Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
1)Introdução
Não é por acaso que alguns países – Holanda, Suíça etc. – têm preferido uma
política de redução de danos a uma política repressiva.3 É que, a pretexto de combater a
produção e o consumo de droga, a proibição indiscriminada dessa forma de comércio
tem causado efeitos claramente criminógenos, tais como: 1)criação de preços artificiais
e atrativos, tornando extremamente rentável o tráfico; 2)o surgimento de uma
criminalidade organizada especializada no tráfico; 3)frequentes confrontos e mortes
entre grupos rivais; 4)frequentes confrontos e mortes entre traficantes e policiais;
4)vitimização de inocentes por meio das chamadas “balas perdidas” e semelhantes;
5)lavagem de dinheiro; 6)corrupção das polícias e outros agentes públicos; 7)tráfico de
armas; 8)sonegação de tributos; 9)rebeliões nos presídios; 10)ameaça, extorsão e morte
de usuários; 11)criação de um poder político (militar ou paramilitar) paralelo ao Estado.
Como assinala Moisés Naím, “nos países em desenvolvimento e naqueles que
fazem a transição do comunismo, as redes criminosas freqüentemente constituem o
capital investido mais poderoso que confronta o governo. Em alguns países seus
recursos e capacidades traduzem-se em geral em influência política. Os traficantes e
seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de
comunicação e são os maiores filantropos por trás das organizações não-
governamentais. Esse é um resultado natural em países onde nenhuma atividade
econômica pode igualar-se, em tamanho e lucros, ao comércio ilícito e onde, portanto,
os traficantes tornam-se o ‘o grande empresariado’ nacional”.
O direito penal das drogas é um típico direito penal de exceção, pois nele não
incidem ou só incidem acidentalmente, os princípios que informam o direito e o
processo penal democráticos. Com efeito, e conforme veremos, a lei não protege, a
rigor, bem jurídico algum ou não o protege adequadamente; tipificam-se crimes sem
vítima; criminalizam-se condutas por meio de simples portaria; punem-se perigos
abstratos e atos meramente preparatórios, e, mais, castiga-se desproporcionalmente.
Assim, por exemplo, enquanto o tráfico é punido com 500 (quinhentos) a 1.500
(mil e quinhentos) dias-multa, o simples oferecimento (eventual) de droga, cuja pena de
prisão varia de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção, é castigado com 700
(setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Outros delitos subsidiários cominam
penas semelhantes, por vezes superiores ao tipo fundamental de tráfico.
Releva notar, ainda, que, em virtude da causa de diminuição de pena do art. 33,
§4°, da lei, é perfeitamente possível que o crime de tráfico seja punido com penas
privativas de liberdade inferiores aos ditos tipos acessórios e menos graves.
Como assinala Maria Lúcia Karam, “não são as drogas que geram
criminalidade e violência, nem são os consumidores os responsáveis pela violência dos
‘traficantes’. Consumidores são responsáveis apenas pela existência do mercado, como
o são os consumidores de quaisquer produtos. Responsável pela violência é, sim, o
Estado, que cria ilegalidade e, consequentemente, gera criminalidade e violência”.8
Discute-se se o art. 28 da lei, que pune quem adquire, guarda etc., droga para
consumo pessoal, operou uma descriminalização ou despenalização, já que a lei só
previu penas restritivas de direito (advertência, prestação de serviço à comunidade e
medida educativa), sem a possibilidade de aplicação de pena privativa da liberdade.
Pois bem, para Luiz Flávio Gomes, “a Lei n° 11.343/2006 (art. 28), de acordo
com a nossa opinião, aboliu o caráter ‘criminoso’ da posse de drogas para consumo
pessoal. Esse fato deixou de ser legalmente considerado “crime” (embora continue
sendo um ilícito sui generis, um ato contrário ao direito). Houve, portanto,
descriminalização formal, mas não legalização da droga (ou descriminalização
substancial).”14
Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que “o que houve foi uma
despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com
relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de
execução (CF/88, art. 225, § 3º); Lei 9.605/98, arts. 3º; 21/24) – da tradição da
imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de
toda infração penal.”15
E que a lei tratou, formalmente, o uso de droga como crime, é fora de dúvida.
Primeiro, porque o art. 28 faz parte do Capítulo III, que tem como título “dos crimes e
das penas”; segundo, porque o conceito legal de crime dado pela Lei de Introdução ao
Código Penal (art. 1°17) está há muito superado, seja porque a lei especial pode criar
conceito diverso de infração penal (como agora o fez), seja porque a Constituição
Federal, que lhe é posterior, previu novas espécies de pena (CF, art. 5°, XLVI). Note-se,
a propósito, que a aludida lei de introdução (de 1941) foi editada na vigência da
Constituição de 1937.
Exatamente por isso é que a Suprema Corte Argentina23, com base no art. 19 da
Constituição,24 julgou inconstitucional a criminalização do porte para consumo, visto
que “…la tenencia de droga para el propio consumo, por sí sola, no ofrece ningún
elemento dejuicio para afirmar que los acusados realizaron algo más que una acción
privada, es decir, que ofendieron a la moral pública o a los derechos de terceros.”25
É certo, ainda, que, se a lei não pode proibir, diretamente, o porte e uso de
droga para consumo, não pode tampouco proibir tais condutas indiretamente, isto é, por
meio da criminalização das possíveis formas de acesso à droga (produção e
comercialização), razão pela qual a defesa da liberdade de consumo implica,
logicamente, a defesa da liberdade de produção e comércio (para pessoas capazes).
Por fim, é corrente a afirmação de que a lei não reprime penalmente o vício,
uma vez que não tipifica a conduta de usar.27 Mas isso não é de todo exato, porque,
embora a lei não refira o fazer uso de droga – logo, o fato é realmente atípico -, proíbe-o
indiretamente, ao criminalizar as ações próprias de quem fará uso, isto é, adquirir,
guardar, ter depósito etc.
O art. 28 da lei pune a ação de quem adquire, guarda, tem em depósito etc.,
droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar para
consumo próprio. Já o art. 33 pune a ação de quem importa, exporta, vende, expõe à
venda etc., droga, também sem autorização legal. A distinção entre um crime e outro
reside essencialmente no dolo, portanto: no porte para consumo, o agente tem a droga
para uso próprio (dolo de consumir); no tráfico, no entanto, há dolo de produzir ou
comercializar a droga para terceiro (dolo de traficar).
Também poderá não ser o caso de tráfico, mas de auxílio ao uso de droga (§2°)
ou de uso compartilhado (§3°), dos quais se tratará mais tarde.
Naturalmente que o porte para consumo e o tráfico não são incompatíveis, que
podem eventualmente coexistir, caso em que haverá concurso de crimes (formal ou
material).
Se, não obstante todos os critérios legais indiciários e outros meios de prova,
houver fundada dúvida sobre a exata classificação jurídico-penal do fato, incidirá o
princípio in dubio pro reo, para fazer prevalecer a alegação de crime menos grave (porte
para consumo).
Mas não se deve confundir tipos penais em branco com os abertos ou vagos, uma
vez que são conceitos distintos, embora não sejam incompatíveis entre si.30 A lei que
criminaliza o tráfico de droga, por exemplo, não só é completa quanto à descrição do
tipo, por descrever seus elementos essenciais, como é exaustiva ao fazê-lo, referindo
uma dezena de verbos que o constituem. E a distinção é relevante, pois do contrário
praticamente quase nenhum tipo ficaria imune à crítica que se fará a seguir.
Pois bem, questão das mais relevantes diz respeito à constitucionalidade das leis
penais em branco.
Temos que os tipos penais em branco que remetem o complemento à norma inferior
(tipos penais em branco heterogêneos) são inconstitucionais, por implicarem violação
aos princípios da reserva legal e divisão de poderes.
Com efeito, tomando como exemplo o tráfico ilícito de drogas, tem-se que a lei
brasileira atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao
descrever o núcleo essencial da conduta típica, criminaliza mais de uma dezena de
verbos e comina a pena cabível. Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico
supostamente protegido – a saúde pública41 – justifica plenamente a remissão. Estariam
assim satisfeitas as exigências daquela Corte constitucional.
Convirá saber então: quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilícito de
entorpecentes? Parece claro que não é o Poder Legislativo, mas o Poder Executivo, mais
exatamente o Ministério da Saúde (ANVISA), que se utiliza de simples portaria para
tanto, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem ser
consideradas ilícitas. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre
matéria penal é, em última instância, o próprio Ministério da Saúde (Poder Executivo),
mesmo porque a lei penal em branco era até então uma “alma errante em busca de um
corpo” (Binding), e, portanto, carente de auto-aplicação, ante a manifesta imprecisão de
seus termos e consequente necessidade de complementação. Até aí a lei penal era uma
espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.
Por conseguinte, semelhante ato viola a um tempo o princípio da reserva legal, por
tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria
penal, criminalizando uma dada conduta, e o princípio da divisão de poderes, já que é
aquele poder, e não o Legislativo, que acaba legislando em tal caso.
Mas isso não quer dizer que os tipos penais em branco sejam sempre
inconstitucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente
o status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha o
núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena. O primeiro obstáculo
poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declaratória das
drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria) do Ministério
da Saúde, de sorte a converter uma norma penal em branco heterogênea em homogênea;
o segundo, com a redação de tipos penais com precisão de seus elementos constitutivos,
conforme o princípio da taxatividade. Em isso não ocorrendo, tolerar-se-á mais uma
violação ao princípio da reserva legal, entre tantas violações que o silêncio ou
conveniência vai perpetuando.
7) Princípio da especialidade
Diz-se que uma norma é especial em relação à outra, dita geral, quando, além
dos requisitos que esta prevê, ela contém outros elementos (chamados especializantes),
ausentes na descrição do tipo penal genérico, de tal modo que aquele que realiza o tipo
especial realiza, necessariamente, o tipo geral, embora a recíproca não seja verdadeira. 42
Havendo, pois, essa relação de generalidade e especialidade, a norma especial
prevalecerá sobre a geral: lex specialis derogat legi generali. Existe, portanto, uma
relação lógica entre continente e conteúdo, uma vez que o tipo especial contém o tipo
geral.43
Pois bem, a lei n° 11.343/2006 é especial em relação ao Código Penal, que
trata, em seu Título VIII (crimes contra a incolumidade pública), Capítulo III, dos
crimes contra a saúde pública. Exatamente por isso, sempre que uma determinada
conduta se subsumir, simultaneamente, ao Código Penal e à lei agora comentada,
prevalecerá esta última, em razão de sua especialidade, de modo a evitar bis in idem,
isto é, que um mesmo fato possa ser duplamente punido no âmbito jurídico-penal, sob
um mesmo fundamento.
Não há, porém, especialidade, quanto aos mesmos crimes previstos no Código
Penal Militar (arts. 290 e 291), porque, especialíssimos que são, prevalecem sobre todo
o resto.
8) Consumação e tentativa
Também nos crimes de múltipla ação, como o é a maioria dos tipos penais da
lei, a tentativa é tecnicamente possível. Com efeito, haverá tentativa sempre que o
agente, tendo iniciado o cometimento de uma ação típica determinada (v.g., remeter,
transportar, importar etc.), não lograr consumá-la por circunstâncias alheias à sua
vontade. Mas tal dificilmente ocorrerá, porque muito provavelmente o agente já terá
incorrido na prática de algum dos verbos descritos no tipo (v.g., adquirir, guardar etc.),
e, portanto, já consumado o delito. Se sua ação, no entanto, se limitar a praticar, sem
pleno êxito, os atos de execução de um dos verbos típicos (v.g., iniciar a ação de
remeter ou transportar a droga), haverá tentativa, motivo pelo qual a pena deverá ser
reduzida de 1/3 a 2/3, nos termos do art. 14, II, do Código Penal.44
O único crime que não admite, absolutamente, tentativa é a prescrição culposa
de droga (art. 38), visto que os crimes culposos são incompatíveis com a tentativa,
instituto que diz respeito aos delitos dolosos, exclusivamente.
De acordo com a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, “não há crime quando a
preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou seja, não
há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento, direto ou por
concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante.
A súmula incide, portanto, sempre que a polícia instigar alguém a praticar um crime
e assim surpreendê-lo em flagrante. Quando isso ocorrer, o flagrante é nulo e o crime é
considerado impossível, em razão da impossibilidade concreta de consumação
decorrente da provocação.
Mas não se deve confundir o flagrante provocado (do qual se ocupa a súmula) com
o simplesmente esperado, que é aquele em que a polícia, previamente informada do
crime que não provocou, simplesmente aguarda o momento de sua execução, a fim de
proceder à prisão em flagrante. No caso de flagrante esperado, a súmula não é aplicável,
a atuação policial é legítima e por isso há crime punível.
Ocorre que o tráfico de droga, embora de múltipla ação (exportar, importar etc.),
constitui crime único, motivo pelo qual o agente, caso pratique várias ações, responderá,
em princípio, por uma só infração penal. Exatamente por isso, é um tanto discutível a
interpretação no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação (vender) e
possível quanto a outra (guardar em depósito), como se não houvesse crime de múltipla
ação, mas múltiplos crimes em concurso material.
8.3. IMPOSSIBILIDADE DE CONSUMAÇÃO
Com efeito, se, não obstante a ação policial no sentido de evitar a consumação, o
delito se consumar, haverá crime punível, visto que a incidência da súmula pressupõe a
impossibilidade de consumação em razão da provocação policial. Em tese, é possível,
inclusive, que também o policial provocador responda por crime, a título doloso ou
culposo, conforme o caso.
A súmula também não incide quando a provocação tiver lugar após a consumação
do crime, isto é, já na fase de exaurimento. Exemplo: um funcionário público, que
exigira vantagem indevida de alguém, vem a ser preso dias depois, pela polícia, que foi
previamente avisada pela vítima (que fingira concordar com a exigência feita) sobre o
ocorrido e quando faria o respectivo pagamento.
É que, por se tratar de crime formal (concussão – CP, art. 316), cuja consumação
ocorre com a só exigência da vantagem indevida, tal já havia acontecido previamente
(com ou sem concordância da vítima), independentemente da intervenção policial, razão
pela qual o recebimento do dinheiro constitui simples exaurimento. Neste caso, o crime
não só é possível, como já havia se consumado antes de a policia intervir.
Enfim, a súmula não incide sempre que houver consumação do crime, quer porque a
polícia não conseguiu evitá-la, quer porque a consumação ocorreu antes da intervenção
policial.
Releva notar, por fim, que a súmula 145 vem sendo duramente criticada, havendo
quem proponha a sua abolição pura e simples.48
Trata-se, como se vê, de uma espécie do gênero flagrante esperado; logo, flagrante
legítimo.
Com base na Lei n° 11.343/2006, o que se pode entender por tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins? A lei não diz expressamente.49
Apesar de não usar nomen juris para a designação dos delitos de que se ocupa,
pelo que se lê do Título IV (da repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito
de drogas) e Capítulos II (dos crimes) e art. 44, a Lei n° 11.343/2006 considera como
tráfico ilícito de droga, em sentido amplo, os crimes previstos nos arts. 33, caput e §1°,
e 34, 35, 36 e 37, os quais são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto e
anistia (art. 44).50 A proibição de liberdade provisória e de substituição por pena
restritiva de direito, que constavam da lei, foram declaradas inconstitucionais pelo STF.
A lei só não equiparou a hediondo, portanto: os crimes dos arts. 28, e §1°
(posse para consumo), 33, §§2° e 3° (auxílio ao uso e uso compartilhado), 38
(prescrição culposa de droga) e 39 (conduzir embarcação ou aeronave após o consumo
de droga). A equiparação a hediondo é, pois, a regra; a não-equiparação, a exceção.
No entanto, nem tudo que a lei equiparou ao tráfico, tráfico de droga é, logo,
não era passível de equiparação a hediondo, sob pena de violação à Constituição. Com
efeito, parte dessa equiparação contravém a norma constitucional (art. 5°, XLIII),51 que
fala especificamente de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, razão pela qual
deve ser interpretado restritivamente, de modo a afastar o pretendido caráter hediondo
de todos os delitos que não sejam subsumíveis neste conceito estrito, tais como:
petrechos para o tráfico (art. 34), a associação para o tráfico (art. 35) e a colaboração
com o tráfico (art. 37).
Alguns autores falam ainda de dolo genérico e dolo específico, mas essa é uma
classificação superada doutrinariamente53, sobretudo porque, se dolo é saber e querer a
realização do tipo (Welzel), segue-se que a vontade e o conhecimento indispensáveis à
realização do tipo (dolo) compreende, necessariamente, todos os elementos que o
integram (normativos, objetivos, subjetivos). Enfim, dolo é dolo de tipo, um conceito
que pressupõe, inevitavelmente, uma relação com um tipo determinado (v.g., dolo de
vender, dolo de adquirir para consumo etc.).
Não há erro de proibição, mas erro de tipo, se o agente supõe que se trata de
droga lícita, porque a falta de autorização ou desacordo com a autorização (elemento
normativo) integra o tipo penal dos crimes de tráfico e afins.
O tráfico e afins são, como regra, crimes de perigo (abstrato) porque a lei
presume, juris et de jure (significa de direito e a respeito ao direito. É a presunção
absoluta, que não admite prova em contrário), que a produção, o comércio e o uso são
nocivos à saúde (pública ou individual), independentemente de prova em sentido
contrário. Perigo abstrato – são palavras de Hungria – é o que a lei presume, juris et de
jure, inserto em determinado fato, pouco importando que não se realize, no caso
concreto, por alguma circunstância excepcional, um perigo efetivo; já o perigo concreto
é o que se verifica realmente, dependendo de tal verificação (ocorrência) a existência do
crime.54
Também por isso, são crimes de mera conduta, porque a lei não exige nenhum
resultado (naturalístico) para a sua consumação, bastando o cometimento de uma das
ações típicas descritas.
Haverá, porém, crime omissivo impróprio sempre que o agente (garante), tendo
o dever legal de agir e evitar o resultado, não o fizer, omitindo-se dolosamente (CP, art.
13, §2°), a exemplo de policiais e fiscais. Não existe, em princípio, a possibilidade de
omissão imprópria culposa, porque, à exceção do art. 38, todos os crimes só são
puníveis na forma dolosa.
Por se tratar de crime comissivo, não responde penalmente o agente que, não
sendo garante, sabe do crime e se omite, sem mais. Assim, por exemplo, a esposa que
sabe que o marido usa a própria casa como ponto de droga e nada faz para impedi-lo,
visto que não tem o dever legal de agir e evitar o resultado (CP, art. 13, §2°).
O tráfico e afins são, como regra, crimes de múltipla ação, porque a lei refere
(quase sempre) diversos verbos que, praticados isolada ou conjuntamente, implicam o
cometimento de crime único. Não há, por conseguinte, concurso de crimes (formal,
material ou continuidade delitiva), mas crime único, se o agente, num mesmo contexto,
adquire, vende e expõe à venda droga, por exemplo.
O tráfico e afins são, como regra, crimes comuns, porque os tipos não exigem
nenhum condição especial do agente, motivo pelo qual podem ser praticados por
qualquer pessoa. Alguns autores consideram, porém, que na forma de prescrever o
tráfico seria crime próprio (ou especial), pois só poderia ser praticado por algumas
pessoas em particular (v.g., médico, dentista).55
Mas isso não é exato, porque, em verdade, qualquer pessoa (ligada ou não ao
sistema de saúde) que eventualmente prescreva droga incidirá no tipo de tráfico (v.g.,
farmacêutico, curandeiro etc.).56
No caso de sucessão de leis, pode ocorrer de a nova lei ser em parte favorável e em
parte desfavorável ao réu, hipótese que tem como exemplo a revogação da Lei nº
6.368/76 pela Lei nº 11.343/2006, que agora comentamos. Com efeito, apesar de a nova
lei ter aumentado a pena cominada ao crime, de 3 a 12 anos de reclusão, para 5 a 15
anos de reclusão, passou a admitir uma causa de redução de pena, que não existia na lei
revogada, de 1/6 a 2/3, para o réu primário, sem antecedentes criminais e sem
envolvimento com organização criminosa.
Discute-se, então, se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da Lei
6.368/76 (revogada) poderia ficar sujeito àquela pena inicial (3 a 12 anos) com a
redução de pena da nova lei, por lhe ser mais favorável, havendo posicionamento da
doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos, isto é, contrário e a favor da
combinação.57 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam que a combinação
implicaria criação de uma terceira lei (lex tertia) e o juiz estaria assim usurpando função
própria do legislador em afronta aos princípios de legalidade e divisão de poderes.
Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu, é evidente que
retroagirá de forma integral; mas, se o for em parte, então o caso é de retroatividade
parcial da nova lei. Parece claro que, se deve retroagir quando for integralmente
favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em parte, em
respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior, pouco importando o
quanto de benefício encerre; afinal, se a lei deve retroagir no seu todo quando mais
branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte. Ademais, o Código (art.
2º, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de
qualquer modo, isto é, incondicionalmente, sempre que a nova lei acarretar alguma
espécie de atenuação do castigo.
Ademais, aqueles que se opõem a assim chamada combinação de leis partem de uma
perspectiva hermenêutica superada, pois pressupõem que a interpretação depende do
direito, e não o contrário, que é o direito que depende da interpretação, afinal, a
interpretação é a forma mesma de realização do direito. Em suma, a interpretação é o
ser do direito; e o ser do direito é um devir.59
Os tipos exigem, como elemento constitutivo, que se trate de droga ilícita, isto
é, substância definida em lei como tal. Atualmente está em vigor a Portaria SVS/MS no
344, de 12 de maio de 1998.
No caso de a lei (portaria etc.) retirar determinada droga do rol das substâncias
proibidas, haverá descriminalização (abolitio criminis), que pode também resultar de
decisão judicial.
Afinal, o direito penal, como ultima ratio do controle social formal, só deve se
ocupar de condutas concretamente importantes que lesionem ou crie perigo grave de
lesão.
Atualmente a Lei n° 8.072/90 (art. 2º, §2) prevê, para os crimes hediondos e
eles equiparados, que o condenado poderá progredir quando tiver cumprido 2/5 da pena,
se primário, e 3/5, se reincidente.
A lei prevê (art. 42), no entanto, que o juiz, na fixação das penas, considerará,
com preponderância sobre as circunstâncias previstas no art. 59 do Código Penal, a
natureza e a quantidade da substância ou do produto, além da personalidade e a conduta
social do agente. Significa dizer que a culpabilidade do agente será aferida tomando em
consideração, prioritariamente, a espécie e quantidade da droga objeto de tráfico e
semelhantes, para punir mais gravemente os responsáveis pela difusão de substância
mais potencialmente nociva, tanto pela quantidade quanto pela qualidade, e castigar
menos severamente aqueles que pratiquem tráfico de droga menos nociva, também por
isso (espécie e quantidade).
Compreende-se que assim seja, porque realmente não seria justo aplicar a
mesma pena para quem trafica 1 kg de maconha e quem é surpreendido com 1.000kg de
cocaína, por exemplo.
O art. 33, § 4o , da lei dispõe que, nos delitos definidos no caput e no § 1o deste
artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja
primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre
organização criminosa.
Não têm, pois, direito à causa de redução de pena: a)os réus reincidentes (CP,
art. 63); b)os possuidores de maus antecedentes; c)os criminosos habituais;
d)integrantes de organização criminosa.
Quanto aos maus antecedentes, é de ver que, com a edição da Súmula 444 do
STJ, somente a sentença transitada em julgado que não importe em reincidência poderá
ser considerada como impeditiva do benefício.
A lei não menciona, porém, quais os critérios que serão considerados para a
fixação do respectivo quantum (um sexto a dois terços). Consequentemente, devem ser
consideradas, para tanto, as circunstâncias previstas na lei (espécie e quantidade da
droga etc.), não podendo a mesma circunstância figurar, mais de uma vez, na fixação da
determinação da pena, sob pena de bis in idem.
Como vimos, por ser o tráfico o tipo penal fundamental, sem o qual os demais
não se justificariam, visto que o pressupõem, direta ou indiretamente, não faz sentido
que a causa de redução de pena prevista no §4° do art. 33 seja aplicável unicamente ao
crime do art. 33, caput, e equiparado (§1°).63
Com efeito, se o tipo principal admite a aludida redução de pena para o agente
primário e sem antecedentes etc., o mesmo deveria ocorrer, logicamente, para os tipos
acessórios (associação para o tráfico e financiamento para o tráfico), e, com maior
razão, para aqueles delitos que constituem criminalização de atos meramente
preparatórios para o tráfico, a exemplo do art. 34 (petrechos para o tráfico).
Parece-nos, por isso, que, embora a regra do §4° refira somente o tráfico e
equiparado (§1°), o juiz poderá, fazendo analogia in bonam partem e com base no
princípio da proporcionalidade, admitir a citada causa de diminuição de pena também
para outros delitos previstos na lei comentada, desde que atendidos os seus requisitos
legais, e fundamentadamente.
Com efeito, há bis in idem sempre que uma mesma circunstância (judicial, legal etc.)
figurar mais de uma vez na dosimetria da pena sob o mesmo fundamento. Assim, por
exemplo, haveria bis in idem, se, no homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe
(CP, art. 121, §2°, I e II64), o juiz considerasse tais circunstâncias, primeiro, na fixação
da pena-base, segundo, na determinação da pena provisória, invocando o art. 61, II, a,
do CP.65
Para evitar bis in idem, o juiz deverá, então, seguir a seguinte regra: as qualificadoras
prevalecem sobre as causas de aumento de pena, que prevalecem sobre as circunstâncias
legais, que prevalecem sobre as circunstâncias judiciais. O mesmo princípio deve ser
adotado, mutatis mutandis, quando se tratar de causas de diminuição de pena, que
predominam sobre as circunstâncias judiciais. Em suma, deve prevalecer sempre a
circunstância que mais aumenta ou que mais diminui a pena.
Justamente por isso, no caso julgado pelo STF, a natureza e quantidade da droga
deveriam ser consideradas, unicamente, no momento de fixar a causa de diminuição de
pena do art. 33, §4°, da lei, sendo desconsiderada enquanto circunstância judicial.
Sim.
Com efeito, na segunda fase de determinação da sanção, o juiz, nos temos do art. 61, I,
do CP, agravou a pena-base (de 07 anos de reclusão) em 02 anos, fixando-a em 09 anos
de prisão. A seguir, por força da transnacionalidade (acréscimo de 1/3), a pena
definitiva ficou em 12 anos de reclusão.
Ocorre que, não obstante já houvesse agravado a pena-base em 02 anos de reclusão, por
força da reincidência, o juiz afastou o privilégio do art. 33, §4°, da Lei, com o mesmo
fundamento: reincidência específica em crime de tráfico.
Houve, portanto, bis in idem, porque a mesma circunstância incidiu, mais de uma vez,
na individualização da pena, implicando, por duas vezes, um aumento da reprimenda,
ora como agravante, ora como circunstância impeditiva da redução da pena. Por
analogia, é, pois, aplicável ao caso a Súmula 241 do STJ, que dispõe: A reincidência
não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como
circunstância judicial.
Como vimos, sempre que tal ocorrer, deve predominar a circunstância que mais
aumenta ou que mais diminua a pena, razão pela qual, no caso, há de prevalecer como
causa impeditiva da incidência do privilégio (art. 33, §4°, da Lei), sendo desprezada
enquanto agravante legal.
Talvez por ser a aplicação da pena tema ordinariamente relegado a plano secundário,
frequentes são os erros quando da sua fixação, consistentes sobretudo em revalorar
elementos inerentes à estrutura do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), tomando
como circunstâncias judiciais os próprios pressupostos da condenação, incorrendo-se
em bis in idem.
Quanto à tipicidade, não é incomum que, ao dosar a pena, o juiz tome como critério
de aferição da culpa dados ou circunstâncias que já fazem parte da própria figura típica.
Assim, por exemplo, ao condenar funcionário público por crime contra a Administração
Pública (v. g., peculato, corrupção passiva), afirmar que “o réu praticou ação das mais
reprováveis, visto que violou a confiança inerente ao exercício da função pública”,
como se o fato de ser servidor público já não tivesse orientado a decisão político-
criminal do legislador de autonomizar/criminalizar tais condutas, punindo-as de forma
mais dura precisamente em razão dos deveres inerentes ao cargo/função.
Não cabe tampouco agravar-se a pena sob a alegação de que o condenado tem nível
universitário ou similar, e, por isso, sua conduta seria particularmente reprovável.
Primeiro, porque importa em castigar alguém pelo que se é (direito penal do autor);
segundo, porque, como ninguém é punível diretamente por um ato legal, tampouco pode
sê-lo indiretamente; terceiro, porque frequentemente não existe relação alguma entre o
delito praticado e a condição de universitário; quarto, porque não está em discussão, no
mais das vezes, o grau de consciência da reprovabilidade da conduta; e, por último,
porque se trata de uma circunstância juridicamente irrelevante.
16.1.Modelo de sentença
Abaixo modelo de sentença (com comentário em vermelho) que comete tais erros.
(…)
Vistos etc.
(…)
O réu é imputável, detinha consciência da ilicitude e lhe era exigível conduta diversa,
razão pela qual sua culpabilidade é máxima.
A conduta social do réu não é boa, pois não trabalha e responde a vários inquéritos e
processos.
Aqui a decisão repete o argumento anterior, sendo criticável pelas mesmas razões já
assinaladas. Além disso, o juiz não dispõe, ordinariamente, de elementos para avaliar a
personalidade, quer positiva, quer negativamente.
Assim, como necessário e suficiente à reprovação e prevenção do crime (CP, art. 59),
fixo a pena-base em 8 (oito) anos de reclusão.
17)Medida de segurança
Pois bem, de acordo com o Código Penal (CP, art. 28, II), a embriaguez
(completa) resultante de caso fortuito ou força maior – involuntária – isenta o réu de
pena, sempre que, em razão dela, faltar-lhe a capacidade de autodeterminação (sistema
psíquico-normativo). Exatamente por isso, sempre que o agente se encontrar numa tal
situação de inimputabilidade, nenhuma sanção lhe poderá ser imposta, de modo que o
réu não ficará apenas isento de pena, como diz o artigo, mas também de medida de
segurança.
De acordo com o art. 40, VII, a pena será aumentada, de um sexto a dois terço,
se “o agente financiar ou custear a prática do crime”. É evidente que esta causa de
aumento viola o princípio ne bis in idem, que veda a dupla punição de um só e mesmo
fato, visto que o financiamento constitui crime autônomo (art. 36), motivo pelo qual o
citado aumento não pode incidir.71
Por fim, quanto à causa de aumento do art. 40, III, da Lei (infração cometida nas
dependências de ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou
hospitalares etc.), há precedente do STF no seguinte sentido:
Tráfico de drogas: transporte público e aplicação do art. 40, III, da Lei 11.343/2006
CAPÍTULO III
Art. 27.As penas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou
cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério
Público e o defensor.
Art. 28.Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para
consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar será submetido às seguintes penas:
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva
ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou
produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo
prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo
serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários,
entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres,
públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da
prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos
incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo,
sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
Art. 29. Na imposição da medida educativa a que se refere o inciso II do § 6o do art. 28,
o juiz, atendendo à reprovabilidade da conduta, fixará o número de dias-multa, em
quantidade nunca inferior a 40 (quarenta) nem superior a 100 (cem), atribuindo depois a
cada um, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3
(três) vezes o valor do maior salário mínimo.
Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução das penas, observado,
no tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.
A lei distingue porte para consumo (art. 28), tráfico (art. 33) e uso compartilhado (art.
33, §3°).
Dá-se o porte sempre que o agente dispuser da droga para consumo pessoal. Quando a
tiver para usar com outrem, sem fim de lucro, configurar-se-á o delito de uso
compartilhado. E haverá tráfico se o agente dispuser da droga para difundi-la, a título
oneroso ou gratuito. O fim de lucro, embora importante, não é indispensável para a
configuração do tráfico.
A diferença essencial entre os tipos reside, pois, na finalidade que move o agente, isto é,
o dolo.
Além disso, os verbos típicos são diversos, porque, enquanto o tráfico refere 18
(dezoito) ações, o porte para consumo menciona 5 (cinco) e o uso compartilhado um
único verbo (oferecer).
Apesar disso, temos que o decisivo é mesmo o dolo, isto é, saber a que título o agente
tem a droga. Assim, por exemplo, ainda que ele a importe, verbo que consta do tráfico,
mas não da posse para consumo, incidirá nas penas do art. 28, desde que o faça para
consumo pessoal, pois estará praticando a ação de adquirir para si.
Dispõe a lei que, para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e
aos antecedentes do agente.
Havendo dúvida fundada sobre se se trata de tráfico ou porte para consumo, cabe
invocar o princípio da dúvida (in dubio pro reo), para admitir a tese mais favorável ao
réu (porte).
A lei pune quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo
droga para consumo pessoal. Adquirir é conseguir, obter, comprar etc.; guardar é por
em lugar conveniente, conservar; ter em depósito é armazenar; transportar é conduzir,
carregar; trazer consigo é portar.
Consumir a droga constitui conduta atípica.
Droga é qualquer substância prevista em lei como tal; ou, conforme define o art. 66 da
lei, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras
sob controle especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998. Exige-se,
ademais, falta de autorização ou desacordo com determinação legal ou regulamentar
para adquirir etc. Em suma, deve ser droga ilegal.
O crime só estará configurado se o agente praticar tais condutas para consumo pessoal.
Se o fizer para consumo de outrem, incidirá outro tipo penal, tráfico ou uso
compartilhado.
Trata-se de crime de perigo abstrato, que consiste em portar droga para consumo
pessoal ainda que o seu uso não seja concretamente nocivo à saúde do usuário. Para a
caracterização do tipo, basta que a substância figure no rol das drogas proibidas por lei
(portaria da Anvisa) e disponha de seu princípio ativo.
A lei, que não comina pena privativa da liberdade, prevê as seguintes sanções para o
crime do art. 28: a)advertência sobre os efeitos das drogas; b)prestação de serviços à
comunidade; c)medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
No caso de reincidência, poderão ser aplicadas até o dobro desse prazo (10 meses).
Embora a lei não o diga, parece claro que somente a reincidência específica em crime
do art. 28 implica o mencionado aumento de pena. O conceito de reincidência é dado
pelo art. 63 do Código Penal: Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo
crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha
condenado por crime anterior.
O porte de droga para consumo é crime de menor potencial ofensivo, logo, passível de
transação penal (Lei n° 9.099/95), e como a lei não admite pena privativa da liberdade,
tampouco é cabível prisão provisória (flagrante etc.), tal como dispõe o art. 48, §2°,
expressamente.
Incorre nas mesmas penas quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe
plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz
de causar dependência física ou psíquica. Semear é lançar sementes ao solo para que
germinem; cultivar é cuidar, fertilizar; fazer a colheita é recolher, apanhar. Planta é
qualquer organismo vegetal.
Como a lei não criminaliza o simples ato de guardar sementes de maconha (cannabis
sativa), o fato não constitui este delito, tampouco o tráfico equiparado (art. 33, §1°),
como veremos.
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece,
fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-
prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-
multa.
O tráfico ilícito previsto no art. 33, caput, da lei, é o tipo legal fundamental,
visto que os demais o pressupõem, direta ou indiretamente. Exceção a isso é o
financiamento para o tráfico (art. 36), pois, embora também o pressuponha, prevalece,
no caso de concurso, sobre o tráfico, por ser mais grave e compreendê-lo na sua
descrição típica (princípio da consunção).
Por ser um conceito técnico-jurídico, só é droga o que a lei define como tal. Por
isso é que não é droga uma substância que, apesar de causar dependência física ou
psíquica, não figura no rol das substâncias legalmente proibidas (v.g., álcool). E ainda
que faça parte do elenco das substâncias definidas juridicamente como droga, não
haverá crime sempre que o agente dispuser de autorização legal ou regulamentar para
tanto (v.g, remédios). Afinal, o tráfico ilícito e equiparados pressupõem,
necessariamente, que a ação seja praticada “sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar” (elemento normativo do tipo). É certo ainda que a
lei excepciona as plantas de uso estritamente ritualístico-religioso (art. 2°).
Discute-se se os esteróides anabolizantes são drogas e, portanto, passíveis de
configurar tráfico ilícito. Esteróides anabolizantes ou esteróide anabólico-androgênico
são substâncias sintéticas derivadas da testosterona utilizadas terapeuticamente em seres
humanos e animais para corrigir diversas condições em que há deficiência de proteína e
também para o aumento de massa muscular e desempenho de atletas e animais,
especialmente cavalos de corrida. Albuerney Silveira Silva Júnior é de opinião que a Lei
n° 11.343/2006 não é aplicável à venda de esteróide, por não ser droga, nos termos das
portarias editadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e da
própria lei.
Apesar disso, tem que é possível aplicar o art. 273, caput, §1° e 1°-B, do
Código Penal, nos casos de venda clandestina. Todavia, o simples porte de esteróides
anabolizantes para consumo não caracteriza o tipo penal do art. 273 e §§ do CP.77 É
atípico, portanto.
Salo de Carvalho propõe, no entanto, que, para que não ocorra inversão do
ônus da prova e para que se respeitem os princípios constitucionais de
proporcionalidade e ofensividade, a imputação do crime do art. 33 há de pressupor,
necessariamente, o desígnio mercantil, motivo pelo qual, se não se produzir prova nesse
sentido, dever-se-á desclassificar o fato para o crime do art. 28 da lei (porte para
consumo).78
Adquirir constitui, normalmente, fase de execução dos demais verbos, já que só se pode
importar, exportar etc., droga previamente adquirida.
Por se tratar de tipo doloso, não há crime se faltar ao agente o conhecimento e vontade
essenciais à sua configuração. Assim, por exemplo, se acreditar, fundadamente, que
transporta, não drogas, mas vitaminas; que guarda drogas lícitas (remédios) ou que
dispõe, ou que não precisa, de autorização legal para ter em depósito.
Alexandre Bizotto e Andreia Rodrigues afirmam, porém, com razão, que não existe
crime de tráfico quando se tratar de droga lícita apreendida em condições que não
observam as determinações legais ou regulamentares, tais como: a)ausência de notas
fiscais dos medicamentos; b)ausência de livros de controle de estoque; c)ausência da
balancetes; d)depósito em locais insalubres ou precários.79
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece,
fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-
prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse,
administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
Dispõe a lei (art. 33, § 1°) que nas mesmas penas incorre quem importa, exporta,
remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em
depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou
produto químico destinado à preparação de drogas.
Como se vê, equipara-se o tráfico propriamente dito a atos meramente preparatórios,
conferindo-lhes o mesmo tratamento legal (crime hediondo) e cominando-lhes a mesma
pena, equiparação claramente incompatível com os princípios da proporcionalidade e
lesividade. Afinal, as condutas menos graves (atos preparatórios, crime-meio) hão de ser
castigadas menos severamente do que as mais graves (consumação, crime-fim).
De todo modo, exige-se, também aqui, ausência de autorização legal ou desacordo com
determinação legal ou regulamentar. Justamente por isso, quem adquire matéria-prima,
insumo ou produto químico destinado à preparação de droga não responde penalmente
se o fizer autorizadamente. Tampouco haverá crime se não ficar provado que tais
produtos estavam destinados ao preparo de substâncias entorpecentes.
Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi defendem, porém, que “não há necessidade,
para a configuração do crime, de que o agente queira destinar a matéria-prima, o insumo
ou produto químico à produção de droga, bastando que saiba terem elas as qualidades
necessárias para tal”.80
O equívoco é manifesto.
Semear é lançar sementes ao solo para que germinem; cultivar é cuidar, fertilizar; fazer
a colheita é recolher, apanhar. Planta é qualquer organismo vegetal.
Finalmente, a lei tipifica a ação de quem utiliza local ou bem de qualquer natureza de
que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que
outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
Por fim, havendo dúvida razoável sobre a incidência ou não do tipo penal, há de
prevalecer a tese mais favorável ao réu (in dubio pro reo).
Segundo Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi, embora não precisem dispor dos
efeitos farmacológicos dos tóxicos, a matéria-prima ou insumo devem ter condições e
qualidades químicas para, mediante transformação, adição etc., produzir droga ilícita83.
Evidentemente, não é o caso da semente, que não serve para preparar droga, a não ser
num sentido remotíssimo.
Tanto é assim que o art. 33, §1°, II, da Lei Antitóxicos, pune a conduta de quem
“semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação
de drogas”.
Em suma, embora a lei criminalize o tráfico de droga propriamente dito (art. 33, caput)
e equipare a tanto a conduta de quem semeia, cultiva e colhe planta que se constitui em
matéria-prima para a preparação da droga ilícita (art. 33, §1°), não tipifica,
justificadamente, os atos antecedentes, a exemplo da aquisição/importação (etc.) de
semente de maconha.
Tampouco incide, no caso, o delito de porte de droga para consumo, quer porque não se
trata de droga propriamente dita, quer porque, diversamente do art. 33, §1°, da Lei, o
art. 28 sequer tipifica o ato de adquirir, importar (etc.) matéria-prima ou insumo para a
preparação de droga, mas apenas a conduta de semear, cultivar e colher planta destinada
à preparação de pequena quantidade de substância entorpecente, conforme se vê abaixo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-
multa.
E a ação será tipificada como uso compartilhado (§3°), e não auxílio, quando
estiverem presentes os vários requisitos a que se refere o dispositivo, conforme veremos
a seguir.
Para Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi, “se o agente, além de induzir,
instigar ou auxiliar, também fornece a droga incide, ainda, em concurso material,
porque as ações são distintas, nas penas do caput deste artigo, ressalvada a situação
específica do parágrafo seguinte, com o qual, então, haveria concurso material.”84
Não parece que assim seja. É que, embora possível, dificilmente o autor
induzirá, instigará e (principalmente) auxiliará alguém ao uso indevido de droga sem
portá-la e, pois, entregá-la a consumo ou fornecê-la. Assim, se o agente, portando
pequena quantidade de droga, instiga outrem a fazer uso da droga, estará incorrendo nas
penas, exclusivamente, do §2° (ou §3°), havendo de responder por crime único, e não
concurso material, sob pena de violação aos princípios de legalidade e ne bis in idem.
Parece-nos que o critério mais importante, mas não exclusivo, para distinguir
as ações descritas no art. 33, caput, §2° e §3°, é o objetivo de difusão da droga, a título
gratuito ou oneroso. Exatamente por isso, se o agente resolve difundir a droga,
induzindo, instigando etc., pessoas a consumirem, a fim de formar um grupo de
consumidores ou ampliar sua clientela, o caso será de tráfico (caput).
Cabe frisar que, na ADIN n° 4.274, sendo relator o Ministro Ayres Brito, o
STF decidiu que manifestações visando à liberação de drogas (a chamada “marcha da
maconha”) não viola o artigo em questão; logo, não constitui crime previsto na Lei n°
11.343/2006, sob pena de violação à liberdade de pensamento e expressão e associação
etc.
O §3° exige que o oferecimento seja eventual, e não habitual. Não obstante,
fato é que, tratando-se de pessoa próxima, o comum é que o ato de compartilhar droga
seja frequente, e não eventual, razão pela qual, se presentes os demais requisitos do tipo,
será mais razoável tipificar a conduta, não como tráfico, mas como uso compartilhado.
Enfim, a eventualidade a que se refere a norma não pode ser levada a extremos, afinal o
uso compartilhado, ainda quando habitual, uso compartilhado é, e não tráfico.
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar
a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário,
aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação,
produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou
não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para
a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.
Mais absurda ainda é a associação para o fim de cometer o crime do art. 34,
visto que, além de a pena ser exatamente a mesma cominada para este crime-fim (art.
34), a lei criminaliza a preparação da preparação (!). Tipifica-se, enfim, o perigo do
perigo.
Sídio Rosa de Mesquita Júnior sustenta, no entanto, que, por se tratar de crime
subsidiário, se for cometido o crime-fim (tráfico etc.), incidirá o princípio da absorção
ou consunção (unidade de crime), e não concurso de crimes, devendo o agente
responder por tráfico, exclusivamente.96
Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33,
caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Por ser uma forma especial de participação em tráfico e afins, o agente que
praticar a ação de financiamento não poderá responder, simultaneamente, por dois
delitos, mas por delito único, sob pena de violação ao princípio ne bis in idem, ainda
que ele, além de financiar, pratique ações típicas de tráfico e afins, envolvendo-se
pessoal e diretamente com tais delitos.
Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados
à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:
Visto que o tipo requer que se colabore como informante com grupo,
organização ou associação criminosa, segue-se que não configura o delito a ação de
cooperar com um ou mais traficantes que não cheguem a se constituir como grupo,
organização ou associação criminosa. Ou seja, se houver colaboração para com um
traficante solitário ou similar, o agente responderá como partícipe na forma do art. 29 do
Código Penal e 33, caput, da Lei.103
Art. 38. Prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o
paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 200
(duzentos) dias-multa.
Trata-se de crime culposo, isto é, praticável sem dolo, direto ou eventual, mas
com imprudência, negligência ou imperícia.
Mas dizer que se trata de crime próprio não significa, como pretendem alguns
autores, que só o médico ou dentista possam praticá-lo.106Com efeito, qualquer
profissional ligado ao sistema de saúde que tiver atribuição para ministrar droga poderá
incorrer nas penas do artigo comentado, a exemplo de enfermeiros, farmacêuticos etc.
107
Mas isso não é de todo exato, porque o fato de o agente não dispor de
autorização legal/regulamentar para prescrever/ministrar a droga, embora constitua forte
indício de atuação ilegal e criminosa, não importa, inexoravelmente, no cometimento de
crime de tráfico, e tampouco a título sempre doloso, que requer diversos requisitos.
Art. 39. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano
potencial a incolumidade de outrem:
O art. 39 tipifica uma conduta que nada tem a ver com o tráfico de drogas e
afins, mas com a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo e a incolumidade
das pessoas.
Mas como o referido art. 306 não é aplicável às embarcações e aeronaves, pois
o Código de Trânsito só incide sobre veículo automotor que transite nas vias terrestres
(art. 1°109), o legislador aproveitou a oportunidade para suprir a omissão.
Mas assim procedeu sem muito êxito, visto que a expressão drogas só pode ser
entendida como droga ilícita, nos termos do art. 1°, parágrafo único, da Lei: “ Para fins
desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar
dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas
periodicamente pelo Poder Executivo da União.”