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Continuidades e Descontinuidades da Espacialidade

Contemporânea
( Paolo Colosso)

Resumo: o artigo analisa as atuais condições sócio-espaciais por meio de aproximações,


mas sobretudo de contrastes com conceitos espaciais que pautaram, em grande medida,
a compreensão da espacialidade da década de 1990. Evidencia-se, neste quadro
comparativo, que aquele período fora marcado por esvaziamento da vida urbana, uma
tendência aos consensos públicos, uma dissolução de fronteiras entre público e privado;
já o contemporâneo, embora traga continuidades, é marcado por uma reintensificação da
vida urbana alavancada pela volta aos espaços públicos enquanto espaços de cidadania
ativa, dissensos e desejo por participação social. Por fim, o artigo retoma o arcabouço
teórico do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, argumentando pelo potencial explicativo do
autor nestes tempos de acirramento de contradições sociais urbanas.

Palavras-chave: espacialidade contemporânea, espaço público, movimentos sociais


urbanos, Henri Lefebvre.

Introdução
O artigo analisa as atuais condições socioespaciais por meio de relações entre práticas
e conceitos espaciais recentes e aqueles que orientaram, em grande medida, a
compreensão do fim do século XX . O objetivo é identificar que, embora a espacialidade
contemporânea seja marcada por continuidades em relação àquela dos anos 1990, há
descontinuidades significativas no que diz respeito à reintensificação do uso dos espaços
públicos e, ainda, às peculiaridades desta vida urbana. Para tanto, o trabalho é dividido em
três momentos. O primeiro reconstitui o espaço social dos anos 90 a partir de contribuições
de Fredric Jameson e do arquiteto Rem Koolhaas acerca dos espaços nos quais os
processos capilarizados de mercantilização levam ao esvaziamento da vida social e, ainda,
a uma dissolução das fronteiras entre espaços privados e espaço público. Isto se dará, mais
especificamente, a partir das noções de “terra de ninguém” do primeiro e “Junkspace” do
último. O segundo momento reconstitui os anos de inquietações sociais irrompidos na
crise urbana pós-colapso financeiro de 2008, atentando para dinâmicas ligadas às formas
de cidadania ativa e participação social. A título de tornar as análises mais fundamentadas,
neste momento a ênfase recairá em três contextos: o das capitais espanholas, os Occupy
nos EUA e o caso brasileiro. O terceiro momento retoma pontos específicos do
pensamento do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre acerca do fenômeno urbano, no intuito

1
de observar subsídios teóricos capazes de lançar luz mais ampla sobre momentos nos
quais as contradições socioespaciais estão mais acirradas e a vida urbana mais densa.
Neste bloco, deve-se esclarecer em que termos, para Lefebvre, processos urbanos
funcionam como força peso na reprodução das relações sociais e ajustamento do cotidiano
– vetores da atomização e esvaziamento –, mas também como catalisadores de desejos
coletivos por outras formas de sociabilidade e valoração, o que se torna uma perspectiva de
grande potencial explicativo para o presente.

1) Terra de Ninguém, Realismo Sujo e Junkspace


A leitura das condições socioespaciais do último quartel do século XX foi em grande
medida pautada pela perspectiva do crítico cultural Fredric Jameson, na qual o autor
combina um diagnóstico de época à reconstituição de marcos da história da arquitetura do
período denominado pós-moderno. Para Jameson (1996), trata-se do momento de
modernização mais acabada, no qual o avanço das forças técnico-produtivas para os
setores computacional, de serviços – de comunicação, da propaganda e marketing, do
entretenimento e do turismo – e financeiro caminham ligados a uma estetização da
realidade: uma profusão vertiginosa de signos imagéticos, uma estilização de todo objeto
cotidiano, uma mercantilização de toda vivência no tempo livre. Sua tese central é, em
termos esquemáticos, a de que a própria cultura dominante global tende a integrar-se, ou
pelo menos operar de modo simpático, à produção, circulação e consumo de mercadorias.1
Estes traços foram vistos na Pop Art de Andy Warhol, nos neoclassicismos em arquitetura,
mas mais explícitos na moda retrô, na onda kitsch e na cultura televisiva, fenômenos nos
quais a história se torna um amontoado de imagens planas e neutralizadas. Esta cultura
dominante, vale lembrar, diz respeito não apenas à realidade social objetivada, mas
constituiu para Jameson uma estrutura perceptiva da condição pós-moderna; funciona
portanto como moldura do horizonte social e político. Por isto afirma que estes são os
“limites da práxis, os quais são também os limites do pensamento e da projeção
imaginativa”( JAMESON, 1997, p. 136).
Para compreender esta moldura do horizonte pós-moderno, vale atentar para o que
Jameson (1997) denomina “realismo sujo”, noção com a qual o autor retrata um espaço
hiperconstruído, onde fronteiras urbanas se dissolvem e a oposição entre o interno e o
externo está anulada. Entre as formas culturais que mais bem representam tal espaço,
estão aquelas do filme Blade Runner. Numa narrativa plena de verve imaginativa, Jameson


1
Pode-se dizer, sem grandes riscos, que esta é a tese mais geral de Jameson. Ela retorna com outros termos,
diversas vezes: “Nesse novo estágio [do capitalismo tardio] a própria esfera da cultura se expandiu, coincidindo
com a sociedade de consumo de tal modo que o cultural já não se limita às suas formas anteriores, tradicionais
ou experimentais, mas é consumido a cada momento da vida cotidiana, nas compras, nas atividades
profissionais, nas várias formas de lazer televisivas, na produção para o mercado e no consumo desses
produtos, ou seja, em todos os pormenores do cotidiano. O espaço social está agora completamente saturado

2
monta um quadro dramático do fim da sociedade civil burguesa como se tinha até então,
seguido de um desaparecimento do espaço público.

O fim da sociedade civil vem também carregado com o desaparecimento do espaço público enquanto tal: o
fim do cívico, por exemplo, e do governo oficial, que agora se dissolve nas redes privadas de corrupção e nas
relações informais de clã ( JAMESON, 1997, p. 163).

Ressalvas feitas à retórica de alto impacto de Jameson, pode-se lembrar que o autor
descreve o período do declínio do Welfare State, quando os muros do dito socialismo real
foram ao chão junto com as esperanças de uma sociedade radicalmente outra. Os
processos de desregulamentação econômica, flexibilização do trabalho e o deslocamento de
setores produtivos para países periféricos são a face verdadeira da aldeia global. Neste
mesmo momento, vale lembrar, o empreendedorismo da governança urbana parece selar a
união estável entre grandes capitais e poder público, fazendo das cidades espaços de
negócios e, por esta via, dissolvendo de vez os limites entre público e privado. A pergunta
de Jameson toca nestes pontos: “o que toma agora lugar da oposição entre público e
privado? Existe alguma zona intermediária entre os dois que sobrevive e como se pode
teorizar a vida diária ou cotidiana, ou da rua, como uma candidata a ocupar essa posição
intermediária?”( JAMESON, 1997, p. 163).
O conceito-metáfora usado por Jameson é o da “terra de ninguém”. Não entendido como
uma guerra propriamente dita, esclarece Jameson, mas na medida em que “todas as
formas tradicionais anteriores de fronteiras ( o paradoxo aí é que a categoria de fronteira
desapareceu nessa situação”(JAMESON, 1997, p. 163). Esta imiscuidade de
desregulamentações coincide com uma dissolução dos marcos regulatórios da democracia
formal. Por isso Jameson afirma que, em termos espaciais, este quadro pode ser
imaginado como um lugar onde “nem a propriedade privada nem a lei pública existem”(
JAMESON, 1997, p. 163). Para Jameson, tais imagens não retratam uma “fantasia distópica
clássica”, mas sim um momento onde a excitação toma o lugar do medo, “com um espaço
inteiramente construído e pós-urbano infinito, no qual a propriedade corporativa de certa
forma aboliu a velha propriedade privada individual, sem se tornar pública”( JAMESON,
1997, p. 164). Não se trata de um cenário desolador, mas de polivalências. Os termos do
autor são esclarecedores: a terra de ninguém é o momento em que a expansão da
modernização capitalista inunda todos os recônditos e, em termos espaciais, há uma
intensificação de conflitos num mundo todo construído, não por isso urbano, mas “pós-
urbano”.
A ideia de “realismo sujo” é usada por Jameson para compreender o espaço social dos
anos 1990, mas também para caracterizar a produção do arquiteto holandês Rem Koolhaas,

3
o que reforça a escolha deste artigo em aproximá-los. Com efeito, a paisagem pintada pelo
arquiteto em Junkspace traz semelhanças diversas com as de Jameson, ao ponto de uma
imagem ajudar a elucidar a outra, mesmo que o arcabouço teórico dos autores sejam
distantes entre si.
O ensaio Junkspace foi publicado em 2000, quando Koolhaas já se tornara um arquiteto
global, com projetos de grande escala em capitais europeias, da América do Norte e Ásia e,
além disso, com publicações importantes sobre as transformações urbanas engendradas
por uma modernização descarrilhada – seja ela em Atlanta, Singapura, Tóquio ou Lagos.
Pouco tempo antes, quando refletia sobre o que denomina “Cidade Genérica”, já defendera
que “o arranha-céu parece ser a tipologia final e definitiva”( KOOLHAAS, R. 2010, p. 43).11
Avenidas e rodovias urbanas se tornam, nos termos do autor, um “domínio público sobre
rodas” e, neste tom conclui que “a rua morreu”( KOOLHAAS, R. 2010, p. 43). Isto porque,
afirmara Koolhaas, “a Cidade Genérica é o que resta depois de grandes setores da vida
urbana terem passado para o ciberespaço” ( KOOLHAAS, R. 2010, p.37). No ensaio
Junkspace, a crítica mais ácida de Koolhaas eleva os vetores da Cidade Genérica à terceira
potência, na medida em que os correlatos se espalham das cidades à toda a cultura urbana
– o que inclui as práticas materiais e simbólicas – da sociedade mundializada de
informação e consumo. O Junkspace é, pode-se dizer, o avanço da realidade da Cidade
Genérica.
Onde o conceito de Junkspace ganha desdobramentos mais enriquecedores é a obra
coletiva Project on the City II – Guide to Shopping. Nesta os artigos de alunos de pós-
graduação da Harvard Design conseguem ilustrar, situar e desenvolver a tese segundo a
qual o fenômeno compartilhado entre as mais diversas cidades do mundo – de Houston à
Las Vegas, da Cidade do México à Seoul, Singapura à Lisboa, Londres à Barcelona – é o
shopping, em suas diversas formas culturais; isto é, enquanto espaço arquitetônico,
enquanto fenômeno que estrutura e desestrutura o crescimento urbano e, mais do que isso,
enquanto “última forma remanescente de atividade pública”( LEONG, S. 2001, p.129).15.
O Junkspace é o espaço social no qual a forma shopping chegou à ubiquidade – nas
estações de metrô, em aeroportos, em escolas, em toda a cidade. Nesta paisagem feita de
espaços públicos com marca registrada, “as polaridades fundiram-se e não ficou nada entre
a desolação e o frenesi. O neon significa tanto o velho como o novo; os interiores remetem
ao mesmo tempo para a Idade da Pedra e para a Era Espacial” ( KOOLHAAS, R. 2010, p.


11
Vale lembrar que o ensaio Cidade Genérica foi escrito originalmente em 1994, mas para nossos propósitos
utilizaremos a tradução presente em Três textos sobre a cidade. Trad. de Luís Santiago Baptista. Barcelona:
Ed. Gustavo Gili, 2010.
16
A tradução do ensaio Junkspace utilizada aqui também segue a de Três textos sobre a cidade. Trad.
de Luís Santiago Baptista. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 2010.

4
75).16 E neste tom completa adiante, “a mudança divorciou-se da ideia de melhoramento.
Não há progresso; como um caranguejo drogado com LSD, a cultura não para de titubear de
lado” ( KOOLHAAS, R. 2010, p. 79). E como destaca Koolhaas, no junkspace “perdeu-se
qualquer perspectiva, como numa selva tropical” ( KOOLHAAS, R. 2010, p. 86). Enquanto
autor Koolhaas não cita suas fontes, mas a ideia de uma mudança sem melhoramento e,
ainda, a de uma cultura neutralizada – sem oposições – permitem aproximações com as
teses da lógica cultural de Jameson. E Koolhaas também está ciente de que o Junkspace é
introjetado socialmente enquanto práticas e representações. O Junkspace

depende da eliminação centralizada da capacidade crítica em nome do conforto e do prazer (...) países
diminutos inteiros estabelecem regimes de desorientação planificada, instigam uma política de desorganização
sistemática. Não é exatamente o ‘vale-tudo’; na realidade o segredo do junkspace é ser promíscuo e ao mesmo
tempo repressivo: à medida que prolifera o informe, o formal atrofia-se e com ele todas as regras, os
regulamentos, os recursos(...) [o junkspace] cunhou uma nova onda proativa de paradoxos para suspender a
antiga incompatibilidade: vida/estilo, realidade/TV, mundo/música; museu/loja, comida/sala, saúde/cuidados,
espera/vestíbulos. As denominações substituíram a luta de classes, amálgamas sonoras de estatuto, conceitos
elevados e história ( KOOLHAAS, R. 2010, p. 91).

Há uma dimensão política no Junkspace. Este é promíscuo e ao mesmo tempo


repressivo porque as estratégias de controle da vida social não são ditadas de modo
autoritário e coercitivo – como se dizia da modernidade fordista. Nesta cultura urbana há,
pode se dizer, um controle pelo prazer, na medida em que a satisfação de prazeres e
necessidades criadas é, por um lado, uma busca aprisionante e sem fim e, por outro, é um
modo de desmobilizar a crítica, a insurgência ou o desejo por realidades outras. O controle
pela saturação do prazer, pode-se dizer ainda, molda um imaginário social que coincide com
os bens à venda no mercado. Não por acaso se pergunta adiante: “A dissonância? A
incomodidade?”. Nesse tom agonizante Koolhaas não vê possibilidades de dissensos, só
um “acondicionamento universal” ( KOOLHAAS, R. 2010, p. 98) .
Tampouco as arquiteturas espetaculares escapam da cultura urbana sob o domínio do
Junkspace; estas estão também na onda da estetização seguida por estratégias de
mercado, o que o autor chama de “empretenimento” [corpotainment] e, ainda, de Sublime
Empresarial20: “graças ao junkspace, a velha aura é impregnada de um novo brilho para
gerar uma súbita viabilidade comercial: Barcelona amalgamou-se com os jogos Olímpicos,
Bilbao com o Guggenheim; a 42nd Street nova-iorquina com a Disney”( KOOLHAAS, R.
2010, p. 95). Em seguida reitera que “aeroportos brilham como gigantescas gotas de
orvalho, as pontes estendem-se com frequência sobre as margens insignificantes como

16
A tradução do ensaio Junkspace utilizada aqui também segue a de Três textos sobre a cidade. Trad.
de Luís Santiago Baptista. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 2010.
20
Neologismo de Koolhaas entre corporate e entertainment.

5
versões grotescas e ampliadas de uma harpa. Cada riacho tem seu Calatrava”(
KOOLHAAS, R. 2010, p. 103). E não muito longe desta questão afirma Koolhaas, já
próximo do fim do ensaio, que “na sua marcha triunfal como fornecedora de conteúdo, a arte
estende-se muito para além dos limites cada vez maiores do museu” ( KOOLHAAS, R.
2010, p. 108). O Junkspace aproxima-se, podemos dizer, das teses segundo as quais as
artes – e obviamente a arquitetura – são a ponta de lança nas estratégias integradas de
estetização e empreendedorismo da governança urbana, nas quais as cidades são geridas
como negócio.23

2) Tempos de reintensificação: inquietações sociais e cidadania insurgente


O fim dos anos 2000 e o desenrolar da década de 2010 são marcados por inquietações
sociais que estremecem o solo urbano de grandes cidades da Tunísia à Islandia, do Egito
aos EUA, da Espanha ao Brasil. Os levantes irromperam a partir de eventos situados, por
causas contextuais, muitos imprevisíveis até então, mas a crise econômica eclodida pelo
colapso financeiro em 2008, cuja estabilização econômica levou ônus sociais para todos os
cantos da aldeia global, certamente aproximou tais fenômenos. Isto porque nos momentos
de crise as estruturas de poder e decisão deixam à mostra sua irracionalidade.
Manuel Castells (2013), teórico que analisa mobilizações recentes, toca num ponto
central deste gênero de vida urbana. Castells salienta que movimentos sociais e de
contestação são forças sociais organizadas em momentos históricos nos quais parcelas da
população não se sentem contempladas por seus representantes políticos, isto é, não vêem
na esfera pública institucional espaços para a construção de formas de vida minimamente
aceitáveis. Ao discorrer sobre os movimentos contemporâneos, Castells destaca:

uma vez que o espaço público institucional – e o espaço constitucionalmente designado para a deliberação –
está ocupado pelos interesses das elites dominantes e suas redes, os movimentos sociais precisam abrir um
novo espaço público que não se limite a internet, mas se torne visível nos lugares da vida social. É por isso que
ocupam o espaço urbano e os prédios simbólicos. Os espaços ocupados tem desempenhado papel importante
na história da mudança social, assim como na prática contemporânea ( CASTELLS, M. 2013, p. 18).

A esta vida urbana Castells chama de “espaço híbrido”, uma vez que redes virtuais e
espaços públicos ocupados se complementam e interagem na busca por uma autonomia
comunicativa que visa encontrar formas horizontais de decisão e compartilhamento de


23
Foge de nossos objetivos reconstituir estas relações entre arquitetura espetacular, estetização da vida social e
os modelos de empreendedorismo da governança urbana. Mas é valido lembrar de sua ampla fortuna crítica
produzida por David Harvey, Otilia Arantes, Vera Pallamin, Ana Fani A. Carlos, Carlos Vainer entre outros.

6
significados. 26 Este tipo de espaço parece ser comum em diversos contextos sociopolíticos
e é elucidativo para compreender os fenômenos recentes.
Na Espanha, as medidas de austeridade impactaram fortemente os cidadãos. Nos anos
seguintes ao colapso financeiro, o desemprego atinge a casa dos 20% e, entre os jovens,
40%27. Sem conseguir pagar suas hipotecas, muitas famílias perdem suas casas, outras
tantas vêem suas condições de vida se acirrarem. As primeiras mobilizações, que em
meados de 2011 se tornaram massivas, começaram a partir de protestos contra a execução
de despejos em círculos de ativistas do “Plataforma de Afetados pela Hipoteca”, “V de
Vivienda”, bem como em círculos de jovens desempregados como o “Juventude Sem
Futuro” e, ainda, entre os cidadãos inspirados no caso da Islândia, onde alguns meses
antes a população deliberou por não salvar os bancos responsáveis pela crise. Estes
pequenos círculos de cidadãos formam grupos de debates virtuais em blogs e no Facebook.
Em meados de maio escrevem o manifesto Democracia Real Ya pedindo a observância de
direitos básicos – estão destacados moradia, trabalho, saúde, educação – e uma negação
expressa dos imperativos econômicos na gestão da crise. 28 No dia 15 de maio, em
Barcelona 20 mil pessoas vão às ruas, 50 mil pessoas ocupam as principais avenidas de
Madrid, acampam em torno do marco urbano Puerta del Sol e formam suas comissões de
debates, a titulo de compartilhar experiências, qualificar posições e estudar propostas. Mais
de cem cidades espanholas seguiram o exemplo dos então denominados 15-M ( em
menção ao 15 de maio) e em poucos dias um movimento de ocupações e encontros
públicos foi difundido por cerca de 800 cidades do mundo. O diagnóstico dos ativistas era
compartilhado por outras mobilizações que naquele momento tomaram o 15M como
exemplo: a desconfiança em relação à democracia representativa, à forma partido e a
necessidade de abertura de espaços de participação. As saídas, no entanto, não apareciam
com a mesma clareza, dada a amplitude das mudanças necessárias e a multiplicidade dos
grupos envolvidos. Em 2011, a crítica da política institucional e a ausência de saídas
efetivas teve efeito reverso nas eleições parlamentares e o partido mais conservador
ganhou espaços com o descrédito geral, o que levou a mídia a crer que a população em
geral recusava os expedientes dos agora chamados Indignados. O programa de
austeridade se manteve, assim como o nível do desemprego entre os jovens, a parca
reação da economia e o clima de intensa agitação nas cidades. Em 2014 o grupo
denominado Observatório Metropolitano de Madrid, um coletivo hibrido de pesquisas e

26
Cf. Redes de Indignação e Esperança, p. 20, 132, 170-73. Embora as reflexões tenham outro alvo, Saskia
Sassen também refuta a tese segundo a qual meios virtuais substituirão a vida pública e evidencia que tais
meios dependem de um amplo e estruturado aparato de infraestruturas físicas das cidades, no artigo “Escala e
amplitude num mundo digital global.” em: Campo Ampliado da Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2013,
pp.135-142.
27
Esta reconstituição segue as linhas gerais daquelas de Castells em Redes de Indignação e Esperança, pp. 90-
120
28
O Manifesto Democracia Real Ya está disponível em: www.democraciarealya.es/manifiesto-comun

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intervenção urbana, lança na internet um texto cujo titulo é “A Aposta Municipalista – a
democracia começa pelo próximo”; neste os autores reconstituem historicamente as
estratégias e os ônus sociais do modelo de empreendedorismo urbano, mas sobretudo
apostam, como o titulo já evidencia, que a retomada do protagonismo coletivo nas decisões
políticas e a observância dos direitos humanos básicos – o resgate de uma democracia
real – inicia nas instâncias mais imediatas e tangíveis de poder: os municípios.30 É a partir
desta esfera que se constroem formas mais diretas da gestão de bens públicos e de
patrimônio ambiental, além de modelos horizontais de um empreendedorismo ligado ao
tecido local. Para os municipalistas, a democracia não diz respeito apenas à forma de
instituições, mas depende do envolvimento direto, do exercício de uma imaginação política e
de uma disposição ativa para o autogoverno. Com isso, os municipalistas retomam, agora
com um ponto bem concreto e os ânimos bem direcionados, as esperanças do 15M. Por
enquanto, é impossível verificar com sistematicidade se o texto impactou ou foi impactado
por aquela paisagem revolvente, mas nas eleições municipais de 2015 grandes cidades
como Madrid, Barcelona, Zaragoza e La Coruña são eleitas figuras diretamente ligadas a
movimentos por moradia, com pautas levantadas pelas organizações da sociedade civil e
bastante alinhadas ao ideário segundo o qual uma democracia concreta exige uma vida
pública densa e participativa.32
As mobilizações urbanas estadunidenses conhecidas como Occupy foram em grande
medida inspiradas pelos levantes do 15M espanhol; as causas estruturais também eram
parecidas. Quando a crise imobiliária estoura, centenas de milhares não conseguem pagar
suas hipotecas e perdem suas casas, milhões de outras vêem os preços de seus imóveis
despencarem e, sob medidas de austeridade, assistem ao sistema financeiro – os agentes
quase consensualmente reconhecidos como responsáveis pelo detonar da crise – ser
socorrido pelo governo federal. As contradições capitalistas se tornam gritantes. Como
lembra Castells (2013), em 1976 o 1% de pessoas mais ricas concentrava 9% da renda
estadunidense, em 2007 saltou para 23,5%. O crescimento cumulativo de produtividade
entre 1998 e 2008 subiu 30%, mas os salários cresceram nem um 1/10 deste número. Na
década anterior à crise, os salários reais por hora aumentaram 2%, enquanto a renda dos
5% mais ricos aumentou 42%. Em 1980 o salário de um diretor executivo era 50 vezes
maior que o do trabalhador médio, em 2010 era 350 vezes. Estes números ganharam um


30 Nos termos dos autores: “a aposta municipalista compreende uma hipótese que poderíamos resumir da
seguinte maneira: ‘se tomamos as instituições que resultam mais imediatas aos cidadãos, os municípios, e os
convertimos em âmbitos de decisão direta, podemos tornar realidade uma democracia digna de tal nome”.
Observatório Metropolitano. La Apuesta Municipalista -- la democracia empieza por lo cercano. Madrid:
Traficantes de Suenos, 2014, p. 143
32 O fenômeno foi considerado uma virada na política espanhola, amplamente noticiado. Cf. por exemplo,
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/25/internacional/1432510725_227200.html . E também:
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/13/internacional/1434184191_318317.html .

8
rosto concreto nos grandes contingentes de população insubordinada às instituições.
Ativistas digitais de plataformas como AmpedStatus e Anonimous publicizavam muitos
desses fenômenos. Twitter e Facebook reverberavam estes ânimos. Em 13 de julho de
2011, a revista de crítica cultural Adbusters posta em seu blog a seguinte convocação:
#occupywallstreet. O texto no blog conclama o uso das experiências na praça Tahrir e dos
Indignados da Espanha na superação da “empresocracia”, em nome da uma democracia
renovada. Esta foi, lembra Castells, a centelha dos movimentos de protestos que se
seguiram, ocupando Wall Street, Zucotti Park, e depois se difundindo por Chicago, Boston,
Washington, São Francisco, Los Angeles, Nova Orleans, Cleveland, New Jersey entre
outras.
É na chave dos espaços híbridos e da autonomia comunicativa que Castells entende o
movimento Occupy. De acordo com Castells, a forma de existência material do movimento
foi a ocupação do espaço público, “um espaço em que os manifestantes podiam reunir-se e
formar uma comunidade para além de suas diferenças. Um espaço de convivência. Um
espaço de debate”(CASTELLS, M. 2013, p. 132). Esta é, argumenta o sociólogo, a nova
forma de uma cultura de autonomia comunicativa que relança no horizonte a possibilidade
de uma democracia real. Castells defende ainda que “o movimento Occupy construiu uma
nova forma de espaço, uma mistura de espaço de lugares, num determinado território, e
espaço de fluxos, na internet”; e como destaca, “um não conseguia funcionar sem o outro;
esse espaço híbrido é que caracterizava o movimento”(CASTELLS, M. 2013, p. 132).
Castells não se exalta numa visão idealizada do movimento que se esgotou após alguns
meses sem grandes conquistas imediatas. No entanto, não deixa de apontar diversas
contribuições destes fenômenos em termos de experiência de politização e de
empoderamento para os envolvidos, de experimentação de práticas transformadoras e de
injeção de ânimos na cultura urbana das grandes cidades conectadas globalmente.36 Não
por acaso em 2012 a revista October dedica uma edição especial acerca dos impactos do
Occupy no campo das artes e as ocupações se tornam, ainda, tema na Bienal de Berlim e
na exposição Documenta 1337.
Quando David Harvey (2012) analisa o Occupy Wall Street e suas semelhanças com
outros movimentos contemporâneos ocorridos noutras cidades, o geógrafo o compreende
de modo próximo ao de Castells. Harvey salienta que as táticas deste movimento são “tomar
um espaço público central, um parque ou uma praça, próximo à localização de muitos dos
bastiões do poder e, colocando corpos humanos ali, convertê-lo em espaço político de
iguais”( HARVEY, D. 2012, p.60). Esta tática, lembra Harvey, multiplicou-se pela Praça


36
A tese de Castells não é descolada das forças sociais efetivas. Suas teses já figuram, por exemplo, numa publicação
coletiva feita por ativistas. Ativismo no Contexto Urbano – diagnóstico para ação nas cidades. Creative Commons, p. 20
37 Trata-se da October 142, Fall 2012, disponível em: http://www.mitpressjournals.org/toc/octo/-/142 .

9
Tahrir, no Cairo, praça do Sol em Madrid, praça Syntagma em Atenas. Em todas estas a
tática mostra “como o poder coletivo dos corpos no espaço público continua sendo o
instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está
bloqueado”. E neste tom reforça: “a praça Tahrir mostrou ao mundo uma verdade óbvia: são
os corpos na ruas e praças, não o balbucio de sentimentos no Twitter ou Facebook, que
realmente importam.” ( HARVEY, D. 2012, p.61)
Outros destes fenômenos que deslocaram a vida urbana dizem respeito à realidade
brasileira. No país, uma série de mobilizações tomam as ruas ao longo dos anos 2013 e
2014, tendo como causa uma teia complexa de questões sociopolíticas e econômicas das
grandes cidades, entre as quais extraímos apenas duas: o crescimento da cidade seguido
por precarização das condições de vida e a crise de mobilidade. A partir do ano de 2009,
as cidades brasileiras passam por um crescimento bastante significativo, alavancado em
larga medida por programas de crédito do governo federal visando reverter o déficit
habitacional e os sinais locais da crise econômica global. 41 Há uma multiplicação de
arranha-céus, mas o crescimento pautado pelas dinâmicas de mercado, sem medidas
eficazes de controle de preços e de uso do solo, não mitiga o déficit habitacional e, ainda,
acentua a especulação imobiliária, acelera o aumento do valor de aluguéis e do custo de
vida em geral, o que tenciona problemas arraigados ligados à segregação sócio-espacial e
ao próprio déficit habitacional42. Outro problema antigo da cidade acirrado neste período é o
da mobilidade urbana pautada pelo incentivo ao automóvel individual e pela pouca atenção
ao transporte coletivo. Os deslocamentos se tornaram mais sofríveis, abarrotamento de
ônibus e automóveis batem recordes de congestionamento diariamente. O anúncio de
aumento de passagem se torna, não pela primeira vez, estopim das convulsões sociais.43
Protagonizados inicialmente pelo grupo de ativistas chamado Movimento Passe Livre, em
alguns dias os protestos se multiplicam por estratos diversos da sociedade, as ruas das
cidades são tomadas, parando avenidas e ganhando espaço em redes socais e mesmo na
mídia pouco sensível a tais problemáticas. 44 As mobilizações, antes restritas ao Rio de
Janeiro e São Paulo, difundem-se por Brasília, Curitiba, Recife, Florianópolis, Porto Alegre e


41
De acordo com o Ministério das Cidades, em 2012 o déficit habitacional total de São Paulo estava em torno de 470 mil
domicílios.
42
Estima-se que em São Paulo, entre 2009 e 2015, a alta no valor de imóveis gira em torno de 200%; algo evidentemente
muito acima de aumentos salariais e da inflação.( vale conferir em: http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap-b/) Como
destaca a urbanista Ermínia Maricato, “a disputa por terras entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia
levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram expulsos para a periferia da periferia”.
MARICATO, E. “ É a Questão Urbana estúpido”. Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 24. Já há um estudo
mais detido acerca das contradições do programa habitacional em questão em Minha Casa...e a Cidade. org. SANTO
AMORE, Caio [et alii]. Rio de Janeiro: ed. Letra Capital, 2015.
43
Maricato afirma: “ os congestionamentos de tráfego em São Paulo, onde circulam diariamente 5,2 milhões de automóveis,
chegam a atingir 295 quilômetros das vias. A velocidade média dos automóveis em São Paulo, medida entre às 17hs e 20h
em junho de 2012, foi de 7,6km/h, ou seja, quase igual a da caminhada a pé”. Ibidem, p. 25
44
Para uma análise mais detida desta trajetória das mobilizações, vale conferir de JUDENSNAIDER, Elena; ORTELLADO,
Pablo et alii. 20 Centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: ed Veneta, 2013

10
mesmo cidades interioranas45. As insurgências massivas chamam a atenção de autoridades.
A presidente afirma em rede nacional a importância de “ouvir a voz das ruas”, o que, como
lembra Castells (2013), conferiu legitimidade às mobilizações e estimulou dirigentes locais a
reverem o aumento.46 Novamente em rede nacional a presidente afirma que chamará uma
Assembleia Constituinte para deliberar com cidadãos reformas estruturais, tentativa que é
abafada por grupos conservadores diversos – da oposição mas também da base governista,
do Legislativo e do Judiciário.47 Entre junho e julho, as atividades do Legislativo contaram
com o que ficou conhecida como “agenda positiva”: projetos parados há anos foram
analisados com dinamismo pouco comum -- ainda que algum tempo depois a boa vontade
tenha se tornado encenação48. Em São Paulo houve uma reorientação significativa no que
tange ao modelo de mobilidade urbana, visando retomar a importância do transporte
49
coletivo e de formas alternativas de deslocamento . Dirigentes reconhecem que, utilizando
a força da demanda dos movimentos, a Prefeitura conseguiu abrir em seis meses uma
extensão de faixas e corredores exclusivos de ônibus que levaria quatro anos em clima de
realpolitik.50 Nos meses seguintes, as mobilizações reverberam em diversas outras esferas
da opinião pública, como por exemplo a Bienal de Arquitetura de São Paulo, que reservou
espaço privilegiado para cartazes, grafismos e documentário produzidos no calor da hora
51
por integrantes destes levantes. Em 2014 intervenções do Movimento Passe Livre
circulam em outra exposição em São Paulo, esta sobre design gráfico, chamada Cidade
Gráfica52. Pelo menos dois grandes veículos de informação, Jornal Folha de S. Paulo e
Revista Carta Capital, produziram retrospectivas com suas versões dos acontecidos53 ;
pesquisadores da área de comunicação social fizeram balanços sobre a presença dos
fenômenos na opinião pública e as limitações da abordagem midiática. 54 Além disso,
desdobramentos destes fenômenos se tornaram pauta em diversos departamentos


45
Levantamentos afirmam que ocorreram mobilizações em 150 cidades, levaram 1,5 milhão de pessoas às ruas.
46
A edição brasileira de Redes de Indignação e Esperança conta com um posfácio de Castells acerca do caso brasileiro. Cf
pp. 182-186
47
Pouco depois foi publicada uma obra coletiva onde se retoma o percurso histórico da pauta da reforma política e, ainda, a
importância de uma reforma com participação popular efetiva. Cf. RIBAS, Luiz Otávio(org). Constituinte Exclusiva: um
outro sistema político é possível. São Paulo: ed. Expressão Popular, 2014
48
Cf., por exemplo, http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1307596-vitrines-da-agenda-positiva-do-congresso-
estao-no-papel.shtml
49
Cf. http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/03/politica/1388787506_411833.html
50
Cf. entrevista do prefeito Fernando Haddad ao jornal El País, em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/03/politica/1388787506_411833.html
51
Cf. número especial da revista Monolito sobre a X Bienal de São Paulo.ed.17, 2013. Conferir Também COLOSSO,
Paolo. “Uma Bienal como intervenção socioespacial”, disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.081/5197
52
A exposição que contava com o manifesto do Movimento Passe Livre ocorreu no Itaú Cultural Av. Paulista, entre os dias
20 de Novembro de 2014 a 04 de Janeiro de 2015. Disponível em: http://novo.itaucultural.org.br/programe-
se/agenda/evento/cidade-grafica/
53
Cf. documentário “Zerovinte” de Carta Capital e “Junho – o mês que abalou o Brasil” do jornal Folha de S.Paulo.
54
Cf. Vozes Silenciadas – mídia e protestos. São Paulo: Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, 2014

11
universitários de Urbanismo, de Filosofia e Ciências Humanas55 e, ainda, de associações de
classe.56
O sentido de Junho ainda está em disputa, pois agentes sociais o avaliam e utilizam de
modos muito distintos, alguns de modo regressivo. Para os estudos urbanos, o que parece
mais prudente é não idealizá-lo, tampouco esvaziá-lo, mas perceber os vetores formados
nos momentos seguintes. No segundo semestre de 2013 e primeiro de 2014, o clima
político mais propenso à participação social encoraja diversas categorias a expor nas ruas
suas demandas. Ocorrem greves de agentes metroviários, caminhoneiros, agentes de
limpeza urbana. O megaevento da Copa do Mundo 2014, que impulsionou a especulação
imobiliária nas capitais e contou com remoções massivas de habitantes ao redor de
estádios, torna-se mais um estopim para o descontentamento das camadas populares
diretamente impactadas.57 Este é um momento elucidativo para o modelo de urbanismo de
grandes eventos, cujo início remonta à Barcelona, atinge seu ápice em Pequim e chega a
seu momento de verdade nas periferias do globo: a gestão urbana orientada para fazer das
cidades vitrines globais, pólos de ativos transnacionais, alavanca o star system da
arquitetura e as formas especulativas de acúmulo de capital – sobretudo o imobiliário
financeirizado --, mas do ponto de vista do desenvolvimento urbano seu legado é, pra dizer
o mínimo, discutível, senão irracional.58
Em 2014, neste quadro de mobilizações com pautas específicas, uma das categorias se
destaca por seu volume, organização e inteligência em aproximar as redes dos espaços
públicos físicos: a dos trabalhadores sem moradia digna nas cidades. Movimentos sociais já
consolidados levam, seguidas vezes, 15 a 20 mil pessoas às ruas, a acampamentos em
frente à Câmara dos Vereadores de S. Paulo, pressionando o Legislativo na aprovação do
Plano Diretor e o Executivo no pedido de desapropriação de algo em torno de 40 edifícios
ociosos da área central. 59 Estes movimentos constroem também uma pauta clara de
demandas por mudanças nas políticas habitacionais regidas pela iniciativa privada, que são
levadas em seguida ao Executivo Federal. Estes mesmos movimentos desenvolvem canais


55
Conferir conferências do Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia(ANPOF) 2014. Ainda que
os diagnósticos sejam bastante diferentes, vale mencionar as falas dos professores Marcos Nobre e Paulo Arantes.
http://www.anpof.org/portal/index.php/en/2-uncategorised/236-agenda-de-mesas-conferencias-e-homenagens
56
Para ficarmos no exemplo de nosso campo de estudo, é digno de nota a presença destes fenômenos sociais numa recém
fundada Revista do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo( CAU-SP). Já em sua primeira edição, onde a
revista apresenta seu escopo, há duas remissões às mobilizações como um desejo por mudança e por Direito à Cidade. Cf.
p.11 e p.36. Na segunda edição a revista retoma a importância das funções públicas do arquiteto na reorientação do
fenômeno urbano. Apenas nesta edição, há mais duas remissões de professores e intelectuais às ditas mobilizações de junho.
Cf. p.33 e 63.
57 A este respeito, vale conferir JENNINGS, Andrew; ROLNIK, Raquel [et al]. Brasil em Jogo: o que fica da Copa e das

Olimpíadas?São Paulo: ed. Boitempo e Carta Maior, 2014


58
Não é o momento de reconstituir as formas do urbanismo espetacular ligado a um empreendedorismo da governança
urbana, mas é valido lembrar de sua ampla fortuna crítica produzida Harvey, Otilia Arantes, Vera Pallamin, Ana Fani A.
Carlos, Carlos Vainer entre outros.
59
As mobilizações por moradia ganham destaque na mídia nacional. São tidas, em certo veículos, como “novos
protagonistas”. Cf. http://www.cartacapital.com.br/revista/802/os-novos-protagonistas-631.html

12
de comunicação com mídias alternativas – algumas delas também consolidadas depois de
junho –, o que amplia as possibilidades de trabalhos de base.60 Estima-se que o Movimento
de Trabalhadores Sem Teto (MTST) tenha realizado em torno de 60 manifestações em
201461. De 2011-2012 para 2014, o número de ocupações na cidade de São Paulo salta de
257 para 681.62 Ainda nesses ânimos expansivos e conexionistas, em 2015 o movimento
obtém aproximadamente R$40.000,00 por meio do site de financiamento coletivo Catarse.
Diante destes processos, não é difícil perceber o quanto estas relações entre as redes, as
ruas e as plenárias, utilizadas pelos movimentos, conseguem contribuir ativamente para
avançar a agenda urbana.63
Uma literatura recente reforça que a mudança na paisagem urbana – e se quisermos,
nas práticas e representações espaciais – também foi sentida em outras cidades para além
do eixo Rio-São Paulo. Grupos ativistas de Recife, por exemplo, relatam – sem idealizar o
dito junho de 2013 – que estes anos foram de re-encorajamento das lutas sociais ligadas à
cidade. Irrompeu em junho, mas se estendeu por 2014 a luta por participar do projeto
urbano de uma área importante da cidade, chamada Cais Estelita, o que deu nome ao
movimento #OCUPEESTELITA. Tal movimento ficou conhecido por questionar o modelo
corporativo de gestão urbana local, organizar acampamentos com atividades educativas e
culturais diversas e, depois de removidos do antigo Cais, ocupar a Prefeitura local exigindo
diálogo e participação. Não é o momento de reconstituir o percurso deste movimento, mas
apenas lembrar das palavras de alguns de seus idealizadores, para quem o Ocupe Estelita
conseguia “agregar várias bandeiras, muitas delas presentes nas Jornadas de Junho e que
indicavam a necessidade de discutir o poder das instâncias burocráticas tradicionais e
conferindo poder à participação popular”(ANDRADE, É; LINS, L., 2014, p.142). Em seu
contexto argumentativo, a proposição dos ativistas visivelmente não significa um
desfocamento do objeto da mobilização, mas sim um amadurecimento que, ao longo desta,
dá-se conta de que a retomada coletiva do Cais Estelita seria apenas um ponto concreto a
partir do qual desenvolver o desejo de uma cidade socializada e, ainda, de reorientar a
política urbana: “a cidade deveria ser para as pessoas e também pelas pessoas. Nós
estávamos tomando o debate em nossas mãos, estávamos gritando e estávamos criando as

60
Conferir, por exemplo, o artigo de 2014, que conta com a entrevista de um dos coordenadores do MTST a um site de
midia livre. http://outraspalavras.net/blog/2014/08/20/por-que-o-mtst-volta-as-ruas-esta-
tarde/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-mtst-volta-as-ruas-esta-tarde
Neste outro o coordenador vai a uma TV Pública: http://tvbrasil.ebc.com.br/espacopublico/episodio/espaco-publico-recebe-
coordenador-do-mtst-guilherme-boulos
61
Refiro-me a Guilherme Boulos, então por volta de 30 anos, formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Os
dados sobre as mobilizações são de Boulos.
62
O fenômeno é noticiado em grandes veículos: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/197124-invasoes-quase-
triplicam-com-haddad.shtml
63
Ainda em 2014, as mobilizações de junho de 2013 se tornam mote para que amplas camadas da população organizem um
plebiscito informal pedindo uma Constituinte Exclusiva pela Reforma Política, um tema suscitado pelo executivo mas não
levado a cabo.

13
condições de sermos ouvidos. Estávamos mudando o jogo” (ANDRADE, É; LINS, L., 2014,
p.142). As proposições dos ativistas são situadas, mas podem ser generalizadas a estes
movimentos no Brasil e no exterior. Para todos, a densidade da vida urbana se encontra no
momento em que a sociedade civil retoma o destino da cidade, ou se quisermos, o momento
de reapropriação da cidade por seus cidadãos.
Tais fenômenos recentes, internacionais e brasileiros, deslocaram as dinâmicas do
espaço público, utilizando o amplo aparato tecnológico virtual das redes de volta às ruas,
trazendo novamente à cena – e à cultura urbana oficial – questões ligadas ao chamado
Direito à Cidade e, ainda, marcando a nítida diferença entre um espaço público daqueles do
Junkspace.66 Estes eventos são sinais fortes de que, quando o regime de produção do
espaço deixa grandes contingentes de cidadãos aquém de condições dignas de
sobrevivência e às margens das decisões coletivas, dos bens públicos da cidade e de
direitos básicos – isto é característico do urbanismo enquanto espaço para negócios – , em
algum momento os consensos públicos são rompidos. A cidade se torna, então, um
território em disputa. Tais fenômenos mostram, além disso, que nas questões das cidades –
o modo como são concebidas, vividas e produzidas – as contradições socioespaciais
contemporâneas se tornam mais tangíveis aos cidadãos que nela padecem. Isto significa
que as práticas crítico-transformadoras encontram na cidade um ponto de partida mais
concreto e um impulso mais efetivo. Estas mediações ficarão mais claras quando tratarmos
das formulações do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre acerca do fenômeno urbano.
Se nos anos 1990 as representações espaciais conferiam tônica à apatia, à passividade
e ao esvaziamento dos espaços públicos, bem como sua dissolução nas fronteiras da
sociedade globalizada de informação e consumo, o fim dos anos 2000 assistem a uma
reviravolta de ânimos. Obviamente, o espaço social deste período recente não supera nem
substitui o anterior, mas abre neste algumas lacunas, estabelece contrafluxos, gera
impulsos que têm a cidade e os espaços públicos como lugares por excelência da
realização do desejo por dignidade e da luta por efetivar direitos. Nesta espacialidade,
portanto, as forças de neutralização, flexibilização e desregulamentação convivem com
cidadania ativa e empoderamento de novos agentes, seguidos de esforços criativos e
experimentações sociais, alguns efetivos de imediato, outros nem tanto, mas cuja extensão
ainda é difícil avaliar. A “terra de ninguém” de Jameson e o “Junkspace” de Koolhaas
ainda podem ser categorias operativas, mas a moldura perceptiva e os limites da práxis de
outrora estão sensivelmente esgarçados. Se antes o centro da agenda era a ausência de


66
Ainda que não esteja no escopo deste trabalho fazer uma pesquisa exaustiva deste ponto, vale alguns exemplos que
indicam a presença do “Direito à Cidade” como ideia-força dos movimentos urbanos. Esta aparece, por exemplo, nos relatos
de ativistas de Junho: potência das ruas e das redes, páginas 122, 136, 158 e 162. Esteve presente na Bienal de São Paulo.
Presente também na segunda edição da Revista Móbile, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, nas páginas
32, 53 e 55.

14
dissensos e o bloqueio de horizontes, nas atuais condições socioespaciais o mais premente
é dar sentido aos vetores múltiplos das cidades, o que inclui voltar a projetar coletivamente
formas de vida urbana mais racionais e livres.

3) Lefebvre: o urbano como lugar do encontro e do político


A pergunta que se deve fazer de saída neste tópico é: por que retomar o pensamento de
Henri Lefebvre acerca do fenômeno urbano? A chave analítica aqui defendida é a de que as
análises lefebvrianas fazem um diagnóstico preciso das forças hegemônicas na produção do
espaço na sociedade moderna capitalista do último quarto do século XX e, de quebra,
conseguem evidenciar com mais clareza um duplo aspecto do espaço socialmente
produzido. Dito em termos concretos, com Lefebvre fica mais claro que o espaço social
funciona como força peso no ajustamento dos comportamentos cotidianos e lugar da
reprodução das relações sociais, mas também como ponto de irrupção dos
transbordamentos movidos pelos desejos e lutas por uma reapropriação do próprio tempo-
espaço, por participação nas decisões do destino coletivo e pelo direito a gozar dos meios
socialmente produzidos. 67Além disso, em tempos de inquietação social como os atuais o
pensamento de Lefebvre fornece um quadro explicativo no qual os pólos das contradições
urbanas ficam mais compreensíveis do que na “hiperretórica” de Koolhaas e Jameson68.
Contradições da modernização capitalista em escala global – em termos geopolíticos
mas também em termos de avanço sobre o cotidiano – já foram em grande medida
mapeadas pelo filósofo francês, quando o autor reflete sobre o que chama de “sociedade
burocrática de consumo dirigida”. 69 Para Lefebvre ( [1968b] 1991), os avanços técnico-
produtivos não levaram a uma sociedade livre e democrática, como se esperava no
programa moderno, mas sim a uma urbanização concentradora, num quadro formado por
três grandes vetores: trabalho estranhado, lazeres apassivados e vida privada atomizada.70
No mundo do trabalho, às classes dominantes cabe os privilégios do controle e da extração
de excedentes, mas muita vez trabalhos tediosos com os quais não se identificam. Às
classes trabalhadoras permanece o trabalho explorado, subjugado, no qual se esvaem suas

67
O texto onde Lefebvre desvela o papel do Estado, do cotidiano e do Espaço na reprodução das relações sociais está em
“Estrutura social: A reprodução das relações sociais”. In: Sociologia e Sociedade. org. de MARTINS e FORACHI. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977, pp. 219-252.
68
Empresto o termo que David Harvey usa para caracterizar o pensamento impactante de autores como Paul Virilio, Jean
Baudrillard e mesmo Jameson, no qual a crítica radical risca se perder da multiplicidade da realidade social. Afirma Harvey
sobre a hiperretórica: “apesar de seu brilho, também perde o domínio da realidade que busca representar e da linguagem que
poderia ser usada adequadamente para representá-la em seus escritos mais multiformes”. A Condição pós-moderna, Trad. de
Adail Ubirajara Sobral e Maria S. Gonçalves. São Paulo: Ed. Loyola, 2011, p.316.
69
Esta é uma expressão de Lefebvre, utilizada em textos diversos, mas sua definição mais detida se encontra em A Vida
Cotidiana no Mundo Moderno. Trad. Alcides J. de Barros. São Paulo: ed. Ática, 1991, pp. 53-68 e, ainda, pp.77-119
70
Lefebvre trata destas formas expandidas de alienação no primeiro volume da Critica da Vida Cotidiana. E como lembra o
autor, os elementos desta tríade tem de ser compreendidos conjuntamente: “O lazer, o trabalho e a ‘vida privada’ constituem
assim um conjunto dialético, uma estrutura global. Através desta estrutura global se restitui uma figura historicamente real do
homem e do humano a um certo grau de se desenvolvimento: a um certo estágio da alienação e desalienação”.
LEFEBVRE,H.(1947) Critique da le Vie Quotidienne I – Introduction. Paris: ed. Syllepse, 1999, p.49

15
forças vitais e cujos resultados lhes são extraídos. Como contra-face ao mundo do trabalho,
os avanços técnicos propiciam lazeres feitos de prazeres compensatórios e também
domesticadores – seja na satisfação de necessidades criadas pelo consumo, seja na
interiorização das narrativas dos mass media. Soma-se a este binário uma vida atomizada
em torno da família nuclear, assentada sob a manutenção dos valores burgueses, da
dominação masculina e da separação em relação à vida social. Por isto, a vida privada é,
para ou autor, também privada de realidade – a consciência não se lança sobre o mundo
mas dobra-se em si mesma71. Com a difusão de uma espetacularização pelo cotidiano e
pelas esferas da vida social, avança-se portanto o próprio regimento da vida privada.
Em termos espaciais, a dita “sociedade burocrática de consumo dirigida” assiste a uma
urbanização desigual, que traz as marcas destes processos sociais mais gerais e revela
contradições próprias ao espaço. Por um lado uma centralidade que concentra
infraestruturas, ativos e os poderes de decisão, portanto espaços privilegiados. Por outro
lado, multiplicam-se por meio de uma segregação socioespacial os grupos de cidadãos
excluídos das benesses deste regime excludente de produção do espaço. E obviamente
esta segregação tem impactos imediatos na vida cotidiana destes indivíduos e grupos, ou
melhor, no modo como habitam, experimentam e acessam o espaço urbano. Disto se
entende, por exemplo, a atual luta dos sem teto pela observância do direito social à
moradia, bem como o desejo da população lançada às margens distantes da metrópole por
acessar e mover-se com dignidade pela cidade. Entende-se ainda que estes direitos não
ocorrerão senão com o impulso por participar nos espaços de decisão.
O diagnóstico de Lefebvre, cuja atualidade é inegável, revela com agudez o
rebaixamento das condições de existência social e o papel destas formas de alienação – no
trabalho, nos lazeres, na vida privada e através do espaço – na reprodução das relações
sociais. Por outro lado, tal diagnóstico assume também que na realidade social objetivada
há a possibilidade de superação deste quadro de regressões. Dito de outro modo, neste
diagnóstico está previsto que indivíduos podem se tornar coletivamente sujeitos de seu
destino social na medida em que se reapropriarem de seu espaço, tempo e desejos. Estes
são, obviamente, momentos privilegiados, impulsionados por uma vontade emancipatória de
transbordamento subjetivo ligado ao desejo de transformação social, isto é, trata-se de
explorar os possíveis num alargamento das subjetividades, na instauração de outras
racionalidades, o que inclui necessariamente outras formas de sociabilidade. A jouissance,
ou se quisermos, o gozo ou deleite, é substância volitiva capaz de evidenciar – por contraste
– o esvaziamento anterior e orientar o desejo por estes avanços. Com estes elementos,


71
Estes são termos usados pelo autor: “é uma vida privada: privada de realidade, de ligações com o mundo – uma vida na
qual todo o humano é estrangeiro – esta do individuo constituído de tendências individualistas(...) sua consciência, em vez de
se ampliar e conquistar o mundo, dobra-se em si mesma, retrai-se”. Cf. ibidem, p. 157

16
forma-se um novo momento-quadro mais generoso e dinâmico de criatividade social. Noutro
artigo será propício reconstituir e lembrar que tais formulações lefebvrianas são escritas no
momento efervescente e turbulento do anos 1960, mas por ora basta mencionar que
associações muito próximas das de Lefebvre – na medida em que liberação subjetiva passa
por transformações sociais – figuram sintetizadas no urbanismo poético-político do
Movimento da Internacional Situacionista: une autre ville pour une autre vie 72 . Os
situacionistas captaram, pode-se dizer, que o ímpeto vanguardista de changer la vie incluía
intrinsecamente uma crítica radical e uma participação no espaço social no qual se vive.
Desnecessário lembrar que os situacionistas mantiveram um diálogo rico e tensionado com
Lefebvre.
Para Lefebvre ([1970] 2008), este quadro onde a modernização pode retomar seu sentido
tem uma forma social: a do fenômeno urbano ou sociedade urbana.73 Isto porque a cidade é
a obra coletiva na qual historicamente se concentraram pessoas, infraestruturas e bens –
valor de uso e valor de troca. A forma social do fenômeno urbano é a da centralidade, do
encontro, da simultaneidade e da dinamicidade descentralizada, portanto nesta se dá
também a intensificação das interações sociais, extensão de conexões e ampliação dos
conflitos e dos contatos. 74
Outro ponto importante para esclarecer as dinâmicas urbanas recentes. Para Lefebvre
([1970] 2008) o urbano é o nível mais imediato a partir do qual os sujeitos coletivos podem
participar das decisões e saídas compartilhadas e, no limite, escolher por tomarem para si o
destino de suas vidas e um projeto de sociedade urbana, livre e efetivamente democrática.
É nestes termos que Lefebvre fundamenta as formulações em torno do Direito à Cidade:

a estrutura social está presente na cidade, é aí que ela se torna sensível, é aí que significa uma ordem.
Inversamente, a cidade é um pedaço do conjunto social; revela porque as contem e incorpora na matéria
sensível, as instituições, as ideologias(...) em seu nível específico, a cidade contém assim a projeção dessas
relações.( [1968a] 1991, p. 60)

Talvez, os agentes sociais que mais vivenciaram estas mediações – ainda que não se
reportem teoricamente a Lefebvre – tenham sido os “municipalistas” do Observatório
Metropolitano de Madrid. E não é exagero dizer que, em alguma medida, este impulso de


72
Este é, como se sabe, o título de um dos textos onde fica clara a ligação entre liberação subjetiva e transformacão social por
meio da participação nas cidades. Cf. a tradução em português na coletânea de Paola Berenstein. Apologia da Deriva. Trad.
de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, pp.114-117
73
Sobre a urbanização como sentido para industrialização, vale conferir por exemplo A Vida Cotidiana no Mundo Moderno
p.55 e também O Direito à Cidade, p. 80, mas também p. 138
74
cf. por exemplo, LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade, p. 79: “As relações sociais continuam a se tornar mais complexas, a
se multiplicar, a se intensificar através das contradições mais dolorosas. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber a
simultaneidade e o encontro não podem desaparecer(…) ao mesmo tempo que lugar de encontros, convergência das
comunicações e das informações, o urbano se torna aquilo que ele sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente,
sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível”.

17
fazer da cidade o ponto de partida para efetivação de uma democracia real povoa o
imaginário dos Indignados espanhóis, dos Occupy estadunidenses e passa também pelo
dos levantes por mobilidade e moradia digna das cidades brasileiras. Em todos, o impulso
mais urgente e inicial é ocupar ruas e praças simbólicas, mobilizar as redes e pressionar os
centros de decisão no intuito de torná-los mais abertos à realidade dos cidadãos. Como
lembra Lefebvre, a cidade é um “plano especifico” mas também funciona como “mediação
privilegiada”([1968a] 1991, p.61) para mapear a estrutura social.
Não se deve, obviamente, achar que um resgate tout court do pensamento do filósofo
francês dá conta de compreender as minúcias e peculiaridades dos processos sociais mais
recentes. Não encontraremos em Lefebvre uma teoria sobre as conexões entre as redes e
as ruas, ainda que a forma urbana lefebvriana já preveja a intensificação das comunicações.
Além disso, é bom ter em conta que no momento histórico pós-utópico um arcabouço
teórico com tal carga de impulso emancipatório pode ser recebido com desconfiança.
Todavia, parece inegável que suas formulações críticas a respeito da sociedade burocrática
de consumo dirigida, intrinsecamente ligada a uma produção concentradora e segregadora
do espaço, trazem ganhos epistemológicos significativos para compreendermos as práticas
e representações dos últimos anos.

Considerações

O que se argumenta neste artigo é que a espacialidade contemporânea é marcada por


continuidades e descontinuidades em relação àquela dos anos 1990. Espectros pós-
urbanos de uma “terra de ninguém” – onde as fronteiras entre projetos privados e públicos
se dissolvem – ainda estão presentes, mas não sem dissensos. Com a ida do modelo de
empreendedorismo urbano às periferias do globo, suas fraturas ficaram à mostra e seu
momento de verdade se perdera: a limpeza social tem de ser mais extensa,76 os gastos
faraônicos são dificilmente justificáveis, a arquitetura espetacular é desarrazoada – não só
do ponto de vista de seus contorcionismos formais. Não por acaso o Rio de Janeiro sediou e
sediará dois grandes eventos, mas sem o Guggenheim submarino de Jean Nouvel. Não por
acaso a administração pública de Estocolmo, um dos redutos do Welfare State, desiste com
amplo apoio de sua candidatura aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 e opta por investir
em moradias. Pelo menos nos meios mais atentos, o rosto público deste tipo de ação
urbana já se mostrou uma fantasia restrita aos centros de decisão e poder descolados da


76
Literatura recente estima que a Copa no Rio desalojou mais de 60 mil pessoas. Cf:
http://www.brasildefato.com.br/node/32555. Outra análise de cunho sociológico acerca dos efeitos dos megaeventos está em
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; GAFFREY, Christopher (org). Brasil: o impacto da Copa de 2014 e das Olimpíadas de
2016. Rio de Janeiro: e-papers/Observatório das Metrópoles, 2015

18
realidade urbana. Há sim nestas representações e práticas espaciais uma continuidade em
relação àquelas dos anos 1990, mas elas são claramente situadas. Se nas cidades-negócio
ainda proliferam modulações do Junkspace, isto ocorre sem seu lastro de racionalidade
estratégica.
Do ponto de vista das descontinuidades, é fato que os espaços do Junkspace não são a
última atividade pública remanescente. São espaços, sim, de reprodução passiva das
formas hegemônicas de valoração, racionalidade e sociabilidade, extensões da vida privada
já há tempos espetacularizada. Se quisermos usar os termos de Lefebvre, são espaços de
reprodução das relações sociais. Muito distintos dos espaços do Junkspace, atualmente os
espaços públicos de alta densidade passam pelo campo do político, enquanto espaços de
cidadania ativa, de luta por reconhecimento e por redistribuição, de desejo coletivo por
participação em saídas partilhadas, de demanda pelo acesso às e uso das cidades. Há
portanto uma distinção evidente entre público e privado e, com isso, uma superação da
confusão epistemológica gerada nos tempos em que os espaços shopping figuravam como
atividade pública.
Portanto, convivem na espacialidade contemporânea espectros de uma sociedade “pós-
urbana”, mas também as potencialidades de uma sociedade propriamente urbana, nos
termos de Lefebvre ([1970] 2008). Esta volta da vida urbana às ruas, às praças, às plenárias
e suas recentes articulações com as redes virtuais obviamente não transforma apenas as
representações espaciais mas também suas práticas. Os agentes que vivenciaram este tipo
de cidadania e participação na vida urbana são marcados em intensidades diversas.
Aqueles dotados de espírito insurrecional um tanto jovem o vêem como um momento
histórico, aqueles dotados dos mesmos impulsos mas já calejados pelas frustrações
históricas vêem a espacialidade com prudência – o que é bem vindo sobretudo em nosso
contexto, onde as forças regressivas também se mostram fortes. Mas parece que o
deslocamento de uma avaliação a outra depende também das práticas das quais participam
os agentes que refletem sobre estas condições e possibilidades. Por isto, a extensão das
continuidades e das descontinuidades está por se efetivar, uma vez que se trata aqui do
presente cujo sentido ainda está em jogo.

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