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O protagonismo das vítimas de violência doméstica e

familiar

O PROTAGONISMO DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR


Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 86 | p. 381 | Set / 2010
Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 4 | p. 381 | Ago / 2011DTR\2010\720
Maria Amélia de Almeida Teles
Coordenadora do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM e dos Projetos Maria, Maria e Promotoras
Legais Populares - União de Mulheres de São Paulo.

Área do Direito: Penal


Resumo: O artigo comenta sobre o tratamento dado à vítima no processo penal nos casos de
violência doméstica contra as mulheres, considerando a implementação da Lei 11.340/2006,
conhecida como a Lei Maria da Penha. Propõe que as vítimas sejam protagonistas da denúncia, com
garantia de exercer o direito de falarem e serem ouvidas, devidamente orientadas para que se
consiga a interrupção da violência.

Palavras-chave: Vítima - Violência doméstica - Gênero - Direitos humanos das mulheres - Medidas
protetivas
Abstract: The article addresses the treatment given to victims of domestic violence in the criminal
proceeding, taking into account the implementation of Law 11.340/2006 also known as Maria da
Penha law, which proposes that victims themselves press charges against the abuser, are given the
right to talk, to be heard and also be properly advised so that violence can be interrupted.

Keywords: Victim - Domestic violence - Gender - Women#s human rights - Protective measures
Sumário:

1.Introdução - 2.Violência contra as mulheres e direitos humanos - 3.Violência e discriminação


mantêm as desigualdades entre os sexos - 4.A vítima de violência doméstica e familiar - 5.As
consequências da falta de credibilidade na palavra da vítima - 6.Conceito e a dificuldade de seu
reconhecimento - 7.A Lei Maria da Penha e o protagonismo das vítimas - 8.Conclusão - 9.Bibliografia

1. Introdução

Quando empregamos o termo violência, referimo-nos a práticas de determinados grupos ou


segmentos que forçam outros à submissão com o fim de explorar, oprimir, dominar e controlar a
ponto de impedir o exercício da manifestação da vontade e da autonomia por parte dos que estão ou
são dominados. Tais práticas tolhem a capacidade de grupos/segmentos serem sujeitos de direitos,
manifestarem e realizarem desejos, construírem perspectivas. Obstaculizam e criam fortes
empecilhos para que diversos segmentos se tornem protagonistas de sua própria trajetória, com
condições de exercer cidadania plena e digna. Ressalta-se ainda que ações violentas dessa
envergadura são estrategicamente preestabelecidas, implementadas por meio de uma conjunção e
articulação de fatores estruturais de uma determinada sociedade. Há várias formas de violência e
neste texto destacamos a violência de gênero e a necessidade de se ouvir a vítima para interromper,
reduzir e erradicar as relações violentas entre homens e mulheres. Gênero aqui significa a
construção social dos sexos, que tem se dado, ao longo da história, de maneira desigual, o que
resulta em injustiça, opressão e discriminação/violência. Reafirmamos que a violência é construída:
aprende-se a ser agressor e a ser vítima. A atenção às vítimas faz parte de políticas públicas de
empoderamento das mulheres e de acesso à justiça.
2. Violência contra as mulheres e direitos humanos

Violência é tema, portanto, atual, presente em agendas sociais, políticas e nos estudos acadêmicos.
São ceifadas milhares de vidas humanas a cada ano no mundo (1.600.000 pessoas são mortas de
forma violenta), 1 outras milhares, mutiladas e se tornam inválidas, outras têm suas vidas
prejudicadas pois, cada pessoa que morre ou é atingida pela violência deixa outras marcadas física
ou psicologicamente, com vários problemas emocionais e afetivos, sexuais, mentais, econômicos e
sociais.

Só quando são reconhecidos os direitos humanos, como limitador do poder do estado e como
garantia de direitos individuais e coletivos, o que ocorre a partir do século XIX, é que se cria a
possibilidade de pautar a violência e seu enfrentamento na agenda política. Ao ser reconhecido o

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problema social, coloca-se como necessidade premente a sua erradicação ou redução como desafio
a ser enfrentado politicamente em todas as suas formas, seja a violência social, urbana, rural,
política, étnico-racial, de gênero, religiosa e tantas outras nos mais distintos contextos
sócio-culturais. No caso da população feminina, somente quando são reconhecidos os direitos
humanos das mulheres, na última década do século XX (1993, Viena), 2 é que, de um modo geral se
tomam iniciativas públicas de enfrentamento da violência de gênero, especialmente da violência
doméstica e familiar.

A violência contra as mulheres gera outras violências. A primeira violência, que o ser humano
conhece e com a qual terá que lidar, é a violência contra as mulheres, sejam as mães, companheiras
ou esposas, tias, avós, irmãs ou primas. Muitas vezes, as crianças já sentem esta violência antes
mesmo de nascer quando suas mães ainda estão grávidas. A reprodução da violência é de tal forma
reiterada que é tratada como um fenômeno natural. É um problema que ocorre em todas as partes
do mundo devido à discriminação e violência contra as mulheres, sem fronteiras sociais, de classes,
raça/etnia. Segundo a definição da Organização das Nações Unidas (ONU) ocorre "a violência contra
uma mulher apenas porque ela é mulher" atingindo as mulheres "desproporcionalmente". 3 As cifras
que revelam a realidade feminina são alarmantes. 70% dos mais pobres do mundo são mulheres. Há
aproximadamente, 120 milhões de mulheres que sofreram mutilação do clitóris; o que as impede de
usufruírem o direito ao prazer sexual; recebem salários menores do que os homens quando exercem
função igual, estão sub-representadas na política. Se são negras ou de etnias não brancas são ainda
mais discriminadas, são tratadas, com mais intensidade, como objeto sexual e recebem salários
ainda menores do que as brancas além de trabalharem em condições de maior precariedade. O
Relatório da Saúde da Mulher, com dados coletados no período de 2003 a 2006, publicado em 2007
pelo Ministério da Saúde, aponta as três primeiras causas de morte de mulheres em idade fértil,
compreendida entre 15 a 45 anos de idade: (1) Acidente Vascular Cerebral (AVC); (2) Aids ; (3)
Homicídio. 4 Diz o documento:

"As estatísticas sobre mortalidade são bastante utilizadas para a análise das condições de saúde das
populações. É importante considerar o fato de que determinados problemas afetam de maneira
distinta homens e mulheres. Isso se apresenta de maneira marcante no caso da violência. Enquanto
a mortalidade por violência afeta os homens em grandes proporções, a morbidade, especialmente
provocada pela violência doméstica e sexual, atinge prioritariamente a população feminina. Também
no caso dos problemas de saúde associados ao exercício da sexualidade, as mulheres estão
particularmente afetadas e, pela particularidade biológica, têm como complicação a transmissão
vertical de doenças como a sífilis e o vírus HIV, a mortalidade materna e os problemas de morbidade
ainda pouco estudados. (...) as mudanças de hábito, aliadas ao estresse gerado pelo estilo de vida
do mundo moderno contribuem para que as doenças crônico-degenerativas estejam entre as
principais causas de morte na população feminina. Tipo de alimentação, sedentarismo, tabagismo,
sobrecarga de responsabilidades (como o aumento considerável do número de mulheres chefes de
família), competitividade e assédio moral e sexual no mundo do trabalho são fatores com relevância
destacada na mudança do perfil epidemiológico da saúde das mulheres" (grifo nosso).

A sociedade brasileira se forjou às custas da exploração de mulheres e homens, que geraram mais
valia nos setores da economia, seja na atividade laboral diretamente vinculada à produção ou nas
atividades de infraestrutura, como o trabalho doméstico e os cuidados com crianças, doentes e
pessoas velhas. No entanto, as mulheres foram sempre mais injustiçadas, desvalorizadas e
relegadas ao esquecimento pela história oficial. São características marcantes de nossa sociedade a
conduta baseada no preconceito, na discriminação, na violência e na invisibilidade das mulheres. Por
pertencerem ao sexo feminino, ou seja, pelo simples fato de serem mulheres, são alvo de
desvalorização o que gera a violência contra a mulher e sua banalização. Os movimentos de
mulheres e feministas criaram a expressão violência contra a mulher ou violênciacontra as mulheres
buscando o reconhecimento, a identificação e o enfrentamento de um conjunto de práticas violentas
contra as mulheres para subjugá-las ao poder masculino e impedindo - as de exercer dignamente a
cidadania.

A violência contra as mulheres se constrói, ao longo da história, com base na ideia ou na ideologia
de que as diferenças biológicas são as responsáveis pelas desigualdades sociais e de injustiça. Mas
na realidade, as diferenças biológicas existem e, ao serem respeitadas, fazem com que cada
pessoa, seja individualmente original e única. Em hipótese alguma podem ser usadas para justificar
as desigualdades econômicas e sociais. Estas são criadas por meio de processos históricos,

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encabeçados por interesses de grupos que transformam as relações sociais conforme suas
ambições políticas e econômicas, em prejuízo da maioria, colocando as pessoas na condição de
"massa", homogeneizada, sem rosto, sem voz e sem vontade. Para justificar as arbitrariedades
cometidas em nome do poder, naturaliza-se a violência latente ou explícita nestas relações.
3. Violência e discriminação mantêm as desigualdades entre os sexos

A violência sobrepõe todas as formas de opressão a que estão submetidas as mulheres. Encontra-se
na esfera privada e pública e expressa o limite extremo da dominação masculina. O funcionamento
da sociedade permite a tolerância aos atos violentos contra as mulheres, pois, a existência deles não
é ignorada no contexto sócio - político em que vivemos. A exploração da força de trabalho de
reprodução e produção das mulheres sustenta a hierarquia social masculina. A manutenção das
mulheres num patamar de inferioridade permite o controle do sistema econômico e político de
exploração e opressão, pois tolhe seu potencial de resistência, de ação e de decisão.

A violência reforça e reitera a discriminação contra as mulheres e as colocam em condição de


subalternidade em diversas áreas da vida, levando a receberem menores salários do que os homens
e terem muito menos oportunidades de terem acesso a espaços de poder e decisão.

Dados dos estudos sobre "Demografia e Gênero" 5 mostram que 46,7% das mulheres, em 2007,
participavam do mercado de trabalho, o que, certamente, deve ter aumentado a renda familiar, mas
mesmo assim, os homens ainda não compartilham das atividades domésticas. 89,7% das mulheres
que trabalham fora, também fazem o trabalho doméstico. Outra questão apresentada é que apesar
das transformações na estrutura familiar, esta ainda se mantém discriminando as mulheres,
sobrecarregando e isolando-as, o que fez com que os analistas concluíssem que a família é "a esfera
social mais refratária e resistente em direção à igualdade entre mulheres e homens". Isto resulta
numa parcela significativa impedida de ter uma efetiva participação social e política que são as
mulheres.
4. A vítima de violência doméstica e familiar

A violência doméstica e familiar contra a mulher ocorre em relações íntimas de afeto onde a vítima
ou a ofendida conhece o agressor, muitas convivem com ele e mantém com ele relações de amor,
de amizade.

No âmbito das relações individuais, ainda que seja um problema social, as práticas violentas se
tornaram ainda mais invisíveis devido à separação simbólica dos espaços público e privado como
também ao fato de que suas principais vítimas são segmentos desvalorizados socialmente, como as
mulheres, crianças, pessoas idosas e deficientes. Aceita-se o fato, generalizando as causas como se
fossem unicamente advindas de patologias, desvios de conduta ou ainda devido ao uso de drogas.
Dessa forma diluem-se as responsabilidades e mais nebulosas ainda se tornam as estratégias para
enfrentar o problema, imobiliza-se a sociedade e a afasta de ações de identificação e erradicação da
violência. Quando falamos de vítimas, não estamos retirando a condição de "sujeito" das pessoas
que encontram-se com os seus direitos violados. Mas sim, ressaltamos a sua condição de pessoa
titular e sujeito de direitos que, ao ser vítima de violência, sofre violações dos seus direitos
fundamentais. As pessoas vítimas trazem danos físicos, psíquicos e sociais. A violência contra as
mulheres torna-se ainda mais complexa e contraditória quando os agressores são homens com os
quais as mulheres se relacionam afetiva e sexualmente. Os autores, nestes casos, conhecem bem
as vítimas e seus pontos mais vulneráveis. Dominam a situação e sabem como e onde ameaçá-las,
como espancá-las, humilhá-las e cometer outras práticas de agressão e de lesão. É importante
também destacar que a violência é fruto de um processo de aprendizagem: tanto se aprende a ser
agressor (a) como a ser agredida (o). Autor e vítima convivem, em muitas situações, por longos
anos, sob o mesmo teto. Ao empregar a expressão vítimas, não o fazemos de maneira tranquila. É
uma questão polêmica.

A expressão vítima incomoda, de uma certa forma, os movimentos feministas, na medida que, a
vítima pode ser estigmatizada, tratada como uma pessoa incapaz de exercer com autonomia e
discernimento ações e atitudes. A estigmatização da vítima pode impedí-la de tomar decisões com
independência e lucidez. O feminismo aposta na afirmação e capacidade das mulheres, tanto no
âmbito pessoal como no coletivo, para exercer plenamente seus direitos assim como o direito a obter
justiça e o direito de participar, opinar e construir espaços de diálogos. O Direito não pode ser

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utilizado para manter a assimetria das relações sociais entre mulheres e homens. Reivindicamos do
Direito a proteção das mulheres como pessoa humana de forma a assegurar seu acesso à justiça
com dignidade.
5. As consequências da falta de credibilidade na palavra da vítima

No caso das mulheres vítimas de situações de violência ainda há mais um risco iminente de ela ser
transformada em ré. É comum dizer que "a mulher gosta de apanhar", de que "ele não sabe porque
bateu mas ela sabe porque apanhou", se ela " foi atrás dele, então estava procurando". A culpada
pode ser uma mulher, uma maria chuteira, uma garota de programa, uma adúltera, uma mãe que
quer ter sua criança reconhecida pelo pai, uma filha, uma irmã, uma esposa, amante, ex- amante,
namorada ou noiva. Vítima ou ré? Talvez seja a primeira questão que as autoridades enfrentam
diante de uma mulher visivelmente afetada pela violência e que faz a denúncia. A palavra dessa
mulher que denuncia a violência sofrida não tem credibilidade. Ainda nos dias de hoje prevalece o
preconceito contra as mulheres o que promove o prejulgamento arbitrário ao colocar em dúvida a
palavra e o caráter das vítimas para justificar a violência e a impunidade dos agressores e
assassinos de mulheres. É extremamente grave que o Estado brasileiro continue negando justiça
efetiva às mulheres, ao indeferir ou deixar de cumprir as medidas de proteção de urgência para
garantir sua segurança pessoal, a reabilitação e a restituição de direitos.

A impunidade, o medo da desestruturação familiar mas principalmente a falta de providências


concretas por parte do aparato estatal leva as mulheres a se silenciar diante da violência. A pouca ou
nenhuma importância que as vítimas recebem por parte dos agentes estatais quando denunciam as
ameaças dos seus agressores, impõe-lhes o medo de sofrer mais ainda a retaliação e vingança dos
seus agressores. O que causa ainda mais danos pois a denúncia é um passo necessário para
interromper e erradicar a violência.
6. Conceito e a dificuldade de seu reconhecimento

No entanto, na situação de violência de gênero, 6 as mulheres têm sido o alvo principal, o que as
coloca na condição de vítimas. As mulheres estão submetidas, ao longo da história, à discriminação
e ao preconceito. Somente há aproximadamente quatro décadas, graças a atuação de feministas,
que o fenômeno da violência contra as mulheres tornou-se visível. Dados demonstram que as
mulheres são frequentemente mais vítimas da violência doméstica e familiar do que os homens. Para
torná-las protagonistas de suas próprias histórias e vidas há de se garantir espaço em que possam
se empoderar de modo a criar condições menos desiguais para decidir, para escolher e enfrentar os
conflitos, com independência, com determinação.

Deve-se entender vítimas como: "as pessoas que individualmente ou coletivamente, tenham sofrido
danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição
substancial de seus direitos fundamentais, como consequência de ações ou omissões que violem a
legislação penal vigente nos Estados-membros, incluída a que prescreve o abuso penal do poder." 7

O Estado brasileiro tem tido um olhar distante para as vítimas, em particular as vítimas da violência
de gênero. A violência contra as mulheres tem sido banalizada e apresentada como "natural", o que
reforça a sua manutenção e imobiliza a sociedade. A experiência de fazer a denúncia por parte das
mulheres deve ser acompanhada no terreno da justiça de novas estratégias de acolhimento e
orientação das vítimas.

Trabalhamos com a perspectiva de que é possível mudar o quadro de violência contra as mulheres
embora a realidade, muitas vezes, insiste em nos mostrar o contrário. As medidas especiais devem
ser adotadas, políticas estratégicas, ainda que temporariamente, de modo a ampliar as
possibilidades de protagonizar as vítimas para que possam enfrentar e superar as violações dos
seus direitos com instrumentos legais, legítimos e adequados.
7. A Lei Maria da Penha e o protagonismo das vítimas

A Lei 11.340/2006, conhecida como a Lei Maria da Penha , convoca o Estado e a sociedade a terem
uma nova postura para com as vítimas da violência doméstica e familiar e para isso determina que o
judiciário possa conceder medidas protetivas que vão assegurar as mulheres condições de igualdade
para romper com as situações de conflito e tensão, sem deixar de ter atendidas suas necessidades
básicas e seus interesses. Ao propiciar o protagonismo para as vítimas, criam-se condições para o

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empoderamento e a busca de soluções razoáveis para os conflitos, considerando que seus efeitos
se estendem para além das vítimas. É preciso levar em conta a cumplicidade do silêncio que impede
que as vítimas vão em busca de justiça. O silêncio é provocado pela vergonha, pelo medo, a
insegurança, mas também, pela dificuldade concreta de ser ouvida e acolhida pelas instituições
competentes. Ao não receber um acolhimento adequado ou terem que enfrentar a omissão, a
cumplicidade ou até mesmo a censura e a rejeição da sociedade e dos próprios agentes estatais, as
vítimas se culpabilizam pela situação de violência em que estão vivendo. Há um reforço dos
estereótipos, confirmando sua incapacidade por não romper com a dinâmica violenta de suas
relações e a responsabilidade pelos sofrimentos vividos. A banalização da violência de gênero e o
culpabilizar as próprias mulheres da violência que sofrem são os mecanismos mais eficientes para a
continuidade e perpetuação das relações violentas. Os resultados são assustadores: uma mulher é
assassinada a cada duas horas no Brasil, deixando o país em 12.º no ranking mundial de homicídios
de mulheres. A maioria das vítimas é morta por parentes, maridos, namorados, ex-companheiros ou
homens que foram rejeitados por elas. Segundo o Mapa da Violência 2010, elaborado pelo Instituto
Sangari, 40% dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos de idade. 8

É absurda a inversão do princípio de justiça. É inadmissível considerar que as mulheres são


culpadas até prova em contrário. Ao aplicar a Lei 9.099/1995 nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, como lamentavelmente ocorre ainda em São Paulo, 9 apesar de
expressamente proibido seu uso conforme o art. 41 da Lei 11.340/2006, desconsidera-se a vítima e
as consequências da violação de seus direitos humanos e de seus dependentes. O atendimento da
violência doméstica e familiar contra as mulheres impõe uma postura de acolhimento e atenção
especial às vítimas por parte da justiça, o que pode facilitar bastante o alcance de uma resolução
mais adequada ao conflito. Sem perder de vista a complexidade da questão, os atores do sistema de
justiça devem oferecer informações, orientação e condições de segurança para as vítimas e seus
dependentes, uma vez que o juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher atua de forma
interdisciplinar , articulado com a rede social de apoio do entorno.

Uma das vítimas atendida pelo Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em São
Paulo, perguntada sobre o resultado da audiência respondeu: 10

"Eu esperava uma solução pro meu problema, e agora eles (Judiciário) deram. O (agressor) vai ter
que sair da minha casa, era isso que eu queria e é isso que vai ter que acontecer, né? Eles falaram
que ele vai ter que sair da minha casa e não vai poder se aproximar de mim. Ele me agride muito, eu
não mereço isso, nunca apanhei do meu pai, onde tem violência não tem amor, né?"

Quando se garante um espaço adequado para as vítimas, estas podem expressar com mais
precisão suas necessidades e, chegam a apontar sugestões para resolução dos conflitos.
8. Conclusão

A Lei 11.340/2006 trouxe à luz um novo olhar para as vítimas, propiciando atendimento de acordo
com as necessidades concretas e pode obter resultados mais satisfatórios construídos a partir das
expectativas de quem busca justiça e tem o direito de viver sem violência. Se o sistema de justiça
não olhar devidamente as vítimas da violência doméstica e familiar, o estado mantém-se cúmplice e
ratifica as práticas violentas dos agressores. Tem causado estranheza ao sistema de justiça ser
obrigado a desenvolver proteção e amparo às vítimas. Constata-se que quando o crime é de
violência doméstica, a vítima passa a ser suspeita. Dessa forma, coloca-se a vítima sob uma
antipatia geral o que indispõe os agentes do Estado a atenderem adequadamente às mulheres em
situação de violência. Há interpretações de cunho moralista e preconceituoso, como a decisão
judicial que indeferiu medida protetiva a estudante Elisa Samudio 11 ameaçada pelo ex-goleiro do
Flamengo, Bruno por entender que a Lei Maria da Penha deve proteger a família e não relações de
caráter eventual e sexual. Há ainda operadores da justiça que entendem que o direito penal está
voltado para atender a mulher honesta embora desde 2005, com a alteração do Código Penal
(LGL\1940\2) brasileiro esta expressão tem sido retirada. 12 Agindo assim estes operadores se
impacientam com as vítimas por não conseguirem entender ou ouvir suas reclamações, o que, de
acordo com o parecer deles, perturba o "bom funcionamento do serviço". Durante minha
apresentação no 16.º Seminário Internacional do IBCCrim", 13 houve, pelo menos, um funcionário da
justiça que perguntou em tom queixoso sobre como levar as mulheres a sério se elas desistem de
continuar o processo. Parece que só haveria seriedade das mulheres se fosse alcançada uma
condenação dos homens. Seria assim mais importante condenar o autor do que impedir a prática da

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violência? A atuação de uma parte significativa de funcionários do aparato policial e judiciário,


incluindo os auxiliares da justiça, chega a revitimizar as vítimas e pode levá-las a desistir de
denunciar, entendendo que não vale a pena.

Os recentes dispositivos legais criam mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra as mulheres numa perspectiva holística de proteção dos direitos humanos das
vítimas. Assim considerando, ao ouvir de maneira sistemática as vítimas, suas expectativas e
anseios, aprendem-se e renovam-se ações que culminem com novos paradigmas e soluções
plausíveis garantidoras da vida sem violência para as mulheres.

A justiça não pode se contentar em simplesmente acomodar as contradições sociais, deve acenar
com caminhos de esperança e dignidade.
9. Bibliografia

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência doméstica - Análise artigo por artigo da Lei
"Maria da Penha", n. 11.340/06. 2. ed. rev., ampl., atual. Salvador: Podivm, 2008.

LAURENZO, Patrícia; MAQUEDA, Maria Luisa e RUBIO, Ana. GÊNERO VIOLÊNCIA Y DERECHO.
VALENCIA: TIRANT LO BLANCH, 2008.

PANDJIARJIAN, Valéria. In: MORAES, Maria Lygia Quartim de; NAVES, Rubens. Advocacia pro
bono. Em defesa da mulher vítima de violência. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 77.

SAFFIOTI, Heleieth I.B.; ALMEIDA, Suely de Souza. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de
Janeiro: Revinter, 1995.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Os curso de direito e a perspectiva de gênero. Porto Alegre: Safe,
2006.

______; MELO, Monica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002.

1. Relatório mundial de saúde. Organização Mundial de Saúde. 2006. Citado em Violência doméstica
, de Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti. Salvador, 2008.

2. A Conferência Mundial de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada
em Viena, Áustria, em junho de 1993, aprovou a Declaração que traz em seu art. 18 que "os direitos
humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível
dos direitos humanos universais" (PANDJIARJIAN, Valéria. In: MORAES, Maria Lygia Quartim de;
NAVES, Rubens. Advocacia pro bono. Em defesa da mulher vítima de violência. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2002, p. 77).

3. United Nations, 2006, p. 11. Observatório da Lei Maria da Penha. Cadernos do Observe, n. 1,
Salvador, ago. 2010.

4. Relatório de gestão 2003 à 2006: Política :Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher.
Ministério da Saúde, 2007, p. 9, 10 e 20.

5. Estudos "Demografia e Gênero", primeiras análises do PNAD 2007 feitas pelo Ipea.

6. Nota da autora: Gênero aqui deve ser entendido como a construção sociocultural dos sexos que
tem produzido as desigualdades históricas entre mulheres e homens.

7. Declaração de Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delito e de Abuso de Poder,


editada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 1986. In: CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias.
Violência doméstica. 2. ed. rev., amp. e atual. Salvador: Podivm, 2008, p. 62.

8. Publicado no Jornal Estado deSão Paulo, de 04.06.2010, sob o título: "Dez mulheres são mortas
por dia no País."

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familiar

9. ALVAREZ, Marcos César e outros. Serie Pensando o Direito/A vítima no processo penal. IBCCrim,
jun. 2010.

10. Idem, p. 34.

11. Caso amplamente comentado pela mídia. Elisa Samudio, desaparecida desde junho de 2010,
após ter se encontrado com o então goleiro do Flamengo, Bruno, para obter o reconhecimento de
paternidade de seu filho de quatro meses.

12. Somente em 2005 ( Lei 11.106/2005) houve alteração no Código Penal (LGL\1940\2) brasileiro
para tirar a expressão mulher honesta que foi largamente usada para marginalizar e manter
preconceitos contra as mulheres, pois neste contexto, a palavra honestidade era usada para indicar
compostura e pudor e não probidade como sempre foi empregado para qualificar e empoderar os
homens (TELES, 2006).

13. 16.º Seminário Internacional do IBCCrim realizado nos dias 24 a 27.08.2010.

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