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EDITORIAL
A
abrir, esta Al-Madan Online confronta-nos com uma séria ameaça à integridade e
preservação de uma das jóias da Arqueologia portuguesa, justamente integrada na lista
do Património Mundial da UNESCO: a arte rupestre do Vale do Côa, que em 1996 se
livrou da submersão provocada pela construção de uma barragem, mas está desde então sujeita a
cheias prolongadas. “As gravuras não sabem nadar” deu mote a um movimento que abalou a
sociedade portuguesa nos já distantes anos 1990. Presumimos hoje que continuarão a não saber.
Contudo, constatamos que boa parte delas teve de desenvolver entretanto uma invulgar aptidão
para o mergulho em apneia!
Capa | Jorge Raposo
Conhecidas as condições ambientais da região, é expectável que a acção dos agentes naturais
Imagem de visita à Rocha 1 da Ribeira de aumente sazonalmente o caudal do rio Côa. Mas não é admissível permitir que esse efeito seja
Piscos, no Parque do Côa, cerca de um
mês após cheia registada no Inverno de fortemente agravado pela ensecadeira que deveria ter funcionado só alguns meses, durante a
2014. A linha tracejada a branco, à direita,
marca a cota de inundação, aqui
construção da barragem, mas lá permanece quase 25 anos depois! É um enorme factor de risco
evidenciada pela sobreposição de filtro que para um Património único e insubstituível, e também uma severa condicionante à sua
mescla a imagem original com uma
superfície aquática. investigação, conservação e fruição pública. Identificar o problema e detalhar as suas causas e
consequências tem o inegável mérito de alertar para a urgência de medidas correctivas que
Foto © Luís Luís, Fundação Côa Parque,
parcialmente sobreposta por imagem merecem a atenção imediata da DGPC e da Fundação Côa-Parque.
disponível na Internet. O Parque e o Museu do Côa justificam ainda outra abordagem nas páginas desta Al-Madan
Online, onde é defendido um modelo alternativo de gestão patrimonial. É um dos textos de
opinião, que também se ocupam da investigação do século VIII e do paradigma dos orçamentos
participativos. Os artigos dedicados a trabalhos e estudos arqueológicos são diversificados,
II Série, n.º 22, tomo 1, Janeiro 2018 temática e cronologicamente, e tratam contextos e materiais que vão da romanidade ao
século XIX: da villa romana de Fundo de Vila (Tábua) à rede viária dessa época na zona do
Proprietário e Editor | Vimieiro (Arraiolos); das várias ocupações do Alto da Casa Branca (Lisboa) aos fornos de cal
Centro de Arqueologia de Almada,
Apartado 603 EC Pragal,
contemporâneos em Vila do Conde, Póvoa de Varzim e Trofa; de 1/4 de dirham almóada
2801-601 Almada Portugal recolhido na zona de Alcácer do Sal, às gemas gravadas em alfaia litúrgica dos séculos XIV-XV e
NIPC | 501 073 566 aos projécteis de armas ligeiras usados nos confrontos do século XIX. Há ainda um contributo
Sede | Travessa Luís Teotónio para a história do ensino da Arqueologia em Portugal, a análise de fontes documentais relativas
Pereira, Cova da Piedade,
2805-187 Almada
aos Paços do Município de Alcácer do Sal e à arte do guadameci em Évora e Vila Viçosa nos
Telefone | 212 766 975 séculos XVI e XVII, e espaço para defender a tese que Fernão Lopes (≈1380/1390-1460) terá
E-mail | c.arqueo.alm@gmail.com nascido e sido sepultado no Alandroal. Por fim, desenvolvido noticiário arqueológico antecede o
Internet | www.almadan.publ.pt comentário a diversos eventos e a agenda dos que são conhecidos para os próximos meses.
ISSN | 2182-7265 E para começar bem, tem já a seguir uma reflexão sobre o binómio Arqueologia - Turismo.
Estatuto editorial |
www.almadan.publ.pt Votos de boa leitura!
Distribuição | http://issuu.com/almadan Jorge Raposo
Patrocínio | Câmara M. de Almada
Parceria | ArqueoHoje - Conservação
e Restauro do Património
Resumos | Jorge Raposo (português), Borralheiro, Patrícia Brum, Guilherme Pedro Patacas, Franklin Pereira, Miguel
Monumental, Ld.ª
Luisa Pinho (inglês) e Maria Isabel dos Cardoso, António R. Carvalho, Daniel Pessoa, Rui Pinheiro, Inês V. Pinto,
Apoio | Neoépica, Ld.ª Santos (francês) R. de Carvalho, João Cascalheira, Leonor Pinto, Sandro Pinto, Luís
Director | Jorge Raposo Modelo gráfico, tratamento de imagem Enrique Cerrillo Cuenca, Fernando Raposo, Raquel C. Raposo, Clodoaldo
(director.almadan@gmail.com) e paginação electrónica | Jorge Raposo Coimbra, Luís Costa, Paulo Costa, Roldán García, Maria Isabel Sarró, Chris
Publicidade | Centro de Arqueologia Maria Isabel Dias, Mariana Diniz, Scarre, Isabell Schmidt, João L. Sequeira,
Revisão | Vanessa Dias, José Carlos Graça Cravinho, Pedro Cura, José Fernando R. Silva, Elisa Sousa, João P.
de Almada (c.arqueo.alm@gmail.com) Henrique, Fernanda Lourenço e Sónia d’Encarnação, Lídia Fernandes, Cristiana Tereso, André Teixeira, André Texugo,
Conselho Científico | Tchissole Ferreira, António Fialho, Rui Ribolhos João Torcato, António Valera, António
Amílcar Guerra, António Nabais, Colaboram neste número | Filipe, José P. Francisco, Jorge Freire, Valongo e Gerd-Christian Wenigeru
Luís Raposo, Carlos Marques da Silva André Albuquerque, Nelson J. Almeida, Sara Garcês, Manuel García-Heras,
e Carlos Tavares da Silva Clementino Amaro, Ferran Antolín, Marijo Gauthier-Bérubé, Carolina Grilo, Os conteúdos editoriais da Al-Madan Online
Redacção | Centro de Arqueologia de José M. Arnaud, Ruben Barbosa, Ana C. Vanda B. Luciano, Luís Luís, Ana P. não seguem o Acordo Ortográfico de 1990.
No entanto, a revista respeita a vontade dos
Almada (sede): Vanessa Dias, Basílio, Luísa Batalha, João Belo, Marian Magalhães, João Marques, Andrea autores, incluindo nas suas páginas tanto
Ana Luísa Duarte, Elisabete Berihuete Azorín, Nuno Bicho, Flávio Martins, Ana Mateos Orozco, Alexandre artigos que partilham a opção do editor
Gonçalves e Francisco Silva Biscaia, Carlos Boavida, Anabela Monteiro, César Neves, Luiz Oosterbeek, como aqueles que aplicam o dito Acordo.
3
ÍNDICE
ESTUDOS
EDITORIAL ...3
A Rede Viária Romana
como Objeto de Reflexão:
CRÓNICAS a propósito dos troços
calcetados da Herdade das
A Arqueologia e o Turismo:
Postas e da ponte da Fargelinha
útil binómio a acautelar |
(Vimieiro, Arraiolos) |
José d’Encarnação...6
Ruben Barbosa...50
ARQUEOLOGIA
Gemas Gravadas
As Gravuras Ainda numa Alfaia Litúrgica |
não Aprenderam a Nadar: Graça Cravinho...60
impacto das cheias na arte
rupestre do Vale do Côa
entre 1996 e 2016 |
Luís Luís...10
O Sítio Arqueológico do
Alto da Casa Branca (Tapada
da Ajuda, Lisboa) | Guilherme
Cardoso, Clementino Amaro
e Luísa Batalha...35
Museu do Côa: do
discurso institucional
ao museu participativo |
José Paulo Francisco
...86
NOTICIÁRIO
ARQUEOLÓGICO...150 EVENTOS...182
Textos de... Textos de...
Nelson J. Almeida et al. [pp. 150-151]; José d.’Encarnação [pp. 182-184];
Rui Pinheiro [pp. 152-157]; João P. Tereso et al. [pp. 185-187];
Guilherme Cardoso [pp. 158-159]; João Cascalheira et al. [pp. 187-189];
João L. Sequeira e António Valongo [pp. 160-161]; Fernando Coimbra e Luiz Oosterbeek [pp. 190-191];
Vanda B. M. Luciano [pp. 162-163]; António Valera [pp. 192-193];
André Albuquerque et al. [pp. 164-165]; João P. Tereso [pp. 193-194];
Alexandre Monteiro et al. [pp. 166-170]; Manuel García-Heras et al. [pp. 195-196];
Ana Patrícia Magalhães et al. [pp. 171-173]; José M. Arnaud et al. [pp. 197-198]
Lídia Fernandes e Carolina Grilo [pp. 174-176];
Miguel Pessoa [pp. 177-181] Agenda...199
5
CRÓNICA
Arqueologia e Turismo
útil binómio a acautelar
“
José d’Encarnação
[Catedrático de História, aposentado, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra].
Cresci num ambiente
Por opção do autor, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
em que, desde muito cedo,
os vestígios arqueológicos
foram encarados de uma
C
resci num ambiente em que, desde muito cedo,
os vestígios arqueológicos foram encarados de uma óptica óptica de aproveitamento
de aproveitamento turístico, ou seja, como mais um turístico, ou seja,
dos ingredientes da ementa turística da região.
De facto, porventura como prolongado eco do que fora a visita como mais um dos
a Cascais, em 1880, dos participantes na reunião da IX Sessão do
Congresso Internacional de Arqueologia e de Antropologia
Pré-Históricas, os mentores do Turismo da Costa do Sol não
ingredientes da ementa
turística da região.
“
descuraram a preservação dos sítios arqueológicos conhecidos no
concelho de Cascais e eles próprios – como foi o caso de Fausto
Amaral de Figueiredo e D. António de Castelo Branco –
participaram em intervenções arqueológicas e apoiaram campanhas investigação arqueológica em
de escavação nas grutas de S. Pedro do Estoril, de Alapraia, Cascais, e a edição do opúsculo
na villa romana de Casais Velhos e na gruta de Porto Covo. Grutas Pré-Históricas de Alapraia
De resto, pode ler-se no relatório de 1969 da Junta de Turismo - Estoril (Junta de Turismo da
da Costa do Sol, logo no seu ponto 1): “Preocupámo-nos com as Costa do Estoril, Estoril, 1979),
Riquezas Arqueológicas da Zona e conservámos nas melhores condições com versões individualizadas
possíveis as nossas Grutas; por outro lado, tencionamos apresentar em português, francês e inglês
as de Cascais, muito em breve, à apreciação e curiosidade públicas” (Fig. 1).
(Cascais e Seus Lugares, 1970-05-24, p. 6). Perdoe-se-me se uso um FIG. 1
Essa intenção de mostrar a gruta do Poço Velho esteve sempre exemplo pessoal e da zona
presente, de tal modo que, no mandato de Helena Roseta, onde vivo; permita-se-me,
se preparou um projecto da sua reabilitação, da responsabilidade de no entanto, que o considere paradigmático do tema em apreço,
Guilherme Cardoso, de Luís Pascoal e do Arquitecto Rui Pimentel; por se situar numa zona turística por excelência.
as grandes inundações de 1983 obrigaram, porém, a adiar a sua
concretização. Apresentado posteriormente ao vereador da Cultura, A utilidade
José Jorge Letria, no mandato de José Luís Judas, não mereceu
atenção; contudo, hoje, preparado um circuito de visita, a gruta A nível governamental, à excepção de Conímbriga, só tarde se
abre ao público por ocasião, nomeadamente, do Dia Internacional despertou para essa preocupação, o que não admira, uma vez que,
dos Monumentos e Sítios. Aliás, a Junta de Turismo patrocinaria nos panfletos turísticos, se vendia “o sol e o mar” e foi necessário
duas publicações cuja proposta lhe apresentei: as Notas sobre Alguns chegar ao III Congresso Nacional de Turismo, em Dezembro
Vestígios Romanos no Concelho de Cascais (Junta de Turismo da de 1986, para se incluir como primeira das recomendações
Costa do Sol, Estoril, 1968), que poderá considerar-se como a “uma intensificação da colaboração entre os sectores do Turismo e da
primeira chamada de atenção, na altura, para a importância da Cultura por forma a que, nacionais e estrangeiros, possam usufruir,
7
CRÓNICA
Para responder a esta questão, não posso deixar de começar por 2. Instalações sanitárias próximas ou no local
aludir ao bem ponderado discurso feito por Adília M. Alarcão, 3. Painéis explicativos, abrigo ou museu
na abertura, a 13 de Junho de 1985, em Castelo de Vide, 4. Posto ambulante de bebidas, bar ou restaurante
das 1as Jornadas de Arqueologia do Nordeste Alentejano, 5. Publicações” (p. 11).
publicado nas respectivas Actas (pp. 9-11). Acaba Lisboa de orgulhosamente albergar a Web Summit, onde
Depois de assinalar as premissas “necessárias para que a relação a inovação tecnológica foi rainha. Ora, não nos é possível pensar,
arqueologia/turismo se constitua em realidade construtiva”, apontou as em 2017, no aproveitamento turístico de um sítio arqueológico
exigências da valorização de um monumento ou sítio arqueológico: sem o recurso às novas tecnologias, até porque elas proporcionam
a definição de uma área protectora, a existência de suficiente pessoal também aquela salvaguarda que importa incrementar.
de guarda; um responsável científico, informação acessível aos Paulo José Correia Bernardes, da Unidade de Arqueologia
visitantes, capacidade de manutenção e acesso fácil. Por outro lado, da Universidade do Minho, em íntima colaboração com a
se se pretende incluir “um monumento de pleno direito num circuito Dra. Maria Júlia Fernandes e eu próprio, preparou para a série
turístico”, importa “que ele tenha impacto visual, que seja fácil de televisiva “Escrito na Pedra”, que a RTP 1 transmitiu em cinco
encontrar e ofereça ao visitante-turista o apoio logístico que a sua episódios, reconstituições virtuais em 3D dos monumentos de
dimensão e a sua localização façam legitimamente esperar nele: que cada episódio tratava: a villa romana de Milreu (Figs. 2 e 3),
1. Área ou parque para estacionamento as minas de Vipasca, a cidade romana de Tongobriga, o castro de
FIG. 2 - Reconstituição
virtual da entrada no
templo de Milreu.
Foi elaborada por
Paulo Bernardes,
da Universidade do
Minho, sobre dados
fornecidos por Félix
Teichner, para o
programa Escrito
na Pedra.
9
ARQUEOLOGIA
RESUMO
A
3 de Fevereiro de 1995, realizou-se em Vila Nova de Foz Côa a primeira mani-
festação mundial em defesa da arte rupestre (BAHN, 1995: 236). Entre os carta-
zes empunhados pelos alunos da escola secundária, lia-se a palavra de ordem “as
gravuras não sabem nadar”. Esta frase tinha por origem o refrão do tema Nadar, que po-
voou as rádios no verão de 1994, da autoria da banda almadense Black Company, o pri-
meiro single extraído da coletânea Rapública (Sony, 1994), disco fundador do hip-hop na-
cional. Não deixa de ser significativo que, “numa época de descontentamento político gene-
I
Arqueólogo. Fundação Côa Parque ralizado, [quando] os grupos de rap ganhavam protagonismo […] enquanto vozes de resis-
(luisluis@arte-coa.pt).
tência relativamente a uma governação pouco atenta aos problemas do racismo e da exclusão
Por opção do autor, o texto segue as regras
social” (CIDRA, 2010: 620), a juventude de Foz Côa tenha usado como lema principal da
do Acordo Ortográfico de 1990. defesa da arte rupestre o refrão do primeiro tema hip-hop reconhecido popularmente.
11
ARQUEOLOGIA
13
ARQUEOLOGIA
TABELA 1 – Registo de dias de cheia no rio Côa entre 1996 e 2016, por ano civil
(a linha tracejada identifica o limite do ano hidrológico)
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Total
janeiro 1 1 - - 6 - 19 - - - - - - 10 8 - 1 4 - 7 57
fevereiro - 3 - - 4 - - - - - 1 - - 6 1 - - 4 - - 19
março - - - - 5 1 - - - 2 - - - 11 - - 3 - - - 22
abril - - - - - - 2 - - - - - - 1 - - 4 4 - 6 17
maio - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - 2 3
com recurso a alguma infor- junho - 3 - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3
mação externa, nomeadamen- julho - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
te dados meteorológicos e hi- agosto - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
drométricos. Concluímos que, setembro - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
se nem todos os vigilantes regis- outubro - - - - - - 1 - - 2 - - - - - - - - - - 3
taram os dias de cheia da mes- novembro 11 - - - - 4 6 - - 8 - - - - - - - - - - 29
ma forma, sempre que os regis- dezembro 3 - - 16 - 18 3 - 1 8 - - 2 2 - - 3 - - - 56
15
ARQUEOLOGIA
dias de cheia
Bragança
Castelo Melhor
caudal médio diário [m3/s] precipitação diária [mm] dias consecutivos de precipitação
com cheia sem cheia com cheia sem cheia com cheia sem cheia
máximo 568 315 42 61,7 16 18
mínimo 32,6 0 0 0 0 0
média 110,43 10,43 5,34 1,09 4,45 1,02
mediana 91,3 2,39 2,5 0 4 0
desvio padrão 68,73 23,12 8,07 3,4 3,96 2,20
Comparando os valores de caudal e precipitação entre os dias de cheia Estes episódios estão relacionados com as oscilações climáticas das
registada e os dias sem registo de cheia, verificamos, uma vez mais, fases interglaciares, durante as quais o aquecimento cíclico da tempe-
uma relação muito próxima com o caudal, mas também com a pre- ratura (Heinrich Event 1 e 2) provocou o degelo, mudanças no regime
cipitação, apesar dos máximos sem cheia apresentarem alguns valores hidrológico (pluvionival) e as cheias registadas (AUBRY et al., 2010).
aberrantes (Tabela 2). Analisando com maior pormenor, as diferen- O mesmo sítio apresenta ainda vestígios de cheias datadas de inícios
ças tornam-se mais evidentes, como no caso do caudal e nos dias con- do Holoceno, que podem corresponder ao início da atual fase de
secutivos (Fig. 8). aquecimento holocénico.
Os valores de cheia do Baixo Côa identificados são surpreendentes, Mais a montante, o sítio da Penascosa registou uma erosão quase in-
uma vez que nos encontramos numa das regiões com menor precipi- tegral dos sedimentos plistocénicos, contemporâneos da arte rupestre
tação do país, tratando-se de uma das sub-bacias do Douro que o aí identificada, que foram substituídos por sedimentos holocénicos,
Plano Nacional da Água identifica com escassez de água (Decreto-Lei nomeadamente medievais (898-1179 cal AD) (MEIRELES, 1997). Re-
n.º 76/2016, de 9 de novembro, ponto 2.4). Está ausente das zonas fira-se, finalmente, a identificação da inscrição da data de 1909 junto
inundáveis identificadas na mesma bacia e não se conhece qualquer a uns moinhos na zona da Cardina, a uma cota de cerca de dez metros
registo de cheia histórica (PLANO DE GESTÃO…, 2016: 179-180). acima do leito do rio, que corresponderá ao nível de uma cheia his-
O registo sedimentar plistocénico datado ajuda-nos a identificar ní- tórica do rio Douro (AUBRY et al., 2016).
veis de cheia através da presença de depósitos aluviais de cota estabe- Destes dados concluímos que as cheias pré-históricas registadas no
lecida relativamente ao nível do Côa. No Fariseu, localizado entre a Vale do Côa relacionam-se com fases climáticas extremas, resultantes
Canada do Inferno e a Penascosa, registaram-se vários níveis de ero- da constituição de reservas de água sob a forma de neve ou gelo no
são e deposição aluviais com estrutura sedimentar e textura caracte- solo, e não diretamente da precipitação. Por outro lado, os depósitos
rística de depósitos de cheia, até à cota 123, entre momentos anterio- aluviais de textura mais fina da Penascosa estarão relacionados com a
res a 22.500 e 10.800 ± 1.700 BP (AUBRY, SANTOS e LUÍS, 2014). deflorestação e com a ação antrópica.
600 20
18
500
16
14
400
12
m3 / s
dias
300 10
FIG. 8 - Box-plots com comparativos entre:
8
a) caudais registados em dias com e sem
200
registo de cheia; b) número de dias 6
consecutivos de precipitação com registo 4
e sem registo de cheia (fonte: SNIRH - 100
- Sistema Nacional de Informação 2
de Recursos Hídricos). 0 0
com cheia sem cheia com cheia sem cheia
17
ARQUEOLOGIA
leito onde irão incidir as obras. A dimensão destas obras de desvio de-
verá ter em conta as características topográficas e geológicas do leito
do curso de água, o regime de caudais na secção da barragem, os dife- As obras de construção do desvio provisório da barragem de Vila
rentes métodos de derivação provisória utilizáveis, bem como os cus- Nova de Foz Côa terão sido realizadas no verão de 1993 (BAPTISTA et
tos das diferentes alternativas que se apresentam (PINHEIRO, 2002: 4). al., 2000; REBANDA, 1995). O projeto das obras caracterizava-se pela
No que diz respeito ao caudal, o desvio provisório deve assegurar o construção de um desvio de derivação em túnel, através da constru-
escoamento dos caudais afluentes à secção de montante das obras. ção de uma ensecadeira de montante, outra de jusante e uma inter-
Contudo, sendo provisório, e tendo em consideração os custos envol- média (Fig. 9). O canal de desvio provisório foi construído em forma
vidos, para além de se determinar a distribuição dos caudais de ponta, de túnel (Fig. 10), com mais de 500 metros de comprimento e uma
deve-se “fixar o período de retorno do caudal de dimensionamento, tendo capacidade de escoamento de 21,23 m3/s (BAPTISTA et al., 2000).
em atenção o risco de excedência associado ao período de tempo que se pre- Esta capacidade de escoamento justifica-se pela relação entre custos e
vê para o funcionamento do desvio provisório” (PINHEIRO, 2002: 5). o período de retorno, isto é, os caudais previsíveis durante o período
19
ARQUEOLOGIA
84
72
60
48
36
24
FIG. 12 - Vazão volumétrica
do túnel de derivação do 12
desvio provisório da barragem
de Vila Nova de Foz Côa. 0
50 100 150 200 250 3000 350 400 450 500
Pocinho que, desde 1982, inundou o curso final do Côa até à zona Acresce que será de considerar uma eventual diminuição da capacida-
da Ervamoira até à cota média de 125,5. de de escoamento do canal de derivação. A falta de controlo e manu-
O ritmo de enchimento desta albufeira pode ser determinado através tenção do túnel torna possível o seu assoreamento (percetível durante
da vazão volumétrica, que estabelece a relação entre o volume e o o verão, junto à ensecadeira de montante) e mesmo obstrução por
tempo, ao qual teremos de descontar a capacidade de escoamento do materiais transportados pelo rio, potenciando o efeito de cheia.
túnel de derivação (Fig. 12). A título de exemplo, com um caudal de
110 m3/s (caudal mediano nos dias com registo de cheia), o rio demo-
rará menos de 24 horas até atingir o topo da ensecadeira, alagando 4. CONSEQUÊNCIAS DAS CHEIAS
toda a área a montante.
Poderíamos ser levados a pensar que o nível da albufeira do Pocinho Conhecidas as causas das cheias registadas, é necessário determinar as
teria influência nas cheias do Baixo Côa. Contudo, uma análise das suas consequências na arte rupestre do Vale do Côa.
cotas da barragem do Pocinho permite perceber que, fruto da gestão Como já adiantado, o curso final do rio Côa apresenta-se alterado
de caudais do sistema da “cascata do Douro”, os valores da cota do Po- pela influência da barragem do Pocinho, desde 1982, ainda antes da
cinho são muito semelhantes, com ou sem registo de cheia (Tabela 3). identificação da arte paleolítica do Côa. Foi durante o abaixamento
Por outro lado, se a cota de saída se encontra frequentemente sub- do nível da albufeira do Pocinho, no verão de 1993, para a execução
mersa (122,0) (Fig. 10), apenas os máximos registados se aproximam das obras de derivação provisória, que foram identificadas as primei-
da sua cota de coroamento (125,75), sem, contudo, a ultrapassarem. ras rochas paleolíticas submersas desde então (REBANDA, 1995: 7).
Daqui se conclui que, no contexto da ação das estruturas de desvio Conhecemos hoje 77 rochas com arte rupestre totalmente submersas
provisório do Côa, e em momentos de elevado caudal no Douro, a pela albufeira do Pocinho 5, a que acrescem 14 que se encontram par-
cota do Pocinho poderá dificultar o escoamento e potenciar fenóme- cialmente submersas (REIS, 2012: 19) (Tabela 4, Fig. 13). Este núme-
nos de cheia, mas não pode ser entendida como a sua causa. ro será provavelmente maior, uma vez que a zona inundada a jusante
da ensecadeira de montante nunca foi alvo de prospeção sistemática,
pois raras vezes esteve emersa desde 1982, e pelo facto de a acumula-
TABELA 3 – Resumo dos valores da cota da ção de vasas por ação das águas da albufeira dificultar a identificação
barragem entre 1997-10-01 e 2006-09-30 de painéis gravados, mesmo quando
(fonte: SNIRH - Sistema Nacional de
Informação de Recursos Hídricos)
ocasionalmente emersos. 5
Refira-se os casos particulares
das rochas 1 e 19 do Fariseu,
com cheia sem cheia que se encontram cobertas por
sedimentos plistocénicos abaixo
máximo 125,57 125,55 da cota média do Pocinho. Já a
mínimo 123,65 121,04 rocha 25 do Vale da Casa foi
média 124,96 124,65 encontrada solta do respetivo
mediana 125,05 124,69 afloramento e encontra-se
depositada no Museu do Côa
desvio padrão 0,46 0,44 (REIS, 2012: 18).
21
ARQUEOLOGIA
TABELA 5 – Tipos de submersão
das rochas gravadas do Vale do Côa,
Os núcleos mais a jusante, no Côa e Douro, são os mais afetados pela por núcleo de arte rupestre
submersão permanente, parcial ou total (Tabela 5). Destes salientam-
PAINÉIS SUBMERSOS total de
-se os núcleos da Canada do Inferno e do Vale da Casa. Já as cheias
permanentemente painéis por
sazonais afetam sobretudo os núcleos mais a montante, pouco ou NÚCLEO total parcial sazonalmente núcleo *
nada afetados pela albufeira do Pocinho. Em números absolutos, o Broeira - 1 - 15
núcleo mais afetado é a Quinta da Barca, mas em termos relativos são Canada do Inferno 28 3 5 46
as Olgas da Ervamoira (todos os quatro painéis conhecidos), Vale Fariseu 2 2 8 20
Figueira (86 %), Fariseu (40 %), Quinta da Barca (34 %) e Ribeira Foz do Côa 12 2 - 195
de Piscos (21 %). Olgas da Ervamoira - - 4 4
Cronologicamente, a maioria das rochas inundadas contém motivos Penascosa - - 3 36
paleolíticos. Esta predominância das rochas com a arte mais antiga do Quinta da Barca - - 21 61
Côa atinge mais de 80 % das rochas inundadas sazonalmente. Dentro Quinta das Tulhas - 2 - 17
da arte paleolítica e das rochas onde nos é possível distinguir as suas Rego da Vide 8 - 1 13
subfases cronoculturais, a fase mais afetada é a pré-magdalenense Ribeira de Piscos - - 9 42
(fase 1), seguida pela magdalenense (fase 2) e azilense (fase 3). Esta di- Ribeira de Urros - 1 - 12
ferença radica nas diferenças de implantação topográfica destas fases, Vale da Casa 24 1 - 29
que vão “subindo na vertente” ao longo do tempo (LUÍS, AUBRY e Vale de Figueira 1 1 6 7
23
ARQUEOLOGIA
das representações gravadas. Se o contacto com a biosfera provoca ero- 4.1.2. Acumulação sedimentar
são preferencial, através da dissolução da sílica ou desagregação de
componentes alterados, destruindo as películas, a completa submersão A segunda consequência das cheias referida nos relatórios dos vigilan-
dos painéis provocará a sua total dissolução (CHAUVIÈRE et al., 2009). tes é a acumulação de “lodo que o rio Côa deixou depositado” (Canada
Alguns exemplos de rochas, total ou parcialmente submersas, cujos do Inferno, 2016-01-26) e “lama” (Canada do Inferno, 2016-11-28
traços gravados se encontram totalmente brancos (sem patine), equi- e 2006-12-03). Consideramos ser esta a consequência mais insidiosa
valentes aos traços recentes obtidos experimentalmente, parecem com- das cheias sazonais que ameaça atualmente a conservação da arte ru-
provar essa dissolução (por exemplo, as rochas 11, 12 e 16 da Canada pestre do Côa.
do Inferno). O papel dos rios no transporte e deposição de solos é um fenómeno
Assim, embora a erosão química provocada pela submersão seja con- amplamente documentado. Em contexto de albufeira, esta dinâmica
siderada inferior à física, há ainda importantes aspetos a esclarecer, altera-se, verificando-se uma acumulação de sedimentos em áreas a
podendo ela ser consideravelmente superior ao inicialmente estima- montante da barragem (que os impede de chegar ao oceano), onde a
do. Por outro lado, estes dois tipos de erosão estão intrinsecamente li- circulação das águas se faz a menor velocidade (RODRIGUES, 2003:
gados. 425). Devido às descargas das barragens, verifica-se o oposto a jusan-
O desmoronamento de blocos é o primeiro e mais imediato risco de te.
natureza física dos efeitos da sua inundação, seja ela permanente (al- No Baixo Côa, localizado a montante da barragem, temos um valor
bufeira) (RODRIGUES, 2003: 430) ou sazonal (cheia) (MAGAR, 2008: de cerca de um metro de sedimentos acumulados junto à rocha 1 do
129). Fariseu desde de 1982, data de enchimento da barragem do Pocinho
Uma outra consequência física direta da ação da água é a abrasão mo- que submerge esta área (AUBRY, SANTOS e LUÍS, 2014).
tivada pelos sedimentos transportados pela água (DORN et al., 2008: A primeira consequência desta deposição reside na imposição de um
49). Neste caso, é importante distinguir o risco mínimo em contexto peso suplementar sobre os afloramentos, já frequentemente instáveis
de barragem, devido à baixa velocidade da circulação das águas neste (Fig. 14). A sequência de humidade noturna e formação de orvalho
contexto (RODRIGUES, 2003: 425), do risco elevado em contexto de impõe uma carga acrescida sobre o painel. Com o aumento da tem-
cheia torrencial. Embora raríssimos, conhecem-se alguns exemplos de peratura diurna, essa humidade, por ação da gravidade, escorre pela
rochas do Côa com vestígios de abrasão fluvial, como sejam as rochas superfície do painel e pelas suas fissuras, transportando consigo o se-
30 e 31 da Canada do Inferno e a base da rocha 5 da Penascosa. Tra- dimento (Fig. 15). A eventualidade de chuvas aumenta o grau deste
ta-se de casos excecionais de rochas localizadas a cotas muito baixas, processo.
que em algum momento da sua história pós-gravação se encontraram Daqui resulta uma diminuição da visibilidade dos painéis após a fase
próximas do leito do rio. de submersão. Mas a implicação na visibilidade da arte é consequên-
Não se documenta, até ao momento, qualquer caso de abrasão fluvial cia menos nefasta da deposição de vasa no topo dos afloramentos gra-
pós-1996. Estimamos mesmo que este risco seja relativamente redu- vados. É unanimemente reconhecido o efeito da percolação de água
zido, em virtude do facto das cheias contemporâneas do Côa não te- pelas diáclases, como um importante fator desestabilizador, já prova-
rem uma natureza verdadeiramente torrencial. Se é o aumento do do na Penascosa (LLERA et al., 2008: 54).
caudal e da sua velocidade que origina a cheia, a subida do nível do Este facto deriva do processo de formação das vertentes, relacionado
rio ocorre inicialmente de jusante para montante, uma vez que sucede com a estrutura tectónica do substrato rochoso do Baixo Côa. ...26
quando o caudal atinge o ponto de estrangulamento e inunda a área
a montante até à cota de coroamento da ensecadeira. Só após atingido
esse ponto, o leito de cheia começa verdadeiramente a espelhar a velo-
cidade de escoamento. Ainda assim, verificam-se casos de impacto di- FIGS. 14 E 15 (página seguinte) - Rocha 1 da Ribeira de Piscos.
reto nos painéis gravados, como seja a acumulação de troncos e ramos Em cima, cerca de um mês após cheia (2014-03-10).
de árvores nos núcleos de arte (por exemplo, Canada do Inferno, A linha tracejada marca o limite da cheia registada.
2006-12-02 e 2014-04-04). A probabilidade de que a deriva de al- Em baixo, após cheia de fevereiro de 2016. Apesar de já limpa,
gum destes objetos possa vir a provocar danos irreparáveis aos painéis note-se a continuação das escorrências de sedimento na superfície.
Este é oriundo da parte superior, onde já crescem plantas, e das
de arte semi-submersos é considerável. xistosidades, infiltrando-se nas fissuras. Mais problemática é a sua
acumulação na caixa de diáclase (visível na imagem da direita),
empurrando a rocha para diante e colocando em risco uma
das mais icónicas superfícies gravadas do Côa.
24... Este substrato encontra-se afetado por conjuntos regulares, Os efeitos da submersão na conservação da arte rupestre dependem
planares e subparalelos de fraturas, tendencialmente subverticais, de das características geológicas dos rochas-suporte, do seu contexto geo-
estruturas abertas de tipo Modo I (diáclases), com uma direção domi- morfológico e das representações nelas inscritas, bem como do tipo
nante de NNE--SSW (AUBRY, LUÍS e DIMUCCIO, 2017). Esta estru- de submersão a que são sujeitas (total, parcial ou sazonal). O impacto
tura condiciona a rede fluvial e as vertentes, que tendencialmente lhe das cheias nas rochas gravadas será bastante variável, dependendo dos
são paralelas. Desta forma, o processo de encaixamento dos rios rea- diferentes níveis da subida das águas (REIS, 2012: 18), tendo-se defi-
liza-se pela concomitante ação erosiva das águas e a das forças gravi- nido diferentes graus do impacto das cheias nos painéis com arte:
tacionais, que provocam o destacamento dos blocos rochosos pelo seu muito significativo (até seis metros do leito atual) e moderado (entre
ponto mais frágil no sentido da vertente, a diáclase, provocando o co- seis e 12 metros) (FERNANDES, 2014: 116). Independentemente dis-
nhecido processo de toppling (AUBRY, LUÍS e DIMUCCIO, 2017). O so, todas elas estão sujeitas às mesmas consequências erosivas.
avanço destes blocos pelo efeito da água e da gravidade leva à forma- Numa amostragem de 40 rochas, identificaram-se 13 periodicamente
ção, na sua retaguarda, de áreas vazias, conhecidas como caixas de submersas por cheia (FERNANDES, 2014: 116, tabela 6.13) 10, o que
diáclase. contrasta com o número total de 47 por nós apurado 11. Ainda assim,
Este processo natural será acelerado se introduzirmos um acréscimo este estudo quantificou em 20 % o
10
de sedimentação, que vai preencher este vazio e se vai progressivamen- peso das cheias sazonais no risco to- Nove delas classificadas
te infiltrando no interior das fissuras da estrutura rochosa (Fig. 15). tal dos agentes erosivos da arte do como estando em risco elevado
(FERNANDES, 2014: 116).
Para além desta ação física direta sobre as rochas suporte, estes sedi- Côa, considerando-o um fator fun- 11
O autor não se debruça
mentos, que pela sua natureza contêm uma grande quantidade de damental que potencia a progressão sobre os painéis parcial e
nutrientes, irão favorecer a colonização biológica por plantas superio- dos mecanismos de erosão física dos totalmente submersos pela
albufeira do Pocinho.
res, cujas raízes promovem o destacamento de placas e mesmo o des- afloramentos (FERNANDES, 2014:
locamento de blocos por ação mecânica (LLERA et al., 2008: 48, 54) 118). Contrariamente ao determi-
(Fig. 15). nado por RODRIGUES (2003: 428), a alternância de ciclos de molha-
Eis, pois, a consequência final da deposição de um impressionante gem e secagem foi considerada um fator principal na erosão motivada
acréscimo de sedimentação, por ação das cheias sazonais ocorridas pela submersão, embora não se apresentem argumentos a favor desta
desde 1997, no acelerar da erosão física, o mecanismo predominante afirmação (FERNANDES, 2014: 118). A provar o elevado impacto das
da erosão das rochas do Vale do Côa (RODRIGUES, 2003: 426). cheias na conservação da arte do Côa, nove dos dez painéis classifica-
Este efeito de deposição sedimentar sobre os afloramentos antropiza- dos no topo da escala de urgência de intervenção definida são perio-
dos do Vale do Côa foi já anteriormente identificado (FERNANDES, dicamente afetados por cheias sazonais (FERNANDES, 2014: 122).
2014: 25, 73). Contudo, o mesmo autor descartou o seu papel na con-
servação, afirmando que os depósitos deixados pelas cheias não causam 4.2. OUTRAS CONSEQUÊNCIAS
danos às gravuras, não sendo, por isso, necessário removê-los (FER-
NANDES, 2014: 78). Mais grave é a sugestão da utilização destes solos Para além das consequências trágicas ao nível da conservação da arte
como “camada protetora” do topo dos painéis (FERNANDES, 2014: 89, rupestre a longo termo acima descritas, mais imediatas são as conse-
fig. 5.26), uma proposta que vai contra os estudos realizados no Vale quências económicas derivadas do cancelamento de visitas guiadas.
do Côa. Se é verdade que se avançaram propostas de cobertura do to- Como já afirmado, quando as cheias não são muito pronunciadas, e
po dos afloramentos com camadas de solo, num dos casos com solos em casos de visitas previamente agendadas, realizam-se visitas ocasio-
locais com vegetação de raízes pouco profundas, esta proposta referia nais durante as fases de inundação às duas rochas superiores da Ca-
também solos inertizados, associados a planos de drenagem, por for- nada do Inferno (rochas 14 e 15). Trata-se, contudo, de casos exce-
ma a controlar e limitar a circulação de água (RAPOSO e PROENÇA, cionais, que são impossíveis de replicar nos núcleos da Penascosa e da
2008: 92). No entanto, a maioria dos investigadores propôs a limpeza Ribeira de Piscos. Assim, a existência de cheias implica geralmente o
de depósitos e eliminação de agentes biológicos de deterioração (CAR- encerramento dos núcleos à visita pública, prolongando-se no tempo.
RERA RAMÍREZ, 2008: 135) e a remoção de plantas superiores nas aber- Após o final da cheia, a vasa acumulada torna impossível a visibilida-
turas das diáclases (LLERA et al., 2008; RAPOSO e PROENÇA, 2008). de da arte, mas sobretudo “o piso em frente às rochas […] continua
Mais do que isso, relativamente ao trabalho de limpeza dos painéis muito escorregadio devido ao lodo que o rio Côa deixou depositado” (Ca-
pós-cheia, por motivos de visibilidade, foi proposta uma análise da si- nada do Inferno, 2016-01-26). Assim, o cancelamento das visitas
tuação nos três sítios visitados, ao nível das suas consequências nas su- prolonga-se até à secagem dos solos e à deslocação de uma equipa de
perfícies e movimentos potenciais dos blocos (MAGAR, 2008: 127). limpeza aos painéis gravados (Fig. 16).
27
ARQUEOLOGIA
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2017-11-23).
ABSTRACT
resultados dos trabalhos Presentation of the results of archaeological
works carried out in 2008 at the Roman villa of
arqueológicos Quinta das Covas, in Fundo de Vila (Tábua),
following the construction of the first stretch of
the alternative to the EN 337 road in Tábua.
Two surveys led to the identification of
structural remains and assets of Roman
chronology, probably related to the
pars rustica of a villa.
Raquel Caçote Raposo I
KEY WORDS: Preventive archaeology;
Roman times; Villae.
RÉSUMÉ
N
os meses de julho e setembro de 2008, dirigimos trabalhos arqueológicos no de la Sortie vers Tábua sur la Nationale 337.
arqueossítio Quinta das Covas, também denominado de Fundo de Vila (CNS Deux sondages ont permis d’identifier des
vestiges structurels et un butin de chronologie
2725). Realizada sob a forma de sondagens de diagnóstico manual, a interven- romaine, probablement liés à la
ção foi preconizada como medida de proteção patrimonial, na sequência da identificação pars rustica d’une villa.
de vestígios arqueológicos no âmbito da empreitada de construção da “EN 337 - Variante MOTS CLÉS: Archéologie préventive;
de Tábua (1.ª Fase)”, cujo dono de obra era a então EP - Estradas de Portugal, S.A. 1. Époque romaine; Villae.
Ali, foi identificada pela equipa de Arqueologia responsável em campo uma vasta área de
dispersão de materiais de cronologia romana, nas imediações do atrás designado arqueos-
sítio onde, há mais de vinte anos atrás, o proprietário dos terrenos havia recolhido, num
filão ao longo do terreno, grande quantidade de material numismático 2, enquanto pro-
cedia a trabalhos para plantação de vinha. Já em 1984, quando os Serviços de Arqueo-
logia da Zona Centro levaram a cabo trabalhos para
definir a área arqueológica a preservar e reunir uma 1
Os trabalhos de construção
série de dados e informações que possibilitassem uma estiveram a cargo da empresa
visão global dos materiais e estruturas ali existentes, se Rosas Construtores, S.A., sendo
verificava, por toda a área do terreno, a dispersão de a Archeocélis - Investigações
Arqueológicas, Lda executora da
diversos materiais romanos, entre os quais fragmentos componente arqueológica.
de cerâmica comum, material de construção (tegulae e 2
Segundo dados do Endovélico,
lateres, lisos e decorados), assim como mós. Segundo foram recolhidos quase cerca de I
Arqueóloga
7.000 exemplares. O tesouro (raquel.dc.raposo@gmail.pt).
informações do proprietário do terreno, registava-se,
monetário da Quinta das Covas
ainda, a existência de estruturas, compostas por mu- foi estudado, em 1984, pelo Por opção da autora, o texto segue as regras
ros, que não se encontravam, à altura, visíveis. Dr. Mário Castro Hipólito. do Acordo Ortográfico de 1990.
29
ARQUEOLOGIA
31
ARQUEOLOGIA
33
ARQUEOLOGIA
NOTAS FINAIS lo, foi possível constatar que a área de maior concentração de mate-
riais arqueológicos (maioritariamente de construção), se localizava na
No acompanhamento arqueológico da execução da EN 337 - Varian- envolvente Norte e Oeste da sondagem 1, sendo ainda de referir que,
te de Tábua (1.ª Fase), foram identificados vestígios arqueológicos na muito embora em menores quantidades, também foram observados
área da Rotunda 1 do Nó 1, numa área de dispersão de 2500 m², aos fragmentos de material romano a Sul.
quais se encontravam associados materiais de cronologia romana; e Apesar dos nossos esforços para que fosse continuada a escavação ar-
também na Ligação 2 da Rotunda 1 do Nó 1, os quais levaram à pre- queológica no sítio, a sua localização em área de terreno não expro-
conização de sondagens de avaliação. priada ditou o não avanço dos trabalhos arqueológicos, tendo sido
De forma a objetivar como pressupostos a identificação de possíveis con- preconizada como medida de minimização de impactes a sobre-eleva-
textos in situ e a sua interpretação, como, por exemplo, funcionalida- ção do aterro previsto para a zona, em 50 cm, de forma a promover a
de e a integração crono-cultural, foi preconizada a execução de uma preservação das estruturas postas a descoberto. Foi feita a selagem da
sondagem de avaliação de 10 x 10 m (sondagem 1), a qual, orientada a área de intervenção, com colocação de geotêxtil e posterior aterro.
Norte, se encontrava delimitada a Este pelo limite da área expropriada. Naquilo que se refere à segunda intervenção de avaliação realizada no
A intervenção arqueológica de avaliação, realizada nas imediações do âmbito da Empreitada – sondagem 2 –, a mesma foi preconizada na
já conhecido arqueossítio Quinta das Covas, também designado de sequência da identificação de uma estrutura, à qual se encontravam
Fundo de Vila (CNS 2725) – onde, já em 1984, enquanto procedia a associados materiais de cronologia romana, na zona da Ligação 2 da
trabalhos para plantação de vinha, o proprietário dos terrenos havia Rotunda 1, postos a descoberto aquando de trabalhos de desmatação
recolhido grande quantidade de material numismático num filão ao num dos cortes do talude.
longo do terreno –, permitiu pôr a descoberto estruturas, em alvena- A intervenção arqueológica de avalização, de 6 x 6 m, permitiu aferir
ria, sobre material pétreo da região (granito), as quais se apresentavam que a estrutura observada não se tratava de uma estrutura arqueoló-
em mau estado de conservação, dado o prévio uso agrícola dos terre- gica, mas sim de um muro de contenção de terras do caminho pré-
nos (plantação de vinha e oliveira). -existente. Tanto no decurso da intervenção, como pela leitura dos
O material arqueológico exumado, composto maioritariamente por resultados obtidos, foi possível atestar o intenso remeximento dos
cerâmica de construção (tegulae, imbrices e lateres), a par da parca ce- solos, quer por reformulação do caminho existente, quer pelo uso
râmica comum, doméstica e de armazenamento (por ex., fragmentos agrícola dos terrenos (plantação de olival e vinha).
de dolium) levam-nos a crer, tal como a loca-
lização física em que se inserem e sua inter-
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concentrados nas secções NW, NE e E. Colóquio Arqueológico de Viseu. Viseu: Governo Online. 16: 35-39. Em linha. Disponível em
Na secção Este, os vestígios postos a desco- Civil, pp. 305-314 (Ser e Estar, 2). https://issuu.com/almadan/docs/almadan_online_16.
berto encontram-se limitados por área de ter- ALARCÃO , Jorge de (1990) – “Portugal, das Origens PEREIRA, M. H. Rocha (2002) – Estudos da História
à Romanização”. In Nova História de Portugal. da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação Calouste
reno não expropriada (propriedade particu- Lisboa: Ed. Presença. Vol. 1. Gulbenkian. Vol. 2, “Roma”.
lar). Na secção Norte, especialmente nos qua- ALMAGRO-GORBEA, Martin e ALVAREZ MARTINEZ, PONTE, M. J. e PEREIRA, L. G. (2003) – “A Geologia
drantes NW e NE, os vestígios foram parcial- José Maria (1999) – Hispania. El Legado de Roma. da Região de S. Paio-Ázere (Tábua): observação
Mérida: Museu Nacional de Arte Romano. local dos efeitos da tectónica hercínica e ante-
mente postos a descoberto, encontrando-se o CURADO, F. P. (1979) – “Epigrafia das Beiras”. -hercínica”. In XXIII Curso de Actualização de
corte/perfil Norte balizado pelos limites de Conimbriga. Coimbra. 18: 139-148. Professores de Geociências. Coimbra: Associação
implantação da sondagem. D INIZ, A. (1995) – Espariz: subsídios para Portuguesa de Geólogos.
a sua história. Coja. VAZ, J. L. (1989) – “A Pervivência da Teonímia
A sondagem 1 foi coadjuvada pela desmata- DIREÇÃO-GERAL do Património Cultural – Portal Indígena na Toponímia Actual da Região de
ção, realizada de forma controlada e sob o do Arqueólogo. Pesquisa de Sítios Arqueológicos. Viseu”. In Actas do I Colóquio Arqueológico de Viseu.
acompanhamento de um dos arqueólogos res- Em linha. Disponível em http://arqueologia. Viseu: Governo Civil, pp. 325-330 (Ser e Estar, 2).
patrimoniocultural.pt/?sid=sitios.resultados&subsid= VAZ, J. L. (1997) – A Civitas de Viseu: espaço e
ponsáveis; após essa ação, que permitiu a 56452 (consultado em 2017-04-10). sociedade. Coimbra: CCRC (História Regional e
observação da totalidade da superfície do so- FABIÃO, Carlos (1993) – “O Passado Proto-Histórico Local, 2).
ABSTRACT
E
m 1923, a área do pequeno outeiro conhecido por Alto da Casa Branca, a norte KEY WORDS: Emergency archaeology;
Roman times; Suevo-Visigothic Times; Iron Age;
do Pavilhão de Exposições, na Tapada da Ajuda, foi delimitada para criar uma Contemporary age; Necropolis.
reserva botânica natural, de grande valor patrimonial. Em 1951, decidiu o então
RÉSUMÉ
Conselho Escolar do Instituto Superior de Agronomia, atribuir àquela reserva o nome de
D. António Xavier Pereira Coutinho, para comemorar os cem anos do nascimento da- Présentation d’une nouvelle lecture des matériaux
archéologiques recueillis en 1982 sur le site du Alto da
quele notável botânico. Casa Branca (Tapada da Ajuda, Lisbonne) dans le cadre
Em Abril de 1982, quando se procedia a obras de desaterro para a ampliação do sector de travaux d’extension des installations de
l’Institut Supérieur d’Agronomie.
de Pecuária do Instituto Superior de Agronomia, no lado sul da referida reserva botânica On a identifié deux sépultures qui intègreraient une
natural, foram identificadas duas sepulturas no talude do terreno (Fig. 1). Contactado o nécropole tardo-romaine/ visigothe. L’analyse du butin
réalisée aujourd’hui prouve que, outre cette période, il y a sur
Instituto Português do Património Cultural (IPPC), foi destacado um dos signatários (C.A.) le site des vestiges d’une occupation humaine depuis la
para escavar os vestígios arqueológicos então descobertos. Durante a escavação, que de- Préhistoire, avec d’autres occupations notables à l’Âge du Fer
et à l’Epoque Contemporaine, à partir de la
correu entre 23 de Junho e 6 de Julho de 1982, observou-se que, entre as camadas de ter- seconde moitié du XIXème siècle.
I
CAL - Centro de Arqueologia de Lisboa, Departamento
de Património Cultural / Direção Municipal de Cultura /
/ Câmara Municipal de Lisboa.
II
Associação Olisipo Forum (clementinoamaro@gmail.com).
II
Arqueóloga.
Por opção dos autores, o texto não segue as regras
do Acordo Ortográfico de 1990.
35
ARQUEOLOGIA
ra superiores às sepulturas, existiam diversos fragmentos de cerâmica negros, moscovite, quartzos leitosos e hialinos. A n.º 2 é uma pasta
de diferentes períodos. calcária, com moscovite e quartzo leitoso.
Já em 1879, Possidónio da Silva tinha dado conta do aparecimento Os potes apresentam os característicos lábios em voluta que perdu-
de uma sepultura de caixa delimitada por lajes naquela área da Ta- ram por todo o período da Idade do Ferro. O exemplar n.º 7, reco-
pada da Ajuda, facto que publicou no Boletim da Real Associação de lhido no nível superior ao da sepultura 2, apresenta a parte interna do
Architectura e Archeologia. bordo brunida a torno.
Uma nova leitura feita aos materiais recolhidos em 1982,permite-nos A asa vertical de secção circular da tigela arrancava do bordo, caracte-
saber que o sítio arqueológico apresenta vestígios de ocupação huma- rística que Massimo Botto remonta à cultura da I Idade do Ferro da
na desde a Pré-História, sendo as ocupações mais relevantes da Idade Andaluzia, datando os exemplares conhecidos dos séculos VII-VI a.C.
do Ferro, na necrópole tardo-romana / visigótica e na Época Con- (BOTTO, 2011: 44-45, figs. 32 a 34). Contudo, Elisa Sousa coloca en-
temporânea, a partir da segunda metade do século XIX. tre os séculos V-IV a.C. o mesmo tipo de asa, mas aplicado em exem-
plares de tigelas carenadas recolhidos na rua dos Correeiros, em Lis-
boa (SOUSA, 2017: 96, fig. 4).
A ESCAVAÇÃO
PERÍODO ROMANO E ANTIGUIDADE TARDIA
Sobre as duas sepulturas que eram visíveis, encontrava-se um aterro
de 1,9 metros de altura, caracterizado essencialmente pela presença de Entre os fragmentos de cerâmica recolhidos por cima das sepulturas,
matéria orgânica e desperdícios. A área foi utilizada durante muito temos dois de cerâmica romana, um de um bordo de panela em cerâ-
tempo como lixeira, destacando-se, durante a escavação do sítio, a pre- mica comum (Fig. 2, n.º 14), e outro de um prato / tampa de cozinha
sença de fragmentos de faianças, vidros, cerâmica fosca e vidrada, dos africana (Fig. 2, n.º 15), do tipo Hayes 196, produzido durante o
séculos XIX e XX, bem como restos osteológicos e malacológicos. século II d.C.
Até à profundidade de 1,5 m, foram ainda recolhidos pequenos frag- Já dos inícios do período islâmico, recolheu-se um pequeno fragmen-
mentos de cerâmica pré-histórica, núcleos e lascas de sílex, cerâmicas to de bordo e colo de uma panela ou pote, levantado à roda e de coze-
da Idade do Ferro e romanas. dura redutora (Fig. 2, n.º 16). Existem paralelos conhecidos no sítio
Este espólio não tinha qualquer conexão com as sepulturas abertas no do Espigão das Ruivas, Cascais, para os séculos VIII e X (CARDOSO e
calcário margoso (a cerca de 0,4 m mais fundas), e resultava de revol- BATALHA, no prelo).
vimentos e de despejo de terras decorrentes das construções efectua-
das na área. Finalmente, refira-se a presença de um enterramento de A NECRÓPOLE TARDO - ROMANA / VISIGODA
uma cabra, contribuindo este para acentuar o revolvimento do aterro
sobranceiro às sepulturas. A primeira notícia sobre a identificação de uma sepultura na Tapada
da Ajuda, no sítio da Casa Branca, foi dada por Possidónio da Silva,
IDADE DO FERRO em 1879. A identificação daquela sepultura deveu-se então a traba-
lhos realizados para abertura de uma alameda no sítio denominado
Do período da Idade do Ferro, recolheram-se alguns fragmentos de “Alto da Casa Branca”, que ligava o edifício do observatório Astronó-
ânforas (Fig. 2, n.os 1-4 e 10), potes (Fig. 2, n.os 6-9), raras cerâmicas mico de Lisboa, inaugurado dois anos antes, para o lado norte da Ta-
cinzentas (Fig. 2, n.º 11), uma asa vertical de tijela (Fig. 2, n.º 5) e pada da Ajuda, o que certamente corresponderá à mesma zona das
dois fundos de cerâmica comum (Fig. 2, n.os 12 e 13). outras sepulturas identificadas no Sector da Pecuária, por onde passa
As ânforas são do tipo 5 do Estuário do Tejo, datáveis dos séculos IV a referida via.
a III a.C. (SOUSA e PIMENTA, 2014: 308 e 309), equivalente ao do ti- Tratava-se de uma sepultura constituída por oito pedras laterais (três
po Pellicer B/C. Temos paralelos para este tipo de ânfora em Freiria, de cada lado, uma à cabeceira e outra aos pés), além de outras três ser-
em estratos dos séculos III-II a.C. (CARDOSO e ENCARNACÃO, 2013, vindo de cobertura. No interior, jazia um esqueleto completo de mu-
fig. 56, n.º 18), e no Espigão das Ruivas (ENCARNAÇÃO e CARDOSO, lher jovem (facto observável através da análise dentária), que apresen-
2017: 957, fig. 9, n.º 10). Os exemplares da tapada da Ajuda apre- tava uma ponta de flecha de sílex ao lado do crânio. A sepultura esta-
sentam pastas duras, de cores variáveis, 2.5YR 5/6 (segundo a Munsell va orientada Este-Oeste, tinha de comprimento 1,64 m e de largura
Soil Color Charts) (n.os 1 e 3); 10R5/8 (n.º 2); 10R5/6 (n.º 4); 2.5YR6/6 cerca de 0,45 m, sendo mais estreita no lado da cabeça (SILVA, 1879).
(n.º 10), sendo estas de grão fino ou médio, com elementos-não-plás- Pouco tempo depois, Francisco de Paula e Oliveira (1888-1892), no
ticos (e.n.p.) constituídos por máficos, óxidos de ferro vermelhos e seu trabalho sobre as necrópoles tardo-romanas de Cascais, ...38
5
6
12
14
13 15
0 5 cm
16
37
ARQUEOLOGIA
Calcário margoso
Sepultura
1 1 Tijoleira
Pedra
2 2
FIG. 7 - Moeda de
Constantino I.
39
ARQUEOLOGIA
CRONOLOGIA
DA NECRÓPOLE
O sítio do Alto da Casa Branca, na Tapada AMARO, Clementino (1985) – “Necrópole Romana JALHAY, Eugénio; PAÇO, Afonso do e RIBEIRO,
da Ajuda, revelou-se, com a escavação ar- da Tapada da Ajuda”. Informação Arqueológica. Leonel (1944) – “Estação Pré-Histórica de Montes
Lisboa. 5: 84-86. Claros Monsanto”. Lisboa Revista Municipal.
queológica de 1982, como sendo um local BOTTO, Massimo (2011) – “Interscambi e Lisboa. 20-21: 17-28.
que teve diversas ocupações humanas. interazioni culturali fra Sardegna e Penisola Iberica OLIVEIRA, Francisco de Paula e (1888-1892) –
Embora os materiais da Pré-História recente durante i secoli iniziali del I millennio a.C.”. “Antiquités Préhistoriques et Romaines des
In MARTÍ-AGUILAR, Manuel Álvarez (ed.). Environs de Cascaes”. Communicações da
sejam escassos, ficou comprovada a sua pre-
Fenicios en Tartesos: nuevas perspectivas. Oxford, Commissão dos Trabalhos Geológicos. Lisboa.
sença, sendo notório que a maior importân- pp. 33-67 (BAR - International Series, 2245). Tomo II, fascículo I, pp. 85-105.
cia foi durante a II Idade do Ferro, facto con- CARDOSO, Guilherme e BATALHA, Luísa (no prelo) – SANZ MINGUEZ, Carlos e LOPEZ RODRIGUEZ, Jose
firmado pelas cerâmicas ali recolhidas, que “As Cerâmicas Altomedievais das Villae do Ager Ramon (1988) – “Hallazgos Romanos y Visigodos
Ocidental de Olisipo, Lusitânia”. In Congreso en Padilla de Duero (Valladolid)”. Archivos Leoneses.
demonstram que houve uma ocupação efec- Internacional de Cerámica Altomedieval en Hispania Revista de Estudios y Documentación de los Reinos
tiva do sítio, provavelmente respeitante a um y su Entorno (S. V-VIII d. C.). Zamora. Hispano-Occidentales. Leon. 83-84: 291-312.
casal. Só futuras escavações arqueológicas po- CARDOSO, Guilherme e ENCARNAÇÃO, José d’ (2013) – SILVA, J. Possidónio da (1879) – “Túmulo da Idade da
“O Povoamento Pré-Romano de Freiria, Cascais”. Pedra”. Boletim da Real Associação de Architectura e
derão esclarecer.
CIRA Arqueológica. Vila Franca de Xira. 2: 133-181. Archeologia da Real Associação dos Archeologos e
Durante o século IV d.C., a encosta sul do CARDOSO, João Muralha (1988) – “Carta Architectos Portugueses. Lisboa. 12: 177.
cabeço do Alto da Casa Branca passou a ser Arqueológica do Concelho de Lisboa. II”. SOUSA, Elisa (2017) – “Algumas Reflexões Sobre a
utilizada como necrópole de inumação que se Lisboa Revista Municipal. Lisboa. 24: 3-25. Fase Tardia da Idade do Ferro no Ocidente
DOHIJO, Eusebio (2014) – Catálogo y Estudio Atlântico”. Ophiussa. Lisboa. 1: 91-104.
prolongou pelos séculos seguintes. A sua área de los Materiales de Época Visigoda Depositados en SOUSA, Elisa e PIMENTA, João (2014) – “A Produção
era muito superior, desde o caminho que pas- el Museo Numantino. Zaragoza: Libros Pórtico. de Ânforas no Estuário do Tejo Durante a Idade do
sa a nascente das duas sepulturas escavadas em ENCARNAÇÃO, José d’ e CARDOSO, Guilherme (2017) – Ferro”. In MORAIS, R.; FERNÁNDEZ, A. e SOUSA, M.
“O Sítio Arqueológico do Espigão das Ruivas J. (eds.). As Produções Cerâmicas de Imitação na
1982 e a zona a 30 metros a poente destas.
(Cascais)”. In ARNAUD, José Morais e MARTINS, Hispania. Porto, pp. 303-315 (Monografias Ex
Trata-se, possivelmente, da necrópole de algu- Andrea (coord.). Arqueologia em Portugal / 2017: Officina Hispana, 2).
ma villa existente nas proximidades. estado da questão. Lisboa, pp. 955-966.
RÉSUMÉ
O
presente trabalho integra-se no nosso Projecto de Investigação Plurianual em MOTS CLÉS: Époque contemporaine;
Arqueologia (PIPA), denominado FORCAL, a decorrer, dedicado à identifica- Structures de combustion; Chaux.
ção, registo, inventariação e estudo dos fornos de cal artesanais em Portugal,
nas épocas moderna e contemporânea 1.
1
Pretendemos aqui registar, não só os elementos estru- O desenvolvimento
turais identificados, mas também algumas das memó- deste projecto pode ser
acompanhado em
rias orais recolhidas junto daqueles que viveram, bem https://www.facebook.com/groups/
de perto, os tempos áureos da produção de cal. 715112135278679/.
No presente, é bem conhecida a utilização da cal em
argamassas, rebocos e estuques, na caiação de paredes e muros, no branqueamento de fi-
bras têxteis e da pasta de papel, na agricultura, nas estações de tratamento de águas resi-
duais e na indústria agroalimentar (VELHO, 2005: 125), entre muitas outras utilizações.
Contudo, de tempos bem mais recuados, existem inúmeras evidências do uso da cal: refe-
rindo apenas dois exemplos, salientamos Çatal Hüyuk, na actual Turquia, onde foram I
Arqueólogo. Investigador CITCEM / FLUP - Grupo
encontrados vestígios dessa utilização no revestimento de pilares de habitações e pisos, “Memória, Património e Construção de Identidades”
(faricardos@gmail.com).
datados de 6000 a.C. (GARATE ROJAS, 2002: 75-88), e o revestimento da pirâmide de
Keops, em cuja composição está presente a cal, que foi recentemente datado de 2600 a.C. Por opção do autor, o texto não segue as regras
(MUÑOZ JIMÉNEZ e SCHNELL QUIERTANT, 2007: 78). do Acordo Ortográfico de 1990.
41
ARQUEOLOGIA
43
ARQUEOLOGIA
3m
0
FOTOS E DESENHO: Fernando Ricardo Silva.
45
ARQUEOLOGIA
47
ARQUEOLOGIA
4. OS FORNOS DE CAL
DA T ROFA E P ÓVOA DE V ARZIM
Tendo em conta a necessidade de rochas carbonatadas, sobretudo cal- via marítima ou fluvial e, mais recentemente, por comboio. Era este
cários, como matéria-prima para o fabrico de cal, os fornos para a o caso dos fornos aqui tratados, em cuja produção era utilizado o cal-
produzir encontram-se, geralmente, perto de afloramentos daquele cário vindo da Figueira da Foz.
tipo de rocha.
Embora o mesmo possa ter ocorrido em centúrias mais recuadas, no Curiosamente, se no final do século XIX e princípio do século XX, o
século XIX, para suprir as necessidades de cal para a construção em comboio, enquanto meio de transporte, contribuiu para o surgimen-
diferentes regiões do país, foram construídos fornos de cal em locais to de fornos de cal em algumas regiões do país, facilitou também a
onde não existe calcário, como é o caso presente de Vila do Conde, concorrência imposta pelos grandes produtores de cal da região cen-
Póvoa de Varzim e Trofa, bem como na região entre os rios Cávado tro que, tirando partido do novo meio de transporte, conseguiam dis-
e Minho, áreas geográficas onde é ainda possível encontrar estruturas ponibilizar a cal a preços inferiores aos praticados pelos pequenos
deste tipo, ou apenas referências e vestígios que confirmam a sua produtores locais, contribuindo assim para o encerramento da activi-
anterior existência. Não existindo localmente a necessária matéria- dade destes, provocado também, e sobretudo, pela crescente utiliza-
prima, a “pedra para cal” era para ali transportada, inicialmente, por ção do cimento enquanto ligante.
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FONTES IMPRESSAS
BIBLIOGRAFIA
distribuição no circuito
FERREIRA, José (2016) – Páginas da História de Bagunte. comercial e venda directa
Bagunte: edição do autor. Vol. II. (portes de correio gratuitos *)
GARATE ROJAS, Ignacio (2002) – Artes de la Cal.
Madrid: Editorial Munilla-Leria. * no território nacional continental
MUÑOZ JIMÉNEZ, José Miguel e SCHNELL QUIERTANT,
Pablo (2007) – Hornos de Cal en Vegas de Matute
Pedidos:
(Segovia). El conjunto del Zancao, siglos XVI-XVIII. Centro de Arqueologia de Almada
Salamanca: Junta de Castilla y Léon. Tel. / Telm.: 212 766 975 / 967 354 861
SILVA, Fernando Ricardo (2015) – Os Fornos de Cal E-mail: c.arqueo.alm@gmail.com
Artesanais Entre os Rios Minho e Lima nas Épocas
Moderna e Contemporânea. Porto: Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Tese de mestrado em
Arqueologia.
VELHO, José Lopes (2005) – Mineralogia Industrial: outra revista...
princípios e aplicações. Lisboa: Lidel.
...o mesmo cuidado editorial
edição
[http://www.almadan.publ.pt]
49
ESTUDOS
RESUMO
O
Il prête également attention à l’interprétation d’autres estudo da rede viária romana nas imediações de Vimieiro, no concelho de
chercheurs, pour conclure en soutenant la thèse de l’existence Arraiolos, tem-se revelado de grande complexidade. Primeiro, pela falta de in-
d’un axe routier important dans les environs de Vimieiro.
dicadores precisos que demonstrem, com maior rigor, a efetiva passagem de
MOTS CLÉS: Époque romaine; Voies; um eixo viário pelo território. Depois, pelo grande número de interpretações e perspeti-
Bornes milliaires; Peuplement.
vas a que tem sido sujeita. Mario Saa, após delimitar um eixo que passaria nas imediações
da atual vila de Vimieiro, descreve “[…] um caminho da mala-posta […]” (SAA, 1964: 94).
Neste caso, poderemos deduzir que a via por ele descrita passaria na herdade das Postas,
avaliando pelo topónimo e pela possibilidade de ter evoluído etimologicamente. Foi nes-
ta mesma herdade que Rui Lobo identificou alguns troços calcetados (LOBO, 2007: 39)
que corroboram, efetivamente, a passagem de uma via na região.
Todavia, Jorge de Alarcão, ao corrigir alguns pontos de pas-
sagem propostos por Mario Saa, levantou a hipótese de existir 1
A toponímia “Freixo”,
uma via que atravessasse o território a Norte de Vimieiro. Nes- que poderá ter evoluído,
te caso, o autor relaciona os dados existentes com a possível etimologicamente, de Fraxinum,
I
Mestre em Arqueologia e Ambiente pela é bastante comum no Alentejo
Universidade de Évora. Investigador Colaborador do
passagem da via XV do Itinerário de Antonino, situando a man- devido à grande quantidade
CHAIA - Centro de História de Arte e Investigação Artística sio de Fraxinum nas proximidades da vila alentejana, com os de freixos que crescem nas
(rmcb1992@gmail.com). margens das inúmeras ribeiras.
devidos cuidados que é necessário ter nesses casos 1 (ALARCÃO,
Jorge de Alarcão, aliás,
Por opção do autor, o texto segue as regras
2006: 240). Relembro a proximidade à ponte sobre a ribeira faz referência a este facto
do Acordo Ortográfico de 1990. do Freixo que, apesar de não corresponder aos cânones cons- (ALARCÃO, 2006: 240).
51
ESTUDOS
mal” (MANTAS, 2012: 142). Segundo José d’Encarnação, estes monu- destas estações destinadas ao repouso dos viajantes: a realidade ar-
mentos de forma semicilíndrica são constituídos, epigraficamente, queológica, marcada pela ausência de provas epigráficas, não permite
pelo nome do imperador em cujo reinado a via foi concebida ou me- categorizar os sítios com o devido rigor, sendo, por vezes, confundi-
lhorada (ENCARNAÇÃO, 1995-1996: 39), marcando, então, uma dire- dos com outro tipo de estabelecimento (PANAITE, 2004: 188; ESPI-
triz fortemente civilizacional, representando o grande poder unifica- NOSA CRIADO, 2011-2012: 179-180). As mansiones funcionariam co-
dor de Roma. mo estabelecimentos públicos, dotadas de um certo nível de centrali-
Através das distâncias gravadas, cuja unidade de medida seria a milha dade que fomentava a especialização e diversos sentidos, fossem eles
romana, tem sido possível estabelecer a situação de diversos locais, viários, comerciais ou até sagrados (CARNEIRO, 2014: 143). Seriam
sobretudo estações viárias 5, ainda que este estudo se apresente com espaços multifacetados com estábulos, cavalariças, armazéns, oficinas
grandes debilidades, particularmente se atendermos ao caso da antiga e cozinhas, marcados pela sofisticação de zonas termais cuja comple-
província da Lusitania: foram apenas identificadas 27 estações num xidade variaria consoante a importância da via (MANTAS, 2014: 245).
total de 56 (MANTAS, 2014: 233). Além disso, há equívocos que se É possível que este papel fosse, por vezes, desempenhado pelas villae,
realçam e que se devem ao excesso de “cópias” a que o Itinerário de An- em determinadas ocasiões: nesta realidade, os funcionários e os sola-
tonino tem sido sujeito, ou à própria omissão de locais que não permi- dos que viajavam por conta do Estado beneficiariam de alojamento
tem estabelecer com rigor diversos troços viários. No primeiro caso, gratuito – poderemos incluir os courriers, que Heródoto menciona
podemos exemplificar com a imprecisão de Mario Saa que, em pleno (HERÓDOTO, VIII, 98), os tabellarii republicanos ou os speculatores
território algarvio, situou Baesuris (Castro Marim) em Salir, no con- imperiais (SMITH, WAYTE e MERINDIN, 1891: 121), principalmente.
celho de Loulé, Balsa (Torre d’Aires, Luz de Tavira) em Silves e Osso- Todavia, em outros casos os viajantes poderiam albergar-se em insta-
noba (Faro) no sítio de Boca do Rio, no concelho de Lagos (CAR- lações privadas de menor envergadura, como as tabernae, normal-
NEIRO, 2008: 83). Quanto à omis- mente construídas sob dependência das villae (MANTAS, 2014: 250).
são de pontos de passagem, pode- 5
Remeto para ROLDÁN
Aliás, Varrão confirma essa realidade quando descreve que, se existir
mos aludir a um exemplo bastante HERVÁS, 1975: 84, em que o um lugar apropriado em um fundus, na proximidade de uma via, de-
próximo, a via XII deste itinerário: autor descreve a mansio de ve ser aproveitado para a construção de um albergue (VARRÃO, R. R.,
Miaccum, ou para ANTÓNIO e
entre Ebora Liberalitas Iulia e Eme- ENCARNAÇÃO, 2009, na
I, II, XXIII; MANTAS, 2014: 250). O facto de estas estações exercerem
rita Augusta terão sido omissas di- identificação de Abelterium. funções em meio rural 7 não implica que, com o passar do tempo, não
6
versas estações, o que tem dificulta- Por se tratar de um tema adquiram outra dimensão, tornando-
7
do a localização de determinados sí- bastante frágil e de diversas -se em aglomerados populacionais, Neste caso, os
6
interpretações, remeto para estabelecimentos
tios, como é o caso de Dipo , e le- CEAN-BERMUDEZ, 1832: 289; ou que não desempenhem funções poderiam contar com a
vantado a hipótese desta via ter que ALARCÃO, 2001; CARNEIRO, em meio urbano, como sucedeu em utilização do acusativo
ser lida “ao contrário”, ou seja de 2008: 54; ALMEIDA et al., 2011: Scallabis (MANTAS, 2014: 239). precedido de Ad, como
194; MANTAS, 2014: 246; Ad Atrum Flumen,
Mérida em direção a Évora (ALMEI- MATALOTO, WILLIAMS e As mansiones distinguiam-se, assim, Ad Septem Aras
DA et al., 2011: 194). ROQUE, 2014: 6. das mutationes através da sua arqui- ou Ad Lipos.
tetura e função: as primeiras estariam
preparadas para longas estadias, ao
3. AS ESTAÇÕES VIÁRIAS E A SUA FUNÇÃO passo que as segundas serviriam para paragens momentâneas e trocas
de animais, sendo mais modestas e situadas a uma distância coerente
As diversas estações viárias funcionaram como importantes alicerces entre mansiones, o que inviabiliza, inúmeras vezes, a sua identificação
na manutenção dos eixos e no apoio ao viajante. Apesar dos estudos no terreno. Além disso, as mutationes seriam mais numerosas, com um
se circunscreverem, sobretudo, a dois tipos de estabelecimentos, as reduzido número de pessoas, tendo, em contrapartida, o essencial pa-
mansiones e as mutationes, podemos enumerar outros exemplos de pe- ra abrigar os viajantes e os animais (porventura, cozinha e termas, se-
quena envergadura, relacionados, sobretudo, com vias vicinais, como gundo MANTAS, 2014: 249, embora menos complexas). A distância
é o caso das tabernae, couponae, hospitia e deversoria (RAMOS e SIMÃO, entre mansiones corresponderia a um dia de caminhada (KOLB, 2013).
2012: 70). Em outro contexto surgem as stationes, dotadas de contro- Assim, e como já havia proposto atempadamente (BARBOSA, 2016:
lo policial, que funcionariam como postos de controlo ou estações 68-69), acho adequado a divisão por categorias dos casos atrás anali-
aduaneiras (MANTAS, 2014: 244). Como tal, as mansiones têm mere- sados, tal como Adriana Panaite propôs (PANAITE, 2004: 186): neste
cido destaque no estudo de caso. Quer pelo seu papel primário, quer caso teríamos, num primeiro patamar, as mansiones de caráter urba-
pela sua menção nos diversos itinerários clássicos. Todavia, os inves- no, sucedidas pelos estabelecimentos rurais, estalagens desenvolvidas
tigadores, neste contexto, têm sentido dificuldade na identificação ao longo da rede viária, pelas mutationes e, por fim, pelos sítios de me-
53
ESTUDOS
Via XII do Itinerário de Antonino (proposta de CARNEIRO, 2008) FIG. 1 - Mapa da rede viária em análise
Proposta de Jorge de Alarcão (mapa-base retirado de CARNEIRO, 2008).
As propostas foram feitas, pelo autor,
Proposta de André Carneiro
a partir das informações disponíveis,
Proposta de Pedro Soutinho através do programa Quantum GIS.
Possível eixo de ligação entre a Estrada do Sorraia e a via XII
Possível via de ligação entre a Estrada do Sorraia
e a via de ligação entre Ebora e Sellium
Possível eixo de ligação a Santana do Campo (Calantica ?)
ceiro em Estremoz, podendo este corresponder a outra via, como 5. DOS TROÇOS CALCETADOS DAS POSTAS
atrás mencionei –, é possível que o eixo desempenhasse funções em PELA PONTE DA FARGELINHA: REFLEXÃO SOBRE
domínios secundários. Tal como Vasco MANTAS (2012: 148-149) AS TRAJETÓRIAS
referiu, os grandes itinerários são aqueles que mereceriam a atenção
do poder central, delegando, para as cidades, os trabalhos relativos à Apesar de se tratar de um tema bastante frágil, com grandes debilida-
rede secundária, não sendo de admirar, nestes casos, a ausência de des informativas, é necessário lançar um olhar geral sobre a realidade
miliários 9, tal como parece aconte- que, até agora, tem sido proposta. Se nas imediações de Vimieiro se
9
cer com a “Estrada do Sorraia”. Os ca- Neste caso, localizou um nó viário, como André CARNEIRO (2008: 115) ponderou
minhos secundários serviriam, essen- refere Vasco Gil MANTAS e propôs, é possível que daqui tenha partido uma via vicinal em dire-
(2012: 148) que os miliários
cialmente, para comunicação entre concentravam-se nas ção a Sudoeste. Desta feita, Pedro Soutinho admite, ainda que hipo-
as civitates e os diferentes pontos do grandes vias de comunicação teticamente, a passagem de uma via de ligação entre as antigas cida-
seu ager (ÁLVAREZ MARTÍNEZ e NO- que interessavam ao des clássicas de Idanha-a-Velha e Évora, pelo território em análise. Se-
poder central.
GALES BASARRATE, 2002: 263), ou gundo as informações, o eixo viário passaria pelo Crato, Alter do Chão,
para ligação entre vias imperiais, tal Fronteira e Cano, antes de dar entrada por Venda do Duque, sede da
como parece ser o caso. Para além disso, a análise do povoamento ru- antiga estação ferroviária de Vimieiro, cujo troço se pretende analisar
ral não permite demonstrar o quão complexo este seria, nesta região, até à cidade de Évora. Em algum momento, o eixo deveria de entron-
nem o quão evoluído, não apresentando, na mesma medida, elemen- car com a “Estrada do Sorraia”, seguindo, posteriormente, pela herda-
tos fundamentais que corroborem a passagem de um eixo imperial de das Postas, onde Rui Lobo identificou vários troços calcetados de
numa paisagem que se revela árida e despovoada. Afinal, as estradas época romana (LOBO, 2007: 39; CARNEIRO, 2008: 116) (Fig. 2). Se-
constituíram um importante alicerce paisagístico, ajudando a mode- guiria em direção a Venda do Duque, atravessando, a posteriori, a ri-
lar um território rural afeiçoado a uma sociedade complexa e estrati- beira pela ponte da Fargelinha (Fig. 3), esta sim de reconhecível cons-
ficada com um ordenamento específico. trução clássica. Todavia, durante o estudo do povoamento rural ro-
55
ESTUDOS
57
ESTUDOS
FIGS. 12 - Alinhamento
de rochas no sítio de Chaínha,
com silhar em primeiro plano.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das fragilidades em admitir, com rigor, a passagem de uma via sar de improvável, tenta correlacionar um interior com um sítio que,
principal pela região – refiro-me à “Estrada do Sorraia” – é, contudo, certamente, teria influência no território – veja-se o caso de Santana
possível corroborar a passagem de um eixo nas imediações de Vimiei- do Campo e de Carneus Calanticensis, assim como a ara votiva iden-
ro. Os indicadores identificados – dois marcos miliários, duas pontes tificada em Santa Justa 12, dedicada à mesma divindade. Esta aldeia da
(uma delas que, ainda assim, se submete a inúmeras dúvidas quanto freguesia de Arraiolos tem sido, frequentemente, associada ao vicus de
à sua funcionalidade, ou mesmo existência, em época clássica) e al- Calantica e à divindade protetora dos rebanhos, apesar de não existi-
guns troços calcetados –, sugerem a passagem de um eixo de relevada rem provas, para além de um templo de grande monumentalidade,
importância. É bastante provável que estejamos perante um troço da que permitam situar um aglomerado populacional no local 13. Toda-
via descrita por Mario Saa e, posteriormente, por André Carneiro que, via, será mais fiável atender à hipótese
12
ao invés do que Jorge de Alarcão propôs, passaria a Sul da vila de Vi- de seguir uma via em direção à aldeia de Ver IRCP, n.º 412.
mieiro, estendendo-se desde Pavia, pela ribeira do Freixo, passando Igrejinha, em vez de infletir em direção a Novas investigações têm
ligado o monumento a Santa
nas imediações de Sant’Ana, seguindo pela ponte da Fargelinha, Ven- Arraiolos, que, após transpor a atual al- Justa do Couço (para tal,
da do Duque e herdade das Postas, antes de percorrer outros trilhos deia, encontraria uma zona plenamente ver MANTAS, 2006: 4-11),
até Estremoz, onde, certamente, entroncava com a via XII do Itine- romanizada (BARBOSA, 2016), cujos in- apesar de continuar a seguir
a hipótese de Arraiolos,
rário de Antonino. dicadores atestam a passagem de um ei- pela ocorrência de outras
Ao admitir esta proposta, resta, apenas, saber qual a importância e xo pelo terreno – vejamos o caso dos mi- dedicações à mesma
probabilidade do trajeto, proposto por Jorge de Alarcão, correspon- liários das 7 Chaminés, ou até da lápide divindade no território.
13
Para este caso,
der àquele que a hoje denominada Estrada das Tesas demarca, a Nor- funerária da Chaínha. Todavia, este mes- levantei outra hipótese
te da vila alentejana. Apesar de não existirem indicadores e da paisa- mo eixo entroncaria com a via de liga- (BARBOSA, 2016: 92).
gem se revelar bastante despovoada, com necessidade de se recorrer a ção entre Ebora e Sellium, não sendo de
análises superficiais mais detalhadas, é deveras tentador propor um ligação direta à civitas.
eixo que, em determinado momento, bifurcaria entre Vimieiro e Es- Apesar das propostas serem hipotéticas (para uma visão das propos-
tremoz. Se for o caso, estaremos perante um eixo vicinal que, após a tas, mapeadas, ver a Fig. 1), e em nenhum caso totalmente fiáveis, é
bifurcação, seguiria em direção a Sudoeste, ou seja, a Évora. Assim, a necessário investigar com mais rigor os traçados que foram analisa-
proposta de Pedro Soutinho, ainda que seja de difícil admissão, é bas- dos. Estamos perante um território que tem vivido à margem do de-
tante prometedora. Afinal, seria necessário estabelecer contato entre senvolvimento da investigação arqueológica, e que necessita de novos
um interior que, após as últimas investigações, se tem revelado de contributos para a perceção do povoamento rural romano na região,
grande potencial, com as grandes vias de comunicação. Assim, levan- em geral e, consequentemente, da rede viária, em particular. Assim,
to a hipótese deste eixo secundário servir como elo de ligação entre a novas informações foram lançadas à luz da atual investigação, deixan-
“Estrada do Sorraia” e a via XII do itinerário clássico. do em aberto a possibilidade de estudar mais pormenorizadamente as
As outras propostas investigadas durante o presente estudo, apesar de vias de comunicação terrestre num território que é apresentado com
pecarem por falta de informações, dentro da investigação da rede viá- grandes debilidades epistemológicas e que peca por falta de novas
ria, apresentam-se devido aos vestígios identificados. A primeira, ape- contribuições.
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apresentada à Universidade de Évora. em 2017-11-12). de Évora Durante a Antiguidade Tardia. Dissertação
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59
ESTUDOS
RESUMO
F
probably from a later phase, between the mid-14th oi longo o caminho entre as mais antigas gemas gravadas que conhecemos (de
and the mid-15th centuries.
5500-4900 a.C., da estação calcolítica de Tepe Gawra, na antiga Mesopotâmia)
KEY WORDS: Glyptic; Engraved gems; e as da época renascentista. Nesta longa caminhada, abundaram selos persas e
Liturgical objects; Middle Ages (Christian).
mesopotâmicos (IV milénio a.C.); escaravelhos egípcios; gemas cretenses, gregas (de
influência Oriental e dos períodos Geométrico, Arcaico e Clássico), etruscas, helenísticas,
RÉSUMÉ
romanas e medievais.
Après une succincte explication sur l’origine et l’évolution Frescos cretenses do II milénio a.C. permitem-nos deduzir que as gemas deste período
de la Glyptique jusqu’à l’époque de la Renaissance, l’auteure
présente l’étude de six camées en coquillage et une ciselure
tinham uma forma almendrada, eram gravadas na sua superfície convexa (com motivos
en saphir portant une inscription arabe. maioritariamente animalistas – Fig. 1), engastadas em armações metálicas e usadas no
Les camées et la sertissure sont appliqués sur un bénitier
pulso como se fossem relógios (NEVEROV, 1976: 10) ou no pulso e em colares (HENIG,
en cristal de roche, provenant du Monastère du Lorvão
(Coimbra). La pièce apparaît déjà comme référenciée 1974: vol. 2, p. 24).
dans un inventaire de 1336, mais les applications sont
advenues plus tard, entre la moitié du XIVème
et la moitié du XVème siècle.
I
Doutora em Arqueologia e História da Antiguidade.
ARTIS - Instituto de História da Arte da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
61
ESTUDOS
FIGS. 9 E 10 - À esquerda,
entalhe: ametista, retrato de Caracala
identificado a São Pedro, de ca. 212 d.C.
Cabinet des Médailles, Paris (VOLLENWEIDER, 2003: 182-183, n.º 233).
À direita, camafeu: ónix, a entrada na Arca de Noé, finais do século XV.
British Museum, Londres (DALTON, 1915: 4-5, n.º 18).
63
ESTUDOS
65
ESTUDOS
mafeus. O que quer dizer que eles constituem um acrescento poste- voltas sobre os cabelos, que terminam, na região da nuca, num “chig-
rior a essa data. Assim sendo, e tendo em conta o material utilizado non”. Do vestuário, é bem visível o decote e a manga do seu braço es-
(concha), o estilo de gravação (post-clássico), os penteados dos perso- querdo.
nagens retratados e a aparência geral dos camafeus, poderemos datá- Paralelos: ALEXANDER e BINSKI, 1987: 486, n.º 653 (três camafeus
los de meados do século XIV a meados do século XV. iguais, engastados num alfinete de peito (“ring-brooch”), alternados
Curiosamente, dois deles apresentam um certo revivalismo, caracte- com gemas não gravadas; CAMPBELL, 2009: 76, estampa 79 [referên-
rístico da Glíptica Medieval e da Renascentista: o da Fig. 12, pelo cia de inventário: V&A M.190-1962] – ónix branco sobre azul escu-
gryllos nele patente, e o da Fig. 13, pelo penteado da mulher que nele ro, engastado num anel francês em ouro, do século XV.
vemos. Discussão: como atrás referimos, o penteado da figura feminina de-
nota uma certa influência de motivos romanos similares.
Datação: finais do século XIV a meados do século XV.
FIG. 13 FIG. 15
5. Camafeu [Fig. 16]. Concha, em tom branco sobre fundo azulado, 6. Camafeu [Fig. 17]. Concha, em tom branco leitoso, de forma oval.
de forma oval. Dimensões: 11,5 x 9,1 mm. Bom estado de conserva- Dimensões: 12 x 9,5 mm. Estado de conservação: muito mutilado.
ção. Proveniência: desconhecida. Proveniência: desconhecida.
Retrato masculino. Busto masculino imberbe, voltado à direita, com Discussão: motivo não identificado, devido à danificação da parte su-
os cabelos presos por uma taenia e uma franja sobre a testa. O vestuá- perior do camafeu.
rio apresenta um decote em forma de V e uma pequena gola. Datação: meados do século XIV a meados do século XV?
Discussão: não foram encontrados paralelos.
Datação: meados do século XIV a meados do século XV. 7. Entalhe [Fig. 18]. Safira azul, de for-
ma oval, talhada e polida em cabuchão.
Dimensões: 11,5 x 8,5 mm (com o en-
gaste). Bom estado de conservação. Pro-
veniência: desconhecida.
Inscrição. Inscrição em caracteres árabes,
BIBLIOGRAFIA cuja tradução é “Hasan confia em Alá”.
Discussão: o facto de esta safira apresen-
ALEXANDER, J. e BINSKI, P. (1987) – Age of tar uma inscrição árabe não é de estra-
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67
ESTUDOS
RESUMO
RÉSUMÉ
O
réserves du Musée Municipal de Alcácer do Sal. presente estudo debruça-se sobre ¼ de dirham almóada que foi encontrado
L’auteur confronte cette trouvaille avec la thèse défendue
ces dernières années, dans différentes études académiques, perto de Alcácer do Sal, junto ao trajeto 1 antigo que ligava esta cidade à aldeia
selon laquelle la perforation des pièces islamiques dans de Santa Catarina de Sítimos. Iniciamos esta breve nota por descrever a moe-
l’Al-Andalus, n’était jamais arrivée dans la Période Almohade,
étant donnée la dimension réduite de ces monnaies, da, refletindo em seguida sobre por que razão apresenta dois orifícios, concluindo na
spécialement les séries frappées en argent. Il soutient defesa da hipótese de a moeda ter sido usada no seio de uma
également qu’il s’agit là encore d’un témoignage indirect 1
de la spiritualité de nature soufie qui aura marqué la région
dimensão religiosa, no decurso do horizonte Wazīrí de Qaṣr Usamos a palavra
trajeto, dado que
durant cette période. al-Fatḥ, algures entre 587H/1191 e 614H/1217.
estamos em presença de um
MOTS CLÉS: Moyen Âge (islamique); caminho em terra batida,
Qasr al-Fath (Alcácer do Sal); Numismatique; que se desenvolve em
Religion; Soufisme/taṣawwuf. terreno de areia e
2. O NUMISMA
argila e cujo traçado
poderá coincidir com
A moeda corresponde a ¼ de dirham almóada e pertence às o caminho que seria
usado em contexto
reservas do Museu Municipal de Alcácer do Sal. Foi encon- Almóada.
I
Gabinete de Arqueologia, História, Património trada em data e local indeterminado, algures junto da her- 2
O monte ainda existe
e Museus do Município de Alcácer do Sal dade do Valinho 2. Por aqui passava o antigo caminho de e fica ao lado da herdade
(antonio.carvalho@m-alcacerdosal.pt). da Gaixa, que se estende
terra batida que ligava Alcácer do Sal à ermida de São Brás,
para nascente, sobranceira
Por opção do autor, o texto segue as regras
polo de romaria popular, testemunhada documentalmente ao vale da ribeira de
do Acordo Ortográfico de 1990. desde meados do século XVI. Santa Catarina.
69
ESTUDOS
Esta, segundo o referido investigador, significa engano, logro de ar- FIG. 2 - Enquadramento do local provável onde foi
madilha e a “… rede que reveste as laterais das armações de pesca”. encontrada a moeda Almóada, na zona de junção da ribeira
de Santa Catarina com o rio Sado, podendo-se controlar
Independentemente do significado etimológico que o topónimo Gai- o acesso a Alcácer desde os vales inseridos
xa possa ter, o que as fontes documentais da Chancelaria da Ordem nos referidos cursos de água.
de Santiago permitem testemunhar, é a existência desta designação
como provável macro topónimo, nesta região, desde meados do sécu-
lo XV. No testemunho que pudemos analisar e que transcrevemos de dalcácer onde se chama gayxa está huma herdade, e tem outras terras
seguida 7, constatamos o carácter ainda insalubre, a influência das lavradas da várzea, a Ribeira certa terra que nam he aproveitada a qual
marés e a contaminação do terreno envolvente em altos teores de sal do poente com o valor que hé de Nuno Gonçalves, e da parte do levante
marinho, que afetavam a foz da ribeira de Santa Catarina e de parte com madre d água da [fl. 425] da Ribeira que vai pera Sítimos; a qual
da sua várzea mais para o interior, em extensão que desconhecemos. terra hé coberta em grandes restos de água salgada e por assim estar no
Ainda nos dias de hoje, a influência das marés chega à Herdade da seu Lavradio a Ribeira, pasta sempre o gado que se nesta terra (se) cria o
Torre, que se localiza para jusante da aldeia de Santa Catarina de Sí- gado da sua herdade, e que elle possuem, e seu pay pessuio muitos anos, e
timos: “[fl. 424v]… Dom Jorge filho de pagam seu dízimo á ordem de que tinham título, e diz que se podem com
El Rey Dom João meu Senhor que Deos 7
Não colocamos o outros papéis, e sejam achamos pedião por mercê que lhe quiséssemos afo-
aja por graça de Deos os mestre de San- documento na íntegra, rar a ditta terra Maninha, e salgados, o que tudo estava desaproveitado,
mas somente a parte mais
tiago, e da viz[tacão] Duque de Coimbra, relevante para o presente e maninho, e que pagaria á ordem de foro o que justo, e honesto fosse, e
senhor de monte mor, e de torres novas, e estudo. O documento está visto por nós seu Requerimento antes de neste caso fazemos coisa alguma
das Beatriz [hetecetera] a quantos esta inserido no Tomo 1 do mandamos passar carta de veadorição pera Manuel Pires que hora serve
Tombo dos Bens da Mesa
nossa carta da aforamento em [faciosimo] Mestral da Ordem de de nosso Almoxarife na ditta villa, que com [pessoas] que bem ser tendes-
Perpétuo virem fazemos saber que a nós Santiago (Alcácer do Sal), se, e com seu escrivão fosse ver a ditta terra alagada, e se estava assim, e
iniciou dizer por suas informavam Ruy Código da Manizola da maneira que elle dezia, e que maneira de terra era, os quais em com-
n.º 113, de onde
Gago fidalgo da Casa do Infante Dom transcrevemos entre os primento do nosso mandado a foram ver, e declararam em seis ditto, que
Luís, que na Ribeira de Sítimos da banda fólios 424v e 425v. [fl. 425v] que era aquela a terra…”
0 150 km
Face ao testemunho da passagem do século XV para o século XVI, a FIG. 3 - Localização de Qaṣr al-Fatḥ (Alcácer [do Sal])
área da ribeira de Santa Catarina, na sua junção com o rio Sado, junto no seio do Califado Almóada nos inícios do século XIII.
As localizações geográficas das várias localidades,
à herdade do Valinho, não tinha a configuração que possui hoje, da- assim como as linhas de fronteira entre as diferentes
do que estava sujeita diretamente às marés. Recuando alguns séculos realidades políticas em conflito, são aproximadas,
até ao contexto Almóada, é de crer que estas características fossem tendo em conta a escala utilizada.
71
ESTUDOS
dos dirham do Califado al-Muwaḥḥid. Contudo o ¼ de dirham obje- de natureza sufi, que por aqui deambulava, na sua missão de vigilân-
to do presente estudo alerta-nos para a presença, em casos pontuais, cia do território envolvente. Face ao exposto, esta moeda permite tes-
desta prática, o que parece reforçar a função religiosa atribuída a este temunhar, de forma indireta, a presença de sufis em determinados es-
numisma, transformado em talismã. paços da fronteira alcacerense, na sua procura de Allāh, indo ao en-
contro do que temos vindo a defender nos nossos últimos estudos.
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73
ESTUDOS
RESUMO
Leonel Trindade
ABSTRACT
A
expressão “bater a caçoleta” está intimamente relacionada com o mecanismo/fe-
RÉSUMÉ charia das espingardas de pederneira 1. Popularizada entre nós com o significado
Contribution à l’étude de la collection de 107 projectiles de “morte” ou “morte ocorrida” é, na realidade,
d’armes légères, en plomb, qui intègre aujourd’hui les réserves uma antiga referência à ação mecânica do disparo da es- 1
A tecnologia em voga
du Musée Municipal Leonel Trindade, à Torres Vedras. entre 1650 e 1850 para as
On peut les dater de la période de la Guerre Péninsulaire pingarda (Fig. 1): ao premir o gatilho, a pederneira aper-
armas ligeiras de fogo.
(1807-1814) et ils sont le fruit de trouvailles fortuites tada ao cão faz deflagrar a pólvora protegida na caçoleta,
de la population locale.
L’auteur établit la relation avec des projectiles similaires efetuando o disparo do projétil – quem leva um tiro
recueillis en 2014 lors de fouilles archéologiques réalisées sur morre!
le champ de la Bataille du Vimeiro (engagée le 21 août 1808).
De là résulte la proposition d’une typologie de classification
O Museu Municipal Leonel Trindade, em Torres Vedras, conserva em exposição e depó-
qui identifie des caractéristiques propres à ces trouvailles sito uma importante coleção de projéteis esféricos em chumbo, vulgo balas, atribuíveis ao
« fossiles » des champs de bataille du XIXème siècle.
período da Guerra Peninsular (1807-1814). Este Concelho, bem como a região Oeste,
MOTS CLÉS: XIXème siècle; Guerre; Armes. foi particularmente ativo durante os anos de guerra, em especial durante as Invasões do
General Jean-Andoche Junot e do Marechal Massena: as grandes ações da Roliça e Vi-
meiro (1808) e a incrível obra denominada por Linhas de Torres Vedras.
Surgiu naturalmente o interesse dos vários responsáveis pelo Museu, ao longo dos anos,
pela recolha e conservação de elementos históricos relativos a estes acontecimentos: mo-
biliário, medalhas, armas, projéteis, documentação, etc. Do seu importante acervo, foi
por nós requisitada autorização para estudar a coleção de projéteis de armas ligeiras atri-
I
IAP - Instituto de Arqueologia e Paleociências, buíveis ao período em questão.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Com trabalho de investigação já realizado relativamente ao espólio recolhido na campa-
Nova de Lisboa (rui.ribolhos@gmail.com).
nha arqueológica do campo de batalha do Vimeiro (ver FILIPE, 2016), em 2014, pareceu-
Por opção do autor, o texto segue as regras
-nos oportuno que os resultados fossem utilizados como base de comparação com a cole-
do Acordo Ortográfico de 1990. ção municipal.
75
ESTUDOS
cance era ainda mais limitado. A carabina Baker de cano estriado con- Existe ainda a possibilidade da existência de projéteis disparados du-
seguia o dobro do alcance das armas regulamentares Brown Bess e rante caçadas. As balas esféricas tiveram um longo período de utiliza-
Charville. ção, antes e depois dos acontecimentos das Invasões Francesas. Por
Na categoria de armas ligeiras à disposição no arsenal de ambos os coincidência, podem ter calibres idênticos aos das armas militares.
exércitos, contam-se ainda as pistolas, normalmente usadas por ofi-
ciais e unidades de Cavalaria. O seu número era bastante reduzido RESULTADOS, INTERPRETAÇÃO E TIPOLOGIAS
quando comparado com o número de espingardas regulamentares pre-
sentes. Na Tabela 1 representam-se os vários modelos regulamentares Foi criada uma tabela com um resumo informativo da metrologia de
disponíveis nos arsenais de ambos os exércitos em uso durante a cada exemplar estudado, bem como de outros indícios na sua super-
Guerra Peninsular. fície. Embora algumas balas surjam ainda na sua forma aparentemen-
O projétil, uma esfera de chumbo, era, junta-
mente com alguns gramas de pólvora negra, se- TABELA 1 – Modelos regulamentares disponíveis no exércitos envolvidos na Guerra Peninsular
lado num invólucro de papel, compondo o car- (relação arma / nacionalidade / calibre)
tucho. O soldado, à ordem dada para carregar Luso-Britânicas calibre [mm / polegada]
a arma, retirava o cartucho da patrona (vulgo espingarda regulamentar India Patern, vulgo Brown Bess 19,06 / 0.75
cartucheira), rasgava o invólucro com os den- carabina de cano estriado Baker 15,90 / 0.63
tes e despejava alguma quantidade de pólvora carabina de cavalaria Elliot 16,50 / 0.65
na caçoleta. A restante, incluindo o projétil em clavina de cavalaria Paget 16,50 / 0.65
chumbo, era despejada no cano da espingarda pistolas e clavinas portuguesas 15,90 a 19,06 / 0.63 a 0.75
com o auxílio da vareta.
O diâmetro do projétil é sempre menor que o Francesas calibre [mm / polegada]
espingarda regulamentar de 1777 / modificado no Ano IX 17,53 / 0.69
calibre da arma, ou seja, se a espingarda Brown
pistolas modelos Ano IX e Ano XIII 17,53 / 0.69
Bess tem um calibre de 19,06 mm, a bala terá
carabina de cavalaria modelo Ano IX 17,53 / 0.69
menos, de modo a poder entrar na boca do ca-
clavina para Hussardos modelo Ano IX 17,53 / 0.69
no. A diferença espacial entre os dois é deno-
espingarda para Dragões modelo Ano IX 17,53 / 0.69
minada por “vento” 5.
5
O MESMO CALIBRE , O mesmo se aplica às te esférica, outras apresentam deformações resultantes do disparo e/ou
DIÂMETROS DIFERENTES ? peças de Artilharia. impacto. Todos os projéteis foram pesados, de modo a obter o valor
calculado em diâmetro (mm). Para tal, socorremo-nos da fórmula
A produção das munições de chumbo, quanto a diâmetros, não era matemática Sivilich, compilada pelo arqueólogo Daniel M. SIVILICH
totalmente rigorosa, devido à existência de diferentes moldes. Quer (2005) – Diameter in inches = 0,223204 x (Weight in grams)1/3 –, que
isto dizer que, dentro de um conjunto de projéteis para a mesma ar- tem em conta a gravidade do chumbo e suas impurezas.
ma, existem pequenas diferenças. Por tal, consideramos que os valo- Esta equação, propositadamente adaptada a balas de espingarda fun-
res regulamentares tanto da boca das armas como dos projéteis, são didas em chumbo da Guerra da Independência Americana (1775-
valores médios de referência. -1783), é perfeitamente aceitável para o período da Guerra Peninsular.
As armas usadas nos dois conflitos são idênticas, logo os calibres tam-
GRANADAS E CAÇADORES bém o são 6.
6
Após determinar o peso em gramas O exército
A Granada Shrapnel, inovação tecnológica utilizada pela artilharia do e submetendo esse valor à fórmula Norte-Americano utilizava
espingardas de modelo Francês
exército luso-britânico, era constituída por uma carcaça em ferro com (tendo em conta as respetivas corres- ou Britânico, e o exército
um orifício para mecha, sendo o interior cheio de pólvora e projéteis de pondências entre medida polegada e Britânico a Brown Bess.
espingarda regulamentar (McCONNEL, 1988). Este projétil explosivo métrica) obteve-se o diâmetro origi-
era normalmente disparado para deflagrar acima das cabeças do ini- nal das esferas (ou, na pior das hipó-
migo (efeito de “picaretada”), projetando de cima para baixo as letais teses, o valor mais aproximado). Deste modo, foi possível identificar,
munições de espingarda. Devemos ter em conta a possibilidade de al- na maioria dos casos, a arma correspondente e, logo, a sua nacionali-
guns exemplares da coleção do Museu Municipal não terem sido dis- dade. Estudaram-se também as características de cada exemplar, sen-
parados por espingarda, mas sob a forma desta granada de artilharia. do consideradas duas tipologias principais.
– Tipologia I, projéteis esféricos ou não disparados: considerámos I.1) regar a arma. O soldado, no calor da batalha, retirando o cartucho da
todos os que, pela sua forma esférica, não apresentassem na superfície patrona e abrindo-o com os dentes, deixava cair acidentalmente o
marcas de disparo ou de impacto; e I.2) exemplares com marcas rela- projétil 7. Outra hipótese é a da perda da própria patrona, por inca-
tivas à sua produção (moldagem / fundição); pacidade do soldado tombado em combate, ficando os cartuchos per-
– Tipologia II: consideraram-se os projéteis com marca de disparo ou didos no campo de batalha e o projétil intacto.
impacto, incluindo II.1) com marca de estrias do cano da arma; II.2) A Fig. 3 representa uma amostra de Tipologia II. O exemplar C cor-
com marcas de impacto; e II.3) outros. responde ao tipo II.1, vendo-se claramente as marcas de estrias rasga-
Na Fig. 2 representam-se dois exemplares da Tipologia I. O projétil A das na superfície do projétil. São compatíveis com a única arma de ca-
apresenta-se com superfície esférica bem regular e foi integrado na ti- no estriado em campo, a já mencionada carabina Baker. Para um me-
pologia I.1. O projétil B apresenta elementos relacionados com a sua lhor aproveitamento das capacidades desta arma (redução do “vento”;
moldagem (Tipologia I.2): o “cordão umbilical” ou “maminha” (i) e o tra- rotação induzida), procurava-se que o projétil entrasse com aperto no
ço que demarca a ligação entre as duas metades fundidas em molde (ii). cano, sendo necessária bastante pressão da vareta 8. O projétil, dada a
Tanto o primeiro exemplar como o segundo não foram disparados, pois explosão da pólvora no cano da ar- 7
Foram recolhidos diversos
o exemplar A ganharia marcas e, no B, os restos de moldagem teriam ma, seguia a direção/rotação das es- exemplares deste tipo durante
desaparecido por ação do disparo e da progressão a quente na alma da trias, deixando marcas bem delinea- os trabalhos de arqueologia
arma. das na superfície. no Vimeiro, estando estes
relacionados com a linha
Estas balas estão associadas a perdas no campo de batalha, normal- Os exemplares D, E e F (Tipologia de defesa Britânica.
mente acidentais, marcando muitas vezes a posição de soldados a car- II.2) mostram marcas de impacto, 8
Esta arma chegou a ser
perdendo, em alguns casos, a forma fornecida com um pequeno
esférica devido à violência do cho- martelo para ajudar na ação
de carregamento. O próprio
que contra osso, terra, árvores, pe- projétil seria envolto em
FIG. 3 - Tipologia II. dra, etc. (SIVILICH, 2005). pano ensebado.
MMLT.005546 - #1 MMLT.000058 - #5
0 5 mm
MMLT.000058 - #15 MMLT.005547 - #1
77
ESTUDOS
0 5 mm
Na Fig. 4 surge outra tipologia de projétil disparado com particular No nosso estudo foi ainda possível identificar que, no Universo de
interesse (II.3 - outros). O exemplar G, para além de alguma defor- exemplares, 17 % dos projéteis não apresentavam marcas de disparo
mação por disparo/impacto, apresenta um vincado corte linear. Esta (Tipologia I), em comparação com 83 % dos exemplares com marcas
mutilação propositada pretende atribuir um maior poder destrutivo à de disparo ou impacto (Tipologia II).
bala, aumentando a área de impacto. O projétil foi cortado com uma
lâmina (navalha ou faca), de modo a que, neste exemplar específico,
se separasse em duas partes, ou para que o corte aumentasse o tama- CONCLUSÃO
nho da bala, com o objetivo de causar maior dano. O resultado desse
efeito é bem notório no exemplar H. Foi recolhido no Vimeiro, sen- Os resultados obtidos neste estudo são, grosso modo, compatíveis com
do a sua forma 1/4 da esfera original, resultante de um provável corte as tipologias identificadas na coleção recolhida durante os trabalhos
em X (coleção privada). arqueológicos do Vimeiro.
Naturalmente, estas mutilações foram realizadas aquando do fabrico/ Nos projéteis recolhidos, quer de forma metodológica, quer em acha-
/enchimento do cartucho. Embora não identificados nestes estudos, dos fortuitos, na campanha arqueológica e na coleção Leonel Trin-
refira-se que podem existir exemplares da tipologia I com estas carac- dade, respetivamente, deparamo-nos com uma realidade inequívoca:
terísticas. estatisticamente, um maior número de exemplares compatíveis com
Como já referido, o cálculo dos diâmetros dos projéteis da coleção do armas luso-britânicas.
Museu Leonel Trindade permitiu estabelecer correspondência com a Este estudo permitiu corroborar as fontes Históricas. A vitória luso-
arma utilizada e a respetiva nacionalidade (Fig. 5). -britânica deveu-se às linhas defensivas que suportaram os vários ata-
ques Franceses, disparando salva após salva de tiro de espingarda, não
Indeterminadas permitindo aos atacantes Franceses constituírem linhas organizadas
1% de atiradores, de modo a retribuir o fogo (PLEINEVILLE, 2017).
Francesas Essa conclusão era expectável, visto que, no caso dos trabalhos ar-
35 % queológicos no Vimeiro, a escolha do local da intervenção incidiu so-
bre parte da linha defensiva aliada e na zona de progressão inimiga,
com maior probabilidade de disparos aliados contra as colunas Fran-
cesas. Esses resultados representam apenas uma amostra ínfima do
campo de batalha.
Por outro lado, a coleção de Torres Vedras é constituída por achados
ocasionais ou fortuitos realizados pelas gentes locais, mas em toda a
Luso-britânicas extensão do campo de batalha.
64 % As linhas de investigação utilizadas e as tipologias base propostas nes-
FIG. 5 - Correspondência te trabalho podem ser, na prática, utilizadas na caracterização dos de-
Projétil / Arma / Nacionalidade. mais projéteis esféricos em chumbo atribuíveis a armas ligeiras deste
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Sites. (consultado em 2017-11-17).
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Al-Madan n.º 20 (2016).
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79
HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA PORTUGUESA
RESUMO
ABSTRACT
uma abordagem preliminar
The author talks about the teaching of Archaeology
in Portugal in the 19th century. He analyses academic
de propostas, programas
proposals, as well as syllabi and courses. He then establishes
a relationship between the changes in teaching and the
incorporation and affirmation of Archaeology as
e cursos
scientific production practice in the country.
N
avec l’incorporation et l’affirmation de l’Archéologie en tant a hora de reflectir sobre o início da Arqueologia científica em Portugal, a com-
que pratique de production scientifique dans le pays.
preensão de várias acções distintas, que se relacionam com o objectivo último
MOTS CLÉS: Histoire de l’Archéologie portugaise; de institucionalizar a disciplina (DINIZ e GONÇALVES, 1993-1994), afigura-se
Formation; XIXème siècle.
como uma necessidade. Desde o contexto social e político, imprescindível para a carac-
terização do ambiente nacional e da sua permeabilidade intelectual, aos próprios agentes
que, organizados em diversas estruturas, contribuem para o conhecimento das sociedades
do Passado. A ocupar um lugar de destaque neste artigo encontra-se uma dimensão que,
pela sua transversalidade e versatilidade na História da Arqueologia, permite sondar as vi-
cissitudes do discurso arqueológico: o ensino. O estudo da sua evolução e das caracterís-
ticas que o constituem, num Portugal e numa Europa constantemente em mudança, per-
mitirá captar os primórdios da comunidade arqueológica que prolifera a par da emergên-
cia de um novo modelo social. Num cenário em que surgem propostas, delineiam-se pro-
gramas e constituem-se cursos, nos distintos níveis de ensino, que estatuto adquire a Ar-
queologia? É essa a principal problemática deste artigo, à qual se tencionam tecer algumas
considerações.
81
HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA PORTUGUESA
ria, de igual modo, uma cadeira exclusiva à TABELA 3 – Plano de estudos do 3. A IX SESSÃO DO
Curso Superior de Letras proposto em 1879
aprendizagem da Arqueologia (COUVANEI- (segundo COUVANEIRO, 2012: 47) CONGRESSO INTERNACIONAL
RO, 2012: 48). O facto de existir esta autono- DE A NTROPOLOGIA E
1º ano Antropologia e Etnologia
mia é fundamental para compreender a cres- ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICAS
Arqueologia Clássica e Medieval
cente importância que a Arqueologia adqui- E A PROBLEMÁTICA DA
Estética e História da Arte
ria em Portugal, incluída no progresso das INSTITUCIONALIZAÇÃO DA
2º ano Filologia Comparada
Ciências Sociais no ensino superior, mesmo ARQUEOLOGIA: PROGRAMAS
Ciência das Religiões
em situações onde não exista uma concor- E CURSOS
Psicologia
dância plena sobre a estrutura destes progra-
3º ano Filosofia do Direito
mas. No que concerne à proposta de 1879, as A realização da IX Sessão do Congresso Inter-
Economia Política e Estatística
razões pelas quais se operou esta alteração nacional de Antropologia e Arqueologia Pré-
Moral e Política
serão certamente múltiplas e de diversa índo- -Históricas, em 1880, em Lisboa, permitiu a
4º ano Literatura Sânscrita e Zend
le. A longa tradição e interesse pelo período abertura internacional ao estado da arte da
Literaturas Siro-árabes
clássico, característica do Humanismo, pos- actividade arqueológica portuguesa. É este o
Literaturas Greco-romanas
suí um peso a que não é possível ficar indife- apogeu da Arqueologia de Oitocentos, a con-
5º ano Literaturas Novo-latinas
rente, sendo uma das potenciais influências sagração máxima dos trabalhos científicos so-
Literaturas Germano-eslavas
da estruturação da cadeira. Contudo, e tendo bre o Passado da Humanidade, sempre alia-
História Universal
em conta realidades mais próximas da pro- da a um plano político, ao Fontismo, cuja
posta de Teófilo Braga, é de salientar o papel pretensão era, como referido anteriormente,
da Sociedade Archaeologica Lusitana e das actividades que realizou, demonstrar o que melhor se produzia em Portugal. O impacto é
no que alude aos estudos clássicos. Embora já extinta à data da for- notório, atingindo não apenas o plano científico, mas a literatura e a
mulação deste plano, contribuiu substancialmente para o conheci- sátira da época (GONÇALVES, 1980a). Considere-se que, face à impor-
mento desse período cronológico no território português, com as es- tância do evento, a institucionalização da Arqueologia passou a ser,
cavações em Tróia (MARTINS, 2014: 207). De igual modo, e no âm- para os sábios que se debruçavam sobre o estudo das “cousas antigas”,
bito da componente “Medieval” da cadeira, o Manual Medieval de uma inevitabilidade. As primeiras tentativas foram infrutíferas, mas a
Arqueologia, redigido por Possidónio da Silva (1806-1896), e a cria- presença do Congresso em Lisboa viria a inspirar tomadas de acção
ção da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portu- pela parte de figuras cimeiras da comunidade científica arqueológica.
gueses, em 1863, poderão ter levado à génese deste conteúdo progra- Assiste-se, em 1885, à criação do 1º Curso Elementar de Archeologia, por
mático (CARDOSO, 2000: 11). Há que ter em conta a situação política Possidónio da Silva. Esta medida visava fomentar a instauração da
que Portugal atravessa: à Regeneração está associado um período de Arqueologia como disciplina autónoma, a nível universitário, e um
estabilidade nacional, o que permitiu a existência de um ambiente in- meio académico no qual a investigação se pudesse alicerçar (MAR-
telectual propício ao desenvolvimento de estudos sobre o Passado (LE- TINS, 2001: 86). Com sede na Real Associação dos Architectos Civis
MOS, 1995: 118) e, subsequentemente, o Fontismo, fase de cresci- e Archeologos Portugueses, Possidónio da Silva conseguiria o apoio
mento e de modernização portuguesa (MARTINS, 2013: 23). De um da Monarquia portuguesa, com o rei D. Carlos a credibilizar esta ini-
modo genérico, a Arqueologia caminha a par do Progresso, com a ciativa. O patrocínio real seria vital para o prestígio do curso, dando a
proliferação dos estudos de Arqueologia pré-histórica a ganharem ca- legitimidade que Possidónio da Silva pretendia para o seu projecto. A
da vez mais enfâse, não sendo, portanto, e tendo em conta todo este principal temática abordada era a Arqueologia Pré-Histórica, sendo o
cenário, obtusa a criação de uma cadeira que contemplasse a discipli- conteúdo programático expectável tendo em conta a influência do
na arqueológica como temática central de aprendizagem. Congresso Internacional, enfatizando-se o papel de outras ciências,
Não obstante, a cadeira de Arqueologia só conhecerá uma efectiva como a Geologia e a Paleontologia, que auxiliavam substancialmente
leccionação apenas em 1911, com a criação da Faculdade de Letras a determinação de datações para estabelecer cronologias (MARTINS,
de Lisboa, a cargo de Leite de Vasconcelos (1858-1941), trinta e dois 2001: 96). O ingresso no curso também carecia de pré-requisitos es-
anos após a sua formulação. pecíficos: “O mentor do Curso definiria, igualmente, os pré-requisitos
Esse período, que, à primeira vista, se poderia associar a uma aparente para o seu ingresso. Os candidatos deveriam ter todos entre dezasseis e
paragem no que toca ao Ensino da Arqueologia, está longe de ser um vinte e quatro anos, possuir certificado de instrução primária, bem como
hiato: apresenta-se como uma fase de construção e de consolidação da de língua francesa e desenho” (MARTINS, 2001: 94).
cientificidade da disciplina e, como tal, dos moldes pelos quais esta se A instrução primária assumia-se como um ponto fulcral. O aluno
há-de reger. deveria atingir um grau de educação que lhe permitisse absorver os
83
Programa da Cadeira de
Antropologia, Paleontologia Humana e
Arqueologia Pré-Histórica
B) ARCHEOLOGIA PREHISTORICA
Tradições dos primeiros povos sobre a sua raspador. Distribuição e modo de jazigo do Monumentos megalithicos – menhirs,
antiguidade. Origem da prehistoria; suas mousteriano. Noções sobre o clima (epocha alinhamentos, cromlechs e antas. Distribuição
relações com a geologia e a história. Extensão e glaciaria), flora e fauna. Craneo de Olmo. do robenhausiano. Robenhausiano portuguez
divisão dos tempos prehistoricos. Industria da terceira epocha. Instrumentos (Furninha, Mugem, Cabelo d’Arruda, etc.).
characteristicos – pontas em forma de folha de Modos de jazigo – palafittas, habitações
a) Idade da pedra loureiro, pontas farpadas. terrestres, abrigos, grutas, kjoek- kenmoeddings,
Origem da arte. Distribuição e modo de jazigo. antas, etc. Grutas, kjoekkenmoeddings, e antas
α) Periodo eolithico (terciário). Clima, flora e fauna. Questão do apparecimento de Portugal. Noções sobre o clima, flora e fauna.
Vestígios da existência d’um ser inteligente – da domesticação nesta epocha. Industria da Raças de Cro-Magnon e de Furfooz. Characteres
silices lascados. Differentes modos de lascar o quarta epocha. Decadência do silex e physicos e estado social. Apparecimento da
silex e de o aperfeiçoar. Characteres do lascado apparecimento do osso. Principaes instrumentos brachycephalia. Domesticação dos animaes,
intencional. Silices de Thenay (Bourgeois), de de osso – agulhas, azagaias, farpões, bastões de agricultura e industrias agricolas.
Cantal (Rames) e de Portugal (Carlos Ribeiro). commando, etc. Objectos de adorno – conchas e Anthropophagia. Trepanação. Modo de
Breve noticia sobre o clima, flora e fauna do dentes perfurados. Tatuagem. Arte – esculpturas, sepultura.
terciario. Auctor dos silices lascados; hypotheses baixos-relevos, gravuras. Desenhos geometricos.
do anthropopitheco (Mortillet); e do Character geral da arte magdaleniana. Modo de b) Idade do bronze.
dryopithecus Fontani (Gaudry). jazigo e distribuição. Noções sobre o clima, flora Seu começo e duração. Principaes instrumentos.
e fauna. Esqueleto de la Laugerie-Basse. Objectos de adorno. Estações principaes e
β) Periodo paleolithico (quaternario). Mandibula d’Arcy. Characteres geraes da raça e epochas a que correspondem (cemitérios de
Divisão d’este periodo em quatro epochas – estado social. Morges, Larnaud, etc.). Progresso da industria.
chelleana, mousteriana, solu- treana e Modo de fabrico. Origem do bronze.
magdaleniana. γ) Periodo neolithico (actual).
Industria da primeira epocha. Descripção do Passagem dos tempos quaternarios para os c) Idade do ferro
instrumento chelleano; seu uso. Distribuição do actuaes. Epocha robenhausiana. Industria Seu começo e duração. Tempos protohistoricos.
chelleano; chelleano portuguez (gruta da propria. Principaes instrumentos de pedra Principaes objectos. Estações principaes e epochas
Furninha). Modos do jazigo. Noções sobre o lascada (laminas, cutelos, percutores, etc.), de a que correspondem (tumulos de Hallstadt,
clima, flora e fauna. Esqueleto de Neanderthal. pedra retocada (serras, raspadores, pontas de Marne, etc.). Desenvolvimento da industria.
Craneo de Canstadt; mandibula de la Naulette. flecha, de dardo e de lança, punhaes, etc.), de Modo de fabrico. Origem do ferro.
Characteres geraes e estado social da raça de pedra polida (machados, goivas, enxós, cinzéis,
Neanderthal. Phenomenos atavicos na etc.). Instrumentos de osso. Objectos de adorno d) Duração total dos tempos prehistoricos.
actualidade. Industria da segunda epocha. (collares, anneis de pedra, etc.). Amuletos. Antiguidade do homem. Evolução progressiva da
Principaes instrumentos e seu uso – machado, Apparecimento da ceramica. Ausência de arte. humanidade.
“escriptores especialistas”, conferindo a legitimidade necessária para um testemunho inequívoco da pretensão de estender o ensino ar-
uma obra dessa envergadura. De outro modo, os liceus e o ensino su- queológico a todas as Universidades e Liceus, tendo como base uma
perior devem possuir uma unidade lectiva de Arqueologia, onde este lógica positivista e progressista.
manual deve ser utilizado (GONÇALVES, 1980b: 10). Isto conduziria Paralelamente a todas estas realidades analisadas, existem elementos
à tão desejada institucionalização, generalizando-se a educação da Ar- que, embora não partilhem dos mesmos objectivos que estas últimas,
queologia em todo o país, assim como as ferramentas indispensáveis. são igualmente importantes para o capítulo do ensino da Arqueo-
Contudo, estas propostas não viriam a ser aceites, pelo que o seu efei- logia: os cursos e aulas dos seminários católicos. A abundância dos
to nunca conheceu qualquer aplicabilidade à época. É, no entanto, mesmos, nos finais do século XIX, é notória: encontramos as cadeiras
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O Arqueólogo Português. Lisboa. Série I. 1: 61-63.
85
OPINIÃO
RESUMO
A
communautés et les visiteurs, de manière à le transformer ideia de o Estado Português construir um museu dedicado à Arte Rupestre
en une institution culturelle participative. On analyse le
« musée réel » pour arriver au « musée imaginé ». do Vale do Côa surgiu com a criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa
(PAVC) 1, em 10 de Agosto de 1996, que contabilizou um milhão de visitantes
MOTS CLÉS: Archéologie publique; Muséologie;
Science citoyenne; Gestion du patrimoine. em 20 anos.
1
No entanto, foi a classificação como Património da A intenção de edificar
Humanidade, atribuída aos núcleos de Arte Rupestre um Museu no Vale do Côa
aparece expressa pela primeira
do Vale do Côa pela UNESCO, a 2 de Dezembro de vez na Resolução do Conselho
1998, na 22.ª sessão do Comité do Património Mun- de Ministros n.º 42/96,
dial, realizada na cidade de Quioto (Japão), que levou de 16 de Abril.
2
Correspondeu ao exercício
o governo português a comprometer-se com a realiza-
de seis Governos Constitucionais
ção de estudos para a criação de um museu no Vale e aos mandatos de oito Ministros
do Côa. da Cultura: Manuel Maria
Carrilho, José Sasportes,
Um processo no qual se destacam duas etapas, a pri-
I
Arqueólogo. Presidente da Assembleia Geral Augusto Santos Silva, Pedro
da RIBACVDANA - Associação de Fronteira para o
meira decorreu entre 1998-2003 e a segunda entre Roseta, Maria João Bustorff,
Desenvolvimento Comunitário, com sede em Figueira 2004-2010 2, período durante o qual foi designado Isabel Pires de Lima, José
de Castelo Rodrigo (ribacvdana@gmail.com). António Pinto Ribeiro e
Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa. No
Gabriela Canavilhas.
Por opção do autor, o texto não segue as regras
decorrer do mesmo, foram propostos dois lugares dis-
do Acordo Ortográfico de 1990. tintos de implantação: o sítio da encosta norte da
87
OPINIÃO
-ministro era Pedro Santana Lopes, e em Lisboa, no Museu Nacional nanciamento comunitárias: FEDER-Fundo Europeu para o Desenvol-
de Arqueologia. vimento Regional, através do Programa Operacional do Centro
Em Setembro de 2004, é outorgado o contrato do projecto com o (PORC) como ação integrada de base territorial - Turismo e Patrimó-
Consórcio Externo em Regime de Responsabilidade Solidária, cons- nio no Vale do Côa e nacionais (OE). Foi encomendada pelo ex-IPA
tituído pelos Arqt.º Pedro Tiago Lacerda Pimentel (Arquitecto Coor- e concluída pelo ex-IGESPAR.
denador), Arqt.º Camilo da Cunha Bastos Rodrigues Rebelo e Em Julho de 2006, foi publicado o Anúncio de abertura de Concurso
GOP - Gabinete de Organização e Projectos, Ld.ª (Chefe de Consór- Público para construção civil, todas as especialidades, arranjos exte-
cio), liderado pelo Eng.º Nunes riores e acessos, ao qual concorreram 22 empresas. Segundo Fernan-
7
da Silva 7. O Programa Base do REAL (2011), em Outubro é autorizada a adjudicação e a minuta
Em 2005, ao tempo do XVII Go- apresentado ao Dono da Obra contratual pelo Secretário de Estado do Ordenamento do Território
reuniu apreciações e pareceres do
verno Constitucional (2005-2009), IPM (João Herdade), do PAVC e das Cidades, João Ferrão. “O Contrato de empreitada de Obra Públi-
com o Primeiro-ministro José Só- (Alexandra C. Lima), do CNART ca é o n.º 0680602, celebrado entre a DGEMN, representando o Estado
crates e a Ministra da Cultura Isa- (António Martinho Baptista) e da Português, e a Firma Monteadriano - Engenharia e Construção, S.A. A
equipa de consultoria técnica,
bel Pires de Lima, é criada, por coordenada pelo Eng.º Pedro 15 de Dezembro obteve o Visto do Tribunal de Contas. A 8 de Janeiro
despacho do Director do IPA (Des- Tavares, da Consulbarra, de 2007 é lavrado o Auto de consignação dos Trabalhos, sendo o prazo
pacho n.º 9/IPA/Gabinete da Di- Serviços de Engenharia, Lda. contratual para a obra de 600 dias” (BRITO, 2014: 69).
(BRITO, 2014).
recção), uma Comissão Técnico- Em 1 de Agosto de 2007, por Despacho da Ministra da Cultura, é
-científica para apoio à Equipa criado o Grupo de Trabalho para o Museu do Vale do Côa, para “di-
Projectista, composta pelos arqueólogos António Martinho Baptista, namizar todas as ações necessárias para a concretização do Museu”.
Alexandra Cerveira Lima e Thierry Aubry, para “prestar esclarecimen- Constituído por quatro elementos: Fernando Real (ex-Presidente do
tos solicitados pela equipa projetista, transmitir dados científicos relevan- IPA), responsável da coordenação executiva do processo, Filipe Serra
tes, emitir pareceres sobre propostas do projeto de museologia” (REAL, (jurista), responsável pela gestão e procedimentos legais e financeiros,
2011: 219). Lúcia Gonçalves de Brito (engenheira civil), responsável pela estraté-
Por proposta do ex-IPA, o Governo inscreve a obra do Museu de Arte gia cultural e exposição permanente, e Paula Silva (arquitecta e Di-
e Arqueologia do Vale do Côa como uma das três Grandes Opções retora da DRCN), responsável pela coordenação executiva da obra do
do Plano 2005-2009, inserido no Planeamento estratégico para a área edifício (BRITO, 2014: 69) 9.
da Cultura (Lei n.º 52/2005, de 31 de Agosto) do Orçamento de Es- Em Setembro de 2007, perante o risco de incumprimento dos prazos
tado. de execução e consequente perda do financiamento comunitário, a
Na sequência da directiva da Ministra da Cultura, Isabel Pires de Li- direcção do IGESPAR decidiu adoptar um conjunto de cinco medidas
ma, em Novembro de 2005, foi atribuída a responsabilidade do con- para alcançar o cumprimento dos prazos contratualizados:
curso, coordenação e fiscalização da obra do museu à ex-Direcção Ge- 1) Reforço da fiscalização com um fiscal residente;
ral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN). 2) Contratação de uma assessoria técnica para o controlo do planea-
“O director geral da DGEMN, Vasco Costa, remete a coordenação da obra mento da obra;
para a Direcção Regional de Edifícios e Monumentos do Centro (DREMC). 3) Rescisão, por acordo, do contrato existente com a assessoria técni-
Sob a coordenação do director regional, Afonso Mira, procede em articu- ca para o Projecto;
lação com o IPA à organização e à condução das fases de Concurso Público 4) Reorientação do programa expositivo, centrada numa abordagem
das Empreitadas, bem como da respectiva contratação e execução em multidisciplinar da Arte Rupestre do Vale do Côa;
obra, tendo passado a desempenhar uma participação ativa na finaliza- 5) Solicitação de reprogramação financeira ao POC (Plano Operacio-
ção do Projeto, atendendo a que teria que apreciar e considerar capaz pa- nal da Cultura).
ra Concurso, o Projeto de Execução de Arquitetura, ainda incompleto” Foram celebrados protocolos de 9
Dependendo hierarquicamente
(REAL, 2011: 220). colaboração e contratos de presta- da Direcção do ex-IGESPAR,
Em Maio de 2006, é aprovada pela Unidade de Gestão do FEDER, a ção de serviços com três universi- na pessoa do arqueólogo João
Pedro da Cunha Ribeiro.
candidatura ao financiamento da dades públicas e respectivos cen- 10
A primeira proposta de
obra do museu 8. Inscrita como 8
O custo total da obra e tros de investigação, que permiti- layout expositivo foi apresentada
Projecto do Programa de Investi- seus anexos seria 17.400.000€. ram uma melhor articulação e de- por A. Nabais e A. Faustino de
mentos e Despesas de Desenvolvi- O custo elegível foi de senvolvimento das várias áreas cien- Carvalho, indicados para o efeito
11.097.324,32€ e a pelo ex-IPA. O projecto não teve
mento da Administração Central comparticipação do FEDER tíficas envolvidas na exposição 10 a concordância da Comissão
(PIDDAC), teve como fontes de fi- foi de 7.768.127,02€. (BRITO, 2014: 70). Técnico-científica.
2.ARQUITECTURA E
PLANO MUSEOLÓGICO
DO MUSEU DO CÔA
2.1. PROJECTO
ARQUITECTÓNICO
89
O edifício tem uma área bruta de 8.121,31 m2 e uma área útil de 2.2. PROGRAMA MUSEOLÓGICO
6.2434,28 m2 (REBELO e PIMENTEL, 2010). É constituído por quatro
pisos: cobertura / estacionamento / miradouro, correspondente ao pi- Ao contrário do desejável, o programa museológico não foi escrito
so 2; o piso 1 corresponde às áreas administrativas e técnicas; o piso 0, previamente ao desenho arquitectónico. A equipa que redigiu este pro-
à área expositiva; e o piso -1 às áreas de serviço, restaurante / bar e es- grama foi constituída por Alexandra Cerveira Lima, António Mar-
tacionamento privado. tinho Baptista, André Santos e Thierry Aubry, arqueólogos à época
O Piso 1 integra salas de administração e de investigação – catorze sa- do ex-IGESPAR, membros da equipa de arqueologia do PAVC e do ex-
las com cerca de 20 m2 cada; arquivo e arrumos arqueológicos, 200 m2. tinto CNART - Centro Nacional de Arte Rupestre. A coordenação exe-
O Piso 0, onde se situam a exposição permanente do museu e as salas cutiva foi da responsabilidade de Fernando Real e de João Pedro Cu-
de exposições temporárias, é estruturado pela rampa/corredor que nha Ribeiro, à época vice-director do IGESPAR.
percorre todo o corpo. No fim do primeiro tramo da rampa forma- Contaram com a colaboração da Unidade de Arqueologia da Univer-
se um ponto de ligações. Dá acesso à recepção do sector administra- sidade do Minho, do CECL/UNL - Centro de Estudos Comunicação
tivo, aos espaços exteriores do museu, ao
serviço educativo, ao Piso -1 pela escada,
ao auditório, à porta principal do museu e
à escada de ligação à cobertura.
O público, para além da exposição perma-
nente e das salas de exposição temporárias,
tem acesso às áreas de bilheteiras / benga-
leiros, às instalações sanitárias e à loja.
91
OPINIÃO
jectos de investigação publicamente interactivos, e em programas de pela sua capacidade de traduzir a retórica para a prática” 19. No seu
interpretação que incluam as diversas vozes. Recordamos a Convenção livro The Art of Relevance, dá nota das experiências implementadas
sobre o Valor do Património Cultural Para a Sociedade (Convenção de nesse museu para o tornar mais relevante para as pessoas 20.
Faro, 2005) 15 ou o Guía de Buenas Prácticas en Patrimonio Mundial: O museu que quase fechou as portas em 2011, por se ter tornado irre-
Arqueología (Menorca, 2015) 16, para afirmar e defender que a comu- levante para a Comunidade de Santa Cruz, mas a função social dos
nidade deve estar envolvida na museus que Simon defende permitiu torná-lo mais relevante e próxi-
15
gestão do Património cultural. Disponível em mo das pessoas, através do trabalho activo com a comunidade 21.
A acentuada desconexão entre as https://dre.pt/pesquisa/-/search/ Museus participativos, muito para além do visitante utilizador, como
453874/details/maximized
comunidades e a gestão de sítios (consultado em 2017-12-14). este, é como imaginamos no futuro os museus de Arqueologia e, no-
arqueológicos musealizados, par- 16
Disponível em meadamente, o Museu do Côa. No cumprimento da Recomendação
ques e museus arqueológicos, po- https://www.academia.edu/ Relativa à Protecção e Promoção dos Museus e das Colecções, da sua Di-
de ser fruto do elitismo dos fun- 1257446/Gu%C3%ADa_de_ versidade e do seu Papel na Sociedade 22, aprovada a 17 de Novembro
Buenas_Prácticas_en_Patrimonio_
cionários e académicos, das políti- Mundial_Arqueolog%C3%ADa de 2015, em Paris, no âmbito da 38.ª sessão da Assembleia Geral da
cas de poder e dos discursos elitis- (consultado em 2017-12-14). UNESCO.
tas. Esta nova Recomendação marca uma posição sobre as orientações a
Acreditamos que a Arqueologia pode promover a transformação so- seguir pelos Estados Membros em matéria de políticas museológicas,
cial. Para isso, a prática arqueológica em contextos de Arqueologia na qual surge uma nova definição de museu, correspondendo à ideia
pública deve responder às necessidades sociais, com fins científicos e de “um museu do século XXI construído em termos participativos” 23.
princípios éticos que desenvolvam a participação comunitária e con-
19
vertam os museus de Arqueologia em espaços de cooperação, inter- 4.2. ARQUEOLOGIA Segundo recensão publicada
câmbio e debate. PÚBLICA E MUSEOLOGIA em https://nomundodosmuseus.
hypotheses.org/7208 (consultado
Uma Arqueologia que se baseará principalmente nos seus valores PARTICIPATIVA em 2017-12-14).
sociais, na criação de narrativas e benefícios públicos, uma “arqueolo- 20
Ver http://www.
gia criativa” que se concentre na co-criação de valor social comparti- Apesar de serem duas disciplinas artofrelevance.org/ (consultado
em 2017-12-14).
lhado, baseado na responsabilidade social, que fomente a “inclusão so- totalmente autónomas, com ob- 21
Ver “Opening up the
cial” e a “igualdade intergeracional” (DRIES et al., 2015: 51-53). jectivos diferentes, a Arqueologia
Museum”, disponível em
e a Museologia convergem na res- https://www.youtube.com/watch?v=
ponsabilidade perante a sociedade aIcwIH1vZ9w (consultado
em 2017-12-14).
4. O MUSEU E A ARQUEOLOGIA em investigar, conservar e divulgar 22
Disponível em
a nossa memória histórica (AZUAR http://www.patrimonio
4.1. MUSEU COMO PONTO DE ENCONTRO RUIZ, 2013: 16). cultural.gov.pt/pt/news/comunicados/
Em busca dessa convergência, re- recomendacao-da-unesco-relativa-
protecao-e-promocao-dos-museus-e-
Seguimos as directizes da Declaração de Salvador 17, assinada durante centemente, defendemos o desen- das-colecoes-da-sua-diversidade-e-
o I Encontro Ibero-Americano de Museus, na capital da Bahia, volvimento de um amplo Progra- do-seu-papel-na-sociedade/
Brasil, por forma a “assegurar que os museus sejam territórios de salva- ma de Arqueologia Comunitária do (consultado em 2017-12-14).
23
guarda e difusão de valores democráticos e de cidadania, colocados ao ser- Vale do Côa (FRANCISCO e GIL, A interiorização e a adopção
do paradigma de museu
viço da sociedade, com o objetivo de propiciar o fortalecimento e a mani- 2017) que, a ser implementado, participativo, em que as afinidades
festaçaõ das identidades, a percepçaõ crítica e reflexiva da realidade, a permitirá ultrapassar a impermea- e os papéis dos públicos vão
produçaõ de conhecimentos, a promoção da dignidade humana e oportu- bilidade do “discurso autorizado de muito além da sua mera
consideração como visitantes ou
nidades de lazer”. património” (SMITH, 2006 e 2011), utilizadores, é talvez o aspecto
17
Nina Simon 18, autora do muito Disponível em decorrente de duas décadas de Ar- que poderá ter maior repercussão.
citado The Participatory Museum http://www.ibermuseus. queologia pública em que as co- Isso significa uma mudança de
org/publicacoes/declaracao-da- paradigma e de mentalidade,
(SIMON, 2010), é, desde 2011, cidade-de-salvador/ (consultado munidades locais não têm sido que se traduz sempre em
directora do Santa Cruz Museum em 2017-12-14). consideradas nas políticas públi- mudanças mais lentas.
18
of Art & History (https://santa- Autora do cas de investigação, gestão e salva-
cruzmah.org/), na Califórnia, Esta- blogue “Museum 2.0”, guarda do Património nesta região. Propusemos ainda o reforço da
disponível em http://museumtwo.
dos Unidos, e “tem sido uma gran- blogspot.pt/ (consultado em componente social da Arqueologia, através da criação de uma Rede
de influência no mundo dos museus 2017-12-14). Colaborativa, por forma a incentivar a prática de uma Arqueologia
93
OPINIÃO
No sentido de posicionar o Museu como um recurso comunitário, dos indicadores usados para avaliar o seu desempenho, conquanto,
seguimos Elizabeth Bollwerk e Robert Connoly, editores do livro Po- nenhum destes é um indicador cultural, que reflicta as necessidades
sitioning Your Museum As Critical Comunity Asset: A Pratical Guide 28 culturais, oportunidades ou bem-estar da comunidade, como bem
e organizadores da reunião anual nos recorda Robert Connoly 30.
28 30
da Society for Applied Anthropo- Disponível em Torna-se cada vez mais evidente Ver https://www.cambridge.org/
logy, dedicada à questão “Museus https://museumcommunities.com/ que o sistema quase tradicional de core/journals/advances-in-
the-resource-guide/ (consultado archaeological-practice/article/
e Questões Sociais: autoridade em 2017-12-14). definir o Património cultural atra- cocreation-as-a-twentyfirst-century-
aberta através do envolvimento vés de especialistas e académicos e, archaeology-museum-practice/
comunitário”. depois, explicar os seus valores às 3D55C5E037241A2AE8F
876620A37B1FE (consultado
A partir daí, defendermos a construção de uma rede entre o Museu e comunidades locais e visitantes, pa- em 2017-12-14). WORTS (2006),
a Comunidade, através de uma abordagem co-criativa que envolva os rece não ser mais o adequado, co- propõe um quadro de avaliação
membros da comunidade como partes interessadas do Património mo no caso em análise. crítica com indicadores culturais
intangíveis como alternativa.
cultural e posicione esta organização cultural como um bem da co- Urge uma visão holística do Patri-
munidade integral. mónio cultural, uma abordagem
Por esta via, o Museu deixa de ser uma instituição elitista e passa a ser co-criativa que se baseie num modelo de ciência cidadã, dê voz e seja
um agente de integração social, lugar de encontro e intercâmbio de receptivo às necessidades e interesses dos membros das comunidades
ideias, onde ninguém se sente excluído. Essa preocupação parece locais.
transparecer na tutela dos museus dos Estados Unidos da América, A Arqueologia aplicada que defendemos, não é simplesmente um
através da iniciativa Community Catalyst, desenvolvida pelo Institute meio para criar conhecimento, mas deve servir para envolver as co-
of Museum and Library Services (agência independente do governo munidades na tomada de decisões sobre a investigação, preservação e
federal, que tem como missão a gestão dos museus e bibliotecas a ní- divulgação do seu Património cultural. Tal entendimento da Arqueo-
vel nacional), em cooperação com o Reinvestment Fund, destinada à logia aplicada significa uma prática com e não para o público (MERRI-
apresentação de propostas que visam o desenvolvimento de aborda- MAN, 2004: 6-11), e nesse entendimento está implícita uma aborda-
gens colaborativas nos museus e bibliotecas, cujo objectivo é “provo- gem construtivista.
car mudanças positivas na comunidade” 29.
Como podemos constatar pelo ex-
29
posto, o tema da participação e en- Ver https://www.imls.gov/ 5. REDE COLABORATIVA PARA A
volvimento do público na gestão news-events/news-releases/grant- VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO
opportunity-encourages-community-
do Património e dos museus, ga- development-approaches-libraries DO VALE DO CÔA
nhou importância a partir de 2007, e https://www.imls.gov/issues/
quando o Comité do Património national-initiatives/community- A noção de Património como elemento da cidadania (JORGE, 2016:
catalyst-initiative (consultados
Mundial da UNESCO ampliou os em 2017-12-14). 196), insere-se na proposta que recentemente apresentámos, centrada
quatro pontos já aprovados dos na utilização de técnicas participativas e novas fórmulas de gestão do
objectivos estratégicos para a im- Património, tendo como finalidade a criação da Rede Colaborativa pa-
plementação da Convenção do Património Mundial (a credibilidade, a ra a Valorização do Património Arqueológico do Vale do Côa (FRANCIS-
conservação, a capacitação e a comunicação), acrescentando o “quin- CO e GIL, 2017: 48-50).
to C” - Comunidades. Tendo em conta a importância da participação em modelos alterna-
Desde então, as comunidades receberam uma maior atenção em todo tivos de gestão patrimonial, esta proposta pretende dar resposta ao
o trabalho patrimonial e, especialmente, nos sítios classificados como repto que supõe estabelecer pontes entre políticas públicas e comuni-
Património Mundial da UNESCO. Identificar, reconhecer e valorizar dades através da gestão descentralizada do Património, como no caso
a comunidade local como actor-chave no processo de gestão susten- em análise.
tável do Património, desenvolver métodos de diálogo construtivos Assenta na tríade conceptual: Território-Património-Comunidade
entre todas as partes interessadas e encorajar a compreensão mútua e (DE VARINE, 2009: 53 e 2011), no âmbito da filosofia sociomuseo-
a colaboração, tornou-se um dos principais desafios dos gestores dos lógica, e tem por base alguns exemplos, como é o caso de Val Ca-
sítios classificados como Património Mundial pela UNESCO. monica 31, onde se criou um “distrito cultural” que reúne museus, sí-
No entanto, é estranho que os museus, uma das principais instituições tios arqueológicos, monumentos e 31
Ver http://www.vallecamonica
dedicadas à Cultura, não avaliem o seu sucesso em termos culturais. centros culturais num sistema in- cultura.it/ (consultado em
Número de visitantes, receitas, exposições e publicações são alguns tegrado de gestão. 2017-12-14).
95
OPINIÃO
Tem vindo a ser entendida como uma democratização do conheci- O objectivo principal é criar uma estrutura que permita equilibrar as
mento arqueológico (SHACKEL, 2001; HOLTORF, 2006), descrita co- responsabilidades e compromissos da equipa do Museu com os mem-
mo uma teorização inovadora sobre as relações entre presente e pas- bros da comunidade, através do convite à participação activa no
sado, a investigação arqueológica e o público (SIMPSON e WILLIAM, desenvolvimento de abordagens criativas e novas conexões com o Pa-
2008). Não existindo uma ontología, existem, no entanto, elementos trimónio.
34
metodológicos comuns, destacando-se a etnografia arqueológica co- O Museu 35 oferecerá a estes cola- Ver a entrevista com
mo forma de entender as cosmologias e representações das comuni- boradores reconhecimento, rece- Nina Simon, directora executiva
do Museu de Arte e História de
dades acerca das “coisas arqueológicas”, as suas narrativas do passado, berá contributos e assegurará que Santa Cruz, disponível em
e a integrá-las em todas as etapas da investigação arqueológica. estas contribuições sirvam efecti- http://museumtwo.blogspot.pt/
Apesar disto e das múltiplas recomendações das organizações interna- vamente para construir o futuro 2013/02/guest-post-radical-
collaboration-tools.html
cionais, entre as quais o ICOMOS e a UNESCO, para que as comunida- da instituição cultural, por esta via (consultado em
des locais fossem implicadas na tomada de decisões na gestão dos participativa e colaborativa. 2017-12-14).
35
sítios classificados como Património da Humanidade, observamos que Finalmente, recomendamos a re- Um “museu de território”,
esta recomendação não foi seguida pela entidade pública que gere o classificação do Museu do Côa co- que gere “construções e sítios
de paisagem cultural como ‘
Parque Arqueológico / Museu do Côa. mo Museu Nacional, recomenda- museus extensivos’, oferecendo
Face ao exposto, parece por demais evidente a necessidade de rever as ção alinhada com a posição da di- protecção e acessibilidade acrescidas
relações entre a Arqueologia, a Museologia, os estudos do Património recção da Comissão Nacional Por- a tais patrimónios, em relação
próxima com as comunidades”
e as comunidades, através da prática de uma Arqueologia colaborativa tuguesa do ICOM (ICOM Portu- (conforme a Resolução do
e Museologia participativa, liderada pelo Museu do Côa, atendendo gal), que considera “mesmo algo ICOM-Milão 2016 -
A Responsabilidade dos Museus
à Recomendação Relativa à Protecção e Promoção dos Museus e das Colec- anómalo que já tal não aconteça no
para com a Paisagem).
ções, da sua Diversidade e do seu Papel na Sociedade (UNESCO, 2015), presente, dado que estamos perante 36
Ver http://icom-portugal.
documento que advoga a participação das comunidades no desenvol- um bem classificado como patrimó- org/multimedia/documentos/
vimento das funções museológicas e apela à criação de políticas públi- nio Mundial” 36. 201705_ICOM_COA.pdf
(consultado em
cas inclusivas.
2017-12-14).
Um modelo de governança participativa, através
da “participação cidadã na gestão do património”
(DRIES et al., 2015; WATSON e WATERTON,
2010), alternativa à abordagem dominante nas BIBLIOGRAFIA
últimas duas décadas, que cumpra a promessa de
uma gestão do património mais democrática.
A implementação dos procedimentos participa- ALONSO GONZÁLEZ, P. (2013) – The Heritage
Machine: A Heritage Ethnography in Maragatería
AZUAR RUIZ, R. (2013) – Museos,
Arqueologia, Democracia y Crisis. Gijón:
tivos e colaborativos propostos permitirá curar (Spain). Tesis doctoral. León: Universidad de León. Ediciones Trea.
as “fracturas sociais” provocadas pelas relações de Em linha. Disponível em http://www.academia.edu/ BAPTISTA, António Martinho (2012) –
3672048/The_Heritage_Machine._A_Heritage_ “Museu do Côa”. Informação ICOM.PT.
poder (BENDIX, EGGERT e PESELMANN, 2012; Ethnography_in_Maragater%C3%ADa_Spain_ ICOM-Portugal. Série II. 16: 11-17.
HAFSTEIN, 2014) do “regime patrimonial” e trans- (consultado em 2017-12-14). Em linha. Disponível em http://www.arte-coa.pt/
formar o Museu do Côa num espaço de encon- ALONSO GONZÁLEZ, P. (2014) – “From a given to Ficheiros/Bibliografia/1798/1798.pt.pdf
a construct: Heritage as a commons”. Cultural (consultado em 2017-12-14).
tro entre teoria e prática e, mais importante, Studies. 28 (3): 359-390. BARROS DA SILVA, H. (2015) – Um Paradigma
entre pessoas que gradualmente desenvolverão ARRIETA URTIZBEREA, I. (2008) – Participación do Território Enquanto Matéria Construtiva:
uma comunidade patrimonial. Ciudadana, Patrimonio Cultural y Museos: o Museu Arqueológico do Foz do Côa.
entre la teoría y la praxis. Bilbao: Universidad del Dissertação de Mestrado Integrado em
Sugerimos a criação de um Conselho Comuni- País Vasco. Em linha. Disponível em https://addi. Arquitectura apresentada à Faculdade de
tário, composto por um grupo diversificado de ehu.es/handle/10810/15189 (consultado Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada
pessoas, que reúnam trimestralmente para com- em 2017-12-14). de Lisboa. Em linha. Disponível em
AYÁN VILA, X. (2014) – “Arqueologías Públicas http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/
partilhar ideias sobre o desenvolvimento de ex- en las Comunidades Autónomas de Galícia”. 2269/1/mia_humberto_silva_dissertacao.pdf
posições, programas de divulgação e programas La Linde. Revista digital de Arqueología profesional. (consultado em 2017-12-14).
familiares e comunitários, similar ao desenvolvi- 3: 93-138. Em linha. Disponível em http://lalinde BENDIX, R.; EGGERT, A. e PESELMANN, A. (eds.)
arqueologia.com/arqueologias-publicas-en-las- (2012) – Heritage Regimes and the State.
do desde 2012 pelo Museu de Arte e História comunidades-autonomas-de-galicia/ Göttingen: Universitätsverlag Göttingen
de Santa Cruz 34. (consultado em 2017-12-14). (Göttingen Studies in Cultural Property, 6).
97
OPINIÃO
RESUMO
T
ras la llegada de los musulmanes a la Península Ibérica se suceden toda una serie
RÉSUMÉ
de cambios que pueden observarse en el registro material. De esta manera, la ar-
Avec l’arrivée des Musulmans dans la Péninsule Ibérique, queología puede arrojar luz sobre el alcance de estos procesos así como el tiem-
on observe des transformations au niveau du registre matériel.
L’Archéologie peut éclaircir la portée de ce type de processus
po que tardan en producirse. Sin embargo, los estudios arqueológicos sobre el siglo VIII
et sa transformation au long du temps. Cependant, son escasos en casi toda la península. Con este artículo intentaremos explicar el porqué
les études archéologiques sur le VIIIème siècle ap. J.-C.
del desinterés casi generalizado por los estudios relativos a estos momentos, partiendo de
sont rudimentaires pour presque tous les
contextes péninsulaires. un estudio historiográfico y bibliométrico. A partir de estos datos podremos elaborar una
Cet article cherche à identifier les causes de ce serie de hipótesis que puedan ayudarnos a explicar alguno de los motivos por los que el
désintérêt presque généralisé, en se basant sur une
recherche historiographique et bibliométrique qui permet siglo VIII queda relegado de la investigación.
d’élaborer certaines hypothèses explicatives.
Los estudios de cerámica islámica tienen su origen en una breve, pero muy importante
publicación de Gómez Moreno en 1888, en la que recoge la cerámica obtenida de inter-
venciones en el entorno de la ciudad de Illbirah (Granada). Después de él se llevaron a
cabo algunos estudios similares, aunque no adquieren especial relevancia hasta los años
70. Es entonces cuando Roselló Bordoy, en 1975, publica Ensayo de sistematización de la
cerámica islámica de Mallorca. En este, y en posteriores estudios, analiza la nomenclatura
y las formas de la cerámica islámica de la isla homónima, recogiendo también las formas
de las primeras épocas. En 1978 se realiza el Primer encuentro de cerámica medieval del
Mediterráneo Occidental en Francia (Ier Colloque International, Valbonne, 1978: La Cé-
ramique médiévale en Méditerranée occidentale. Xe-XVe siècles), suponiendo un punto de
I
Universidad de Sevilla
inflexión por reunir a autores con diferentes puntos de vista, y sobre todo, con formacio-
(anmo1702@hotmail.com). nes muy dispares. Zozaya presenta su estudio sobre la evolución de la cerámica teniendo
99
OPINIÃO
FIG. 2 - Volumen
de publicaciones
por año.
Dejando esto a un lado, podemos ver el comienzo de las publicacio- como para hacer libros monográficos. El tipo que más predomina es
nes entre los años 70 y los 80. Desde el año 2000 hasta 2008, mo- la revista ya que está presente en todas las zonas, a excepción del oeste.
mento en el que se observa un pico bastante acentuado hacia abajo. Tras esto lo más utilizado son las Actas de Congreso.
Después de este descenso de publicaciones, vuelven a aumentar y se
mantienen, aunque con altibajos más o menos constantes. INFERENCIAS SOBRE LOS RESULTADOS
Estudiar el tipo de publicación puede ser interesante para poder dife- DEL E STUDIO B IBLIOMÉTRICO
renciar los intereses y también de cuánta información se dispone, ya
que si no hay información suficiente sobre un tema, no es sencilla la En primer lugar este estudio permite ver que hay una gran deficiencia
publicación de una obra monográfíca. El resultado de esta prueba nos para el conocimiento del siglo VIII y que esta radica en la falta de biblio-
muestra que no hay grandes diferencias a la hora de publicar en un grafía y por tanto, de publicaciones científicas. Sin embargo, podemos
medio o en otro. Suponemos que dependiendo de la zona sí hay ver cómo conforme han ido pasando los años la tendencia a estudiar
variaciones, así como dependiendo del año. esta época ha aumentado, teniendo rachas con bastante producción.
Para poder observar esto se elaboran las dos últimas gráficas. El hecho de que la zona más estudiada sea el este y el sudeste tiene fá-
Comparando el tipo de publicación con el año (Fig. 3), podemos ver cil explicación, como ya señalamos en la historiografía. Es este el lugar
que en 2011, como ya señalamos antes, predominan los Capítulos en donde se comienza a investigar la cerámica medieval y en concreto el
Libro, muchos de ellos pertene-
cientes al libro que ya menciona- FIG. 4 - Comparación del volumen de
mos. Por lo general vemos que publicaciones según zona estudiada y
tipo de publicación.
la tendencia general es bastante
homogénea, y que no hay gran-
des diferencias.
Finalmente, en la última gráfica
(Fig. 4), sí que podemos inferir
diferencias. Por ejemplo, la mayor
cantidad de publicaciones en li-
bros se da para el este, sudeste y
los estudios a nivel general, son
los lugares que generan más vo-
lumen de información, y por
tanto la información necesaria
101
OPINIÃO
periodo que nos concierne, por tanto, no es de extrañar que, teniendo 607). Otra complicación asociada al reconocimiento material del
una historiografía más larga, tengamos mayor información. siglo VIII es el desconocimiento del registro del siglo VII (GUTIÉRREZ
Con este tipo de análisis bibliométrico podemos ver incluso las ten- LLORET, 1988: 35). Sin embargo, en las últimas décadas los estudios
dencias de algunas zonas a nivel de investigaciones. El hecho de que de la Tardoantigüedad han ido creciendo de manera exponencial.
el suroeste, por ejemplo, tenga menos publicaciones para esta época, Para la zona del Bajo Guadalquivir contamos con varias publicacio-
significa que la tendencia en este lugar es investigar otros momentos nes entre las que destacamos la realizada en 2013 por Enrique García
históricos, quizás de mayor relevancia histórica en ese territorio. Es Vargas et al., llamada el Bajo Guadalquivir durante la Antigüedad
decir, en lugares como Sevilla, existen periodos o momentos históri- Tardía (Siglos III-VII d.C.). Ensayo de una tipología de asentamientos,
cos de tal relevancia y que generan tanta información o interés, que una revisión de trabajos anteriores de García Vargas y Vázquez Paz
eclipsan a otros. entre 2012 y 2013.
Hemos obtenido que muchas de estas publicaciones tienen lugar en Los siglos VI y VII son siglos que por sí solos presentan complicacio-
la zona centro, esto se debe a que Madrid, como capital, tiene mayor nes que dificultan su estudio de materiales al encontramos con una
capacidad para publicar, y por otro lado centraliza gran parte de los realidad cultural muy compleja y variada formada por hispanorroma-
estudios. nos, visigodos y bizantinos en la costa mediterránea. Por otro lado, la
Quizás una de las pruebas más curiosas es la del número de publica- cerámica visigoda aparece frecuentemente de manera sesgada, casi en
ciones por año, en la que observamos cómo en los primeros años del su totalidad asociada a ajuares y contextos funerarios (GUTIÉRREZ
siglo XXI aumentan las publicaciones de forma exponencial, produ- LLORET, 1988: 34). Muchos de estos materiales se encuentran depo-
ciéndose después, en 2008, una gran caída. Estos años coinciden con sitados en museos debido a que provienen de excavaciones antiguas.
los años de bonanza económica y constructiva, y con ello el auge de Esto supone también un problema a la hora de su estudio, ya que en
la arqueología urbana. Estas supusieron el contexto clave para facilitar el momento de la excavación no se atendieron como se debería.
la identificación de materiales, con cronologías obtenidas a partir de Ejemplo de ello fue el estudio de la cerámica tardoantigua y emiral
estratigrafías con secuencias de ocupación completa, algo que se da en del Cerro del Molino del Tercio en Granada, cuyo estudio retoma
muchas ciudades españolas. Jiménez Puertas en 2008.
Podemos señalar que el contexto de aparición del registro material es
completamente necesario en estos casos, ya que no tenemos series
CONCLUSIONES tipológicas bien establecidas (GUTIÉRREZ LLORET, GAMO PARRAS Y
AMORÓS RUIZ, 2003: 161). También, debemos indicar la necesidad
El siglo VIII es un siglo de transición cultural. Partiendo de esta base, de conocer las formas precedentes, para así poder determinar si en
nos encontramos ante un momento de complejidad social, lo que di- este momento de cambio cultural, se dan procesos de continuidad o
ficulta su estudio y el reconocimiento de sus componentes y sus lími- ruptura. En el caso de que no existieran repertorios materiales bien
tes. El repertorio material de estos momentos está formado por ele- estudiados, Sonia GUTIÉRREZ LLORET (1986: 148) afirma que lo más
mentos tanto visigodos como emirales, siendo usual que estos mate- correcto sería realizar un estudio paralelo de los materiales del siglo
riales se clasifiquen en uno u otro periodo, sin llegar a crear un reper- VIII y tardorromanos, como se realiza en la Ermita de Fontcalent, en
torio conjunto que sea representativo de estos momentos de transi- Alicante, La Alcudia, de Elche y la Arneva de Orihuela.
ción. Por otro lado, y debido en gran parte a que se desconocen estas A nivel de trabajo investigador, también existen limitaciones que de-
producciones, estos materiales han tendido a ser confundidos con los rivan fundamentalmente de la escasez de publicaciones y en muchos
de época prehistórica, por estar fabricados a mano, por sus bordes al- casos del desinterés por parte de los investigadores por este siglo. Son
mendrados, mamelones, carenas o bases planas, por lo que los con- numerosas las publicaciones cuyos títulos sugieren la temática de la
textos son extremadamente fundamentales para su correcta interpre- transición entre la Tardoantigüedad y la Alta Edad Media, y pasan
tación (ALBA CALZADO y GUTIÉRREZ LLORET, 2008: 588). por alto el siglo VIII, fundamental para la comprensión de los cam-
Fundamentalmente aparece vajilla de cocina, algo que ha limitado su bios que se sucederán en los años posteriores. El siglo VIII se encuen-
estudio debido a que durante mucho tiempo, la tendencia central tra inserto dentro de una dinámica de “Épocas Oscuras” muy fre-
siempre fue estudiar elementos de prestigio o lujo, quedando estos cuentes en la etapa medieval. Algunas de estas épocas se han ido
repertorios en segundo lugar u olvidados (ALBA CALZADO y GUTIÉR- conociendo poco a poco, pero aún existen algunas que necesitan más
REZ LLORET, 2008: 596-597; GUTIÉRREZ LLORET, 1988: 33). Por estudios que esclarezcan qué ocurre en estos momentos.
otro lado la cerámica común dificulta el establecer cronologías preci- A pesar de ello existen excepciones como la zona oriental de la penín-
sas debido a que estos materiales se mueven por periodos temporales sula. Diversos autores como Rosselló Bordoy, Gutiérrez Lloret, Acién
mucho más amplios (ALBA CALZADO y GUTIÉRREZ LLORET, 2008: Almansa o Malpica Cuello han dedicado gran parte de su labor inves-
103
OPINIÃO
RESUMO
P
Le paradigme des budgets participatifs, avec en exemple ortugal tem assistido a um crescimento abrupto do fenómeno dos Orçamentos
le projet Caractérisation et Plan d’Action du Canon Cársico Participativos, não ficando imune às dinâmicas inerentes, que, num primeiro
de Ota, vainqueur du premier budget participatif de la
Municipalité de Alenquer.
momento, surgem e reflectem uma tendência internacional. Ainda assim, Por-
Avec des versants de recherche et de développement régional tugal tem sido um dos países da Europa que maior interesse tem demonstrado sobre esta
dans les domaines de la Biologie, de la Géologie et de
política de cidadania activa e participada, verificando-se no nosso território uma das pro-
l’Archéologie, ce projet favorise la pluridisciplinarité
et la participation des citoyens. porções mais elevadas de “autarquias experimentadoras”.
On présente ici leurs caractéristiques génériques O Orçamento Participativo (OP) pode ser definido como um modelo de gestão aplicado
et les résultats de la composante Archéologie.
por um município ou freguesia concretas, que pretendem inverter as relações e meios tra-
MOTS CLÉS: Archéologie publique; Gestion du Patrimoine; dicionais de produção de decisões. Promovem, desta feita, a existência e aplicação de um
Société; Science citoyenne; Budget participatif.
modelo de gestão local/regional, com efeitos políticos directos, que funciona no sentido
inverso geralmente aplicado, dotando as bases decisórias de um poder tipicamente carac-
terístico dos agentes políticos. Estas condições permitem ao cidadão comum, através dos
mecanismos deliberativos associados incondicionalmente ao OP, emergir no espaço pú-
blico, não apenas como cidadãos anónimos, mas como agentes dinamizadores e respon-
sáveis, capazes de realizar escolhas fundamentais para a vida colectiva, assumindo-se e va-
lorizando-se por essas mesmas escolhas (Fig. 1).
É neste contexto de fluidez decisória e de grande influência dos cidadãos, que surge o
projecto do Canhão Cársico de Ota, com o intuito de proceder à sua caracterização, valo-
I
Investigador independente (andrelopes@campus.ul.pt).
rização e protecção, através da elaboração de um plano de acção específico, que abarca di-
II
ICArEHB - Interdisciplinary Center for Archaeology versas áreas científicas, nas quais a Arqueologia tem preponderância. Como tal, o propó-
and Evolution of Human Behaviour sito desta apresentação é, objectivamente, ilustrar não só uma nova via/caminho para o
(catarinasbasilio@gmail.com).
desenvolvimento de trabalhos de valorização arqueológica ligada, directamente, às popu-
Por opção dos autores, o texto não segue as regras
lações, como partilhar a aprendizagem e resultado do projecto, vencedor do Orçamento
do Acordo Ortográfico de 1990. Participativo de Alenquer em 2014.
105
OPINIÃO
Às características geológicas e espaciais, pode ainda ser adicionada O projecto Caracterização e Plano de Ação do Canhão Cársico de Ota,
uma bem documentada ocupação humana da área em estudo, verifi- como brevemente sublinhado, surge como proposta do 1.º Orçamen-
cando-se inúmeros achados arqueológicos, que rondam os 1700 ma- to Participativo desenvolvido pelo município de Alenquer. Este orça-
teriais classificáveis. Estes distribuem-se por entre colecções de museu mento assenta em bases fortemente democráticas e participativas,
e trabalhos de prospecção no âmbito do projecto de Caracterização e chamando os munícipes e envolvendo-os, através da apresentação de
Plano de Ação do Canhão Cársico de Ota, que permitem balizar a ocu- propostas e da votação, na distribuição de fundos canalizados para o
pação, ainda que de forma muito genérica, entre o Paleolítico Inferior efeito e na concretização e materialização dos diversos projectos apre-
e o Período Islâmico. A nível de sítios arqueológicos referenciados, o sentados. Até ao presente ano, nenhum projecto exclusivamente de
mais relevante é conhecido como Castro de Ota, tendo sido ainda investigação científica foi vencedor de um orçamento participativo,
indicadas duas áreas com potencial arqueológico, nas quais se identi- sendo este projecto o pioneiro a nível nacional, com aval público,
ficou um troço de via romana e um possível sítio habitacional ou de congregando três áreas do saber complementares entre si, na área em
aprovisionamento (Fig. 4). estudo – Arqueologia, Biologia e Geologia (Fig. 5).
A valorização do património natural de uma região constitui, nos dias Todavia, é preciso compreender a necessidade que levou ao surgi-
de hoje, uma ferramenta de desenvolvimento local, que deve ser in- mento dos Orçamentos Participativos que foram, posteriormente,
cluída e aproveitada nas estratégias de dinamização cultural e cientí- aplicados em Portugal. O contexto de redemocratização vivido pelo
fica das regiões. O vale escarpado do Canhão Cársico de Ota consti- Brasil a partir de 1985, com o regresso das eleições directas para as ca-
tui, pois, um dos mais valiosos tesouros do Património Natural, His- pitais e as tendências descentralizadoras promovidas pela Carta de
tórico e Cultural do concelho de Alenquer, que, com o projecto Ca- 1988 – a qual definiu os municípios como entes autónomos da admi-
racterização e Plano de Ação do Canhão Cársico de Ota, financiado nistração central –, permitiu o surgimento de novas potencialidades
através do 1.º Orçamento Participativo de Alenquer, tem vindo a ser para a gestão local, enfatizando e desenvolvendo as complexidades da
cada vez mais conhecido e visitado. acção dos diversos agentes urbanos.
As instâncias municipais, apesar da concentração dos recursos pro- das instituições governamentais, executivas e legislativas. O Orça-
movida desde 1994, tornaram-se locais privilegiados para a emergên- mento Participativo de Alenquer (OPA) é um processo, também ele,
cia da cidadania no país (FEDOZZI, 2001: 93), indicando possibilida- de participação directa das pessoas na gestão do município, através da
des de alterações no profundo autoritarismo social enraizado na socie- disponibilização anual de parte do orçamento autárquico para ser
dade brasileira. Foi neste contexto, num ambiente plenamente auto- aplicado segundo as propostas apresentadas e escolhidas pelos cida-
ritário, que surgiram importantes experiências de gestão participativa. dãos. Conhecido o montante disponível em cada ano, os munícipes
Contudo, foi com a iniciativa desenvolvida desde 1989, em Porto avançam e debatem diversas propostas, decidindo e escalonando as
Alegre, que se firmou o modelo de gestão baseado no orçamento pú- prioritárias, através da votação, enquanto o executivo se compromete
blico (FEDOZZI, 2001: 93). O orçamento público é assim tido como a pô-las em prática.
o principal instrumento de gestão do Estado moderno, para o caso do A participação é aberta a todos os cidadãos, independentemente de
Brasil (FEDOZZI, 2001: 97), assumindo-se actualmente em Portugal estes serem residentes, trabalhadores, estudantes ou que apenas man-
como uma moda popular entre as administrações locais, encontran- tenham outro tipo de relação com o município de Alenquer, tornan-
do-se em plena disseminação pelo país. do este um orçamento “nacional” com o intuito de desenvolver as es-
Em suma, os orçamentos participativos devem ser encarados e com- truturas e as dinâmicas locais. A participação dos cidadãos, como tem
preendidos como um contrato social, que se valida, em primeira ins- vindo a ser elencado, acontece ao longo de todo o processo, ainda que
tância, no desenvolvimento da iniciativa, materializando-se na vota- se possam individualizar dois momentos onde os níveis de participa-
ção do orçamento e na posterior concretização do que foi votado. Re- ção são, necessariamente, mais visíveis – numa primeira fase, na apre-
presentam, por um lado, as formas e os montantes da renda nacional sentação de propostas e, num momento mais final na cadeia de suces-
e local que são destinados à administração do país, e, por outro, como são de momentos do orçamento participativo, através da votação dos
é feita a distribuição dos recursos e quais os principais beneficiários projectos finalistas.
deles na sociedade. A participação é feita de forma presencial, em sessões públicas orga-
No orçamento estão inscritos grande parte dos direitos e deveres dos nizadas pelo município nas onze freguesias do Concelho, e através de
cidadãos, reflectindo igualmente os diferentes interesses políticos e plataformas online, que servem também na apresentação de propostas
económicos dos grupos locais, que pretendem ser incluídos na distri- e na votação.
buição dos escassos recursos disponíveis, sendo por isso que, geral- Um processo inclusivo e facilitado, permitindo que toda a população
mente nos países com prática democrática consolidada, a aprovação possa exercer o seu direito de voto, definindo e construindo, como
do orçamento público constitui um dos principais momentos da vida parte integrante, o futuro das suas localidades e do seu Concelho.
107
OPINIÃO
ANTECEDENTES
Foi neste panorama que o coordenador do projecto, José Carlos pais: 1) comunicação directa com os votantes e principais interessa-
Morais, decidiu submeter uma versão “simples” do projecto que ou- dos, sem interlocutores, 2) abrangência de um vasto grupo de muní-
trora conquistou o financiamento do fundo de contrapartidas. Esta cipes e 3) uma forma financeiramente acessível, que permite a divul-
versão, construída consoante as limitações impostas pelos regulamen- gação de diversos suportes (imagem, textos, vídeo). A rede social esco-
tos do Orçamento Participativo, contaria com um prazo máximo de lhida foi o Facebook, tendo sido constituída a página denominada
dois anos e com um financiamento que não poderia ultrapassar os “Canhão Cársico de Ota” que, numa primeira instância, obteve o re-
60.000,00€. Estas limitações foram seguidas, tendo sido aplicada conhecimento do principal público afecto ao projecto – os habitantes
uma estratégia orçamental que respeitou os pressupostos prévios, co- de Ota. De seguida, com a familiaridade geral do público com o fun-
brindo todos os gastos planeados para a caracterização dos elementos cionamento desta rede social, a página pôde atingir outros grupos, que,
arqueológicos, geológicos e biológicos e a respectiva conclusão, com inclusivamente, desconheciam a paisagem do Canhão Cársico. Contou-
a criação de um documento directivo, o plano de acção, num projec- -se igualmente com o papel central da partilha e divulgação das pes-
to cujo valor final foi de 45.000,00€. Para a realização do mesmo, soas de Ota por entre os respectivos círculos de amigos/contactos.
foram consideradas as características intrínsecas deste local “mítico” Fundamental para a vitória foi a estratégia de comunicação que assen-
para a população local e, de forma a corresponder às suas exigências tou, numa primeira fase, na explicação do projecto a que se propunha
e expectativas, reuniu-se uma equipa de três jovens qualificados para o grupo de trabalho. Seguiu-se uma fase que se destinava a envolver,
coordenarem as três áreas científicas, tendo estes que responder ao co- e fazer participar, todo o tipo de públicos, tendo como objectivo res-
ordenador geral – José Carlos Morais. ponder à questão O que é o Canhão Cársico de Ota? Através de uma
Reunida a equipa e apresentada a proposta à estrutura do Orçamento rúbrica diária que assumia diversos tipos de formato, vídeo, imagem
Participativo de Alenquer, a conquista do financiamento estava ainda ou texto. A linguagem aplicada foi, tendo em conta a panóplia de par-
dependente de duas vitórias, a votação online, na qual apenas os dois ticipantes, clara, curta e concisa, mantendo-se este tipo de discurso na
projectos mais votados passavam, sendo esses posteriormente incluí- justificação e fundamentação do projecto, recorrendo-se às opiniões
dos numa lista de votação final, após uma fase de análise técnica por e comentários de figuras reconhecidas nas diversas áreas do saber,
elementos da Câmara Municipal de Alenquer. A derradeira etapa, a relacionadas com a paisagem natural e cultural do sítio em estudo
fase de votação, dura cerca de dois meses, sendo esse tempo funda- (Fig. 7).
mental para garantir o financiamento, através de estratégias de divul- Esta estratégia culminou na cerimónia de apresentação dos resulta-
gação e disseminação do projecto, com recurso a uma campanha via dos, tendo o projecto do Canhão Cársico de Ota sido vencedor em
Internet, pelos campos tão actuais das “redes sociais”. Este foi um pal- sétimo lugar, com 5,60% da votação total, o suficiente para obter o
co que toda a equipa de missão privilegiou por três motivos princi- financiamento pretendido.
109
OPINIÃO
Após a vitória, a Câmara Municipal de Alenquer ficou, como estabe- cobrimento – Castro de Ota. Este sítio tem, desde cedo, identificada
lecido pelo regulamento do Orçamento Participativo, incumbida de uma cronologia de ocupação que remonta ao Neolítico/Calcolítico,
gerir e executar os projectos aprovados, sendo nessa mesma diligência que se tem assumido como o expoente máximo da ocupação deste es-
que o executivo camarário submeteu à equipa de trabalho o projecto, paço, mas que se estende até ao Período Romano. Juntamente a este
impondo um plano de trabalho distinto do que foi apresentado à vo- sítio arqueológico, já clássico da História da região, foram identifica-
tação. Os objectivos passavam a estar mais direccionados para a clas- dos mais três, no ano de 2005, aquando do Estudo de Impacte Ambi-
sificação e protecção da paisagem, existindo a necessidade de redistri- ental para a expansão da Pedreira do Outeiro do Seio.
buir o orçamento, inicialmente igualitário entre as três áreas do saber Estas eram as informações de que dispúnhamos no início do projecto,
e a coordenação do projecto. Transfigurou-se o projecto inicial, com sendo que careciam de confirmação e de adição de novos dados, exis-
a atribuição de relevâncias diferentes entre as áreas, resultado de um tindo a necessidade, que se encontrava disseminada pelas outras áreas
caderno de encargos que seguia metodologias de classificação ao nível de trabalho, numa primeira fase, de contactar e intervir junto da co-
da paisagem natural, segundo o estipulado pelo Instituto de Conser- munidade de Ota.
vação da Natureza e Florestas, destacando-se e enfatizando-se o papel O faseamento da execução da componente de Arqueologia do Ca-
e o financiamento para a área da Biologia. nhão Cársico de Ota esteve, num primeiro momento, dependente de
Somado a este facto, está a fragilidade da Câmara Municipal de Alen- aprovação do projecto de prospecções sistemáticas, numa área de 70 ha,
quer em reconhecer a importância e os contributos da área da Arqueo- denominado COTA - Canhão Cársico de Ota [2015/1 (174)]. A par
logia, ou mesmo, da Geologia, podendo ser esta premissa confirmada dos trabalhos previstos no projecto de prospecções, foi realizada uma
pela ausência de técnicos com formação específica nestas áreas cientí- recolha bibliográfica, em combinação com o estudo de materiais. O
ficas nos quadros do órgão – a Câmara Municipal de Alenquer. Ainda estudo das materialidades teve duas fases, sendo que na primeira ape-
assim, para efeitos de registo, os responsáveis pela componente de Ar- nas os materiais da colecção Hipólito Cabaço, em depósito no Museu
queologia debateram-se contra a parca relevância dada no caderno de Hipólito Cabaço, em Alenquer, foram intervencionados. Na segunda
encargos, aproveitando, em simultâneo, a liberdade metodológica e fase, os materiais resultantes dos trabalhos de prospecção foram in-
de actividades que foi proporcionada pelo desconhecimento camará- ventariados e caracterizados in loco, com a devida georreferenciação e
rio, desenvolvendo-se assim um trabalho cujas bases teóricas e temá- registo fotográfico, sendo posteriormente confirmada a sua classifica-
ticas vão de encontro ao conceito de Community Archaeology, desen- ção em laboratório. Nos trabalhos de prospecção foram apenas reco-
volvido nos países anglo-saxónicos. lhidos elementos classificáveis e passíveis de estudo, fazendo-se assim
uma recolha selectiva e mais cuidada para com os contextos arqueoló-
CONCRETIZAÇÃO: A COMPONENTE ARQUEOLÓGICA gicos e os materiais. Já em laboratório foram devidamente lavados,
tratados e marcados, podendo assim, como estava estabelecido no PATA
A coordenação e a cocoordenação da componente de Arqueologia fi- entregue à tutela, ser devidamente acondicionados e preparados para
cou a cargo dos autores do presente trabalho, tendo como principais integrar o depósito do Museu Hipólito Cabaço (Fig. 8).
objectivos a identificação, localização e caracterização do património
arqueológico existente. A acção da equipa de Arqueologia encontra-se
dependente dos limites do geossítio – Canhão Cársico de Ota –, ten-
do sido ligeiramente expandida a área onde se localizava o já conhe-
cido “Castro de Ota”, com o objectivo de compreender as dinâmicas
e delimitar a ocupação humana no espaço em estudo.
Trabalhar a Arqueologia na área do Canhão Cársico de Ota é entrar
numa viagem no tempo, uma vez que o local é o resultado de diversos
episódios da História da Arqueologia nacional, pontilhada por dife-
rentes métodos e pressupostos científicos que reflectiram as mentali-
dades e tendências à época. Em consequência, o principal sítio iden-
tificado encontra-se já referenciado nos anos 1930, sendo a sua deno-
minação também um vestígio e um testemunho da época do seu des-
111
OPINIÃO
mais facilitado, passando inclusivamente pelo que parece ser uma en- natural e cultural, que culminará na elaboração de uma carta de boas
trada na estrutura que tem vindo a ser interpretada como muralha. práticas onde constem, também, os desportos de natureza. A destrui-
Os resultados apresentados no presente trabalho respeitam a uma das ção do património arqueológico que tem sido levada a cabo, até aos
etapas, tanto do projecto de Caracterização e Plano de Ação do Canhão dias de hoje, tanto pelos “caçadores” de tesouros como pela falta de
Cársico de Ota, como do COTA, remetendo-se para a difusão dos re- sensibilidade dos responsáveis florestais, já resultou no aparecimento
sultados obtidos, que se destinam essencialmente a dois públicos dis- de três “sondagens”, na zona do “Castro de Ota”, numa área estimada
tintos: um estritamente científico e outro não especializado/ local. In- de afectação de 20 m². Ainda assim, o maior atentado ao património
dependentemente das fases de concretização do projecto, foi mantida, cultural na Ota deu-se nos inícios dos anos 2000, com a abertura de
desde do início, a plataforma na rede social – Facebook –, que permi- um caminho florestal que invadiu o sítio arqueológico desde a sua
tiu um acompanhamento por parte de todos os seguidores e interes- base até ao topo, numa extensão 100 metros e numa área afectada
sados, com notícias semanais e actualizações relativas às diferentes próxima dos 685 m² (Fig. 10).
componentes do projecto.
A segunda e última parte do projecto financiado pelo Orçamento Par- Como apontamentos finais, não podemos deixar de referir que, num
ticipativo de Alenquer, corresponde à identificação e criação de um momento onde a disciplina arqueológica assiste a um aumento expo-
plano de acção para fazer face aos perigos encontradas. Até ao mo- nencial no ritmo de produção, respondendo a metas e objectivos im-
mento, foi possível apontar algumas das principais ameaças, que cor- postos para a obtenção de financiamento, em forma de bolsas ou pro-
respondem às actividades de extração de inertes, nas pedreiras “Serra jectos, o público privilegiado do discurso arqueológico altera-se, pas-
da Atouguia” e “Outeiro do Seio”, à visitação e desportos de natureza sando agora a focalizar-se nas diferentes comunidades científicas en-
e à destruição directa do património arqueológico, efectuando-se al- volvidas nos mais recentes trabalhos arqueológicos. Todavia, sendo
gumas propostas para minorar os efeitos negativos, no que diz respei- este um dos desafios que têm constantemente acompanhado o desen-
to à preservação e conservação do património cultural. volvimento da investigação arqueológica, a ineficácia na conexão en-
As actividades de extração de inertes, situadas a Norte da área afecta tre o Património Arqueológico e as diferentes comunidades e grupos
ao projecto Caracterização e Plano de Ação do Canhão Cársico de Ota, envolvidos, assim como a dificuldade na adaptação dos discursos a
deverão ser fiscalizadas quanto ao cumprimento dos planos de lavra um público mais geral e falta de uma política de Educação Patrimo-
aprovados, ao respectivo faseamento e ao devido acompanhamento nial, têm dificultado o reconhecimento da real importância deste tipo
desses procedimentos. As visitas guiadas ou desportos de natureza ne- de Património, verificando-se essa realidade na ausência de mais pro-
cessitarão de uma regulamentação, em sede de plano de ordenamento jectos vencedores com a componente arqueológica, em orçamento
e gestão de áreas, da criação de um centro de interpretação com fun- participativos.
ções de divulgação, sensibilização e apoio à visitação e, também, de O caso de Ota vem ilustrar um paradigma excepcional no nosso país,
fiscalização das medidas impostas. A marcação e a delimitação de tri- verificando-se uma valorização espontânea da comunidade que, desde
lhos e estações de visitação do Canhão Cársico de Ota, farão também cedo, foi envolvida no desenvolvimento da ideia da proposta e na res-
parte de um plano de explicação e de sensibilização para o Património pectiva fase de execução. Este projecto torna-se, assim, um caso de es-
tudo para a Arqueologia, demonstrando
que as prioridades das populações podem
ser invertidas, conquanto seja reconheci-
da a necessidade – isto é, a população de
Ota escolheu investir num estudo de uma
paisagem, ao invés de desenvolver infra-
estruturas de mobilidade, polidesporti-
vas, escolares e apoio social, também elas
necessárias na freguesia.
113
PATRIMÓNIO
RESUMO
RÉSUMÉ 1. INTRODUÇÃO
N
les 800 ans de la Charte attribuée à la ville par um ano, 2018, em que se comemoram os 800 anos da concessão do Foral da-
le roi D. Afonso II, transformant ainsi cette municipalité do por D. Afonso II a Alcácer do Sal, aproveitamos esta efeméride para publi-
en institution de gouvernement local.
Se basant sur un ensemble de sources documentaires,
car um conjunto de fontes documentais 1, procurando acompanhar a evolução
l’auteur reconstitue le parcours de cette institution, física da instituição municipal alcacerense, que inicialmente se localizava algures no inte-
prenant particulièrement en considération l’évolution rior do Castelo. Se bem que o tema de análise neste trabalho seja a instituição concelhia,
physique du bâtiment qui lui a servi et lui sert toujours de
siège, originellement situé à l’intérieur du château et enquanto espaço físico, também não deixamos de olhar para a análise deste organismo,
aujourd’hui installé près du fleuve Sado. no seu período formativo do pós-1217, altura em que se reuniam assembleias populares
MOTS CLÉS: Analyse documentaire; Patrimoine; à sombra da igreja de Santa Maria do Castelo.
Chartes; Moyen Âge; Période moderne; Começamos este trabalho por expor, de forma resumida, a questão do governo local alca-
Époque contemporaine.
cerense, desde a Proto-História até ao Período Islâmico. Em seguida, passamos para o
ponto de situação sobre o que ultimamente tem sido publicado e analisado sobre os Paços
do Município, desde a sua localização original até ao espaço ocupado atualmente, expon-
do as várias leituras apresentadas até este momento. Na continuação deste item, apresen-
tamos as novas provas documentais alusivas a este imó-
1
vel, pelo que finalizamos com a publicação de um anexo Se bem que o tema em
documental. Este permite fundamentar as interpreta- análise seja a instituição
municipal de Alcácer do Sal,
ções expostas ao longo do nosso trabalho e elaborar uma julgamos que seria oportuno
I
Gabinete de Arqueologia, História, Património nova leitura sobre esta questão, que ainda está longe de publicar algumas fontes
e Museus do Município de Alcácer do Sal documentais referentes
(antonio.carvalho@m-alcacerdosal.pt).
estar concluída, especialmente no que diz respeito ao
à sua estrutura urbana e
horizonte diacrónico, da passagem do século XVII para administrativa, servindo esta
Por opção do autor, o texto segue as regras o século XIX. de suporte à análise que
do Acordo Ortográfico de 1990. aqui expomos.
Grosso modo, podemos aceitar, com base numa leitura genérica de Durante os cinco séculos seguintes, desde meados do século VIII até
longa duração, que o “governo local” de Alcácer e do território que ao início do século XIII, al-Qaṣr, não só foi sofrendo alterações pon-
estava debaixo da sua jurisdição, vai emergir em moldes indetermina- tuais na sua toponímica oficial, mercê dos jogos políticos e da dinâ-
dos, no decurso da Idade do Ferro. mica regional, como a urbe foi sendo governada em moldes que eram
Após a incorporação de Alcácer no Império Romano, em data e mol- comuns no restante Dār al-Islām. Dado que parece existir algum con-
des também desconhecidos, esta muda de designação toponímica e senso quanto ao facto da instituição municipal, nos moldes em que
recebe a nova designação de Salacia Urbs Imperatoria, espelhando chegou até aos nossos dias, ser uma criação de âmbito político dos rei-
deste modo a criação de um modelo de governação com eventuais es- nos cristãos peninsulares, a efeméride dos 800 anos que está na base
pecificidades locais, mas seguindo as normas vigentes no restante Im- deste estudo direciona-se para a análise da instituição implantada em
pério Romano. Alcácer após a sua incorporação no Reino de Portugal.
Esta realidade política e administrativa, criada e gerida desde Alcácer
pelas suas elites, permitirá, do nosso ponto de investigação, a manu- 2.2. DO PERIODO ISLÂMICO ATÉ À CONQUISTA
tenção e cristalização de uma centralidade que, no decurso da prová- DEFINITIVA DE A LCÁCER , EM 1217
vel desurbanização ocorrida na Antiguidade Tardia, manterá algumas
2
prerrogativas administrativas, as quais irão perdurar ao longo destes Segundo vários arabistas 2, parece ser Sobre esta questão,
ver por todos MAZZOLI-
séculos ainda obscuros da sua História local. ponto assente que a cidade islâmica -GUITARD, 2009: 114 e
A descoberta de uma lápide visigótica em Alcácer do Sal permite ates- medieval não possuía instituições de seguintes, referentes ao
tar a presença de eclesiásticos cristãos neste local em meados do sécu- natureza municipal semelhantes ao capítulo “Gouvener Mağrīt:
autorités et gestion de la ville.
lo VII, admitindo, deste modo, a manutenção de uma população que observado no Mundo Cristão. Les resorts du fonctionnemente
geria o território envolvente, num embrião de centralidade sobrevi- Contudo, existem nas cidades Islâ- de la ville”.
vente de épocas mais recuadas que será mantido após a conquista micas mecanismos de administração
Islâmica e a anexação deste território ao califado Omíada de Damas- do tipo muḥtasib ou de walī, assim como outros de natureza política,
co. a que se juntam mecanismos de resposta a agrupamentos de natureza
115
PATRIMÓNIO
diversa, desde as corporações profissionais e as comunidades religio- damente na de D. Afonso II. Apesar desta situação, podemos consta-
sas, até às comunidades organizadas em bairros. tar que, felizmente, sobrevivem alguns testemunhos indiretos do que
Há que considerar ainda grupos de sufis e bandos de jovens (os fu- aconteceu em Alcácer ao nível da sua governação, entre 1160 e 1191.
tuwwa), e a importante instituição do waaf. Em suma, temos, segun- Sobreviveram em documentos que, por vezes, nada têm a ver com Al-
do as fontes documentais, o Sāḥib al-sūq (encarregado de vigiar os cácer.
mercados e as medidas e pesos); o Sāḥib al-surta e o Sāḥib al-madīna, Um bom exemplo do que dizemos é a parte final do texto do Foral
responsáveis pela repressão dos delitos. de Palmela, concedido por D. Afonso Henriques, em 1185. Nele é
Algumas cidades de fronteira com os reinos cristãos, caso de Alcácer dito que: “Ego A. dei gartia Port. Rex una eum filio meo reg domno s.
do Sal a partir das Fases Almorávida e Almóada, poderiam ter, em de- hanc cartam habitatoribus de Palmela per illud fórum de Elbora, et de
terminados períodos desta conjuntura, a presença de um Sāḥib al-ṭagr Alcazar, et de ablantes roboro et confirmo” (Eu, Rei de Portugal junta-
com autoridade sobre os assuntos da região de fronteira, cujo encar- mente com o meu filho rei senhor D. Sancho roboro e confirmo esta
regado podia ser um walī, um ´āmil ou um Sāḥib. Outro funcionário carta aos habitantes de Palmela, pelo foro de Évora, de Alcácer e de
importante era o qā´id, que em Português dará origem à palavra Al- Abrantes) (SILVA, 2005: 51 e 54).
caide. Pelo sentido do texto, parece-nos credível que terá existido uma Carta
Mas a natureza funcional destes funcionários perante a cidade e o po- de Foral dada a Alcácer por D. Afonso Henriques, em data indeter-
vo que nela habita, não nos autoriza a considerá-los como elementos minada entre 1160 e 1185. Por questões que desconhecemos, mas
pertencentes a uma instituição de tipo municipal. Esse conceito e que poderemos equacionar, esta Carta de Foral foi simplesmente
modo de governar a cidade só aparece no lado Cristão do governo das ignorada pelo seu neto, D. Afonso II, quando este, em 1218, passou
cidades. No caso de Alcácer do Sal, admitimos que tal instituição só vai uma nova Carta de Foral à vila. Tal facto tem levado a totalidade dos
aparecer após a primeira conquista Portuguesa, ocorrida em 1160. Medievalistas a supor que o Foral de 1218 é o primeiro Foral conce-
Infelizmente, quase toda a documentação que julgamos ter sido pro- dido a Alcácer, quando na verdade
3
duzida nesta primeira fase de presença Cristã em Alcácer desapareceu. tudo leva a crer que terá sido o se- Admitimos que o texto
3 de 1218 segue de perto o
Mesmo a sua memória após a conquista definitiva de 1217 é simples- gundo . anterior, ambos filiados
mente ignorada, em larga medida, pelas chancelarias Régias, nomea- no Grupo de Évora.
117
PATRIMÓNIO
Pouco depois, em 1395, é referida a existência de um poial no seu in- 4. OS PAÇOS DO MUNICÍPIO: A NOSSA LEITURA ,
terior e, décadas mais tarde, em 1482, surge, segundo PEREIRA (2007: FACE À NOVA DOCUMENTAÇÃO
107) a primeira alusão a uma “camara da fala do paço”, a qual volta a
ser mencionada mais tarde num documento de 1513. Face à documentação dada a conhecer até 2015, que permitiu a inter-
Noutro testemunho documental, este datado de 1509, emitido na pretação atrás referida, e face à ausência de testemunhos documentais
Chancelaria do Mestre D. Jorge, temos acesso a um conjunto impor- que a pusessem em causa, aceitámo-la como válida. Contudo, a iden-
tante de elementos que importa analisar com maior detalhe. Seguin- tificação de nova documentação da Ordem de Santiago em data pos-
do o que PEREIRA (2007: 108) nos dá a conhecer, este é alusivo à arre- terior a esse ano 7, assim como a transcrição de alguns documentos
matação em hasta pública de casas na “Praça da Vila”, caídas em co- que apresentamos em anexo, obrigam-nos a refletir de novo sobre es-
misso por falta de pagamento de foro por parte de Inês Eanes, aí fi- ta questão, dado que nos deparámos com indícios que colocavam em
cando escrito “que ella mesmo fizera e corregera as ditas casas nom ssen- contradição as hipóteses anteriormente defendidas.
do ellas nada e servindo de Paço do Concelho”. Tomemos como exemplo o testemunho toponímico, que permitiu
Sem mais indicação de localização do que a referência a uma “Praça constatar a existência de duplicação toponímica. Um claro exemplo
da Vila”, PEREIRA (2007: 98) defende que este topónimo é alusivo à do que falamos diz respeito à deno-
7
atual Praça Pedro Nunes, localizada junto ao rio. Com base nesta lei- minada “Rua Direita”. Até 2015 não Estamos a referir os
volumes que constituem o
tura, a investigadora defende que os Paços do Município estariam lo- teríamos dúvida nenhuma em admi- Tombo das propriedades da
calizados neste local, na Ribeira, desde meados do século XVI. Esta tir a existência de uma única Rua Mesa Mestral da Ordem de
mesma postura é mantida no seu estudo mais recente (PEREIRA, 2016: Direita, localizada na Ribeira 8. Santiago localizados no Termo
de Alcácer do Sal, efetuado em
138), que passamos a citar: “No século XVI, já os paços do concelho, a Contudo, o Tombo da Mesa Mes- 1613-1614 e transcrito no
casa dos tabeliões, o pelourinho e a própria cadeia haviam trocado a vila tral de 1613-1614 atesta a existência século XVIII, no cartório
alta para se instalarem perto da beira-rio, embora seja difícil precisar as de duas ruas Direitas. Uma delas do Convento da Ordem
em Palmela.
datas da mudança e os sítios onde primeiro se instalaram”. situava-se dentro do Castelo, desde 8
É esta a posição
a Porta do Ferro até ao Largo da que Maria Teresa Pereira
Matriz, onde se localizavam os Pa- tem mantido nas várias
FIG. 4 - A Praça do “Cais Real”, onde estavam instalados os ços do Concelho de Alcácer do Sal; obras que publicou
Paços do Concelho, a Estalagem, o Celeiro Real e a Igreja do sobre Alcácer do Sal
Espírito Santo, com o Hospital de “Peregrinos” em anexo a outra, a mais divulgada, ficava na (ver a bibliografia que
(Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal). Ribeira. acompanha este estudo).
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PATRIMÓNIO
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PATRIMÓNIO
De referir que, por vezes, ao longo dos documentos existem diferen- critério usado para as palavras em maiúscula. Neste momento, após
tes formas de escrever algumas palavras, o que não resulta de lapso termos transcrito imensos documentos, chegámos à conclusão que
nosso. Tomemos como exemplo “Mesa Mestral”. Na maior parte das não existiu por parte do copista nenhum critério, e que as palavras
vezes encontra-se escrito “Meza Mestral” mas, ainda que raramente, surgem de uma forma ou da outra ao sabor do ato de escrever. Ten-
escreveram também “Messa Mestral”. Outro caso interessante é o de támos, sempre que possível, manter a grafia original.
“Sam Thiago”, forma que predomina sobre outra variante, em que Os restantes critérios de transcrição adoptados seguem de perto os
aparece simplesmente “Santiago”. sugeridos por João Alves DIAS et al., expostas no Album de Paleogra-
Outro problema surgido ao longo da transcrição prendeu-se com o fia, Lisboa: Estampa, 1987.
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1613-1614. [fl. 36v] = Discrição da villa de Alcacer do Sal = = Arecadase nesta villa, e termo para a Meza mestral o dízimo de todo
pam, que não anda encomendado, a saber, trigo, cevada, centeyo, e milho,
= A villa de Alcácer do Sal que hé Comarca e Correição da Puvedoria e alguns foros de pam = Do qual pam de Dízimos tem o Arcebispo, e
da villa de Setubal, está no destricto do Arcebispado de Evora, foy dada à Cabido de Evora a terça parte, a saber, de bruegas, e Sítimos, e Albergue,
ordem por El Rey Dom Sancho; com todos seus termos novos e velhos, com parte de Palma, leva o Bispo e Cabido o terço, e da Ribeira de
e com todos direito Real e padroado das Igrejas = Palma pera alem contra Setubal, e assim na Ribeira de Cadão de Cima
= Está cituada pelo Rio aCima de Setúbal, que entra pelos foz de de benagazil, leva a redizima, e de benagazil [fl. 38] e de benagazil
Outão nove léguas da villa de Setubal para Levante = para baicho o terço =
= Tem hum Castello que hé a propria villa cercada de muro dentro = exceptos os Reguengos, e propriedades foreiras da ordem porque destas
do qual estavão os passos do Mestre de Santiago nos quais hoje está bem não leva o Bispo, e cabido couza alguma, porque toda a renda dellas,
cituado hum mosteiro, e convento de Freyras chamado da Ara Coeli da e o dízimo in Solidum he da ordem =
observancia, e ordem do Padre São Francisco, o qual lhes foy dado a Ruy = Da renda das vinhas leva o Bispo, e Cabido, o terço, tirando as
Salema, e sua mulher para nelle fazerem o ditto Mosteiro, com obrigação vinhas que são foreiras a ordem =
de sempre nelle haver hum lugar para uma Freyra filha de cavaleiro do = Da renda do pescado leva o Bispo, e Cabido o terço =
hábito do bem aventurado São Tiago, e assim com obrigação de o = da renda das meussas leva o Bispo, e Cabido o terço, e a Redizima
largarem aos Freyres da ordem de São Tiago em tempo de guerra = daqueles lugares, assim como leva de trigo segundo em soma he declarado =
= [fl. 37] Tem esta Freyra que há-de entrar a apresentação do Mestre, = Pertence mais a Meza mestral na ditta villa de Alcácer, e seu termo
ou do administrador do Mestrado, obrigado de trazer comsigo hum myo de hum olival próprio da ordem com sinco lagares de azeite que rende
trigo para sempre para o ditto convento, e suas propinas, costumadas = cada anno duzentos, e sincoenta mil reis, segundo as novidades,
= Dentro deste Castello há muitos moradores, e nelle está a Igreja parochial o que he in Solidum da ordem =
de nossa Senhora do Castello, e asim a Caza da Camara da ditta villa, = Tem seu seleiro de pam e Caza e adega, e azeites, e Caza de vinhos
e paço das audiências, que tudo hé huma caza = em lugares apartados na ditta villa =
= Tem este Castello muitos privilégios, que estão registados no cartório = Tem mais os foros das cazas, e vinhos, e olivais, bestas, herdades,
do convento de Palmella = moinhos, pinhaes, e marinhas, que todas van ao diante declaradamente
= Debaicho deste Castello, se povoou huma povoação grande ao longo em seus títulos no tombo=
do Rio, que se chama a Ribeira, que hé de mais gente, e mais concursso, = Tem mais todos os benefícios, os officios que há na ditta villa,
por ser entrada corrente para a Alentejo, e campo de ourique e e seu termo, os quase são aprezentados, e dados pelo Mestre [fl. 38v]
para Evora = Sello Mestre de São Tiago = António Machado da Silva =
= Tem mais hum convento de frades de São Francisco chamado Santo
Antonio que está ao norte da Ribeira, ao Levante do Castello, hé Caza
DOCUMENTO N.º 3
de muito edificação para Christãos pelos muitos Sacrifícios, que nelle se
selebrão, e fazem e pelos muitos confessores, e pregadores que Tombo dos Bens da Mesa Mestral da Ordem de Santiago
de contino tem = (Alcácer do Sal, Tomo 1)
= Tem duas Igrejas Matrizes, e outras capellas, e hermidas como se Biblioteca Pública de Évora, Código da Manizola, n.º 113.
declara no caderno das [fl. 37v] No caderno das Igrejas =
= número da gente = Comentário: este documento confirma, sem sombra
=Tem está villa de Alcácer do Sal, com seu termo mil, e cem vezinhos = para dúvidas, que o Convento Espatário esteve instalado
a saber. Mil e quarenta vezinhos digo quinhentos e quarenta na villa, no Santuário de Nossa Senhora dos Mártires.
e arrabaldes, e quinhentos e Setenta, no termo =
= Hé o Castello desta villa muy antigo, do tempo dos Mouros = 1613-1614. [fl. 38v] = Ramos apartados da Meza mestral que anda
= Foy dado à ordem por El Rey Dom Sancho no anno de mil duzentos encomendados =
e vinte e quatro juntamente com Palmella, Almada, e aRuda como se
contém no caderno das doações que adiante [vem] = = Comenda das Meussas =
= António Machado da Silva = = A comenda das Meussas da dita villa de Alcacer a saber, gado de toda a
sorte, e a bolsa delle [vindos?] de toda a villa, e termo, mel, exames, e Sal
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PATRIMÓNIO
em mais entrar outra couza está provido nella Dom Diogo de Menezes = Herdade da onzena =
que rende oito centos para nove centos mil Reys = = A herdade da ozena na Ribeira de Cadão paga de foro a ordem [fl.40]
= Martires = A ordem em cada hum anno hum moyo, e dez alqueires de trigo, este foro,
= A Comenda de nossa Senhora dos Martires na ditta villa de Alcacer, e dízimo de todo o pam está provido delle Pero Varella Ferreira, val de
é huma Igreja que foy convento antigamente, tem huma herdade própria renda quinze mil reis =
chamada Liziria do Prior que rende de oito para dez jogos de pam, = Herdade de Pertancho =
tem mais hum reguengo de olivais e vinhas separado das outras rendas = Na herdade de Pertancho huma courella da ordem, a ella junta a
da Meza mestral, cujos dízimos do ditto reguengo, e foros de azeite, matacão da ditta courella, e os dízimos da ditta herdade que he grande,
e denheiro pertence a ditta Comenda = está provido nelles Adrião dalmeida, val de renda vinte e sinco mil reis, =
= Tem mais na Ribeira de Cadão o dízimo, e foro de huma herdade = Pescado =
chamada alpoçol, e certos foros de dinheiro de cazas na ditta villa. = A dizima do pescado que matão os pescadores da villa de Alcacer
Hé Capella onde se diz missa quotidiana pelos Mestres, e governadores nos mares do seu termo, salgado, e doce, está provido nella Dom Francisco
do ditto Mestrado = Mestre Dom Jorge annexou a esta [fl. 39] a esta dalmeida, val de renda vinte mil reis =
Comenda o dízimo de todas as herdades na Rybeira de Cadão, = Laudemios =
que erão da sua Meza mestral chamada huma a Salema, e outra as = Os laudemios que se pagão pelas vendas das propriedades da ordem da
pechanas, e assim os dízimos dos quejos, [lanjbertas] Fruitas verdes, ditta villa de Alcacer, e seu terra, que são de quarenta, hum, está provido
e secas, frangaos meudos, com hecenças 16 de moinhos. a Nicolao Rodrigues, rende conforme as vendas que há =
Vagou por morte do Doutor Francisco = Terras da emfermaria, e Pinheiro =
16
Nogueira, está provida em Paulo É o que aparece escrito, = As terras da emfermaria, e quinta do Pinheiro com os três casada da
Affonso he seu filho, val em cada hum que presumimos possa ordem, que andao aforados ao Duque daveiro, he coutada dos Mestres
anno de renda segundo a valia do pam significar “licença”, que parece della de montaria, e toda a mais caça, está provido nella o ditto Duque,
ter mais sentido, dado que era
Duzentos e sincoenta mil Reys segundo não se Aren [fl. 40v] se arenda, a recado por seus officiaes de direito
prerrogativa da Ordem dar
avaliao do pão = permissão para a construção do dízimo da grã, e do carvão dos carvoeiros, e he posuidor de todos,
= Varge da ordem = destes moinhos, assim como os quatro casada, de que se paga foro a ordem =
= A Varge da ordem no termo da villa cobrar o foro deles. = Alcaidaria mor de Alcacer =
de Alcácer do Sal he hum regengo = Halcaidaria mor da villa de Alcácer está provido nella Dom Fernão
grande na Ribeira de Sitimos, do qual se paga em cada hum anno ao Martins Mascarenhas tem a pena darmas, e renda da portagem,
Comendador a dízima de todo o pam, e meussas, e nas terras da Varge o val de renda vinte mil reis = António Machado da Silva =
terço de todo o pam, e das terras de fora o quarto, e assim de palha, e
[pitanças], está provido Dom Fernão Martins Mascarenhas. Val de renda
por cada anno quatro centos, quinhentos mil reis, e mais segundo a valia DOCUMENTO N.º 4
do pão =. Tombo dos Bens da Mesa Mestral da Ordem de Santiago
= Benagazil = (Alcácer do Sal, Tomo 1)
= A Comenda de benagazil no termo da villa de Alcacer, hé hum Biblioteca Pública de Évora, Código da Manizola, n.º 113.
Regengo na Ribeira de Cadão de que se arecada pero o comendador o
dízimo de todo o pão, e meussas, e nas terras da Varge a o terço [fl. 39v] 1613-1614 = [fl. 93] Cadernos dos officios d[a] aprezentaçam
O terço de todo o pam, e das terras de fora o quarto, e assim de palha e do Mestre da Villa de Alcácer do Sal cujo provimento in Solidum
pitanças; e era provido de comendador Dom Manoel de Alencastre pertence ao Mestre =
Comendador mor da ordem, rende por anno trezentos mil reis, e mais =
= Foros de Aves; e dinheiro = = Juridiçam =
= os foros de aves, e dinheiro da ditta villa de Alcacer, e seu termo,
que se devem em cada hum anno, esta, digo a ordem está provido nelles = A juridiçam do cível e crime desta villa de Alcacer do Sal, e seu termo
Nicolau Rodrigues. Valem de renda por anno vinte e sinco mil reis = hé da ordem, e [pra eleiçam] dos Juizes, e officiaes, se faz pello ouvidor da
= Batel de Santa Anna = Comarca, e os Juizes ordinários, cada anno tiram carta de Confirmaçam
= o Batel do porto de Santa Anna, que atravessa o Ryo de Alcácer do Mestre, isto em tempo que nam haviam Juizes de fora=
que hé da ordem, trás em Comenda Paulo Affonso, val de renda o de = Officios =
vinte para vinte e quatro mil reis = = Joam Moizinho morador na ditta villa hé Almoxarife da ordem por
= Herdade de Ryo de moinhos 17 = Carta de Sua Magestade como governador, e perpectuo administrador
= A herdade de Ryo de moinhos no Cabo da Ribeira de Cadão termo que hé do ditto mestrado, tem de mantimento ordenado seis mil reis em
da villa de Alcacer, paga de foro em cada hum anno a ordem, hum jogo, dinheiro, e hum moyo de trigo, e [meia?] de cevada que lhe vem na folha
e meyo de trigo, e meyo jogo de centeio, 17 do asentamento pago, tudo no ditto Almo [fl. 93v] Almoxarifado =
Noutro documento do
e o dízimo de todo o que Deus a elle = Item o officio de escrivam do Almoxarifado, que vagou por morte de
mesmo Tombo é dito que se
dá; asim o de pão, como de meussas, he trata de um engano e que a António Mendes, tem por Carta, e Alvará Luiza da Silva viúva do ditto
comendador Paulo Affonco. Val de Herdade de Ryo de Moinhos António Mendes, pera a [pessoa?] que com ella cazar, serve lhe hoje
Renda dezoito para vinte mil reis = pertence ao Termo do Torrão. da serventia por mandado da fazenda =
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PATRIMÓNIO
e perpetuo administrador que hé do ditto mestrado, e ordem, tem de primeiro que na Ribeira. Pedimos os sobredittos por mercê que lhe
ordenado em cada hum anno quinhentos reis em dinheiro, e hum moyo de confirmamos o ditto privilégio, e liberdades, e visto por nos seu dizer e
centeyo, pago tudo no Amoxarifado da renda da ordem da ditta villa = pedir, e por lhes fazermos mercê, hemos por bem, e mandamos que o
= Outro officio de couteiro da ditta matta do arquam, tem Manuel privilégio confirmado por El Rey nosso Senhor se guarde e cumprão como
Afonso de Beja por Carta de sua majestade como governador [fl. 97] nelle se contem e as outras liberdades todas lhe confirmamos como nellas
governador, e perpétuo administrador que hé do ditto mestrado, se contém, e porem mandamos aos nossos ouvidores, e juízes, e officiaes,
e ordem tem de ordenado em cada h anno quinhentos reis em dinheiro, e qualquer pessoa a que o conhecimento pertencer, que cumprão [fl. 41v]
e hum moyo de centeio, pago tudo a custa das rendas da ordem no cumprão, e guardem inteiramente os dittos previlegios, e liberdades,
Almoxarifado da ditta villa de Alcacer = sob jura de qualquer, que o contrario fizer, pagar por cada vez vontte
= Outro Officio de contheúdo de guardar a matta do casal do Soberano, Cruzados, d´ouro a metade para a nossa chancelaria, e a outra metade
e a Ribeira de Cadão de huma parte, e da outra tem Manuel alveres para os captivos, e por firmeza delle lhe mandamos o dar esta Carta
zambujo por Carta, a qual por nam ser passada pella ordem se lhe por nos assignada e a sellada de nosso Sello pendente. Dada em a ditta
mandou a reformadas por sua Magestade como governador, e perpétuo Villa de Alcacer a três dias do mês de Fevereiro. Diogo Coelho a fez,
administrador que he do ditto Mestrado e ordem não tem ordenado algum, anno de mil e quinhentos e treze anos. O qual treslado eu Matheus de
somente seus proes, e percalços = Aguiar escrivão dos Tombos das Comendas da Meza Mestral da ordem,
= dos quais Officios todos por serem do provimento da ordem pelas doações, cavellaria do Mestrado de São Thiago tresladei dos Livros dos Registos
que vam no caderno dellas, mandou o Licenciado Antonio Machado da da Letra P, que esta no Cartório do Convento de Palmella as folhas
Silva fazer este Caderno no tombo qu faz por sua Magestade para por elle duzentas, e oitenta, e sette; ao qual se dá inteira fée, e Credito, e esta
como tar a todo tempo da posse, e dereito da ordem, e asignou commigo; sam sem vicio, nem borradura, e este vai sem couza que duvida faça,
Machado de Aguiar, escrivam do cargo dos dittos tombos que o escrevi, e com elle o concertei com o Juiz dos ditos tombos, e com o oficial
e asignei = abaicho assignado, hoje em a villa de Alcochete de Ribatejo –
= António Machado da Silva = Matheus de Aguiar = [fl. 97v] ao primeiro dia do mês de Julho do anno de mil, e seiscentos,
De Aguiar = e quatorze anos =
= Concertado [fl. 42] Concertado Machado = Matheus de Aguiar =
DOCUMENTO N.º 5
Tombo dos Bens da Mesa Mestral da Ordem de Santiago DOCUMENTO N.º 6
(Alcácer do Sal, Tomo 1) Tombo dos Bens da Mesa Mestral da Ordem de Santiago
Biblioteca Pública de Évora, Código da Manizola, n.º 113. (Alcácer do Sal, Tomo 1)
Biblioteca Pública de Évora, Código da Manizola, n.º 113.
Comentário: documento importante, que testemunha
de forma direta o problema patente nos inícios do século XVI
e que já vinha de longa data, resultante do despovoamento 1613 [fl. 116v] = A repartiçam, e devizam das freguesias
progressivo dentro de muralhas. de Sancta Maria do Castello com a freguesia nova
de nossa Senhora da Consolacam he a seguinte;
1523 [fl. 40v] = Confirmação dos privilégios,
e liberdades dos moradores do Castello de Alcacer = ; parte a ditta freguesia de nossa senhora do Castello com a ditta
freguesia nova pella calçada nova abaixo que vem da Porta do ferro
= Dom Jorge etcetra a quantos está nossa carta de confirmação de das Cazas de André Cardoso que estam na ditta calçada que ficam
privilégios, as liberdades virem, fazemos saber que visitando nos hora a ditta freguesia direito pella Rua do forno de Diogo Carvalho,
pessoalmente nossa villa de Alcácer do Sal como fazemos em todo o outro levando toda a Rua athe ao Pocinho da Rua direita athe as Cazas
mestrado pelos moradores do Castello da ditta villa nos foy apresentado de Vasco correia que estam na Rua da parte do mar que tem hum mamor
hum privilégio do infante Dom Fernando confirmado por El Rey meu na esquina, e destas cazas de Vasco correia toda Rua direita de huma
Senhor em que faz priviligiados os moradores do ditto Castello de todos parte, e da outra ao poente pêra Setuval com travessas ao mar, e terra,
os encargos, e serventia do concelho e hum instrumento em publica forma e órfãos do cabo do mesmo poente, e montes, e órfãos além do Ryo
de certas liberdades concedidas ao ditto [fl. 41] ao ditto castello pello ao Sul com os vezinhos do Castello, ficam a ditta freguesia do Castello
inffante Dom João e pello inffante Dom Pedro, e pello ditto inffante trezentos, e sincoenta fogos –
Dom Fernando em que se contem que os moradores do ditto Castello - Ficam a ditta freguesia nova de nossa senhora da consolacam,
hajão de fazer a sua azeitona nos lagares da ordem primeiro que a fação trezentos fogos, ficando lhe as Cazas de Vasco correia com toda Rua direita
aos moradores da Ribeira, nem a outras pessoas e isto por ordenaçã do de huma banda, e da outra pera Evora ao Levante com todas as Ruas,
Almoxarife feita com o escrivão do Almoxarifado, e mais que os almotaceis e travessas ao mar e terra, e a Rua que veem da Porta do [fl. 117]
sejão sempre ambos do ditto Castello, e não da Ribeira, e mais que todos Do ferro direita da calçada athe o chafaris com as Cazas e travessas
os legumes, e pescados que vierem de fora para se venderem nesta villa da ditta Rua ao norte onde chamam as Covas, e assim as portas
que sejão levados ao ditto Castello, e lá se [almotacem], e vendão da parte do Levante e do norte =
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PATRIMÓNIO
termo com, digo que assinou/ com o ditto Paulo Carvalho, e mandou/ e de levante a poente quinze va/ras e meya e estão repartidas em
que a ditta Isabel Rodrigues requere/se titulo das ditas casas e se citassem/ três cazas/ e tem duas janelas e duas portas pera/ a banda da praça
os confrontadores pera a medição dellas/ o assinarão sendo testimonhas e as lageas dellas são/ da mesma medição do sobrado de sima/ as quais
Gaspar/ Tinoco medidor dos Tombos e Domin/gos Fernandes criado de cazas forão medidas por hum me/didor e Porteiro por huma vara de
mim escrivão/ e declaro que a procuração feita ao ditto/ [fl. 108] me/dir marcada de sinquo palmos, e por/ aqui ouve o dito Juiz ditta
o ditto Paulo Carvalho vay adiante/ e que os confrontadores são moradores/ medição/ por feita e acabada, por boa conforme/ [fl. 109v] conforme o
nesta ditta villa d Alcacer e eu Matheus/ de Aguiar escrvão do cargo o seu regimento firme, e/ va hora doi e para todo sempre e entre/ os ditos
escrevi e assi/nei = foreiros e ordem, e partes confron/tadores e assi o prenunciou per sua
= Antonio Machado da Sylva = Ma/theus d Aguiar [=] Sem/tença em mandou se comprisse e guardar e/ [hoje] para sempre de
Domingos Fernandes =/ Gaspar Tinoquo -------------------------------------- que mandou ser feito/ este auto de demarcação e medição que/ assinou
com Gaspar Tinoco medidor e com/ Antonio Fernandes Porteiro sendo
--- Termo de citaçoins = tes/temunha Domingos Fernandes criado/ de mim escrivão e eu
= Aos doze dias/ domes de Mayo do anno de mil seiscen/tos e quatorze anos Matheus de Agui/ar escrivão do cargo o escrevi e assinei/ dia, mês,
na villa de Alcacer/ do Sal e cazas da morada do licenciado An/tonio e era sobredita =
Machado da Sylva Juiz dos Tom/bos das Comendas da Mesa Mestral da = Antonio/ Machado da Sylva = Matheus de Agui/ar = Gaspar Tinoquo =
Or/dem [e] cavallaria do Mestrado de Santia/go; ahi por eu escrivão Do Porteiro/ huma cruz = Domingos Fernandes -----------
[dorfão] ser citado/ pera hoje pera a medição das cazas com/thidas no
conhecimento atras que/ tras Izabel Rodrigues viúva de João/ vaz com suas
filhas Guimar e Sebas/tiana moradoras em Lisboa, Pero Cor/deiro e sua
molher e Ignes de Freytas/ viúva de Christovão correa Lucas desta/ villa
confrontadores pera lhe ser assi/nada dia pera a medição das ditas cazas/ DOCUMENTO N.º 9
e por ser este o termo em que avião de/ aparecer mandou elle Juiz apregoar/ Arquivo Histórico das Paróquias de Alcácer do Sal
aos sobreditos e o forão por Antonio/ Fernandes Porteiro do Concelho e Documento incompleto, muito deteriorado, que começa no fl. 3 e
órfãos/ desta ditta villa e por não parecerem/ nem outrem por eles às suas termina no fl. 12v. Cx. 71 Ordem de Santiago.
reverias/ [fl. 108v] reverias os ouve por citados [queria] todos/ os termos e
autos judiciaes e assinou dia/ e termo certo em que havia de hir fazer/
a ditta medição das ditas cazas amanha/ter [a feirão] treze dias deste mesde Comentário: a importância deste documento
Mayo/ e de ttodo mandou fazer este termo que/ assinou e eu Matheus consiste no facto de registar as mais antigas referências
de Aguiar escrivão/ do cargo a escrevi e assinei = a alguns topónimos, parte deles ainda hoje em uso,
= Machado/ = Matheus de Aguiar ------------------------------- que não foram possíveis encontrar noutras fontes.
DOCUMENTO N.º 11
1634 – Capit. XXXIX. De hũa grande vitoria que el Rey dom Afonso 25
Transcrevemos só
alcançou dos Mouros junto a Alcácere do sal, & como ganhou a a parte relativa à vila
propria villa despois de dous meses de cerco 25 de Alcácer.
BRANDÃO (1634)
[fl. 192]. 1158. Hvma das praças q mais sangue custou aos portugueses, a Palmela) obra sumptuosa, & de muitas Capellas, agora já deserta, & com
cujos campos serviraõ por vezes de teatro em que se representarão vários hum só Capellão. Tambem aqui ouve Paços dos Commendadores, que erão
acontecimentos de guerra, foi a villa de Alcacere do Sal, mui celebrada em cabeça de Religião neste Reyno antes de aver Mestres aõde agora está o Convento
o tempo antigo, & fortelecida grandemente por arte & natureza. Está este de Araceli de Religiosas Claras. Tem na terra & termo trigo, gado, lenha
lugar ao longo da ribeira do Sadão, que faz o famoso porto de Setuval, de pinho, pomares; no mar sal em grande abundancia, & numerosos
comunicando suas agoas com as do mar. O castelo he altissimo de taipa de pescados. Os Salemas, Freires, Fonsecas, Correas, Botelhos, & Mascarenhas
formigão, foi fortíssimo antigamente, & agora quasi de todo arruinado cõ posuẽ aqui Morgados, & se tem por decentes dos principaes conquistadores.
o tempo. Fica sobre o rio quasi rocha talha da posto da parte da terra, Depois da 1º conquista, “[fl. 192v] … el Rey D. Afonso lançando fora
que está para a banda de Lisboa. Aqui esteve o Convento de Santiago na as reliquias dos Arabes, a fez povoar de gente bautizada, & forteleceo
Igreja de Nossa Senhora dos Martyres (dõde se mudou a Mertola, & despois conforme o lugar requeria.”
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PATRIMÓNIO
PUBLICIDADE
em 1500-1600 ABSTRACT
minha professora de Córdova, pela generosidade KEY WORDS: Ornamental arts; Leather;
Document analysis; Heritage; Modern age.
e incentivo.
RÉSUMÉ
O
termo guadameci é devedor ao árabe “wad al-másir” ou ao árabe hispano S’appuyant sur cette information, on reconstitue
“gueld al-másir”, significando ornamento floral vivo de cores ou couro assim la trame du métier artistique du guadameci, tant au niveau
des artisans, qu’à celui des modes du luxe dans
decorado (PEZZI, 1990: 74; SOLER, 1992: 146; PEREIRA, 2009a: 89). les palais et églises de 1500 et 1600.
A técnica do guadameci é realizada sobre couro de carneiro, cortado num rectângulo; fixa
MOTS CLÉS: Arts décoratifs; Cuir;
com um mordente, a folha de prata cobre toda a superfície. O desenho, vincado, é pinta- Analyse documentaire; Patrimoine;
do com cores de óleos; um verniz, resultante da cozedura de ingredientes vegetais, dá à Période moderne.
prata as tonalidades do ouro, e daí a designação de “couros dourados”, apesar do emprego
do ouro ser raro. Depois da pintura, empregam-se punções metálicas de pouco recorte
(círculos concêntricos, círculo ponteado ou com pontos em volta, quadrado com linhas
paralelas, pontos em triângulo, Vs ou ondas paralelas) que dão textura aos motivos e ao
fundo (deixado na tonalidade da prata, pintado ou dourado). O rectângulo (cerca de 55
por 75 cm) assim elaborado é cosido a outros, formando uma grande superfície (com I
Guadamecileiro; investigador do ARTIS - Instituto de
sanefas da mesma técnica no topo e base); essa grande peça era aplicada na coberta de pa- História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (frankleather@yahoo.com / www.frankleather.com).
redes, tendo estas pregos para fixar as argolas do topo do panejamento. Tais cobertas al-
ternavam sazonalmente com os têxteis: os guadamecis eram colocados na época quente, Por opção do autor, o texto não segue as regras
e os têxteis no tempo frio; daí a designação genérica de “panos d’armar” para ambos os pa- do Acordo Ortográfico de 1990.
131
PATRIMÓNIO
nejamentos. Os motivos mais frequentes (partilhados com o têxtil) A APLICAÇÃO DO GUADAMECI EM ÉVORA
eram “ao brocado” (flores de pétalas de arco contracurvado, círculo
sobre quadrado, pinhas, alcachofras, romãs, flores de cardo, faixas de Túlio Espanca afirma terem existido oficinas de guadamecis em Évo-
folhagem aparentada ao acanto, lírios e outras flores); outros dese- ra e Vila Viçosa “desde finais do século XVI” (ESPANCA, 1975: vol. 1,
nhos provêem claramente da tradição islâmica, como entrançados e XXXVIII). Num artigo anterior, apresentou o nome de vários guada-
laçaria. Por vezes, a encomenda recorria a cenas da Cristandade ou a mecileiros eborenses a trabalhar entre 1609 e 1674 (ESPANCA, 1948);
paisagens; outras vezes era personalizada com o brasão do encomen- baseou-se o autor em documentos da Misericórdia local, relativos a fa-
dador. Tais cobertas, de intenso brilho e colorido, permaneceram nas lecimentos, tanto dos artífices como de filhos: em 1609, foi sepultado
modas mudéjares dos interiores ricos de 1400-1600, onde não faltavam um tal António, filho de um guadamecileiro; Amador Rodrigues fale-
os estrados atapetados (por vezes com guadameci) e coxins (também ceu em 1619, João Lobo em 1621, Domingos Gonçalves em 1634,
aí o couro dourado estava presente). Esta técnica era também aplicada Sebastião Rodrigues em 1657, e Manuel Duarte em 1674. Somando,
para elaborar frontais de altar, em ornamento floral ou com pintura teremos seis guadamecileiros em actividade, que se deveria prolongar
de iconografia por toda a superfície, ou só no rectângulo central desde o século XVI, pelo menos; Lisboa teria cerca de 30 artífices acti-
(designada por “imaginária”). vos na segunda metade do século XVI, contando mestres e oficiais.
Algumas descrições de interiores ricos referem o número de peles do Túlio Espanca deve ter tido acesso a outros documentos, pois refere
panejamento; mais rara é a descrição do ornamento, ficando-se em cargos na confraria (indiciando a organização oficinal com vínculo
maioria pela indicação da cor (dominante ou única, a par do doura- cristão ou apenas o peso social da cristandade, levando à organização
mento). Os parcos inventários, datados dos séculos XII ao XVII, per- dos habitantes quanto à manutenção da igreja, actividades e procis-
mitem localizar o uso do guadameci em todo o território nacional, com sões); refere ainda escravos, na posse do guadamecileiro Amador Dias,
incidência a sul do Tejo, zona de maior influência das modas do Islão tendo um falecido em 1620 – apesar da falta de registo escrito, este
peninsular (PEREIRA e CALDAS, 2017: 13-14). Os locais de produção caso não é estranho no mundo dos ofícios artísticos: em 1610, a In-
foram Lisboa (com regimento escrito em 1572), Coimbra, Évora e quisição lisboeta julgou um escravo “mourisco” de 33 anos, compra-
Vila Viçosa, segundo documentação do século XVI. do em Córdova com onze anos, e na posse de um guadamecileiro
A alteração de modas, com o Renascimento, levou à extinção de ofi- chamado Jerónimo Fernandes (PEREIRA, 2009b), nome este que vol-
cinas e à eliminação de frontais, coxins e panejamentos. A cadeira em tarei a referir num inventário por falecimento de D. Fernando de
couro lavrado passou a ser cada vez mais dominante, inserida noutro Castro, 1.º Conde de Basto. Outros dados relativos a Espanha mos-
modo de obter conforto na habitação. A importação de guadamecis tram mais escravos no ofício do guadameci (FERRANDIS TORRES, 1955:
prensados, em motivos repetitivos do Barroco e Rococó, vindos dos 23-24; PEREIRA, 2009b).
Países Baixos desde inícios do século XVIII, acentuou o declínio da pro- Um inventário da Casa Real de D. João III, datado de 1534, registou
dução nacional; são esses guadamecis aqueles que se vêem com maior o tamanho dos panos de armar em guadameci num seu palácio em
frequência em colecções privadas e museológicas, convertidos em Évora; estes eram constituídos por 36, 24 e 20 “peles vermelhas [...]
frontais de altar, biombos e estofos, casos estes que já publiquei nesta afora as sanefas, velhas” (FERRÃO, 1990: 164). Nesse mesmo palácio
revista (PEREIRA, 2015). eborense havia também almofadas em guadameci.
Escassos documentos permitem reconstruir um pouco mais o uso Um inventário de 1564 do Paço Ducal dos Duques de Bragança, em
desta técnica artística em Évora e Vila Viçosa, e entender como a cor- Lisboa, assinala o número de rectângulos que formavam o guadameci
te, o clero e a nobreza recorriam ao luxo ornamental nos interiores pa- completo. Assim, um “pano de guadamesy” possuía 24 peles; outros
lacianos. Permite ainda visionar a itinerância de mestres guadameci- três eram constituídos por 15 peles cada, e um outro, considerado no-
leiros (e seus oficiais / ajudantes, presume-se) entre Évora, Vila Viçosa vo, por 12 peles; este possuía as “suas sanefas douradas”, e os outros ti-
e Lisboa, levando peles, ferramentas e ingredientes do ofício. nham-nas douradas “por dentro e por fora” – um acabamento de re-
Uma arte que acompanhou a formação de Portugal, desapareceu an- quinte. O inventário refere ainda três panejamentos têxteis que “se fi-
tes de ser minimamente conhecida e entendida na sua sumptuosidade zeram para o casamento do Senhor duque Dom João” (FERRÃO, 1990:
e importância; a drástica falta de guadamecis clássicos em Portugal 191); atendendo à data, parece ser o pai de D. Teodósio II, Duque
tem evitado o estudo e a compreensão deste ofício; são precisos levan- de Bragança; D. João casou em 1563 com D. Catarina, neta de D. Ma-
tamentos e um historial o mais completo e correcto possível, para que nuel.
possa integrar de facto a História da Arte Portuguesa. O mesmo inventário informa que havia 20 outros guadamecis, “dos
quais neste invemtayro fycão avallyados cymquo e os quymze q faltão
estão em villa vyçosa” (FERRÃO, 1990: 193) e transportados em “cai-
133
PATRIMÓNIO
Em linhas anteriores, somos informados que a Cartuxa adquiriu tam- asima declarado a Simão marques, fanqueiro” (SERRÃO, 2015: 303).
bém “Un frontal del mesmo damasco com suas sanefas de brocado”, “Un Será usual um mercador de tecidos ter guadamecis para alugar; o di-
dossel grande del mesmo damasco com barras de brocado y franjoins de cionário esclarece que um fanqueiro trata também do comércio de
oro”, “Dos frontays do mesmo fustam com suas sanefas”, e “Un sobre ceo tecidos. Eventualmente trata-se de guadamecis na posse de um parti-
do mesmo fustam para la capela do padre prior” (SERRÃO, 2015: 288), cular, que os alugava para cerimónias.
paramentos luxuosos em têxtil que emparelham com o guadameci. Já o “documento nº 17. 1589, 8 de Janeiro. rol de obras realizadas na sé
No “documento nº 15. 1588, 15 de Junho. rol de obras realizadas na sé a mando do Arcebispo d. Teotónio” refere: “Despendeo o Rdor treze mil
de Évora a mando de d. teotónio de Bragança”, estão contabilizados mais e dozemtos rs em cento e vinte peles de goudemisi douradas pª as escadas
gastos com os guadamecis: “Despendeo o Rdor treze mil e dozentos rs do sepulchro, custou cada pelle cento e des rs cuzidas e pregadas, que faz
em cento e vinte peles de guodemisi dourados pª as escadas do sepulchro, a ditta soma os quais resebeo Domingos martins Roiz mºr na Rua da Sel-
custou cada pelle cento e des rs cuzidas e pregadas, que faz a ditta soma laria, goadamisileiro” (SERRÃO, 2015: 304). De novo, foi obra do gua-
os quais resebeo Domingos Martins, morador na Rua da Sellaria, goada- damecileiro Domingos Martins Ruiz, citado atrás; elaborou ele 120
misileiro” (SERRÃO, 2015: 299). Temos mais um nome a acrescentar rectângulos de guadameci, que foram cosidos entre si (formando o
aos guadamecileiros eborenses: Domingos Martins, morador na Rua panejamento, não se sabendo se apenas um, mas pela quantidade é de
da Selaria. presumir que não) e pregados (armados nas paredes). Nestas obras par-
O nome da artéria – Rua da Selaria (actual Rua 5 de Outubro) – reve- ticiparam outros artífices: ourives, livreiro e sirgueiro. Ficamos tam-
la ligações aos ofícios do couro, nomeadamente ao fabrico das muito bém a saber como eram os transportes na época: 340 reis foram pagos
necessárias selas; apesar da designação, esta e outras ruas ligadas aos a um “quaminheiro” / caminheiro para ir a Vila Viçosa contactar o ou-
ofícios não eram exclusivas, e outros ofícios havia que não estavam rives João Luís “pª ir acabar a lâmpada em que gastou tres diass, hum
nas ruas respectivas; a cidade teve também a Rua dos “Correeyros” (sé- de ida e outro destada e outro de vimda” (SERRÃO, 2015: 304) – cami-
culo XIV) e a “Çafoaria”, onde estariam os “çafoeiros” (PEREIRA, 1891: nhar a pé, ou despender muitas horas a cavalo, era corrente para dis-
115), os fabricantes de safões. Há que esclarecer que as selas tradicio- tâncias nada desprezíveis.
nais portuguesas são herdeiras daquelas do al-Andalus: o modo de No “documento nº 20. 1591. rol de despesas com as festas de nossa senho-
montar “à gineta” era usado pelos exércitos muçulmanos, e permane- ra da Assunção na sé de Évora”, somos informados de mais um gasto
ce no toureio a cavalo; a decoração das selas, com a disposição em tri- com guadamecis: “Mais despendeo dozentos simquoenta rs com pregos e
ângulo de cravos tronco-cónicos, relembra a marca na selaria do cali- esquapollas que se comprarão pª se armarem os goadamesis” (SERRÃO,
fado ibérico (PEREIRA, 2012). 2015: 306). Os guadamecis, a fixar nas paredes, exigiam pregos e ar-
Noutro documento, de Janeiro de 1589, adiante referido, vemos o golas.
mesmo Domingos Martins envolvido na manufactura de enorme Mais adiante, no “documento nº 21. 1591, março. rol de obras miúdas
quantidade de guadamecis para a Sé. realizadas na sé de Évora”, somos informados da despesa semelhante
Havia mais gastos com panejamentos armados para a Festa da Cruz: para armar guadamecis na Sé local: “Mais dispendeo dozentos e sincoen-
“armarem os panos dozentos rs”. O mesmo se passava para a “festya ta e tres rs em preguos e esquapollas que se compraram pª se armarem os
dasumpção”: “armarem os pabnos e os desarmarem, e alimparem e do- guadamesis” (SERRÃO, 2015: 308).
brarem” (SERRÃO, 2015: 300). Seja brocados, seja guadamecis, as No “documento nº 35. 1603. inventário dos painéis, mobiliário, pratas
cobertas de parede tinham de ser armadas e desarmadas, e isso impli- e tapeçarias da colecção de d. Alexandre de bragança, Arcebispo de Évo-
cava alguém a ser pago. ra” está outra enorme quantidade de guadamecis. No referido livro
Mais guadamecis de armar encontram-se referenciados no “documen- de Vitor SERRÃO (2015), lemos: “Já de D. Alexandre de Bragança, so-
to nº 16. 1588, setembro. rol de obras realizadas na sé de Évora a mando brinho de D. Teotónio e seu sucessor no cargo arcebispal, em 1602-18,
do Arcebispo d. teotónio de Bragança”; sob o título “Gastos da festa de sabemos que, morando alternadamente entre Évora e Vila Viçosa, tinha
nossa Senhora da Assumpção” estão outras despesas: “Despendeo mais nas suas casas peças artísticas caras: além de tapeçarias bruxelenses (His-
oito centos rs que deu a quatro homens que armarão a Capella mor e a tória de Hércules, História de David, «panos de Bichos»), possuía ricas
See com guadamecis e a crasta, e de enramarem e espadanarem em que pratas, guadamecis, alcatifas de Veneza, retábulos e mobiliário de quali-
gastou a vespora de nossa Snõra e a noite” (SERRÃO, 2015: 302). Adi- dade” (SERRÃO, 2015: 20). Assim, os panejamentos em guadameci eram
ante, fica-se a saber que era possível alugar guadamecis, eventualmen- seis, de trinta e duas peles e meia cada, um outro de 40 peles, 17 gua-
te para um uso temporal restrito: “Alugou o R.dor des goadamesis dou- damecis com 30 peles cada, e ainda dez “panos”: “Seis Guadamecis
rados a Jorge vas, mercador de panos de linho, a 80 rs cada hum, pera asi dourados todos novos cada hum de trinta e duas peles e mª os cinco e hum
se alugarem a todos monta oito centos rs. Alugou mais sette goadamesis maior que tem corenta pessas”, “Dezassete guadamexins vermelhos com
por quatro centos, digo seis centos rs por quinhentos e sessenta rs plo preço sanefas douro e verde reformados de trinta postos cada hum”, “Des panos
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PATRIMÓNIO
Para se sentar, seguem-se as almofadas: “Vinte e oito Almofadas de velu- iiij [4] medalhas. dous estrados que cada huu deles tem xxj [21] peles ver-
do carmesim”, “Seis almofadas de tella e veludo carmesim”, “Dezoito al- melhas e xi [11] peles douradas com ceenefas e debruns e ambos biij [8]
mofadas de cor do vão baio pespentados de azul com massanellos e caireis medalhas. o outro estrado tem xbij [17] pelles vermelhas e x [10] doura-
de prata e azul”, “Onze almofadas de veludo e damasco roxo”, “Quatro das com cenefas e debrus e iiij [4] medalhas. xii [12] coxis vermelhos com
almofadas de cor do vão baio velhos”, e “Huma almofada da cor do vam cenefas douradas” (VITERBO, 1917: 386), entregues em 1538. O gua-
com cairel azul velha”; temos também as de guadameci: “Quatro almo- dameci usava-se também para cobrir estrados, usados para se sentar,
fadas de guadamecim velhas” (SERRÃO, 2015: 358). moda esta herdada do Islão ibérico. Rodrigo Afonso entregou, já em
Temos depois os estrados cobertos: “Huma guarda destrado de tafetá en- 1544, um frontal de altar à rainha (IDEM, ibidem).
carnado dourada” e “Duas guardas destrado de tafetá” (SERRÃO, 2015). Além do seu trabalho em Portugal, vemos o mesmo mestre a tratar de
As cadeiras também se encontram: “Dezoito cadeiras de veludo carme- uma avultada compra de guadamecis em Córdova, em 1525; tal lote
zim com franja de ouro e carmezim e pregaria dourada”, “Dous tambo- – “nueve paños de guadamecí grandes de a treinta y dos piezas cada uno
retes de ilhargas de cama de veludo carmezim com franja de ouro com de oro y plata y colorado, y seis frontales de imaginería con sus acenefas y
seus coiros de resguardo forrados”, “Doze cadeiras de coiro de mosquovia piezas de brocado, y veinte y seis cojines colorados y de brocado con ace-
cham com pregos dourados uzados” e “Dous tamboretes de coiro de mos- nefas de oro y plata” – era destinado ao rei D. João III; neste raro do-
quovia pespentados dobradiços” (SERRÃO, 2015: 360-361). O luxo in- cumento, assinado por “Rodrigo Alonso, guadamecilero del señor rey de
clui estofos em têxtil; de novo, vamos admitir que o “coiro de mosquo- Portugal” (PEREIRA, 2013a; 2017b: 39) e Lorenzo Fernández, pintor
via” é mesmo couro de Moscóvia e não cadeiras em couro lavrado da cordovês, incluía obras de pintura devocional. Rodrigo Afonso esteve
tradição portuguesa. Já os tamboretes devem ser cadeiras rasas (sem em Córdova como comprador da corte, o que demonstra a sua im-
espaldar), aqui dobradiças. Tome-se em atenção a origem de muitos portância num ofício de luxo.
paramentos – Índia, Veneza, Castela, Pérsia –, o que mostra as capa- Temos, finalmente, registo apreciável sobre a actividade de um mes-
cidades aquisitivas e a entrada de peças não-europeias nas modas da tre guadamecileiro servindo dois reis, pelo menos durante quatro de-
época. cénios; mantinha-se a corte abastecida e integrada nas ricas modas pe-
Num outro inventário, “documento nº 56. 1644, 14 de Junho. inven- ninsulares onde estava o guadameci.
tário da livraria do paço dos condes de basto”, na longa lista de livros,
está, no fólio 52, listado um volume encadernado com um guadame-
ci: “Tratado das drogas da India por gracia dorta de quarto emquader- A ARTE DO GUADAMECI EM VILA VIÇOSA
nado em guadamessim avalliado em dusentos reis” (SERRÃO, 2015: 374)
– caso raro, que podemos supor aproveitamento de um guadameci No Livro 1 das Mercês de D. Teodósio II, encontra-se um dado relativo
(panejamento ou almofada) retirado de uso. a um guadamecileiro, com data de 22 de Maio de 1585, cuja indica-
Outros dados sobre Évora apontam para o trabalho do guadamecilei- ção e transcrição obtive graças ao serviço da biblioteca do Paço Ducal
ro Rodrigo Afonso, a trabalhar no âmbito da corte de D. Manuel e de Vila Viçosa: “Ouve sua ex.a por bem fazer merçe áo dito Jr.mo Rib.ro
D. João III. A restauradora-conservadora Lina Falcão publicou recen- [Jerónimo Ribeiro] de ó tomar por seu guadamisinr.o pollo ser do Duq
temente a referência a um documento de 1519; especifica o texto que q ds. tem, cõ qtrocetos rs. de moradia por mes coforme há ordenansa de
D. Manuel concedeu a este mestre um salvo-conduto para transpor- sua casa” (NNG, 253: fl. 249v).
tar de Lisboa para a corte, em Évora, 150 dúzias de peles de carneira. Dir-se-ia que a Casa de Bragança tinha capacidades para requerer um
A quantidade é enorme – 1800 peles –, e “faz supor uma produção mestre lisboeta, pois o título deste documento é “Jr.mo Rib.ro mor em
considerável de guadamecis e também o gosto da família real portuguesa lxa” [Jerónimo Ribeiro morador em Lisboa]. A referência a “pollo ser
por este tipo de cabedais artísticos” (FALCÃO, 2016: 60), usados na cor- [guadamecileiro] do Duque que Deus tem” permite entender que o tra-
te, seja em Lisboa, seja em Évora. Rodrigo Afonso, e seus ajudantes, balho deste artífice com a Casa de Bragança antecedia D. Teodósio II,
terão montado uma oficina em Évora, pois o documento não refere vindo já do seu pai, D. João I de Bragança, 6.º Duque de Bragança
guadamecis, mas sim a matéria-prima. (1543-1583).
Também D. João III reconheceu Rodrigo Afonso como “meu gada- Este documento – Livro 1 das Mercês de D. Teodósio II – refere outros
micileiro, darlhe licença que posa amdar em mulla e faca de sela e freyo” artífices a trabalhar na Casa de Bragança: um carpinteiro, em 1589, e
(VITERBO, 1917: 385), por documento passado em Évora, em 24 de um tapeceiro “do Duq nosso s.or” em 1584 (NNG, 253: fl. 130v e 167).
Julho de 1544. Um outro documento, relativo à despesa da esposa do O Livro 2 acrescenta um sapateiro em 1594 (NNG 254: fl. 353v); e o
monarca, lista o trabalho do mesmo Rodrigo Afonso para D. Catari- Livro 3 refere outro sapateiro em 1595, três seleiros em 1595, 1611 e
na no dia 8 de Agosto do ano de 1538: “huu estrado que tem xxb [25] 1616, um tapeceiro em 1596, um correeiro em 1606, e um carpin-
peles vermelhas e xiij [13] peles e mea douradas e cenefas e debruns e teiro em 1611 (NNG 255: fl. 13, 25v, 43, 371, 372v, 467v e 471v).
137
PATRIMÓNIO
Para outra câmara, o relato volta a dar mais dados sobre a figuração: nar as influências mudéjares conhecidas (laçaria, entrançados) – seja
“Outra camara se tinha armado pera Dom Felipe de Navarra com goa- apenas nos apontamentos em faixas / molduras, seja na totalidade da
damecins de ouro, e preto com meas figuras semeadas por eles” (MEMÓ- obra – nos raros exemplares do século XVI.
RIAS…, 1603: fl. 199). Mais à frente, volta o texto à descrição genéri- A referência a ouro poderá significar, não o uso de folha de ouro, mas
ca: “Estava mais outra pera Dom Antonio de Velasco armada de goada- antes o dourado, dado no guadameci pela “douradura”; quanto às co-
mecins de ouro e azul. […] Outra camara se tinha armado para o secre- res – carmesim, azul, verde, preto – poderão dizer respeito a uma só,
tario do Conde de Haro, e outro companheiro com goadamecins de ouro ou à dominante; o guadameci nunca foi uma superfície pintada, antes
e prata” (IDEM: ibidem); nesta descrição básica, vemos a folha de prata tem desenhos florais, e as cores citadas poderão ser as do campo ou as
deixada na sua cor. da folhagem. Além dos brasões, arcos e figuras “ao grotesco” / ao bru-
Os acompanhantes dos nobres ficavam instalados em quartos com se- tesco, e apesar desta descrição nada mais referir quanto a detalhes nos
melhante riqueza: “Tambem estava outra [câmara] pera o camareiro do ornamentos, é de admitir o domínio da estilização floral, vista nou-
Conde, com goadamecins de ouro e carmesim. […] Tinha-se tambem pe- tros guadamecis coetâneos (e até anteriores), atrás já descritos: flores
ra outro criado do Conde armada huma camara de goadamecins, e ouro de pétalas em arco contracurvado, faixas florais com folhagem apa-
verde” (IDEM). rentada ao acanto, pinhas, alcachofras, lírios, flor de cardo, romãs e
Na descrição “De como estava armado o 2º quarto”, sabemos que havia outros frutos. Perante tal abundância, é caso para perguntar se a pro-
guadamecis brasonados: “O segundo quarto […] tinha a sala de goada- dução dos guadamecileiros de Évora e Vila Viçosa se terá toda perdi-
mecins de ouro com as armas do Duque nos cantos” (MEMÓRIAS…, 1603: do na mudança de gostos e descuidos com o património móvel e mais
fl. 200) – temos a manufactura personalizada, neste caso com a herál- frágil.
dica do duque. A colaboração directa de pintores de tábua na execução de guadame-
Outro fólio fala-nos dos aposentos de D. Teodósio: “A sala, anteca- cis figurativos permanecerá uma hipótese. Contudo, dados relativos a
mara, e camara de Sua Alteza, estavão todas armadas com goadamecins Córdova apontam para uma participação daqueles em obras dos gua-
azuis, […] Tambem estavão na camara quatro almofadas de couro azul, damecileiros (URQUIZER HERRERA, 2003: 520-522).
sobre huma esteira ao longo da cama” (IDEM: fl. 202v), sendo de crer que Para terminar estas referências a Évora e Vila Viçosa, há que recordar
estas almofadas eram também de guadameci. a importância de D. Manuel, que construiu os seus paços reais naque-
Sem guadamecis, tal como os aposentos de Ana de Velasco, estava “A la cidade; nessa época, viveram em Évora os pintores Frei Carlos,
sala dos senhores Dom Duarte, Alexandre e Felipe […] armada com pa- Gregório Lopes e Francisco Henriques, e o escultor Nicolau de Chan-
nos de veludo roxo” (IDEM: fl. 203). terenne – não é improvável que os mestres guadamecileiros, tanto ar-
Para finalizar, o escriba esclarece que o ornamento parietal era manu- tífices do guadameci “ao brocado” (o mais frequente), como os pinta-
facturado de acordo com as salas: “e asim concluo com a armação das dos com cenas religiosas, brasonária ou de paisagem, se tenham cru-
8 cazas; advertindo, que todas as armações delas, asim de tela, como as de zado com os famosos pintores de tábua, respirando todos na cultura
goadamecins, tinhão suas sobrejanelas onde as avia, e estavão as armações do Renascimento das cidades alentejanas referidas. O mesmo direi
feitas á medida da caza em que cada huma delas havia avia de servir” quanto ao convívio entre ofícios artísticos em Lisboa e Coimbra.
(MEMÓRIAS…, 1603). Entende-se que a elaboração dos panejamen-
tos, seja em têxtil, seja em guadameci, tinha em conta as dimensões
do aposento para o qual se destinavam. De notar ainda que os estofos OUTRAS REFERÊNCIAS NO ALENTEJO
das muitas cadeiras descritas neste documento são todos em têxtil rico
– não está referido qualquer uso do couro lavrado em estofos; neste Ainda pela mão de Túlio Espanca, o volume 3 do Inventário Artístico
caso, atendendo à data, seria ainda cedo para que os lavrados em cou- de Portugal revela mais dados sobre frontais em couro dourado, mas
ro bovino se tornassem mais correntes entre a nobreza lusitana. fora de Évora. Na Igreja Matriz de Portel, a capela de S. Francisco Xa-
Noutro texto da mesma cerimónia, ficamos a saber que a personaliza- vier tinha quatro dos altares que mantêm “afortunadamente, os antigos
ção dos guadamecis incluía o brasão da Casa de Bragança: “a sala de frontais de guadamecim, da época monástica e do séc. XVIII, decorados
jantar ostentava magnificência verdadeiramente real. Achava-se armada com elementos planturosos, florais ou imitando a tecelagem brocada, tra-
de guadamecins de ouro com as armas da casa de Bragança” (FERRÃO, balho pouco corrente nos nossos templos, talvez de produção eborense”
1990: 227). (ESPANCA, 1975: Vol. 3, p. 212).
Além da heráldica de uns e das cores de outros, a descrição vale muito Por carta, Túlio Espanca informou-me que tais frontais tinham sido
pela quantidade de guadamecis em uso regular em Vila Viçosa. Ela- roubados; não cheguei a esclarecer com o falecido investigador o que
borados durante o século XVI, ou de propósito para a boda, estes quis dizer com “época monástica” – para mim, o termo aplicar-se-ia
guadamecis apontam uma estética renascentista, que começa a elimi- aos guadamecis mais antigos, planos e de elaboração manual, even-
139
PATRIMÓNIO
painel central não ondula. Mesmo que o pintor não tenha represen-
tado a usual divisão em rectângulos, por que haveria de mostrar o on-
dulado dos panos laterais e deixar o painel central plano?
Um outro “pano d’armar” aparece ao ser aberta a cortina da cama nu- Na maioria das pinturas de 1500, os panos de armar representados
ma das pinturas que compõem as “Tábuas da Vida e Lenda de São são em têxtil, permitindo retirar paralelos estéticos com os guadame-
Roque”, tela de 1520, de Jorge Leal / Cristóvão de Utreque, no Mu- cis coetâneos, e ver a sua montagem por argolas e pregos nas paredes.
seu de São Roque, Lisboa. Como muitos outros, há que enfatizar a Outras aplicações de brocados ricos – nomeadamente em vestuário
beleza da harmonia, ritmo e estilização realizadas pelos pintores ao ve- de santos e nobres – estão também na mesma linha de consonância
rem as habitações ornamentadas com panejamentos, seja em têxtil, estética.
seja em guadameci. Neste visionamento de estéticas, há que considerar os guadamecis na
Um documento espanhol de 1552 refere um pouco mais da decora- Charola de Tomar: o seu relevado, produzido por molde, altera com-
ção vegetalista: “diez y ocho piezas de guadamecíes de oro, plata y negro, pletamente a história desta manufactura. A industrialização do méto-
decorados en el medio de cada uno de los cueros [...] con una alcachofa con do, com emprego de molde e prensa, começou a fazer-se nos Países
follaje alrededor a manera de brocado” (FUENTE ANDRÉS, 2014: 167). Baixos em 1628, permitindo acelerar a produção e criar atraentes es-
A alcachofra era um dos muitos temas usados nos guadamecis de téticas do Barroco e Rococó, como já mostrei nesta revista (PEREIRA,
1500, como aliás revelam as pinturas que os representam, e os poucos 2015). Contudo, o relevo, presente nos dois modelos de guadameci
guadamecis que chegaram até aos dias de hoje. colados nas paredes de pedra da Charola, mostra que já em inícios do
Quanto aos coxins, outras pinturas mostram essas almofadas – serão século XVI os artífices portugueses sabiam como conseguir enfatizar
em guadameci ou brocado têxtil? Revejam-se as pinturas “Virgem do o ornamento e produzir com mais rapidez os painéis de couro fino
Leite entre S. Bento e S. Jerónimo” (COLECÇÃO…,1996: 37), e “Nos- (PEREIRA, 2016). Para o que mais interessa a este artigo, não é de es-
sa Senhora da Graça com o Menino entre Santa Julita e São Querito” quecer que, na estética do guadameci, o brasão nacional, a Esfera Ar-
(PINTOR…, 1997: 148), onde os coxins servem de apoio aos pés das milar e a Cruz de Cristo poderão ter marcado presença nas obras qui-
santas. nhentistas.
141
PATRIMÓNIO
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outra revista...
edição
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[http://www.almadan.publ.pt]
RESUMO
ABSTRACT
T
odo o investigador que pretenda debruçar-se sobre a história da vila de Alan- the town’s mother church, which was built
by the Order of Avis.
droal e da sua região envolvente, sente-se, desde logo, constrangido com o la- Many aspects of Fernão Lopes’s life are unknown.
We do know that he was the head of the Torre do Tombo
mento de outros pesquisadores que, por diferentes épocas, se desafiaram em
(the Kingdom’s General Archive) and, as royal chronicler,
igual propósito. he launched the roots of modern Portuguese historiography.
He is believed to have been born between 1380
Os registos documentais e epigráficos, passíveis de qualquer racionalização, são efetiva- and 1390 and to have died in 1460.
mente tão escassos e de tal forma dispersos no tempo, que formar com eles uma corrente
KEY WORDS: Heritage; Historiography;
de sentido constitui uma verdadeira impossibilidade. Contudo, saídos dessa penúria bi- Epigraphy; Fernão Lopes (1380/1390-1460).
bliográfica, surgem, subitamente, dois filhos dessa terra, imortalizados por Camões nos
RÉSUMÉ
Lusíadas: Pêro Rodrigues e Diogo Lopes de Sequeira.
Article qui défend l’hypothèse selon laquelle Fernão Lopes
serait né et aurait été enterré à Alandroal. La thèse se base
sur la lecture de l’inscription identifiée sur une pierre
PAPEL RELEVANTE EXERCIDO POR FILHOS DO ALANDROAL tombale située à l’entrée de l’église principale
de la ville, édifiée par l’Ordre d’Avis.
Ayant certains aspects de sa vie peu connus,
Deste último, Diogo Lopes de Sequeira, embora resulte singular que um filho de castelão Fernão Lopes a été Grand Archiviste de la Torre do Tombo
(Archives Générales du Royaume) et, en tant que
fronteiriço ascendesse na Corte até se tornar vice-rei da Índia, pacificamente aceitamos, chroniqueur royal, a lancé les bases de l’historiographie
pela relevância do cargo, a sua inclusão na epopeia de Camões. Mas o que dizer de Pêro portugaise moderne. Il serait né entre 1380 et
1390 et décédé vers 1460.
Rodrigues? Que cometimentos tão relevantes, que feitos tão consideráveis podem atri-
buir-se ao alcaide-mor do Alandroal, durante a crise de 1383-1385? MOTS CLÉS: Patrimoine; Historiographie;
Épigraphie; Fernão Lopes (1380/1390-1460).
Em verdade, da leitura crua dos relatos resulta
óbvio que a sua intervenção, por entre o cená-
rio de guerra (quatro batalhas) que sacudia
Portugal, não transcendeu, afinal, das peque-
nas escaramuças de fronteira (fossados). Que FIG. 1 - Rosto que, nos Painéis de S. Vicente,
critérios, que justificativas levaram, então, se tem identificado com Fernão Lopes.
Luís de Camões a incluir Pêro Rodrigues en-
tre o “panteão” de heróis da grandiosa epo-
peia? Certamente – cremos ser a única expli-
cação –, a desmedida ênfase dada ao castelão- I
Artista plástico. Investigador.
mor do Alandroal pelo autor dos escritos que II
Catedrático de História, aposentado,
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
serviram de consulta e de posterior estrutura
histórica da épica do Poeta: as Crónicas de Por opção dos autores, o texto segue as regras
Fernão Lopes. do Acordo Ortográfico de 1990.
145
HISTÓRIA LOCAL
as Crónicas? cm-alandroal.pt/pt/site-visitar/
o-concelho/Paginas/Alandroal.aspx
(consultado em 2017-11-20).
FERNÃO LOPES, fimo meio rural. Onde estudou? Onde revelou de tal forma os seus
NATURAL DO A LANDROAL méritos, que atraiu sobre si o olhar do novo poder reinante? Se a cria-
ção da Universidade de Évora data de 1559, onde terá estudado Fer-
Efetivamente, o nascimento de Fernão Lopes nesta zona rural é uma não Lopes?
forte probabilidade. Se o Cronista fosse natural de Lisboa, como al- “Dominando latim e castelhano” e “provavelmente educado numa escola
guém alvitra sem qualquer fundamento histórico, originário de hu- conventual”, dizem-nos os historiadores. Em verdade, o castelhano
milde gente, numa urbe tão populosa, dificilmente acederia à erudi- (ainda hoje assim sucede) é a segunda língua das gentes fronteiriças,
ção que demonstrou possuir, e, mais improvável ainda, se evidencia- e o Cronista, sem se ausentar sequer da própria vila, teria as condições
ria perante a casa de Avis. necessárias para se transformar num homem de saberes amplos: no
Pelo contrário, sendo oriundo da própria gente do Mestre, nascido Convento da Ordem de S. Bento de Avis, herdade da Pipeira, tal co-
num pequeno povoado da Ordem, o seu enorme talento literário mo outros semelhantes, se lecionavam disciplinas várias – História,
obteria reconhecimento imediato, e, sabiamente desenvolvido, seria Filosofia, Latim, Gramática, Retórica, Dialética, etc.
depois colocado ao serviço da estrutura dos patronos. Admitindo, Assim, verificados os pressupostos necessários à estrutura desta espe-
então, esta conjetura, urge indagar das possibilidades de acesso à eru- culação – Fernão Lopes ser originário do Alandroal –, analisemos o
dição que o Cronista evidencia, apesar da juventude passada num ín- achamento que originou a sua conceptualização.
147
HISTÓRIA LOCAL
FIGS. 4 E 5 - A laje
sepulcral junto à porta.
2
Um sobrenome que
vem desde os tempos feudais,
derivado progressivamente
das formas antigas Lupici,
Lopiz, Lopez.
FIG. 6 - Pormenor
do topo da laje sepulcral,
sendo evidente o desgaste
da inscrição.
A localização da inscrição logo à entrada da igreja matriz justifica não o de cronista” (Agostinho de Campos, Antologia Portuguesa, vol. 1,
apenas o desgaste verificado, como também o facto de ninguém, até 1920, p. 15).
ao momento, se haver apercebido do que ali está escrito: é que a por- Assim, com uma idade invulgarmente avançada para a época em que
ta, quando aberta, fica mesmo por cima das letras, designadamente da viveu, Fernão Lopes, talvez agastado com as “atordoadas” que invejas
primeira linha (Fig. 7), ocultando-a. lisboetas atiravam à sua obra, foi recolher-se nos braços da sua terra
Se a todo o conjunto de convergências históricas que enunciámos adi- natal, e, sepultado na igreja construída pela sua Ordem de Avis, deno-
cionarmos a imagem desta lápide, onde, apesar de sinais de reutiliza- minada então Igreja da Nossa Senhora da Graça, elevou-se ao pata-
ção, se pode ler, nitidamente, o nome do cronista, toda esta exposição mar excelso da eternidade, onde sossegam todos os homens extraor-
adquire sentido, toda esta especulação se transmuta de probabilidade dinários.
em facto histórico.
PUBLICIDADE
CONCLUSÃO
149
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
151
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Sondagens no
Caracol da Graça,
Lisboa
Rui Pinheiro
[Arqueologia e Património, Lda. (ruipinheiro14@sapo.pt)]
Introdução
Área de intervenção
Sondagens arqueológicas
Área de vedação (Bekaert)
sondagem 4
sondagem 3
sondagem 2
sondagem 1
0 5m
Sondagem 1
153
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
0 1,5 cm
0 5 cm
0 5 cm
FIG. 14 - Materiais da
[UE 115]: cerâmica
comum.
155
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Sondagem 2
Sondagem 4
157
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Guilherme Cardoso
Função
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159
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
HUSQVARNA
um utensílio triturador
numa escavação da Rua do Arsenal
Introdução
161
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
163
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
apontamento sobre a
Enquadramento
FIG. 4 - Exemplos
de Canhões de Mão
(três de cima) e de
Arcabuz (em baixo).
Na segunda arma a contar
de cima, o gancho
e a arma no seu todo
são bastante similares
à encontrada (segundo
WEAPONS..., 2017).
165
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
notícia preliminar da
Alexandre Monteiro 1, Jorge Freire 2, Flávio Biscaia 3, Paulo Costa 4, barcação. Arrastados para Leste durante alguns
Marijo Gauthier-Bérubé 5, Pedro Patacas e Sandro Pinto minutos, o destroço rapidamente foi deixado pa-
1
ra trás. No entanto, na sonda surge nova ano-
Instituto de Arqueologia e Paleociências (IAP-NOVA/FCSH);
2
malia, desta vez sob a forma de dezenas de esco-
Centro de Humanidades (CHAM-NOVA/FCSH) e Centro de Investigação Naval (CINAV);
3
Laboratório de Arqueologia e Conservação do Património Subaquático do Instituto Politécnico de Tomar (LACPS-IPT);
lhos, como se fossem pedras, ocupando todo o
4
Instituto de História Contemporânea (IHC-NOVA/FCSH); monitor.
5
Texas A&M University. Nova imersão e nova surpresa – com uma visi-
bilidade de cerca de quatro a cinco metros, excep-
Por opção dos autores, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990. cional para a zona, os mariscadores rapidamente
se aperceberam que as “pedras” mais não eram
do que, na verdade, barris em madeira, espalhados
Introdução a esmo pelo fundo. Limitados pela força da cor-
rente de maré, que se começava a fazer sentir com
1
A sua identificação,
enquanto Património Cultural
Subaquático, foi fácil para estes
mariscadores – afinal, tratava-se
dos mesmos achadores do
naufrágio Tróia 1, localizado
por estes no estuário do Sado,
em 2011 (MARTINS, 2014).
2
Ambos estão estabilizados
e à guarda provisória do
IAP‐FCSH/NOVA. Ainda que
muito concrecionados, estes
pratos são morfologicamente
idênticos, apresentando ambos
aba curta e fundo plano.
3
Tal como os pratos
em estanho do Tejo A, esta
aduela está estabilizada e à
FIG. 1 - Plano de localização dos destroços. guarda provisória do
IAP‐FCSH/NOVA.
167
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Discussão
Não é descabido dizer-se que estas descobertas As fortes correntes de maré, o vento, a natureza Com efeito, a barra de Lisboa tem três canais,
não constituem qualquer surpresa. Com efeito, extremamente móvel dos seus fundos – tudo são por onde têm que forçosamente passar os navios
a barra do porto de Lisboa deverá ser um dos lo- factores que levaram à perda de inúmeras embar- que querem entrar ou sair do porto:
cais mais perigosos da costa portuguesa, pelas cações no estuário do Tejo (SILVA e CARDOSO, 1) A barra do canal norte, que fica entre o banco
condições exigentes de marinharia que exige a 2005). Mas estas perdas não se deram em qual- de areia paralelo à costa da praia de Carcavelos
sua franquia, especialmente com embarcações quer local do estuário. Pelo contrário, elas tendem (o Cachopo Norte) e a própria praia;
de alto bordo e à vela. a concentrar-se em três pontos críticos.
169
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
7
Obviamente, o factor mais diferenciador deste tituições, quer as de tutela quer académicas. Es- A partir de alguns elementos de barris,
naufrágio é a quantidade e o grau de preservação tamos a referir-nos não só às informações passíveis onde se incluíam três exemplares intactos,
dos barris que contém. Com efeito, embora a de serem obtidas junto do Instituto Hidrográfico, recuperados do naufrágio do Heroine, Nina Chick
descreve exaustivamente a indústria da tanoaria
presença destes na navegação à vela fosse cons- relativas ao levantamento topo-hidrográfico da
para serviço marítimo (CHICK, 2015).
tante e ubíqua 7, a sua sobrevivência em contexto Golada do Bugio efectuado por este Instituto, 8
Para o século XVI, existem alguns exemplares
arqueológico não é muito comum. Embora em 2015, para aferição da evolução de fenómenos no Mary Rose (SPALDING, 2014) e no San Juan
conheçamos casos de naufrágios em que existem de acreção ou erosão na zona do Tejo B e a to- (ROSS, 1980 e 1985). Para o século XVIII,
barris presentes, quer intactos, quer mais habi- mada de eventuais medidas de protecção do sítio, várias peças de barris foram recuperadas do
tualmente colapsados 8, o estado em que se apre- mas acima de tudo à acção social da Arqueologia, naufrágio do Hazardous, de 1706 (OWEN, 1988),
senta esta carga é invulgar, sendo o número destes com o envolvimento dos achadores em todo o tendo ainda sido observados quatro barris
elementos francamente superior a tudo o que co- processo de investigação e disseminação. intactos no seu interior (JOHNSTON, 2014);
do naufrágio do Barrel Wreck, em Robben Island
nhecemos na literatura. Afinal, é através dos utentes do mar que hoje co-
(VAN DUIVENVOORDE, 2012) surgiram, em
Ainda que esta notícia de descoberta seja preli- nhecemos a esmagadora maioria dos vestígios de quantidade incerta, vários barris, em duas
minar, as perspectivas futuras apontam para que Património Cultural Subaquático existente no tipologias diferentes, a de maior tamanho
este caso pode vir a constituir um paradigma no espaço marítimo português (COSTA e MONTEIRO, contendo provavelmente pez (ADAMS et al., 2011).
que concerne à partilha de informação entre ins- 2017). Já no século XIX, do naufrágio do William
Salthouse, foram apenas recuperadas peças soltas
dos mais de mil barris de várias tipologias e
dimensões que transportaria, de acordo com o
manifesto de carga (STANIFORTH, 1987,
2000, 2003 e 2007).
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Por opção das autoras, o texto segue as regras servação do Património Artístico-Cultural, Lda, fazer após uma catástrofe natural. What to do
do Acordo Ortográfico de 1990.
do Serviço Municipal de Proteção Civil do Mu- next? é a questão a que o STORM pretende dar res-
nicípio de Grândola, e da empresa Troiaresort - posta, estruturando toda a informação recolhida
- Investimentos Turísticos, S.A., proprietária dos em procedimentos, sistemas e tecnologias que
Descrição do projeto terrenos onde se situam as Ruínas Romanas de possam ser postos em prática pelo conjunto dos
Tróia e responsável pelo seu projeto de valorização. intervenientes em caso de desastre natural (bom-
171
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
sam ajudar a identificar o perfil de determinado área exemplificativa, que correspondeu às paredes casos de estudo selecionados para este sítio piloto.
bem cultural; do canto sul da Oficina de Salga 21, onde se lo- O histórico das condições climáticas de Tróia
2. Implementação de modelos e serviços que pos- caliza a única janela preservada numa oficina, o tem sido fornecido por uma estação meteoroló-
sam responder a um cenário de risco, com base poço da Oficina de Salga 23, pela sua exposição gica localizada a cerca de um quilómetro do com-
nos dados recolhidos por sensores e através de às marés e grau de preservação, e uma das paredes plexo industrial romano, que registou os dados
uma app para crowdsensing. O crowdsensing pre- pintadas da Basílica Paleocristã, um grande de- dos últimos dez anos. De forma a obter uma lei-
tende também o empoderamento da sociedade safio de conservação, tendo em conta as caracte- tura mais rigorosa, foi adquirida uma estação
civil na proteção do património; rísticas ambientais de Tróia e a altura das pare- meteorológica, em fase de calibração, que forneça
3. Fornecimento de métodos inovadores e ferra- des com pintura mural, que as torna únicas no informação permanente e sistematizada no sítio
mentas de software mais fiáveis na manutenção e território português (Fig. 3). arqueológico (Fig. 4).
primeiros socorros do património móvel e imóvel; Para cada um destes casos de estudo foram apre- Para a instalação de uma estação meteorológica,
4. Definição de uma plataforma de colaboração sentados cenários de eventual catástrofe e pro- foi necessário dotar o sítio arqueológico de ele-
e partilha de conhecimento entre os vários par- postas de minimização de impacte no caso da sua tricidade, através da instalação de painéis solares,
ceiros, de forma a propor soluções de conservação ocorrência (Disaster Risk Reduction), com um e de Internet, que consiste num acesso ponto-a-
para uma gestão patrimonial mais sustentável. plano de ações a implementar num ciclo segmen- -ponto Wi-Fi (a cerca de 2 km) com ligação a
Por fim, relativamente às políticas de planea- tado em cinco fases que seguem as normativas um ISP e uma ligação redundante 3G/4G.
mento, no final do projeto serão dadas propostas mais atuais de gestão de desastre no património De forma a vigiar a conservação e afetação das
de alteração da legislação e de validação dos co- cultural (Disaster Risk Management), como o oficinas de salga da orla, caso das Oficinas de
nhecimentos adquiridos na estratégia do governo. acordo de Sendai (UNISDR, 2015). As fases estu- Salga 21 e 23, foram feitas duas campanhas de
Neste mesmo âmbito, incorpora-se também a dadas e incorporadas no projeto STORM são as fotogrametria até ao momento. Este método re-
análise de custos das ferramentas analíticas de seguintes: velou-se extremamente útil em Tróia, adaptan-
recolha de dados do STORM destinadas à proteção 1. Análise do risco; do-se facilmente aos grandes desníveis de duna,
de sítios contra as ameaças naturais e humanas. 2. Prevenção e Mitigação; sendo capaz de registar estruturas com volume-
3. Preparação; trias diversas e fornecer nuvens de pontos de ele-
Resumo da primeira fase de projeto 4. Resposta (inclui Primeiros Socorros); vado rigor a um preço significativamente mais
no sítio piloto de Tróia 5. Recuperação. baixo que o laser scanner. Dois membros da equi-
Após o desenvolvimento destes conceitos chave pa receberam ainda formação em fotogrametria
As Ruínas Romanas de Tróia, na margem esquer- e sua aplicação ao território, foram então definidas por parte da empresa FORTH - Foundation for
da do estuário do Rio Sado, são o maior centro as ferramentas não invasivas para o controlo do Research and Technology, Hellas, um dos par-
produtor de salga de peixe do Império Romano. risco sobre o património construído do sítio ceiros do projeto, e procedeu-se à aquisição de
A grande capacidade de produção deve-se à sua arqueológico de Tróia, mais concretamente nos equipamento (computador e máquina fotográ-
localização privilegiada numa ilha ou restinga are- fica), assim como de software informático ade-
nosa, com fácil acesso a matérias-primas locais, quado (Agisoft Photoscan), de modo a proceder
como o sal e o peixe, essencial para as salgas e mo- autonomamente à recolha e processamento de
lhos e, permitindo ao mesmo tempo, o rápido es- dados obtidos em trabalho de campo.
coamento destes produtos por mar e por rio. Para deteção precoce de contaminação biológica,
O posicionamento estratégico que tanto benefi- foi desenvolvida pelo INOV uma metodologia de
ciou o sítio na antiguidade é agora o seu principal espectroscopia Raman (de dispersão inelástica)
fator de risco natural, com correntes de maré que e fluorescência induzida, com dois testes já rea-
todos os dias varrem a base de estruturas e afetam lizados nas pinturas da Basílica.
os contextos arqueológicos na orla do estuário Por fim, está a ser desenvolvida uma aplicação
do Sado, causando o desmoronamento de sedi- portátil para promover a participação dos visi-
mentos e o colapso de paredes muito altas. tantes das ruínas e da comunidade envolvente
O projeto STORM procura encontrar soluções de na salvaguarda e preservação do sítio. Esta técnica
mitigação do efeito das correntes de maré e da de sensorização em crowdsensing assumirá o for-
subida do nível médio das águas do mar, aten- mato de jogo, para aumentar a in-
dendo igualmente a outras ameaças como tem- teração e facilitar o envolvimento
porais, vapor salino, humidade, intrusão humana,
IV dos participantes.
colonização biológica e terramotos (Fig. 2), entre V
outras a que o sítio arqueológico está sujeito. VI
Após a identificação dos principais fatores de VII
risco em Tróia, foram selecionados três casos de VIII FIG. 2 - Intensidade
estudo mais vulneráveis a estes impactos, as Ofi-
cinas de Salga 21 e 23, e a Basílica. Em cada um
IX macrossísmica em Portugal
continental (escala de Mercalli
destes núcleos das ruínas, foi circunscrita uma X modificada, 1956).
Bibliografia
173
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Por opção das autoras, o texto segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
FIGS. 1 E 2 - Aspetos do
espetáculo Saudades da Rua da
Saudade - Tributo a Ary dos
Santos, inserido no projeto
Saudades da Rua da Saudade.
O teatro romano e a sua
envolvente nas memórias
da cidade.
175
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Espetáculo Saudades da
Rua da Saudade - tributo a
Ary dos Santos
Museu de Lisboa - Teatro Romano: nas ruínas do
teatro, frente à Rua de São Mamede, n.º 3-A.
passado. São eles que relembram a demo- 21 de outubro de 2017, 21h;
lição dos edifícios, a incerteza de perma- entrada gratuita; maiores de 6 anos.
necerem na zona ou de aguardarem a des-
locação para outro local. São eles que assis-
tiram às primeiras descobertas dos ves- Exposição e publicação
tígios do teatro romano, as primeiras colu- Saudades da Rua da Saudade:
nas, as primeiras pedras, os pavimentos, o teatro romano e a sua
muros e construções que testemunhavam
envolvente nas memórias
a existência de um teatro romano no mes-
mo sítio onde moravam. da cidade
São estas testemunhas que assistem, tam-
Galeria de Exposições da Junta de Freguesia
bém, ao 25 de abril de 1974 e aos novos de Santa Maria Maior
valores que então se impõem. Como a
imprensa de então sublinha, “descobertas 9 de novembro de 2017 a 2 de março de 2018;
entrada gratuita.
de mero valor arqueológico” são contrárias
à expropriação dos moradores e à demo-
índice da publicação
lição dos edifícios.
do teatro romano continua a representar nos O objetivo que se impõe é o de dar um contributo Saudades da Rua da Saudade e o Museu de Lisboa -
nossos dias um marco da paisagem urbana. Um físico para que estas memórias, e as recolhas rea- - Teatro Romano, Joana Gomes Cardoso (Presidente
do Conselho de Administração da EGEAC)
marco pela ausência, uma vez que o espaço atual- lizadas até ao momento, não se percam. A análise
mente escavado constitui um sítio em negativo: social e antropológica liga-se, de forma natural e Saudades da Rua da Saudade, Joana Sousa Monteiro
uma área escavada visível da rua e que ocupa irremediável, ao tecido histórico e à herança ar- (Diretora do Museu de Lisboa / EGEAC)
cerca de 1.500 m². Do processo de demolição e queológica deste local. Apenas conhecendo a ri- O Projeto “Saudades da Rua da Saudade”. Génese e
escavação, operados num tempo longo, ainda quíssima herança histórica que nos coube, a po- enquadramento, Lídia Fernandes (Coordenadora
do Museu de Lisboa - Teatro Romano / EGEAC)
permanecem as marcas, quer nas empenas onde demos proteger e estabelecer uma ligação entre
ficaram marcados os negativos de edifícios, quer o passado e o nosso presente. O Teatro Romano de Felicitas Iulia Olisipo.
no que persiste dos alicerces de outros já demo- É também esta a missão do Museu de Lisboa - Um monumento romano e um museu no centro
da cidade, Lídia Fernandes (Coordenadora do
lidos, mas que perduram na zona limítrofe da -Teatro Romano, a de constituir um repositório Museu de Lisboa - Teatro Romano / EGEAC)
área intervencionada. de informações, memórias do teatro romano e
Tão Perto e Tão Longe: a transformação da paisagem
Deste complexo processo de escavação arqueo- da sua envolvente ao longo da nossa história. Es-
urbana da zona envolvente do museu do teatro
lógica em pleno coração da cidade antiga, outras te compromisso articula-se com o próprio obje- romano, Carolina Grilo (Arqueóloga. Museu de
marcas atestam uma intervenção interrompida tivo deste espaço museológico: o Museu de Lis- Lisboa - Teatro Romano / EGEAC)
e cujas soluções arquitetónicas e urbanísticas ado- boa - Teatro Romano tem como missão a inves-
Memórias da Saudade, Daniela Araújo e Rui Coelho
tadas não foram pensadas como permanentes, tigação, salvaguarda e preservação das estruturas (Antropólogos. Museu de Lisboa - Palácio Pimenta
antes como solução de recurso que foram ficando arqueológicas que integram o seu espaço museo- / EGEAC); Ana Cosme (Antropóloga. Câmara
ao longo dos anos. Passadiços provisórios que lógico. É objetivo do museu a divulgação deste Municipal de Lisboa)
aguardam substituição para se tornarem mais património – composto pelas ruínas do teatro Do Teatro à Cidade: renovação de um espaço,
acessíveis, tapumes que esperam por opções mais romano, mas também pelas ocupações humanas novas funções e novas pessoas, Maria Miguel Lucas
agradáveis, constrangimentos da área viária que reconhecidas no local, anteriores e posteriores à (Arqueóloga. Colaboradora do Museu de
não demarcam o espaço museográfico ou a área construção do monumento romano. O profundo Lisboa - Teatro Romano)
arqueológica. conhecimento que se possui sobre esta zona da O Que a Arqueologia nos Conta, Lídia Fernandes
Um sítio arqueológico no meio de Lisboa é um cidade, transforma este equipamento num museu (Coordenadora do Museu de Lisboa - Teatro
privilégio. No entanto, pode tornar-se um incó- de sítio, possibilitando o usufruto do conheci- Romano / EGEAC), Carolina Grilo, (Arqueóloga
do Museu de Lisboa - Teatro Romano / EGEAC),
modo para muitos dos moradores que, paredes mento diacrónico do local.
Rani Almeida (Aluna do curso História da Arte da
meias com o sítio, assistem durante anos seguidos O teatro da antiga cidade romana de Felicitas FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Estagiária
a um “estaleiro” de escavação que não tem fim à Iulia Olisipo é o monumento romano melhor do Museu de Lisboa - Teatro Romano).
vista. conhecido em Lisboa. Edificado nos inícios do Novos Desafios: a Junta de Freguesia de Santa Maria
É especialmente para estes moradores que o Mu- século I d.C. e tendo capacidade para quase Maior: um coração que não pode parar de bater,
seu de Lisboa - Teatro Romano tem voltado a quatro mil espectadores, testemunha a impor- Miguel Coelho (Presidente da Junta de
sua atenção. Os vizinhos mais antigos são, natu- tância da cidade desde os primeiros tempos da Freguesia de Santa Maria Maior).
ralmente, os que guardam memórias vivas desse conquista romana.
Por opção do autor, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
177
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
179
NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO
Corpus dos
Conímbriga reúne a maior colecção de mosaicos
romanos descoberta até hoje em Portugal 5, com Mosaicos Romanos
o acrescido valor de estes pavimentos serem exe- de Portugal
cutados em calcário local e de se encontrarem
conservados no seu local de origem.
Vergílio Correia foi o responsável pela descoberta A Villa do
em Conímbriga, entre 1930 e 1944 (Fig. 2), de Rabaçal, Penela
80 dos 93 pavimentos de mosaicos romanos co-
nhecidos, os quais se conservam in situ e ao dispor
dos públicos e dos estudiosos. Os referidos 80
pavimentos de mosaicos foram todos eles desco- No decorrer da Feira do Livro das Festas
bertos entre 1930 e 1941, sendo 40 localizados de São Miguel, em Penela, foi apresen-
na Casa dos Repuxos, 12 na Casa da Cruz Suás- tado em 29 de Setembro de 2017 o se-
tica, quatro na Casa dos Esqueletos e 24 na Casa gundo volume do corpus dos mosaicos
de Cantaber. romanos de Portugal, dedicado ao Con-
Em período anterior, em 1899, com o apoio me- ventus Scallabitanus, mais especificamente
cenático da Rainha Dona Amélia, António Au- aos pavimentos da villa do Rabaçal.
gusto Gonçalves havia coordenado as escavações, A obra é da autoria de Miguel Pessoa,
tendo sido descobertos quatro pavimentos de Conservador do Museu Monográfico de
mosaico, os quais foram transpostos então para Conímbriga, e membro da Direcção da
o Museu do Instituto de Coimbra e depois, em Associação Portuguesa para o Estudo e
1911, para o Museu Nacional Machado de Cas- Conservação do Mosaico Antigo
tro, voltando a Conímbriga aquando da cons- (APECMA) e da Direcção da Associação
trução do Museu Monográfico, em 1962, ao tem- Internacional para o Estudo do Mosaico
po da Direcção de Bairrão Oleiro. Antigo (AIEMA).
Na década de 1950, a Direcção Geral dos Mo- Corresponde à versão da tese de doutoramento A obra salienta o papel da Comunidade local
numentos Nacionais é responsável pela desco- por este apresentada, em 2012, sob a orientação na descoberta da villa romana do Rabaçal, a
berta de mais quatro pavimentos de mosaico em de Justino Maciel, docente do Instituto de His- qual, durante séculos, soube guardar e vestir de
Conímbriga, na dita Casa do Tridente e da Es- tória da Arte da Universidade Nova de Lisboa. lendas o antigo local das descobertas recentes
pada. Entre 1964 e 1971, Bairrão Oleiro, Jorge A sua defesa teve como arguentes Guadalupe (1984-2011), e deve ser hoje parte activa no
de Alarcão e Robert Etiénne dirigem as Escava- Lopes Monteagudo, investigadora do Instituto projecto que pretende trazer à luz do dia outros
ções Luso-Francesas e descobrem mais cinco pa- de História do Centro de Ciências Humanas e achados. O autor defende as perspectivas da
vimentos. Sociais de Madrid, e de Luz Neira Jiménez, do- Museologia desenvolvidas ao longo do sécu-
Se a esta colecção de 90 pavimentos ligarmos os cente da Universidade Carlos III, também de lo XX, posteriores àquelas que se centravam na
conjuntos de mosaicos das villae ou quintas agrí- Madrid. instituição museu, acervos e técnicas, deslocando
colas com residência senhorial descobertos no A edição é da Câmara Municipal de Penela e o eixo das preocupações para as funções sociais
Território do municipium de Conímbriga, no contou com o apoio da Associação de Amigos dos museus, para o seu papel na solução de ten-
Rabaçal, Penela (1984 e 1994, 20 mosaicos), em da Villa Romana do Rabaçal e do Programa sões sociais e para as dinâmicas geradas pela des-
Santiago da Guarda, Ansião (2002 e 2005, 31 PROMUSEUS, promovido pela Direção-Geral do coberta, estudo e exposição dos seus acervos.
mosaicos) e em São Simão, Penela (2015 e 2016, Património Cultural.
seis mosaicos), comprova-se a presença de um
total de 147 obras, dotadas cada uma de
características muito próprias, e uma pro- 5
dução continuada entre os séculos I e O número de esta produção parece assentar conjugações geométricas,
inventário dos locais onde em sete grandes fases, durante o em estilo orientalizante, que são
V d.C. Constituem um impressionante
foram detectados mosaicos domínio romano em Portugal, o prenúncio do fascínio da arte
testemunho que nos remete para corren- romanos em Portugal é superior a entre os séculos I e VI d.C. islâmica; temas vegetalistas,
tes estilísticas de vários períodos da Época 254 sítios (ABRAÇOS, 2005: 15), O avanço do estudo e conservação que vemos muito reproduzidos na
Romana, marcados pela influência itálica, estando nele representadas destes locais é fundamental numa arte renascentista. O mosaicista é
africana ou oriental. autênticas obras-primas da estratégia que visa a valorização um miniaturista que usa com
arquitectura antiga e do das várias componentes de um mestria a técnica de embutido de
mosaico romano em Portugal. todo. Nos mosaicos romanos de minúsculas tesselas de calcário,
Tendo em vista os dados Portugal são retratados temas mármore e vidro. O mosaico é,
arqueológicos disponíveis e as mitológicos, cenas da vida por esse facto, considerado
comparações estilísticas com quotidiana e outros elementos um antecedente próximo
outros documentos bem figurativos, com valor de do vitral.
escalonados no tempo, “pintura em pedra”; elaboradas
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181
EVENTOS
Depósitos Arqueológicos
património ou lixo?
José d’Encarnação
[Catedrático de História, aposentado, da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra].
Por opção do autor, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
FIG. 3
183
EVENTOS
siderou modelares e passíveis de ser incremen- ao dispor daquela unidade, com uma gestão incom- ‒ Sendo a situação criada o corolário de uma
tados entre nós. petente e negligente do processo relativo às suas ins- negligência sucessivamente acumulada e de des-
Francisco Sande Lemos, que acompanhou desde talações; respeito pelo que a legislação em vigor impõe,
o início os trabalhos em Bracara Augusta, pio- Propõe-se a comunicação às entidades competentes competirá ao arqueólogo decidir o que guardar
neiros no âmbito de uma Arqueologia Urbana do Ministério da Cultura de um veemente voto de e o que selectivamente eliminar.
sistemática, disse que, ali, o facto de todos os ma- repúdio pelo seu desempenho neste processo, acom-
teriais darem entrada, devidamente identificados, panhado da exigência da tomada de medidas ime- Recordaria, neste âmbito da eliminação selectiva,
no Museu D. Diogo de Sousa tem sido a opção diatas para a criação/reposição de todas as condições que uma intervenção arqueológica actual, nomea-
adoptada, com êxito, embora o espaço se esteja que garantam a adequada conservação, estudo e damente em contexto urbano, se reveste de uma
a tornar, obviamente, cada vez mais diminuto. fruição pública do acervo em causa, parcela ímpar sensibilidade que, há anos, não se tinha, quando,
A propósito da palavra “lixo”, não quis deixar do Património Cultural Português”. por exemplo, se procurava chegar a níveis roma-
de sublinhar a importância que constitui para Posta à discussão, vários dos presentes inter- nos ou da Idade do Ferro, consoante os interesses
os arqueólogos o achamento de uma lixeira, dada vieram, mormente no sentido de apoio ao que da investigação (por exemplo, académica) do
a profusão de informações que aí permite colher. se propunha. Nada mais havendo a referir nesse arqueólogo, e se desprezavam os níveis superiores,
Preconizou que a solução para os problemas que âmbito, o moderador pôs a proposta à votação, negligenciando espólios dos séculos XV e poste-
estão a ser debatidos se deve apoiar numa efectiva que foi aprovada por larga maioria, pois se regis- riores, a que, hoje, naturalmente, também se dá
descentralização de responsabilidades para as taram algumas abstenções, mas nenhum voto importância.
autarquias. contra. Pode acrescentar-se, desde já, que – con- É uma perspectiva diferente, mais consentânea
Foram dois, a partir das 15:10 h, os tópicos prin- forme se preconizava – a moção foi por mim com a deontologia científica, não há dúvida, mas
cipais da intervenção de José Arnaud, presiden- encaminhada para a Senhora Directora-Geral do que implica, por outro lado, a recolha de muito
te da Associação dos Arqueólogos Portugueses Património Cultural e para a Procuradoria-Geral maior quantidade de espólio.
(Fig. 4): a opção por uma solução de compro- da República, sem que, até ao momento em
misso, que passa pela selecção dos materiais a que preparo este relato, tenha eu próprio recebido Costuma dizer-se, a propósito de muitas matérias,
armazenar; e deve competir aos museus regionais qualquer resposta, o que era, de resto, expectá- que “cada caso é um caso”. E, de certa maneira,
a salvaguarda desses espólios. vel. também não deixou de ser, a meu ver, essa a
Miguel Lago, responsável pela empresa ERA Das intervenções havidas, devo realçar que houve tónica geral do debate: há que privilegiar o sentido
Arqueologia, começou por referir que a sua em- uma grande sintonia de opiniões. Algumas das de responsabilidade do agente: fazer Arqueologia
presa criara o Depósito dos Perdigões, onde man- ideias expostas: é fazer História, com a agravante, amiúde citada,
tinha em reserva boa parte dos materiais das suas ‒ A necessidade de viabilizar a admissão de pessoal de que – ao contrário dos estudiosos de perga-
intervenções. No âmbito específico dos problemas qualificado para o desempenho, nos vários orga- minhos e manuscritos – o arqueólogo, ao escavar,
abordados na sessão, fez as seguintes recomen- nismos, das tarefas que a preservação e conse- “rasga” o documento que encontrou e ninguém
dações aos profissionais e à(s) tutela(s): quente estudo e valorização dos espólios reque- mais o pode ler.
– Criação da rede de depósitos certificados; rem. Restarão os relatórios conscienciosamente ela-
– Maior uniformização de critérios de recolha e ‒ A premente opção de descentralizar compe- borados, é certo; restarão os vestígios que brio-
depósito; tências; samente se guardaram. E essa é a nossa responsa-
– Controlo de inventários pela tutela (incluindo ‒ A viabilidade, a impulsionar, de se certificaram bilidade, que a tutela, qualquer que ela seja, tem
os espólios à guarda de arqueólogos); depósitos arqueológicos através da Rede Portu- por dever ajudar a não enjeitar.
– Controlo do tráfico de espólios. guesa de Museus;
FIG. 4
Por opção dos autores, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
dades humanas na Península Ibérica: perspetivas passámos de cerca de meia dúzia de curtas noticias Encontro de Carpologia Ibérica:
carpológicas”. Realizado no ano em que se assi- de descoberta de sementes ou frutos, para quase porquê e como
nalavam 25 anos do falecimento de A. R. Pinto meia centena de sítios estudados. Coube-lhe a
da Silva, este encontro constituiu-se também possibilidade de estudar material de diferentes Embora designado de 1.º Encontro de Carpolo-
como uma homenagem a este investigador. Não cronologias, de sítios arqueológicos de norte a gia Ibérica, este evento vem no seguimento de
deixa, por isso, de ser relevante o facto de se ter sul do país, e o seu trabalho não se limitou ao diag- uma prática iniciada anteriormente. Desde há vá-
tratado de uma organização conjunta de dife- nóstico taxonómico, tendo também realizado es- rios anos, os carpólogos ibéricos reuniam-se, pri-
rentes instituições europeias, nomeadamente o tudos biométricos, de forma a melhor compreen- meiro anualmente, depois de forma mais espa-
InBIO (Rede de Investigação em Biodiversidade der as características dos cultivos que encontrava. çada, com o intuito de trocar ideias, promover
e Biologia Evolutiva, Laboratório Associado.), Ainda assim, à semelhança do que então se veri- parcerias e debater metodologias. Estes encontros
CIBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade ficava com outras áreas consideradas auxiliares contavam sempre, como elemento central, com
e Recursos Genéticos), Universität Hohenheim, da Arqueologia, verificou-se uma desarticulação uma sessão laboratorial, onde cada investigador
IPAS (Institute of Prehistory and Archaeological entre o trabalho laboratorial que realizou e a in- partilhava dúvidas que a comunidade, em con-
Science) da Universität Basel, Faculdade de Letras terpretação dos contextos arqueológicos, fruto da junto, tentava esclarecer, num espírito científico
da Universidade do Porto, MHNCUP (Museu de relação desigual estabelecida com as equipas de e de camaradagem ímpar. Com o crescente nú-
História Natural e da Ciência da Universidade Arqueologia. Por outro lado, embora Pinto da mero de investigadores desta área no espaço ibé-
do Porto) e GEEvH (Grupo de Estudos em Evolu- Silva tenha trabalhado isolado em Portugal, rico, tornou-se evidente que a comunidade cien-
ção Humana). A organização esteve ao cargo dos tentou contrariar esse isolamento de forma a col- tífica – não só os carpólogos – beneficiaria de
três signatários desta notícia. matar lacunas, perfeitamente naturais, na iden- uma mudança de formato, decidindo-se por um
tificação de algum material carpológico. Como modelo intermédio que se aproximasse de um
A. R. Pinto da Silva: tal, manteve contactos com M. Kislev, a quem congresso, mas que mantivesse alguns elementos
a pertinência de uma homenagem colocou questões acerca de morfologia dos cereais característicos dos encontros informais que ante-
das jazidas portuguesas, tendo inclusive enviado riormente se realizavam. Nasceu assim o Encon-
Como referido antes, foi entendido que este material por correio para que o carpólogo israelita tro de Carpologia Ibérica / Iberian Carpology Meet-
Encontro Ibérico, realizando-se em Portugal, no identificasse. Apesar destes esforços, o investigador ing e não um encontro de carpólogos ibéricos,
ano que passavam 25 anos desde o falecimento português não beneficiou verdadeiramente dos pois encontra-se aberto a investigadores estran-
de A. R. Pinto da Silva, seria uma boa oportuni- avanços teóricos e metodológicos cruciais que se geiros a trabalhar sobre material ibérico.
dade de fazer um tributo a este investigador, um verificaram na Arqueobotânica europeia, numa Deste modo, o encontro decorreu em dois dias,
dos primeiros a trabalhar em Arqueobotânica no altura em que metodologias de trabalho, inclusive cada um com uma estrutura bem distinta. O
nosso país. critérios morfológicos para a identificação de ce- primeiro decorreu na Faculdade de Letras da
A. R. Pinto da Silva trabalhou em colaboração reais, estavam a ser discutidas e revistas. Universidade do Porto, onde foram apresentadas
com diversos arqueólogos nacionais desde a déca- Seja como for, o trabalho de Pinto da Silva é ain- diferentes comunicações orais, seguidas de um
da de 1930 até à sua morte, em 1992. É lícito da hoje crucial e, em muitos aspectos, incontor- debate, abertos ao público e de entrada gratuita.
falar de um período antes de Pinto da Silva e de- nável para compreendermos a distribuição antiga O programa do segundo dia desenvolveu-se no
pois de Pinto da Silva na carpologia portuguesa, de algumas espécies agrícolas no ocidente penin- Museu de História Natural e da Ciência da Uni-
sendo escassos os trabalhos na área antes deste sular. A homenagem ao seu trabalho, neste 1.º versidade do Porto. Aí realizou-se uma sessão la-
botânico ter sido convidado a identificar material Encontro de Carpologia Ibérica é, assim, um tri- boratorial reservada a carpólogos onde, replicando
de Vila Nova de São Pedro. A carpologia nunca buto merecido e necessário para que o seu tra- o espírito dos eventos anteriores, cada investigador
185
EVENTOS
1.º ECI
Lista de Comunicações
187
EVENTOS
ropa Ocidental, que os organizadores procuraram análise dos restos vegetais em contextos paleolí- gráficos da cornija cantábrica (Schmidt, Jones e
evidenciar, no programa científico do encontro, ticos. Straus, respetivamente). O ato de encerramento
as mais recentes descobertas e estudos sobre o te- A mesma investigadora coordenou a Sessão 4, da sessão coube ao próprio Straus (Fig. 3), que
ma, mas também o carácter internacional que o que contou com comunicações de Josep Fullola, salientou sobretudo o seu agrado em ver jovens
mesmo deverá assumir no futuro. sobre o sítio em altitude de Montlléo (Cerdagne, investigadores a reavivarem a investigação sobre
A conferência contou com mais de 50 partici- Lleida), de Manuel Alcaraz-Castaño, sobre a se- o tecno-complexo solutrense.
pantes de diversas nacionalidades (Fig. 2), incluin- quência de Peña Capón e a sua importância en- Para além do programa científico do dia 13, o
do não só os países tradicionalmente associados quanto testemunho de ocupações recorrentes no evento contou ainda, durante a tarde, com uma
ao Solutrense (França, Espanha e Portugal), mas centro da Península Ibérica, e de João Zilhão, que visita de campo ao sítio arqueológico de Vale Boi,
também de países como a Itália, Alemanha, Es- teceu críticas a recentes estudos que negam a exis- uma das principais referências para a ocupação
tados Unidos, Canadá e Rússia. tência de um estruturação do Solutrense em dife- solutrense do extremo sudoeste da Península
O programa final contou com um total de 34 rentes fases cronológicas, apresentando para isso Ibérica. Durante a visita, os participantes tiveram
comunicações orais e 13 posters, abrangendo um dados das suas escavações em La Boja (Murcia). oportunidade de conhecer o sítio, mas também
amplo espetro de tópicos relacionados com o No final do primeiro dia decorreu a sessão de alguns dos materiais mais emblemáticos desco-
tecno-complexo, incluindo apresentações de no- posters, juntamente com um Welcome Drink ela- bertos ao longo dos 17 anos de trabalhos arqueo-
vas descobertas de sítios e contextos, estudos pa- borado com produtos algarvios gentilmente ofe- lógicos (Fig. 4). Seguiu-se uma visita ao menir do
leoambientais, análises tecnológicas, investigações recidos por uma série de produtores regionais. Padrão, guiada pelo arqueológo da Câmara Mu-
sobre arte parietal e móvel, entre outros. Comu- O segundo dia de conferência contou com uma nicipal de Vila do Bispo, Ricardo Soares (Fig. 5),
nicações e posters foram organizados em dez sessão em honra de Lawrence Straus, cujo traba- e uma passagem pelo Cabo de São Vicente. O jan-
sessões independentes durante os três dias do lho embrionário sobre o Solutrense no Norte da tar do congresso realizou-se em Sagres, gentilmen-
congresso. Península Ibérica marcou indelevelmente todos te oferecido pelo Município de Vila do Bispo.
As sessões 1 e 2, coordenadas por Alvaro Arrizba- os estudos que se têm desenvolvido sobre o tec- Uma das novidades desta edição foi a organização,
laga e Jesus Jordá Pardo, respetivamente, con- no-complexo. Straus reformou-se recentemente no dia 14 de manhã, de uma sessão totalmente
taram sobretudo com apresentações dedicadas à da sua posição académica na Universidade do dedicada às ocupações contemporâneas do So-
descoberta de novos contextos e a revisões do es- Novo México (EUA), onde lecionava desde 1975. lutrense em território europeu (Rios Garaizar,
tado da arte em regiões particulares. No primeiro A abertura da sessão coube a Nuno Bicho, que sa-
grupo, são talvez de destacar a apresentação por lientou o papel preponderante de Straus na ar-
Fanny Bouché, em representação de uma equipa queologia do Paleolítico a nível mundial e, prin-
liderada por Pierre Bodu, sobre o impressionante cipalmente, a sua impressionante produção cien-
sítio de Bossats à Ormensson, e as novas evidên- tífica como autor/editor de 22 livros/volumes e
cias estratigráficas de Solutrense na Cueva de Ar- autor/co-autor de mais de 600 artigos científicos.
dales, apresentada por José Ramos Muñoz em As apresentações nesta sessão abrangeram um
nome de uma equipa extensa que tem desenvol- amplo espetro de temas, desde a elaboração de
vido trabalhos recentes na gruta. modelos computacionais de simulação de clima
A sessão 3, coordenada por Ariane Burke, contou e adaptações humanas ao Último Máximo Glacial
com apresentações dedicadas às interpretações (Burke et al.); a apresentação dos novos dados
geoarqueológicas e reconstruções paleoclimáticas proto-solutrenses do sítio da Lapa do Picareiro
do Último Máximo Glacial na Península Ibérica. (Estremadura portuguesa) (Haws et al.); a análise
É de destacar a comunicação de Ernestina Badal da tecnologia lítica de um conjunto de sítios so-
que, para além de apresentar os importantes da- lutrenses no Sul da Península Ibérica e as possíveis
dos antracológicos provenientes dos sítios de interpretações ao nível da organização do terri-
Rambla Perea, elaborou alguns comentários mui- tório (Cascalheira e Bicho); bem como a revisi- FIG. 3
to relevantes sobre as metodologias de recolha e tação de dados artefactuais, faunísticos e demo-
FIG. 2
189
EVENTOS
Por opção dos autores, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
FONTE: www.otsf.org.
Instituto Politécnico de Tomar (onde já existe cedidas pela conferência “When
formação inicial em Arqueoacústica, no âmbito the Ancient World Got a Sound-
do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Ar- scape”, por parte de Paul Deve- FIG. 1
te Rupestre), pelo Instituto Terra e Memória e reux, renomado pioneiro e espe-
pelo Centro de Geociências da Universidade de cialista de Arqueoacústica, inves-
Coimbra, sendo ainda o Convento de Cristo co- tigador do Royal College of Art (Londres) e edi- monstração de como tocar o adufe, instrumento
laborador da iniciativa. tor da revista peer-review Times and Mind. tradicional português, que teve lugar nas insta-
O evento iniciou-se no dia 4 de manhã, com uma No terceiro dia, 6 de Outubro, para além da lações do Instituto Terra e Memória, por parte de
visita às Grutas das Lapas (Torres Novas), e da continuação das comunicações, houve tempo um grupo feminino local (Fig. 3). Seguiu-se, no
parte da tarde à Sinagoga medieval de Tomar, para a apresentação de alguns posters e vídeos, da moderno auditório Elvino Pereira, um debate so-
que apresenta condições acústicas particulares, parte da tarde, destacando-se uma demonstração bre a disciplina da Arqueoacústica, suas proble-
nomeadamente a inclusão de um vaso cerâmico de canto tradicional húngaro, por parte de Iren máticas e metodologias, com a participação oca-
em cada um dos quatro cantos da sala principal Lovasz (Universidade de Budapeste), actividade sional de Chris Scarre, que se encontrava a fazer
deste monumento do século XV, de modo a filmada dois dias antes no interior da Sinagoga escavações arqueológicas em Mação, e que foi
amplificar o som. Ao final da tarde do mesmo dia, de Tomar. O dia encerrou com um divertido jan- organizador de um importante congresso de Ar-
teve lugar a cerimónia de abertura do Congresso, tar medieval, oferecido pela organização, num queaocústica em 2003, na Universidade de Cam-
no auditório Prof. Doutor Pacheco de Amorim, conhecido restaurante de Tomar. bridge, cujas Actas se publicaram em 2006.
do Instituto Politécnico de Tomar (IPT), com um No dia 7 de manhã, os congressistas deslocaram- Depois de almoço, foram ainda apresentadas al-
beberete oferecido pela organização, seguido das -se a Mação, onde muito apreciaram uma visita gumas comunicações no referido auditório (Fig. 4),
boas vindas aos congressistas por parte de João guiada ao Museu de Arte Pré-Histórica e do Sa- após as quais se regressou a Tomar.
Coroado (Vice-Presidente do IPT) e breves inter- grado no Vale do Tejo, seguida de uma breve de- No dia 8, domingo, de manhã, tiveram lugar as
venções de Luiz Oosterbeek (Pró- últimas apresentações, de novo no
Presidente do IPT e membro da Hotel dos Templários, às quais se
Comissão Científica do Congres- seguiu a conferência de encerra-
so) e de Fernando Coimbra (Co- mento da responsabilidade de
missão Organizadora e Comissão Iegor Reznikoff (Antropólogo
Científica do Congresso). As acti- Musical, Universidade de Paris)
vidades continuaram com uma intitulada “On Foundations of
breve apresentação sobre a disci- Archaeoacoustics”.
plina da Arqueoacústica, por parte De tarde, os conferencistas reu-
de Linda Eneix, Presidente da niram-se para um debate geral,
OTSF, instituição que dispõe de discutindo-se questões diversas,
um pólo em Malta, seguida da onde se destacou a proposta da
conferência inaugural intitulada fundação de uma sociedade ou
“Ħal Saflieni: an Introduction to associação científica internacional
the Site and its Acoustics”, da res- para estudo da Arqueoacústica,
FIG. 2
ponsabilidade de Katya Stroud proposta pelo renomado antro-
pólogo e arqueólogo Ezra Zubrow (Universidade que o próximo evento deste género se realizasse
de Buffalo, EUA e Universidade de Toronto, Ca- na Escócia, em 2019.
nadá), editor, com Colin Renfrew, do livro The Em suma, os congressistas consideraram, na sua
Ancient Mind. Elements of Cognitive Archaeology maioria, que o nível científico do Congresso de
(1994). Esta ideia e o modo como implementar Tomar / Mação foi superior ao dos dois anteriores
a referida associação continuam em debate, organizados pela OTSF (Malta, 2014, e Istambul,
através de um fórum de discussão entre alguns 2015), cujas Actas se encontram publicadas em
congressistas, tratando-se de um ponto alto no papel. De facto, para além das três conferências FIG. 5
âmbito do Congresso e no futuro da investigação referidas, apresentaram-se trinta comunicações
em Arqueoacústica. por investigadores provenientes
Após o encerramento do Congresso, houve ainda dos seguintes países: Portugal,
tempo para uma visita guiada ao Convento de Espanha, França, Holanda, Itália,
Cristo, seguida de um concerto de canto grego- Reino Unido (Escócia, País de
riano, por parte de Iegor Reznikoff, na charola Gales e Irlanda do Norte), No-
do monumento, cuja capacidade de reverberação ruega, Dinamarca, Sérvia, Croá-
sonora causou grande admiração em todo o gru- cia, Grécia, Roménia, Hungria,
po. Coreia do Sul, Estados Unidos
O jantar final, em salão reservado do Hotel dos da América, Canadá e Austrália.
Templários, constituiu um momento de convívio De um modo geral, as temáticas
e relax, onde, todavia, a exemplo do que aconte- foram muito apreciadas, desta-
cera no congresso anterior, em Istambul, onde cando-se comunicações sobre ar-
Portugal foi proposto para acolher o III Con- queoacústica e comportamento FIG. 6
gresso Internacional de Arqueoacústica, se sugeriu musical primitivo, acústica e arte
191
EVENTOS
Fragmentações e Deposições na
Pré-História Recente e Proto-História
em Portugal
Por opção do autor, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
193
EVENTOS
ra o futuro, por parte deste congresso. Nos três Como é usual neste tipo de eventos, a multipli-
dias seguintes decorreram as sessões paralelas, cidade de sessões a decorrer em paralelo, che-
deixando para o último dia novas excursões ao gando a ocorrer 15 sessões simultâneas, tornou
património da região. necessário proceder a uma seleção cuidadosa,
Genericamente, o congresso estava bem organi- sendo certo que dificilmente seria possível assistir
zado, ainda que várias falhas, a diferentes níveis, a todas as comunicações de nosso interesse. Con-
possam ser apontadas. Saliento alguns problemas siderando a grande quantidade de comunicações
na comunicação entre a organização e os partici- orais ou em poster, assim como as mesas redondas
pantes, por exemplo, em relação a alterações ao e reuniões científicas que decorreram, houve
programa que prejudicaram muitos destes, entre espaço para comunicações de qualidade tão di-
os quais vários dos comunicantes portugueses. versa quanto as temáticas abordadas. Natural-
A sobreposição, no programa, entre comunica- mente, esta percepção advém da pequena parte
ções de determinados palestrantes e sessões orga- das comunicações a que o autor desta notícia 23.º Congresso
nizadas por eles próprios noutras áreas do edifício, conseguiu assistir.
demonstra alguma falta de coordenação, resol- da EAA
vida, caso a caso, com bom senso, entre pales- A participação portuguesa
trantes e organizadores de sessões. De referir,
ainda, a desadequação de alguns espaços – dema- Vários investigadores portugueses ou de institui-
Sessões organizadas
siado pequenos para a afluência de pessoas –, ções portuguesas participaram em diversas sessões por investigadores de
embora a acústica e as comodidades, ainda que deste congresso. O número de comunicações não instituições portuguesas
longe de serem perfeitas, fossem suficientes. foi muito elevado, mas deve ser referido que a
multiplicidade deste congresso encontra reflexo
Um programa vasto e variado na diversidade temática abordada pelos investi-
Tema 3. Trans- and Metadisciplinary Approaches
gadores de instituições nacionais, o que nos parece
in Archaeology
O programa foi muito variado, como é costume bastante positivo.
nos congressos da EAA, tendo contado com cerca Salienta-se ainda a disponibilidade demonstrada “Integrating natural and cultural heritage: internal
de 200 sessões e 1800 comunicações. Esta vasti- por alguns destes investigadores portugueses, ou coherence and external efficiency” - Heleen Van
dão torna impossível fazer uma síntese minima- de instituições portuguesas, para organizar sessões, Londen e Marcial Felgueiras (A Rocha).
mente fiel do que foi apresentado e discutido no o que só demonstra a crescente disponibilidade Tema 4. The «Third Science Revolution»
congresso. da Arqueologia nacional para ajudar a marcar a in Archaeology
As sessões foram estruturadas em cinco temas re- agenda científica europeia. Uma listagem das cin-
“New approaches to human mobility in 4th
lativamente circunscritos, e um sexto tema mais co sessões organizadas pode ser encontrada na and 3rd millennium BC Iberia” - António Valera
genérico, onde se enquadraria uma grande mul- caixa anexa. (ERA Arqueologia S.A.), Catherine Frieman,
tiplicidade de temáticas: Rachel Wood e Lizzie Wright.
1. “Twenty-five years after Maastricht: archaeology Considerações finais
Tema 5. Comparing Archaeology Across Regions
and Europe's future”;
and Periods
2. “The Valletta convention: the next 25 years”; Ainda que muito heterogéneos, os congressos da
3. “Trans- and metadisciplinary approaches in EAA podem ser boas ocasiões para conhecer inves- “Medieval ritual and votive deposits” -
Archaeology”; tigação científica de qualidade e ter contacto com M. Prieto-Martínez e Catarina Tente
4. “The «third science revolution» in Archaeology”; temáticas discutidas em outros países, em con- (Universidade Nova de Lisboa).
5. “Comparing Archaeology across regions and textos de investigação com diferentes – para me- Tema 6. Interpreting the archaeological record
periods”; lhor e para pior – níveis de desenvolvimento teó-
“Constructing social theory for the
6. “Interpreting the archeological record”. rico ou metodológico, face àquele verificado em
«different Iron Ages»: critical insights in a
A pequena quantidade de sessões dos dois pri- Portugal. Esse contacto é sempre uma mais-valia.
comparative perspective” - Inés Sastre e
meiros temas e o reduzido número de comuni- No próximo ano, o congresso da EAA irá decorrer Brais Currás (Universidade de Coimbra,
cações de algumas, sugerem que, apesar do inte- em Barcelona, entre os dias 5 e 8 de Setembro, CEAACP).
resse manifestado nas temáticas subjacentes às com o mote “Reflecting Futures”.
efemérides assinaladas neste congresso, a comu- Estou certo que contará com mais presença por- “Within the Woodlands: exploitation of
nidade arqueológica apresenta uma apetência tuguesa, sendo uma oportunidade ímpar para wild plants during Medieval and Post-Medieval
Period” - María Martín-Seijo, Koen Deforce,
mais marcada para a discussão científica no seu mostrar ao resto da Europa o que de melhor se
Sandrine Paradis-Grenouillet, João Pedro Tereso
sentido mais convencional. faz no nosso país.
(InBIO, CIBIO, UNIARQ) e Julian Wiethold.
195
EVENTOS
FIG. 3 - Recepción
por el Alcalde de Burgos,
Excmo. Sr. Javier Lacalle,
en Salón Rojo del Teatro Principal
de Burgos a los asistentes al
XII Congreso Ibérico de
Arqueometría.
Por opção dos autores, o texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
FIG. 2 - Sessão de
comunicações.
197
EVENTOS
199
[http://www.almadan.publ.pt]
[http://issuu.com/almadan]
uma edição
[http://www.caa.org.pt]
[http://www.facebook.com]
[c.arqueo.alm@gmail.com]
[212 766 975 | 967 354 861]
[travessa luís teotónio pereira, cova da piedade, almada]