sandra Assis.

Manchas verdes de contacto com metal (assinaladas por círculos) observadas


na mão direita do Esqueleto 7 da Sondagem 3 (adulto do sexo feminino).
Note-se que por debaixo da mão foi recuperada uma moeda.

al-madan
V online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Nos estudos paleoantropológicos, a vertente pa- osteológica de Tróia, e inferiores aos calculados para
leodemográfica é determinante para a caracterização as séries de Miroiço (MACEDO 2002) e de Cerro da
dos comportamentos populacionais (CARDOSO 2003- Vila (LUCAS 2006) (Tabela 3).
-2004). Segundo WINCHELL e co-autores (1995), o Num estudo recente, CARDOSO e GOMES (2008)
estudo dos padrões da natalidade e mortalidade, uti- analisaram a evolução diacrónica da estatura nas po-
lizando como medidas a idade e o sexo, são os indi- pulações esqueléticas portuguesas, tendo obtido, e
cadores biológicos que melhor reflectem o sucesso para o período romano (II a. C.-VI d.C.), valores mé-
adaptativo das populações. dios de estatura que se enquadram nos verificados
Não obstante, a credibilidade de qualquer re- para a necrópole da Quinta da Torrinha, quer para o
construção demográfica, tendo subjacente o esquele- sexo masculino (163,4 cm), quer para o sexo femini-
to humano, depende de uma boa estimativa da idade no (153,8 cm).
à morte e do sexo (WHITE 2000). Outro indicador métrico considerado foi a ro-
A amostra osteológica proveniente bustez dos ossos longos (Tabela 4), que se revelou
Distribuição dos Indivíduos da necrópole romana da Quinta da Tor- elevada em ambos os sexos e para as peças ósseas
por Intervalo Etário e por Sexo rinha é composta por um total de 25 in- consideradas (úmero, fémur e tíbia). A comparação
N
divíduos, 23 respeitantes a inumações pri- com populações coevas revelou valores igualmente
6
6 márias 7 e dois indivíduos identificados elevados para a amostra de Miroiço, quando conside-
5
no Ossário 2 da Sondagem 20. Para o con- rado o úmero e a tíbia. O fémur, por seu turno, apre-
junto em questão verificou-se uma maior sentou uma robustez média (MACEDO 2002). Já LU-
4
frequência de indivíduos não adultos CAS (2006), SILVA (2003) e GAMEIRO (2003) obtive-
3 3 3 3 3
3 (n = 13), o que corresponde a uma per- ram robustez reduzida para o úmero e valores díspa-
2
2 centagem de 52 %, quando comparados res para o fémur e tíbia. A robustez é um traço métri-
1 1
com os indivíduos adultos (n = 12), que co normalmente associado às exigências físicas a que
1
somaram 48 %. No subconjunto forma- os indivíduos estiveram sujeitos ao longo da vida, po-
0 do pelos adultos foram observados sete dendo ainda reflectir traços biológicos característi-
<0 0-3 3-12 12-20 20-35 35-50 >50

intervalo etário (anos)


indivíduos do sexo masculino (58 %) e cos das populações.
masculino feminino não adultos
cinco do sexo feminino (42 %). A contrastar com a robustez elevada dos ossos
A distribuição dos indivíduos pelos longos, obtiveram-se valores de achatamento reduzi-
vários intervalos etários e pelo sexo en- dos para o úmero e para a tíbia. O fémur sobressaiu
Fig. 12 contra-se resumida na Fig. 12. A partir do gráfico, é por um achatamento elevado em ambos os sexos
possível depreender que o intervalo etário mais re- (Tabela 5). Igual constatação foi aferida por MACEDO
presentado engloba as idades compreendidas entre (2002), LUCAS (2006) e GAMEIRO (2003), neste últi-
os 12 e os 20 anos, e os indivíduos com mais de 50 mo caso quando considerados os indivíduos do sexo
anos, com valores idênticos para ambos os sexos. O feminino. São várias as hipóteses avançadas para o
subconjunto formado pelos fetos (< 0 anos) e pelos achatamento do fémur, nomeadamente, problemas
adultos dos 20 aos 35 anos, apenas se fez represen- nutricionais (BUXTON 1938 in CAPASSO et al. 1999);
tar por um indivíduo cada. uma resposta óssea a stresse músculo-esquelético
7 Como referido anteriormente, A morfologia dos indivíduos resulta de um jogo excessivo, como o potenciado pela locomoção, e
neste subconjunto, optou-se por complexo entre factores ambientais e genéticos. Em mesmo a adopção frequente da posição de cócoras
integrar o não adulto identificado conformidade, o seu estudo permite revelar traços e/ou outra postura corporal idêntica (TURNER 1887 in
no Ossário 1 da Sondagem 2. hereditários, avaliar o crescimento em determinadas CAPASSO et al. 1999; CAMERON 1934 in CAPASSO et
8 Com o intuito de se proceder idades, assim como aceder ao estado nutricional e al. 1999). Desconhece-se a razão do achatamento
ao cálculo do valor médio de sanitário dos indivíduos. A grande sensibilidade das presente nos indivíduos referidos, não obstante qual-
estatura para ambos os sexos,
características morfológicas ao ambiente incrementa quer uma das hipóteses poder ser válida.
apenas foram considerados os
indivíduos cuja estatura foi a sua importância na compressão dos processos Conjuntamente com a análise métrica procedeu-
calculada a partir da mesma adaptativos humanos, constituindo uma peça fulcral -se à pesquisa de caracteres discretos 9. No crânio
peça óssea (fémur), seguindo as para a reconstrução das populações do passado (Tabela 6) registou-se uma maior frequência de es-
propostas de MENDONÇA (2000). (MARTIN et al. 1991). No que concerne à estimativa truturas supraorbitais (chanfraduras e foramina),
9 Os caracteres discretos, também
da estatura, e quando considerado o sexo, é perti- 50 % (4/8); suturas supranasais, 42,9 % (3/7) e ossi-
designados de traços não métricos
nente apontar a existência de algum dimorfismo sex- culum no asterion, 33,3 % (3/9). No esqueleto pós-
ou epigenéticos, são variações
anatómicas discretas e ual entre os indivíduos, registando o sexo masculino -craniano (Tabela 7), as variações morfológicas mais
descontínuas, cuja expressão os valores de estatura mais elevados, quando com- notadas foram as facetas duplas do calcâneo, pre-
parece reflectir algum controlo parados com o sexo feminino 8. Contudo, o reduzido sentes nos onze indivíduos analisados. Paralela-
genético (CRUBÉZY 1989; CRUBÉZY número da amostra e a desproporção entre os sexos mente, verificou-se uma frequência elevada de fa-
e SELLIER 1990). Esta condicionante
impedem uma conclusão mais efectiva. De um mo- cetas laterais de agachamento nas tíbias (90 %), va-
torna o seu estudo útil na
averiguação de afinidades inter e do geral, os valores médios de estatura obtidos para lor imediatamente secundado pela faceta de Poirier e
intrapopulacionais (CRUBÉZY e a Quinta da Torrinha são ligeiramente mais elevados pela fossa hipotrocânteriana dos fémures, que soma-
SELLIER 1990). aos auferidos por GAMEIRO (2003) para a amostra ram uma percentagem de 40 % (Fig. 14).
al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Tabela 3 Tabela 4
Valores Médios de Estatura para os Indivíduos Valores Médios para os Índices de Robustez
do Sexo Masculino e Feminino da Quinta da Torrinha, dos Ossos longos na Amostra da Quinta da Torrinha
comparativamente a outros locais
Índice Valor Valor Valor
Estatura Valores Médios (número de indivíduos considerados) de Robustez sexo N mínimo máximo médio classificação
[cm] Torrinha Tróia (I-VI)* Cerro da Vila (I-?)** Miroiço (IV-V)*** Úmero Masculino 2 21,02 21,1 21,06 Robusto
Sexo masculino 164,04 (5) 158,4 165,64 165 Feminino 1 22 22 22
Sexo feminino 152,26 (2) 150-155,5 155,38 155,3 Fémur Masculino 3 20,2 24,05 22,38 Robusto
Feminino 2 22,4 22,7 22,5
* GAMEIRO (2003); ** LUCAS (2006); *** MACEDO (2002)
Tíbia Masculino 3 21 23,5 22,2 Robusto
Feminino 2 20,8 22,8 21,8
N = número de indivíduos
Tabela 6
Frequência de Caracteres Discretos
do Esqueleto Craniano
Tabela 5
Caracteres discretos cranianos N n % Valores Médios para os Índices de Achatamento
Estruturas supraorbitais 8 4 50 dos Ossos longos na Amostra da Quinta da Torrinha
Sutura supranasal 7 3 42,9
Ossiculum no asterion 9 3 33,3 Índice Valor Valor Valor
de Achatamento sexo N mínimo máximo médio classificação
Sulco frontal 8 2 25
Úmero Masculino 4 84,4 95,5 89,7 Euribráquio
Sutura metópica 9 2 22,2
Feminino 2 76,2 81,6 78,9
Ponte mielohióide 10 2 20
Fémur Masculino 4 73,3 91,4 79,4 Platimérico
Sutura escamomastoidea 10 2 20
Feminino 2 83,9 84,9 84,4
Osso do Inca 9 1 11,1
Tíbia Masculino 4 65,8 77 68,85 Mesocnémica
Osso sutural lambdóide 9 1 11,1
10 Feminino 2 68,8 83,8 76,3 Euricnémica
Ossiculum na incisura parietal 10 1
Foramen na mastóide 10 1 10 N = número de indivíduos
Ossiculum no bregma 9 0 0
Osso sutural sagital 9 0 0 Fig. 13 − Ossiculum no
asterion observado no
N = número de indivíduos; n = número de ocorrências
crânio do esqueleto 5
da Sondagem 2 (adulto
do sexo masculino).
Tabela 7
Frequência de Caracteres Discretos
do Esqueleto Pós-Craniano

Caracteres discretos pós-cranianos N n %


Faceta dupla anterior do calcâneo 11 11 100
Faceta lateral de agachamento das tíbias 10 9 90
Fossa hipotrocânteriana do fémur 10 4 40
Faceta de Poirier do fémur 10 4 40
Fig. 14 − Faceta de
Tubérculo peronial do calcâneo 11 3 27,3 Poirier no fémur
Abertura septal do úmero 9 2 22,2 esquerdo do
Nó vastus da rótula ou patela 7 1 14,3 esqueleto 7 da
sondagem 3 (adulto
Pattela emarginate 7 1 14,3 do sexo feminino).
Nervo supraclavicular da clavícula 9 1 11,1
Osso acromial da omoplata 10 0 0
Foramen esternal do esterno 4 0 0
Facetas sacrais acessórias do ilíaco 9 0 0
Fotos: Sandra Assis.

Terceiro trocânter do fémur 10 0 0


Faceta medial de agachamento das tíbias 10 0 0

N = número de indivíduos; n = número de ocorrências

al-madan
V online
adenda
9 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Também MACEDO (2002) e SILVA (2006) obtive- No domínio da Antropologia de campo, consta-
ram frequências elevadas na série de Miroiço para as tou-se a normalização de alguns parâmetros con-
facetas laterais de agachamento das tíbias, 100 % e dizentes com a ideologia funerária do mundo roma-
62,5 %, respectivamente. No caso particular das fa- no. Os procedimentos que mediaram a deposição do
cetas de agachamento das tíbias e da faceta de Poi- corpo reflectem a preocupação em reproduzir na
rier dos fémures, e apesar da sua expressão poder re- morte os comportamentos que o vivo performizava
flectir alguma sensibilidade genética, estas têm sido em vida. Esta evidência manifestou-se, essencial-
frequentemente associados à adopção continuada da mente, no tipo de artefactos associados e nos ele-
posição de cócoras, ou dorsiflexão da articulação do mentos materiais que compunham as sepulturas. Es-
tornozelo (CAPASSO et al. 1999). A fossa hipotrocân- ta intenção clara de prolongar na morte fragmentos
teriana do fémur, por seu turno, parece esconder al- de vida, forneceu-nos pistas inestimáveis para a com-
guns condicionalismos genéticos, úteis na averiguação preensão dos seus modos de vida e possíveis ocu-
de níveis de consanguinidade entre indivíduos (HRD- pações.
LIÇKA 1937 in SAUNDERS 1978). CRUBÉZY (1989) re- A percepção inacabada de toda a necrópole in-
fere que a frequência elevada de um determinado ca- viabilizou uma completa asserção ao perfil demográ-
racter numa parcela da necrópole poderá indiciar agru- fico da amostra, sendo apenas possível afirmar que
pamentos familiares. se trata de uma população natural, representada por
A distribuição do traço pela necrópole revelou- indivíduos de ambos os sexos e de diferentes grupos
-se aparentemente aleatória, negando a existência de etários. A caracterização biológica descreve uma
núcleos familiares. No entanto, esta constitui apenas amostra robusta, com algum achatamento diafisiário
uma inferência, na medida em que se desconhece co- nos ossos longos do membro inferior, principalmen-
mo estaria estruturado o cemitério e qual seria, de te nos fémures, um indicador de quotidianos fisica-
facto, a sua população efectiva. mente exigentes.
Independentemente das hipóteses avançadas po-
derem ou não ser confirmadas, no futuro, pela esca-
4. Considerações finais vação de toda a necrópole, é bastante claro que a co-
munidade romana exumada espelha as ideologias e o
Os vestígios osteológicos não constituem apenas modo de vida dos povoados romanos da Península,
evidências circunstanciais de uma existência há mui- abrindo uma porta para o conhecimento pleno do seu
to perdida, são testemunhos do ser humano enquanto universo. Este saber virá ainda a ser beneficiado pela
entidade biológica em plena comunhão com o seu componente paleopatológica, cuja análise se encon-
meio. Esta constatação torna a recuperação dos ves- tra em curso.
tígios osteoarqueológicos fulcrais para a compreen-
são dos grupos humanos pretéritos.
Tendo por base esta premissa, procedeu-se ao
estudo paleoantropológico de uma amostra osteoló- Agradecimentos
gica exumada da necrópole romana da Quinta da
Torrinha (Monte da Caparica, Almada), de modo a Prof. Doutora Ana Luísa Santos e Fundação para
traçar as práticas funerárias e o perfil biológico da a Ciência e a Tecnologia (Bolsa de Doutoramento
população exumada. referência SFRH/BD/36739/2007).

PUBLICIDADE

AGENDA ONLINE
toda a informação...
... à distância de alguns toques
reuniões científicas | acções de formação
novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt

al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Bibliografia

AGUSTÍ, B; CODINA, D.; MATARÓ, M. e PUIG, A. (1998) – CORTESÃO SILVA, F. (2007) – “Abordagem ao Ritual Fune-
“Pluralidad Cultural a Través del Mundo Funerario en los rário da Cremação Através da Análise dos Restos Ós-
Obispados de Empúries y Girona (Siglos V-VIII d.C.)”. seos”. Al-Madan. IIª Série. 15: 40-48.
In V Reunió d`Arqueología Cristiana Hispànica. Carta- CRUBÉZY, E. (1989) – “Parenté, Structures de Parenté et
gena, pp. 47-61. Sociétés du Passé”. Bulletins et Mémoires de la Société
ASSIS, S. (2005) – Necrópole Romana: Quinta da Torrinha d’Anthropologie de Paris. 1 (1/2): 79-92.
(Almada). Relatório Antropológico de Campo. Coimbra: CRUBEZY, E. e SELLIER, P. (1990) – “Caractères Discrets et
Departamento de Antropologia, Universidade de Coim- Organisation des Ensembles Sépulcraux”. Bulletins et
bra [policopiado]. Mémoires de la Société d’Anthropologie de Paris. 2 (3-
BALTASAR, L. (1982) – “Tróia (de Setúbal)”. Al-Madan. Iª -4): 29-50.
Série. 0: 21-24. DUDAY, H.; COURTARD, P.; CRUBÉZY, E.; SELLIER, P. e TIL-
BARBOSA, R. (2008) – Projecto de Construção do Metro LIER, A. (1990) – “L’Anthropologie «de Terrain»: recon-
do Sul do Tejo. Sítio Arqueológico da Quinta Torrinha naissance et interprétation des gestes funéraires”. Bulle-
(Monte da Caparica, Almada). Relatório Final de In- tins et Mémoires de la Société d’Anthropologie de Paris.
tervenção. Coimbra: Palimpsesto Lda. [policopiado]. 2 (3-4): 29-50.
BARBOSA, R. e ALDANA, P. (2005) – Projecto de Constru- FABIÃO, C. (1992) – “O Passado Proto-Histórico e Roma-
ção do Metro do Sul do Tejo. Sítio Arqueológico da no. A romanização do actual território português”. In
Quinta Torrinha (Monte da Caparica, Almada). Relató- MATTOSO, J. (ed.). História de Portugal. Lisboa: Edito-
rio Preliminar de Intervenção. Coimbra: Palimpsesto rial Estampa. Vol. I., pp. 76-299.
Lda. [policopiado]. FEREMBACH, D.; SCHWIDETZKY, I. e STLOUKAL, M. (1980)
BARBOSA, R. e ALDANA, P. (2006) – “Espaços e Estratigra- – “Recommendation for Age and Sex Diagnoses of
fias da Quinta de Santo António / Quinta da Torrinha (Mon- Skeletons”. Journal of Human Evolution. 9 (7): 517-549.
te da Caparica, Almada) no Contexto da Pré-História FINNEGAN, M. (1978) – “Non-Metric Variation of the
Recente e Romanização na Península de Setúbal”. Al- Infracranial Skeleton”. Journal of Anatomy. 125 (1): 23-
-Madan Online – Adenda Electrónica. IIª Série. 14: V -37.
[disponível em http://www.almadan.publ.pt]. FRADE, H. e CAETANO, J. (1995) – “Ritos Funerários Ro-
BROOKS, S. e SUCHEY, J. M. (1990) – “Skeletal Age Deter- manos”. In MEDINA, J. (ed.). O Mundo Luso-Romano.
mination on the Os Pubis: a comparison of the Acsádi- Amadora: Ediclube. Vol. II, pp. 331-340.
-Nemeskéri and Suchey-Brooks methods”. Human GAMEIRO, A. (2003) – Tróia Romana: paleobiologia de
Evolution. 5(3): 227-238. uma população romana da necrópole de Tróia. Disser-
BRUZEK, J. (2002) – “A Method for Visual Determination tação de Mestrado em Evolução Humana. Coimbra: De-
of Sex, Using the Human Hip Bone”. American Journal partamento de Antropologia, Universidade de Coimbra
of Physical Anthropology. 117(2): 157-168. [não publicado].
BUGALHÃO, J. (2001) – A Indústria Romana de Transfor- GARLAND, A. e JANAWAY, R. (1989) – “The Taphonomy of
mação e Conserva de Peixe em Olisipo. Núcleo Ar- Inumation Burials”. In ROBERTS, C.; LEE, F. e BINTLIFF,
queológico da Rua dos Correeiros. Lisboa: Instituto Por- J. (eds.). Burial Archaeology Current Research, Methods
tuguês de Arqueologia (Trabalhos de Arqueologia, 15). and Developments. Oxford: Bar British Séries. 211: 15-
CAPARRÓS, M. B. e REVERTE, M. D. (1992) – “Tipologia de -28.
Enterramientos en la Necrópolis de San Antón en Carta- HAUSER, G. e DE STEFANO, F. (1989) – Epigenetic Variants
gena”. In IV Reunió d’Arqueología Cristiana Hispànica. of the Human Skull. Stuttgart: E. Schweizerbart’sche
Lisboa, pp. 173-182. Verlagsbuchhandlung.
CAPASSO, L.; KENNEDY, K. e WILCZAK, C. (1999) – Atlas HERRERO, G. e GUARINOS, F. (1998) – “La Necrópolis Tar-
of Occupational Markers on Human Remains. Teramo: dorromana del Camino de El Monastil (Elda, Alicante):
Edigrafital SPA. Cristianismo y Paganismo en la cuenca del Río Vinalopó
CARDOSO, G. e CARDOSO, J. L. (1992) – “A Necrópole durante el siglo VI d.C.”. In V Reunió d`Arqueología
Tardo-Romana e Medieval de Talaíde (Cascais): estudo Cristiana Hispànica. Cartagena, pp. 263- 269.
preliminar”. In IV Reunió d’Arqueología Cristiana His- LARSEN, C. S. (2000) – Skeletons in Our Closet: revealing
pànica. Lisboa, pp. 407-414. our past through bioarchaeology. New Jersey: Princeton
CARDOSO, H. F. V. (2003-2004) – “Where are the Children? University Press.
Representativeness of infant skeletons in archaeological LARSEN, C. S. (2002) – “Bioarchaeology: the lives and
populations and implications for paleodemography”. An- lifestyles of past people”. Journal of Archaeological
tropologia Portuguesa. 20-21: 235-364. Research. 10 (2): 119-166.
CARDOSO, H. F. V. e GOMES, J. E. (2008) – “Trends in Adult LOVEJOY, C. O.; MEINDL, R. S.; PRYZBECK, T. R. e MENS-
Stature of Peoples who Inhabited the Modern Portuguese FORTH, R. P. (1985) - “Chronological Metamorphosis of
Territory from the Mesolithic to the Late 20th Century”. the Auricular Surface of the Ilium: a new method for the
International Journal of Osteoarchaeology: DOI: determination of adult skeletal age at death”. American
10.1002/oa.991. Journal of Physical Anthropology. 68 (1): 15-28.
CLEARY, S. E. (2000) – “Putting the Dead in their Place: LUCAS, M. (2006) – A Necrópole de Cerro da Vila em Vi-
burial location in Roman Britain”. In PEARCE, J.; MILLET, lamoura. Dissertação de investigação na área científica
M. e STRUCK, M. (eds.). Burial, Society and Context in de Antropologia Biológica. Coimbra: Departamento de
the Roman World. Oxford : Oxford Books, pp. 127-142. Antropologia, Univ. Coimbra [não publicado].
al-madan
V online
adenda
11 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

MACEDO, M. (2002) – Villa Romana de Miroiço… uma lei- SANTOS, A. L.; CUNHA, E.; DÂMASO, N. e MARRAFA, C.
tura: estudo paleobiológico de uma amostra de esquele- (1991-1992) – “Ficha Antropológica: a utilizar na esca-
tos de Manique (Cascais). Relatório de Investigação de vação”. Antropologia Portuguesa. 9-10: 67.
Licenciatura na área de Ciências Humanas. Coimbra: SANTOS, C. (2000) – Estimativa da Estatura a Partir dos
Departamento de Antropologia da Universidade de Co- Metatársicos. Dissertação de mestrado em Medicina Le-
imbra [não publicado]. gal apresentada à Faculdade de Medicina de Coimbra.
MACEDO, M.; GOMES, S.; BRAZUNA, S. e DUARTE, C. Coimbra: Departamento de Antropologia da Universi-
(2002) – “A Villa Romana de Milreu (Estói): campanha dade de Coimbra [não publicada].
de 1998”. Era. 2: 69-83. SANTOS, V.; SABROSA, A. e GOUVEIA, L. (1996) – “Carta
MACLAUGHLIN, S. M. (1990) – “Epiphyseal Fusion at the Arqueológica de Almada: elementos da ocupação roma-
Sternal end of the Clavicle in a Modern Portuguese na”. In FILIPE, G. e RAPOSO, J. M. (coords.). Ocupação
Skeletal Sample”. Antropologia Portuguesa. 8: 59-68. Romana dos Estuários do Tejo e do Sado. Lisboa: Pu-
MARTIN, D.; GOODMAN, A.; ARMELAGOS, G. e MAGENNIS, blicações Dom Quixote / Câmara Municipal do Seixal,
A. (1991) – Black Mesa Anasazi Health: reconstructing pp. 225-236 (Actas das Primeiras Jornadas sobre Ro-
life from patterns of death and disease. Illinois: Southern manização dos Estuários do Tejo e do Sado).
Illinois University Press. SAUNDERS, S. (1978) – The Development and Distribution
MARTIN-KILCHER, S. (2000) – “Mors Immatura in the of Discontinuous Morphological Variation of the Human
Roman World: a mirror of a society and tradition”. In Infracranial Skeleton. Thesis for the Degree of Philo-
PEARCE, J.; MILLET, M. e STRUCK, M. (eds.). Burial. sophy, University of Toronto. Ottawa: National Museums
Society and context in the roman world. Oxford : Oxford of Canada (Archaeological Survey of Canada, 81).
Books, pp. 63-77. SCHEUER, L. e BLACK, S. (2000) – Developmental Juvenile
MASSET, C. (1982) – Estimation de l’Âge au Décès par les Osteology. London: Academic Press.
Sutures Crâniennes. Thèse Doctorat en Sciences Na- SCIALLANO, M. e SIBELLA, P. (1991) – Amphores, Com-
turelles. Paris: Université Paris VII [não publicada]. ment les Identifier? Aix-en-Provence: Edisud.
MAYS, S. (1998) – The Archaeology of Human Bones. SILVA, A. (2003) – Registo de um Quotidiano… na Villa
London: Routledge. Romana de Miroiço: análise paleobiológica de uma
MENDONÇA, M. C. (2000) – “Estimation of Height from the amostra de esqueletos exumados da necrópole de Mi-
Length of Long Bones in a Portuguese Adult Popu- roiço. Relatório de Investigação I e II de Licenciatura.
lation”. American Journal of Physical Anthropology. Coimbra: Departamento de Antropologia, Universidade
112 (1): 39-48. de Coimbra [não publicado].
MICOZZI, M. (1991) – Post-Mortem Change in Human and SIMMONDS, A.; MÁRQUEZ-GRANT, N. e LOE, L. (2008) –
Animal Remains: a systematic approach. Springfield: Life and Death in a Roman City: excavation of a roman
Charles C. Thomas. cemetery with a mass grave at 120-122 London road,
MORALES, A. (1999) – “La Colección Antropológica del Gloucester. Oxford: Oxford Archaeological Unit.
Campo Arqueológico de Mértola (S. II-XVI): reconstru- SUTHERLAND, C. H. V. e CARSON, R. A. G. (1967) – The
ir la sociedad y los modos de vida a partir del registro Roman Imperial Coinage. London: Spink & Son. Vol.
funerario”. Arqueologia Medieval. 6: 277-292. VI, “From Diocletian’s Reform (A.D. 294) to the Death
MORRIS, I. (1992) – Death-Ritual and Social Structure in of Maximinus (A.D. 313)”.
Classical Antiquity. Cambridge : Cambridge University TOYNBEE, J. (1971) – Death and Burial in the Roman
Press. World. London: Thames and Hudson.
OLIVIER, G. e DEMOULIN, F. (1990) – Pratique Anthropo- TRANOY, L. (2000) – “La Mort en Gaule Romaine”. In
logique à l’Usage des Étudiants. Paris: Université Paris CRUBÉZY, E.; MASSET, C.; LORANS, E.; PERRIN, F. e
VII. Vol. I. “Osteologie”. TRANOY, L. (eds.). Archéologie Funéraire. Paris: Edi-
OLIVIER, G.; AARON, C.; FULLY, G. e TISSIER, G. (1978) - tions Errance, pp. 105-129.
“New Estimations of Stature and Cranial Capacity in UBELAKER, D. (1989) – Human Skeletal Remains: excava-
Modern Man”. Journal of Human Evolution. 7 (6): 513- tion, analysis, interpretation. Washington: Taraxacum
-518. Washington.
PAGÉS, O. (2000) – “Primera Necropolis Tardía en el Terri- WASTERLAIN, R. S. N. (2000) – Morphé: análise das pro-
torio de los Astures Transmontani: el yacimiento de Pa- porções entre os membros, dimorfismo sexual e estatura
redes, Siero (Principado de Asturias, España)”. In Actas de uma amostra da Colecção de Esqueletos Identifica-
do 3º Congresso de Arqueologia Peninsular. Vol. 6, dos do Museu Antropológico da Universidade de Coim-
pp. 513-534. bra. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana.
ROBERTS, C. e GRAUER, A. (2001) – “Commentary: bones, Coimbra: Departamento de Antropologia, Universidade
bodies and representivity in the archaeological record”. de Coimbra [não publicada].
International Journal of Epidemiology. 30: 109-110. WHITE, T. (2000) – Human Osteology. San Diego: Aca-
SABROSA, A. (1996) – “Necrópole Romana do Porto dos Ca- demic Press.
cos (Alcochete)”. In FILIPE, G. e RAPOSO, J. M. (coords.). WINCHELL, F.; ROSE, J. e MOIR, R. (1995) – “Health and
Ocupação Romana dos Estuários do Tejo e do Sado. Hard Times: a case study from the middle to late nine-
Lisboa: Publicações Dom Quixote / Câmara Municipal teenth century in Eastern Texas”. In GRAUER, A. (ed.).
do Seixal, pp. 283-300 (Actas das Primeiras Jornadas Bodies of Evidence: reconstructing history through
sobre Romanização dos Estuários do Tejo e do Sado). skeletal analysis. New York: Wiley-Liss, pp. 161-198.

al-madan
online V
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Levantamento r e s u

Apresentação dos objectivos, metodo-


m o

logia e resultados do levantamento ar-

Arqueológico do queológico do concelho de Tábua (Co-


imbra), realizado entre 1999 e 2002,
com alguns trabalhos posteriores.
A partir do reconhecimento e inventá-
rio de sítios arqueológicos, o projecto

Concelho de Tábua
procurou conhecer e interpretar as
transformações diacrónicas e culturais
da ocupação humana na região, deli-
near estratégias de estudo e salvaguar-
da do Património, e viabilizar a sua di-
vulgação generalizada.

p a l a v r a s c h a v e

por Suzana Pombo dos Santos Prospecção arqueológica; Carta arque-


ológica.
Arqueóloga.

a b s t r a c t

Aims, methodology and results of the


archaeological survey of the Tábua mu-
nicipality (Coimbra), carried out between
1999 and 2002, with a few later works.
projecto com o acrónimo LARCT foi povoado fortificado da Idade do Ferro (?) em Tábua,

O objecto de apresentação na edição de De-


zembro de 2001 da revista Al-Madan,
com o tema “Balanço do Levantamento Arqueoló-
que julgamos destruído pela construção de uma su-
perfície comercial, ocupação medieval no sítio da
Torre, um achado isolado em Percelada e a estrada
Based on the survey and inventory of
archaeological sites, the project intends
to know and interpret the diachronic
and cultural transformations of human
occupation in the region, and propose
gico do Concelho de Tábua”. Pretende-se com o pre- romana da Pedra da Sé, em Tábua), registámos nos
Heritage study, preservation and dis-
sente artigo uma actualização dos dados publicados quatro anos 58 sítios. semination strategies.
e a apresentação dos resultados do PNTA 1, com base O programa de prospecção por nós elaborado
na descrição comparativa dos objectivos propostos e traduziu-se num meio de dinamização cultural e co- k e y w o r d s
os alcançados, bem como da metodologia proposta e nhecimento da história do Concelho, muito bem acei-
aplicada ao longo dos quatro anos de trabalho de te aliás, não só pelas entidades municipais responsá- Archaeological survey; Archaeological
map.
campo. veis pelo Departamento Cultural, a quem agradece-
mos e devemos todo o apoio, como também por uma
parcela significativa dos munícipes, quer na exibição
Objectivos e metodologia de materiais arqueológicos provenientes do sítio da r é s u m é
Picota, na inauguração da Biblioteca Municipal João
Présentation des objectifs, méthodolo-
Tal como já tivemos ocasião de apresentar (SAN- Brandão, como também na conferência proferida no gie et résultats de l’inventaire archéo-
TOS et al. 2001a), os objectivos deste projecto visa- último ano dos trabalhos de campo, no Auditório da logique de la municipalité de Tábua
vam colmatar a lacuna de informação arqueológica Biblioteca. (Coimbra), réalisé entre 1999 et 2002,
que se verificava até 1999, data de início do PNTA. A nossa opção metodológica seguiu os critérios avec certains travaux postérieurs.
Procurou-se, numa perspectiva de investigação, uma do que designámos por prospecção selectiva por A partir de la reconnaissance et de l’in-
ventaire de sites archéologiques, le
aproximação ao conhecimento da ocupação humana, amostragem de larga escala, fundamentada na esco- projet a cherché à connaître et à inter-
numa amplitude diacrónica e cultural, com o propó- lha das áreas a prospectar seguindo os critérios da préter les transformations diachroni-
sito de delinear um adequado planeamento de estudo tradicional divisão administrativa, isto é, num uni- ques et culturelles de l’occupation hu-
e salvaguarda do Património arqueológico do conce- verso de 15 freguesias existentes no concelho de Tá- maine dans la région, à ébaucher des
lho de Tábua. Simultaneamente, registar e dar a co- bua, quatro anos de trabalhos corresponderiam a cin- stratégies d’étude et de sauvegarde du
Patrimoine et à viabiliser leur divulga-
nhecer à comunidade local e científica o Património co freguesias / ano. tion généralisée.
arqueológico identificado, através da publicação de
um Roteiro ou Carta Arqueológica. m o t s c l é s
Tendo-nos proposto a inventariar os sítios arqueo-
lógicos identificados durante os trabalhos de campo Prospection Archéologique; Plan Ar-
chéologique.
e a compará-los com a realidade conhecida em 1999 1 Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos / 1999, desenvolvido pela
(sete sítios inventariados: ponte romana de Sumes e autora em parceria com Sandra Clara Alves Lourenço, Ana Filipa Bragança e
ponte de S. Geraldo, villa romana de Fundo da Vila, Filipa Jorge Neto.

al-madan
VI online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Figura 1 A selecção das áreas a prospectar por cada ano


obedeceu a critérios de ordem prática e estratégica.
Acesso Poente ao povoado da
Picota.
Procedia-se a uma análise da cartografia correspon-
dente às áreas seleccionadas e iniciavam-se as pri-
meiras recolhas de informação oral. Dependendo das
condições do terreno, procedia-se à batida de campo.
Os critérios utilizados neste último processo visaram
os pressupostos definidos no projecto inicial:
1. Exclusão total de áreas onde a prospecção se-
ria impraticável, tanto terrenos de difícil progressão
como terrenos de visibilidade nula.
2. Privilégio de áreas típicas de ocupação:
2.1. Zonas de destaque paisagístico e de grande
defensibilidade natural. Toda a informação recolhida em campo foi
2.2. Locais próximos a cursos de água, impor- objecto de tratamento e entregue ao IPA (IGESPAR)
tantes ou relevantes na paisagem, nomeadamente sob a forma de relatórios de progresso anuais, onde
Mondego, Cavalos 2 e Alva. se apresentaram as respectivas fichas de sítio arqueo-
2.3. Zonas de transitabilidade. lógico. Para o levantamento das sepulturas, foram
2.4. Solos de maior capacidade agrícola. elaboradas fichas específicas e apresentados os res-
2.5. Locais com emergente definição toponími- pectivos desenhos. Também as fotografias dos sítios
ca. arqueológicos identificados, inéditos ou relocaliza-
A estratégia adoptada não revelou grandes difi- dos, foram entregues nos respectivos relatórios de
culdades de aplicabilidade, sendo que o primeiro ano progresso.
de trabalhos de campo correspondeu ao ano em que
se identificaram e registaram mais sítios arqueológi-
cos, não só pelo número de participantes, uma vez Levantamento toponímico
que contámos com o apoio do IPJ (Instituto Portu-
guês da Juventude) e nos comprometemos à organi- O levantamento toponímico, para um trabalho
zação de um campo de férias, como também pela que tem por base a prospecção, constitui um ponto
própria ausência de investigação. de partida para a compreensão de uma malha de po-
Houve situações em que considerámos necessá- voamento, caracterizada nos dias de hoje por um
ria a alteração ao plano de trabalhos inicial. abandono da actividade agropastoril e cuja própria
A primeira correspondeu à execução de sonda- toponímia do concelho cremos constituir exemplo.
gens arqueológicas, inicialmente previstas para os 3º Por outro lado, as indicações da toponímia para o po-
e 4º anos de projecto. voamento de épocas mais antigas, poderão corres-
Porém, no final do 2º ano vimo-nos forçados a ponder no presente ao reflexo de actividades desen-
uma intervenção de emergência para avaliar o nível volvidas no passado. Salientam-se, por exemplo, os
de destruição do sítio arqueológico da Picota, em re- topónimos relacionados com exploração agrícola,
sultado de plantações de eucaliptal. Quintas e Casais, ou actividades de transformação,
A segunda alteração foi a da campanha de pros- como Pisão ou Vale Lagar, só para citar alguns.
pecção sistemática prevista para o Vale do Mondego Poucos são, no caso do concelho de Tábua, os
(dentro dos limites do Concelho), justificada com que remetem in stricto sensus para a possibilidade de
base na análise da Carta Geológica 17-C e respecti- sítios arqueológicos.
va nota explicativa e em áreas onde a metodologia De acordo com a nossa opção de estruturação do
proposta fosse aplicável. Dentro destes pressupostos, respectivo levantamento, baseada no trabalho de
optou-se pela margem direita do Rio Alva pois, com Maria Mulize Ferreira e A. Manuela Ferreira (FER-
base em análise bibliográfica e recolha de informa- REIRA e FERREIRA 1993), observamos que a maioria
ção oral, haveria nesta área locais de extracção mi- dos sítios arqueológicos se concentra em locais onde
neira romana, situação que se confirmaria em Meda a toponímia remete para o que se designou de ambi-
de Mouros e Mouronho, envolvendo respectivamen- ente humanizado, distribuindo-se os sítios anteriores
2 Em cartografia da década de te as áreas definidas na toponímia por Mangação / Cas- ao período romano, com excepção de Picota, e roma-
1940 aparece com a designação telo dos Mouros, Areias de Fontão e Fontão (Pousa- no, por topónimos que remetem para a organização
Cavaleiros. douros). do território, enquanto que os medievais, na maior
al-madan
online VI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
parte dos casos sepulturas, se relacio-
nam com actividade económica, so-
bretudo em topónimos Quinta. Para
este segundo caso, poderemos consi-
derar que poderá haver uma relação
entre as novas divisões da proprieda-
de rústica e a fixação de pessoas a lu-
gares no período medieval, enquanto
que para o primeiro caso a mobilida-
de das populações parece privilegia-
da.
Para sítios de cronologias anteriores ao período O primeiro balanço dos trabalhos de Levanta- Figura 2
romano, destaca-se o castro de Sumes, a cerca de mento Arqueológico para o Concelho de Tábua
Mapa com indicação dos limites do
350 metros do lugar de Vasco, onde também apare- apontava para um claro predomínio das sepulturas concelho de Tábua.
cem vestígios de ocupação romana, único topónimo escavadas na rocha, motivado sobretudo pelo facto
“antropónimo” com sítios arqueológicos relaciona- de se tratarem de sítios de fácil identificação e es-
dos, que privilegia a altitude e as vias de comunica- tarem associados à memória colectiva local como
ção, nas figuras da calçada e ponte romanas sobre o “maceira dos mouros” ou “gamelão dos mouros”.
Rio de Cavalos. O sítio da Picota, com microtopóni- Efectuámos ainda em Novembro desse ano a pri-
mo relacionado com Topografia – Terras Altas, en- meira intervenção, que, como já tivemos ocasião de
contra-se muito próximo do topónimo Vale Taipa, referir, correspondeu à avaliação do nível de destrui-
que poderá sugerir a existência de outros sítios ar- ção do sítio da Picota, motivada pelo plantio de
queológicos, e privilegia igualmente a altitude e o eucaliptal e sem grande resposta para a clarificação
Rio Mondego. Pela implantação da área de ocupa- da ocupação deste sítio (SANTOS et al. 2001b).
ção, sem sítios romanos ou atribuíveis num raio de um Em 2001 foram prospectadas as freguesias de
quilómetro, aparenta ter tido uma actividade voltada Ázere, Covelo e Sinde, pouco produtivas no côm-
para o controlo e/ou navegabilidade do rio. puto geral, optando-se por privilegiar as freguesias
Sítios atribuíveis à Pré-História, temos a Quinta de Tábua, Espariz, Pinheiro de Coja, Meda de Mou-
do Vale de Orca, onde se identificaram materiais dis- ros e Mouronho. Identificaram-se sete novos sítios e
persos nos terraços fluviais do Rio de Cavalos. um achado isolado, verificando-se uma diminuição
São mais representativos como topónimos indi- do registo de sepulturas em favor dos de ocupação
cativos de sítios arqueológicos os que têm a designa- romana e alto medieval, situação que se justificará
ção “Mouros”, que apresentam ocupações que não pela proximidade ao Vale do Alva, que a consulta de
correspondem stricto sensus ao período medieval, bibliografia e recolha de informação oral apontavam
mas antes à antiguidade de ocupações, traduzindo-se como local de mineração romana, facto que se con-
“mouros” como sinónimo de antigo na memória co- firmaria durante os trabalhos do ano seguinte.
lectiva e na toponímia. Também em 2001 se efectuaram os primeiros traba-
lhos de levantamento do sítio de Pombal (LOURENÇO
2007: 159), ou Quinta de Pombal (conforme refe-
Resumo dos trabalhos rência cartográfica), nomeadamente a limpeza e de-
senho do corte da estrutura visível no caminho em
Para o primeiro ano dos trabalhos, as cinco fre- direcção à Ribeira da Lameira, exposta por acção das
guesias seleccionadas foram Póvoa de Midões, Mi- fortes chuvas do Inverno desse ano.
dões, Covas, Vila Nova de Oliveirinha e Tábua. Po- No último ano, 2002, prospectaram-se então Mou-
rém, o objectivo inicial não foi totalmente alcançado, ronho e Meda de Mouros. Foram efectuadas duas
na medida em que apenas se prospectaram quatro sondagens de diagnóstico no sítio do Pombal, fre-
das cinco freguesias propostas, procedendo-se para a guesia de Covas, onde se detectou, a cerca de 20 cm
freguesia de Tábua à relocalização dos monumentos da superfície, um derrube de pedras de granito de
classificados: Fundo da Vila (villa) e Pedra da Sé (es- pequena e média dimensão, igual à estrutura que
trada romana). Foram identificados 19 novos sítios. delimita o recinto e que caracteriza o sítio. Porém,
Em 2000 voltámos a prospectar as mesmas qua- não tendo sido possível recolher outra informação
tro freguesias mais a freguesia de S. João da Boavis- adicional à que havia sido recolhida quando se efec-
ta, identificando-se 17 novos sítios e dois isolados. tuou o primeiro levantamento do alçado da estrutura,
al-madan
VI online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Numa primeira abordagem e observando o mapa


de freguesias do concelho de Tábua, verificamos que
as freguesias de Covelo, Sinde, S. João da Boavista,
Candosa, Covas e Vila Nova de Oliveirinha parecem
formar uma linha que divide o actual concelho em
Norte e Sul, situação curiosa uma vez que coincide,
grosso modo, com a área de transição geológica de
granitos, a Norte, e o predomínio de xistos, a Sul.
Por outro lado, quando observamos a orografia
do concelho, verificamos que não se regista nenhum
acidente que justifique tal “divisória”, pois os gran-
des vales da região situam-se a Norte, o Mondego, e
a Sul, o Alva, correspondendo respectivamente aos
limites actuais do Concelho.
A Poente, a Serra da Moita coincide com as di-
visórias entre os concelhos de Arganil e Penacova, e
verificámos que coincide também com os vales de
duas pequenas ribeiras, Lameira e Gualdim.
Outro dado curioso, e não demeritório de obser-
Figura 3 confirmou-se apenas a existência da estrutura defen- vação, é o facto de a Bobadela, civitate, se localizar
siva, possivelmente derrubada por acção natural ou a 2 km a Nascente de Covas, S. Pedro de Lourosa a
Elemento de mó (Midões.
outra, mas que apenas uma escavação em área po- 3 km a Sul de Covas, e o Mosteiro do Lorvão se
derá esclarecer. Quanto à cronologia do local pouco localizar já no Concelho de Penacova, mas no segui-
sabemos, uma vez que apenas foram recolhidos três mento Poente desta linha formada pelas sedes de
fragmentos cerâmicos pouco esclarecedores e em freguesia do concelho de Tábua.
contexto de superfície (LOURENÇO et al. 2003). Tratar-se-ia de uma via? Não sabemos (ALAR-
Relocalizou-se o castro de Sumes, na freguesia CÃO 1988: 104-105).
de Midões (SARAIVA 1986), bastante destruído no Porém, quando observamos o mapa de dispersão
momento da visita devido ao plantio de eucaliptos, e de sítios medievais, na sua maioria sepulturas esca-
o sítio da Torre. Efectuou-se o levantamento das pe- vadas na rocha, observamos uma concentração nas
ças depositadas na Casa Mortuária e na Igreja Matriz imediações de Midões, Covas e S. João da Boavista.
de Midões, que correspondem a um fragmento de Tanto para Midões como para Covas, estas encon-
inscrição romana, no primeiro caso, e a três cabe- tram-se associadas ou nas imediações de lugares de
ceiras de sepultura discoides, decoradas numa das ocupação romana e alto medieval.
faces com a cruz de braços curvilíneos em relevo, no Para S. João da Boavista, estamos em crer que
segundo. também existirão lugares de ocupação. No entanto,
Em Meda de Mouros identificámos uma conhei- as prioridades estabelecidas para a prospecção direc-
ra de grandes dimensões no sítio de Mangação / Cas- cionaram os trabalhos para outras áreas do concelho,
telo dos Mouros (LOURENÇO 2007: 163). Em Mou- nomeadamente a Sul. Aqui identificaram-se quatro
ronho, Fontão / Pousadouros a conheira referenciada sítios com ocupação romana, três deles nas imedia-
por FABIÃO (1989), ALARCÃO (1988) e NUNES et al. ções de Sinde e de Espariz, com distâncias relativas
(1990) e Areias de Fontão. entre si na ordem dos 2 km.
A grande concentração de sítios romanos encon-
tra-se nas imediações de Midões e Tábua, próximas
Considerações Finais ao Vale do Mondego, e, para lugares associados à
indústria, sobretudo à extracção mineira, no Vale do
Com o decorrer do presente trabalho, estrutura- Alva. Também o lugar de Covas se representa neste
do e programado para os quatro anos compreendidos mapa, embora com ocupação tardo romana.
entre 1999 e 2002, e dada a natureza dos objectivos Para sítios de cronologias anteriores ao período
que nos propusemos alcançar, elaborar um primeiro romano, destacam-se o castro de Sumes e o sítio da
inventário de sítios arqueológicos para o concelho de Picota. A anta de Vila Nova de Oliveirinha corres-
Tábua, apercebemo-nos rapidamente que este se ponde ao único registo pré-histórico de contexto fu-
encontra incompleto. Porém, sabemos que constitui nerário.
um ponto de partida para futuros trabalhos, um deles Com a conclusão do trabalho de campo foi pos-
já concluído (LOURENÇO 2007), e para a salvaguarda sível verificar o potencial arqueológico desta área de
dos sítios que nos foi possível inventariar. estudo, tais foram os indicadores da ocupação dia-
al-madan
online VI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
crónica do território concelhio, e simultanea-
mente a definição de novas estratégias me-
todológicas que se poderão aplicar no âmbito
de novos projectos, direccionados para temá-
ticas específicas de investigação de carácter
regional.

Bibliografia

ALARCÃO, J. (1988) – O Domínio Romano em Por-


tugal. Mem-Martins: Publicações Europa-Amé-
rica.
ALARCÃO, J. (1991) – “As Origens do Povoamento
na Área de Viseu”. Conímbriga. Coimbra. 35: 5.
FABIÃO, Carlos (1989) – Sobre as Ânforas do Acam-
pamento Romano da Lomba do Canho (Arganil).
Lisboa: UNIARQ.
FERREIRA, M. Mulize e FERREIRA, A. Manuela (1993) Figura 4
– “A Toponímia do Concelho de Almodôvar”. Vi-
pasca, Arqueologia e História. Aljustrel. 3: 99- Estrada romana da Pedra da Sé.
-119.
LOURENÇO, Sandra (2007) – O Povoamento Alto
Medieval Entre os Rios Dão e Alva. Lisboa: IPA (Traba- SANTOS, Suzana; BRAGANÇA, Filipa; NETO, Filipa e LOU-
lhos de Arqueologia, 50). RENÇO, Sandra (2001a) – “Balanço do Levantamento Ar-
LOURENÇO, Sandra; SANTOS, Suzana e BRAGANÇA, Filipa queológico do Concelho de Tábua”. Al-Madan. Almada.
(2003) – Relatório dos Trabalhos Arqueológicos Reali- IIª Série. 10: 208.
zados no Sítio Arqueológico de Pombal (Covas, Tábua). SANTOS, Suzana; LOURENÇO, Sandra; NETO, Filipa e BRA-
Policopiado. GANÇA, Filipa (2001b) – “O Sítio Arqueológico do Cas-
MACHADO, J. P. (1977) – Dicionário Etimológico da Lín- tro da Picota (Tábua)”. Estudos Pré-Históricos da Beira
gua Portuguesa. 5 vols. Alta. Viseu. 8.
NUNES, J. Castro; FABIÃO, Carlos e GUERRA, Amílcar SARAIVA, J. Costa (1986) – Monografia de Midões. S.l.:
(1990) – “As Lucernas do Acampamento Romano da Escola Tipográfica das Missões.
Lomba do Canho (Arganil)”. Conímbriga. Coimbra. 29: VEIGA, António Duarte d’Almeida (1911) – Midões e o seu
69-90. Velho Município. Lisboa: Cernadas & C.

PUBLICIDADE

AGENDA ONLINE
toda a informação...
... à distância de alguns toques
reuniões científicas | acções de formação
novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt

al-madan
VI online
adenda
5 electrónica
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Uma Primeira Leitura r e s u m o

Síntese interpretativa do levan-


tamento arqueológico do con-

da Carta Arqueológica celho de Avis (Portalegre), com


uma primeira abordagem aos
diferentes momentos de ocu-
pação do território, do Paleolí-
tico à Idade Contemporânea.

de Avis
Os resultados evidenciam o po-
tencial arqueológico da região
e constituem forte motivo para
a continuação do projecto.

p a l a v r a s c h a v e

Prospecção arqueológica; Car-


ta arqueológica.
por Ana Ribeiro
Arqueóloga (Município de Avis)
a b s t r a c t

Brief interpretation of the ar-


chaeological survey of the Avis
Carta Arqueológica de Avis municipality (Portalegre), refer-
ring to the occupation of the
projecto Carta Arqueológica de Avis muitas das referências reunidas eram demasiado va- territory at different moments

O integra-se no âmbito do plano de activi-


dades arqueológicas desenvolvido pelo
Município de Avis. Iniciada em 2005, constitui um
gas ou imprecisas quanto à localização e caracteriza-
ção dos vestígios, tendo-se, também, verificado o de-
saparecimento de sítios devido à actividade agrícola
in time, from the Palaeolithic to
the Contemporary Age.
The results show the region’s
archaeological potential and
prove the importance of carry-
levantamento fundamental para o estudo, protecção, e à construção da barragem do Maranhão. Era, por
gestão e divulgação do Património arqueológico do isso, fundamental rever os dados existentes, desen- ing on this project..
concelho. volvendo-se, simultaneamente, estratégias orienta- k e y w o r d s
Os trabalhos referentes à primeira campanha das para a identificação de novos sítios.
permitiram, por um lado, relocalizar um conjunto de Os trabalhos realizados possibilitaram, no final Archaeological survey; Archae-
sítios referenciados em anteriores trabalhos, e, por da campanha, alterar o quadro de referência existen- ological map.
outro, identificar novos sítios arqueológicos, desde a te, e iniciar a sistematização dos dados, criando uma
Pré-História até períodos mais recentes da História. visão integrada dos vestígios arqueológicos.
Os dados apresentados são o resultado dos trabalhos A elaboração da primeira síntese interpretativa r é s u m é
de gabinete e de prospecção, realizados durante três com base nestes resultados permitiu a realização de
meses, no período compreendido entre Julho de 2005 uma primeira abordagem aos diferentes momentos Synthèse interprétative de l’in-
e Junho de 2006. de ocupação do território, contribuindo, de forma ventaire archéologique de la
municipalité de Avis (Portale-
A pesquisa foi dificultada pela escassez de estu- significativa, para o desenvolvimento do projecto. gre), avec une première appro-
dos sobre a Arqueologia de Avis, resultantes de inter- che des différents moments
venções esporádicas e de âmbito crono-cultural limi- d’occupation du territoire, du
tado, associado, sobretudo, ao megalitismo funerário O território: breve enquadramento Paléolithique à la Période Con-
e a sítios integráveis no período romano. Alguns dos administrativo e natural temporaine.
Les résultats mettent en évi-
trabalhos realizados caracterizam-se pela imprecisão dence le potentiel archéologi-
na localização dos sítios, pela utilização de mapas em Avis situa-se no Alto Alentejo, no distrito de Por- que de la région et constituent
escala reduzida e pela omissão do tipo de sítio assi- talegre, e tem como zonas limítrofes os concelhos de un motif fort pour la poursuite
nalado, factores que dificultaram a interpretação dos Ponte de Sor, a Norte e Oeste, Alter do Chão, a Norte du projet.
elementos e a sua identificação. e a Este, Fronteira e Sousel, a Oeste e Sudeste, e
m o t s c l é s
Paralelamente, alguns particulares promoveram Mora, a Sudoeste.
recolhas de materiais arqueológicos, constituindo co- Com uma área de 606 km2, distribuem-se pelo Prospection Archéologique; Plan
lecções privadas, totalmente desconhecidas, ou do- concelho as oito freguesias que o constituem: Alcór- Archéologique.
ando alguns dos vestígios recolhidos ao Museu Mu- rego, Aldeia Velha, Avis, Benavila, Ervedal, Figueira
nicipal de Avis. e Barros, Maranhão e Valongo. Salienta-se a inte-
A revisão destes elementos e a relocalização dos gração no seu território da Albufeira do Maranhão e
sítios já conhecidos foram uma prioridade na primei- de uma pequena fracção da Albufeira de Montargil,
ra campanha da Carta Arqueológica, uma vez que no limite Oeste do concelho.
al-madan
VII online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Num outro contexto, encontra-se a


ribeira de Santa Margarida, associada
à bacia hidrográfica da ribeira de Sor.
Devido às características favorá-
veis à ocupação humana da região,
encontram-se no concelho vestígios
de uma ocupação recuada, associada
a sítios arqueológicos que remontam
à Pré-História e se prolongam até à
actualidade.

História sucinta da
Arqueologia no concelho de Avis

As referências ao património ar-


queológico de Avis devem-se aos tra-
balhos desenvolvidos no concelho
desde o final do século XIX, os quais
permitiram, apesar de realizados com
objectivos e metodologias bem diver-
sificados, reunir um conjunto de ele-
mentos fundamentais para a caracte-
rização arqueológica desta região.
Figura 1 A área em estudo situa-se numa zona de fron- No entanto, alguns desses trabalhos foram reali-
teira entre a Bacia Terciária do Baixo Tejo, constituí- zados de forma esporádica, logo, sem a continuidade
Distribuição dos sítios
da por sedimentos terciários e quaternários, e com o necessária para o desenvolvimento da investigação
arqueológicos e dos elementos de
interesse etnográfico registados na Maciço Antigo, constituído por rochas mais antigas, arqueológica na região, nomeadamente no que res-
primeira campanha da Carta eruptivas e metamórficas, do Pré-Câmbrio e do Pa- peita à identificação das diferentes fases de ocupação
Arqueológica de Avis. leozóico, correspondente à zona de Ossa Morena do território e à caracterização dos períodos crono-
(LOPES 2008: 3 e 4). lógicos identificados.
O concelho apresenta um relevo fraco, que varia Apesar do contributo de todos os que, de dife-
entre os 60 e os 240 m, caracterizando-se por uma rentes formas, se debruçaram sobre o Património ar-
planura, de relevo ondulado suave a muito suave queológico do concelho, o facto é que esses traba-
(URBITEME 1992: 16). Marcado pela diversidade geo- lhos estão pouco documentados.
lógica, a litologia de base que compõe o concelho de As primeiras referências publicadas para o Patri-
Avis enquadra-se em formações pré-câmbricas e mónio arqueológico do concelho de Avis remontam
paleozóicas, constituídas por uma grande variedade ao final do século XIX, altura em que foram reali-
de metassedimentos, como os xistos, grauvaques, zadas escavações em alguns monumentos megalíti-
quartzitos, conglomerados e rochas carbonatadas cos (SILVA 1895 e 1896).
(LOPES 2008: 16). Na zona Oeste do concelho verifi- Posteriormente, no decurso de uma viagem, José
ca-se a ocorrência de depósitos de cobertura, consti- Leite de Vasconcelos permanece alguns dias em Avis,
tuindo uma estreita faixa, correspondente aos depó- período durante o qual reúne um conjunto de mate-
sitos continentais pertencentes à Bacia Terciária do riais recolhidos no concelho e promove uma esca-
Tejo (IDEM: 8). vação no sítio arqueológico da Ladeira (VASCONCE-
Tendo em consideração esta diversidade litoló- LOS 1912).
gica, as principais unidades pedológicas identifica- No contexto dos trabalhos arqueológicos rea-
das no concelho correspondem a solos mediterrâ- lizados em Avis, os monumentos megalíticos assu-
neos pardos e vermelhos ou amarelos, e solos litóli- miram um papel de destaque, sobretudo até meados
cos não húmidos, registando-se também, em man- do século XX. Dos trabalhos publicados destaca-se,
chas mais dispersas, os solos podzolizados e litoso- para além do estudo do núcleo megalítico da Ordem
los (IDEM: 26). (CORREIA 1921: 63-64), o levantamento das antas do
Todo o concelho é marcado pela bacia hidrográ- concelho de Avis, realizado por Georg e Vera Leisner
fica da Ribeira de Seda, linha de água de carácter nos anos 50 (LEISNER e LEISNER 1959). Apesar de ser
permanente, e os seus principais subsidiários – ribei- um trabalho de referência para o estudo do mega-
ra Grande ou de Avis, ribeira do Sarrazola, ribeira da litismo da região, a cartografia, a uma escala reduzi-
Enxara, ribeira do Almadafe e ribeira do Alcorrego. da e pouco perceptível, e a falta de elementos de re-
al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 2

Relatório de escavação da Anta da Capela. Silva,


M. de Mattos (1895). Manuscrito.

sítios e monumentos, efectuados entre 1999 e 2000


pelo Instituto Português de Arqueologia, através da
sua Extensão no Crato.
Compreendendo a importância de conhecer o seu
Património, o Município de Avis promoveu o pro-
jecto de investigação Carta Arqueológica de Avis, no
sentido de dotar o concelho de um documento onde
estejam inventariados, tão exaustivamente quanto
possível, os vestígios existentes, numa perspectiva
que ultrapassa a simples compilação de referências
bibliográficas e documentais.
ferência dificultaram a correspondência de dados, O projecto, iniciado em 2005, irá, certamente,
nomeadamente no que respeita aos conjuntos mais traduzir-se numa nova dinâmica na abordagem ar-
numerosos. queológica do concelho, através da estruturação dos
As referências a Avis tornam-se escassas a partir dados reunidos num discurso histórico coerente, ela-
da década de 50. No final de 1972, o Centro Piloto borado numa perspectiva regional.
de Arqueologia do Secretariado da Juventude desen- Os resultados parciais dos primeiros trabalhos
volve um plano de prospecção e inventariação ar- foram incluídos na Notícia Explicativa da Folha 32-
queológico-histórica do concelho de Avis, na se- C da Carta Geológica de Portugal, escala 1/50 000.
quência da notícia do aparecimento de várias sepul-
turas na Herdade da Carapeta. Os trabalhos, desen-
volvidos entre o final de 1972 e 1973, possibilitaram A primeira campanha da Carta Arqueológica
o registo de um pequeno conjunto de vestígios.
No início da década de 80, a actividade arqueo- Questões gerais de metodologia
lógica no concelho adquire um novo impulso, com a
realização de trabalhos de prospecção e escavação Os trabalhos desenvolvidos na primeira campa-
no sítio romano de Bembelide (SISMET 1984). nha da Carta Arqueológica de Avis compreenderam
Posteriormente, a necrópole da Carapeta foi a recolha bibliográfica e de informação oral, a aná-
objecto de uma nova intervenção arqueológica, ini- lise cartográfica e de fotografia aérea e a realização
ciada em 1989 e que se prolongou até 1991 (FER- de prospecções, com vista à relocalização dos sítios
REIRA 1991a, 1991b e s.d.). Nesta altura foram tam- já conhecidos e à detecção de novos vestígios arqueo-
bém realizadas algumas prospecções no concelho, lógicos.
orientadas, sobretudo, para a identificação de sítios Atendendo às diversas condicionantes que se
integráveis no período romano (FERREIRA 1992). impuseram aos trabalhos de prospecção, optou-se
A detecção de alguns sítios arqueológicos surge por uma abordagem selectiva das áreas a prospectar,
também associada ao Grupo de Trabalho e Acção privilegiando-se os locais com um maior número de
Cultural Ervedalense - Secção de Arqueologia, que, factores favoráveis para a implantação de grupos hu-
em 1976, desenvolveu alguns trabalhos de escava- manos. Os critérios de selecção foram aplicados em
ção e prospecção, sobretudo na freguesia do Ervedal, função dos períodos cronológicos e das realidades
assim como às doações de peças arqueológicas efec- paisagísticas.
tuadas, por particulares, ao Museu Municipal de Para além da identificação de novos sítios, pri-
Avis. As recolhas de materiais arqueológicos, de for- vilegiou-se, nesta primeira campanha, a relocaliza-
ma esporádica ou intencional, originaram algumas ção dos locais referidos na bibliografia ou em levan-
colecções privadas cujo conteúdo e extensão são ain- tamentos anteriores. Contudo, nem sempre foi pos-
da desconhecidos. sível a identificação dos sítios devido à imprecisão da
A estas intervenções juntam-se outras iniciati- sua localização. A construção da barragem do Ma-
vas, mais recentes, relacionadas com a protecção e ranhão, na década de 1950, contribuiu também para
valorização do Património arqueológico concelhio, e a alteração dos registos mais antigos, provocando o
que envolveram a limpeza e a sinalização de algu- desaparecimento, total ou sazonal, de alguns pontos
mas antas existentes no concelho, acções promovi- de interesse arqueológico.
das pela Região de Turismo do Norte Alentejano, em A análise cartográfica, sobretudo da topografia e
colaboração com a Câmara Municipal de Avis, e toponímia, precederam e acompanharam as acções
com os trabalhos de relocalização e identificação de em campo. A recolha de informação oral junto da po-
al-madan
VII online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

pulação local foi também um Para efeitos de registo de campo, foram reunidos
meio para a detecção, directa numa ficha individual os seguintes critérios de iden-
ou indirecta, de sítios arqueo- tificação dos sítios: número, designação, folha da
lógicos, revelando-se, em al- Carta Militar de Portugal, escala 1:25 000, tipo, cro-
guns casos, eficaz na localiza- nologia, coordenadas, trabalhos arqueológicos, des-
ção de vestígios ou relatando a crição, estado de conservação, uso do solo, ameaças,
destruição de áreas de interes- referências bibliográficas e observações.
se arqueológico. O preenchimento dos campos referentes à carac-
Para os trabalhos de pros- terização do sítio – tipo, cronologia, estado de con-
pecção, a visibilidade do ter- servação, uso do solo e ameaças – foi realizado com
reno foi, sem dúvida, determi- base no thesaurus do IPA, com a introdução de ele-
nante na detecção de vestígios. mentos considerados relevantes:
No decurso das acções em – No tipo de sítio foi introduzido o conceito de
campo, algumas das áreas per- “achado disperso”, onde se integram os sítios com
corridas apresentavam um co- mais de duas peças, mas em número insuficiente pa-
berto vegetal denso e inalterá- ra a sua caracterização;
vel, como, por exemplo, os ter- – Considerou-se, no campo referente ao estado
renos adjacentes à Ribeira de de conservação, ser mais correcta a designação de
Santa Margarida, em Aldeia “danificado”, em substituição do conceito “mau”;
Velha ou junto à Barragem do – No campo referente ao uso do solo, foram in-
Maranhão. O ritmo da activi- cluídos os conceitos de:
dade agrícola, que abrange 1. “Albufeira”, de forma a abranger um conjun-
uma parte significativa do to de sítios afectados, permanente ou sazonalmente,
concelho, condicionou tam- pela albufeira da barragem do Maranhão;
bém a cobertura de algumas 2. “Habitacional”, referente a locais de habitação
zonas, uma vez que a disponi- fora das áreas urbanas (por exemplo, o monte alen-
bilidade para realizar as pros- tejano)
pecções decorreu em momen-
tos menos favoráveis para a Para além dos sítios e monumentos arqueológi-
identificação de vestígios à su- cos, todos os locais de interesse etnográfico identifi-
perfície. cados no decurso dos trabalhos de campo foram tam-
Finalmente, o conheci- bém registados, num total de 54, através de inven-
mento de modelos de povoa- tário próprio, criado para o efeito, e onde se incluí-
mento, definidos para outras ram os seguintes campos: número, identificação, de-
regiões, assim como da Histó- signação, folha da Carta Militar de Portugal, escala
ria local, foram também uti- 1:25 000, freguesia, tipo, cronologia, estado de con-
Figuras 3 e 4 lizados como indicadores na identificação de vestí- servação, uso do solo, ameaças, classificação e regis-
gios arqueológicos, ainda que de forma superficial to fotográfico. Os critérios utilizados para o preen-
Reserva de Arqueologia. Machados
de pedra polida (em cima).
nesta primeira campanha. chimento deste inventário foram os mesmos utiliza-
Em baixo, pesos de tear, Chafariz 1,
Os trabalhos foram desenvolvidos pela equipa dos para os sítios arqueológicos, com a introdução
Benavila. Recolha realizada em de Arqueologia do Município de Avis, constituída, à de designações, sobretudo ao nível das tipologias,
1992 (?). data dos trabalhos, por três elementos 1, que contou sempre que se revelou necessário.
com a participação pontual de alguns elementos do Todos os locais registados durante a primeira
Clube de Arqueologia e de colaboradores através do campanha foram assinalados na respectiva folha da
Programa Municipal de Ocupação dos Tempos Carta Militar Portuguesa, escala 1:25 000, tendo si-
1 Os trabalhos, coordenados pela Livres Jovens em Movimento 2. do posteriormente transferidos para cartografia digi-
Arqueóloga Ana Ribeiro, foram tal georeferenciada.
realizados com a colaboração de Inventariação de sítios arqueológicos
Carlos Simas e António Elisiário. Trabalho de gabinete e de laboratório
2 Participaram pontualmente nesta
Para o registo dos sítios arqueológicos identifi-
campanha a Arqueóloga Margarida
Salvador, colaboradora do projecto
cados foi elaborada uma ficha individual de monu- Os trabalhos de prospecção incluíram a recolha
do Clube de Arqueologia, e os mento / sítio arqueológico, na qual foram reunidos selectiva 3 de materiais arqueológicos à superfície,
seguintes elementos: César Lopes, os aspectos considerados mais significativos para a com preferência para os materiais de potencial crono-
Elsa Simões, Euclides da Silva, sua caracterização em termos espaciais e artefactu- -cultural, de forma a ser possível reunir, através das
Fábio Silva, Filipa Portela, Henrique
Portela, Jeremy Martins, João Saias,
ais. A partir desta ficha será elaborada uma base de informações fornecidas pelo espólio, o máximo de
João Calhau, José Bernardo e Rita dados, complementando a cartografia digital geore- elementos que auxiliem na caracterização de cada
Portela. ferenciada. um dos sítios.
al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
O tratamento dos materiais arqueológicos reco-
lhidos foi realizado pela equipa de Arqueologia e
contou com o apoio de alguns dos colaboradores que
participaram nos trabalhos de campo. Os materiais
foram lavados, marcados, inventariados e classifica-
dos por sítio, tendo sido, posteriormente, acondicio-
nados em sacos e armazenados em contentores devi-
damente identificados e depositados na reserva pro-
visória de Arqueologia do Museu Municipal de Avis,
até que seja possível a sua transferência para a reser-
va do Centro de Arqueologia de Avis.
A informação reunida ao longo da campanha foi
sistematizada e analisada, tendo sido criada uma ba-
se cartográfica digital georeferenciada para a loca-
lização dos vestígios arqueológicos.

Resultados obtidos

Os elementos reunidos, não obstante as limita- Estes materiais revelam uma patine relativamen- Figuras 5 a 7
ções, fornecem desde já uma amostra significativa te homogénea e rolada, associada a erosão fluvial,
Anta da Cumeada 1, Benavila
da ocupação do território. A partir da análise dos da- facto que, aliado à dispersão deste tipo de artefactos,
(em cima, à esquerda), Anta dos
dos cartografados, parece ser fácil entender que o sugere uma deposição secundária, sendo difícil a Morenos, Aldeia Velha (em cima,
número de sítios e monumentos de interesse arqueo- identificação das verdadeiras jazidas arqueológicas. à direita) e Anta do Penedo da
lógico registados tenderá, certamente, a multiplicar- A construção da Barragem do Maranhão, na dé- Moura, Figueira e Barros.
-se, uma vez que algumas áreas do concelho foram cada de 1950, foi determinante para o desapareci-
visitadas pontualmente. mento de eventuais contextos privilegiados para uma
Nesta campanha foram registados, no total, 97 ocupação durante o Paleolítico, a qual poderia ser as- 3 Esta selecção diz respeito

sítios, dos quais 50 se encontram referidos na biblio- sociada, como no concelho de Ponte de Sor (PONTIS exclusivamente aos materiais
cerâmicos e é feita em função da
grafia, oito surgem apenas registados em trabalhos 1999), a terraços adjacentes às principais linhas de informação recolhida em cada sítio.
arqueológicos anteriores não publicados, e 39 eram, águas que atravessam o concelho de Avis. Deste modo, onde abundem
até à data, totalmente desconhecidos. Durante esta primeira campanha não foram iden- materiais de superfície, será dada
A ocupação humana da região parece remontar a tificados sítios de cronologia tão recuada, facto que preferência aos fragmentos
classificáveis ou com decoração,
períodos integráveis na Pré-História antiga, associa- não invalida que, em futuros trabalhos, não se pos- enquanto que nos sítios com
das a escassos artefactos feitos sobre seixo rolado de sam vir a registar manchas de ocupação atribuíveis a escassez de elementos será recolhido
quartzito e em sílex. contextos mais antigos. o maior número de fragmentos.

al-madan
VII online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

outros e quase todos os monumentos apresentam um


corredor, geralmente médio ou longo.
As antas são construídas em granito, tendo sido
detectadas algumas excepções, onde outros materi-
ais são utilizados pontualmente na sua construção,
como por exemplo nas antas da Torre do Ervedal 2,
Coutada e Passarinhos, ou são a matéria-prima ex-
clusiva empregue na sua edificação, como se verifi-
ca na Anta dos Morenos e de Colos.
A maioria dos monumentos surge desprovido de
tumulus, restando, na maioria dos casos, vestígios,
mais ou menos evidentes, do que seria a sua estrutu-
ra original. Esta estrutura foi danificada por acção da
erosão e crescimento da vegetação, mas o principal
factor para o seu desaparecimento progressivo foi,
sem dúvida, a actividade agrícola. Do conjunto assi-
nalado merecem destaque, pelo grau de conservação
da estrutura externa, as antas do Monte das Freiras,
localizadas nas imediações da Ribeira da Sarrazola.
De referir ainda que parece ser relativamente
comum a associação de blocos de quartzo ao tumu-
lus das antas, verificando-se uma relativa concen-
tração de pedras nas imediações de alguns monu-
mentos. Este facto fez com que algumas antas fos-
sem utilizadas para despejo e acumulação de pedras
resultante da limpeza de áreas agrícolas.
Algumas das antas evidenciam, sobretudo na
tampa, “covinhas” isoladas – Enxara 1 e Ordem 1 –
ou em conjunto – Ordem 7, Cumeada 1, Coutada,
Olival da Anta e Torre do Ervedal 4.
Num contexto não funerário, foram identifica-
dos três conjuntos de “covinhas” nas imediações de
antas – Pedra de Ferro, Torre do Ervedal 7 e Monte
da Horta 1. Dadas as características destes elemen-
tos, é difícil de determinar a sua função e cronologia,
mas para os primeiros dois exemplos, refere-se a
proximidade com os conjuntos megalíticos da En-
Figuras 8 e 9 Do conjunto de vestígios reunidos, o elemento xara e Torre do Ervedal, respectivamente.
mais representativo surge associado ao megalitismo A qualidade da matéria-prima utilizada na cons-
Em cima, Anta da Enxara 1, Valongo.
de cariz funerário. trução de alguns monumentos fez com que os esteios
As antas foram o objecto preferencial das inter- fossem cobiçados em períodos posteriores, deixando
Em baixo, covinhas e marcas de
corte. Pormenor da Anta Ordem 7,
venções arqueológicas na região desde o final do marcas de entalhe para aproveitamento de pedra ou
Núcleo Megalítico da Ordem, século XIX (SILVA 1895 e 1896), mas é só no final da levando mesmo à destruição parcial ou total de
Maranhão. década de 1950 que se realiza o primeiro levanta- alguns monumentos.
mento destes monumentos (LEISNER e LEISNER 1959), Um número significativo dos monumentos iden-
registando-se 63 antas no concelho de Avis, das quais tificados encontra-se afectado pela vegetação, a qual
32 foram relocalizadas no âmbito da Carta Arqueo- gerou, em alguns casos, situações delicadas em ter-
lógica, tendo-se detectado, também, o desapareci- mos de conservação, como é o caso das antas dos
mento de cinco monumentos anteriormente assina- Morenos ou do Olival da Anta, considerados os mais
lados (IDEM: n.º 4, 15, 29, 35 e 53). graves detectados até ao momento.
Os monumentos surgem implantados, preferen- Desconhece-se, ao certo, a riqueza material que
cialmente, próximo de linhas de água, em terrenos estes monumentos albergavam. A sua dimensão po-
com escassos afloramentos graníticos ou nos limites derá ser indício de um número considerável de de-
dos mesmos. As estruturas internas são os elementos posições, as quais seriam acompanhadas por diver-
que mais se conservam. As câmaras, de média e gran- sos objectos, que motivaram, desde cedo, inúmeras
de dimensão, são simples e apresentam planta poli- acções de saque e violação promovidas por alguns
gonal, sendo a cabeceira, em regra, larga. Os esteios curiosos ou “caçadores de tesouros”. Conhece-se
que definem este espaço surgem sobrepostos uns aos apenas uma ínfima parte do que seria o espólio des-
al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
tes monumentos, facto que se deve à publicação de
alguns dos achados e às recolhas promovidas por
José Leite de Vasconcelos. Na Fundação Paes Teles
encontra-se uma parte dos materiais recolhidos pelo
Grupo de Trabalho e Acção Cultural Ervedalense -
Secção de Arqueologia. Certamente existiram outros
Figura 10
achados, recolhidos em circunstâncias diversas, e
que, actualmente, se encontram na posse de particu- Pontas de seta, Ladeira, Ervedal.
lares.
No decurso dos trabalhos de prospecção foi
recolhido apenas um único artefacto associado às
antas, correspondente a um machado de pedra poli-
da de secção rectangular, proveniente da anta de São
Martinho 1.
A um número tão elevado de monumentos de
cariz funerário deveria corresponder um número
significativo de povoados. Porém, são escassos os
locais de ocupação coevos, tendo sido identificados, Figura 11
até ao momento, dois sítios com vestígios atribuíveis Machados de pedra polida, Anta de
ao Neolítico / Calcolítico: Provença 1 e Ladeira. Fo- São Martinho 1 (Figueira e Barros)
ram ainda registados alguns achados isolados ou dis- e Areiras 1 (Ervedal).
persos que poderão indiciar novos locais de ocupa-
ção: Areias 1, Charrão, Goiã 3, Monte Ruivo 1, Lou-
riga e Santa Luzia.
O sítio da Ladeira, localizado na freguesia do
Ervedal, destaca-se do conjunto de sítios, uma vez
que forneceu, até ao momento, um maior número de
elementos relativos à ocupação pré-histórica, repre-
sentando, também, um dos mais relevantes sítios de
período romano conhecidos no concelho.
Os resultados obtidos através das prospecções
Figura 12
estiveram na origem do projecto de investigação In-
tervenção Arqueológica no Sítio da Ladeira, Erve- Cossoiros em cerâmica, Ladeira,
dal, iniciado em 2006 e actualmente em curso. Ervedal.
A partir das recolhas de superfície, foi possível
reunir um conjunto significativo de materiais pré-
-históricos, em número claramente inferior ao espó-
lio integrável no período romano, correspondente, na
sua quase totalidade, a cerâmicas manuais, de onde
se destacam os bordos espessados.
Os utensílios líticos e subprodutos de talhe fo-
ram também recolhidos, integrando pontas de seta
em sílex, lascas do mesmo material e percutores em
quartzo e quartzito.
Figura 13
A indústria sobre seixo de quartzito está também
presente, através de lascas e núcleos, mas caracteri- Cerâmica manual, Monte Ruivo,
za-se pela fraca qualidade, facto que se deve à ma- Maranhão.
téria-prima disponível nesta zona.
O espólio pré-histórico inclui ainda um elemen- A natureza dos dados recolhidos, nem sempre
to de mó manual em granito, um fragmento de barro muito abundantes, dificulta a atribuição de uma cro-
de cabana, um peso de rede em xisto, dois cossoiros nologia precisa, nomeadamente para os sítios de
em cerâmica e um fragmento que parece correspon- Monte Ruivo 1 e Louriga.
der, com algumas reservas, a um peso de tear em O período romano está documentado através de
crescente. um conjunto de sítios dispersos por todo o concelho,
A presença de cossoiros, assim como alguns associados às condições naturais propícias à ocu-
fragmentos de cerâmica, poderá estar associada a pação do território e à proximidade à rede viária, per-
uma ocupação intermédia aos períodos identifica- mitindo o fácil acesso à ligação entre Lisboa e Mé-
dos, a qual ainda se encontra por avaliar. rida, através de Alter do Chão (SAA 1959).
al-madan
VII online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

A ligação a esta via, que delimita a Norte


parte do concelho de Avis, seria feita através
de vias secundárias, uma das quais passaria
por Benavila e Ervedal, assumindo um papel
fundamental na relação entre as várias villae
e outros aglomerados da região, por possi-
bilitar o desenvolvimento de uma rede de po-
voamento rural que, para a área em estudo,
estaria associada a sítios como Bembelide
(SISMET 1994), Monte do Chafariz 1 (FER-
REIRA 1992), Carapeta 2 (FERREIRA 1990 e
1992), Defesa de Barros (BATATA et al. 2000:
244), Cardoso 2 (IDEM, IBIDEM), Ladeira
(VASCONCELOS 1912: 286; ALARCÃO 1988a:
150, n.º 136), Entre Águas 1 e Casas Novas 1.
A escassez de espólio e a presença de ce-
râmicas comuns impossibilitam uma atribui-
ção tipológica a outros locais identificados,
como é o caso do Castelo 1 (FERREIRA 1992),
Torre do Ervedal 8 e 9, Castelo 2, Goiã 2 e
Carapeta 3. A estes sítios juntam-se os acha-
dos dispersos identificados na Barroca da Ervideira priedade “em que por vezes aparecem restos antigos
e Chafariz 3. – telhas, colunas, capitéis, moedas, cacos” (VAS-
As referências às necrópoles de período romano CONCELOS 1912: 286). Na sequência desta visita, foi
são insuficientes, relacionando-se apenas com a ne- realizada uma escavação, que colocou a descoberto
crópole do Monte do Chafariz 2 (IDEM), conhecida parte de uma casa (IDEM, IBIDEM).
através de informações dos habitantes locais, que re- A descrição sumária desses trabalhos e dos ma-
latam o seu aparecimento e destruição no decurso de teriais recolhidos no Ervedal, quer durante a escava-
trabalhos agrícolas. O mesmo se verifica para o sítio ção, quer por oferta de locais, indicia a existência de
de Casas Novas 1, para o qual foi descrita a destrui- um sítio arqueológico com algum relevo. Tal facto é
ção de uma sepultura. reforçado posteriormente por Mário Saa, ao mencio-
A existência da lápide funerária na Capela de nar que no Ervedal localizava-se uma “grande es-
Figuras 14 e 15 Nossa Senhora de Entre Águas 4 (ENCARNAÇÃO 1984: tância romana, das mais intensas desta parte da
540-541, n.º 459), claramente reaproveitada, tal co- Lusitânia. Apresenta casario romano, legendas, ins-
Em cima, Carapeta 3, Alcórrego.
mo os vários silhares de granito que integram a cons- crições em caracteres latinos e ibéricos” (SAA 1956:
Mais abaixo, almofariz em mármore, trução, poderá relacionar-se com uma estrutura de 129).
Ladeira, Ervedal. cariz funerário, associada ao sítio arqueológico de Os trabalhos de prospecção realizados no âmbito
Entre Águas I. da Carta Arqueológica permitiram confirmar a pre-
Para além desta lápide, o conjunto epigráfico co- sença romana, documentada através de um conjunto
nhecido para o concelho de Avis é pouco expressivo, diversificado de materiais, dispersos por uma vasta
constituído por um monumento de cariz funerário área.
(ENCARNAÇÃO 1984: 530-531, n.º 448) e por dois mo- Os materiais romanos recolhidos à superfície in-
numentos de cariz votivo (consagrado a Fontano (?), tegram-se no padrão artefactual que habitualmente é
VASCONCELOS 1912: 286; ENCARNAÇÃO 1984: 519, encontrado nos sítios romanos de dimensão mais
n.º 437; consagrado a Bande Saisabro (?), ENCAR- alargada, e que inclui cerâmica de construção, cerâ-
NAÇÃO e SILVA 1994). mica doméstica de armazenamento, fina e comum.
O povoamento identificado organiza-se em Foram identificados, para além do opus signinum¸
torno de alguns factores estruturantes, definindo uma alguns fragmentos de granito e mármore, provavel-
rede rural de povoamento, ainda mal conhecida, e na mente associados a estruturas. Destacam-se do con-
qual a Ladeira poderá desempenhar um papel de junto de materiais recolhidos dois almofarizes em
relevo para a sua compreensão e estudo. mármore branco, um dos quais de reduzidas dimen-
As referências ao sítio da Ladeira são escassas e sões.
pouco precisas quanto à sua localização, tipologia e Nas imediações do sítio foi ainda recolhida uma
dimensão, mencionando exclusivamente a ocupação ara consagrada a Fontanus (VASCONCELOS 1912: 286;
durante o período romano. ENCARNAÇÃO 1984: 519, n.º 437).
4 Esta lápide encontra-se A primeira menção ao sítio decorre da visita de Ao nível das cerâmicas, os fragmentos de terra
classificada como Monumento José Leite de Vasconcelos a esta região no Verão de sigillata são relativamente abundantes, mas verifica-
Nacional, DG 136, de 23-06-1910. 1912, tendo visitado, no dia 7 de Agosto, uma pro- -se um predomínio de cerâmicas domésticas comuns.
al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figuras 16 e 17

À esquerda, lápide funerária, Entre-Águas 2, Benavila.

Em baixo, cerâmica decorada, Santa Luzia 1, Avis.

No que respeita às cerâmicas de armazenamento, os A sua posição permitia tam-


dollia estão presentes em número significativo, não bém a utilização de vias de circu-
se podendo dizer o mesmo das ânforas e outros con- lação fluviais, de acesso ao Tejo 6,
tentores cerâmicos de média dimensão, os quais são que, a partir do final do século IX,
menos frequentes. apresenta uma intensa navegação
Para o período que medeia a queda do Império que ligava Lisboa a Santarém, Se-
Romano e os séculos XIII-XIV, os dados não são túbal, Alcácer do Sal, Coina, To-
abundantes. Do conjunto de vestígios, destaca-se a mar, Abrantes e Coruche (TORRES
necrópole paleo-cristã da Carapeta 2, identificada no 1992: 392-393).
decurso de trabalhos agrícolas e escavada entre 1989 Apesar destas referências, a
e 1991 (FERREIRA 1991a, 1991b e s.d.). As sepulturas presença islâmica na região revela-
eram constituídas por lajes, definindo um espaço de -se apenas na toponímia. Com
planta rectangular que continha os enterramentos efeito, persistem alguns topónimos de origem ber-
colocados em posição anatómica e acompanhados, bere 7 e outros de origem árabe 8, que reforçam a
em alguns casos, por pequenas jarras, com cerca de ideia de uma estrutura de povoamento rural que ain-
10 cm, depositadas próximo dos crânios (IDEM). da se encontra por descortinar.
Os restantes dados, referentes a este amplo pe- As primeiras referências à vila reportam-se ao
ríodo, são insuficientes e vagos. Dos sítios de crono- ano de 1211, aquando da doação do lugar de Avis,
logia mais recente merece particular destaque o Cen- por D. Afonso II, aos freires de Évora (PEREIRA
tro Histórico de Avis que, pelas suas características, 1998-1999: 16, nota 45), com a condição de aí cons-
forneceu um conjunto de elementos relativos às fa- truírem um castelo e de o povoarem 9, e “donde por
ses de ocupação medieval e moderna, os quais têm força de armas pudesse lançar fora dos desctrictos
contribuído, de forma significativa, para o estudo a continua invasão dos Mouros que os infestavão”
deste espaço. (REGO 1730: fl. 5 v.º).
Desconhece-se qual terá sido a primeira ocupa- Sem dúvida que a ocupação de Avis era deter-
5 Após a conquista cristã e a
ção de Avis, embora as suas características naturais minante no controlo do território envolvente. Porém,
construção da fortificação, Avis
sugiram a existência de uma ocupação pré-romana e apesar de existir um conjunto de elementos suges- sofre uma nova investida em 1223
(ALMEIDA 1948: 51) que, no entanto, permanece por tivos, o facto é que a presença islâmica carece ainda (PEREIRA 1998-1999: 18).
confirmar. de evidências arqueológicas. 6 “Não há porto de mar. Mas esta

A posição geoestratégica e as vias de comunica- Borges Coelho faz remontar ao período islâmico ribeira, que corre junto da villa,
hé capaz de se navegar, sinco ou seis
ção terrestres e fluviais fizeram emergir, no período as torres e muralhas de Avis (COELHO 1986: 203-204). mezes do anno. Pode admitir, todos
islâmico, o lugar de Abez (HAWQAL 1971: 15 e 68), A construção das muralhas com recurso ao aparelho os barcos de Riba Tejo. Fragatas e
que viria a ser cobiçado e disputado 5 pelos cristãos, em espinha, ou opus spicatum, coincide com a técni- escaleres; e os casilheiros na força do
que aí instalam uma das mais importantes ordens na- ca utilizada nas fortificações islâmicas dos séculos Inverno” (ANTT, Memórias Paroquais,
p. 929).
cionais. VIII, IX e X (CATARINO 1997-1998: 589). No entan- 7 Bembelide – provavelmente
A estrutura viária, com variantes relativamente to, o recurso ao mesmo método construtivo não cons- Banu Balit – e Benavila, com o
ao período romano, e na qual se integra o desvio para titui, por si só, um indicador cronológico. prefixo –bem (MARQUES 1993: 141,
Avis, desempenha um papel de importantes corre- Com a identificação de materiais arqueológicos mapa 10).
8 Côrrego, referente a ribeiro
dores comerciais, servindo simultaneamente os “es- na plataforma que se desenvolve para Noroeste/Oes-
ou regato, ao qual se junta o
forços militares e pretensões hegemónicas de Cór- te, reuniram-se mais alguns dados relativos a este
prefixo –al (COSTA 1983: 35).
dova e Sevilha” (TORRES 1992: 391). Neste contex- período. Do conjunto, caracterizado pelo predomínio 9 “Castrum edificetis et populetis”
to, integra-se a ligação Santarém-Juromenha, que de formas que ocupam uma longa diacronia, salien- (ANTT, Ordem de Avis. Núcleo de
passaria por Avis (DOMINGUES 1997: 107). tam-se três fragmentos de tradição islâmica. Portalegre, mç. 2, doc. 61).

al-madan
VII online
adenda
9 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

a Necrópole do Largo Dr. Sérgio


de Castro, a Cisterna da Vila e o
sítio de Santa Luzia.
A intervenção arqueológica ao
nível do Centro Histórico possibi-
litou reunir vários elementos refe-
rentes às diversas fases de ocupa-
ção da vila enquanto espaço com
uma vivência longa e estratificada.
Contudo, estas informações care-
cem, ainda, de um enquadramento
histórico aprofundado.
No que respeita ao espaço ru-
ral, a realidade é ainda mal conhe-
cida. Os sítios integrados no perío-
do medieval-moderno correspon-
dem a locais onde foram identifi-
Figura 18 Dois exemplares, correspondentes a peças aber- cados fragmentos de cerâmica de cobertura e cerâ-
tas, evidenciam uma decoração incisa aplicada sobre mica comum. A tipologia dos materiais, assim como
Aqueduto do Monte da Horta 1,
Figueira e Barros.
o bordo – lábio canelado –, e encontram correspon- a sua ocorrência, dificultam a respectiva caracteriza-
dência em exemplares datáveis dos séculos XIII e ção. Para além destes locais, foram registados alguns
XIV (FERNANDES e CARVALHO 1995: 89-90 e 93, exemplares de arquitectura religiosa rural, dos quais
n.º 2). A estes dois fragmentos junta-se um outro idên- se destaca a capela de Nossa Senhora de Entre-
tico, recolhido na Lapa de São Bento. Um outro apre- -Águas.
senta um cordão plástico digitado, elemento associa- Situada próximo de Benavila, num outeiro isola-
do a recipientes de armazenagem de grande dimen- do, entre as Ribeiras de Seda e da Sarrazola, a cape-
são ou talhas, e que encontra paralelo nas cerâmicas la, de fundação gótica, integra sepultura com ins-
recolhidas em níveis de ocupação datáveis dos sécu- crições e uma pia de água benta quatrocentista. O
los XI e XII (GOMES e SEQUEIRA 2001: 106, figura 4; reaproveitamento de uma lápide funerária de Época
RAMALHO et al. 2001: n.º 153, 155 e 156; LOPES e Romana, assim como os vários silhares de granito,
RAMALHO 2001: 71, n.º 155). documentam a preexistência no local de uma ocu-
As referências de Ibn Hawqal quando indica, por pação romana, confirmada pelas recolhas de mate-
duas vezes, Abez ao delinear os itinerários entre as riais arqueológicos desse período na zona contígua à
principais cidades do al-Andalus na segunda metade Igreja.
do século X (HAWQAL 1971: 15 e 68; DOMINGUES Nesta aproximação ao território foi possível re-
1997: 88 e 107), constituem uma clara evidência da gistar, também, 54 locais de cronologia mais recente,
existência de um aglomerado urbano que, dado o seu identificados no decurso dos trabalhos de campo, e
papel, justificava integração na rede viária existente. que integram pontes, moinhos (de vento e de imer-
Espera-se que futuros trabalhos possam dar consis- são), estruturas agrícolas e de Arqueologia industri-
tência aos dados reunidos até ao momento e confir- al, assim como exemplares relevantes da Arquitec-
mar a presença islâmica em Avis. tura tradicional. O registo destes locais, ainda que
A importância geoestratégica de Avis atinge o realizado de forma muito superficial, uma vez que
seu expoente máximo com a reorganização militar ultrapassa os objectivos da Carta Arqueológica, po-
deste território durante o período cristão. É a partir derá conduzir a futuros trabalhos de levantamentos
dessa altura que Avis se projecta, associada à Ordem de carácter etnográfico, orientados para o estudo
de São Bento, sendo aqui que se encontram os regis- destas realidades.
tos arqueológicos mais relevantes deste período. Os resultados obtidos na primeira campanha da
Embora o Centro Histórico de Avis seja uma Carta Arqueológica, não obstante as limitações que
área arqueológica sensível por definição, destacam- caracterizaram alguns momentos dos trabalhos, são
-se alguns pontos de elevado potencial arqueológico: reveladores do potencial arqueológico da região,
o conjunto monástico de São Bento de Avis, a For- constituindo um forte motivo para a continuação do
tificação de Avis, os Paços do Concelho Medievais, projecto.
al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Bibliografia

ALARCÃO, Jorge de (1988a) – O Domínio Romano em Por-


tugal. Lisboa: Ed. Europa América.
ALARCÃO, Jorge de (1988b) – Roman Portugal. Warminster:
Aris & Philips. Vol. III.
ALMEIDA, João de (1948) – Roteiro dos Monumentos Mili-
tares Portugueses. Lisboa: Instituto para a Alta Cultura.
Vol. III.
ANTT – Memórias Paroquiais (Dicionário Geográfico).
Vol. 5, n.º 63.
ANTT – Ordem de Avis. Núcleo de Portalegre. Mç. 2, doc. 61.
BATATA, Carlos; BOAVENTURA, Rui e CARNEIRO, André
(2000) – “A Inscrição Paleocristã de Palhinha 1 e o Seu
Enquadramento”. Revista Portuguesa de Arqueologia. 3
(2): 237-246.
CATARINO, Helena (1997-1998) – “O Algarve Oriental Du-
rante a Ocupação Islâmica”. Al-Ulyã. Loulé. 6.
COELHO, António Borges (1986) – Quadros para uma Via-
gem a Portugal no Século XVI. Lisboa: Ed. Caminho.
CORREIA, Vergilio (1921) – El Neolítico de Pavía (Alen-
tejo-Portugal). Madrid: Museo Nacional de Ciencias Na-
turales.
CORTESÃO, Jaime (1966) – Portugal, a Terra e o Homem.
Lisboa: IN-CM.
COSTA, Alexandre de Carvalho (1983) – Avis. Suas fregue-
sias rurais. Compilação do que se tem escrito a respeito FERREIRA, Fernando E. Rodrigues (s.d.) – Notícia Arqueo- Figura 19
da origem dos seus nomes. Estremoz: Câmara Municipal lógica Acerca do Cemitério da Carapeta em Avis. Poli-
de Avis, p. 35. copiado. Monte Garcia Vaz 1 ou “Ponte dos
DOMINGUES, José Garcia (1997) – “O Garb Extremo do GOMES, Ana e SEQUEIRA, M. José (2001) – “Continuidades Mouros”, Alcórrego.
Ândalus e Bortugal nos Historiadores e Geógrafos Ára- e Descontinuidades na Arquitectura Doméstica do Pe-
bes”. In Portugal e o Al-Andalus. Lisboa: Hugin Editores ríodo Islâmico e Após a Conquista da Cidade de Lisboa:
(Biblioteca de Estudos Árabes, 2). escavações arqueológicas na fundação Ricardo do Es-
ENCARNAÇÃO, J. de e SILVA, J. R. Correia da (1994) – “Ara pírito Santo Silva”. Arqueologia Medieval. 7: 103-110.
Votiva Identificada em Avis (Conventus Pacensis)”. Fi- HAWQAL, Ibn (1971) – Configuración del Mundo (Frag-
cheiro Epigráfico. 46, n.º 206. mentos alusivos al Magreb y España). Valencia.
ENCARNAÇÃO, José d’ (1984) – Inscrições Romanas do LEISNER, Georg e LEISNER, Vera (1959) – Die Megalith-
Conventus Pacensis. Subsídios para o estudo da roma- gräber der Iberischen Halbinsel: der Westen. Berlim.
nização. Coimbra: Instituto de Arqueologia da Faculda- LILLIOS, Katina Tobias (2002) – “Some New Views of the
de de Letras. Engraved Slate Plaques of Southwest Iberia”. Revista
FERNANDES, Isabel Cristina e CARVALHO, A. Rafael (1995) Portuguesa de Arqueologia. 5 (2): 135-151.
– “Cerâmicas Baixo-Medievais da Casa n.º 4 da Rua do LOPES, Carla do Carmo e RAMALHO, Maria M. B. de Ma-
Castelo (Palmela)”. In Actas das Primeiras Jornadas de galhães (2001) – “A Presença Islâmica no Convento de
Cerâmica Medieval e Pós-Medieval (Tondela, 28-31 São Francisco de Santarém”. In GARB - Sítios Islâmicos
Out. 1992). Tondela, pp. 67-76. do Sul Peninsular. IPPAR / Junta da Extremadura, p. 71,
FERNANDES, Isabel Cristina Ferreira (2000) – “Castelos da n.º 155.
Ordem de Santiago: a região do Sado”. In Arqueologia LOPES, Maria de Jesus Castro (2008) – Caracterização
da Idade Média da Península Ibérica. Porto: ADECAP. Geológica e Geomorfológica do Concelho de Avis. Avis:
Vol. VII, pp. 169-185 (Actas do 3º Congresso de Arqueo- Câmara Municipal de Avis (policopiado).
logia Peninsular). MARQUES, António H. de Oliveira (1993) – “O Portugal
FERREIRA, Fernando E. Rodrigues (1991a) – Avis e a Área Islâmico”. In SERRÃO, Joel e MARQUES, António H. de
Limítrofe. Notícia arqueológica. Relatório da Campa- Oliveira (dir.). História de Portugal. Das invasões ger-
nha de 1990. Policopiado. mânicas à “reconquista”. Lisboa: Editorial Presença.
FERREIRA, Fernando E. Rodrigues (1991b) – Estação Ar- Vol. II, pp. 121-249.
queológica do Monte da Carapeta, Avis. Relatório da PEREIRA, Armando de Sousa (1998-1999) – “Avis, uma
campanha de 1991. Policopiado. Viagem a uma Vila Medieval”. A Cidade de Évora. II
FERREIRA, Fernando E. Rodrigues (1992) – Avis e a Área Série. 3: 9- 35.
Limítrofe. Notícia arqueológica. Relatório da Campa- PONTIS (1999) – Carta Arqueológica de Ponte de Sor.
nha de 1992. Policopiado. Ponte de Sor: Câmara Municipal de Ponte de Sor.

al-madan
VII online
adenda
11 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

RAMALHO, Maria de Magalhães (2002) – “Arqueologia da SAA, Mário (1964) – “Avis”. O Avisense. Julho, pp. 1-2.
Arquitectura. O método arqueológico aplicado ao estudo SAA, Mário (s.d.) – Álbum Alentejano. Tomo III, “Distrito
e intervenção em património arquitectónico”. Patrimó- de Portalegre”, p. 620, nota 1.
nio. Estudos – Ciências e técnicas aplicadas ao Patrimó- SILVA, M. de Matos (1895) – “Notícia das Antiguidades
nio. Lisboa: IPPAR. 3: 19-29. Prehistoricas do Concelho de Avis. Anta Grande da Or-
RAMALHO, Maria M.; LOPES, Carla; CUSTÓDIO, Jorge e dem”. O Arqueólogo Português. Lisboa. 1 (5): 120-125
VALENTE, Maria João (2001) – “Vestígios da Santarém e 1 (8): 214-216.
Islâmica: um silo no Convento de São Francisco”. Ar- SILVA, M. de Matos (1896) – “Notícia das Antiguidades
queologia Medieval. 7: 147-183. Prehistoricas do Concelho de Avis”. O Arqueólogo Por-
REGO, Francisco Xavier do (1730) – Descripção Geográ- tuguês. Lisboa. 2 (10): 239-240.
phica, Chronologica, Histórica e Critica da Villa e Real SISMET (1984) – Estação Romana de Bembelide (freguesia
Ordem de Avis. Reproduzido em Cadernos de Divulga- do Maranhão, concelho de Avis). Policopiado.
ção Cultural. Avis: Câmara Municipal de Avis. Ano 1, SISMET (s.d.) – Apontamentos para uma Cronologia do
N.º 1 (Nov. 1985). Concelho de Avis. Policopiado.
RIBEIRO, Ana (2004a) – “Avis, um Percurso Arqueológi- TORRES, Cláudio (1992) – “O Garb-Al-Andaluz”. In MAT-
co”. In Plano de Pormenor de Salvaguarda e Valoriza- TOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo
ção do Centro Histórico de Avis. Avis: Gabinete Técnico de Leitores. Vol. I, pp. 363-437.
Local de Avis, Câmara Municipal de Avis. Vol. A, pp. URBITEME (1992) – Plano Director Municipal. Relatório 8.
17-69 (policopiado). Geologia e Geomorfologia. Avis: Câmara Municipal de
RIBEIRO, Ana (2004b) – “Elementos para o Estudo Ar- Avis. Policopiado.
queológico do Centro Histórico de Avis”. In Plano de VASCONCELOS, José Leite de (1912) – “Pelo Alentejo. Ar-
Pormenor de Salvaguarda e Valorização do Centro His- queologia e Etnografia”. O Arqueólogo Português. Lis-
tórico de Avis. Avis: Gabinete Técnico Local de Avis, boa. 17: 284-289.
Câmara Municipal de Avis. Vol. A, pp. 89-132 (policopi- VASCONCELOS, José Leite de (1916a) – “Entre o Tejo e o
ado). Odiana”. O Arqueólogo Português. Lisboa. 21: 152-168.
ROCHA, Leonor (1999) – “Aspectos do Megalitismo da VASCONCELOS, José Leite de (1916b) – “Notas Epigráfi-
Área de Pavia, Mora (Portugal)”. Revista Portuguesa de cas”. O Arqueólogo Português. Lisboa. 21: 317-319.
Arqueologia. 2 (1): 71-94. VASCONCELOS, José Leite de (1918) – “Coisas Velhas”. O
SAA, Mário (1956) – As Grandes Vias da Lusitânia. O Iti- Arqueólogo Português. Lisboa. 23: 356-369.
nerário de Antonino Pio. Lisboa, Tomo I. VASCONCELOS, José Leite de (1991) – Religiões da Lusitâ-
SAA, Mário (1959) – As Grandes Vias da Lusitânia. O Iti- nia. Lisboa: IN-CM. Vol. III.
nerário de Antonino Pio. Lisboa, Tomo II.

PUBLICIDADE

toda a informação...
... à distância de alguns toques

Índices completos Como encomendar


Resumos dos principais artigos Como assinar
Onde comprar Como colaborar

ADENDA ELECTRÓNICA AGENDA ONLINE


mais conteúdos... reuniões científicas | acções de formação
... o mesmo cuidado editorial novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt

al-madan
online VII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
A Faiança Portuguesa r e s u

Considerações acerca de projecto de


m o

investigação sobre a presença da faian-

nas Ilhas Britânicas ça portuguesa dos finais do século XVI


e do século XVII em Inglaterra e na Ir-
landa.
A partir de evidências arqueológicas em
vinte cidades inglesas e irlandesas, a au-

um projecto de investigação tora interpreta a importância local des-


tas importações, em termos comerciais,
económicos, sociais e culturais, mas tam-
bém o seu impacto no panorama econó-
mico e produtivo de Portugal na cro-
nologia indicada.
por Tânia Manuel Casimiro
Doutoranda em História, especialidade de Arqueologia, pela Facul- p a l a v r a s c h a v e
dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lis-
boa. Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Idade Moderna; Faiança; Inglaterra; Ir-
landa.

Introdução
a b s t r a c t
a conhecida visita de Filipe III

N a Lisboa em 1619, durante os


festejos da procissão do cor-
pus christi, João Baptista Lavanha relata
Considerations on a research project
dealing with the presence of Portugue-
se faience in England and Ireland bet-
ween the end of the 16th century and
os arcos que os diferentes artesãos, merca- the 17th century.
dores e estrangeiros colocavam à entrada Based on archaeological evidence from
das diversas ruas de Lisboa. O Arco dos twenty English and Irish towns, the
author interprets the local importance
Oleiros estava situado na entrada da Rua of these imports in commercial, eco-
da Misericórdia, descrição minuciosa- nomic, social and cultural terms, but
mente já relatada por Rafael Salinas CA- also their impact on the economic and
LADO (2003). No lado esquerdo do dito ar- productive scene in Portugal in the
co, por cima da figura da arte, que segura- same period.
va na sua mão direita um vaso de “porce- k e y w o r d s
lana que se fazia em Lisboa contrafeita da
China”, surgia pequena imagem onde se Modern age; Faience; England; Ireland.
podia observar uma nau da carreira da Ín-
dia, da qual se descarregava porcelana chi-
nesa. Na mesma representação surgiam ou- r é s u m é
tros navios com bandeiras estrangeiras car- Fig. 1 − Mapa das Ilhas Britânicas, com a localização das cidades onde foi recolhida faiança
portuguesa.
regando caixas de faiança portuguesa e ou- Considérations autour d’un projet de
tros, já carregados, saíam do Porto de Lis- recherche sur la présence de la faïence
boa. Lia-se naquela representação a legenda Et nostra que mais não fizeram que identificá-la, não desen- portugaise de la fin du XVIème à celle
du XVIIème siècle en Angleterre et en
pererrant (também as nossas vão a várias regiões). volvendo interpretações acerca da sua importância Irlande.
Esta iconografia seiscentista revelava, em iní- em contextos estrangeiros. A partir de preuves archéologiques dans
cios do século XVII, o que seria confirmado contem- Foram arroladas vinte cidades com faiança por- vingt villes anglaises et irlandaises, l’au-
poraneamente por diversas intervenções arqueológi- tuguesa nas Ilhas Britânicas, onze em Inglaterra, com teure interprète l’importance locale de
cas. A faiança portuguesa produzida em Lisboa, mas predominância no Sudoeste da ilha, e nove na Irlan- ces importations, en termes commer-
ciaux, économiques, sociaux et cultu-
como veremos também a de Coimbra e Porto, era da, espalhadas pelo território (Fig. 1), oscilando os rels, mais également leur impact dans
exportada frequentemente para países estrangeiros, achados entre apenas um fragmento e várias cente- le panorama économique et productif
tendo sido detectada na Europa, África, Ásia, Amé- nas de peças. du Portugal dans la chronologie indi-
rica do Sul e América do Norte. A ampla dispersão Ainda que a produção de faiança portuguesa em quée.
deste material em território estrangeiro, ainda que território nacional ocorra desde o século XVI e com
m o t s c l é s
mencionada por alguns investigadores (CALADO grande incidência industrial até ao século XX, o pre-
1992), não tinha até ao momento sido alvo de estu- sente trabalho cinge-se cronologicamente entre os Période moderne; Faïence; Angleterre;
dos minuciosos. A única colecção à qual foi conferi- finais do século XVI e o século XVII, por esta ser a Irlande.
do algum reconhecimento tratou-se dos achados de datação oferecida pelos contextos arqueológicos on-
Amesterdão (BAART 1987), ou de alguns trabalhos de as peças foram recolhidas.
al-madan
VIII online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

O projecto

O estudo da faiança portuguesa nas


Ilhas Britânicas remonta a 2004, com a
realização de tese de mestrado em
Artefact Studies na University College
of London, orientada pelo Prof. Clive
Orton, analisando as peças exumadas
em Londres e cujos resultados se en-
contram parcialmente publicados (CA-
SIMIRO 2006). Em finais de 2005, foi
iniciado projecto de doutoramento na
Faculdade de Ciências Sociais e Hu-
manas da Universidade Nova de Lis-
boa, orientado pela Professora Doutora
Rosa Varela Gomes e patrocinado pela
Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Examinaram-se todas as evidên-
cias de faiança portuguesa identifica-
das no território em apreço, concilian-
do e cruzando informações arqueológi-
cas com dados oferecidos pela análise
de documentação escrita.
0 5 cm Os exemplares recolhidos foram
estudados e inseridos no contexto ar-
queológico que os ofereceu. A sua lo-
calização estratigráfica em relação às
estruturas, na cidade e na geografia da-
queles territórios insulares, associada à
observação de todos os materiais reco-
lhidos, sobretudo outras produções ce-
râmicas, mas igualmente numismas, vi-
dros e metais, permitiu não apenas in-
ferir a sua importância quantitativa e
qualitativa no seio da cultura material
ali recolhida, mas também apurar cro-
nologias de fabrico e exportação.
A ausência de estudos aprofundados
acerca da produção e consumo destas
peças em território português obrigou a
que a tese não incidisse somente nas
peças exportadas, mas que compreen-
da igualmente os três centros oleiros,
Lisboa, Coimbra e Porto, reconhecen-
do produções, áreas de influência e im-
portância no trato internacional.
A aproximação às oficinas portu-
guesas foi feita com base em documen-
tação escrita e em evidências arqueoló-
gicas exumadas nestas cidades, sempre
que possível associadas a oficinas, for-
nos ou zonas de despejos (ALMEIDA,
NEVES e CAVACO 2001; PAIS, PACHECO
e COROADO 2007).
O objectivo é não apenas estudar a
cerâmica exportada para as Ilhas Bri-
Figuras 2 e 3
tânicas, interpretando a sua importân-
Pratos recolhidos em Londres: com aranhões (em cima) e com decoração vegatalista (em baixo). cia comercial, económica, social e cul-
al-madan
online VIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 4
0 3 cm
Prato com rendas recolhido em Poole.

tural, mas igualmente avançar com as consequên-


cias da exportação no panorama económico e pro-
dutivo em Portugal, na cronologia indicada.

Evidências arqueológicas

As relações comerciais entre Portugal e a In-


glaterra encontram-se evidenciadas desde a Idade
Média e assentaram durante séculos em produtos
como o vinho, azeite, açúcar, ou frutas (laranjas,
limões, figos, amêndoas, nozes, etc.). Complemen-
tando este comércio, eram exportados, menos fre-
quentemente, outros bens, tais como marfim, con-
tas e alguma cerâmica (WOOLF 1975).
Da totalidade dos arqueossítios que ofereceram
faiança portuguesa, a maior parte foi identificada
como contexto doméstico ou zona de despejos de
lixo, oriundo de habitações cujos inquilinos deti-
nham considerável poder económico. Alguns dos
0 3 cm
locais foram conotados com bairros de mercadores
envolvidos no comércio com o Sul da Europa, Índia
ou Terra Nova, ou gentes ligadas a actividades marí-
timas, como se observou em Londres (Figs. 2 e 3), No entanto, a faiança portuguesa não apareceu Figura 5
Poole (Fig 4), Totnes ou Plymouth (Fig 5). Em cer- apenas em habitações, surgindo analogamente em
Prato com decoração vegetalista
tos sítios foi mesmo possível identificar a família locais que se podem conotar com actividades econó- recolhido em Plymouth.
que ali morava, como ocorreu em Dartington Hall micas e comerciais, tais como armazéns. Tal identi-
(Totnes), morada dos Champernowne, família abas- ficação ocorreu em Londres, com escavação de edi-
tada de Devon com ligação à corte. Os achados no fício que, de acordo com a documentação escrita dis-
Castelo de Dublin encontram-se relacionados com a ponível para a zona portuária da capital inglesa para
ocupação da família Wentworth, governante delega- o século XVII, se encontrava destinado ao armaze-
do pelo poder inglês a partir de 1633. namento dos produtos vindos a bordo dos navios ao
al-madan
VIII online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

serviço Companhia das Índias Orientais (DIVERS pava um lugar de relevo na economia urbana. Esta
2004). Semelhante utilidade foi atribuída a espaço realidade geográfica sugere que a cerâmica entrava
escavado em Southampton, onde se julga inclusive naqueles centros através de navios que vinham di-
que cada tipo de cerâmica usufruísse de zona especí- rectamente dos portos portugueses, pelo que não se-
fica de armazenamento (GUTIERREZ 2007). Não seria ria redistribuída através de movimentações comerci-
incomum a fragmentação da louça destinada ao mer- ais internas. As cidades do interior não deviam pos-
cado inglês aquando do seu transporte marítimo. suir um conhecimento efectivo destes materiais, cujo
Chegadas ao porto de destino e perante a sua inutili- conhecimento era adquirido directamente no porto
dade, seriam descartadas ao sair do navio. A forma de desembarque, justificando a sua escassez.
mais recorrente seria mandá-las à água junto ao por- A cerâmica recolhida nas Ilhas Britânicas reve-
to. Esta actividade encontra-se evidenciada no regis- lou conter objectos oriundos dos três centros produ-
to arqueológico das frentes ribeirinhas de cidades co- tores nacionais, Lisboa, Coimbra e Porto, ainda que
mo Londres, Plymouth e Bristol. No entanto, é pos- a maioria, conclusão obtida através da observação
sível que estas peças possam não ter chegado a In- das pastas, vidrado e decoração, tenha sido prove-
glaterra com intuito comercial, mas terem feito parte niente da capital, sem dúvidas o maior e mais espe-
do serviço de barcos portugueses que ali chegavam cializado centro produtor do país.
diariamente, sendo arremessadas borda fora depois Os objectos recolhidos oferecem maioritaria-
de partidas. mente decoração de influência chinesa, com diver-
Londres é a cidade onde mais pontos foram sos modelos de aranhões (Fig. 2), elementos vege-
identificados contendo produções esmaltadas portu- talistas (Figs. 3 e 5) e paisagens orientais. Todavia,
guesas. Esta metrópole cosmopolita deveria possuir exemplares de todas as famílias decorativas foram
extenso mercado para tais produções que, a par da identificados, com maior destaque para as rendas
porcelana chinesa, cerâmica espanhola, italiana e ho- (Fig. 4 e 6) e espirais (Fig. 6), bem como algumas
landesa, deve ter ocupado papel de destaque até ao peças com decoração armoriada. Predominam os
crescimento produtivo e qualitativo do London Delft- pratos e as taças, ainda que tenham sido recolhidas
ware. Ainda que demonstrando menos qualidade que garrafas (Fig. 8), jarros, potes, escudelas (Fig. 9) e
as produções mediterrânicas e mesmo dos Países mangas de farmácia.
Baixos, a cerâmica londrina começa timidamente a Ainda que tenhamos inventariado algumas cen-
reproduzir padrões chineses. A requisitada porcelana tenas de peças de fabrico nacional, foi desde cedo
chinesa escasseou no mercado europeu a partir de perceptível que nem todas tinham sido correcta-
1650, quando ingleses e holandeses viram, devido a mente classificadas, encontrando-se muitas atribuí-
questões internas, a China a diminuir a suas expor- das a produções italianas, espanholas ou holandesas.
tações. A solução para satisfazer o desejo dos con- Sempre que possível, todos os fragmentos com re-
sumidores passou pelo desenvolvimento de fábricas vestimento estanhífero, indiferentemente da classifi-
que, de alguma forma, conseguissem produções o cação que possuíam, recolhidos nos contextos arque-
mais semelhantes possível. É credível que os pri- ológicos seiscentistas ingleses e irlandeses, foram
meiros modelos tenham sido sugeridos por pe- por nós observados, medida que se revelou de extre-
ças oriundas de Portugal, justificando o apare- ma importância, permitindo a identificação de diver-
cimento de pelo menos três exemplares sas peças atribuídas a outras oficinas europeias.
recolhidos em escavações de unidades fa- De facto, só recentemente os equívocos em tor-
bris londrinas da segunda metade do sé- no da louça lusa têm sido resolvidos, perdendo a ce-
culo XVII, inspirando os pintores de ce- râmica portuguesa, faiança ou vermelha, a sua de-
râmica (STEVENSON 1999). signação generalista de ibérica. As primeiras identi-
Todos os locais que ofereceram ficações de faiança na bibliografia de língua inglesa
faiança portuguesa partilham a ca- devem-se a John Hurst e aos seus colaboradores,
racterística de se localizarem em pioneiros na identificação de muitas produções eu-
cidades portuárias, nas quais o ropeias medievais e modernas (ALLAN 1984; HURST
comércio internacional ocu- 1977 e 1986).

0 5 cm

Figura 6

Prato com rendas recolhido em Plymouth.

al-madan
online VIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Ainda que a tese realizada incida sobre a faiança
portuguesa descoberta na Inglaterra e Irlanda, não se
podem ignorar os frequentes achados de cerâmica
comum (tradicionalmente identificada por Merida-
-type ware), até porque, na maioria das vezes, sur-
gem nos mesmos arqueossítios. Revelando formas
como panelas, tigelas, jarros, púcaros, entre outras,
oferece maiores quantidades no Sudoeste inglês, ain-
da que a sua dispersão seja mais ampla, com achados
na Escócia e mesmo nas ilhas do canal.
Exceptuando Plymouth, todas as peças em fai-
ança portuguesa recolhidas nas Ilhas Britânicas po-
dem ser consideradas de excepcional qualidade, 0 3 cm
atendendo às suas características físicas e decorati-
vas.
Em Portugal, objectos com semelhantes atribu- No entanto, o estudo do comércio externo tem Figura 7
tos são tendencialmente recolhidos em contextos pa- necessariamente de assentar na documentação por-
Prato com espirais recolhido em
latinos ou religiosos, onde o nível de riqueza permi- tuária, pelo que estes foram os documentos que mais Londres.
tiria o consumo de cerâmicas dispendiosas. A excep- interesse nos suscitaram. Informações fundamentais
ção criada por aquela cidade pode estar conectada foram retiradas dos livros de registo de mercadorias,
com as famílias de mercadores portugueses que sa- sobretudo no que concerne a cronologias de expor-
bemos terem ali fixado residência, e que utilizariam tação, quantidades e preços, mas igualmente a forma
aquelas peças nas suas actividades quotidianas, jus- como os produtos eram transportados, bem como os
tificando o número significativo de recipientes indi- agentes envolvidos.
viduais, com decoração singela, associados a cente- Lisboa, o mais importante centro produtor, não
nas de fragmentos de cerâmica comum vermelha. conservou os seus livros alfandegários. De facto, o
Apenas um local ofereceu azulejos, Aberglas- Livro do Marco dos Navios, que registava as entra-
ney, em Carmarthen, no País de Gales, pertença da das e saídas de mercadorias no porto da capital, desa-
família Rudd no século XVII, correspondendo a co- pareceu completamente até ao século XVIII.
mum padrão geométrico (BLOCKLEY e HALFPENNY
2002). A sua descoberta avulsa nos jardins da casa
não nos permite reconhecer se estes se encontravam
a revestir paredes interiores (removidos aquando de
qualquer renovação), ou elementos exteriores como
Figura 8
paredes ou bancos de jardim, pelo que pouco pode-
mos inferir acerca da sua utilização. Contudo, a au- Garrafa em faiança portuguesa.
sência de outros contextos arqueológicos onde estes
painéis tenham sido identificados e mesmo as escas- 0 3 cm
sas informações documentais, associadas à riqueza
dos residentes, sugerem que estes produtos só entra-
riam nas Ilhas Britânicas por encomenda, em vez de
serem adquiridos a qualquer comerciante local.

A documentação

Ainda que o essencial da investigação assente


em materiais arqueológicos, estudos no domínio da
Arqueologia Histórica permitem o recurso a docu-
mentação que, de alguma forma, consegue fornecer
novos elementos para a análise da produção e expor-
tação.
Os arquivos locais das cidades produtoras foram
analisados, tentando congregar o máximo de infor-
mações possíveis acerca das oficinas e natureza da
louça produzida, complementando o trabalho já de-
senvolvido por outros autores (QUEIRÓS 1907; COR-
REIA 1918; MANGUCCI 1996; LEÃO 1999).

al-madan
VIII online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

e África. No que se refere a expor-


tações para a Inglaterra, cinco re-
ferências foram identificadas que
colocam cerâmica portuguesa em
Londres e no Sudoeste inglês, on-
de efectivamente foram recupe-
radas largas quantidades.
No entanto, a grande surpresa
surgiu quando analisámos a docu-
mentação portuária inglesa e irlan-
desa localizada nos arquivos na-
cionais de ambos países. Foram
encontradas algumas dezenas de
referências, a maioria referentes à
cidade de Londres, mas com en-
tradas de louça em Exeter e Bris-
tol. De entre alusões muito inte-
ressantes a louça e azulejos, que
contribuirão para o estudo e co-
nhecimento dos produtos exporta-
dos, destacamos a referência a car-
regamento de Lisboa, em 1678,
contendo uma caixa de “portugall
white ware” (E190 / 85 / 1 / fl. 184),
exportado a bordo do Appolby, do
mestre George Willowghby, em
0 3 cm
direcção à capital inglesa.

Figura 9 Ainda assim, os poucos exemplares sobreviven- Conclusão


tes relatam, em meados de setecentos, exportações
Escudela com aranhões recolhida
em Bristol.
de louça para os territórios ultramarinos, como o Encontra-se em avaliação e interpretação a im-
Brasil e Angola. portância da faiança portuguesa nas Ilhas Britânicas.
Coimbra vendia louça sobretudo ao centro do Não era efectivamente uma exportação em larga es-
país, mas igualmente a nações estrangeiras. A sua lo- cala, sobretudo quando comparando com as quanti-
calização como porto fluvial no Mondego não lhe dades de outras produções europeias recolhidas nos
permitia abastecer os navios de grande calado que se contextos arqueológicos e identificadas na documen-
encarregavam do comércio internacional. Desta for- tação portuária. Contudo, acreditamos que o merca-
ma, os bens deveriam ser transportados em embarca- do inglês e irlandês, ainda que não consumindo
ções mais pequenas até à Figueira da Foz, onde eram grandes quantidades de cerâmica, foi sempre um
enviados para fora do país. Foi nesta cidade que a cliente regular das oficinas portuguesas, possivel-
consulta dos Livros da Alfandega do século XVII mente com muitas peças executadas propositada-
nos forneceu algumas informações, levemente já mente para ali serem vendidas.
mencionadas por Santos ROCHA (1954). Ainda que Os arqueossítios que oferecem faiança portugue-
nenhuma referência directa tenha sido encontrada no sa expõem igualmente cerâmica italiana, francesa,
que diz respeito a exportações directas para Ingla- alemã, espanhola e holandesa, excelentes indica-
terra, surgem diversos mercadores ingleses envolvi- dores cronológicos que nos têm permitido não ape-
dos no comércio de louça, que facilmente a poderi- nas ajustar períodos de produção, mas igualmente
am ter levado para a sua terra natal. compreender a importância económica do contexto.
Relativamente ao território português, o Porto Acreditamos que a cerâmica portuguesa, devido à
revelou possuir o arquivo mais profícuo. A sua docu- sua qualidade e aprumo decorativo, características
mentação portuária regista centenas de navios, na- que, pelo menos até ao grande desenvolvimento das
cionais e estrangeiros, exportando cerâmica em di- produções inglesas e holandesas na segunda metade
recção à América do Sul e América do Norte, Europa do século XVII, a tornavam mais onerosa e requisi-
tada como produto de alta qualidade, era essencial-
mente adquirida por pessoas com boa capacidade
económica.
al-madan
online VIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Os contextos arqueológicos que a ofereceram O comércio de cerâmica azul e branca portugue-
confirmam o seu elevado custo, pois a maioria trata- sa diminuiu em finais do século XVII em direcção
-se de casas de mercadores, burgueses ou nobres, tais ao Reino Unido, e poucos são os artefactos que se
como palácios ou castelos. podem inserir nesta cronologia tardia. Existem vá-
Parece que a faiança portuguesa complementava a rias razões para esse esmorecimento comercial. No
necessidade por produções orientais que se havia es- entanto, cremos que a conjugação de diversos facto-
tabelecido na sociedade britânica desde o século XVI, res externos, associados à falta de competitividade
entrando como objecto decorativo na maioria das ha- das oficinas portuguesas, bem como a uma alteração
bitações. A diminuição das quantidades massivas de nos requisitos internacionais, que já não procuravam
porcelana que chegavam à Europa na primeira me- as produções inspiradas na porcelana chinesa do sé-
tade do século XVII, encareceu as produções chine- culo XVI, estiveram na base do fim da faiança portu-
sas, abrindo caminho à faiança portuguesa nos mer- guesa como um produto transcontinental.
cados inglês e irlandês, permitindo o acesso a con- O presente texto surge como a primeira infor-
trafacções menos dispendiosas. De facto, exceptuan- mação em português relativa a esta investigação. De
do as peças recolhidas em Plymouth e na escavação momento existem mais perguntas que respostas. En-
de Narrow Street (Londres) que revelam marcas de contramo-nos a desenvolver modelos interpretativos
uso, em mais nenhum local identificámos o desgaste que permitam explicar a importância económica e
provocado pelo manuseamento quotidiano dos social, mas também cultural e política que estas pe-
objectos, nem mesmo nas 211 peças recolhidas em ças adquiriam ao saírem das oficinas portuguesas em
Carrickfergus. direcção aos mercados inglês e irlandês.

Bibliografia

ALLAN, J. (1984) – Medieval and Post Medieval CASIMIRO, T. M. (2006) – “Portuguese Faience LEÃO, M. (1999) – A Cerâmica em Vila Nova de
Finds from Exeter, 1971-1980. Exeter: Exeter in London”. London Archaeologist. 11 (5): Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel
City Council. 115-121. Leão.
ALMEIDA, M.; NEVES, M. e CAVACO, S. (2001) – CORREIA, V. (1918) – “Oleiros e Pintores de Lou- MANGUCCI, A. (1996) – “Olarias de Louça e
“Uma Oficina de Produção de Faiança em ça e Azulejo de Lisboa. Olarias (Anjos)”. Azulejo da Freguesia de Santos-o-Velho: dos
Gaia nos Séculos XVII e XVIII”. In Itinerário Atlântida. 29-30: 531-540. meados dos séculos XVI aos meados do sécu-
da Faiança de Porto e de Gaia. Porto: Museu DIVERS, D. (2004) – “Excavations at Deptford in lo XVIII”. Al-Madan. IIª Série. 5: 155-168
Nacional de Soares dos Reis, pp. 144-145. the Site of the East India Company Dockyards MEENAN, R. (1992) – “A Survey of Late Med-
BAART, J. (1987) – “Faiança Portuguesa Escava- at the Trinity Almshouses, London”. Post- ieval and Early Post-Medieval Iberian Pottery
da no Solo de Amesterdão”. In Faiança Portu- -Medieval Archaeology. 38: 17-132. from Ireland”. In GAIMSTER, D. e REDKNAP, M.
guesa 1600-1660. Amesterdão: s.n. FANNING, T. e HURST, J. (1975) – “A Mid Everyday and Exotic Pottery from Europe, c.
BARTON, K. J. (1964) – “The Excavation of a Med- Seventeenth Century Pottery Group and 650-1900, Studies in Honor of John G. Hurst.
ieval Bastion at St. Nicholas’s Almshouses, Other Objects from Ballyhack, Co. Wexford”. Exeter: Oxbow Books, pp. 186-193.
King Street, Bristol”. Medieval Archaeology. Proceedings of the Royal Irish Academy. 75: PAIS, A. N.; PACHECO, A. e COROADO, J. (2007) –
8: 181- 212. 103-121. Cerâmica de Coimbra. Do século XVI-XX.
BLOCKLEY, K. e HALFPENNY, I. (2002) – “Aber- GUTIERREZ, A. (2007) – “Portuguese Coarsewares Coimbra: Edições INAPA.
glasney House and Gardens: archaeology, his- in Early Modern England: reflections in an QUEIROZ, J. (1907) – Cerâmica Portuguesa. Lis-
tory and architecture”. BAR British Series. exceptional pottery assemblage from South- boa: Typografia do Anuário Commercial.
Oxford. ampton”. Post-Medieval Archaeology. 41(1): REAL, M. e REIMÃO, R. (1996) – “As Origens da
BROWN, C. G. (1986) – Plymouth Excavations: 64-79. Produção de Faiança na Cidade do Porto”.
the medieval waterfront of Woolster Street and HORSEY, I. (1992) – Excavations in Poole 1973- Olaria. Barcelos: Museu de Olaria. 1: 79-86.
Castle Street: finds catalogue. Plymouth: -1983. Dorchester: Dorset Natural History and ROCHA, A. S. (1954) – História, Topografia e
Plymouth City Council (Plymouth Museum Archaeological Society. Etnografia: materiais para a história da Fi-
Archaeological Series, 3). HURST, J. (1977) – “Spanish Imported Pottery gueira nos séculos XVII e XVIII. Figueira da
BROWN, D. (2002) – Pottery in Medieval South- into Medieval Britain”. Medieval Archaeology. Foz: s.n.
ampton c. 1070-1530. Southampton: South- 21: 68-105. STEVENSON, R. (1999) – “Platform Wharf Im-
ampton Monograph Series. HURST, J. (1986) – Pottery Produced and Traded ported Pottery: potters’ inspiration or stock-in-
CALADO, R. (1992) – Faiança Portuguesa: sua in North-West Europe. 1350-1650. Rotterdam: -trade?”. Medieval Ceramics. 23: 152-153.
evolução até ao início do século XX. Lisboa: Foundation ‘Dutch Domestic Utensils’. WOOLF, M. (1975) – “Foreign Trade of London
Correios de Portugal. Museum Boymans-van Beuningen (Rotterdam Jews in the Seventeenth Century”. Transac-
CALADO, R. (2003) – Faiança Portuguesa da Papers, VI). tions of the Jewish Historical Society of
Casa Museu Guerra Junqueiro, Séculos XVII- KILLOCK, D. e MEDDENS, F. (2005) – “Pottery as England. 24: 38-58.
-XVIII. Porto: Câmara Municipal do Porto. Plunder: a 17th century maritime site in
CARVALHO, J. (1921) – A Cerâmica Coimbrã no Limehouse, London”. Post-Medieval Archaeo-
Século XVI. Coimbra: Imprensa da Universi- logy. 36: 1-56.
dade.

al-madan
VIII online
adenda
7 electrónica
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
A Faiança Portuguesa r e s

Abordagem à metodologia e aos re-


u

sultados do estudo desenvolvido des-


m o

de 1998 sobre a faiança portuguesa

no Mosteiro de S. João recolhida em trabalhos arqueológi-


cos no Mosteiro de S. João de Tarou-
ca (Viseu), o primeiro a ser construí-
do em Portugal pela Ordem de Cis-
ter.

de Tarouca
São apresentados os critérios analíti-
cos e classificativos e os métodos uti-
lizados para quantificação, organiza-
ção e gestão da informação, desen-
volvendo-se em particular o grupo
de fabrico A, enquadrável entre cer-
metodologia e resultados preliminares ca de 1650 e 1750.

p a l a v r a s c h a v e

Cerâmica; Faiança; Metodologia.


por Luís Sebastian (*) e Ana Sampaio e Castro (**)
(*) Arqueólogo, Direcção Regional de Cultura do Norte
(luispereirasebastian@gmail.com). a b s t r a c t
(**) Arqueóloga, Direcção da intervenção arqueológica no
Mosteiro de S. João de Tarouca Brief analysis of the methodology
(ana.sampaioecastro@gmail.com). and results of the study carried out
since 1998 of the Portuguese faïence
collected during archaeological works
at the Monastery of S. João de Tarou-
ca (Viseu), the first of the Cistercian
Order to be built in Portugal.
1. Introdução 1 The author presents the analytical
and classification criteria and the quan-
tification, organization and informa-
intervenção arqueológica no Mosteiro Esperamos assim contribuir de alguma forma

A de S. João de Tarouca iniciou-se em


Abril de 1998, no âmbito de um vasto
programa de reabilitação deste imóvel classificado
para a divulgação do tema e para a abertura de algu-
ma discussão em torno dos materiais em estudo, da
qual o resultado final do nosso trabalho beneficiaria
tion management methods, develop-
ing in particular manufacturing group
A, which can be dated between 1650
and 1750.
como Monumento Nacional, então afecto ao hoje certamente.
k e y w o r d s
extinto Instituto Português do Património Arquitec- Tendo a faiança portuguesa sido já alvo principal
tónico. Com a extinção deste, a continuidade do pro- ou parcial de algumas das nossas publicações 3, pro- Ceramics; Faïence; Methodology.
jecto foi assumida pela Direcção Regional de Cultu- curámos apresentar no IV Congresso de Arqueologia
ra do Norte, encontrando-se em 2009 na sua fase fi- Peninsular, decorrido em 2004 na Universidade do
nal, correspondente à conclusão do estudo das dife- Algarve, Faro, um primeiro ensaio de resultados
r é s u m é
rentes temáticas inicialmente isoladas, sua divulga- obtidos a partir da metodologia desenvolvida e apli-
ção conjunta e musealização. Ao nível da investiga- cada ao estudo cerâmico na intervenção arqueológi- Approche de la méthodologie et des
ção pretende-se, no entanto, o seu desenvolvimento, ca no Mosteiro de S. João de Tarouca. Progressiva- résultats d’une étude développée
estendendo-a a novas temáticas ainda não aborda- mente desenvolvida desde 1998, a metodologia en- depuis 1998 sur la faïence portugaise
das, não já nos moldes intensivos com que tem vin- saiada apenas então começava a permitir configurar recueillie lors de travaux archéologi-
ques dans le Monastère de S.João de
do a ser realizada, com constituição de uma equipa resultados, facto condicionado pelo enorme volume Tarouca (Viseu), le premier à avoir
de trabalho local, mas no que se espera virem a ser de fragmentos recolhidos, actualmente estimados em été construit au Portugal par l’Ordre
uma série de colaborações entre investigadores e en- 300 mil. des Cisterciens.
tidades promotoras da investigação histórica e ar- Sont présentés les critères analyti-
queológica nacional. ques et classifiants ainsi que les mé-
thodes utilisées pour la quantifica-
Tendo-se procurado desenvolver desde o início 1 Este texto corresponde a uma versão actualizada da comunicação e
tion, l’organisation et la gestion de
uma prática de divulgação permanente, progressiva correspondente texto intitulados “A Faiança Portuguesa no Mosteiro de l’information, développant particu-
e preliminar dos trabalhos, quer ao nível dos seus re- S. João de Tarouca: da Restauração à Reforma Pombalina” (SEBASTIAN e lièrement le groupe de fabrication A,
CASTRO, no prelo a), apresentados em Setembro de 2004 no IV Congresso situable entre 1650 et 1750.
sultados quer das metodologias empregues 2, procu-
de Arqueologia Peninsular, decorrido na Universidade do Algarve, Faro,
ramos mais uma vez com este texto abrir à classe no âmbito do simpósio “A Intervenção Arqueológica no m o t s c l é s
investigadora alguns dos métodos desenvolvidos e Mosteiro de S. João de Tarouca: 1998-2004”.
resultados obtidos, desta feita concernente à temáti- 2 Para mais informação sobre as publicações realizadas consultar Céramique; Faïence; Méthodologie.
ca da faiança portuguesa. a bibliografia.

al-madan
IX online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Destes, 109 375 lograram atingir a totalidade das pondência cronológico-geográfica, como meio de es-
fases de lavagem, marcação, colagem, inventariação tabelecer níveis de disposição comparativa entre gru-
e registo gráfico selectivo, sendo que 80 882 corres- pos de fabrico e, posteriormente, regiões, sítios e en-
pondem a faiança. Da totalidade das colagens resul- tidades, procurando em última análise o desenvolvi-
tou a definição de 4706 peças, sendo que 2782 cor- mento de uma caracterização cultural como reflexo
respondem a faiança portuguesa. Estas, por sua vez, de decisões e comportamentos – selecção, utilização,
distribuem-se por 971 tipologias diferentes, cuja or- distribuição e circulação (ALARCÃO 1974: 21).
ganização num quadro tipológico constituía o nosso Não sendo comum o estudo arqueológico de gran-
primeiro objectivo e, na fase interpretativa em que des acervos cerâmicos em território nacional, condi-
nos encontramos, a base de trabalho do que espera- cionados a priori pela sua ocorrência em contextos
mos vir a ser uma fiável caracterização dos fabricos de exumação arqueológica e, talvez sobretudo, pela
e práticas de consumo de faiança portuguesa em ter- elevada absorção de meios que tais estudos impli-
ritório nacional, com especial referência à região Nor- cam, teve-se em particular atenção a experiência do
te do país. estudo da cerâmica comum de Conímbriga, produzi-
Assim, perante o desenvolvimento dos trabalhos, da pelas escavações arqueológicas luso-francesas de
optámos agora por actualizar o ensaio então tentado 1964-71, com a publicação de 1180 peças ilustradas
à luz dos progressos feitos desde então, encorajados de entre 4700 desenhadas (ALARCÃO 1974: 30). A es-
pela crença de que o longo processo de maturação e te estudo juntou-se a experiência do estudo das cerâ-
3 Referimo-nos aos textos
melhoramento da metodologia desenvolvida se en- micas da Casa do Infante do Porto, resultantes das
“Faiança dos Séculos XVII e XVIII contra agora praticamente finalizado. escavações arqueológicas de 1991-1999, como pri-
no Mosteiro de S. João de
Tarouca”, entregue para publicação
Importante complemento à informação que pas- meira tentativa da aplicação dos mesmos critérios ao
em 1999 (CASTRO e SEBASTIAN, no samos a tratar, encontra-se já publicado desde 2003 estudo sistemático de um grande conjunto cerâmico
prelo e), e “Mosteiro de S. João de o texto “A Componente de Desenho Cerâmico na In- medieval e moderno, estimado em cerca de 500 000
Tarouca: 700 anos de História da tervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João de fragmentos (DORDIO e TEIXEIRA 1998).
cerâmica” (CASTRO e SEBASTIAN Tarouca” (CASTRO e SEBASTIAN 2003a), ao qual se Partindo destas experiências prévias, a caracteri-
2002b).
4 Da responsabilidade dos autores
juntou em 2004 “A Componente de Conservação Ce- zação tecnológica desenvolvida assentou na obser-
e de Sofia Catalão.
râmica na Intervenção Arqueológica no Mosteiro de vação elementar e empírica das propriedades formais,
5 Tomamos faiança pela sua
S. João de Tarouca: 1998-2002” (CASTRO, FONSECA técnicas e funcionais, intrínsecas e intencionais do
designação corrente, de cerâmica e SEBASTIAN 2004). No entanto, o primeiro carece já objecto cerâmico, num processo genérico de designa-
de argila plástica e carbonato de de actualização, dada a profunda revolução metodo- ção de diferenças e semelhanças, resultando no agru-
cálcio na dosagem aproximada de lógica que em 2006 operámos ao nível do registo pamento de materiais cujo grau de semelhanças en-
seis por quatro partes, recoberta gráfico, até hoje apenas alvo de divulgação no poster tre atributos seleccionados seja superior ao grau de
por vidrado estanífero, pintada ou
intitulado “Photogrammetry Applied to Archaeolo- diferenças, sobre o pressuposto da sua susceptível
não (LEPIERRE 1899: 99; SANDÃO
1976: vol. I, p. 25). gical Ceramics Drawing” 4, apresentado no 9th In- correspondência a uma determinada posição no tem-
6 Designamos por porcelana a ternational Symposium on Virtual Reality, Archa- po e no espaço.
cerâmica de pasta vitrificada, eology and Cultural Heritage, realizado em Braga Em termos concretos, este princípio de aborda-
preparada com argilas muito finas em 2008. gem redundou na lógica divisão prévia dos materiais
cozidas a altas temperaturas. em cinco grandes grupos gerais, como sendo a Fai-
7 Designamos por vidrado de ança (FAI) 5, Porcelana (POR) 6, cerâmica com vi-
chumbo a cerâmica recoberta de 2. Critérios analíticos e classificativos drado de chumbo (VCH) 7, cerâmica preta (PRE) 8,
esmalte de chumbo,
para o estudo cerâmico cerâmica vermelha (VER) 9 e Grés (GRE) 10, após o
independentemente do tipo de
pasta empregue. qual se realizou, dentro de cada grupo anterior, um
8 Designamos por preta a Tendo como primordial objecto a definição e en- agrupamento por pastas, considerando os seus ele-
cerâmica de aspecto negro, tendimento do universo cerâmico e sua consequente mentos não plásticos (e.n.p.) 11, a cor 12 e dureza 13.
resultante da sua cozedura em interligação ao quotidiano humano, de cariz monás- A este fez-se corresponder uma numeração única,
ambiente redutor. tico e logo específico da vivência religiosa de uma iniciada individualmente e de forma contínua dentro
9 Designamos por vermelha a comunidade a determinados níveis apartada da rea- de cada grupo geral, designada por número de pasta.
cerâmica de aspecto avermelhado, lidade secular, procurou-se definir, para o estudo dos Intercalando a análise dos materiais cerâmicos
resultante da sua cozedura em
elementos cerâmicos exumados no Mosteiro de S. João com o seu necessário tratamento, este exercício de
ambiente oxidante,
independentemente das variadas de Tarouca, uma abordagem prática e o mais directa separação por grupo geral e grupo de pasta permitiu,
técnicas de tratamento e possível em relação aos objectivos propostos: defi- nesta fase, a simplificação da colagem dos fragmen-
decoração de superfícies nição de centros produtores, conteúdos de produção, tos recolhidos, resultando por sua vez na definição
identificadas. tendências evolutivas e sua contextualização históri- de “peças”: fragmento ou conjunto de fragmentos pe-
10 Designamos por grés a
co-cultural. los quais se reconhece a presença individual de um
cerâmica obtida de argilas que, Com esta finalidade, desenvolveram-se os tra- artefacto cerâmico. A este reconhecimento de indivi-
devido à presença de substâncias
fundentes, produzem uma pasta de
balhos de investigação no sentido da classificação e dualidade correspondeu a atribuição de um número
tipo vitrificado, compacta e tipificação segundo critérios tecnológicos, conduzin- único, designado por número de peça, sendo esta nu-
uniforme. do a agrupamentos de materiais de passível corres- meração realizada de forma contínua e universal,
al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
atravessando todos os agrupamentos gerais ou de de cada designação base, ou seja, aquando da exis-
pastas. tência de uma relação de proximidade entre dois gru-
Por último, os agrupamentos de pastas obtidos pos de fabrico, passíveis de serem entendidos como
na fase anterior foram subdivididos em grupos de variantes estilísticas de uma mesma origem de pro-
fabrico, onde foram considerados todos os elemen- dução, fez-se seguir a mesma designação alfabética
tos caracterizadores, nomeadamente forma – e den- ou identificação do centro produtor por uma numera-
tro desta a técnica de modelação –, tratamento de ção até três dígitos, possibilitando assim a diferen-
superfícies – incluindo esmaltes e engobes – e deco- ciação escalonada até três níveis, passíveis de corres-
ração – e dentro desta o tipo de tintas, técnicas de pondência com diferentes períodos cronológicos,
pintura e motivos decorativos –, não descurando a correntes estilísticas ou entidades dentro de um mes-
análise de fenómenos de alteração pós-utilização e mo centro produtor.
pós-deposição, reflexo absoluto das características Baseando-se estas três fases numa análise ma-
técnicas e intrínsecas do objecto. croscópica, qualitativa e, em certos aspectos, empíri-
Contrariamente à designação numérica dos gru- ca, todos os factores são considerados em termos
pos de pasta, para os grupos de fabrico optou-se por comparativos, relativos e não absolutos, carecendo
um sistema designativo mais flexível, logo, à partida posteriormente de confirmação por análise laborato-
facilmente diferenciado do anterior pela adopção de rial, realizada por amostragem, incidindo quer nas
uma referência alfabética. Respeitando a lógica da pastas, quer nos esmaltes e tintas.
enumeração contínua e individualizada dentro de ca- Uma vez definidos os grupos de fabrico, a orga-
da grupo do nível anterior, podemos assim encontrar nização das suas peças constituintes fez-se por tipos,
um grupo de fabrico A dentro de cada grupo de pas- correspondendo cada tipo a um conjunto de peças
ta, tal como poderíamos já encontrar um grupo de que se distinguem pela concordância das suas ca-
pasta 1 dentro de cada grupo geral. Constituindo-se racterísticas intencionais, consideradas em termos de
por conjuntos de peças de produção indissociável, função, forma e decoração.
pretende-se teoricamente que a cada grupo de fabri- À semelhança do estipulado para a designação
co corresponda um género de produção 14, uma enti- dos grupos de fabrico, cuja possibilidade de adicio-
dade 15, um sítio 16 ou uma região 17. nar uma numeração tripartida permitiu manter uma
A estas possíveis delimitações espaciais, deve- correspondência lógica entre si, a organização dos
mos ainda juntar a sua diferenciação temporal, ou se- diferentes tipos definidos dentro de cada grupo de fa-
ja, dois grupos de fabrico podem corresponder teori-
camente a uma mesma entidade, sítio ou região, mas
em diferentes momentos. 11 Os e.n.p. foram considerados em termos 14 Por género de produção entende-se cada grupo de
Assim organizadas, as designações alfabéticas elementares, formais, de frequência e calibre. Em termos peças de características técnicas, funcionais, formais e
dos grupos de fabrico corresponderão a unidades de elementares, identificou-se o e.n.p. como quartzo, mica, estéticas homogéneas. Assim, será possível que a um
cerâmica moída, etc.; em termos formais, considerou-se oleiro correspondam diversos géneros de produção, por
observação que, não consideráveis como dados abso-
o grau de arredondamento apenas como arredondado lógica comercial dirigidos a diferentes grupos de
lutos, pretendem-se contudo elementos distintos da ou anguloso (ORTON, TYERS e VINCE 1993: 233); consumidores, podendo-se diferenciar não só técnica,
fase interpretativa. Como consequência prática, a de- em termos de frequência, consideraram-se três níveis: funcional, formal e esteticamente, mas igualmente por
finição de um grupo de fabrico, no pressuposto da pequena até 3 %, média de 3% a 5% e grande para mais diferentes níveis de qualidade.
de 5% (RICE 1987: 349; ORTON, TYERS e VINCE 1993: 238); 15 O conceito de entidade procura aproximar-se à
sua correcta observação, será entendida como dado,
em termos de calibre, considerámos igualmente três identificação do oleiro ou unidade de olaria ou, se
sujeitando-se a diversas interpretações ao nível da
níveis: pequeno até 0,5 mm, médio de 0,5 mm a 1 mm e quisermos, unidade de produção, extensível ao modelo
origem e cronologia. Se com o crescente desenvolvi- grande para mais de 1 mm. A distribuição dos e.n.p. não de fábrica a partir da reforma pombalina.
mento da investigação podemos apurar, ou mesmo foi pois considerada, dado serem genericamente bem 16 Por sítio pretendeu-se englobar possíveis locais de
alterar, delimitações de origem ou balizas cronológi- distribuídos em todos os materiais em estudo. Pelo produção, como a localidade ou, dentro desta, a zona
cas atribuíveis a um grupo de fabrico, este facto não mesmo motivo abandonou-se a textura como um factor em concreto, englobando por regra diversas entidades e
de caracterização, sendo ela sempre genericamente apresentando uma produção de reconhecível
accionará qualquer alteração à tipologia elaborada.
homogénea. uniformidade.
Espera-se assim, com este princípio, garantir a 12 Em termos terminológicos, a cor das pastas foi 17 Por região, indica-se de forma genérica uma área,
maior versatilidade possível ao método aplicado, su- estabelecida em relação à tabela de Munsell (1992). mais ou menos extensa, estruturada ou não no plano
jeitando-o a reinterpretações. Esta preocupação vem 13 Em termos terminológicos, a dureza das pastas foi físico, cuja produção, passível de se dividir por diversas
no sentido de salvaguardar a representação tipológi- caracterizada em quatro níveis: friável (superfície entidades e sítios, apresente reconhecível uniformidade.
desgastável pelo dedo), pouco compacta (superfície 18 Inicialmente prevista, a substituição da identificação
ca conseguida, como um valor científico absoluto,
desgastável pela unha), compacta (superfície desgastável alfabética do grupo de fabrico pela designação real da
tanto mais importante quanto o estado da investiga- por lâmina de aço) e muito compacta (não desgastável entidade, sítio ou região foi por isso abandonada. Tal
ção ceramológica Moderna e Contemporânea em Por- por nenhum dos materiais considerados), determinados apenas poderia decorrer em caso de associação
tugal se encontre em fase embrionária, logo, sujeita pelo princípio de dureza relativa entre materiais de indiscutível, como no caso das marcas de fabrico
a constantes e profundas transformações 18. referência – segundo proposta de Friedrich Mohs na sua vulgarizadas a partir da industrialização. Contudo,
escala de dureza mineral, dividida em dez patamares –, perante a natureza fragmentária dos materiais e por
No sentido de manter uma correspondência lógi-
adaptada aos materiais em estudo e tendo em apenas se verificarem marcas de fabrico de identidade
ca que trouxesse uma maior legibilidade à relação consideração anteriores experiências da aplicação deste indiscutível em faiança a partir dos meados de
cronológico-geográfica entre os diversos grupos de princípio a materiais cerâmicos arqueológicos (RICE 1987: setecentos, esta não pode por princípio ocorrer.
fabrico, criou-se um sistema de subdivisões dentro 233; ORTON, TYERS e VINCE 1993: 233; NOLEN 1994: 119).

al-madan
IX online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

brico fez-se igualmente através de uma numeração Paralelamente a todo este processo, procurou-se
até três dígitos, usada aqui de forma autónoma e não manter uma constante linha de análise comparativa
associada a qualquer outra denominação. com conjuntos arqueológicos de outras proveniên-
Desejando-se aplicar um sistema o mais flexível cias, por lógica com analogias ao nível da cronologia
e adaptável possível, esta numeração foi atribuída de e conteúdos. Ainda que dentro do mesmo princípio
forma automática e lógica em relação à constante in- da confrontação relativa entre materiais, os dados re-
trodução de novos tipos, não assumindo um cariz de colhidos neste contexto foram utilizados meramente
designação universal e estática, mas antes como uma como confirmadores, permitindo uma visão mais
identificação móvel, dependente da introdução de abrangente em relação ao conjunto estudado, não se
novos elementos e apenas inteligível no seu todo. tendo traduzido contudo em qualquer adição ao qua-
Entendida mais como um princípio que uma re- dro tipológico que, de acordo com o objectivo ini-
gra, a atribuição da designação numérica a um deter- cial, se cingiu ao universo cerâmico relacionado com
minado tipo atendeu a dois principais vectores: for- o quotidiano no Mosteiro de S. João de Tarouca.
ma e decoração. Por esta ordem, o primeiro dígito
atribuído passou a designar por defeito a identifica-
ção de uma determinada forma, flexibilizando os 3. Métodos de Quantificação
restantes dois dígitos para a diferenciação de subti-
pos dentro da mesma forma (correspondente ao se- A quantificação dos materiais exumados apre-
gundo dígito) ou, ainda, a diferenciação de tipos e senta-se na intervenção arqueológica no Mosteiro de
subtipos decorativos (correspondentemente segundo S. João de Tarouca como uma abordagem de resul-
e terceiro dígito). tados duvidáveis, dado apenas se ter escavado a área
A possibilidade da co-existência de subtipos for- correspondente às dependências monásticas medie-
mais e subtipos decorativos, obrigando à introdução vais originais – com manutenção integral ou parcial
de um quarto dígito, fica anulada exactamente pelo de pisos por motivos museológicos –, ainda que in-
critério de diferenciação ao nível dos agrupamentos cluindo as suas consequentes alterações, sobretudo
de fabrico que, considerando igualmente forma e operadas nos séculos XVII e XVIII.
decoração, levam já a uma simplificação tipológica Dadas as profundas alterações, subtracções e
dentro de cada um destes grupos. adições que o edificado sofreu, com consequentes
De forma a definir critérios de registo e referên- revolvimentos e mesmo eliminação parcial de depó-
cia, de entre cada grupo tipológico foi seleccionado sitos, a amostragem obtida apenas com imensas re-
o exemplar em melhor estado, passando a designar- servas poderá ser extrapolada ao universo em estudo.
-se por peça modelo. Estes exemplares selecciona- Perante a enormidade das variantes e condicionantes
dos passaram então a ser alvo de registo gráfico e fo- a ter em conta, a quantificação do conjunto cerâmi-
tográfico individualizado, cabendo-lhes a represen- co reunido não poderá pois nunca ser tomada por
tação do tipo em que se inserem, remetendo as res- mais que um indicador, apenas significativo em
tantes peças análogas para um valor estatístico e ocorrências de grande disparidade.
comparativo, este último importante para o isola- Perante a questão do método a aplicar, como fac-
mento de características intencionais e acidentais, in- tor meramente indicador, e apartando-nos das dis-
trínsecas ao modo de produção. Cabe ainda à peça cussões metodológicas em torno do tema, optámos
modelo a principal cedência das amostras da pasta, por juntar ao número de peças definidas a contagem
esmalte e tintas a analisar e, por fim, a sua reinte- de fragmentos e a sua pesagem, realizadas por gru-
gração com fins museológicos. pos gerais, grupos de pasta, grupos de fabrico e tipos.
Considerada nestes termos, entendeu-se a defi- Uma vez que esta abordagem apenas agora nos
nição tipológica desenvolvida como uma represen- é permitida, por depender o seu início da conclusão
tação esquemática de relatividades, abstracta em re- prévia do quadro tipológico, limitamos aqui a apre-
lação à realidade material estudada, tornando nessa sentação dos seus resultados, coibindo-nos de inten-
perspectiva desnecessários quaisquer processos des- tar qualquer interpretação, dada a precocidade do
critivos absolutos, como sendo a atribuição de de- tratamento dos dados.
signações de forma. Por se considerar um elemento
rotulador de grande subjectividade, sujeito a varia-
ções regionais, cronológicas e de divergente nomea- 4. Organização e gestão de informação
ção no contexto da relação produtor-utilizador, en-
tendeu-se a designação de forma não como uma ca- Dada a dimensão do espólio cerâmico exumado
racterística descritiva da peça, mas como produto de e correspondente volume de informação reunida, o
um apuramento tradutor de uma determinada identi- armazenamento, gestão, processamento e acessibili-
dade cultural que, extrínseca à peça cerâmica, forma dade de consulta dos dados apenas foi possível de-
só por si um outro objecto de estudo, não enquadrá- vido ao desenvolvimento específico de uma base de
vel por isso no quadro tipológico desenvolvido. dados informática.
al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Ficha estratigráfica Ficha de conservação cerâmica

Fundamental para a sua real


eficácia, a composição da ficha fez-
-se essencialmente de três grandes
conjuntos de campos, que passare-
mos a designar por identificativos,
descritivos e de gestão (Fig. 1). Po-
dem ser de preenchimento incondi-
cionado, condicionado ou automáti- Ficha cerâmica Registo gráfico - zoom
co, entendendo por incondicionado
todo o campo cujo preenchimento se
faz manualmente de forma directa e
livre, por oposição ao preenchimen-
to condicionado, ao qual são im-
postas opções de escolha múltipla
previamente definidas. De fora fica o
preenchimento automático que, co-
mo o próprio nome indica, faz-se co-
mo consequência directa do preen-
Registo fotográfico - zoom
chimento de um primeiro campo, em
que a prévia introdução de uma de-
terminada informação tem automati-
camente como resposta o preenchi-
mento de um segundo campo com a
resultante informação programada.
Dentro dos campos identificati-
vos temos o “número de inventário”,
“unidade estratigráfica”, “sonda- Layout registo gráfico Layout registo fotográfico
gem”, “sector”, “quadrado”, “data de
inventário” e “responsável”. Ao ní-
vel do seu preenchimento, temos co-
mo campos incondicionados o “nú-
mero de inventário”, a “unidade es-
tratigráfica”, o “quadrado” e a “data
de inventário”, sendo os restantes de
escolha condicionada.
Quanto aos campos descritivos,
temos o “grupo geral”, “grupo de
pasta”, “grupo de fabrico”, “tipo”,
“forma”, “peso”, “n.º de fragmentos”, “cronologia fabrico A1, grupo geral PRE poderá corresponder, Fig. 1 − Ficha de descrição e gestão
de peças cerâmicas.
de fabrico”, “cronologia de deposição” e “observa- por exemplo, um grupo de pasta 2, grupo de fabrico
ções”. A1, grupo geral FAI.
Sendo de preenchimento condicionado, o “gru- À semelhança do campo “grupo de fabrico”, o
po geral” está circunscrito às entradas “PRE”, campo correspondente ao “tipo” está em constante
“VER”, “VCH”, “FAI”, “POR” e “GRE”, enquanto adaptação ao desenvolvimento da investigação, va-
a lista de valores para o campo “grupo de fabrico” riando no entanto pelo facto do seu preenchimento
está em constante adaptação ao desenvolvimento da ser incondicionado.
investigação. Tal como referido no capítulo anterior, na defi-
De forma a diminuir o tempo de introdução dos nição tipológica realizada não se considerou a atri-
dados garantindo paralelamente a correcta corres- buição nominativa de forma. Porém, no preenchi-
pondência entre os diferentes agrupamentos, o pre- mento da ficha informática, introduziu-se o campo
enchimento do “grupo de pasta” faz-se de forma au- “forma” como mero elemento identificativo, facili-
tomática, perante a prévia programação da sua rela- tando a gestão corrente de informação sem, todavia,
ção com o respectivo grupo de fabrico. Dada a exis- transparecer no resultado tipológico final.
tência de designações iguais para grupos de fabrico O preenchimento dos campos “peso” e “n.º de
entre diferentes grupos gerais, o preenchimento au- fragmentos” fez-se de forma incondicionada, con-
tomático do “grupo de pasta” apenas acontece após siderada em gramas no primeiro caso e num valor
o preenchimento destes dois últimos campos, uma numérico único no segundo. Dada a universal capa-
vez que a um possível grupo de pasta 1, grupo de cidade de cálculo da generalidade dos softwares
al-madan
IX online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

actuais de armazenamento e gestão de dados, do sendo este igualmente um campo de preenchimento


preenchimento destes dois campos resulta a imedia- condicionado a uma lista de valores. A estes tivemos
ta disponibilização de cálculos automáticos, por nú- que acrescentar um grupo de marcadores dentro do
mero total ou restringidos a grupos de informação tema “formato”, composto por “fotografia digital”,
seleccionados. “fotografia analógica”, “impressão em papel”, “digi-
Ambos de preenchimento automático, os cam- talização de papel”, “digitalização de negativo” e
pos de “cronologia de fabrico” e “cronologia de de- “slide”. À semelhança do ocorrido com a alteração
posição” surgem como resultado de programação no método de execução dos registos gráficos, a exis-
prévia. No primeiro caso o seu preenchimento pren- tência e gestão de diferentes formatos de informação
de-se com a informação seleccionada no campo do é sintomática da profunda transformação que os
“grupo de fabrico”, enquanto no segundo resulta co- meios informáticos têm operado, nos últimos anos,
mo reacção à informação seleccionada no campo de nos métodos de trabalho quotidianos do arqueólogo,
“cronologia” da correspondente ficha de unidade es- não sendo esta multiplicidade de soluções fruto se-
tratigráfica, situada na base de dados estratigráfica não de um contínuo esforço no sentido de melhorar
que, se bem que independente da base de dados ce- práticas e obter resultados.
râmica, se encontra aqui relacionada pelo preenchi- Deste método de trabalho resultou, entre 1998 e
mento do campo “unidade estratigráfica”. De modo 2008, o preenchimento de 4706 fichas, equivalentes
a agilizar o entendimento da informação, ao campo à definição de igual número de peças. Não se consi-
“cronologia de deposição” segue-se por regra a indi- derando, contudo, a base de dados desenvolvida co-
cação da fase histórica em que se integra a unidade mo um produto acabado, mas um suporte de traba-
estratigráfica, definida em matriz estratigráfica lho em constante evolução, adaptável ao desenvolvi-
(HARRIS 1991). mento de novas necessidades, acreditamos que o seu
Por fim, no que diz respeito ao conjunto dos estado actual pouco mais evolua até ao fim dos tra-
campos descritivos, é possível ainda recorrer ao balhos.
campo “observações”, de preenchimento incondi-
cionado, que permite a introdução de qualquer infor-
mação não contemplada nos campos anteriores. 5. Grupo de fabrico A
Dentro do conjunto dos campos de gestão temos
o “armazenamento”, “peça modelo”, “bibliografia”, Como já acima referido, no capítulo sobre os
“desenho” e ”fotografia”. critérios analíticos e classificativos, o sistema em de-
O campo de “armazenamento” reserva-se à iden- senvolvimento para o estudo do espólio cerâmico
tificação do número de contentor onde a peça se en- exumado na intervenção arqueológica no Mosteiro
contra depositada, sendo por isso de preenchimento de S. João de Tarouca tem por base um princípio de
incondicionado, enquanto o campo de “peça mode- adaptabilidade constante à introdução de novos da-
lo” se limita à identificação de qual das diversas pe- dos, rejeitando a definição universal como tradutora
ças de um mesmo tipo foi seleccionada como a mais de uma realidade que apenas conhecemos na medida
representativa, logo, alvo de registo gráfico e fotográ- da amostra em estudo.
fico, bastando para tal a utilização de um marcador. Assim, o produto resultante da disposição orde-
O campo “bibliografia”, disposto num layout di- nada dos materiais recolhidos constitui, mais que os
ferente por motivos de gestão gráfica da ficha, é ace- objectos em si, o dado de maior valor científico para a
dido através de um botão correspondente, pelo qual se compreensão deste fenómeno cultural, estabelecen-
permite o preenchimento incondicionado, e respecti- do uma matriz de relações passível de reduzir frac-
va leitura, de um campo reservado à identificação de ções de uma complexa realidade a um nível de en-
fontes bibliográficas referentes à peça em causa. tendimento acessível e prático. Mais que um produ-
À semelhança da informação bibliográfica, a in- to final de análise, procura-se então gerar uma ferra-
formação relativa ao registo gráfico de peças impli- menta de trabalho, uma representação esquemática
cou a criação de um layout à parte. Repetindo os da realidade sobre a observação da qual se possam
principais campos descritivos como mero reflexo do construir hipóteses interpretativas.
layout principal, a informação específica ao registo Tratando-se de um estudo em desenvolvimento,
gráfico acrescentada compôs-se dos campos “por as designações alfanuméricas aqui expostas reme-
desenhar”, “desenhado por”, “tintado por” e “vector- tem pois exclusivamente para o preciso momento
izado por”. Apesar da alteração em termos de méto- em que este curto texto foi elaborado 19, natural-
do de execução dos registos gráficos, conservou-se a mente sujeitas a posteriores alterações pela intro-
informação relativa aos registos iniciais por tin- dução de novos dados provenientes da investigação
19 O actual texto foi desenvolvido
tagem, o que numa situação ideal não aconteceria. arqueológica ainda em curso.
sobre os dados introduzidos na Na mesma lógica de organização de dados, a in- De forma a ganhar alguma profundidade exposi-
base de dados arqueológica até ao formação específica ao registo fotográfico compôs- tiva, optámos aqui por seleccionar apenas um grande
ano de 2008. -se dos campos “por fotografar” e “fotografado por”, grupo de fabrico, designado por A, até ao momento
al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
subdividido em dezassete grupos de fabrico especí-
ficos, enquadráveis entre cerca de 1650 e 1750, com
especial incidência na segunda metade do século
XVII (Fig. 2).
Integrado no grupo de pasta 1, esta caracteriza-
-se por uma coloração entre o branco-sujo e o rosa,
especificada na tabela de cores de Munsell de 10YR
8/2 a 7.5YR 8/3, com elementos não plásticos de
cerâmica vermelha moída e quartzo de calibre pe-
queno (até 0,2 mm), angulosos, de pequena frequên-
cia (até 3 %) e pequeno calibre (até 0,5 mm), com
uma dureza que varia entre pouco compacta (super-
fície desgastável pela unha) e compacta (superfície
desgastável por lâmina de aço). A pasta apresenta Fig. 2 − Matriz tipológica do
grupo de fabrico A.
ainda comummente pequenos buracos de forma ir-
regular distribuídos por toda a superfície das fractu-
ras, podendo pontualmente aparecer alguns elemen-
tos não plásticos isolados com o diâmetro máximo médias, sobretudo nestas
de 1 mm, sobretudo constituídos por cerâmica ver- últimas, devido ao proces-
melha moída. so de armazenamento entre
Considerando o seu comportamento pós-deposi- utilizações implicar a so-
cional, o seu índice de compacticidade é altamente breposição das peças.
reactivo a diferentes estados de hidratação, dimin- Exteriormente, este es-
uindo consideravelmente em ambos os extremos de malte distingue-se por um
saturação ou desidratação, tanto mais quanto a sua fino craqueler que, nem
coloração tenda a aproximar-se do espectro branco. sempre atingindo a superfí-
Esta característica parece relacionar-se com a menor cie, provoca o seu fácil des-
presença de hematite (óxido de ferro), responsável tacamento em pequenas
pela coloração mais avermelhada e, por associação partículas – escamação –
proporcional, a maior dureza da pasta (CASTRO, FON- devido à baixa aderência à
SECA e SEBASTIAN 2004). pasta e ao pobre teor es-
O tratamento final da superfície da pasta apa- tanífero. Variando bastante
renta passar apenas pelo seu alisamento na fase de no que diz respeito à sua
torneamento. Apesar de a forte relação mecânica en- capacidade de reflexão, o maior ou menor brilho
tre o esmalte e possíveis engobes dificultar bastante parece estar sujeito a fortes variações no seu método
a confirmação da sua presença em peças acabadas, de fabrico, provavelmente com destaque para o
acreditamos hoje que estas pastas nunca receberam processo de cozedura de vidragem, bem como aos
qualquer banho de argila em calda para uniformizar efeitos pós-deposicionais a que é tão sensível 20.
superfícies e/ou clarear tonalidades, de modo a não Cingindo-se a pintura decorativa ao azul-cobalto
escurecer os esmaltes. Tal afirmação baseia-se so- e manganês, todo o grupo de fabrico A se caracteri-
bretudo na observação de peças em chacota – apenas za por pinceladas fortes, espontâneas e rápidas, re-
sujeitas à primeira cozedura de enchacotagem prévia sultando numa impressão geral de descuido onde as
à aplicação do esmalte – recolhidas entre os lixos de assimetrias e desproporções redundam num baixo ri-
produção de diversas olarias de faiança portuguesa gor interpretativo das composições propostas, apro-
de século XVI a XIX. ximando-se genericamente de uma estética de gosto
À semelhança das oscilações na coloração das popular onde a livre tradução do discurso ornamen-
pastas, a cor do esmalte estanífero tende a situar-se tal assume um verdadeiro carácter estilístico, salva-
entre Munsell 2.5Y 8/1 e 7.5YR 8/3, sendo contudo guardando o espaço necessário à manutenção da
mais heterogénea dentro de cada peça. Contraria- criatividade do pintor sem, no entanto, rejeitar a
mente, constante é a tendência para a espessura ser composição geral.
muito reduzida, falhando mesmo por vezes a cober- Como resultado mais directo desta opção, na
tura de toda a superfície, com especial incidência nas profusão ornamental dos grupos datados da segunda 20 Este facto é cabalmente
áreas do bordo e fundo do tardoz, onde frequentemen- metade do século XVII, verifica-se uma certa varie- demonstrado nas situações em que
te se torna irregular devido a escorrimentos ocorridos dade ao nível dos elementos decorativos secundá- uma mesma peça é constituída por
fragmentos recolhidos em unidades
durante a cozedura de vidragem. Esta baixa resis- rios, ainda que não numa óptica de livre criatividade
estratigráficas pedologicamente
tência mecânica do esmalte tem como resultado pós- artística, mas sim circunscrita a um limitado vocabu- distintas, onde o aspecto exterior
-utilização a sua eliminação por desgaste em áreas lário ornamental, que vive sobretudo da readaptação e geral dos fragmentos tende a
como o bordo ou o fundo externo, e inflexões inter- e alternância de conjugações das mesmas fórmulas. divergir significativamente.

al-madan
IX online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Igualmente comum a todo o conjunto, as peças


aqui reunidas apontam ter sido elevadas em torno
rápido, com visíveis esteiras radiais à superfície da
chacota, tendo sido por lógica sujeitas a duas coze-
duras, a de enchacotagem e a de vidragem, utilizan-
do trempes como separadores durante a última. Si-
milarmente à aparência geral de um fabrico descui-
dado, o negligente emprego deste sistema de sepa-
ração teve como resultado frequente acentuadas
marcas oblongas, salientes ou em forma de cavidade,
sobretudo no fundo interior.
Considerando as suas características básicas de
fabrico, estamos perante uma produção de louça de
uso corrente que evidencia a opção intencional de
minimizar custos de produção, em que o grau de se-
melhanças entre os diferentes grupos estilísticos aqui
reunidos impôs-se como superior ao grau de dife-
renças, acusando uma provável origem comum, ain-
da a comprovar através de análises (Fig. 3).

5.1. Grupo de fabrico A1

O grupo de fabrico A1 designa um vasto con-


junto de louça, cuja enorme presença em estratos
datados da segunda metade do século XVII sugere
ter-se tratado de uma produção de grande populari-
dade a nível local. Fig. 3 − Matriz formal do
grupo de fabrico A.
Subdividindo-se em três grupos principais, A1.1,
A1.2 e A1.3, o primeiro grupo é passível ainda de se
subdividir em dois, A1.1.1 e A1.1.2, distinguidos
apenas pela opção mono ou bicromática (Figs. 4, 5
e 6). 12

Fig. 4 − Matriz decorativa


dos grupos de fabrico A1.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.1
Largura máxima − 18 cm
Altura máxima − 4,8 cm
Peça modelo − n.º 1011
N.º de peças − 28
N.º de fragmentos − 166
Peso total − 2826 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.2
Largura máxima − 18 cm
Altura máxima − 4,8 cm
Peça modelo − n.º 1003
N.º de peças − 35
N.º de fragmentos − 197
Peso total − 3490 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.3
Largura máxima − 18 cm (?)
Altura máxima − 4,8 cm (?)
Peça modelo − n.º 1001
N.º de peças − 15
N.º de fragmentos − 59
Peso total − 1306 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.4
Largura máxima − 18 cm (?)
Altura máxima − 4,8 cm (?)
Peça modelo − n.º 1046
N.º de peças − 3
N.º de fragmentos − 8
Peso total − 173 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.5
Largura máxima − 18 cm (?)
Altura máxima − 4,8 cm (?)
Peça modelo − n.º 1102
N.º de peças − 5
N.º de fragmentos − 31
Peso total − 809 g

Fig. 5 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.1.1.

al-madan
IX online
adenda
9 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 1.6
Largura máxima − 18 cm (?)
Altura máxima − 4,8 cm (?)
Peça modelo − n.º 1025
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 5
Peso total − 90 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 2
Largura máxima − 14 cm
Altura máxima − 3,1 cm
Peça modelo − n.º 2347
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 4
Peso total − 85 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 3
Largura máxima − 14 cm
Altura máxima − 3,4 cm
Peça modelo − n.º 1047
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 9
Peso total − 90 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 4
Largura máxima − 14 cm
Altura máxima − 3 cm
Peça modelo − n.º 2330
N.º de peças − 11
N.º de fragmentos − 53
Peso total − 840 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 5
Largura máxima − 15 cm
Altura máxima − 5,3 cm
Peça modelo − n.º 2345
N.º de peças − 7
N.º de fragmentos − 44
Peso total − 682 g

Fig. 5 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.1.1. [cont.]

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 6
Largura máxima − ?
Altura máxima − ?
Peça modelo − n.º 1132
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 11
Peso total − 48 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.1
Tipo − 7
Largura máxima − 37,3 cm
Altura máxima − 9,4 cm
Peça modelo − n.º 2262
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 11
Peso total − -

Fig. 5 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.1.1. [cont.]

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.1.2
Tipo − 1
Largura máxima − 18 cm
Altura máxima − 4,3 cm
Peça modelo − n.º 1004
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 14
Peso total − 29 g

Fig. 6 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.1.2.

al-madan
IX online
adenda
11 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

8 Apesar de não ser actualmente possí- terior, em oposição ao perfil de formas análogas que
vel encontrar frequentes referências biblio- podemos encontrar, por exemplo, nas produções se-
gráficas aos elementos decorativos dos grupos de fa- vilhanas de século XV ou XVI (PLEGUEZUELO e LA-
brico A1.2 e A1.3, estes sugerem-nos intuitivamente FUENTE 1995: 227-229; DORDIO, TEIXEIRA e SÁ 2001:
vir na linha evolutiva do grupo de fabrico A1.1, lar- 132; BARREIRA, DORDIO e TEIXEIRA 1998: 152-153;
gamente reconhecido na faiança portuguesa da se- SOMÉ MUÑOZ e HUARTE CAMBRA 1999: 161).
gunda metade de seiscentos pela designação de “ren- Ainda que não se tenha, até ao momento, identi-
das” (CALADO 1992: 33-37) (Figs. 7 e 8). ficado todo o repertório de formas do grupo de fabri-
Igualmente distinto dos restantes grupos de fa- co A1.1.1 para os restantes grupos relacionados, pa-
brico A2 e A3, o seu repertório de formas centra-se rece-nos provável que tal venha a acontecer. A esse re-
num prato bastante covo, cujo fundo externo apre- portório devemos ainda juntar a tigela isolada no gru-
senta a solução de ônfalo, sem expressão no fundo in- po de fabrico A1.2, representada pela peça n.º 1059.

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.2
Tipo − 1.1
Largura máxima − 19 cm
Altura máxima − 3,8 cm
Peça modelo − n.º 1005
N.º de peças − 7
N.º de fragmentos − 29
Peso total − 345 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.2
Tipo − 1.2
Largura máxima − 19 cm
Altura máxima − 3,8 cm (?)
Peça modelo − n.º 875
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 1
Peso total − 57 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.2
Tipo − 1.3
Largura máxima − 19 cm
Altura máxima − 3,8 cm
Peça modelo − n.º 1010
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 9
Peso total − 129 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.2
Tipo − 2
Largura máxima − 11,2
Altura máxima − 3,8
Peça modelo − n.º 1059
N.º de peças − 7
N.º de fragmentos − 18
Peso total − 265 g
Fig. 7 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.2.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A1.3
Tipo − 1
Largura máxima − 18 cm
Altura máxima − 3,8 cm
Peça modelo − n.º 1061
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 5
Peso total − 154 g
Fig. 8 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A1.3.

A taça (tipo 7) de grandes dimensões incluída no reduzidos entre os grupos definidos, limitando-se até
grupo A1.1.1 aparece aqui como excepção no que diz ao momento à escudela e ao prato covo de fundo
respeito à decoração central. No entanto, a sua natu- externo em ônfalo, distinto do prato similar do grupo
reza excepcional parece-nos poder-se atribuir à espe- de fabrico A1 pela ausência da inflexão intermédia
cificidade do perfil e dimensão, desajustados do uso interior que caracteriza o perfil deste (Fig. 10).
da espiral central que caracteriza as restantes peças do De salientar é o facto de em estratos da viragem
grupo. Este facto leva-nos ainda a resguardar a possi- de século XVI para século XVII ser comum o apare-
bilidade de o carácter de excepcionalidade se esten- cimento de produções comummente atribuíveis a
der à sua presença nos restantes grupos de fabrico Sevilha, em que a solução decorativa e morfológica
relacionados, podendo não se integrar no repertório é já, em termos gerais, idêntica a este grupo. No en-
de formas habitual da produção designada por A1. tanto, o nosso grupo distingue-se destas pela menor
espessura das paredes, ausência de ônfalo interior sa- Fig. 9 − Matriz
5.2. Grupo de fabrico A2 liente nos pratos e perfil mais esbelto nas escudelas, decorativa do grupo
para além das óbvias diferenças ao nível da pasta e de fabrico A2.
Apesar de a presença do grupo de fabrico A2 esmalte.
acontecer maioritariamente em estratos da segunda Meramente ao nível interpretativo, somos por
metade do século XVII, pontuais recolhas em con- isso levados a acreditar que, apesar da maioria das
textos mais tardios deixam entrever o seu prolonga- nossas recolhas acontecerem em contextos da segun-
mento através da primeira metade do século XVIII, da metade de século XVII, a solução formal e deco-
ainda que provavelmente de forma menos significa- rativa deste grupo de fabrico A2 possa ser recuada
tiva (Fig. 9). mesmo à segunda metade de século XVI, correspon-
Contrariamente ao que parece ter sido o seu dendo talvez a uma das primeiras produções de faian-
grande consumo, o repertório de formas é dos mais ça portuguesa.

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A2
Tipo − 1
Largura máxima − 19,4 cm
Altura máxima − 4 cm
Peça modelo − n.º 1051
N.º de peças − 111
N.º de fragmentos − 410
Peso total − 11 511 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A2
Tipo − 2
Largura máxima − 14,4 cm
Altura máxima − 6 cm
Peça modelo − n.º 747
N.º de peças − 171
N.º de fragmentos − 521
Fig. 10 − Quadro tipológico
Peso total − 14 008 g
do grupo de fabrico A.2.

al-madan
IX online
adenda
13 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

5.3. Grupo de fabrico A3

O grupo de fabrico A3 é o mais abrangente entre


a designação geral A, também por isso mais propen-
so a potenciais futuras subdivisões impostas pelo
desenvolvimento dos trabalhos de recolha e análise
de novos elementos cerâmicos.
Impondo-se pela partilha de formas, encontra-
mos como única divergência a esse nível o que pa-
rece ter sido a evolução directa do perfil da tigela dos
grupos de fabrico A3.1 e A3.2 para a tigela dos gru-
pos de fabrico A3.4, já enquadráveis na primeira
metade do século XVIII.
Ainda que nos grupos de fabrico A3.1.1, A3.2.1
e A3.2.2 não estejam presentes todas as quatro for-
mas apontadas para os grupos de fabrico A3, acredi-
tamos que isso se deva apenas à limitação imposta
pela casualidade dos achados, admitindo como mui-
to provável a sua futura identificação ao longo do de-
senrolar dos trabalhos. O mesmo acontecendo para
os grupos de fabrico A3.4, com realce para a diver-
gência ao nível do perfil e dimensão das tigelas, re-
servamos contudo algum cepticismo em relação ao
grupo de fabrico A3.3, para o qual, até ao momento,
não temos indicações de que tal desenvolvimento ao
nível das formas se venha a dar.
O grupo de fabrico A3.1, à semelhança das “ren-
das” do grupo de fabrico A1.1, apresenta como prin-
cipal solução decorativa um reconhecido elemento
da segunda metade do século XVII, vulgarmente de-
signado por “aranhões” (CALADO 1992: 37-43). Aqui
representado a uma e duas cores, mantém ainda no
grupo de fabrico A3.1.2 elementos separadores ins-
pirados nas grinaldas orientais da porcelana Ming,
típicos na primeira metade de seiscentos (Figs. 11,
12 e 13). 19

Fig. 11 − Matriz decorativa


do grupo de fabrico A3.1.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 14 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.1
Tipo − 1.1
Largura máxima − 20,3-20,7 cm
Altura máxima − 2,8 cm
Peça modelo − n.º 2226
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 21
Peso total − 220 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.1
Tipo − 1.2
Largura máxima − 20,3-20,7 cm
Altura máxima − 2,8 cm
Peça modelo − n.º 2228
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 14
Peso total − -

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.1
Tipo − 1.3
Largura máxima − 20,3-20,7 cm
Altura máxima − 2,8 cm
Peça modelo − n.º 2229
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 44
Peso total − 188 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.1
Tipo − 2
Largura máxima − 12,8 cm
Altura máxima − 5,2 cm
Peça modelo − n.º 2220
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 17
Peso total − 147 g
Fig. 12 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.1.1.

al-madan
IX online
adenda
15 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.1.1
Largura máxima − 17,5 cm (?)
Altura máxima − 2,7 cm (?)
Peça modelo − n.º 2252
N.º de peças − 4
N.º de fragmentos − 10
Peso total − 192 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.1.2
Largura máxima − 17,5 cm
Altura máxima − 2,7 cm
Peça modelo − n.º 2251
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 11
Peso total − -

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.1.3
Largura máxima − 17,5 cm
Altura máxima − 2,7 cm
Peça modelo − n.º 2259
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 3
Peso total − 89 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.1
Largura máxima − 18,9-21,5 cm
Altura máxima − 3-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2253
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 12
Peso total − 207 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.2
Largura máxima − 18,9-21,5 cm
Altura máxima − 3-3,4 cm
Peça modelo − n.º 1403
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 11
Peso total − 80 g
Fig. 13 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.1.2.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 16 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.3
Largura máxima − 18,9-21,5 cm
Altura máxima − 3-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2231
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 9
Peso total − -

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.4
Largura máxima − 18,9-21,5 cm (?)
Altura máxima − 3-3,4 cm (?)
Peça modelo − n.º 2236
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 5
Peso total − 51 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.5
Largura máxima − 18,9-21,5 cm (?)
Altura máxima − 3-3,4 cm (?)
Peça modelo − n.º 2266
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 2
Peso total − 95 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.6
Largura máxima − 18,9-21,5 cm
Altura máxima − 3-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2271
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 7
Peso total − -

Fig. 13 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.1.2. [cont.]

al-madan
IX online
adenda
17 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.2.7
Largura máxima − 18,9-21,5 cm
Altura máxima − 3-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2287
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 15
Peso total − -

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.3.1
Largura máxima − 30 cm
Altura máxima − 4,4 cm
Peça modelo − n.º 2258
N.º de peças − 4
N.º de fragmentos − 71
Peso total − 738 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 1.3.2
Largura máxima − 30cm
Altura máxima − 4,4 cm
Peça modelo − n.º 2269
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 2
Peso total − 142 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.1.2
Tipo − 2
Largura máxima − 13 cm
Altura máxima − 5,2 cm
Peça modelo − n.º 24
N.º de peças − 23
N.º de fragmentos − 133
Peso total − 1148 g
Fig. 13 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.1.2. [cont.]

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 18 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
14 Igualmente numa linha de permanên-
cia em relação às primeiras cinco décadas
do século XVII, temos a adição de elementos deco-
rativos estilizados semicirculares e rectos no reverso,
aplicados de forma aleatória em algumas peças sem
aparente obrigatoriedade, sendo presença comum
nos grupos de fabrico A3.1 e A3.2.
No grupo de fabrico A3.2, contrariamente a esta
linha de continuidade, a solução decorativa principal
é paradigmaticamente tardia dentro do século XVII,
não só por se tratar novamente de decoração de “ren-
das”, à semelhança do grupo de fabrico A1.1, mas Fig. 14 − Matriz decorativa
pelo facto de a sua interpretação denunciar já um do grupo de fabrico A3.2.
processo de grande evolução, atingindo uma ver-
dadeira desfiguração no grupo de fabrico A3.2.1
(Figs. 14, 15 e 16). 21

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.1
Tipo − 1.1
Largura máxima − 20,4-20,7 cm
Altura máxima − 2,8-3 cm
Peça modelo − n.º 2240
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 9
Peso total − 122 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.1
Tipo − 1.2
Largura máxima − 20,4-20,7 cm
Altura máxima − 2,8-3 cm
Peça modelo − n.º 2278
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 18
Peso total − 223

Fig. 15 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.2.1.

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.1
Tipo − 2
Largura máxima − 13,8 cm
Altura máxima − 5,2 cm
Peça modelo − n.º 2222
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 8
Peso total − 43 g

al-madan
IX online
adenda
19 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 1.1.1
Largura máxima − 19-21 cm
Altura máxima − 3,2-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2224
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 13
Peso total − 192 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 1.1.2
Largura máxima − 19-21 cm
Altura máxima − 3,2-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2246
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 14
Peso total − 133

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 1.1.3
Largura máxima − 19-21 cm
Altura máxima − 3,2-3,4 cm
Peça modelo − n.º 2248
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 5
Peso total − 58 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 1.2
Largura máxima − 33,8 cm
Altura máxima − 3,3 cm
Peça modelo − n.º 2225
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 5
Peso total − 107 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 2.1
Largura máxima − 13,3 cm
Altura máxima − 5,2 cm (?)
Peça modelo − n.º 2217
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 15
Peso total − 100 g
Fig. 16 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.2.2.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 20 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.2.2
Tipo − 2.2
Largura máxima − 13,3 cm
Altura máxima − 5,2 cm (?)
Peça modelo − n.º 2218
N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 9 19 O grupo de fabrico A3.3, dos menos
Peso total − 34 g representados em número de peças, apre-
senta-nos novamente um elemento decorativo cor-
rentemente atribuído à segunda metade do século
XVII.
Comummente designado por “contas” (BAART e
CALADO 1987: 33; CALADO 1992: 37-42; BARREIRA,
DORDIO e TEIXEIRA 1998: 159), este elemento é tra-
dicionalmente composto por três contas dispostas
em “pirâmide”, ao invés das seis apresentadas pelas
peças n.º 2230 e 2267, podendo surgir como elemen-
to decorativo principal em áreas secundárias, como o
bordo, ou associado a outros elementos decorativos
dominantes, como acontece com a peça n.º 2283,
ainda que a sua grande fragmentação obrigue a guar-
dar algumas reservas em relação à reconstituição
deste caso específico (Figs. 17 e 18).
É interessante observar o que parece ser a evo-
lução deste elemento decorativo em peças de con-
textos de século XVIII, onde a sua estilização as-
sume por vezes um aspecto caligráfico orientalizante Fig. 17 − Matriz decorativa
do grupo de fabrico A.3.3.
e, já no século XIX, redundando no que parece ser a
sua formulação final, numa linha
contínua quebrada em sucessivos
“V”.
Marcante e distintivo em todos
os grupos de fabrico A3.1, A3.2 e
A3.3, é o facto de nos pratos o
preenchimento do centro ser feito
Fig. 16 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.2.2. [cont.]
através de composições bastante
variadas e livres, recorrendo a mo-
tivos vegetais, animais e geométri-
cos. Pouco se repetindo dentro do
número de exemplares recolhidos,
as poucas repetições identificadas
sugerem não se tratarem de cria-
ções livres e directas sobre a peça,
mas sim de transferências a partir
do processo tradicional da picota-
gem do desenho em papel, cuja apli-
cação leva por vezes à repetição in-
vertida da mesma composição, fac-
to já constatado em relação à peça
n.º 2258. 22

al-madan
IX online
adenda
21 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.3 21 Estabelecendo um conjunto bastante
Tipo − 1.1 homogéneo, os grupos de fabrico A3.4,
Largura máxima − 21 cm são sobretudo cronologicamente enquadráveis já na
Altura máxima − 3,1 cm primeira metade de século XVIII, identificando-se
Peça modelo − n.º 2230 com a típica designação de “louça conventual”, que
N.º de peças − 1 caracterizou as produções de maior consumo monás-
N.º de fragmentos − 8 tico até ao desenvolvimento fabril em meados de sé-
Peso total − - culo XVIII.
Em oposição aos grupos anteriores, estas baixe-
las caracterizam-se por produções muito uniformi-
zadas, constituídas invariavelmente pelas mesmas
quatro formas, recebendo de forma singela o que po-
deríamos designar por marca de encomenda ou pro-
priedade, em contraposição à marca de fabricante,
que, constituída por símbolos ou inscrições, identifi-
ca o utilizador (DORDIO, TEIXEIRA e SÁ 2001: 152).
A marca de propriedade constante nos grupos de
fabrico A3.4.1 e A3.4.2 surge-nos insistentemente a
partir da segunda metade de século XVII, atingindo
Grupo de pasta − 1
no século XVIII o elevado estado de estilização que
Grupo de fabrico − A3.3
aqui podemos comprovar.
Tipo − 1.2
Originalmente enquadrada numa elaborada com-
Largura máxima − 21 cm
posição, esta representação de uma mitra sobre um
Altura máxima − 3,1 cm báculo remete para a equiparação a bispo dos poderes
Peça modelo − n.º 2267 do abade do mosteiro, podendo-se encontrar a mes-
N.º de peças − 1 ma marca noutros mosteiros cistercienses, sem com
N.º de fragmentos − 2 isto pôr de parte a hipótese de tal procedimento não
Peso total − 105 g se cingir, em Portugal, apenas à ordem cisterciense
(Figs. 19 e 20). 24

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.2
Tipo − 1.1
Grupo de pasta − 1 Largura máxima − 15-16 cm
Grupo de fabrico − A3.3 Altura máxima − 2,5-3,3 cm
Tipo − 1.3 Peça modelo − n.º 1494
Largura máxima − 21 cm N.º de peças − 1
Altura máxima − 3,1 cm N.º de fragmentos − 11
Peça modelo − n.º 2283 Peso total − 186 g
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 2
Peso total − 16 g

Fig. 18 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.3.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 22 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.1
Tipo − 1.1
Largura máxima − 15-16 cm
Altura máxima − 2,5-3,3 cm
Peça modelo − n.º 694
N.º de peças − 37
N.º de fragmentos − 91
Peso total − 2800 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.1
Tipo − 1.2
Largura máxima − 20 cm
Altura máxima − 3,5-3,7 cm
Peça modelo − n.º 689
N.º de peças − 77
N.º de fragmentos − 475
Peso total − 13 467 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.1
Tipo − 2
Largura máxima − 14 cm
Altura máxima − 5,4-6 cm
Peça modelo − n.º 746
N.º de peças − 92
N.º de fragmentos − 225
Peso total − 4152 g

Fig. 19 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.4.1.

Grupo de pasta − 1 Grupo de pasta − 1


Grupo de fabrico − A3.4.2 Grupo de fabrico − A3.4.2
Tipo − 1.2 Tipo − 2
Largura máxima − 20 cm Largura máxima − 14 cm
Altura máxima − 3,5-3,7 cm Altura máxima − 5,4-6 cm
Peça modelo − n.º 681 Peça modelo − n.º 888
N.º de peças − 4 N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 19 N.º de fragmentos − 14
Peso total − 47 g Peso total − 99 g

Fig. 20 − Quadro
tipológico do grupo
de fabrico A3.4.2.

al-madan
IX online
adenda
23 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.3 22 Na continuidade da tradição de mar-
Tipo − 1 cas de propriedade brasonadas, que mar-
Largura máxima − 20-21,6 cm (?) cou certas produções de “louça conventual” na se-
Altura máxima − 3-3,8 cm (?) gunda metade do século XVII, os grupos de fabrico
Peça modelo − n.º 1406 A3.4.3 e A3.4.4 surgem como estilizações extremas,
N.º de peças − 3 em que o sentido inicial do brasão se perde e é subs-
N.º de fragmentos − 4 tituído pela sua completa abstracção, apenas se pre-
Peso total − 145 g servando o atributo estético da composição sem sig-
nificado (Figs. 21 e 22).
Mais específicos, os grupos de fabrico A3.4.5 e
A3.4.6 remetem, correspondentemente, para o local
e santo padroeiro da ordem, estando este último re-
conhecido como presença habitual em mosteiros de
Cister 21 (Figs. 23 e 24). 26

Grupo de pasta − 1 21 Até recentemente, a marca S.BRDO tem sido erradamente referida como

Grupo de fabrico − A3.4.3 marca de fabricante do Norte do país no século XVIII (QUEIRÓS 1987: 320,
n.º 622; SIMAS e ISIDRO 1996: 129, n.º 784). Sabemos agora que não se trata
Tipo − 2
de uma marca de fabricante, mas sim de marca de encomenda ou
Largura máxima − 14,5 cm propriedade. O facto da alusão a S. Bernardo ser aplicável a qualquer
Altura máxima − 5,5 cm mosteiro da ordem de Cister, a par do aparecimento desta marca em outras
Peça modelo − n.º 741 intervenções arqueológicas e museus em diversos locais do Norte e Centro
do país, mesmo que não publicadas, levam-nos a crer tratar-se de uma marca
N.º de peças − 2 partilhada por vários, se não todos, os mosteiros da ordem Cister, na
N.º de fragmentos − 14 primeira metade de séc. XVIII.
Peso total − 13 g

Fig. 21 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.4.3.

Grupo de pasta − 1 Grupo de pasta − 1


Grupo de fabrico − A3.4.4 Grupo de fabrico − A3.4.4
Tipo − 1 Tipo − 2
Largura máxima − 14,8-16 cm (?) Largura máxima − 14,7 cm
Altura máxima − 2,6-3 cm (?) Altura máxima − 5,5 cm
Peça modelo − n.º 1473 Peça modelo − n.º 744
N.º de peças − 5 N.º de peças − 2
N.º de fragmentos − 5 N.º de fragmentos − 7
Peso total − 62 g Peso total − 30 g

Fig. 22 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.4.4.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 24 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.5
Tipo − 1
Largura máxima − 20 cm
Altura máxima − 3,2 cm
Peça modelo − n.º 26
N.º de peças − 16
N.º de fragmentos − 31
Peso total − 422 g Fig. 23 − Quadro
tipológico do grupo
de fabrico A3.4.5.

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.6
Tipo − 1.1
Largura máxima − 14,8-16 cm
Altura máxima − 2,6-3 cm
Peça modelo − n.º 2
N.º de peças − 17
N.º de fragmentos − 53
Peso total − 1254 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.6
Tipo − 1.2
Largura máxima − 20-21,6 cm
Altura máxima − 3-3,8 cm
Peça modelo − n.º 1
N.º de peças − 99
N.º de fragmentos − 206
Peso total − 3920 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.6
Tipo − 1.3
Largura máxima − 34,4 cm
Altura máxima − 4,4 cm
Peça modelo − n.º 2296
N.º de peças − 6
N.º de fragmentos − 34
Peso total − 2101 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.6
Tipo − 2
Largura máxima − 12,8-14,4 cm
Altura máxima − 5,4-6 cm
Peça modelo − n.º 22
N.º de peças − 23
N.º de fragmentos − 75
Peso total − 1251 g
Fig. 24 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.4.6.

al-madan
IX online
adenda
25 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.7 24 Por fim, o grupo de fabrico A3.4.7
Tipo − 1.1 revela-se interessante dentro deste conjun-
Largura máxima − 15 cm to cerâmico pelo facto de recorrer, na representação
Altura máxima − 3,3 cm a azul da copa da árvore que lhe serve de motivo, a
Peça modelo − n.º 1062 uma técnica próxima ao esponjado, com a variante
N.º de peças − 2 de ser conseguida através de pinceladas percutidas
N.º de fragmentos − 10 na superfície da peça, em substituição da tradicional
Peso total − 151 g “boneca” embebida na cor pretendida (Fig. 25).
Esta técnica, consagrada sobretudo nas produções
de “Cerâmica Ratinha” coimbrã, aparece comum-
mente já na segunda metade de século XVIII em
exemplares atribuídos ao período Brioso (PAIS et al.
1998: 61; DORDIO, TEIXEIRA e SÁ 2001: 154-155),
havendo autores que apontam a identificação de
exemplares ainda para a sua primeira metade (BAR-
REIRA, DORDIO e TEIXEIRA 1998: 160; DORDIO, TEI-
XEIRA e SÁ 2001: 152-153). Entrevendo aqui, com
alguma liberdade, uma possível linha de antecedên-
cia, apenas encontramos paralelos para este elemen-
to decorativo no “Depósito 4” de século XVIII da
Casa do Infante (BARREIRA, DORDIO e TEIXEIRA
1998: 161).

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.7
Tipo − 1.2
Largura máxima − 20,4 cm
Altura máxima − 3,4 cm
Peça modelo − n.º 742
N.º de peças − 3
N.º de fragmentos − 7
Peso total − 523 g

Grupo de pasta − 1
Grupo de fabrico − A3.4.7
Tipo − 2
Largura máxima − 12,8 cm
Altura máxima − 5,4-6 cm (?)
Peça modelo − n.º 162
N.º de peças − 1
N.º de fragmentos − 4
Peso total − 54 g

Fig. 25 − Quadro tipológico do grupo de fabrico A3.4.7.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 26 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
6. Considerações finais

Se hoje a pesquisa arqueológica tende já a en- evolução deste género cerâmico, patente nas grandes
contrar alguns traços consensuais para a história da quantidades de exemplares identificados em ex-
faiança portuguesa, estes são em geral concordantes -colónias, Norte da Europa, América do Sul e Norte
com o quadro estabelecido pela linha de estudiosos e Extremo Oriente (BAART e CALADO 1987: 11; CA-
que, desde o século XIX, na área da investigação his- LADO 1992: 14). Este facto tornou algumas das suas
tórica e museológica, têm-se responsabilizado pela produções das mais mediáticas, pelo menos em ter-
construção do nosso conhecimento actual desta pro- ritorial nacional, amplamente representadas em co-
dução cerâmica nacional. lecções das mais diversas naturezas. Contudo, tam-
O século XVI, com destaque para a segunda me- bém por isso a filtragem inconsciente de que foi al-
tade, é comummente apontado como a fase inicial vo, segundo critérios artísticos ou de excepção, se
para a faiança portuguesa, por dados documentais e faz sentir mais, aligeirando a importância de produ-
arqueológicos (BAART e CALADO 1987: 6; CALADO ções contemporâneas de uso mais corrente (BAART e
1992: 10-11; MONTEIRO 1994: 21; DORDIO, TEIXEIRA CALADO 1987: 7, 13).
e SÁ 2001: 119). O carácter de uso corrente, patente Aqui a Arqueologia tem representado um papel,
na modesta qualidade geral e baixa elaboração de até certo ponto, revisionista, com exemplos paradig-
formas e decorações, quase que marginalizou esta máticos como o da intervenção no bairro judeu se-
cerâmica em relação ao discurso museológico con- fardita de Amesterdão (BAART e CALADO 1987). O
vencional que, se em grande parte tem sido respon- princípio de recolha total e a sua proximidade ao uni-
sável pela preservação do grosso do acervo existente verso real em estudo é, no contexto arqueológico, o
e estudado, vê-se vitima de uma indesejada selecção garante da fiabilidade que, por vezes, carece de aten-
segundo critérios de origem coleccionista baseada na ção no estudo indirecto através das colecções dispo-
eleição de valores estéticos. níveis, sem com isso diminuir o enorme contributo
Por esta razão pouco explorado, este período em- que têm e continuarão a dar para esta matéria.
brionário tem encontrado na investigação arqueoló- Pelo mesmo princípio, o período que decorre
gica mais recente, regra geral, um complemento ao dos meados de século XVII à implantação das pri-
conhecimento já adquirido, sem que se lhe possam meiras fábricas de meados de século XVIII, impul-
apontar grandes dissenções. sionadas pela política reformista pombalina, sendo
Mais precário, o período correspondente à pri- caracterizado por uma profunda regressão dos mer- Fig. 26 − Quadro cronológico:
meira metade do século XVII apresenta a particulari- cados e consequente retrocesso de qualidade (CA- cerâmica de consumo
dade de se ter imposto como o momento áureo na LADO 1992: 19, 40), aparece-nos historiograficamen- indiferenciado.

al-madan
IX online
adenda
27 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

te como uma imagem difusa, suspensa entre dois qual as importações para os territórios ingleses se
momentos compreensivelmente monopolizadores viram limitadas e, em 1672, proibidas. O confinar do
do ponto de vista do interesse ceramológico (DOR- transporte de mercadorias comerciais a barcos ingle-
DIO, TEIXEIRA e SÁ 2001: 151-152). ses constitui, só por si, um rude golpe para um gé-
Assim, contrapondo o actual conhecimento da nero que muito beneficiou do comércio paralelo que
faiança portuguesa, ainda que lacunar, aos respecti- sempre se realizou ao transporte de outras mercado-
vos contextos históricos em que se insere, não é pos- rias de maior peso comercial (WILCOXEN 1999: 18).
sível deixar de realçar o coincidente crescendo que a Com certeza afectando tanto o mercado inglês
caracterizou durante o período filipino, provavel- como holandês, as três sucessivas guerras de cariz
mente beneficiando da exploração de mercados mais naval que tiveram lugar entre estes dois países, de
abrangentes pela fusão das duas coroas ibéricas (CA- 1652 a 1674, terão igualmente desempenhado um
LADO 1992: 13). Da mesma forma, a cessão dos mes- potencial papel desestabilizador a nível comercial.
mos, aliada às dificuldades imediatas à restauração A par destas questões de foro político-estratégi-
da independência em 1640, parecem provocar o en- co, o desenvolvimento da indústria cerâmica na se-
fraquecimento geral dos grandes centros produtores, gunda metade de seiscentos na Holanda (BAART e
realçando-se ao invés o desenvolvimento da produ- CALADO 1987: 12), tendo por principal centro Delft,
ção azulejar, em grande medida ditado pelo papel do e no último quartel do século em Inglaterra, com o
azulejo na nova arquitectura de baixo custo. desenvolvimento de novas pastas (WILCOXEN 1999:
A juntar ao factor histórico, certamente decisivo, 18), levarão ao suprimento das necessidades locais e,
constituído pela dissenção que de 1640 a 1668 opôs no primeiro caso, à imposição até meados de sete-
a coroa portuguesa à espanhola, podemos ainda real- centos de uma forte concorrência mesmo em terri-
çar o contexto político, social e económico desfavo- tório nacional, assumindo a Inglaterra um papel pre-
rável da segunda metade de seiscentos para alguns dos ponderante como exportador da segunda metade de
principais mercados externos da faiança portuguesa. setecentos em diante.
Reconhecendo-se hoje a importância das impor- Falando no caso específico do Mosteiro de S. João
tações holandesas e inglesas, com destaque nesta úl- de Tarouca, a identificação de produções espanholas,
tima para as colónias anglo-saxónicas como a Amé- como Sevilha, centra-se exactamente no período fi-
rica do Norte (WILCOXEN 1999; PENDERY 1999), não lipino, estando aparentemente ausentes após o mo-
terão deixado estas de ser afectadas pela guerra civil mento da restauração, o que pode indicar que o mes-
Fig. 27 − Quadro cronológico: inglesa de 1642 a 1648, ou com a imposição do mo, mas no sentido contrário, poderá também ter
cerâmica de encomenda.
“Acto de Navegação” em 1651 por Cromwell, pelo acontecido com os centros produtores espanhóis.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 28 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 28 − Quadro de correspondência 22 Agradecemos à Dra. Sara
decoração-forma: cerâmica de consumo Fernandes, Dr. Carlos Batata
indiferenciado. (da empresa de arqueologia Ozecarus),
Dr. Artur Côrte-Real (da Direcção
Regional de Cultura do Centro), Dra.
Isabel Marques (da Câmara Municipal de
A cisão entre as características das produções da outras origens, como Lisboa ou Porto 23. A realiza- Coimbra), Dra. Maria João Neves
primeira metade de século XVII e as do período que ção de análises comparativas a pastas, esmaltes e tin- (da empresa de arqueologia Dryas) e
decorre entre cerca de 1650 e 1750 é marcada pela tas poderá no futuro vir a confirmar, ou não, esta Dr. Filipe Santos (da empresa de
arqueologia Arquehoje) a possibilidade
manifesta diferença de qualidade geral de execução, conjectura baseada na simples comparação macros- de observar os materiais cerâmicos
diversidade e criatividade, salvaguardando óbvias ex- cópica. provenientes das escavações e
cepções, insuficientes para marcar a diferença. Dentro da realidade monástica propriamente di- acompanhamentos arqueológicos,
Com o quase total desaparecimento da influência ta, devemos realçar o facto de antes da segunda me- respectivamente, do Edifício Avenida,
oriental no discurso decorativo, que tanto marcou a tade do século XVII não identificarmos exemplares, Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, antigo
Mercado D. Pedro V, e aos dois últimos
primeira metade de século XVII, temos a afirmação individuais ou em conjuntos, que, ostentando marca os materiais dos acompanhamentos e
de novos elementos ornamentais, de raiz própria ou de propriedade, denunciem terem sido produto de escavações do Bota-a-baixo, no âmbito
já só vagamente evolucionados a partir de elementos encomenda. Sucedendo o mesmo para o período fa- da obra do Metro de Superfície do
da porcelana Ming, para na primeira metade do sécu- bril com início em meados de século XVIII, há que Mondego. Agradecemos ainda ao
lo XVIII se regredir mesmo em termos da profusão apontar contudo a excepção de uma baixela produzi- Dr. António Pacheco a possibilidade de
observar o acervo museológico do
decorativa que marca ainda o fim de seiscentos. da na Real Fábrica de Louça ao Rato, em Lisboa, do Museu Nacional Machado de Castro.
Se reconhecermos a regressão de qualidade que período de Tomás Brunetto, constituída por um con- 23 Agradecemos ainda à Casa do
os principais centros produtores e exportadores terão junto produzido em série, mas personalizado pela adi- Infante do Porto, na pessoa do
sofrido a partir de 1640, podemos intuitivamente en- ção de brasão alusivo à ordem de Cister, à ascendên- Dr. Paulo Dordio, ao Gabinete de
trever nessa baixa a criação de condições para uma cia familiar do abade encomendador e à sua equipa- Arqueologia Urbana do Porto,
maior generalização do consumo interno desta lou- ração ao grau de bispo (CASTRO e SEBASTIAN 2002b: nas pessoas do Dr. António Silva
e Dra. Manuela Ribeiro, à empresa
ça. Se assim foi, centros produtores de tradição mais 166; PAIS 2003: 206).
Arqueologia & Património, nas pessoas
popular, como Coimbra, terão tido aqui uma oportu- Contrariamente, na segunda metade de século do Dr. Ricardo Teixeira, Dr. Vítor
nidade de expansão, com produtos financeiramente XVII, encontramos uma crescente tendência para Fonseca e Dra. Teresa Silva, ao Museu
mais acessíveis (CALADO 1992: 14, 40). conjuntos individualizados, pessoais ou institucio- da Cidade de Lisboa, nas pessoas do
De facto, ainda que nesta fase apenas o possamos nais, ou seja, com marca de propriedade alusiva ao Dr. António Marques e Dr. Rodrigo
Banha da Silva, ao Museu Nacional de
afirmar como hipótese de trabalho, as semelhanças utilizador – em termos individuais ou apenas ao pa-
Arte Antiga, na pessoa do falecido
entre o grupo de fabrico A abordado neste texto e as tronímico –, ao Mosteiro de S. João de Tarouca ou à Dr. Rafael Salinas Calado, ao Dr. Luís
produções coimbrãs reconhecidas como tal são con- ordem de Cister em geral. Fontes, da Universidade do Minho,
sideráveis. Valendo-nos sobretudo de comparações Esta tendência parece ganhar predominância na à Dra. Maria João dos Santos,
directas com materiais de contextos arqueológicos primeira metade de século XVIII, onde a maioria dos ao Dr. Javier Larrazábal Galarza e ao
Dr. Jan Baart, a possibilidade de
recentes 22, o grau de semelhanças estabelecido é exemplares recolhidos fazem parte de conjuntos es-
efectuarmos comparações entre
claramente superior em relação ao dos materiais de tandardizados ostentando marca de propriedade, materiais cerâmicos.

Fig. 29 − Quadro de correspondência decoração-forma: cerâmica de encomenda. al-madan


IX online
adenda
29 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

quase exclusivamente institucional, alusiva ao


Mosteiro de S. João de Tarouca ou à ordem de Cister,
com clara tendência para inscrições em detrimento
de insígnias (DORDIO, TEIXEIRA e SÁ 2001: 152).
A identificação de exemplares similares aos en-
comendados pelo Mosteiro de S. João de Tarouca,
mas com referência a outras ordens monásticas,
como “S F” (S. Francisco) 24, “S I” (Santa Isabel) ou
“S Dos” (S. Domingos), fazem-nos crer que a en-
comenda de baixelas com marca de propriedade alu-
siva, directa ou indirectamente, à ordem, mosteiro ou
convento usufruidor estaria largamente em voga na
primeira metade de setecentos, suplantando mesmo
a louça de fabrico genérico.
A presença destes exemplares no nosso mosteiro
é, por sua vez, de mais difícil explicação, podendo-
-se apenas especular sobre hipóteses como a da en-
comenda de louça para S. João de Tarouca ser feita
em olarias onde, decerto, outros mosteiros e conven-
tos se forneceriam igualmente, podendo sucederem-
-se trocas por equívoco.
O facto de estes exemplares serem em tudo sim-
ilares aos cuja inscrição remete para S. João de Ta-
rouca, distinguindo-se apenas pelo seu conteúdo,
não está em desacordo com esta conjectura. A reco-
lha de um trempe ajuda a esboçar igualmente uma
Fig. 30 − Exemplo de quadro cronológico de evolução linear.
imagem em que a aquisição e transporte de grandes
quantidades de louça para o mosteiro, comprovada
em escavação, poderiam dar azo a situações de equí-
24 A marca composta por um “S” e um “F” específico desta marca, a sua dupla atribuição a
voco excepcional.
sobrepostos tem sido erradamente referida, S. Francisco e a Santa Isabel, impondo a hipótese de Podemos, contudo, pôr ainda outras hipóteses,
até recentemente, como marca de fabricante, que a mesma marca possa ter intencionalmente servido como o de outros religiosos de visita ao mosteiro se-
nomeadamente da fábrica de Massarelos (QUEIRÓS 1987: os dois propósitos, o que estaria caricatamente de rem portadores da sua própria louça.
286, n.º 284; SIMAS e ISIDRO 1996: 134, n.ºs 822 e 823). acordo com a ideia de que a encomenda e consumo De referir ainda neste ponto que podemos iden-
À semelhança da marca S.BRDO, esta marca de deste tipo de louça, largamente em voga sobretudo na
encomenda, ou propriedade, remete para o/a primeira metade de setecentos, teria desenvolvido a sua
tificar, para a segunda metade de seiscentos, um pra-
padroeiro/a da ordem monástica ou conventual fruidora produção até um verdadeiro carácter de fabrico to ostentando a inscrição “Hospedaria”, demonstran-
do objecto. Tem-se no entanto detectado, para o caso em série. do assim que o espaço reservado a visitas exteriores
possuía, igualmente, a sua própria louça.
Fig. 31 − Exemplo de quadro cronológico de evolução linear.

Agradecimentos

Agradecemos aos desenhadores Hugo Pereira, Sílvia


Pereira, Bruno Marques e Dra. Sofia Catalão pelo registo
gráfico das peças apresentadas, bem como a António
Cabeço pelo registo fotográfico das mesmas.
À Técnica de Restauro e Conservação Dra. Júlia Fonseca
e ao Assistente de Conservação João Rebelo, agradecemos
o seu tratamento e conservação.
Pelo apoio constante ao nível da análise material da ce-
râmica estudada, agradecemos à Doutora Lídia Catarino.
Por último, um justo agradecimento aos Assistentes de
Arqueólogo que em diferentes momentos compuseram a
nossa equipa permanente entre 1998 e 2008: Amália
Palma, Cristina Teixeira, Ivo Rocha, Filipe Pereira e
Sérgio Pinheiro, responsáveis pela recolha, limpeza, mar-
cação, colagem, contagem, pesagem e armazenamento do
material cerâmico apresentado.
al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 30 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 32 − Exemplos de tratamento estatístico por número de peça.

al-madan
IX online
adenda
31 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Bibliografia

ALARCÃO, Jorge de (1974) – “Cerâmica Comum Local e CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2005a) – “Da-
Regional de Conimbriga”. In Suplemento de Biblos. Co- dos para o Estudo da Estratégia de Implantação do Mos-
imbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coim- teiro de S. João de Tarouca”. Estudos / Património. Lis-
bra. Vol. VIII. boa: IPPAR - Departamento de Estudos. 8: 203-211.
BAART, Jan e CALADO, Rafael Salinas (1987) – Faiança CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2005b) – “Les
Portuguesa: 1600-1660. Lisboa-Amesterdão: Amsterdams Marques Lapidaires du Monastère Cistercien de S. João
Historisch Museum / Ministério dos Negócios Estran- de Tarouca (Portugal)”. In Actes du XIVe Colloque Inter-
geiros / Secretaria de Estado da Cultura. national de Glyptographie de Chambord. Braine-le-
BARREIRA, Paula; DORDIO, Paulo e TEIXEIRA, Ricardo -Château: Centre International de Recherches Glypto-
(1998) – “200 Anos de Cerâmica na Casa do Infante: do graphiques/Editions de la Taille d’Aulme, pp. 399-422.
século XVI a meados do século XVIII”. In Actas das 2ª CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2006) – “A In-
Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval. Ton- tervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João de Ta-
dela: Câmara Municipal. Separata, pp. 145-184. rouca: 1998-2006”. In Actas do Seminário Internacional
BARROCA, Mário; CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Tarouca e Cister - Homenagem a Leite de Vasconcelos.
Luís (2003) – “Uma Nova Inscrição do Século XIII no Tarouca: Câmara Municipal, pp. 125-166.
Mosteiro de S. João de Tarouca”. Estudos / Património. CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2008) – “O Pro-
Lisboa: IPPAR - Departamento de Estudos. 5: 96-105. jecto de Investigação Arqueológica no Mosteiro de S.
BARROCA, Mário; SEBASTIAN, Luís e CASTRO, Ana Sam- João de Tarouca: 1998-2008”. In Pedra & Cal. Lisboa:
paio e (2008) – “Um ‘Anel de Oração’ de Século XIII no GECoRPA-Grémio das Empresas de Conservação e Res-
Mosteiro de S. João de Tarouca”. Arqueologia Medieval. tauro do Património Arquitectónico. 38: 20-21.
Porto: Edições Afrontamento. 10: 145-158. CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (no prelo a) – “A
CALADO, Rafael Salinas (1992) – “Faiança Portuguesa, a Implantação Monástica no Vale do Varosa: o caso do
Sua Evolução Até ao Início do Séc. XX”. In Clube do Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Actas do Colóquio
Coleccionador dos Correios. Lisboa: Correios de Portu- Internacional Patrimonio Cultural y Território en el
gal. Valle del Duero. Zamora: Junta de Castilla y León, Con-
CASTRO, Ana Sampaio e; CATARINO, Lídia e SEBASTIAN, sejería de Cultura Turismo / IPPAR.
Luís (2004) – “Materiais Líticos no Quotidiano do Mos- CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (no prelo b) – “A
teiro de S. João de Tarouca”. Estudos / Património. Lis- Implantação Monástica no Vale do Varosa: o caso do
boa: IPPAR - Departamento de Estudos. 7: 112-124. Mosteiro de S. João de Tarouca”. OPPIDUM - Revista de
CASTRO, Ana Sampaio e; FONSECA, Júlia e SEBASTIAN, Arqueologia, História e Património. Lousada: Câmara
Luís (2004) – “A Componente de Conservação Cerâmi- Municipal. 3.
ca na Intervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (no prelo c) –
de Tarouca: 1998-2002”. Revista Portuguesa de Arqueo- “Cerâmicas Vermelhas Finas Não-Vidradas do Mosteiro
logia. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia. 7 (1): de S. João de Tarouca”. In Actas do 5º Encontro de Ola-
653-669. ria Tradicional de Matosinhos. Matosinhos: Câmara Mu-
CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2002a) – “A In- nicipal.
tervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João de Ta- CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (no prelo d) –
rouca: 1998-2001”. Estudos / Património. Lisboa: IPPAR - “Estudo Gliptográfico do Mosteiro de S. João de Tarou-
- Departamento de Estudos. 2: 33-42. ca”. In Actas do 4º Congresso de Arqueologia Peninsu-
CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2002b) – “Mos- lar. Porto: ADECAP.
teiro de S. João de Tarouca: 700 anos de História da ce- CASTRO, Ana Sampaio e; SEBASTIAN, Luís (no prelo e) –
râmica”. Estudos / Património. Lisboa: IPPAR - Departa- “Faiança dos Séculos XVII e XVIII no Mosteiro de S.
mento de Estudos. 3: 165-177. João de Tarouca”. In Actas das 4ª Jornadas de Cerâmica
CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2003a) – “A Medieval e Pós-Medieval. Tondela: Câmara Municipal.
Componente de Desenho Cerâmico na Intervenção Ar- CASTRO, Ana Sampaio e; SEBASTIAN, Luís; RODRIGUES,
queológica no Mosteiro de S. João de Tarouca”. Revista Miguel e TEIXEIRA, Ricardo (1999) – “Intervenção Ar-
Portuguesa de Arqueologia. Lisboa: Instituto Português queológica no Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Cister
de Arqueologia. 6 (2): 545-560. no Vale do Douro. Santa Maria da Feira: GEHVID - Grupo
CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2003b) – “A de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vi-
Faiança de Revestimento dos Séculos XVII e XVIII no nho do Porto / Edições Afrontamento, pp. 222-225.
Mosteiro de S. João de Tarouca (Intervenção Arqueoló- DORDIO, Paulo e TEIXEIRA, Ricardo (1998) – “Como Pôr
gica 1998-2001)”. Estudos / Património. Lisboa: IPPAR - Ordem em 500 000 Fragmentos de Cerâmica? Ou dis-
- Departamento de Estudos. 4: 168-179. cussão da metodologia de estudo da cerâmica na inter-
CASTRO, Ana Sampaio e SEBASTIAN, Luís (2004) – venção arqueológica da Casa do Infante”. Revista de
“Resultado Preliminar da Intervenção Arqueológica no Olaria. Barcelos: Câmara Municipal. 2: 115-124.
Mosteiro de S. João de Tarouca: 1998-2002”. In Actas do DORDIO, Paulo; TEIXEIRA, Ricardo e SÁ, Anabela (2001) –
Seminário Internacional Tarouca e Cister - Espaço, Es- “Faianças do Porto e Gaia: o recente contributo da Ar-
pírito e Poder. Tarouca: Câmara Municipal, pp. 163- queologia”. In Itinerário da Faiança do Porto e Gaia.
-187. Porto: Museu Nacional de Soares dos Reis, pp. 117-166.

al-madan
online IX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 32 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
HARRIS, Edward C. (1991) – Princípios de Estratigrafía SEBASTIAN, Luís e CASTRO, Ana Sampaio e (2007) – “Uma
Arqueológica. Barcelona: Editorial Crítica. Primeira Proposta de Reconstituição Arquitectónica do
LEPIERRE, Charles (1899) – Estudo Chimico e Technológi- Mosteiro Cisterciense de S. João de Tarouca”. Revista de
co Sobre a Ceramica Portugueza Moderna. Lisboa: Im- História da Arte. Lisboa: Instituto de História da Arte -
prensa Nacional - Casa da Moeda. - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universi-
MONTEIRO, João Pedro Antunes Oliveira (1994) – “A In- dade Nova de Lisboa. 4: 142-171.
fluência Oriental na Cerâmica Portuguesa do Séc. XVII”. SEBASTIAN, Luís e CASTRO, Ana Sampaio e (no prelo a) –
In A Influência Oriental na Cerâmica Portuguesa do “A Faiança Portuguesa no Mosteiro de S. João de Tarou-
Séc. XVII. Lisboa: Museu Nacional do Azulejo, pp. 18-55. ca: da Restauração à Reforma Pombalina”. In Actas do
MUNSELL (1992) – Soil Color Charts. Baltimore: Macbeth, 4º Congresso de Arqueologia Peninsular. Porto: ADECAP.
Division of Kollmorgen Instruments Corp. SEBASTIAN, Luís e CASTRO, Ana Sampaio e (no prelo b) –
NOLEN, J. U. S. (1994) – Cerâmicas e Vidros de Torre de “A Intervenção Arqueológica no Mosteiro de S. João de
Ares-Balsa. Lisboa: Instituto Português de Museus / Mu- Tarouca: 1998-2004”. In Actas do 4º Congresso de Ar-
seu Nacional de Arqueologia. queologia Peninsular. Porto: ADECAP.
ORTON, C.; TYERS, P. e VINCE, A. (1993) – Pottery in SEBASTIAN, Luís; CASTRO, Ana Sampaio e CODINHA, Sónia
Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press. (no prelo) – “Os Monges Exumados na Sala do Capítu-
PAIS, Alexandre Nobre (2003) – “Tomás Brunetto 1769- lo do Mosteiro de S. João de Tarouca: séculos XVII-
-1771”. In Real Fábrica de Louça, ao Rato. Lisboa-Porto: -XVIII. Considerações histórico-geográficas, arqueoló-
Museu Nacional do Azulejo / Museu Nacional de Soares gicas e paleobiológicas”. OPPIDUM - Revista de Arqueo-
dos Reis, pp. 174-255. logia, História e Património. Lousada: Câmara Munici-
PAIS, Alexandre Nobre; MONTEIRO, João Pedro Antunes pal. 3.
Oliveira; SARDINHA, Olinda e ALMEIDA, Sónia de (1998) SEBASTIAN, Luís; CATARINO, Lídia e CASTRO, Ana Sampaio
– Os Ratinhos, Trabalhadores Rurais Migrantes. Lisboa: e (2008) – “Um Fosso de Fundição Sineira de Século
Museu Nacional do Azulejo. XIV no Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Subsídios
PENDERY, Steven R. (1999) – “Portuguese Tin-glazed para a História da Fundição Sineira em Portugal.
Earthenware in Seventeenth-century New England: a Coruche: Museu Municipal de Coruche, pp. 213-270.
preliminary study”. Historical Archaeology. Society for SEBASTIAN, Luís; CATARINO, Lídia e CASTRO, Ana Sampaio
Historical Archaeology. 33 (4): 58-77. e (no prelo) – “Utensílios Líticos no Quotidiano Pós-Me-
PLEGUEZUELO; Alfonso e LAFUENTE, M. Pilar (1995) – dieval do Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Actas do
“Cerámicas de Andalucía Occidental (1200-1600)”. In 4º Congresso de Arqueologia Peninsular. Porto: ADECAP.
“Spanish Medieval Ceramics in Spain and British Isles”. SIMAS, Filomena e ISIDRO, Sónia (1996) – Dicionário de
BAR International Series. Oxford: Tempvs Reparatvm. Marcas de Faiança e Porcelana Portuguesas. Lisboa:
610: 217-244. Estar Editora.
QUEIRÓS, José (1987) – Cerâmica Portuguesa e Outros SOMÉ MUÑOZ, Pilar e HUARTE CAMBRA, Rosario (1999) –
Estudos. 3ª edição. Lisboa: Editorial Presença. “La Cerámica Moderna en el Convento del Carmen (Se-
RICE, M. Prudence (1987) – Pottery Analysis. A source- villa)”. Arqueologia Medieval. Porto: Edições Afronta-
book. Chicago: University of Chicago Press. mento. 6: 160-171.
SANDÃO, Arthur de (1976) – Faiança Portuguesa dos Sé- WILCOXEN, Charlotte (1999) – “Seventeenth-century Por-
culos XVIII e XIX. Barcelos: Livraria Civilização. Vols. tuguese Faiança and its Presence in Colonial America”.
I-II. Northeast Historical Archaeology. Society for Historical
SEBASTIAN, L.; LATOUR-ARGANT, C.; ARGANT, J. e CAS- Archaeology. 28: 1-20.
TRO, A. S. (2008) – “A Implantação Medieval do Mostei-
ro de S. João de Tarouca: dados palinológicos”. Arqueo-
logia Medieval. Porto: Edições Afrontamento. 10: 135-
-144.
SEBASTIAN, L.; PEREIRA, H.; GINJA, M. e CASTRO, A. S. (no
prelo) – “O Levantamento Gráfico da Igreja e Área de
Escavação do Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Actas
do 4º Congresso de Arqueologia Peninsular. Porto:
ADECAP.
SEBASTIAN, Luís (2007) – “Património Associado, uma
Proposta de Conceito”. Estudos / Património. Lisboa:
IPPAR - Departamento de Estudos. 10: 15-24.
SEBASTIAN, Luís (no prelo) – “O Levantamento Gráfico da
Igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca”. In Actas do
2º Encontro Nacional de Museus com Colecções de Ar-
queologia.

al-madan
IX online
adenda
33 electrónica
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Sepulturas Escavadas r e s u m

Contexto cultural e cronológi-


o

co de cinco sepulturas escava-

na Rocha do Monte das na rocha granítica do Mon-


te do Biscaia, localizado em Gá-
fete (Crato, Portalegre).
O estudo pretende contribuir
para futuros desenvolvimentos
do tema, assentes em maior

do Biscaia número de sepulcros e noutra


dispersão espacial, para que se
conheça melhor esta realidade
no Sul de Portugal.

(Gáfete, Crato) p a l a v r a s c h a v e

Idade Média; Sepulturas escava-


das (na rocha).

por Joana Valdez (*), Filipa Pinto (**) e João Nisa (***) a b s t r a c t

(*) Arqueóloga (joanavaldez@gmail.com). Cultural and chronological con-


(**) Arqueóloga (filipapinto15@hotmail.com). text of five tombs found at the
(***) Arqueólogo (joão_nisa@hotmail.com). Monte do Biscaia, in Gáfete
(Crato, Portalegre), excavated
in granitic rock.
The aim of this study is to con-
tribute to further theme devel-
opments based on a larger
number of tombs over a wider
area in order to find out more
Introdução Metodologia about this reality in the Portu-
guese south.
túmulo rupestre define-se como sendo No decorrer do trabalho de campo da segunda

O um fosso escavado na rocha, alvo de


um arranjo interno sem recurso a mate-
riais exógenos (COLARDELLE et al. 1994). Estes po-
fase da Carta Arqueológica do concelho de Nisa,
foram identificados alguns sítios arqueológicos
exógenos ao município em questão. Destes contam-
k e y w o r d s

Middle ages; Excavated tombs.

dem surgir em grandes necrópoles, em pequenos -se as sepulturas rupestres do Monte do Biscaia, da-
núcleos ou, inclusivamente, de forma isolada (BAR- das a conhecer pelo Sr. Manuel Rosa, antigo caseiro
ROCA 1987). Conhecem-se, em Portugal, inúmeros da propriedade. r é s u m é
exemplares desta solução de enterramento, sobretu- Uma vez que estes monumentos não se enqua-
Contexte culturel et chronolo-
do a Norte do rio Mondego. Contudo, este tipo de dram no projecto de levantamento patrimonial em gique de cinq sépultures creu-
sepulturas encontra-se espalhado por todo o país, in- curso, optou-se por redigir o presente artigo, para sées dans la roche granitique
cluindo as zonas mais meridionais, alvo de uma pro- que não caiam em esquecimento. Contudo, não são du Monte de Biscaia, situé à
longada ocupação árabe. aqui referidas três sepulturas, inventariadas na base Gáfete (Crato, Portalegre).
Tratando-se de um tema polémico e controverso, de dados do extinto Instituto Português de Arqueo- L’étude prétend contribuer aux
futurs développements sur ce
de abordagem difícil, em particular quanto à sua cro- logia (IPA), por não se incluírem no núcleo em ques- thème, basés sur un plus grand
nologia, escasseiam os estudos direccionados para tão. nombre de sépulcres et sur une
esta temática, salientando-se a tese de Mário Jorge Relativamente à metodologia adoptada na aná- autre dispersion spatiale, afin
BARROCA (1987), orientada para as necrópoles e se- lise destes sepulcros, foram preenchidas fichas de que l’on connaisse mieux cette
pulturas medievais na região de Entre-Douro-e-Mi- campo baseadas nas apresentadas por Catarina TEN- réalité dans le Sud du Portugal.
nho. Para Sul, destaca-se apenas o artigo publicado TE e Sandra LOURENÇO (1998). Destas fichas cons-
m o t s c l é s
na Revista Portuguesa de Arqueologia, da autoria de tam as características dominantes das sepulturas, no
Catarina TENTE e Sandra LOURENÇO (2002), que abor- que refere às suas dimensões, orientação, localiza- Moyen Âge; Sépultures creusées.
dam as sepulturas rupestres do distrito de Évora. ção, integração ou não num núcleo / necrópole, esta-
Não quer com isso dizer que estes vestígios estejam do de conservação, etc.
ausentes em determinadas zonas do país, mas antes Procedeu-se ainda ao desenho do plano e perfil
que se verifica uma falta de estudos direccionados das sepulturas, à escala 1:20, bem como à sua im-
que componham o quadro da investigação portugue- plantação na carta topográfica (Carta Militar de
sa, relativamente à temática das sepulturas rupestres. Portugal, folha 346 – Vale do Peso, 1:25 000).
al-madan
X online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Enquadramento Histórico

Em 1147, com a conquista


aos mouros das duas princi-
pais fortificações que domina-
vam o Tejo, Lisboa e Santa-
rém, a Reconquista para Sul
não mais parecia uma mira-
gem. Após a queda de Lisboa,
também Sintra, Almada e Pal-
mela, estas na margem Sul do
Tejo, viriam a cair em poder Fig. 1
dos Cristãos. Esta vaga contí-
nua de vitórias parece ter entu-
siasmado D. Afonso Henri-
ques que tentou, sem sucesso,
atacar Alcácer do Sal.
Na década seguinte, após estas conturbações bé- mesma Ordem do território de Açafa, delimitado a
licas, vivia-se um período de relativa acalmia. Ape- Norte pelo Rio Tejo e a Sul por parte dos actuais con-
nas em 1158 se verifica nova agitação, com a con- celhos de Nisa, Castelo de Vide e parte do território es-
quista de Alcácer do Sal, que se alastrou, nos anos panhol junto à actual fronteira. Nisa haveria de rece-
seguintes, ao restante Alentejo, sendo o Crato con- ber Carta de Foral algures entre 1229 e 1232, à data
quistado por volta de 1160. Beja cai nas mãos dos já com estrutura castelar edificada. Presume-se que
Cristãos em 1162, que a ocupam durante quatro me- parte dos colonos que vieram repovoar a região era
ses, sendo posteriormente alvo de saque e pilhagem. oriunda do Languedoc (CEBOLA 2005), sendo que es-
Esta área seria durante muito tempo palco de acções ta proveniência explicaria a actual toponímia de alguns
de conquista e devastação. Não será alheia a esta con- locais, atribuindo-lhes designações similares àquelas
juntura o avanço de Geraldo Sem Pavor, que entre de onde eram originários: Nisa (Nice), Arez (Arles),
1165 e 1167, à frente de um bando de aventureiros, Montalvão (Montauban) e Tolosa (Tolouse).
conquistou inúmeras praças: Trujillo, Évora, Cáce- No que respeita à região do Crato e como atrás
res, Montanchéz, Serpa e Juromenha. A maioria des- foi referido, a conquista cristã datará de 1160. Os do-
tas acções teve como objectivo claro o isolamento de mínios do Crato, Gavião e Amieira foram concedi-
Badajoz, cujo ataque, em 1169, viria a resultar na es- dos por D. Sancho II à Ordem do Hospital. Por altura
magadora derrota de D. Afonso Henriques, tendo o da doação, em 1232, já esta Ordem possuía outra im-
monarca português fracturado uma perna durante a portante fortificação junto ao Tejo, o Castelo de Bel-
debandada que se seguiu ao ataque, vindo inclusiva- ver, doado por D. Sancho I em 1194. A construção des-
mente a ser capturado pelo exército de Fernando II ta fortificação terá arrancado pouco depois da doa-
de Leão junto da povoação de Caia, entre Elvas e ção, recebendo a povoação, ainda em 1232, Carta de
Badajoz (BARROCA 2003: 43-49). Foral, atribuída por Mem Gonçalves, Prior da Ordem.
A partir de 1179 assiste-se a um endurecimento Importa saber o que terá levado a que o repovoa-
das acções Almóadas, que neste ano atacam o Cas- mento, nesta região, tenha acontecido tão tardiamen-
telo de Abrantes, no ano seguinte o de Coruche, em te. Não será muito difícil percebê-lo. Os territórios
1181 a cidade de Évora e em 1184 procedem a uma acima referidos inseriam-se numa zona muito propí-
grande incursão no Vale do Tejo, arrasando tudo no cia a rotas de invasão, o que se verificaria sensivel-
seu caminho. mente até ao início do século XIX. Por outro lado,
D. Afonso Henriques viria a falecer em 1185, a apenas a zona do Tejo se poderia considerar pacifi-
6 de Dezembro. O seu filho, D. Sancho I, assumiu a cada e passível de repovoamento, em finais do sécu-
pesada herança de aumentar a porção de terras con- lo XII. No entanto, Abu Yaqub Yussuf II, em Junho
quistadas aos Mouros. Importante para a área em de 1191, ainda atacaria, com sucesso, Alcácer do Sal,
estudo, é o facto deste monarca reforçar o poder das Almada e Palmela. Chegou, inclusive, a conquistar
Ordens Militares na zona, constante alvo de incur- todas as praças alentejanas, com excepção de Évora.
sões árabes. A fronteira do Tejo foi confiada à guar- O facto da maioria dos castelos da região se en-
da dos Templários, alicerçados nos castelos de To- contrarem bastante afastados entre si, distando uns dos
mar, cuja construção se iniciou em 1160, Almourol outros cerca de 25 / 30 quilómetros, terá contribuído
(1171), Idanha-a-Nova (Carta de Doação em 1197), também para alguma insegurança sentida pelas po-
Monsanto (Carta de Doação em 1165), Pombal pulações, visto que em caso de ataque não tinham
(Carta de Foral em 1174) e Santa Maria do Zêzere tempo para se refugiar intramuros. Isto, claro está,
(Carta de Foral em 1174). Data de 1191 a doação à atendendo ao facto de grande parte da população se
al-madan
online X
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
dedicar ao cultivo dos campos, instalando-se na pro-
ximidade de cursos de água que, no entanto, eram
frequentemente dominados pelas fortificações, facto
que não explicará totalmente esta ocorrência.
Assim, as sepulturas do Monte do Biscaia pare-
cem evidenciar, pela sua localização, a cerca de oito
quilómetros do Crato, um tipo de povoamento dis-
perso, concentrado em torno da pastorícia e do culti-
vo dos campos, pertença da Ordem do Hospital. Não
é despiciendo pensar que nas imediações possa ter
havido um local de culto, servindo como base espiri-
tual de uma comunidade aí instalada. Parece, contu-
do, que tal povoamento apenas se terá efectivado a
partir de finais da década de trinta do século XIII,
altura em que a região se encontrava livre de incur-
sões árabes.

O Monte do Biscaia

O Monte do Biscaia é uma propriedade rural lo-


calizada, administrativamente, na freguesia de Gáfe-
te, concelho do Crato, distrito de Portalegre. Actual-
mente as suas terras são utilizadas para a prática da
pastorícia, bem como para o cultivo de oliveiras e so-
breiros.
Trata-se de uma pequena elevação com penden-
Fig. 2 − Sepultura 1.
tes suaves, coroada por um Monte, a uma cota má-
xima de 305 metros (Carta Militar de Portugal, fo-
lha 346 – Vale do Peso, 1:25 000). Encontram-se aqui tam cinco que serão abordadas seguidamente. Se-
diversas linhas de água, sendo a mais preponderante gundo uma monografia local (OLIVEIRA 1954), à
a Ribeira de Magre. A geologia local remete para os época estas sepulturas encontravam-se ainda cober-
granitos porfiróides de grão grosseiro de duas micas, tas, embora actualmente esta situação já não se veri-
sendo atravessado por um filão de granito de grão fi- fique. Não muito longe das referidas sepulturas des-
no a médio, de duas micas, com biotite dominante e taca-se a presença de alguns monólitos graníticos
turmalina, ambos enquadráveis no maciço de Nisa que poderão corresponder às tampas desaparecidas.
(ZBYSZEWSKI et al. 1981).
Provavelmente devido ao relevo pouco acidenta-
do e à existência de cursos de água, bem essencial à Descrição das Sepulturas
sobrevivência humana, esta área conheceu uma ocu-
pação contínua, atestada pela presença de vários ves- Sepultura 1 (UTM 29N 612491E; 4359347N)
tígios arqueológicos. Recuando a épocas mais remo-
tas destacam-se duas antas, monumentos funerários Afloramento granítico com cerca de 150 cm de
pré-históricos muito evidentes na paisagem devido altura, onde foi escavada apenas uma sepultura. As
às suas grandes dimensões, mas também pelo facto características morfológicas do afloramento não per-
da vegetação ser rasteira e do relevo pouco acidenta- mitiam a implantação de mais sepulcros, pelo que
do permitir uma boa visibilidade da envolvente. este se encontra isolado. Apesar do seu relativo bom
Ainda a “Moradeira do Couto do Biscaia” (de- estado de conservação, possui fractura aos pés, ao ní-
signação popular para uma zona específica do Mon- vel do canal de escorrência.
te) é testemunho de ocupação eventualmente roma- Encontra-se segundo a orientação canónica di-
na, segundo as informações retiradas da base de da- reccionada de Oeste para Este.
dos do IPA, que referem a ocorrência, à superfície, Relativamente à sua tipologia, apresenta já alguns
de materiais cerâmicos domésticos e de construção, indícios de antropomorfismo, sendo os seus contor-
associados a estruturas e dispersos por uma área de nos de formato trapezoidal, com cabeceira rectangu-
cerca de 100 m2. lar almofadada (43 cm de largura), que serviria para
Na continuidade do tempo, também o período melhor acondicionar o inumado. Os pés não possuem
medieval está aqui representado, através de várias destaque especial, apenas a presença do referido ca-
sepulturas escavadas na rocha, das quais se salien- nal de escorrência do lado direito. À excepção da ca-
al-madan
X online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

beceira, o restante leito da sepultura encontra-se sen-


sivelmente no mesmo plano.
De medidas, tem uma largura máxima de 50 cm
e um comprimento de 179 cm, sendo a sua profundi-
dade média de 37 cm.
Esta sepultura é rodeada por um rebordo total,
em torno de toda a fossa, cuja largura varia entre os
15 e os 23 cm. Esta moldura é conseguida através do
afeiçoamento do suporte, que é rebaixado para que a
margem do sepulcro fique alteada.
Encontra-se situada junto a um caminho de terra
batida, de cronologia indeterminada, e não muito
distante das restantes sepulturas aqui abordadas, sa-
lientando-se o surgimento de cerâmica de construção
à superfície, na envolvente.

Sepultura 2 (UTM 29N 612523E; 4359247N)

Penedo granítico como suporte de uma sepultura


actualmente muito danificada. O sepulcro encontra-
-se orientado de Noroeste-Sudeste, mas não se des-
carta a possibilidade de estar fora do seu local de
origem, devido às características da implantação do
suporte no terreno.
Apesar do mau estado do monumento, é possí-
vel perceber que aqui se encontrava escavada uma
sepultura rectangular de contornos antropomórficos,
Fig. 3 − Sepultura 2.
com cabeceira rectangular almofadada (10 cm de
comprimento por 37 cm de largura). A zona dos pés
afigura-se muito fracturada, pelo que não é possível Sepultura 3 (UTM 29N 612847E; 4359316N)
daí retirar ilações.
Como dimensões apresenta uma largura máxima Sepultura escavada na superfície mais baixa e
de 53 cm por 168 cm, dedutíveis pelas marcas no extrema de um afloramento granítico. Encontra-se
suporte, e uma profundidade de 23 cm, restantes da orientada no sentido Oeste-Este, apresentando an-
fractura. tropomorfismo e contornos trapezoidais. A cabeceira
Encontra-se igualmente situada junto a um cami- (6 cm de comprimento por 37 cm de largura) é rec-
nho de cronologia indeterminada, e não muito longe tangular, e os pés ligeiramente destacados, possuin-
dos restantes sepulcros, detectando-se também vestí- do uma saliência central que serviria os propósitos
gios de cerâmica à superfície. do acondicionamento do defunto.

Fig. 4 − Sepultura 3.

al-madan
online X
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Apresenta 51 cm de largura por 187 cm,
sendo apenas visíveis 31 cm de profundidade.
É abrangida por um rebordo total conse-
guido através do aproveitamento da zona li-
mite, para Sul do suporte, enquanto o restante
perímetro foi trabalhado através do seu rebai-
xamento. É ainda visível uma depressão em
torno da parte da sepultura que está em con-
Fig. 5 − Sepultura 4.
tacto com o resto do afloramento.
Implanta-se nas proximidades de um ca-
minho de serventia actual, de cronologia inde-
terminada, e próximo das restantes sepulturas.
No interior foram detectados alguns fragmen-
tos de cerâmica de características grosseiras,
semelhantes aos que se encontram à superfí-
cie, na sua envolvente.

Sepultura 4 (UTM 29N 612889E; 4359216N)

Sepultura escavada em afloramento gra-


nítico, orientada de Oeste-Este e apresentan-
do antropomorfismo e formato trapezoidal. A
cabeceira (10 cm de comprimento por 41 cm
de largura) é rectangular com cantos arqueados, (45 cm de largura) apenas pela inclinação da rocha,
sendo que todo o leito do sepulcro se encontra no partindo do pressuposto que esta se situa na zona
mesmo plano. mais elevada do suporte, como é mais recorrente.
Tem como largura máxima 58 cm e 178 cm de Possui como largura máxima 48 cm, 198 cm de
comprimento, com 34 cm de profundidade média. comprimento e, quanto à profundidade, varia entre
Possui rebordo total delineado a partir do afeiço- os 45 cm na cabeceira e os 24 cm nos pés.
amento da rocha no sentido de a rebaixar, provocan- No mesmo afloramento, do lado direito da se-
do a tridimensionalidade da margem do moimento. pultura contam-se cinco covinhas escavadas, com
À semelhança das restantes, situa-se próximo de cerca de 7 cm de diâmetro, bem como uma outra na
um caminho de cronologia indeterminada, e não zona da cabeceira.
muito longe das outras sepulturas. Situa-se a cerca de 100
metros de um caminho
Sepultura 5 (UTM 29N 613628E; 4358645N; 305 m) de terra batida e cronolo-
gia indeterminada, sendo
Afloramento alto, com cerca de 170 cm de altu- o sepulcro que mais se
ra, ostentando no seu topo uma sepultura escavada. afasta do núcleo princi-
Esta apresenta formato rectangular muito simétrico, pal, quer em termos espa-
de orientação Norte-Sul, distinguindo-se a cabeceira ciais, quer tipológicos.

Fig. 6 − Sepultura 5.

al-madan
X online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Cronologia No entanto, Mário Barroca diz que este tipo de


sepulturas não pode ser atestado em cronologias tão
A definição de uma cronologia para as sepultu- recuadas como o séc. VII e, por outro lado, que terão
ras escavadas na rocha esteve sempre envolta em sido utilizadas até ao séc. XIII, servindo-se como
acesa discussão. justificação dos casos das necrópoles do Convento
As primeiras alusões a estes monumentos em da Costa (Guimarães) e da Sé Velha de Coimbra
Portugal remontam ao séc. XIX e referem-se às (BARROCA 1987 e 1990).
sepulturas da Portela do Forno de Mouros (Penafiel), Relativamente às sepulturas do Monte Biscaia, e
sendo-lhes atribuído o período romano. atendendo ao período conturbado que se vivia na
Outros autores, como Aristides Amorim Girão, Península Ibérica, durante a Reconquista, graças aos
consideram-nas, inclusivamente, como sendo per- confrontos entre Cristãos e Muçulmanos, bem como
tencentes a períodos proto-históricos, mas fazendo-as entre os próprios reinos Cristãos, é provável que es-
chegar à Idade Média. Francisco Martins Sarmento é tes sepulcros pertençam a uma época mais tardia do
um dos primeiros investigadores portugueses que atri- seu período de vigência.
bui a estes moimentos uma cronologia pós-romana De facto, a Península encontrava-se ocupada pe-
(BARROCA 1987). las tradições e povos árabes desde 711, e as suas ca-
Já Félix Alves Pereira, no início do séc. XX, foi racterísticas tipológicas apontam para os últimos sé-
um dos primeiros arqueólogos portugueses a reco- culos da utilização deste tipo de enterramentos.
nhecer uma ampla diacronia temporal, vastamente
abrangente, para estes sepulcros, considerando que
deveriam ter sido utilizados ao longo de toda a Idade Conclusão
Média (BARROCA 1987). Esta questão foi ainda abor-
dada por outros investigadores portugueses, tais co- Além da própria tipologia dos sepulcros, sem
mo Virgílio Correia (sobre a Sé de Coimbra), Fer- dúvida importante, o estudo destes moimentos deve
nando Lanhas ou D. Domingos de Pinho Brandão. também ter em conta aspectos relacionados com a
Apenas na década de 60 e 70 se assiste a um ponto paisagem envolvente, nomeadamente a topografia, a
de viragem com os fundamentais textos de Alberto orografia (montanha ou local baixo), a geologia, os
del CASTILLO (1968 e 1972), que acabam por revolu- cursos de água, as vias de comunicação, assim como
cionar e influenciar o entendimento da comunidade a própria orientação das sepulturas, os detalhes da
científica face a uma atribuição cronológica destes composição ou a posição dos corpos (COLARDELLE et
monumentos (BARROCA 1987). al. 1994). Contudo, deve ter-se em conta que o estu-
Este autor, e baseando-se numa série de estudos do das sepulturas escavadas na rocha, até à data, não
e escavações arqueológicas efectuadas sobretudo nas é muito completo, em particular pela falta de vestí-
regiões da Catalunha, Navarra e Aragão, defende gios osteológicos dos inumados, bem como de even-
uma evolução tipológica das sepulturas acompa- tual espólio funerário, que acompanharia o morto na
nhando o crescendo cronológico. sua viagem pelo além. Esta situação deve-se ao fac-
Desta forma, as sepulturas mais simples, de con- to do material orgânico não resistir à acidez dos su-
tornos ovalados, seriam as mais antigas, com origem portes graníticos, onde se encontram talhadas muitas
no séc. VII, enquanto as sepulturas com característi- sepulturas, mas também à violação das fossas, que
cas antropomórficas pertenceriam já ao período da raramente chegam seladas à actualidade.
Reconquista, ao longo do qual foram também procu- A escassez de informação que se pode retirar
rando um maior aperfeiçoamento (CASTILLO 1968 e destes monumentos, não permite detectar a possível
1972; BARROCA 1987). existência de reutilizações (COLARDELLE et al. 1994),
No séc. X, o perfil da cabeceira já se encontraria à semelhança do que se verifica em sepulturas ou
assinalado e as sepulturas seriam dotadas de simetria necrópoles coetâneas, de diferentes tipologias.
axial quase perfeita, diversificando-se as soluções de Este tipo de túmulo oferece ainda uma amostra
antropomorfismo (BARROCA 1987). É também nos da tecnologia da época, tanto pelos materiais usados
meados deste século que se verifica o início da utili- como pela forma como são trabalhados (OLLICH I
zação de rebordos em torno da fossa, bem como ca- CASTANYER 1993-1994). As sepulturas escavadas na
nais de escorrência, geralmente localizados na zona rocha deveriam exigir conhecimentos específicos de
dos pés, que preveniriam contra a acumulação das talhe de pedra e utilização especializada de instru-
águas pluviais (BARROCA 1987 e 1990). mentos metálicos, manuseados por homens experi-
Assim, o período mais arcaico definido por Cas- entes (BARROCA 1987).
tillo recua aos sécs. VII e VIII, correspondendo à Relativamente às sepulturas do Monte do Bis-
época tardo-visigótica, sendo que o ciclo de utiliza- caia, deve ser levado em conta o facto de se estar pe-
ção destas sepulturas terminaria por volta do séc. XII rante uma amostra reduzida de monumentos, condi-
(CASTILLO 1968 e 1972; BARROCA 1987 e 1990). cionando as conclusões possíveis.

al-madan
online X
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Realça-se o facto destas se situarem numa zona Em termos espaciais, é curioso observar que as
onde se verifica uma ocupação contínua, atestada sepulturas do Monte do Biscaia formam um pequeno
pela presença de uma necrópole pré-histórica, com- núcleo de quatro e podem ser agrupadas aos pares,
posta por dois monumentos megalíticos. Perante esta existindo uma quinta sepultura mais afastada, sendo
circunstância, talvez se possa supor a existência de precisamente aquela que apresenta maiores diferen-
um carácter sagrado no local, que persistiu ao longo ças tipológicas.
do tempo. No entanto, este não é um fenómeno iso- Todas elas se encontram na berma de caminhos
lado, verificando-se noutros sítios arqueológicos a actuais, que poderão remontar a períodos mais anti-
coexistência de necrópoles num espaço reduzido, gos, bem como nas proximidades de linhas de água.
distanciadas temporalmente umas das outras (LOU- Novamente, a única sepultura que foge a este pa-
RENÇO 2007). Esta tendência contraria a tentativa da drão é a Sepultura 5, que mais se afasta das referidas
Igreja em substituir estes locais, que a cultura popu- vias, bem como de linhas de água, implantando-se
lar entende como sagrados e nos quais se observa a numa situação de maior altitude em relação aos res-
persistência de crenças ancestrais sobre a religião ofi- tantes moimentos.
cialmente imposta (OLLICH I CASTANYER 1993-1994). Finalmente, e devido às características que apre-
Em termos tipológicos, as características das se- sentam, estas sepulturas deverão pertencer a uma fa-
pulturas visadas remetem para um período tardio da se final da utilização deste tipo de enterramentos. A
vigência destes enterramentos, surgindo já com di- excepção poderia ser a Sepultura 5, ainda que esta
versas soluções de construção dos túmulos, em par- conclusão não possa ser confirmada arqueologica-
ticular se atendermos ao facto de que numa pequena mente.
área se encontram diferentes formas de construção.
Por um lado, algumas sepulturas encontram-se
implantadas em afloramentos altos, como se se pre-
tendesse que fossem visíveis, ao contrário de outras,
muito rasteiras ao solo. Por outro, os contornos das se- Agradecimentos
pulturas também diferem uns dos outros, sendo que
umas são antropomórficas, outras rectangulares sem Agradecemos ao Sr. Manuel Rosa pela indica-
pronunciação encefálica, e nem todas apresentam re- ção dos vestígios arqueológicos existentes no Monte
bordo. Ainda que possuam diferenças tipológicas, na do Biscaia, e pela visita aos locais, na qual nos
ausência de um contexto arqueológico directo, não é acompanhou apesar da avançada idade, bem como a
possível assegurar que estas sejam o reflexo de uma António José Antunes, pela tintagem célere dos de-
utilização em diferentes períodos cronológicos. senhos.

Bibliografia

BARROCA, Mário Jorge (1987) – Necrópoles e Sepulturas le Sud-Est de la Gaule”. In Archeologie du Cimetière
Medievais de Entre-Douro-e-Minho (Séc. V a XV). Dis- Chrétien, pp. 271-303 (Actes du 2e Colloque ARCHEA).
sertação para Provas Públicas de Capacidade Científica, LOURENÇO, Sandra (2007) – O Povoamento Alto-Medieval
apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do Entre os Rios Dão e Alva. Lisboa: IPA (Trabalhos de
Porto. Porto. Policopiado. Arqueologia, 50).
BARROCA, Mário Jorge (1990) – “As Sepulturas Rupestres MATTOSO, José (1993) – História de Portugal. Lisboa. Vol.
de Salvador do Monte (Amarante)”. Entremuros. 1: 31-36. II.
BARROCA, Mário Jorge (2003) – “História das Campa- OLIVEIRA, Maria de Lourdes Enes d’, ed. (1954) – Mono-
nhas”. In MATTOSO, José (coord.). Nova História Militar grafia de Tolosa. S.l. [Tolosa].
de Portugal. Mem Martins: Publicações Europa-Amé- OLLICH I CASTANYER, Imma (1993-1994) – “Arqueologia
rica. Vol. I, pp. 22-68. de la Mort: una perspectiva de la Història Medieval”.
CASTILLO, Alberto del (1968) – “Cronologia de las Tumbas Acta Medievalia. Barcelona. 14-15: 277-290.
Olerdolanas”. In Actas del XI Congreso Nacional de Ar- TENTE, Catarina e LOURENÇO, Sandra (1998) – “Sepulturas
queología. Mérida, pp. 835-845. Medievais Escavadas na Rocha dos Concelhos de Car-
CASTILLO, Alberto del (1972) – “Excavaciones Altome- regado do Sal e Gouveia: estudo comparativo”. Revista
dievales en las Províncias de Soria, Logroño y Burgos”. Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 1 (2): 91-217.
Excavaciones Arqueológicas en España. Madrid. 74. TENTE, Catarina e LOURENÇO, Sandra (2002) – “Sepulturas
CEBOLA, Carlos (2005) – Nisa. A outra história. Lisboa: Medievais do Distrito de Évora”. Revista Portuguesa de
Edições Colibri. Arqueologia. Lisboa. 5 (1): 239-258.
COLARDELLE, Michel; DÉMIANS D’ARCHIMBAUD, Grabielle ZBYSZEWSKI, G.; CARVALHOSA, A. e GONÇALVES, F. (1981)
e RAYNAUD, Claude (1994) – “Typo-Chronologie des – Carta Geológica de Portugal, na escala 1/50 000. No-
Sépultures du Bas-Empire à la Fin du Moyen-Âge dans tícia Explicativa da folha 28-C – Gavião. Lisboa.

al-madan
X online
adenda
7 electrónica
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Pertinência da Análise r e s u

Análise bioantropológica de um con-


m o

junto de esqueletos desconexos e ar-

Bioantropológica queologicamente descontextualizados,


recolhidos em acompanhamento ar-
queológico realizado na envolvente da
igreja matriz de Montalvão (Nisa, Por-
talegre).
Os autores defendem a pertinência do

em Espólio Osteológico estudo de esqueletos humanos anato-


micamente desconexos, por vezes a
única via para caracterizar indivíduos e
inferir alguns parâmetros paleodemo-
gráficos, morfológicos e paleopatológi-

Humano
cos.

p a l a v r a s c h a v e

Antropologia; Análise morfológica; Pa-


leodemografia; Paleopatologia .

Descontextualizado a b s t r a c t

Bioanthropological analysis of a set of


o caso da necrópole da Igreja Matriz de Montalvão (Nisa) disconnected skeletons without an ar-
chaeological context collected during
archaeological follow-up operations on
the construction works around the
Montalvão church (Nisa, Portalegre).
por António Matias (*) e Cláudia Costa (**)
The authors defend the importance of
(*) Osteoarqueólogo (anmatias@hotmail.com). studying anatomically disconnected
human skeletons, as they are often the
(**) Arqueóloga (cauca@archaeologist.com). only means to characterise individuals
and infer palaeodemographic, morpho-
logic and palaeopathologic parameters.

k e y w o r d s
Introdução
Anthropology; Morphological analysis;
esqueleto é a evidência da existência de sos em que os ossos humanos se encontram comple-

O
Palaeodemography; Palaeopathology.
um indivíduo, sendo muitas vezes o seu tamente descontextualizados do seu local de origem,
último registo. Em vida, os ossos de- fruto da ocupação contínua do espaço funerário. Este
sempenham as seguintes funções: suportam os teci- mesmo espaço, que terá servido de lugar sagrado nu- r é s u m é
dos moles, protegem os órgãos vitais, como o cére- ma determinada época, poderá, com o passar do tem-
bro e a espinal medula, são um dos constituintes do po e consequente perda da memória, assumir outras Analyse bio-anthropologique d’un en-
sistema muscular esquelético, sendo o meio através funções, como a recreativa e/ou lúdica, exploração semble de squelettes dépareillés et ar-
do qual os músculos produzem movimento. Por ou- agrícola, entre outras. Essas metamorfoses acabam chéologiquement décontextualisés, re-
cueillis lors d’un accompagnement ar-
tro lado, os ossos são também centros de produção por originar a perturbação e consequente exposição chéologique réalisé aux environs de
das células sanguíneas e armazenam gordura e al- dos restos humanos, provocando, quase sempre, a l’église de Montalvão (Nisa, Portale-
guns minerais essenciais, como o cálcio e o fósforo. destruição do espaço funerário e a dispersão alea- gre).
Contudo, o papel do esqueleto não se encontra limi- tória dos ossos. Les auteurs défendent la pertinence de
tado apenas pelas funções que desempenha durante O espólio osteológico humano recolhido no de- l’étude des squelettes humains anato-
miquement dépareillés, souvent l’uni-
a vida do indivíduo. Após a morte deste, é possível correr da intervenção de carácter arqueológico em que voie pour caractériser des indivi-
estimar através da análise do esqueleto vários parâ- Montalvão, é formado por um conjunto de ossos dus et induire des paramètres paléo-
metros biológicos que nos permitem delinear a estru- desarticulados e sem qualquer conexão anatómica démographiques, morphologiques et
tura, biologia, cultura e padrões de doença de uma (total de 145 peças ósseas isoladas, de diversas paléo-pathologiques.
população do passado (WHITE 2000), permitindo a regiões anatómicas), o que nos permitiu identificar a
m o t s c l é s
aproximação ao “modus vivendi” de determinada co- presença de vários indivíduos, sendo aqui analisado
munidade num determinado espaço. com o intuito de se extraírem elementos que possam Anthropologie; Analyse morphologique;
Porém, muitas vezes não nos é possível aceder à contribuir para uma melhor compreensão das carac- Paléo-démographie; Paléo-pathologie.
totalidade do esqueleto humano, surgindo alguns ca- terísticas biológicas, demográficas e sociais da popu-
al-madan
XI online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Figura 1 lação que habitou a vila em tempos pretéritos. Após Enquadramento geográfico e histórico
a estimativa do número mínimo de indivíduos (NMI)
Localização da Vila de Montalvão
(concelho de Nisa) e da Igreja
presentes neste ossário, foi efectuado o estudo pale- A freguesia de Montalvão localiza-se no extre-
de Nossa Senhora da Graça na odemográfico, tendo sido estabelecidas a proporção mo Norte da antiga província do Alentejo, mais pro-
fotografia aérea. Fachada principal sexual e a distribuição etária. Seguiu-se a análise priamente na região do Alto Alentejo, junto à linha
da Igreja. morfológica que revelou algumas características físi- de fronteira Este de Portugal, no distrito de Porta-
cas destes indivíduos, entre as quais a estatura e ro- legre, concelho de Nisa. Implanta-se na Carta Militar
bustez. Procedeu-se depois ao estudo paleopatológi- de Portugal à escala 1: 25 000, na folha 315, com as
co que permitiu retirar algumas ilações sobre o esta- seguintes coordenadas geográficas do Datum de Lis-
do de saúde e condições higio-sanitárias destes indi- boa: M 252 072,87 e P 292 116,95.
víduos. Geomorfologicamente, a vila ocupa o cimo de
A recolha deste espólio foi efectuada durante o uma elevação de topo aplanado e forma alongada, a
acompanhamento arqueológico à obra de arranjo ur- 339 metros de altitude, na margem esquerda do rio
banístico da envolvente da Igreja Matriz e Castelo na Sever, junto à sua confluência com o Rio Tejo.
freguesia de Montalvão, no concelho de Nisa, pro- Sobre uma eventual ocupação daquele espaço
movido pela Câmara Municipal, a cargo da empresa anterior ao século XII não parece haver muitas infor-
Vibeiras e adjudicado à empresa Crivarque, Lda. O mações provenientes das fontes históricas. Conhece-
trabalho de arqueologia, da responsabilidade de um mos, todavia, um grande número de sepulturas antro-
dos signatários (COSTA 2008), desenvolveu-se em pomórficas escavadas nos afloramentos rochosos, um
duas vertentes: por um lado, a monitorização das pouco por toda a freguesia, que se encontram exaus-
operações de abertura de valas para a introdução da tivamente listadas na base de dados online do IGESPAR
rede de iluminação na envolvente da Igreja Matriz e, (www.ipa.min-cultura.pt). Este tipo de sítios carece em
por outro, o acompanhamento dos trabalhos de con- Portugal de um estudo sistemático aprofundado. Não
servação e protecção das muralhas do Castelo. obstante, investigações recentes levadas a cabo nou-
Foi durante as operações de abertura de valas tras regiões do país, têm vindo a mostrar que a cro-
para iluminação no adro da Igreja Matriz que os os- nologia de utilização destas estruturas se prolongará
sos humanos dispersos e sem conexão anatómica fo- entre o século V e a Reconquista e será sinónimo de
ram detectados e recolhidos. um povoamento rural disperso (LOURENÇO 2007).
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Dos estudos históricos sabe-se que as terras de 1704, e que o castelo mantinha uns canhões desmon-
Montalvão teriam sido doadas aos Templários por tados e ferrugentos, sendo utilizado como pomar,
volta do ano de 1165, juntamente com Tomar, Vila apesar de ainda ser comandado por um governador.
Flor, Alpalhão e Nisa. Sobre a integração da locali- A comenda só deixou de pertencer à Ordem de Cris-
dade no bispado da Guarda conjectura-se que terá to depois da Revolução Liberal, tendo o último co-
ocorrido a partir de 1199, pois apenas se conhece um mendador morrido em 1833 (ROSA 2001). A vila é
documento datado de 1295 em que o Bispo da Guar- despromovida de concelho em 1834 (MOURATO et al.
da e o Mestre da Ordem dos Templários fazem a 1980).
composição dos direitos episcopais da vila de Mon- Findo o papel defensivo do castelo de Montal-
talvão, direitos esses que aparecem confirmados em vão, o recinto foi transformado em cemitério desde a
documentação de 1305. Só em 1549 a vila passará proibição de enterramento em igrejas até 1951,
para a tutela do bispado de Portalegre, após a sua quando foi construído o actual cemitério no sopé do
criação (ROSA 2001). morro ocupado pela vila, altura em que o interior da
Gozando de uma privilegiada posição geográfi- estrutura defensiva foi transformado em parque in-
ca como ponto de ligação entre o Norte e o Sul do fantil. Mais recentemente foi construído um depósi-
país, através da utilização de uma barca que ligava as to de água junto à entrada do Castelo, o que implicou
duas margens do Rio Tejo (IDEM), o Castelo e a vila a destruição parcial de um troço da muralha (MURTA
de Montalvão fazem parte da estratégia de fixação 1993; ROSA 2001). Até esta obra de requalificação
da raia fronteiriça no Alto Alentejo juntamente com por iniciativa da Câmara Municipal de Nisa, o recin-
Nisa, durante o século XII e até aos finais do século to defensivo foi votado ao esquecimento, tendo so-
XIV (OLIVEIRA 2000). Após a extinção da Ordem frido várias derrocadas ao longo do tempo.
Templária, este território continua a ser de grande
importância para a Ordem de Cristo, que mantém a
política de entrega das terras a comendadores, tra- A Igreja Matriz
dição que será interrompida em 1449, quando o rei
concede os privilégios da vila aos seus moradores, No lado Oeste do castelo, a escassos metros da
como forma de contrariar os fenómenos de despo- entrada para o recinto interior, ergue-se a igreja paro-
voamento. A comenda de Montalvão passa então por quial, dedicada a Nossa Senhora da Graça. Trata-se
várias famílias, ao sabor dos interesses da Ordem de de um monumento construído em granito, actual-
Cristo, e em 1512 D. Manuel entrega-lhe a Carta de mente classificado como Imóvel de Interesse Mu-
Foral (ROSA 2001). nicipal pelo decreto 129/77, DR 226, de 29-09-1977.
A vila é muralhada durante o reinado de D. Di- A data de edificação não é segura, mas colocar-se-á
nis, com duas portas: a Porta de Cima e a Porta de Bai- entre o final do século XIII e inícios do século XIV.
xo (IDEM). É a este reinado que se atribui, também, a O portal principal será porventura um dos poucos
edificação (ou reedificação) do Castelo (MOURATO et elementos que datam da sua fundação. Encontra-se
al. 1980). inscrito em gablete de remate triangular, desenvol-
A região de Montalvão representava um dos pon- vendo-se em arco de volta perfeita formado por ar-
tos privilegiados para os castelhanos invadirem Por- quivoltas triplas, que assentam em colunelos com ca-
tugal e, por isso, a vila sofreu várias destruições ao pitéis de folhagens de cada um dos lados. É sobrepu-
longo da sua história. Na Guerra de 1475-1478, no jado por um óculo mais recente e flanqueado por
reinado de D. Afonso V, a vila foi fortemente atacada, duas frestas, e ter-se-á mantido inalterado, apesar das
tendo-se justificado a concessão de privilégios pelo várias campanhas de obras que decorreram nos sécu-
rei em 1480, para fazer face aos estragos. No âmbito los XVI, XVII, XVIII e XX. As fachadas laterais têm
do conflito da Restauração, em 1641, rezam as fon- portas de arco ogival. A fachada principal é larga e
tes que os castelhanos atacaram a zona entre Marvão baixa, ladeada por duas torres que se destacam da
e Montalvão, tendo sofrido uma pesada derrota. A malha urbana da vila, sendo que a mais alta tem um
vila e o seu castelo foram de igual modo fortemente relógio, mas ambas apresentam panos cegos, apenas
abalados por Castela em 1646 e 1704-1705. Em abertos pelas sineiras com pedraria aparente nos cu-
1801, Montalvão resiste às invasões francesas, mes- nhais e remate em coruchéu.
mo depois das tropas inimigas terem tomado Castelo No interior, apresenta características quinhentis-
de Vide e Portalegre, mas pouco depois terá caído tas, estando o espaço dividido em três naves, separa-
(ROSA 2001). das por arcaria de volta perfeita, assente sobre colu-
José Maria das Neves Costa, Capitão de Infan- nas, definindo cinco tramos, sendo que os arcos na
taria do Exército, elaborou um relatório no início do área do coro são mais baixos. A zona da cabeceira é,
século XIX sobre as vilas e aldeias do Alto Alentejo. todavia, mais recente, apresentando tecto em caixo-
Na descrição referente à vila de Montalvão men- tões e retábulo de talha polícroma de inspiração pro-
ciona que as muralhas da vila já não existiam, tendo to-barroca, profundamente alterada e repintada em
possivelmente sido destruídas devido à guerra de épocas recentes.
al-madan
XI online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

tuição das antigas árvores de fruto pelas actuais, bem


como nas obras de introdução da rede de abasteci-
mento de água à freguesia.
No decurso do acompanhamento arqueológico,
que decorreu entre os meses de Dezembro de 2007 a
Março de 2008 (de forma intermitente, conforme a
calendarização da obra), foi possível a recolha de di-
versos ossos humanos soltos e isolados, a maioria
fracturados. A observação estratigráfica realizada du-
rante a abertura das valas permitiu a identificação de
uma estratigrafia simples, que demonstra o grau de
afectação dos depósitos arqueológicos outrora pre-
servados:
UE 1 – Camada de terra muito solta, com muitas
raízes e revolvimento recente; espessura variável en-
tre os 5 e os 10 cm.
UE 2 – Camada franco-siltosa de matriz muito
fina, correspondente à desagregação dos xistos que
Figura 2 Quanto aos restantes altares, os dois laterais são compõem o substrato geológico. Esta camada apre-
de talha dourada barroca e, na nave, existe a capela sentava-se muito solta e revolvida e embalava alguns
Aspecto geral da abertura da vala
junto à Igreja Matriz de Montalvão
do século XVII, aberta por arco de volta perfeita ossos humanos soltos e isolados. Desenvolve-se no
(Nossa Senhora da Graça). inscrito numa estrutura de pilastras e entablamento topo do substrato geológico e tem uma espessura va-
em granito, e um outro retábulo em mármore de Es- riável entre os 30 e 50 cm.
tremoz, já do século XVIII (KEIL 1943, citado em UE 3 – Substrato geológico xistoso.
www.ippar.pt e MOURATO et al. 1980). Esta estratigrafia não revelou nenhuma estrutura
de sepultura preservada, e os únicos elementos ar-
queológicos recolhidos correspondem aos elementos
Acompanhamento arqueológico osteológicos humanos.
junto à Igreja Matriz

O projecto de engenharia previa a introdução de Análise Funerária e Bioantropológica


uma rede subterrânea de iluminação no espaço adja-
cente à igreja paroquial, anterior à repavimentação No que concerne aos rituais e gestos funerários
do adro em calçada de paralelos, junto às fachadas em torno do espólio osteológico humano recolhido,
Sul e Este da igreja. Para tal, foi necessária a abertu- pouco se poderá dizer. A prática dos enterramentos
ra de valas de largura média de 40 a 50 cm e profun- no interior ou nos adros das igrejas estava profunda-
didade de 80 a 100 cm, com recurso a meios mecâni- mente enraizada no Ocidente Cristão desde a Idade
cos, e consequente introdução da rede de tubagens. Média. A oposição a esta prática e o movimento a
Realizando-se a obra na área envolvente de uma favor dos “cemitérios públicos” acentuaram-se nos
igreja paroquial, previa-se a existência de uma ne- finais do séc. XVIII. Em Portugal, já pelo menos
crópole de inumação coetânea do monumento. To- desde o terramoto de 1755 que os médicos e políti-
davia, segundo a tradição oral, aquele espaço já co- cos mais esclarecidos chamavam a atenção para os
nheceu várias utilizações durante o passado recente, riscos que representava para a saúde pública a práti-
nomeadamente a transformação em pomar. Na déca- ca do enterramento nos templos, e tomavam-se as
da de setenta do século XX, e em virtude da instala- primeiras medidas com vista à construção de cemi-
ção no perímetro do castelo de um depósito de água, térios públicos.
foram realizadas várias obras neste espaço para in- A interpretação dos gestos funerários neste caso
trodução de tubagens para abastecimento da água à particular pode ser problemática, uma vez que a des-
1 Neste caso a redução de
vila. Ora, tanto os trabalhos de cultivo das árvores de articulação óssea deveu-se, muito provavelmente, à
enterramentos poderá ser fruto, como as obras de introdução de tubagens da deslocação posterior às inumações, ou seja, os cor-
entendida como uma deposição
secundária (os restos humanos são
rede de abastecimento de águas a partir do depósito pos foram depositados em sepulturas no interior ou
colocados em locais distintos instalado no recinto do castelo, implicaram o revol- exterior da igreja e ulteriormente reduzidos 1, quan-
daqueles onde foram depositados vimento do subsolo em vários episódios que resul- do impediram a inumação de um enterramento mais
após a morte), eventualmente sob taram, naturalmente, na destruição dos níveis arque- recente ou a construção de determinadas infra-estru-
a forma de ossário, resultante da ológicos conservados. De facto, entre a população turas urbanas. Face ao exposto, a falta de registos so-
desarticulação de enterramentos
primários com o propósito da
mais idosa da vila de Montalvão, foi possível reco- bre a disposição e organização dos enterramentos
acomodação de cadáveres mais lher testemunhos que davam conta do aparecimento impede-nos de tratar os rituais e gestos funerários
recentes. de vários ossos humanos durante as obras de substi- destes indivíduos.
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
A análise tafonómica é de extrema importância
Tabela 1
em qualquer estudo bioantropológico, constituindo Distribuição das Alterações Tafonómicas
uma das suas etapas preliminares. Quando se lida Pelos Diferentes Tipos de Peças Ósseas
com restos humanos esqueletizados deve avaliar-se
o estado de preservação dos ossos, já que a qualidade Coloração Destruição Golpes
da informação que se pode extrair deles é inversa- Tipo de osso N Observados % Observados % Observados %
mente proporcional ao estado de degradação que Crânio 4 2 50,0 - - - -
ocorre durante o enterramento. Os ossos são afecta- Úmero 15 6 40,0 4 26,6 1 6,6
dos por diversos factores de natureza intrínseca, ine- Cúbito 8 3 37,5 1 12,5 - -
rentes às características dos diferentes elementos ós- Rádio 8 2 25,0 - - 1 12,5
seos (densidade e robustez óssea) e às do próprio in- Costelas 12 4 33,3 3 25,0 - -
divíduo (idade à morte, sexo e patologias), e extrín- Fémur 28 8 28,5 11 39,2 2 7,1
seca, como as condições climatéricas e do solo (CRU-
Tíbia 25 3 12,0 9 36,0 4 16,0
BÈZY 1992; HENDERSON 1987). A excreção de ácidos
Perónio 19 5 26,3 3 15,7 - -
pelas raízes das plantas, a presença de animais roe-
Total 119 33 31,5 31 25,8 8 10,5
dores, a deposição de carbonato de cálcio sobre os
ossos e as próprias práticas rituais funerárias, como
o desmembramento dos corpos, são factores impor- Figuras 3 a 5
tantes que devem ser observados quando se realiza Costela apresentando alterações tafonómicas ao
uma análise tafonómica. A relação observada entre o nível da coloração, provocadas, provavelmente,
estado de preservação dos ossos e de algumas carac- por bactérias e/ou fungos (à esquerda) e marcas
terísticas do indivíduo, tais como a idade à morte, o de cortes post mortem numa diáfise de um osso
sexo e as enfermidades, faz com que a análise tafonó- longo (tíbia, à direita) .
mica seja um elemento fundamental nos estudos an- Em baixo, diáfise de úmero apresentando
alterações tafonómicas ao nível da coloração e
tropobiológicos (BODDINGTON 1987; CRUBÈZY 1992).
alteração do periósteo (meteorização).
Normalmente, os ossos dos indivíduos muito novos
e dos idosos são particularmente afectados pelos fac-
tores post-mortem.
O espólio osteológico analisado (N = 145 frag-
5 cm

mentos) encontrava-se, na generalidade, mal preser-


vado, evidenciando muitas alterações tafonómicas,
sobretudo a nível da superfície do osso, resultando em
alguns casos numa destruição profunda do periósteo 2
e/ou em variações na sua coloração (Tabela 1). Por
outro lado, foi ainda registada a presença de marcas
post-mortem, semelhantes a golpes, que se localizam
na região externa do osso, afectando, na maioria dos
0

casos, também a região interna do osso.


Assim, foi possível constatar que alteração da co- As marcas designadas por golpes tendem a sur-
loração nos ossos foi mais expressiva nos úmeros, gir mais do que uma no mesmo osso e com uma
com 40 % (6/15) dos ossos afectados, encontrando-se grande proximidade, podendo ser atribuídas a uma
5 cm

o menor índice nas tíbias, com 12 % (3/25). Por ou- acção mecânica provocada por um objecto contun-
tro lado, a acção dos processos destrutivos mostrou- dente, como a lâmina de uma enxada, provavel-
-se mais severa nos fémures, com uma incidência de mente no momento da exumação. Por outro lado, é
39,2 % (11/28), e de uma forma mais ténue nos cú- de realçar, também, o facto de que o material anali-
bitos, com 12,5 % (1/8). A destruição óssea provoca- sado apresenta inúmeras fracturas post-mortem,
da por incisões (golpes) post-mortem afectou parti- podendo dever-se à própria manipulação ou ao tipo
cularmente os ossos longos de maiores dimensões, de arrumação a que as peças foram sujeitas aquando
0

com 16 % (4/25) das tíbias e 7,1 % (2/28) dos fému- da sua redução.
res a evidenciarem estas marcas. De referir ainda que Dos 145 ossos analisados, 126 pertenciam a in-
não encontrámos quaisquer indícios de incisões divíduos adultos, dos quais apenas 17 (13,4 %) se en-
post-mortem nos ossos de tamanho mais reduzido. contravam completos. Quanto aos não adultos, fo-
Os valores apresentados na Tabela 1 expressam ram recuperados 19 elementos ósseos, sendo que ne- 2 O periósteo é uma membrana

um elevado grau de destruição ou coloração na nhum se encontrava completo. De um modo geral, e fibrosa que cobre toda a superfície
dos ossos, com excepção para as
amostra estudada. Todavia, as áreas afectadas são de como já foi anteriormente referido, os ossos estão
regiões de inserção ligamentares e
reduzidas dimensões, apontando para a possibilidade muito fragmentados, não havendo diferenças signi- tendinosas, assim como superfícies
de terem estado sujeitos a um curto período de inu- ficativas entre o estado de fragmentação dos ossos articulares (BUIKSTRA e UBELAKER
mação. dos indivíduos adultos e dos não adultos. 1994).

al-madan
XI online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Quanto à distribuição pelos diferentes tipos de


Distribuição do
ossos, os mais fragmentados são os do crânio, os os-
Espólio Osteológico Humano sos chatos da bacia e os ossos longos. Inversamente,
pelos diferentes tipos de ossos os ossos de pequenas dimensões, como os das mãos
e do tarso, apresentam-se menos fragmentados. A ele-
vada percentagem de fragmentação dos ossos, prin-
osso cipalmente dos ossos longos, que atingiu os 98,4%,
ossos do pé 13
constituiu um sério entrave ao estudo antropobio-
perónio 19
lógico dos indivíduos representados neste ossário.
tíbia 25 No que concerne aos ossos longos dos indiví-
fémur 28 duos adultos, as regiões melhor representadas são,
coxal 2 normalmente, os fragmentos de diáfise adjacentes
sacro 1 às epífises (Tabela 2), não se verificando diferenças
ossos da mão 3 significativas quando se atenta à lateralidade dos
rádio 8 ossos. São áreas ósseas constituídas por tecido com-
cúbito 8 pacto, caracterizado por ser bastante sólido e denso
úmero 15 (WHITE 2000), o que pode explicar a sua melhor pre-
costela 12 servação.
vértebras 4 Num enterramento secundário, no qual frequen-
clavícula 1 temente os ossos estão desarticulados, o esqueleto
mandíbula 1 perde a sua individualidade, misturando-se com os
crânio 4 ossos de outros indivíduos, tornando-se mais difícil
0 5 10 15 20 25 30 determinar o número de indivíduos presentes no
quantidade mesmo espaço sepulcral (UBELAKER 1974).
Fig. 6
O número mínimo de indivíduos (NMI) consiste
em agrupamentos de ossos do mesmo tipo e com a
mesma lateralidade, que totaliza o número de indiví-
Número Mínimo e Máximo
duos sepultados. Os métodos elaborados por HER-
de Indivíduos Adultos RMANN et al. (1990) para os ossos longos, e por UBE-
com base nos ossos longos LAKER (1974) para os restantes elementos ósseos, fo-
[HERRMANN 1990] ram utilizados nesta investigação com o intuito de se
determinar a frequência de indivíduos exumados. Nu-
ma primeira fase, separaram-se os ossos dos indiví-
osso
duos adultos e os dos não adultos. Em seguida, e pa-
máx.
ra cada grupo, agruparam-se os ossos conforme o seu
úmero direito 5
min. 2 tipo e a sua lateralidade.
máx. 6 A partir do método de HERRMANN et al. (1990),
úmero esquerdo
min. 3
máx.
foi calculado o número mínimo e máximo de indiví-
cúbito direito 4
min. 2 duos para cada tipo de osso longo. Os resultados po-
cúbito esquerdo
máx. 2 dem ser analisados na Fig. 7. Deste modo, verifica-
min. 1
mos que o NMI é fornecido pelo fémur direito, sen-
máx. 2
rádio direito do de sete indivíduos.
min. 2

rádio esquerdo
máx. 3 Para os indivíduos não adultos, para além da la-
min. 2
teralidade de cada tipo de osso, considerou-se ainda
máx. 11
fémur direito a idade à morte dos indivíduos a que estes ossos per-
min. 7

fémur esquerdo
máx. 4 tenceram, o tamanho e a morfologia do osso. O NMI
min. 3
é fornecido pelo fémur esquerdo, tendo sido recolhi-
máx. 4
tíbia direita dos pelo menos cinco não adultos (Fig. 8).
min. 2

tíbia esquerda
máx. 4 A estimativa da proporção sexual permite re-
min. 2 construir as pirâmides populacionais e determinar a
máx. 4
perónio direito taxa de mortalidade diferencial dos diversos mem-
min. 3
máx. 3 bros da população (ACSÁDI e NEMÉSKÉRI 1970). Os
perónio esquerdo
min. 1 métodos elaborados para a estimativa do sexo ba-
0 2 4 6 8 10 12 seiam-se no dimorfismo sexual, que é variável entre
quantidade populações e entre indivíduos, pelo que só a partir
Fig. 7
dos 18 anos de idade a estimativa sexual se torna
muito mais precisa, já que as diferenças entre os se-
xos passam a estar bem definidas no esqueleto.
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Número Mínimo e Máximo
Tabela 2
de Indivíduos Não Adultos Representatividade dos Fragmentos Ósseos
Distribuída Pelos Diferentes Tipos de Ossos Longos
com base nos ossos longos
[HERRMANN 1990] osso epífise proximal diáfise epífise distal
Úmero
osso (15 fragmentos) - 9 fragmentos – 60 % 6 fragmentos – 40 %
Cúbito
máx. 1
úmero direito (8 fragmentos) 4 fragmentos – 50 % 3 fragmentos – 37,5 % 1 fragmento – 12,5 %
min. 1
máx. 1
Rádio
rádio direito
min. 1 (8 fragmentos) 2 fragmentos – 25 % 2 fragmentos – 25 % 4 fragmentos – 50 %
máx. 1
fémur direito Fémur
min. 1
máx. 8 (28 fragmentos) 5 fragmentos – 17,8 % 18 fragmentos – 64,2 % 5 fragmentos – 17,8 %
fémur esquerdo
min. 5
Tíbia
máx. 2
tíbia direita (25 fragmentos) 2 fragmentos – 8 % 21 fragmentos – 84 % 2 fragmentos – 8 %
min. 1
máx. 1 Perónio
tíbia esquerda
min. 1
(19 fragmentos) 2 fragmentos – 10,5 % 13 fragmentos – 68,4 % 4 fragmentos – 21,1 %
máx. 1
perónio direito
min. 1

0 2 4 6 8

quantidade
Fig. 8

Essas diferenças residem no tamanho e na rela-


ção função-forma (UBELAKER 1989).
Devido ao elevado índice de fragmentação ós-
sea, não foi necessário recorrer a um vasto leque de
métodos para diagnose sexual nos indivíduos adul-
tos, uma vez que as peças ósseas discriminantes são
muito escassas. Assim, nos ossos longos optou-se pe-
las funções discriminantes e no único fragmento de
osso chato (coxal) recorreu-se à análise macroscópi-
ca. Por conseguinte, através do osso coxal 3 (consi-
derado osso mais discriminante para a diagnose se-
xual), apenas foi possível identificar um indivíduo
do sexo masculino. Relativamente aos úmeros 4, foi
diagnosticado o sexo em, pelo menos, três indivídu-
os, sendo dois do sexo masculino e um de sexo femi-
nino. A aplicação das metodologias para a estimati-
va do sexo a partir do fémur 5 foi possível em quatro
adultos, obtendo-se uma proporção de dois indivídu-
os do sexo masculino e dois do sexo feminino. No
caso das tíbias 6, estimou-se o sexo masculino em
apenas um indivíduo adulto. Não obstante o menor
grau de dimorfismo sexual do talus e do calcâneo re-
lativamente aos outros ossos enunciados, foi possí-
vel estimar, a partir do talus 7, o sexo feminino num 3 Na determinação do sexo a partir do osso coxal adoptou-se o método Figuras 9 e 10
único adulto. morfológico de BRUZEK (2002).
4 A estimativa sexual a partir do úmero baseou-se nas metodologias Em cima, diáfise de tíbia com
Quanto à estimativa da idade à morte, se tiver- destruição completa do periósteo,
mos em conta que a idade estimada para os indiví- desenvolvidas por CARRETERO et al. (1995) e WASTERLAIN (2000).
provocada por alterações
5 A diagnose sexual a partir do fémur foi estabelecida seguindo as
duos não adultos é mais precisa do que para os adul- tafonómicas de meteorização.
metodologias de WASTERLAIN (2000) e de CARDOSO (2000).
tos (ACSÁDI e NEMÉSKÉRI 1970; SAUNDERS 2000; Mais abaixo, processo degenerativo
6 Aplicaram-se os métodos de BRUZEK (1995) e de CARDOSO (2000).
SCHEUER e BLACK 2000), foi necessário estabelecer numa costela, decorrente da
7 Utilizaram-se as funções discriminantes desenvolvidas por SILVA (1995), a ossificação da cartilagem
diferentes fases do desenvolvimento, de modo a que
partir dos esqueletos da CEIMAUC. que a liga ao esterno.
cada uma delas caracterize as diferentes alterações
morfológicas e de desenvolvimento que sucedem ao
al-madan
XI online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

BACH et al. 1979), existindo ossos mais informativos


do que outros (BROTHWELL 1981). Deste modo, ape-
nas nos foi possível utilizar o método macroscópico
da observação da metamorfose da superfície auricu-
lar (BROOKS e SUCHEY 1990), no único fragmento de
coxal disponível para o efeito. Trata-se de um indiví-
duo do sexo masculino, com uma idade à morte su-
perior a 40 anos. Por outro lado, encontramos a pre-
sença de uma mandíbula com perda total das peças
dentárias ante-mortem e reabsorção alveolar, o que
indica um indivíduo adulto idoso.
De um modo geral, a estimativa da idade à morte
nos indivíduos adultos e não adultos apenas foi pos-
sível num reduzido número de indivíduos, o que não
nos permite qualquer inferência demográfica da po-
pulação. Para os não adultos estão representadas to-
das as classes etárias, enquanto que os adultos regis-
tam um indivíduo idoso. Lembramos, porém, que os
Figura 11 longo da vida. No caso dos indivíduos não adultos parâmetros paleodemográficos avaliados foram li-
não recorremos à avaliação do grau de erupção e de- mitados pela exiguidade do espólio osteológico em
Perda ante mortem de todas as
peças dentárias da mandíbula,
senvolvimento dentário, uma vez que entre o espólio causa.
com reabsorção alveolar completa. existente não surgiram quaisquer peças dentárias. A análise métrica dos ossos longos permite uma
Em contrapartida, foi utilizada a união epifisial dos aproximação biomecânica para o estudo da activi-
ossos longos para indivíduos entre os 10 e os 20 dade física e das alterações comportamentais, consti-
anos, e o comprimento dos ossos longos para indiví- tuindo uma importante perspectiva para a compreen-
duos de menor idade (FEREMBACH et al. 1979; UBE- são das alterações adaptativas dos nossos ancestrais
LAKER 1989). (LARSEN 1997 e 2000; RUFF 2000).

Tabela 3 Tabela 4
Estimativa da Idade da Morte - Não Adultos Estimativa de Índices para Caracterizar
a partir da união das epífises às diáfises e a Morfometria do Esqueleto Apendicular Superior e Inferior
do comprimento dos ossos longos
osso índice lateralidade N Classificação
n.º
Úmero Robustez Direito 2 Robustez média (média=19,4)
osso indivíduos idade
Esquerdo 1 Robustez média (média=20,0)
Úmero dir. 1 Se ♀ ± 17 anos; se ♂ ± 18 anos
Achatamento Direito 3 Euribrâquio (média=90,56)
Rádio dir. 1 9,5 - 10,5 anos
Fémur Robustez Esquerdo 1 Robustez média (20,02)
Fémur esq. 1 Se ♀ ± 15 anos; se ♂ ± 18 anos
Platimetria Direito 2 Platimérico (média=81,15)
Fémur esq. 1 6,5 - 7,5 anos
1 Eurimérico (89,63)
Fémur esq. 2 2,5 - 3,5 anos Tíbia Robustez Direito 2 Robustez média (média=19,52)
Fémur esq. 1 0,5 - 1,5 anos Esquerdo 3 Robustez média (média=19,70)
Tíbia dir. 2 1,5 - 2,5 anos Cnémico Direito 2 Platicnémico (média=59,70)
Perónio dir. 1 Se ♀ ± 15 anos; se ♂ ± 17 anos Esquerdo 1 Mesocnémico (66,22)

No conjunto exumado estão representadas quase Ao nível metodológico, foram utilizados os pon-
todas as classes etárias, desde um bebé com cerca de tos osteométricos e as medidas estandardizadas por
0,5-1,5 anos, crianças de 1ª e 2ª infância e adoles- MARTIN e SALLER (1957).
centes. No entanto, o nível etário melhor representa- No material disponível apenas foi possível esti-
do parece ser o dos adolescentes (15-18 anos), ape- mar o índice de robustez e achatamento em três tipos
sar de assistirmos também à presença de quatro indi- de ossos do esqueleto apendicular superior e inferior:
víduos entre os 1,5-3,5 anos. úmero, fémur e tíbia. O achatamento do fémur e da
Quanto aos indivíduos adultos, o grau de preci- tíbia está relacionado com a resistência mecânica, e
são da determinação da idade à morte depende do es- não com factores nutritivos ou a acção de grupos
tado de preservação do material osteológico (FEREM- musculares específicos (LARSEN 1997; RUFF 2000).
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
O estudo métrico foi bastante limitado pelo ele-
vado grau de fragmentação óssea, apresentando re-
sultados escassos para uma coerente avaliação esta-
tística. Mesmo assim, de referir que os fémures de
alguns indivíduos adultos de Montalvão apresentam
valores que tendem para a platimeria. A platimeria é
considerada, segundo alguns autores (LARSEN 1997 e
2000; RUFF 2000), uma consequência do uso inten-
sivo do músculo quadrucípite crural, bastante usado
durante a marcha. Quanto às tíbias, e mais uma vez
ressalvamos o carácter escasso do número de obser-
vações, apresentam uma tendência para a platicne-
mia, o que pode indicar uma forte resistência me-
cânica sobre este osso.
Ainda ao nível morfométrico, foi possível esti-
mar a estatura em alguns ossos. Através da consoli-
dação de vários fragmentos, foi possível isolar um
fémur direito aparentemente de sexo masculino e
calcular uma estatura de 164,14 ± 6,96 cm, a partir
das fórmulas de MENDONÇA (2000). Por outro lado,
foi possível ainda determinar a estatura a partir de
dois metatarsianos: 5º metatarsiano esquerdo, com
uma estatura de 166,22 ± 7,8 cm (BYERS et al. 1989),
e 1º metatarsiano direito, com uma estatura de
156,33 ± 5,53 cm (SANTOS 2002).
Relativamente aos caracteres discretos, são as-
pectos morfológicos não métricos de expressão va-
riável na população, que podem ser observados em
ossos fragmentados e incompletos. Representam pe-
quenas variações anatómicas, não patológicas, que

3 cm
se caracterizam pela sua distribuição descontínua.
Terá sido Hipócrates o primeiro a referir a existência
de caracteres discretos, mais concretamente, a exis-
tência de ossos supranumerários no crânio (WHITE
2000). Estes caracteres podem ser observados em
dentes e ossos, sendo classificados de acordo com a
sua presença ou ausência, diferentes graus que apre-
0

sentam e expressão bilateral (FINNEGAN 1978). Não


os encontramos em todos os indivíduos de uma po-
pulação e nem sempre são verificáveis, o que os tor- 8 A superfície inferior da cabeça do talus pode apresentar uma grande Figuras 12 e 13
na muito relevantes ao nível de estudos das estru- superfície articular ou uma divisão em duas superfícies que podem ser
contínuas. Esta variante é registada como simples ou dupla. Em cima, reacções periósteas
turas de parentesco em sociedades do passado (periostite) ao nível da diáfise
9 Trata-se de um dos três processos que podem ser definidos na superfície
(WHITE 2000). de uma tíbia, associado a um
lateral do calcâneo. O tubérculo peroneal pode estar ausente ou presente
Assim, foi possível observar a presença de al- na área de inserção do ligamento calcâneo-fibular.
hematoma de pequenas dimensões
guns caracteres discretos no material analisado, mas (área em destaque).
10 A faceta medial de agachamento apresenta-se sob a forma de uma
apenas para o esqueleto pós-craniano, pois os poucos depressão transversal rugosa na extremidade distal e superfície anterior da
Mais abaixo, vista posterior da
fragmentos cranianos (quatro) não permitiram regis- extremidade distal de um fémur
tíbia na área da cápsula articular que estabelece a ligação do tornozelo.
esquerdo, que apresenta uma área
tar qualquer caractere. Ou seja, identificámos a pre- Esta depressão pode estar dividida em duas fossas distintas: medial e lateral,
com uma resposta esclerótica
sença de uma faceta subtalar 8 contínua num talus separadas por uma área de relevo. Frequentemente, a superfície articular
a um agente infeccioso,
inferior estende-se até à fossa média e esta extensão é registada como faceta
esquerdo, um tubérculo peroneal 9 num fragmento com remodelação óssea e
medial de “agachamento”. Quando a superfície articular inferior se estende
de calcâneo direito, dois casos de faceta medial de para a fossa lateral da depressão transversal designa-se por faceta lateral de
formação de osso novo.
agachamento 10 em duas tíbias, e uma fossa hipotro- “agachamento”. Os constrangimentos ambientais são essenciais para o
canteriana 11 num fragmento de um fémur direito. aparecimento destas facetas, estando particularmente relacionadas
Deste modo, pela reduzida dimensão dos caracteres com uma dorsiflexão importante do tornozelo (agachamento).
11 A fossa hipotrocanteriana está localizada na parte supero-posterior
observados, não nos é possível efectivar qualquer
extrapolação estatística. da diáfise femural, entre o cume gluteal e a margem lateral.
A paleopatologia é uma disciplina que pretende
estudar as doenças no passado sob uma perspectiva
al-madan
XI online
adenda
9 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

biocultural. Pode ser definida como o estudo das A pesquisa de indícios de patologia degenerativa
doenças em populações passadas (WHITE 2000; articular revelou que, de um modo geral, as lesões
AUFDERHEIDE e RODRIGUEZ-MARTÍN 1998), exami- são pouco frequentes e, quando presentes, assumem
nando também a sua evolução ao longo do tempo e valores mínimos. Estes resultados, obviamente, po-
o modo como o homem se adaptou às mudanças do dem estar comprometidos pela ausência de material
seu meio ambiente. De um modo geral, as alterações ósseo. Acresce ainda o facto de em, muitos casos, a
patológicas observadas nos dentes e nos ossos são o região requerida para a pesquisa de artrose encon-
resultado de desequilíbrios na sua formação e re- trar-se fragmentada.
absorção, ou de desordens no desenvolvimento. De todos os fragmentos ósseos analisados, ape-
Esses desequilíbrios podem dever-se a stress mecâ- nas foi possível verificar a existência de artrose ao
nico, alterações no aporte de sangue, inflamações nível raquidiano. Nos poucos fragmentos vertebrais
nos tecidos moles, alterações de ordem infecciosa, presentes, foi possível observar artrose de grau 2
desordens metabólicas e neoplásicas. (CRUBÈZY 1988) nas facetas articulares inferiores de
A análise paleopatológica dos restos ósseos hu- uma vértebra lombar. Este facto corrobora a ideia de
manos permitiu, ao nível da cavidade oral, constatar que as regiões cervical e lombar são os pontos de
a presença de uma mandíbula com perda total ante- maior sobrecarga na espécie humana, devido à sua
-mortem das peças dentárias com reabsorção alveo- posição erecta (CAMPILLO 2001). Os processos de-
lar, facto que está associado à idade avançada deste generativos articulares no esqueleto vertebral ocor-
indivíduo. No entanto, outro tipo de agentes causais, rem, normalmente, a partir dos 30-40 anos, tornan-
tais como patologias orais (cáries ou desgaste den- do-se mais severos com o avançar da idade (CRU-
tário acentuado), podem provocar perda de dentes BÈZY 1988).
ainda em vida. Por outro lado, registámos também a A patologia infecciosa foi considerada o princi-
evidência, num fragmento de maxilar esquerdo, de pal flagelo das populações do passado, principal-
algumas perdas post-mortem provocadas por facto- mente antes da invenção das vacinas (SILVA 1996).
res tafonómicos. Existem inúmeros tipos de doenças infecciosas, mas
O estudo da doença periodontal revelou a pre- a maioria não afecta o esqueleto humano, o que tor-
sença deste tipo de patologia num fragmento de ma- na a realização de um diagnóstico uma tarefa difícil
xilar esquerdo. A sua classificação, em função do (ORTNER 2003).
12 Trata-se de um músculo, estádio de severidade, evidenciou um grau elevado A principal causa dessas infecções não específi-
também conhecido como tricípide os alvéolos dos dentes molares, facto que pode ser cas parecem ser bactérias dos géneros Staphylococus
braquial, formado por três partes: explicado com base numa fraca higiene oral e na in- e Streptococus (ROBERTS e MANCHESTER 1995). A
uma mais alongada (caput longum), gestão de alimentos duros e abrasivos (CUNHA infecção não específica que é normalmente detecta-
uma outra interna designada
também por músculo vasto interno
1994). Todavia, CAMPILLO (2001) sugere que a in- da é a periostite, uma resposta inflamatória a altera-
(caput mediale) e uma última parte gestão de proteínas animais pode estar relacionada ções patológicas na camada externa do osso, o pe-
externa ou músculo vasto externo com o desenvolvimento desta lesão. riósteo, provocando o seu espessamento. Essas le-
(caput laterale). Localiza-se na parte A análise da patologia degenerativa não articular sões traduzem-se frequentemente na deposição de
posterior do braço estendendo-se enfrentou as dificuldades criadas pela elevada frag- uma camada de osso novo sobre a superfície cortical
desde a tuberosidade
supraglenoidal da omoplata
mentação do material e pela ausência de parte dele, inicial, principalmente nas diáfises dos ossos longos
(onde se insere o caput longum) o que tornou impossível examinar todas as regiões (ORTNER 2003), sob a forma de uma estriação longi-
até à sua inserção no olecrâneo anatómicas passíveis de desenvolver entesopatias. tudinal.
(as três partes reúnem-se num Ainda assim, registámos lesões mínimas ao nível da Esta foi a única enfermidade infecciosa regista-
tendão comum na extremidade inserção do tendão de Aquiles de um calcâneo direi- da nos restos ósseos analisados, e apenas em adultos.
proximal do cúbito) e sobre a
superfície posterior da cápsula
to, e ao nível do triceps brachii 12 de um cúbito es- A maioria das lesões (periostite) localiza-se em sete
de articulação do cotovelo. querdo. Visto que, por um lado, as entesopatias são diáfises de tíbias, que apresentam um aspecto re-
O triceps brachii é, essencialmente, uma consequência de trabalhos repetitivos e, por modelado (não activo). As diáfises tibiais são, de
um músculo extensor da outro, a população desta amostra parecer maioritari- facto, as que apresentam a incidência mais elevada
articulação do cotovelo, no amente jovem, pode especular-se que os indivíduos deste tipo de lesões. A periostite tende a ocorrer mais
entanto funciona também, ao nível
da articulação escápulo-umeral,
estariam submetidos a um grande stress mecânico frequentemente nestas, no caso concreto de esquele-
nos movimentos de retropulsão desde tenra idade, que implicaria uma grande movi- tos oriundos de contextos arqueológicos, desconhe-
e aducção do braço. mentação de braços e pés. cendo-se, no entanto, a razão exacta para esta loca-
lização preferencial (ORTNER 2003).
Vários factores são apontados para esta ocorrên-
cia, nomeadamente, o facto das tíbias reunirem um
conjunto de características que as tornam mais sus-
ceptíveis à acção de microorganismos infecciosos,
especificamente, superfícies vasculares e fisiológi-
cas inactivas, a circulação sanguínea lenta e poucos
tecidos moles a envolver (ROBERTS 2000).
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Segundo CAMPILLO (2001) e AUFDERHEIDE e RO- verifica-se a presença de quase todas as fases etárias,
DRIGUEZ-MARTIN (1998), as lesões periósteas das tí- apesar de se notar uma tendência para a melhor re-
bias podem ainda dever-se a contusões, ulcerações presentação da classe dos adolescentes.
de varizes ou isquémias arteriais. No que se reporta à análise morfológica, obser-
No entanto, nesta amostra existem outros ossos varam-se valores medianos para a estatura, que varia
afectados, como um fémur esquerdo (parte posterior entre os 156 e os 166 cm. Quanto aos índices de ro-
da zona da diáfise adjacente à extremidade distal, bustez e achatamento observados, os primeiros são
junto aos côndilos fémurais), no qual a severidade da maioritariamente medianos, enquanto que no caso
lesão apresenta-se activa, com a deposição de osso dos segundos predominam os fémures e as tíbias
novo. sem achatamento ao nível do terço posterior.
Estes resultados podem estar relacionados com o Todavia, a reduzida representatividade da amos-
facto de, na maioria das doenças infecciosas, apenas tra não permite tirar grandes ilações. Pode, no entan-
existir envolvimento do esqueleto numa pequena to, afirmar-se que os valores obtidos para a robustez
percentagem de pessoas, pelo que alguns indivíduos apontam para uma população que não terá sido sub-
podem ter morrido antes de ocorrerem essas mu- metida a grandes stresses físicos. A observação dos
danças (THILLAUD 1996). Por outro lado, o facto da caracteres discretos foi a que mais sofreu com a es-
maioria destes indivíduos apresentar lesões infeccio- cassez e fragmentação da amostra.
sas não específicas inactivas, sugere que consegui- A patologia oral revelou apenas um caso de per-
ram suportar o contacto com a infecção, mas tam- das dentárias ante-mortem na mandíbula, com reab-
bém que as condições higiénicas poderiam não ser as sorção alveolar total. Registámos também a presença
melhores (CUNHA 1994). de um fragmento de maxilar esquerdo no qual foi
observada doença periodontal que, em função do
grau elevado que apresentava na zona periférica dos
Considerações finais dentes molares, pode denunciar uma higiene oral
precária e a ingestão de alimentos duros e abrasivos.
O conjunto osteológico humano recolhido nas Na pesquisa da patologia degenerativa articular
imediações da igreja matriz da freguesia de Montal- e degenerativa não articular, predomina a ausência
vão, durante o acompanhamento arqueológico rea- de lesões. Esta baixa frequência, mais uma vez, es-
lizado à obra de requalificação do adro, representa tará certamente relacionada com o facto de se tratar
uma colecção descontextualizada e truncada, fruto de um espólio incompleto e desarticulado. Todavia,
das diversas intrusões que o subsolo conheceu, de- de todos os fragmentos ósseos analisados, apenas foi
pois do sítio ter perdido a função sagrada de espaço possível verificar a existência de artrose ao nível ra-
funerário. Estas violações da integridade do subsolo quidiano. Observaram-se ainda alguns casos de pa-
ao longo dos tempos terão comprometido de forma tologia infecciosa não específica, em sete diáfises de
irreversível os níveis arqueológicos previamente exis- ossos longos, onde predominam as infecções remo-
tentes, resultando na destruição desse espaço funerá- deladas nas diáfises das tíbias. Estas evidências apon-
rio. Os ossos soltos, alguns deles parcialmente frag- tam para condições de vida pouco favoráveis e pre-
mentados, serão, porventura, os últimos testemunhos cárias.
patrimoniais do cemitério associado à igreja matriz. Os resultados obtidos permitem referir que po-
Como agentes encarregues da recuperação de in- demos estar perante uma população de um status so-
formações que permitam a aproximação à realidade cioeconómico baixo, com condições de vida pre-
passada das comunidades humanas, cabe-nos, como cárias e poucos hábitos de higiene. Estes factores te-
profissionais da Arqueologia, pesquisar a informa- rão certamente contribuído para uma esperança mé-
ção que o conjunto de ossos encerra, ainda que, em dia de vida baixa, como se verificou pela incidência
parte, comprometida. da idade à morte na faixa dos adolescentes. Todavia,
Rituais de enterramento e recuperação completa mais uma vez lembramos que a escassez da amostra
da individualidade dos esqueletos são tarefas impos- obriga a que as conclusões daqui inferidas tenham de
síveis. Não obstante, a análise de cada elemento per ser encaradas com algumas reservas.
se possibilitou a leitura de um número importante de Concluindo, apesar de todas as limitações supra-
informações sobre o quotidiano histórico da comu- mencionadas, o espólio analisado permitiu mostrar
nidade, que, de outra forma, seria difícil de aceder. que o estudo das populações do passado revela-se de
A análise paleodemográfica do conjunto aponta, extrema importância para o conhecimento dos há-
portanto, para a existência de pelo menos sete indi- bitos, “modus vivendi”, cultura e biologia das mes-
víduos adultos e cinco não adultos, tendo sido pos- mas.
sível efectuar uma diagnose sexual em nove peças
ósseas (cinco do sexo masculino, contra quatro do
feminino). No que concerne a idade à morte dos não
adultos, pese embora a sua pouca representatividade,
al-madan
XI online
adenda
11 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Bibliografia

ACSÁDI, G. e NEMÉSKÉRI, J. (1970) – History of Paléo-Biologie”. Archéo-Nil: Bulletin de la So- ORTNER, D. (2003) – Investigation of Pathologi-
Human Life Span and Mortality. Budapest: ciétè pour l’Étude des Cultures Prépharaoni- cal Conditions in Human Skeletal Remains.
Akadémiai kiádo. ques de la Vallée du Nil. Paris. 2: 7-19. 2nd Edition. Amsterdam: Academic Press.
AUFDERHEIDE, A. e RODRÍGUEZ-MARTÍN, C. (1998) CRUBÈZY, E. (1988) – Interactions Entre Facteurs ROBERTS, C. (2000) – “Infection Disease in Bio-
– The Cambridge Encyclopaedia of Human Bio-Culturels, Pathologie et Caractères Di- cultural Perspective”. In COX, M. e MAYS, S.
Paleopathology. Cambridge: Cambridge Uni- screts. Exemple d’une population médiévale, (eds.). Human Osteology in Archaeology and
versity Press. Canac, Aveyron. Thèse de Doctorat en Medi- Forensic Science. London: Greenwich Medi-
BODDINGTON, A. (1987) – “Chaos, Disturbance cine. Montepellier: Université de Montpellier. cal Media, pp. 145-162.
and Decay in an Anglo-Saxon Cemetery” In CUNHA, E. (1994) – Paleobiologia das Popula- ROBERTS, C. e MANCHESTER, K. (1995) – The Ar-
BODDINGTON A. et al. (eds.). Death, Decay and ções Medievais Portuguesas: os casos de Fão chaeology of Disease. New York: Cornell
Reconstruction: approaches to Archaeology and e São João de Almedina. Dissertação para a University Press.
Forensic Science. Manchester: Manchester Uni- obtenção do grau de Doutor em Antropologia. ROSA, J. (2001) – Montalvão: ecos de uma histó-
versity Press, pp. 27-42. Coimbra: Departamento de Antropologia da ria milenar. Lisboa: Câmara Municipal de Ni-
BROOKS, S. e SUCHEY, J. (1990) – “Skeletal Age Universidade de Coimbra [texto policopiado]. sa / Ed. Colibri.
Determination Based on the Os Pubis: a com- FEREMBACH, D.; SCHWIDETZKY, I. e STLOUKAL, RUFF, C. (2000) – “Biomechanical Analyses of
paration of the Ascàdi-Nemeskéri and Suchey- M. (1979) – “Recommendations Pour Détermi- Archaeological Human Skeletons”. In KAT-
-Brooks methods”. Journal of Human Evolu- ner l’Âge et le Sexe sur le Squelette”. Bulletin ZENBERG, M. A. e SAUNDERS, S. (eds.). Anthro-
tion. London. 5: 227-238. et Mémoires de la Sociétè d’Anthropologie de pology of the Human Skeleton. New York:
BROTHWELL, D. (1981) – Digging up Bones. Paris. Paris. Série 13, pp. 7-45. Wiley-Liss, Inc., pp. 71-102.
New York: Cornell University Press. FINNEGAN, M. (1978) – “Non-Metric Variation of SANTOS, C. (2002) – Estimativa da Estatura a Par-
BRUZEK, J. (1995) – “Diagnose Sexuelle à l’Aide the Infracranial Skeleton”. Journal of Anatomy. tir dos Metatársicos. Dissertação de Mestrado
de l’Analyse Discriminante Apliquée au Ti- Ireland. 1: 23-37. em Medicina Legal apresentado à Faculdade
bia”. Antropologia Portuguesa. Coimbra. 13: HENDERSON, J. (1987) − “Factors Determining de Medicina de Coimbra [texto policopiado].
93-106. the State of Preservation of Human Remains”. SAUNDERS, S. (2000) – “Subadult Skeletons and
BRUZEK, J. (2002) – “A Method for Visual Deter- In BODDINGTON, A.; GARLAND, A. N. e JANAWAY, Growth-Related Studies”. In KATZENBERG, M.
mination of Sex, using the Human Hip Bone”. R. C. (eds.). Death, Decay and Reconstruc- A. e SAUNDERS, S. (eds.). Anthropology of the
American Journal of Physical Anthropology. tion: approaches to archaeology and forensic Human Skeleton. New York: Wiley-Liss, Inc.,
New York. 117: 157-168. science. Manchester: Manchester University pp.135-161.
BUIKSTRA, J. e UBELAKER, D. (1994) – “Stand- Press, pp. 43-54. SCHEUER, L. e BLACK, S. (2000) – Develop-
ards for Data Collection from Human Skeletal HERRMANN, B. et al. (1990) – Praehistorische mental Juvenile Osteology. London: Academic
Remains”. Arkansas Archaeological Survey Anthropologie. Berlin: Springer Verlag. Press.
Research Series. Arkansas. 44 (Proceedings of LARSEN, C. (1997) – Bioarchaeology: interpreting SILVA, A. M. (1995) – “Sex Assessment Using
a seminar at the field Museums of Natural behavior from the human skeleton. Cambridge: the Calcaneus and Talus”. Antropologia Por-
History). Cambridge University Press. tuguesa. Coimbra. 13: 107-119.
BYERS, S. (2002) – “A Model for the Diagnostic LARSEN, C. S. (2000) – Skeletons in our Closet. SILVA, A. M. (1996) – O Hipogeu de Monte Ca-
Process in Paleopathology”. Paleopathology Revealing our past through Bioarchaeology. nelas I (IV-III milénios a.C.): estudo paleobio-
Newsletter. Lexington. 117: 11-20. Princeton: Princeton University Press. lógico da população humana exumada. Tra-
BYERS, S.; AKOSHIMA, K. e CURRAN, B. (1989) – LOURENÇO, S. (2007) – “O Povoamento Alto-Me- balho de síntese. Provas de Aptidão Pedagó-
“Determination of Adult Stature from Meta- dieval Entre os Rios Dão e Alva”. Trabalhos de gica e Capacidade Científica. Coimbra: De-
tarsal Length”. American Journal of Physical Arqueologia. Lisboa: IPA. 50. partamento de Antropologia da Universidade
Anthropology. New York. 79: 275-279. MARTIN, R. e SALLER, K. (1957) – Lehrbuch der de Coimbra.
CAMPILLO, D. (2001) – Introducción a la Paleo- Anthropologie. Stuttgart: Gustav Fischer Verlag. THILLAUD, P. (1996) – Paléopathologie Humai-
patología. Barcelona: Edicions Bellaterra S.L. MENDONÇA, M. C. (2000) – “Estimation of Height ne. Paris: Kronos B. Y. Éditions.
CARDOSO, H. F. (2000) – Dimorfismo Sexual na from the Length of Long Bones in a Portu- UBELAKER, D. (1974) – “Reconstruction of
Estatura, Dimensões e Proporções dos Ossos guese Adult Population”. American Journal of Demographic Profiles from Ossuary Skeletal
Longos dos Membros: o caso de uma amostra Physical Anthropology. 112: 39-48. Samples: a case from the Tidewater Potomac”.
portuguesa dos séculos XIX-XX. Dissertação MOURATO, A. C. et al. (1980) – Montalvão (ele- Smithsonian Contributions to Anthropology.
para a obtenção do grau de Mestre em Evo- mentos para uma monografia desta freguesia Washington D.C. 18.
lução Humana. Coimbra: Departamento de do concelho de Nisa). S. l.: Comissão Organi- UBELAKER, D. (1989) – Human Skeletal Remains:
Antropologia da Universidade de Coimbra zadora das Obras da Ermida de Nossa Senhora excavation, analysis, interpretation. 2nd edi-
[texto policopiado]. dos Remédios de Montalvão. tion. Washington: Taraxacum.
CARRETERO, J. M.; LORENZO, C. e ARSUAGA, J. MURTA, J. D. (1993) – “O Castelo de Montalvão”. WASTERLAIN, R. S. (2000) – Morphé: análise das
L. (1995) – “Análisis Multivariante del Hú- Separata de Ibn-Maruán. Revista Cultural de proporções entre os membros, dimorfismo se-
mero en la Colección de Restos Identificados Marvão. 3: 153-166. xual e estatura de uma amostra da Colecção
de la Universidad de Coimbra (Portugal)”. An- OLIVEIRA, N. V. (2000) – “Algumas Considera- de Esqueletos Identificados do Museu Antro-
tropologia Portuguesa. Coimbra. 13: 139-156. ções Sobre os Castelos da Ordem do Templo pológico da Universidade de Coimbra. Disser-
COSTA, C. (2008) – Relatório do Acompanha- em Portugal: o exemplo paradigmático de Cas- tação para a obtenção do grau de Mestre em
mento Arqueológico. Arranjo urbanístico na telo Branco”. In BARROCA M. et al. (coord). Evolução Humana. Coimbra. Departamento
envolvente da Igreja Matriz e Castelo de Mon- Arqueologia da Idade Média na Península de Antropologia da Universidade de Coimbra
talvão [texto policopiado]. Ibérica. Porto: ADECAP, pp. 153-167 (Actas [texto policopiado].
CRUBÈZY, E. (1992) – “De l’Anthropologie Phy- do III Congresso de Arqueologia Peninsular, WHITE, T. (2000) – Human Osteology. San
sique à la Paléo-Ethnologie Funéraire et a la Vol. VII). Diego: Academic Press.
al-madan
online XI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
A Muṣalla r e s

Síntese de estudo sobre estrutura


u m o

do Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão


religiosa muçulmana identificada em
2006 na vila do Torrão (Alcácer do
Sal, Setúbal), a maior conhecida no
território português.
No contexto do debate sobre o pa-
pel da região em período islâmico,
uma hipótese de trabalho o autor procura interpretar o sítio
e as características arquitectónicas,
cronologia e funções do edifício,
que classifica como mesquita a céu
aberto (musalla).
por António Rafael Carvalho
p a l a v r a s c h a v e
Arqueólogo. Gabinete de Arqueologia do Município de Alcácer do Sal.
Idade Média (islâmico); Arquitectu-
ra funerária; Mesquita.

a b s t r a c t
1. Introdução 2. Breve nota bibliográfica
do cronista Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ 9 Summary of the study of a Muslim
pós a elaboração de um estudo prelimi- religious structure identified in

A nar sobre a muṣalla existente no Torrão


do Alentejo, que se encontra disponível
em formato digital no site do Município de Alcácer
Nome completo: Abū l-´Abbās Aḥmad b. Mu-
ḥammad b. ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ.
A sua vida é pouco conhecida, somente se sa-
2006 in Torrão (Alcácer do Sal, Se-
túbal), the largest known in Portu-
gal.
Discussing the role of the region
do Sal 1, achámos que seria oportuno apresentar este bendo que viveu durante a segunda metade do sécu- during the Islamic period, the
trabalho, que deve ser entendido como uma síntese lo XIII e inícios do XIV. Desconhecemos a sua for- author interprets the site and its
do estudo atrás referido. mação intelectual, mas terá desempenhado o cargo archaeological characteristics, as
well as the chronology and function
Para uma melhor clarificação e fundamentação de qā´id 10 de Fez. of the building, which he classifies
de algumas das leituras exposta nesta síntese, deve o Boloix Gallardo não tem dúvidas em afirmar as an open air mosque (musalla).
leitor consultar o trabalho supra citado 2. que estamos perante um cronista que teve uma gran-
Um estudo desta natureza 3, centrado num caste- de vocação como historiador, demonstrando ter um k e y w o r d s
lo referido uma só vez por cronistas muçulmanos 4, bom conhecimento da história dos califas, dos imãs
Middle Ages (Islamic); Funerary
localizado numa região periférica do al-Andalus, e de emires do Próximo Oriente. architecture; Mosque.
junto ao Atlântico, transforma-se num desafio difícil A sua obra mais famosa e que é o suporte docu-
de superar, se o nosso objectivo for a integração cul- mental deste trabalho é o chamado Al-Bayān al-Mugrib
tural de uma estrutura construída em alvenaria e tai- fi ijtiṣār ajbār muluk al-Andalus wa al-Magrib.
pa 5, de cronologia indeterminada, recuperada ao Não sabemos em que ano terá começado a redi- r é s u m é
longo dos séculos e adoçada a um convento de Cla- gir a obra, sabendo-se unicamente que ainda estava Synthèse de l’étude sur une struc-
rissas, que apresenta uma disposição arquitectónica a ser escrita em 1312-3 11. ture religieuse musulmane identi-
no terreno idêntica a uma muṣalla / mesquita a céu fiée en 2006 dans le village de
aberto. Torrão (Alcácer do Sal, Setúbal), la
O que os deu ânimo para prosseguir um trabalho 1 CARVALHO 2008e. plus grande connue sur le territoire
portugais.
desta natureza, longamente pensado desde 2006, foi 2 O referido estudo apresenta-se estruturado em três partes. Nesta síntese,
Dans le contexte du débat sur le
a hipótese por nós defendida desde 2005, de que o mantemos com poucas alterações a primeira e a segunda parte, que efectua rôle de la région pendant la période
Ḥiṣn Ṭurruš mencionado por Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrā- a leitura da estrutura. islamique, l’auteur cherche à inter-
3 Ausência no local de outra documentação arqueológica, para além da
kušῑ, no relato que efectua sobre a derrota almóada préter le site et les caractéristiques
estrutura em si. architectoniques, la chronologie et
de 1184 junto a Santarém, corresponde ao actual 4 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo HUICI MIRANDA 1953: 78. les fonctions du bâtiment qu’il clas-
Torrão do Alentejo. 5 Conhecida localmente com o nome de “muralha”. sifie comme une mosquée à ciel
Ao longo de 2007 e 2008, aprofundámos a in- 6 Em termos cronológicos, privilegiámos o século XIII. ouvert (musalla).
vestigação sobre os aspectos políticos, institucionais, 7 Caso do efémero emirato andaluz de Ibn Hud, do reino de Niebla,
sociais e culturais do Califado Almóada (Muwaḥḥῑd m o t s c l é s
do reino de Múrcia e do reino nazarí de Granada.
ou Unitários-perante Deus, nome pelo qual ficaram 8 O emirato dos Banū ´Azafi de Ceuta, o reino dos Banū Zayyān de
Moyen Âge (islamique); Architecture
conhecidos os almóadas). Tremecén, o emirato dos Banū Ḥafṣ na Ifrīqiya e o reino Merinida de Fez. funéraire; Mosquée.
Foi igualmente proveitoso analisar 6 o sistema 9 Seguimos de perto as notas críticas e bibliográficas efectuadas por
político, social, ideológico e militar dos herdeiros do VIGUERA MOLINS 1997c e BOLOIX GALLARDO 2007: 4-7.
Califado Muwaḥḥῑd, tanto no al-Andalus 7 como no 10 Governador de carácter militar.

Magreb 8. 11 BOLOIX GALLARDO 2007: 5.


al-madan
XII online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

su servicio lo encontró muerto,


y se dice que la causa de su
murete fue una saeta de arbale-
ta que lo alcanzó, estando en su
tienda, sobre Santarém. Refie-
ren esto algunos historiadores,
como Abū-l-Ḥusayn b. Abī Mu-
ḥammad, el de Gerez, y otros”.
Ou seja, o cronista Ibn
´Iḏārῑ desconhece (ou omite
deliberadamente) o local exacto
da morte do soberano Almóada,
porque essa informação sensí-
vel terá sido considerada segre-
do de estado. Oficialmente só
se comunica essa informação
após a chegada das tropas a Se-
vilha.
Apesar das dúvidas paten-
Fig. 1 − Localização geográfica do Torrão em contexto medieval.
tes na referida crónica, uma lei-
tura crítica permite evidenciar
A Crónica divide-se em três partes e versa sobre um elemento comum, perceptível nas duas versões,
a História do Norte de África / Ifrīqiya. É na primeira ainda que diferentes: o califa morreu após a con-
parte da obra, que vai desde a conquista do Egipto quista do castelo do Torrão.
em 640-1 e termina com a tomada da medina tunisi- Perante esta problemática, a imponente mesqui-
na de al-Mahdiyya pelos almóadas em 1205-6, que é ta a céu aberto existente no Torrão só tem sentido
relatado o episódio de Santarém e a conquista do para nós como espaço de memória directamente li-
Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão. gado à morte e “martírio” do soberano almóada nu-
Temos que ter a noção que o autor regista ao lon- ma campanha de Ŷihād 12, o que nos autoriza supor
go da sua vasta obra os acontecimentos que consid- que o califa terá efectivamente morrido no Torrão,
era mais importantes no reinado de cada califa al- no sítio onde se localiza a muṣalla.
móada.
12 Esforço pessoal, que se divide É perceptível que o cronista tem dificuldade em
em grande ŷihād (meditação e relatar a derrota almóada em Santarém. Percebe-se 3. A identificação do “monumento”
purificação espiritual) e pequena que tenta minorar os aspectos desprestigiantes aí
ŷihād (guerra militar contra o não ocorridos e procura amenizar o desastre militar pe- Até 2004, a presença islâmica no Torrão conti-
crente).
rante um adversário cristão presente em menor nú- nuava um problema mal resolvido.
13 De facto, não tinha sentido o
mero e cercado dentro de muralhas. Alguns investigadores avançavam uma vaga hi-
abandono de um vasto território,
localizado estrategicamente entre A conquista do castelo do Torrão parece ser a pótese de ter existido uma ocupação islâmica no
Alcácer, Évora e Beja e com boas única operação bélica com sucesso nesta campanha. Torrão, baseados mais numa lógica de continuidade
aptidões agrícolas, em contexto Um facto que defendemos ter ocorrido no Torrão de povoamento entre a fase islâmica e a posterior
islâmico. e que o cronista omite deliberadamente, terá sido o consolidação deste espaço do Baixo Sado em con-
14 Entre a Antiguidade Tardia e a
falecimento do califa almóada Abū Ya´qūb Yūsuf I, texto Português 13.
instalação do domínio português, dentro da sua tenda. Na realidade, nada de concreto parecia existir
em meados do século XIII.
15 SILVA e SOARES 1986.
A fonte consultada, na página 79, refere textual- para fundamentar esta “leitura de continuidade” 14,
mente que o soberano terá morrido algures após o dada a ausência de documentação alusiva à questão,
16 Não é de admirar esta
exército ter cruzado o rio Guadiana (sic.) – “Se dice tanto no âmbito arqueológico, como nas crónicas
cronologia lata e a ausência de
estudo das referidas cerâmicas que al ir a verlo, lagunas millas después, fue encon- deixadas por autores muçulmanos e cristãos.
medievais e modernas, porque na trado muerto, el 18 de Rabi ´al-ajir del año 580 – 29 A única intervenção arqueológica ocorrida na
década de 80 do século passado de Julio del 1184”. área urbana do Torrão decorreu no século XX, no
desconhecíamos totalmente as Contudo, imediatamente no texto seguinte da sítio dos Castelos 15. Segundo Tavares da Silva e
formas, as tipologias e as suas
mesma crónica do al-Bayān I, na página 82, depa- Joaquina Soares, a documentação arqueológica exu-
variáveis regionais de cronologia
islâmica. Infelizmente esse ramo-nos com a seguinte informação (sic.) – “Dice mada foi inserida cronologicamente na Pré-História
conjunto, ainda se mantém otro, que murió sobre el Lomo de su caballo en el e a restante englobada na Baixa Idade Média (con-
inédito até hoje! camino de Évora y que al atenderlo el que estaba a texto cristão) 16 e no Período Moderno.
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 2 − Planta da Vila do Torrão em 1817.

Em termos históricos, a vila


do Torrão e o seu castelo só
emergiam na documentação
medieval cristã após 1249, in-
tegrada no Reino de Portugal e
sob a jurisdição da poderosa Or-
dem de Santiago.
Era esta a leitura histórica
do Torrão, que persistiu durante
séculos até ao início do sécu-
lo XXI.
O pároco da vila no século
XVIII 17, em 1758, na resposta
que nos deixou 18, escreveu a
dada altura em relação à fun-
dação da Fonte Santa (sic.): “...
e dizem ser obra dos Mouros; o
que não duvido; porque ainda a
terra cheira muito deles, e se vê,
que a maior parte das gentes é
preta, e muito disfarçada, ou já
com os alvear; e muitos com o Habito de S. Fran- Foi só no decurso de trabalho de gabinete que
cisco”. nos apercebemos da expressão arquitectónica que
Este fragmento de texto leva-nos directamente esta cerca tinha em termos de implantação topográ- 17 O Pároco Francisco Carneiro

para o âmbito da cultura imaterial do Torrão, teste- fica, no conjunto da malha urbana do Torrão. e Alves.
18 Inserida numa colectânea de
munho eloquente de uma forte presença islâmica 19 Imediatamente, verificámos que esta “cerca /
que terá moldado a “matriz cultural dos torranen- / muralha” apresentava anomalias na sua intersecção manuscritos, nunca publicados na
íntegra, que receberam o nome de
ses” e, como tal, ficou gravada na “memória popu- ao corpo principal do edifício conventual, facto que Memórias Paroquiais (ALVES 1758).
lar”, resistindo à erosão implacável do tempo e das nos intrigou! 19 Para uma abordagem mais
perseguições da poderosa Inquisição de Évora, insta- Em síntese, identificámos (em planta) duas es- detalhada sobre a islamização na
lada mesmo “aqui ao lado”. truturas arquitectónicas de génese diferente, que fo- região do Torrão, deve consultar-se
Foi numa visita de rotina à vila do Torrão, no ram adossadas posteriormente: o conjunto conventu- a bibliografia apresentada neste
mês de Abril de 2006, ainda no tempo do Vereador al das Clarissas (incluindo o claustro e uma primeira trabalho.
20 As fontes consultadas relativas
João Carlos Faria, que, por mero acaso, identificá- cerca conventual) e o que denominámos de “segun-
mos numa ruela escondida uma torre adossada à cer- da cerca”, que corresponde à muṣalla. ao século XVI referem a existência
de um castelo na zona da Igreja
ca conventual das freiras clarissas do Torrão, que Outro elemento desta “cerca” que nos despertou Matriz. A vila nessa altura não se
neste local é conhecida como a “muralha”. imediatamente a atenção foi a existência de uma po- encontrava amuralhada. Numa
A existência de um potente muro, de desenvol- tente torre, que desde logo imprimia uma leitura fonte mais tardia, de finais do
vimento rectilíneo, com um comprimento de mais de “militarizada” ao espaço, em directo desacordo com século XVIII (Memórias Paroquias
62 m, por 3,5 m de altura, associado a uma torre, um “programa arquitectónico de natureza religiosa”, referentes ao Torrão), o pároco
refere a existência de um castelo
causou-nos surpresa, dado tratar-se de uma solução que um convento naturalmente encerra. que já não existia na sua época.
arquitectónica invulgar, inserida num contexto con- Estranhámos, contudo, a disposição do muro Assinala que este teria muros em
ventual para o qual não fazia sentido, partindo do adossado à “torre”, que, desafiando a topografia do taipa. A existência de uma Rua das
pressuposto que estaríamos em presença de uma lugar, tinha um desenvolvimento rectilíneo ao longo Torres no Torrão é um indício
“simples cerca”, para demarcar terrenos agrícolas! de mais de 61 m e parecia condicionar a posição cen- importante, que revela a existência
de uma cerca amuralhada,
De início pusemos a hipótese de se tratar do res- tral da torre, denunciando deste modo a existência de que possuía algumas torres.
to de uma hipotética cerca amuralhada da vila. Con- um “programa arquitectónico” de raiz, ou seja: o Contudo, dado que a planta mais
tudo, a sua distância em relação ao castelo, a topo- muro e a torre estariam associados entre si. antiga, de inícios do século XIX,
grafia do espaço urbano e o seu desenvolvimento es- Tratando-se de um conjunto conventual, do iní- não representa o castelo,
pacial a meia encosta, “desafiando a orografia do cio do Período Moderno, começámos por procurar avançámos hipoteticamente que
este seria de planta oval, tendo em
local”, impunham naturalmente uma outra génese paralelos em contextos arquitectónicos coevos, mas conta a topografia, mas alertamos
para esta estrutura 20. depressa verificámos a inexistência de referências ti- que é somente uma suposição,
Intrigados com o achado, procedemos à análise pológicas. carente de bases sólidas.
detalhada da planta actual da vila do Torrão e tam-
bém de uma outra, datada de 1817.
al-madan
XII online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Só quando decidimos comparar este troço da Compreendemos por que razão estes espaços
“cerca” com plantas de mesquitas islâmicas é que permanecem “quase sempre” invisíveis nos estudos
chegámos à conclusão de que estaríamos, provavel- sobre o urbanismo de génese islâmica.
mente, perante um edifício religioso muçulmano. A grande totalidade dos investigadores não lhe
Tratando-se de um espaço religioso islâmico, ele atribui muita importância, ou então é o “sistemático
desafiava em dimensão as normas da época. desconhecimento” que tem prevalecido até hoje!
Imediatamente levantou-se uma outra questão: Basta para isso consultar algumas teses de dou-
se em contexto islâmico as únicas cidades conheci- toramento 25 e artigos que apresentam os novos mo-
das neste território alentejano eram Évora, Beja e Al- delos de evolução das medinas do ocidente do Dār
cácer, todas com mesquitas adaptadas à função que al-Islam (Andalus e Magreb).
tinham como sedes de território, e se o Torrão seria Localizadas sempre fora da malha urbana, este-
um pequeno castelo dependente de Alcácer 21, por ja ela cercada ou não, as muṣalla(s) correspondem
que razão este ultimo possuía um espaço religioso quase sempre a espaços amplos, vazios de cons-
descomunal, sem paralelo no Ġarb 22? Na realidade, truções 26.
que tipo de edifício seria este? Ribāṭ ou Rábita 23? Nos raros casos em que uma edificação desta
A hipótese de muṣalla só foi posta um pouco natureza foi “fixada na paisagem envolvente” como
mais tarde, no mês de Maio desse ano, no decurso da construção, a abordagem efectuada é quase sempre
recriação Histórica “Alcácer Islâmica”, após uma preliminar. Limitam-se a assinalar a sua existência e
conversa com o nosso colega, o historiador marro- pouco mais.
quino, Dr. Al Muthamid. Mas o que é uma muṣalla e que papel ela teve na
Na sua “dupla função” de historiador e de crente organização do espaço urbano em contexto islâmi-
muçulmano, ele alertou-nos para a importância das co?
muṣalla(s) na estrutura arquitectónica dos espaços Se seguirmos a bibliografia existente, pouco há
urbanos islâmicos e para o papel que elas têm na a adiantar.
coesão social da umma / comunidade islâmica. Resumidamente, as muṣalla(s) correspondiam a
De repente, um castelo de génese islâmica, apa- espaços amplos, desabitados, sem edificações e que
rentemente sem importância histórica reconhecida serviam para duas cerimónias ao longo do ano, que
até 2004, emerge com uma das maiores muṣalla(s) contavam com a participação de toda a comunidade:
conhecidas no Dār al-Islam (ver nota 79), na mar- o final do Ramadão e o início do Ano Novo Lunar.
gem Norte do Mediterrânico (Portugal, Espanha, Na prática, tinham a função de “praça”, elemen-
Baleares, Sicília, Malta e Creta), excluindo o Impé- to urbano que não existia na medina islâmica. Nou-
rio Otomano. tros casos, se a topografia fosse favorável, poderiam
Por que é que isso aconteceu? Afinal que papel servir para treino militar.
terá desempenhado o Torrão em contexto Islâmico? No Alentejo, cada medina teria um recinto de
Estas e outras questões emergiram naturalmente, oração a céu aberto desta natureza. Contudo, até ao
abrindo uma inesperada luz num período historio- momento, só foram identificadas duas: em Alcácer e
gráfico que até há pouco tempo era totalmente au- no Torrão 27.
21 Ou de Beja, consoante a
sente e desconhecido. Os exemplos identificados no nosso município
conjuntura politica envolvente.
obrigam-nos a uma reflexão mais demorada. Não só
22 Ocidente.
por existirem estruturas, como por a sua existência
23 Espaco fortificado e de oração,
4. A problemática dos estudos sugerir que serviriam para algo mais do que simples
ou simples espaço de oração?
sobre a muṣalla versus šari´a? terreiros amplos para orar!
24 Muro orientado dentro da
Quando consultamos as fontes islâmicas mais
mesquita, geralmente oposto à
zona de acesso, no meio do qual Uma muṣalla é um lugar de oração. Correspon- recuadas, verificamos que o Profeta Maomé afirmou
se localiza o miḥrāb (nicho que de a uma mesquita de céu aberto, quase sempre des- que toda a terra podia ser comparada a uma mesqui-
indica a orientação para Meca). pojada de construções, podendo ter um muro de ta, já que podemos usar qualquer lugar para a oração.
25 MAZZOLI-GUINTARD 2000 qibla 24 e um miḥrāb amovíveis, feitos em “materi- Quando Abῑ Ḍarr perguntou ao Profeta: “Oh
e RIUS 2000. ais perecíveis”. Mensajero de Allah!, qué mezquita en la tierra se
26 A ausência de estruturas, Quando estudamos numa perspectiva “lata” o instituyó primero? Dijo: la Mezquita sagrada (Me-
que será apanágio da maior parte urbanismo das medinas islâmicas, centramos quase ca). Dije: Luego, cuál? Dijo: Cuarenta años y allí
dos espaços classificados como
sempre a nossa análise sobre as mesquitas, as alcáço- donde entiendas que puedes rezar, pues reza y eso es
muṣalla(s), parece desmotivar logo
à partida a maior parte dos vas, os sistemas defensivos e as estruturas económi- una mezquita” 28.
investigadores. cas. Também Ŷabir b. ´Abd Allāh al-Auṣarῑ 29 afir-
27 CARVALHO 2008d. Se a nossa análise privilegiar o estudo das estru- mou: “Dijo el Mensajero de Allāh, que Allāh le ben-
28 SALAMEH 2001: 321. turas religiosas, a sua disposição no espaço e o im- diga y le dé paz: me concedió cinco (cosas) que a
29 AL-NŪWĪ, Yaḥa´b. Šaraf: Ṣaḥῑḥ pacto que tiveram no ordenamento urbano, é quase nadie antes de mí se dieron. Cada profeta se debía a
Muslim bi-šarḥ al-Nūw ῑ, citado por certo que nos esquecemos de referir a existência das su pueblo exclusivamente y se me concedió no hacer
SALAMEH 2001: 321, nota 7. muṣalla(s) / šari´a. diferencia con ninguna raza y se me hicieron lícitos
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
los botines de guerra, no se había hecho lícito a [...] la musalla de Valence comportait une cons-
nadie antes de a mí, y se me proporcionó la tierra truction (oratoire, c’est-à-dire sans doute mihrab) et
limpia como buena y pura y como mezquita. Así était enclose d’une muraille, tout comme celle d’Al-
pues, cualquier hombre que quiera realizar la ple- mería”.
garia (Ṣalat – azalá) que rece allí donde se encuen-
tra…”. Um dos termos que acompanha a descrição físi-
Se, em termos gerais, a noção de muṣalla como ca das muṣalla(s) muradas da região valenciana é a
“mesquita a céu aberto” é perceptível e aceite por utilização da palavra “muralha”.
todos os investigadores, torna-se mais problemático Curiosamente, como pudemos constatar recente-
quando alguns arabistas também atribuem a palavra mente na Vila do Torrão, algumas pessoas atribuem
šari´a, a estes recintos religiosos. o termo “muralha” a este troço da cerca conventual.
O investigador que temos vindo a seguir, Ibra- Esta palavra sugere a existência de uma boa
him M. O. Salameh 30, não aceita que se use a pala- construção e é alusiva a funções de natureza militar,
vra šari´a como outro sinónimo para estes espaços. dissonante com o objectivo de um convento de Cla-
Segundo ele, o erro deve-se a uma deficiente leitura rissas!
de Levi Provençal, com base num texto de Ibn Ṣaḥib Será que a denominação muralha usada no Tor-
al-Ṣalat, sobre as portas de Marraquexe 31: “Bāb al- rão é de origem medieval?
-Šarῑ´a se considera una de las puertas de Mar- Não sabemos. Contudo, podemos sugerir que
raquech, conocida en fecha muy temprana, y que era sim!
utilizada como pasadizo a la Muṣalla, donde la gen- Admitimos que a palavra šhari´a também terá
te reza y celebran las fiestas canónicas” 32. sido utilizada no Torrão, partindo da hipótese que a
Contudo, Ibn Iḏārī refere textualmente que o ca- denominação toponímica do rio Xarrama 38 será de
lifa al-Manṣūr, quando saiu de Sevilha em 1184 e se génese islâmica.
dirigiu a Ribāṭ al-Fatḥ / Rabat (sic.): “Se instalo en
la casa bendita en la Šari´a (de Tarifa) y la dicha era
su acompañamiento y el aire le fue favorable” 33. 5. Descrição do monumento 30 SALAMEH 2001: 320-322.
Para Salameh, Šari´a (sic.) “Es ley de Dios todo (muṣalla / muralha / 2ª cerca conventual) 39 31 SALAMEH 2001: 321.
lo que Allāh ordenó con respecto al ayuno, la ora-
32 AL-ṢALAT, Ibn Ṣaḥib: al-Man b.
ción, limosna, la peregrinación a la Meca y existen- 5.1. O existente actualmente em confronto
il-Imāma, citado por SALAMEH 2001:
cia de un Dios único” 34. com as bases cartográficas disponíveis 321, nota 9.
Apesar da leitura proposta por este investigador, (carta de 1817 e cartografia digital, 33 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo
tanto Ibn Iḏārī como a documentação medieval cata- de 2006 a 2008). HUICI MIRANDA 1953: 90.
lã apontam em sentido contrário. 34 SALAMEH 2001: 320.
A documentação cristã nos séculos XII-XIII, re- Os quase duzentos anos que separam as duas 35 BAZZANA 1992: 244.
ferente à actual região Valenciana, é clara na utiliza- bases cartográficas em análise (1817 e 2006-2008), 36 À semelhança da do Torrão.
ção de šari´a como sinónimo de muṣalla. apresentam poucas diferenças entre si no que diz res- 37 BAZZANA 1992. Por se tratar
Com base nos elementos recolhidos por André peito aos elementos estruturantes importantes que de uma questão raramente tratada,
Bazzana e que apresentamos neste trabalho 35, fica- definem o convento das Clarissas em relação ao es- achamos oportuno transcrever o
mos a saber que algumas das muṣalla(s) referidas paço envolvente. texto original.
seriam muradas 36, para isolar o espaço sagrado dos O que salta à vista é a existência de um vasto 38 A denominação al-Šari´a, como
terrenos agrícolas confinantes. recinto, que se desenvolve para Sudoeste, criando sinónimo de muṣalla, entrou na
A título de exemplo assinala os seguintes teste- um “corpo estranho” em relação à malha urbana língua Catalã, transformando-se em
Enxaria ou Xaria. No caso da língua
munhos documentais (sic.) 37: “le privilège de Jac- existente neste sector do Torrão.
Portuguesa, desconhecemos como
ques I déjà cite et concernant Játiva signale la mu- Outro aspecto interessante é a clara divisão entre se processaria a passagem fonética.
raille de Exerea, c’est-à-dire de la sari´a. o corpo principal do convento, constituído pelo cor- O nome Enxarramam, dado ao rio
Pour Valence, plusieurs documents soulignent po da igreja, torre sineira, claustro e cerca anexa, da Xarrama em documentação
l’existence d’une musalla: la Primeira Crónica Ge- restante área da cerca localizada imediatamente a portuguesa do século XII, poderá
ser alusivo à muṣalla / Šari´a do
neral indique que Mundir, prince de Denia, s’arrêta Sul que, segundo a legenda do mapa do século XIX,
Torrão, se aceitarmos que a
en 1086 dans «un lieu qui était un oratoire où les pertence já ao património do convento. palavra deriva da expressão árabe
Maures priaient les jours de fêtes et qu’il appelle Recordamos novamente que, no referido mapa al-Šari´a al-Yami (a muṣalla
dans son arabe, axerea; le cimetière «de la musalla» do século XIX, a torre objecto deste estudo já exis- principal) que, adaptada para a
est cite à plusieurs reprises et l’on a mention d’une tia, assim como a cerca a ela associada, numa dis- fonética do português, teria um
som semelhante a exaria-a-rrami (!).
mosquée située «en la Xarea de Valência»; enfin, le posição espacial que ainda se mantém actualmente.
39 De forma a facilitar o nosso
Repartiment signale l’existence d’une porte de la A análise cartográfica do referido documento
texto, vamos começar a utilizar
musalla (Baba l-Sari´a) et du terrain de la Xarea mostra também a existência de uma cruz na zona de a palavra muṣalla, em vez de
(campo exarce), [...] - peu après la «Reconquête» - ligação entre a referida torre e o pano da “muralha” “segunda cerca conventual”
de maisons (domos Mussaalla) situées en ce lieu anexa. A legenda do mapa nada esclarece sobre o seu ou “muralha”.
sacré. significado.
al-madan
XII online
adenda
5 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Fig. 3 − Vila do Torrão: reconstituição hipotética da planta da muṣalla.

Se analisarmos os mapas elaborados para este


trabalho, verificamos que a actual Rua das Freiras (a
Norte) tem a mesma orientação da Rua do Penedo
caminho de acesso ao castelo e Minhoto (a Sul), sugerindo uma ligação entre elas
antiga estrada de Beja
por uma rua que terá existido a separar o núcleo con-
ventual e a muṣalla.
Apesar de possuirmos escassos elementos elu-
cidativos do programa de obras do convento, existe
um dado que nos parece claro: terá existido uma fase
de obras que não incluiu inicialmente o espaço da
torre?
cerca conhecido como a muralha.
porta de acesso
Antes de avançarmos um pouco mais, é impor-
tante referir que a localização dos conventos francis-
canos obedecia a regras predefinidas, nomeada-
mente:
– Devem-se localizar junto à entrada do espaço
recinto da muṣalla
terrenos de cultivo
urbano, de forma a não entrarem em choque com
muro da qibla outras ordens religiosas e privilegiarem a “sua actua-
ção” na prestação de cuidados a pessoas desfavore-
miḥrāb
cidas. No caso do Torrão, tinham a concorrência di-
recta da Ordem de Santiago, que não via com bons
olhos a existência de conventos no seu espaço de ju-
muro da qibla risdição.
– Para existirem condições para ser criado um
convento de Clarissas, deve à priori existir um con-
vento do ramo masculino, que segundo as “regras”,
vigiava e superintendia o convento feminino. Este
quadro é comum nas províncias portuguesas da Or-
0 15 m
dem, caso de Alcácer do Sal ou Setúbal. No caso do
Torrão, foi fundado inicialmente o Convento de S.
Francisco, à saída da Vila, junto à estrada para o Al-
Contudo, por analogia com sinais semelhantes vito, e só numa fase posterior terá havido condições
no mesmo mapa, verificamos que o autor teve a pre- para a fundação do convento das Clarissas.
ocupação de assinalar todos os edifícios religiosos
existentes nessa altura com um sinal em cruz 40. Em suma, a localização destes edifícios conven-
A única excepção a este padrão é efectivamente tuais numa determinada malha urbana é elemento
esta torre, porque nela foi representada uma cruz, precioso para delimitar a expansão urbana existente
cujo significado é pouco claro. na época da fundação.
Segundo os elementos disponíveis, as Clarissas A inexistência de estudos monográficos sobre os
40 Caso da Igreja Matriz, da costumavam implantar ao longo das cercas conven- principais monumentos do Torrão impede-nos de
Misericórdia, dos dois conventos tuais algumas capelas. A questão que se coloca é o traçar numa síntese a história deste convento.
e da Igreja do Carmo. significado dessa cruz na torre: capela “ex-novo” ou Segundo os dados disponíveis, este convento da
41 A identificação desta torre
adaptação de um nicho preexistente? Nossa Senhora da Graça, da Ordem de Santa Clara /
como um espaço sagrado Face ao exposto, é de aceitar que a “memória de / Clarissas, era da Jurisdição do Ordinário 42.
autónomo dentro da estrutura
conventual é um elemento a
um espaço sagrado” associado à torre 41 terá sido Na pesquisa que entretanto efectuámos depará-
valorizar na nossa análise. mantida ao longo dos séculos. mo-nos com o seguinte texto 43: “A Madre Francis-
Será que é a memória da muṣalla? Um outro elemento que indica claramente a ca das Chagas, foi hua das quatro Terceiras, que
Cremos que sim, porque a torre existência de dois espaços arquitectónicos que de- acharão as fundadoras de Nossa Senhora do Tor-
corresponde ao miḥrāb, o espaço pois foram adossados entre si numa fase posterior, é rão, quãdo forão plâtar naquella limitada casa a
mais sagrado desta “mesquita a céu
aberto”, que indica a direcção
a leitura cartográfica que efectuámos e que apresen- segunda Regra de S. Clara, anno 1559. A quem o
canónica de Meca, para onde o tamos neste estudo. Ceo tinha reuelado alguns antes, como em seu pobre
crente tem que se voltar Esta leitura foi confirmada pela informação Oratório, se auia de collocar ainda o Tabernáculo
para rezar. transmitida pelo pároco do Torrão em 1758, que tex- do Sanctissimo Sacramento, cousa que ella muito
42 CHORÃO 2000: 22. tualmente refere a doação deste espaço, em data desejaua, & pedia com instancia ao Ceo. Repetindo
43 GEORGE CARDOSO 1666: 41. anterior. muitas vezes com grande feruor de espiritu: Por
ventura, Senhor, serei nella esposa vossa? Até que
mereceo ouuir de sua sgrada boca: De soança tu se-
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 4 − Vila do Torrão: evolução do convento nos séculos XVII e XVIII.

rás. Como se vio depois, pelo religioso vinculo da


professão, que fez nella, em que permaneceo atè
morte, a qual lhe sobreueio aos 50 de idade, no de
igreja
1609. Segundo autenticas relações, que deste arta
e St.ª M
capela dulo XV ?)
Conuento se nos comunicarão, por meio do Chandre (séc
d´Euora manoel Seuerim de faria, que Deos tem”.
Tudo terá tido início em 1560, por iniciativa de claustro
Brites Pinto, que cedeu umas casas que tinha no Tor-
convento
rão para acolhimento de beatas. Segundo o Pároco (século XVII)
do Torrão 44, “essas casas” correspondiam a uma ca-
torre ? estrada
pela de Santa Marta, onde vivia como beata e insti- de Beja
porta de acesso cerca inicial
tuidora Maria Pinta: “... e obtiveram Licença da Me-
sa de Consciência para fundarem; ficando as ofertas
para os Priores. Tem boa igreja de Abobada, bastan-
te Convento, Cerca 45, que lhe acrescentou o Excelen-
tíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Miguel de
recinto da muṣalla
Távora, a quem são sujeitas: estão muito pobres...”.
propriedade da família Távora
Contudo, segundo a Corografia Portuguesa do (cedido ao convento no século XVIII) muro da qibla

Padre António Carvalho da Costa, publicada em


miḥrāb
1708 mas cujas informações remontam ao século
XVII, encontramos os seguintes elementos 46: “[tem
um convento] de Freyras da mesma Ordem [Fran-
ciscanos], da invocaçaõ de Nª Senhora da Graça, muro da qibla
que se fundou pelos annos de 1560, com licença del
Rey D. Sebastião em humas casas de Brites Pinta,
mulher nobre, & era naquelle tempo Recolhimento
dedicado a S. Martha. Depois pelos annos de 1599,
se fundou o Convento com esmolas, que a Infanta
D. Maria lhe deo”. 0 15 m
Segundo os dados disponíveis, o convento das
Clarissas foi erguido no final do século XVI, sobre
as casas / ermida / capela de S. Marta, junto à estra- Para Sudoeste, a estrada de Beja cortava a possi-
da que ia para Beja, numa das entradas da vila. bilidade de expansão da cerca conventual.
A construção da igreja e claustro obedeceu ao É nesta banda, no outro lado da estrada mas per-
espaço disponível, com base no terreno cedido por tencente a outro proprietário, que existia ainda de pé
D.ª Brites Pinto, e foi condicionada ao eixo viário o que terá sobrevivido da muṣalla, já despojada da
então vigente. sua memória 47.
Uma análise mais pormenorizada permite cons- Segundo as Memórias Paroquiais, esse espaço é
tatar a existência do corpo da igreja e da torre do laconicamente denominado de “Cerca”, “... que lhe
sino, encostados a Norte, junto à malha tardo-me- acrescentou 48 o Excelentíssimo, e Reverendíssimo
dieval do Torrão. Pensamos que essa disposição par- Senhor Dom Frei Miguel de Távora, a quem são
ticular tivesse como objectivo incorporar no espaço sujeitas: estão muito pobres...”.
da igreja conventual o “espaço sagrado” da “capela
de S. Marta” que é referida entre 1560 e 1599. 44 ALVES 1758. O que identificámos na textura um elemento religioso da poderosa
Esta implantação permitia definir uma rua e ca- 45 Esta “Cerca” que foi exposta da torre (onde se família Távora, o que sugere que se
minho quase “privado” em terra batida, com acesso acrescentada ao convento pouco localizava o miḥrāb) é a utilização tratava de um espaço cercado com
rápido ao Convento de S. Francisco, localizado na antes de 1758 corresponde de vários fragmentos de estuque algum prestígio. O texto não é
outra ponta da malha urbana. à muṣalla. de areia de cal de cronologia claro sobre a data da doação, mas
46 COSTA 1708: 484. indeterminada. Será que estamos admitimos que, dado que o doador
Junto à torre do Sino (a Norte), e encostada ao 47 É provável que nos séculos perante restos do antigo miḥrāb? ainda se encontrava vivo em 1758
muro conventual que se desenvolvia para os campos XVII-XVIII o local fosse encarado 48 Esta palavra “acrescentou” e que as freiras se encontravam
agrícolas voltados a Sul, definia-se a estrada que ia como simples cerca / muralha e é muito importante, porque “muito pobres”, elas terão
para Beja, com início no interior do castelo, passan- que uma “tradição local (!)”, representa uma prova documental recebido esta Cerca pouco depois
do pela Igreja Matriz. de natureza indeterminada, de que a Cerca já existia de pé em do terramoto de 1755. As fotos
impedisse a alteração profunda do data anterior a 1758 e que nada da cerca mostram claramente
Neste lado Sul, oposto à malha urbana e voltado
espaço. Apesar dos dados tinha a ver com a arquitectura duas fases de construção,
para o campo, foi construído um claustro e a primi- lacónicos, é de aceitar que os conventual, dado pertencer a que provavelmente mostram a
tiva cerca, condicionados pelas verbas existentes e terramotos de 1530 e o de 1755 outro proprietário. Achamos ocorrência de obras após esta
confinados ao espaço inicialmente cedido. tenham afectado o Torrão. interessante o espaço pertencer a calamidade que atingiu o Torrão.

al-madan
XII online
adenda
7 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Esta necessidade de cortar o cordão “umbilical”


com o mundo exterior faz com que as freiras, após
terem aceitado o recinto da muṣalla, construíssem
muros em taipa de ligação entre os dois espaços, que
vão implicar a inclusão no seu interior de um troço
da estrada de Beja.
Deste modo, o espaço conventual inicial, confi-
nado a uma pequena cerca, vai aumentar em área
para pouco mais do dobro, incluindo um troço de es-
trada pública.
Desconhecemos como terá sido aceite pela ve-
reação do Torrão a desactivação da estrada para
Beja, mas a “anexação” deste troço foi efectuada e
consumada, mantendo-se actualmente.

6. A muṣalla

6.1. Uma leitura arquitectónica

Fig. 5 − Enquadramento A escassez de documentação, seja ela de natu- Como estamos em presença de um recinto sagra-
topográfico da muṣalla do reza arqueológica ou outra, limita-nos a análise ao do islâmico, provavelmente transformado em lugar
Torrão e do Convento das impacto que a estrutura muçulmana terá tido após a de peregrinação 49, decidimos na nossa busca de pa-
Clarissas.
conquista e durante a Baixa Idade Média. Contudo, ralelos privilegiar a sua análise, confrontando-a com
é de aceitar que a sua excepcional construção, que as duas rábitas até ao momento identificadas como
lembra uma muralha, aliada à pouca densidade de tal no al-Andalus: Guardamar (Espanha) e Arrifana
“construções” no seu interior, terão contribuído para (Portugal).
a sua manutenção, transformando-se gradualmente Tomando como exemplo as duas rábitas referi-
num espaço cercado de hortas, nos séculos seguin- das, podemos verificar que o troço da cerca conven-
tes! tual classificado por nós como muṣalla possui uma
O facto de pertencer a um elemento da família linguagem arquitectónica análoga, o que permite sa-
Távora é outro dado a reter, dada a ligação familiar ber, sem margem para dúvidas, que estamos perante
directa existente com o último Mestre da Ordem de os “vestígios” de um vasto edifício / recinto religioso
Santiago, D. Jorge, filho bastardo de D. João II. islâmico.
Admitimos, mesmo sem provas documentais Mais surpreendente é sabermos que este se man-
claras, que a “cerca amuralhada” terá pertencido aos teve inédito desde o século XIII até 2006, apesar de
Espatários, desde a conquista até uma data indeter- ser visível, de fácil acesso e de se encontrar em ópti-
minada após o século XVI, altura em que entrará no mo estado de conservação.
património dos Távoras. Como é que isso foi possível?

A memória funcional do espaço terá sido “apa- O que nos continua a surpreender é a dimensão
gada intencionalmente”, mas algo terá sido mantido descomunal deste espaço religioso do Torrão, sem
pela memória popular. paralelos no Ġarb al-Andalus 50 e que nos permite
Existem questões que nunca poderemos respon- afirmar que estaremos em presença de uma muṣalla
der, como por exemplo: por que razão o convento de carácter excepcional, ligada ao “poder estatal
das Clarissas não foi logo de início construído den- islâmico”.
tro da muṣalla, mas si ao seu lado? Aceitamos a hipótese de ter servido igualmente
Em data ainda não determinada, mas provavel- como ribāṭ, não só pelo carácter fronteiriço do Tor-
mente antes do século XVIII e por razões que des- rão frente a Évora, nos séculos XII-XIII, como por
conhecemos, a muṣalla foi cedida ao convento. razões da natureza da “estrutura política” do Estado
49 Sobre esta questão, consultar
Prontamente foi transformada em horta e pomar, islâmico, que iremos apresentar ao longo deste estu-
VEGA MARTÍN e PEÑA MARTÍN 2003. enquanto a Torre foi adaptado a espaço sagrado de do.
50 Ocidente do al-Andalus, culto cristão. Relembramos mais uma vez que, segundo Ibn
equivalente ao actual território Um convento define-se como um pequeno mun- Iḏārī 51, o local em Tarifa escolhido por al-Manṣūr
português. do cercado, procurando-se recriar no seu interior para descansar e estar junto dos seus aliados mil-
51 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo uma imagem do “paraíso” e “intimidade” com Deus, itares, antes de atravessar o Estreito, foi a Šarī´a
HUICI MIRANDA 1953: 90. através da oração. (muṣalla) local.
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
torre ?

porta de acesso

Muṣalla

muro da qibla

Fig. 6 − Reconstrução
proposta para a muṣalla
torre do miḥrāb almóada do Torrão.

muro da qibla

0 15 m

Figs. 7 e 8 − Mesquita do
Ribāṭ da Arrifana / Aljezur
(Algarve), segundo GOMES e
GOMES 2007a: 57.

1 3

minarete 0 30 m

Muṣalla do Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão

Fig. 9
mesquitas
Ribāṭ da Arrifana 1. Planta do Ribāṭ da Arrifana /
Aljezur (Algarve), segundo
GOMES e GOMES 2007a: 51.

2. Planta da rábita califal de


antiga muṣalla Guardamar (Espanha), segundo
muṣalla AZUAR RUIZ 2004: 30, fig. 4.

mesquitas 3. Planta da muṣalla do Torrão,


segundo CARVALHO 2008e: 30.
2 Rábita califal de Guardamar

al-madan
XII online
adenda
9 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Tomando como exemplo a arquitectura e as di- Contudo, era apanágio governativo efectuarem-
ferentes orientações canónicas de mesquitas de ou- -se mudanças de orientação das qibla(s) como ex-
tros espaços geográficos do Dār al-Islam como, por pressão do novo poder, que era entendido como for-
exemplo, o Próximo Oriente, verificamos que os ele- ma de “purificação”.
mentos básicos que definem uma mesquita, continu- São variados os exemplos que podemos ler nas
am patentes: terá que existir um muro da qibla ori- crónicas alusivos a este tipo de comportamento. Os
entado canonicamente e o nicho do miḥrāb. almóadas mudaram deliberadamente a orientação de
algumas qibla(s) de mesquitas, como prova de afir-
6.2. O muro da qibla mação e desejo de romper com a tradição almorávi-
da.
Temos um potente muro, que se dispõe direito A título de exemplo, podemos referir o que acon-
ao longo de pouco mais de 62 m, desafiando a incli- teceu à mesquita principal de Marraquexe 58 manda-
nação do terreno. Desenha uma linha inclinada ligei- da levantar pelo emir almorávida ´Alῑ b. Yūsuf, que,
ramente para Sul, seguindo uma determinada orien- apesar de estar correctamente orientada, os almóadas
tação canónica, que Mònica Rius denomina de “ten- não hesitaram em derrubar para lhe alterar a orien-
dência hacia el Este (E)” 52. tação da qibla.
Segundo a arabista, estas mesquitas, ordenadas “En palabras de al-Tāŷūrῑ: Luego vinieron unas
por sequência cronológica, estão intimamente liga- gentes que la cambiaron hacia el Sur. Ibn ´Iḏārῑ, más
das com o cálculo da qibla efectuada por astróno- explícito, refiere: “se abstuvieron los Almohades de
mos, que trabalhavam directamente para os sobera- entrar en ella (Marrākuš) porque el Mahdῑ había
nos. dicho que la purificasen. Se preguntó a los alfaquíes
De uma forma geral, observa-se no território do sobre ello y les dijeron: «edificad vosotros una mez-
al-Andalus uma tendência em orientar as mesquitas quita y renovad la otra”.
dentro de um arco compreendido entre o SE e o S, Se a mesquita de Madῑnat al-Zahrā´ foi famosa
entre os 135º e os 180º 53. por ter uma qibla orientada a 109º, que se desvia 9º
52 RIUS 2000: 106-111. A denominada “qibla moderna” 54 corresponde- da “qibla moderna”, é provável que a qibla da mu-
53 RIUS 2000: 105. rá a um arco situado entre o E e o SE, ou seja, entre ṣalla do Torrão tenha obtido alguma “fama” a nível
54 Diz respeito aos cálculos os 95º e os 108º. regional, porque se encontra desviada da “qibla mo-
efectuados a partir de coordenadas Com base nos dados obtidos por A. Jiménez, Mò- derna” em 17º, o que, em termos de cálculo astro-
geográficas e procedimentos nica Ríus organizou as mesquitas do al-Andalus se- nómico num contexto medieval, presumimos não
modernos. Segundo a autora que gundo grupos de “tendências de orientação” 55: (E) terá sido fácil de obter.
temos vindo a seguir (RIUS 2000: tendência Este; (SE) tendência Sueste; (C) tendência Facilmente poderia ser confundido com o horto do
105, nota 253), “Todas las
orientaciones están medidas, en
“Cordovesa”; (S) tendência S dentro do quadrante Sol no Inverno no al-Andalus, que ronda os 120º 59.
grados sexagesimales, desde el punto SE; (S) tendência S dentro do quadrante SW. Achamos extraordinário que o edifício e a torre
Norte (que corresponderá a 0º) en A qibla da muṣalla do Torrão, orientada a 117º, do miḥrāb se encontrem orientados para a alcáçova
sentido horario, por lo que puntos E, insere-se no grupo Este (E). e mesquita da cidade de Beja 60, que é visível na li-
SE, S y W corresponderán a 90º, A autora inseriu neste grupo um conjunto de dez nha do horizonte com bastante nitidez.
135º, 180º y 270º, respectivamente”.
mesquitas, datadas entre os séculos X e o XIV.
55 RIUS 2000: 105-106.
Face ao exposto, estamos perante mais um dado
56 RIUS 2000: 110.
que reforça o papel que terá tido a iniciativa estatal Tabela 1
57 Provavelmente localizada
como patrona deste espaço sagrado. Orientação das Mesquitas do al-Andalus
no local da actual igreja matriz
Com base na tabela elaborada por M. Rius 56
do Torrão, antiga Igreja de
Santa Maria. (ver Tabela 1), verificamos que a orientação da qibla Mesquitas e Muṣalla(s) / localidade século qibla
58 RIUS 2000: 153-154. torranense enquadra-se no intervalo entre a qibla de Muṣalla do Torrão (Alcácer do Sal) XII 117º
59 A inclinação do eixo de Medina Azara (Córdova, século X, 109º) e a qibla da Santa Clara (Córdova) X 125
rotação da Terra e o facto desta mesquita de Mértola (século XII, 126º).
Medina Azara (Córdova) X 109º
ter uma órbita elíptica justificam Trata-se de um grupo de mesquitas directamente
São Tomé (Toledo) XI 115º
diferentes ângulos de incidência ligadas com o cálculo da qibla obtido por astróno-
dos raios solares, e fazem com que Mértola XII 126º
mos.
o “nascer” do Sol varie ao longo Comares, Alhambra (Granada) XIV 101º
Por vezes, podemos assistir a casos de dupla
do ano, descrevendo um arco na Mexuar, Alhambra (Granada) XIV 108º
paisagem. qibla, que desconhecemos se eventualmente terá
60 Segundo os elementos obtidos ocorrido no Torrão, devido ao desaparecimento da Rawda, Alhambra (Granada) XIV 109º

por meio de fotografia de satélite, mesquita local 57, que terá existido no interior do Aljama, Alhambra (Granada) XIV 124º
utilizando o Google Earth. castelo. S. Sebastián, Ronda (Málaga) XIV 121º
Fiñana (Almería) XIV 112º

al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
recinto da muṣalla

miḥrāb

terrenos agrícolas

muro da qibla

Fig. 10 − Vila do Torrão:


localização do miḥrāb.

0 15 m

6.3. A localização do miḥrāb poderá corresponder à existência de um “nicho” que,


em contexto Moderno, poderia conter uma imagem
Sensivelmente a meio do muro (qibla) foi ergui- cristã!
da uma torre, que ficou adossada do lado exterior. Se a nossa proposta de cronologia almóada esti-
A existência desta estrutura isolada torna-se coe- ver correcta, é provável que o interior do miḥrāb,
rente se a considerarmos como a “torre” que encer- em termos de planta e gramática decorativa, se-
rava no seu interior um miḥrāb. guisse de perto o que foi identificado na mesquita de
Se analisarmos a figura que apresenta as plantas Mértola.
de miḥrāb(s) identificados no al-Andalus 61, pode- Não só pela coincidência da inclinação da qibla
mos verificar que, de um modo geral, eles foram ser nos dois casos semelhante, como por ambas se
inseridos em estruturas de formato “torriforme”, ge- localizarem no Ġarb e provavelmente terem sofrido
ralmente salientes do muro da qibla. programas de obras pelo mesmo poder político.
Noutros casos, o nicho ficou embutido na pró- Tanto no caso do Torrão, como em Guardamar,
pria estrutura, não sendo visível do lado exterior do podemos verificar que as “torres” que encerram o
edifício. miḥrāb apresentam-se pouco salientes do muro da
Essa estrutura torriforme, nuns casos apresenta qibla, mas com uma maior fachada, de modo a con-
uma planta “ligeiramente rectangular”, noutros de- ter um “nicho” no seu interior. Ou seja, em ambos os
senvolve-se em semicírculo, simples ou facetado. casos estamos perante estruturas torriformes de plan-
O exemplo do Torrão adopta o modelo torri- ta rectangular.
forme de planta rectangular, seguindo o que foi uti- O mesmo modelo parece estar patente na torre
lizado nos conjuntos religiosos de Guardamar (sécu- similar existente na mesquita de Tῑnmal / Marrocos 63.
lo X) e da Arrifana (século XII). A mesquita, centro religioso e cultural da medi-
Em Alcácer, os miḥrāb(s) identificados como tal, na, por vezes actuando como “contra-poder” em re-
61 CALVO CAPILLA 2004: 63.
no Santuário dos Mártires (séculos XII-XIII) e na lação à estrutura militarizada de certas medinas, en-
Igreja de Santa Maria do Castelo (desde o século IX contra-se estrategicamente separada como corpo au- 62 CARVALHO 2008d.

até ao XIII), parecem seguir o modelo exterior ao mu- tónomo, possuindo uma orientação canónica, direc- 63 A torre da muṣalla no Torrão

ro da qibla, seguindo uma planta em semicírculo 62. cionada para Meca. tem forma de rectângulo irregular,
com as seguintes medidas,
No caso do Torrão, desconhecemos se o nicho Em termos de disposição no espaço, teria que ter
em metros e de Sul para Norte:
terá sobrevivido até aos nossos dias, porque ainda tanta visibilidade como a alcáçova, para que um via- 1,3 num dos lados menores;
não tivemos acesso ao interior da Torre. jante ou tropas exógenas à região soubessem se 3,5 ao longo do muro da qibla;
A “enigmática cruz” desenhada nesta torre, que estariam em presença de uma medina islâmica ou 1,5 no outro lado menor.
se encontra representada na Planta do Torrão de 1817, não.
al-madan
XII online
adenda
11 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Estes pressupostos, alcáçova num local proemi- 6.4. O acesso à muṣalla: uma hipótese de trabalho
nente, com a mesquita ao lado, não muito distante de
uma muṣalla, iremos encontrar no Torrão, mas con- O acesso à muṣalla seria, com base na reconsti-
64 Sobre esta questão, consultar
dicionados a uma escala diferente e à topografia do tuição proposta, localizado a Norte e defendido por
CABRITA; CARVALHO e GOMES
local. uma torre. Por que razão sugerimos a existência de
2008:14-17.
65 Praças-fortes que irão deter
Após 1191, o Torrão localiza-se num território uma torre encostada a um muro, no lado oposto ao
o avanço português para Sul nas
de fronteira, como guarda avançada de Alcácer e muro da qibla e vigiando a porta de acesso ao inte-
primeiras décadas do século XIII. Beja, frente a uma cidade de Évora debaixo de do- rior da muṣalla?
66 Ver Figura 2. mínio português desde 1165, que se localiza a Norte, Se analisarmos a base da estrutura actualmente
67 Ao contrário dos movimentos para lá da margem do rio Xarrama 64. visível, verificamos que, ao nível actual do solo, é
magrebinos dos Almorávides e Para Sul abre-se uma vasta planície até Beja, ci- possível detectar uma base construída por grandes blo-
Almoadas, que deram expressão a dade visível do Torrão. cos de rochas, obtidas no local. Estes encontram-se
aparelhos políticos de cunho Se a implantação do castelo local tem uma fun- ligados entre si por taipa de cor bege.
reformador religioso, os Merinidas ção meramente defensiva em relação à estrada para O aparelho do muro da qibla apresenta duas fases
vão assumindo o poder após o
desaparecimento do califado
Alcácer, a muṣalla vai ser construída obedecendo a de reconstrução. A mais antiga corresponde aos
Muwaḥḥīd, sem nenhum programa outras condicionantes, nomeadamente: alicerces, segue o modelo dos blocos de pedra liga-
religioso, facto que os poderia – Terá sido erguida no local / ou junto ao acam- dos entre si e atinge em média quase um metro de
debilitar. Para colmatar esse facto, pamento almóada de 1184, onde viria a falecer o ca- altura, estado melhor preservada entre a estrada vol-
vão investir enormes verbas lifa Almóada. tada a Sul e a torre do miḥrāb. Separada por uma fia-
monetárias e recursos humanos
na construção de madrasas e,
– Esta meia encosta, estrategicamente localizada da de tijoleiras, a segunda fase datará já de contexto
após 1260, vão levar a ŷihād ao na estrada de Beja, numa entrada do Torrão junto à pós-islâmico, ainda que obedeça à matriz islâmica
al-Andalus, anexando a região de Fonte Santa, possui uma implantação no terreno en- original.
Algeciras ao seu emirato. volvente que lhe transmite uma enorme visibilidade A linguagem arquitectónica do conjunto, muro e
Assumimos que a história do a longa distância, para quem chegasse ao Torrão vin- torre, foi mantida. Afinal, estamos perante a melhor
Sultanato Merinida, entre 1212 e
1260, é bastante confusa.
do de Beja ou de outros lugares do espaço islâmico construção da actual área urbana do Torrão. Mesmo
Por razões que desconhecemos, localizados a Sul. Curiosamente, o edifício não é vi- que o significado do edifício tenha sido perdido, ma-
tem passado despercebida entre sível para quem chegasse ao Torrão vindo de Norte, nteve-se a sua qualidade de construção como mais-
os investigadores portugueses e ou seja, do Reino de Portugal. -valia a preservar.
espanhóis uma afirmação muito Como já foi referido, tanto do castelo como na Em relação à localização da porta no lado Norte,
interessante que se encontra na
célebre e muito debatida crónica
muṣalla, é visível na linha do horizonte a alcáçova da no local proposto o muro original desapareceu. Em
portuguesa da Conquista do Algarve cidade Beja e um vasto território para Sul e Poente. sua substituição foi construída uma potente canaliza-
(sic., segundo FONSECA 1988: Pensamos que tal não terá sido por acaso, mas sim ção para escoamento das águas pluviais que, em ex-
90-91): “[Cap. XI… descreve o fruto de um programa militar previamente delineado cesso, poderiam ficar retidas dentro da muṣalla e
trajecto que o rei D. Afonso III pelos almóadas. danificar a estrutura. Imediatamente ao lado, parte da
fez em direcção a Faro, que
imediatamente cercou por terra e
Tendo em conta a grande importância que tem a actual rua foi invadida por uma construção que ados-
mar] a grão presa ao Algarue e foy orientação do muro da qibla e do miḥrāb para o quo- sada ao corpo principal do convento das Clarissas.
por Beja e day a Almodouuar do tidiano muçulmano, procurámos averiguar, com ba- Este conjunto edificado, tal como se encontra
Campo dourjque e pasou a terá pelas se em fotografia de satélite do Google Earth, se essa actualmente, já existia em finais do século XVIII,
Cortiçadas e (en)camjnho(u) dieyto a “obsessão” na orientação de edifícios não religiosos como é documentado no mapa de 1817 66. A dife-
Farom de senhrjo de Mjra(mo)molin
rey de Maroquos e tinha a vila por
também se podia detectar, tomando como base de rença no alinhamento em relação à rua parece ser um
ele hum alcayde que auja nome análise o eixo definido por Alcácer, Torrão e Beja 65. indicador a ter em conta, que permite supor que terá
Aloandre e estaua(ahi) hum O Baixo e Médio Sado são, a nível do al-Anda- havido alguma estrutura anterior que condicionou as
almoxarife delRey que auja nome lus, o espaço geográfico privilegiado para detectar as actuais construções.
Alcabrarão (e) estes auyom gramde orientações sagradas, dada a ausência de relevos Desde o início que temos defendido uma génese
acorrimento de gente(s) e
mantimemtos porque (de) demtro do
muito elevados. almóada para este edifício.
alcaçar estaua hua fusta per hum Não vamos aqui analisar detalhadamente os da- Parece-nos importante poder comparar a volu-
arco grande que era (fejto) no muro dos obtidos, mas constatar com alguma surpresa que, metria da muṣalla do Torrão com mesquitas coevas
(e) tiravom aquela fusta cada vez efectivamente, existe uma ligação na orientação en- do Norte de África. Infelizmente, grande parte destes
que querryom e mamdauom (na) tre as muṣalla(s) do Torrão e de Alcácer; e que é a edifícios religiosos sofreu transformações arquitec-
com recado a seu Rey (Al)
mjra(mo)molim…”. Segundo a
partir da mesquita a céu aberto do Torrão que se pro- tónicas após a queda dos Unitários, no período em
leitura de HENRIQUES (2003: 80), cessa uma rectificação do rumo, para que o edifício que os Banū Marín / Marinidas 67 assumem o poder
com base neste texto, Faro, e “torre-miḥrāb”, fiquem orientados para a alcáçova político no Magreb al-Aqṣa.
em 1249, tinha saído da obediência e mesquita de Beja. Não há dúvida que a mesquita de Tīnmal / Mar-
de soberano Taifa de Niebla e Face ao exposto, estamos convictos que estare- rocos, construída em taipa e correspondente ao “San-
estava debaixo do domínio dos
Banu Marín. Se esta leitura estiver
mos perante um edifício sem muitos paralelos no al- tuário Muwaḥḥῑd” mais venerado do Califado, pos-
correcta, estamos perante a Andalus, que deve ser “lido” no contexto da época e sui uma leitura arquitectónica similar à muṣalla do
primeira intervenção Merinida no deste espaço geográfico. Torrão.

al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 11 − Vila do Torrão: muro da qibla.

Apesar das diferenças entre os edifícios


religiosos, dado que no exemplo marroquino
estamos perante uma mesquita, não deixa de
ser surpreendente a semelhança patente nal-
guns elementos estruturais comuns.
Dado que em contexto islâmico não pre-
vemos a ocorrência de “coincidências”, te-
mos que chegar à conclusão que a existência
de um edifício desta dimensão, que escapa à
lógica do local, que se pressupõe fosse em
termos políticos “marginal”, é um forte indi-
cador de uma “valorização sagrada” do Tor-
rão, por parte de uma superstrutura estatal. E
porquê? Pela utilização de recursos humanos
e monetários copiosos para a construção de
um edifício religioso que ultrapassa clara-
mente o número de crentes muçulmanos que
habitavam a região e que não estava ao al-
cance das elites locais.
Neste âmbito, entramos noutros planos Fig. 12 − O Império Almóada, entre 1160 e 1189.
de análise, como, por exemplo, os que estão
directamente relacionados com o exercício
do poder legítimo. Não se trata de um aspec-
to meramente gratuito. O detentor desse “privilégio” Por outro lado, verificamos que o relato de Ibn
determina a “agenda política” de todo um território, Iḏāri, autor que estamos a privilegiar neste estudo,
determina a evolução da “Guerra” e possui os recursos não é fértil em pormenores e, por vezes, ao querer al-Andalus, anos antes da primeira
expedição militar documentada,
necessários para construir. Falamos pois do “Prin- simplificar toda a trama política e psicológica dos nos campos de fronteira de
cípio da Legalidade”. eventos ou minorar desastres ocorridos, não diferen- Algeciras, frente a Castela e por
cia os vários Ṭurruš existentes em Portugal, o que vezes contra os Nazaris.
tem levado a confusões de várias ordens. 68 Sobre esta questão, vamos seguir
7. O enquadramento do Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão Como já afirmámos, só uma leitura atenta dos de perto o texto do nosso trabalho
no relato do desastre almóada de 1184, itinerários assinalados e do contexto geográfico re- O Papel do Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão,
no Sistema defensivo Tardo Islâmico de
frente a Santarém 68 latado permitirá identificar o castelo Ṭurruš em cau-
Alcácer (CARVALHO 2005a e 2006).
sa, ou seja: nuns casos poderá ser o castelo de Torres 69 Um apanhado global sobre esta
Ṭurruš é um topónimo bastante frequente no al- Novas e noutro Torres Vedras. questão encontra-se patente no
-Andalus, podendo referenciar-se alguns exemplos Quando, pelo enquadramento geográfico, o Ḥiṣn estudo de MARTINÉZ ENAMORADO
na actual Andaluzia 69. Ṭurruš referido não se encaixa nos exemplos atrás 1998.

al-madan
XII online
adenda
13 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

referidos, alguns investigadores sugerem que o autor ellos en un avance que pasmo la resistencia de los
muçulmano está a mencionar o Castelo de Coruche infieles y deshizo los corazones de los cercanos de
ou, mais raramente, o Castelo de Montemor-o-Novo, ellos y de los lejanos, llevando consigo gentes que
que na nossa análise não tem fundamento, tanto a no se pueden contar y a las que no superan las are-
nível geográfico, linguístico, como da própria con- nas ni los guijarros”.
juntura militar relatada. Apesar de justificar perante os seus leitores as
A referência ao Ṭurruš que nos interessa vem fortes razões que motivaram a necessidade desta
descrita no capítulo que Ibn Iḏāri dedica ao desastre expedição, por causa da “má vizinhança” e graves
de Santarém, ocorrido em 1184 e cujo resultado foi danos aos muçulmanos infringidos pelos portugue-
muito traumatizante para o califado almóada. ses de Ibn al-Rink, este cronista procura a todo o cus-
É na sequência dessa derrota militar que o califa to realçar o impacto da expedição e tentar minorar o
70 As fontes não são claras. Abū Ya´qūb é ferido com gravidade em Santarém e desastre que representou para o poder almóada a
O desastre almóada é algo virá a falecer provavelmente no actual Torrão do operação militar, que deveria ser de castigo contra os
incómodo para relatar e a morte
Alentejo. Sucede-lhe o seu filho, Ya´qūb, o futuro al- portugueses, mas que resultou num desastre de pro-
do emir cria um dilema complicado
ao cronista, que dificulta o relato -Manṣūr 70. porções muito graves.
dos acontecimentos. Uns autores Outro elemento que importa relembrar em rela- Como represália ao desastre sofrido junto das
referem que o emir morreu pouco ção a este episódio é o comentário que Huici Miran- muralhas de Santarém, as tropas almóadas em retira-
depois de passar o Guadiana, da efectua, com base nas várias fontes muçulmanas da apressada praticaram deliberadamente uma políti-
outros no caminho de Beja.
e cristãs. Segundo ele (sic.): “este Turrus que el “Bayan” ca de terra queimada.
Na realidade os elementos
disponíveis não são claros. coloca claramente en el Alentejo, no puede ser ni el Refere o texto que, depois de ter sido ferido gra-
A existência de uma muṣalla no Torres Vedras, que quiere Dozy, ni el Torres Novas, vemente por um grupo de portugueses: “Acampó el
Torrão permite supor que o emir cerca de Tomar, que fue asaltado seis años más tarde Amῑr al-Mu´minῑn en la otra orilla del río y empeza-
terá falecido pouco depois de o por Ya´qub al-Mansur. No he podido localizarlo en ron a manifestarse los daños de la herida 75.
acampamento almóada ter saído
esa región…” 71. [...] Mandó disolver la concentración y volver
do Torrão, rumo a Beja.
71 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo
O desconhecimento que tinha da geografia e to- cada uno de ellos a su cábila en general y avanzó
HUICI MIRANDA 1953.
ponímia portuguesas impediu Huici Miranda, nos por medio del país 76 y causó en él una gran deso-
72 FERNANDES (2005: 459) anos 40 do século passado, de apontar o Torrão do lación; mandó destruir lo que se encontró de edifi-
efectuou um apanhado global Alentejo como a localização mais que provável do cios, alterar las aguas y arrancar los árboles, arrasar
sobre esta questão, sugerindo que ḥiṣn referido no al-Bayān I. los sembrados y quemar todo lo que se podía des-
o Ḥiṣn Ṭurruš corresponderá ao Para o historiador Hermenegildo Fernandes, no truir y hacer desaparecer por el fuego. Continuó la
castelo de Coruche, hipótese que âmbito de recente estudo sobre Coruche e quanto a marcha de esta manera hasta el castillo de Turruš 77
respeitamos mas não partilhamos,
este episódio narrado no al-Bayān I (sic., p. 459) 72: y permaneció en la cumbre de su montaña, mandan-
por razões argumentadas ao longo
deste estudo. “... o ḥiṣn está no caminho da grande expedição que do hacer algaradas sobre él y repartir las columnas
73 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo o califa Yusuf I lança contra Santarém e que acaba- por sus lados para conseguir víveres. Dio al Sayyid
HUICI MIRANDA 1953: 75-79. rá por determinar a sua morte. Já moribundo, numa Abū Zayd, hijo de su hermano Abū Ḥafṣ, el mando
74 D. Afonso Henriques. retirada em que procura aplicar o princípio da ter- de la mayoría de las expediciones y trajo de botín lo
75 “Bien claro aparece que el Califa, ra queimada, passará por um castelo identificável, que se hacía difícil de conducir”.
una vez en la orilla izquierda del com toda a probabilidade, com Coruche, a partir Esta postura do exército almóada, de uma políti-
Tajo, herido y abrumado por el do qual pilha os arredores. Era o mês de Julho de ca de “terra queimada”, sancionada em pessoa pelo
horrible desconcierto con que se 1184”. Emir, é muito importante, porque ajuda-nos a perce-
vadeó el rio, sólo pensó en que su
Aceitamos claramente uma passagem pelo cas- ber a noção que o poder almóada tinha em relação à
hijo al-Manṣūr, que se quedó en la
orilla derecha, cubriendo la retirada, telo de Coruche em 1184, que será novamente alvo “Guerra”, nas regras adoptadas, em termos de deve-
pasase también el río y se reuniese de pilhagem e destruição. De facto, a fonte menciona res e limites auto-impostos!
con él. Son puras invenciones o textualmente a destruição de construções e pomares, Importa analisar com muita atenção cada pala-
errores de interpretación las algaras antes de chegarem ao castelo do Torrão. vra do texto e a sua sequência narrativa.
contra Alcobaza, el ataque a
Como refere o autor, as tropas muçulmanas em
Torres-Vedras o la orden de ir
contra Lisboa”. 7.1. Publicação da notícia da morte do emir retirada consideraram o território atravessado, entre
76 “Del Alemtejo que ya estaba en Al-Um´Minim, Abu Ya´Qub, filho de Santarém e o Torrão do Alentejo, como espaço juri-
poder de los Portugueses, como lo ´Abd Al-Mu´Minim, nesta campanha 73 dicamente cristão 78, ou seja, fazendo parte do “Ter-
demuestran las conquistas anteriores ritório de Guerra”.
de Giraldo sem Pavor”. “Dice Abū-l-Ḥaŷŷāŷ Yūsuf b. ´Umar: cuando Em contexto medieval, o pensamento jurídico
77 Primeira referencia conhecida emprendió el Amīr al Mu´minīn esta campaña, en la islâmico dividia o mundo em duas partes: de um la-
ao Torrão do Alentejo em que murió, contra el enemigo del Algarve, Ibn al- do, o Dār al-Harb 79, onde era legítimo executar
contexto muçulmano. Estamos em
-Rink 74, el maldito, por su mala vecindad y sus gra- uma política de terra queimada, contrapondo-se ao
1184 e o castelo, com guarnição
cristã, fazia parte da linha de defesa ves daños a los musulmanes, decidió dirigirse a San- Dār al-Islam, onde tal actuação era rigorosamente
da fronteira de Alcácer e Évora, tarén, la ciudad de más extensos muros de Ibn al- punida.
em posse dos portugueses. -Rink, la más hermosa y la más soldados, así como A expressão cartográfica entre estas duas ma-
78 Neste caso português. la más fuerte en aprovisionamientos. Avanzó contra neiras de actuar permite traçar uma linha, que traduz
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 14 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
em termos geográficos onde termina o território cris-
tão e começa o islâmico.
Segundo a fonte que temos vindo a analisar, a pi-
lhagem é efectuada até as tropas chegarem ao caste-
lo de Ṭurruš / Torrão do Alentejo, cessando após a
sua conquista aos portugueses.
A ausência de relatos de pilhagem na estrada
para Beja, que é visível do Torrão, permite supor que
a fronteira almóada para Norte de Beja terá sido
alargada, tornando-se o Torrão numa cunha avança-
da entre Alcácer e Évora.
Retomando o relato da fonte muçulmana, como
já foi frisado, o objectivo máximo das tropas almóa-
das em retirada é obterem recursos para si, destruin-
do sistematicamente as bases de reprodução adequa-
da desses bens. A mensagem era bem clara, num acto
de vingança pelo desastre obtido em Santarém: pro-
curou-se aniquilar fisicamente a população cristã en-
contrada no caminho para Beja, passando pelo Tor- 0 30 km
rão, perpetuando nos sobreviventes e para “memória
futura dos não crentes”, o castigo infligido pelas tro-
pas almóadas. A conquista de Beja, antes da conquista de Évo- Fig. 13 − O Garb al-Andalus
O reino de Portugal dominava desde a década de ra ou dos castelos da Arrábida mais próximos a em meados de 1184.
60 do século XII as cidades de Alcácer e Évora. Lisboa, deve ser entendido como uma acção de pi-
A acreditar nos Anais de D. Afonso Henriques e lhagem, o que é demonstrado pelas fontes, quando
seguindo a leitura de José Mattoso, Alcácer terá sido insistem que as tropas portuguesas ficaram na cidade
conquistada após um cerco de dois meses, sem au- quatro meses e oito dias, até esgotarem os manti-
xílio de cruzados, não em 1158, mas sim em 1160 80. mentos. Depois abandonaram-na, arrasando as mu-
O que sabemos é que, após a conquista da ci- ralhas 81.
dade, não terá sido tentada a anexação do restante Alcácer transformava-se assim, nestes 31 anos
território alcacerense. Na realidade, os escassos re- de domínio português, numa base para efectuar o sa-
cursos militares portugueses terão sido insuficientes que sistemático do espaço rural e urbano de fronteira
para tentar dominar o restante território até à serra da ainda em posse islâmica, não lhe interessando muito
Arrábida, o que permite explicar que durante os cin- ocupar o espaço rural.
co anos seguintes Alcácer seja um enclave português Contudo, a conquista de Évora em 1165 e a ne-
em espaço islâmico. cessidade de ser assegurada uma ligação segura en-
Os Anais Portugueses referem a conquista cristã tre esta cidade e Alcácer, vai implicar da parte portu-
dos castelos da Arrábida (Palmela e Sesimbra) so- guesa um ajustamento estratégico da linha de fron-
mente em 1165. teira. É neste contexto que admitimos a conquista do 79 Segundo a doutrina medieval
Mas, se faltam recursos militares para o domínio castelo do Torrão por forças portuguesas, provavel- islâmica, o mundo encontrava-se
efectivo do vasto território rural, nada impede que mente ligadas a Alcácer. dividido em duas partes: o Dār
bandos de aventureiros cristãos e tropas do rei por- Enquanto a presença cristã é consolidada em Al- al-Harb / Terra da Guerra e o Dār
al-Islam / Terra do Islão. No Dār
tuguês tentem a sua sorte na pilhagem do espaço ain- cácer, no Torrão e nos castelos da Arrábida é assina- al-Harb, perante a ausência de lei
da em poder islâmico. da em 1174 uma trégua de cinco anos entre portu- islâmica, presumia-se que só existia
É efectivamente o que terá acontecido com Beja, gueses e almóadas, recebendo estes últimos uma ci- anarquia e imoralidade. Daí o
segundo as fontes cristãs e confirmado nas fontes dade de Beja arruinada e abandonada. dever moral do crente muçulmano,
muçulmanas. Frente a uma praça-forte almóada que natural- para alcançar a paz e em
obediência a Deus, estender o
Segundo os Anais de D. Afonso Henriques, em mente irá pôr em causa a segurança da região de Islão a toda a terra, para eliminar
1162, ou seja dois anos após a conquista de Alcácer, fronteira entre Alcácer e Évora, o castelo do Torrão deste modo o estado perpétuo de
dá-se a conquista de Beja na véspera da festa de terá sido valorizado estrategicamente. guerra. Na percepção medieval,
Santo André (30 de Novembro), numa acção noctur- Pouco depois, o califa Abū Ya´qūb, em Sevilha, o estado de guerra permanente /
na comandada por Fernão Gonçalves e apoiada em na presença de algumas famílias importantes de Be- / latente entre muçulmanos e não
crentes só terminaria quando fosse
cavaleiros-vilão de Coimbra, a que se terão juntado ja, ordena a estas o repovoamento da cidade, prome- erradicado para todo o sempre o
cavaleiros-vilão de Santarém. tendo que em breve enviaria uma guarnição almóa- Dār al-Harb, transformando-o
À semelhança do que acontecia nos reinos cris- da com as respectivas famílias. num Dār al-Islam (onde a lei
tãos vizinhos, estes bandos irregulares estabeleciam A alcáçova de Beja é recuperada com a ajuda de islâmica é aplicada).
acordos com os reis cristãos, chegando ao ponto de 500 homens provenientes de Silves, chefiados por 80 MATTOSO 2007: 283 e 284.

também estabelecerem alianças com os almóadas. ´Umar b. Tīmṣalīt. 81 MATTOSO 2007: 297-299.

al-madan
XII online
adenda
15 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

O objectivo muçulmano é transformar Beja nu- Apesar de as fontes de ambos os beligerantes


ma praça militar que, em articulação com Serpa, omitirem os castelos que fariam parte dos sistemas
Moura e outras praças militares, possa servir de defensivos de cada uma destas cidades, se traçarmos
82 PEREIRA 2004: 7.
trampolim para a futura recuperação de Alcácer e uma linha entre elas, ela forçosamente terá que pas-
83 Uma das facetas pouco
Évora. sar perto do Torrão, tanto a Norte como a Sul.
conhecidas do Torrão prende-se
com a sua posição estratégica de É o que vai ser tentado em 1178, quando o re- Deste modo, o ḥiṣn Ṭurruš referido na fonte mu-
domínio do território. Se analisarmos conduzido governador de Beja, o berbere ´Umar b. çulmana como estando localizado na estrada para Be-
o Torrão unicamente com base em Tīmṣalīt e o governador de Serpa, ´Ali Ibn Wazīr, ja e na “fronteira”, só poderá corresponder ao Torrão
cartografia e não estivermos no aproveitando a presença de tropas portuguesas com do Alentejo. Não se trata só da semelhança fonética
terreno, podemos chegar à
o príncipe D Sancho na região de Sevilha, organizam da palavra Ṭurruš com o Torrão que está em causa!
conclusão que o castelo dominava
visualmente um pequeno espaço uma expedição contra Alcácer, da qual saem derro- Quando o exército almóada escolhe a estrada de
geográfico envolvente, num raio de tados e aprisionados pelos portugueses. Beja em detrimento do caminho de Badajoz, para
alguns quilómetros. Se estivermos Temendo represálias do exército cristão, Beja foi chegar a Sevilha, toma esta opção porque sabe à pri-
no sítio dos Castelos (local do de novo abandonada e os seus habitantes refugia- ori que é o caminho mais rápido. Contudo, vai de-
antigo castelo), mesmo à cota do
ram-se no castelo de Mértola. morar um mês em viagem.
chão é possível ver na linha do
horizonte grande parte do Baixo Em paralelo a esta tentativa, assiste-se durante o Passando entre Alcácer e Évora, a única opção
Alentejo, até Beja, passando por califado de Abū Ya´qūb Yusuf, entre 1170-80, a um que lhes resta é o caminho do Torrão.
Ferreira do Alentejo (27,5 km), conjunto de expedições navais, quase todas contra Não é, pois, de admirar a opção muçulmana de
serra de Grândola (minas da Lisboa, segundo as fontes, nomeadamente em 1179, inicial destruição e posterior recuperação deste cas-
Caveira a 30 km, N.ª Sr.ª da Penha
1180 e 1184, não sendo de excluir ataques a Alcácer. telo, para reforço da cidade de Beja 83.
a 34 km e Atalaia a 40 km), serra da
Arrábida (serra do Risco a 74,5 km, Em termos logísticos, a queda de al-Qaṣr al- O castelo de Beja é visível do Torrão. Em linha
Formosinho a 70 km e serra de S. Luís -Fatḥ / Alcácer do Sal em 1160 tinha retirado à arma- recta são 44 km, ao longo de uma planície, mas, co-
a 67,5 km), Palmela (65 km) e Alcácer da almóada uma importante base naval no Atlântico, mo o caminho nunca terá sido em linha recta, temos
do Sal (25,5 km). Só para Norte é sendo esta obrigada a socorrer-se de ancoradoiros que aceitar que seriam necessários dois dias para se
que existe um grave défice visual.
secundários, como poderá ter sido o caso de Sines, chegar a Beja. Em casos excepcionais, podia ser
Consegue-se ver com dificuldade a
serra das Alcáçovas, a pouco mais apoiado no interior do território pelo castelo de San- efectuado num dia 84.
de 12,5 km, mas a visibilidade tiago do Cacém. Curiosamente, al-Bayān I menciona o facto de o
esbarra com as colinas localizadas Entretanto, a audaciosa conquista de Silves pe- soberano muçulmano ter ficado alguns dias no Tor-
entre os 3 e os 4 km. É, pois, los portugueses, com o auxílio de cruzados, vai con- rão a descansar, enquanto: “Continuó la marcha de
de aceitar a existência de atalaias
tribuir para a dispersão de recursos humanos e um esta manera hasta el castillo de Turruš 85 y perma-
de apoio ao Torrão nesta área,
hipótese apoiada na actual toponímia, natural desgaste do aparelho militar português, não neció en la cumbre de su montaña, mandando hacer
que assinala várias atalaias. Em suma, sendo surpreendente a sua derrota e o retrocesso ter- algaradas sobre él y repartir las columnas por sus
verificamos que o Torrão domina ritorial português verificado após a conquista de Al- lados para conseguir víveres. Dio al Sayyid Abū
visualmente o Médio Sado, num cácer e da Arrábida pelas tropas califais almóadas, Zayd, hijo de su hermano Abū Ḥafṣ, el mando de la
raio médio de 35 km. O ponto
em 1191. mayoría de las expediciones y trajo de botín lo que
mais distante é a cidade de Beja,
a 44 km. Para Poente, é a serra Retomando a questão da delimitação da linha de se hacía difícil de conducir.
da Arrábida, junto a Sesimbra, fronteira em 1184, entre o reino de Portugal e o Im- Llegaron, pero el Califa estaba obligado a guar-
que representa o sítio mais pério Almóada, ficamos a saber que, segundo as fon- dar cama y hacía días que no salía para recibir a
distante visível do Torrão, tes cristãs, em 1181 governava no castelo de Mon- nadie. Luego mandó ponerse en marcha y salió so-
a pouco mais de 74,5 km.
84 Temos que estar cientes que
temor-o-Novo D. Gonçalo Mendes, mordomo-mor e bre su montura, acostado sobre su colchón. Conti-
o caminho nunca era a direito, chefe militar 82. nuó el regreso y su debilidad crecía, y los médicos
mas que seguia a estrada romana, presentes, Ibn Sur, Ibn Muqῑl e Ibn Qāsim, le asis-
passando por Odivelas e Alfundão, tían, hasta que cruzaron el Guadiana y no pudo
ultrapassando em muito os 44 km Torrox (que não tem conseguiu localizar (HUICI MIRANDA montar a caballo; se le hizo una litera con un bal-
obtidos em linha recta. correspondência fonética em 1956: 306).
85 Identificamos este castelo com 86 Existem muitas dúvidas sobre
daquín encima, que lo guardaba de los aires y los
português!) poderá aproxima-se do
o actual Torrão do Alentejo. Sobre som Torrom que, por sua vez, daria o local exacto da morte do emir.
criados lo rodeaban atentos a lo que necesitaba, pa-
esta questão, Huici Miranda cuja origem à palavra Torrão. Nesta sua O próprio autor deste texto, ra aliviar su estado. Se dice que al ir a verlo, algu-
tradução do al-Bayān I estamos a tradução, Huici Miranda afirma a dada altura, afirma laconicamente nas millas después, fue encontrado muerto 86, el 18
transcrever, afirma que a palavra que, eventualmente, estaremos na que o emir morreu na “estrada de de Rabῑ ´al-ajir del año 580 – 29 de Julio del 1184”.
árabe não tem o som de Torres, presença de Coruche, castelo que, Beja”. Ou seja, o autor do al-Bayān I Se analisarmos num todo o texto de Ibn ´Iḏārῑ,
mas se vocaliza por Torrox. Não segundo ele, seria a chave do aponta claramente dois locais
nos devemos esquecer que este Alentejo. Contudo, alguns anos diferentes entre si, não chegando
na parte referente à retirada de Santarém, chegamos
historiador é espanhol, sendo depois, em 1956, quando publica a a acordo se terá sido antes ou à conclusão que, no longo caminho entre Santarém e
natural que se apoie em exemplos sua obra historiográfica sobre o depois de Beja. A existência de Sevilha, num total provável de 368 km, o cronista só
do país vizinho. Na nossa Império Almóada, afirma-se uma muṣalla no Torrão, com as menciona o episódio do Torrão, localizado quase a
perspectiva, como falantes de confuso sobre a localização deste dimensões que possui, permite meio do percurso, sensivelmente a 126 km a Sul de
português, onde a vocalização de Ḥiṣn Ṭurruš, sugerindo erro do supor que se o emir poderá ter
certas letras tem valores diferentes cronista ou então, corresponder a falecido no Torrão, na sua tenda,
Santarém.
do castelhano, parece-nos um castelo localizado no Alentejo, instalada no que virá a ser o Dado que esta questão tem levantado imensas
adequado sugerir que este som no caminho de Beja, mas que não interior da muṣalla. questões, insistindo alguns investigadores nos caste-
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 16 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
los de Coruche ou Montemor-o-Novo,
com base no trabalho de Huici Miran-
da, parece-nos oportuno expor as po-
sições deste arabista em relação a esta
questão.
Como já foi referido, Huici Mi-
randa, em 1953, na nota crítica que in-
sere na sua tradução do al-Bayān I,
sugere que eventualmente estaremos
na presença de Coruche, porque este
castelo, na sua opinião, seria a chave
do Alentejo. Três anos depois, em
1956, numa postura pessimista, reve-
lando um natural desconhecimento da
geografia e toponímia alentejana, es-
creveu o seguinte 87: “Este Ṭurruš o
Torres que el «Bayān» coloca clara-
mente en el Alemtejo, no puede ser ni
Fig. 14 − O desastre almóada de 1184:
Torres-Vedras, que quiere Dozy, ni el rota provavelmente utilizada pelo exército muçulmano.
Torres Novas, cerca de Tomar, que fue
asaltado seis años más tarde por Ya´
qūb al-Manṣūr. No he podido locali-
zarlo en esa región ni tengo la seguridad de que el médicos del Imperio. Según el «Bayān», a los pocas
«Bayān» lo cite con exactitud”. millas de Torres, sus servidores, al querer atender-
Dado que ainda se mantém valida a leitura his- lo, lo encontraron muerto 90, pero luego acepta otra
87 HUICI MIRANDA 1956: 306, nota 3.
toriográfica que este arabista efectuou do desenlace versión que le hace morir en el camino de Evora.
88 HUICI MIRANDA 1956: 306-307.
das tropas almóadas na travessia alentejana em di- Las discrepancias de los demás cronistas árabes
89 Não entendemos porque razão
recção a Beja, na rota para Sevilha, e pela importân- sobre el sitio y el día en que murió Yūsuf las ha pues-
Huici Miranda afirma que o castelo
cia que tem a argumentação exposta neste estudo, to de relieve Dozy, justificándolas con el propósito
não foi tomado. Reconhecemos que
achamos oportuno transcrevê-la parcialmente, por- de ocultar su defunción hasta que el heredero y todo o texto do al-Bayān I é ambíguo e que
que permite entender o que se passou no Torrão e el ejército se reuniesen en Sevilla. textualmente omite a conquista.
compreender a importância que posteriormente este A la ida desde Sevilla a Santarem por Badajoz se Contudo, perante um exército
castelo ganhou no seio do Império Almóada, como invirtieron unos veinte días con un ejército bien poderoso e numeroso como era o
almóada, o castelo do Torrão terá
lugar privilegiado para efectuar a “Guerra Santa” 88: equipado y que apresuraba su marcha para tomar la
tido poucas hipóteses de sair ileso,
“[Depois do fracasso de Santarém] Desmoralizado plaza por sorpresa; al regreso por Evora con las sendo de admitir a sua conquista e
el abigarrado contingente almohade y con el Califa tropas desmoralizadas y con el Califa herido y mori- destruição. A preocupação do
gravemente herido, no iba a exponerse a ser ataca- bundo se tardó poco más de un mes, pues, habién- cronista, dado que está a escrever
do por leoneses y portugueses a la par y verse acor- dose repasado el río del 3 al 4 de julio, al-Manṣūr para o poder político, é falar do
estado de saúde do Califa,
ralado entre Lisboa y Santarém con el río a la espal- estaba ya en Sevilla el 6 o el 7 de agosto y, a los tres
dramatizando o ambiente então vivido,
da. días, cuando llegó el resto del ejército y se alojó en não se preocupando com o destino do
Emprendida la retirada hacia Sevilla, a través la ciudad y en sus alrededores, fue proclamado so- castelo do Torrão (HUICI MIRANDA
del territorio enemigo, se vengaron los almohades lemnemente”. 1956: 78), “... permaneció en la cumbre
de su fracaso pasando a sangre y fuego todo el Recuando um pouco e voltando à nossa leitura: de su montaña, mandando hacer
algaradas sobre él y repartir las columnas
Alemtejo, donde nadie podía oponerles resistencia, – O que terá acontecido no Torrão, para além da
por sus lados para conseguir víveres”.
ya que las tropas leonesas y portuguesas se habían sua conquista aos portugueses e do descanso das tro- 90 O sublinhado é nosso. O que
quedado del lado de Santarém. pas muçulmanas durante alguns dias? Huici Miranda afirma e que importa
El ejército almohade llega así al castillo de Tur- – Por que foi tão importante mencionar este cas- valorizar, é a ocorrência da morte do
ruš, en cuyas alturas acampa sin tomarlo 89 y, mien- telo de fronteira? Califa junto ao Torrão, pouco depois
tras el Califa descansa y es curado, lanza aigaras – Terá acontecido algo mais, que o autor não de o exército muçulmano ter iniciado
para arrasar el país, hacer botín y reunir vituallas, pode escrever? a marcha. É este o elemento
documental que temos vindo a
que debían ya faltar, pues la organización de los Pensamos que sim. Segundo a crónica, o acam- realçar ao longo deste trabalho e,
aprovisionamientos era siempre muy deficiente en pamento almóada terá ficado vários dias no ḥiṣn que na nossa hipótese de trabalho,
sus grandes ejércitos. Ṭurruš, tendo como objectivo a recolha de manti- permite entender a construção da
[…] Mientras se detuvo en ese Torres tuvo el mentos por pilhagem no território imediatamente a muṣalla onde se localiza, coincidente
Califa que guardar cama y durante varios días nadie Norte, porque tal seria proibido para Sul do Torrão, com o provável acampamento califal,
entre o castelo do Torrão,
pudo verlo: luego continuó la marcha en una litera dado que se entrava em território islâmico. localizado a Poente, e a Fonte Santa
cubierta, que se dispuso sobre su caballo, para pro- Defendemos a hipótese de que, inesperadamen- (obra romana ainda em uso),
tegerlo del aire y del calor, atendido por los mejores te, o califa terá morrido na sua tenda. que se encontra a Nascente.

al-madan
XII online
adenda
17 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Por determinação política, que presumimos te- – Boas pastagens para os animais;
nha sido tomada no ḥiṣn Ṭurruš / Torrão, o poder foi – Fácil acesso à “Fonte Santa”, construção de
assumido por Ya´Qūb, por aclamação presenciada génese romana localizada a alguns metros para Nas-
por um grupo de fiéis seguidores. Estava em causa a cente. As suas águas poderiam ser já nesta época
coesão política do Império. conhecidas pelas características terapêuticas que,
Sobre esta questão, é importante transcrever o neste caso, poderiam ajudar na cura do emir;
texto de Ibn ´Iḏārῑ, a propósito dos acontecimentos – Excepcional contacto visual com Beja, a prin-
que defendemos terem ocorrido no Torrão, intitulado cipal base militar almóada neste sector da fronteira,
Noticia Resumida de Su Proclamación 91: “Cuando dado que Alcácer e Évora estavam em mãos portu-
murió su padre, como se expuso antes 92, se oculto guesas.
la noticia y la cabalgadura siguió la marcha con él, É provável que a primeira opção tomada em re-
tal como estaba, hasta que llegó a parar en el sitio lação com o castelo do Torrão, localizado na linha de
de etapa y se plantaron sus tiendas, según la cos- fronteira e com boa visibilidade sobre Beja, consis-
tumbre corriente, rodeándolo los servidores y los tisse em destruir uma base militar portuguesa de
pajes con el silencio y el aparato acostumbrados. fronteira.
Cuando se llevó a cabo la instalación y se completo Neste sentido, entendemos por que razões foram
la llegada de la gente, envió el Sayyid Abo Zayd simultaneamente enviadas colunas de tropas para
enseguida por algunos de los hijos mayores y per- efectuar pilhagens na região. Não só obtinham-se re-
sonajes almohades y jeques de tribus y les hizo un cursos para a viagem, como tornava-se difícil uma
discurso, proponiéndoles la proclamación del emir futura recuperação do Torrão por parte dos portu-
Abū Yūsuf. Vieron al emir Abū Ya´qūb amortajado gueses instalados em Évora ou Alcácer 93.
ante ellos y lo proclamaron – a Ya´qūb – al atarde- Se o objectivo inicial fosse a transformação do
cer, hasta que anocheció ese mismo dia, dejando de Torrão numa base militar almóada, teria sido con-
notificarse a aquellos de cuya fidelidad se sospecha- traproducente efectuar essa política de terra queima-
ba y de cuya sinceridad se dudaba. da neste local, porque tal iria inviabilizar a recupe-
Continúo la marcha después de esto y a la ca- ração imediata do castelo.
balgadura, tal como estaba, se le prestaba atención O que veio alterar a posição estratégica do Tor-
y se descargaban las tiendas y las banderas de la rão terá sido a morte inesperada do soberano almóa-
misma manear y se ocultaba la divulgación y la de- da. O facto foi mantido em segredo, só sendo reve-
claración de su murete. Fue amortajado, se hizo la lado após a chegada das tropas a Sevilha, demons-
oración por él, se le metió en un ataúd y se avanzó trando uma “fragilidade da estrutura política Mu-
con él hasta Sevilla. Al llegar a esta, descanso Abū waḥῑd”.
Yūsuf Ya´qūb al-Manṣūr en hela tres días, hasta que Admitimos com base neste procedimento o que
se concentro toda la gente y se completaron los cam- é sugerido pelo relato que temos vindo a analisar,
pamentos con la llegada de los contingentes árabes que o Torrão em 1184 terá sido deixado ermo após a
y de las demás categorías de soldados, que se esta- sua conquista e “destruição”.
blecieron en Sevilla y sus inmediaciones. O califa que faleceu no Torrão ficou conhecido
Al llegar el viernes, 1º de Ŷumāda al-ūlā – 10 de por ter mandado redigir um “tratado” sobre a Ŷihād
Agosto del 1184 – se convoco a la gente, nobles y antes de seguir para a campanha militar de Santarém.
plebeyos, para la proclamación y asistieron los que Nada mais adequado para perpetuar a sua me-
debían asistir y los que tenían cabida en la alcaza- mória como mártir, senão construir uma muṣalla
ba, el citado día y al siguiente, sábado – 11 de Agos- com funções de ribāṭ.
to – con arreglo a sus categorías y derramo sobre A fortaleza do Torrão terá sido recuperada pelos
sus parientes y la gente de su casa un torrente de almóadas após a investidura oficial de Ya´Qūb, que
favores, distinguiendo al Sayyid Abū Zayd con diez teve lugar em Sevilha, perante os notáveis, numa
mil dinares entre la gente de su casa, por haberse sexta-feira, 1º de Ŷumāda al-ūlā (10 de Agosto de
adelantado en su servicio”. 1184 94). Pouco depois segue para Ribāṭ al-Fatḥ /
/ Rabat, para formalizar a proclamação no Magreb.
7.2. A conquista almóada do ḥiṣn Ṭurruš / Torrão Deste modo, defendemos que a obra terá tido
91 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo
início em 1185 ou no ano seguinte, implicando a
HUICI MIRANDA 1953: 87-88.
92 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo
Quais seriam as vantagens da implantação de transformação do ḥiṣn Ṭurruš num ribāṭ, que irá fun-
HUICI MIRANDA 1953: 78-79.
um acampamento almóada no lugar onde posterior- cionar como uma cunha encravada no reino de Por-
93 Ambas as cidades mente foi erguido a muṣalla? tugal, entre Alcácer e Évora, até 1191.
encontram-se a pouco mais – Boa visibilidade sobre o castelo do Torrão, A muṣalla do Torrão, provavelmente construída
de um dia de jornada. nessa fase em posse dos portugueses; para homenagear a morte de um califa será, sem
94 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo – Amplo espaço livre para instalar o acampa- dúvida, um monumento único no território do al-
HUICI MIRANDA 1953: 87. mento militar almóada; -Andalus.

al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 18 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
8. O soberano muçulmano como Tabela 2
promotor de obras arquitectónicas
Os Soberanos Muçulmanos e as Obras Arquitectónicas
O soberano muçulmano tem ao seu dispor me- Arquitectura Religiosa
canismos de ordem ideológica e recursos que lhe Arquitectura Palatina Outras Intervenções
As Mesquitas / Muṣalla(s)
permitem tornar-se num promotor de obras arquitec- Portas Fortificações Arquitectura militar a) Torre do minarete anexo à
mesquita.
tónicas (ver Tabela 2, segundo Juez Juarros 95). Dada Alminar a) Portas Obras de utilidade pública b) lugar reservado ao soberano
a vastidão do tema, iremos privilegiar uma aborda- Área da Maqsura b) Salões
dentro da sala de oração
da mesquita.
gem centrada no al-Andalus e nos séculos XII-XIII. Miḥrāb Jardins c) passadiço coberto entre duas
Em termos globais, a arquitectura é em si mes- construções.
Sabat c) Oratório d) Púlpito situado à direita do
ma uma demonstração do poder soberano, seguindo miḥrāb, voltado para os
Almimbar d) Banhos crentes em oração.
uma tradição que remonta à Antiguidade. Deste mo- e) Cemitério familiar ligado
Raudas e)
do, estamos perante uma das actividades inerentes à ao soberano.

condição de governante.
Mas, no Islão medieval, a arquitectura não era só
uma fonte de prestígio e de virtude, como também
representava a manifestação do poder que se ofere- Num outro patamar da questão, podemos citar o
cia a Deus e ao Islão, de uma forma que “ganhava” exemplo do emir Merinita Abū Yūsuf Ya´qūb, que
um carácter quase sagrado. mandou construir um muro em Salé depois da in-
Estamos perante um veículo de propaganda ao cursão de Afonso X: “asistía a las obras en persona
serviço do poder estabelecido. y asentaba las piedras por su mano para obtener la
Neste sentido, referimos umas palavras atribuí- recompensa divina, por humildad y por proteger a
das ao califa omíada do al-Andalus, ´Abd al-Raḥmān los musulmanes hasta que terminó la obra y la forti-
III, recolhidas por al-Maqqarῑ 96: “Los monarcas ficación”.
perpetúan el recuerdo de su reinado mediante el len-
guaje de las bellas construcciones. Un edificio mo-
numental refleja la majestad del que los mandó eri- 9. As cerâmicas islâmicas do Torrão
gir”.
Apesar destes princípios orientadores, as dinas- Em termos globais, são escassas as cerâmicas
tias que mais obras levaram a cabo no al-Andalus provenientes da área urbana do Torrão existentes nas
terão sido as dos califas omíadas de Córdova, o cali- reservas do Museu Municipal Pedro Nunes.
fado almóada e o sultanato nazárí. Os Merinidas Grande parte dessa documentação enquadra-se
concentraram as suas obras em Aljeciras. na Pré-História Recente 99, no Período Romano 100
Segundo as fontes muçulmanas, sabemos que o e Pós Medieval-Moderno 101.
papel do soberano ia mais além do mero financia- Raros são os exemplares claramente atribuíveis
mento das obras. ao Período Islâmico. As produções cerâmicas islâmi-
São vários os exemplos relatados em que o sobe- cas do Torrão continuam uma questão em aberto.
rano intervém pessoalmente na obra e, noutras oca- Apesar dos dados preliminares actualmente dis-
siões, actua como arquitecto. poníveis serem manifestamente insuficientes, é, con-
Na maior parte das vezes, as fontes referem o so- tudo, possível sugerir os seguintes indicadores:
berano como supervisor da planificação dos traba- – Admitimos que predominem no Torrão as pro-
lhos, demonstrando assim a clara possibilidade de duções locais, com base nas argilas e elementos não
actuação como construtor 97. plásticos locais, onde predominam as rochas meta-
Sobre esta questão, Ibn ´Iḏārī refere que o emir mórficas e alguns afloramentos de granitos, resultan-
almorávida Abū Bakr inspeccionava pessoalmente a do deste modo peças de pastas escuras, bastante es- 95 JUEZ JUARROS 1999: 14.
construção da muralha de Marraquexe. pessas, ricas em mica. Em termos tipológicos, apro- 96 Segundo JUEZ JUARROS (1999: 50),
Mais tarde, é Ibn Simāk que afirma, em relação ximam-se mais das produções de Évora e afastam-se estamos perante palavras apócrifas,
à construção de Gibraltar, o papel que terá desempe- das produções típicas do estuário do Sado, numa se- mas que revelam o pensamento da
nhado o califa ´Abd al-Mum´min, quando este “deli- quência de continuidade que é patente desde o Pe- corte neste âmbito.
97 JUEZ JUARROS 1999: 53.
neó su perímetro por su mano”. Sobre esta mesma ríodo Romano, numa vasta área do Médio Sado, des-
campanha de obras, Ibn Ṣāḥib al-Salā escreveu que de S. Romão até ao Torrão; 98 JUEZ JUARROS 1999: 56.

terá sido o seu filho e sayyd (governador militar) de – É provável que as produções típicas do es- 99 Sítio dos Castelos, antiga área
Granada quem dirigiu as obras, junto com o sayyd de tuário do Sado, de pastas arenosas, tenham chegado do castelo do Torrão.
Sevilha, seguindo as orientações do califa: “ y se de- ao Torrão, o que é verificável em contexto romano e, 100 Fonte Santa e Penedo Minhoto.

dico a ello con todo empeño, cuidándose en todo provavelmente, terá ocorrido em menor escala em 101 Sítio dos Castelos.

momento de la marcha de las construcciones y de contexto islâmico.


cómo podría ayudar en todo lo posible” 98.

al-madan
XII online
adenda
19 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Na superfície externa, apresenta um


longo e profundo sulco, com marca de
uma corda, junto ao qual, numa sequência
que sugerimos fosse paralela, desenvolve-
-se uma sequência de linhas onduladas a
pente.
Espessura da parede: 20 mm.
Comentário: o tipo de pasta, associado
à decoração de “sulco de corda”, é comum
nas produções romanas do Médio Sado na
região do Torrão. Paralelos interessantes
podemos encontrar na ocupação romana e
visigótica de S. João dos Azinhais, onde
foi erguida uma igreja no século VII, ded-
icada a dois mártires hispânicos: Justo e
Pastor 102. Este mesmo apontamento deco-
rativo apareceu numa cerâmica tardo-ro-
Fig. 15 − Localização das Face ao panorama actual do estudo das produ- mana e visigótica da villa romana de Santa Catarina
cerâmicas muçulmanas ções cerâmicas islâmicas do Torrão, e dado que até de Sítimos, junto a Alcácer. Os melhores paralelos
identificadas.
este momento nada foi publicado sobre a questão, podemos encontrar na região do Alqueva, num con-
achamos oportuno apresentar neste estudo três junto de ocupações rurais desta fase, interven-
exemplares que se encontram nas reservas do Museu cionadas pela equipa coordenada por João Carlos
Municipal de Alcácer. Reconhecemos que é uma Faria e cujo estudo, concluído em 2005, aguarda pu-
amostra insuficiente, mas é o que temos de momen- blicação. Contudo, a presença de linhas onduladas a
to disponível para estudo, que permite clarificar uma pente é um apontamento decorativo aparentemente
questão que desde há algum tempo temos defendido: ausente em contexto visigótico no Baixo e Médio
– Existe uma ocupação humana no Torrão desde Sado e no Alqueiva, mas que poderemos encontrar
os períodos romano e visigótico, que se mantêm em algumas cerâmicas Emirais do Alto da Queimada
após a conquista islâmica. Julgamos que tal facto e Castelo de Palmela, o que nos permite sugerir que
terá permitido manter até hoje o topónimo romani- estamos em presença de uma cerâmica cronologi-
zado de Turres, porque, em contexto islâmico, essa camente muçulmana Emiral, que segue o modelo
denominação arabiza-se foneticamente para Ṭurreš. tardo-romano.
Desconhecemos o que terá acontecido dos sécu-
los VIII-IX (Emirato) até ao século XII (Fase Ma- 9.2. Castelos (local do castelo medieval do Torrão)
grebina). Contudo, o aparecimento de um fragmento
descontextualizado junto à muṣalla, datável dos sé- Fragmento de parede, de forma provavelmente
culos XI-XII (Fase das Iªs Taifas e Almorávida) é um associada a uma grande caçoila.
elemento a ter em conta. As superfícies apresentam-se alisadas. Na super-
Os fragmentos cerâmicos em estudo são prove- fície externa, apresenta junto ao bordo uma mancha
nientes de três locais distintos, apresentados por se- de lume. A pasta apresenta abundantes elementos
quência cronológica: Ermida de Nossa Senhora do não plásticos de grão médio e fino (mica, feldspato e
Bom Sucesso, Castelos do Torrão e junto à muṣalla. quartzo cristalino). Corresponderá a um fabrico lo-
cal, dado que a pasta apresenta afinidades com o
9.1. Ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso contexto geológico do Torrão.
Diâmetro indeterminado. Espessura do bordo:
Fragmento de parede, de forma indeterminada. 22 mm. Espessura da parede: 15 mm (junto ao arran-
É provável que corresponda a um pequeno conten- que do bordo) e 9 mm.
tor. Comentário: os dados actualmente disponíveis
Pasta local, que segue os modelos tardo-roma- referentes às cerâmicas do Torrão e Alcácer do Sal,
102 Sobre esta questão, consultar
nos e visigóticos. Apresenta abundantes elementos desde a Pré-História até à actualidade, permitem
o nosso trabalho Torrão do Alentejo:
breve resenha histórica sobre não plásticos de tamanho médio de cor branca (ro- concluir que estamos perante uma produção local,
romanização e islamização chas metamórficas locais), mica e grãos de quartzo. cronologicamente enquadrada em contexto muçul-
(CARVALHO 2008b). Ambas as superfícies apresentam-se alisadas. mano Emiral.
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 20 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 16 − Castelos / Torrão. 0 3 cm

Tanto em Alcácer como em Palmela, variantes


desta tipologia apareceram em contextos califais e
posteriores.
Parecem corresponder a formas com escassa ex-
pressão numérica, apresentando um tamanho menor
e uma pasta diferente, ligada à base geológica do
Baixo Sado e Arrábida.
Pelo tipo de pasta e de cozedura, a torno “semi-
-lento”, e com base nos dados disponíveis de Al-
cácer, o exemplar encontrado no castelo do Torrão
permite-nos inserir esta cerâmica em contexto Emi-
ral (século IX).
Fig. 17 − Terreno da encosta, a Sul da muṣalla / Torrão. 0 3 cm

9.3. Junto à muṣalla

Fragmento de parede, de forma associada a uma 10. Em jeito de conclusão


taça.
As superfícies apresentam-se alisadas. A superfí- 10.1. Será que estamos em presença de uma obra
cie externa apresenta uma cor acastanhada escura. O saída das orientações do califa al-Manṣūr?
bordo e a superfície interna apresentam-se averme-
lhados, sendo perceptível a existência de espatulado. Uma das questões que legitimamente se deverá
Pasta local, com elementos não plásticos idênticos levantar neste estudo, é determinar as razões que te-
ao do exemplar recolhido nos Castelos, mas com rão levado al-Manṣūr a escolher uma muṣalla / šarῑ´a
menor expressão. A pasta apresenta a mesma cor da para homenagear a memória de seu pai como mártir
superfície externa. da campanha de 1184 e exemplo a seguir.
Diâmetro indeterminado. Espessura do bordo: Como já foi exposto, ambos os califas são defen-
10 mm. Espessura da parede, fora do bordo: 8 mm. sores da “Guerra Santa” como expressão máxima
Comentário: o tipo de tratamento de superfície das suas funções políticas.
associado a esta forma tipológica corresponde a uma As fontes documentais actualmente conhecidas
tipologia bastante comum, que aparece em locais de nada nos dizem sobre o porquê da opção arquitec-
ocupação islâmica, desde Palmela e Lisboa até San- tónica usada no Torrão. Contudo parece-nos impor-
tarém, diferindo no tipo de pasta. Estamos em pre- tante valorizar adequadamente uma referência escri-
sença de um fabrico provavelmente local. ta deixada por Ibn ´Iḏārī 103, quando este nos dá a
Esta forma também aparece no castelo de Al- notícia da marcha de al-Manṣūr de Sevilha, após a
cácer do Sal, diferindo no tipo de pasta. Segundo os sua proclamação oficial como novo soberano do Im-
dados actualmente disponíveis para os locais atrás pério Almóada, quando segue em viagem em di-
referidos, esta tipologia e as suas variantes têm uma recção a Tarifa, para depois embarcar para o Magreb.
certa expressão nos contextos pós-califal Taifa e Al- O cronista, ao longo do texto, salienta o carácter
morávidas. Admitimos uma cronologia semelhante pio do novo soberano ainda em Sevilha: “Se adorno
para o exemplar do Torrão. una galera frente al pabellón de las recepciones a
orillas del río y se llevó a cabo el saludo de todos;
se presentó el ejemplar noble del Alcorán y entró al- 103 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ,
-Manṣūr en la galera a media mañana del citado segundo HUICI MIRANDA 1953: 90.
día…”.

al-madan
XII online
adenda
21 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Depois de sair de Sevilha, toma uma rota ter- moreover regarded him as the greatest builder of the
restre até Tarifa, onde aguarda a frota naval, antes de Muwaḥḥīd dynasty. Abu Yusuf continued to build
embarcar para Ceuta. without ceasing, even during his raids and cam-
Enquanto aguarda, o soberano almóada instalou- paigns, and as attested by the monuments he left
-se na muṣalla / šari´a de Tarifa com alguns dos seus behind, he proved to be an indefatigable patron who
fiéis seguidores: “Se instaló en la casa bendita en la can be counted as one of the great builders of the
Šari´a (de Tarifa) y la dicha era su acompañamien- Islamic world. The reign of this ambitious sovereign
to y el aire le fue favorable”. was marked by a distinct sense of grandeur and the
Será que este episódio influenciou a sua decisão architects deliberately adopted the theme of unusual
de criar uma estrutura idêntica no Torrão, adequada and the immense in their building”.
ao prestígio imperial e para estimular a Ŷihād? Este investigador não hesita em afirmar: “Never-
Não sabemos, mas é uma hipótese a ter em con- theless, al-Mansur still counts as a phenomenon of
ta. Outros exemplos conhecidos, referentes ao sécu- genius in Maghribi history as attested by the accounts
lo XIII, são claros na utilização das muṣalla(s) como of his contemporaries and modern historians and
espaços adequados para a ocorrência de cerimónias scholars” 109.
de natureza política e de afirmação do poder, quan- Segundo o al-Bayān I 110, al-Manṣūr esteve por
do os seus intervenientes aspiram à legitimidade. detrás da conquista do Torrão, em 1184.
Estudos recentes têm dado a conhecer a obra ar- É provável que tenha pensado erguer um memo-
quitectónica promovida por este soberano almóada rial em honra do seu pai falecido no Torrão. Por isso,
ao longo do império. admitimos que, após ter assumido o califado oficial-
Não temos dúvida nenhuma de que a cintura de- mente em Sevilha e confirmado a cerimónia em
fensiva muwaḥḥīd de Qaṣr al-Fatḥ / Alcácer do Sal, Marraquexe, este tenha emitido ordens para o início
também terá sido erguida segundo as suas orienta- da construção da muṣalla no Torrão.
ções. Sobre esta questão, temos o relato lacónico de Quando, em 1190, Nur al-Din, o soberano Ayyu-
Ibn ´Iḏārī, no al-Bayān I, quando textualmente afir- bia do Egipto, solicitou a armada almóada para ex-
ma que o califa ficou alguns dias em Alcácer, para pulsar os cruzados da Palestina, al-Manṣūr recusou.
delinear o plano de obras para a transformar de novo Sabemos hoje que estava a preparar a conquista de
104 “Se dió al-Manṣūr a disponer numa cidade islâmica, valorizando a sua compo- Alcácer.
los asuntos del castillo y sus nente militar e expressão naval 104. Mas por que razão era esta cidade tão importante
condiciones y a arreglar lo que Tendo em conta a ausência de fontes documen- para ele, a ponto de lhe ter mudado de nome após a
aparecía pertúrbalo; lo guarneció con
soldados regulares y otros hombres y
tais directamente relacionadas com as obras almóa- conquista, para Qaṣr al-Fatḥ / Alcácer do Sal?
señaló para su población cantidades das realizadas no Torrão 105, parece-nos oportuno O nome tem claramente uma conotação ligada à
mensuales y anuales de los márcenes citar a notícia dada a conhecer por Ibn Abī Zar, que Ŷihād e encontra-se associado a mais duas al-
de Sevilla e Ceuta, constante y nos permite ter uma noção do volume imenso de -Fatḥ(s), ambas igualmente localizadas junto ao
perpetuamente, en prosperidad y obras mandadas executar por al-Manṣūr, até 1195, oceano e bases para a “Ŷihād naval”.
perfección” (Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ,
segundo HUICI MIRANDA 1953:
onde, naturalmente, deveremos incluir a muṣalla do Na realidade, estamos perante as portas do Im-
169-170). Torrão 106: “Hizo célebre el año de Alarcos, fortificó pério, na perspectiva almóada.
105 Na realidade, desconhecemos el imperio, aseguró las fronteras y construyó mez- É interessante recordar o que foi escrito por Ibn
o papel que terá desempenhado o quitas y escuelas en Ifrīqiyya, el Mágreb y en al-An- Sahid al-Salah 111, quando este explica por que ra-
3º soberano almóada na definição dalus; edificó el hospital para los enfermos y los de- zão o local do al-´Udwatayn (as duas margens/do
arquitectónica da muṣalla. mentes (al-māristān li-l-marḍā wa-l-muŷānīn); se- rio) assinalada por Ibn Hawqal como ribāṭ no seu
106 FRANCO SÁNCHEZ 1999: 146.
ñaló pensiones a los alfaquíes y letrados, a cada uno livro Kitab al-masalik (em 977-978), foi rebaptizado
107 ALI 2002. según su grado; creó rentas para los enfermos del para Ribāṭ al-Fatḥ / Rabat.
108 ALI 2002: 2-3. hospital (ahl al-māristān), para los leprosos (wa-l- Tal facto deve-se a ´Abd al-Mu´min, o primeiro
109 ALI 2002: 3. -ŷaḏmā) y los ciegos en todas las provincias…”. soberano almóada, que mandou construir uma qasba
110 Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, Recentemente, Rasha Ali 107 efectuou uma inte- na margem esquerda do rio Bu Rigrig, frente a Sala,
segundo HUICI MIRANDA 1953: ressante síntese sobre a obra e a vida de al-Manṣūr, com a intenção de reunir tropas 112.
77-78. privilegiando duas perspectivas: a Arquitectura e a Curiosamente, Al-Nasiri, que escreveu um ma-
111 AL-ṢALAT, Ibn Ṣaḥib: al-Man
Guerra Santa. nuscrito sobre Sala e Ribāṭ al-Fatḥ / Rabat, fala da
b. il-Imāma, p. 33, citado por É importante reflectir sobre o que este investi- Ŷihād naval 113, porque o local era, na perspectiva do
SALAMEH 2001.
112 SALIM, Madinat al-Rabat, p. 30,
gador escreveu com base no trabalho de Terrasse 108. primeiro califa almóada, o mais adequado para esse
Decidimos transcrever um pouco do texto original efeito, devido à sua localização sobre o estuário do
referido por ALI 2002: 7.
113 Makhtut Sala wa Ribat al-Fath
em inglês, porque é importante insistir nesta visão rio, que constituía uma barreira natural contra inva-
bi´l-Khizana al-Sabihiyya bi Sala, particular de al-Manṣūr como patrono de obras de sões por mar.
em SALIM, Madinat al-Rabat, p. 22, arquitectura, para entendermos adequadamente a É interessante verificarmos que este padrão
referido por ALI 2002: 7. obra do Torrão: “As a patron of architecture, they identificado para Rabat, de se comportar como sede
militar para a “Guerra Santa Naval”, com receio de
invasões marítimas, de ter uma localização geográfi-
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 22 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 18 − O Império Almóada, entre 1203 e 1212.

ca junto ao Atlântico, no interior de um estuário, e a almóadas e as instalações dos soldados mercenários


adopção do nome al-Fatḥ, também se aplicou a Qaṣr cristãos.
al-Fatḥ / Alcácer do Sal, ajudando deste modo a ex- Em 1190 passa pela região para pôr cerco a Tor-
plicar a sua importância na estratégica belicista ma- res Novas e a Tomar. No ano seguinte, conquista
grebina. Alcácer e, após o seu regresso vitorioso de Alarcos,
Se associado, à base militar alcacerense, inserir- em 1195, vai transformar Ribāṭ al-Fatḥ / Rabat na
mos o papel desempenhado pela muṣalla do Torrão nova capital imperial, em obras que deverão ter sido
como ribāṭ, estamos perante um território forte- concluídas em 1197, assumindo nessa altura o título
mente militarizado, considerado num todo, como a honorífico de al-Manṣūr bi. Allah.
porta que defende todo o sector Norte do califado Para Salim, “The building of al-Rabat is one of
almóada, entre o oceano Atlântico e Badajoz, voca- the wonders that God entrusted to the hands of this
cionado para a “Guerra Santa”, tanto marítima como greatest sultan and which attests to his wide scope of
terrestre. thoughts, as it is rather rare that such a glamorous
Outra mais-valia deste território de fronteira é o city would exist unless its founder is a great wise
seu fácil acesso por via oceânica, desde o Magreb ou man…” 116.
outras partes do litoral do al-Andalus.
Recentemente, avançámos a hipótese do impo-
nente arco que se encontra no lado ocidental da al-
114 CARVALHO 2007: 67-68. propaganda do califado, na guerra psicológica contra o
cáçova de Alcácer do Sal poder corresponder aos 115 As três portas monumentais de cronologia almóada reino de Portugal, mas esta porta associada a al-Fath
restos da Bab al-Qasba 114 / porta de acesso à alcá- actualmente conhecidas, foram mandadas edificar por também servirá de incentivo para a Guerra Santa.
çova, que teria uma gramática decorativa semelhante al-Mansur nas duas capitais imperiais que instituiu e Admitimos que a gramática decorativa empregue na
às encontradas nas portas monumentais de Rabat e serviam para dar acesso à alcáçova imperial. porta alcacerense seria modesta, mas desconhecemos
Marraquexe 115. A primeira delas foi erguida em Marraquexe, antiga como seria, dado que nada chegou até nós.
capital do Império Almorávida e tem o nome de Bab Os exemplares magrebinos possuem frisos epigráficos
Este dado interessante, também veio reforçar a
Agnaw (Bab al-Qasr; Bab al-Kuhl). alusivos ao Corão. Para Ribat al-Fath / Rabat (segundo
importância de Alcácer no seio do califado almóada. Depois foi a promoção de Ribat al-Fath / Rabat para ALI 2002: 9), foi aplicado na Bab Qasbat al-Wudayya o
Uma questão que pode ser posta é a de determi- capital imperial, após a vitória de Alarcos em 1195, seguinte texto, retirado da Surat al-Fath 48:1-4 – “I seek
nar que papel terá assumido o soberano almóada em foram construídas as portas de Bab Qasbat al-Wudayya e refuge with God from Satan the cursed, In the name of God
relação ao Torrão. a Bab al-Ruwah. O exemplo sugerido para Alcácer levanta the Merciful the Compassionate. God praise Muhammad and
mais problemas que respostas. Se efectivamente estamos his family.// Verily, we have granted thee a manifest victory: //
Segundo as crónicas, estamos convictos que ele
perante os restos de uma porta monumental do tipo That God may forgive thee thy faults of the past and those to
criou as condições necessárias para dar início à obra. magrebino, aparentemente exemplar único no al-Andalus, follows; fulfil his favour to thee; and guide thee on the
Segundo o arabista Huici Miranda, após ter tomado a sua construção terá que ser coeva da renovação do Straight way; // And that God may help thee with powerful
posse como novo califa, al-Manṣūr celebrou umas sistema defensivo almóada que foi implementado em help // It is He who sent down Tranquillity into the hearts of
tréguas de cinco anos com os portugueses. Alcácer imediatamente após a conquista de 1191. the Believers, that they may add Faith to their Faith;
Estamos, por isso, perante uma porta construída depois - For God belong the Forces of the heavens and the earth;
Mas, enquanto decorria a obra do Torrão, entre
da obra análoga de Marraquexe e antes das duas portas and God is exalted in Power, full of Wisdom”.
1185 e 1190, al-Manṣūr mandou renovar a qasba de de Ribat al-Fath / Rabat. 116 SALIM, Madinat al-Rabat, p. 176, referido por
Marraquexe, para nela instalar o centro administrati- Que significado tem esta porta alcacerense para o Baixo ALI 2002: 8.
vo do seu império, assim como as sedes das tribos Sado Almóada? Naturalmente que servia de suporte à

al-madan
XII online
adenda
23 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

construcciones de defensa. Le llevó agua del río, le-


vantando una presa y excavando una acequia exclu-
estrada de acesso à ponte e a Alcácer siva para ello”.
Que podemos nós concluir do que foi exposto
neste trabalho?
mesquita? Apesar de não podermos apresentar outro tipo
castelo de documentação arqueológica, nomeadamente ce-
râmicas, para além das estruturas actualmente visí-
veis, estamos convictos que estamos perante um edi-
estrada de Beja fício religioso muçulmano impar no al-Andalus.
Estamos cientes que a leitura proposta está con-
dicionada aos dados actualmente disponíveis e que,
naturalmente, se a investigação avançar neste âm-
bito, algumas das hipóteses formuladas nesta abor-
dagem preliminar terão que ser revistas, mas é esse
o caminho natural que todos os investigadores têm
que trilhar.
0 50 m
Naturalmente, vai ser necessária uma inter-
venção arqueológica no interior do recinto para
aferir a leitura exposta. Contudo, alertamos desde já
muṣalla
Fig. 19 − Fase almóada
para que as muṣalla(s) são por natureza “mesquitas a
(início pouco depois de 1184 céu aberto”, resumindo-se a espaços amplos, quase
e fase final posterior a 1220). sempre vazios na maior parte do tempo, servindo de
recinto festivo duas vezes por ano: final do Ramadão
e começo do Ano Novo lunar. Também serviam em
Como as fontes muito bem demonstram, é o so- tempo de seca para solicitar chuva.
berano muçulmano que superintende as obras É provável que os vestígios arqueológicos de
emblemáticas do seu regime. cronologia islâmica tenham pouca expressão, à se-
Noutro exemplo mais tardio, desta vez referente melhança do que se passa no amplo recinto da mu-
ao início da construção da Alhambra em Granada, é ṣalla de Alcácer.
Ibn ´Iḏārī que relata o seguinte 117: “[El emir] cabal- Apesar de, por uma questão de denominação
gó desde Granada al lugar de la Alhambra, lo técnica, apelidarmos este espaço de muṣalla, admiti-
inspeccionó todo y marcó los cimientos del castillo mos que o recinto tenha servido de ribāṭ, para treinos
117 BOLOIX GALLARDO 2007: 174. (aṣās al-ḥiṣn). Señaló en él quien los excavase y no militares e, eventualmente, num tipo menor de mā-
118 FRANCO SÁNCHEZ 1999: 154. acabó el año sin que éste tuviese unas elevadas ristān / hospital 118.

Bibliografia

Fontes Árabes

Ibn ´Iḏārῑ Al-Marrākušῑ, segundo HUICI MIRAN- ARCAS CAMPOY, Maria (2004) – Teoría Jurídica Granada. Tese Doctoral. Universidade de Gra-
DA, Ambrosio, ed. e trad. (1953) – Al-Bayān al- de la Guerra Santa del Granadino Ibn Abi Za- nada, Departamento de Estudos Semíticos
-Mugrib fi ijtiṣār ajbār muluk al-Andalus wa manim. CEMA. Em linha: http://alyamiah.com/ (policopiado).
al-Magrib. Tetuan. Tomo I (“Los Almohades”). cema/modules.php?name=News&file=arti- CABRITA, A. Catarina; CARVALHO, A. Rafael e
cle&sid=256 (consultado a 24-06-2004). GOMES, Fernando (2008) – “Contributo para o
AZUAR RUIZ, Rafael, coord. (2004) – El Ribāṭ Estudo das Cerâmicas Medievais-Modernas do
Estudos Califal: excavaciones e investigaciones (1984- Torrão: o Largo Bernardim Ribeiro”. Colecção
-1992). Casa de Velázquez, pp. 7-72 (Collection Digital - Elementos para a História do Muni-
AGUILAR, Victoria (1997) – “Instituciones Mili- de la Casa de Velázquez, 85). cípio de Alcácer do Sal. N.º 2 (II Parte), pp. 12-
tares: el ejército”. In VIGUERA MOLINS 1997a: BAZZANA, Andrés (1992) – Maisons d’Al-Anda- -31. Em Linha: http://www.cm-alcacerdosal.
189-208. lus: habitat médiéval et structures du peuple- pt/PT/Actualidade/Publicacoes/Paginas/Estu-
ALI, Rasha (2002) – “The Epigraphic Program ment dans l’Espagne orientale. Casa de Veláz- dosdoGabinetedeArqueologia.aspx.
of Three Muwahhid City Gates in Morocco”. quez. Tomo I (texto) e Tomo II (figuras). CALVO CAPILLA, Susana (2004) – “Las Mezquitas
EJOS. V (8): 1-31. BOLOIX GALLARDO, Bárbara, (2007) – MuḤam- de Pequeñas Ciudades y Núcleos Rurales de
ALVES, Francisco Carneiro e (1758) – “Vila do mad i y el Nacimiento del al-Andalus Nazarí al-Andalus”. Illu - Revista de Ciencias de las
Torrão”. In Memórias Paroquiais. (1232-1273). Primera estructura del Reino de Religiones. Anejos. 10: 39-63.
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 24 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
CARMONA GONZÁLEZ, Alfonso (1997) – “La Fron- CARVALHO, A. Rafael (2008c) – O Torrão em Con- de Trabalhos Históricos. Arquivo Alfredo Pi-
tera: doctrina islámica e instituciones nazaríes”. texto Islâmico: uma breve introdução. Blogue menta. 39: 81-109.
In Actas del Congreso “La Frontera Oriental O Sahil de al-Qasr. Em linha: http://alcacer- FRANCO SÁNCHEZ, Francisco (1997) – “La Fron-
Nazarí como Sujeto Histórico (S. XIII-XIV)”, -islamica. blogspot.com (consultado em 20-08- tera Alternativa: vías y enfrentamientos islamo-
pp. 47-57. -2008). -cristianos en la mancha oriental y en Murcia”.
CARVALHO, A. Rafael (2005a) – “Alcácer do Sal CARVALHO, A. Rafael (2008d) – As Musallas In Actas del Congreso “La Frontera Oriental
Entre 1191 e 1217 (II parte): o papel do Hisn (Sari´a) de al-Qasr / Alcácer e Turrus / Torrão: Nazarí como Sujeto Histórico (S. XIII-XIV)”,
Turrus / Castelo do Torrão, no sistema defensi- uma primeira abordagem à «geografia sagra- pp. 237-251.
vo alcacerense”. Neptuno. ADPA. 5: 5-7. Versão da tardo-islâmica» no alentejo litoral. Blogue FRANCO SÁNCHEZ, Francisco (1999) – “La Asis-
digital (2006) – O Papel do Hisn Turrus / Cas- O Sahil de al-Qasr. Em linha: http://alcacer- tencia al Enfermo en al-Andalus: los hospitales
telo do Torrão, no Sistema Defensivo Alcace- -islamica. blogspot.com (consultado em 05-09- hispanomusulmanes”. In La Medicina en al-
rense. Blogue O Sahil de al-Qasr. Em linha: -2008). -Andalus, pp. 135-171.
http://alcacer-islamica. blogspot.com (consul- CARVALHO, A. Rafael (2008e) – “A Muṣalla do GARCÍA FITZ, Francisco (2005) – Las Navas de
tado em 05-09-2007). Ḥiṣn Ṭurruš / Torrão: uma leitura arquitectóni- Tolosa. Barcelona: Editorial Ariel.
CARVALHO, A. Rafael (2005b) – “Alcácer do Sal ca”. Colecção Digital - Elementos para a His- GEORGE CARDOSO (1666) – Agiologio Lvsitano
Entre 1191 e 1217: os dias em que al-Qasr al- tória do Município de Alcácer do Sal. 3. Em li- dos Sanctos e Varoens Illvstres em Virtvde do
Fath foi sede do império Almóada”. Neptuno. nha: http://www.cm-alcacerdosal.pt/PT/Actua- Reino de Portvgal e svas Conquvistas consa-
ADPA. 6: 12-13. lidade/Publicacoes/Paginas/EstudosdoGabine grado aos Gloriosos S. Vicente e S. António.
CARVALHO, A. Rafael (2005c) – “Alcácer do Sal tedeArqueologia.aspx. Tomo III.
Entre 1191 e 1217 (I parte)”. Neptuno. ADPA. CARVALHO, A. Rafael; FARIA, João Carlos e FER- GOMES, Rosa Varela (1999) – Silves (Xelb): uma
3. REIRA, Marisol Aires (2004) – Alcácer do Sal cidade do Gharb Al-Andalus. Arqueologia e
CARVALHO, A. Rafael (2006a) – A Identificação Islâmica: Arqueologia e História de uma me- História (séculos VIII-XIII). Dissertação de
de um Ribat / Musalla na Vila do Torrão / Alcá- dina do Garb al-Andalus (séculos VIII-XIII). Doutoramento em História – Especialidade de
cer do Sal. I parte (e II parte). Em linha: Lisboa: C. M. Alcácer do Sal / IPM. Arqueologia, Universidade Nova de Lisboa.
http://arqueo-alcacer. blogspot.com (consulta- CASTRILLO MÁRQUEZ, Rafaela (1997) – “Institu- Lisboa, 5 Volumes (policopiado).
do em 08-06-2007. Anulado, para dar lugar a ciones Políticas”. In VIGUERA MOLINS 1997a: GOMES, Rosa Varela e GOMES, Mário Varela,
presente estudo). 129-145. (2007a) – “Ambiente Natural e Complexo Edi-
CARVALHO, A. Rafael (2006b) – “A Representação CHORÃO, Maria José M. Bigotte (2000) – “Con- ficado”. In Ribāt da Arrifana. Cultura Mate-
Iconográfica do Senhor dos Mártires e Alcácer ventos”. In Dicionário de História Religiosa rial e Espiritualidade. Aljezur, pp. 51-64
do Sal no Século XIII”. Neptuno. ADPA. 8: 6-9. de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores. Volu- GOMES, Rosa Varela e GOMES, Mário Varela,
CARVALHO, A. Rafael (2006c) – “O Santuário do me C-I, pp. 19-25. (2007b) – “Quotidiano, Religião e Guerra San-
Senhor dos Mártires em Contexto Islâmico: COSTA, P. António Carvalho da (1708) – Coro- ta”. In Ribāt da Arrifana. Cultura Material e
alguns elementos para o seu estudo”. Neptuno. grafia Portuguesa e Descripçam Topográfica Espiritualidade. Aljezur, pp. 65-81.
ADPA. 7: 4-6. do Famoso Reyno de Portugal. Tomo segundo, GUTIÉRREZ LLORET, Sonia (2004) – “El Ribāṭ
CARVALHO, A. Rafael (2007a) – “A Torre Medie- Capitvlo VI, “Da Villa do Torrão”, pp. 484- Antes del Ribāṭ: el contexto material y social
val de Santa Catarina de Sítimos: elementos -486. del ribāṭ antiguo”. In AZUAR RUIZ 2004: 73-87.
para o estudo do sistema defensivo de Alcácer CRESSIER, Patrice (2004) – “De un Ribāṭ a Otro: HENRIQUES, António Castro (2003) – A Conquis-
do Sal em contexto almóada”. Al-Madan On- una hipótesis sobre los ribāṭ-s del Magrib al- ta do Algarve (1189-1249). Lisboa: Tribuna da
line / Adenda Electrónica. IIª Série. 15: XII. -Aqṣà (siglo IX-inicios del siglo XI)”. In AZUAR História.
CARVALHO, A. Rafael (2007b) – “AL QASR: a RUIZ 2004: 203-221. HUICI MIRANDA, Ambrosio (1945) – “Los Almo-
Alcácer do Sal islâmica”. In Roteiro – Cripta FARIA, João Carlos (2002) – Alcácer do Sal ao hades en Portugal”. In Anais da Academia
Arqueológica do Castelo de Alcácer do Sal. Tempo dos Romanos. Lisboa: Ed. Colibri / C. Portuguesa de História. Vol. V, pp. 11-74.
Lisboa: IGESPAR, pp. 43-56. M. Alcácer do Sal. HUICI MIRANDA, Ambrosio (1956) – Historia Po-
CARVALHO, A. Rafael (2007c) – “Alcácer: Alcácer FELIPE, Helena de (1997) – “Componentes de la lítica del Imperio Almohade. Tetuan. Primera
do Sal medieval e cristã”. In Roteiro – Cripta Población. Categorias. La familia”. In VIGUE- Parte.
Arqueológica do Castelo de Alcácer do Sal. RA MOLINS 1997a: 343-381. HUICI MIRANDA, Ambrosio (1957) – Historia Po-
Lisboa: IGESPAR, pp. 57-68. FERNANDES, Hermenegildo (2000) – Entre Mou- lítica del Imperio Almohade. Tetuan. Segunda
CARVALHO, A. Rafael (2008a) – “Alcácer do Sal no ros e Cristãos: a sociedade de fronteira no Su- Parte.
Final do Período Islâmico (séculos XII-XIII): doeste peninsular interior (séculos XII-XIII). HUICI MIRANDA, Ambrosio, ed. e trad. (1953) –
novos elementos sobre a 1ª conquista portu- Dissertação de Doutoramento apresentada à Fa- Al-Bayān al-Mugrib fi ijtiṣār ajbār muluk al-
guesa”. Colecção Digital - Elementos para a culdade de Letras da Universidade de Lisboa -Andalus wa al-Magrib. Tetuan. Tomo I (“Los
História do Município de Alcácer do Sal. 1. Em (policopiado). Almohades”).
Linha: http://www.cm-alcacerdosal.pt/PT/ FERNANDES, Hermenegildo (2005) – “Quando o INSOLL, Timothy (1999) – The Archaeology of
Actualidade/Publicacoes/Paginas/Estudosdo Além-Tejo Era «Fronteira»: Coruche, da mili- Islam. Oxford.
GabinetedeArqueologia.aspx. tarização à territorialização”. In As Ordens Mi- JUEZ JUARROS, Francisco (1999) – Símbolos de
CARVALHO, A. Rafael (2008b) – “Torrão do Alen- litares e as Ordens de Cavalaria na Cons- Poder en la Arquitectura de al-Andalus. Tese
tejo: breve resenha histórica sobre romaniza- trução do Mundo Ocidental. Lisboa: Ed. Coli- de Doutoramento, apresentada à Universidade
ção e islamização”. Colecção Digital - Elemen- bri / C. M. Alcácer do Sal, pp. 451-483 (Actas Complutense de Madrid. 3 vol. (policopiado).
tos para a História do Município de Alcácer do do IV Encontro sobre Ordens Militares). KENNEDY, H. (1999) – Os Muçulmanos na Penín-
Sal. 2 (I Parte), pp. 8-50. Em linha: http:// FIERRO, Maribel (1997) – “La Religión”. In VI- sula Ibérica: história política do al-Andalus.
www.cm-alcacerdosal.pt/PT/Actualidade/ GUERA MOLINS 1997a: 437-546. Lisboa.
Publicacoes/Paginas/EstudosdoGabinetedeAr FONSECA, Fernando Venâncio Peixoto da (1988) KHAWLI, A. (1997) – “La Famille des Banu Wazir
queologia.aspx. – “Crónica da Conquista do Algarve”. Boletim dans le Garb d’al-Andalus aux XII et XIII
al-madan
XII online
adenda
25 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Siécles”. Arqueologia Medieval. Porto. 5: 103- PAIXÃO, A. Cavaleiro; FARIA, J. Carlos e CARVA- Colóquio “Lisboa: Encruzilhada de Cristãos,
-115. LHO, A. Rafael (1994) – “O Castelo de Alcácer Judeus e Muçulmanos”, 1997).
KHAWLI, A. (2001) – “Le Garb d’al-Andalus à do Sal: um projecto de arqueologia urbana”. In SILVA, C. Tavares da e SOARES, Joaquina (1986) –
l’Époque des Secondes Taifas (539-552/1144- Actas do II Encontro de Arqueologia Urbana. “Intervenção Arqueológica na Vila do Torrão”.
-1157)”. Arqueologia Medieval. Porto. 7: 23-35 Braga, pp. 215-264. In Actas do I Encontro Nacional de Arqueo-
(Actas do Colóquio “Lisboa: Encruzilhada de PAIXÃO, A. Cavaleiro; FARIA, J. Carlos e CARVA- logia Urbana (Setúbal 1985), pp. 103-114.
Cristãos, Judeus e Muçulmanos”, 1997). LHO, A. Rafael (2001) – “Contributo para o VALERIAN, D. (2003) – Frontières et Territoire dans
LEAL, Pinho (1880) – “Torrão”. In Portugal Anti- Estudo da Ocupação Muçulmana no Castelo le Maghreb de la Fin du Moyen Age: les mar-
go e Moderno. Volume Nono, pp. 595-598. de Alcácer do Sal: o Convento de Aracoelli”. ches occidentales du sultanat hafside. Em linha:
LEWIS, Bernard (2001) – A Linguagem Política Arqueologia Medieval. Porto. 7: 197-209 (Actas www.irmcmaghreb.org (consultado em 2005).
do Islão. Lisboa: Ed. Colibri. do Colóquio “Lisboa: Encruzilhada de Cris- VEGA MARTÍN, M. e PEÑA MARTÍN, S. (2003) –
MANZANO RODRÍGUEZ, Miguel Ángel (1992) – La tãos, Judeus e Muçulmanos”, 1997). “El Hallazgo de Monedas Almohades de Prie-
Intervención de los Benimerines en la Penínsu- PAIXÃO, A. Cavaleiro; FARIA, J. Carlos e CARVA- go de Córdoba: aspectos ideológicos”. Antiqvi-
la Ibérica. Madrid: Ed. CSIC. LHO, A. Rafael (2002) – “Aspectos da Presença tas. 15: 73-78.
MARÍN, Manuela (1997) – “La Vida Cotidiana”. Almóada em Alcácer (Portugal)”. In Mil anos VENTURA, Leontina (2006) – D. Afonso III. Lis-
In VIGUERA MOLINS 1997a: 385-433. de Fortificações na Península Ibérica e no boa: Círculo dos Leitores / Centro de Estudos
MARÍN, Manuela (2004) – “La Práctica del Ribāṭ Magreb (500-1500). Lisboa: Ed. Colibri / C. dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa
en al-Andalus (ss. III-V/IX-XI)”. In AZUAR M. Palmela, pp. 369-383 (Actas do Simpósio (Col. Temas e Debates).
RUIZ 2004: 192-201. Internacional sobre Castelos, Palmela). VIGUERA MOLINS, M. J. (1992) – Los Reinos Tai-
MARTINÉZ ENAMORADO, Virgílio (1998) – “La PEREIRA, M. T. Lopes (1996) – “Memórias fas y las Invasiones Magrebíes. Col. MAPFRE.
Terminología Castral en el Territorio de Ibn Cruzadísticas do Feito da Tomada de Alcácer VIGUERA MOLINS, M. J. (1995) – “De las Taifas
ḤafṢūn”. In Actas do I Congreso Internacional (1217) (com base no Carmen de Gosuíno)”. In al Reino de Granada: al-Andalus (siglos XI-
Fortificaciones en al-Andalus, 1996. Algeci- Actas do 2º Congresso Histórico de Guima- XV)”. Historia. 16.
ras, pp. 33-78. rães. Vol. 2, pp. 319-358. VIGUERA MOLINS, M. J., coord. (1997a) – “El Re-
MARTÍNEZ SALVADOR, Carmen (2004) – “Sobre PEREIRA, Manuela (2004) – “Montemor/o/Novo troceso Territorial de al-Andalus. Almorávides
la Entidad de la Rábita Andalusí Omeya. Una – castelo”. In Levantado do Chão. Montemor- y Almohades. Siglos XI al XIII”. In MENÉNDEZ
cuestión de terminologia: ribāṭ, rábita y -o-Novo: C. M. Montemor-o-Novo. PIDAL, Ramón (dir.). Historia de España. Vol.
zāwiya”. In AZUAR RUIZ 2004: 173-189. PÉREZ ALVAREZ, M. Ángeles (1992) – Fuentes VIII/**. Madrid: Espasa Calpe.
MATTOSO, José (2007) – D. Afonso Henriques. Árabes de Extremadura. Ed. Universidad de VIGUERA MOLINS, M. J. (1997b) – “Historia Polí-
Lisboa: Círculo dos Leitores / Centro de Estu- Extremadura. tica”. In VIGUERA MOLINS 1997a: 41-123.
dos dos Povos e Culturas de Expressão Portu- PICARD, C. (2000) – Portugal Musulman (VIII- VIGUERA MOLINS, M. J. (1997c) – “Historiogra-
guesa (Col. Temas e Debates). -XIII siécles): l’occident d’al-Andalus sous do- fia”. In VIGUERA MOLINS 1997a: 3-37.
MAZZOLI-GUINTARD, Christine (2000) – Ciuda- mination islamique. Paris. VILAR, Hermínia Vasconcelos (2005) – D. Afon-
des de al-Andalus: España y Portugal en épo- RIUS, Mònica (2000) – La Alquibla en al-Anda- so II. Lisboa: Círculo dos Leitores / Centro de
ca musulmana (s. VIII-XV). Ed. Almed. lus y al-Magrib al-AqṢà. Barcelona. Estudos dos Povos e Culturas de Expressão
MOLINA LÓPEZ, Emilio (1997) – “Economía, RIUS, Mònica (2004) – “La Alquibla de las Mez- Portuguesa (Col. Temas e Debates).
Propiedad, Impuestos y Sectores Productivos”. quitas en al-Andalus: el caso de Guardamar”.
In VIGUERA MOLINS 1997a: 213-300. In AZUAR RUIZ 2004: 147-152.
MOLINA MARTÍNEZ, Luis (1997) – “Instituciones RODRÍGUEZ MEDIANO, Fernando (1997) – “Insti- Documentário televisivo
Administrativas: vizires y secretarios”. In VI- tuciones Judiciales: cadíes y otras magistratu- sobre a muṣalla
GUERA MOLINS 1997a: 149-167. ras”. In VIGUERA MOLINS 1997a: 171-186.
OLIVEIRA, Luís Filipe (2006) – “Caminhos da ROLDÁN CASTRO, Fátima (2004) – “El Paisaje An- RTP 2, Programa A Fé dos Homens, no espaço
Terra e do Mar no Algarve Medieval”. In Actas dalusí: realidad histórica y construcción cul- da responsabilidade da Comunidade Islâmica
do Encontro “As Vias do Algarve”. S. Brás de tural”. In Paisaje y Naturaleza en Al-Andalus, de Portugal.
Alportel, pp. 22-28. pp. 19-65. Colaboração do Município de Alcácer do Sal,
PADILLA, Lorenzo (2006) – “El Ribat: institución SALAMECH, Ibrahim M. O. (2001) – Bāb al-Šarī´a. Gabinete de Arqueologia. Setembro de 2008,
espiritual y militar”. Arqueología Medieval. Com. In Actas do 3º Congresso de Arqueologia Pe- emitido durante o Mês do Ramadão. Em linha:
Em linha: http://www.arqueologiamedieval.com/ ninsular. Braga. Vol. 7, pp. 319-346. http://tv1.rtp.pt/multimedia/index.php?pag
articulos/articulos.asp?id=75 (consultado a 30- SIDARUS, A. (1996) – “Novas Perspectivas Sobre URL=arquivo&tvprog=1115&idpod=17609&
-03-2006). o Garb al-Andalus no Tempo de D. Afonso formato=flv&pag=arquivo&pagina=0&data_
PAIXÃO, A. Cavaleiro e CARVALHO, A. Rafael Henriques”. In Actas do 2º Congresso Históri- inicio=&data_fim=&prog=1115&quantos=
(2001) – “Cerâmicas Almóadas de al-Qasr al- co de Guimarães. Vol. 2, pp. 247-270. 10&escolha.
-Fath”. In Actas do Encontro sobre Cerâmicas SIDARUS, A. e REI, A. (2001) – “Lisboa e o seu
Muçulmanas do Garb al-Andalus. Lisboa: IPPAR Termo Segundo os Geógrafos Árabes”. Ar-
/ Junta de Extremadura, pp. 198-229. queologia Medieval. Porto. 7: 37-72 (Actas do
PUBLICIDADE

AGENDA ONLINE toda a informação...


... à distância de alguns toques

disponível em http://www.almadan.publ.pt
al-madan
online XII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 26 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica
a
Os Sítios do r e s u m

Apresentação dos vestígios do


Paleolítico médio conhecidos
o

na margem esquerda do estuá-

Paleolítico Médio rio do Tejo, incluindo a zona


ribeirinha dos concelhos de
Almada (Setúbal) a Benavente
(Santarém).

na Margem Esquerda
p a l a v r a s c h a v e

Paleolítico médio.

do Estuário do Tejo a b s t r a c t

Presenting the known Middle


Palaeolithic remains found on
the left bank of the River
Tagus, including the riverside
a realidade arqueológica conhecida areas of the Almada (Setúbal)
to Benavente (Santarém) muni-
cipalities.

k e y w o r d s
Rui Miguel Batista Correia
Arqueólogo Middle Palaeolithic.

r é s u m é

realização deste artigo teve como pro- das, e oscilavam pelos territórios de acordo com os Présentation des vestiges du

A pósito dar a conhecer a realidade do Pa-


leolítico Médio na Margem Esquerda
do Estuário do Tejo, mais concretamente dos sítios
recursos naturais existentes. Por este facto, percebe-
mos que os nossos antepassados não tinham a noção
de habitação, de casa, como actualmente temos.
Paléolithique moyen connus
sur la rive gauche de l’estuaire
du Tage, incluant la zone rive-
raine des communes allant
d’Almada (Setúbal) à Benavente
arqueológicos conhecidos entre a faixa do concelho Estas populações optavam por residir em locais
de Almada e o concelho de Benavente. de acordo com vários critérios: espaços que os pro- (Santarém).
Relativamente a estes, podemos começar por re- tegessem do ataque de animais, locais próximos dos m o t s c l é s
ferir que o seu conhecimento diverge de área para cursos de água, locais próximos das matérias-primas
área, ou seja, existem zonas onde os trabalhos de in- que utilizavam para a fabricação de utensilagem e, Paléolithique moyen.
vestigação permitiram apresentar-nos vários sítios, por fim, espaços que os abrigassem de intempéries
ao passo que noutras esses estudos ainda não foram climatéricas. Todos estes critérios estavam interliga-
realizados. É com base na interpretação de todas es- dos entre si, mas a escolha entre locais abrigados ou
tas informações recolhidas, que foi realizado este ar- ao ar livre dependia bastante da própria noção de ne-
tigo. cessidades dos grupos existentes.
Assim como noutras regiões do nosso país, esta Assim, é possível que tenham coabitado nesta
faixa costeira, estrategicamente colocada entre dois faixa costeira grupos de indivíduos que optaram por
estuários de grandes dimensões (Estuário do Tejo e residir junto ao rio Tejo, e outros por viver em pe-
Estuário do Sado) e um parque natural de vastíssima quenos abrigos ou grutas mais distantes do rio.
qualidade ecológica (Parque Natural da Arrábida),
foi ocupada pelos nossos antepassados da forma Passando agora aos sítios conhecidos, iremos
mais adequada à exploração dos recursos naturais apresentá-los do litoral para o interior, enquadrando-
existentes, podendo ter-se estendido temporalmente -os nos vários municípios existentes nesta faixa
entre 100 000 e 30-28 000 anos antes da nossa Era. costeira (Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo,
Esta ocupação terá resultado num povoamento Alcochete e Benavente).
de dois tipos: em grutas / abrigos rochosos ou em lo- Relativamente aos sítios conhecidos na área do
cais ao ar livre. Em ambos tipos de localizações, na concelho de Almada, podemos destacar cinco locais:
maioria dos casos, estas ocupações poderão ter cor- Quinta de São Gabriel, Castro do Forte das Alpenas,
respondido a períodos curtos e ocupações faseadas, Ponta do Cabedelo, Ramalha II e Fonte da Telha
uma vez que estas populações eram bastante nóma- (Sul).
al-madan
XIII online
adenda
1 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

O sítio da Quinta de São Gabriel localiza-se na O sítio da Ramalha II situa-se na freguesia da


freguesia da Caparica, mais propriamente numa cas- Cova da Piedade e, no ano de 1976, o Museu de Ar-
calheira ali existente. No passado foram realizados queologia e Etnografia do Distrito de Setúbal e o
trabalhos nesta área, tendo sido possível identificar Centro de Arqueologia de Almada realizaram neste
inúmeros seixos à superfície. Quanto a estes, desta- local trabalhos arqueológicos. Concluiu-se que os ma-
camos dois núcleos de quartzito, com restos de cór- teriais não estariam in situ, mas dispersos em resul-
tex de tipo Mustierense; uma lasca de quartzito com tado de vários arrastamentos. O espólio foi dividido
o talão preparado para a debitagem, de grandes di- entre o Paleolítico Médio e o Epipaleolítico, sendo os
mensões; um calhau raspador em quartzito com si- materiais do primeiro período nitidamente do com-
nais de lascamento e uso; e, por fim, um núcleo de plexo Mustierense, e os do segundo do complexo
sílex de técnica levallois, de tipo radial a pender para Languedocense. A maioria das peças era em quartz-
o piramidal. ito, existindo ainda algumas em sílex e em quartzo
O sítio do Castro do Forte das Alpenas localiza- leitoso. Deste conjunto destacaria apenas as lascas
-se na freguesia da Caparica, numa arriba miocénica de quartzito de tipo Mustierense com plano de per-
de uma cascalheira plio-plistocénica. Os trabalhos cussão preparado; dez lascas de quartzito de tipo
aqui realizados permitiram a identificação de inúme- Mustierense sem plano de percussão preparado; qua-
ros materiais enquadráveis nos complexos Acheu- tro lascas de quartzito de forma “rectangular” com o
lense e Mustierense. Neste conjunto, podemos des- lado esquerdo afeiçoado; uma lasca em sílex de for-
tacar um núcleo em quartzito com o talão de forma ma rectangular truncada; uma lasca em sílex suboval
radial de características mustierenses; um calhau ras- com retoque abrupto; um raspador em quartzito
pador em quartzito de características acheulenses; Languedocense; e uma ponta levallois em quartzito.
um raspador em quartzito, com talhe bifacial de tipo Por fim, o sítio da Fonte da Telha (Sul) localiza-
Acheulense; e um raspador em quartzito, com talhe -se na freguesia da Caparica e aí foram identificados
bifacial de tipo Acheulense. materiais do Acheulense Médio e Superior.
O sítio da Ponta do Cabedelo localiza-se na fre-
guesia da Caparica e foi descoberto no ano de 1942 No que respeita ao concelho do Seixal, até ao
por G. Zbyszewski e H. Breuil. Neste local foram momento não foi possível identificar quaisquer sítios
recolhidas aproximadamente 600 peças, na sua com características do Paleolítico Médio.
maioria em quartzito, mas também algumas em sílex
e jaspe. Após a observação dos mesmos, os investi- Passando agora ao município do Barreiro, co-
gadores concluíram que poderiam ser divididos em nhece-se um local com características de Paleolítico
duas séries: a série A, com os materiais mustierenses Médio. Recebeu a denominação de Ponta da Passa-
com arestas desgastadas pelo vento, e a série B, com deira e está inserido numa zona arenosa na margem
materiais Languedocenses com arestas vivas. Poste- esquerda do Tejo. Este local foi alvo de trabalhos ar-
riormente, já no ano de 1976, o Centro de Arqueo- queológicos no verão de 1995 por parte da Dra. Joa-
logia de Almada promoveu um novo estudo destes quina Soares. Nestes, foi possível observar a presen-
materiais, tendo daí resultado uma nova divisão por ça de materiais do Paleolítico Médio na camada C.5,
séries: A série A apresentava materiais do Acheulen- com artefactos de sílex e quartzito, na maioria núc-
se superior, a série B materiais Languedocenses pu- leos, lascas e denticulados.
ros, a série C materiais Languedocenses Mustieren-
ses, a série D materiais Languedocenses Tayacenses, No município do Montijo, foi possível identifi-
e a série E materiais do Eneolítico. car cinco locais com características enquadráveis no
Paleolítico Médio.
O primeiro situa-se na freguesia de Canha e de-
nomina-se Courela dos Mendes. Forneceu inúmeras
lascas, núcleos, restos de talhe e utensílios de quart-
zito, tendo os investigadores concluído que se pode-
rá tratar de um sítio de ocupação ao ar livre.
O segundo local denomina-se Monte do Conta-
dor e localiza-se na freguesia de Canha. Trata-se de
um sítio de ocupação ao ar livre com indústria lítica,
na sua maioria em quartzito, onde podemos identi-
ficar lascas, núcleos e restos de talhe.
O terceiro denomina-se Quinta da Lançada e si-
tua-se na freguesia do Afonsoeiro. Neste sítio foi
possível identificar várias lascas, núcleos e restos de
talhe, na sua maioria em quartzito e sílex, tendo sido
caracterizado como um sítio de ocupação ao ar livre.
al-madan
online XIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
O quarto denomina-se Espinhosa e localiza-se Samouco, com materiais atribuíveis ao Acheulense
na freguesia de Sarilhos Grandes. É um sítio de ocu- Antigo, Superior e ao Mustierense; o sítio do Alto da
pação ao ar livre, com uma indústria lítica de quart- Pacheca, na freguesia de São Francisco, com materi-
zito e sílex onde abundam as lascas, os núcleos e os ais de superfície atribuíveis ao Acheulense médio e
restos de talhe. superior, ao Mustierense e ao Languedocense; o sítio
E, por último, no interior da Base Aérea do Mon- das Salinas de Camarate, na freguesia de Alcochete,
tijo, freguesia do Montijo, há um local identificado com seixos rolados do Acheulense médio e superior
originalmente por António Gonzalez e posterior- e do Languedocense; o sítio de Batel, na freguesia de
mente alvo de trabalhos por parte do Dr. João Luís Alcochete, identificado por H. Breuil e G. Zbyszew-
Cardoso e de G. Zbyszewski. Tem uma indústria líti- ski, com seixos à superfície do Acheulense antigo,
ca enquadrável nos complexos Acheulense e Mustie- médio e superior, do Mustierense e do Langue-
rense. Relativamente ao primeiro, temos exemplares docense; o sítio do Moinho da Costa, na freguesia de
de bifaces, picos, lascas e núcleos de quartzito, ao Alcochete, com seixos à superfície atribuíveis ao
passo que no segundo encontramos exemplares de Acheulense superior, Mustierense e Languedocense;
utensílios, núcleos e lascas de quartzito e sílex. e, por fim, na área do espaço comercial Freeport.
No município de Alcochete foi possível identi- Neste local, realizaram-se trabalhos arqueológicos
ficar dois locais integráveis no Paleolítico Médio onde se recolheu uma indústria lítica maioritaria-
(sítios da Conceição e da Cascalheira), bem como mente em quartzito e sílex, com lascas, núcleos, sei-
outros com materiais pertencentes a este período, xos talhados, raspadores, raspadeiras, esquírolas e
mas também ao Paleolítico Inferior e ao Epipaleo- restos de talhe.
lítico.
O sítio da Conceição situa-se na freguesia de No município de Benavente, temos vários sítios
São Francisco e foi detectado nos estudos de impacte enquadráveis no Paleolítico Médio, mas igualmente
ambiental da construção da Ponte Vasco da Gama. outros locais cujo enquadramento foi feito em asso-
Neste local, foram realizados trabalhos de escavação ciação entre o Paleolítico Inferior e o Paleolítico Mé-
de emergência, tendo resultado na recolha elevada dio.
de objectos líticos, na maioria seixos de quartzito e Quanto aos sítios enquadráveis apenas no Paleo-
quartzo, bem como ainda de uma percentagem redu- lítico Médio, temos um local na Herdade de Pancas,
zida de utensílios sobre lasca (denticulados, entalhes que se situa na freguesia de Samora Correia. A infor-
e raspadores). Gostaria ainda de destacar o facto dos mação sobre este local é muito escassa e encontra-se
investigadores terem concluído que se trataria de um na carta arqueológica de Benavente, onde se refere a
local de “fabrico”, devido à disposição espacial dos identificação de alguns seixos talhados.
materiais e à existência de imensos restos de talhe. Quanto ao segundo grupo de sítios, temos quatro
Quanto ao sítio da Cascalheira, localiza-se no locais nestas condições. O primeiro denomina-se
interior da Herdade da Barroca D’Alva, onde G. Carvoaria e localiza-se na freguesia de Santo Estê-
Zbyszewski, na década de quarenta do século XX, vão, onde se identificaram dois bifaces, alguns sei-
reconheceu uma indústria lítica rica em lascas, núc- xos talhados, núcleos e raspadores; o segundo deno-
leos em quartzito. Foi este investigador que, com mina-se Fornos da Telha e situa-se na freguesia de
Henri Breuil, identificou o local e procedeu à reco- Benavente, tendo sido recolhidos seixos talhados e
lha do espólio, dividindo-o em quatro séries: Acheu- lascas; o terceiro denomina-se Silha do Bicho e forne-
lense; Acheulo-Tayacense; Tayaco-Mustierense; ceu alguns bifaces, seixos talhados, lascas e um ras-
Mustiero-Languedocense. pador; por fim, um quarto denomina-se Audiência 1
Posteriormente, já em 2006, eu próprio, no âm- e situa-se na freguesia de Benavente. Recolheram-se
bito do trabalho de seminário da Licenciatura de bifaces, seixos e lascas de quartzito, sílex e quartzo
Arqueologia e Historia da Faculdade de Letras, pro- leitoso e hialino.
cedi ao estudo de parte dos materiais anteriormente
recolhidos, mais concretamente os núcleos discói- Em jeito de conclusão, podemos referir que esta
des. Relativamente a estes, podemos referir que o temática se encontra longe de estar esgotada, sendo
estudo teve como objecto uma amostragem de 47 importante incrementar os trabalhos em áreas onde o
núcleos, maioritariamente em quartzito, com alguns conhecimento de realidades do Paleolítico médio se-
em quartzo e sílex. Estes núcleos apresentavam, nu- ja reduzido ou mesmo inexistente.
ma percentagem elevada, levantamentos centrípetos
e, quanto à tipologia, encontram-se repartidos em
biconvexos unifaciais, biconvexos bifaciais e plano-
-convexos bifaciais, sendo os primeiros maioritários.
Os sítios arqueológicos onde se observaram ma-
teriais do Paleolítico Inferior, Médio e Epipaleolítico
são o sítio do Bairro da Esperança, na freguesia do
al-madan
XIII online
adenda
3 electrónica
a ARQUEOLOGIA
al-madan online | adenda electrónica

Bibliografia

BREUIL, H. e ZBYSZEWSKI, G. (1945) – “Contribution à l’É- RAPOSO, L. (1993b) – “O Paleolítico”. In História de


tude des Industries Paléolithiques du Portugal et de Portugal. Lisboa: Ediclube. Vol. 1, “O Começo”, pp. 21-
Leurs Rapports Avec la Geólogie du Quaternaire”. Co- -99.
municações dos Serviços Geológicos de Portugal. Lis- RAPOSO, L. (1995) – “Ambientes, Territórios y Subsis-
boa. Tomo XXVI, Vol. II, p. 662. tência en el Paleolítico Médio de Portugal”. Complutum.
CÂMARA Municipal do Barreiro (2000) – 1ª Jornadas Madrid. 6: 57-77.
Arqueológicas e do Património da Costa Ribeirinha Sul. RAPOSO, L. (1998) – O Sítio do Paleolítico Médio da
Actas. Conceição (Alcochete). Lisboa: Ed. CEMA.
CARDOSO, J. L. e MONJARDINO, J. (1976-77) – “Novas RAPOSO, L. (2000) – Balanço de um Século de Investiga-
Jazidas Paleolíticas dos Arredores de Lisboa”. Setúbal ção Arqueológica em Portugal. Lisboa.
Arqueológica. Setúbal. 2-3: 7-47. RAPOSO, L. e CARDOSO, J. L. (1997) – “Nota Preliminar
CARDOSO, J. L., ZBYSZEWSKI, G. e ANDRÉ, M. C. (1992) – Sobre os Trabalhos Arqueológicos Efectuados no Sítio
“O Paleolítico do Complexo Basáltico de Lisboa”. Es- do Paleolítico Médio da Conceição”. Al-Madan. Alma-
tudos Arqueológicos de Oeiras. Oeiras. 3: 645. da. 2ª Série. 6: 5-13.
CARREIRA, J. R. e RAPOSO, L. (1994) – “Utensílios Sobre VASCONCELOS, J. L. (1885) – Portugal Pré-Histórico. Lis-
Lasca da Indústria do Paleolítico Médio do Sítio da boa: Ed. David Corazzi.
Cascalheira (Benavente)”. Al-Madan. Almada. IIª Série. ZBYSZEWSKI, G. (1946) – “Étude Géologique de la Région
3: 22-29. d’Alpiarça”. Comunicações dos Serviços Geológicos de
FIGUEIREDO, S. e VEIGA, N. (2005) – “Intervenção Arqueo- Portugal. Lisboa. Tomo XXVII, pp. 145-268.
lógica no Freeport Alcochete: apresentação de dados ZBYSZEWSKI, G. e CARDOSO, J. L. (1978) – “As Indústrias
preliminares”. In II Seminário de Paleontologia e Ar- Paleolíticas de Samouco e Sua Posição Dentro do Con-
queologia do Estuário do Tejo (Sacavém). junto Quaternário do Baixo Tejo”. Comunicações dos
RAPOSO, L. (1993a) – “O Paleolítico Médio”. In O Qua- Serviços Geológicos de Portugal. Lisboa. Tomo LXIII,
ternário em Portugal: balanço e perspectivas. Lisboa: pp. 567-609.
Ed. APEQ e Colibri, pp. 147-161.

PUBLICIDADE

toda a informação...
... à distância de alguns toques

Índices completos Como encomendar


Resumos dos principais artigos Como assinar
Onde comprar Como colaborar

ADENDA ELECTRÓNICA AGENDA ONLINE


mais conteúdos... reuniões científicas | acções de formação
... o mesmo cuidado editorial novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt

al-madan
online XIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica
o
A Relação entre o r e s u m

Balanço da primeira década de


o

funcionamento do Parque Ar-

Parque Arqueológico queológico do Vale do Côa (Vi-


la Nova de Foz Côa, Guarda),
no que respeita à sua relação
com as comunidades locais.
Incluída na Lista do Património

do Vale do Côa e a
Mundial desde 1999, a arte pa-
leolítica do Côa justificou a cria-
ção de uma estrutura de ges-
tão, de que se avaliam os resul-
tados positivos e as insuficiên-
cias.

População Local p a l a v r a s c h a v e

Arte rupestre; Vale do Côa;


Gestão do Património; Socie-
dade.
balanço da primeira década
a b s t r a c t
por António Pedro Batarda Fernandes, Marta Mendes, Luís Luís, Thierry Aubry, Account of the first decade of
Jorge Sampaio, Rosa Jardim, Dalila Correia, Ângela Junqueiro, Delfina Bazaréu, Fernando Dias e Pedro Pinto the Côa Valley Archaeological
Park (Vila Nova de Foz Côa,
Parque Arqueológico do Vale do Côa. Guarda) with regard to its rela-
tionship with local communi-
ties.
The Palaeolithic Art of the Côa
Valley was recognised as
World Heritage in 1999. This
Introdução led to the creation of a man-
agement structure whose
Parque Arqueológico do Vale do Côa Existindo inúmeras referências na bibliografia

O
strengths and weaknesses are
(PAVC) comemorou em Agosto de 2008 respeitantes a este assunto, deixamos aos leitores que assessed by the author.
o seu décimo segundo ano de existência. assim o desejarem artigos que poderão fornecer lei-
k e y w o r d s
Devido ao ambiente controverso que esteve na gé- turas mais aprofundadas sobre o tema (BAPTISTA e
nese do Parque, a sua relação com a comunidade lo- FERNANDES 2007; LIMA 2007; LUÍS 2000; ZILHÃO Rupestral art; Côa Valley;
cal foi sempre algo problemática, como um dos auto- 1998). Estes, bem como outros artigos sobre o Par- Heritage Management; Society.
res ilustrou noutra ocasião (FERNANDES e PINTO 2006). que e o Côa (arte, conservação, investigação do con-
Sendo que a polémica que rodeou a descoberta e texto arqueológico, etc.), estão disponíveis no sítio
preservação da arte rupestre do Côa e a criação do do PAVC na Internet, em www.ipa.min-cultura.pt/coa. r é s u m é
PAVC é ainda bastante recente, estando pois bastante Mais do que examinar a forma como a relação
fresca na mente dos leitores da Al-Madan, abster- entre o PAVC e a comunidade local evoluiu nesta últi- Bilan de la première décennie
-nos-emos de historiar aqui todos os acontecimentos ma década, o nosso objectivo primordial é o de dis- de fonctionnement du Parc
Archéologique de la Vallée du
relacionados com o caso do Côa. Será suficiente re- cutir aquilo que, a nível local e regional, se consti-
Côa (Vila Nova de Foz Côa,
ferir que, em 1996, o governo português da altura, tuíram como resultados positivos directamente im- Guarda), en ce qui concerne sa
agindo fundamentado no parecer de vários peritos putáveis à criação do PAVC. Algumas dos pontos fra- relation avec les communautés
nacionais e estrangeiros, decidiu não construir a bar- cos nesta relação, assim como esforços recentes para locales.
ragem da foz do Côa, criando o PAVC como estrutu- criar laços mais efectivos entre o Parque e a comu- Inclus sur la Liste du Patrimoi-
ne Mondial depuis 1999, l’art
ra responsável pela gestão, conservação e apresen- nidade local, serão também discutidos.
paléolithique du Côa a justifié
tação pública da arte rupestre do Côa e “sua” paisa- la création d’une structure de
gem. gestion, dont on évalue les ré-
A, quanto a nós, judiciosa decisão do governo por- 1. Avaliação dos benefícios sultats positifs et les insuffi-
tuguês foi plenamente ratificada quando a UNESCO, resultantes da criação do PAVC sances.
em 1998, decidiu incluir a Arte do Côa na exclusiva
m o t s c l é s
Lista do Património Mundial, no processo de classi- Ao considerarmos a relação entre o Parque e a
ficação mais célere de sempre daquela organização comunidade local, devemos sublinhar que a missão Art rupestre; Vallée du Côa;
(UNESCO 1999). do PAVC, tal como foi legalmente consignada no seu Gestion du patrimoine; Société.

al-madan
XIV online
adenda
1 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

diploma de criação, consistia na gestão, protecção e “Contrariamente às


apresentação pública dos sítios de arte rupestre do
Vale do Côa (Decreto-Lei n.º 117/97, de 14 de Maio).
A recente criação do IGESPAR revogou o Decreto-Lei
recorrentes apreciações
acima referido, sendo que a actual formulação legal
estabelece as responsabilidades de todos os serviços negativas que, de tempos
dependentes do novo organismo, nos quais o PAVC se
inclui, da seguinte forma: “recolher, investigar, sal- a tempos, aparecem na
vaguardar, valorizar e colocar à fruição pública os
testemunhos que, pela sua importância civilizacio-
nal, histórica, cultural, artística e estética, assumem
imprensa, [...] a criação
particular relevância para a afirmação da iden-
tidade colectiva” (n.º 2 do art.º 8.º do Decreto-Lei do Parque traduziu-se em
n.º 96/2007, de 29 de Março). Embora possam exis-
tir concepções diferentes sobre a forma de cumprir muitos resultados positivos
estes objectivos, a verdade inescapável é que o Par-
que é legalmente responsável pela sua persecução.
Contrariamente às recorrentes apreciações nega-
para a comunidade local,
tivas que, de tempos a tempos, aparecem na impren-
sa, emitidas por toda a espécie de “fazedores de opi- para a região e, globalmente,
nião” 1, cremos que a criação e existência do Parque
traduziu-se em muitos resultados positivos para a co- para Portugal.”
munidade local, para a região e, globalmente, para
Portugal. Por outro lado, existe bastante enraizada,
mesmo entre os arqueólogos nacionais 2, a convic-
ção de que o “Côa falhou”. Esta será daquelas frases
que por muito repetida passará a ser uma verdade in-
sofismável. Mas, se verificarmos os pressupostos des- O facto de estarem disponíveis inúmeros artigos
ta opinião, apercebemo-nos da sua injustiça para com sobre a arte do Côa no sítio do PAVC na Internet tam-
o PAVC, pois muitas vezes confunde-se a implantação bém não ajudará muito. O cenário parece nem ter
de políticas de desenvolvimento económico e social mudado com o aparecimento do blogue “Da Fini-
necessárias para alavancar uma região periférica e tude do Tempo” 3, onde António Martinho Baptista
deprimida como o Alto Douro e Baixo Côa com a ilustra a importância maior da arte do Côa de uma
1 Ver, para alguns exemplos mais
missão do Parque. Se bem que o Parque, na perse- forma didáctica e acessível. Mas será necessário, co-
antigos, FERNANDES (2003) e, como
exemplos mais recentes, os artigos
cução da sua missão, pode dar um contributo muito mo sugeriu um dos autores (Luís Luís) em mensa-
de opinião, que quase pareciam importante para o sucesso de tais políticas, o seu man- gem à Archport 4, recorrer à terapia de choque para
concertados, pois foram publicados dato legal passa exclusivamente pelo acima enuncia- obrigar as pessoas a ler e a ver, não para que se forme
com escassos dias de diferença do. Assim, se à luz do anterior e mesmo do actual uma convicção única, mas a que, pelo menos, as suas
tendo posições muito semelhantes, enunciado legal medirmos o sucesso do PAVC, verifi- opiniões sejam o melhor fundamentadas possível?
de Miguel Sousa Tavares (2008) e
de Helena Matos (2008).
ca-se que de facto a arte está protegida, os sítios de O nosso objectivo com este artigo não é, porém,
2 Ver debate “A Arqueologia em arte rupestre são geridos de forma coerente e conse- rebater todas estas opiniões negativas, mas sim o de
Revista – Porto (Tema 3: debate)”, quente, de forma a assegurar a sua preservação (no dar conta do que tem sido feito pelo PAVC no que se
disponível em http://almadanblog. que à acção antrópica diz respeito), sendo demanda- apelidou “o retorno social da Arqueologia”. Para
blogspot.com/2008/04/arqueologia- dos anualmente por milhares de visitantes (ver adi- além do mais, como neste domínio o julgamento
em-revista-porto-tema-3_16.html, ante). Um Programa de Conservação da arte rupestre sobre o Parque é de que também terá falhado na liga-
especialmente os pontos 4 e 7.
foi criado para planear e implementar acções de con- ção com a comunidade local 5, pretendemos descre-
Por outro lado, ver série de
mensagens à Archport no ínicio do servação dos painéis gravados em condições mais ver as estratégias implementadas, num clima social
Verão de 2008 como, por frágeis (FERNANDES 2004). Mais, a investigação ar- complexo, desde logo devido ao impacto da não
exemplo, http://ml.ci.uc.pt/ queológica, provou definitivamente a idade paleolíti- construção da barragem na economia local, para re-
mhonarchive/archport/ ca dos gravados mais antigos, identificando ainda forçar os laços entre o Parque e a população da re-
msg03924.html ou http://ml.ci.uc.pt/
vários sítios de habitat da mesma cronologia (AUBRY gião. Cremos que estas estratégias estão a começar a
mhonarchive/archport/msg
03859.html. e SAMPAIO 2008). Poderá dizer-se que falhou a divul- dar frutos, contribuindo decisivamente para que a
3 http://dafinitudedotempo. gação, especialmente junto do grande público. A comunidade local comece a sentir as gravuras como
blogspot.com/. exibição (repetida) de vários documentários sobre o suas. Ao mesmo tempo, a actividade do PAVC vem
4 http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/ Côa na televisão estatal não foi suficiente. Assim co- sendo encarada duma forma mais favorável, como
archport/msg03887.html. mo não terá sido suficiente a realização de muitas algo que proporciona à comunidade local mais-va-
5 Ver, a este propósito, de novo a exposições, palestras ou conferências sobre o Côa lias económicas, sociais e culturais, quer na vida do
nota 2. em vários pontos do país e do estrangeiro. dia-a-dia, quer no médio e longo prazo.
al-madan
online XIV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
“[...] as estratégias estão A grande maioria dos profissionais contratados
são indivíduos jovens provenientes da região. Jun-
a começar a dar frutos, tamente com a autarquia local e o agrupamento esco-
lar, o PAVC é um dos maiores empregadores locais na
área de actividade dos serviços. Para um município
contribuindo decisivamente como Foz Côa, localizado no interior português e
com um número total de habitantes de cerca de 7000
para que a comunidade local indivíduos (INE 2001), os postos de trabalho criados
pelo PAVC contribuem de facto para a economia local
comece a sentir as gravuras e para a fixação de residentes.
Com a criação do Parque assiste-se a um fluxo
importante de turistas à região que, ao visitarem os
como suas. Ao mesmo núcleos de arte rupestre abertos ao público, vieram
dar um contributo significativo ao desenvolvimento
tempo, a actividade do PAVC da economia local. Refira-se que até à abertura do
Museu do Côa, prevista para 2009, não será possível,
vem sendo encarada [...] devido a questões de conservação da arte rupestre e
do seu contexto paisagístico, mas sobretudo devido
a questões logísticas, ter no PAVC mais do que 20, 25
como algo que proporciona mil visitantes por ano (LIMA 2007), sendo que em
2007 o número total de visitantes foi de 16 592.
[...] mais-valias económicas, Contudo, os aproximadamente 180 000 turistas que
demandaram o Parque nos últimos onze anos 6 têm
sociais e culturais, quer na e tiveram um impacto expressivo na economia local
e regional. Com base no número total de visitantes
dos últimos onze anos, é possível concluir que, em
vida do dia-a-dia, quer no média, cerca de 45 visitantes demandam o Parque
6 De 12 de Agosto de 1996 até
diariamente 7. Se levarmos em conta que os visitan-
médio e longo prazo.” tes não locais terão de passar a noite e tomar as suas ao final de 2007, o número total
de bilhetes emitidos pelo PAVC é
refeições em Foz Côa ou na região e provavelmente de 182 500, na sua maioria pagos,
comprar alguma recordação, podemos tentar deter- embora verificando-se uma porção
minar o seu impacto na economia local e regional. considerável de entradas gratuitas,
Fazendo uma estimativa moderada, considerando nomeadamente as visitas escolares
que cada visitante despenderá a soma de 75 euros (dados fornecidos pelo
Departamento de Contabilidade
1.1. Benefícios Económicos por cada dia passado em Foz Côa (30 em alimenta- do PAVC).
ção, 30 em alojamento e 15 em recordações), obte- 7 Considerando que o PAVC está
Para a economia local, a continuação da cons- mos um valor entregue pelos visitantes à economia aberto 310 dias por ano, pois
trução da barragem de Foz Côa significaria a injec- local por cada dia que o Parque está aberto de 3375 encerra às segundas-feiras e nos
ção dum fluxo financeiro considerável, sobretudo na euros 8, anual de 1 046 250 euros 9 e total desde que dias de Natal, Ano Novo e do
área de actividade dos serviços (restaurantes, locais o PAVC foi criado de 11 508 750 euros 10. Não sendo Trabalhador. Não se consideraram
os anos bissextos. À estimativa
de pernoita e comércio em geral), devido ao número somas astronómicas, os valores acima referidos não
acima apresentada, que totalizaria
elevado de trabalhadores que demandariam Foz Côa, são apenas contribuições marginais para a frágil eco- cerca de 50 visitantes diários, foi
provenientes de outras regiões do país para comple- nomia local e regional. Mais, levando em considera- subtraído proporcionalmente o
tar a construção da barragem. Contudo, este cresci- ção que o aumento do número de turistas que visita- número de visitantes residindo a
mento económico teria um carácter algo ilusório já ram a região na última década motivou a melhoria da menos de uma hora de viagem de
Foz Côa, determinado em
que, após a conclusão da obra, praticamente todos oferta turística existente (criação de restaurantes de
inquéritos aos visitantes já
estes trabalhadores abandonariam a área em busca qualidade, de uma albergaria, da Pousada da Juven- realizados (ver FERNANDES 2003),
de trabalho noutras zonas de Portugal, pois poucos tude, de várias estruturas de turismo rural, lojas de bem como os alunos integrados
naturais da região trabalhariam na construção da bar- recordações e de produtos regionais, empresas de acti- em visitas de escolas locais.
ragem. Para além do mais, a barragem já em funcio- vidades lúdicas destinadas ao turistas, etc.), aperce- 8 45 visitantes x 75 euros.

namento necessitaria apenas de poucos empregados, bemo-nos que, além do investimento realizado, no- 9 3375 euros x 310 dias de
sendo ainda crível que, com a tendência de automa- vos postos de trabalho foram também criados. abertura anuais.
tização de estruturas deste tipo, não fosse requerido Na avaliação dos benefícios económicos não 10 1 046 250 euros x 11 anos.

qualquer trabalhador. A instituição do Parque permi- considerámos as somas despendidas pelos visitantes Por se constituírem como uma
estimativa, os valores apresentados
tiu a criação de 50 postos de trabalho (guardas dos na aquisição do bilhete (actualmente sete euros por
podem não reflectir exactamente,
núcleos de arte rupestre, guias, arqueólogos, pessoal pessoa e por núcleo) que dá direito à visita guiada do quer por defeito quer por excesso,
administrativo, etc.), embora sejam, hoje em dia, 45 PAVC aos três núcleos de arte rupestre abertos ao o contributo dos visitantes para a
os funcionários e colaboradores do Parque. público, ou na aquisição de merchandising oficial do economia local.

al-madan
XIV online
adenda
3 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

Parque. Contudo, este valor contribui para manter o quenas empresas; indivíduos com poder de decisão –
Parque em funcionamento, nomeadamente no que se se identifica com as gravuras e, mais significativa-
refere ao pagamento dos salários dos seus 45 cola- mente, quer ser associada à arte rupestre. É significa-
boradores e funcionários. Se consideramos que estas tivo notar que a imagem de marca do concelho dei-
pessoas fazem a sua vida em Foz Côa (alugaram ou xou de ser o javali Jabardolas (sendo agora o auroque
compraram residência, compram nas lojas locais, da rocha 3 da Penascosa) e que o slogan municipal
etc.), a sua contribuição para a economia local não “Capital da Amendoeira em Flor” foi substituído pe-
será completamente negligenciável. lo lema “Um concelho, dois patrimónios mundiais”
Deve-se ainda mencionar que desde a preserva- (Arte do Côa e Douro Vinhateiro – ver Fig. 2).
ção das gravuras e criação do PAVC, a zona de Foz
Côa tornou-se um destino privilegiado do chamado 1.3. Benefícios culturais
turismo científico. Assim, a realização de inúmeros
congressos, seminários ou workshops, alguns de di- A criação do Parque contribuiu para um aumen-
mensão internacional 11, em Vila Nova de Foz Côa to significativo da oferta cultural existente na região,
contribui também, a vários níveis, para o desenvol- desde logo pela simples existência das visitas
vimento regional. guiadas à arte rupestre do Vale do Côa, verdadeiro
De qualquer modo, se os benefícios económicos museu ribeirinho de arte ao ar livre. Para além do
não são despiciendos numa sociedade moderna, a mais, muitas vezes em parceria com as autarquias lo-
modernidade dessa mesma sociedade mede-se so- cais, o Parque organiza exposições de arte, colóquios
bretudo por benefícios de outro tipo, nomeadamente e vários workshops orientados para desenvolver
social ou cultural. competências locais, também no domínio cultural,
tais como sejam cursos de gastronomia típica, de
1.2. Benefícios sociais guias de arte rupestre e de outro Património local ou
de Arqueologia experimental (ver também 3.6).
De um modo geral, pode-se afirmar que o Patri- O Parque publica regularmente monografias so-
mónio e a sua preservação contribuem para o reforço bre o Património global da região, assim como guias
da coesão social, ao fornecer aos indivíduos de uma turísticos sobre a arte rupestre. Por outro lado, todos
dada sociedade um sentido de pertença e identidade os artigos científicos elaborados por colaboradores
singular num mundo moderno global cada vez idên- do PAVC sobre temáticas relacionadas com a arte do
tico. Isto acontece quando se estabelece alguma es- Côa e publicados em diversas revistas nacionais e es-
pécie de afinidade com as características tangíveis trangeiras da especialidade, estão disponíveis em li-
ou intangíveis de castelos, palácios, conventos, mos- nha no sítio do Parque na Internet acima referencia-
teiros, aldeias medievais, ruínas de Época Romana do. A criação do PAVC foi também importante para
ou, como no caso em apreço, gravuras rupestres pré- aumentar a atenção das populações locais para as
-históricas. Será já um lugar comum dizer-se que so- questões ligadas à preservação do Património cultu-
ciedades sem memória não têm futuro, pelo que nos ral e também natural, mas sobretudo à sobrevivência
parece que o valor social e cultural (mas também de parte da chamada “cultura popular” – antigas tra-
11 Como exemplo, refira-se o económico) do Património terá sido já apreendido dições artesanais como os muros de “pedra seca” ou
ultimo grande evento realizado, pela maioria da opinião pública nacional 12. a cerâmica de Santa Comba.
o HERITAGE 2008 No caso específico de Vila Nova de Foz Côa, as Para além disto, o PAVC tem colaborado, desde o
(www.heritage2008.greenlines- gravuras são já há algum tempo a marca da região, seu início, na organização de um conjunto de inicia-
institute.org), que em Maio de 2008 uma imagética e conceito que imediatamente identi- tivas culturais, como exposições de artes plásticas,
trouxe mais de 150 congressistas
de diversos países durante uma
fica e classifica Foz Côa como o local onde em Por- de fotografia, em colaboração com o Centro Portu-
semana a Vila Nova de Foz Côa. tugal existe arte pré-histórica, mas também como guês de Fotografia, e em colaboração com o Museu
12 Sobre este assunto, talvez seja destino turístico, como Património da Humanidade, do Douro. Por outro lado, organizaram-se também
interessante citar o Presidente da como local de forte identidade própria 13. É signi- dois ciclos de “Clarinetes à volta do Côa” e uma
República, Aníbal Cavaco Silva, ficativo verificar que, por toda a cidade de Vila Nova apresentação do “Barbeiro de Sevilha” na aldeia da
que, em Fevereiro de 2008, numa de Foz Côa, encontramos imagens das gravuras e re- Muxagata. Com estas iniciativas, o PAVC procura, à
iniciativa dedicada ao Património,
ferências a conceitos relativos ao imaginário de arte sua medida, contribuir para o aumento da iniciativa
declarou que “Portugal só será um
País verdadeiramente moderno se for rupestre. Exemplos são os logótipos de albergarias, cultural na região, bem como associar a arte do Côa
um País com memória” (SILVA 2008). nomes de restaurantes, a rotulagem e branding de vi- a outras manifestações artísticas contemporâneas.
13 Na definição dessa identidade nhos da Adega Cooperativa local (ver Fig. 1), a ima-
própria, a arte rupestre gem institucional da Câmara Municipal e da Escola 1.4. Benefícios para Portugal
desempenha um papel central. Secundária e os cartazes turísticos de acolhimento
É que barragens há muitas aos visitantes. Mais do que motivadas apenas por ra- Ao nível nacional, a preservação da arte do Côa
espalhadas pelo país fora;
sítios de valor patrimonial
zões puramente comerciais, estas associações com o e a criação do PAVC trouxe também alguns benefí-
reconhecidamente universal imaginário de arte rupestre provam que uma parte cios. Em primeiro lugar, devemos mencionar que a
são menos abundantes… influente da comunidade local – proprietários de pe- decisão sem precedentes de abandonar a construção
al-madan
online XIV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 1

Publicidade da Adega Cooperativa de Vila Nova de Foz Côa


aos seus vinhos “Gravuras do Côa”, “Vale Sagrado”, “Arte do
Côa” e “Paleolítico”, recorrendo à imagética de arte rupestre
do Côa.

de um grande e dispendioso investimento como a 2. Pontos fracos na relação Figura 2


barragem gerou grande reconhecimento interna- entre o PAVC e a comunidade local
Actual imagem institucional da
cional. Este reconhecimento resultou (também) na Câmara Municipal de Vila Nova de
inscrição do Vale do Côa na Lista do Património Em primeiro lugar, temos de considerar que, Foz Côa, como figura no seu
Mundial, até ao momento o único sítio arqueológico como resultado directo da atmosfera de controvérsia portal na Internet, aberto
português merecedor de tal distinção. Hoje em dia, o na qual o PAVC foi criado, existia algum ressentimen- precisamente na página em que é
Côa constitui-se como um importante ponto de refe- to e mesmo animosidade relativamente ao Parque referido o Parque Arqueológico do
Vale do Côa (http://www.cm-fozcoa.
rência no mundo da Arqueologia e um centro de in- por parte da população local, o que é perfeitamente pt/turismo/Paginas/parquearqueolo
vestigação procurado por especialistas internacio- compreensível se situado no seu devido contexto. gicodovaledocoa.aspx).
nais pela sua arte rupestre, pela sua gestão, protecção Vila Nova de Foz Côa localiza-se numa das áreas De notar a conjugação harmoniosa
e conservação. Embora poucos disso se apercebam menos desenvolvidas do interior português. Como e graficamente bem conseguida de
em Portugal, o Vale do Côa constitui-se como um será razoável afirmar, as zonas interiores de Portugal imagens dos dois Patrimónios
Mundiais que o concelho possui.
importante caso de estudo para todas as disciplinas vêm sendo, há já vários séculos, negligenciadas pe-
© Câmara Municipal de V. N. Foz Côa.
acima referidas. A exposição internacional favorável los sucessivos governos e regimes da nação, acanto-
resultante da decisão de preservar a arte rupestre nados que estão em Lisboa, junto ao mar. Quando,
também contribuiu para elevar o perfil internacional finalmente, a comunidade local estava a assistir a um
de Portugal, com evidentes benefícios para a indús- influxo económico imediato e avultado devido à
tria turística nacional. As actividades de investigação construção da barragem, testemunhando assim o
levadas a cabo pelo PAVC aprofundaram ainda o nos- desenvolvimento (momentâneo mas em concreto;
so conhecimento sobre a Pré-História portuguesa e ver 1.1) da região, a descoberta da arte rupestre e
europeia bem como, de uma forma mais geral, sobre subsequente ameaça de não edificação da barragem
a própria evolução humana. foram sentidas como um golpe devastador. No se-
Por outro lado, a batalha do Côa despoletou uma guimento da decisão de preservar a arte rupestre in
reorganização importante da Arqueologia em Por- situ e de criar o Parque, a comunidade local, mesmo
tugal, que alterou radicalmente o modo como a dis- que de forma algo inconsciente, encarou o PAVC co-
ciplina era entendida pelos poderes públicos e pela mo sendo este o substituto directo da barragem.
sociedade em geral. A Arqueologia é agora vista co- Isto é, considerava-se que o desenvolvimento eco-
mo um parceiro contributivo no que à gestão do ter- nómico que resultaria da construção da barragem de-
ritório diz respeito, participando, em pé de igualdade veria ser agora gerado, e no mais curto espaço de tem-
com outras disciplinas decisivas, nos processos de po possível, pela actividade do PAVC. Como foi aci-
impacte ambiental das grandes obras públicas ou, ma referido, a missão principal do PAVC não era de
em mais pequena escala, na gestão territorial realiza- natureza puramente económica, sendo portanto im-
da pelas autarquias. possível ao Parque assumir isoladamente esse papel.
al-madan
XIV online
adenda
5 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

Para além deste ambiente de controvérsia, outro uma taxa de aprovação total à volta de 90% por parte
dos factores que contribuiu para a atmosfera de dos visitantes inquiridos. Cerca de 95% dos mesmos
desconfiança de parte da população local em relação visitantes também recomendariam a visita ao PAVC a
ao PAVC foi a criação duma agência governamental amigos e familiares.
de desenvolvimento regional, o PROCÔA, instalado Numa primeira fase, a resposta do Parque foi a
no mesmo edifício em que a sede do Parque foi aco- de tentar ignorar o ambiente de controvérsia, tentan-
modada e ao mesmo tempo em que este foi criado. do assim deixar que o tempo ajudasse a fazer desa-
Embora fossem duas instituições completamente parecer a animosidade latente que existiu logo após
distintas e com missões diferentes, o PROCÔA e o a sua criação. Ao mesmo tempo, esperou-se que os
PAVC eram vistos pela população como sendo a mes- primeiros resultados da estratégia implementada de
ma entidade. Como um dos autores já referiu noutra preservação da arte rupestre, mas também de desen-
ocasião (FERNANDES 2003), o PROCÔA foi uma agên- volvimento sustentando, se tornassem palpáveis jun-
cia que desde o início se encontrou sem os fundos to da comunidade local (ver FERNANDES 2005).
suficientes para dar apoio aos inúmeros projectos Assim, nos primeiros anos de existência do
que a comunidade local e várias entidades regionais PAVC, o diálogo entre este e a comunidade, nomeada-
pretendiam levar a cabo. Esta foi uma situação que mente com as autoridades locais como a autarquia,
obviamente defraudou expectativas locais, compli- encontrava-se minado à partida pelas divergências e
cando ainda mais a relação entre o PAVC e a toda o ambiente de controvérsia que acima descrevemos,
comunidade, em virtude do carácter ambíguo, aos sendo, na maioria das ocasiões, bastante improduti-
olhos da população local, das duas instituições. vo. Ao adoptar uma posição muitas vezes descrita
Há ainda que reconhecer que existiram, logo como arrogante pela comunidade local, esta reagia
desde o início, problemas de comunicação entre o ao PAVC com alguma hostilidade, vendo os seus diri-
Parque e a comunidade local, motivados principal- gentes e técnicos como intelectuais metediços e vin-
mente por diferentes expectativas e concepções so- dos das grandes cidades para a província 15, onde
bre a arte rupestre, sua gestão e apresentação públi- pretendiam ensinar à população Fozcoense como es-
ca. Se, ainda como resultado da controvérsia “Barra- ta deveria viver a sua vida. O que de facto se passou
gem versus Preservação”, a comunidade local espe- é que, devido ao contexto da sua descoberta, a arte
rava ter benefícios mais tangíveis (económicos so- do Vale do Côa não foi valorizada pelos habitantes
bretudo) da existência do PAVC, também pretendia locais. A arte rupestre, fosse a paleolítica ou a produ-
que o Parque tivesse um outro papel no aumento da zida por moleiros ainda vivos, não era percebida co-
oferta turística da região. Enquanto que, para o PAVC, mo um elemento identitário da população local. Era
um sistema de visita pública equilibrado era vital pa- negligenciável face a um bem maior, uma grande
ra assegurar a existência continuada da arte rupestre obra pública. Foi maioritariamente por acção de um
no seu contexto paisagístico significante, uma maio- grupo externo, os arqueólogos dos grandes centros,
ria relevante da comunidade e actores locais qualifi- que este Património foi sentido como factor de iden-
cou o sistema de visita em vigor como demasiado tidade social (LUÍS e GARCÍA DÍEZ 2008).
restritivo, não satisfazendo assim as necessidades de De qualquer modo, e talvez em linha com a ava-
desenvolvimento turísticas e económicas da região. liação positiva do sistema de visita acima referida, o
Um das propostas de reformulação do sistema de facto é que os últimos anos testemunharam uma mu-
visita passaria pelo “sacrifício” de pelo menos um dança significativa na forma como o PAVC é encara-
dos núcleos de arte rupestre já visitáveis, ou seja, do pela comunidade local, nomeadamente no que se
pela sua abertura ao público sem qualquer restrição. refere ao seu papel na gestão dos sítios de arte rupes-
Na opinião dos autores, o PAVC deverá considerar tre, devida, em grande medida, à lenta mas consoli-
muito cautelosamente qualquer reformulação do sis- dada percepção dos benefícios que resultaram da
tema de visita, de forma a não pôr em causa a con- criação do PAVC que acima enunciámos. Se, por um
servação e autenticidade de valores culturais classi- lado, é expectável que noções de gestão sustentável
ficados com Património Mundial 14. do Património terão já começado a ser assimiladas
14 Para uma discussão
No que respeita ao sistema de visita restritivo em por uma parte significativa da comunidade local, pa-
aprofundada das questões
relacionadas com o sistema de
vigor (com um máximo de 130 visitantes diários), rece-nos contudo mais relevante ter a população fi-
visita em vigor no PAVC ver talvez seja apropriado mencionar aqui que este foi nalmente testemunhado o início das obras do Museu
FERNANDES (2003) e LIMA (2007). classificado muito favoravelmente pelos próprios vi- do Côa (ver Fig. 3), previsto já desde a candidatura
15 Chegando mesmo a ser sitantes do Parque. Resultados de um inquérito (não do Côa a Património Mundial. O Museu vai aumen-
descritos, num artigo publicado publicado) realizado em 2007 junto de uma amostra tar significativamente a capacidade de oferta turísti-
no jornal local O Fozcoense significativa dos visitantes do PAVC e coordenado por ca da região, tendo sido pensado para permitir aos
esclarecedoramente intitulado
dois dos autores (FERNANDES e JUNQUEIRO), reforça- visitantes uma introdução à arte rupestre do Vale do
“Para Quando um Processo de
Descolonização do Vale do Côa?”, ram as principais conclusões de inquéritos prévios Côa, nomeadamente com a exibição de réplicas de
como “aves de arribação” (FERNANDES 2003, LIMA e REIS 2001), mostrando painéis gravados, uma vez que os núcleos visitáveis
(MARÇAL 2004: 19). que a experiência de visita oferecida pelo PAVC tem deverão continuar a operar com o sistema restritivo
al-madan
online XIV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
de visita em vigor, embora com alguns ajustamentos. 3.1. Colaboração com outras Figura 3
Assim, será possível aumentar o número de visitan- instituições públicas locais e regionais
Imagem recolhida em Janeiro de
tes que demandam a região para contemplar as gra- 2007, aquando da cerimónia de
vuras, sem fazer perigar a preservação do Património Vários acordos e protocolos de colaboração fo- lançamento da primeira pedra do
não renovável de arte rupestre. Espera-se ainda que ram estabelecidos com instituições públicas locais e Museu do Côa, onde se observa o
o Museu seja uma âncora importante para o desen- regionais, tais como os serviços do Ministério da Agri- panorama que será possível
volvimento da região, ao gerar dinâmicas sócio-eco- cultura, com a delegação do Instituto do Emprego e desfrutar a partir do edifício.
nómicas potenciadoras dos recursos existentes. Formação Profissional (IEFP), ou com as delegações © Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento Regional do Centro.
regionais do antigo IPPAR de Castelo Branco e do
Porto. Exemplos das acções realizadas incluem a re-
3. Esforços recentes no aprofundamento cuperação do Património construído, a criação da ro-
da relação com a comunidade local ta de arte rupestre da Beira Interior, realização de
cursos de formação (ver 3.6) ou a criação de plata-
As actividades implementadas recentemente as- formas de gestão integrada do território do PAVC.
sentaram em três linhas de acção principais: (1) me-
lhorar a relação entre o Parque e outros serviços pú- 3.2. Colaboração com as autarquias locais
blicos da região; (2) entre o Parque e a comunidade
local; (3) estabelecer uma sólida ligação entre o Par- As parcerias com as autarquias locais, das quais
que e as escolas locais. A lista seguinte das activida- a Câmara de Vila Nova de Foz Côa foi a mais par-
des levadas a cabo foi extraída dos relatórios anuais de ticipativa, envolveram a realização de inúmeras acti-
actividade do PAVC, de 2005 a 2007. Embora tenhamos vidades e eventos, dos quais enumeraremos apenas
optado por apresentar estas actividades separadamen- alguns. Relevantes conferências científicas foram or-
te, muitas foram organizadas e realizadas graças à ganizadas. Ateliês de Arqueologia experimental foram
colaboração de várias entidades. Consequentemente, realizados em várias localidades (ver 3.7.3 e Fig. 4).
os exemplos fornecidos são os mais elucidativos das Sessões de esclarecimento tendo como alvo a popu-
actividades realizadas com a colaboração principal lação local sobre temáticas relacionadas com a ges-
das instituições enunciadas em cada cabeçalho. tão e preservação do património global do Vale do
al-madan
XIV online
adenda
7 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

nomeadamente no âmbito da criação de uma


Concessão de Pesca Desportiva no Douro e
Côa.
Foi também possível participar na organi-
zação de vários eventos culturais de expressão
regional, nacional e mesmo internacional, em
parceria com diversas ONG. A mais relevante
terá sido a IV Bienal Internacional de Gravura
do Douro, com sede no concelho de Alijó, mas
que na última edição teve uma extensão em
Vila Nova de Foz Côa, com uma exposição na
sede do PAVC, além duma outra mostra exclu-
sivamente dedicada à arte gravada do Côa.
Para além de inúmeros artistas internacionais,
esta bienal juntou exposições de Paula Rego,
um dos maiores nomes da actual pintura e
gravura europeia, com os anónimos paleolíti-
cos. Outras parcerias com associações como a
Associação para a Promoção da Arte e Cultura
do Vale do Côa e Douro Superior (APDARC), a
Figura 4 Côa foram efectuadas. Estas foram estruturadas de LuzLinar ou a Fundação Martins Sarmento permiti-
forma a possibilitar amplo debate, permitindo assim ram organizar outras exposições, workshops e even-
Uma das autoras (D. Bazaréu)
exemplifica a produção de
que as opiniões da comunidade local fossem levadas tos que aumentaram a divulgação da arte do Côa em
utensílios líticos perante uma em consideração no planeamento e implementação todo o País. Será também interessante referir o pro-
plateia de alunos do 1º Ciclo das políticas do PAVC. Inúmeras apresentações, ex- jecto musical Chukas. Este colectivo, que pretende
de Ensino, durante a realização posições de arte ou concertos de música foram tam- recriar música de tempos paleolíticos, verá a edição
de um Atelier de Arqueologia bém realizados na região. O Parque auxiliou ainda as do seu primeiro CD viabilizada pelo PAVC.
Experimental na cidade da Guarda.
administrações autárquicas na preparação de inter-
venções de conservação e requalificação de monu- 3.4. Organização de visitas para residentes locais
mentos locais, tais como igrejas e seu espólio, pe-
lourinhos ou aldeias de arquitectura tradicional. Foram criadas visitas especiais organizadas por
área de actividade, tendo como objectivo reforçar a
3.3. Colaboração com associações ligação da comunidade local com as gravuras. As-
não governamentais e privados sim, foram organizadas visitas especiais para os do-
nos, gerentes e empregados dos restaurantes locais,
Para além da colaboração activa com institui- para os donos e gerentes da oferta hoteleira da re-
ções públicas, o Parque também se envolveu em gião, para os produtores de vinho e azeite, para os
parcerias com o sector privado e Organizações Não pescadores e caçadores do clube de caça e pesca lo-
Governamentais (ONG) locais. Protocolos foram es- cal, e assim por diante. As visitas de entrada livre
tabelecidos com operadores turísticos locais, de mo- para toda a população serão referidas no ponto se-
do a permitir que estes pudessem igualmente, além guinte, sendo que as visitas e actividades escolares
do PAVC, organizar e realizar visitas regulamentadas serão descritas no ponto 3.7.
aos núcleos de arte rupestre abertos ao público. Vá-
rios protocolos foram assinados com a associação de 3.5. Organização de actividades que
defesa ambiental “Transumância e Natureza”, desti- assinalam datas significativas para o PAVC
nados a desenvolver um plano de gestão do Patri-
mónio natural do Vale do Côa, a prevenir e melhor Nas datas mais relevantes para o PAVC, mor-
combater os incêndios estivais, e também a manter mente a da sua criação e a da inscrição da arte do
os sítios de arte rupestre limpos de mato e sujidade. Côa na Lista do Património Mundial, são criados
Foram ainda assinados protocolos com associações programas comemorativos para fomentar a partici-
de defesa do Património, com o objectivo de aumen- pação dinâmica de visitantes e de residentes locais
tar a divulgação do Vale do Côa, nomeadamente na vida do Parque. Assim, para além de visitas gra-
através da preparação de guias turísticos, dando es- tuitas à arte rupestre, nomeadamente a visita noctur-
pecial ênfase aos valores culturais da região. O Par- na ao sítio da Penascosa, tais eventos incluem activi-
que colaborou ainda com associações locais de caça dades como exposições de arte, concertos, exibições
e pesca, na definição das regras mais apropriadas pa- de documentários e prelecções sobre a arte do Côa,
ra que estas actividades tenham um impacte reduzi- provas de vinho e de gastronomia local ou a recria-
do no ambiente e paisagem arqueológica do Vale, ção de uma ceia paleolítica.
al-madan
online XIV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
3.6. Formação de competências
específicas

De forma a ir de encontro à pro-


cura local de profissionais em áreas
específicas, nomeadamente no sector
turístico, vários cursos de formação
foram organizados em parcerias com
a delegação regional do IEFP e com a
empresa de formação de recursos hu-
manos Setepés.
Entre os cursos organizados, des-
tacamos a formação de novos guias
de arte rupestre e do Património re-
gional, o primeiro curso de formação
realizado em Portugal de Técnicas de
Arqueologia Experimental, o curso
de olaria tradicional, o curso de em-
preendedorismo cultural, ou o curso
de gourmets locais. Estes cursos têm
como alvo jovens adultos, visando
assim, para além de fornecer traba-
lhadores especializados à indústria turística local, a preservar e proteger os valores patrimoniais do Va- Figura 5
proporcionar competências que possam levar à cria- le do Côa, já que desde os seus tempos de escola
Início da visita “No Trilho dos
ção do próprio emprego. uma forte empatia foi estabelecida com a arte ru- Caçadores Paleolíticos”, de onde
pestre, a sua paisagem envolvente e outros pontos de é possível observar, no fundo do
3.7. Desenvolvimento dos interesse patrimonial. vale e na margem esquerda do
serviços educativos do PAVC Côa, a faixa arenosa junto à
3.7.1. O Côa na escola qual foi descoberto e escavado
o sítio de habitat do Salto do Boi,
Apesar de vir sendo desenvolvido há já vários O projecto O Côa na Escola pretende reforçar a também conhecido por Cardina
anos, foi apenas mais recentemente que o programa relação entre os jovens locais e o Parque, ao organi- (ZILHÃO et al. 1995).
educativo do PAVC conseguiu uma ligação mais sóli- zar visitas escolares regulares aos sítios de arte ru-
da com as instituições escolares locais e regionais. pestre e outros locais de interesse pedagógico. Estas vi-
Gradualmente, as acções desenvolvidas pelos sitas têm muitas vezes uma natureza temática, abran-
serviços educativos do Parque, tendo como alvo a gendo conteúdos como o Património, Arqueologia,
comunidade escolar, foram incorporadas nas activi- Biologia ou Geologia locais, para além da arte rupes-
dades curriculares programadas pelas escolas. Esta tre propriamente dita. Além da equipa do Parque, pro-
maior recepção das escolas é ilustrada pelo facto de fissionais de outras instituições, como sejam as autar-
no ano escolar de 2004-2005, imediatamente antes quias ou ONG locais, participam nestas visitas, ex-
do primeiro Plano de Acção Educativa ter sido planando aos estudantes os ecossistemas existentes
implementado, apenas 971 estudantes terem visitado ou os pontos geológicos notáveis presentes na pai-
o PAVC integrados em visitas escolares. No ano sagem. As novas experiências de visita descritas em
seguinte, as estratégias de atracção delineadas pelo 3.8 estão também disponíveis para o público escolar.
Plano Educativo conseguiram triplicar o número de
estudantes (para um total de 2863) que, integrados 3.7.2. Actividades nas férias escolares
em actividades curriculares, visitaram o Parque O Parque, em colaboração com as instituições
(MENDES 2008) 16. A natureza flexível do programa educativas locais, criou uma série de actividades
educativo será talvez uma das suas características destinadas não só a ocupar os tempos livres dos alu-
mais importantes e que ajudará a explicar o seu nos durante as férias escolares, mas também a en-
sucesso. As actividades abaixo descritas podem ser volvê-los pedagógica e ludicamente com o Patrimó-
adaptadas às necessidades específicas de diferentes nio de arte rupestre e seu contexto natural. Estas
instituições escolares, podendo ainda, com a óbvia actividades, que decorrem nos sítios de arte rupestre,
excepção de actividades que envolvam visita aos na sede do PAVC em Vila Nova de Foz Côa e no
sítios de arte rupestre, decorrer nas mais diversas Centro de Recepção do Parque na aldeia de Castelo
localizações (ver Fig. 5). Melhor, incluem jogos e experiências educativas,
O sucesso de um programa educativo participa- pintura, canoagem ou peddy-papers, além das ofici- 16 Ver também este artigo,
do e dinâmico é essencial para o futuro do Parque, nas educativas descritas em 3.7.3 ou das visitas men- para mais informações acerca dos
pois assegurará que as gerações futuras continuarão cionadas em 3.8. serviços educativos do PAVC.

al-madan
XIV online
adenda
9 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

3.7.3. Oficinas educativas Conclusão


Embora tenham sido desenvolvidas tendo em
mente um público escolar, as oficinas educativas es- A última década testemunhou uma mudança
tão disponíveis, mediante pedido prévio, a todos os importante na relação entre o Parque e a comunidade
visitantes do PAVC que se constituam em grupo. De local. O PAVC e praticamente todos os actores locais
qualquer modo, as actividades das oficinas educati- envolvidos, directa ou indirectamente, na gestão,
vas foram criadas tendo em consideração a idade e o conservação e apresentação pública da arte rupestre
grau de ensino das escolas que visitam o Parque, do Côa, e a maioria da população local evoluíram em
assim como diferentes perfis de visitantes. A oficina conjunto. Todos tentaram encontrar pontos em co-
educativa com mais sucesso junto do público esco- mum acerca do futuro partilhado da região, tentando
lar, bem como do público em geral, é o ateliê de ar- assim ultrapassar os conflitos mais problemáticos
queologia experimental. Este ateliê, idealizado para que subsistiam. Estamos em crer que a atitude re-
mostrar o modo de vida dos nossos antepassados do cente do PAVC, aqui descrita, juntamente com uma
Paleolítico Superior de uma forma vibrante e inter- maior compreensão e receptividade por parte da
activa, compreende actividades como pintura, gravu- comunidade local, desempenharam um papel con-
ra ou a recriação de actividades quotidianas pré-his- siderável nesta evolução. A comunidade e actores lo-
tóricas, tais como a caça ou a produção de utensílios cais, ao aperceberem-se do esforço realizado pelo
(ver Figs. 6 e 7). Parque na captação de mais visitantes, sempre den-
tro duma perspectiva preservacionista dos valores
3.7.4. Outras actividades para escolas patrimoniais, reagiram muito favoravelmente ao au-
Para além das oficinas educativas, que estão dis- mento da oferta. O Parque é agora visto como uma
poníveis para todas as escolas que visitam o Parque, instituição que procura activamente ampliar o nú-
foi criada uma folha de actividades que ajuda os pro- mero de visitantes, não só ao criar experiências de
fessores a preparar previamente a visita aos sítios de visita complementares, como também ao estar na gé-
arte rupestre. Esta folha de actividades, que pode ser nese do Museu do Côa que, como vimos, está já na
descarregada no sítio do PAVC na Internet, foi conce- fase final de construção e se espera que atraia mais
bida para diferentes graus de ensino, incluindo não turistas à região. O PAVC afirma-se aos olhos da po-
só actividades directamente ligadas a disciplinas pulação local como um parceiro indispensável na
mais próximas da História (como a Arqueologia ou realização de um objectivo comum: desenvolver de
a Geografia), mas também relacionadas com a Bio- forma equilibrada a oferta turística global de uma
logia, Geologia, Estudos Artísticos, etc. região que tem na arte rupestre do Côa a sua maior,
mas não exclusiva, atracção. Por outro lado, não é
3.8. Alargamento possível para o Parque existir isolado do contexto
da oferta do parque sócio-económico local e regional. No longo e médio
prazo, o futuro sustentável da arte do Côa depende,
O aumento e qualificação da oferta do Parque em grande medida, do sucesso do esforço do PAVC na
aos visitantes que demandam a região, embora não consolidação da sua ligação com a comunidade local
tendo como intenção expressa o reforço dos laços e desta com as gravuras rupestres. O objectivo será o
com a comunidade local, também desempenhou um de reforçar o papel da população local, como par-
papel importante na mudança de atitude da popu- ceira activa na gestão, preservação e conservação
lação relativamente ao PAVC. Entre as novas experi- dos valores patrimoniais deste Vale, mas também co-
ências de visita que foram implementadas, destaca- mo um actor essencial no desenvolvimento susten-
mos a visita nocturna ao sítio de arte rupestre da Pe- tável da região.
nascosa, ou aquela que segue o trilho dos caçadores Esta última década demonstrou que o patrimó-
paleolíticos por entre os seus sítios de habitat já nio do Vale do Côa faz parte da vida contemporânea,
identificados, complementada pela realização do está “vivo”, não sendo apenas “rabiscos” sem li-
ateliê de arqueologia experimental (Figs. 5 a 7). De- gação aparente com interesses comunitários concre-
vemos ainda mencionar que estão em fase final de tos. Estes últimos anos demonstraram também que,
preparação vários roteiros de visita a diferentes va- fazendo uso de correctas estratégias comunicacio-
lores patrimoniais da região, nos domínios da Geo- nais, particularmente criadas tendo como alvo a po-
logia, paisagem, Património construído, cultura po- pulação local, poderemos estar optimistas acerca de
pular, sítios arqueológicos, etc. O intuito é de pro- um maior comprometimento de toda a comunidade
porcionar aos visitantes percursos complementares na protecção dos valores patrimoniais do Vale do
de visita que, seguindo os roteiros, possam ser autó- Côa, nomeadamente no que concerne às gerações
noma e facilmente percorridos. mais recentes.

al-madan
online XIV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Bibliografia

AUBRY, Thierry (1998) – “Olga Grande 4: uma sequência


do Paleolítico superior no planalto entre o Rio Côa e a
Ribeira de Aguiar”. Revista Portuguesa de Arqueologia.
1 (1).
AUBRY, Thierry e SAMPAIO, Jorge (2008) – “Fariseu: new
chronological evidence for open-air Palaeolithic art in
the Côa valley (Portugal)”. Antiquity. 82 (316).
BAPTISTA, António Martinho e FERNANDES, António Pedro
Batarda (2007) – “Rock Art and the Côa Valley Archaeo-
logical Park: a case study in the preservation of Portu-
gal’s Prehistoric parietal heritage”. In Palaeolithic Cave
Art at Creswell Crags in European Context. Oxford:
Oxford University Press.
FERNANDES, António Pedro Batarda (2003) – “O Sistema
de Visita e a Preservação da Arte Rupestre em Dois Sí-
tios de Ar Livre do Nordeste Português: o Vale do Côa e
Mazouco”. Revista Portuguesa de Arqueologia. 6 (2).
FERNANDES, António Pedro Batarda (2004) – “O Programa
de Conservação do Parque Arqueológico do Vale do
Côa: filosofia, objectivos e acções concretas”. Revista
Portuguesa de Arqueologia. 7 (1).
FERNANDES, António Pedro Batarda (2005) – “Dinâmicas
de Desenvolvimento Sustentado Fomentadas pela Cria-
ção do Parque Arqueológico do Vale do Côa”. In Con-
servar para Quê? Porto e Coimbra: Centro de Estudos
Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto.
FERNANDES, António Pedro Batarda e PINTO, Fernando
Maia (2006) – “Changing Stakeholders and Community
Attitudes in the Côa Valley, Portugal”. In Of the Past,
For the Future: integrating archaeology and conserva-
tion. Los Angeles: Getty Conservation Institute.
INE (2001) – Censos 2001: resultados preliminares. Lis-
boa: Instituto Nacional de Estatística.
LIMA, Aida Valadas de e REIS, Manuela (2001) – “O Culto
Moderno dos Monumentos. Os públicos do Parque Ar-
queológico do Vale do Côa”. In O Caso de Foz Côa: um
laboratório de análise sociopolítica. Lisboa: Edições 70. SILVA, Aníbal Cavaco (2008) – Intervenção do Presidente Figuras 6 e 7
LIMA, Alexandra Sousa (2007) – “Parque Arqueológico do da República na Universidade de Coimbra. 21 de Ja-
Vale do Côa. Visitas, ordenamento e desenvolvimento: o neiro. http://www.presidencia.pt/?idc=27&idi=12501 Em cima, jovem estudante de Vila
tempo e o número”. Côavisão. 9. &action=7 (consultado em 11-09-2008). Nova de Foz Côa sentindo o peso
LUÍS, Luís (2000) – “Patrimoine Archéologique et Politi- TAVARES, Miguel Sousa (2008) – “O Preço da Dema- e o quão aguçada seria uma lança
paleolítica, no decurso dum Atelier
que dans la Vallée du Côa au Portugal”. Les Nouvelles de gogia”. O Expresso. Lisboa. http://aeiou.expresso.pt/
de Arqueologia Experimental
l’Archéologie. 82 (4). gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/359180
realizado no sítio de arte rupestre
LUÍS, Luís e GARCÍA DÍEZ, Marcos (2008) – “Same Tradi- (consultado em 11-09-2008).
da Penascosa.
tion, Different Views: the Côa Valley Rock Art and UNESCO (1999) – Report on the Twenty-Second Session of
social identity”. In Archaeologies of Art: time, place and the World Heritage Commission. Kyoto, Japan. 30 Mais abaixo, alunos da Escola
Secundária de Vila Nova de Foz
identity. Wallnut Creek, CA: Left Coast Press. November - 5 December 1998. Paris: World Heritage
Côa trocando impressões sobre a
MARÇAL, António Joaquim (2004) – “Para Quando o Pro- Commission.
melhor forma de arremessar uma
cesso de Descolonização do Vale do Côa?”. O Fozcoen- ZILHÃO, João (1998) – “The Rock Art of the Côa Valley,
lança no final da visita “No Trilho
se. Vila Nova de Foz Côa. 15 de Dezembro. Portugal: significance, conservation and management”. dos Caçadores Paleolíticos”,
MATOS, Helena (2008) – “Onde Estão os Defensores de Conservation and Management of Archaeological Sites. após a realização do Atelier de
Foz Côa?”. Blasfémias. 7 de Julho. http://blasfemias.net/ 2 (4). Arqueologia Experimental no
2008/07/07/onde-estao-os-defensores-de-foz-coa/ (con- ZILHÃO, João; AUBRY, Thierry; CARVALHO, António Faus- planalto da Olga Grande,
sultado em 11-09-2008). tino; ZAMBUJO, Gertrudes e ALMEIDA, Fernando (1995) – local onde vários sítios de habitat
MENDES, Marta (2008) – “Um Discurso Pedagógico para a “O Sítio Arqueológico Paleolítico do Salto do Boi (Car- de cronologia Paleolítica foram
Arte Rupestre do Vale do Côa: o processo de criação do dina, Santa Comba, Vila Nova de Foz Côa)”. Trabalhos escavados (ver, por exemplo,
serviço educativo”. Turismo & Desenvolvimento. 9. de Antropologia e Etnologia. 35 (4). AUBRY 1998).

al-madan
XIV online
adenda
11 electrónica
OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica
o
O Papel da r e s u m

Reflexão sobre o papel da


o

Bioantropologia
Bioantropologia na recolha e
interpretação de evidências de
violência interpessoal e ritual,
ou de contextos de guerra pri-
mitiva, a partir de restos osteo-
lógicos humanos.
na recolha de evidências de violência interpessoal, O autor destaca a importância
deste tipo de estudos para a
ritual e guerra primitiva nos restos osteológicos Pré-História e regista as situa-
ções conhecidas para a Penín-
sula Ibérica.
humanos
p a l a v r a s c h a v e

Antropologia; Violência; Guer-


ra; Pré-História.
por Luís Faria e Eunice Gomes
Técnicos Superiores de Património e Arqueologia.
a b s t r a c t

Reflection on the role of


Bioanthropology in the collec-
tion and interpretation of evi-
dence, in human osteologic re-
mains, of interpersonal and rit-
Biantropologia é a disciplina que se ocu- nos restos osteológicos humanos descobertos nas es- ual violence and primitive war

A pa do estudo dos restos osteológicos hu-


manos. Muita informação fica registada
nos ossos, transformando estes na pista mais directa
cavações arqueológicas.
Temos que ter sempre em conta que nem todas
as marcas de violência nas ossadas são evidências de
contexts.
The author stresses the impor-
tance of this type of study for
Prehistory, and registers the
do quotidiano dos nossos antepassados. Da rotina guerra: não podemos esquecer a violência interpes- situations that are known on
diária e repetitiva ao acontecimento esporádico, por soal, o feud 2, os acidentes e os rituais que, apesar de the Iberian Peninsula.
vezes traumático, dos vários rituais tribais às situa- violentos, não estão associados à guerra na Pré-His- k e y w o r d s
ções de stress alimentar, tudo fica “escrito” nos nos- tória.
sos ossos. A violência interpessoal em populações huma- Anthropology; Violence; War;
Nas palavras de WALKER (2001: 574): “… bioar- nas pré-históricas pode ser observada na patologia Prehistory.
chaeologists are ideally positioned to explore the traumática óssea, nos traumas que podem ser identi-
causes of violence in earlier societies. Human remains ficados nos ossos dos nossos antepassados. A patolo-
from archaeological sites are a unique source of data gia traumática óssea tem várias classificações, que r é s u m é
on the environmental, economic, and social factors permitem uma melhor análise das suas causas. Se-
that predispose people to both violent conflict and gundo SILVA (2000): “As lesões traumáticas podem Réflexion sur le rôle de la Bio-
peaceful coexistence”. Para SILVA (2000): “Os sinais ser classificadas de várias formas, incluindo frac- anthropologie dans le recueil et
de trauma em populações humanas podem reflectir turas, perfurações (acção de armas), deslocações, l’interprétation de preuves de
violence interpersonnelle et ri-
vários aspectos do seu tipo de vida, como a cultura deformações artificiais, trepanações, canibalismo, tuelle, ou de contextes de guer-
material, a economia, o ambiente, a ocupação e a entre outras”. Para LESSA (2004: 10): “A identifica- re primitive, à partir de restes
violência interpessoal” 1. ção de sinais de violência interpessoal… através de ostéologiques humains.
Pela análise dos restos osteológicos humanos e indicadores específicos… tais como as fracturas… e L’auteur met en avant l’impor-
tendo em conta o modo como são inumados, chega- a presença de pontas de projéctil encravadas nos tance de ce type d’études pour
la Préhistoire et enregistre les
mos a leituras de comportamentos tanto individuais ossos. […] Também são considerados sinalizadores situations connues dans la Pé-
como de grupo, pois o modo como uma sociedade de violência os traumas provocados por decapita- ninsule Ibérique.
trata os seus mortos é um reflexo dessa própria so- ção, escalpe, canibalismo e desmembramento…”.
ciedade. A Bioantropologia, nomeadamente no estu- m o t s c l é s
do da patologia traumática óssea, Antropologia fu-
Anthropologie; Violence; Guer-
nerária e Paleodemografia, torna-se assim essencial 1 O conceito de “violência interpessoal” é definido como interacção re; Préhistoire.
em qualquer estudo das origens da guerra, onde é prejudicial entre pessoas (WALKER 2001: 575).
uma importante fonte de dados e decididamente a 2 O feud, que podemos traduzir como vingança, distingue-se da guerra
mais directa. Se a guerra fazia parte das sociedades primitiva na medida em que o assunto é particular e podemos substituir a
pré-históricas, então vamos encontrar as “marcas” morte do adversário por compensações (DENNEN 1995).

al-madan
XV online
adenda
1 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

Segundo HAAS (2004), temos vários indicado- Temos que ter em conta que as fracturas peri-
res de guerra no registo arqueológico, entre eles in- mortem que não apresentam sinais de cicatrização,
dicadores no registo osteológico, que consistem em podem ter sido causadas após a morte do indivíduo
“fracturas de Parry” (ver adiante), fracturas frontais ou devido a processos tafonómicos (LESSA 2004: 10).
no crânio, marcas de escalpe e distribuições desequi- A melhor maneira de identificar uma fractura ante-
libradas nas populações das necrópoles (Paleodemo- mortem consiste na observação da formação de osso
grafia). novo na fractura (WALKER 2001: 576).
A presença de artefactos que causaram os feri- SILVA (2000) traz-nos a seguinte definição de
mentos cravados nos ossos é o sinal mais directo de fractura: “Por fractura entende-se um evento trau-
violência interpessoal. Apesar de certos autores ten- mático que resulta da descontinuidade completa ou
tarem explicar a presença de artefactos cravados nos parcial de um osso […]. Pode resultar de uma força
ossos como acidentes, parece-me muito difícil esti- aguda, de um stress repetitivo (fractura por fadiga)
car um arco ou lançar uma lança contra alguém por ou do enfraquecimento do osso devido a doença”.
acidente. Temos fracturas que são, pelas suas características,
As patologias traumáticas ósseas só podem ser associadas à violência interpessoal. As fracturas dos
interpretadas como prova da existência de violência membros nos terços médio e distal dos antebraços,
interpessoal. Para considerarmos a existência de denominadas “fracturas de Parry”, estão associadas
guerra primitiva 3 temos que ter uma elevada fre- à violência interpessoal. Esta fractura sugere um mo-
quência destas ocorrências em ossadas relacionadas vimento em que o indivíduo levanta o braço em fren-
entre si. Existem outras justificações para as patolo- te à cabeça para se proteger de um ataque (ORTNER e
gias traumáticas, nas palavras de OSGOOD et al. PUTSCHAR 1985; MERBS 1989; JURMAIN 1991; WEBB
(2000: 19): “… skeletons exhibiting weapons injuries 1995 in LESSA 2004: 13).
are not necessarily proof of warfare (other explana- Segundo VEGAS et. al. (1999), temos ainda a
tions include executions, murders, immediate post- fractura de Monteggia, que é semelhante à de Parry:
mortem wounds and even ritual killing)…”. As re- “…fracturas de cúbito de las denominadas de Mon-
moções, canibalismo e trepanações entram no cam- teggia o de paro. Se trata de una característica rotu-
po do ritual e têm uma leitura mais subjectiva. ra del hueso producida por un golpe directo con una
As fracturas e perfurações dão-nos uma ideia das estaca u otro objeto contundente sobre la cara dor-
zonas do corpo mais visadas pelos ataques e as ar- sal del antebrazo, mientras lo agredido lo levanta
mas usadas. Estas podem ter uma origem acidental, para defenderse en un movimiento reflejo”. As frac-
principalmente se o habitat das populações for aci- turas cranianas por depressão ou na face, principal-
dentado (SILVA 2000). Logo, nas sociedades de ca- mente nos ossos nasais, podem ser um sinal claro de
çadores-recolectores e de pastores temos mais aci- violência interpessoal (LESSA 2004: 10), uma vez
dentes. que num combate de proximidade a cabeça é um
Nos EUA, num estudo de ferimentos por causas alvo preferencial.
violentas, verificou-se que apenas 16 % deixavam As fracturas no crânio, quando isoladas e sem a
marcas no esqueleto (RAND e STORM 1997 in LESSA presença de outros traumas noutras partes do corpo,
2004). Segundo GUILAINE e ZAMMIT (2002: 152): podem indicar que não temos um acidente (LESSA
“…aquellos heridos y muertos por un impacto en 2004: 13), pois numa queda é difícil magoar só a
sus partes brandas (carne, músculos, vísceras). La cara. Segundo WALKER (1989; 1979 in LESSA 2004:
desaparición de esta porción importante del cuerpo 11), as lesões atribuídas a acidentes apresentam uma
no permite apreciar, ni siquiera someramente, el alto distribuição irregular, com tamanhos e formatos va-
porcentaje de muertos…”. Segundo WALKER (2001), riados.
em posição frontal, o esqueleto humano ocupa cerca É possível determinar a intenção dos golpes apli-
de 60 % da área alvo possível durante um ataque. cados. Por exemplo, o frontal (no crânio) é mais re-
Portanto, por cada evidência de violência interpes- sistente que o parietal, pelo que em combates onde o
3 “Guerra primitiva” é definida
soal que temos marcada nos ossos, muitas mais não objectivo não seja matar, pode ser atingido com mais
como violência interpessoal
deixaram vestígios. frequência (WILKINSON 1997 in LESSA 2004: 12). Se-
colectiva entre duas ou mais Em relação ao tipo de fractura temos que obser- gundo LESSA (2004: 12), o ângulo com que o golpe
comunidades políticas distintas, var, nas palavras de WALKER (2001: 576): “…ante- foi aplicado também pode ser determinado. Por
com o uso de armas, tendo como mortem [traumas anteriores à morte do indivíduo] exemplo, lesões no occipital (no crânio) podem in-
objectivo causar fatalidades, por and perimortem [por volta da altura da morte do dicar que a vítima estava de costas (a fugir, imobili-
um assunto colectivo e sem
hipótese de compensação
indivíduo] injuries are of considerable anthropolo- zada ou apanhada de surpresa).
(definição do autor baseada em gical interest because of the implications they have As fracturas concentradas numa zona do corpo,
várias leituras). for human behavior”. ou quando apresentam um padrão regular de tama-
nho e forma, podem estar associadas ao tipo de arma
usada e de violência interpessoal (LESSA 2004: 11).
al-madan
online XV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Evidências de Violência Interpessoal ou Guerra Primitiva
no registo arqueológico da Península Ibérica 4
Segundo THORPE (2003: 155-157): “Bennicke’s
examination of cranial trauma in Denmark […] shows Arqueossítio, País, Período Descrição e Interpretação 5 Fontes
that during the Mesolithic there were a high number Sima de los Huesos, Espanha, Vários crânios com várias fracturas curadas. CERVERA et al. 1998: 143 in
of injuries in the form of fractures and impressions. Paleolítico Médio. Violência interpessoal ou guerra primitiva. THORPE 2003: 151.
[…] A similar pattern of cranial injuries has been
Moita do Sebastião, Portugal, Uma marca de projéctil nos ossos do pé. LUBELL et al. 1989 in THORPE
detected… among Yanomamo, where these general-
Mesolítico. Violência interpessoal. 2003: 153.
ly non-lethal wounds result from fighting duels with
heavy wooden clubs”. LESSA (2004: 14-15), no estudo Cabeço da Arruda I, Portugal, Uma marca de impacto no crânio. LUBELL et al. 1989 in THORPE
de populações da cultura Tiwanaku (Chile, 500 d.C.), Neolítico. Violência interpessoal. 2003: 153.
descreve as lesões encontradas no crânio: “… em sua Serra da Roupa, Portugal, Duas fracturas no crânio por depressão. SILVA 2000.
maioria de formato oval… principalmente na região Neolítico. Violência interpessoal.
frontal… arremesso de pedras atiradas com fundas,
que os arqueólogos admitem como um dos tipos de Bóbila Madurell, Espanha, Uma fossa com dois indivíduos do sexo masculino OSGOOD et al. 2000: 46.
Neolítico. com os crânios esmagados. Uma ponta de seta CAMPILLO, MERCADAL e
arma da região”. As fracturas causadas por cortes de
cravada numa vértebra lombar. BLANCH 1993 in GUILAINE e
armas brancas (lâminas) deixam uma marca caracte-
Violência interpessoal ou guerra primitiva. ZAMMIT 2002: 172.
rística, são fáceis de identificar e atribuir à violência
interpessoal. Camí de Can Grau, Espanha, Uma ponta de seta de sílex cravada no arco de MARTÍ, POU e CARLOS 1993
Neolítico. uma vértebra. in GUILAINE e ZAMMIT 2002:
A frequência de traumas em estudos de âmbito
Violência interpessoal. 172.
mais alargado permite detectar variações na intensi-
dade da violência interpessoal. No estudo de popula- Dólmen de Ansião, Portugal, Uma lesão num fragmento de osso do frontal, SILVA 2000.
ções italianas detectaram-se mais traumas do crânio Neolítico Final / Calcolítico. que aponta para uma perfuração por uma ponta de
no Neolítico. Estes diminuem no Eneolítico e voltam seta, e cinco traumas em crânios por fractura.
a aumentar nas idades do Bronze e do Ferro (ROBB Violência interpessoal ou guerra primitiva.
1997 in WALKER 2001: 587). WALKER (2001: 587) Poço Velho, Portugal, Neolítico Uma lesão traumática incisa ao nível do exocrânio ANTUNES-FERREIRA 2005: 88.
comenta este estudo, em relação à iconografia do Final / Calcolítico. e do diploe (tecido craniano esponjoso), provocada
guerreiro na Idade do Bronze: “… The cultural cele- por um objecto cortante. Três crânios com
depressões.
bration of violence seems to have had an inverse
Violência interpessoal ou guerra primitiva.
relationship to its frequency”.
Uma perfuração pode ser um sinal de violência Eira da Pedrinha, Portugal, Uma depressão na região média do lado esquerdo MENDES CORREA e TEIXEIRA
interpessoal. Se tivermos restos ou a totalidade do Calcolítico. do osso frontal. 1949 in Silva 2000.
projéctil que a causou, então não deixa dúvidas. Além Violência interpessoal.
de projécteis, podemos também ter perfurações por Monte Canelas, Portugal, Duas fracturas cranianas por depressão e uma SILVA 2000.
artefactos afiados. Calcolítico. calote craniana com uma lesão oval no parietal
As perfurações, através da localização e trajectó- direito.
ria de penetração do projéctil, podem informar quan- Violência interpessoal ou guerra primitiva.
to à estratégia do ataque (LESSA 2004: 13). Mas, se- São Pedro do Estoril, Portugal, Uma calote craniana masculina apresenta uma SILVA 2000.
gundo uma pesquisa do registo arqueológico fran- Calcolítico. depressão no lado esquerdo do osso frontal.
cês, temos marcas de projécteis em todo o corpo hu- Violência interpessoal.
mano (GUILAINE e ZAMMIT 2002: 155). Leceia, Portugal, Calcolítico. Presença de restos osteológicos de indivíduos CARDOSO 1991: 80 e 81.
Por cada projéctil que é encontrado cravado nos adultos do sexo masculino numa lixeira
ossos, temos que ter em conta os que foram retira- estruturada.
dos, os que não se mantiveram no sítio com o passar Guerra primitiva.
do tempo, aqueles que seriam feitos de materiais
Dólmen de Clara, Espanha, Quatro traumatismos cranianos. MERCADAL e AGUSTI 2006:
perecíveis, a área cúbica total do corpo humano e a Neolítico Final / Calcolítico. 44
Violência interpessoal ou guerra primitiva.
probabilidade que o projéctil tinha de acertar em
osso. Também temos que ter em conta os que fa- Cartuja de las Fuentes, Espanha, Uma marca de ponta de seta nos restos ETXEBERRIA e VEGAS 1988a;
Neolítico Final / Calcolítico. osteológicos humanos. CAMPILLO 1995 in OSGOOD
lharam. Resumindo, por cada projéctil encontrado in
Violência interpessoal. et al. 2000: 47.
situ cravado no osso, muitos mais foram disparados
e atirados contra alvos humanos. Cueva de las Cáscaras, Espanha, Um projéctil cravado num fémur. GUILAINE e ZAMMIT 2002:
Neolítico Final / Calcolítico. Violência interpessoal. 172.

Venta del Griso, Espanha, Várias marcas de projéctil nos restos osteológicos ETXEBERRIA e VEGAS 1988a;
Neolítico Final / Calcolítico. humanos. CAMPILLO 1995 in OSGOOD
4 Os casos de canibalismo gastronómico e trepanação não estão incluídos. Violência interpessoal ou guerra primitiva. et al. 2000: 47.
5 Nunca esquecendo que podemos ter apenas acidentes nos casos de
Cueva del Barranco de la Higuera, Uma lesão no crânio de um dos indivíduos, ETXEBERRIA e VEGAS 1988a;
violência interpessoal. Também nos casos de guerra primitiva podemos ter Espanha, Neolítico Final / causada por um objecto duro e angular. CAMPILLO 1995 in OSGOOD
apenas feud (vinganças por motivos particulares que não se enquadram numa Calcolítico. et al. 2000: 47
Violência interpessoal.
definição de guerra primitiva).

al-madan
XV online
adenda
3 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

Os autores PALOMO I PÉREZ e GIBAJA BAO (2003: KEELEY (1997: 103-106) traz-nos uma série de
179), no estudo das pontas de seta encontradas em exemplos históricos e etnográficos de canibalismo
monumentos do Neolítico / Calcolítico da Catalunha, culinário e ritual relacionados com a guerra primiti-
lançam a hipótese de estas terem chegado ali dentro va. Destes, gostava de referir o exemplo dos Maori,
dos corpos dos inumados. que resolviam o problema da logística consumindo
Certos movimentos repetitivos deixam marcas os prisioneiros, podendo assim continuar as suas cam-
nos ossos e algumas dessas marcas podem represen- panhas movendo-se de ilha em ilha.
tar acções ligadas à violência interpessoal, como dis- Uma evidência vem reforçar a hipótese de cani-
parar um arco ou montar a cavalo. No entanto, estas balismo entre povos primitivos: a análise de excre-
actividades não são exclusivas da violência interpes- mentos humanos de um arqueossítio do Sudoeste do
soal. Colorado, revelou uma proteína muscular humana
Tendo em conta as armas usadas na Pré-História, que só pode ter ido lá parar pela ingestão de carne hu-
podemos considerar as fracturas na cabeça, pescoço mana (MARLAR et. al. 2000 in WALKER 2001: 579).
ou nos membros superiores (como a de Parry ou Mon- No entanto, como referem GUILAINE e ZAMMIT
teggia) associadas a combates de proximidade com (2002: 118), podem existir muitas justificações para
armas de mão, por exemplo, mocas e machados (a o canibalismo: motivos guerreiros, mágicos, alimen-
funda, no entanto, tem como alvo preferencial a ca- tícios, funerários, simbólicos ou sacrificiais.
beça). As lesões por cortes com lâminas afiadas têm As remoções de partes do corpo do inimigo
uma clara associação a uma guerra de proximidade fazem parte da guerra primitiva. THORPE (2003: 158)
com armas de mão. As perfurações estão mais asso- menciona: “If headhunting is involved, then this
ciadas a projécteis e aparecem em todo o corpo, ilus- simultaneously deprives the enemy of the benefit of
trando uma guerra à distância com armas de arre- the strength provided by reincorporating the dead
messo, por exemplo, arco e flechas, javalinas e lan- into the group and unleashes the anger of the dead on
ças (embora a lança possa ser usada a curta distância their own community unless the dead can be avenged”.
e causar fracturas). Em Ofnet, no Mesolítico da Bavaria, temos um
Segundo BAHN (2002: 28), vários autores encon- exemplo de recolha de cabeças (FRAYER 1997 in
tram pistas de canibalismo nos ossos humanos, se es- WALKER 2001: 586). Ainda segundo este autor, em
tes tiverem marcas de corte, estiverem esmagados ou relação a Ofnet: “… decapitation is suggested by
apresentarem sinais de terem sido queimados. Ainda perimortem cutmarks on many of the cervical verte-
segundo este autor (IDEM: 29), outra evidência de ca- brae recovered with the skulls”. ALDHOUSE-GREEN
nibalismo é o facto de se encontrarem ossos huma- (2006: 300) refere, acerca da recolha de cabeças: “In
nos misturados com ossos de outros animais, com o suggesting that the human heads at Gournay were
mesmo tratamento e marcas. those of defeated battle-victims, such practice
THORPE (2003: 158) relaciona o canibalismo accords with a convincing body of evidence for the
com a guerra primitiva: “If these are cases of canni- collection of enemy trophy-heads in Iron Age and
balism, then they could be linked to warfare through Roman Europe within a ritual context”.
a common explanation given by historically record- HARDE (2000: 2) traz-nos um caso da Idade do
ed groups who practice cannibalism, that the vital Bronze da Boémia, que considera como exemplo de
energies or personal attributes of the enemy would sacrifício relacionado com a guerra: “In some cases,
be absorbed by the cannibals. Cannibalism is also the individual has been decapitated…”. DENNEN
sometimes used in South America societies as a way (1995: 419) refere e existência da cultura de “head-
of disrespecting the enemy, eating their flesh as ani- -hunting” entre povos primitivos nas seguintes áreas
mal meat”. Segundo GUILAINE e ZAMMIT (2002: 116): geográficas: partes de África, Indonésia, Nova Gui-
“Muchos autores tienen la tendencia a limitar en né, Melanésia, Polinésia, Micronésia, Índia e Améri-
gran medida el llamado canibalismo alimenticio, in- ca do Sul. Segundo o mesmo autor (IDEM: 421):
cluso a negarlo por ser tabú. Proponen razones de “Trophies of all sort have been recorded in the lite-
guerra par explicar la consumición de carne y san- rature: skulls, scalps, skins, leg or arm bones, male
gre humanas, como manera de desembarazarse de genital organs, and above all captives”.
los enemigos, los prisioneros, las personas secues- Segundo SILVA (2000) e acerca das trepanações:
tradas, siendo entonces una práctica límite”. KEELEY “Até ao momento, existem descritas 22 trepanações
(1997: 103-106) refere dois tipos de canibalismo: portuguesas do Neolítico até à Idade do Bronze (in-
culinário (comer carne humana como fonte de pro- cluindo algumas prováveis e possíveis)”. As trepa-
teínas, no que pode ser um caso extremo de fome) e nações podem ser uma forma de medicina ou um ri-
ritual (consumir uma parte do corpo com fins mági- tual. No entanto, nos casos em que foi possível deter-
cos). minar o sexo dos indivíduos, estes pertenciam ao
O canibalismo gastronómico pode ser definido sexo masculino (SILVA 2000).
como o consumo de membros do grupo após a sua As remoções, canibalismo e trepanação podem
morte (THORPE 2003: 152). ser rituais que, apesar de violentos, tinham a conivên-
al-madan
online XV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
cia de todos os actores mas, ao contrário dos aci- Evidências de Violência Interpessoal ou Guerra Primitiva
dentes, revelam intenção. Entre povos etnográficos e no registo arqueológico da Península Ibérica [cont.]
históricos, temos rituais de iniciação e passagem que
Arqueossítio, País, Período Descrição e Interpretação Fontes
podem ser muito violentos. Outros rituais de carácter
religioso são também violentos e podem levar à mor- Hipogeu de Longar, Espanha, Sepultura colectiva de 112 indivíduos de diversas ARMENDÁRIZ, IRIGARAY e
Calcolítico. idades e sexos, onde não foram encontrados IRIGARAY 1995 in KUNST e
te de alguns dos intervenientes, ou seja, ao seu sa- objectos de adorno pessoal, só artefactos em UERPMANN 2000: 131 e 132.
crifício. Em muitos dos casos os sacrificados são pri- sílex, lascas e pontas de setas. Quatro casos de
sioneiros de guerra (ALDHOUSE-GREEN 2006: 281). projécteis em sílex cravados nos restos
Para SILVA (2004: 4): “… o conhecimento do osteológicos humanos, sendo de supor que outras
mundo dos mortos é necessário a tomada de vários peças pudessem estar associadas a feridas nas
entranhas.
dados do âmbito da Antropologia funerária, tais co-
Guerra primitiva.
mo, o tipo de sepulcro, a posição da inumação, o nú-
mero de indivíduos por sepultura, o espólio associa- San Juan Ante Portem Latinam, Restos osteológicos humanos de 289 indivíduos, VEGAS et al. 1999 in KUNST
do e, no caso de um cemitério, a sua organização es- Espanha, Calcolítico. com nove feridas por flecha e quatro fracturas de e UERPMANN 2000: 132-133.
Monteggia. Possível inumação simultânea e lesões
pacial”. Com GUILAINE e ZAMMIT (2002: 58), temos por detrás em indivíduos masculinos.
evidências de guerra na Pré-História em: “… fosas
Guerra primitiva.
comunes con restos acumulados de cuerpos; es-
queletos con diversos traumatismos depositados en Valencina de la Concepción, Ossadas de dois indivíduos foram encontradas ETXEBERRIA e VEGAS 1988a in
Espanha, Calcolítico. numa vala sem ritual funerário ou outro OSGOOD et al. 2000: 47.
panteones familiares; necrópolis en las que las fa-
tratamento especial, faltando algumas partes
milias han agrupado a varias personas muertas en anatómicas.
enfrentamientos, y difuntos abandonados en el cam- Guerra primitiva.
po de batalla y fosilizados por un aporte rápido de
La Atalayuela, Espanha, Calcolítico. Depósito de indivíduos realizado num momento, BARANDIARÁN 1978: 417 in
sedimentos. Estos hallazgos arqueológicos son los
com pouca quantidade de artefactos associados. KUNST e UERPMANN 2000:
que el investigador puede someter a un análisis críti- Ponta de seta cravada num crânio. 131.
co”. Guerra primitiva.
A destruição de um corpo pode dar-se por expo-
Grajal de Campos, Espanha, Duas pontas de seta (tipo Palmela) cravadas nos ETXEBERRIA e VEGAS 1988a;
sição, imersão, incineração ou inumação (DAFLEUR
Calcolítico. ossos do crânio. CAMPILLO 1995 in OSGOOD
1993 in SILVA 2004: 9). Apenas os dois últimos mé- et al. 2000: 47.
Violência interpessoal.
todos deixam vestígios arqueológicos e o último é
aquele que permite encontrar mais pistas de violên- Cueva de las Cabras, Espanha, Várias marcas nos restos osteológicos humanos. GUILAINE e ZAMMIT 2002:
cia interpessoal e guerra. Calcolítico Violência interpessoal ou guerra primitiva. 172.
Temos sepulturas com inumações desde o Paleo- El Puig, Espanha, Calcolítico. Um crânio de um indivíduo que sofreu uma OSGOOD et al. 2000: 47.
lítico Médio, com o Homo neanderthalensis, há 100 fractura em curva.
mil anos (GUILAINE e ZAMMIT 2002: 62). A sepultura Violência interpessoal.
representa esforço e intenção, é sinónimo de práticas
Carrelasvegas, Espanha, Um indivíduo atirado para uma vala, sem um pé, OSGOOD et al. 2000: 48.
funerárias e algum tipo de relação para com o indi- Calcolítico. sem deuses funerários.
víduo. Nas palavras de OSGOOD et. al. (2000: 70): Violência interpessoal.
“… burials and cremations with grave-gods were a
statement of how people wanted the dead, their an- Los Llometes, Espanha, Calcolítico. Várias marcas de lesões nos restos osteológicos GUILAINE e ZAMMIT 2002:
humanos. 173.
cestors, to be perceived by their own and perhaps
Violência interpessoal ou guerra primitiva.
future societies”.
A inumação em local que não é habitual, por ve- Cerro de la Encina, Espanha, Um indivíduo com fracturas nos ossos nasais, OSGOOD et al. 2000: 48.
zes com reaproveitamentos de estruturas com outras Calcolítico. outro com fracturas nas costelas e um terceiro
com um elevado número de outras lesões.
funções (por exemplo silos, fossas, lixeiras e valas),
Violência interpessoal ou guerra primitiva.
a inexistência de sepultura, a própria posição do indi-
víduo inumado ou inexistência de ritual funerário Cerro de la Cabeza, Espanha, Uma fossa com onze indivíduos que apresentam MERCADAL e AGUSTI 2006:
(sem objectos de cariz funerário), podem ser indica- Calcolítico. patologias traumáticas. Túmulo com seis indivíduos 44-45.
com diversos projécteis cravados nos ossos.
dores de violência interpessoal e guerra primitiva.
Guerra primitiva.
Temos que ter em conta que, na guerra, os corpos
dos guerreiros caídos nem sempre são sepultados, Aitzibita, Espanha, Calcolítico / Uma lesão no crânio de um indivíduo, provocada BEGUIRISTAIN GURPIDE 1997:
porque pertencem a grupos inimigos, porque o cam- Idade do Bronze. por espada ou machado. 323-325.
po de batalha é longe dos locais de sepultura habitu- Violência interpessoal.
ais, porque não ficou ninguém para sepultar os de- Dólmen de Collet Su, Espanha, Uma ponta de seta de metal cravada nos restos CAMPILLO 1995 in OSGOOD
mais. Calcolítico / Idade do Bronze. osteológicos humanos. et al. 2000: 47.
A posição em que a ossada se encontra pode aju- Violência interpessoal.
dar a perceber se temos uma sepultura (SILVA 2004: Cova de L’Heure de L’Arboli, Uma ponta de seta em bronze cravada no maxilar. GUILAINE e ZAMMIT 2002:
8). A posição das mãos cruzadas sobre o peito, pro- Espanha, Calcolítico / Idade do 173.
Violência interpessoal.
vavelmente atadas, pode ser uma evidência de vio-
al-madan
XV online
adenda
5 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

lência interpessoal (ALDHOUSE-GREEN 2006: 288). tumular. […] A emergência de líderes, no Horizonte
Ainda segundo esta autora: “… The deposition of Campaniforme de Transição ou Bronze Antigo,
bodies face-down… might be linked to the dispatch encontra-se expressa de forma eloquente em alguns
of captives”. Os indivíduos encontrados numa li- contextos funerários…”.
xeira do povoado Calcolítico de Leceia, são um Muitos dos artefactos que encontramos associa-
exemplo de local pouco próprio para uma inumação dos ao indivíduo inumado, nas sepulturas da Idade
(CARDOSO 1991: 80-81). do Bronze, são claramente armas. Temos então guer-
Acerca da Idade do Bronze na Europa Central, reiros e um papel para a coerção na sua sociedade.
HARDE (2000: 1), frisa: “… Their bones were either No entanto, no Neolítico as armas eram o arco e a
deposited in pitches and ditches or scattered over the flecha, pelo que nos monumentos funerários desta
settlement area. Not surprisingly, traces of violence época encontram-se muitos projécteis, alguns deles
are over represented in these two last categories of partidos. PALOMO I PÉREZ e GIBAJA BAO (2003: 179)
burials”. Para GARCIA SANJUAN (1993, in SOARES e levantam a hipótese para o “hipogeo de la Costa de
SILVA 1998: 235): “The grave goods reveal indica- can Martorell”: “… pel context funerari on van
tions of status differentiation related to age and gen- aparèixer les puntes, una inhumació múltiple d’uns
der…”. Entre os “grave goods” podemos encontrar 200 individus,… i pel gran índex de fractures docu-
as estelas do tipo alentejano (IDEM: ibidem). mentades en les puntes,… deriva en el plantejament
As sepulturas colectivas representam um local de la hipòtesi que una part de les puntes haguessin
onde as inumações se sucederam ao longo do tempo, arribat a l’espai funerari clavades en els cadàvers”.
não existindo entre os indivíduos uma estrutura de iso- CHAPMAN et al. (1981: 14) trazem-nos a seguinte
lamento, o que leva geralmente a uma mistura total leitura: “The spatial patterning of graves within ceme-
dos ossos dos diferentes indivíduos (SILVA 2004: 8). teries within settlement landscapes forms an impor-
Se este depósito se deu simultaneamente, em grande tant dimension of these mortuary practices of any
número, devido a uma epidemia ou massacre, esta- community. This patterning should be studied along-
mos na presença de uma sepultura colectiva múltipla side the form of the interment, the treatment of the
(ZAMMIT 1991 in SILVA 2004: 8) ou vala comum. body, the nature and frequency of the grave goods
HARDE (2000: 2) define enterramentos em mas- and the demographic and biological attributes of the
sa como sepulturas com mais de quatro inumações. interred population in a multidimensional analysis”.
BENNIKE (2006: 305) frisa: “Mass graves or individ- A Paleodemografia revela-se fundamental na
ual graves situated outside a cemetery may indicate procura de indícios de violência interpessoal e guer-
a unusual preceding event”. Se numa vala comum ra na Pré-História. Segundo SILVA (2000), a Paleo-
tivermos sinais de violência pessoal, como traumas demografia define-se como o estudo das alterações
ou a presença de projécteis nas ossadas, então temos da estrutura e da dinâmica das populações do passa-
o indício mais forte e óbvio de guerra. KUNST e do. A sua análise tem contribuído para compreender
UERPMANN (2000: 131) trazem-nos três exemplos as condições de vida das populações do passado, no-
desta situação na Pré-História da Península Ibérica: meadamente no reconhecimento da sua saúde, das
“Hipogeo de Longar, La Atalayuela e San Juan Ante práticas funerárias, da história e dos aspectos evolu-
Portam Latinam”. tivos da biodemografia humana. Ainda segundo esta
A presença de armas associadas ao indivíduo inu- autora, a abordagem pode envolver: a mortalidade e
mado, leva a que este seja considerado um guerreiro. fertilidade, o tamanho e a densidade populacional, o
A sua sepultura pode mesmo ocupar um lugar espe- sex-ratio e a migração.
cial na necrópole, individualizado ou mesmo central. Nas palavras de BISHOP e KNUSEL (2005: 202):
Segundo OSGOOD et al. (2000: 70): “… we can obtain “The analysis of demographic patterns aloes an
useful nuggets of information pertaining to warriors insight into the ways in witch war as waged and the
and conflict in the Bronze Age from the archaeology ways that it affected human populations”. Na procu-
of the death. […] the various weapons used in ritu- ra de indícios de guerra nas populações pré-históri-
als for the dead. In the transition from the Neolithic cas pela Paleodemografia, revela-se mais importante
to the Bronze Age, dramatic depositions are found, a análise da mortalidade, no que diz respeito ao sex-
often portraying the dead as rich, powerful war- -ratio e aos escalões etários. As flutuações da popu-
riors”. Nas palavras de HARDING (2003: 301) e para lação no geral e masculina em particular são muito
a Europa da Idade do Bronze: “… la diferente rique- relevantes, principalmente quando associadas a
za de las tumbas con armas demuestran que los as- evidências de violência interpessoal (SILVA 2000).
pectos simbólicos estaban señalados…indudable- Segundo BISHOP e KNUSEL (2005: 211), temos
mente las armas fueron utilizadas tal como incons- que ter em conta: “The majority of the prehistoric
cientemente se entendieron”. sites show that people who would be considered non-
Para SOARES (2003: 216), em relação ao estudo combatants by historical armed forces (women and
dos hipogeus em Portugal: “No Calcolítico, surgem children) might have been regularly killed in con-
os primeiros indícios de segregação espacial intra- flicts”.
al-madan
online XV
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Evidências de Violência Interpessoal ou Guerra Primitiva
LESSA (2004: 14-16) traz-nos um exemplo do no registo arqueológico da Península Ibérica [cont.]
cemitério pré-histórico de San Pedro de Atacama,
onde o estudo permitiu identificar a existência de Arqueossítio, País, Período Descrição e Interpretação Fontes
violência interpessoal, a partir de que momento e Bronze. Varões jovens monopolizam as sepulturas debaixo MARTÍNEZ PEÑARROYA 2000:
com que armas. Cerro de Cuchillo, Espanha, Idade das habitações. 157.
do Bronze. Guerra primitiva.
Como este é um trabalho em construção, toda a
Cerro de la Encantada, Espanha, Fossas reaproveitadas como sepulturas e MARTÍNEZ PEÑARROYA 2000:
informação e crítica construtiva podem ser enviadas Idade do Bronze. inumações de indivíduos acéfalos. 157.
para faria100@clix.pt, o que desde já se Guerra primitiva.
agradece.
Balma de Sargantana, Espanha, Grande percentagem de patologias traumáticas. MERCADAL e AGUSTI 2006:
Idade do Bronze. Guerra primitiva. 44.

Caramoro, Espanha, Idade do Um trauma no crânio de um dos indivíduos, MARTÍNEZ PEÑARROYA 2000:
Bronze. provocado por uma espada. 157.
Violência interpessoal.
Factoria Euskalduna, Espanha, Fossas reaproveitadas como sepulturas e MARTÍNEZ PEÑARROYA 2000:
Idade do Bronze. inumações de indivíduos acéfalos. 157.
Guerra primitiva.
Roc d’Orenetes, Espanha, Idade Fractura em bisel num individuo. MERCADAL e AGUSTI 2006:
do Bronze. Violência interpessoal. 44.
Referências bibliográficas

ANTUNES-FERREIRA, Nathalie (2005) – Paleobio- DENNEN, John Matheus Gerardus van der (1995) PALOMO I PÉREZ, Antoni e GIBAJA BAO, Juan
logia de Grupos Populacionais do Neolítico – The Origin of War: the evolution of a male Francisco (2003) – “Análisis Tecnomorfoló-
Final / Calcolítico do Poço Velho. Lisboa: Ins- coalitional reproductive strategy. Groningen: gica / Funcional i Experimental de las Puntes
tituto Português de Arqueologia (Trabalhos de Origin Press. de Flexta in la Costa de can Martorell (Dosrius,
Arqueologia, 40). GUILAINE, Jean e ZAMMIT, Jean (2002) – Le Sen- El Marcéeme)”. Laietania. Estudis d’Arqueo-
ALDHOUSE-GREEN, Miranda (2006) – “Semiolo- tier de la Guerre: visages de la violence pré- logia i d’História. Museu de Mataró. 14: 179-
gies of Subjugation: the ritualisation of war- historique. Paris: Éditions du Seuil. -214.
-prisoners in later European Antiquity”. In HAAS, Jonathan (2004) – “The Origins of War and SILVA, Ana Maria (2000) – Antropologia Fune-
OTTO, Ton et. al. (eds.). Warfare and Society: Ethnic Violence”. In CARMAN, John e HARDING, rária e Paleobiologia das Populações por-
archaeological and social anthropological Anthony (eds.). Ancient Warfare. Gloucester- tuguesas (Litorais) do Neolítico Final / Calco-
perspectives. Arhus: Aarhus University Press, shire: Sutton Publishing, pp. 25-38. lítico. Doutoramento em Antropologia. Uni-
pp. 281-304. HARDE, Andreas (2000) – Fear and Wonder. Per- versidade de Coimbra.
BAHN, Paul, ed. (2002) – Written in Bones. London: ceptions on warfare and human sacrifice in the SILVA, Ana Maria (2004) – Guia para as Aulas
David & Charles. Central European Bronze Age. Paper present- de Bioantropologia. Mestrado de Pré-História
BEGUIRISTAIN GURPIDE, M. Amor (1997) – “Beli- ed at European Association of Archaeologists e Arqueologia da FLUL.
cosidad en la Población Usuaria de los Dól- Meeting (16th September 2000, Lisbon). SOARES, Joaquina e SILVA, Carlos Tavares da
menes Navarros. Reflexiones y perspectivas”. HARDING, A. F. (2003) – Sociedades Europeas en (1998) – “From the Collapse of the Chalco-
In BALBÍN BERHMANN, R. de e BUENO RAMI- la Edad del Bronce. Barcelona: Ed. Barcelona. lithic Mode of Production to the Development
REZ, P. (ed.). II Congreso de Arqueología Pe- KEELEY, Lawrence (1997) – War Before Civili- of the Bronze Age Societies in the South-West
ninsular: Neolítico, Calcolítico y Bronze. To- zation: the myth of the peaceful savage. of Iberian Península”. In JORGE, S. O. (ed.).
mo II, pp. 323-332. Oxford: Oxford University Press. Existe uma Idade do Bronze Atlântico? Socie-
BENNIKE, Pia (2006) – “Rebellion, Combat, and KUNST, Michael e UERPMANN, Hans-Peter (2002) dade, Hierarquização e Conflito. Lisboa: Ins-
Massacre: a medieval mass grave at Sandbjerg – “Zambujal (Torres Vedras, Lisboa): relatório tituto Português de Arqueologia, pp. 231-245.
near Naestved in Denmark”. In OTTO, Ton et. das escavações de 1994 e 1995”. Revista Por- SOARES, Joaquina (2003) – Os Hipogeus Pré-
al. (eds.). Warfare and Society: archaeological tuguesa de Arqueologia. Lisboa. 5 (1): 67-96. -Históricos da Quinta do Anjo (Palmela) e as
and social anthropological perspectives. Arhus: LESSA, Andrea (2004) – “Arqueologia da Agres- Economias do Simbólico. Setúbal: Museu de
Aarhus University Press, pp. 305-318. sividade Humana”. Revista História, Ciência e Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setú-
BISHOP, Neil A. e KNUSEL, Christopher J. (2005) Saúde. 11: 2. bal.
– “War in Prehistoric Society: modern views of MARTÍNEZ PEÑARROYA, José (2000) – “Del Con- THORPE, I. J. N. (2003) – “Anthropology, Ar-
ancient violence”. In PEARSON, Mike Parker e flicto Primitivo a la Guerra Organizada: aspec- chaeology and the Origin of Warfare”. World
TORPE, I. J. N. (eds.). “Warfare, Violence and tos bélicos de la Edad del Bronce peninsular”. Archaeology. The Social Commemoration of
Slavery in Prehistory”. BAR Internacional Series, Era-Arqueologia. Lisboa. 2: 153-164. Warfare. 35 (1): 145-165.
1374, pp. 201-216. MERCADAL, O. e AGUSTI, B. (2006) – “Com- VEGAS et. al. (1999) – “San Juan ante Portam
CARDOSO, João Luís (1991) – Estudos Arqueoló- portaments Agressius a la Prehistòria Recent. Latinam: una sepultura colectiva en el valle
gicos de Oeiras. Oeiras: Câmara Municipal de La desmitificació del bon salvatge?”. Cypsela - medio del Ebro”. Revista de Arqueología.
Oeiras. Volume 2. - Canibalisme, violència i guerra. 16. Madrid. 224: 14-25.
CHAPMAN, Robert; KINNES, Ian e RANDSBORG, OSGOOD, Richard; MONKS, Sarah e TOMS, Judith WALKER, Philipp L. (2001) – “A Bioarchaeo-
Klavs, eds. (1981) – The Archaeology of Death. (2000) – Bronze Age Warfare. London: Sutton logical Perspective on the History of Violence”.
Cambridge: Cambridge University Press. Publishing. Annu. Rev. Anthropol. 30: 573-96.
al-madan
XV online
adenda
7 electrónica
OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica
o
A Persistente Ausência r e s u m

Considerações acerca dos no-


o

vos modelos de estudo de ce-

da Análise Etnográfica râmicas pré-históricas, propon-


do a sua aplicação em contex-
tos portugueses.
O autor introduz alguns exem-
plos, destacando a importância
dos dados de natureza etnoar-

e Experimental queológica ou resultantes de


acções de Arqueologia experi-
mental.

p a l a v r a s c h a v e
no estudo da cerâmica pré-histórica em Portugal Pré-História; Cerâmica pré-
-histórica; Etnoarqueologia; Ar-
queologia experimental; Teoria
arqueológica.
por Gonçalo de Carvalho Amaro
Doutorando de Pré-história e Arqueologia na Universidade
Autónoma de Madrid. a b s t r a c t

Considerations on new prehis-


toric pottery study models,
suggesting their application in
Portugal.
The author presents some
1. Introdução examples, highlighting the im-
portance of data resulting from
ethnoarchaeology and experi-
investigação do registo arqueológico, Começam, deste modo, a surgir as primeiras te-

A em Portugal, mantém ainda uma forte


ligação ao estudo histórico, tratando-se
sobretudo de um trabalho auxiliar à interpretação da
ses de doutoramento dedicadas em exclusivo à Pré-
-História e Proto-História, sobressaindo os casos de
Armando F. Silva, do casal Oliveira Jorge, de Victor
mental archaeology actions.

k e y w o r d s

Prehistory; Prehistoric pottery;


História, que utilizava a Arqueologia, tal como a Gonçalves e Manuela Martins.
Ethnoarchaeology; Experimental
Numismática, a Paleografia e a Epigrafia, como um Nos distritos de Lisboa e Porto e nas suas proxi-
Archaeology; Archaeological
anexo complementar da disciplina (JORGE e JORGE midades tornavam-se comuns os trabalhos que iden- theory.
1998: 13). tificavam e descreviam arqueossítios, dando origem
Após um aparente apogeu de estudos sobre a à exposição dos respectivos materiais; esta tradição,
Pré-História em finais do século XIX, fruto da “pai- iniciada sobretudo na década de 80, ainda hoje per-
r é s u m é
xão” de um conjunto de geólogos e engenheiros de siste e, no que diz respeito ao estudo do registo ar-
minas humanistas – que lograram mesmo a realização queológico, limita-se a um estudo numérico e formal Considérations autour des
de um congresso internacional na capital em 1880 dos materiais, fazendo jus à forte tradição histórico- nouveaux modèles d’étude de
(GONÇALVES 1993) –, e apesar dos esforços de Leite -cultural do nosso país. céramiques préhistoriques, pro-
de Vasconcellos em construir um plano etnográfico Contudo, a introdução da Nova Arqueologia – posant son application dans des
contextes portugais.
único para o nosso país, a chegada, nos anos 30, do que no caso luso só chegaria duas décadas depois –
L’auteur introduit certains
Estado Novo, que ao contrário das demais ditaduras parece que deixou alguns arqueólogos e pré-historia- exemples, mettant en relief l’im-
contemporâneas, demonstrou pouco interesse pelos dores embaraçados e, ao contrário do que a própria portance des données de na-
estudos arqueológicos, levaria a ciência que, até à “teoria” indica, abandonaram por completo a cultura ture ethnoarchéologique ou
data, se mantinha num nível semelhante ao das suas material, provavelmente devido ao medo de uma es- résultantes d’actions d’Archéo-
logie expérimentale.
congéneres europeias, praticamente à clandestini- truturação insuficiente que os voltasse a conotar com
dade (JORGE e JORGE 1998: 13). o passado historicista da Arqueologia. m o t s c l é s
O “renascimento” da Arqueologia pré-histórica O que é certo é que em pleno século XXI, em
surgiria somente nos anos 70, com a queda do regi- Portugal, os materiais – o factor mais importante do Préhistoire; Céramique préhis-
me, mas também devido ao contacto com investiga- registo arqueológico – deixaram de fazer parte do es- torique; Ethnoarchéologie; Ar-
chéologie expérimentale; Théo-
dores estrangeiros que encontravam em Portugal um tudo em Pré-História, sobretudo a cerâmica: se pro-
rie archéologique.
paraíso para exercerem os seus trabalhos. Tivemos, curarmos com atenção, após o trabalho de Michael
assim, a visita de Betrice Blance, Savory, o casal KUNST (1987) sobre a cerâmica do Zambujal e a sua
Leisner, Shubart e Sawngmeister, Konrad Spindler, relação com os “horizontes” do Calcolítico, não mais
Breuil, entre outros. se viu trabalho de tal monta.
al-madan
XVI online
adenda
1 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

Para além da simples descrição formal e numéri- A proposta de uma Arqueologia de alcance mé-
ca, praticamente não existem estudos sobre cerâmi- dio, do último investigador nos anos 60 e provavel-
ca pré-histórica, sobretudo se nos circunscrevermos mente fruto de uma época que imaginava um retorno
ao intervalo Pré-História - Pré-Campaniforme. “saudável” à natureza, criou condições para o desen-
Esperava-se que, com a realização do 7º Encon- volvimento do Centro de Arqueologia Experimental
tro Europeu de Cerâmicas Antigas em Portugal, na em Lejre, na Dinamarca, que seria seguida pela cria-
Fundação Calouste Gulbenkian) 1, essa falha fosse ção de novos centros de interpretação, como os Ar-
preenchida. Contudo, contam-se ainda pelos dedos cheódrome na Borgonha francesa e a Butser Ancient
os trabalhos realizados. Aparentemente, esta situa- Farm no Sul de Inglaterra, onde a experimentação
ção pode ser explicada pela ausência de meios e fun- ganhou também uma vertente lúdica e didáctica, re-
dos que permitam análises, petrográficas e de con- velando-se bastante eficaz no ensino da própria Ar-
teúdos, mas também por alguma falta de disponibi- queologia, apesar das críticas de alguns autores, que
lidade dos investigadores que, no caso português, defendem a sua manutenção no âmbito científico
vêem-se a braços com o ensino a tempo inteiro nas (REYNOLDS 1999 e PIJOAN 2001).
universidades ou então trabalhando em empresas de Aqui ao lado, na vizinha Espanha, a experimen-
arqueologia com prazos muito apertados – factores tação arqueológica têm-se estendido a vários museus
que impedem o desenvolvimento de trabalhos de ex- e universidades, destacando-se um trabalho relativa-
perimentação e de acompanhamento etnográfico do mente frequente nos centros interpretativos de Ata-
fabrico dos materiais. puerca e Altamira e nas Universidades de Valladolid
De facto, parece que a cerâmica ficou com o es- e Autónoma de Madrid, onde se têm publicados bo-
tigma do historicismo já que, no que diz respeito ao letins com os respectivos trabalhos (VELÁZQUEZ,
estudo da indústria lítica, os conceitos de Arqueolo- CONDE e BAENA 2004). Os nossos colegas hispâni-
gia Experimental e Etno-arqueologia, introduzidos cos têm igualmente debatido sobre a organização e
por BINFORD (1967), têm sido seguidos, como pode- trabalhos, insistindo no prévio estudo minucioso dos
mos ver em ZILHÃO (1997), BICHO (2000), ALMEIDA materiais, bem como do seu enquadramento biblio-
(1995-1996) e CARVALHO (1995-1996). Contudo, gráfico, capazes de produzir padrões de comparação
mesmo nestes casos, a presença da experimentação e com os processos pré-históricos (PIJOÁN 2001 e BAE-
da comparação etnográfica é ainda limitada. NA 1997).
Javier Baena, que tem vindo a desenvolver na
Universidade Autónoma de Madrid vários trabalhos
2. A Nova Arqueologia e o na área, leccionando mesmo a cadeira de Arqueolo-
debate sobre a cultura material gia Experimental há aproximadamente uma década,
segue sobretudo um modelo de projecto de experi-
Desde o surgimento das bases da Nova Arqueo- mentação que, no geral, deve compor-se dos se-
logia (BINFORD 1967) que muito se tem debatido so- guintes elementos:
bre o papel da cultura material na construção do pas- – Objectivo da experiência;
sado (SHANKS e TILLEY 1987; HODDER 1991 e THOMAS – Descrição da experiência: discussão do proble-
1996), apresentando-se propostas e procurando-se ma, delimitação do marco material, marco técnico,
novas fontes. Sem dúvida que um dos logros mais po- descrição das fases de execução e registo das variá-
sitivos deste debate foi a percepção de que existia uma veis;
actuação meramente contemplativa da cultura mate- – Experimentador(es), local e material;
rial, isto é, a típica ideia de peça na vitrina, que se co- – Descrição do processo de reprodução;
nhece morfologicamente ao milímetro sem que, na – Réplica.
verdade, muito se saiba sobre a mesma e a sua rele- Denota-se sobretudo um maior uso da experi-
vância na cultura. De facto, o espaço existente entre mentação em Arqueologia na investigação da indús-
a Pré-História e a contemporaneidade pode levar os tria lítica e óssea. Todavia, e apesar da relativa eficá-
mais cépticos a ficarem-se por uma observação me- cia das técnicas químicas e de petrografia microscó-
ramente matemática da questão. Porém, a interdisci- pica, hoje em dia essenciais para a compreensão das
plinaridade e o carácter, que ainda tem a Arqueolo- configurações das pastas, a experimentação acaba
gia, de ciência social e humana, leva-nos a tentar ul- por complementar esses processos (EILAND, LUNING
trapassar essa limitação temporal, procurando che- e WILLIAMS 2005), tornando-se por vezes mais efi-
gar ao caminho do fio condutor com o passado. caz, tendo em conta a morosidade destes processos
A investigação em traceologia, impulsionada por (CLOP 1998). Acaba mesmo por abrir um novo leque
1 Deste meeting destacamos os
SEMENOV (1981), e a observação da relação homem / de perspectivas interpretativas, fundamentalmente
trabalhos de CARDOSO et al. 2005,
/ artefacto em povos primitivos actuais, descrita por quando os dados “científicos” se demonstram con-
DIAS et al. 2005 e JORGE et al. 2005,
por incidirem em estudos químicos Binford no seu livro Em Busca do Passado (1991), traditórios, e mostrar-se essencial para o estudo das
e petrográficos de análise de pastas tornaram os artefactos em objectos de estudo minu- várias cadeias operativas no processo de fabrico das
de cerâmicas pré-históricas. cioso e de dedicação exclusiva. peças.
al-madan
online XVI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
No que diz respeito ao con-
ceito em si, do estudo da cerâmi-
ca pré-histórica, o processo ex-
perimental deve conter as se-
guintes fases, descritas em 2004
por Manuel Calvo:
– Busca do afloramento de
argila;
– Preparação da argila e es-
colha dos desengordurantes;
– Modelação a fresco;
– Modelação no primeiro
estado de secagem;
– Argila em estado de “tex-
tura de cuero”, últimos retoques
e primeiras decorações;
– Segundo estado de seca-
gem, torna-se impossível a mo-
delação;
– Cozedura;
– Esfriamento;
– Final, tempo de limpeza,
impermeabilização e decoração
pintada.
Após definidos alguns pon-
tos da experimentação arqueo-
lógica, podemos verificar que
para a apreensão de alguns des-

Fotos: Roberto Hernández.


tes saberes teve que existir um
prévio estudo de Etnografia com-
parada. Tal como a experimen-
tação, a aplicação deste tipo de
trabalhos à Arqueologia surge
também com a Nova Arqueologia e com os trabalhos De hecho, la Antropología ha olvidado sistemática- Figura 1
de Lewis Binford de “primitivos modernos”, através mente la cultura material como parte esencial de la
Reprodução do autor da
do contacto directo (1991), inferindo sobre a forma definición de cada cultura. Es muy difícil encontrar decoração dos célebres “copos
como estes dispunham do seu território, como orga- estudios etnológicos para poder utilizar, con pro- canelados” em placas rectangulares
nizavam os seus acampamentos e tarefas e, funda- piedad, como fuente de analogías con la Prehistoria, de 8 por 14 cm – alguns exemplos
mentalmente, como ficava o sítio após o seu aban- debido al desinterés mostrado en sus páginas por la da fase de produção, de cima para
dono. Com o estudo etno-arqueológico, Binford não cultura material, punto de contacto, de interés para baixo e da direita para a esquerda:
estiramento do barro com chifre
se cinge ao acompanhamento dos ditos povos, mas el arqueólogo” (HERNANDO 1995: 22). de veado; corte das sobras com
também à análise de fotos e de dados históricos re- Como se pode verificar na citação anterior de lâmina de sílex; brunido da
sultantes do seu acompanhamento (BINFORD 1991: Almudena Hernando, a Etno-Arqueologia apresen- superfície com uma concha polida;
131). Neste último aspecto, temos em Portugal uma ta-se como uma ponte entre o meio antropológico e aspecto da superfície brunida;
longa tradição, iniciada com os descobrimentos e arqueológico, com um carácter fundamental para o decoração com punção de madeira
e aspecto final da decoração.
com a obra de Pacheco Pereira em África, o famoso estudo das comunidades pré-históricas (HERNANDO
Esmeraldo de situ orbis, de finais do século XV. O 2006), factores que têm proporcionado o seu desen-
professor de Chicago abrira assim caminho, com os volvimento no ensino universitário (RUBIO 2001).
seus “novos métodos de inferência arqueológica”, a No que diz respeito ao estudo da cerâmica, têm-
um conjunto crescente de trabalhos, e a Etno-Arque- -se realizado basicamente trabalhos de acompanha-
ologia passou a ter os seus defensores também na mento e registo dos processos produtivos (STARK
Europa (HODDER 1990). 1991; DOMINGUEZ-RODRIGO e MARTI 1996; GONZÁ-
Ultrapassou-se a ideia de que a Etno-Arqueo- LEZ 2005; RODRIGUES 2006) e sobre a concepção sim-
logia não era mais do que um estudo antropológico bólica dos aspectos decorativos e da forma (DAVID,
focado nos artefactos e que usava e abusava das STERNER e GAVUA 1988; STERNER 1989; HAALLAND
comparações: “[…] se ha identificado a veces la Etno- 1997; ABBOTT 2000), maioritariamente em povos
arqueología con el estudio de la cultura material de ditos primitivos actuais, mas também sobre grupos
pueblos vivos desde una perspectiva arqueológica. inseridos na nossa sociedade contemporânea (GON-
al-madan
XVI online
adenda
3 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

ZALÉZ 1984; BRUGNOLI 2000; DJORDJEVIC 2005; rais, nomeadamente cicatrização, se encontra pre-
GARCIA 2006). sente nos vasos (DAVID, STERNER e GAVUA 1988:
No ponto que se segue desenvolveremos certos 370-371). HAALLAND (1997) insiste nesta íntima re-
aspectos de alguns dos trabalhos referidos e a sua lação entre a cerâmica e o corpo humano – sobretu-
possibilidade de integração num contexto de inter- do com o feminino; não é por acaso que, como refe-
pretação do estudo do registo arqueológico da Pré- re o autor, ainda na actualidade, utilizamos denomi-
-História. nações de partes do nosso corpo para definir a cerâ-
mica, como pescoço, mamilos, corpo, etc., algo que
ocorre entre alguns povos étnicos, como os Fur, do
3. O engano involuntário Sudão (HAALLAND 1997: 382). Curiosamente, no
da nossa forma de olhar que diz respeito à Pré-História, são bem conhecidos
os casos de vasos que aparentemente representam a
Actualmente temos a tendência, quase que figura humana. No caso particular da Península Ibé-
automática, de atribuir a uma peça de cerâmica um rica, encontramo-los fundamentalmente na zona
fim exclusivamente artístico – já que no nosso quo- Sudeste, entre a transição do Neolítico ao Calcolítico
tidiano o seu uso é praticamente inexistente. O úni- (ESCORIZA 1991-1992; GAVILÁN e VERA 1993).
co conhecimento que temos será de algum jarro anti- Por vezes, um olhar diferente pode levar-nos a
go que subsiste na casa dos nossos avós. Exagerada grandes surpresas, como, por exemplo, tentar entrar
ou não a premissa escolhida, é um facto o distancia- no mundo dos primitivos actuais e na sua forma de
mento que mantemos com estes elementos na actu- encarar as coisas. Podemos assim saber qual é o real
alidade. O afastamento que mantemos em afectivo valor de um objecto e o que está por detrás da sua
com estes materiais pode levar a que a interpretação construção. O trabalho de Ian HODDER (1991) sobre
dos mesmos fique condicionada. Ocorrendo assim a as cabaças da tribo Ilchamus (uma das tribos étnicas
forma mais simples de responder ao problema: uti- da região do Kenya, onde são sobretudo conhecidos
lizar soluções que mais se adeqúem à nossa vivência os Masai), demonstra bem o que está por detrás das
e contemporaneidade, seguir o pensamento positi- decorações: as cabaças são o único objecto da cul-
vista e humanista, que em parte ajudou ao surgimen- tura material dos Ilchamus que apresenta decoração;
to da própria ciência arqueológica (THOMAS 2004), a simbologia deste acto liga-se ao facto do objecto
mas que nos mantém demasiado rígidos e matemáti- estar relacionado com dois factores fundamentais
cos no sentido interpretativo. É necessária uma para a economia da tribo – o gado e as crianças.
maior mobilidade no estudo da cultura material – o Como nos explica Hodder, esta tribo vive da pastorí-
uso de um outro tipo de observação que produza al- cia e as crianças são quem geralmente leva o gado a
go vivo e não estagnado; ao fim e ao cabo estamos a pastar; a riqueza de cada um provém do número de
falar dos elementos mais frequentes numa jazida ar- cabeças que tem. A premissa “muito gado igual a
queológica. muitas mulheres e crianças” é um dado evidente
Por exemplo, no caso particular da cerâmica, (HODDER 1991: 107). A cabaça é um artefacto exclu-
existe uma extraordinária concepção simbólica. A sivo de cada menino, contém leite (que provém do
capacidade de criar, de dar vida, está intrinsecamente gado), essencial à sua alimentação juvenil. Mas estes
relacionada, em várias culturas, com a modelação do não são os factores código do facto em si da orna-
barro; não é por acaso que na Bíblia surge essa ana- mentação das abóboras, mas algo mais metafísico –
logia. É verdade que as manifestações originadas em a compreensão e a acepção humana, isto é, quanto
argilas são representações animais e antropomórfi- mais bem decorada estiver a cabaça, significa que a
cas, sendo, as primeiras, conhecidas desde o Paleo- mulher está preocupada com os seus filhos e, conse-
lítico Superior (D’ ANNA et al. 2003: 87) e não abs- quentemente, com a riqueza de sua família e do seu
tracções como é, em parte, a cerâmica. O já referido esposo. É também uma forma abstracta de expor a
trabalho de DAVID, STERNER e GAVUA (1988) de- sua opinião, já que não pode participar nos conselhos
monstra ainda a existência desta relação de criação e, tribais: “It shows that a man has a good wife, if she
inclusive, ligação metafísica entre homem e cerâmi- decorates the calabashes: it shows that she has some
ca. Estes autores observaram que entre os Mafa e os pride in her domestic childe-raising activities, and
Bulahay, tribos dos Camarões, existe uma estreita re- this implies a certain acquiescence to his own inter-
lação entre os antepassados e a cerâmica, sendo os ests – to what she think is important” (HODDER
recipientes um ponto de conexão entre o mundo dos 1991: 109).
vivos e o além. Os estudos etnográficos também nos dão indica-
Deste modo, pode explicar-se o facto de que as ções preciosas sobre o próprio processo de fabrico
cerâmicas sejam adornadas da mesma forma que os dos artefactos. Entre os Navajo (EUA), a aprendiza-
humanos, isto é, o azeite usado para o engobe da ce- gem para a construção de uma peça provém de uma
râmica é o mesmo usado pelas pessoas em dias im- sincronia de sentidos que implica a observação do
portantes, assim como parte das decorações corpo- processo e a consequente memorização e repetição
al-madan
online XVI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
dos passos até ao produto final:
“One must build long sequences by
accretion onto previously memo-
rized sequences. One can talk about
sub-routines and hierarchies within
the sequence, but one does not learn
then this way” (WYNN 1993: 394).
É basicamente um processo prá-
tico e de apreensão sensorial, como
constatamos em cima. Wynn refere
inclusive que é um método que se
pode encontrar, hoje em dia, em
qualquer trabalho contemporâneo
que recorra ao emprego de uma co-
ordenação motora precisa (IDEM, ibi-
dem). Nos exemplos que expõe, des-
perta-me a atenção a música, uma
actividade com a qual estive conec-
tado na adolescência. Recordo-me
perfeitamente das horas que perdia
com a mesma sequência na viola e
Foto: Varinia Varela.

do útil que era olhar para as mãos do


meu professor a dedilhar – era essen-
cialmente um trabalho silencioso, de
observação e repetição exaustiva dos
mesmos acordes e da mesma com-
posição até atingir a técnica perfeita. Ingold: “[…] some kind of adaptative convergence – Figura 2
Peter Reynolds, que trabalhou com os aboríge- of natural selection and human intellect, operating
Preparação de um forno para
nes australianos, verificou que para eles a produção quite independently, arriving at parallel solutions cozer cerâmica.
de um artefacto não é um acto individual e que, de- […]” (INGOLD 2005: 343).
Na povoação de Toconce
pois de consolidados os processos de aprendizagem, O mesmo autor destaca ainda a visão dos Ye- (Norte do Chile, II región),
torna-se num trabalho conjunto e complementar. Co- kuana, tribo do Sul da Venezuela, estudados por os oleiros seguem ainda as
mo afirma, a essência da actividade técnica humana David Guss. Esta tribo tem uma forte conexão com tradições milenares no fabrico
é a antecipação da acção do outro e a actuação com- o acto de elaboração de cestos (tecer). É tão impor- das cerâmicas.
plementar à sua obra. (REYNOLDS 1993: 412). tante esta tarefa que inclusive o termo tecer acaba
Tim Ingold, na sua obra The Perception of the por ser aplicado aos outros processos de fabrico de
Environment (2005), incide, de uma forma geral, na artefactos. A cultura material é então um objecto de
ideia de antítese existente entre as sociedades mo- criação. Em contrapartida, os materiais do “mundo
derna ocidental e os povos que vivem ainda numa ocidental”, com os quais têm inevitavelmente con-
economia “primitiva” de caça e recolecção. Destaca tacto, são considerados como artefactos “feitos”. O
fundamentalmente a separação intrínseca que faze- acto de tecer é para eles um acto identificador, onde
mos (os ocidentais e os ocidentalizados) entre huma- os artefactos têm um forte valor cultural; por outras
nidade e natureza, criando assim dois mundos para- palavras, digamos que estes funcionam como “cria-
lelos. No entanto, para os caçadores-recolectores, dores de cultura”, um espelho da sua sociedade e das
existe somente um mundo e os seres humanos não suas características específicas.
são mais que uma pequena parte do mesmo – mais O simbolismo da palavra tecer levou a que Guss
uma espécie, em plena igualdade em relação às ou- concluísse que existia como que uma forma primiti-
tras (INGOLD 2005: 68). Consequentemente, Ingold va de apropriação da natureza, implícita no próprio
também acha que, nos primeiros momentos de mu- modo de tecer como algo construtivo, ou seja, de
dança de uma sociedade de caça e recolecção para transformação da natureza, atribuir-lhe uma regra.
uma “doméstica”, existiu uma estreita relação com a Ao revés, Ingold considera que não se trata de um
natureza e que esta foi um ponto de inspiração. processo de sublimação humana, mas antes de uma
No que diz respeito à cultura material, apresen- interpretação do ambiente – as ideias do homem
ta-nos o exemplo das cestas dos mesmos Navajos e provêm do que o rodeia e, em tempos passados, a
da similitude entre a forma espiral do fundo da cesta única essência de inspiração para o homem era a
e a de um gastrópode. A “imitação” neste caso po- própria natureza: “It is, as I have shown, an episte-
derá simbolizar a resolução de problemas similares, mology that takes as given the separation of the cul-
cuja resposta podemos encontrar nas palavras de tural imagination from the material world, and thus
al-madan
XVI online
adenda
5 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

presupposes the existence, at their interface, of a Durante os séculos XVIII e XIX, a maior parte
surface to be transformed. According to what I have dos “pueblos de índios” foram desmembrados e
called the standard view, the human mind is sup- constantemente trasladados, devido à ganância de
posed to inscribe its designs upon this surface terras dos “encomenderos” espanhóis e, mais tarde,
thought the mechanical application of bodily force – chilenos. A localização actual de Pomaire data de fi-
augmented, as appropriate, by technology. I mean to nais de XIX. Fartos de trabalhar praticamente como
suggest, to the contrary, that the form of objects are escravos nas grandes propriedades agrícolas, os cam-
not imposed from above but grow from the mutual poneses índios utilizaram a produção de cerâmica
involvement of people and materials in an environ- como resistência.
ment” (INGOLD 2005: 343). Para isso serviram-se da matéria-prima que era
Transmitimos, neste ponto, que os artefactos não abundante no lugar de Pomaire e lhes permitia uma
têm exclusivamente uma dita forma porque se aplica produção excedentária capaz de vender a outros lu-
melhor a este ou aquele tipo, função ou conteúdo, e gares os seus recipientes e dar-lhes sustento (IDEM,
que as decorações não se cingem só aos gostos de- ibidem). A tradição foi-se mantendo até aos dias de
corativos de uma determinada tribo. A situação é hoje e, não obstante a necessidade de subsistência,
muito mais complexa que isso, as propostas inter- foi levando a que as peças se fossem adaptando à
pretativas das diversas situações que apresentei pre- moda contemporânea, diluindo-se cada vez mais a
cedentemente não são a “luz no fundo do túnel”, são presença da tradição indígena na cerâmica, sendo
somente propostas – mesmo que, em determinadas actualmente muito difícil aos artesãos a identificação
situações, a comparação entre contextos económicos das representações e decorações utilizadas pelos
similares pareça inviável pela separação cronológica seus antepassados, ao contrário do que sucede na re-
e pela voracidade da globalização – entendemos que gião de Atacama, onde a pressão da cultura dos euro-
podem ajudar a fazer estimativas mais próximas do peus “criollos” (nascidos na América) se faz sentir
modo de vida das sociedades passadas. há menos de cinco décadas.
Deste modo, um pouco nostálgico, pretendo ex-
por de forma simples um facto básico para a Pré-
4. Conclusão: a ausência de um fio condutor -História europeia – a ausência total de uma identi-
na interpretação pré-histórica dade com o passado. Infelizmente, não temos na Eu-
ropa avós que nos expliquem o porquê destes sím-
No Verão de 2006, quando visitei pela primeira bolos esquisitos à nossa vista, a maior parte das ve-
vez o Chile, decidi, como “bom” arqueólogo, visitar zes abstractos, que encontramos nas cerâmicas, pare-
o complexo arqueológico do deserto de Atacama. Ali des e demais artefactos que sirvam de suporte e que
verifiquei, com assombro, tendo em conta o que es- representam o passado distante. O processo global de
tou habituado na Europa, a capacidade dos oleiros evolução e suplantação de culturas no Velho Mundo
actuais em interpretar as decorações deixadas pelos (cartagineses, romanos, visigodos, árabes, no caso
seus antepassados, atacamenhos, aymaras e incas. peninsular) acabou por ter um papel similar ao das
Acontece que, no deserto, as gentes mantêm ainda constantes modas e à necessidade de sobrevivência
um fio condutor entre o presente e a sua cultura pas- que originaram o gradual processo de corte com o
sada, permitindo-lhes assim reproduzir a Pacha Ma- passado em Pomaire.
ma 2 numa cerâmica da mesma forma que antes, O caso que aqui refiro não é um caso excepcio-
porque o seu avô assim os ensinou a fazer, explican- nal, mas sim um exemplo que em parte explica a au-
do-lhes o porquê de cada traço. sência de um fio condutor das nossas mentalidades e
Mais a Sul, já perto da capital Santiago, visitei a tradições actuais em relação à dos nossos antepassa-
aldeia de Pomaire, que tem o curioso apelido de dos pré-históricos, factores que acabam por influen-
“aldea alfarera” (aldeia de oleiros), um lugar ópti- ciar a interpretação do registo arqueológico, deixan-
mo para comprar os tradicionais “recuerdos”. Os ha- do-nos aparentemente numa situação de vazio e, por
bitantes do local vivem quase exclusivamente da pro- vezes, levando à concepção de ideias e teses que
dução de cerâmica (alguns, poucos, ainda sem o uso mais se coadunam com a nossa forma de pensar con-
da roda), existindo casa sim, casa sim uma olaria, temporânea. Tentei com este pequeno artigo descre-
tornando o negócio praticamente inviável. A História ver alguns dos principais estudos que, de alguma
explica-nos o porquê de tal fenómeno: a povoação maneira, contribuem para que o vazio sentido aquan-
de Pomaire foi criada no século XVII pelos espa- do da análise dos materiais pré-históricos – em par-
2 Divindade dos povos andinos
nhóis, no âmbito de uma política de organização po- ticular as cerâmicas –, se torne cada vez mais pre-
pré-colombianos, difundida
sobretudo pelos Incas,
pulacional do entorno de Santiago, misturando em enchido.
cujo nome significa “Mãe Terra” alguns lugares várias culturas indígenas do Chile
ou “Mãe Natureza”. actual (BRUGNOLI 2000: 30).
al-madan
online XVI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Foto: Gonçalo Amaro.
Figura 3

Aspecto de uma olaria de San Pedro de Atacama (Norte do Chile, II región), onde se pode
ver uma extensa reprodução dos motivos e peças utilizadas pelos anteriores povoadores
Bibliografía da região: cultura tiwuanaku, atacamenhos, incas e aymaras numa fase mais próxima.

ABBOT, D. (2000) – “Ceramics and Community CALVO, M. et al. (2004) – La Cerámica Prehis- DIAS, I.; VALERA, A. e PRUDÊNCIO, M. I. (2005) –
Organization Among the Hohokam”. American tórica a Mano: una propuesta para su estudio. “Pottery Production Technology Throughout
Antiquity. Washington: Society for American Mallorca: El Tall. the Third Millennium BC on a Local Settle-
Archaeology. 67 (4): 784-785. CARDOSO, J. L.; SALANOVA, L. e QUERRÉ, G. ment Network in Fornos de Algodres, Central
ALMEIDA, F. (1995-1996) – “O Método das Re- (2005) – “Bell Beaker Relationships Along the Portugal”. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M. I. e
montagens Líticas: enquadramento teórico e Atlantic Coast”. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M. WAERENBORGH, J. C. (eds.). “Understanding
aplicações”. Trabalhos de Arqueologia da EAM. I. e WAERENBORGH, J. C. (eds.). “Understanding People Through Their Pottery”. Trabalhos de
Lisboa: Colibri. 3-4: 1-40. People Through Their Pottery”. Trabalhos de Arqueologia. Lisboa: IPA. 42: 41-50 (Proceed-
BAENA, J. (1997) – “Arqueología Experimental: Arqueologia. Lisboa: IPA. 42: 27-32 (Proceed- ings of the 7th European Meeting on Ancient
algo más que un juego”. Boletín de Arqueolo- ings of the 7th European Meeting on Ancient Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003).
gía Experimental. Madrid: Universidad Autó- Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003). DJORJEVIC, B. (2005) – “Some Ethnoarchaeo-
noma de Madrid. 2. CARVALHO, A. F. (1995-1996) – “O Talhe de Pe- logical Possibilities in the Pottery Technology
BICHO, N. (2000) – “Technological Change in dra e a Transição Neolítico-Calcolítico no Cen- Investigations”. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M.
the Final Upper Paleolithic of Rio Maior”. tro e Sul de Portugal: tecnologia e aspectos da I. e WAERENBORGH, J. C. (eds.). “Understand-
Arkeos. Tomar: Ceiphar. 8: 335-354. organização da produção”. Trabalhos de Arque- ing People Through Their Pottery”. Trabalhos
BINFORD, L. (1967) – “Smudge Pits and Hide ologia da EAM. Lisboa: Colibri. 3-4: 41-60. de Arqueologia. Lisboa: IPA. 42: 61-70
Smoking: the use of analogy in archaeology CHILDE, G. (1925) – The Dawn of European (Proceedings of the 7th European Meeting on
reasoning”. American Antiquity. 32 (1): 1-12. Civilization. London: Cape. Ancient Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003).
BINFORD, L. (1991) – Em Busca do Passado. CLOP, X. (1998) – “Cerámica Prehistórica y Ex- DOMINGUEZ-RODRIGO, M. e MARTI, R. (1996) –
Trad. João Zilhão. Mem-Martins: Pub. Europa perimentación”. Boletín de Arqueología Expe- “Estudio Etnoarqueologico de un Campa-
América (col. Forúm da História). rimental. Madrid: Universidad Autónoma de mento Temporal N’Dorobo (Masai) en Kalabu
BLANCE, B. (1959) – “Cerâmica Estriada”. Re- Madrid. 2: 11. (Kenia)”. Trabajos de Prehistoria. Madrid:
vista Guimarães. Barcelos: Publicações da So- D’ANNA, A. et al. (2003) – La Céramique. La CSIC. 53 (2): 131-143.
ciedade Martins Sarmento. 69: 459- 464. poterie du Néolithique aux temps modernes. EILAND, M.; LUNING, J. e WILLIAMS, Q. (2005) –
BRUGNOLI, V. (2000) – Pomaire: situación y cam- Paris: Errance. “Technical Analysis of Earth Ovens from
bio de un Pueblo Alfarero. Un acercamiento DAVID, N.; STERNER, J. e GAVUA, K. (1988) – Nieder Morlen”. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M.
desde sus artesanos. Santiago: Universidad “Why Pots are Decorated?”. Current Anthro- I. e WAERENBORGH, J. C. (eds.). “Understand-
Bolivariana. pology. 29 (3): 365-389. ing People Through Their Pottery”. Trabalhos
al-madan
XVI online
adenda
7 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

de Arqueologia. Lisboa: IPA. 42: 71-81 HODDER, I. (1991) – Reading the Past. Current SALANOVA, L. (2002) – “Fabrication et Circula-
(Proceedings of the 7th European Meeting on approaches to interpretation in archaeology. tion des Céramiques Campaniformes”. In GUIL-
Ancient Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003). 2nd edition. Cambridge: Cambridge Universi- LAINE, Jean (dir.). Matériaux, Productions, Cir-
ESCORIZA, T. (1991-1992) – “La Formación So- ty Press. culations du Néolithique à l’Age du Bronze.
cial de los Millares las «Producciones Simbó- HODDER, I. (1996) – Theory and Practice in Ar- Paris: Editions Errance, pp. 151-168 (Sémi-
licas»”. Cuadernos de Prehistoria de la Uni- chaeology. London and New York: Routledge. naire du Collège de France).
versidad de Granada. Granada: Departamento INGOLD, T. (2005) – The Perception of the Envi- SANHUEZA, L. (1997) – “Hacia una Definición el
de Prehistoria de la Universidad de Granada. ronment: essays in livelihood, dwelling and Concepto de Tradición Cerámica”. In XIX
16-17: 135-165. skill. 4th ed. London and New York: Routledge. Congreso Nacional de Arqueologia Chilena.
FALABELLA, F. (1993) – “Alfarería Llolleo: un JORGE, A.; DAY, P. M.; VALERA, A. C.; DIAS, M. Copiapó: Museo Regional de Copiapó, pp. 37-
enfoque funcional”. Boletín del Museo Re- I. e PRUDÊNCIO, M. I. (2005) – “Ceramics, -45.
gional de la Araucária. Temuco: Museo Re- Style and Exchange in the Early Neolithic SEMENOV, S. (1981) – Tecnología Prehistórica.
gional de la Araucária. 2: 327-354 (Actas del Upper Mondego Basin: a technological Barcelona: Bakal.
XII Congreso Nacional de Arqueología Chile- approach”. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M. I. e SHANKS, M. e TILLEY, C. (1987) – Re-Cons-
na, Temuco, 1991). WAERENBORGH, J. C. (eds.). “Understanding tructing Archaeology: theory and practice.
GARCIA, J. (2006) – “La Producción Cerámica en People Through Their Pottery”. Trabalhos de Cambridge: Cambridge University Press (New
los Valles Centrales de Chile: estrategias pro- Arqueologia. Lisboa: IPA. 42: 121-130 Studies in Archaeology).
ductivas”. Treballs d’Etnoarqueología. Ma- (Proceedings of the 7th European Meeting on SHERRATT, A. (1987) – “Wool, Wheels and
drid: CSIC. 6: 297-313 (Etnoarqueología de la Ancient Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003). Ploughmarks: local developments or outside
Prehistoria: más allá de la analogía). JORGE, V. e JORGE, S. (1998) – “Arqueologia instructions in Neolithic Europe?”. Bulletin
GAVILÁN, B. e VERA, J. (1993) – “Cerámicas con Portuguesa no Século XX: alguns tópicos para Inst. of Archeology. London. 23: 1-15.
Decoración Simbólica y Cordón Interior Per- um balanço”. In Arqueologia, Percursos e In- STARK, M. (1991) – “Ceramic Production and
forado Procedente de Varias Cuevas Situadas terrogações. Porto: ADECAP, pp. 13-30. Community Specialization: a Kalinga ethnoar-
en la Subbética Cordobesa”. SPAL. Sevilla: KUNST, M. (1987) – “Zambujal: glockenbecher chaeological study”. World Archaeology.
Universidad de Sevilla. 2: 81-108. und kerbblattverzierte keramik aus den grabun- London and New York: Routledge. 23 (1): 57-
GIBSON, A. e WOODS, A. (1990) – Prehistoric gen 1964 bis 1973”. Madrider Beitrage. Mainz -158.
Pottery for the Archaeologists. Leicester: am Rhein: Verlag Philipp von Zabern. 5 (2). STERNER, J. (1989) – “Who is Signalling Whom?
Leicester University Press. KUNST, M. (1996) – “A Cerâmica Decorada do Ceramic, style, ethnicity and taphonomy
GONÇALVES, V. (1993) – “O Congresso de 1880”. Zambujal e o Faseamento do Calcolítico da among the Sirak Bulahay”. Antiquity. 63 (240):
In Pré-História de Portugal. Lisboa: Círculo Estremadura Portuguesa”. Estudos Arqueoló- 451-459.
de Leitores. Vol. I (“Portugal na Pré-História”), gicos de Oeiras. Oeiras: Câmara Municipal de THOMAS, J. (1996) – Time Culture and Identity:
pp. 99-108. Oeiras. 6: 257-286. an interpretative archaeology. London and
GONZÁLEZ, A. (2005) – “Etnoarqueología de la ORTON, C.; TYERS, P. e VINCE, A. (1993) – Pot- New York: Routledge.
Cerámica en el Oeste de Etiopía”. Trabajos de tery in Archaeology. Cambridge: Cambridge THOMAS, J. (2004) – Archaeology and Moderni-
Prehistoria. Madrid: CSIC. 62 (2): 41-66. University Press. ty. London and New York: Routledge.
GONZÁLEZ, C. (1984) – Simbolismo en la Alfa- PIJOAN, I. (2001) – “Experimentación en Arque- TRIGGER, B. (1989) – A History of Archaeolo-
rería Mapuche. Claves astronómicas. Santia- ología: reflexiones para una propuesta operati- gical Thought. Cambridge: Cambridge Uni-
go: Pontificia Universidad Católica de Chile va y explicativa”. Revista Atlántica-Mediter- versity Press.
(Colección Aisthesis). ránea. Cádiz: Universidad de Cádiz. 4. TSETLIN, Y. B. (2005) – “Ceramics Culture: a real
GUERRA, E. (2006) – “Sobre la Función y el RENFREW, C. (1973) – Before Civilization: the system and a source of historical information”.
Significado de la Cerámica Campaniforme a radiocarbon revolution and Prehistoric Europe. In PRUDÊNCIO, M. I., DIAS, M. I. e WAEREN-
Luz de los Análisis de Contenidos”. Trabajos London: Cape. BORGH, J. C. (eds.). “Understanding People
de Prehistoria. Madrid: CSIC. 63 (1): 69-84. REYNOLDS, P. (1993) – “The Complementation Through Their Pottery”. Trabalhos de Arqueo-
HAALAND, R. (1997) – “Emergente of Sedent- Theory of Language and Tool Use”. In GIBSON, logia. Lisboa: IPA. 42: 289-294 (Proceedings
ism: new ways of living, new ways of symbol- Kathleen e INGOLD, Tim (eds.). Tolls Language of the 7th European Meeting on Ancient
izing”. Antiquity. London: Antiquity Publica- and Cognition in Human Evolution. Cambridge: Ceramics - EMAC’03, Lisboa, 2003).
tions. 71 (272): 374-385. Cambridge University Press, pp. 407-428. VELÁZQUEZ, R.; CONDE, C. e BAENA, J. (2004) –
HERNANDO, A. (1995) – “La Etnoarqueología REYNOLDS, P. (1999) – “The Nature of Experi- “La Arqueología Experimental en el Museo de
Hoy: una vía eficaz de aproximación al pasa- ment in Archaeology”. In JEREM, Erzsibet e San Isidro”. Estudios de Prehistoria y Arqueo-
do”. Trabajos de Prehistoria. Madrid: CSIC. 52 POROSZLAI, Ildiko (eds.). Archaeology of the logía Madrileñas. Madrid: Museo de San
(2): 15-34. Bronze and Iron Age. Budapest: Archeolingua, Isidro. 13: 3-22.
HERNANDO, A. (2006) – “Etnoarqueología y Glo- pp. 387-395 (Procedings of the Internacional WYNN, T. (1993) – “Layers of Thinking in Tool
balización. Propuesta para una etnoarqueolo- Archaeological Conference, Szahalombatta, 3- Behaviour”. In GIBSON, Kathleen e INGOLD,
gía estructuralista”. Treballs d’Etnoarqueolo- -7 October, 1996). Tim (eds.). Tolls Language and Cognition in
gía. Madrid: CSIC. 6: 25-32 (Etnoarqueología RODRIGUES, M. C. (2006) – “A Primeira Cerâmi- Human Evolution. Cambridge: Cambridge
de la Prehistoria: más allá de la analogía). ca «Tradicional Recente» Proveniente de Tete University Press, pp. 389-406.
HODDER, I. (1990) – The Domestication of Europe: (Província de Tete, Moçambique)”. Revista ZILHÃO, J. (1997) – O Paleolítico Superior da
structure and contingency in Neolithic society. Portuguesa de Arqueologia. 9 (1): 197-223. Estremadura Portuguesa. Lisboa: Colibri.
Oxford: Blackwell. RUBIO, I. (2001) – “La Etnoarqueología: una dis-
HODDER, I. (1990a) – “Ethnoarchaeology and its ciplina nueva en la docencia universitaria y en
Relation to Contemporary Archaeological la investigación españolas”. Cuadernos de
Theory”. Arqueologia Hoje. Quarteira: Uni- Prehistoria y Arqueología. Madrid: Universi-
versidade do Algarve. 1: 244-251. dad Autónoma de Madrid. 25 (1): 9-33.

al-madan
online XVI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica
o
A Influência dos r e s u m

Abordagem da influência da loi-


o

ça fina importada do território

Modelos de Importação continental português, enquan-


to modelo das formas cerâmi-
cas recriadas nas olarias da Ilha
da Madeira, no século XVII.
O autor comenta e caracteriza
esta aproximação estética ao

da Cerâmica Fina gosto da época, a partir de ma-


teriais exumados em sítios ar-
queológicos de natureza aristo-
crática e religiosa.

nas produções madeirenses do século XVII p a l a v r a s c h a v e

Idade Moderna; Cerâmica de


cozinha; Ilha da Madeira.

por Élvio Duarte Martins Sousa


Arqueólogo e investigador do CEAM – Centro de Estudos de a b s t r a c t
Arqueologia Moderna e Contemporânea.
Influence of fine china imported
from Continental Portugal as a
model for the ceramic shapes
recreated on the Island of Ma-
deira potteries in the 17th cen-
0. Discussão tury.
The author comments and char-
os últimos tempos, o registo arqueológi- O reportório de formas resultante do registo acterizes this aesthetic approach

N co dos sítios da Madeira e do Porto


Santo tem mostrado um tipo caracterís-
tico de cerâmica, com pastas de fabrico local cuja
arqueológico revela uma tipologia multifacetada e
com fortes afinidades às lides quotidianas. Trata-se,
basicamente, de peças de uso utilitário, como sejam
to the taste of the epoch, bas-
ed on materials excavated from
aristocratic and religious sites.

influência morfológica se pode situar nos modelos as tigelas, as taças, as bilhas, os tachos, as frigideiras, k e y w o r d s
de importação da conhecida cerâmica fina não vidra- os púcaros e os pucarinhos. São peças extremamente
Modern age; Kitchen pottery;
da, de produção continental 1. Este dado tem ali- úteis às necessidades quotidianas da vida doméstica,
Island of Madeira.
mentado a discussão em torno da possível imitação não só para um uso culinário (como as peças de cozi-
local dos serviços de louça fina, caracterizada pelas nha e de mesa) mas, também, para outras necessi-
superfícies engobadas e brunidas, de pastas com- dades prementes, caso da armazenagem de alimen-
pactas e depuradas e de elevado requinte e qualidade tos e bebidas. r é s u m é
de acabamento. São peças que, do ponto de vista de-
Approche de l’influence de la
corativo, ostentam frequentemente apontamentos com O texto orienta-se, assim, pela problemática da vaisselle fine importée de la
reticulados oblíquos, linhas quebradas em zigueza- relação de causalidade entre a cultura material cerâ- métropole portugaise, comme
gue e onduladas, caneluras, ônfalos (pequenas con- mica importada e uma provável recriação desses mo- modèle des formes céramiques
cavidades) e pintura a branco e contornos incisos delos nas olarias locais. recréées dans les poteries de
l’Ile de Madère au XVIIème siè-
(ver Fig. 2) 2. Discutem-se alguns indicadores históricos na re-
cle.
Além da problemática subjacente à seriação do lação com os centros produtores do continente por- L’auteur commente et caracté-
grupo de pasta das louças de produção local (SOUSA tuguês, e salientam-se os aspectos técnicos do grupo rise ce rapprochement esthé-
2006), cujo estudo seguiu de perto a metodologia das de pasta local (caracterizado pela sua cor castanha tique avec le goût de l’époque,
análises químicas e mineralógicas e permitiu conse- avermelhada, uma textura mais ou menos grosseira e à partir de matériaux exhumés
sur des sites archéologiques de
quentemente traçar um quadro crono-tipológico dos tratamento das superfícies à base de um brunimen-
nature aristocratique et religi-
materiais cerâmicos madeirenses, o tema em dis- to), em analogia com as cerâmicas finas não vidra- euse.
cussão constitui um dos assuntos mais aliciantes no das.
estudo da problemática de cerâmica da Época Mo- m o t s c l é s
derna no arquipélago da Madeira. Todavia, pese em-
Période moderne; Céramique
bora o presente texto procure abordar uma possível
de cuisine; Ile de Madère.
relação de gosto e de recriação regional das séries
importadas, os dados actualmente disponíveis são 1 De acordo com a tipologia apresentada no artigo remetido para publicação
ainda insuficientes e requerem uma reflexão mais nas actas do VI Encontro de Olaria Tradicional de Matosinhos (SOUSA, no prelo).
profunda e sustentada. 2 Exceptuam-se desta análise os exemplares com decoração empedrada.

al-madan
XVII online
adenda
1 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

No século XVII, chegam carrega-


mentos de louça de várias localidades
do continente português, com especial
atenção para as produções de Aveiro:
em 1667, louça vermelha (20 carros);
em 1670, louça (quatro carros), em
1682, louça (20 carros), e em 1699,
louça vermelha (dez carros) (LEÃO
1999: 123-149). Da primeira metade
do século XVII temos conhecimento
de dois carregamentos. Um primeiro,
datado de 17 de Julho de 1623, dando
Fig. 1
Na contextualização histórica, importa sublinhar conta de um fretamento de uma embarcação de
que o povoamento do arquipélago da Madeira no sé- nome Santo António pelo comerciante Gaspar Pires
culo XV implicou a construção de raiz de infra-es- Machado para se deslocar a Aveiro e à Madeira, a
truturas, traçados e usos do espaço à imagem de um fim de transportar louça (MOREIRA 1990). E um ou-
modelo de origem adaptado à orografia insular. Do tro, de 9 de Junho de 1632, que menciona a chegada
“Reino”, os apetrechos de cerâmica terão chegado ao porto do Funchal da embarcação de nome
aos milhares aos portos madeirenses, com o objecti- Santíssimo Sacramento, propriedade de Manoel
vo de cobrir as necessidades quotidianas da popula- Louiz, alemão, declarando que trazia sal e louça:
ção recém-chegada. “Na ditta Vereação veo a camara Manoel Louiz?
Alemao mestre de sua caravella por nome Santís-
simo Sacramento que veo de Aveiro e declarou que
1. As importações elle trousse Sal e Lousa que podia tudo importar
cento e sincoenta mil reis pouco mais ou menos
Entre os séculos XV e XVII contabilizam-se vá- […]” 3.
rias referências documentais relativas à entrada de Outras fontes documentais individualizam um
loiça de Portugal continental. No final do século XV tipo característico de louça fina de importação muito
(1485 e 1486), as vereações da Câmara Municipal apreciada em meios sociais religiosos e aristocratas.
do Funchal situam a proveniência de conjuntos de Cita-se, por exemplo, um documento do Colégio
louça e de cerâmica de construção (telhas) oriundas dos Jesuítas do Funchal da segunda metade do sécu-
da várias parte dos Reino, a saber: “pannelas do Por- lo XVII, que justifica curiosamente o uso social das
to”, “louça de Lixboa” e “louça de Setuuall” (COS- cerâmicas para proveito dos governadores: “Mandou
TA 1995: 100): se vir do Reyno grande quantidade de Louça fina
“Item acordarom e detrimjnarom que Fernan- para o uso dos governadores, quando são hospeda-
deannes mercador que comprou as panellas do Por- dos no Collegio, e outro sy muitos pucaros de Maya
to antes dos qujnze djas da postura que page a pena para o mesmo uso […]” 4.
que ssom trezentos rrs. E mães a dicta louça sse
rreparta per o dicto pouoo”.
“Item no dicto dia detriminarom que Gil Enes 2. As produções locais
alffayte page iijc rrs. de pena em que cayo por com-
prar louça de Lixboa ante de Sam Joam esto antes As produções regionais de louça utilitária eram
3 ARQUIVO… L.º 1326, 1632, fl. 33. dos quinze djas conteúdos na pustura e que a louça tidas de fraca qualidade. Por essa razão, o fabrico de
4 Cfr. CARITA 1987: 240. rreparta per o pouo”. peças de cerâmica pelos oleiros da Ilha da Madeira
foi objecto de frequentes preocupações municipais.
A inferior qualidade do barro de ilha, conhecido por
“barro da terra” 5, dificultava a confecção de reci-
pientes de boa qualidade para as lides quotidianas.
Sabe-se, inclusive, que a Câmara Municipal do Fun-
chal promoveu, sistematicamente, uma série de me-
al-madan
online XVII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
didas com vista a impedir a proliferação da chamada
“lousa falsa”, tida como frágil e quebradiça 6. Ao
longo dos séculos XVI e XVII, procurou-se fiscali-
zar a actividade dos oleiros, sobretudo na preparação
da matéria-prima, determinando-se que no fabrico
da louça não se misturasse o barro da ilha com o im-
portado de Lisboa 7, ou que se a fabricasse através de Fig. 2
uma mistura de barro local com outros do Porto San-
to e Açores 8.
A documentação aponta como uma das princi-
pais características da louça regional a cor predomi-
nantemente avermelhada. Essa característica era, se-
Figs. 3, 4 e 5
gundo Alberto Artur Sarmento, observável nas pro-
duções da Rua da Olaria, na actual zona velha do
Funchal, na segunda metade do século XVII, onde
também se comercializava louça com essa tonali-
dade (SARMENTO 1941).
Apesar da inferior qualidade das peças, a produ-
ção de cerâmica local representou uma fatia consi-
derável no mercado regional, sobretudo na confec-
ção de recipientes para uso utilitário e culinário. Veja-
-se, por exemplo, um precedente na relação morfo-
-terminológica dos recipientes cerâmicos, através da
descrição das posturas de 1587, onde a referência ter-
minológica aos alguidares é acompanhada pela área
5 As provisões da Câmara do Funchal proibiam na
geográfica de origem, a localidade de Aveiro 9.
confecção da louça o uso da “terra de masapes” ou de
A suposta relação com a louça de paredes finas “almagra” [variedade de argila vermelha]: “[…] os oleiros
de importação pode ser observada macroscopica- desta cidade não uzem de botar almagra na lousa que fizerem e
mente nalguns exemplares locais, exumados em lavrarem que ouver de hir ao lume […] por quanto ha muita
contextos do século XVII em Machico e no Funchal, queixa no povo que fazem adita lousa de barro da terra de
que apresentam as superfícies engobadas e brunidas. masapes e a singem(?) com a dita almagra hem chegando ao
fogo se quebrao no que notauel engano para o povo […] e
A concepção tipológica e morfológica dos recipi- outro si não botarão na dita lousa área da terra […]”
entes e o tratamento oferecido às superfícies, no- (ARQUIVO…, L.º 1324, fl. 9, 6 de Janeiro de 1627).
meadamente em matéria de decoração e brunimento, 6 A Câmara Municipal do Funchal, num auto de Junho de
salientam essa relação de proximidade com os ser- 1605, mandou que se “quebrase toda panelas e tigelas de fogo
viços de loiça oriundos dos circuitos comerciais do que he lousa que vai ao fogo”, fabricadas pelo oleiro Roque
“Reino”. Freitas, pelo facto de ser “loiça falsa e de barro falso”
(ARQUIVO…, L.º 1316, fl. 42, Junho de 1605).
Uma das peças mais características, identificada
7 ARQUIVO…, L.º 1324, fl. 12, 1626: “[…] os oleiros que
num estrato do século XVII da Junta de Freguesia de
tirarem barro desta ilha pêra mesturarem os de Lisboa para
Machico, é uma tampa de cerâmica que faz lembrar fazerem lousa encorrerão em penna de seis mil res […]”.
as representações iconográficas das “naturezas mor- 8 No século XVI (1589), estabeleceu-se que não se lavrasse o barro
tas” da pintura seiscentista (Figs. 3, 4 e 5). Exibe “estreme da terra, sem juntar os do Porto Santo” (cit. por SARMENTO 1941,
uma pasta de trama pouco compacta, de cor casta- sem paginação). Em Maio de 1635, a Câmara Municipal do Funchal aprovou
nho avermelhada (CAILLEUX s.d.: S27) e a superfície o fabrico de louça com argilas de mistura: “[…] requereram que tinham trazido
externa engobada e tipicamente brunida a vermelho a esta camara a lousa das misturas do barro que se lhe tinha dado: uma parte do
barro desta ilha, e duas do Porto Santo, das ilhas de baixo [S. Miguel e Santa
escuro (T20). O próprio componente cerâmico, re-
Maria, Açores] e se tinha achado ser a dita louza boa e de proveito ao povo,
presentado individualmente por uma tampa do grupo pelo que lhes deram licensa para usarem dos ditos barros e fazerem a lousa
de pasta local, estabelece uma relação de funciona- no modo e maneira da mostra que trouxeram a esta carta […]”
lidade com um outro recipiente, que se supõe tratar- (ARQUIVO…, L.º 1327, fl. 19, 1635).
-se de uma bilha. 9 Sobre este assunto, ver SOUSA 2007: 33-35.

al-madan
XVII online
adenda
3 electrónica
o OPINIÃO
al-madan online | adenda electrónica

No cômputo geral, as cerâmicas observadas mos-


tram, predominantemente, um acabamento cuidado,
de aspecto acetinado e lustroso, como resultado da
aplicação de um engobe e consequente brunimento.
É bem possível que os oleiros insulares tenham
ensaiado o fabrico das louças requintadas de impor-
tação, procurando uma proximidade estética ao gos-
to dos modelos da época. É ainda prematuro tecer
demais considerações quanto aos indicadores de uti-
lização social e económica das cerâmicas.
Acrescenta-se a esta problemática o facto da ex-
pressiva maioria das cerâmicas ter sido exumada em
contextos estratigráficos homogéneos seiscentistas
de Machico e do Funchal, particularmente em sítios
de influência aristocrática e religiosa. No entanto,
carecendo esta hipótese de maior fundamentação,
nela residirá a plataforma de problematização no
estudo complexo das produções regionais da Época
Fig. 6
Moderna.

Outros fragmentos de pasta re- Bibliografia


gional, de espessura fina, indiciam
as formas e as gramáticas decorati- ARQUIVO Regional da Madeira – Livro de Vereações.
vas da louça fina e de possível influ- Câmara Municipal do Funchal. L.º 1316, fl. 42, 1605;
ência barroca (Fig. 6). A identifi- L.º 1324, fl. 9 e 12, 1626 e 1627; L.º 1326, fl. 33, 1632;
cação do reportório geral das for- L.º 1327, fl. 19, 1635.
CAILLEUX, A. (s.d.) – Note Sur le Code des Coleurs des
mas é dificultada pelo carácter frag-
Sols. Boubée.
mentário do espólio cerâmico. Ou- CARITA, R. (1987) – O Colégio dos Jesuítas no Funchal.
tros achados recentes identificados Funchal: Secretaria Regional da Educação. Vol. II.
nos trabalhos arqueológicos da área COSTA, José Pereira, transc. (1995) – Vereações da Câma-
urbana da cidade de Machico (Casa ra Municipal do Funchal. Século XV. 1.ª ed. Funchal:
da Travessa do Mercado e Casa com Centro de Estudos de História do Atlântico.
a Porta Manuelina), sugerem igual- GOMES, Mário Varela e GOMES, Rosa Varela (1989) – “In-
mente uma analogia com as cerâmi- tervenção Arqueológica”. In Escavações nas Casas de
João Esmeraldo – Cristóvão Colombo, 1989 (1.ª fase).
cas finas não vidradas.
Funchal: Câmara Municipal do Funchal, pp. 27-48.
Observa-se, ainda, que no acer- GOMES, Mário Varela e GOMES, Rosa Varela (1998) –
Fig. 7
vo arqueológico seiscentista da Ilha “Cerâmicas, dos Séculos XV a XVII, da Praça Cristóvão
de São Miguel, Açores, nomeada- Colombo no Funchal”. In Actas das 2as Jornadas de
mente do ex-Mosteiro de Jesus da Cerâmica Medieval e Pós-Medieval de Tondela. Porto:
Ribeira Grande e da Vila Franca do Campo (escava- Câmara Municipal de Tondela, pp.315-348.
ções de Sousa d’Oliveira), se encontram exemplares LEÃO, Manuel (1999) – A Cerâmica em Vila Nova de
que evidenciam uma interpretação idêntica à do es- Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.
pólio da Madeira, sugerindo-se um processo de assi- MOREIRA, Manuel (1990) – Os Mercadores de Viana e o
Comércio do Açúcar Brasileiro no Século XVII. Viana
milação morfológica.
do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo.
Um outro exemplar que, também, se pode inte- SARMENTO, Alberto Artur, ten-cor. (1941) – As Pequenas In-
grar nas produções dos oleiros madeirenses, embora dustrias da Madeira. Funchal: Imp. “Diário de Notícias”.
de confecção mais comum, é representado por um SOUSA, Élvio Duarte Martins (2006) – Arqueologia da Ci-
púcaro do século XVII (Fig. 7), identificado nas es- dade de Machico. A construção do quotidiano nos sécu-
cavações das Casas de João Esmeraldo do Funchal e los XV, XVI e XVII. Machico: CEAM – Centro de Estudos
em exibição no Núcleo Museológico “A Cidade do de Arqueologia Moderna e Contemporânea.
Açúcar” (GOMES e GOMES 1989: 40; GOMES e GO- SOUSA, Élvio Duarte Martins (2007) – 500 Anos de Cerâ-
mica na Madeira. Estudo arqueológico de vinte e cinco
MES 1998: 342). Exibe 285 mm de altura e 102 mm
peças arqueológicas. Machico: ARCHAIS.
de diâmetro e apresenta uma pasta castanho averme- SOUSA, Élvio Duarte Martins (no prelo) – “Cerâmica Fina
lhada, não muito bem depurada. Não Vidrada da Época Moderna no Arquipélago da Ma-
deira”. In Actas do VI Encontro de Olaria Tradicional de
Matosinhos.
al-madan
online XVII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
PATRIMÓNIO
al-madan online | adenda electrónica
a
Um Passeio r e s u

Balanço dos estudos sobre as for-


mações geológicas da Península de
m o

Geológico na
Setúbal, com destaque para os tra-
balhos do geólogo suíço Paul
Choffat (1849-1919) ao serviço da
Commissão Geológica do Reyno por-
tuguês.
O autor reproduz texto de apoio

Almada Oitocentista
de um dos “Passeios Geológicos”
propostos e editados por Choffat
em 1892, evocando a visita a itine-
rário pelas arribas miocénicas de
Almada (Setúbal).

p a l a v r a s c h a v e

Geologia; Paul Choffat; Formação.


por José M. Brandão
Centro de Estudos de História e Filosofia das Ciências
(Universidade de Évora).
a b s t r a c t

Account of the studies carried out


on the geological formations of
the Setúbal Peninsula, particularly
the work of Swiss geologist Paul
Fig. 1 − Paul Choffat (1849-1919). Choffat (1849-1919), who worked
for the Portuguese Royal Geological
Introdução
Commission.
The author reproduces the guide
interesse das visi- O estudo destas formações

O tas de campo co-


mo ferramenta di-
dáctica e como instrumento de
geológicas foi retomado em
meados de 1860 pelos mem-
bros da comissão encarregada
to one of the “Geological Walks”
recommended and published by
Choffat in 1892, evoking a visit to
the Almada Miocenic cliffs (Setú-
bal).
sensibilização para o conheci- de coligir os elementos neces-
mento dos recursos naturais é sários à elaboração da Carta k e y w o r d s
hoje indiscutível. Isso sabia-o já Geológica do Reyno, designa-
muito bem Paul Choffat (1849- damente Carlos Ribeiro (1813- Geology; Paul Choffat; Training.
-1919) (Fig. 1), geólogo suíço ao -1882) e o seu adjunto J. Nery
serviço da Commissão Geológica do Delgado (1835-1908), que as deli-
Reyno, quando publicou os seus “Pas- mitaram com algum rigor, atribuindo- r é s u m é
seios Geologicos nos Arredores de Lisboa”, -lhes uma origem marinha (Fig. 2).
propondo um itinerário pelas arribas miocénicas de Parte dos fósseis recolhidos durante os seus tra- Bilan des études portant sur les
formations géologiques de la Pé-
Almada e pelo Alfeite, cuja revisitação se propõe no balhos de campo foram classificados e publicados
ninsule de Setúbal, avec une men-
presente artigo. por F. Pereira da Costa (1809-1889) 2, lente da tion concernant les travaux du
Escola Politécnica, que partilhava com Ribeiro a di- géologue suisse Paul Choffat
recção da Commissão Geológica; no entanto, o estu- (1849-1919) au service de la Com-
Os primeiros estudos do mais aprofundado destes terrenos virá a ser feito mission Géologique du Royaume
portugais.
por Jorge C. Berkeley Cotter (Fig. 3), condutor de
L’auteur reproduit un texte d’ap-
Entre os trabalhos mais antigos sobre as for- Obras Públicas e Minas 3, contratado para a Co- pui d’une des “Promenades Géo-
mações geológicas da península de Setúbal, contam- missão Geológica em 1870 para se ocupar do estudo logiques” proposées et éditées par
-se os do Barão de Eschwege (1777-1855), Inten- dos “terrenos terciários”. Choffat en 1892, évoquant la visite
dente de Metais e Minas do Reino que escreveu al- d’après itinéraire le long des abor-
ds miocènes d’Almada (Setúbal).
gumas notas relativas às minas de ouro da Adiça, e
os do naturalista Alexandre Vandelli (1784-1862), m o t s c l é s
relativos à descoberta de cetáceos fósseis na mesma 1 Terciário(a): designação em desuso, correspondente ao período de tempo
zona. Porém, os primeiros trabalhos abrangentes, de da era Cenozóica compreendido entre os 6,5 e os 1,8 milhões de anos. Géologie; Paul Choffat; Formation.
reconhecimento da natureza dos terrenos das vizi- Incluía as divisões Paleogénico e Neogénico.
nhanças de Lisboa, devem-se ao geólogo inglês 2 Ver COSTA 1866-1867.
Daniel Sharpe (1806-1856), que atribuiu aos terre- 3 Título do antigo Instituto Industrial de Lisboa, equivalente ao actual
nos da margem Sul do Tejo uma idade “terciária” 1. Engenheiro Técnico.

al-madan
XVIII online
adenda
1 electrónica
o PATRIMÓNIO
al-madan online | adenda electrónica

Apoiado pelo colector António Mendes 4, Cotter Dos trabalhos realizados, além das extensas re-
realizou ou acompanhou, sobretudo na década de lações dos fósseis presentes em muitas das camadas,
1880, diversos levantamentos de pormenor da su- que serviram de base aos diversos trabalhos que pu-
cessão de estratos da zona vestibular do Tejo, no- blicou, ficaram também as importantes colecções
meadamente na Cova da Piedade, Mutela, Cacilhas, dos exemplares recolhidos em todos aqueles locais,
Almada, Pragal, Forno do Tijolo (Cristo-Rei) e Pica- conservadas no museu da antiga Comissão Geoló-
galo (Trafaria), entre outros lugares. Apoiados numa gica, em Lisboa, cujos duplicados integram, desde
Figura 2 descrição cuidada da constituição das camadas e do então, as colecções dos museus universitários de
respectivo conteúdo fossilífero (Fig. 4), estes levan- Lisboa, Coimbra e Porto.
Extracto da Carta Geológica
1:100 000 de C. Ribeiro,
tamentos permitiram-lhe definir e delimitar
editada em 1866. as principais divisões do complexo mio-
cénico 5 que aqui aflora, bem como A intervenção de Choffat
estabelecer correlações entre as
camadas de ambas as margens Apesar das inúmeras obser-
do Tejo. vações estratigráficas e estudos
paleontológicos a que se pro-
cedeu até meados do final da
Fig. 3 − Berkeley
Cotter (1845-1919). primeira década do século
XX, alguns deles com a cola-
boração de reputados paleon-
tólogos europeus, a cartogra-
4 O colector, era um “prático da Geologia”,
fia geológica actualizada das
que trabalhava junto com os geólogos ou os
precedia, encarregado de proceder à recolha formações dos arredores de
das amostras e à descrição das camadas e sua Lisboa, cuja compilação foi ini-
posição relativa. ciada por P. Choffat, só viria a ser
5 Miocénico: época do calendário geológico editada nos anos quarenta 6. É tam-
compreendida entre os 23 e os 5,3 milhões de anos. bém este autor que compulsa os ele-
6 Carta Geológica de Lisboa 1:20 000, segundo os trabalhos de mentos de campo disponíveis, com os
P. Choffat. Serviços Geológicos, Lisboa, 1940; Carta Geológica dos quais elabora um capítulo da sua “Géologie du
Arredores de Lisboa, folha 34-D na escala 1:50 000. Serviços Geológicos,
Portugal”, obra que infelizmente não chegou a con-
Lisboa, 1940.
7 Todavia, por constituir um trabalho já bastante estruturado, esse capítulo
cluir, por entretanto ter falecido 7.
veio a ser publicado de forma autónoma, a título póstumo, sob o título
Autor de uma vastíssima obra científica dispersa
“Géologie du Cénozoique du Portugal”. Comunicações dos Serviços Geológicos por inúmeras publicações nacionais e estrangeiras,
de Portugal. Tomo XXX, supl. Choffat, professor no Instituto Politécnico de Zuri-
al-madan
online XVIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 4

Extracto de uma das listas de fósseis colhidos em


Almada por Cotter [188-?]. Arquivo Histórico
Geológico e Mineiro (AHGM) – Instituto Nacional de
Engenharia, Tecnologia e Inovação (INETI).

O “passeio” vai
percorrer um conjunto
de formações e ocor-
rências geológicas de
incontestável valor pa-
trimonial, científico e
que até à sua vinda para Portugal, tinha também cultural, cuja preservação tem vindo a ser repetida-
grandes preocupações de ordem pedagógica no que mente sugerida. No seu conjunto, a península de Se-
respeitava à divulgação das Geociências. Consciente túbal conserva a sucessão cronoestratigráfica do
do “desleixo” em que se encontrava o ensino e a di- Miocénico quase completa 10, sendo sede de um rico
vulgação da Geologia em Portugal 8, propõe a aber- e diversificado Património paleontológico, com fós-
tura regular ao público do museu da Comissão Geo- seis de peixes e de grandes mamíferos marinhos (ce-
lógica e publica algumas descrições e propostas de táceos e sirénios), e a presença, abundante, dos prin-
excursões geológicas, nomeadamente à “Serra do cipais grupos de invertebrados, designadamente mo-
Gerês”, outra “de Lisboa a Leiria” e, para as esco- luscos, equinodermes e crustáceos, entre outros 11.
las de Lisboa, na presunção do interesse e necessi- Pontualmente, alguns restos de plantas terrestres, em
dade da “observação dos phenomenos da natureza regra mal conservados, sublinham a alternância en-
na propria natureza” 9, os “Passeios Geologicos…”, tre os episódios sedimentares marinhos e continen- 8 Ver CHOFFAT 1892: 337.

dados à estampa em 1892. tais. 9 IDEM, ibidem.


Trata-se de um documento notável a vários títu- Na convicção de que poderá manter-se algum 10 Ver ESTEVENS et al. 1999a.
los, quer pelo apelo às visitas de campo como ferra- significado histórico, mantém-se a grafia original, 11 Ver compilação das principais
menta de ensino, quer pelo retrato histórico do co- nas passagens do texto seleccionadas. formas em ESTEVENS et al. 1999b.
nhecimento científico da região.

Referências

CHOFFAT, P. (1892) – “Passeios Geológicos nos Arredores Setúbal. Um património geológico a preservar”. In Se-
de Lisboa”. Revista de Educação e Ensino. Lisboa. Ano minário sobre o Património Geológico Português - Re-
VII, pp. 337-342 e 385-390. sumos. Lisboa: Instituto Geológico e Mineiro.
COSTA, F. A. P. (1866-1867) – Molluscos Fosseis. Gastero- ESTEVENS, M.; LEGOINHA, P.; SOUSA, L. e PAIS, J. (1999b)
podes dos depositos terciarios de Portugal. Lisboa: Co- – “Património Paleontológico da Península de Setúbal.
missão Geológica de Portugal. “1º Caderno”, pp. 1-116; Um património geológico a preservar”. In Seminário so-
“2º Caderno”, pp. 117-252. bre o Património Geológico Português - Resumos. Lis-
DOLLFUS, G.; COTTER, J. C. B. e GOMES, J. P. (1903-1904) boa: Instituto Geológico e Mineiro.
– Planches de Céphalopodes, Gastéropodes et Pélécy- SIMÕES, J. O. (1919-1922) – “Biografia de Geólogos Por-
podes Laissés par F. A. Pereira da Costa, Accompagnés tugueses. Léon Paul Choffat (1849-1919); J. C. Berkeley
d’une Explication Sommaire et d’un Esquisse Géologi- Cotter (1845-1919)”. Comunicações dos Serviços Geo-
que. lógicos Portugueses. XIII, pp. V-XVI.
ESTEVENS, M.; LEGOINHA, P.; SOUSA, L. e PAIS, J. (1999a)
– “O Miocénico das Arribas do Litoral da Península de

al-madan
XVIII online
adenda
3 electrónica
o PATRIMÓNIO
al-madan online | adenda electrónica

Passeios Geológicos nos Arredores de Lisboa


Almada e Alfeite
Paul Choffat, 1892

[…] Se a maré não está com-


pletamente cheia quando
chegarmos a Cacilhas, at-
trair-nos-ha a vista a quantidade de ostras
do se formaram o fundo do mar apresenta-
va bolsos que foram preenchidos pelas os-
tras […].
A ostra fóssil que constitue estes bancos
acha-se a Fonte da Pipa, que é ainda mais
abundante.
Aproveitaremos a presença d’estas fon-
tes para fazer comprehender que são sim-
que cobrem a muralha do caes e os postes (Ostrea crassissima), é de grandes dimen- ples escoadouros da agua da chuva que se
da ponte. sões e alongada como os exemplares introduziu no interior do solo embebendo as
Ainda que essas ostras estejam vivas e grandes da ostra que vive actualmente no camadas […] até que chegam á sahida. A
pertençam por consequencia ao estudo da Tejo. Estas ostras estão deitadas em parte, e direcção da corrente subterrânea depende
Zoologia, não deixam de apresentar um pre- vê-se que as ondas as voltaram depois de tanto dos dobramentos dos stratos como das
cioso ensino para o geologo. Mostram-lhe mortas […]. Um pouco mais acima do ban- fendas 2 que atravessam o solo […]. Abrirei
em primeiro logar a adaptação às condições co de ostras acha-se um banco de bivalvas excepção para a fonte da Pipa que parece
de existência. Aqui as ostras são pequenas, fosseis […] pertencentes a vários géneros dever a sua origem a uma deslocação mais
desenvolvem-se sobre uma superficie plana que se encontram vivos na margem do Oce- importante.
e estão apertadas umas contra as outras, não ano, na Costa de Caparica, por exemplo. O Se a maré está baixa notamos também
podem tomar essa bella forma alongada das modo de fossilisação destas bivalvas é mui- que a areia da pequena praia é em partes
grandes conchas que se encontram nas pra- to differente do das ostras. Estas conserva- completamente negra. Esta areia preta é pe-
ias e que comtudo pertencem á mesma es- ram a concha ao passo que as primeiras só la maior parte ferro magnetico, isto é, um
pecie. Um segundo ponto sobre o qual esta deixaram n’este banco o molde da sua cavi- minerio que pode ser attrahido pelo íman 3,
ostra nos offerece indicações é o da migra- dade interior formado pelo lodo que as en- e é mais abundante na praia do Alfeite […
ção das espécies. A ostra portugueza (Os- cheu e que mais tarde se solidificou, em- onde não conta] só ferro magnético, mas
trea angulata) não é de epocha tão antiga quanto que a concha se dissolveu. Estes mol- também differentes mineraes, entre os
como fazem suppor os milhares de indiví- des interiores apresentam o vestígio da char- quaes a granada e pequenas palhetas de ou-
duos que habitam o Tejo […]. neira, do bordo do manto, e dos musculos, ro.
Desembarcámos e seguimos o caminho etc., o que permitte em geral reconhecer Os Carthaginezes, os Romanos e mais
que vae ao longo do Tejo até ao Ginjal. A com certeza o género a que pertenceram. tarde os Arabes exploraram a areia nas mar-
uns cem passos achamo-nos em frente do Vemos tambem os moldes interiores de al- gens do Tejo e construiram Almada que
talude que foi necessário levantar para evi- guns Gastrópodes […]. quer dizer – a mina. Esta exploração foi
tar o desabamento do rochedo […]. No ex- abandonada nos primeiros tempos da mo-
tremo desse talude acha-se uma fabrica de narchia portugueza e recomeçada de 1814
cal em que pedimos licença para entrar. A até 1826 4.
materia prima é o calcário branco d’Alcan- Subamos as escadinhas do Ginjal exa-
tara, de edade cretacica, composto quasi minando as escarpas […]. Ahi vemos tam-
inteiramente de moldes interiores de con- bém o effeito de destruição pelos agentes
chas arqueadas, tendo o aspecto de lentes atmosphericos, que atacam os bancos facil-
enormes 1. Estes fosseis são sem duvida in- mente decomponiveis com maior facilidade
teressantes, mas são pouco próprios para Fig. 5 − Exemplar de Ostrea crassissima Lamarck. que os que são mais resistentes, de maneira
explicar a fossilização a principiantes. que estes ultimos sobresahem aos primei-
Atravessemos a fabrica para subir a pe- ros; vê-se, portanto a face inferior d’elles 5
quena senda que conduz ao alto do alludido Tendo terminado estas observações, tor- […].
talude. Esta senda é talhada em margas e em namos a descer à margem do Tejo pelo ca- O pavimento das escadinhas merece
margo-calcários, parte no seu logar, parte minho que tomámos para subir e continua- tambem a nossa atenção, é formado em
esboroados […]. mos a seguir o caes para Oeste. Antes de parte por calcareo e silex cretacicos prove-
Chegados acima do talude, achamo-nos chegar às escadinhas do Ginjal, vemos uma nientes da margem norte do Tejo, assim
em um pequeno planalto limitado a sul pela pequena fonte d’agua doce que brota na como os pavimentos de basalto, emquanto
mesma rocha terciaria cortada vertical- praia e que fica por consequencia coberta na outras rochas teem um aspecto bem diverso.
mente. Attrahem-nos a vista os bancos de praiamar. Esta fonte não é a unica que sae São os granitos, os gneiss, os schistos gra-
ostras fosseis que se acham n’esta parede; do pé das rochas, já passamos por deante natiferos e mais outras rochas, que foram
são aproximadamente horizontaes mas a duma fonte abundante […] utilisada para trazidas de muito longe, em parte da No-
sua superfície não é plana: vê-se que quan- fornecer os navios. Um pouco mais longe ruega, para servir de lastro aos navios.
al-madan
online XVIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Figura 6

“Corte” da escarpa entre o Ginjal e a Boca do Vento.


Desenho e descrição do colector António Mendes [1885?].
Arquivo Histórico Geológico e Mineiro ( AHGM) – Instituto
Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação ( INETI).

a concha tão delgada que se quebram ao to-


car-lhes.
Um facto analogo dá-se no possante
banco de saibro que se levanta defronte de
nós do outro lado da Cova da Piedade. Du-
rante muitos annos era considerado como
desprovido de fosseis, não se sabia se deve-
ria ser collocado no terciario ou no quater-
nario, se era um deposito fluvial ou mari-
nho. Um bello dia examinaram as lentes 7
de argila intercaladas na parte superior do
saibro e acharam fosseis marinhos e vestí-
gios de plantas terrestres. Naturalmente os
restos dos seres organisados não podiam
conservar-se no saibro, mas sim nas rochas
mais firmes e não facilmente penetraveis
pelas águas. O estudo destes fosseis mos-
trou que as camadas que os conteem per-
tencem ao Pliocénico 8 […].

Estas mesmas rochas abundam no pavi- permittem-nos ver a inclinação dos estratos;
mento de Almada. Chegados ao alto passa- é pequena […]. 1 Choffat refere-se aos Rudistas, grupo de bivalves fósseis de
mos pela travessa da Cerca para ir ao Cam- Chegados à quinta do Pombal, vemos à vida fixa, característicos do período Cretácico, muito
po d’onde se disfructa uma vista magnifica, direita da estrada uma fonte no fundo de abundantes naqueles calcários.
tanto para o Norte como para o Sul […]. uma escavação. É devida a alcançar esta es- 2 O mesmo que falhas.
Ao sul do Tejo, o terciário marinho for- cavação uma camada de argila sobre a qual 3 Magnetite.
ma as rochas d’Almada penetrando um corre a agua subterranea, e retoma o seu 4 O autor refere-se certamente à mina da Adiça.
pouco para o sul; é recoberto pelas areias e curso subterraneo depois de ter apparecido 5 As arribas da margem esquerda do Tejo, entre Cacilhas e a
saibros que formam o termo mais recente da à luz na extensão de alguns metros apenas. Trafaria (Olho de Boi, Banática e Porto Brandão), apresentam
série stratigraphica d’esta região. As cama- Para além da quinta do Pombal, conti- na sua generalidade um processo de degradação e erosão
das cretacicas e jurassicas que vemos ao nuamos a achar-nos nas areias finas, mas natural rápido das camadas mais brandas, que vai deixando
salientes as camadas calcárias mais resistentes, as quais, ao
norte do Tejo existem debaixo deste ter- são um pouco mais argilosas do que prece-
ficarem sem apoio, entram em colapso, conduzindo a
ciário: profundam com ele para o sul e de- dentemente e conteem bonitos fosseis que escorregamentos de terrenos e blocos soltos de dimensões
pois elevam-se de repente para virem à su- conservaram a sua concha, emquanto que as variadas, que se vão acumulando na base da arriba. Este
perficie formar a cadeia da Arrábida. areias precedentes não os teem. processo natural de evolução das arribas tem obrigado, pelo
[…] dirigimo-nos agora para a Cova da É provável que, por ocasião da sua de- menos desde o início do século XX, à realização de diversos
trabalhos de consolidação, com diferentes soluções técnicas de
Piedade pela estrada principal que passa posição as areias não argilosas contivessem
maior ou menor impacto visual.
abaixo da praça dos touros. Notamos que as tantas conchas como as outras mas a sua 6 Molasse (em português molasso): sedimentos em geral
trincheiras d’esta estrada não são cortadas grande permeabilidade permittiu que as gresosos ou conglomeráticos, com cimento calcário, pouco
na molasse 6 resistente que fórma a rocha aguas das chuva as atravessassem sem diffi- denso, englobando conchas de moluscos e de briozoários,
d’Almada, mas em uma areia muito fina, culdade e que dissolvessem as conchas, o acompanhados de argilas e margas.
argilosa em alguns sitios, que se explora em que não se deu nas areias argilosas, ou pelo 7 O mesmo que lentículas.
Mutella para fazer moldes para fundições. menos só aconteceu imperfeitamente por- 8 Pliocénico: época do calendário geológico compreendida
[…] Alguns leitos um pouco mais duros que estes fosseis de tão bonito aspecto teem entre os 5,3 e os 2,5 milhões de anos.

al-madan
XVIII online
adenda
5 electrónica
o PATRIMÓNIO
al-madan online | adenda electrónica

Figura 7

Uma das estampas da obra de P. da Costa (1866-1867),


com fósseis de Almada, destacando-se, nos desenhos 6 e 7,
o emblemático gastrópode Pereiraia gervaisii, proveniente da
Margueira.

Chegados à Cova da Piedade, podería-


mos seguir a estrada de Cezimbra até gran-
des areaes que nos mostrariam os curiosos
effeitos da erosão dos saibros, mas será
mais instructivo dirigirmo-nos para o Alfei-
te. Atravessando o jardim público da Cova
da Piedade vemos um poço de 9m de pro-
fundidade cuja agua é reputada salobra, em-
quanto que as quintas que se acham aos la-
dos do poço teem poços de 5 a 7m de pro-
fundidade cuja agua é potavel.
A rasão é muito simples, o poço do pas-
seio é cavado no thalweg 9 do valle e póde
receber infiltrações de água salgada, em-
quanto que os outros, sendo lateraes estão
ao abrigo d’essas infiltrações.
Para irmos ao Alfeite, tomamos por um
caminho à direita; pelo meio do passeio, Podemos também ter occasião de ver ferro differentes pelo seu grau de pureza e
conduz-nos primeiro a uma planície panta- pequenos leitos de areia negra magnetica e de oxydação […]. A meio caminho entre o
nosa ao sul por collinas de saibros pliocéni- em todo o caso vemol-os no alto da praia palácio do Alfeite e o extremo da rocha,
cos ao pe dos quaes vemos fontes abun- como no Ginjal. vêm-se bellos effeitos de erosão nestas
dantes de que tratam de levar a agua até As areias que recobrem a argila teem areias […].
Almada […]. uma grande espessura são em geral muito Podemos agora voltar para tomar o va-
Vamos pela margem do Tejo; a leste do grossas e merecem mais o nome de saibros por de Cacilhas, mas se a maré estiver vasia
palácio [do Alfeite] 10, o pé das rochas é for- do que o de areias. Os calhaus rolados são iremos sem grande fadiga até ao Seixal, ao
mado por bancos d’argilla cinzenta mergu- raros n’este ponto mas fequentes n’outros longo do cordão de areia que divide esta
lhando um pouco para leste, de maneira que sitios; por exemplo nas camadas superiores parte do estuário. Esta excursão e um pouco
caminhando n’esta direcção […] atraves- que affloram no alto da estrada da Cova da fatigante na praiamar. Encontraremos nu-
sam-se stratos cada vez mais recentes. Ve- Piedade; estes seixos são umas vezes per- merosas rochas exóticas e antes de chegar
mos agglomerações lenticulares de areia no feitamente arredondados, outros só nas aos moinhos, o magnifico banco de ostras
meio da argila, de areia branca como a que arestas. São formados por quartzites que vivas de que tratamos precedentemente e
cobre esta ultima, composta de grãos de variam entre branco, cinzento e avermelha- que nos servirá de comparação com os ban-
quartzo e de feldespatho, tendo estes ulti- do, geralmente opacos, raramente translúci- cos de ostras do miocenico [...].
mos soffrido um começo de decomposição dos.
que os tornou opacos e friaveis. A cor das areias do Alfeite é vermelha
mais ou menos intensa, n’outros pontos é
amarella, e em grande quantidade branca.
9 Talvegue. Estas areias de diversas cores não formam
10 O antigo palácio e Quinta Real do Alfeite estão actualmente stratos, succedem-se regularmente, são
compreendidos na área da base naval. accidentes de coloração devidos a saes de
al-madan
online XVIII
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
LIVROS
al-madan online | adenda electrónica
l
A Herança Romana
em Portugal
com razão – ser esta “uma síntese tex-
um livro de Carlos Fabião tualmente eloquente e documental-
mente expressiva”, cabalmente integra-
da no espírito da colecção: “Promover
José d’Encarnação e divulgar os valores, a cultura, o patri-
mónio que são nossos, sensibilizando a
[versão condensada na Al-Madan 16: 149] comunidade para a sua salvaguarda e
valorização e estimulando o orgulho na
sua história”.

E
FABIÃO, Carlos (2006) – A Herança Romana em Portugal. Lisboa:
mbora apresentada a E estamos gratos pe- Clube do Coleccionador dos Correios. ISBN: 972-9127-99-9. Ressaltaria duas palavras: assimi-
22-06-2006, no Museu la divulgação! Vários mi- lação e orgulho – pela sua grande actua-
Nacional de Arqueolo- lhares, porventura mi- lidade.
gia, não virá a despropósito tecermos lhões de selos – pelo País e, sobretudo, apresentar um discurso corrido, con- A primeira, assimilação, do pon-
ainda algumas considerações acerca pelo estrangeiro! creto, lógico na sua coerência ideológ- to de vista cultural: Não “romaniza-
desta publicação levada a efeito pelos O autor, Carlos Fabião, professor ica. A ilustração é… ilustração! Por ção”. Recebemos e demos. Divindades
CTT, através da sua Direcção de Re- associado da Faculdade de Letras de conseguinte, este livro – embora de ca- indígenas. Desde há mais de 30 anos
lações Internacionais e de Filatelia. Lisboa, tem amiúde feito parceria com rácter científico, histórico – é também que chamo a atenção para este facto, um
Insere-se o volume numa tradição, Amílcar Guerra, nos domínios arqueo- um livro de beleza! dos mais sintomáticos da mente huma-
mui louvável, a que a empresa meteu lógico e da escrita, desde os tempos E ainda antes de nos debruçar- na – a sua relação com o divino. E que
ombros e tem dado continuidade. das escavações em Lomba do Canho 1. mos sobre como está dividido, diria vemos? Latinização dos teónimos. De-
Recordamos, por exemplo, o volume É conhecido o seu interesse pelo estu- que me ressaltou de imediato um facto: votos romanos a divindades indígenas;
Arquitectura Popular Portuguesa, do das ânforas romanas como fonte o papel do mar reencontrado! E esta devotos indígenas a divindades roma-
de 1989, texto do Arqº José Pedro para a história económica e, mais recen- observação vem, inclusive, na sequên- nas. Em plena convivência pacífica,
Martins Barata (que também traduziu temente, o empenho em levar a cabo cia de uma reunião que houve em Co- um exemplo notável para os dias de ho-
para inglês, é edição bilingue), com uma boa história da Arqueologia em imbra 4, onde – mesmo para a época je e que nunca é de mais salientar, pela
fotos – magníficas! – de Jorge Barros, Portugal 2, não descurando o projecto que nos prende, a romana – se verificou sua exemplaridade. Aliás, Carlos Fabião
a acompanhar a linda série filatélica de investigação, conservação e valo- que, afinal, o mar sempre ocupara papel di-lo expressamente (p. 12): “Uma uni-
de casas portuguesas, desenho de José rização do sítio arqueológico de Mesas relevante na História de Portugal: Bal- dade política e administrativa que con-
Luís Tinoco. Numa altura em que foi do Castelinho, Almodôvar, em que está sa, Ossonoba, Portus Hannibalis, Sa- servou no seu interior uma apreciável
necessário chamar a atenção para o envolvido desde 1988. Integra, por ou- lacia, Olisipo e a recém-descoberta diversidade cultural com variáveis
que era nosso, o invulgar tipicismo e ex- tro lado, a equipa que deu novo alento Eburobrittium, cujo importante papel graus de integração e autonomia, ge-
celente adaptação ao meio das nossas à pesquisa sobre o santuário a Endové- cada vez mais será devidamente realça- rando esse peculiar sentimento de co-
casas tradicionais, do Minho ao Algar- lico, em S. Miguel da Mota 3. do 5, assim como o de Peniche. munidade (que, de algum modo, a Uni-
ve. Lembramos Traineiras, de 1994, do Torna-se difícil conceber uma De facto, no início da nossa na- ão Europeia voltou a agrupar) sem
saudoso Octávio Lixa Filgueiras, nos- obra deste tipo: de que vou falar? Que cionalidade, viveu-se muito da(s) ter- todavia esbater as singularidades re-
so infatigável companheiro nestas lutas selecciono em função do público e… do ra(s); mas logo D. Dinis chamou o Al- gionais”.
pela defesa do Património, sobretudo editor? Sobretudo quando se sabe tan- mirante Pessanha; diz-se que, em tem-
naval – cuja memória saúdo e sentida- to e há tanto sobre que se escrever?!... pos de D. Afonso IV, já nossos barcos
mente evoco. Também bilingue. Fotos Convenha-se, desde logo, que es- aportaram às Canárias; por mar fomos,
1 Cf. FABIÃO, Carlos (1993) – “Lomba do
(magníficas igualmente!) de João Me- tamos perante um volume de prestí- no reinado de D. João I ao Norte de
néres. A série filatélica teve desenhos gio: uma obra de arte gráfica, com ex- África. E, depois, sempre o mar! E Canho (Arganil)”. In MEDINA, João (ed.).
(numa estilização linda!) de Armando celente design, ilustrações bem escolhi- talvez nunca nos tenhamos interrogado História de Portugal. Amadora. Vol. II,
pp. 190-192.
Alves. das (o melhor que há). Portanto, um li- o suficiente sobre o antes e o antes é mar
2 Vejam-se FABIÃO, Carlos (1998) – “Viriato:
Edições sempre a acompanhar vro bonito! também: di-lo-ão, sem dúvida, o hori-
séries filatélicas particularmente sig- E, nesse aspecto, atente-se no por- zonte da “cultura” dita “campaniforme”, em torno da iconografia de um mito”. In Actas
dos IV Cursos Internacionais de Verão de Cascais.
nificativas – como, aliás, o são todas, e menor de serem longas as legendas das os Fenícios, os constantes contactos
Cascais, pp. 33-79; GUERRA, Amílcar e FABIÃO,
Portugal é, reconhecidamente, a nível ilustrações. Procuraríamos evitá-las com o Norte de África, ora cada vez Carlos (1992) – “Viriato: genealogia de um
internacional, um dos países que produz num livro normal, mas elas têm aqui mais realçados – e com inteira razão! mito”. Penélope. 8: 9-23.
as mais bonitas e eloquentes séries fi- pleno significado: é que, num livro Daí, neste livro, a capa com a so- 3 Cf. GUERRA, Amílcar; SCHATTNER, Tomás;
latélicas do Mundo. Uma tradição a com estas características, muitos serão berba representação do deus Oceano do FABIÃO, Carlos e ALMEIDA, R. (2003) –
manter, de que muito nos orgulhamos tentados a, pelo menos numa primeira mosaico de Faro e, no interior, a abun- “Novas Investigações no Santuário de
(na permuta que fazemos de selos com assentada, apenas verem as imagens!... dância dos vestígios marinhos: repre- Endovélico (S. Miguel da Mota, Alandroal):
colegas nossos estrangeiros) e por isso E, embora se saiba que uma imagem va- sentação de peixes, lulas…No rosto, as a campanha de 2002”. Revista Portuguesa de
nos cumpre louvar a Direcção de Fila- le mais que mil palavras, nada de fiar quatro estações do ano, como que para Arqueologia. 6 (2): 415-479.
telia dos CTT. e… vamos às palavras também! Até dizer que é um livro para todo o ano! 4 Cf. as respectivas actas: OLIVEIRA, Francisco
Por conseguinte, é para nós, ar- porque, numa obra destas, o “casamen- Escreve Luís Filipe Nazaré, presi- de; THIERCY, Pascal e VILAÇA, Raquel, coords.
queólogos, subida honra que também os to” entre o designer e o autor nem sem- dente do Conselho de Administração (2006) – Mar Greco-Latino. Coimbra:
vestígios romanos hajam sido consi- pre se consegue inteiramente “feliz” dos CTT, na apresentação, que se trata, Imprensa da Universidade de Coimbra.
derados tema susceptível de interessar (passe o adjectivo) e o designer gosta aqui, por opção, do “legado material 5 MOREIRA, José Beleza (2002) – A Cidade
o público. das coisas bonitas e o autor tem de palpável e visível”, acrescentando – e Romana de Eburobrittium - Óbidos. Porto.
al-madan
XIX online
adenda
1 electrónica
l LIVROS
al-madan online | adenda electrónica

E é curioso que o assinale, a títu- – E aí vem o Oceano, curiosa- em que o designer se sobrepôs e pre- contexto, por assumir relevante papel de
lo de exemplo, em relação a algo a que mente para se falar de comunicações e feriu apresentar uma porção bonita do “alegoria”, pois pertenceria a uma des-
hoje somos particularmente sensíveis, de transportes. E, claro, de recursos monumento que poderia ganhar em aí sas estátuas monumentais, a figurarem,
como os desfiles de moda a que quase marinhos. figurar completo. Mas o que, na reali- imponentes, no fórum, a mostrar que,
diariamente assistimos através das re- – Finalmente, a religião – a ro- dade, aqui interessa realçar é o comen- “afinal, o poder não era assim uma rea-
portagens televisivas. E o último anún- mana e a passagem do politeísmo para tário patente na legenda e que traz logo, lidade abstracta e distante, mas antes
cio que vemos antes de entrar no avião o monoteísmo. em síntese, uma série de informações: um vulto tutelar”. “Resíduo”, sim, mas
é mui provavelmente o primeiro que ve- Tem o autor perfeito conhecimen- 1 – “A homenagem a um impera- “suficientemente expressivo e inteligí-
mos no aeroporto de destino ao descer: to das últimas descobertas e das pro- dor ou ao seu filho e sucessor, como é vel” é também a pata de cavalo de está-
“A transformação da indumentária blemáticas que perpassam pela inves- o caso, constituía uma prática habitu- tua equestre de Bracara Augusta, de
assume”, frisa C. Fabião, “um elevado tigação do mundo romano. al”. bronze dourado, de um imperador se-
valor simbólico”; “na plástica, o cor- Veja-se a dedicatória ao deus Mar- 2 – Trata-se de uma dedicatória guramente.
po revestido da toga constituía o emble- te 6, proveniente de uma villa romana, “oficial e institucional”, porque nela se O comentário feito a propósito
ma da condição de cidadão romano, a de Torre de Palma (Monforte) (p. 16). regista que foi feita “por decreto dos de- da muralha tardia de Conimbriga é
independentemente do local onde se Sim, é o deus da guerra, pelo menos está curiões” e com intervenção dos duún- igualmente de realçar, nomeadamente
encontrava” (p. 13). vestido como tal, mas… não estará, de viros. quando C. Fabião afirma ser tendência
A segunda palavra: orgulho. Situa- preferência associado à agricultura e – 3 – Pax Iulia foi instalada “no lo- actual da historiografia não ver nessas
-se no domínio político. Reproduz o eu- porque não? – se se tratar de um “acto cal onde existia já um povoado indíge- construções o “largar os anéis para sal-
ro português as “insígnias” de D. Afon- individual de devoção, sem qualquer na” (informação que não era admitida var os dedos”, ou seja, não um símbo-
so Henriques, para mostrar aos demais relação com os citados atributos”? até há muito pouco tempo). lo de dificuldade e de pressa, mas sim
da Europa que, antes de eles serem O templo romano de Évora. Havia 4 – “A denominação da cidade algo que se pensara, dentro dos parâ-
Nação, nós já o éramos e até cunháva- um espelho de água a rodeá-lo. Não é, enquadra-se no plano ideológico de metros de um urbanismo que, afinal, se
mos moeda própria! Os selos consti- claro, dedicado a Diana, mas não po- exaltação da pax, quer nas províncias, renova, atendendo aos novos circuns-
tuem, na verdade, outro veículo impor- derá deixar de ter servido para “cultos quer na própria sociedade romana, tancialismos e perspectivas: “Pelo in-
tante de propaganda, mesmo que não institucionais, talvez mesmo o culto do promovida por Octaviano, antes de re- vestimento que implica, tanto em termos
façamos colecção; mas temos sempre imperador divinizado”. ceber a consagração como Augusto”. humanos como financeiros constitui
amigos que fazem. Abra-se um pequeno parêntesis Difícil dizer mais em tão poucas uma prova evidente da vitalidade das
Mas… ainda que não queira – de para assinalar como – quando neces- palavras! E sintetizar, assim, os dados comunidades urbanas e da sua relevân-
jeito nenhum! – tirar ao leitor a supre- sário – Carlos Fabião é cauteloso nas mais relevantes da investigação em cia”. Uma ideia original a fixar, a de-
ma delícia de se maravilhar, permita-se- suas afirmações. Aqui, acrescenta um curso. senvolver e a testar com outros exem-
-me que dê uma olhadela, aqui e além, “talvez”, quando – de um modo geral Idêntico comentário poderíamos plos.
ao volume que ora nos é facultado. A – todos concordamos em que se trata de fazer em relação à imagem da p. 47, a E que dizer duma observação co-
ilustrar uma ou outra ideia. um templo ao culto imperial, datável, bem conhecida epígrafe sobre o ora- mo esta, a propósito das novas vias que
Cada capítulo, um animal mari- inclusive, do reinado de Augusto, dados rium oferecido à civitas Igaeditano- os Romanos traçaram: “Foram segura-
nho, real ou imaginário, retirado de os paralelos existentes, do ponto de rum 7. Temos, aqui, algumas divergên- mente estes novos circuitos que tor-
mosaicos. Portanto, o mar. E… os deu- vista arquitectónico, em Mérida (capi- cias de interpretação, que não vêm ao naram obsoletos velhos caminhos pré-
ses – patentes nos títulos dos capítulos: tal da Lusitânia) e mesmo em Tarrago- caso, agora 8, mas o importante é su- -romanos, condenando irremediavel-
– Sob o signo de Marte – a con- na, capital da outra importante provín- blinhar quanto significa a oferta e a re- mente os núcleos indígenas com eles
quista. cia, a Citerior. O mesmo sucede em cepção oficial de um relógio solar – co- associados” (p. 80)? Plena de actuali-
– Tem um ar um tudo-nada des- relação a Miróbriga, nome por que se mo que para pautar a vida da comu- dade, numa época de auto-estradas e de
confiado o peixe que ilustra a pax ro- conheceu a cidade romana sita ao lado nidade ao ritmo do todo que era o Im- estações de serviço…
mana – será mesmo uma “nova era”? – de Santiago de Cacém. Eu já pusera pério 9.
parece perguntar… alguma dúvida em 1984 quanto à de- Aliás, nesse sentido apontam tam-
– Depois, Ceres, o mundo rural, signação; Carlos Fabião sublinha, por bém – e Carlos Fabião sublinha-o – as
que não podemos esquecer as nossas mais do que uma vez, com a expressão estátuas de grandes proporções dos
raízes agrícolas. É a terra-mãe, o ventre “se presume ser”. Na verdade, não há imperadores, a funcionarem como big
6 Cf. ENCARNAÇÃO, José d’ (1984) –
donde, afinal, tudo se gera! prova cabal de que a cidade se tenha cha- brothers vigilantes por todo o vasto
Inscrições Romanas do Conventus Pacensis
– Vulcano e a sua forja, de rosto mado assim, por mais que D. Fernando Império, como eram iguais as escolas
(= IRCP). Coimbra, inscrição n.º 568.
suado. Mãos calejadas, o sacrifício, uf! de Almeida, nosso saudoso mestre, o primárias no tempo do Antigo Regime, 7 Cf. SÁ, Ana Marques de (2007) – Civitas
Que calor! São os recursos mineiros e haja proclamado. E também dirá: “o com o crucifixo e as fotografias; como
Igaeditanorum: os Deuses e os Homens.
geológicos. presumível aqueduto de abastecimen- o euro pretende (ainda que não consiga
Município de Idanha-a-Nova, p. 61;
to da cidade de Felicitas Iulia Olisi- – por via do reverso) uniformizar euro- MANTAS, Vasco Gil (1988) – “Orarium donauit
po”… (p. 68), apesar de Francisco da peus... Igaeditanis: epigrafia e funções urbanas numa
Holanda. E se, por outro lado, se gera entre capital regional lusitana”. In Actas del I
Estamos, pois, perante uma obra nós, ao falarmos dos Romanos e do Congreso de Historia Antigua Peninsular
densa – daí, repito, a importância das que deles hoje ainda subsiste em ter- (Santiago de Compostela. 1986).
legendas grandes, a cuja leitura se não ritório nacional, uma “estranha fami- Santiago de Compostela. Vol. II, pp. 415-439;
resiste. Permitam-se-me, a concluir, liaridade” – como escreve o Autor –, AE 1992 951.
dois ou três comentários mais, de ape- não é menos verdade que, por vezes, tal 8 Cf. ENCARNAÇÃO, José d’ (1991) –
ritivo. familiaridade nos pode impedir de in Conimbriga. 30: 180-181.
Na p. 38: a placa com a inscrição realçar a importância do que, à primeira 9 ÉTIENNE, R. (1992) – “L’Horloge de la Civitas
dedicada ao imperador Lúcio Vero, no vista, poderiam ser simples porme- Igaeditanorum et la Création de la Province de
período que medeia entre os anos 139 nores. O fragmento de “pé de estátua Lusitanie”. Revue des Études Anciennes.
e 161 (IRCP 291). Cá está um dos casos thoracata” de Conimbriga acaba, neste 94 (3-4): 355-362.
al-madan
online XIX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Balsa
uma cidade perdida? até à época visigótica. Trata o Cap. VII
das gentes que as inscrições documen-
José d’Encarnação tam em Balsa: os “55 Balsenses” lhes
chama Luís Fraga da Silva, deveras
sugestivo estudo da onomástica patente
[versão condensada na Al-Madan 16: 150] nas epígrafes.
Como atrás se disse, é segura-
mente o Cap. VIII, sobre o urbanismo,
aquele que maiores inovações apre-
senta, pois aí se propõe uma visão pa-

M
ais ou menos sob esse Fraga da Silva, vamos norâmica da cidade, se formulam hipó-
título deu à estampa o por aí, na emoção da des- teses sobre as quatro fases da sua evo-
Dr. Luís Fraga da Sil- coberta. lução urbanística, e se estabelece com-
va, entusiasta pelas descobertas arqueo- Depois das palavras SILVA, Luís Fraga da (2007) – Balsa, Cidade Perdida: a capital do paração entre Balsa e outras cidades
Algarve Oriental na Época Romana. Tavira: Campo Arqueológico
lógicas romanas nos arredores de Tavira de ocasião do Presidente romanas do mundo hispânico. Comple-
de Tavira / C. Municipal de Tavira. ISBN: 978-972-97648-9-9.
e seu grande dinamizador, uma obra de da edilidade, a apresen- ta-se este capítulo com o IX (pp. 108-
consulta obrigatória, precisamente pe- tação da Presidente da -124), a que o Autor modestamente
las inúmeras e actualizadas informa- Direcção do Campo Ar- chama de “apêndice”: aborda aí “um te-
ções que carreia para o estudo de uma queológico, Dra. Maria Garcia Pereira Não hesita em considerar que a sua ma quase desconhecido”, mas “de ine-
cidade – como é a de Balsa – plena de Maia, que sublinha ser este “um livro de é uma “visão inovadora sobre a histó- gável interesse”, pois elucida “aspec-
mistério para o homem comum 1. divulgação, destinado ao grande públi- ria territorial e o urbanismo balsenses”, tos técnicos pertinentes do urbanismo
Rezam epígrafes que teve circo, co e que pretende, acima de tudo, não baseado este último aspecto no “traba- balsense” e aí se aduzem as justifica-
para corrida de cavalos 2; explicita-se deixar cair no esquecimento esta jazi- lho original do autor sobre a morfolo- ções para as reconstituições e as inter-
noutra (IRCP 78) que, na euforia de ter da arqueológica que teve pouca sorte”, gia urbana e o território da cidade”. pretações propostas, consubstanciadas
sido eleito para as enobrecedoras fun- pois não foi – estamos de acordo – Cada capítulo, para melhor com- em plantas elucidativas. O Cap. X (pp.
ções de sêxviro, interlocutor privile- uma “cidade romana pequenina e mi- preensão do que nele se inclui, é pre- 124-137), esse sim, é, deveras, um
giado entre os deuses e o imperador que mada”. Maria Maia sublinha a “sólida cedido de resumo. Assim, o I trata da apêndice, de grande utilidade para os
venerava, o liberto Ânio Primitivo gas- base de documentação, muita leitura e história da cidade (origem do topónimo, menos familiarizados com as cidades
tou dinheiro a rodos para, numa home- muito estudo” que subjaz ao livro, ain- origens do aglomerado urbano, desen- romanas, dado que fornece breve mas
nagem à deusa Fortuna que sempre o da que reconheça “a sua aparente he- volvimento e apogeu, declínio e desa- esclarecedor panorama acerca do que
protegera nos negócios, organizar com- terodoxia” e a “a ousadia de algumas parecimento, redescoberta e 2ª destrui- elas eram nos seus aspectos funda-
bates de gladiadores e uma batalha na- das teses” nele defendidas. ção), terminando (p. 37) com a pergun- mentais.
val (edito barcarum certamine et pugi- É o autor quem prefacia o volu- ta “Há um futuro para Balsa?”. À
lum) para gáudio da população; na cir- me, a agradecer as colaborações havi- questão não responde directamente,
cunstância, foi igualmente um mãos- das e a dar conta dos objectivos a atin- pois afirma: “Apesar da violência das
largas, obsequiando os cidadãos com gir: “Revelar o que estava escondido ou destruições, Balsa mantém o interesse 1 O livro foi editado, em Maio de 2007,
benesses: sportulis etiam civibus datis. já desapareceu da antiga cidade de de ser a única cidade romana do Algar- pelo Campo Arqueológico e pela Câmara
Há famílias que são manifesta- Balsa, descobrindo um pouco do espes- ve que não teve uma continuidade ur- Municipal de Tavira, com o apoio de
mente “burguesas”, com todo o con- so véu de mistério que a cobre, apesar bana” e que, por isso, “guarda ainda organismos locais.
teúdo hoje atribuído a esse adjectivo, do muito que ainda permanece desco- inúmeros vestígios da sua ocupação 2 Cf. ENCARNAÇÃO, José d’ (1984) – Inscrições
por deterem poder económico e políti- nhecido ou hipotético”. Refere Luís original”. Confessa, porém, “com tris- Romanas do Conventus Pacensis (= IRCP).
co de que se fazem gala: Mânlia Faus- Fraga da Silva as destruições que “tra- teza”, que este “raro tesouro patrimo- Coimbra, inscrições n.ºs 76 e 77.
tina, por exemplo, com autorização dos balhos agrícolas e urbanizações” aí nial” se encontra “em risco iminente de 3 Cf. Encarnação, José d’ (2003) – “Quão
decuriões, manda erguer um cipo para levaram a efeito, de tal modo que quase uma liquidação definitiva”. importantes eram as gentes!…”. In Tavira.
colocar no fórum, dedicado ao irmão se pode dizer que o tema aqui tratado é Apresenta o Cap. II uma sugesti- Território e Poder. Lisboa: Museu Nacional de
falecido, Tito Mânlio Faustino de seu mais uma “questão imobiliária”, pois, va tabela cronológica para melhor en- Arqueologia, pp. 95-104.
nome, “modelo de piedade, duúnviro “embora se encontre em zona arqueo- quadramento dos dados. “Testemu- 4 Cf. as conclusões a que, através do estudo
por duas vezes” e, em sua honra, não lógica classificada e no Parque Natu- nhos” antigos sobre a cidade ocupam o das cerâmicas e dos vidros, chegou a Dra.
hesita em também oferecer um ban- ral da Ria Formosa, […] o que resta Cap. III. O IV (pp. 44-59) trata, em Jeannette U. Smit Nolen (Cerâmicas e Vidros
quete (IRCP 79) 3. está em perigo […] devido aos apetites síntese, dos dados arqueológicos: mo- de Torre de Ares – Balsa, Lisboa, 1994).
Outros dados – arqueológicos, nu- que a sua situação privilegiada des- numentos epigráficos, esculturas, a pla- 5 Diga-se, em abono da verdade, que tem
mismáticos, documentais – se pode- perta” 5. ca dionisíaca, objectos pessoais e fune- sido intensa a actividade desenvolvida pelo
riam aduzir para mostrar que, pelos A “advertência ao leitor” dá, de rários, moedas (indígenas e romanas), Campo Arqueológico de Tavira, liderado por
séculos afora, designadamente decerto certo modo, a opinião do Autor sobre o lucernas, estruturas balneárias, espaços Maria e Manuel Maia, numa tentativa de
refrear ímpetos urbanísticos em terrenos
no III e no IV 4, Balsa se arvorou em livro que escreve: “denso, rico em tex- e estruturas funerárias. No Cap. V (Eco-
onde já se sabe existirem ruínas, e
grandioso empório marítimo, a rivalizar to, ilustrações e mapas geográficos, nomia, pp. 50-69): conservas de peixe,
procurando levar a efeito sondagens e mesmo
com a vizinha Ossonoba. tendo-se dedicado um cuidado especial ânforas, garum, cerâmica importada… escavações arqueológicas onde se considere
Por consequência, mais do que ao seu aspecto visual”; dedicado “ao Sob o título Geografia (Cap. VI, pp. 70- fundamental. Dos resultados dessas pesquisas
diante de uma cidade romana “perdida”, público culto, requerendo conheci- -83), um assaz interessante enquadra- se têm feito eco em reuniões científicas.
eu creio que estamos perante uma ci- mentos básicos de história e cultura mento da cidade na estrutura territorial, Uma consulta à página www.arqueotavira.com
dade reencontrada e, guiados por Luís clássica e de geografia regional”. envolvente desde o período pré-romano também resultará deveras proveitosa.
al-madan
XIX online
adenda
3 electrónica
l LIVROS
al-madan online | adenda electrónica

Chamei, em tempos, a Balsa uma Fruto de toda uma azáfama de es- põe, seduzidos pela beleza das ima- gazarra das corridas, saudamos o Sr. Tus-
cidade “intrigante e esplendorosa” 6, cavações, de miúda observação dos gens… ciliano que passa com séquito de servi-
dado que, como comecei por afirmar, se terrenos e dos vestígios, este é, deveras, E que bem sentimos, ao observar dores… 7 e votamos, alfim, em plena
os monumentos epigráficos nos falam um livro aliciante, na sua aparente sim- o rol das moedas com toda a sua deco- consciência de cidadãos: queremos, se-
de esplendor, os achados arqueológicos plicidade. Vejam-se, a título de exem- ração, como – também aí – nada era dei- nhores, esta cidade de volta! Depres-
– sucessivamente destruídos, como o plo, os desenhos das lucernas, pressu- xado ao acaso: a mensagem pretendia- sa!
Autor explicita – encaminham-nos pondo amplo e demorado trabalho de -se clara, os atuns (principal fonte de ri-
mais, fascinados pelo mistério, em laboratório. E as marcas dos oleiros? Va- queza), os barcos com seus rostra (a ex-
direcção a uma cidade-fantasma. Cadê mos ainda ter que estudá-las melhor, pa- plicarem que preparados estavam para
o circo, senhores? E o fórum? E o tem- ra identificarmos nomes e possíveis a luta a defender os seus interesses)… 6 Cf. ENCARNAÇÃO, José d’ (2000) – “Balsa
plo ao culto imperial? E o teatro?… proveniências dos fabricos: seria ali- Pela mão de Luís Fraga da Silva, Intrigante e Esplendorosa”. Stilus. Revista de
Termas diz Fraga da Silva que tam- ciante, por exemplo, ver em OLYNT a quase nos apaixonamos tanto como ele Cultura Regional. Faro. 2: 105-110.
bém teria; eu acho que até nem seriam abreviatura de um OLYNTHIVS, al- por esta cidade que, ao longo de sécu- 7 Uma solene inscrição (IRCP 80) foi dedicada
precisas, que os braços do mar poderi- guém que veio de Olinto, cidade gre- los, a incúria e a “vã cobiça” dos ho- a Tito Rutílio Tusciliano, identificando-o
am deter essa função – águas tépidas, ga… Apetece-nos ir nessa descoberta, mens foram deixando perder. como filho de Quinto Rutílio Rusticino e neto
límpidas, bonançosas… a identificar estruturas, a reconstituí-las Com ele percorremos vielas, admi- de Tito Mânlio Marcial, por um grupo dos
Oscilou muito a costa por aí. Se com os parcos elementos de que se dis- ramos o porto, sentimos o circo e a al- seus libertos fiéis…
calhar, em vez de apenas uma cidade de
pedra, teríamos também uma de ma-
deira: armazéns para o comércio, bar- Apoiado num im-
racas para os pescadores…
Imaginamos, de resto, duas popu-
A Torre de portante acervo docu-
mental de fontes manus-
lações:
– A do mar: “Vamos mariscar ho-
S. Sebastião critas e impressas, car-
tográficas e iconográfi-
je, aproveitamos a maré e de volta pes- CID, Pedro de cas, o livro apresenta ain-
camos uns besuguinhos ou apanhamos Aboim Inglez e a Arquitectura militar da um levantamento fo-
umas lamejinhas pró almoço!”… (2007) – A Torre tográfico das estruturas
– A das administrações, que vive- de S. Sebastião edificadas, um inventário
de Caparica, e a Arquitectura Militar do Tempo de Francisco Silva
ria mais para o interior, fiscalizadora, das marcas de canteiro
fria, senhora do seu nariz… D. João II. Lisboa: Edições Colibri. 414 p. il. (gliptográfico) identifi-
Quando dei a conhecer a Luís cadas nas estruturas, e

A
Fraga da Silva esta opinião – inspirada, Torre de S. Sebastião de enquanto precursora de sistemas de ainda plantas, alçados e reconstituições
por exemplo, numa Mira, em que tí- Caparica, também co- fortificação costeira adaptados ao tiro de realizadas no âmbito da investigação.
nhamos a Praia com suas construções nhecida como “Torre artilharia. Enquanto abordagem científica
de carácter quase efémero e o centro Velha” localiza-se na arriba sobre a Nesta obra, o autor relaciona o de um tema de evidente interesse his-
administrativo se situa já fora das dunas, margem esquerda do estuário do Tejo, pioneirismo da construção com a acção tórico e patrimonial, esta edição reves-
da Barrinha, dos terrenos alagadiços… em frente à Torre de Belém. A tese de governativa do Rei D. João II, e salien- te-se de grande importância para o co-
–, a sua reacção foi, para mim, inespe- mestrado da autoria de Pedro de Aboim ta a importância da construção da Torre nhecimento de uma fortaleza que tem
rada: “Equiparar Balsa a um cabanal Inglez Cid, agora publicada, faz o en- no plano de defesa da cidade e do por- permanecido ao abandono e em ruína,
de pescadores, mais ou menos boçais quadramento histórico desta fortaleza to de Lisboa, na sequência do qual foi apesar da proximidade e da relação
que tomavam banho nos charcos da ria, no contexto da arquitectura militar qua- posteriormente erigida a Torre de Be- directa com a sua congénere da mar-
parece-me uma estrondosa falsidade” trocentista, revelando a sua importância lém. gem oposta.
(e-mail de 29-10-2005).
Não quisera eu – jamais! – deslus-
trar uma cidade e – muito menos! – a
pesquisa aí levada a efeito durante tan-
tos anos e com tão bons resultados! É
Os Mosaicos Romanos LANCHA, J., coord. (2008) – A Rota do Mosaico
Romano. O Sul da Hispânia (Andaluzia e Algarve):
cidades e villae notáveis da Bética e Lusitânia
que, na verdade, cidades piscatórias
com as características de Balsa não ve-
no Sul da Hispânia romanas. Edição Equipa MOSUDHIS, 144 p. il.

jo desdém algum em que possam ter


dois aglomerados populacionais em Fernanda Lourenço Dos mosaicos da Baetica romana
pacífica convivência. Quem se passeia são apresentados os de Écija (Colónia
por Génova junto ao porto reconhece- Augusta Firma Astigi), de Niebla (Ilipla)
-se numa cidade bem diferente da urbe e de Tejada la Nueva (Ituci). Da Lusi-

C
das ruas sobranceiras pejadas de palá- om o apoio do Departa- integra investigadores das universi- tânia, os de Faro (Ossonoba), Milreu e
cios senhoriais… E tenho a certeza de mento de História, Ar- dades do Algarve e Huelva, do Museu Cerro da Vila.
que essa primeira reacção do Autor queologia e Património Histórico Municipal de Écija e da equi- Neste guia, as descrições e inter-
terá sido ultrapassada e não resisto, por da Universidade do Algarve, foi lança- pa luso-francesa dos mosaicos do Sul de pretações pormenorizadas dos mosaicos
tal motivo, a concluir essas breves linhas do em 2008 o livro A Rota do Mosaico Portugal, a obra reúne, em português e são acompanhadas por desenhos e fotos
com os parágrafos finais do que se Romano. O Sul da Hispânia (Andaluzia castelhano, informação dispersa sobre a cor. É completado com um glossário
chegou a pensar como prefácio para a e Algarve). o tema. de termos técnicos e nomes, índices de
obra com que Luís Fraga da Silva labo- Da autoria da equipa MOSUDHIS – A introdução refere-se ao contex- lugares e bibliografia.
riosamente nos brindou. Mosaicos Romanos do Sudoeste da to regional dos mosaicos e aos métodos Está disponível online em www.
Hispânia: Andaluzia e Algarve, que e fases da sua realização. cepha.ualg.pt/mosudhis/rota.pdf.
al-madan
online XIX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
A World History of the
Nineteenth-Century Archaeology
recensão crítica
Sérgio Gomes [Bolseiro FCT, sergioalexandregomes@gmail.com]

World History of the poleónicas e de Mamluk; porém, como Mais uma vez, a auto-

A Nine teenth-Century
Archaeology – National-
ism, Colonialism, and the Past é uma
nos alerta a presença de pirâmides no
horizonte, esta batalha não é apenas
uma arena de interesses políticos e eco-
ra permanece numa atitude
de síntese entre as distintas
escalas de análise presentes
DÍAZ-ANDREU, Margarita (2007) − A World History of the Nine-
teenth-Century Archaeology: Nationalism, Colonialism, and the Past.
obra acerca do modo como a Arqueo- nómicos, as pirâmides assistem a um no estudo: por um lado, ten- Oxford: Oxford University Press, 486 pp. ISBN 978-0-19-
logia, durante o século XIX, se instituiu confronto de esquemas de significação ta conciliar as periodiza- -921717-5.
disciplina científica e contribuiu para a de onde saiu vencedor o Ocidental e, ções que lhe são sugeridas
consolidação de um discurso hegemó- com ele, um regime de indexibilidade pelos enfoques internalista
nico produzido pelo mundo ocidental. que definiria o lugar das pirâmides na e externalista; por outro lado, procura Com efeito, os impérios europeus
Neste sentido, Margarita Díaz-Andreu sua(s) história(s) e da Arqueologia que criar interfaces em que se torne explí- e otomano, no sentido de se apresen-
não se limita a um exercício historio- nele se pratica. cita a tensão entre o local e o global e os tarem como égides civilizacionais, con-
gráfico de compilação de dados à escala Neste trabalho é salientado o mo- processos de inscrição daí decorrentes. tribuíram para o estudo das civiliza-
mundial, nem faz da sua análise um do como Nacionalismo, Colonialismo, O livro encontra-se dividido em ções egípcia, grega e romana, promo-
enfoque internalista dirigido ao desen- Imperialismo e Arqueologia se entre- quatro partes, sendo que os temas, as vendo uma visão do Passado baseada
volvimento de teorias, métodos e mo- cruzam a várias escalas, sendo desta- cronologias e as regiões que são anali- numa sucessão de etapas relacionadas
delos explicativos; pelo contrário, o cado o modo como as circunstâncias sadas em cada uma delas correspon- com o progresso dos seus princípios
que nos é proposto é uma problemati- conjunturais em que os agentes se in- dem a uma tentativa de articular contex- morais e desenvolvimento tecnológico
zação acerca da relação entre a Arque- serem potenciaram o constante refazer tos políticos e práticas arqueológicas. (capítulo 5). É também neste contexto
ologia e o contexto social e político dessas relações. Este é o grande desafio Na parte I, “The Early Archaeo- que se desenvolvem os estudos bíblicos,
em que se insere. da obra, dado que, tratando-se de uma logy of the Great Civilizations”, são alargando a influência a áreas como
Na leitura deste livro, o que so- História da Arqueologia a uma escala apresentados distintos cenários, onde é Iraque, o Irão e a Palestina (capítulo 6).
bressai, é a complexa rede de relações mundial, os arqueólogos e a Arqueo- discutido o modo como a ideologia li- Porém, os movimentos políticos destas
que caracteriza o processo de institu- logia não são apresentados de forma beral nacionalista se apropria da tradi- áreas acabariam por se apropriar des-
cionalização da actividade arqueológi- abstracta, mas enquanto agentes sociais ção do estudo das grandes civilizações ses estudos no sentido de criarem um
ca e a afirmação dos arqueólogos en- e prática científica inseridos em histó- (apresentado no capítulo 2) e a usa co- discurso nacionalista de reivindicação
quanto agentes autorizados para a pro- rias locais, perspectivas teóricas, expec- mo modo de legitimação de projectos à independência.
dução de um discurso sobre o Passado. tativas sociais e políticas 1. políticos distintos, seja o imperialismo No espaço extra-europeu, a auto-
Assim, o livro acaba por ser uma pers- Este exercício de escalas singula- francês revolucionário (capítulo 3) ou a ra apresenta o caso da América Latina,
pectiva acerca do contexto de produção riza a obra no contexto da literatura independência da Grécia e dos países da do Japão e da China (capítulo 7), enfa-
de conhecimento, realçando o cruza- historiográfica e epistemológica acerca América Latina (capítulo 4). No caso tizando o modo como a apropriação do
mento de agendas científicas, políti- da emergência e consolidação da práti- francês, o estudo e a apropriação das ci- discurso arqueológico foi usado como
cas, económicas e sociais na forma co- ca arqueológica. Com efeito, contra vi- vilizações grega, romana e egípcia per- elemento constituinte de um movi-
mo uma prática institucionaliza e reser- sões unidireccionais, Díaz-Andreu pro- mitem a criação de uma metanarrativa mento político contrário ao imperialis-
va para si o discurso sobre uma deter- põe uma leitura a diferentes escalas de acerca do progresso, da soberania polí- mo europeu. A Arqueologia dos impé-
minada realidade. análise e em diferentes pontos do globo, tica e da liberdade que a coloca no topo rios informais encerra em si um movi-
Simultaneamente, a escala mundi- demonstrando como a representação de um processo civilizacional, servin- mento ambivalente porque se, por um
al usada pela autora permite também a do Passado se insere numa rede de in- do o Passado como elemento de legiti- lado, faz parte de uma estratégia geo-
análise da forma como a Arqueologia se teresses onde os percursos de arqueólo- mação ao seu projecto de “salvação política que permitiu a consolidação
inscreve no processo de ocidentaliza- gos, teorias e instituições apresentam dos povos”. No caso grego e das nações pacífica dos poderes imperiais, por ou-
ção, isto é, o modo como a construção desenvolvimentos díspares, e por vezes latino-americanas, a ligação entre a
do Passado se torna uma tarefa neces- contraditórios, que fazem do processo antiguidade e actualidade não é feita
sária à produção de identidades locais, de institucionalização da Arqueologia pelo recurso à história de valores, como
1 A propósito da multiplicidade de “actores”
tornadas elementos de resistência aos uma narrativa complexa e diversifica- no caso francês, mas em nome de uma
projectos hegemónicos que animam o da. continuidade cultural que investe as e “palcos” que são abordados neste estudo,
é de referir a apresentação de um extenso
século XIX. Porém, se a análise das relações populações do direito à reivindicação da
índex de grande utilidade na sua consulta,
A imagem da capa, o óleo nove- entre estas quatro práticas remete para sua independência.
sendo de destacar a sua subdivisão em
centista A Batalha das Pirâmides, do a multiplicidade de contextos em que a Na parte II, “The Archaeology of entradas de carácter geral, outra de carácter
pintor francês Louis-François Lejeune, arqueologia se desenvolveu no século Informal Imperialism”, a Arqueologia institucional e uma terceira relativa a nomes
remete-nos para este processo de oci- XIX, a estrutura do livro espelha uma é apresentada como produtora de um de arqueólogos. São também apresentados
dentalização. No primeiro plano, visua- tentativa de superar o enfoque local discurso que legitimou a superioridade cinco mapas relativos à geografia política
liza-se o confronto entre as forças na- que decorreria deste aspecto. civilizacional Ocidental. do século XIX.
al-madan
XIX online
adenda
5 electrónica
l LIVROS
al-madan online | adenda electrónica

tro lado, a sua apropriação nos distintos des primitivas” é posta ao serviço de um nâmicas sociais que promovem e a ordem social, onde se destaca a actua-
contextos políticos e sociais do globo discurso hegemónico que autoriza a crescente consolidação de uma cons- ção de classes burguesas que, desde o
contribuiu para a emergência de movi- política colonialista. Neste processo ciência colectiva de Passado, permitem século XVIII, com a Revolução Fran-
mentos de resistência. Assim, neste são criadas uma série de ligações entre que a Arqueologia se complexifique cesa, contribuem para o desmantela-
capítulo, a Arqueologia é apresentada elementos raciais, morais, tecnológi- enquanto discurso e prática científicas. mento da sociedade de ordens tradi-
tanto como produtora de discursos de cos, que distinguem e hierarquizam Se nos capítulos anteriores a aborda- cional, procurando estabelecer novas
legitimação que defendem a suprema- grupos humanos, num esquema evolu- gem privilegiada é de ordem política e vias de ascensão ou afirmação social.
cia da civilização europeia e como um cionista que reforça a superioridade ci- social, o capítulo 13 propõe a análise do Nesta nova dinâmica, o elemento
elemento de ocidentalização cuja aqui- vilizacional do mundo ocidental. modo como a Arqueologia se inscreve de mobilidade social por excelência é o
sição é simultânea da mundialização da A síntese da experiência colonial no contexto filosófico novecentista, mérito pessoal, alcançado pelo traba-
ideologia nacionalista. e imperialista, a constituição do(s) privilegiando os interfaces existentes lho ou instrução, substituindo a ligação
Esta mundialização de práticas e Outro(s) nas outras partes do mundo entre Arqueologia, Evolucionismo e ou relação com a família real como
ideologias é sintomática da consolida- tem uma série de repercussões no modo Positivismo. elemento constituinte da elite. Conse-
ção de um discurso sobre o Passado tipi- como o continente europeu representa São discutidos os meios pelos quentemente, a multiplicação dos
camente ocidental, uma narrativa linear o(s) seu(s) Outro(s). Este tema foi abor- quais a Arqueologia actualiza as teorias meios de ascensão social multiplica
sistematizada em períodos que permi- dado nos capítulo 5 e 10; porém, na evolucionistas, no quadro particularis- também o número de elites, isto é, de
tem uma melhor compreensão do pre- Parte IV, “National Archaeology in ta decorrente da agenda nacionalista grupos de indivíduos cujos interesses
sente e uma projecção do futuro; com Europe”, é retomado e inserido no mo- que anima os arqueólogos e responde ao em comum permitem a sua organiza-
esta representação do Passado, esta- do como os distintos países reciclam modelo de ciência proposto pelo Posi- ção, formal ou informal, no sentido de
belecem-se também os dispositivos esse conhecimento e o modo como a tivismo. É nesta dinâmica que a Ar- reservar para si uma determinada activi-
que regulam a sua produção e difusão, utilização da ideologia nacionalista por queologia se constitui um ramo do sa- dade, actuando também no sentido de
como é o caso da Universidade e do parte de projectos políticos conserva- ber com um objecto de estudo, mode- a promover num quadro de utilidade pú-
Museu. O Passado torna-se uma arena dores promove uma representação do los explicativos e métodos de pesquisa blica e, consequentemente, fonte de
onde são disputados elementos de legi- Passado cada vez menos centrado definidos. Esta circunscrição não é ape- mérito social.
timação dos distintos projectos políticos numa história universal e, progressi- nas uma consequência do contexto em É neste contexto de grande mobi-
e a Arqueologia uma ferramenta de es- vamente, constrói um Passado centrado que a prática da Arqueologia se insere lidade social que o processo de institu-
crutínio na construção e consolidação da num unidade política: o Estado-Nação. no século XIX, mas um elemento de cionalização da Arqueologia é pers-
imagens do Europeu e do(s) Outro(s). O capítulo 11 incide especifica- institucionalização da própria pesquisa pectivado, respondendo desta forma à
A parte III, “Colonial Archaeo- mente sobre este aspecto, analisando o arqueológica. Se a Arqueologia se pode tensão entre os enfoques internalista e
logy”, completa a extensa lista de con- período correspondente ao intervalo definir enquanto modo de conheci- externalista que caracteriza este estudo.
textos em que se processou alguns dos entre a Revolução Francesa e 1820. É mento, a sua prática requer o domínio Assim, a produção do conhecimento
aspectos referidos na parte II; porém, também destacado o modo como a ten- de técnicas e conhecimentos que nem arqueológico é apresentada na sua rede
trata de regiões onde se processou uma são entre Iluminismo e Romantismo en- todos os agentes possuem e, nesse sen- de relações sociais, políticas e económi-
política colonial efectiva, traduzida pela cerra uma tensão entre Universalismo tido, emerge o arqueólogo enquanto o cas, sendo a Arqueologia e os arqueó-
integração dessas regiões no território e Particularismo, cuja tradução em ter- agente técnico, ou o profissional, auto- logos apresentados como uma criação
nacional das potências e pela imposição mos de construção do Passado se re- rizado para este domínio. novecentista decorrente das sociabili-
de modelos culturais europeus. Assim, flecte na ideia da busca de uma essên- Nas considerações finais, capítu- dades que caracterizam este período.
o capítulo 8 incide sobre o caso do Sul cia que singulariza a Nação e anima a lo 14, é salientado o papel da importân- Porém, esta relação não é unidi-
e Sudeste asiático e o processo de oci- produção de histórias nacionais. Esta cia das ideologias nacionalistas e das reccional; os arqueólogos como pro-
dentalização destas regiões, destacando tensão é gerida de forma distinta pelos práticas colonialista e imperialista bem dutores de Passados, cuja relevância é
a forma como o mundo ocidental pen- países europeus, sendo que a sua reso- como o papel dos agentes na actualiza- significativa no âmbito da ideologia
sa o Passado e se consolida substituin- lução apresenta consequências acerca ção da ideia de Nação, colónia ou Im- nacionalista, contribuem para o refazer
do as inteligibilidades locais, bem como do modo como a prática arqueológica pério. A Arqueologia, neste contexto, dessas sociabilidades, na medida em
essa visão do Passado é apropriada por é inserida nas dinâmicas de complexi- participa activamente na construção que tanto podem contribuir para a con-
projectos nacionalistas regionais. ficação estatal. destes projectos e apresenta uma ima- solidação de um poder instituído ou
No capítulo 9, a comparação entre Neste processo de interacção entre gem rizomática quanto ao seu proces- fornecer elementos de reivindicação a
o Império Russo e o Império Francês no Estado e Ciência, a autora destaca a so de institucionalização. Esta multi- focos de contra-poder, animando deste
Norte de África, equaciona as relações produção das Identidades Nacionais plicidade de caminhos prende-se com modo a conjuntura em que se inserem
entre grupos religiosos, movimentos como campo privilegiado da interacção a natureza da construção do Passado e, consequentemente, instituindo-se co-
políticos e a prática da Arqueologia, entre política e conhecimento, sendo que, longe de ser um processo mecani- mo forma de conhecimento legitimo.
destacando o modo como o discurso so- que no capítulo 12, correspondente ao cista, é um assunto socialmente situado Veja-se, por exemplo, o caso da
bre o Passado é reapropriado por pode- período das Revoluções Liberais, é e decorrente da interacção dos interesses transformação do Nacionalismo e as
res religiosos no sentido de legitimar analisada a importância de conceitos dos distintos agentes envolvidos e, por suas consequências na valorização de
unidades políticas com base numa iden- como Nação, Raça e Língua no estudo eles, negociado e contestado. determinados narrativas históricas e,
tidade religiosa. O capítulo 10 apresen- do Passado europeu. Durante este pe- Desta forma, no estudo que Díaz- subsequente, a actualização por parte
ta um enfoque distinto dos anteriores; a ríodo assiste-se a um maior protagonis- -Andreu nos apresenta, sendo enfati- dos arqueólogos dessas transformações.
autora apresenta uma série de regiões mo de temas que permitissem a nuclea- zados os aspectos políticos na consti- Se, com a Revolução Francesa, o abso-
dos continentes americano, asiático e rização do espaço europeu, tais como a tuição da Arqueologia, é também sa- lutismo régio e, consequentemente, o
africano onde se desenvolve uma Ar- Pré-História e a Época Medieval, no lientado o processo de tecnocratização reino, já não servem de unidade políti-
queologia de contextos não-monumen- sentido da criação de elementos de dis- e burocratização da relação dos agentes ca às novas dinâmicas sociais, o Nacio-
tais, destacando a sua interacção com os curso que legitimassem os projectos (especialmente na IV Parte), ou das nalismo e a Nação surgem como alter-
estudos da Pré-História europeia. É de- nacionalistas em confronto. comunidades que constituem, com a nativas a serem usadas pelos grupos
monstrado o modo como a cartografia A multiplicidade de temas estu- ideia de Passado. Este processo situa-se sociais que lideram este processo. O
espaço-temporal da ideia de “socieda- dados, a sua importância política, as di- socialmente na construção de uma nova sangue, a linhagem real, já não serve
al-madan
online XIX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
enquanto elemento de coesão política e tro lado, os arqueólogos, enquanto pro- Este aspecto deve ser enfatizado minante, através de um jogo de violên-
social; à vassalagem sucede uma orga- tagonistas dessa produção, reservam quando se tem em consideração a falên- cia simbólica consegue homogeneizar
nização fundada juridicamente e geri- para si o prestígio da sua enunciação, cia dos modelos providencialistas asso- comportamentos e interesses que per-
da de forma legislativa em função de aliando-se estrategicamente a outros ciados às formas de governo monár- mitem a consolidação de um poder ins-
direitos e deveres. agentes sociais (políticos e comercian- quicas enquanto formas de sustentação tituído.
Esta juridificação das dinâmicas tes, por exemplo) no de sentido institu- das unidades políticas, dado que a nova Neste contexto, se por um lado, a
sociais, se inicialmente operacionaliza cionalizar a sua prática. Simultanea- ordem social investe o Passado nacional Arqueologia pode ser entendida como
os propósitos de um Nacionalismo de mente, a complexificação estatal, de- enquanto um dos elementos de unidade um modo de dominação, na medida
esquerda que visa a universalização da corrente da ideologia liberal e naciona- que explica a legitimidade de um deter- em que corresponde a uma prática for-
revolução, posteriormente, seria ade- lista, promove a criação de uma série de minado político. O Passado torna-se malizada e regulada pelo Estado, sendo
quada a um Nacionalismo de direita e serviços e responsabilidades que reno- elemento integrante da Identidade Na- os arqueólogos os mediadores, ou os
conservador, voltado para o interior da vam as modalidades de relação entre o cional, explicando e legitimando o pre- agentes legitimados, que definem os
Nação. No primeiro momento, o sangue Estado e o Passado; criam-se serviços sente e futuro da nação. moldes da relação com os vestígios
real é substituído pela síntese da História estatais e legislação que requerem téc- A consolidação desta representa- materiais do Passado; por sua vez, a
universal, baseada no progresso e sis- nicos progressivamente mais especia- ção do Passado faz deste um recurso importância e conceptualização destes
tematizada em civilizações, e do pro- lizados e que contribuem para a conso- valioso cuja dominação é necessária vestígios do Passado não correspon-
jecto de salvação dos povos enquanto lidação de novos profissionais. Estas so- de forma a regular as dinâmicas geradas dem a imposições vindas de fora, cria-
retórica de legitimação dos projectos licitações do mercado de trabalho aca- em seu redor. É o valor do Passado das por instituições do poder, enuncia-
políticos; com a ascensão dos projectos bariam por pressionar as instituições que confere mérito aos arqueólogos das por técnicos especializados e incul-
nacionalistas de direita, a História uni- académicas no sentido de recriarem os que o produzem ou aos cidadãos que o cadas nas massas; pelo contrário, são
versal, enquanto móbil de legitimação, seus currículos e regular a situação. conhecem, sendo nesta dinâmica que se elementos participantes de uma cons-
é substituída por um discurso particu- Assim, a emergência da Arqueo- consolidam os processos de burocrati- ciência colectiva e emergentes das dis-
larista, que visa a revelação da essência logia inscreve-se num processo mais zação e tecnocratização inerentes à ins- tintas experiências culturais, sociais e
da Nação e a sua inscrição na univer- amplo de “disciplinarização da relação titucionalização da disciplina. Se é no políticas e geradoras de novas sociabi-
salidade. entre agentes e o passado”, cabendo ao regime de significações criado pelos lidades.
Neste processo, a Arqueologia e os Estado-Nação, instituído ou em forma- nacionalismos conservadores que o No livro de Margarita Díaz-An-
seus actores, quase todos cristãos e pro- ção, o papel de mediar essa relação, sen- Passado nacional é instituído de valor e dreu, o conhecimento do Passado é
venientes de classes sociais favorecidas do que, aos arqueólogos compete uma utilidade pública, é na complexificação apresentado enquanto forma de saber e,
à procura de prestígio e sinais de legi- actividade de actualização científica burocrática e tecnocrática decorrente da enquanto tal, é também uma forma de
timidade do seu protagonismo, desen- dessa relação, isto é, cristalizando um consolidação do Estado-Nação que poder, daí que na sua análise é neces-
volvem um processo de interacção com Passado de utilidade aos distintos pro- emerge a figura do arqueólogo(a) en- sário perceber “primeiro a multiplici-
os restantes actores e projectos, tornan- jectos políticos em cena durante o sécu- quanto técnico(a) responsável e auto- dade de relações de força que são ima-
do a Arqueologia num discurso sobre lo XIX. rizado para o estudo dos vestígios mate- nentes ao domínio e são constitutivas da
o(s) Passado(s), passível de fazer parte É no fenómeno de disciplinariza- riais do Passado. sua organização; o jogo que, por via
de uma agenda social e política. É neste ção que se assiste a uma ruptura entre a Neste sentido, o processo de insti- das lutas e afrontamentos incessantes,
quadro de relação entre poder, conhe- tradicional actividade dos antiquários e tucionalização da Arqueologia reproduz as transforma, as reforça, as inverte; os
cimento e verdade, que Margarita Dìaz- uma nova forma de ordenamento e de de diferentes formas o processo de ins- apoios que essas relações de força en-
Andreu problematiza a institucionali- discurso acerca dos vestígios materiais titucionalização do Estado-Nação, sen- contram umas nas outras, de forma a
zação da Arqueologia enquanto disci- do Passado que potencia e afirma a Ar- do que se a nação emerge enquanto constituir uma cadeia ou sistema, ou, ao
plina produtora de um discurso auto- queologia enquanto ramo do saber. unidade usada na reivindicação à inde- contrário, os deslocamentos, as condi-
rizado. Neste sentido, é de salientar o papel dos pendência de uma determinada comu- ções que as isolam umas das outras;
A leitura do livro sugere, deste museus, das academias e das univer- nidade, ou grupo dentro dessa comu- por fim, as estratégias nas quais se
modo, uma íntima relação entre a ideo- sidades enquanto dispositivos de poder nidade, o Estado constitui a forma de re- efectivam e cujo desenho geral ou cris-
logia política liberal e nacionalista, as (estatal ou comunitário), como platafor- gular os elementos que compõem essa talização institucional toma corpo nos
estratégias de afirmação da burguesia do mas onde se encontram os interesses co- nova unidade. aparelhos de estado, na formulação
século XIX e a Arqueologia. muns de arqueólogos e políticos. Estes Nesta tensão entre emancipação e da lei, nas hegemonias sociais” (FOU-
Com efeito, se por um lado, a Ar- dispositivos funcionam enquanto ele- regulação, o Passado é um instrumen- CAULT, 1994 [1971], História da Sexua-
queologia fornece enunciados que per- mentos de regulação das comunidades, to de retórica que visa a mobilização de lidade – A Vontade de Saber, Lisboa:
mitem a construção de um quadro de oferecendo discursos, modelos de con- interesses porque se, enquanto forma de Relógio D’Água, pp. 95-96).
referências alternativo à sociedade de duta, quadros de referência que alteram contestação do direito à soberania, pro-
ordens e ao absolutismo régio, por ou- o modo como o Passado é representado. duz um discurso contrário ao poder do-

PUBLICIDADE

CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA


associação de utilidade pública Visitas Guiadas Inventários de Património
sem fins lucrativos
Sessões Audiovisuais Projectos Pedagógicos
[fundado em 1972]
Acções de Formação Edições Temáticas...

Tel. / Fax: 212 766 975; Telm.: 967 354 861


Contacte-nos E-mail: secretariado@caa.org.pt; http://www.caa.org.pt

al-madan
XIX online
adenda
7 electrónica
EVENTOS
al-madan online | adenda electrónica
e
1º CPAE – Congresso Português
de Arqueologia Empresarial
um contributo para reflectir e
resses ou motivações, cabendo às em-
agir na Arqueologia portuguesa presas especializadas uma ponderação
clara da sua forma de prestar serviços
A Comissão Organizadora do CPAE equilibrando os interesses dos clientes
e os necessários requisitos de quali-
[versão condensada na Al-Madan 16: 154] dade na salvaguarda, investigação e
valorização do Património.
Assim, com uma prática técnica
condicionada pelas imposições legais da
realização do 1º CPAE -se as possibilidades do exercício da acantonado socialmente, todos são res- legislação do Património e pelas neces-

A nos dias 20 e 21 de No-


vembro de 2008 (Funda-
ção Calouste Gulbenkian, em Lisboa)
profissão, favoreceu-se a criatividade e
o empreendedorismo, surgindo dife-
rentes perspectivas de abordagem ao
ponsáveis pela salvaguarda e valoriza-
ção do Património, em benefício da
sua fruição pela generalidade dos ci-
sidades do mercado, estas empresas
com actuação directa sobre um Pa-
trimónio de eminente carácter público
constitui-se como um momento rele- mercado e às possibilidades de inter- dadãos. devem pugnar pelo retorno sócio-cul-
vante no presente da Arqueologia por- venção que a visão empresarial permi- Mas se a dinâmica dos últimos tural das intervenções que realizam,
tuguesa. O programa delineado para o te, particularmente na área da Arqueo- dez anos não pode ser dissociada da única forma de justificar os investi-
Congresso respondia à necessidade de logia preventiva e de salvamento. progressiva empresarialização da acti- mentos financeiros realizados e, sobre-
estimular o debate fundamentado e crí- Mesmo na ausência de estatísticas vidade, a que não são alheias as virtua- tudo, a natureza destrutiva de que se
tico em torno da avaliação das poten- fiáveis, é evidente que as estruturas lidades da concorrência e da iniciativa reveste grande parte das actuações
cialidades e limitações da Arqueologia empresariais assumiram, na última dé- individual, não é menos verdade que arqueológicas.
produzida pelas estruturas empresari- cada, a responsabilidade pela concre- novos desafios se colocam ao actual sis- Ou seja, a natureza de bens públi-
ais. Neste sentido, seis empresas (Era- tização da esmagadora maioria dos pro- tema em que as empresas de Arqueo- cos inerente ao Património arqueoló-
-Arqueologia, Dryas Arqueologia, Cri- jectos de Arqueologia realizados em logia, como um conjunto, não conse- gico exige que as empresas da espe-
varque, Arqueologia & Património, território português. Tal facto torna guiram ainda assumir-se como parcei- cialidade fundamentem a sua acção
Archeo’Estudos e Arqueohoje) assumi- inequívoca a enorme responsabilidade ro capaz no debate social acerca da Ar- numa lógica de incremento constante
ram a organização de um evento que re- social que recai sobre estas instituições, queologia e preservação do Património. dos níveis de qualidade e de clarifica-
presenta o dinamismo do sector empre- ção de boas-práticas ao nível dos ser-
sarial no actual panorama da activida- viços que executam. Tal programa –
de arqueológica nacional. ambicioso para a realidade empresa-
O evento visava apresentar publi- rial de hoje – não poderá realizar-se
camente resultados de projectos reali- plenamente sem o concurso e a pressão
zados em contexto empresarial, mas de uma sociedade civil mais empenha-
também debater questões importantes da na protecção do Património, sem a
para o amadurecimento da Arqueologia actuação de uma tutela estatal mais
em geral. Necessariamente, os temas exigente, ou sem uma melhor articula-
tratados foram bastante abrangentes, ção com as universidades, parceiros
oscilando entre a perspectiva de troca de naturais nas áreas da formação e da in-
experiências, acções de formação, trans- vestigação.
missão de conhecimentos, e debate em É fundamental criar mecanismos
torno de perspectivas relacionadas com que garantam uma evolução sustenta-
a estruturação actual e futura da Arque- da e em qualidade da Arqueologia em-
ologia, nomeadamente da que é reali- presarial, até agora pouco escrutinada
zada em empresas. pelo meio arqueológico e fiscalizada de
O 1º CPAE decorre de uma dinâmi- no âmbito de um sistema que partilham O rápido crescimento deste mer- forma pouco consistente por uma tutela
ca desencadeada em Portugal a partir de com a administração pública central e cado coloca problemas ao seu neces- crescentemente fragilizada, (des)estru-
meados dos anos noventa, momento a autárquica, com as universidades e com sário amadurecimento e adaptação à turada em torno de uma legislação des-
partir do qual emergiu um mercado es- os próprios arqueólogos. nova realidade de uma Arqueologia fasada da realidade e inconsistente pe-
pecífico na área da Arqueologia de sal- Neste quadro, cabe às empresas a fortemente condicionada pela sua re- rante os desafios que se avizinham: de-
vamento. Esse fenómeno introduziu execução dos trabalhos de carácter pre- lação imediata com a sociedade: a Ar- ve renovar-se a exigência de uma actua-
uma nota de assinalável dinamismo ao ventivo e de salvamento, através da queologia interfere nos nossos dias em ção eficaz do Estado assente numa le-
nível da afirmação profissional de ar- prestação de serviços contratados por questões de planeamento e ordena- gislação mais adequada, exigente e
queólogos e estruturas empresariais, terceiros, cabendo aos restantes parcei- mento do território, implementação de clara. Mas, face às actuais debilidades
desde então responsáveis pela produção ros referidos responsabilidades especí- grandes obras públicas ou de infra- da estrutura do Estado, de difícil supera-
de uma enorme massa de novos dados ficas no enquadramento legislativo, na -estruturas diversas, reabilitação urba- ção, é necessário que as empresas actu-
arqueográficos e conhecimento cientí- regulação, controlo, fiscalização, for- na, etc. Esta intersecção com múltiplas ando nesta área promovam soluções
fico. Do mesmo passo, criaram-se as mação e investigação científica. Em instituições, comunidades ou pessoas que as credibilizem em conjunto e via-
condições para a afirmação de uma no- conjunto, transportando a Arqueologia individuais, põe a Arqueologia em con- bilizem uma actuação social, económi-
va geração de arqueólogos, alargaram- para lá dos limites tradicionais que a têm tacto directo com outros tantos inte- ca e cientificamente consequente.
al-madan
XX online
adenda
1 electrónica
e EVENTOS
al-madan online | adenda electrónica

Isto implica que os actores do


meio empresarial assumam uma pos-
Curso de Antropologia Biológica
tura orientada para o pleno cumprimen-
to das suas obrigações: é vital que as
um projecto de formação pluridisciplinar
perspectivas de negócio inerentes a es-
Maria Teresa Ferreira, Maria João Neves, Miguel Almeida, Lília Basílio e Eugénia Cunha
ta actividade empresarial se enraízem
[Dryas Arqueologia Lda; Styx, Estudos de Antropologia Lda; Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra]
em valores éticos e em posturas de gran-
de rigor técnico e científico. Nesse sen- [versão condensada na Al-Madan 16: 155]
tido, as empresas devem ser as primei-
ras a empenhar-se em criar mecanismos
de garantia daqueles valores, pugnando A 3ª edição do Curso de
pela credibilização do mercado através Antropologia Biológica:
de actuações quotidianas pautadas pela reconhecimento e interpretação
competência dos serviços prestados e dos processos post mortem
pelo cumprimento de valores éticos
profissionais e empresariais. Urge um Em 2008, pelo terceiro ano con-
compromisso em torno de processos de secutivo, a Dryas Arqueologia, a Styx
auto-regulação. - Estudos de Antropologia e o Depar-
Durante o 1º CPAE estas e outras tamento de Antropologia da Universi-
questões foram debatidas. A Comissão dade de Coimbra, organizaram em con-
Organizadora assume o compromisso junto mais uma edição do Curso de
de prosseguir uma estratégia interven- Antropologia Biológica (CAB). O
tiva e assente em objectivos claramente sucesso e a grande receptividade das
definidos, relativamente aos quais se anteriores edições deste curso moti-
propõe actuar de forma empenhada e varam a realização de mais uma, desta
consequente. De uma fase de realização vez subordinada ao tema “Reconhe-
de debates e de diagnósticos dos pro- cimento e Interpretação dos Processos
blemas da Arqueologia portuguesa, é Post Mortem”.
necessário passar a uma outra, de acção Esta terceira edição visou oferecer deposicional dos contextos sepulcrais, é, o quotidiano destes grupos, nomea-
e de implementação de soluções ino- a profissionais e estudantes a possibi- a crítica tafonómica constitui um mo- damente no que concerne à alimen-
vadoras. O diálogo com a tutela, com os lidade de aprofundar os seus conheci- mento decisivo da interpretação daque- tação, aos hábitos e costumes, às práti-
profissionais, particularmente através da mentos nesta área, proporcionando- les contextos, quer arqueológicos, quer cas medicinais e actividades ocupa-
Associação Profissional de Arqueólo- -lhes o desenvolvimento de um quadro forenses. Esse estudo visa reconstruir os cionais; 3) a história evolutiva e o po-
gos, ou com as universidades, será fun- teórico fundamentado com uma com- efeitos dos diversos factores de desor- voamento humano, que podem ser tam-
damental para a articulação de estraté- ponente prática coerente, o contacto ganização dos restos cadavéricos, va- bém acedidas a partir do estudo do es-
gias passíveis de eliminar práticas me- com experiências de projectos pluridis- lidando deste modo a informação resul- queleto.
nos correctas e lesivas do nosso Patri- ciplinares, e também uma oportunidade tante da análise subsequente dos vestí- Conseguimos chegar ao “mundo
mónio arqueológico, imprimindo-se de reflexão partilhada sobre proble- gios osteológicos. Sendo hoje aplicada dos mortos” através do trabalho de An-
uma dinâmica de rentabilização das máticas comuns. a contextos muito diversos, o desen- tropologia de campo. Desde a estrutu-
actuações quotidianas das empresas de As diversas conferências proferi- volvimento da Tafonomia encontra-se ra geral do espaço funerário até aos
Arqueologia, desde a vertente económi- das por formadores das áreas da Ar- fortemente tributário do aperfeiçoa- detalhes de posição das mãos de um
ca à social e cultural. queologia, Antropologia e Medicina, mento dos métodos de trabalho de es- enterramento, tudo deve ser registado e
O CPAE, que tem uma segunda forneceram aos participantes (arqueó- cavação de espaços de enterramento, interpretado num trabalho interdisci-
edição prevista para 2010, deve ser en- logos, antropólogos, médicos e estu- em que a participação conjunta de ar- plinar entre antropólogos e arqueólogos,
carado como parte de um percurso em dantes) uma visão gobal acerca dos queólogos, antropólogos e médicos é onde a compreensão mútua de métodos,
que, dos compromissos, se prossiga conceitos da Tafonomia e dos proce- indispensável à exploração eficaz do objectivos, estratégias e problemáticas
para as acções. Edições futuras deverão dimentos fundamentais de uma crítica registo osteológico. apenas é possível através da constituição
ser encaradas como fóruns de debate e tafonómica, criando ferramentas para a de equipas pluridisciplinares (NEVES
de actualização de um programa alarga- identificação dos indícios e interpre- BioAntropologia, et al. no prelo). Somente uma escavação
do que visa contribuir quotidianamente tação da presença dos diversos proces- Arqueotanatologia e Tafonomia: executada segundo os métodos da Ar-
para a reestruturação da nossa Arqueo- sos post mortem que afectam os cadá- princípios justificantes dos CAB’s queotanatologia permite a resposta a
logia. Nesse processo procuraremos veres e/ou peças ósseas, tarefa que visa questões acerca da Tafonomia do re-
empenhar, antes de mais, todas as em- a reconstituição da história sin e pós- A partir da década de 1980, inau- gisto arqueológico, da cronologia, da
presas. -deposicional dos restos humanos. gura-se uma nova dimensão da Antro- organização urbana e da psico-socio-
Necessariamente resultante da pologia do esqueleto, agora emanci- logia da morte.
conjugação de uma multiplicidade de pada da Antropologia clássica afastada Ou seja, para, a partir de um es-
factores, a leitura de um contexto sepul- das problemáticas dos contextos sepul- queleto, reconstruir as circunstâncias
cral depende, antes de mais, de uma crais, passando os estudos paleobio- em que ocorreu a sua decomposição, é
compreensão rigorosa das modifica- lógicos a ser realizados no âmbito de indispensável recorrer à Arqueotana-
ções sofridas pelos corpos e pelos ambi- três domínios (CRUBÉZY 2000; CUNHA tologia, disciplina que contribui de uma
entes sepulcrais após o momento da 2004): 1) o “mundo dos mortos”, onde forma decisiva para a compreensão das
deposição dos cadáveres. Assente no se abordam a gestão dos espaços sepul- práticas funerárias e do funcionamen-
conhecimento dos processos de degra- crais, a Tafonomia, e as práticas fu- to sincrónico e diacrónico dos espaços
dação cadavérica e de evolução pós- nerárias; 2) o “mundo dos vivos”, isto sepulcrais, imprescindível sempre que
al-madan
online XX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
do CAB, dedicada ao tema “Funda-
mentos de Antropologia de Campo”,
incrementar os pontos de contacto entre
os profissionais destas áreas do saber,
questão essencial para o sucesso da es-
cavação, documentação, registo e pu-
blicação de contextos sepulcrais.
O corpo de formadores incluiu an-
tropólogas (Eugénia Cunha, Ana Maria
Silva, Maria Teresa Ferreira, Maria
João Neves), arqueólogos (Miguel Al-
meida e Lília Basílio) e um médico
(João Pinheiro), além da conferência
estamos na presença de ossos humanos. As alterações ocorridas no cadáver inaugural proferida pelo Director do
Uma vez que, regra geral, os restos ós- são influenciadas pelo tratamento que Museu Nacional de Arqueologia, Luís
seos fornecem menos informação sobre lhe é dado, que condiciona o ambiente Raposo, subordinada ao tema: O Museu
o indivíduo e as circunstâncias da sua do enterramento, podendo a preserva- Nacional de Arqueologia e a Antro-
morte que um corpo bem preservado, a ção depender das formas culturais de pologia.
correcta recolha dos dados sobre as deposição. Por outro lado, a acção hu- A estrutura curricular foi abran-
condições ante mortem e post mortem, mana também determina a duração do gente, cobrindo variados temas fulcrais
e a sua relação com os objectos associa- enterramento, quando os restos são na abordagem antropológica, designa-
dos ao corpo através da aplicação das exumados e se a exumação é ou não damente o contexto geoarqueológico, os
práticas da Arquetanatologia, consti- exaustiva (constituindo um limite para processos de decomposição, os factores
tuem o primeiro passo (DUDAY 2006). a representatividade da amostra), sendo de preservação e evolução pós-deposi-
Após a morte, o cadáver sofre al- as técnicas de escavação condicionan- cional do esqueleto, a Arqueotana-
terações que são consequentes da re- tes da qualidade e do tipo de séries que tologia, as metodologias de recupera-
lação entre os diferentes órgãos e siste- chegam ao laboratório. ção e exploração do registo osteoar-
mas do organismo e o ambiente exter- queológico, a Paleodemografia e a Pa-
no onde estão inseridos. Estes proces- A 4ª edição do CAB: fundamentos leopatologia.
sos que actuam sobre o cadáver, deno- de Antropologia de campo Como é habitual houve também
minados de post mortem, constituem a uma forte componente prática nesta
base da Tafonomia, que tenta com- Partindo de um conjunto de pres- 4ª edição do CAB, alicerçada em gru-
preendê-los desde a morte do indivíduo supostos teóricos e de uma base alicer- pos pluridisciplinares que analisaram
até ao momento em os seus restos são çada na realização das outras três edi- directamente material osteológico e
analisados em laboratório (SHIPMAN ções do curso, a Dryas Arqueologia, a informação contextual (estratigráfica e
1993; MICOZZI 1991; NAWROCKI 1995). Styx, Estudos de Antropologia e o De- outra) associada, tendo-se incitado os
Há um conjunto de processos que po- partamento de Antropologia da Univer- participantes das várias áreas do saber trabalhos publicados em língua inglesa
dem alterar o esqueleto post mortem, sidade de Coimbra, organizaram em a aplicar em conjunto os procedimen- (sendo quase a totalidade da literatura
sendo que o estudo tafonómico, durante conjunto mais um CAB, agora em co- tos fundamentais a uma crítica tafo- publicada em francês e italiano) con-
a análise antropológica, mostra-se de laboração com o Museu Nacional de nómica. tribuiu para uma menor divulgação do
uma grande utilidade, ajudando na método noutras partes do mundo. Por
compreensão da complexidade destes outro lado, e quiçá seja esta uma razão
processos inerentes à esqueletização ainda mais forte, a ainda muito escassa
de um cadáver, designadamente a flo- constituição de equipas pluridiscipli-
ra, a fauna, a humidade, a temperatura, nares em muitos países constituiu um
o tipo de solo, a acção humana, entre óbice importante à aplicação do méto-
outros. do e consequente recuperação contex-
As modificações post mortem dos tualizada de vestígios osteoarqueoló-
restos humanos são determinadas por gicos.
princípios tafonómicos que governam Infelizmente, em diversos países
o comportamento de todos os materiais registam-se ainda casos em que o mate-
no registo arqueológico. Assim, a Tafo- rial osteoarqueológico é recolhido por
nomia pode ser encarada como o estu- amostragem (recuperando-se, por exem-
do das forças que desorganizam os res- plo, apenas os crânios) e sem informa-
tos cadavéricos, causando distúrbios Arqueologia. Os óptimos resultados O CAB no XV Congresso ção arqueo-estratigráfica. Tais situações
no registo arqueológico. Uma vez que até agora obtidos levaram à realização, da Sociedade de Arqueologia resultam na acumulação de séries os-
estas transformações tafonómicas obe- desta vez em Lisboa, de mais um cur- Brasileira teoarqueológicas desprovidas de con-
decem a princípios físicos, químicos e so (27 e 28 de Março de 2009). Numa texto, o que inviabiliza não só qual-
biológicos, o conhecimento dos pa- tentativa de ultrapassar as dificuldades Apesar de os princípios da Ar- quer leitura das práticas funerárias do
drões de comportamento dos vestígios que advêm de um escasso contacto en- queotanatologia terem vindo a ser afir- passado, como também dificulta em
através dessas modificações pode levar tre as metodologias, práticas e discur- mados ao longo dos últimos 30 anos, muito a análise paleobiológica dos ves-
à maximização da informação obtida a sos da Bioantropologia do esqueleto e não constituem ainda uma base de tra- tígios, ficando, de resto, a leitura global
partir do registo arqueológico (MICOZZI aquelas que provêm do âmbito da Ar- balho universalmente aceite (KNUDSON do arqueossítio definitivamente com-
1991; FERREIRA 2005). queologia, visou-se com esta 4ª edição e STOJANOWSKI 2008). A inexistência de prometida. A este título, veja-se o caso
al-madan
XX online
adenda
3 electrónica
e EVENTOS
al-madan online | adenda electrónica

das séries osteoarqueológicas de Valen-


cina de la Concepcíon (Sevilla), apre-
o fruto do trabalho de arqueólogos sem
qualquer formação específica de An-
Estruturas Negativas
sentadas recentemente por Marta Bo-
nillo no 1º Workshop Dryas [ver outra
tropologia ou mesmo da osteologia
humana. da Pré-História Recente e
notícia nesta mesma rubrica] – prove- É neste sentido que é de extrema
nientes de escavações realizadas nas
últimas décadas, recuperadas sem que
importância divulgar da forma mais
ampla possível os princípios da Arque-
Proto-História Peninsulares
qualquer informação arqueo-estrati- otanatologia, pelo que a nossa equipa
gráfica associada tivesse sido assegu- aproveitou a oportunidade do XV Con-
estado dos conhecimentos
rada ou produzida.
Com efeito, é ainda comum, tan-
gresso da Sociedade de Arqueologia
Brasileira, a ter lugar em Belém do
e interrogações
to em países europeus como extra-eu- Pará, entre os dias 20 e 23 de Setembro
ropeus, a escavação de necrópoles não de 2009, para aí realizar mais uma Miguel Almeida, Susana Nunes, Maria João Neves e Maria Teresa Ferreira
ser realizada por equipas pluridiscipli- edição do CAB – Curso de Antropolo- [Dryas Arqueologia Lda; Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra]
nares – formadas pelo menos por ar- gia Biológica.
queólogos e antropólogos –, mas antes
Objectivos, modelo “Estado da arte” e desenvolvimentos
e dinâmica e do Workshop 1 recentes da base documental
Referências
A oportunidade da realização de O conjunto de problemas arqueo-
CARTER, D. e TIBBETT, M. (2008) – “Ca- human social identities”. J. Archaeol. um workshop dedicado à problemática lógicos colocado pela interpretação
daver Decomposition and soil: process- Res. 16: 397-432.
das estruturas negativas da Pré-história destes vestígios tem conhecido recen-
es”. In CARTER, D. e TIBBETT, M. (ed.). MICOZZI, M. S. (1991) – Postmortem
Soil Analysis in Forensic Taphonomy: Changes in Human Remains: a system- recente e Proto-história peninsulares temente um forte incremento da sua
chemical and biological effects of buried atic approach. Springfield: Charles C. (fig. 1) decorria da conjugação de duas base documental arqueográfica na
human remains. CRC Press, pp: 29-51. Thomas. constatações: Península Ibérica e, nomeadamente,
CRUBÉZY, E. (2000) – “L´Étude des Sépul- NAWROCKI, S. P. (1995) – “Taphonomic 1º) Por um lado, o importante na região portuguesa do Alentejo, onde
tures, ou du Monde des Morts au Monde Processes in Historic Cemeteries”. In incremento – particularmente no Su- a localização destes contextos arqueo-
des Vivants”. In CRUBÉZY, E.; MASSET, GRAUER, A. L. (ed.). Bodies of Evidence: doeste peninsular – do registo arqueo- lógicos – quase sempre muito difíceis de
C.; LORANS, E.; PERRIN, F. e TRANOY, L. reconstructing history through skeletal
gráfico relevante para este problema identificar em sede de prospecção por
(eds.). Archéologie Funéraire. Paris: Edi- analysis. New York: Wiley-Liss, pp. 49-
tions Errance, pp. 8-54. -66. nos últimos anos; força da sua frequente escassa repre-
CUNHA, E. (2004) – “Paleobiologia, Histó- NEVES, M. J.; FERREIRA, M. T.; ALMEIDA, 2º) E, por outro, a urgência da tro- sentação em material arqueológico de
ria e Quotidiano: critérios da transdisci- M.; BASÍLIO, L. e TAVARES, P. A. (no pre- ca de informações relativas a estes con- superfície – tem beneficiado fortemente
plinaridade possível”. In ANDRADE, A. A. lo) – “Escavação de Necrópoles e Recu- textos, reconhecida nomeadamente por – para além de estudos incluídos em
e VIEIRA DA SILVA, J. C. (coords.). Estu- peração de Vestígios Osteológicos Hu- muitos arqueólogos responsáveis por projectos de investigação fundamental
dos Medievais. Lisboa: Livros Horizonte, manos em Contextos de Emergência: intervenções de salvamento em sítios – dos trabalhos sistemáticos de mini-
pp. 117-141. questões de método e de princípio”. In
DUDAY, H. (2006) – “L’Archéothanatologie Actas do IV Congresso de Arqueologia
desta natureza (e, desde logo, pela mização de impacto arqueológico das
ou l’Archaéologie de la Mort”. In Peninsular. própria equipa Dryas). obras do projecto de aproveitamento
GOWLAND, R. e KNUSEL, C. (eds.). Social NEVES, M. J. (2007) – Necrópole da Serra Incluindo um primeiro dia de co- agrícola dos recursos hídricos de Al-
Archaeology of Funerary Remains. do Pilar (Vila Nova de Gaia): análise municações orais (apoiadas em su- queva (CANHÃO et al. 2008).
Oxford: Oxbow Books, pp. 30-56. paleobiológica da série esquelética exu- portes multimédia) tanto de carácter É sobretudo neste âmbito que a
FERREIRA, M. T. (2005) – Crescimento na mada. Trabalho de Investigação do geral, sintético ou problematizante, Dryas tem intervencionado alguns sí-
Idade Média: contributo de uma série Major em Antropologia Biológica.
como para apresentação monográfica tios arqueológicos relevantes para esta
osteológica. Dissertação de Mestrado Coimbra: DAUC (policopiado).
em Evolução Humana. Coimbra: DAUC. SHIPMAN, P. (1993) – Life History of a
de sítios arqueológicos (fig. 2) e um discussão, dos quais se destaca o sítio do
KNUDSON, K. J. e STOJANOWSKI, C. M. (2008) Fossil: an introduction to taphonomy segundo dia integralmente dedicado à Casarão da Mesquita 4 (Encosta do
– “New Directions in Bioarchaeology: and paleoecology. Cambridge: Harvard análise directa e conjunta de espólios e Albardão, São Manços, Évora, Portu-
recent contributions to the study of University Press. da informação arqueológica associada gal) (NUNES et al., no prelo), contíguo
disponibilizada pelos vários partici- de outros sítios arqueológicos da mes-
PUBLICIDADE pantes, a mecânica desta reunião pri- ma natureza intervencionados por ou-
vilegiava o debate frontal de ideias e a tras equipas de Arqueologia (SOARES et
confrontação de argumentos, sempre al., no prelo).
que possível com base na comparação Contudo, pese embora a motiva-
directa daqueles materiais arqueológi- ção imediata para realização do work-
cos (fig. 3), informação de campo e shop tenha sido efectivamente a multi-
dos resultados de estudos e análises plicação do registo arqueográfico de-
laboratoriais subsequentes. corrente do incremento recente de in-
em papel...
1 Parte do presente texto reproduz, no essencial, o documento do Programa científico do
... e na Internet Workshop “Dryas’09. Estruturas Negativas da Pré-História Recente e Proto-História Peninsulares:
[www.almadan.publ.pt] estado actual dos conhecimentos e interrogações”. Redigido em primeira mão pelos autores deste
artigo, esse documento seria sucessivamente revisto, discutido e re-trabalhado por vários outros
participantes no Workshop, no quadro de uma dinâmica de colaboração efectiva e aberta que assim
Leia... Comente... Divulgue... se instituiu desde a própria fase de preparação daquela reunião. Cumpre assinalar expressamente
edição centro de arqueologia de almada os contributos activos de António Monge Soares, Ana Sofia Antunes, Manuela de Deus e António
Carlos Valera, cujo trabalho obviamente se reflecte no que aqui se pode ler.
al-madan
online XX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
pologias, em parte condi- gação possíveis acerca das estruturas 4º. A questão de uma atribuição
cionadas por uma frequente negativas da Pré-História e Proto- crono-cultural rigorosa do espólio ar-
ablação da sua fracção supe- -História da Península Ibérica: queológico neles contido, a analisar no
rior, facto que impede muitas 1º. Antes de mais, obviamente, a quadro do estudo da natureza e carac-
vezes o estabelecimento de questão dos processos formação e terização morfotecnológica desse es-
quaisquer relações estratigrá- evolução pós-deposicional do registo pólio e balizada por datações absolutas.
ficas directas com outras ocor- estratigráfico conservado, incluída a Deverá notar-se a larga diacronia nor-
rências arqueoestratigráficas, questão fundamental dos agentes (an- malmente existente intra-sítio, que pode
mesmo nos casos (relativa- trópicos / não-antrópicos) responsáveis incluir, de forma descontinuada, ocu-
mente pouco frequentes) em pela colmatação das estruturas negati- pações desde o Calcolítico ao Romano
que estas persistem ainda. vas com os sedimentos que hoje cons- Tardio ou, mesmo, à Baixa Idade Mé-
Estas estruturas negati- tituem o seu preenchimento; dia;
vas, de dimensões variáveis, 2º. A crítica tafonómica dos níveis 5º. A questão da presença de vestí-
podem apresentar diferentes arqueológicos resultante daquele pri- gios osteoarqueológicos humanos no
tipologias, possivelmente em meiro esforço de análise será, por outro enchimento destas estruturas negati-
relação com a sua funcionali- lado, fundamental para a compreen- vas, em frequências inconstantes de
dade original: desde estru-
turas de combustão (lareiras,
fornos) e fundos de cabana, de
cariz doméstico ou ligadas a
actividades produtivas, a fos-
sas interpretadas ora como
silos, ora como lixeiras, es-
paços funerários ou mesmo,
segundo alguns investiga-
Fig. 1 dores, albergando depósitos
votivos.
Os conteúdos arqueo-
lógicos destas estruturas ne-
gativas podem ser bastante
diversos (fig. 4): exclusiva-
Fig. 2
mente cerâmicos, morfo-tec-
nologicamente homogéneos
tervenções de salvamento na região ou não; com maior ou menor quanti- são das questões relativas à funciona- sítio para sítio – tanto como de fossa pa-
portuguesa do Alentejo, nem por isso dade de vestígios metálicos / metalúr- lidade destas estruturas negativas, de- ra fossa no interior de cada um dos sí-
pode ignorar-se que tal sucede no gicos e líticos; fauna; vestígios osteoar- signadamente aquelas de forma mais tios –, presença cuja interpretação não
quadro mais vasto do desenvolvimen- queológicos humanos; elementos ve- regular, mais profundas e de menor poderá tentar-se antes de uma carac-
to do interesse por este tipo de contex- getais; etc. Do mesmo modo, também diâmetro, interpretadas ora como silos, terização rigorosa dos indivíduos inu-
tos na Arqueologia peninsular desde a estratificação interna descrita varia ora como lixeiras, ora como estruturas mados, das suas posições de inumação,
já há alguns anos a esta parte, quer entre uma única unidade estratigráfica técnicas, ora como estruturas de inu- modalidades de decomposição e re-
graças a uma concomitante revolução e sequências mais ou menos complexas mação, sem que (quase) nunca o regis- lação com o demais registo estratigrá-
empírica noutras regiões peninsulares de depósitos estratificados. to arqueográfico pareça verdadeira- fico;
(vd. CARLÚS et al. 2005), quer ainda em Face a uma tal diversidade, o tema mente ajustar-se na perfeição à inter- 6º. A questão da organização inter-
resultado da evolução do debate teóri- do Workshop’09 “Estruturas negati- pretação proposta; para mais, não de- na do espaço à escala do sítio e dimen-
co em torno da interpretação destes vas” surgia necessariamente vasto, vendo esquecer-se a possibilidade mui- são global da área ocupada, cuja inter-
sítios (VALERA, no prelo). Em conse- abrangendo problemáticas muito dis- to plausível de uma mesma estrutura ter pretação permanece hoje limitada pela
quência, estes assuntos vêm ganhando tintas que respondiam a aquela varia- sucessivamente servido diferentes fun- natureza (preventiva ou de emergência)
uma dimensão sem precedentes no bilidade estrutural. No limite, podería- cionalidades; da maior parte das intervenções recen-
debate arqueológico peninsular, no- mos mesmo ter incluído na discussão a 3º. A questão da duração do fun- tes que têm revelado este tipo de regis-
meadamente acerca da Pré-História, problemática dos fossos que formam cionamento destas estruturas negati- to arqueográfico, facto que condiciona
tendo já, de resto, motivado outras recintos fechados, que, porém, então vas, para a qual são relevantes, além da as circunstâncias em que se tem proce-
reuniões científicas de diferentes na- preferimos excluir, por elementares sua datação radiocronométrica, uma dido à investigação destes sítios e a ex-
turezas e âmbitos, em diversos pontos razões de operacionalidade da reunião caracterização rigorosa dos processos tensão da exploração desse registo;
do território peninsular. e mesmo de crono-estratigrafia. de enchimento / colmatação, da sua se- e...
quência estratigráfica interna, das inter- 7º A questão da relação espacial
Caracterização Definição do leque de questões relações estratigráficas (tanto no que com outros sítios arqueológicos, sejam
do problema científico e perspectivas de investigação respeita à intercepção de fossas, como estes sítios semelhantes, sejam já con-
às remontagens de materiais entre dis- textos claramente funerários ou habita-
Com efeito, o registo arqueográ- O objectivo fundamental desta tintas unidades e estruturas negativas) cionais, correlação que surge muitas
fico pré e proto-histórico peninsular reunião consistia precisamente em pro- e da morfologia destas estruturas ne- vezes prejudicada, quer pela dificul-
tem revelado, em diferentes regiões, porcionar um fórum de discussão e gativas, bem assim como da eventual dade de identificação de muitos destes
sítios arqueológicos constituídos maio- apresentação de pontos de vista e pro- evolução morfotecnológica dos con- contextos, quer por problemas de con-
ritária ou exclusivamente por estrutu- gressos recentes a respeito dos proble- juntos artefactuais ao longo dessas se- servação do registo arqueológico ori-
ras negativas, de diferentes morfoti- mas específicos e linhas de investi- quências; ginal.
al-madan
XX online
adenda
5 electrónica
e EVENTOS
al-madan online | adenda electrónica

Algumas reflexões progresso da investigação,


e questões debatidas face à verdadeira “revolução
empírica” da base documen-
Se o primeiro dia do workshop – tal arqueográfica, que talvez
dedicado à apresentação oral de pers- permita pela primeira vez
pectivas sintéticas e de dados monográ- endereçar de uma forma rela-
ficos novos –, confirmou tanto o signi- tivamente detalhada aspectos
ficativo aumento recente da base do- territoriais e diacrónicos da
cumental, como o desenvolvimento ocupação antrópica deste es-
importante da reflexão arqueológica paço geográfico durante o
produzida em torno deste registo ar- período em questão.
queográfico, o segundo dia de trabalhos Do ponto de vista teóri-
proporcionaria um confronto de pers- co, a (auto-)consciência do
pectivas metodológicas e teóricas diver- posicionamento epistemoló-
Fig. 3
sas de que nos parece importante real- gico de cada investigador foi
çar alguns resultados mais ou menos considerada de importância
consensuais 2. decisiva para o desenvolvimento de cutir a sincronia versus diacronia e de uma Arqueologia de cariz científico
Assim, não apenas a necessidade um debate informado, estruturado e duração de ocupação dos sítios arqueo- exige, suportada por observações
de uma circulação rápida da informa- profícuo dos documentos e observa- lógicos investigados surge assim como objectivas e verificáveis pelo conjunto
ção resultante da multiplicação de inter- ções produzidos pela investigação um momento decisivo da investiga- da comunidade, constitui evidente-
venções arqueológicas no terreno (e a arqueológica. ção. mente condição sine qua non da capaci-
disponibilidade de todos para participar Do mesmo modo, também se con- De resto, as questões de método dade subsequente de interpretação das
activamente nessa troca de informa- siderou de importância muito relevante ocuparam parte muito importante da(s) observações produzidas e de reconsti-
ções) foi assinalada como evidente mar- a questão da terminologia aplicada na discussão(ões), nomeadamente no que tuição dos factos sociais, económicos,
cador da maturidade científica / profis- descrição e discussão das estruturas e respeita ao controlo metodológico ri- ecológicos, etc. que lhes subjazem.
sional da comunidade arqueológica, contextos arqueológicos: esta termino- goroso – desde a fase de campo – da pro- Nenhuma discussão fundamentada
mas sobretudo essa disponibilidade foi logia, hoje bastante diversa, mereceria dução de informação arqueográfica. é hoje possível sem o suporte proces-
mesmo considerada decisiva para o um esforço de rigor por parte dos vários Insistiu-se sobretudo na necessidade sual de uma tal crítica (dita tafonómi-
autores, senão mesmo uma de exploração criteriosa do registo ca / geoarqueológica) das fontes ar-
reflexão comum. preservado, com particular atenção à queográficas.
Durante toda a reunião, realização em cada caso de uma crítica
foi repetidas vezes afirmada a tafonómica severa dos documentos
importância decisiva da Ar- arqueológicos intervencionados, a fim
queometria para a solução das de reconstituir os processos de forma- 2 Naturalmente, sem querer antecipar os
questões em aberto a respeito ção e evolução pós-deposicional / de- contributos fundamentados de cada um dos
da Pré-História recente e gradação desses documentos e de iden- participantes, a reunir numa publicação de
Proto-História peninsulares, tificar os agentes responsáveis pela actas do workshop já garantida pela Dryas,
em particular no que toca à constituição do registo arqueológico. incluindo os resultados de eventuais novos
compreensão dos fenómenos Tal crítica tafonómica, que o exercício projectos de colaboração científica.
associados às estruturas ne-
gativas, frequentemente des-
conexas de outros contextos Bibliografia
arqueológicos preservados.
A obtenção sistemática CANHÃO, Valdemar; CARDOSO, Sandra; NUNES, Susana; CORGA, Mónica; ALMEIDA,
tanto de dados arqueométricos CARREIRA, Duarte; MARQUES, Paulo; Miguel; FERREIRA, Maria Teresa; BASÍ-
respeitantes à tecnologia e MARTINHO, Miguel; MELRO, Samuel; LIO, Lília e NEVES, Maria João (no prelo)
DEUS, Manuela de e CORREIA, José (s.d.) – “Casarão da Mesquita 4 (S. Manços,
estratégias de aprovisiona-
– “Abordagem Territorial dos Trabalhos Évora, Portugal): estado actual dos nos-
mento de matérias-primas, Arqueológicos no EFMA pós-Alqueva”. sos conhecimentos… e interrogações!”.
como de dados radiocrono- In CNAI’08 - 3ª Conferência Nacional In Actas do Workshop Dryas’09. Estru-
Fig. 4
métricos que permitam dis- de Avaliação de Impactes (Beja, 22-24 de turas negativas da Pré-História recente
Outubro de 2008). e Proto-História peninsular: estado actu-
CARLÚS, Xavier; LARA, Carmen; LÓPEZ, al dos conhecimentos e interrogações
PUBLICIDADE
Javier; OLIVA, Mònica; PALOMO, Antoni; (Beja, 23-24 de Abril de 2009).
RODRÍGUEZ, Alba; TERRATS, Noemí e SOARES, António Monge; ANTUNES, Ana
VILLENA, Núria (2006) – “Las Estructu- Sofia; DEUS, Manuela de; SANTOS, Filipe
AGENDA ONLINE ras Negativas Prehistóricas y Protohis-
tóricas Localizadas en el Paraje Ar-
e DEWULF, Joke (no prelo) – “Povoados
Abertos de Planície do Bronze Final da
queológico de Can Roqueta (Sabadell, Bacia Média do Guadiana: algumas re-
Barcelona): estudio tipológico y funcio- flexões”. In Actas do Workshop Dryas’09.
reuniões científicas | acções de formação nal”. In FRÈRE-SAUTOT, Marie-Chantal VALERA, António Carlos (no prelo) – “Es-
(ed.). Des Trous... Structures en Creux truturas Negativas em Fossa da Pré-His-
novidades editoriais | exposições | turismo cultural Pré- et Protohistoriques (Actes du col- tória Recente: abordagens, conteúdos e
loque de Dijon et Baume-les-Messieurs, interpretações”. In Actas do Workshop
24-26 mars 2006). Dryas’09.
disponível em www.almadan.publ.pt
al-madan
online XX
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
actividade arqueológica
NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
n
Arqueologia Preventiva no
Concelho de Vila Franca de Xira
dados preliminares
Andrea Martins e César Neves
[Crivarque, Lda.: andrea.arte@gmail.com; c.augustoneves@gmail.com]

s trabalhos de Arqueo- Na Rua Miguel Bombarda identi-

O logia preventiva conhe-


ceram um desenvolvi-
mento exponencial na última década,
ficaram-se vários troços dos muros de
fundação do denominado Palácio da Vi-
lafrancada, cuja demolição teve início
revelando novos contextos arqueoló- em Junho de 1970. Trata-se de muros
gicos e metodologias adequadas. De constituídos por blocos de calcário e ce-
Novembro de 2006 a Outubro de 2008, râmica de construção, ligados por uma
foram efectuadas diversas intervenções argamassa, que lhes confere uma con-
arqueológicas pela equipa da Crivar- sistência e dureza muito elevada. Ainda Fig. 1 − Trabalhos de abertura da vala.
que, Lda. na área do concelho de Vila na mesma rua, junto da Igreja do Mártir
Franca de Xira. Foram realizados tra- Santo, foi identificado um troço de uma
balhos de acompanhamento e de sonda- calçada constituída maioritariamente
gens arqueológicas promovidos por di- por blocos subquadrangulares em cal- No Ateneu Artístico Vilafran-
versas entidades: particulares, Serviços cário e granito, assentes sobre a cama- quense (Vila Franca de Xira) foram
Municipalizados de Água e Sanea- da regularizadora do piso com peque- identificados, durante o acompanha- Fig. 2 − Jarro de Época Moderna.
mento (SMAS) e Câmara Municipal de nos blocos discóides. Esta calçada es- mento, alguns níveis e estruturas, que
Vila Franca de Xira. taria associada à primeira fase de uti- levaram a que fossem realizadas sonda-
lização da Igreja, em finais do século gens arqueológicas. Estas (realizadas
Acompanhamento Arqueológico XVI. pela Dra. Adelaide Pinto), revelaram a arqueológicas prévias aos trabalhos de
Na Rua Jacinto Nunes surgiu, na existência de níveis arqueológicos pre- renovação da rede pluvial, em locais re-
Este tipo de minimização de im- zona onde existia a antiga ponte, um servados e de algumas estruturas (poço, ferenciados pela Dra. Maria Miguel
pactes negativos tratou-se da acção ar- nível de entulhos / despejo de período tanque, silos) de época tardo-medieval Lucas (Câmara Municipal de Vila
queológica mais recorrente, tendo sido Moderno, com diversos materiais cerâ- (século XV- inícios do XVI). Franca de Xira). Em resultado destes
realizado o acompanhamento arqueo- micos e fauna mamalógica. Registou- Os trabalhos de requalificação do trabalhos, identificaram-se diversos
lógico de intervenções promovidas pelo -se um número considerável de frag- Largo da Igreja Matriz de São João contextos arqueológicos relacionados
SMAS em inúmeras ruas do centro da mentos de cerâmica comum, vidrada e dos Montes (São João dos Montes) com a estrutura da própria Quinta e
cidade de Vila Franca de Xira. Por ou- alguma faiança, que possibilitaram a sua proporcionaram a escavação de um Palácio. Além da infra-estrutura de
tro lado, realizou-se esta medida pre- caracterização tipológica, verificando- contexto funerário cristão, onde se drenagem (caneiro), foi identificado
ventiva em outros espaços do concelho -se que constituem, essencialmente, intervencionaram integralmente cinco um troço de um antigo muro delimita-
de Vila Franca de Xira, nomeadamente formas de uso doméstico como caçoi- enterramentos e dois ossários. Dois dos dor da quinta e as calçadas laterais da
numa obra privada (Ateneu Vilafran- las, alguidares, panelas e jarros (Fig. 2). enterramentos terão ocorrido na Época chamada “Rua Nova” (Fig. 4).
quense), no Largo Soeiro Pereira Go- Este contexto arqueológico não foi Medieval (século XV), sendo
mes (Alhandra), na envolvente da totalmente caracterizado, pois a inter- os restantes mais recentes (sé-
Igreja Matriz de São João dos Montes, venção efectuada foi circunscrita à culos XVIII e XIX) e, desta
na Rua João Mantas e Largo do Pe- abertura da vala, não sendo assim pos- forma, podem estar relaciona-
lourinho (Alverca), no Centro Cultural sível verificar se se trataria de um local dos com um período muito
do Bom Sucesso (Alverca) e na Quinta de despejo de materiais enquadrado marcante da história desta re-
Municipal da Piedade (Póvoa de Santa num qualquer tipo de estrutura, ou ou- gião, as Invasões Francesas.
Iria). Os trabalhos acima referidos fo- tro contexto de natureza semelhante. To- Paralelamente a esta in-
ram coordenados cientificamente pelos da esta área encontra-se muito afectada tervenção, encontra-se numa
signatários e pelas arqueólogas Cláudia por diversas infra-estruturas que cortam fase preliminar o estudo de um
Costa e Teresa Costa. este nível arqueológico. conjunto de estelas discóides
Os trabalhos realizados para o medievais existentes na Igre-
SMAS consistiram no acompanha- Sondagens Arqueológicas ja de São João dos Montes,
mento integral e presencial da abertura sendo que uma delas foi reco-
de valas para renovação da drenagem Foram efectuadas algumas sonda- lhida durante os trabalhos de
pluvial, sistema de saneamento e abas- gens arqueológicas resultantes, por um acompanhamento arqueológi-
tecimento de água, tendo sido identifi- lado, de contextos arqueológicos de- co (Fig. 3).
cados alguns contextos arqueológicos, tectados durante a fase de acompanha- Na Quinta Municipal da
que foram alvo de registo e caracteri- mento arqueológico e, por outro, de Piedade (Póvoa de Santa Iria),
zação estratigráfica (Fig. 1). acções programadas pelo dono de obra. foram realizadas sondagens Fig. 3 − Estela discóide de São João dos Montes.
al-madan
XXI online
adenda
1 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

Villa Romana de Vilares,


Cascais
trabalhos arqueológicos em 2007-2008
Lurdes Nieuwendam e Raquel Santos
[Associação Cultural de Cascais e Neoépica, Lda.]

abertura de valas de diag- Efectivamente, a cerca de dez

Fig. 4 − Quinta da Piedade: calçada lateral da “Rua Nova”.


A nóstico, nas proximida-
des da villa romana de
Vilares (Murches, Cascais), permitiu
metros da zona escavada da villa ro-
mana, surge um conjunto de cinco es-
truturas em alvenaria de pedra seca, de
acrescentar novos conhecimentos ao que 60 cm de espessura, atribuíveis ao
Guilherme Cardoso e José d’Encarna- período romano e que, embora já muito
Considerações finais Bibliografia ção haviam publicado sobre esse sítio 1. destruídas, aparentam formar dois com-
Entre Novembro de 2007 e Abril partimentos. Encontram-se associadas
Os trabalhos de Arqueologia pre- MARTINS, Andrea e NEVES, César (2007a) de 2008, foi realizada uma intervenção a níveis com grande concentração de
ventiva revelam-se de extrema impor- – “Intervenção Arqueológica no Centro de salvaguarda nos terrenos adjacen- cerâmica, sobretudo de construção (im-
tância, possibilitando o registo e conhe- Cultural do Bom Sucesso, Alverca do tes à villa, uma vez que se encontra brices) (Fig. 2).
cimento de novos contextos arqueo- Ribatejo”. Vida Ribatejana. Ano 90. previsto um projecto de urbanização Mais para Sul, a uma distância de
4448: 11.
lógicos. Estes poderão, posteriormente, para toda a área. aproximadamente 50 m, identificou-se
MARTINS, Andrea e NEVES, César (2007b)
ser intervencionados no âmbito de me- – “Arqueologia Preventiva na Freguesia Esta estação arqueológica fora um grupo de 28 estruturas negativas que
didas de minimização da própria obra de Alverca do Ribatejo”. Alverca, da objecto de escavação em 2000 e 2001, poderão corresponder a silos / fossas, de
ou em acções de investigação progra- Terra às Gentes. Vila Franca de Xira: C. sob a responsabilidade do Professor cronologia islâmica (Fig. 3).
mada, contribuindo, deste modo, para M. Vila Franca de Xira / Museu Munici- Doutor José d’Encarnação, do Dr. Gui- A mais de 150 m de distância da
o aprofundamento do conhecimento pal de Vila Franca de Xira, Núcleo de Al- lherme de Jesus Cardoso, do Dr. João villa, para Sul, foi possível ainda definir
verca, pp. 101-110 [catálogo da exposi-
científico sobre um determinado perío- ção].
Pedro Marcelino Cabral e da Dra. Ma- seis estruturas em alvenaria de pedra se-
do ou área geográfica. MARTINS, Andrea; NEVES, César e COSTA, ria de Lurdes Nieuwendam. No de- ca, atribuíveis ao período romano, que
O concelho de Vila Franca de Xira Teresa (2007a) – “Acompanhamento curso desses trabalhos, identificaram- ocupam uma área de cerca de 400 m2.
revela-se muito rico do ponto de vista Arqueológico no Centro Histórico de -se vestígios de Época Romana, no- Surgem ainda, em algumas zonas, der-
histórico e arqueológico e os trabalhos Vila Franca de Xira”. Vida Ribatejana. meadamente estruturas a confirmar a rubes de pedra que poderão pertencer a
Ano 90. 4451: 12-13.
de Arqueologia preventiva, promovidos existência de uma villa e algumas se- outras estruturas ainda por identificar
MARTINS, Andrea; NEVES, César e COSTA,
maioritariamente pelos serviços muni- Teresa (2007b) – “Acompanhamento pulturas, bem como silos de época is- (Fig. 4).
cipais, possibilitam a identificação e Arqueológico na Cidade de Vila Franca lâmica, vestígios estes que se prolon- Não obstante a quantidade e diver-
caracterização de novas realidades ar- de Xira”. Xirapress – Revista do Conce- gavam para além da área então inter- sidade de vestígios detectados durante
queológicas, fornecendo, desta forma, lho de Vila Franca de Xira. Ano II. 17: vencionada. esta intervenção, a sua própria natureza
novos dados para a compreensão do 17-18. Assim, antes de se concretizar a ditou a escassez de materiais arqueo-
NEVES, César e GRANJA, Raquel (2008) –
passado humano deste concelho. urbanização prevista, procederam as lógicos recolhidos. Na realidade, o fac-
“Intervenção Arqueológica no Largo da
Igreja Matriz de São João dos Montes”. signatárias, entre Maio e Agosto de to de se ter levado a cabo uma inter-
Xirapress – Revista do Concelho de Vila 2007, ao acompanhamento arqueo- venção de diagnóstico, efectuando va-
Franca de Xira. Ano II. 20: 12-13. lógico da abertura de valas para implan- las mecânicas com o propósito de de-
tação das infra-estruturas de sanea- tectar, localizar, caracterizar e preservar
PUBLICIDADE mento, o que mais sedimentou a ideia áreas de concentração de vestígios
de existência de estruturas e materiais na arqueológicos, conduziu a uma recolha
zona em redor da parte escavada da apenas exemplificativa do material
villa (Fig. 1). existente.
A intervenção arqueológica leva- Assim, o espólio registado é, na
da a cabo em 2008 compreendeu a sua totalidade, cerâmico, e conta com
limpeza e desmatação do terreno; a alguns exemplares de terra sigillata e
abertura das valas-diagnóstico por pro- paredes finas. No que respeita a crono-
em papel... cessos mecânicos e sua limpeza ma- logias, a maioria das peças é de difícil
nual; e a definição e registo de todos os atribuição, uma vez que se trata de frag-
... e na Internet contextos arqueológicos identificados. mentos cerâmicos sem identificação
Foram assim efectuadas valas- formal. Há, no entanto, peças claramen-
[www.almadan.publ.pt] -diagnóstico de cerca de um metro de te atribuíveis à Idade do Ferro, como é
largura e espaçadas entre si cerca de cin- o caso de alguns bordos de ânfora; à
Leia... Comente... Divulgue... co metros, numa área total de apro- Época Romana, no caso da terra sigil-
ximadamente 6000 m2, que revelaram lata e paredes finas; ou mesmo à Época
edição centro de arqueologia de almada
numerosos e variados vestígios. Islâmica (Fig. 5).
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 2 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
Fig. 1 − Implantação da área intervencionada em 2008 (a laranja) e da villa romana (a amarelo) na vista aérea do terreno Fig. 3 − Área de dispersão das
(fonte: http://maps.google.com/). estruturas detectadas em negativo.

Para além dos


vestígios referidos,
Fig. 2 − Vista geral do conjunto de estruturas na área mais próxima da villa. detectaram-se um
pouco por toda a área
diferentes concen-
trações de material
Fig. 4 − Aspecto de uma das estruturas detectadas na área arqueológico, que se
mais afastada da villa. delimitaram e assi-
nalaram. É, aliás, de
referir que, de todas as estruturas (ne-
gativas e positivas) e demais vestígios
Fig. 5 − Alguns materiais recolhidos:
identificados, se fez apenas registo grá-
fico e fotográfico, definindo-se para tal
1) ânfora tipo Maña-Pascual A4 os seus limites.
1 (sécs. IV-I a.C.); Todas as áreas de maior sensibi-
2) ânfora do tipo Dressel 7-11; lidade foram reservadas para futura
0 3 cm
3) terrina, cerâmica comum escavação manual.
romana. Nesse sentido, o material arqueo-
lógico recolhido constitui apenas uma
amostragem que, não obstante, nos per-
mite uma melhor caracterização do
Desenhos: Gustavo Mil-Homens.

local e das suas diferentes ocupações ao


longo do tempo.

1 CARDOSO, Guilherme e ENCARNAÇÃO,


2 3 José d’ (1990) – “Cascais no Tempo dos
0 3 cm 0 3 cm Romanos”. Revista de Arqueologia da
Assembleia Distrital de Lisboa. 1: 68.
al-madan
XXI online
adenda
3 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

segunda campanha de escavações na


área escavada
Capela de em 2006

São Pedro da Capinha


os materiais
Constança Guimarães e Elisa Albuquerque

o seguimento da cam- Norte da Capela, ten-

N panha anterior, proce-


deu-se, durante o mês de
Setembro de 2007, a novos trabalhos
do sido intervencio-
nados 72 m2. A esco-
lha desta sondagem
área escavada
em 2007
arqueológicos no local. De acordo com teve como intuito a
a metodologia previamente utilizada, continuidade do pro-
uma implantação de quadrículas 4 x 4 cesso iniciado anteri-
metros de lado, partindo do eixo central ormente, ou seja, a
0 1m Fig. 1 − Sistema de quadrículas.
do edifício, efectuou-se a abertura de identificação de estru-
uma sondagem, designada por Sonda- turas correspondentes
gem 3, correspondendo ao exterior às diferentes fases de ocupação do edifí- texto cronológico e ocupacional do sí- a presença de dois sarcófagos existen-
cio (Fig. 1). tio, identificando três momentos cor- tes no exterior Norte. Um destes era já
Após os trabalhos arqueológicos respondendo a três fases construtivas da conhecido e colocava-se a possibilida-
referentes ao ano de 2006, inferimos capela, enquanto templo sagrado (AL- de da existência de um segundo (SAN-
algumas considerações dentro do con- BUQUERQUE e SANTOS 2008: 6). TOS 2005: 66). Ambos apresentam ca-
Contrariamente ao constatado na racterísticas semelhantes entre si e
Sondagem 1, a Sondagem 3 caracteri- apontam para uma possível cronologia
za-se por uma fraca potência estrati- do século IX (SANTOS e ALBUQUERQUE
gráfica, ainda que sejam de realçar os 2008). Perante a descoberta de nega-
indícios detectados, tanto estruturas co- tivos de outros cinco sarcófagos, já de-
mo materiais associados, que de algu- saparecidos, acreditamos que no lado
ma forma contribuíram para o melhor Norte existiu uma necrópole, esta de
conhecimento do sítio. período mais tardio comparativamente
Seguindo, então, aquela linha de à da zona Sul da Capela.
1 investigação, durante a 2ª intervenção Destacamos, ainda, a presença de
verificámos várias realidades estrutu- dois buracos de poste que estarão, pos-
0 3 cm rais, nomeadamente, uma piscina bap- sivelmente, associados à ocupação da
tismal (ALBUQUERQUE e GUIMARÃES casa como anexo agrícola, havendo
2008), que, tendo em conta as suas ca- um alpendre no lado Norte.
racterísticas, foi relacionada com a
2
primeira fase de ocupação do edifício. Materiais arqueológicos
0 3 cm Quanto ao que designámos como
segunda fase de ocupação da capela, Proporcionalmente à anterior
nesta sondagem, traduz-se pelo negati- campanha de escavações, a quantidade
vo de uma estrutura e os materiais que de cerâmica recolhida é menor, embo-
aí foram exumados. Este negativo im- ra seja de vital importância para a inter-
pele-nos a aventar duas hipóteses: se pretação da área escavada.
3 estaremos perante um anexo adossado Entre o espólio arqueológico exu-
ao edifício ou se, por outro lado, o alça- mado destaca-se o grupo correspon-
do Norte da capela teve uma solução ar- dente à cerâmica, tanto no que se refere
quitectónica análoga à do lado Sul, na ao material de construção, prevalecen-
separação entre a cabeceira e a nave. do a telha medieval decorada ou lisa,
Apenas a continuação das esca- como no que concerne à cerâmica co-
4 vações, particularmente no interior da mum doméstica.
Capela, nos poderá dar alguma infor- Dentro desta, sobressai um peque-
0 3 cm mação que dissipe estas dúvidas. no grupo correspondente a grandes
Por último, correspondente ao recipientes de armazenagem que, pelas
momento da construção da cabeceira da características tipológicas e morfoló-
Fig. 2 − Cerâmica tardo-romana e tardo-antiga. capela, isto é, à terceira fase, registámos gicas, se podem enquadrar em horizon-
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 4 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
tacando-se uma panela (Fig. 3, n.º 6) de a uma garrafa (Fig. 4), com bordo ex-
bordo extrovertido sem ressalto e lábio trovertido sem ressalto e espessamen-
boleado com inflexão interna, encon- to exterior. Trata-se de um fragmento
trando paralelo, entre outros, em Gra- incolor, soprado, de má qualidade, com
nada (CARVAJAL LÓPEZ 2005, lám. 6), bastantes bolhas no interior, caracterís-
datada dos séculos IX-X, bem como um tico do vidro a partir do século III d.C.
jarro (Fig. 3, n.º 7) de bordo biselado no A sucinta análise referente à ce-
5 exterior e ressalto no interior. râmica exumada na Capela de São Pe-
Relativamente a momentos tem- dro permitiu alguns elementos que im-
porais mais recentes, foram identifica- porta realçar: estamos perante um gru-
0 3 cm
dos alguns fragmentos de cerâmica de po cujas características apontam para
Época Moderna, vidrada ou não, nas fabricos regionais, testemunhando,
camadas superficiais e dentro de um dos igualmente, a ocupação do sítio entre o
buracos de poste. período tardo-romano até à Alta Idade
Evidencia-se, ainda, um fragmen- Média.
to de vidro, provavelmente pertencente

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Elisa e GUIMARÃES, Cons-


tança (2008) – “Notícia Preliminar da
Intervenção Arqueológica de São Pedro 0 3 cm
7
da Capinha (2ª Campanha)”. Al-Madan.
IIª Série. 15: 5.
ALBUQUERQUE, Elisa e SANTOS, Constança Fig. 4 − Fragmento de vidro (garrafa?).
0 3 cm
Guimarães dos (2008) – “Capela de São
Pedro da Capinha (Fundão): primeira matización de la Cerámica Tardoantigua
Fig. 3 − Cerâmica alto-medieval. intervenção”. Al-Madan Online - Adenda en la Cuenca del Duero”. In Cerámicas
Electrónica. IIª Série. 15 (X) [disponível Tardorromanas y Altomedievales en la
em http://www.almadan.publ.pt]. Península Ibérica, pp. 273-306 (Anejos
BOHIGAS ROLDÁN, Ramón e RUIZ GU- de AespA, 28).
tes cronológicos tardo-romanos e na de bordo protobífido, que encontram TIÉRREZ, Alicia (1989) – “Las Cerámicas SANTOS, Constança e ALBUQUERQUE, Elisa
Antiguidade Tardia. Salientamos neste paralelo, entre outros, em Recópolis, visigodas de poblado en Cantabria y Pa- (2008) – “Capela de São Pedro da Ca-
conjunto um almofariz (Fig. 2, n.º 1) de onde são datadas dos séculos VI-VIII lencia”. Boletín de Arqueologia Medie- pinha (Fundão): primeiras impressões
pasta grosseira, com abundantes desen- (CEVPP 1991: 57, Fig. 7). val. 3: 31-51. (campanhas 2006-2007)”. Ebvrobriga
gordurantes de quartzo e muita mica, Já enquadrável na Alta Idade Mé- CEVPP (1991) – “Cerámicas de Época Visi- (no prelo).
goda en la Península Ibérica. Precedentes SANTOS, Maria Constança V. S. Guimarães
ostentando decoração penteada, for- dia, encontramos alguma cerâmica de y perduraciones”. In A Cerâmica Medie- dos (2005) – Arqueologia e Território
mando ondas, no lábio e na superfície uso comum, onde se evidencia uma val no Mediterrâneo Ocidental. Lisboa, Tardo-Antigo e Medieval entre Peroviseu
exterior. Pode inserir-se no grupo das panela (Fig. 3, n.º 5) de bordo moldu- pp. 49-67. e Três Povos (Fundão, Castelo Branco).
grandes vasilhas micáceas da cerâmica rado extrovertido sem ressalto, de colo CARVAJAL LÓPEZ, José Cristobal (2005) – Dissertação de Mestrado apresentada à
de Época Visigoda da zona de Palência bem marcado e corpo globular, pos- “La Cerámica Islámica del Sombrenete Faculdade de Letras da Universidade de
(BOHIGAS ROLDÁN e RUIZ GUTIÉRREZ suindo caneluras na metade superior do (Madinat Ilbira, Granada). Primera Coimbra (policopiada).
aproximación”. Arqueología y Territorio VIGIL-ESCALERA GUIRADO, Alfonso (2003)
1989: 49, fig. 8), tal como nas cerâmi- bojo. Apresenta asa vertical, que parte
Medieval. 12 (1): 133-173. – “Cerámicas Tardorromanas y Altome-
cas datadas dos séculos VII e primeira logo abaixo do bordo para terminar a LARRÉN, H.; BLANCO, J. F; VILLANUEVA, O.; dievales de Madrid”. In Cerámicas Tar-
metade do século VIII d.C., provenien- meio da pança. De fabrico local, apro- CABALLERO, J.; DOMINGUEZ, A.; NUÑO, J.; dorromanas y Altomedievales en la Pe-
tes de Madrid (VIGIL-ESCALERA GUI- xima-se de uma peça tipologicamente SANZ, F. J.; MARCOS, G. J.; MARTÍN, M. A. nínsula Ibérica, pp. 371-387 (Anejos de
RADO 2003: 381, fig. 4). análoga proveniente de Sombrerete, e MISIEGO, J. (2003) – “Ensayo de Siste- AespA, 28).
No seio do grupo de cerâmica de Granada (CARVAJAL LÓPEZ 2005, lám.
uso comum não enquadrável nos gran- 14), registando-se, contudo, nesta últi- PUBLICIDADE
des recipientes, destaca-se uma taça ma, um colo curto pouco marcado e ca-
(Fig. 2, n.º 2) de bordo extrovertido nelura na parte exterior do bordo mais
sem ressalto e lábio bífido, com uma ca-
nelura no corpo. Aproxima-se de algu-
marcada, balizando-se em cronologias
dos séculos IX-X.
AGENDA ONLINE
mas formas de Cárcava de la Peladera Nos mesmos horizontes cronoló-
reuniões científicas | acções de formação
(Hontoria, Segovia), de contextos cro- gicos, e com características morfoló-
nológicos dos séculos V-VII (LARRÉN gicas idênticas entre si, nomeadamente novidades editoriais | exposições | turismo cultural
et al. 2003: 294, fig. 3). São ainda de o bordo biselado no exterior, assina-
indicar duas panelas (Fig. 2, n.ºs 3 e 4) lamos um conjunto de recipientes, des- disponível em www.almadan.publ.pt
al-madan
XXI online
adenda
5 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

notícia da 11ª campanha de escavações arqueológicas no


Sítio Pré-Histórico do
Castanheiro do Vento
Ana Margarida Vale, Vítor Oliveira Jorge,
João Muralha Cardoso, Gonçalo Leite Velho,
Barbara Carvalho e Sérgio Gomes

11ª campanha arqueo- No entanto, a in-

A lógica em Castanheiro
do Vento (Horta do Dou-
ro, Vila Nova de Foz Côa) teve início a
terpretação de
Castanheiro do
Fig. 1 − Aspecto geral da escavação em Castanheiro do Vento durante a campanha de 2008 (fotografia tirada de NE para SW).

Vento distancia-se das narrativas pro- se situa entre a estrutura referida ante- uma outra estrutura circular, contigua à
7 de Julho e terminou a 8 de Agosto de postas para a maioria destes sítios e tem riormente e o “bastião” R, situado na se- estrutura 24. Estas estruturas encon-
2008. A escavação decorreu no topo da procurado enfatizar / problematizar os gunda linha de muro (M2). Esta área ca- tram-se definidas por lajes de xisto dis-
colina de Castanheiro do Vento e con- diferentes diálogos que concorrem no racteriza-se pela presença de um depó- postas maioritariamente de forma oblí-
tou com a presença de voluntários de sítio. Dito por outras palavras, têm-se sito constituído por um sedimento es- qua e, em alguns casos, possuem mais
diversos países, assim como com a questionado as possíveis relações entre curo, com inclusões de pequenas lajes que uma linha de lajes para delinear os
colaboração do professor Christopher materiais (por exemplo, fragmento de xisto aparentemente não organi- limites. O seu espaço interno caracte-
Watts, da Universidade de Toronto cerâmico / estrutura circular / muretes / zadas. Os seus limites não são claros e, riza-se pela existência de um sedimen-
(Canadá), que coordenou uma equipa / colina / paisagem) em conexão com o consequentemente, a sua relação com os to argiloso, compacto, de cor amarela,
de estudantes da mesma instituição. nosso próprio trabalho hoje no sítio 1. depósitos que se encontram tanto para com inclusões frequentes de pequenas
A intervenção na estação arqueo- Assim, na continuação dos tra- Norte como para Sul (caracterizados por lajes de xisto, alguns percurtores e frag-
lógica de Castanheiro do Vento (sítio da- balhos anteriores, a campanha de 2008 um sedimento amarelo de matriz argi- mentos cerâmicos. Para Leste destas
tado do III-1ª metade do II milénio a.C.) teve como principais objectivos: a con- losa) não é perceptível. No entanto, es- estruturas localiza-se a passagem 12, in-
teve início em 1998, tendo-se privile- tinuação da escavação na área Oeste ta área poderá conter possíveis estrutu- tegrada no murete 2, a qual parece con-
ras em arco, sugeridas pela presença de ter um possível corredor (na lado Leste
lajes de xisto fincadas. da estrutura, em direcção ao interior
Na área situada na plataforma cen- do recinto), caracterizado pela existên-
tral entre os muretes 2 e 3, identifica- cia de lajes e blocos de xistos dispostos
ram-se duas estruturas circulares com de forma alinhada.
cerca de oito metros de diâmetro, deli- Foi ainda possível efectuar a deca-
mitadas por lajes de xisto dispostas na pagem da estrutura “bastião” U, iden-
horizontal, ou na oblíqua, fincadas no tificada em 2006. Encontra-se integra-
sedimento argiloso. No espaço interno da no murete 2 e apresenta uma abertura
destas estruturas, foram detectadas es- de vão de cerca de sete metros. No es-
truturas circulares de menor dimensão paço interno do “bastião” U registou-se
e estruturas em semicírculo. Na grande uma laje de xisto com fossettes e um
estrutura circular situada mais a Sul, foi punção em cobre de pequenas dimen-
possível registar duas estruturas circu- sões. Este último encontrava-se envol-
lares, uma onde se identificou uma es- vido por um sedimento compacto, de
Fig. 2 − Vista geral sobre a estação arqueológica, tendo o “Bastião” U em primeiro plano pécie de lajeado no interior (constituí- cor acinzentada clara, com fraca ex-
(fotografia tirada de SW para NE). do por lajes de xisto dispostas na hori- pressão estratigráfica (tratava-se de
zontal), e uma outra caracterizada pela uma inclusão no depósito que se encon-
giado o estudo das principais linhas que contigua à “torre principal”, o estudo da presença de grande quantidade de bar- tra no topo do bastião, e tinha generica-
definem a arquitectura geral do sítio. área Oeste localizada entre os muretes ro de revestimento e fragmentos cerâ- mente como dimensões: 20 cm de lar-
Neste sentido, foi possível registar ao 2 e 3; a análise das estruturas em talude micos. Prosseguiu ainda nesta área a gura e dez em profundidade).
longo das várias campanhas (empreen- situadas a Oeste; e a continuação da escavação da estrutura circular 22, iden- Na área Oeste do topo da colina de
didas apenas uma vez por ano), três li- escavação na área Sul de Castanheiro do tificada na campanha de 2006, e encon- Castanheiro do Vento, num local onde
nhas de muro interceptadas por estru- Vento. A escavação foi feita em área e trou-se outra estrutura (28), contigua à o terreno apresenta um declive acentu-
turas sub ou semicirculares (tradicio- apenas se procedeu à identificação das primeira. A escavação continuou tam- ado, foi escavada uma área com cerca
nalmente apelidadas de bastiões) e in- estruturas, ou seja, não foi empreendida bém para Oeste destas estruturas, onde de 40 m2 (a Leste do “bastião” U). Após
terrompidas por diversas passagens. escavação em profundidade. Neste sen- se situa o “bastião” T, no interior do qual a remoção das camadas superficiais (1
Os trabalhos de campo permitiram ain- tido, removeu-se o que convencional- foi possível registar um conjunto de e 2), foi possível identificar um nível de
da a identificação de várias estruturas mente apelidamos de camada 1 (antigo buracos de poste (definidos por lajes de grandes lajes e blocos de xisto integra-
circulares e uma grande estrutura de ba- solo agrícola) e camada 2 (depósito xisto fincadas) dispostos em arco, como dos num sedimento de cor castanha
se pétrea, chamada “torre principal”. Se- muito perturbado pelos trabalhos de que acompanhando a curvatura da face acinzentada escuro, pouco compacto, de
gundo o modelo explicativo tradicional, agricultura e raízes) e procedeu-se à interna do bastião. textura areno-argilosa. Algumas das
este sítio integrar-se-ia no grupo dos limpeza de toda a área. Para Sul, foi possível continuar a pedras de xisto encontravam-se rube-
“povoados fortificados”, identificados A Oeste da “torre principal”, foi escavação das estruturas circulares 23 factas e parecem sugerir alinhamentos
maioritariamente na Península Ibérica. escavada uma área que genericamente e 24, identificadas em 2006, e registar estruturados com direcção Norte / Sul.
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 6 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
A identificação do talude Oeste em “bastiões”), deparamo-nos com a pos-
Castanheiro do Vento, juntamente com sível existência de percursos muito es-
as escavações já realizadas a Norte do treitos e sinuosos, por entre as possíveis
sítio, sugerem que o topo da colina es- paredes das estruturas circulares e mu-
taria rodeado a Norte e a Oeste por uma retes. Deparamo-nos também com am-
estrutura pétrea, constituída essencial- plos espaços, onde os caminhos pode-
mente por lajes de xisto dispostas de for- riam ser igualmente pré-estabelecidos,
ma paralela e perpendicular entre si. mas com possibilidade de modificação,
Apesar da morfologia do terreno ser de alteração, enquanto que os apertados
diferente a Leste e a Sul da plataforma caminhos por entre estruturas, se não
central do morro, não deixa de ser cu- proibidos, sugeriam apenas um per-
riosa a “monumentalização” a Oeste do Fig. 3 − Grande estrutura circular identificada na plataforma central da colina de Castanheiro do curso possível. Se é verdade que o sítio
Vento, entre os muretes 2 e 3. Foi possível registar diversos alinhamentos de tendência curva
sitio, já que o impacto visual que a co- se nos afigura hoje como um espaço
no seu interior.
lina detém vista de Este para Oeste, amplo, que se abre por sua vez a uma
assim como o que do sitio se avista pa- ampla paisagem, parece que o espaço
ra Oriente, não é de grande alcance. Isto interior, quando as suas paredes de ter-
porque Castanheiro do Vento é ladeado ra crua estavam erguidas, comportava
a Oeste por relevos cuja altitude má- sinuosos caminhos e áreas mais amplas,
xima é superior à do sitio em estudo. atentos às diversas memórias para as
Igualmente, as escavações de 2008 quais remetiam ou em nome das quais
permitiram a continuação da investi- existiam.
gação em Castanheiro do Vento em di-
versos sectores, definindo na totalidade
estruturas apenas parcialmente identi-
ficadas em campanhas anteriores, pro-
cedendo à decapagem de estruturas co- 1 Como este não é o espaço adequado para
mo o “bastião U”, ou registando novos o desenvolvimento deste parágrafo, sugere-se
alinhamentos e estruturas que permitem Fig. 4 − Aspecto das estruturas circulares 22 e 28.
a leitura dos textos relacionados com o sítio
acrescentar vários pontos à(s) histó- de Castanheiro do Vento, como, por
ria(s) / interpretação(ões) de Castanhei- exemplo: JORGE, V. O.; CARDOSO, J. M.;
ro do Vento. Por exemplo, até à cam- PEREIRA, L. S. e COIXÃO, A. S. (2002) –
panha de 2007 apenas tinham sido “Castanheiro do Vento and the Significance of
identificadas pequenas estruturas cir- Monumental Copper / Bronze Age Sites in
culares, com cerca de dois metros de Nothern Portugal”. In SCARRE, C. (ed.).
diâmetro, e dispunham-se normalmente Monuments and Landscapes in Atlantic Europe.
Londres: Routledge, pp. 36-50.; JORGE, V. O.;
de forma agrupada. A sua distribuição,
CARDOSO, J. M.; PEREIRA, L. S. e COIXÃO,
localização, articulação com outras es- A. S. (2003) – “A Propósito do Recinto
truturas e materiais, sugeriam uma Monumental de Castanheiro do Vento
construção permanente do espaço, aten- (Vª Nª de Foz Côa)”. In JORGE, S. O. (coord.).
dendo à feitura de diversas estruturas Recintos Murados da Pré-História Recente.
circulares de forma agrupada e em re- Porto / Coimbra: DCTP, FLUP / CEAUP, FCT,
lação com outras estruturas (por exem- pp.79-114.; JORGE, V. O.; CARDOSO, J. M.;
plo, construídas no espaço interno dos Fig. 5 − Vista geral sobre a passagem 12 (integrada no murete 2) e sobre as estruturas circulares 23 e 24. VALE, A. M.; VELHO, G. L. e PEREIRA, L. S.
“bastiões” ou no interior de outras uni- (2006) – “Copper Age «Monumentalized
dades circulares). As duas grandes es- Hills» of Ibéria: the shift from ideas to
sua elaboração. Pedra e terra sugerem (e consequentemente de práticas, histó-
interpretative ones. New perspectives on old
truturas circulares identificadas na cam- tempos diferentes, relacionados com a rias, memórias e tempos diferentes),
techniques place and space as results of a
panha de 2008, sugerem, na mesma li- escolha e a recolha, a preparação da ma- propõe também uma multiplicidade de research experience in the NE of Portugal”.
nha, a construção e reconstrução do sí- téria-prima, e com o próprio tempo de caminhos e percursos interditos. Anali- In Approaching “Prehistoric and Protohistoric
tio, mas permitem também equacionar construção, de manutenção, duração e sando a localização das estruturas cir- Architectures” of Europe from a “Dwelling
estes espaços enquanto espaços de ruína. O entrelaçado de estruturas, que culares em Castanheiro do Vento e sua Perspective”. Porto: ADECAP, pp. 203-264
reunião, de congregação de diversos articula um entrelaçado de materiais articulação com outras estruturas (como (Journal of Iberian Archaeology, 8).
membros de uma comunidade ou até de
diferentes grupos num mesmo espa- PUBLICIDADE
ço, levanta hipóteses acerca de possí-
veis audiências (que poderiam ser nu-
merosas, quando comparadas ao espa-
CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
ço interior disponível em outras estru- associação de utilidade pública Visitas Guiadas Inventários de Património
turas do sítio). sem fins lucrativos
O fazer e refazer de estruturas em Sessões Audiovisuais Projectos Pedagógicos
[fundado em 1972]
Castanheiro do Vento conduz também Acções de Formação Edições Temáticas...
à problematização das diversas tempo-
ralidades do sítio, não só pelo carácter
Tel. / Fax: 212 766 975; Telm.: 967 354 861
contínuo das construções, mas tam- Contacte-nos E-mail: secretariado@caa.org.pt; http://www.caa.org.pt
bém pelo uso de diferentes materiais na
al-madan
XXI online
adenda
7 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

resultados da intervenção de
Arqueologia de Salvamento
em Santarém Fig. 1 −
Implantação dos
achados
a Avenida do Brasil arqueológicos no
projecto da obra.

Cláudia Costa [cauca@archaeologist.com]

Introdução

a sequência do acom- o actual edifício do Comando Distrital

N panhamento arqueoló-
gico realizado à obra de
ampliação e renovação do sistema de
da PSP de Santarém. A proximidade do
Largo Cândido dos Reis, coincidente
com o núcleo de necrópole islâmica
saneamento da Av. do Brasil, em San- escavado pela equipa de arqueologia da
tarém, adjudicado à Crivarque Lda., e Câmara Municipal de Santarém (MA- argilosa, com cerca de 10 cm de espes- pouco mais irá além da primeira meta-
da responsabilidade da signatária (ar- TIAS s.d.), acrescentava à área Sul um sura, embalando alguns materiais ce- de do século XVII.
queóloga desta empresa de Arqueo- maior nível de sensibilidade. râmicos. A investigação histórica desen-
logia à data do acompanhamento), foi No que concerne ao núcleo cor- Estes materiais, embora pouco nu- volvida na cidade de Santarém aponta
possível recuperar mais alguns ele- respondente à extremidade Sul da obra, merosos, foram estudados por Gonçalo para a existência, no local hoje ocupa-
mentos que poderão vir a contribuir junto ao Largo Cândido dos Reis, em- Lopes, a quem agradecemos. O con- do pelo edifício do comando da PSP, do
para a compreensão da evolução his- bora sob depósitos muito revolvidos e junto é composto pelas características Convento das Donas Dominicanas
tórica e urbanística da cidade de San- tendo, ao longo da evolução contem- taças modeladas com inclusões de (CARDOSO 2001) fundado na primeira
tarém. porânea da cidade, sofrido graves e ir- quartzo, indevidamente chamadas “de metade do século XIII (BEIRANTE 1980:
Os limites da obra correspondiam reversíveis danos, o elementos detecta- Estremoz”, e fragmentos de porcelana 121).
ao espaço compreendido entre o Largo dos foram dois troços de embasamen- azul e branca do período Ming (reina- Ora, o conjunto de estruturas de-
Cândido dos Reis, a Sul, e o Largo do to de um muro em alvenaria de pedra do de Wanli), anteriores às kraak- tectadas na frente daquele edifício, a
Convento de S. Domingos, no qua- argamassada detectados aquando da porselein. orientação dos troços de murete nas
drante Norte, abarcando a totalidade
da Av. do Brasil. Além da renovação das
redes de infra-estruturas subterrâneas,
o projecto contemplava ainda a alte-
ração urbanística do espaço, com a mu-
dança do traçado das faixas rodoviá-
rias e rearranjo da zona verde.
O acompanhamento arqueológico
desenvolveu-se entre os meses de Ou-
tubro de 2007 e Julho de 2008, de for-
ma faseada, conforme a calendarização
da obra, mas acompanhando todas as
acções de revolvimento do subsolo.
Fig. 2 − Aspecto de um dos troços do murete em alvenaria argamassada.
Ocorrências arqueológicas
abertura das novas faixas de rodagem, No respeitante à cerâmi-
No que diz respeito a depósitos de e restos um “piso” em terra batida com ca comum, regista-se o pre-
carácter arqueológico, verificamos que uma grande quantidade de cal. Este domínio das pastas alaran-
o primeiro ponto a valorizar se prende “piso” foi detectado durante a abertura jadas e de formas fechadas
com a existência de vestígios arqueo- de uma vala para redimensionamento como as panelas de asas ho-
lógicos nas duas extremidades da área da rede de abastecimento de água, com rizontais e bordo espessado
de intervenção da obra, que coincidem cerca de 40/50 cm de largura. com lábio aplanado. Desta-
com a implantação de dois antigos con- Desenvolvia-se ao longo da facha- cam-se as peças esmaltadas a Fig. 3 − Vista de topo do “piso”.
ventos de fundação medieval: por um da principal do edifício do comando da verde ou vidradas sobre en-
lado, o Convento de S. Domingos dos PSP, numa extensão de cerca de 47 gobe, tipo alguidares e potes, com am- faixas de rodagem da Av. do Brasil, os
Frades, no extremo Norte, na área cor- metros. Encontrava-se delimitado por pla difusão a partir da 2ª metade do sé- restos de “piso” preservado bem como
respondente ao Largo do Convento de dois troços de murete em alvenaria ar- culo XVI. a cronologia dos materiais cerâmicos as-
S. Domingos, e, por outro, o Convento gamassada muito destruídos. Trata-se de um conjunto cerâmico sociados, parecem indicar o prolonga-
das Donas Dominicanas, na parte Sul da Subjacente ao “piso”, foi detecta- homogéneo cronologicamente, inseri- mento para a área hoje ocupada pela Av.
zona de intervenção, e coincidente com da uma camada de preparação muito do num curto intervalo temporal que do Brasil e Jardim Sá da Bandeira do
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 8 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
perímetro do Convento Dominicano junto de sepulturas de
das Donas. Aliás, esta realidade estrati- inumação, apontam pa-
gráfica havia já sido detectada pela es- ra a possibilidade dos
cavação de estruturas e contextos ar- vestígios se relaciona-
queológicos durante a intervenção no rem com a ocupação do
Largo Cândido dos Reis, em 2004/ Convento de S. Domin-
/2005, pela equipa de arqueologia da gos dos Frades, mas só a
Câmara Municipal de Santarém (MA- prossecução do estudo
TIAS s.d.). No que diz respeito aos vestí- do sítio pela equipa de
gios arqueológicos, recuperados em arqueologia da Câmara
associação com o “piso”, parecem su- de Santarém poderá elu-
gerir uma possibilidade de ocupação cidar-nos relativamente Fig. 4 − Fragmento de bordo de peça de cerâmica modelada recuperado na camada de preparação do “piso”.
deste espaço anterior ao século XVII. a este aspecto.
O alargamento das acções da obra Quanto ao espaço da obra que se território mais vulnerável da ci-
para a zona do Largo Cândido dos Reis desenvolve entre os dois núcleos arque- dade. O desenvolvimento urbanís-
viria a colocar a descoberto mais cinco ológicos descritos, correspondente à tico deste espaço iniciou-se no
sepulturas de inumação, integráveis no Avenida do Brasil propriamente dita, século XIII com o estabelecimen-
núcleo de necrópole islâmica escavada não foram detectados elementos patri- to dos conventos dominicanos e,
pelos serviços de arqueologia da CMS moniais nem, tampouco, depósitos de durante o século XIV, com a ins-
(MATIAS s.d.) em 2004-2005. À seme- formação arqueológica ou materiais de talação dos Paços do Bispo de
lhança do que aconteceu com a inter- cronologia medieval-moderna descon- Lisboa (BEIRANTE 1980). Contu-
venção dos depósitos detectados no textualizados. As leituras estratigráficas do, as leituras estratigráficas rea-
Largo do Convento de S. Domingos, foi permitiram observar que os pavimentos lizadas no espaço durante o
a equipa de arqueologia da CMS que actuais e as camadas granulares se de- acompanhamento arqueológico
assegurou a escavação e exumação senvolvem sobre o substrato geológico revelaram-se completamente es-
destes esqueletos. local, caracterizado por calcários bran- téreis.
Quanto ao extremo Norte da obra, dos intercalados por argilas compactas. Exceptuando os núcleos no
no Largo do Convento de S. Domingos, Largo do Convento de S. Domin- Fig. 5 − Fragmentos de paredes de cerâmica majólica
foi construída uma nova rotunda, tendo Observações finais gos dos Frades e a área junto ao recuperados na camada de preparação do “piso”.
sido também executada a introdução em edifício do comando da PSP, a es-
subsolo de várias infra-estruturas, como Relativamente ao urbanismo his- tratigrafia revelada pelas valas
electricidade, saneamento e redimen- tórico, a área ocupada pela obra alvo de abertas durante os trabalhos da
sionamento da rede de abastecimento de acompanhamento arqueológico corres- obra mostrou que o substrato geo-
água. A área correspondia a uma zona ponde à zona limítrofe da cidade me- lógico se encontra a uma cota
ajardinada que foi totalmente arrasada dieval de Santarém, comummente de- muito próxima da superfície actu-
com meios mecânicos. signada como “chão fora-de-vila”. Du- al, sem que fosse possível obser-
As estruturas remanescentes nas rante a Idade Média, este espaço extra- var formações sedimentares qua-
traseiras do edifício das Finanças (às muros seria preenchido por casario, ternárias. Pelo contrário, a estrati-
quais se encontra ainda adossado o res- bem como pelas áreas circundantes dos grafia observada revela um sub-
taurante “O Quinzena” e várias ofici- Mosteiros, onde os serviçais dos mes- solo caracterizado por margas do
nas), que escaparam à demolição do mos se instalariam (BEIRANTE 1981). substrato geológico local, nalguns
edifício do convento de S. Domingos Por outro lado, o perímetro que se es- pontos muito remexidas recente-
dos Frades, em meados do século XX, tendia entre os Conventos Dominica- mente pela colocação de infra-
bem como o próprio topónimo do Lar- nos, Trindade (Escola Prática de Cava- estruturas.
go 1 agora destruído, levavam a prever laria) e S. Francisco, junto à Porta de Este aspecto parece favore-
a identificação de elementos perten- Leiria, revestia-se de grande importân- cer a forte possibilidade desta área
centes àquele edifício conventual. De cia religiosa, mas também económica e da cidade ter sido alvo de terrapla-
facto, a detecção de embasamentos de cívica. nagem (ou simples regulariza- Fig. 6 − Fragmento de bordo de porcelana recuperado
estruturas em alvenaria de pedra de Trata-se de um espaço conhecido ção) ao nível do substrato geoló- na camada de preparação do “piso”.
calcário argamassada, bem como um da documentação como “chão da feira” gico, anterior à construção das
núcleo de necrópole de sepulturas de ou “alpendre da feira”, ou ainda como primitivas Av. Sá da Bandeira e Av. do Bibliografia
inumação abertas no substrato geológi- “alpendre de S. João da Feira”. A área Brasil, já no século XX, o que expli-
co argiloso, vieram a revelar o verda- que se estendia entre a Porta de Leiria caria, pelo menos em parte, a razão da BEIRANTE, M. A. R. (1980) – Santarém
Medieval. Lisboa: Universidade Nova
deiro potencial arqueológico daquela e a Porta de Manços (grosso modo cor- inexistência de restos das ocupações / de Lisboa.
parte da cidade de Santarém. Por ques- respondente ao actual campo Sá da / estruturas a que aludem algumas fon- BEIRANTE, M. A. R. (1981) – Santarém
tões relacionadas com a relevância dos Bandeira – coincidente, em parte, com tes e estudos históricos sobre a cidade Quinhentista. Lisboa: Universidade No-
achados arqueológicos (que exigia uma o limite de intervenção da obra) era de Santarém. va de Lisboa.
intervenção imediata mas demorada), os também conhecida como a Barbacã ou CARDOSO, M. (2001) – As Muralhas de
trabalhos de escavação daqueles depó- “Carreira dos Cavalos”. Do lado exte- Santarém. Interpretação e enquadra-
mento histórico-arqueológico. Santarém:
sitos foram atribuídos à responsabili- rior da muralha principal, neste espaço,
Câmara Municipal de Santarém.
dade da equipa de arqueologia afecta à encontrava-se outro pano de muralha M ATIAS, António (s.d.) – Síntese dos Tra-
Câmara Municipal de Santarém 2. com portas e baluartes, que delimitava 1 Largo do Convento de S. Domingos.
balhos Arqueológicos e Antropológicos
A relação espacial dos restos de es- um espaço paralelo que funcionava co- 2 A intervenção arqueológica foi da no Largo Cândido dos Reis. Texto Po-
truturas identificadas, bem como o con- mo reforço do aparelho defensivo, num responsabilidade de António Matias. licopiado.
al-madan
XXI online
adenda
9 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

Projecto ESTELA
do museu para o território
Samuel Melro, Pedro Barros
[Projecto Estela, samuelmelro@gmail.com; pedrofbarros@gmail.com]
e Amílcar Guerra [UNIARQ, amilcarguerra@fl.ul.pt]

ecorrido um ano sobre doeste e, a par dela, uma pro-

D a abertura do Museu da
Escrita do Sudoeste −
MESA (Fig. 1), pode comprovar-se que
posta de leitura sobre a Idade
do Ferro. Esta aplicava-se
não apenas à região que aqui
a autarquia de Almodôvar acabou por nos ocupa, mas procurava en-
capitalizar este importante investimen- globar as questões respeitan- Foto: Câmara Municipal de Almodôvar.
to, o qual, não é demais frisar, foi total- tes a todo o Sul peninsular.
mente suportado por essa entidade. Sucessivas e pertinentes Fig. 1 − Museu da Escrita do Sudoeste, Almodôvar.
Reconhece-se, desta forma, que as ini- questões se colocaram ao en-
ciativas que diversificam a temática e quadramento cronológico destes ves- Assim, o objectivo último é de con- b) A Sudeste, em torno da Ribeira
enriquecem a oferta cultural se justifi- tígios materiais, à caracterização destas tribuir para que se reveja a produção de do Vascão, confirmou-se uma das prin-
cam plenamente. A mais recente pro- sociedades e ao esclarecimento de conhecimentos sobre uma sociedade cipais concentrações de vestígios epi-
jecção mediática que o tema obteve, por questões-chave que sempre acompa- que aí habitou, tentando compreender gráficos, que engloba, em Almodôvar,
ocasião da descoberta da importante nharam estas problemáticas. A situação as directas relações entre espaço habita- os sítios de Tavilhão (Fig. 2), Monte
estela epigrafada de Mesas do Caste- real caracteriza-se, em boa verdade, cional, o mundo funerário e a esfera lin- Mealho e Várzea do Mendes, e que
linho, é disso exemplo. Com este caso por um desconhecimento que abarca guística, e fornecendo mais dados para tem continuidade no conjunto de Loulé,
se pode pôr em evidência o impacto so- vários domínios: os exactos contextos a explicação desta cultura com uma que integra os de Azinhal, Ameixial,
cial e cultural da Arqueologia, a sua im- arqueológicos preservados de onde pro- tão forte identidade. Não se pretende Monte da Portela e Vale de Vermelhos.
portância na construção da identidade vinha a maioria das estelas, a sua fun- deslindar o que nos querem transmitir, Aferindo a importância deste últi-
das populações e os seus reflexos na cionalidade, o seu enquadramento cro- mas sim tentar compreender quem nos mo eixo definido pela Ribeira do Vas-
procura turística desta região. nológico e as associações entre locais quer transmitir. cão, foi identificada uma nova epígrafe,
As preocupações quanto aos con- habitacionais e de necrópole. Estes são Os primeiros e iniciais trabalhos de designada por Corte Pinheiro - Loulé,
teúdos e à contextualização histórica dos aspectos que têm limitado as reflexões prospecção já realizados têm tido como associada a uma eventual necrópole
vestígios materiais foram desde cedo e a criação de modelos, permitindo objectivo a relocalização dos sítios ar- (Fig. 3).
assumidas como um dos objectivos da abordagens mais especulativas do que queológicos conhecidos e o esclareci- O monumento, elaborado em xis-
actividade museológica, a que não de- sustentadas em sólidas evidências. mento de aspectos relacionados com a to da região, apresenta algumas carac-
veria faltar um rigor na sua abordagem. A opção de nos centrarmos no história dos “achados”, mas também terísticas típicas deste conjunto de vestí-
Nesse sentido, em Julho de 2007, atra- concelho de Almodôvar, não resulta descoberta de novos locais. gios. Aproveita-se, em primeiro lugar,
vés dos dois primeiros signatários e apenas das razões de ordem museo- Neste âmbito, são desde já evi- um bloco alongado, de grandes dimen-
sob a orientação científica do terceiro e lógica – de transpor um museu para o dentes diversos eixos de desenvolvi- sões e boa qualidade, como em boa
de Carlos Fabião, desencadearam-se território, conjugando a salvaguarda, mento do fenómeno: parte dos exemplares já conhecidos. O
sinergias para a concretização do Pro- valorização, educação e a fruição dos lo- – A Noroeste, os meandros do campo onde se desenha o texto epigrá-
jecto ESTELA, que, numa primeira eta- cais e das paisagens culturais. A sua es- Alto Mira, com destaque para o sítio da fico também corresponde a uma super-
pa, procura sistematizar a informação colha decorre, por um lado, da coerên- Abóbada, estabelecem a ponte com as fície naturalmente lisa e, por isso, per-
sobre a escrita do Sudoeste. cia da área de estudo: um território realidades análogas e mais estudadas de feitamente adequada para a gravação.
Este objectivo assenta essencial- marcado pela serrania, pela junção das Ourique; O bloco original conserva-se na
mente no processamento da informação bacias hidrográficas e pela comuni- – Com características quase dia- sua quase totalidade, sendo fácil de-
já disponível, mas também na sua aferi- cação entre o Algarve e o Alentejo. metralmente opostas a esta área, surge terminar a sua configuração primitiva.
ção, através da prospecção dirigida no Não parece irrelevante que este uma realidade sobranceira à primeira Tratava-se de um bloco oblongo, no qual
terreno. Nesta fase, as acções orienta- espaço serrano assuma uma importân- linha de cumeada que da serra lhes dá se percebe claramente a separação entre
ram-se para as serras do Caldeirão e Mú cia e centralidade quando se analisa a acesso, onde se observa um conjunto de uma parte destinada a ser enterrada e o
e o restante território do actual conce- dispersão das estelas epigrafadas. Por sítios em torno da Corte Azinheira; sector em que se apunha a escrita. Em-
lho de Almodôvar, área onde este co- outro lado, as parcas sistematizações e – A Sul, a passagem para as áreas bora não exista, como em outros, uma
nhecimento carece especialmente de os reduzidos trabalhos arqueológicos na meridionais percorre um cenário mon- linha a assinalar esta separação, o início
sistematização, uma vez que a quase área (exceptuando o projecto de Mesas tanhoso mais acentuado, onde uma vez e terminus do texto permitem conjec-
totalidade das estelas daí originárias do Castelinho), reflectem-se na difi- mais os cursos de água se associam turar até onde poderia ir cada uma de-
corresponde a achados casuais. culdade em estabelecer uma relação aos achados epigráficos; las.
Decorreram, efectivamente, já entre os sítios arqueológicos e as este- a) A Sudoeste, as Ribeiras da Apesar do monumento se encon-
perto de 30 anos desde que os inegáveis las, dificultando o entendimento da Azilheira e Odelouca, associam-se às trar genericamente bem preservado, so-
e incontornáveis contributos de Caeta- função e da lógica cultural subjacente epígrafes de Corte do Freixo, São Mar- freu, todavia, a perda de uma tira mais
no Beirão e seus colaboradores trouxe- ao fenómeno epigráfico e do contexto tinho, e, esclarece-se agora, à estela da larga nas zonas mediana e superior da
ram para primeiro plano a escrita do Su- sócio-económico em que ocorre. Cerca do Curralão; margem direita da peça, que impossi-
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 10 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
bilita actualmente a compreensão do -la como um sinal de que, em boa ver-
texto gravado nesta zona. Para além dade, os que dominavam este saber
disso, evidencia um desgaste acentua- especializado nem sempre respeitavam
do nos limites superior e lateral esquer- integralmente as regras do sistema. A
do, o que afectou um pequeno sector do existência de muitas particularidades
espaço epigrafado. Esta última circuns- aparentemente atípicas faz crer que,
tância não compromete, todavia, a leitu- naturalmente, não existia, no âmbito
ra da inscrição. deste fenómeno geográfica e cronolo-
Como se verifica em boa parte dos gicamente amplo, uma grande unifor-
exemplares idênticos, o texto é enqua- mização, havendo campo, naturalmen-
drado por linhas, geralmente duas, para- te, para os particularismos que as ins-
lelas, que definem o espaço em que se crições conhecidas põem em evidência.
alinham os caracteres. Neste caso, po- A parte restante da inscrição, que
rém, dada a circunstância de todo o re- deveria conter os elementos particula-
bordo da peça ter sido afectado, não é res deste monumento, entre eles certa-
possível garantir a existência de uma li- mente o nome do defunto e eventual-
nha exterior. Apenas se conserva, em mente outros dados, não é fácil recons-
boa parte da sua extensão, a que deli- tituir. Dela temos apenas alguns ca-
mitava o campo epigráfico do lado in- racteres, respeitantes ao início e ao fim
terno. dessa sequência informativa, o que,
A distribuição e organização do aliado ao magro repertório textual de
texto são também elas bastante comuns, que dispomos, não ajuda a encontrar
correspondendo ao modelo mais fre- uma resposta para as nossas interroga-
quente nestas manifestações. Desen- ções.
volve-se numa única sequência contí- De qualquer modo, mesmo com
nua, em forma de U invertido, inician- estas limitações, o achado assume um
do-se na parte inferior direita e termi- valor excepcional, em especial por inte-
nando no lado oposto. A orientação é, grar este grupo epigráfico tão restrito e
pois, a mais habitual, sinistrorsa, isto é, tão carenciado de sequências textuais
da direita para a esquerda. A posição dos extensas e fiáveis. Identificar novos
caracteres é extroversa, o que quer di- monumentos assumiu-se, de resto, co-
zer que o topo dos mesmos está dirigi- mo um dos objectivos do Projecto ES-
do para o exterior do monumento. TELA, e o facto de se ter, desta forma,
Infelizmente, como é muito fre- dado cumprimento a este desiderato
quente, o texto está longe de se encon- compensou o empenho até agora colo-
trar completo. Apesar de tudo, a parte cado por todos os intervenientes neste
conservada corresponde a mais de me- projecto.
tade da sua extensão original, faltando O esforço já realizado nesta acção
uma parte mediana, que continuava os e a continuação dos trabalhos constitui
dois signos iniciais actualmente con- uma resposta ao desafio lançado no mo-
servados. Preservou-se igualmente a Fig. 3 − Estela com mento da inauguração do Museu da
parte terminal da epígrafe, represen- escrita do Sudoeste Escrita do Sudoeste, em Almodôvar, no
tando esta cerca de metade do texto encontrada no âmbito dos sentido de se ultrapassar a dificuldade
primitivo. trabalhos do Projecto sentida pela investigação em “estabe-
Quanto ao conteúdo da inscrição, ESTELA. lecer uma ligação directa entre estes
pode dizer-se que este último sector monumentos epigráficos e os contextos
corresponde ao que é frequentemente arqueológicos em que eles ocorrem”
assumido como uma fórmula, dado (GUERRA 2007: 15).
que se trata de sequência repetida com A vontade de continuar esta tare-
bastante insistência, mas com algumas fa é um denominador comum a todos os
variantes, no repertório já conhecido. envolvidos, pelo que esperamos noticiar
No caso vertente, o primeiro elemento em breve mais resultados deste “work
desta sequência (geralmente baare) in progress”.
aparece sob a forma bare, circunstância
rara, uma vez que não se respeitaria,
neste caso, uma das regras fundamen-
tais desta escrita, a chamada redundân- Bibliografia
cia. Todavia, a norma deve ser cumpri-
da em todos os outros casos similares GUERRA, A. (2007) – Museu da Escrita do
Sudoeste, Almodôvar. Almodôvar:
desta inscrição, como o atestam, logo a
Câmara Municipal de Almodôvar.
seguir, os dois signos que formam o
conjunto kee.
Esta circunstância atípica não é
facilmente justificada, mas há que tomá- Fig. 2 − Sítio arqueológico do Tavilhão, Almodôvar.
al-madan
XXI online
adenda
11 electrónica
n NOTÍCIAS
al-madan online | adenda electrónica
actividade arqueológica

Uma Estela Funerária Medieval


em Vila Verde dos Francos, Alenquer
Jaime Jorge Marques

1. Nota introdutória

oi num dos passeios de existir e virem a ser encontradas, disso

F convívio que, anualmen-


te, fazemos com antigos
colegas da faculdade que, pela voz da
não temos dúvidas, dispersas ou até
integradas em alguns muros ou paredes
de habitações, pois já as temos encon-
Fig. 1

nossa colega Henriqueta, tomámos co- trado, assim, pelo país fora. Disco ou Palmatória: encontra-se turas são muitos e variados. Pela pro-
nhecimento da existência de uma pos- em perfeito estado de conservação, tan- fusão de figuras, pedimos desculpa por
sível estela funerária medieval no ce- to no “anverso” como no “reverso” (di- utilizar um pouco a linguagem de he-
mitério da freguesia Vila Nova dos 2. Apresentação da remos assim para melhor compreen- ráldica, mas fazemo-lo apenas para
Francos. De imediato tentámos verificar estela funerária medieval são, embora não advoguemos muito melhor informação e orientação. No
a informação mas, por ser hora tardia, estas designações, pois só as devemos seu centro ou “coração”, integrada nu-
o cemitério já se encontrava encerrado Para a apresentação e descrição utilizar quando as peças são encontra- ma cartela, encontramos em falso-rele-
e não o pudemos fazer. desta estela, inédita, quisemos obedecer das “in situ”, o que tem sido o menos vo uma pequena cruz de braços curvilí-
Logo que oportuno manifestámos a um critério metodológico em que in- frequente). Apenas lhe falta, quase na neos. É ladeada “à dextra” por uma
junto da autarquia, na pessoa do senhor cluiremos as seguintes rubricas: prove- totalidade, o pé ou espigão (a parte da outra cruz de seis pontas ou hexalfa,
Presidente da Junta de Freguesia, a niência e condições do achado, tipo de estela que ficava enterrada no solo). imperfeita, também conhecida como
vontade de fotografar e estudar a referi- rocha, estado de conservação, forma ge- Os traços encontram-se bem definidos, a estrela de David, e “à sinistra” por uma
da estela, o que levou a que a mesma ral da estela, descrição dos motivos em qualquer das faces (ver Fig. 2). outra cruz de seis pontas, irregular, esta
passasse a ter um significado diferente insculpidos, suas dimensões e, por fim, “Anverso”: encontramos uma cruz com alguma rotação. Um pouco mais
do que tinha até esta data, sendo vista, a sua possível datação. de braços curvilíneos, de fólios simples, acima encontramos ainda o que nos
então, como uma peça valiosa, que de- parece ser um esquadro ou colher de
veria ser salvaguardada como Patri- pedreiro e uma régua. Em baixo, “na
mónio daquela freguesia. ponta” junto ao espigão, encontramos
Não obstante as estelas funerárias mais uma cruz de cinco pontas ou pen-
medievais serem um tema de extra- talfa, circunscrita. Por fim, em “chefe”,
ordinário interesse de investigação nos encontramos outra cruz, esta de cinco
campos da Arqueologia, Etnografia e pontas, também imperfeita, ladeada de
Religião, elas continuam a ser, até hoje, uma de cruz incompleta de braços tri-
um dos aspectos da Arqueologia me- angulares (ver Fig. 4).
dieval que menos atenção e interesse
tem merecido da maioria dos nossos ar- A estela é talhada em calcário cin-
queólogos, pese embora a dedicação, o zento claro (a região Serra de Monte-
interesse e o estudo de alguns. junto?).
Referimo-nos a Eugeniusz Frank- Medidas: no disco: 420 x 410 x
owski, Vergílio Correia, Abel Viana, 110 mm; no pé ou espigão: 80 mm de
Fig. 2
Francisco Manuel Alves (Abade de um lado, 145mm de outro (encontra-se
Baçal), Mário Varela Gomes, Fernando quebrado); altura total aproximada: dis-
Castelo Branco e José Beleza Moreira Esta estela encontrava-se (semi- vazados, inscrita num círculo (que para co e pé 530 mm.
que, entre outros, foram e são, quanto a enterrada no cemitério I, “o mais anti- alguns autores é a cruz da Ordem de Data: consideramo-la, em princí-
nós, os que mais se têm dedicado ao seu go” da freguesia de Vila Verde dos Cristo, ou cruz grega de braços iguais, pio, integrável nos conjuntos de estelas
estudo. Francos, concelho de Alenquer), junto ou mesmo até a cruz de Santo André). de meados dos séculos XV e XVI
Referiremos que estas peças (este- a uma plataforma de tijolo, pedra e cal, No entanto esta inscultura já é encon-
las funerárias discóides ou de palma- onde eram colocadas as urnas antes de trada em muitas estelas romanas, vi-
tória) são conhecidas desde tempos re- descerem à terra, e para as últimas sigóticas ou mesmo paleocristãs, muito 3. Considerações finais
motos, pois algumas já datam de sécu- orações (ver Fig. 1). anteriores assim à Ordem de Cristo,
los antes de Cristo (nós temos encon- Como se encontrava mesmo jun- pelo que, para nós, aquela inscultura po- Lembrando a frase popular “aque-
trado algumas estelas funerárias deste to à plataforma, não era possível ver um derá representar um dos muitos sím- le que não teve sepultura não ressusci-
tipo que pensamos serem anteriores ao dos lados, pelo que foi necessário es- bolos solares (ver Fig. 3). tará”, daí o homem temer desde sempre
século II a.C.). cavá-la e retirá-la para um estudo mais “Reverso”: antes de qualquer ob- morrer sem sepultura. Assim, ocupa
A peça objecto deste trabalho é, até completo dos seus elementos. servação neste “item”, devemos referir parte da sua vida na preparação da pró-
ao momento, a única estela funerária As pessoas da terra dizem sempre que esta estela contrasta muito com to- pria morte. O túmulo marcará o local
encontrada nesta freguesia. Pensamos a terem ali visto, porém, nós pensamos das as outras até ao momento recen- exacto onde o seu corpo será deposita-
que mais estelas funerárias possam que terá vindo de outro lugar. seadas, pois os elementos de inscul- do, transformando-o em monumento
al-madan
online XXI
adenda CENTRO DE ARQUEOLOGIA DE ALMADA
electrónica 12 al-madan online adenda electrónica ISSN 0871-066X | IIª Série (16) | Dezembro 2008
CORREIA, Vergilio (1918) – “Cabeceiras
de Sepultura Medievais”. In Terra
Portuguesa. Tomo III, pp. 20-24.
FERNÁNDEZ, Xaquín Lorenzo (1940) –
“Lápidas Sepulcrales Gallegas de Arte
Popular”. Congresso Nac. Ciências das
Populações. Porto.
FERREIRA, J. A. (1965) – “Cabeceiras de
Sepultura Medievais Existentes em
Numão”. In IV Colóquio Portuense de
Arqueologia. Porto.
FRANKOWSKI, Eugeniusz (1920) – Estelas
Discoideas de la Peninsula Iberica.
Madrid: Museu Nacional de Ciencias
Fig. 3 Fig. 4 Naturales (Memoria, 25).
GOMES, Mário Varela (1995) – “Estelas
Discóides do Museu de Loulé”. Al’Ulya.
Revista do Arquivo Histórico Municipal
funerário para o qual converge a aten- De um ponto de vista meramente Por fim, a serem certos os instru- de Loulé. 4: 31-43.
ção da sociedade. morfológico, esta estela funerária de mentos encontrados na estela funerária, MARQUES, Jaime Jorge (1985) – Estelas
Funerárias Medievais da Vila de Ulme.
As cabeceiras de sepultura com Vila Verde dos Francos integra-se no podemos pensar que o enterrado seria
Chamusca: C. Municipal de Chamusca.
inscrição, símbolo de profissão ou não, grande mundo das estelas funerárias um pedreiro, um mestre-de-obras ou até MOREIRA, José Beleza (1979) – “Cabecei-
recordam portanto o defunto, que esca- medievais do país. Para nós, esta estela mesmo um arquitecto. ras de Sepultura Medievais”. In Actas das
pa assim ao anonimato, este sim, a ver- é bastante rica, talvez com alguma exu- Na publicação desta estela fune- I Jornadas do GAAC. Coimbra: Grupo de
dadeira morte, completa e definitiva. berância de elementos. rária medieval, supomos ser de interesse Arqueologia e Arte do Centro.
Os símbolos encontrados nesta Porém, um aspecto que conside- referir a sua contribuição para uma MOREIRA, José Beleza (1983) – “Tomar
estela não serão símbolos religiosos ramos dever merecer alguma atenção é maior consciencialização da valorização na Arte Antiga: Catálogo”. Separata do
Boletim Cultural e Informativo da Câ-
Muçulmanos ou Judaicos, ou mesmo da o local da sua proveniência, pois parece- do Património Cultural desta região, mara Municipal de Tomar. 5.
Ordem de Cristo, como se possa pensar. -nos não ser este o lugar original, muito quer no ponto de vista histórico, quer no MOREIRA, José Beleza (1985) – “Cabecei-
Estes símbolos serão apenas sím- embora ela tenha sido encontrada no aspecto sócio-cultural ras de Sepultura do Distrito de Portale-
bolos de protecção para o defunto na no- cemitério e junto a uma igreja também gre”. In Actas das Primeiras Jornadas de
va caminhada para o Além (já que esta antiga. Arqueologia do Nordeste Alentejano.
passagem não é mais do que o segui- Quando já tínhamos redigido este Bibliografia QUINTEIRA, António José Ferreira (1985) –
“Cabeceiras de Sepultura da Quinta de
mento da vida, todos somos viajantes do texto, recebemos uma informação de
BRANCO, Fernando Castelo (1968) – “As N.ª Sr.ª das Águas-Feras (Pedrógão
mesmo rio), tal como são os símbolos que num lugar pouco distante, dito “an- Cabeceiras de Sepulcrais Discóides e a Pequeno)”. Munda. Coimbra. 9 (Maio).
que hoje encontramos em sepulturas tigo“ (hoje tapado por silvas), em tem- Sua Influência na Decoração Funerária VIANA, Abel (1949) – “Estelas Discóides do
modernas dos nossos cemitérios dis- pos terão sido vistas algumas pedras Contemporânea”. Revista Geográfica. Museu de Beja”. Arquivo de Beja. 6-7:
persos pelo país. idênticas àquela. Ano IV, 15 (Julho). 37-85.

PUBLICIDADE

toda a informação...
... à distância de alguns toques
Índices completos Como encomendar
Resumos dos principais artigos Como assinar
Onde comprar Como colaborar

ADENDA ELECTRÓNICA AGENDA ONLINE


mais conteúdos... reuniões científicas | acções de formação
... o mesmo cuidado editorial novidades editoriais | exposições | turismo cultural

disponível em http://www.almadan.publ.pt
al-madan
XXI online
adenda
13 electrónica

Das könnte Ihnen auch gefallen