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João Lemos

Se e como poderá
uma obra de arte
ser bela
Acerca das condições de possibilidade da
noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo
de Immanuel Kant

Hermeneutica Kantiana
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João Lemos

Se e como poderá
uma obra de arte
ser bela
Acerca das condições de possibilidade da
noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo
de Immanuel Kant
Agradecimentos

Devemos iniciar este texto com uma palavra de agradecimento à Sr.ª


Professora Doutora Nuria Sánchez Madrid. Foi ela quem – lado-a-lado
com o Sr. Professor Roberto R. Aramayo, a quem também agradecemos –
possibilitou a sua publicação.
Trata-se da tese de doutoramento que apresentámos à Faculdade de
Letras da Universidade do Porto e que a Sr.ª Professora Doutora Maria
Filomena Molder e o Sr. Professor Doutor Diogo Pires Aurélio tiveram a
amabilidade de avaliar. A ambos agradecemos as valiosas apreciações.
Para a sua realização teve especial importância o financiamento
concedido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob a forma de
uma bolsa de doutoramento. O Instituto de Filosofia da Universidade do
Porto disponibilizou todas as outras condições para que a investigação
se desenrolasse.
Endereçamos um agradecimento especial à Sr.ª Professora Doutora
Maria Eugénia Morais Vilela, que orientou a maior parte da investigação
e da escrita deste trabalho. Enquanto coordenadora do grupo de
investigação Estética, Política e Artes, a Sr.ª Professora Eugénia Vilela
igualmente promoveu um diálogo cuja influência sobre os conteúdos aqui
disponibilizados não pode ser subvalorizada.
Agradecemos também ao Sr. Professor Doutor Adélio da Costa Melo,
responsável pela orientação inicial. Foi com a ajuda do Sr. Professor
Adélio Melo que as nossas questões começaram a tomar forma.
O Sr. Professor Doutor Paulo Jorge Delgado Pereira Tunhas fez muito
mais do que aquilo que era exigível ou expectável. Foi o responsável pela
orientação final desta tese – com entusiasmo e dedicação. Destina-se ao
Sr. Professor Paulo Tunhas o nosso último agradecimento.
Índice

NOTA INTRODUTÓRIA ....................................................................... 5


INTRODUÇÃO ...................................................................................... 8
CAPÍTULO I: JUÍZO DE GOSTO ....................................................... 22
1. Juízo estético reflexivo .................................................................. 22
1.1 Juízo estético ........................................................................... 22
1.2. Juízo estético dos sentidos ...................................................... 26
1.3. Princípio da faculdade do juízo .............................................. 30
1.4. A beleza apraz no simples julgamento .................................... 39
1.5. Princípio da conformidade a fins formal da natureza .............. 45
1.6. Ideia do supra-sensível como conceito de um fundamento
do princípio da conformidade a fins formal da natureza ................ 58
2. Juízo estético universalmente válido a priori ................................ 60
2.1. Enquadramento ....................................................................... 60
2.2. Supra-sensível como fundamento da validade universal
a priori do juízo de gosto .............................................................. 65
2.3. O que significa um juízo de gosto ser universalmente
válido a priori? .............................................................................. 67
2.4. Necessidade e sensus communis ............................................. 71
2.5. Necessidade subjectiva, necessidade e validade exemplares,
voz universal ................................................................................. 77
2.6. Justificação do sentido comum ............................................... 78
2.7. Um princípio........................................................................... 80
ÍNDICE

2.8. Juízo erróneo .......................................................................... 82


CAPÍTULO II: ARTE ........................................................................... 89
1. Juízo através do qual se declara artístico um objecto ..................... 89
1.1. Obra de arte ............................................................................ 89
1.2. Representação de uma conformidade a fins objectiva
interna............................................................................................ 92
1.3. Possibilidade de falar-se de bela arte ..................................... 96
2. Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte .................. 98
2.1. Impossibilidade de falar-se de bela arte ................................. 98
2.2. Perfeições ............................................................................. 100
2.3. Beleza aderente e juízo de gosto aplicado ............................. 102
2.4. Juízo estético logicamente condicionado .............................. 104
2.5. Beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado ...... 106
2.6. Não pode falar-se de bela arte .............................................. 108
CAPÍTULO III: BELA ARTE ............................................................ 115
1. Belas obras de arte ....................................................................... 115
1.1. Obras de arte livremente declaradas belas ............................ 115
1.2. A noção de bela arte segundo os §44-§46 da Crítica da
Faculdade do Juízo ..................................................................... 118
2. Génio, ideia estética, expressão de ideias estéticas e referência
do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao
princípio da conformidade a fins formal da natureza ....................... 123
2.1. Génio .................................................................................... 123
2.2. Ideia estética ......................................................................... 128
2.3. Expressão de ideias estéticas ................................................ 139
ÍNDICE

2.4. Referência do juízo através do qual se declara bela uma


obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da
natureza ....................................................................................... 153
3. Forma .......................................................................................... 159
3.1. Conformidade a fins da forma .............................................. 159
3.2. Figura ................................................................................... 163
3.3. Jogo ...................................................................................... 166
3.4. Da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura
ao “Terceiro momento do juízo de gosto” da Crítica da
Faculdade do Juízo ..................................................................... 172
3.5. Vários Elementos.................................................................. 179
3.6. Forma e expressão ................................................................ 182
3.7. Importância da forma no sentimento do sublime .................. 187
4. Beleza aderente como beleza ....................................................... 194
4.1. Beleza da arte como beleza aderente .................................... 194
4.2. Beleza da arte como beleza livre .......................................... 210
4.3. Gostos ................................................................................... 218
CAPÍTULO IV: PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE ............... 232
1. Educação do génio ....................................................................... 232
2. Cultivo, exercitamento e correcção do gosto ............................... 244
CONCLUSÃO .................................................................................... 264
BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 274
ANEXOS ............................................................................................ 283
Nota Introdutória

A obra que motiva esta tese de doutoramento é a Kritik der Urteilskraft,


de Immanuel Kant, originalmente escrita em Alemão. A nossa tese é
escrita em Português e dirigida a leitores do Português. Por esta razão,
sempre que citamos passagens da Kritik der Urteilskraft, utilizamos uma
tradução portuguesa; por aquela outra, é recorrente transcrevermos o texto
original quando fazemos uma citação. Numa tese em que as citações
aparecem com grande frequência, cremos ser esta a metodologia mais
adequada para que o leitor acompanhe, em continuidade, o raciocínio que
aí é desenhado.
Igualmente considerando a possibilidade de acompanhamento, em
continuidade, do raciocínio desenhado nesta tese, devemos assinalar que,
em cada citação, optamos por transcrever do original apenas as partes
especialmente relevantes para o assunto que estamos a abordar no

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

momento em que a citação é feita. Nuns casos, essa opção resulta na


transcrição da totalidade da passagem; noutros, não. É nossa opinião que
tal contribui para que a leitura não seja perturbada por transcrições.
Importa também indicar que não deixamos de proceder a reorganizações
gramaticais sempre que fazê-lo se afigura relevante.
A edição da Kritik der Urteilskraft que utilizamos para transcrever as
palavras de Kant, em Língua Alemã, é a da Preußische Akademie der
Wissenschaften. No que diz respeito à ortografia, citamos o texto dessa
edição adaptando-o à escrita actual, posterior à Rechschreibreform de
1996 – desde logo, escrevemos “Urteilskraft”, não “Urtheilskraft”.
A tradução a que recorremos para citar a Kritik der Urteilskraft em
Português é a realizada por António Marques e Valério Rohden e editada
em 1998 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Mantemo-la
exactamente como está publicada, incluindo aquilo de que discordamos e
aquilo que consideramos serem gralhas. Sempre que nos parece pertinente
alterar ou simplesmente comentar a tradução de uma palavra ou passagem,
acrescentamos uma nota de rodapé.
No que concerne à primeira Einleitung à Kritik der Urteilskraft,
utilizamos a tradução realizada por Rubens Rodrigues Torres Filho.
Quando a citamos, mantemos as opções do tradutor – por exemplo, a
tradução de “Urteilskraft” por “Juízo”. No entanto, em nenhum outro caso
submetemos a nossa escrita a essas opções – usamos a expressão
“faculdade do juízo”, por exemplo.
Passagens de comentadores da obra de Kant ou passagens de outros
filósofos são por nós citadas em Português. Nos casos em que utilizamos
traduções portuguesas dos textos desses autores, limitamo-nos a
transcrever os excertos tal como estão escritos nessas traduções; naqueles
em que apenas lemos os textos na língua estrangeira em que originalmente
são escritos ou noutra língua estrangeira, traduzimo-los, sob nossa
responsabilidade, para Português.
Sempre que citamos um comentário no qual é citada uma passagem da
Kritik der Urteilskraft, a passagem do texto de Kant é por nós transcrita
segundo a tradução portuguesa supramencionada. Fazêmo-lo para

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NOTA INTRODUTÓRIA

proporcionar ao leitor da nossa tese uma mais rápida localização da


passagem citada no comentário.
Ainda no que diz respeito a comentadores da obra de Kant ou a outros
filósofos, é de assinalar que referimos, na Bibliografia, escritos que ao
longo do nosso texto não são mencionados. Consideramos que uma tese
de doutoramento pode ser um meio para partilhar referências
bibliográficas relativas ao assunto por ela abordado.
Finalmente, uma nota relativa à maneira como citamos diferentes
títulos presentes na Crítica da Faculdade do Juízo. A terceira Crítica
mereceu pelo menos um prólogo, duas introduções, duas partes, duas
secções, duas divisões, dois livros, vários apêndices, várias observações –
com diferentes estatutos entre si na hierarquia dos títulos presentes na
obra, tal como acontece com os apêndices – e quatro momentos – cada um
com a sua explicação. De forma a evitarmos eventuais mal-entendidos na
leitura do nosso texto decorrentes de um grafismo variado, optamos por
citar os referidos títulos do modo que se apresenta no anexo “1. Títulos”.

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Introdução

A questão central que conduz esta investigação é a de saber se e como


poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo,
de Immanuel Kant. 1 Por outras palavras: pretendemos saber se e sob que
condições será legítimo usar-se a expressão bela arte no âmbito da terceira
Crítica. A partir da resposta a essa questão, responderemos igualmente à

1
Não problematizaremos, na nossa tese, propostas de distinção entre Kraft e
Vermögen ou, mais especificamente, entre Urteilskraft e Vermögen zu urteilen. Note-
se, a este propósito, que, no §35, Kant identifica essas duas expressões,
nomeadamente ao afirmar que «[a] condição subjectiva de todos os juízos é a própria
faculdade de julgar ou a faculdade do juízo ([d]ie subjektive Bedingung aller Urteile
ist das Vermögen zu urteilen selbst, oder die Urteilskraft)» (Kant, 1998: 188).
Seguimos a opção dos responsáveis pela tradução portuguesa por nós usada para fazer
citações – traduzir “Kritik der Urteilskraft” por “Crítica da Faculdade do Juízo”. Tal
opção não terá qualquer influência sobre a questão de saber se e como poderá falar-se
de bela arte.

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INTRODUÇÃO

questão de saber o que será necessário para a produção de bela arte, isto
é, para a produção de belas obras de arte.
Embora de um modo intermitente, e numas vezes mais explicitamente
do que noutras, a noção de bela arte (schöne Kunst) é uma noção que
atravessa toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” da Crítica da
Faculdade do Juízo.2 Assim, no §14, Kant menciona explicitamente
«belas-artes (schöne Künste)» (Kant, 1998: 115); no §16, cita objectos
artísticos como sendo belos (cf. Kant, 1998: 120-121); no parágrafo
seguinte (§17) acerca do ideal da beleza, o nosso autor escreve uma nota
sobre aquele que ele virá a dizer tratar-se do talento para a produção de
objectos belos, a saber, o génio (cf. Kant, 1998: 268); mais à frente, na
“Observação geral sobre a primeira secção da analítica”, usando «parques,
decoração de aposentos, toda a espécie de utensílios de bom gosto, etc»
como exemplos, tal, de resto, como «o gosto inglês por jardins» ou «o
gosto barroco por móveis», Kant sublinha uma actividade que, como
posteriormente veremos, é indispensável à bela arte, a saber, o «jogo livre
das faculdades de representação» (Kant, 1998: 134); no §32, a propósito
da primeira peculiaridade do juízo de gosto, Kant, embora sem utilizar a
palavra génio, procede a uma primeira explicação daquilo pelo qual, como
mostraremos, esse talento precisa de ser acompanhado para que se
produzam obras de arte belas (cf. Kant, 1998: 183-185); dez parágrafos
depois, no §42, ele utiliza as expressões «belo da arte (Schöne der Kunst)»

2
Na tradução portuguesa por nós usada para fazer citações, a expressão “schöne
Kunst” é traduzida não apenas por “bela arte”, mas também por “arte bela”. Não
sabemos o que terá motivado essa opção. Não vemos nela qualquer problema, porém.
Aliás, na medida em que pelo menos não contribui para a assunção da possibilidade
de falar-se de bela arte enquanto algo independente do que seja a beleza e do que seja
a arte – bela arte que, nesse caso, estaria materializada nas obras das chamadas belas-
artes, das schöne Künste, das fine arts, mesmo que essa designação nada tivesse a ver
com o que seja a beleza ou a arte – a expressão “arte bela” poderá ajudar a ver a
relevância da questão de saber se a arte pode ser bela, se a beleza pode ser artística.
Devemos ressalvar, no entanto, que a emergência dessa pergunta em nada depende de
uma tradução de “schöne Kunst” por “arte bela”. Por essa razão – e porque, de facto,
Kant escreve unicamente “schöne Kunst” – tenderemos a usar a expressão “bela arte”
para traduzi-la.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(Kant, 1998: 201), «beleza da arte (Kunstschönheit)» (Kant, 1998: 202) e


«bela arte (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 204); e, nos §44-§53, procede a
uma descrição directa da bela arte e de tudo o que esta envolve, como é
indiciado pelos títulos dos parágrafos respectivos (cf. Kant, 1998: 208-
237); na primeira observação ao §57, Kant refere o «padrão de medida
àquela conformidade a fins estética porém incondicionada na arte bela
(schöne Kunst)» (Kant, 1998: 252); no parágrafo que se segue (§58) o
nosso autor aborda o «princípio do idealismo da conformidade a fins» na
«arte bela (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 259); finalmente, no último
parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant dá-nos
indicações quer sobre a «maneira», quer sobre a «propedêutica» à «bela
arte (schöne Kunst)» (cf. Kant, 1998: 264-266). Antes de tudo isso, no
Prólogo à primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant faz
referência «ao belo e ao sublime da natureza ou da arte (das Schöne und
Erhabne der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 48); na Primeira
Introdução, cita a «beleza artística (Kunstschönheit)» (Kant, 1995: 91); e,
na Introdução, menciona o prazer no belo associando-o quer à natureza,
quer à arte.3
O facto de a noção de bela arte atravessar a “Crítica da Faculdade de
Juízo Estética” poderia ser encarado como razão suficiente para não se
inquirir acerca da sua legitimidade. Em nosso entender, porém, parece
haver, no interior da terceira Crítica, um conflito entre, por um lado, as
exigências que um juízo – que se pretende de gosto – tem de satisfazer

3
Primeiro, Kant fala de um prazer cujo fundamento «se encontra na condição
universal, ainda que subjectiva, dos juízos reflexivos, nomeadamente na concordância
conforme a fins de um objecto (seja produto da natureza ou da arte (er sei Product der
Natur oder der Kunst)) com a relação das faculdades de conhecimento entre si, as
quais são exigidas para todo o conhecimento empírico (da faculdade de imaginação e
do entendimento)» (Kant, 1998: 76); seguidamente, assinala a «receptividade de um
prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas (da natureza, assim como da arte
(der Natur sowohl als der Kunst))» (Kant, 1998: 77); entretanto, na secção IX, o nosso
autor indica que «o juízo estético» que ocasiona o «conceito da faculdade do juízo de
uma conformidade a fins da natureza» refere-se a objectos «da natureza ou da arte
(der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 83).

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INTRODUÇÃO

para que, através dele, um objecto – natural ou não – seja declarado belo
e, por outro lado, as exigências que um juízo – que também se pretende de
gosto – tem de satisfazer para que, através dele, uma obra de arte
(Kunstwerk) seja declarada bela (schön). Esse conflito faz com que a
possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela através daquilo que
Kant define como juízo de gosto (Geschmacksurteil) seja por nós
questionada. Estão em causa o significado e a legitimidade da noção de
bela arte. Na nossa indagação, tornaremos explícito o referido conflito e
verificaremos se e como poderá uma obra de arte ser considerada bela –
por outras palavras: se e como poderá falar-se de bela arte.
No “Capítulo I: Juízo de Gosto”, elencaremos os critérios através dos
quais algo é declarado belo, as exigências que um juízo tem de satisfazer
para que através dele se declare belo um objecto, as características do juízo
de gosto. Em primeiro lugar, caracterizá-lo-emos como um juízo estético
reflexivo (ästhetisches Reflexionsurteil). Fá-lo-emos na primeira secção,
“Juízo estético reflexivo”. Seguidamente, na secção “Juízo estético
universalmente válido a priori”, apresentaremos a argumentação de Kant
no sentido de caracterizá-lo como um juízo estético universalmente válido
a priori (allgemeingültig a priori).
Ao caracterizá-lo como um juízo estético reflexivo, necessariamente o
distinguimos de duas espécies de juízos que de modo breve também
caracterizaremos: o juízo acerca do agradável (das Angenehme), juízo
estético não reflexivo, juízo estético dos sentidos, e o juízo acerca do bom
(das Gute), que nem sequer é um juízo estético. Na caracterização do juízo
de gosto como juízo estético reflexivo, daremos destaque ao princípio
próprio da faculdade do juízo, a saber, o princípio da conformidade a fins
da natureza para as nossas faculdades de conhecimento (Prinzip der
Zweckmäßigkeit der Natur für unser Erkenntnisvermögen)4:

4
António Marques e Valério Rohden traduzem o termo “Zweckmäßigkeit” por
“conformidade a fins”; Rubens Rodrigues Torres Filho tradu-lo por “finalidade”. A
desvantagem da primeira opção prende-se com a composição da palavra
“conformidade”, que a liga necessariamente à palavra “forma”, sendo que, no
contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, nem toda a conformidade a fins se

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

explicitaremos como a ele se chega, como a faculdade do juízo dá esse


princípio a si própria, e descrevê-lo-emos como uma pressuposição
necessária da faculdade do juízo, mostrando igualmente que ele serve de
princípio para a reflexão (Reflexion), não para a determinação.
Salientaremos que o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento
(Erkenntnisurteil), não se funda em conceitos (Begriffe). Sublinharemos a
afirmação da independência do juízo de gosto relativamente ao conceito
de perfeição (Vollkommenheit). No seguimento desse sublinhado, faremos
emergir a noção de conformidade a fins sem fim (Zweckmäßigkeit ohne
Zweck) e registaremos a possibilidade e as condições de observação de
uma conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de
conhecimento (formalen Zweckmäßigkeit der Natur für unser
Erkenntnisvermögen). Uma tal conformidade a fins é ajuizada por
intermédio do gosto (faculdade de juízo estética) através do sentimento de
prazer no movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades
de conhecimento entre si por ocasião da representação de um objecto. Se,
por ocasião da representação de um objecto, aquele que ajuíza sentir um
prazer num movimento simultaneamente livre e harmónico das suas
faculdades de conhecimento entre si, então ele declarará belo esse objecto.
Por último, assinalaremos que, de acordo com Kant, a representação de
uma conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de
conhecimento não pode ocorrer sem uma referência ao conceito racional
transcendental do supra-sensível (der transzendentale Vernunftbegriff von

relaciona com a forma. A opção por “finalidade”, por seu turno, tem a desvantagem
de o significante não ter qualquer relação com a palavra “forma”, sendo que,
igualmente no âmbito da terceira Crítica, a noção de forma é de importância capital.
Por essa razão, e por uma questão de uniformidade, considerando que a tradução que
utilizamos do texto de Kant (a Kritik der Urteilskraft, com a excepção da primeira
Einleitung) é a efectuada por Marques e Rohden, optaremos por aplicar o termo
“conformidade a fins” para nos referirmos a Zweckmäßigkeit. Mais difícil é a tradução
de “Zweckmäßigkeit” para Língua Inglesa. Nem “purposiveness” nem “finality” são
expressões inteiramente satisfatórias – a primeira, porque não carrega qualquer
referência à forma (form); a segunda, por não envolver referências seja à forma, seja
a fins (ends, purposes).

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INTRODUÇÃO

dem Übersinnlichen). O juízo de gosto (o juízo através do qual se declara


belo um objecto) envolve necessariamente uma referência à ideia do
supra-sensível.
Em última análise, é na referência ao supra-sensível que Kant
considera fazer assentar a validade universal a priori do juízo de gosto.
Por essa razão, depois de enquadrarmos a tentativa encetada por Kant
para providenciar uma dedução transcendental do juízo de gosto,
prosseguiremos a secção “Juízo estético universalmente válido a
priori” com a afirmação dessa referência e da validade do juízo estético
reflexivo. Seguidamente, descreveremos o tipo de necessidade que está
em causa nesse tipo de juízo estético. Nesse contexto, apelaremos à
noção de sentido comum (Gemeinsinn / sensus communis), enquanto
aquilo sobre cuja pressuposição o juízo de gosto assenta a sua
necessidade. Uma tal necessidade é subjectiva mas, segundo Kant, a
priori. Explicitá-la, envolverá uma menção das noções de necessidade
exemplar (exemplarische Notwendigkeit), validade exemplar
(exemplarische Gültigkeit) e voz universal (allgemeine Stimme), assim
como uma justificação do sentido comum como ideia necessária.
Finalmente, em jeito de esclarecimento, defenderemos, em primeiro
lugar, que a recorrência de Kant à conformidade a fins formal da
natureza para as nossas faculdades de conhecimento, ao conceito do
supra-sensível, ao sentido comum e à voz universal, tal resulta não na
afirmação de uma multiplicidade de princípios sobre os quais
assentaria o juízo estético reflexivo, enquanto juízo universalmente
válido a priori, mas numa rede de elementos para tentar legitimar a
validade universal a priori do juízo de gosto; em segundo lugar,
reforçando que proferir um juízo desse tipo é proferir um juízo baseado
no princípio do gosto, igualmente defenderemos que um engano da
parte daquele que ajuíza não coloca em causa a pretensão do juízo de
gosto à validade citada.
No “Capítulo II: Arte”, descreveremos, numa primeira secção, o juízo
através do qual se declara artístico um objecto e, numa segunda secção, o
juízo através do qual se declara belo um objecto artístico.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Assim, na secção “Juízo através do qual se declara artístico um


objecto”, enunciaremos os critérios através dos quais algo é declarado uma
obra de arte, os requisitos indispensáveis à declaração de uma coisa como
artística (künstlich). Fazê-lo corresponde a apresentar as considerações
proferidas por Kant acerca da arte (Kunst), especialmente a partir do §43.
Nesse contexto, assinalaremos o carácter mecânico, coercivo e escolástico
da arte e destacaremos a relação desta com conceitos daquilo que o objecto
deva ser, intenções e regras. 5 Por conseguinte, igualmente destacaremos a
relação do juízo através do qual se declara artístico um objecto com a
representação de uma conformidade a fins objectiva interna (innere
objektive Zweckmäßigkeit), isto é, com a representação de uma perfeição.
Finalmente, não deixaremos de propor que, considerando unicamente a
descrição que Kant dá de arte – e, a partir dessa, aquilo que um juízo tem
de cumprir para através dele se declarar artístico um objecto – o facto de
um objecto ser uma obra de arte não impede que ele seja declarado belo.
No entanto, Kant não se limita a descrever a arte; o nosso autor
igualmente elenca condições para que a arte seja bela. A secção “Juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte” partirá precisamente da
enunciação de um critério que um juízo tem de satisfazer para que através
dele se declare bela uma obra de arte. Confrontado com aquilo que
teremos exposto no “Capítulo I: Juízo de Gosto”, esse critério será por
nós apresentado como causa da indagação que motiva este estudo, a
saber, se e como poderá falar-se de bela arte. Na segunda secção do
“Capítulo II: Arte”, clarificaremos o conflito em jogo – o conflito entre
as condições que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto,
isto é, um juízo através do qual se declara belo um objecto, e os requisitos
que um juízo tem de preencher para que através dele se declare bela uma
obra de arte. A partir dessa clarificação, a questão que nos move pode
adquirir diferentes vestes: Será o juízo através do qual se declara bela
uma obra de arte um juízo de gosto? Será possível declarar-se bela uma

5
Tal envolverá também uma primeira referência explícita às considerações de Kant
acerca da bela arte.

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INTRODUÇÃO

obra de arte através de um juízo de gosto? Poderá ajuizar-se um objecto


artístico através de um juízo de gosto? Poderá uma obra de arte ser bela?
Depois de explicitadas e analisadas, as distinções estabelecidas por Kant
entre perfeição qualitativa (qualitative Vollkommenheit) e perfeição
quantitativa (quantitative Vollkommenheit), no §15, e entre beleza livre
(freie Schönheit / pulchritudo vaga) e beleza aderente (anhängende
Schönheit / pulchritudo adhaerens), ou, equivalentemente, entre puro
juízo de gosto (reines Geschmacksurteil) e juízo de gosto aplicado
(angewandtes Geschmacksurteil), no §16, serão tidas como irrelevantes
para a sustentação de uma resposta afirmativa à questão de saber se
poderá falar-se de bela arte. Igualmente tida como irrelevante para
responder afirmativamente a essa questão será a introdução das noções
de beleza fixada (fixierte Schönheit) e juízo de gosto em parte
intelectualizado (zum Teil intellektuierten Geschmacksurteils), no §17, e
de juízo estético logicamente condicionado (logisch-bedingtes
ästhetiches Urteil), no §48. A própria legitimidade de algumas das noções
mencionadas será questionada. Como consequência dessa explicitação e
análise, estará colocada em causa, de modo reforçado, a legitimidade da
noção de bela arte.
O “Capítulo III: Bela Arte” é o capítulo especificamente dirigido à
legitimação da noção de bela arte. Na sua primeira secção, “Belas obras
de arte”, apresentaremos três razões fornecidas pela Crítica da Faculdade
do Juízo para, apesar do que é concluído no capítulo anterior,
continuarmos a pensar a possibilidade de falar-se de bela arte e as
condições dessa possibilidade. Se as duas primeiras razões a apresentar
poderão ser vistas como insuficientes, sem prejuízo da sua consistência
interna, o mesmo não se passará com a terceira: essa razão torna
incontornável uma investigação renovada acerca das condições de
possibilidade de falar-se de bela arte, sob pena de o texto de Kant carregar
uma contradição: obras de arte podem e não podem ser declaradas belas. 6

6
Se se preferir: obras de arte podem e não podem ser livremente declaradas belas,
objectos artísticos podem e não podem ser declarados belos através de puros juízos de

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

A nova investigação basear-se-á na definição que Kant dá de bela arte


como arte do génio (Kunst des Genies), a partir do §46. Se
compreendermos o que está em causa na arte do génio, compreenderemos
o significado que o nosso autor atribui à noção de bela arte.7 Assim,
iniciaremos a segunda secção, “Génio, ideia estética, expressão de ideias
estéticas e referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de
arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza”, com uma
descrição introdutória da noção de génio (Genie). Tal será feito na
subsecção “Génio”. Na segunda subsecção, “Ideia estética”,
explicitaremos e legitimaremos a noção de ideia estética (ästhetische
Idee). Para a sua legitimação, será indispensável uma referência ao
alargamento das capacidades da faculdade da imaginação enquanto
faculdade produtiva (produktives Vermögen) efectuado na terceira
Crítica. Além disso, abordaremos a relação das ideias estéticas com
conceitos. Essa abordagem será necessária para que se compreenda que,
do ponto de vista de Kant, o exercício da faculdade da imaginação é, no
contexto da arte do génio, um exercício livre. Ora, tendo em conta que um
exercício livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza é uma
conditio sine qua non para o proferimento de um juízo de gosto, mostrar
que, no contexto da arte do génio, a faculdade da imaginação se exerce
livremente revela-se uma etapa indispensável na legitimação da noção de
bela arte. Constituindo uma condição necessária, o exercício livre das
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza não constitui, no entanto,
uma condição suficiente para o proferimento de um juízo de gosto – e, por
conseguinte, para a declaração de uma obra de arte como bela, para a
beleza da arte. Considerando esse facto, passaremos, na subsecção

gosto, pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela,
pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de puros
juízos de gosto.
7
Nos parágrafos imediatamente anteriores, §44 e §45, Kant apresenta definições
explícitas de bela arte. O problema é que, consideradas antes da explicitação do
significado de bela arte como arte do génio, tais definições são simplesmente
contraditórias com aquilo que teremos concluído no segundo capítulo da nossa tese.

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INTRODUÇÃO

“Expressão de ideias estéticas”, a uma primeira enunciação daquilo que


faz com que, no contexto da arte do génio, as faculdades de conhecimento
daquele que ajuíza se disponham num movimento não apenas livre, mas
também harmónico entre si. Será crucial explicitar a noção de espírito
(Geist). Aquilo que o espírito dá ao génio afigurar-se-á, nesse âmbito,
como a razão que faltava para a definição de bela arte como arte do génio
(Kunst des Genies). Finalmente, na subsecção “Referência do juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da
conformidade a fins formal da natureza”, mostraremos como o juízo
através do qual se declara belo um produto do homem – concretamente,
uma obra de arte – é referido ao princípio da conformidade a fins formal
da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Tal implicará um
retorno à importância do supra-sensível na declaração de algo como belo.
Desta feita, porém, o objecto em causa será o objecto artístico. Nesse
retorno, daremos destaque à noção de técnica (Technik), às expressões
como (als) e como se/que (als ob) e à diferença entre ser (sein) e parecer
(scheinen / aussehen).
A possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias
estéticas (Ausdruck ästhetischer Ideen), referida no início do §51, não
apenas contribui para sustentar uma resposta afirmativa à questão de saber
se pode falar-se de bela arte – e, por conseguinte, para a legitimação da
noção de bela arte – mas, além disso, acarreta uma consequência relativa
à importância que Kant dá à forma no concernente ao juízo de gosto:
vários são os elementos a colaborar para o movimento simultaneamente
livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por
ocasião da representação que ele faz de um objecto belo. Considerando o
estatuto da forma na beleza dos objectos, dedicaremos a essa noção uma
secção própria no âmbito da legitimação da noção de bela arte: “Forma”,
terceira secção do “Capítulo III: Bela Arte”. Começaremos por assinalar
que, segundo Kant, o comprazimento no belo está ligado à conformidade
a fins da forma do objecto para as nossas faculdades de conhecimento.
Seguidamente, explicitaremos o que o nosso autor entende por forma
(Form) e aproveitaremos para chamar a atenção para as condições de

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

possibilidade de a matéria (Materie), que atrai, que é agradável, contribuir


para a beleza – ou mesmo ser bela. Reiteraremos, porém, que, de acordo
com Kant, o que no proferimento de um juízo de gosto se considera é a
forma do objecto. Claramente identificada a posição do nosso autor,
procuraremos a sua origem, problematizaremos a sua necessidade e
reafirmaremos a ligação da disposição subjectivamente conforme a fins
das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, por ocasião da
representação que ele faz de um objecto belo, com vários elementos além
da forma, entre eles as ideias estéticas. Não deixaremos, no entanto, de
apresentar uma interpretação de forma que poderá conciliar uma posição
formalista, sugerida em múltiplas passagens da Crítica da Faculdade do
Juízo, com a denominação da beleza como expressão de ideias estéticas,
cuja possibilidade é, como já notámos, afirmada no início do §51. Por
último, uma referência ao sentimento do sublime (das Erhabene).
Enquanto a “Analítica do belo” emerge da possibilidade de representação
de uma conformidade a fins subjectiva a partir da forma de um objecto, a
necessidade da “Analítica do sublime” reside na possibilidade de
ocorrência de um sentimento de prazer universalmente válido numa forma
que, sob um certo ponto de vista, não é conforme a fins, aparecendo
mesmo como contrária a fins. A origem dos dois livros da “Analítica da
faculdade de juízo estética” é, desta perspectiva, diametralmente oposta.
É essa oposição que os torna necessários. Na parte final da secção
“Forma”, mostraremos que a problematização da importância da forma no
juízo de gosto não coloca em causa a importância da forma – ou da
ausência dela – para a ocorrência do sentimento do sublime.
Está feita a introdução às três primeiras secções do “Capítulo III: Bela
Arte”. Em algumas partes dessas secções, falaremos da beleza da arte
como se não fosse a possibilidade de uma tal beleza aquilo que está em
causa na nossa tese. Referir-nos-emos à bela arte suspendendo o excerto
a partir do qual pode alegar-se que a beleza da arte só pode ser uma
beleza aderente. Mencioná-la-emos como se um outro excerto não
colocasse em causa a legitimidade da colocação da beleza aderente no
âmbito da beleza. Falaremos de bela arte como se fosse legítimo falar

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INTRODUÇÃO

de bela arte antes de ser mostrado que a arte pode ser bela, que uma obra
de arte pode ser declarada bela, que pode ajuizar-se um objecto artístico
através de um juízo de gosto. A relevância dessas três secções revelar-
se-á numa quarta, denominada “Beleza aderente como beleza”.
Concretamente, revelar-se-á indispensável termos indicado que o
exercício da faculdade da imaginação pode ser um exercício livre mesmo
que haja consideração de conceitos da parte daquele que ajuíza. A partir
de uma reflexão acerca das várias possibilidades de interpretação do
termo representação (Vorstellung), começaremos por apontar em
relação a que conceito pode, no juízo através do qual se declara bela uma
obra de arte, ser tida em conta uma perfeição. Igualmente indicaremos
que num juízo no qual é considerada uma conformidade a fins objectiva
interna a faculdade da imaginação pode exercer-se livremente e que o
juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não deixa de ser
fundado na observação de uma conformidade a fins subjectiva por
ocasião da representação do objecto artístico. Seguidamente, mediante
uma proposta de interpretação da distinção estabelecida por Kant entre
beleza livre e beleza aderente, que nessa altura recuperaremos, caber-
nos-á defender que e como a última pode ser uma beleza. Também aí
serão consideradas as condições do exercício livre da faculdade da
imaginação. Ora, por intermédio da legitimação da beleza aderente como
espécie de beleza – e, por conseguinte, do juízo de gosto aplicado como
juízo de gosto – será legitimada a noção de bela arte, enquanto arte
condicionadamente declarada bela, enquanto arte declarada bela através
de juízos de gosto aplicados. Poderá falar-se de bela arte.8 É essa
possibilidade que justificaremos na subsecção “Beleza da arte como
beleza aderente”. Não obstante a referida subsecção eliminar algumas
das dificuldades com que nos confrontamos, nem todas são eliminadas
por ela. Se recordarmos a razão principal que apresentamos, na secção
“Belas obras de arte”, para justificar a necessidade de continuarmos a

8
Tal legitimação não será efectuada sem uma consequência para o texto de Kant no
concernente aos requisitos que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

pensar se e como poderá falar-se de bela arte, compreenderemos que a


beleza da arte não pode reduzir-se ao âmbito da beleza aderente. É
indispensável legitimar a noção de bela arte não – ou não apenas – como
arte condicionadamente declarada bela, como arte declarada bela através
de juízos de gosto aplicados, mas – ou mas também – como arte
livremente declarada bela, como arte declarada bela através de puros
juízos de gosto. É isso que faremos na subsecção “Beleza da arte como
beleza livre”. A partir de uma divisão de uma das interpretações
possíveis do termo representação e de uma segunda releitura da
distinção estabelecida por Kant entre beleza livre e beleza aderente,
sustentaremos a possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte
através de um puro juízo de gosto. Assim, defenderemos que objectos
artísticos podem ser condicionadamente declarados belos (declarados
belos através de juízos de gosto aplicados) e podem ser livremente
declarados belos (declarados belos através de puros juízos de gosto).
Afirmaremos, então, que a beleza da arte pode ser uma beleza livre, que
a bela arte pode ser uma arte livremente declarada bela, uma arte
declarada bela através de puros juízos de gosto, que pode falar-se de bela
arte enquanto tal. O que estará em causa será a ligação do conceito
daquilo que o objecto deva ser ao gosto. Nesse contexto, terá de ser
problematizado o significado da noção de gosto (Geschmack) na Crítica
da Faculdade do Juízo. Fá-lo-emos na subsecção “Gostos”. Efectuada
essa problematização e reiterada a possibilidade de falar-se de bela arte
enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto, ficará
respondida a questão central que motivou a nossa investigação.
Legitimada a noção de bela arte, será nossa intenção responder à
questão de saber o que é necessário para a produção de uma tal arte.
Responder-lhe-emos no “Capítulo IV: Para a Produção de Bela Arte”. A
necessidade de respondermos a essa questão prende-se com o facto de, na
Crítica da Faculdade do Juízo, especialmente nos parágrafos
directamente concernentes à bela arte (§44-§53) haver indícios
aparentemente contraditórios quanto ao ou aos talentos requeridos para a
produção de belas obras de arte. O carácter educável do génio e o carácter

20 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


INTRODUÇÃO

cultivável, exercitável e corrigível do gosto constituirão a chave para a


resposta que proporemos.
Começaremos por mencionar as passagens que indiciam contradição.
Iniciaremos a sua resolução apelando a diferenças entre homens que têm
em comum entre si o facto de serem génios – isto é, de serem dotados de
um talento denominado génio. Seguidamente, explicitando o processo de
sucessão entre homens dotados de um tal talento, mostraremos que a sua
posse não é condição suficiente para a produção de objectos artísticos
belos e salientaremos a importância do gosto no contexto da bela arte.
Faremos isso na secção “Educação do génio”.
Na secção “Cultivo, exercitamento e correcção do gosto”, mostraremos
que nem apenas o génio, nem sequer o génio e o gosto, constituem
condição suficiente para a produção de belas obras de arte. Nesse sentido,
elaboraremos uma reflexão acerca da possibilidade e das condições de
desenvolvimento quer do gosto, quer da faculdade do juízo, salientando a
importância das habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas
nesse contexto.9 A produção de objectos artísticos belos revelar-se-á
estreitamente ligada a esse desenvolvimento. Ficará respondida a questão
de saber o que é necessário para a produção de bela arte.

9
Será relevante, nessa altura, fazer uma chamada de atenção para a independência da
validade quer do juízo de gosto, quer do sentimento do sublime, relativamente ao
desenvolvimento da faculdade do juízo.

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Capítulo I: Juízo de Gosto

1. JUÍZO ESTÉTICO REFLEXIVO

1.1 Juízo estético


A questão principal a que a nossa investigação pretende responder é a de
saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte no contexto
da Crítica da Faculdade do Juízo. Para tal, teremos de considerar os
requisitos a cumprir para que um objecto seja declarado belo, assim como
aqueles que são indispensáveis para que uma coisa seja declarada artística.
Começaremos pelos primeiros. Tal implica descrever detalhadamente o
juízo através do qual se declara belo um objecto, o juízo de gosto, juízo
estético reflexivo.

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JUÍZO DE GOSTO

A faculdade de julgamento do belo é o gosto (Geschmack). 10 Os juízos


provenientes do gosto são juízos estéticos. 11 O juízo de gosto
(Geschmacksurteil) é um juízo estético (Ästhetischesurteil). É pela
afirmação segundo a qual o juízo de gosto é estético que iniciaremos a
enunciação das exigências que um juízo tem de satisfazer para que,
através dele, se declare que um objecto é belo. É esse o título do
primeiro parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (cf.
Kant, 1998: 89).
Nesse mesmo parágrafo (§1) depois de afirmar que o juízo de gosto é
estético, Kant assinala, complementarmente, que estético (ästhetisch) é
«aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo
(dasjenige, dessen Bestimmungsgrund nicht anders als subjektiv sein
kann)» (Kant, 1998: 89). Um recuo até à Introdução ajuda-nos a

10
Logo na primeira nota da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, Kant diz que
«[a] definição do gosto ([d]ie Definition des Geschmacks), posta aqui como
fundamento, é de que ele é a faculdade de julgamento do belo (er sei das Vermögen
der Beurteilung des Schönen)» (Kant, 1998: 267). Num comentário a essa nota,
António Marques e Valério Rohden anunciam a tradução de “Urteil” e “Beurteilung”
por “juízo” e “julgamento”, respectivamente. Quando se trata de citações, manteremos
essa distinção. Dela depende, no entender de Donald W. Crawford e de Paul Guyer, a
inteligibilidade da Crítica da Faculdade do Juízo (cf. Crawford, 1974: 71 e Guyer,
1997: 98). Apesar disso, ela não é usada de uma maneira absolutamente coerente ao
longo do texto de Kant. A este propósito, Guyer reconhece, primeiro, que «embora
haja grande evidência para atribuir esta distinção a Kant, ele não lhe manifesta o seu
comprometimento adoptando uma terminologia consistente para a sua expressão» e,
a seguir, que o nosso autor «não sugere que está a introduzir uma distinção em
terminologia técnica (…) nem usa esta terminologia em todos os lugares onde
poderia» (Guyer, 1997: 98). Talvez seja o mesmo reconhecimento aquilo que leva
Marques e Rohden a fazerem equivaler “urteilen” a “julgar”, não a “ajuizar”, quando,
na sua tradução do §35, identificam “das Vermögen zu urteilen selbst” com “a própria
faculdade de julgar” (cf. Kant, 1998: 188). Também nós não deixaremos, em alguns
casos, nos quais se trata da nossa letra, de usar indistintamente os verbos “ajuizar” e
“julgar” e de referir a faculdade de julgamento do belo como “a faculdade através da
qual se ajuíza o belo”. Esta opção resultará apenas numa maior uniformidade
terminológica do nosso texto, não tendo qualquer influência sobre a resposta à questão
de saber se e como poderá falar-se de bela arte.
11
No início do §17, Kant nota que «todo o juízo proveniente desta fonte [isto é, do
gosto] é estético (ästhetisch)» (Kant, 1998: 122).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

compreender o que significa subjectivo (subjektiv). Na secção VII, no


contexto da referência à noção de natureza estética (ästhetische
Beschaffenheit), depois de indicar que essa natureza é «[a]quilo que na
representação de um objecto é meramente subjectivo, isto é aquilo que
constitui a sua relação com o sujeito e não com o objecto ([w]as an der
Vorstellung eines Objekts bloß subjektiv ist, d. i. ihre Beziehung auf das
Subjekt, nicht auf den Gegenstand ausmacht)» (Kant, 1998: 73), Kant
acrescenta que «aquele elemento subjectivo numa representação que não
pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou
desprazer, ligados àquela representação ([d]asjenige Subjektive an einer
Vorstellung, was gar kein Erkenntnisstück werden kann, ist die mit ihr
verbundene Lust oder Unlust)» (Kant, 1998: 74). O fundamento de
determinação do juízo estético – por conseguinte do juízo de gosto – tem
de ser, então, o prazer ou desprazer que se liga à representação do objecto
percepcionado.12
O juízo de gosto não é, porém, a única espécie de juízo estético.
Também o juízo acerca do agradável (das Angenehme) é um juízo
estético.13 Nem no juízo de gosto, nem no juízo acerca do agradável, o
fundamento de determinação é a sensação enquanto sensação objectiva
(objektive Empfindung). Também no caso do juízo acerca do agradável o
fundamento de determinação é o sentimento de prazer ou desprazer que se

12
Esta posição é afirmada desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade
do Juízo. Aí, assinala Kant que «há somente uma única assim chamada sensação
(Empfindung) que jamais pode tornar-se conceito de um objecto, e esta é o sentimento
de prazer e desprazer» (Kant, 1995: 60). O sentimento de prazer é, como continua o
nosso autor, uma sensação «meramente subjetiva (bloß subjektiv), enquanto toda
demais sensação pode ser usada para conhecimento» (Kant, 1995: 60-61). O juízo
estético é «aquele cujo fundamento-de-determinação está em uma sensação que esteja
imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer (dasjenige, dessen
Bestimmungsgrund in einer Empfindung liegt, die mit dem Gefühle der Lust und
Unlust unmittelbar verbunden ist)» (Kant, 1995: 61).
13
Para uma discussão detalhada acerca das afinidades e diferenças entre o agradável
e o objecto do juízo de gosto sugere-se a leitura do texto de David Berger, Kant’s
Aesthetic Theory – The Beautiful and Agreeable (cf. Berger, 2009).

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JUÍZO DE GOSTO

liga à representação do objecto percepcionado.14 Sob este ponto de vista,


há uma comunidade de ambas as espécies de juízo quanto ao respectivo

14
A este propósito é de fazer duas notas. Em primeiro lugar, importa notar que é
preciso evitar aquilo que, no §3, Kant assinala como sendo «uma confusão bem usual
(…) relativamente ao duplo significado que a palavra sensação (Empfindung) pode
ter» (Kant, 1998: 92), a saber, a confusão entre «a representação de uma coisa (pelos
sentidos, como uma receptividade pertencente à faculdade do conhecimento)», em
que «a representação é referida ao objecto (auf das Objekt)», podendo servir para o
conhecimento, caso, por exemplo, da «cor verde dos prados», que, portanto, «pertence
à sensação objectiva (objektive Empfindung), como percepção de um objecto dos
sentidos», e, por outro lado, algo «totalmente diverso», em que «a representação é
referida (…) meramente ao sujeito (auf das Subjekt), e não serve para nenhum
conhecimento, tão pouco para aquele pelo qual o próprio sujeito se conhece» (Kant,
1998: 93). Assim, ainda no mesmo parágrafo, Kant chama «aquilo que sempre tem
que permanecer simplesmente subjectivo, e que absolutamente não pode constituir
nenhuma representação de um objecto (das, was jederzeit bloß subjektiv bleiben muss
und schlechterdings keine Vorstellung eines Gegenstandes ausmachen kann), pelo
nome aliás usual de sentimento (Gefühl)» (Kant, 1998: 93). Trata-se daquilo no qual,
como afirma o nosso autor, logo no §1 da Crítica da Faculdade do Juízo, «o sujeito
se sente a si próprio do modo como ele é afectado pela sensação» (Kant, 1998: 90).
Em segundo lugar é importante notar que a confusão supracitada não equivale a uma
eventual confusão entre o agradável (das Angenehme) e o belo (das Schöne). A
distinção entre sensação (Empfindung) (sensação objectiva (objektive Empfindung)) e
sentimento (Gefühl) (sensação subjectiva (subjektive Empfindung)), e a associação,
errada, do juízo estético acerca do agradável com a primeira, poderia levar a que se
recusasse o facto de qualquer das duas espécies de juízo ser uma subespécie dos juízos
estéticos – e, assim, a distinguir uma da outra erradamente. Tal como o juízo de gosto,
também o juízo através do qual se decide se algo é agradável é, como vemos no §8,
um juízo estético «sobre um objecto simplesmente com respeito à relação da sua
representação com o sentimento de prazer e desprazer (über einen Gegenstand bloß
in Ansehung des Verhältnisses seiner Vorstellung zum Gefühl der Lust und Unlust)»
(Kant, 1998: 102). É certo que, no §3, depois de referir que «[a]gradável é o que apraz
aos sentidos na sensação» (Kant, 1998: 92), Kant acrescenta que «[n]a definição
acima, entendemos (…) pela palavra sensação uma representação objectiva dos
sentidos» (Kant, 1998: 93). No entanto, com isso prevê-se apenas que a representação
da coisa pelos sentidos, a percepção do objecto dos sentidos, a sensação objectiva, a
sensação sensorial, provoque uma outra sensação, subjectiva, o sentimento, que é um
prazer do sujeito e que, por o ser, leva a que ele considere agradável o objecto. Por
essa razão, pode Kant afirmar, como efectivamente afirma, no mesmo parágrafo, que
o agrado da cor verde dos prados «pertence à sensação subjectiva (zur subjektiven
Empfindung), pela qual nenhum objecto é representado: isto é, ao sentimento (zum

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

fundamento de determinação: quer a agradabilidade, quer a beleza, se


fundamentam no sentimento de prazer do sujeito por ocasião da
representação do objecto.15

1.2. Juízo estético dos sentidos


Se aquilo que é comum ao juízo acerca do agradável e ao juízo acerca do
belo (o juízo de gosto) é o facto de ambos serem juízos estéticos, então,
dizer que o segundo é um juízo estético – e, nesse seguimento,
simplesmente caracterizar esta espécie de juízo, o juízo estético – não se
afigura suficiente para dar conta daquilo que torna único o juízo de gosto.
Revela-se indispensável enunciar as diferenças entre os dois tipos de
juízos estéticos.16

Gefühl) pelo qual o objecto é considerado como objecto do comprazimento (o qual


não é nenhum conhecimento do mesmo)» (Kant, 1998: 93-94).
15
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant salvaguarda que
«[p]ela denominação de um juízo estético sobre um objeto, está indicado desde logo
(…) que uma representação dada é referida, por certo, a um objeto, mas, no juízo, não
é entendida a determinação do objeto, mas sim a do sujeito e de seu sentimento»
(Kant, 1995: 59). Quer no juízo de gosto, quer no juízo acerca do agradável, é
entendida não a determinação do objecto, mas, sim, a do sujeito e do seu sentimento.
16
Só enunciando as diferenças entre o juízo acerca do agradável e o juízo de gosto
pode Kant impedir a redução da beleza e do objecto belo, respectivamente, à
agradabilidade e ao objecto agradável. É essa redução que ele considera ser efectuada
por Burke e pelos empiristas. No entender de Kant, a exposição dos juízos estéticos
elaborada por Burke e por «muitos homens perspicazes» é «fisiológica» (Kant, 1998:
176-177). Trata-se de uma exposição do belo «meramente empírica» (Kant, 1998:
177) e que envolve apenas o «reconhecimento de leis empíricas das mudanças do
ânimo» (Kant, 1998: 178). No contexto daquilo a que Kant chama o «empirismo da
crítica do gosto», o gosto «sempre julga segundo fundamentos de determinação
empíricos, que são dados a posteriori pelos sentidos» (Kant, 1998: 254-255). Ora,
Kant pretende mostrar que o gosto julga «a partir de um fundamento a priori» (Kant,
1998: 255), sendo que, para tal, ele considera necessário elaborar uma «exposição
transcendental dos juízos estéticos» (Kant, 1998: 176). A propósito da emergência
dessa necessidade, de resto, podemos afirmar que ela evidencia um distanciamento do
nosso autor em relação à posição por si mesmo defendida na Crítica da Razão Pura e
por ocasião da qual ele censura o uso que Baumgarten faz do termo estética. De acordo
com o que está escrito na primeira Crítica, as «regras ou critérios» do julgamento do
belo «são apenas empíricos quanto às suas fontes principais e nunca podem servir para

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JUÍZO DE GOSTO

Não obstante ser um juízo estético, o juízo acerca do agradável faz


parte daquela espécie de juízo que Kant designa por juízo estético dos
sentidos (ästhetisches Sinnesurteil) (cf. Kant, 1995: 60, 61, 63 e 66 e
Kant, 1998: 244). Um juízo dessa espécie, embora não seja um juízo
de conhecimento (Erkenntnisurteil), igualmente não é um juízo
reflexivo (Reflexionsurteil) (cf. Kant, 1995: 66). Apesar de num juízo
estético dos sentidos também haver referência da representação ao
sentimento de prazer e desprazer, essa referência não é feita mediante
a faculdade do juízo e o seu princípio. 17 O juízo estético dos sentidos
apenas se ocupa «com a proporção das representações ao sentido
interno (mit dem Verhältnis der Vorstellungen zum innern Sinne), na
medida em que este é sentimento» (Kant, 1995: 63), nada mais

leis determinadas a priori, pelas quais se devesse guiar o gosto dos juízos» (Kant,
2001: 62), sendo essa a razão para que deva reservar-se para a doutrina da estética
transcendental o termo mencionado ou simplesmente prescindir dele. No entanto, se,
como Kant pretende, a terceira Crítica mostrar que o juízo de gosto – subespécie do
juízo estético – se fundamenta num princípio a priori, então o uso do termo estética
deixará de limitar-se à doutrina da estética transcendental. São alterações como esta
que servem de ocasião para Maria Filomena Molder chamar a atenção para o «modo
admirável como Kant desenvolve novas interpretações e implicações no que respeita
a conceitos que forjaram o nó central da primeira Crítica e se constituíram
imediatamente como autêntica herança, por exemplo, o conceito de estética enquanto
estética transcendental» (Molder, 2007: 377). Como continua a intérprete, «[é] de
lembrar, aliás, que em toda a Crítica da Faculdade de Julgar o termo “estética”, e não
é de mais sublinhá-lo, determinado como transcendental (a expressão é “a estética
transcendental da faculdade de julgar”) seja utilizado uma única vez, na “Observação
geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, e que estético apareça sempre
como qualificação» (Molder, 2007: 377-378). O fim da redução do termo estética à
doutrina da estética transcendental não significa, porém, que Kant passe a estar de
acordo com Baumgarten, para quem a beleza é «a perfeição do conhecimento sensível
enquanto tal» (Baumgarten, 1988: 11). No entender de Kant, a beleza não é uma
perfeição – o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento. Assim, como, na
Primeira Introdução, ele explicitamente reitera: «não pode haver uma estética do
sentimento como ciência» (Kant, 1995: 58).
17
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «um
juízo-de-sentidos estético (…) refere uma representação dada (mas não por intermédio
do Juízo e de seu princípio (nicht vermittelst der Urteilskraft und ihrem Prinzip)) ao
sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

contendo «do que a proporção da representação ao sentimento (sem


mediação de um princípio-de-conhecimento) (das Verhältnis der
Vorstellung zum Gefühl (ohne Vermittelung eines
Erkenntnisprinzips))» (Kant, 1995: 66). Não é pressuposta, nesta
espécie de juízo, qualquer «comparação da representação com as
faculdades-de-conhecimento que atuam unificadas no Juízo» (Kant,
1995: 61). O que há num juízo estético dos sentidos – por conseguinte,
num juízo acerca do agradável – é uma vinculação imediata da
sensação produzida pela intuição empírica do objecto com o
sentimento de prazer e desprazer. 18 Não obstante ser um juízo estético,
o juízo acerca do agradável é, então, um juízo estético material
(materiales ästhetisches Urteil), um juízo empírico (empirisches
Urteil), um juízo dos sentidos (Sinnenurteil).19

18
Continuando a recorrer à Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo,
devemos salientar que, no caso do juízo estético dos sentidos, «o predicado exprime
a referência de uma representação imediatamente ao sentimento de prazer, e não à
faculdade-de-conhecimento (nicht aufs Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1995: 60). Esta
espécie de juízo estético «absolutamente não se refere à faculdade-de-conhecimento
(sich gar nicht aufs Erkenntnisvermögen bezieht), mas imediatamente, através do
sentido, ao sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61). No juízo estético dos sentidos, a
«sensação que [está] imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e
desprazer» é «aquela sensação que é imediatamente produzida pela intuição empírica
do objecto (welche von der empirischen Anschauung des Gegenstandes unmittelbar
hervorgebracht wird)» (Kant, 1995: 61), sendo esta a razão pela qual um tal juízo
pertence «ao campo meramente empírico (bloß empirisches Fach)» (Kant, 1995: 66).
Mas a singularidade do juízo estético dos sentidos não é assinalada apenas na Primeira
Introdução; ela é sublinhada ao longo de toda a “Crítica da Faculdade de Juízo
Estética” – vejam-se, por exemplo, o §4, no qual Kant afirma que o agradável «assenta
inteiramente na sensação (beruht ganz auf der Empfindung)» (Kant, 1998: 94), o §8,
onde o nosso autor denomina o gosto do juízo estético sobre o agradável «gosto dos
sentidos (Sinnen-Geschmack)» (Kant, 1998: 102), a investigação que ocupa o §9, na
qual Kant caracteriza o prazer do agradável como «simples agrado na sensação
sensorial (bloße Annehmlichkeit in der Sinnenempfindung)» (Kant, 1998: 105), ou,
finalmente, o §39, onde o nosso autor lhe chama «prazer do gozo (Lust des Genusses)»
(Kant, 1998: 193).
19
Kant indica-o no início do §14: «Juízos estéticos podem, assim como os teóricos
(lógicos), ser divididos em empíricos e puros (empirische und reine). Os primeiros
são os que afirmam agrado ou desagrado (Annehmlichkeit oder Unannehmlichkeit),

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JUÍZO DE GOSTO

No caso de aquilo a considerar como fundamento determinante do


juízo estético ser o que meramente atrai, então esse juízo estético será
não um juízo de gosto, mas um juízo estético acerca do agradável. 20
Assentando inteiramente na sensação, o agradável carrega um desejo
(Begierde) relativamente ao objecto. O sujeito não se limita a sentir
prazer; o objecto deleita-o (vergnügt ihn). Através das impressões dos
sentidos passa a haver um interesse (Interesse) no objecto, um
comprazimento na sua existência (ein Wohlgefallen an dem Dasein),
um prazer na sua existência (eine Lust an der Existenz). 21 O agradável

os segundos os que afirmam beleza de um objecto ou do modo de representação do


mesmo (Schönheit von einem Gegenstande, oder von der Vorstellungsart desselben);
aqueles são juízos dos sentidos (juízos estéticos materiais) (Sinnenurteile (materiale
ästhetische Urteile)), estes (como formais (als formale)) unicamente autênticos juízos
de gosto (allein eigentliche Geschmacksurteile)» (Kant, 1998: 113). Nesta passagem,
além de descrever o juízo acerca do agradável, Kant isola o juízo através do qual se
declara belo um objecto (o juízo estético puro, o juízo estético formal) como único
tipo de juízo de gosto autêntico.
20
São várias as passagens em que Kant salienta os efeitos sofridos pelo juízo estético
no caso de se fundar esse juízo naquilo que meramente atrai. Citemos algumas dessas
passagens: «um juízo de gosto é puro somente na medida em que nenhum
comprazimento meramente empírico (kein bloß empirisches Wohlgefallen) é
misturado (beigemischt wird) ao fundamento de determinação do mesmo. Isto porém
ocorre todas as vezes em que atractivo (Reiz) ou comoção (Rührung) tem uma
participação (einen Anteil haben) no juízo pelo qual algo deve ser declarado belo»
(Kant, 1998: 113-114); «eles [isto é, os atractivos] prejudicam efectivamente (tun
wirklich dem Geschmacksurteile Abbruch) o juízo de gosto, se chamam a atenção
sobre si como fundamentos do julgamento da beleza» (Kant, 1998: 115); «se o próprio
ornamento (Zierrat) não consiste na forma bela, e se ele é como a moldura dourada,
adequado simplesmente para recomendar, pelo seu atractivo (durch seinen Reiz), o
quadro ao aplauso (Beifall), então chama-se adorno (Schmuck) e rompe com a
autêntica beleza (tut der echten Schönheit Abbruch)» (Kant, 1998: 116).
21
Citemos a definição que, no §2, Kant dá de interesse: «Chama-se interesse ao
comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto (Interesse
wird das Wohlgefallen gennant, was wir mit der Vorstellung der Existenz eines
Gegenstandes verbinden)» (Kant, 1998: 91). Ter um interesse em algo significa obter
prazer a partir da existência dessa coisa. Quando há interesse, há uma referência à
faculdade da apetição (eine Beziehung auf das Begehrungsvermögen): quer-se (que
exista) o objecto a partir (da existência) do qual se obtém prazer. Ora, o título do §3
assinala precisamente que «[o] comprazimento no agradável é ligado a interesse

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

gera inclinação. 22 Pois bem, se aquele que ajuíza está sujeito à


inclinação, se ele sofre a influência de um interesse empírico, nesse
caso, o seu juízo não será um juízo livre – como Kant afirma, no §5, os
objectos da inclinação (die Gegenstände der Neigung)
não nos deixam nenhuma liberdade (lassen uns keine Freiheit) para fazer
de qualquer coisa um objecto de prazer para nós mesmos. Todo o
interesse pressupõe necessidade ou a produz (setzt Bedürfnis voraus,
oder bringt eines hervor); e, enquanto fundamento determinante da
aprovação, ele já não deixa o juízo sobre o objecto ser livre (lässt es das
Urteil über den Gegenstand nicht mehr frei sein) (Kant, 1998: 97-98).
Envolvendo um comprazimento na existência do objecto, envolvendo um
interesse empírico na coisa, o juízo acerca do agradável torna o sujeito
passivo e, assim, compromete a sua liberdade e imparcialidade.

1.3. Princípio da faculdade do juízo


Diferentemente do juízo acerca do agradável, o juízo de gosto é um juízo
estético reflexivo (ein ästhetisches Reflexionsurteil).23 Um juízo reflexivo
é um juízo no qual se ajuíza segundo o princípio da faculdade do juízo,
isto é, segundo o princípio da faculdade do juízo enquanto faculdade de
conhecimento superior (Prinzip der Urteilskraft, als obern
Erkenntnisvermögens). Embora o princípio em causa seja, como veremos,

([d]as Wohlgefallen am Angenehmen ist mit Interesse verbunden)» (Kant, 1998: 92);
e dois parágrafos a seguir, no §5, Kant justifica a sua afirmação ao referir que no caso
do agradável, assim, de resto, como no caso do bom (das Gute), «[n]ão simplesmente
o objecto apraz, mas também a sua existência ([n]icht bloß der Gegenstand, sondern
auch die Existenz desselben gefällt)» (Kant, 1998: 96-97).
22
Kant chama a atenção para o facto de que «do agradável não se diz apenas: ele apraz
(es gefällt), mas: ele deleita (es vergnügt). Não é uma simples aprovação (ein bloßer
Beifall) que lhe dedico, mas através dele é gerada inclinação (Neigung)» (Kant, 1998:
94). Há, como o nosso autor refere, desta feita no §5, «um comprazimento
patologicamente condicionado (por estímulos) (ein pathologisch-bedingtes (durch
Anreize, stimulos) Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 96).
23
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «os
juízos-de-reflexão estéticos (die ästhetischen Reflexionsurteile)» futuramente serão
desmembrados «sob o nome de juízos de gosto (Geschmacksurteile)» (Kant, 1995:
77).

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JUÍZO DE GOSTO

«um princípio simplesmente subjectivo (einem bloß subjektiven Grunde)»


(Kant, 1998: 77), ele é, igualmente, «um princípio transcendental da
faculdade do juízo (ein transzendentales Prinzip der Urteilskraft)» (Kant,
1998: 64), um «princípio transcendental (transzendentaler Grundsatz)»
colocado «como princípio inteiramente a priori (zum Grunde völlig a
priori)» pela faculdade do juízo (Kant, 1998: 79).
A apresentação do princípio da faculdade do juízo é feita por Kant na
Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo.24 Como sabemos, pela
Crítica da Razão Pura, e como o nosso autor sublinha, na terceira Crítica,
«a natureza em geral (como objecto dos sentidos) não pode ser pensada»
sem «as leis universais» (Kant, 1998: 66).25 Essas leis universais
«assentam em categorias, aplicadas às condições formais de toda a nossa
intuição possível, na medida em que esta é de igual modo dada a priori»

24
Será sem demasiadas preocupações concernentes à importância desse princípio para
o sistema kantiano que reproduziremos como a ele Kant chega. Comungamos da tese
de Eva Schaper, segundo a qual «[m]esmo que Kant igualmente tivesse outros e
maiores fins sistemáticos em mente quando escreveu a terceira Crítica, eles podem
ser guardados na retaguarda e a sua inteligibilidade deixada indecidida enquanto
assuntos pertinentes para a estética estiverem a ser considerados» (Schaper, 2007:
368). Para um estudo acerca da influência que a descoberta do princípio da faculdade
do juízo poderá ter sobre o sistema da filosofia crítico-transcendental de Kant, sugere-
se a leitura do texto de Marques, Organismo e Sistema em Kant – ensaio sobre o
sistema crítico kantiano (cf. Marques, 1987), assim como “A Terceira Crítica como
Culminação da Filosofia Transcendental Kantiana”, que o mesmo autor escreve para
prefaciar a tradução da Kritik der Urteilskraft que ele próprio e Rohden realizaram
(cf. Marques, 1998), e o artigo “Do Estético ao Teleológico: a colecção de objectos
naturais”, de Maria Filomena Molder, no qual é sugerida «uma alteração no próprio
projecto transcendental» (Molder, 1981: 228). O artigo “La Crítica del Juicio a sólo
dos años de la Crítica de la Razón Práctica”, de José Gómez Caffarena, aborda o
mesmo assunto mas a partir de uma incidência especial na história da terceira Crítica
(cf. Caffarena, 1992).
25
Se quisermos recorrer directamente à Crítica da Razão Pura, recordaremos que
«[p]or natureza (em sentido empírico), entendemos o encadeamento dos fenómenos,
quanto à sua existência, segundo regras necessárias, isto é, segundo leis» e que «[h]á
pois certas leis e, precisamente, leis a priori, que, antes de mais, tornam possível uma
natureza» (Kant, 2001: 236). De resto, ainda na primeira Crítica, Kant afirmará, mais
simplesmente, que se dá «o nome de natureza» ao «encadeamento de fenómenos que
se determinam necessariamente uns aos outros por leis universais» (Kant, 2001: 411).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

e são «algo de necessário (…) para a natureza em geral (como objecto de


experiência possível)» (Kant, 1998: 66).26 Assim, continuará Kant, «o
entendimento possui a priori leis universais da natureza, sem as quais esta
não seria de modo nenhum objecto de uma experiência» (Kant, 1998:
68).27 Sabemos, além disso, que as «leis transcendentais universais dadas
pelo entendimento (…) só dizem respeito à possibilidade de uma natureza
em geral (como objecto dos sentidos)» (Kant, 1998: 60).28 Pois bem, na
Crítica da Faculdade do Juízo, Kant chama a atenção para o facto de que
existem tantas formas múltiplas da natureza, como se fossem outras
tantas modificações dos conceitos da natureza universais e
transcendentais que serão deixados indeterminados por aquelas leis (…)
que para tal multiplicidade têm que existir leis (Gesetze) (Kant, 1998:
60).29

26
Note-se, recorrendo, de novo, às palavras da Crítica da Razão Pura, que o
entendimento realiza «a unidade da apercepção a priori apenas mediante as
categorias» (Kant, 2001: 145) e que a natureza «como objecto do conhecimento numa
experiência, com tudo o que pode conter, é apenas possível na unidade da apercepção»
(Kant, 2001: 169).
27
O nosso autor reforça-o mais à frente: «é só através dessas leis que obtemos um
conceito daquilo que é o conhecimento das coisas (da natureza) e que elas pertencem
necessariamente à natureza como objecto do nosso conhecimento» (Kant, 1998: 71).
28
Desde logo na primeira Crítica, Kant ressalva que «a capacidade do entendimento
puro de prescrever leis a priori aos fenómenos, mediante simples categorias, não
chega para prescrever mais leis do que aquelas em que assenta a natureza em geral,
considerada como conformidade dos fenómenos às leis no espaço e no tempo. Leis
particulares, porque se referem a fenómenos empiricamente determinados, não podem
derivar-se integralmente das categorias, embora no seu conjunto lhes estejam todas
sujeitas» (Kant, 2001: 168).
29
As palavras citadas são da secção IV da Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo.
O nosso autor repete a argumentação, com mais detalhe, na secção V: «naturezas
especificamente diferentes, para além daquilo que em comum as torna pertencentes à
natureza em geral, podem ainda ser causa de infinitas maneiras», sendo que «cada
uma dessas maneiras tem que possuir (segundo o conceito de uma causa em geral) a
sua regra, que é lei, e por conseguinte acarreta consigo necessidade, ainda que nós, de
acordo com a constituição e os limites das nossas faculdades de conhecimento, de
modo nenhum descortinamos esta necessidade»; ora, tal implica «pensar na natureza
uma possibilidade de uma multiplicidade sem fim de leis empíricas, em relação às
suas leis simplesmente empíricas, leis que no entanto são contingentes para a nossa

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JUÍZO DE GOSTO

Essas leis, «enquanto empíricas, podem ser contingentes, segundo a nossa


perspiciência intelectual» (Kant, 1998: 60-61), mas
se merecem o nome de leis (Gesetze) (como também é exigido pelo
conceito de uma natureza), têm que ser consideradas necessárias (als
notwendig) e provenientes de um princípio da unidade do múltiplo
(Prinzip der Einheit des Mannigfaltigen), ainda que desconhecido (wenn
gleich uns unbekannten) (Kant, 1998: 61).30
Para fundamentar «a unidade de todos os princípios empíricos sob outros
igualmente empíricos, mas superiores e por isso fundamentar a
possibilidade da subordinação sistemática dos mesmos entre si», a
faculdade do juízo «precisa de um princípio que ela não pode retirar da
experiência (eines Prinzips, welches sie nicht von der Erfahrung entlehnen
kann)» (Kant, 1998: 62).31 Ora, segundo Kant, o princípio em causa

perspiciência (não podem ser conhecidas a priori)» (Kant, 1998: 66). Assim, além de
possuir a priori leis universais da natureza, o entendimento «necessita também de uma
certa ordem da natureza nas regras particulares da mesma, as quais para ele só
empiricamente podem ser conhecidas e que em relação às suas são contingentes»
(Kant, 1998: 68). Essas regras particulares, «sem as quais não haveria qualquer
progressão da analogia universal de uma experiência possível em geral para a analogia
particular, tem o entendimento que pensá-las como leis (isto é como necessárias),
porque doutro modo não constituiriam qualquer ordem da natureza, ainda que ele não
conheça a sua necessidade ou jamais a pudesse descortinar» (Kant, 1998: 68).
30
Novamente, as palavras citadas são da secção IV da Introdução. Na secção V,
Kant refere que «uma tal unidade tem que ser necessariamente pressuposta e
admitida, pois de outro modo não existiria qualquer articulação completa de
conhecimentos empíricos para um todo da experiência, na medida em que na
verdade as leis da natureza universais sugerem uma tal articulação entre as coisas
segundo o seu género, como coisas da natureza em geral, mas não de forma
específica, como seres da natureza particulares» (Kant, 1998: 67). Assim, como
continua o nosso autor, «a faculdade do juízo terá que admitir a priori como
princípio que aquilo que é contingente para a perspiciência humana nas leis da
natureza particulares (empíricas), contém mesmo assim para nós uma unidade
legítima, não para ser sondada, mas pensável na ligação do seu múltiplo para uma
experiência em si possível» (Kant, 1998: 67).
31
Assinale-se, neste contexto, que «só a faculdade de juízo reflexiva (nur die
reflektierende Urteilskraft) pode dar a si mesma um tal princípio como lei e não retirá-
lo de outro lugar (porque então seria faculdade de juízo determinante (bestimmende
Urteilskraft))» (Kant, 1998: 62). Logo no início da secção IV, Kant afirma que «[a]

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

não pode ser senão este: assim como as leis universais têm o seu
fundamento no nosso entendimento, que as prescreve à natureza (ainda
que somente segundo o conceito universal dela como natureza) assim
têm as leis empíricas particulares, a respeito daquilo que nelas é deixado
indeterminado por aquelas leis, que ser consideradas segundo uma tal
unidade, como se (als ob) igualmente um entendimento (ainda que não
o nosso) as tivesse dado em favor da nossa faculdade de conhecimento
(zum Behuf unserer Erkenntnisvermögen), para tornar possível um
sistema de experiência segundo leis da natureza particulares (Kant, 1998:
63).32

faculdade de juízo determinante, sob leis transcendentais universais dadas pelo


entendimento, somente subsume; a lei é-lhe indicada a priori ([d]ie bestimmende
Urteilskraft unter allgemeinen transzendentalen Gesetzen, die der Verstand gibt, ist
nur subsumierend; das Gesetz ist ihr a priori vorgezeichnet) e por isso não sente
necessidade de pensar uma lei para si mesma, de modo a poder subordinar o particular
na natureza ao universal» (Kant, 1998: 60). A faculdade de juízo determinante «nada
mais faz do que subsumir em leis dadas (hat nichts zu tun, als unter gegebenen
Gesetzen zu subsumieren)» (Kant, 1998: 66). Só a faculdade de juízo reflexiva «tem
a obrigação de elevar-se do particular na natureza ao universal (von dem Besondern
in der Natur zum Allgemeinen aufzusteigen die Obliegenheit hat)» (Kant, 1998: 61-
62), por isso só ela «sente necessidade de pensar uma lei para si mesma (hat nötig, für
sich selbst auf ein Gesetz zu denken)» (Kant, 1998: 60) e só ela a «pode dar a si mesma
(kann sich nur selbst geben)» (Kant, 1998: 62).
32
Considerando que «a unidade» – reforça o nosso autor, na secção V – «é
representada como conformidade a fins dos objectos (aqui da natureza), a faculdade
do juízo, que no que diz respeito às coisas sob leis empíricas possíveis (ainda por
descobrir) é simplesmente reflexiva, tem que pensar a natureza relativamente àquelas
leis, segundo um princípio da conformidade a fins para a nossa faculdade do juízo
(nach einem Prinzip der Zweckmäßigkeit für unser Erkenntnisvermögen)» (Kant,
1998: 67). É de ressalvar, entretanto, que, na passagem citada, Kant escreve
“Erkenntnisvermögen”, não “Urteilskraft”. A faculdade do juízo tem de pensar a
natureza segundo um princípio da conformidade a fins para a nossa faculdade de
conhecimento. Trata-se do «princípio da conformidade a fins da natureza (na
multiplicidade das suas leis empíricas) (Prinzip der Zweckmäßigkeit der Natur (in der
Mannigfaltigkeit ihrer empirischen Gesetze))» (Kant, 1998: 64), como Kant lhe tinha
chamado no início da referida secção. Ainda na secção V, o nosso autor descreve-o
como «o princípio da conformidade a fins [da natureza] para a nossa faculdade de
conhecimento (Prinzip der Zweckmäßigkeit für unser Erkenntnisvermögen), isto é
para a adequação ao nosso entendimento humano na sua necessária actividade, que
consiste em encontrar o universal para o particular, que a percepção lhe oferece e por
sua vez em encontrar a conexão na unidade do princípio para aquilo que é diverso (na

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JUÍZO DE GOSTO

O princípio em causa é, de acordo com o nosso autor, «um princípio a


priori (ein Prinzip a priori)» para «investigar as chamadas leis empíricas»
(Kant, 1998: 68). Trata-se da pressuposição (Voraussetzung) de uma
«concordância da natureza com a nossa faculdade de conhecimento
(Zusammenstimmung der Natur zu unserem Erkenntnisvermögen)» (Kant,
1998: 69). Sem pressupormos essa concordância, «não teríamos», afirma
Kant, «qualquer ordem da natureza segundo leis empíricas e por
conseguinte nenhum fio condutor para uma experiência e uma
investigação das mesmas que funcione com elas segundo toda a sua
multiplicidade» (Kant, 1998: 69).33

verdade, o universal para cada espécie)» (Kant, 1998: 70). Na secção VI, Kant
designa-o por «princípio da adequação da natureza à nossa faculdade de conhecimento
(Prinzip der Angemessenheit der Natur zu unserem Erkenntnisvermögen)» (Kant,
1998: 73). Na Primeira Introdução, ele é referido como o conceito da «natureza como
arte, em outras palavras, o da técnica da natureza quanto a suas leis particulares»
(Kant, 1995: 39).
33
Nota ele, imediatamente antes, que «[e]sta concordância da natureza com a nossa
faculdade de conhecimento é pressuposta a priori pela faculdade do juízo em favor
da sua reflexão sobre a mesma, segundo as suas leis empíricas, na medida em que o
entendimento a reconhece ao mesmo tempo como contingente e a faculdade do juízo
simplesmente a atribui à natureza como conformidade a fins transcendental (em
relação à faculdade de conhecimento do sujeito) (transzendentale Zweckmäßigkeit (in
Beziehung auf das Erkenntnisvermögen des Subjekts))» (Kant, 1998: 69). As palavras
citadas são da secção V. Quer ainda na secção V, na sua parte final, quer na secção
VI, Kant reforça esta tese: diz ele, primeiro, que «só na medida em que [o princípio
da conformidade a fins da natureza para a nossa faculdade de conhecimento] exista,
nos é possível progredir, utilizando o nosso entendimento na experiência, e adquirir
conhecimento» (Kant, 1998: 70); acrescenta, já na secção VI, que «[a] concebida
concordância da natureza na multiplicidade das suas leis particulares com a nossa
necessidade de encontrar para ela a universalidade dos princípios, tem que ser
ajuizada, segundo toda a nossa de perspiciência como contingente, mas igualmente
como imprescindível para as nossas necessidades intelectuais (als zufällig, gleichwohl
aber doch für unser Verstandesbedürfnis als unentbehrlich), por conseguinte como
conformidade a fins, pela qual a natureza concorda com a nossa intenção, mas
somente enquanto orientada para o conhecimento» (Kant, 1998: 70). Ainda nessa
secção, Kant, fornece a sua explicação: «tanto quanto nos é possível descortinar, é
contingente o facto da ordem da natureza segundo as suas leis particulares, com toda
a, pelo menos possível, multiplicidade e heterogeneidade que ultrapassa a nossa
faculdade de apreensão, ser no entanto adequada a esta faculdade»; de acordo com o

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

É de salientar, entretanto, ser para reflectir, não para determinar, que


o princípio da conformidade a fins da natureza para a nossa faculdade de
conhecimento serve de fundamento. Como indica Kant, «é somente à
faculdade de juízo reflexiva que esta ideia serve de princípio, mas para
reflectir, não para determinar (es ist nur die reflektierende Urteilskraft,
der diese Idee zum Prinzip dient, zum Reflektieren, nicht zum
Bestimmen)» (Kant, 1998: 63). Quando se trata de determinar, a
faculdade do juízo limita-se a subsumir o particular em leis que vai
buscar ao entendimento. Ora, na Crítica da Faculdade do Juízo, «o poder
de julgar», como nota Maria Filomena Molder, «destaca-se, separa-se,
do entendimento» (Molder, 2007: 375), e leva a «uma epochê provisória
da realização efectiva das nossas operações intelectuais, conceptuais,
construtivas» (Molder, 2007: 378), isto é, «emudece a operação própria
do entendimento, a operação de transformação daquilo que aparece em
objecto» (Molder, 2007: 385). Aquilo que a descoberta do princípio da

nosso autor, «[a] descoberta de uma tal ordem é uma actividade do entendimento, o
qual é conduzido com a intenção de um fim necessário do mesmo, isto é a intenção
de introduzir nela a unidade dos princípios»; assim, como ele conclui, o princípio em
questão «tem então que ser atribuído à natureza pela faculdade do juízo, porque aqui
o entendimento não lhe pode prescrever qualquer lei (die Urteilskraft der Natur
beilegen muss, weil der Verstand ihr hierüber kein Gesetz vorschreiben kann)» (Kant,
1998: 71). Na parte final da secção VI, Kant afirma que «proceder segundo o princípio
da adequação da natureza à nossa faculdade de conhecimento, tão longe quanto for
possível, sem (pois que não se trata de uma faculdade de juízo determinante, que nos
dê esta regra) descobrir se em qualquer lugar existem ou não limites» é «um
imperativo da nossa faculdade do juízo (ein Geheiß unserer Urteilskraft)» (Kant,
1998: 73). Ele já o tinha assinalado na secção V: «este conceito transcendental de uma
conformidade a fins da natureza (…) representa somente a única forma, segundo a
qual nós temos que proceder na reflexão sobre os objectos da natureza com o objectivo
de uma experiência completamente consistente ([d]ieser transzendentale Begriff einer
Zweckmäßigkeit der Natur vorstellt nur die einzige Art, wie wir in der Reflexion über
die Gegenstände der Natur in Absicht auf eine durchgängig zusammenhängende
Erfahrung verfahren müssen), por conseguinte é um princípio subjectivo (máxima)
da faculdade do juízo (ein subjektives Prinzip (Maxime) der Urteilskraft)» (Kant,
1998: 67). Trata-se, então, de um princípio a priori que tem de colocar-se «como
fundamento de toda a reflexão (aller Reflexion zum Grunde legen)» sobre as leis
particulares da natureza (Kant, 1998: 68).

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JUÍZO DE GOSTO

faculdade do juízo proporciona, assim, é um alargamento das


possibilidades de ajuizar os objectos. Nas palavras de António Marques,
«[e]sta revisão da faculdade do juízo tem como consequência óbvia uma
maior liberdade na avaliação dos objectos» (Marques, 1998: 11). Ela
liberta os juízos de um confinamento «a uma espécie de subsunção
automática dos casos particulares nos nossos conceitos mais gerais»,
evita que procedamos «a uma absorção imediata dos particulares nos
conceitos que de antemão possuímos» (Marques, 1998: 11), permite
fugir a uma «perspectiva categorial» que «se desinteressa pela
particularidade do particular» (Marques, 1998: 18), fugir «a um
automatismo no juízo» (Marques, 1998: 10), e preencher «um sujeito
transcendental demasiado formalista ou esquemático», que nas duas
primeiras Críticas está «ainda muito afastado da dinâmica da vida
sensível e afectiva» (Marques, 1998: 11).
No juízo estético reflexivo (ästhetisches Reflexionsurteil), a faculdade
do juízo é referida imediatamente ao sentimento de prazer, mas a
referência imediata da faculdade do juízo ao sentimento de prazer ocorre
segundo um princípio a priori (cf. Kant, 1998: 48). Acerca do juízo
estético reflexivo, podemos assinalar, por conseguinte, que ele «se refere
à faculdade-de-conhecimento (bezieht er sich aufs Erkenntnisvermögen)»
(Kant, 1995: 61). É precisamente essa referência aquilo que faz dele um
juízo reflexivo. É com «mediação de um princípio-de-conhecimento
(Vermittlung eines Erkenntnisprinzips)» que o juízo estético reflexivo
contém «a proporção da representação ao sentimento (das Verhältnis der
Vorstellung zum Gefühl)» (Kant, 1995: 66).34 O juízo estético acerca da

34
Explicaremos mais à frente como se processa essa mediação, essa referência. Por
ora, apenas nos importa notar que tal não significa que o juízo de gosto (juízo estético
reflexivo) seja um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil). Ele é um juízo estético.
A maneira como o sujeito é afectado, portanto o sentimento de prazer ou desprazer,
mesmo que podendo resultar de um conhecimento, não é um conhecimento. O juízo
de gosto – e, mais geralmente, o juízo estético – não é, então, um juízo de
conhecimento. Tal é indicado ao longo de toda a “Crítica da Faculdade de Juízo
Estética” da Crítica da Faculdade do Juízo, numas vezes mais explicitamente,
noutras, menos. Veja-se, nesse sentido, desde logo o §1, onde Kant escreve que «[o]

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

beleza é, como vimos, um juízo estético formal, um juízo estético puro, o


único tipo de juízo de gosto autêntico. Essa autenticidade assenta na
referência do juízo ao princípio da faculdade do juízo enquanto faculdade
de conhecimento superior. 35

juízo de gosto não é (…) nenhum juízo de conhecimento (kein Erkenntnisurteil), por
conseguinte não é lógico e sim estético», pois pelo sentimento de prazer e desprazer,
que é o fundamento de determinação do juízo estético e, portanto, do juízo de gosto,
«não é designado absolutamente nada no objecto (gar nichts im Objekte bezeichnet
wird)» (Kant, 1998: 89). Observem-se também o §15, no qual é sugerido que um juízo
de gosto não é um juízo de conhecimento e explicitamente afirmado que «um juízo
estético é único em sua espécie e não fornece absolutamente conhecimento algum (e
tão pouco um confuso) do objecto (schlechterdings keine Erkenntnis (auch nicht eine
verworrene) vom Objekt gebe)» (Kant, 1998: 119), os §18 e §32, nos quais Kant
reforça, respectivamente, que «um juízo estético não é nenhum juízo objectivo e de
conhecimento (kein objektives und Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998: 128) e que «o
juízo de gosto (…) não é em caso algum um conhecimento (überall nicht Erkenntnis),
mas somente um juízo estético» (Kant, 1998: 183), a observação ao §38, na qual é
sublinhado que «o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (kein
Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998: 192), e, finalmente, o §58, onde Kant repete que «um
juízo de gosto [não] é um juízo de conhecimento (kein Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998:
255). Uma anterior consideração de Kant a este propósito é tecida no Prólogo à
primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo, quando o nosso autor assinala que
os juízos «que se chamam estéticos e dizem respeito ao belo e ao sublime da natureza
ou da arte (…) por si só em nada [contribuem] para o conhecimento das coisas (für
sich allein zur Erkenntnis der Dinge gar nichts beitragen)» (Kant, 1998: 48). Essa
tese está em absoluta concordância com algo que Kant afirma na Primeira Introdução,
a saber, que «[u]m juízo estético, em universal, pode (…) ser explicado como aquele
juízo cujo predicado jamais pode ser conhecimento (conceito de um objeto) – embora
possa conter as condições subjetivas para um conhecimento em geral (dasjenige Urteil
dessen Prädikat niemals Erkenntnis (Begriff von einem Objekte) sein kann (ob es
gleich die subjektive Bedingungen zu einem Erkenntnis überhaupt enthalten mag))»
(Kant, 1995: 60) e que denominar «estético um juízo, porque não refere a
representação de um objeto a conceitos e, portanto, não refere o juízo ao conhecimento
(das Urteil nicht auf die Erkenntnis bezieht) (…) não deixa temer nenhum mal-
entendido; pois, para o juízo lógico, as intuições, embora sejam sensíveis (estéticas),
têm de ser previamente elevadas a conceitos, para servir ao conhecimento do objeto,
o que, no juízo estético, não é o caso» (Kant, 1995: 86).
35
A partir desta propriedade do juízo de gosto, Kant chega a esboçar uma exclusão
do juízo acerca do agradável do âmbito do juízo estético. Diz ele que «por estéticos,
são entendidos somente os juízos-de-reflexão, os únicos que se referem a um princípio
do Juízo, como faculdade-de-conhecimento superior (welche sich allein auf ein

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JUÍZO DE GOSTO

1.4. A beleza apraz no simples julgamento


Ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant refere que o belo
meramente apraz, isto é, apraz por si próprio no simples julgamento. 36 Se
belo é aquilo que meramente apraz, se belo é aquilo que apraz
imediatamente por si próprio no simples julgamento 37, então esse
comprazimento tem de depender apenas da reflexão sobre a representação
do objecto.38 No caso do juízo de gosto, o ânimo contempla serena e

Prinzip der Urteilskraft, als obern Erkenntnisvermögens beziehen), enquanto os


juízos-de-sentidos estéticos só se ocupam imediatamente com a proporção das
representações ao sentido interno, na medida em que este é sentimento» (Kant, 1995:
63). Ainda assim, manteremos que há duas espécies de juízo estético – o juízo estético
dos sentidos, a saber, o juízo acerca do agradável; e o juízo estético reflexivo, o juízo
de gosto, o juízo através do qual se declara belo um objecto. Ao fazê-lo, estamos a
respeitar a já citada passagem inaugural do §14, de acordo com a qual podem dividir-
se os juízos estéticos em juízos estéticos puros, formais, e juízos estéticos empíricos,
materiais (cf. Kant, 1998: 113).
36
No §5, a propósito da comparação entre os três modos especificamente diversos de
comprazimento, Kant diz que «belo [significa para alguém] aquilo que meramente lhe
apraz (was ihm bloß gefällt)» (Kant, 1998: 97); na “Observação geral sobre a
exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso autor define o belo como «o que
apraz no simples julgamento (was in der bloßen Beurteilung gefällt)» (Kant, 1998:
165); no §45, já no âmbito das suas considerações acerca da bela arte, ele afirma que
«belo é aquilo que apraz no simples julgamento (was in der bloßen Beurteilung
gefällt)» (Kant, 1998: 210).
37
No §23, ao enunciar os factos em que há concordância entre o belo e o sublime,
Kant refere que «ambos aprazem por si próprios (beides für sich selbst gefällt)» (Kant,
1998: 137).
38
No §59, ao observar a diferença entre o belo e o moralmente bom (das Sittlich-
Gute), Kant afirma precisamente que «[o] belo apraz imediatamente ([d]as Schöne
gefällt unmittelbar)» e «somente na intuição reflexiva (nur in der reflektierenden
Anschauung)» (Kant, 1998: 263). Esta afirmação vai ao encontro de algo que já tinha
sido assinalado nos §2, §4, §23, §39 e §41, a saber, respectivamente, que «se a questão
é saber se algo é belo» (Kant, 1998: 91), então o que importa é como ajuizamos a
coisa «na simples contemplação (intuição ou reflexão) (in der bloßen Betrachtung
(Anschauung oder Reflexion)» (Kant, 1998: 91), que «[o] comprazimento no belo tem
que depender da reflexão sobre um objecto (Reflexion über einen Gegenstand)»
(Kant, 1998: 94), que o belo pressupõe «um juízo de reflexão (ein Reflexionsurteil)»
(Kant, 1998: 137), que o prazer no belo é «um prazer da simples reflexão (eine Lust
der bloßen Reflexion)» (Kant, 1998: 194) e que o comprazimento no belo é «o

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

tranquilamente o objecto.39 Pois bem, dizer que o juízo de gosto é


simplesmente contemplativo é o mesmo que dizer que um tal juízo é
indiferente em relação à existência do objecto. 40 Ao ajuizarmos se um
objecto é belo, não temos, então, qualquer consideração pela sua
existência; o que importa é o que acontece com a sua representação em
nós – nomeadamente por relação ao sentimento de prazer e desprazer.41
Não há qualquer interesse no fundamento do juízo de gosto, não há

comprazimento da simples reflexão sobre um objecto (Wohlgefallen der bloßen


Reflexion über einen Gegenstand)» (Kant, 1998: 199).
39
Devemos citar, neste contexto, breves passagens dos §5, §12, §24 e §27, a saber,
respectivamente: «o juízo de gosto é meramente contemplativo (bloß kontemplativ)»
(Kant, 1998: 97); «o prazer no juízo estético (…) é simplesmente contemplativo (bloß
kontemplativ)» (Kant, 1998: 112); «o gosto no belo pressupõe e mantém o ânimo em
serena contemplação (in ruhiger Kontemplation)» (Kant, 1998: 141); e «no seu juízo
estético sobre o belo [o ânimo] está em tranquila contemplação (in ruhiger
kontemplation)» (Kant, 1998: 154).
40
Kant di-lo efectivamente no §5: «o juízo de gosto é meramente contemplativo, isto
é, um juízo que, indiferente em relação à existência de um objecto, só considera a sua
natureza em comparação com o sentimento de prazer e desprazer (indifferent in
Ansehung des Daseins eines Gegenstandes, nur seine Beschaffenheit mit dem Gefühl
der Lust und Unlust zusammenhält)» (Kant, 1998: 97).
41
Afirma Kant, no §2: «Quer-se saber somente se esta simples representação do
objecto em mim é acompanhada de comprazimento (ob die bloße Vorstellung des
Gegenstandes in mir mit Wohlgefallen begleitet sei), por indiferente que sempre eu
possa ser com respeito à existência do objecto desta representação. Vê-se facilmente
que se trata do que faço dessa representação em mim mesmo (was ich aus dieser
Vorstellung in mir selbst mache), não daquilo em que dependo da existência do
objecto, para dizer que ele é belo e para provar que tenho gosto. (…) Não se tem que
simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse
respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel
de juiz» (Kant, 1998: 92). No mesmo parágrafo, mas ainda antes, Kant refere que «se
a questão é saber se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um
importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa» (Kant, 1998: 91). Mais
à frente, no §5, ele insiste em afirmar que o juízo de gosto é «indiferente em relação
à existência de um objecto» (Kant, 1998: 97). Destas afirmações não deve concluir-
se que os objectos do juízo de gosto são coisas inexistentes, que nenhum objecto
empírico pode ser belo ou, como faz Robert L. Zimmerman, atribuir a Kant a asserção
de que «na experiência estética a mente é presenteada com conteúdos do mundo
numénico» (Zimmerman, 1967: 386).

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JUÍZO DE GOSTO

qualquer interesse no comprazimento que determina esse juízo. 42 O


comprazimento no belo é um comprazimento desinteressado. 43 É com
favor que declaramos belo um objecto.44

42
Desde logo, no título do §2, é destacada a independência do juízo de gosto
em relação a interesses: «O comprazimento que determina o juízo de gosto é
independente de todo o interesse (Das Wohlgefallen, welches das
Geschmacksurteil bestimmt, ist ohne alles Interesse)» (Kant, 1998: 91).
43
Na explicação do belo inferida do “Primeiro momento do juízo de gosto,
segundo a qualidade” e, logo a seguir, no §6, caracteriza-se o objecto belo como
o objecto de um comprazimento «independente de todo o interesse (ohne alles
Interesse)» (Kant, 1998: 99); no §24, descrevendo o comprazimento envolvido
nos juízos «da faculdade de juízo estético-reflexiva (ästhetischen
reflektierenden Urteilskraft)», Kant indica que esse comprazimento «tem que
ser (…) segundo a qualidade sem interesse (ohne Interesse)» (Kant, 1998: 140);
na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso
autor afirma que o belo «tem de comprazer sem nenhum interesse (ohne alles
Interesse gefallen müsse)» (Kant, 1998: 165); no §41, Kant, referindo, a
propósito do interesse empírico pelo belo, um eventual comprazimento na
existência de um objecto belo, não deixa de assinalar que previamente esse
objecto «aprouve por si sem consideração de qualquer interesse (für sich und
ohne Rücksicht auf irgend ein Interesse gefallen hat)» (Kant, 1998: 199); no
§59, finalmente, distinguindo o belo do moralmente bom, ele reforça que o
primeiro «apraz independentemente de todo o interesse (gefällt ohne alles
Interesse)» (Kant, 1998: 263).
44
No §5, é indicado que o comprazimento no belo se refere a favor e é
explicitamente afirmado que «favor é o único comprazimento livre (Gunst ist
das einzige freie Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 97). Na “Crítica da Faculdade de
Juízo Teleológica”, numa referência à “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”,
é assinalado que nesta «foi dito que consideraríamos a bela natureza com favor
(mit Gunst), na medida em que tivéssemos um comprazimento totalmente livre
(desinteressado) (ein ganz freies (uninteressirtes) Wohlgefallen) na sua forma»
(Kant, 1998: 422). No artigo “El Sentimiento como Fondo de la Vida y del
Arte”, Félix Duque fala de uma anterioridade ontológica d o sentimento
enquanto sentido interior, enquanto receptividade – enquanto inwendiger Sinn,
portanto, enquanto Empfänglichkeit, não como recepção, não como
sensibilidade, externa ou interna – e associa-a à noção de favor (Gunst) (cf.
Duque, 1992: 83-84). Mais à frente no seu artigo, entretanto, o comentador
conclui que precisamente «a reflexão pura, o sentimento da beleza» é «o
sentimento por antonomásia» (Duque, 1992: 87) e que a beleza e o juízo de
gosto são «os baixos fundos de toda a experiência possível, cognoscitiva ou
prática» (Duque, 1992: 98).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Colocar um interesse no fundamento do juízo de gosto seria viciá-


lo, torná-lo faccioso, parcial. 45 O juízo de gosto tem de ser um juízo
livre. Como é referido no título do §13, «[o] juízo de gosto puro é
independente de atractivo e comoção ([d]as reine Geschmacksurteil ist
von Reiz und Rührung unabhängig)» (Kant, 1998: 112).46 No
fundamento do juízo de gosto não pode estar um interesse, seja esse
um interesse dos sentidos, seja, de resto, um interesse da razão.
Pertinentemente, Maria Filomena Molder indica que o juízo de gosto é
«tido como um juízo livre, isto é, liberto de qualquer constrangimento
quer seja patológico quer seja conceptual» (Molder, 2007: 375).47
Regressando às palavras de Kant, devemos ver a “Observação geral
sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, na qual ele define o
belo como «o que apraz no simples julgamento (logo, não mediante a
sensação do sentido segundo um conceito do entendimento (nicht

45
Veja-se o que está escrito no §2: «aquele juízo sobre a beleza, ao qual se mescla o
mínimo interesse é muito faccioso (sehr parteilich) e não é nenhum juízo de gosto
puro» (Kant, 1998: 92). A razão do proferimento desta afirmação aparece repetida no
início do §13, onde Kant afirma que «[t]odo o interesse vicia (verdirbt) o juízo de
gosto e tira-lhe a imparcialidade (nimmt ihm seine Unparteilichkeit)» (Kant, 1998:
112).
46
Envolvendo os mesmos termos, nuns casos, envolvendo outros, noutros casos, essa
tese é repetida em várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo. Cite-se, por
exemplo, o fim do §13, onde Kant afirma que «atractivo e comoção (Reiz und
Rührung) não têm nenhuma influência (keinen Einfluß)» sobre o puro juízo de gosto
(Kant, 1998: 113), o fim do §14, onde ele sublinha que a comoção (Rührung) é uma
sensação que «não pertence absolutamente (gehört gar nicht) à beleza» (Kant, 1998:
116) e que «um juízo de gosto puro não possui nem atractivo nem comoção (weder
Reiz noch Rührung) como princípio determinante (zum Bestimmungsgrunde), numa
palavra, nenhuma sensação enquanto matéria do juízo estético (keine Empfindung, als
Materie des ästhetischen Urteils)» (Kant, 1998: 117), e o §28, no qual o nosso autor
assinala que «não pode absolutamente julgar (…) sobre o belo quem é tomado de
inclinação e apetite (welcher durch Neigung und Appetit eingenommen ist)» (Kant,
1998: 157).
47
As palavras de Paulo Tunhas seguem no mesmo sentido – o juízo através do qual
se declara belo um objecto é, no entender do intérprete, «o único a testemunhar uma
inteira liberdade, devido ao facto de que não se encontra submetido nem à necessidade
de uma inclinação, como o juízo relativo ao agradável, nem à coerção do dever, como
o juízo concernente ao bem» (Tunhas, 2011: 76).

42 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

vermittelst der Empfindung des Sinnes nach einem Begriffe des


Verstandes))» (Kant, 1998: 165), o §45, no qual o nosso autor afirma
que «belo é aquilo que apraz no simples julgamento (não na sensação
sensorial nem mediante um conceito (nicht in der Sinnenempfindung,
noch durch einen Begriff))» (Kant, 1998: 210), e, ainda antes, o §23,
onde Kant nota que o comprazimento na beleza «não se prende a uma
sensação como a sensação do agradável, nem a um conceito
determinado como o comprazimento no bem (nicht an einer
Empfindung wie die des Angenehmen, noch an einem bestimmten
Begriffe wie das Wohlgefallen am Guten)» (Kant, 1998: 137).48
Efectivamente, o prazer no bom (das Gute) funda-se em conceitos.
Observe-se o início do §4: «Bom é o que apraz mediante a razão pelo
simples conceito» (Kant, 1998: 94). No bom «está contido o conceito de
um fim, portanto a relação da razão ao (pelo menos possível) querer,
consequentemente um comprazimento na existência de um objecto ou de
uma acção, isto é, um interesse qualquer» (Kant, 1998: 94). De resto, «o
absolutamente e em todos os sentidos bom, a saber o bom moral (…)
comporta o máximo interesse» (Kant, 1998: 96). Mas um juízo de gosto
que se fundasse em conceitos não seria um juízo de gosto.49 O
comprazimento no belo, e, portanto, o juízo de gosto, não tem um conceito
como fundamento de determinação. Kant é assertivo a este respeito: o
juízo de gosto «não se funda absolutamente sobre conceitos (gründet sich

48
A sensação de prazer no belo é, no entanto, «referida a conceitos, se bem que
sem determinar quais (auf Begriffe, obzwar unbestimmt welche, bezogen wird)»
(Kant, 1998: 137). Sempre que mencionamos a independência do juízo de gosto
– da beleza, portanto – em relação a conceitos, estamos a referir-nos, então, a
conceitos determinados. Ao tomarmos essa opção, concordamos com o próprio
Kant – quando menciona a independência da beleza relativamente a conceitos, ele
refere-se a conceitos determinados.
49
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant defende que os
juízos reflexivos estéticos «de nenhum modo podem ser fundados sobre conceitos
(durchaus nicht auf Begriffe gegründet) e, portanto, derivados de nenhum
princípio determinado (von keinem bestimmten Prinzip abgeleitet), porque senão
seriam lógicos» (Kant, 1995: 77).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 43


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

gar nicht auf Begriffe)» (Kant, 1998: 183). Esta posição é, aliás, inúmeras
vezes afirmada ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo.50
No §15, o nosso autor salienta que o fundamento de determinação do
juízo de gosto «não pode ser nenhum conceito, por conseguinte tão pouco
o de um fim determinado (kein Begriff, mithin auch nicht der eines
bestimmten Zwecks sein kann)» (Kant, 1998: 118). Se assim é, um juízo
deste tipo não pode basear-se na conformidade do objecto a um tal fim,
isto é, na conformidade objectiva da coisa a fins, seja, essa conformidade
a fins objectiva, uma conformidade a fins objectiva externa, seja interna,
pela simples razão de que o juízo de gosto é um juízo estético e, como tal,
um juízo cuja referência da representação do objecto é dirigida apenas ao
sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. 51 No juízo de gosto, a

50
Numas vezes, isso acontece explicitamente; noutras, implicitamente. Kant ostenta
a sua posição no §4, ao referir que, para encontrar a beleza num objecto, não é
necessário saber «que tipo de coisa o objecto deva ser, isto é, ter um conceito do
mesmo (einen Begriff von dem Gegenstand)» (Kant, 1998: 94), e mesmo nos
exemplos que dá de objectos belos, ao assinalar que «[f]lores, desenhos livres, linhas
entrelaçadas sem intenção sob o nome de folhagem, não significam nada, não
dependem de nenhum conceito determinado (hängen von keinem bestimmten Begriffe
ab) e contudo aprazem» (Kant, 1998: 94); fá-lo também no §5, ao indicar que, no
juízo de gosto, a contemplação «é tão pouco dirigida a conceitos (ist auch nicht auf
Begriffe gerichtet)» (Kant, 1998: 97), no §16, ao salientar que o prazer no belo «não
pressupõe nenhum conceito (keinen Begriff voraussetzt)» (Kant, 1998: 121), na
“Analítica do sublime”, concretamente no §28, ao identificar o juízo estético como
um juízo «sem conceito (ohne Begriff)» (Kant, 1998: 157), e no §35, ao dizer
explicitamente que o juízo de gosto «não subsume absolutamente num conceito (gar
nicht unter einen Begriff subsumiert)» e «não é determinável por conceitos (nicht
durch Begriffe bestimmbar ist)» (Kant, 1998: 188).
51
Kant identifica a conformidade a fins externa com a utilidade e a conformidade a
fins interna com a perfeição: «A conformidade a fins objectiva (objektive
Zweckmäßigkeit) é ou externa (äußere), isto é a utilidade (die Nützlichkeit), ou interna
(innere), isto é a perfeição do objecto (die Vollkommenheit des Gegenstandes)»
(Kant, 1998: 117). A conformidade a fins objectiva «é a referência do objecto a um
fim determinado (die Beziehung des Gegenstandes auf einen bestimmten Zweck)»
(Kant, 1998: 117). Essa definição é reforçada quando Kant afirma que «para nos
representarmos uma conformidade a fins objectiva numa coisa, o conceito do que esta
coisa deva ser precedê-la-á (der Begriff von diesem, was es für ein Ding sein solle,
voran gehen)» (Kant, 1998: 118). Acontece que, como é salientado no início do §11,

44 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

conformidade a fins não é, então, representada como objectiva, sendo que,


no concernente à independência do juízo de gosto relativamente à
perfeição, a assertividade de Kant está bem patente no próprio título do
§15: «O juízo de gosto é totalmente independente do conceito de perfeição
(Das Geschmacksurteil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit
gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117).52

1.5. Princípio da conformidade a fins formal da natureza


Nem toda a conformidade a fins tem de ser, no entanto, representada como
objectiva. No §10, acerca da conformidade a fins em geral (von der
Zweckmäßigkeit überhaupt), Kant sustenta que é possível representar-se
uma conformidade a fins «sem fim (ohne Zweck)» (Kant, 1998: 109).
Segundo o nosso autor, um objecto pode ser conforme a fins
ainda que a sua possibilidade não pressuponha necessariamente a
possibilidade da representação de um fim, simplesmente porque a sua
possibilidade somente pode ser explicada ou concebida por nós na
medida em que admitimos no fundamento da mesma uma causalidade
segundo fins, isto é uma vontade, que a tivesse ordenado desse modo

o juízo de gosto nem sequer pode fundamentar-se num «fim subjectivo (subjektiver
Zweck)» (Kant, 1998: 110), pois «[t]odo o fim, se é considerado como fundamento do
comprazimento, traz sempre consigo um interesse como fundamento de determinação
do juízo sobre o objecto do prazer» (Kant, 1998: 110). Note-se, no entanto, que tal
não é o mesmo que recusar que o juízo de gosto «se baseia sobre fundamentos
subjectivos (auf subjektiven Gründen beruht)» (Kant, 1998: 118). A primeira
afirmação ligaria a determinação do juízo de gosto a uma finalidade determinada; a
segunda não o faz.
52
Observa-se neste título um distanciamento do nosso autor em relação a uma
abordagem racionalista da crítica do gosto. No entender de Kant, a abordagem em
causa, alicerçada em Descartes, mas plasmada em Leibniz ou Wolff, entre outros,
encara o juízo de gosto como sendo «propriamente um oculto juízo da razão sobre a
descoberta perfeição de uma coisa e a referência do múltiplo nele a um fim», juízo
esse que «por conseguinte somente é denominado estético em virtude da confusão que
é inerente a esta nossa reflexão, embora no fundo ele seja teleológico» (Kant, 1998:
254). Uma tal abordagem anula à partida a possível especificidade do juízo de gosto
ou da beleza. A beleza é, nesse âmbito, uma perfeição. O juízo de gosto é, nesse
contexto, um juízo de conhecimento – conhecimento confuso, não distinto, mas, ainda
assim, conhecimento.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

segundo a representação de uma certa regra (wenn gleich ihre


Möglichkeit die Vorstellung eines Zwecks nicht notwendig
voraussetzt, bloß darum, weil ihre Möglichkeit von uns nur erklärt
und begriffen werden kann, sofern wir eine Kausalität nack Zwecken,
d. i. einen Willen, der sie nach der Vorstellung einer gewissen Regel
so angeordnet hätte, zum Grunde derselben annehmen) (Kant, 1998:
109)53,
ainda, então, que não ponhamos «as causas [da sua] forma numa vontade,
e contudo somente podemos tornar compreensível para nós a explicação
da sua possibilidade enquanto a deduzimos de uma vontade» (Kant, 1998:
109-110). Pois bem, considerando que «não temos sempre necessidade de
descortinar pela razão (segundo a sua possibilidade) aquilo que
observamos», como continua Kant, «podemos pelo menos observar uma
conformidade a fins segundo a forma – mesmo que não lhe ponhamos no
fundamento um fim (como matéria do nexus finalis) (eine Zweckmäßigkeit
der Form – nach, auch ohne dass wir ihr einen Zweck (als die Materie des
nexus finalis) zum Grunde legen)» (Kant, 1998: 110). É na representação
de uma conformidade a fins sem fim, meramente formal, que o juízo de
gosto se baseia.
Os fundamentos da representação de uma tal conformidade a fins
levam-nos de volta à Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo,
nomeadamente à secção VIII. Afirma Kant, nessa secção, que a parte
da crítica da faculdade do juízo «que contém a faculdade do juízo
estética (welcher die ästhetische Urteilskraft enthält)», e «apenas
(allein)» ela, «contém um princípio que a faculdade do juízo coloca
como princípio inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza
(ein Prinzip enthält, welches die Urteilskraft völlig a priori ihrer
Reflexion über die Natur zum Grunde legt)» (Kant, 1998: 79). Esse
princípio é «o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza
segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa capacidade
de conhecimento (das Prinzip, das einer formalen Zweckmäßigkeit der

53
A segunda ocorrência da palavra “possibilidade” na tradução para Português
constitui um erro e deve ser simplesmente eliminada.

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JUÍZO DE GOSTO

Natur nach ihren besonderen (empirischen) Gesetzen für unser


Erkenntnisvermögen), conformidade sem a qual o entendimento não se
orientaria naquelas», é «o princípio transcendental que consiste em
representar uma conformidade a fins da natureza, na relação subjectiva
às nossas faculdades de conhecimento, na forma de uma coisa,
enquanto princípio do julgamento da mesma ([d]er transzendentale
Grundsatz, sich eine Zweckmäßigkeit der Natur in subjektiver
Beziehung auf unser Erkenntnissvermögen an der Form eines Dinges
als ein Prinzip der Beurteilung derselben vorzustellen)» (Kant, 1998:
79). Kant também lhe chama «conceito de uma conformidade a fins
subjectiva da natureza, nas suas formas segundo leis empíricas (Begriff
von einer subjektiven Zweckmäßigkeit der Natur in ihren Formen nach
empirischen Gesetzen)» (Kant, 1998: 78) ou, mais simplesmente,
«princípio da conformidade a fins formal da natureza (Prinzip der
formalen Zweckmäßigkeit der Natur)» (Kant, 1998: 64). O nosso autor
não refere apenas, então, o princípio da conformidade a fins da natureza
para as nossas faculdades de conhecimento; ele refere o princípio da
conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de
conhecimento. Aquilo que importa saber, por conseguinte, é por que é
que ou em que medida a referida conformidade fins da natureza é
formal e por que é que ou em que medida unicamente a parte da crítica
da faculdade do juízo que contém a faculdade de juízo estética contém
esse princípio.
Para o sabermos, devemos recorrer ao início da secção VIII. Afirma
Kant, aí, que
[n]um objecto dado numa experiência, a conformidade a fins pode ser
representada, quer a partir de um princípio simplesmente subjectivo,
como concordância da sua forma com as faculdades de conhecimento na
apreensão (apprehensio) do mesmo, antes de qualquer conceito, para
unir a intuição com conceitos a favor de um conhecimento em geral (aus
einem bloß subjektiven Grunde, als Übereinstimmung seiner Form, in
der Auffassung (apprehensio) desselben vor allem Begriffe, mit den
Erkenntnisvermögen, um die Anschauung mit Begriffen zu einem
Erkenntnis überhaupt zu vereinigen), quer a partir de um princípio

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 47


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

objectivo, enquanto concordância da sua forma com a possibilidade da


própria coisa, segundo um conceito desse objecto que antecede e contém
o fundamento desta forma (aus einem objektiven, als Übereinstimmung
seiner Form mit der Möglichkeit des Dinges selbst, nach einem Begriffe
von ihm, der vorhergeht und den Grund dieser Form enthält) (Kant,
1998: 77-78).
Relativamente à representação da segunda espécie de conformidade a fins,
o nosso autor dirá que essa representação «relaciona a forma do objecto,
não com as faculdades de conhecimento do sujeito na apreensão do
mesmo, mas sim com um conhecimento determinado do objecto sob um
conceito dado (auf ein bestimmtes Erkenntnis des Gegenstandes unter
einem gegebenen Begriffe)» e «nada tem a ver com um sentimento do
prazer nas coisas, mas sim com o entendimento no julgamento das mesmas
(hat nichts mit einem Gefühle der Lust an den Dingen, sondern mit dem
Verstande in Beurteilung derselben zu tun)» (Kant, 1998: 78).54 No que
diz respeito à possibilidade de representar a conformidade a fins da
primeira espécie, esta já tinha sido afirmada por Kant na secção VII:
Se o prazer estiver ligado à simples apreensão (apprehensio) da forma
de um objecto da intuição, sem relação da mesma com um conceito
destinado a um certo conhecimento, nesse caso a representação não se
liga ao objecto, mas sim apenas ao sujeito (wird die Vorstellung dadurch
nicht auf das Objekt, sondern lediglich auf das Subjekt bezogen); e o
prazer não pode mais do que exprimir a adequação desse objecto às
faculdades de conhecimento que estão em jogo na faculdade de juízo
reflexiva (die Angemessenheit desselben zu den Erkenntnisvermögen,
die in der reflektierenden Urteilskraft im Spiel sind) e por isso, na
medida em que elas aí se encontram, exprimem simplesmente uma

54
É isso que acontece quando o conceito de um objecto é dado: «nesse caso a
actividade da faculdade do juízo, no seu uso com vista ao conhecimento, consiste na
apresentação (exhibitio) (Darstellung (exhibitio)), isto é no facto de colocar ao lado
do conceito uma intuição correspondente, quer no caso disto acontecer através da
nossa própria faculdade da imaginação, como na arte, quando realizamos um conceito
de um objecto antecipadamente concebido que é para nós fim (wie in der Kunst, wenn
wir einen vorhergefassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns Zweck ist,
realisieren), quer mediante a natureza na técnica da mesma (como acontece nos
corpos organizados), quando lhe atribuímos o nosso conceito do fim para o
julgamento dos seus produtos» (Kant, 1998: 78).

48 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

subjectiva e formal conformidade a fins do objecto (eine subjektive


formale Zweckmäßigkeit des Objekts) (Kant, 1998: 74).
Mesmo sendo o movimento da faculdade da imaginação e do
entendimento entre si um movimento livre, ele é um movimento
harmónico, concordante, consonante. As faculdades de conhecimento
movimentam-se harmonicamente.55 Um tal movimento constitui a

55
Aquilo que fica por explicar devidamente é como esse movimento se inicia, como se
colocam as faculdades de conhecimento em jogo. Ainda na secção VII da Introdução, Kant
assinala que «aquela apreensão das formas na faculdade da imaginação nunca pode
suceder, sem que a faculdade de juízo reflexiva, também sem intenção, pelo menos a possa
comparar (vergliche) com a sua faculdade de relacionar intuições com conceitos» (Kant,
1998: 74-75). Tal tinha sido já anunciado pelo nosso autor na Primeira Introdução. Dizia
ele, aí, que «imaginação e entendimento são considerados na proporção em que têm de
estar no Juízo em geral em relação um ao outro, comparada (verglichen) com a proporção
em que efetivamente estão» (Kant, 1995: 56). Ambas as passagens dão a entender que a
reflexão ocorre sem intenção e compara a representação da apreensão que está a suceder
com a disposição das faculdades de conhecimento quando se trata de determinar. Além
disso, elas estão de acordo com a definição de reflectir dada na Primeira Introdução:
«comparar e manter-juntas dadas representações, seja com outras, seja com sua faculdade-
de-conhecimento, em referência a um conceito tornado possível através disso (gegebene
Vorstellungen entweder mit andern, oder mit seinem Erkenntnisvermögen, in Beziehung
auf einen dadurch möglichen Begriff, zu vergleichen und zusammen zu halten)» (Kant,
1995: 47). Entretanto, de novo na Introdução, Kant afirma que «se nesta comparação (in
dieser Vergleichung) a faculdade da imaginação (como faculdade das intuições a priori) é
sem intenção posta de acordo com o entendimento (como faculdade dos conceitos)
mediante uma dada representação e, desse modo, se desperta um sentimento de prazer,
nesse caso o objecto tem que então ser considerado como conforme a fins para a faculdade
de juízo reflexiva (als zweckmäßig für die reflektierende Urteilskraft)» (Kant, 1998: 75).
Kant não refere que a comparação constata o acordo entre as faculdades de conhecimento;
ele indica que as faculdades de conhecimento se dispõem harmonicamente na comparação
– isto é, na reflexão. A questão que se coloca, neste contexto, é a de saber como podem as
faculdades de conhecimento dispor-se harmonicamente a partir de uma apreensão sem
conceito. Mais exactamente, perguntar-se-á como pode sugerir-se uma apreensão sem
conceito se a Crítica da Razão Pura nos informa que «toda a síntese, pela qual se torna
possível a própria percepção, está submetida às categorias; e como a experiência é um
conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da
possibilidade da experiência e têm pois também validade a priori em relação a todos os
objectos da experiência» (Kant, 2001: 163-164). A este respeito – e em face da ausência
de uma explicação dada pelo próprio Kant – as propostas são variadas. Admitindo o
carácter controverso da sua proposta, Guyer, por exemplo, sugere que na teoria kantiana

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 49


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

«consonância proporcionada, que exigimos para todo o conhecimento (die


proportionierte Stimmung, die wir zu allem Erkenntnisse fordern)» (Kant,
1998: 108), correspondendo, portanto, à «condição subjetiva, meramente
sensível, do uso objetivo do Juízo (die subjektive bloß empfindbare
Bedingung des objektiven Gebrauchs der Urteilskraft)» (Kant, 1995: 60),
à «condição subjectiva do conhecer (subjektive Bedingung des
Erkennens)» (Kant, 1998: 130), à «condição formal subjectiva de um juízo
em geral (subjektive formale Bedingung eines Urteils überhaupt)» (Kant,

da síntese se estabeleça uma distinção entre elementos psicológicos e elementos


epistemológicos. Segundo o intérprete, teríamos, assim, «uma teoria da síntese como
processos mentais através dos quais estados mentais de conhecimento são produzidos, e
uma teoria das categorias como regras através das quais a verificação das exigências do
conhecimento pode ser feita» (Guyer, 1997: 86). A partir dessa distinção, Guyer considera
que «[o] emprego das categorias, e dos conceitos empíricos que se aplicam a intuições
empíricas reais, seria então não uma condição necessária para a ocorrência do processo
psicológico de síntese, mas apenas uma condição para a verificação das exigências de
conhecimento real dos membros do diverso de um indivíduo e da sua posição na história
mental desse indivíduo ou na unidade objectiva da apercepção» (Guyer, 1997: 86).
Aceitando-a, «a unificação de um diverso sem um conceito, pela imaginação, poderia ser
pensada como um estado no qual os concomitantes psicológicos do conhecimento se
obtêm na ausência de uma exigência real de conhecimento; e esta interpretação
estabeleceria uma separação entre a ocorrência de estados psicológicos ordinariamente
associados à unificação de diversos e a sujeição absoluta da última às categorias» (Guyer,
1997: 87). Ainda assim, Guyer mantém que o principal problema do poder explicativo do
«modelo de resposta estética» é que «é difícil ver como a possibilidade da harmonia das
faculdades é compatível com a tese da primeira Crítica de que a síntese é sempre sujeita a
conceitos» (Guyer, 1997: 304-305). José Gil confronta-se com a mesma dificuldade. No
sentido de ultrapassá-la, aquilo que ele propõe é uma descrição do processo de formação
do juízo de gosto não «de baixo para cima», isto é, «a partir de um começo que seria a
apreensão, para se elevar, degrau a degrau – intuição pura, apreensão, reflexão, jogo das
faculdades, estado de espírito, prazer estético, juízo de gosto – até à descoberta de uma
finalidade mais vasta que aponta para o supra-sensível», mas, diferentemente, «de cima
para baixo» (Gil, 2006: 313-314). Neste contexto, não só «[a] apreensão estética não exclui
a apreensão cognitiva», como «acompanha-a necessariamente, se bem de dela difira
irredutivelmente» (Gil, 2006: 308). De acordo com Gil, ela «decorre da desmontagem da
percepção e da apreensão cognitiva» (Gil, 2006: 312). Ora, completando esta proposta, Gil
defende que «a regularidade de uma imaginação livre» se deve à permanência de «um laço
com a unidade do conceito» (Gil, 2006: 312).

50 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

1998: 188).56 A conformidade a fins da natureza é formal, então, porque e


na medida em que a disposição harmónica das faculdades da imaginação

56
Na Primeira Introdução, Kant cita uma «proporção» na qual «imaginação e
entendimento (…) têm de estar no Juízo em geral em relação um ao outro» (Kant,
1995: 56) e refere «a concordância daquelas duas faculdades entre si» como sendo
«uma proporção de ambas as faculdades-de-conhecimento, que constitui a condição
subjetiva, meramente sensível, do uso objetivo do Juízo» (Kant, 1995: 60). Acabámos
de mencioná-la. Mais explicitamente, numas vezes, menos noutras, ele reforça-o ao
longo da Crítica da Faculdade do Juízo. Fá-lo desde logo na Introdução, onde cita a
«unidade da faculdade de imaginação com o entendimento» como sendo «a
conformidade a leis no uso empírico da faculdade do juízo em geral» (Kant, 1998:
75). Precisamente nessa passagem, Kant assinala ser unicamente com essa
conformidade a leis «que a representação do objecto na reflexão concorda» (Kant,
1998: 75). Entretanto, o reforço da tese segundo a qual o acordo entre as faculdades
de conhecimento constitui a condição formal do uso objectivo da faculdade do juízo
prolonga-se quando Kant menciona, ainda na Introdução, a «relação das faculdades
de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo o conhecimento empírico
(da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76), no §9, como
vimos, a «consonância proporcionada, que exigimos para todo o conhecimento»
(Kant, 1998: 108), no §21, a «disposição das faculdades de conhecimento para um
conhecimento em geral, e na verdade aquela proporção que se presta a uma
representação (pela qual um objecto nos é dado), para fazer dela um conhecimento»
como sendo a assinalada «condição subjectiva do conhecer» sem a qual «o
conhecimento como efeito não poderia surgir» (Kant, 1998: 130), no §35, como
igualmente vimos, a «condição formal subjectiva de um juízo em geral», e diz que
«[u]tilizada com respeito a uma representação pela qual um objecto é dado, [a
faculdade do juízo] requer a concordância de duas faculdades de representação, a
saber da faculdade da imaginação (para a intuição e a composição do múltiplo na
mesma) e do entendimento (para o conceito como representação da unidade desta
compreensão)» (Kant, 1998: 188), numa nota ao §38, a «relação das faculdades de
conhecimento (…) postas em actividade com vista a um conhecimento em geral»
como sendo «a condição formal da faculdade do juízo» (Kant, 1998: 268), e,
finalmente, no §39, a «apreensão comum de um objecto pela faculdade da imaginação
enquanto faculdade da intuição, em relação com o entendimento como faculdade dos
conceitos» como «um procedimento da faculdade do juízo, o qual esta tem de exercer
(…) com vista à experiência mais comum (…) para perceber um conceito objectivo
empírico» (Kant, 1998: 194) e a «proporção destas faculdades de conhecimento (…)
exigida para o são e comum entendimento que se pode pressupor em qualquer»,
acrescentando, aliás, que essa proporção também «é requerida para o gosto» (Kant,
1998: 195). Se o fundamento de determinação do juízo de gosto é o prazer sentido por
ocasião do alcance, livre, dessa proporção, então admitir-se-á, com António Marques,
que «do ponto de vista da motivação e até da estrutura do juízo o objectivo cognitivo

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 51


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

e do entendimento entre si é alcançada livremente por ocasião da


representação do objecto.57

deixa de ser o mais relevante» e que «[o] conceito de jogo passa a estar na primeira
linha, sublinhando certamente a presença do anímico, do inventivo e até do inesperado
que caracteriza afinal a experiência estética» (Marques, 1998: 22). Mais do que isso,
Kant levar-nos-á «muito mais longe do que esperávamos», como nota Maria Filomena
Molder, indo «até ao ponto de considerar que nesse jogo se engendra qualquer forma
de conhecimento, pois na proporção entre as faculdades, que configura a sua relação
como jogo livre, surpreendemos a matriz de qualquer movimento compreensivo»
(Molder, 2007: 373-374). A este propósito, é igualmente de observar a posição de
Olivier Chédin (cf. Chédin, 1982).
57
Sem prejuízo do que acabámos de afirmar, importa notar que Kant não esgota a
explicação da representação de uma conformidade a fins formal da natureza no
aspecto que salientámos. O nosso autor faz assentar a possibilidade de uma
representação formal da conformidade a fins na forma do objecto. No que diz respeito
à Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, isso é evidente não apenas nas
passagens que citámos da secção VII, mas em toda essa secção e, de resto, na secção
seguinte – aí, Kant sugere que a conformidade a fins da natureza é formal porque e na
medida em que é representada «nas suas formas (in ihren Formen)», isto é, «na forma
da coisa (in der Form des Dinges)» (Kant, 1998: 78), «na forma de uma coisa (an der
Form eines Dinges)» (Kant, 1998: 79). O nosso autor já o tinha feito na Primeira
Introdução e voltará a fazê-lo ao longo de toda a Crítica da Faculdade do Juízo. A
própria “Analítica do sublime” é, de certo modo, elaborada por relação à importância
que, na sua explicitação da noção de beleza, Kant atribui à noção de forma (Form).
Desde logo no parágrafo inaugural do segundo livro da “Analítica da faculdade de
juízo estética” (§23) o nosso autor indica-o: diz ele, primeiro, que «o sublime,
contrariamente [ao belo] pode também ser encontrado num objecto sem forma
(formlosen), na medida em que seja representada nele uma ilimitação ou por ocasião
desta e pensada além disso na sua totalidade» (Kant, 1998: 137); acrescenta, depois,
que o objecto «pode quanto à forma (Form) aparecer contrário a fins para a nossa
faculdade de juízo, inadequado à nossa faculdade de apresentação e por assim dizer
violento para a faculdade da imaginação, mas apesar disso e só por isso é julgado ser
tanto mais sublime» (Kant, 1998: 138). É esta diferença, em relação ao belo, que leva
a que, tal como é anunciado na Introdução, «o juízo estético [esteja] ligado ao belo,
não simplesmente como juízo de gosto, mas também ao sublime» e, portanto, a que
«aquela crítica da faculdade de juízo estética [tenha] que se decompor em duas partes
principais conformes àqueles», ou seja, na “Analítica do belo” e na “Analítica do
sublime” (Kant, 1998: 77). No que concerne à “Crítica da Faculdade de Juízo
Teleológica”, destacamos como paradigmática a seguinte passagem: «Temos boas
razões para aceitar, segundo princípios transcendentais, uma conformidade a fins
subjectiva da natureza nas suas leis particulares, relativamente à sua compreensão
para a faculdade do juízo humana e à possibilidade da conexão das experiências

52 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Centremo-nos, agora, nas referências de Kant ao sentimento de prazer.


Mediante essas referências, poderemos responder à questão de saber por
que é que ou em que medida apenas a parte da crítica da faculdade do juízo
à qual pertence a faculdade de juízo estética «contém um princípio que a
faculdade do juízo coloca como princípio inteiramente a priori na sua
reflexão sobre a natureza», nomeadamente «o princípio de uma
conformidade a fins formal da natureza segundo as suas leis particulares
(empíricas) para a nossa capacidade de conhecimento» (Kant, 1998: 79).
No §9, Kant informa-nos de que quando se trata de uma relação objectiva
entre as faculdades de conhecimento, essa relação é pensada: «uma
relação objectiva (ein objektives Verhältnis) somente pode ser pensada
(gedacht)» (Kant, 1998: 108). Não é outro o caso do juízo lógico, no qual
a consciência da relação entre as faculdades da imaginação e do
entendimento é adquirida «intelectualmente (intellektuell)», precisamente
por aquilo que o nosso autor diz ser a «consciência da nossa actividade
intencional com que pomos aquelas em jogo (das Bewusstsein unserer
absichtlichen Tätigkeit, womit wir jene ins Spiel setzen)» (Kant, 1998:
107). Trata-se, aí, de uma consciência «intelectual (como no
esquematismo objectivo da faculdade do juízo, do qual a crítica trata)»
(Kant, 1998: 107). O caso que nos interessa, porém, é o da relação
meramente subjectiva entre as faculdades de conhecimento. Acabámos de
assinalar que a disposição harmónica das faculdades da imaginação e do
entendimento entre si por ocasião da representação do objecto é alcançada
livremente. Como Kant ressalva, ainda no §9, uma «unidade subjectiva da
relação (subjektive Einheit des Verhältnisses)» entre as faculdades de

particulares num sistema dessa mesma natureza; é assim que entre os seus muitos
produtos podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas
que lhe são adequadas, como se afinal estivessem dispostas para a nossa faculdade do
juízo. Tais formas, através da sua multiplicidade e unidade, servem para
simultaneamente fortalecer e entreter as faculdades do ânimo (que estão em jogo por
ocasião do uso desta faculdade) e às quais por isso atribuimos o nome de formas belas
(schöne Formen)» (Kant, 1998: 273). Considerando que, como indicámos, Kant faz
assentar a possibilidade de uma representação formal da conformidade a fins na forma
do objecto, daremos o relevo devido à noção de forma em secção própria.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 53


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

conhecimento «somente pode fazer-se cognoscível (kenntlich)


através da sensação (durch Empfindung)» (Kant, 1998: 108). O
sujeito adquire consciência dela «por sensação do efeito que consiste
no jogo facilitado de ambas as faculdades do ânimo (da imaginação e
do entendimento) vivificadas pela concordância recíproca» (Kant,
1998: 108). Quando livre, a relação harmónica das faculdades de
conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto é
«sentida no efeito sobre o ânimo (in der Wirkung auf das Gemüt
empfunden werden)» (Kant, 1998: 108).58 Kant anuncia-o desde logo
na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo – afirma ele,
aí, que «a finalidade subjetiva é (…) sentida, em seu efeito (in ihrer
Wirkung empfunden)» (Kant, 1995: 61). Entretanto, no mesmo texto,
o nosso autor acrescenta que «como uma condição meramente
subjetiva de um juízo não dá lugar a nenhum conceito determinado
do fundamento-de-determinação do mesmo, este só pode ser dado no
sentimento de prazer (im Gefühle der Lust)» (Kant, 1995: 61). A
conformidade a fins, formal, é sentida, então, como sentimento de
prazer.59 Trata-se, por conseguinte, de uma «representação estética
da conformidade a fins da natureza (ästhetische Vorstellung der
Zweckmäßigkeit der Natur)» (Kant, 1998: 73).

58
Fica, assim, respondida a «questão menor» do §9 (Kant, 1998: 107), a questão de
saber «de que modo nos tornamos conscientes de uma concordância subjectiva
recíproca das faculdades de conhecimento entre si no juízo de gosto» (Kant, 1998:
107). Esse modo é estético. Essa consciência é adquirida «[e]steticamente pelo
simples sentido interno e sensação (ästhetisch durch den bloßen innern Sinn und
Empfindung)» (Kant, 1998: 107). O sentimento do movimento simultaneamente livre
e harmónico entre as faculdades de conhecimento por ocasião da representação do
objecto é um sentimento sentido através do sentido interno.
59
Note-se que a sensação que está «imediatamente vinculada com o sentimento de
prazer e desprazer» é «aquela sensação (…) que o jogo harmonioso das duas
faculdades-de-conhecimento do Juízo, imaginação e entendimento, efetua no sujeito,
na medida em que, na representação dada, a faculdade-de-apreensão de uma e a
faculdade-de-exposição do outro são mutuamente favoráveis uma à outra, proporção
esta que, em tal caso, efetua por essa mera forma uma sensação (eine Empfindung)»
(Kant, 1995: 61).

54 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Pois bem, «a faculdade de ajuizar a conformidade a fins formal


(também chamada subjectiva) (die formale Zweckmäßigkeit (sonst auch
subjektive gennant)), mediante o sentimento do prazer ou desprazer (durch
das Gefühl der Lust oder Unlust)» é a «faculdade do juízo estética
(ästhetisch)» (Kant, 1998: 79).60 Essa faculdade é o gosto. A
«conformidade a fins formal (simplesmente subjectiva)» é ajuizada por
nós «mediante o gosto (esteticamente, pelo sentimento do prazer) (durch
Geschmack (ästhetisch, vermittelst des Gefühls der Lust)» (Kant, 1998:
78-79).61 Assim, apenas o gosto (a faculdade de juízo estética) pode conter
o princípio «que a faculdade do juízo coloca como princípio inteiramente
a priori na sua reflexão sobre a natureza», a saber, «o princípio de uma
conformidade a fins formal da natureza segundo as suas leis particulares
(empíricas) para a nossa capacidade de conhecimento» (Kant, 1998: 79).62
Jamais a parte da crítica da faculdade do juízo à qual pertence a
faculdade de juízo teleológica poderia conter um tal princípio, isto é, um
princípio que a faculdade do juízo colocasse como inteiramente a priori
na sua reflexão sobre a natureza. Tal é assim porque a faculdade de juízo
teleológica ajuíza «uma conformidade a fins real (objectiva) (einer realen
(objektiven) Zweckmäßigkeit)» e fá-lo «mediante o entendimento e a razão

60
Ela «decide, não através da concordância com conceitos, mas sim através do
sentimento (durch das Gefühl)» (Kant, 1998: 80).
61
É por isso que o juízo de gosto (o juízo reflexivo estético) é um juízo estético. Veja-
se o que Kant afirma no §15: «[o] juízo chama-se estético (ästhetisch) também
precisamente porque o seu fundamento de determinação não é nenhum conceito, mas
sim o sentimento (do sentido interno) (das Gefühl (des innern Sinnes)) daquela
unanimidade no jogo das faculdades do ânimo, na medida em que ela pode ser
somente sentida» (Kant, 1998: 119). Recordemos as palavras da Primeira Introdução:
«um juízo estético é aquele cujo fundamento-de-determinação está em uma sensação
que esteja imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer (in einer
Empfindung, die mit dem Gefühle der Lust und Unlust unmittelbar verbunden ist)»
(Kant, 1995: 61).
62
Neste contexto é de citar Tunhas. Segundo o comentador, a faculdade «que
determina a autonomia da faculdade de julgar» é «a faculdade de julgar estética»
(Tunhas, 2011: 70), a beleza é «o grau zero da filosofia» e a propedêutica à filosofia
é «uma crítica da beleza, ou, mais exactamente, das condições de possibilidade dos
juízos acerca da beleza» (Tunhas, 2011: 71).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 55


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(durch Verstand und Vernunft)» (Kant, 1998: 78-79). É «logicamente,


segundo conceitos (logisch, nach Begriffen)» que a faculdade de juízo
teleológica ajuíza «a conformidade a fins real (objectiva) da natureza»
(Kant, 1998: 79). De acordo com Kant,
pelo facto de não poder ser dado a priori absolutamente nenhum
princípio, nem mesmo a possibilidade deste, a partir do conceito de uma
natureza, como objecto da experiência, tanto no universal como no
particular, decorre daí que terá que haver fins objectivos da natureza, isto
é coisas que somente são possíveis como fins da natureza (als
Naturzwecke) (Kant, 1998: 79).
No entanto, tal como o nosso autor ressalva logo a seguir,
só a faculdade do juízo, sem conter em si para isso a priori um princípio
(ohne ein Prinzip dazu a priori in sich zu enthalten), contém em certos
casos (em certos produtos) a regra para fazer uso do conceito dos fins,
em favor da razão, depois que aquele princípio transcendental já
preparou o entendimento para este aplicar à natureza o conceito de um
fim (pelo menos segundo a forma) (Kant, 1998: 79).63
Assim, a faculdade de juízo teleológica
não é uma faculdade particular, mas sim somente a faculdade de juízo
reflexiva em geral na medida em que ela procede, como sempre acontece
no conhecimento teórico, segundo conceitos, mas atendendo a certos
objectos da natureza segundo princípios particulares, isto é os de uma
faculdade de juízo simplesmente reflexiva e não determinante dos
objectos (Kant, 1998: 80).64

63
Vejamos, de resto, o que Kant afirma mais à frente: «a faculdade do juízo usada
teleologicamente indica de forma precisa as condições sob as quais algo (por exemplo
um corpo organizado) deve ser ajuizado segundo a ideia de um fim da natureza; no
entanto ela não pode aduzir qualquer princípio a partir do conceito da natureza como
objecto da experiência que autorize atribuir àquela a priori uma referência a fins e que
leve a admitir, ainda que de forma indeterminada, esses fins a partir da experiência
efectiva desses produtos» (Kant, 1998: 80). O nosso autor justifica-o indicando que
«muitas experiências particulares têm que ser examinadas e consideradas sob a
unidade do seu princípio, para poder conhecer de forma somente empírica, num certo
objecto, uma conformidade a fins objectiva» (Kant, 1998: 80).
64
É precisamente «[p]or isso, e segundo a sua aplicação» que ela «pertence à parte
teórica da filosofia», embora «por causa dos princípios particulares que não são

56 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Regressemos ao juízo estético reflexivo (o juízo de gosto). É por ser


fundado sobre o princípio próprio da faculdade do juízo que, acerca do
juízo de gosto, pode afirmar-se que ele pertence «à faculdade-de-
conhecimento superior, e aliás ao Juízo (zum obern Erkenntnisvermögen
und zwar zur Urteilskraft), sob cujas condições subjetivas e no entanto
também universais é subsumida a representação do objeto» e que, mesmo
sendo um juízo estético, «é sempre um juízo-de-reflexão (immer ein
Reflexionsurteil ist)» (Kant, 1995: 61). Como, no juízo de gosto, «a
reflexão sobre uma representação dada precede o sentimento de prazer
(die Reflexion über eine gegebene Vorstellung vor dem Gefühle der Lust
vorhergeht)», a conformidade a fins subjectiva «é pensada, antes de ser
sentida (gedacht, ehe sie empfunden wird)» (Kant, 1995: 61). O juízo de
gosto assenta num sentimento de prazer, mas esse sentimento é despertado
porque, por ocasião da representação do objecto, as faculdades da
imaginação e do entendimento se dispõem livre mas harmonicamente
entre si. Assim, embora não haja uma subsunção das intuições da
faculdade da imaginação em conceitos do entendimento, o objecto é
representado como conforme a fins para um conhecimento em geral.65 Por
essa razão, através de um juízo simultaneamente estético e reflexivo, nós
consideramo-lo belo. O juízo de gosto baseia-se no «conceito de uma
conformidade a fins subjectiva da natureza, nas suas formas segundo leis
empíricas» (Kant, 1998: 78). Embora esse conceito

determinantes – tal como tem que acontecer numa doutrina», ela tenha de «constituir
uma parte particular da crítica» (Kant, 1998: 80).
65
Já vimos que a relação de harmonia livre entre as faculdades da imaginação e do
entendimento advém à consciência daquele que ajuíza por intermédio de um
sentimento de prazer. No entanto, o comprazimento só é sentido porque a relação
livremente alcançada – a saber, a harmonia das faculdades de conhecimento entre si,
que, enquanto não resultante da submissão das intuições em conceitos, no caso do
juízo de gosto, é estabelecida de um modo extraordinário, sendo, portanto, inesperada,
surpreendente – constitui a condição subjectiva do conhecimento. Aquele que ajuíza
sente um comprazimento porque o objecto que representa independentemente de
conceitos serve de ocasião para o cumprimento do objectivo geral do conhecimento:
a unificação do diverso.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 57


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

não seja de modo nenhum um conceito do objecto (kein Begriff vom


Objekt ist), mas sim somente um principio da faculdade do juízo (ein
Prinzip der Urteilskraft) para arranjarmos conceitos nesta multiplicidade
desmedida (para nos podermos orientar nela), nós consideramos todavia
a natureza como que numa relação às nossas faculdades de conhecimento
segundo a analogia de um fim (gleichsam eine Rücksicht auf unser
Erkenntnisvermögen nach der Analogie eines Zwecks); e assim nos é
possível considerar a beleza da natureza (die Naturschönheit) como
apresentação do conceito da conformidade a fins formal (simplesmente
subjectiva) (als Darstellung des Begriffs der formalen (bloß subjektiven)
Zweckmäßigkeit) (Kant, 1998: 78).
Uma tal conformidade a fins, formal, é, como já vimos, ajuizada
«mediante o gosto (esteticamente, pelo sentimento do prazer)» (Kant,
1998: 79). Pode afirmar-se, por conseguinte, que o gosto (a faculdade de
juízo estética) é «uma faculdade particular de ajuizar as coisas segundo
uma regra (nach einer Regel), mas não segundo conceitos (nicht nach
Begriffen)» (Kant, 1998: 80).

1.6. Ideia do supra-sensível como conceito de um fundamento do


princípio da conformidade a fins formal da natureza
Como já tivemos oportunidade de notar, a não referência a conceitos no
proferimento de um juízo de gosto é meramente a não referência a
conceitos determinados. O juízo de gosto não pode ter um conceito como
fundamento de determinação. Kant salienta-o ao longo da Crítica da
Faculdade do Juízo. No entanto, o nosso autor não deixa de acrescentar
que na beleza há uma referência a conceitos. Veja-se, por exemplo, desde
logo o §4, no qual ele assinala que «[o] comprazimento no belo tem que
depender da reflexão sobre um objecto, que conduz a um conceito
qualquer (sem determinar qual) (zu irgend einem Begriffe (unbestimmt
welchem) führt)» (Kant, 1998: 94), ou o primeiro parágrafo da “Analítica
do sublime” (§23), no qual nota que a sensação de prazer no belo, tal
como, de resto, a sensação de prazer no sublime, «não se prende a uma
sensação como a sensação do agradável, nem a um conceito determinado
como o comprazimento no bem, e contudo é referida a conceitos, se bem

58 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

que sem determinar quais (auf Begriffe, obzwar unbestimmt welche,


bezogen wird)» (Kant, 1998: 137). Esta chamada de atenção ganha
especial relevância no §57 – ao tentar resolver a antinomia do gosto, Kant
admite que «[a] algum conceito o juízo de gosto tem que se referir (auf
irgend einen Begriff muss sich das Geschmacksurteil beziehen), pois de
contrário ele não poderia absolutamente reivindicar validade necessária
para qualquer um» (Kant, 1998: 246). Tal como o nosso autor tem o
cuidado de acrescentar logo a seguir, porém, isso não significa que o juízo
de gosto seja «demonstrável a partir de um conceito» (Kant, 1998: 246).
O juízo de gosto não pode ter qualquer conceito determinado no seu
fundamento – e só através de um conceito determinado é que seria possível
demonstrar algo.
Pois bem, no entender de Kant, o único conceito sobre o qual o
juízo de gosto poderá fundar-se é o «conceito racional transcendental
do supra-sensível (der transzendentale Vernunftbegriff von dem
Übersinnlichen), que jaz no fundamento de toda [a intuição sensível]»
(Kant, 1998: 246), «o simples conceito racional puro do supra-
sensível (der bloße reine Vernunftbegriff von dem Übersinnlichen)
que se situa no fundamento do objecto (e também do sujeito que julga)
enquanto objecto dos sentidos, por conseguinte enquanto fenómeno»
(Kant, 1998: 247), «a ideia indeterminável do supra-sensível (die
unbestimmte Idee des Übersinnlichen) em nós» (Kant, 1998: 248).66

66
Na primeira observação que se segue ao §57, Kant refere-se a este conceito como
sendo «o conceito racional de substracto supra-sensível de todos os fenómenos em
geral» (Kant, 1998: 251); na segunda, o conceito de «um substracto inteligível (algo
supra-sensível, do qual o conceito é somente ideia e que não admite nenhum autêntico
conhecimento)» (Kant, 1998: 252), isto é, o conceito de um «substracto inteligível da
natureza fora de nós e em nós (…) enquanto coisa em si mesma» (Kant, 1998: 253);
no §78, já, portanto, na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, Kant refere-o
como o conceito do «supra-sensível», conceito «que temos que pôr na base da
natureza como fenómeno» (Kant, 1998: 338); ainda na segunda parte da Crítica da
Faculdade do Juízo, no §81, finalmente, o nosso autor refere-o como tratando-se do
conceito do «substracto supra-sensível da natureza, àcerca do qual nada podemos
positivamente determinar, a não ser que é o ser em si do qual apenas conhecemos o
fenómeno» (Kant, 1998: 350).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 59


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

É a esse conceito que o comprazimento no belo conduz, é a esse


conceito que o juízo de gosto se refere. À questão de saber se esta
tese entra em contradição com aquela segundo a qual o princípio do
gosto é o princípio da conformidade a fins formal da natureza,
responder-se à negativamente – este princípio é «uma Idéia da
natureza, cuja legalidade, sem uma relação da mesma a um substrato
supra-sensível, não pode ser entendida (eine Idee der Natur, deren
Gesetzmäßigkeit ohne ein Verhältnis derselben zu einem
übersinnlichen Substrat nicht verstanden werden kann )» (Kant, 1995:
85). Em última análise, então, o juízo de gosto funda-se sobre aquilo
para o qual o princípio da conformidade a fins formal da natureza
remete, a saber, a ideia do supra-sensível. 67

2. JUÍZO ESTÉTICO UNIVERSALMENTE VÁLIDO A PRIORI

2.1. Enquadramento
Na secção anterior, caracterizámos o juízo de gosto como juízo estético
reflexivo. Ao fazê-lo, elencámos um requisito que abrange todas as
exigências a satisfazer pelo juízo através do qual se declara belo um
objecto, a saber, basear-se apenas na observação de uma conformidade a
fins formal da representação do objecto para as nossas faculdades de
conhecimento, observação que depende de uma referência ao conceito
racional transcendental do supra-sensível. De facto, ao anunciar-se que o
juízo de gosto assenta unicamente no princípio dado pela faculdade do
juízo a si mesma (o princípio da conformidade a fins formal da natureza
para as nossas faculdades de conhecimento) anuncia-se ao mesmo tempo

67
Note-se, finalizando esta secção, que, no §57, Kant estabelece uma identificação
precisamente entre a ideia do supra-sensível e o conceito «de um fundamento em
geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a faculdade do juízo (einem
Begriffe eines Grundes überhaupt von der subjectiven Zweckmäßigkeit der Natur
für die Urteilskraft)» (Kant, 1998: 247). É sobre esse conceito que o juízo de gosto
se funda.

60 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

que um tal juízo não se funda naquilo que atrai, nem se funda em fins, em
conceitos determinados.
A independência de um juízo relativamente a atractivos ou conceitos
não esgota, no entanto, a sua caracterização enquanto juízo de gosto. Para
ser um juízo de gosto, um juízo tem de ser, no entender de Kant,
universalmente válido a priori. Assim, para caracterizarmos plenamente
o juízo de gosto, para caracterizarmos por completo o juízo através do qual
se declara belo um objecto – algo indispensável à elaboração de uma
resposta suficientemente justificada à questão de saber se é legítimo falar-
se de bela arte, questão que desde o início nos propusemos tratar – é
necessário mostrar em que termos o nosso autor considera o juízo de gosto
um juízo estético dotado de validade universal a priori
(Allgemeingültigkeit a priori).68 Tendo em vista a satisfação dessa
necessidade, a nossa próxima tarefa é a de explicitar a tentativa de
legitimação do juízo de gosto como juízo estético universalmente válido
a priori elaborada na Crítica da Faculdade do Juízo.
Antes de procedermos a uma tal explicitação, devemos enquadrar a
referida tentativa, notando que a sua pertinência se prende com o carácter
insuficiente das propostas estéticas quer do empirismo, quer do
racionalismo. De facto, as propostas apresentadas pelos empiristas são
entendidas por Kant como insuficientes para sustentar devidamente a
validade universal a priori do juízo de gosto: se aquilo que serve de
fundamento de determinação ao juízo de gosto for o prazer dos sentidos,
o comprazimento do gozo, então um tal juízo jamais pode ser
universalmente válido a priori. Mesmo que haja unanimidade entre todos
aqueles que ajuízam, essa unanimidade é uma unanimidade meramente

68
Embora, no §9, Kant fale várias vezes de «comunicabilidade universal (allgemeine
Mitteilbarkeit)» (Kant, 1998: 105, 106 e 108), não há, ao longo do seu texto, qualquer
indício de que comunicabilidade não seja sinónimo de validade. Precisamente no §9,
aliás, Kant contrasta a comunicabilidade universal com a validade privada (cf. Kant,
1998: 105), o que nos faz pensar que a relação entre comunicabilidade e validade é,
efectivamente, uma relação de sinonímia.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 61


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

contingente.69 Quanto às propostas apresentadas pelos racionalistas, não


obstante poderem garantir que o juízo de gosto é um juízo universalmente
válido a priori, de maneira nenhuma garantem a especificidade desse
juízo: no contexto do racionalismo, o juízo de gosto é, como tivemos
oportunidade de assinalar, um juízo de conhecimento, assim como a
beleza é uma perfeição.
Em segundo lugar, é relevante salvaguardar que a tentativa de
legitimação do juízo de gosto como juízo estético universalmente
válido a priori elaborada na Crítica da Faculdade do Juízo pode ser
uma tentativa múltipla. Entre os comentadores da terceira Crítica,
vários são aqueles que consideram serem diversas as tentativas
encetadas por Kant para fornecer uma dedução transcendental do
juízo de gosto. 70 Além disso, também no que diz respeito à localização
da argumentação de Kant existe uma variedade de pareceres. Donald
D. Crawford, por exemplo, fala de um argumento principal, estendido
e contínuo cujo desenvolvimento lógico é passível de ser dividido em
cinco estádios (cf. Crawford, 1974: 66-69). No entender do
comentador, apesar de mostrarem «como um prazer pode ser baseado
naquilo que é universalmente comunicável e, portanto, ser ele mesmo
universalmente comunicável», os primeiros quatro estádios «não
mostram que a mera comunicabilidade universal de um sentimento de

69
Ressalve-se, a este propósito, que Hume não deixa de sugerir um «estado são do
órgão» que pode ser suposto providenciar-nos um verdadeiro padrão de medida de um
gosto e sentimento» e «uma ideia da beleza perfeita» (Hume, 1997: #12). No entanto,
essa sugestão não é derivada do seu empirismo. Por essa razão, Paul Guyer coloca
Hume a par de Hutcheson, Burke e Home e indica que qualquer das soluções para o
problema do gosto apresentadas por esses autores assenta no apelo «a uma concepção
metafísica da humanidade como uma espécie única, com certas propriedades
essenciais, normais ou ideais, e incluindo um acordo básico no gosto entre estas
propriedades» (Guyer, 1997: 4). Ora, plasmando uma metafísica transcendente, uma
concepção desse tipo não poderá ser bem recebida pelo autor da Crítica da Razão
Pura.
70
Outros intérpretes há que questionam a necessidade de a Crítica da Faculdade do
Juízo envolver uma dedução transcendental. Rolf-Peter Horstmann é um deles (cf.
Horstmann, 1989).

62 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

prazer pode ser imputada a todos, digamos assim, como um dever» ,


sendo que, por essa razão, «[c]ompletar a dedução requer uma
transição do âmbito estético para o âmbito da moralidade» e, por
conseguinte, um quinto estádio (Crawford, 1974: 68).71

71
Crawford é partidário da tese segundo a qual a dedução transcendental do juízo de
gosto depende de algo que será transversal à Crítica da Faculdade do Juízo, a saber,
a ligação entre o gosto e a moralidade, a conexão entre o estético e o ético, a analogia
entre o juízo estético e o juízo moral. Essa tese é partilhada por R. K. Elliott, entre
outros, e assenta particularmente na afirmação de Kant, no §59, de acordo com a qual
«o belo é o símbolo do moralmente bom; e também somente sob este aspecto (uma
referência que é natural a qualquer um e que também se exige de qualquer outro como
dever) ele apraz com uma pretensão ao assentimento de todo o outro (das Schöne ist
das Symbol des Sittlich-Guten; und auch nur in dieser Rücksicht (einer Beziehung,
die jedermann natürlich ist, und die auch jedermann andern als Pflicht zumutet)
gefällt es mit einem Anspruche auf jedes andern Bestimmung)» (Kant, 1998: 262).
Elliott entende esta passagem como significando que «somente através da conexão
analógica entre o belo e o bom é que o juízo de gosto tem algum direito a exigir
universalidade e necessidade» (Elliott, 1968: 255). Crawford, por sua vez, indica que
«[a] assunção kantiana é claramente que a sensibilidade moral é o mesmo que, ou pelo
menos implica, uma sensibilidade para a base da moralidade» e que «[a]ssim, para
completar a dedução, Kant tem de argumentar ou assumir que a sensibilidade moral
implica uma sensibilidade para aquilo que simboliza a base da moralidade»
(Crawford, 1974: 149). Uma tal conclusão pode ser contestada. O seu problema mais
imediato prende-se com a ilegitimidade da exigência de sensibilidade a um mero
símbolo da moralidade. Apesar de podermos exigir a qualquer outro o cumprimento
da lei moral, não temos o direito de dele exigir sensibilidade para algo que meramente
simboliza a moralidade. Como nota Guyer, «a sensibilidade a um símbolo da
moralidade não é ela mesma um estado requerido para a performance moral, e assim
não é algo que pode ser exigido como parte de uma exigência para a acção moral»
(Guyer, 1997: 339). Concordamos, então, com as palavras que Guyer profere mais à
frente na sua obra: «Se uma representação simbólica de algo fosse a única
representação possível, e o conhecimento dessa matéria fosse justificadamente
exigido de todos, então talvez a sensibilidade ao seu símbolo pudesse também ser
universalmente exigida. Mas supor que isto é assim no caso da simbolização da
moralidade da beleza entraria em conflito com uma das mais fundamentais teses da
filosofia moral de Kant, a tese de que todos são imediatamente conscientes da sua
obrigação sob a lei moral. Na medida em que Kant mantém que esta consciência é
equivalente à consciência da sua liberdade, ele está então comprometido com a visão
de que todo o ser humano é imediatamente consciente do facto da sua liberdade; no
mínimo, Kant está certamente comprometido com a visão de que qualquer um pode
tornar-se consciente da sua liberdade simplesmente por reflexão acerca da sua

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 63


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Independentemente da necessidade que a dedução transcendental do


juízo de gosto eventualmente possa envolver de que se transite do
âmbito estético para o âmbito da moralidade, a posição de acordo com
a qual essa dedução constitui um argumento com as propriedades que
Crawford lhe atribui não é uma posição fácil de sustentar. Guyer
refere «três lugares diferentes e amplamente separados» nos quais
Kant tenta justificar a validade universal a priori do juízo de gosto
(Guyer, 1997: 233). Do ponto de vista do comentador, há «duas
tentativas principais de Kant para fornecer uma tal dedução» e uma
«tentativa final mas infeliz» (Guyer, 1997: 11).72 Ora, ainda segundo
Guyer, em nenhuma dessas tentativas é feita qualquer referência
explícita a qualquer das outras (cf. Guyer, 1997: 233 e 246), sendo
que «os §36 e §37 preparam o caminho para o §38 como se a questão
da validade intersubjectiva estivesse ainda completamente aberta,

obrigação sob a lei moral. Mas então nenhuma representação meramente indirecta ou
simbólica do imperativo categórico ou do facto da liberdade pode efectivamente ser
requerida para cumprimento das exigências da moralidade. Argumentar o contrário
seria minar uma parte básica da filosofia moral de Kant» (Guyer, 1997: 342). Note-se
que essa parte básica da filosofia moral de Kant não acaba com a segunda Crítica – é
de observar, a propósito, o que Kant afirma a fechar a Crítica da Faculdade do Juízo:
«É possível pensar que seres racionais se vissem rodeados por uma tal natureza que
não mostrasse qualquer traço claro de organização, mas somente efeitos de um
simples mecanismo da matéria bruta e de tal modo que, por ocasião da mudança de
algumas formas e relações finais simplesmente contingentes, não pareça existir algum
fundamento para inferir um autor do mundo inteligente. Não haveria nesse caso
qualquer oportunidade para uma teologia física e mesmo assim a razão – que não
recebe neste caso qualquer orientação através de conceitos da natureza – encontraria,
na liberdade e nas ideias morais que nela se fundam, um fundamento prático suficiente
para postular o conceito de ser originário a si adequado, isto é, de uma divindade, e a
natureza (mesmo da nossa própria existência) como um fim terminal, adequado àquele
e às suas leis e, na verdade, em consideração ao mandamento inevitável da razão
prática» (Kant, 1998: 413).
72
Ao longo do seu estudo, ele indica que as tentativas principais efectuadas por Kant
se localizam no §21, a primeira, e nos §38, intitulado “Dedução dos juízos de gosto”,
e §39, a segunda, sendo que, entre elas, no §30, está o título “Dedução dos juízos
estéticos puros”; quanto à tentativa final, essa é efectuada sob o título “Resolução da
antinomia do gosto”, na “Dialéctica da faculdade de juízo estética”.

64 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

mesmo depois do §21» (Guyer, 1997: 247) e, além disso, «os §38 e
§39 não fazem menção à questão aberta do §22, ou mesmo à distinção
entre princípios regulativos e constitutivos» (Guyer, 1997: 281).
Obviamente, estes factores tornam particularmente difícil a defesa da
tese de acordo com a qual na Crítica da Faculdade do Juízo há um
argumento único para justificar que o juízo de gosto é um juízo
estético universalmente válido a priori.
Independentemente da diversidade e da localização da
argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo
de gosto, facto é que ele recorre a vários elementos para tentar sustentar
uma tal validade. Tendo como objectivo mostrar em que termos o nosso
autor considera o juízo de gosto um juízo estético universalmente
válido a priori, reconstruiremos a sua argumentação através de um
percurso pelos diferentes elementos por ele mencionados, e assim a
explicitaremos. Começaremos precisamente pelo elemento com o qual
terminámos a secção anterior: o conceito racional transcendental do
supra-sensível.

2.2. Supra-sensível como fundamento da validade universal a priori


do juízo de gosto
No §59, depois de assinalar que aquilo que «o gosto tem em mira» é
«o inteligível (das Intelligibele)» (Kant, 1998: 262) Kant acrescenta
que a faculdade do gosto se refere ao «supra-sensível (das
Übersinnliche)» (Kant, 1998: 263). Acerca do supra-sensível, o nosso
autor assinala que ele «não é natureza e tão pouco liberdade», que
«contudo está conectado com o fundamento desta», e que, nele, «a
faculdade teórica está ligada, em vista da unidade, com a faculdade
prática de um modo comum e desconhecido» (Kant, 1998: 263). Com
estas afirmações, Kant retoma a posição adoptada no §57, segundo a
qual é no supra-sensível que se procura «o ponto de convergência de
todas as nossas faculdades a priori (der Vereinigungspunkt aller
unserer Vermögen a priori)» (Kant, 1998: 249). Pois bem, na medida
em que o conceito racional transcendental do supra-sensível «não se

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

pode absolutamente determinar por intuição», sendo «em si


indeterminável (an sich unbestimmbar)», portanto tendo em conta
que ele é «inapropriado para o conhecimento (zum Erkenntnis
untauglich)», que através dele «não se pode conhecer nada», que «a
partir [dele] nada pode ser conhecido e provado acerca do objecto»,
por conseguinte visto que «não permite apresentar nenhuma prova
para o juízo de gosto (kein Beweis für das Geschmacksurteil führen
lässt)» (Kant, 1998: 247) 73, é sobre esse conceito que, em última
análise, Kant tenta fundamentar a «referência ampliada (erweiterte
Beziehung)» do juízo de gosto «à representação do objecto (ao mesmo
tempo também do sujeito), sobre a qual fundamos uma extensão desta
espécie de juízos como necessária para qualquer um (der Vorstellung
des Objekts (zugleich auch des Subjekts), worauf wir eine
Ausdehnung dieser Art Urteile als notwendig für jedermann
gründen)» (Kant, 1998: 247). Colocando-o como princípio subjectivo
do gosto, Kant atribui ao juízo de gosto «validade para qualquer um
(em cada um na verdade como juízo singular que acompanha
imediatamente a intuição) (Gültigkeit für jedermann (bei jedem zwar
als einzelnes, die Anschauung unmittelbar begleitendes Urteil)»,
precisamente «porque o seu princípio determinante talvez se situe no
conceito daquilo que pode ser considerado como o substracto supra -
sensível da humanidade (Begriffe von demjenigen, was als das
übersinnliche Substrat der Menschheit angesehen werden kann )»
(Kant, 1998: 247), isto é, no «conceito, conquanto indeterminado
(nomeadamente do substracto supra-sensível dos fenómenos)
(obzwar unbestimmten Begriffe (nämlich vom übersinnlichen
Substrat der Erscheinungen))» (Kant, 1998: 248).

73
Na observação que se segue ao §57, Kant informa que um tal conceito «é já, quanto
à espécie, um conceito indemonstrável e uma ideia da razão» (Kant, 1998: 251), pois
«não pode em si ser dado na experiência absolutamente nada que lhe corresponda
quanto à qualidade» (Kant, 1998: 251). Entretanto, na “Crítica da Faculdade de Juízo
Teleológica”, no §78, o nosso autor indica que desse conceito «não podemos realizar
o menor conceito definido positivamente numa intenção teórica» (Kant, 1998: 338).

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JUÍZO DE GOSTO

A propósito da tentativa de Kant de fazer assentar a validade universal


a priori do juízo de gosto na ideia do supra-sensível, Guyer acusa o
nosso autor de, tal como os seus predecessores, não evitar recorrer a
uma unanimidade metafísica no que concerne ao gosto (cf. Guyer,
1997: 10), de transgredir os limites que ele próprio, Kant, estabeleceu
para a metafísica (cf. Guyer, 1997: 247), de ir além das fronteiras da
sua própria epistemologia (cf. Guyer, 1997: 311).74 Não discutiremos
a legitimidade do recurso de Kant a essa ideia. Limitamo-nos, por
agora, a assinalá-la. Mais à frente, explicitaremos a sua situação na
argumentação de Kant. Em resposta a Elliott (cf. Elliott, 1968),
Guyer refere que a “Dialéctica da faculdade de juízo estética” não é,
claramente, «a primeira tentativa de Kant para “enfrentar o problema
céptico”, mas pode ter sido pretendida como uma resposta última»
(Guyer, 1997: 299). Devemos concentrar-nos, por ora, nas outras
tentativas encetadas por Kant para justificar a validade universal a
priori do juízo de gosto – melhor: devemos concentrar-nos nos outros
elementos a que a argumentação de Kant recorre no sentido de assegurar
que o juízo de gosto é um juízo estético universalmente válido a priori.

2.3. O que significa um juízo de gosto ser universalmente válido a


priori?

Ainda antes de enunciarmos esses elementos, porém, será conveniente


compreender o que é a validade universal a priori que, segundo Kant,
caracteriza o juízo de gosto. Desde logo deve ser notado que, no §31,
imediatamente antes da explicitação das duas peculiaridades do juízo de
gosto, Kant assinala que essa subespécie de juízo estético é universalmente
válido a priori. Não restem dúvidas quanto à posição de Kant: de acordo

74
Assim, segundo o comentador, a tentativa de Kant é uma «tentativa final mas
infeliz» (Guyer, 1997: 11) que consiste numa «adenda completamente ilegítima à
dedução» (Guyer, 1997: 247) e que, como tal, poderá constituir uma das principais
«infelicidades expositivas da Crítica da Faculdade do Juízo» (Guyer, 1997:
277). Guyer afirma-o admitindo ser o próprio Kant quem, logo no §58, «coloca
algumas restrições ao voo do §57 na metafísica» (Guyer, 1997: 309).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

com as palavras do nosso autor, o juízo de gosto é dotado de «validade


universal a priori (Allgemeingültigkeit a priori)» (Kant, 1998: 182).
Nos juízos de gosto – sendo, tais juízos, juízos estéticos – aquele que
ajuíza refere representações empíricas singulares dadas meramente ao
seu sentimento de prazer ou desprazer, e portanto não aplica a essas
representações qualquer conceito determinado do objecto. Nessa medida,
estamos obrigados a afirmar que os juízos de gosto são juízos singulares. 75
Apesar disso, Kant atribui aos juízos de gosto uma validade universal a
priori, como acabámos de verificar. Segundo o nosso autor, de facto, aquele
que profere um juízo de gosto reivindica de todos os outros a aprovação,
reclama deles, sejam eles quem forem, sem excepção, o assentimento ao
seu juízo, singular, presume em qualquer um deles a adesão a esse juízo,
imputa-lhes, atribui-lhes, o mesmo comprazimento, como se este fosse
um predicado do conhecimento do objecto, exige-lhes o seu acordo. 76
O juízo de gosto não é, então, de acordo com Kant, um juízo cuja
validade se limita àquele que ajuíza – tal aproximá-lo-ia perigosamente

75
Kant afirma-o e explica-o no §8: «No que concerne à quantidade lógica, todos
os juízos de gosto são, juízos singulares (einzelne Urteile). Pois, porque tenho de
ater o objecto imediatamente ao meu sentimento de prazer, e contudo não através
de conceitos, assim aqueles não podem ter a quantidade de um juízo objectiva e
comummente válido» (Kant, 1998: 103). Entretanto essa tese é repetida nos §33
e §37, onde o nosso autor nota, respectivamente, que «o juízo de gosto é sempre
proferido como um juízo singular (als ein einzelnes Urteil) sobre o objecto»
(Kant, 1998: 186) e que «todos os juízos de gosto são juízos singulares (einzelne
Urteile), pois eles ligam o seu predicado do comprazimento, não a um conceito,
mas a uma representação empírica singular dada» (Kant, 1998: 191).
76
Esta tese é sublinhada, mais explicitamente, nuns casos, ou menos explicitamente,
noutros, ao longo de toda a Crítica da Faculdade do Juízo, por exemplo quando
está escrito, na Introdução, que o «sentimento de prazer (…) mediante o juízo de
gosto deve ser exigido a cada um (jedermann zugemutet werden soll)» (Kant, 1998:
76), no §6, que «[o] belo é o que é representado sem conceitos como objecto de
um comprazimento universal (eines allgemeinen Wohlgefallens)» e que «tem que se
atribuir ao juízo de gosto (…) uma reivindicação de validade para qualquer um (ein
Anspruch auf Gültigkeit für jedermann)» (Kant, 1998: 99), no já citado §7, que «se
[alguém] toma algo por belo, então atribui a outros (mutet andern) precisamente o
mesmo comprazimento» (Kant, 1998: 100) e «exige (fordert)» dos outros «o acordo
unânime (Einstimmung)» (Kant, 1998: 101), no também citado §8, «que pelo juízo

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JUÍZO DE GOSTO

do juízo acerca do agradável. Se os queremos distinguir um do outro, de


resto, não podemos limitar-nos a afirmar que a validade do juízo de gosto

de gosto (sobre o belo) imputa-se a qualquer um (dass man jedermann ansinne) o


comprazimento no objecto», que «no juízo de gosto sobre a beleza» cada um «presume
ao outro adesão (mutet dem andern Einstimmung zu) ao seu juízo de gosto», que
o «gosto da reflexão (…) profere pretensos juízos comummente válidos (públicos)
(vorgebliche gemeingültige (publike))» (Kant, 1998: 102) e que «se então chamamos
ao objecto, belo (…) reivindicamos a adesão de qualquer um (man macht Anspruch
auf den Beitritt von jedermann)» (Kant, 1998: 104), na explicação do belo inferida do
“Segundo momento do juízo de gosto, a saber segundo a sua quantidade”, que «[b]elo
é o que apraz universalmente (allgemein gefällt) sem conceito» (Kant, 1998: 108), na
“Analítica do sublime”, que, tal como os juízos acerca do sublime, os juízos acerca do
belo «se anunciam como universalmente válidos com respeito a cada sujeito (sich für
allgemeingültig in Ansehung jedes Subjekts ankündigende)» (Kant, 1998: 137), que, tal
como o comprazimento no sublime, o comprazimento no belo «tem que ser, segundo
a quantidade, de modo universalmente válido (allgemeingültig)» (Kant, 1998: 140)
e que «os juízos: o homem é belo, e: ele é grande, não se restringem meramente ao
sujeito que julga, mas reivindicam (…) o assentimento de qualquer um (verlangen
jedermanns Beistimmung)» (Kant, 1998: 142), no citado §31, que «o juízo de gosto
postula de qualquer um (jedermann ansinnt)» a «aprovação (Beifall)» (Kant, 1998:
182), no §33, que o juízo de gosto «estende a sua pretensão a todos os sujeitos (alle
Subjekte in Anspruch nimmt)» (Kant, 1998: 186), ou, finalmente, no §58, que o juízo
de gosto «exige a priori validade para qualquer um (a priori Gültigkeit für jedermann
fordert)» (Kant, 1998: 260). Entretanto, a propósito destas passagens, é de salientar
algo respeitante à sua tradução. Na tradução portuguesa por nós utilizada, os verbos
“muten” e “verlangen” são traduzidos por “atribuir” e “reivindicar”, respectivamente.
O verbo “zumuten”, por sua vez, é traduzido por “presumir”, numa passagem, e
“exigir”, noutra. Esta última tradução gera uma coincidência – ao longo da tradução
que fazem do texto de Kant, António Marques e Valério Rohden traduzem o verbo
“fordern” por “exigir”, como deve ser feito. Nenhuma dessas opções é problemática.
De facto, “zumuten” e “fordern” poderiam igualmente ser traduzidos por “reclamar”,
por exemplo. O mesmo não acontece com a tradução de “ansinnen” por “postular”.
Embora essa tradução seja legítima, importa notar que, no §8, Kant usa especificamente
o verbo “postulieren”, bem traduzido por “postular”. Fá-lo em duas passagens: «no
juízo de gosto nada é postulado (nichts postuliert wird)» e «[o] próprio juízo não
postula o acordo unânime de qualquer um (postuliert nicht jedermanns Einstimmung)»
(Kant, 1998: 104). O facto de nestas passagens Kant usar especificamente o verbo
“postulieren”, assim como o facto de pelo menos a segunda ser uma negação, tais
factos são por nós considerados razões suficientes para que se deva restringir a
“postulieren” a tradução por “postular”. É de notar, de resto, que, no mesmo parágrafo,

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 69


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

é extensível a todos os sujeitos ou que se trata simplesmente da «validade


universal de um juízo singular (allgemeine Gültigkeit eines einzelnen
Urteils)» (Kant, 1998: 181). Não obstante no juízo acerca do agradável,
como afirma Kant, no §7, «cada um [se resignar] com o facto de que o
seu juízo, que ele funda sobre um sentimento privado e mediante o qual
diz de um objecto que este lhe apraz, limita-se também simplesmente à
sua pessoa» (Kant, 1998: 100), pois, como continua o nosso autor, já no
parágrafo seguinte, o «gosto dos sentidos (…) profere meramente juízos
privados» (Kant, 1998: 102), é importante lembrar que um juízo acerca
do agradável pode ser comum a todos os homens, isto é, que todos os
homens podem estar de acordo em relação a algo ser agradável. Aquilo
que há a salientar, assim, é que, embora «efectiva e frequentemente se
encontre uma unanimidade muito ampla também nestes juízos [acerca do
agradável]» (Kant, 1998: 102), essa unanimidade é fruto não de regras
universais, mas, nuns casos, de regras gerais e empíricas ou, noutras
situações, do acaso, não sendo, então, um requisito essencial do juízo
através do qual se declara algo como agradável.77 Essa é, no contexto
da Crítica da Faculdade do Juízo, uma diferença específica entre o juízo

imediatamente a seguir às duas passagens por nós citadas, Marques e Rohden voltam
a traduzir “ansinnen” por “imputar” (cf. Kant, 1998: 105). Finalmente, devemos
aproveitar esta nota para referir o principal problema da tese de Crawford, segundo a
qual completar a dedução transcendental do juízo de gosto supõe a asserção de que a
sensibilidade para o que simboliza a base da moralidade é necessária à sensibilidade
moral. Mesmo que se justificasse que, enquanto indispensável à sensibilidade moral, a
sensibilidade para o que simboliza a base da moralidade é exigida de todos, tal apenas
reforçaria o valor da experiência da beleza – não serviria de suporte à afirmação do
juízo de gosto como juízo estético universalmente válido a priori. Daí a crítica de
Jeffrey Maitland, para quem uma tal tese não distingue «o problema de justificar
a possibilidade de juízos estéticos e o problema de justificar a importância da
experiência estética» (Maitland, 1976: 347). Os argumentos alicerçados no estatuto
simbólico do belo não justificam, assim, a imputação de acordo no gosto.
77
Remetendo para a parte final da “Observação geral sobre a exposição dos juízos
reflexivos estéticos”, diremos que uma tal unanimidade plasma meramente uma
«concordância acidental» (Kant, 1998: 178); remetendo para a segunda observação
que se segue ao §57, diremos que ela reside nas situações nas quais «os sujeitos
casualmente estejam uniformemente organizados» (Kant, 1998: 254).

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JUÍZO DE GOSTO

acerca do agradável e o juízo através do qual se declara algo como belo.


A reivindicação de universalidade é um requisito essencial somente do
juízo acerca da beleza.78

2.4. Necessidade e sensus communis

O comprazimento inerente ao juízo através do qual declaramos belo um


objecto é, então, segundo Kant, um comprazimento necessário.79 No

78
Vejam-se, nesse sentido, o §8, onde Kant afirma que «esta reivindicação de
universalidade pertence tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo
belo, que sem aí pensar aquela universalidade, ninguém teria ideia de usar essa
expressão (dieser Anspruch auf Allgemeingültigkeit so wesentlich zu einem Urteil
gehöre, wodurch wir etwas für schön erklären, daß, ohne dieselbe dabei zu denken,
es niemand in die Gedanken kommen würde, diesen Ausdruck zu gebrauchen), mas
tudo o que apraz sem conceito seria computado como agradável» (Kant, 1998:
102), o §32, onde ele assinala que «[o] juízo de gosto determina o seu objecto com
respeito ao comprazimento (como beleza) com uma pretensão do assentimento de
qualquer um, como se fosse objectivo (bestimmt seinen Gegenstand in Ansehung des
Wohlgefallens (als Schönheit) mit einem Anspruche auf jedermanns Bestimmung,
als ob es objektiv wäre)» e que «[d]izer “esta flor é bela” significa apenas o mesmo
que dizer dela a sua própria pretensão ao comprazimento de qualquer um (ihren
eigenen Anspruch auf jedermanns Wohlgefallen ihr nur nachfragen)» (Kant,
1998: 182), e o §33, no qual nota que «unicamente aquilo pelo qual considero
uma tulipa singular bela, isto é, pelo que considero o meu comprazimento nela
válido universalmente, é um juízo de gosto (dasjenige, wodurch ich eine einzelne
gegebene Tulpe schön, d. i. mein Wohlgefallen an derselben allgemeingültig,
finde, ist allein das Geschmacksurteil)» (Kant, 1998: 186).
79
São várias as passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que o sublinham. No
§9, Kant nota que «se denominamos algo belo, imputamos o prazer que sentimos a
todo o outro como necessário (muten wir jedem andern als notwendig zu) no juízo
de gosto» (Kant, 1998: 107); no primeiro parágrafo do “Quarto momento do juízo
de gosto segundo a modalidade do comprazimento no objecto”, §18, assinala que
«[d]o belo (…) se pensa que ele tenha uma referência necessária ao comprazimento
(eine notwendige Beziehung auf das Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 128); mais à
frente, na explicação do belo que infere do momento citado, Kant conclui que
«[b]elo é o que é conhecido sem conceito como objecto de um comprazimento
necessário (notwendigen Wohlgefallens)» (Kant, 1998: 132); no §24, já, portanto,
na “Analítica do sublime”, o nosso autor afirma que o comprazimento no sublime é,
segundo a modalidade, como o comprazimento no belo, ou seja, tem de representar a

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

entender do nosso autor, o juízo de gosto afirma uma necessidade.80 O


facto de que o juízo de gosto seja não um juízo lógico, mas, sim, um juízo
estético, fundado, portanto, no sentimento de prazer que se liga à
representação do objecto percepcionado, faz com que a necessidade que
afirma não possa ser, porém, uma necessidade objectiva.81 É importante

conformidade a fins subjectiva «como necessária (als notwendig)» (Kant, 1998: 140);
no §36, Kant diz que o juízo de gosto é «um juízo formal de reflexão, que imputa [o
comprazimento que acompanha a representação do objecto] como necessário (als
notwendig) a qualquer um» (Kant, 1998: 190); no parágrafo imediatamente a seguir
(§37) identifica a declaração de um objecto como belo com a imputação do
comprazimento «em qualquer um como necessário (als notwendig)» (Kant, 1998:
191); finalmente, no §57 o nosso autor refere que «no juízo de gosto está sem dúvida
contida uma referência ampliada à representação do objecto (ao mesmo tempo
também do sujeito), sobre a qual fundamos uma extensão desta espécie de juízos como
necessária (als notwendig) para qualquer um» (Kant, 1998: 247).
80
É isso que é reforçado nos §31 e §35 (cf. Kant, 1998: 182 e 188), por exemplo; mas,
desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant
repetidamente indica que os juízos reflexivos estéticos «têm pretensão à necessidade
(machen auf Notwendigkeit Anspruch)» (Kant, 1995: 77).
81
De acordo com o §18, «ela não é uma necessidade objectiva teórica (eine
theoretische objektive Notwendigkeit) na qual pode ser conhecido a priori que
qualquer um sentirá este comprazimento no objecto que denomino belo», pois,
«[v]isto que um juízo estético não é nenhum juízo objectivo e de conhecimento»,
então a necessidade que lhe é inerente «não pode ser deduzida de conceitos
determinados e não é pois apodíctica (apodiktisch)» (Kant, 1998: 128); não é, além
disso, e de acordo com o que está escrito no mesmo parágrafo, «uma necessidade
prática (praktisch), na qual através de conceitos de uma vontade racional pura, a qual
serve de regra a entes que agem livremente, este comprazimento é a consequência
necessária de uma lei objectiva e não significa senão que simplesmente (sem intenção
ulterior) se deve agir de um certo modo» (Kant, 1998: 128). Finalmente, tendo em
conta não tanto «que a experiência dificilmente conseguiria documentos
suficientemente numerosos» para inferir a necessidade que o juízo de gosto afirma,
mas, acima de tudo, que «nenhum conceito de necessidade pode fundamentar-se sobre
juízos empíricos», então «[m]uito menos pode ela ser inferida da universalidade da
experiência (de uma unanimidade universal dos juízos sobre a beleza de um certo
objecto)» (Kant, 1998: 128). De resto, na Primeira Introdução, Kant chama «disparate
manifesto» à afirmação segundo a qual um juízo «deve valer universalmente porque
efetivamente, como a observação prova, ele vale universalmente, e vice-versa, que,
de que cada qual julga de certa maneira, se segue que ele deve também julgar assim»
(Kant, 1995: 77).

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JUÍZO DE GOSTO

notar que «[o] gosto reivindica simplesmente autonomia ([d]er


Geschmack macht bloß auf Autonomie Anspruch)» (Kant, 1998: 183). Se
a aprovação de qualquer um, imputada pelo juízo de gosto, pudesse ser
imposta mediante argumentos a priori ou se cada um se deixasse
convencer através de argumentos empíricos, então, em qualquer desses
casos, um tal juízo seria não um juízo autónomo, mas um juízo
determinado por elementos estranhos a ele, o que denotaria uma
heteronomia com a qual a faculdade de juízo estética perderia a sua
capacidade legisladora.82
Ainda assim, um juízo que afirma necessidade tem de referir-se a um
princípio a priori.83 Não obstante as restrições assinaladas, nada impede
que esse princípio seja subjectivo, que a necessidade inerente ao juízo de
gosto assente num princípio subjectivo: apesar de o fundamento no qual
uma necessidade tem de basear-se ser obrigatoriamente um princípio a
priori, pois um conceito de necessidade não pode assentar em juízos
empíricos, um tal princípio não tem de ser um princípio objectivo. Kant
propõe-no no §20, nomeadamente ao assinalar que os juízos de gosto «têm
que possuir um princípio subjectivo (ein subjektives Prinzip), o qual
determine, somente através de sentimento e não de conceitos, e contudo
de modo universalmente válido, o que apraz ou desapraz» (Kant, 1998:
129).84 Ora, precisamente no mesmo parágrafo (§20) Kant afirma que

82
Por o gosto reivindicar simplesmente autonomia, e, portanto, por o seu juízo, isto é,
o juízo através do qual se declara belo um objecto, um juízo estético, ser um juízo
autónomo, por isso é que «[n]ão há» (Kant, 1998: 208), como é dito no §44, «nem
pode haver» (Kant, 1998: 264), como é acrescentado no §60, «uma ciência do belo»
(Kant, 1998: 208 e 264). Se houvesse ou pudesse haver uma ciência do belo, então
«deveria (…) ser decidido nela cientificamente, isto é por argumentos, se algo deve
ser tido por belo ou não; portanto se o juízo sobre a beleza pertencesse à ciência, ele
não seria nenhum juízo de gosto» (Kant, 1998: 208).
83
Tal como Kant assinala na Primeira Introdução, «a referência a um princípio a
priori pode e deve ter lugar, sempre que o juízo tem pretensão a necessidade (die
Beziehung auf ein Prinzip a priori kann und muss immer noch statt finden, wo das
Urteil auf Notwendigkeit Anspruch macht)» (Kant, 1995: 77).
84
Ele sublinha essa tese no §36, ao referir que o princípio a priori que tem de situar-
se no fundamento de um juízo formal de reflexão que imputa o comprazimento que

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

«[u]m tal princípio», subjectivo, «somente poderia ser considerado como


um sentido comum (als ein Gemeinsinn)» (Kant, 1998: 129).
É no §40 que o nosso autor apresenta a mais detalhada e explícita
descrição que na Crítica da Faculdade do Juízo podemos encontrar da
noção de sentido comum (sensus communis). Assinala Kant:
[p]or sensus communis (…) tem que se entender a ideia de um sentido
comunitário, isto é de uma faculdade de julgamento, que na sua reflexão
considera em pensamento (a priori) o modo de representação de todo o
outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim
escapar à ilusão que – a partir de condições privadas subjectivas, as quais
facilmente poderiam ser tomadas por objectivas – teria influência
prejudicial sobre o juízo (die Idee eines gemeinschaftlichen Sinnes, d. i.
eines Beurteilungsvermögens verstehen, welches in seiner Reflexion auf
die Vorstellungsart jedes andern in Gedanken (a priori) Rücksicht
nimmt, und gleichsam an die gesammte Menschenverunft sein Urteil zu
halten und dadurch der Illusion zu entgehen, die aus subjektiven
Privatbedingungen, welche leicht für objektiv gehalten werden könnten,
auf das Urteil nachteiligen Einfluß haben würde) (Kant, 1998: 196).
Ao ajuizar através dessa faculdade, aquele que ajuíza abstrai o seu juízo
de tudo aquilo que atrai ou comove e funda esse juízo unicamente no que
é comum a todos os homens, a saber, o nível formal da representação do
objecto.85 Trata-se, aqui, da adopção de «um ponto de vista universal (ein

acompanha a representação do objecto como necessário a qualquer sujeito «pode ser


um princípio simplesmente subjectivo (bloß subjektives) (na suposição de que um
princípio objectivo devesse ser impossível em tal espécie de juízos)» (Kant, 1998:
190). Imediatamente antes da “Dedução dos juízos estéticos puros”, o nosso autor
afirmava que no caso de um juízo de gosto ter de «valer necessariamente como plural,
se a gente o reconhece como algo que, ao mesmo tempo, pode reclamar que qualquer
um deva dar-lhe a sua adesão, então no seu fundamento tem que situar-se algum
princípio a priori (seja ele objectivo ou subjectivo (subjektives))» (Kant, 1998: 178).
85
É «na medida em que simplesmente abstraímos das limitações que acidentalmente
aderem ao nosso próprio julgamento: o que é por sua vez produzido pelo facto que na
medida do possível se elimina aquilo que no estado da representação é matéria, isto é
sensação», é assim que se presta atenção «pura e simplesmente às peculiaridades
formais da sua representação ou do seu estado de representação (die formalen
Eigentümlichkeiten seiner Vorstellung oder seines Vorstellungszustandes)» (Kant,
1998: 196).

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JUÍZO DE GOSTO

allgemeiner Standpunkt)» (Kant, 1998: 198) que faz com que o sujeito
pense «no lugar de todo o outro ([a]n der Stelle jedes andern)» (Kant,
1998: 196) e assim cumpra a máxima «da faculdade do juízo» (Kant,
1998: 198), a saber, a «segunda máxima da maneira de pensar
(Denkungsart)» (Kant, 1998: 197), a «maneira de pensar alargada
(erweitert)» (Kant, 1998: 196-197).
No caso de, ao fazê-lo, o sujeito adquirir consciência de que as
faculdades da imaginação e do entendimento se exercitam reciprocamente
num jogo subjectivamente conforme a fins, nesse caso ele reivindicará de
todos os outros a aprovação, reclamará deles, forem eles quem forem, sem
excepção, o assentimento ao seu juízo, singular, presumirá em qualquer
um deles a adesão a esse juízo, imputar-lhes-á, atribuir-lhes-á, o mesmo
comprazimento, como se esse fosse um predicado do conhecimento do
objecto, exigir-lhes-á o seu acordo. Tal acontecerá porque a disposição
consonante entre as faculdades do juízo, mais livremente alcançada, como
acontece no juízo de gosto, ou menos, é universalmente comunicável.86

86
No §21, Kant defende que o conhecimento é universalmente comunicável:
«[c]onhecimentos e juízos, juntamente com a convicção que os acompanha, têm que
poder comunicar-se universalmente (müssen allgemein mitteilen lassen); pois de
contrário eles não alcançariam nenhuma concordância com o objecto: eles seriam em
suma um jogo simplesmente subjectivo das faculdades de representação,
precisamente como o cepticismo o reclama» (Kant, 1998: 129-130). O conhecimento
tem como condição indispensável a sua comunicabilidade universal. Sabemos, além
disso, que, de acordo com Kant, o que se requer para um conhecimento em geral é
uma relação de unanimidade entre as faculdades da imaginação e do entendimento
por ocasião da representação de um objecto. Essa tese é, como já notámos, reforçada
pelo nosso autor ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo, concretamente na
Primeira Introdução, na Introdução, no §9, no §21, que agora citamos, e nos §35, §38,
§39 e §58. Pois bem, se o conhecimento é universalmente comunicável e se para se
conhecer é condição subjectiva a referida relação das faculdades de conhecimento
entre si, então essa relação é algo que, segundo Kant, pode ser pressuposto em
qualquer pessoa. Se «conhecimentos devem poder comunicar-se», então, defende o
nosso autor, «também o estado do ânimo, isto é a disposição das faculdades de
conhecimento para um conhecimento em geral, e na verdade aquela proporção que se
presta a uma representação (pela qual um objecto nos é dado), para fazer dela um
conhecimento, tem que poder comunicar-se universalmente (muss sich auch der
Gemütszustand, d. i. die Stimmung der Erkenntniskräfte zu einer Erkenntnis

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

É sobre a pressuposição de um sentido comum, então, que, de acordo


com Kant, o juízo de gosto faz assentar a sua necessidade. Essa
necessidade, baseada num princípio subjectivo, e sendo, por conseguinte,
uma necessidade subjectiva, não objectiva, é, ainda assim, uma
necessidade a priori, precisamente porque assente num sentido comum.87
Esse sentido comum, considerando o que se escreve no §40, é o gosto.88

überhaupt, und zwar diejenige Proportion, welche sich für eine Vorstellung (wodurch
uns ein Gegenstand gegeben wird) gebührt, und daraus Erkenntnis zu machen,
allgemein mitteilen lassen); porque sem esta condição subjectiva do conhecer o
conhecimento como efeito não poderia surgir» (Kant, 1998: 130). Importa notar,
finalmente, que, embora, por questões metodológicas, tenhamos seguido o raciocínio
plasmado no §21, a posição exposta na passagem transcrita tinha sido já assumida por
Kant, no §9, enquanto aí era sugerido que se o conhecimento determinado, baseado
na mencionada relação subjectiva como condição subjectiva, é universalmente
comunicável, então «esta relação subjectiva própria do conhecimento em geral tem de
valer também para todos e consequentemente ser universalmente comunicável (díeses
zum Erkenntnis überhaupt schickliche subjektive Verhältnis eben so wohl für
jedermann gelten und folglich allgemein mitteilbar sein müsse)» (Kant, 1998: 106-
107). Essa posição é reforçada quer ainda no mesmo parágrafo, no qual Kant refere
que, por ser exigida «para todo o conhecimento», a «consonância proporcionada» é
por nós considerada «válida para qualquer um que está destinado a julgar através do
entendimento e sentidos coligados (para todo homem) (für jedermann, der durch
Verstand und Sinne in Verbindung zu urteilen bestimmt ist (für jeden Menschen),
gültig)» (Kant, 1998: 108), quer no §38, quando o nosso autor assinala que é
«requerido para o conhecimento possível em geral» que a «condição subjectiva» possa
ser pressuposta «em todos os homens (in allen Menschen)» (Kant, 1998: 192).
87
Esta nossa afirmação está plasmada nos próprios títulos dos §19, §20 e §22,
respectivamente: «A necessidade subjectiva que atribuímos ao juízo de gosto é
condicionada (bedingt)» (Kant, 1998: 128), «A condição (Die Bedingung) da
necessidade que um juízo de gosto pretende é a ideia de um sentido comum» (Kant,
1998: 129) e «A necessidade do assentimento universal que é pensada num juízo de
gosto, é uma necessidade subjectiva, que sob a pressuposição de um sentido comum
é representada como objectiva (eine subjektive Notwendigkeit, die unter der
Voraussetzung eines Gemeinsinns als objektiv vorgestellt wird)» (Kant, 1998: 130).
88
Veja-se o título do parágrafo: «Do gosto como uma espécie de sensus communis
(Vom Geschmacke als einer Art von sensus communis)» (Kant, 1998: 195). Numa
nota a esse parágrafo, Kant afirma mesmo que se pode «designar o gosto como sensus
communis aestheticus (durch sensus communis aestheticus)» (Kant, 1998: 269).
Lembremos que o gosto é a «faculdade do juízo estética», como é assinalado na
Introdução, e que através dos juízos de gosto se ajuíza «a conformidade a fins formal

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JUÍZO DE GOSTO

2.5. Necessidade subjectiva, necessidade e validade exemplares, voz


universal
É importante ressalvar, no entanto, que, tal como é afirmado no §8, «[o]
próprio juízo de gosto não postula o acordo unânime de qualquer um
(postuliert nicht jedermanns Einstimmung) (pois isto só pode fazê-lo um
juízo lógico-universal, porque ele pode alegar razões)» (Kant, 1998: 104-
105).89 No §22, Kant reforça essa tese – fá-lo ao salvaguardar que o gosto,
enquanto sentido comum, «não diz que qualquer um irá concordar com o
nosso juízo (sagt nicht, dass jedermann mit unserm Urteile
übereinstimmen werde)» (Kant, 1998: 131). Aquilo que o sentido comum
diz, nas palavras do nosso autor, é que qualquer um «deve concordar
(zusammenstimmen solle)» com o referido juízo (Kant, 1998: 131).90 Ora,
embora seja certo que, ainda no §22, Kant caracteriza o dever (das Sollen)

(também chamada subjectiva), mediante o sentimento do prazer ou desprazer» (Kant,


1998: 79). Por outras palavras: ajuizar através do gosto significa ajuizar através de um
sentido comum que tem em conta unicamente o sentimento de prazer na observação
da conformidade a fins do movimento simultaneamente livre e harmónico das
faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que se faz do
objecto. De resto, considerando que o sentimento de uma tal disposição das faculdades
da imaginação e do entendimento entre si é, como seguidamente veremos,
universalmente comunicável, Kant acrescentará, também no §40, que «[p]oder-se-ia
até definir o gosto pela faculdade de julgamento daquilo que torna o nosso sentimento,
numa representação dada, universalmente comunicável, sem mediação de um conceito
(durch das Beurteilungsvermögen desjenigen, was unser Gefühl an einer gegebenen
Vorstellung ohne Vermittelung eines Begriffs allgemein mitteilbar macht)» e que «o
gosto é a faculdade de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos que são
ligados a uma representação dada (sem mediação de um conceito) (das Vermögen, die
Mitteilbarkeit der Gefühle, welche mit gegebener Vortsellung (ohne Vermittelung
eines Begriffs) verbunden sind, a priori zu beurteilen)» (Kant, 1998: 198).
89
Esta é uma das passagens do §8 nas quais Kant usa especificamente o verbo
“postulieren”, traduzido, correctamente, por “postular”.
90
Desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma
que os juízos reflexivos estéticos «[t]êm pretensão a necessidade, e não dizem que
cada qual julga assim – com isto seriam um problema de explicação para a psicologia
empírica – mas que se deve julgar assim (sagen nicht, dass jedermann so urteile –
dadurch sie eine Aufgabe zur Erklärung für die empirische Psychologie sein würden
– sondern dass man so urteilen solle)» (Kant, 1995: 77).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

como «a necessidade objectiva da confluência do sentimento de qualquer


um com o sentimento particular de cada um (die objektive Notwendigkeit
des Zusammenfließens des Gefühls von jedermann mit jedes seinem
besondern)» (Kant, 1998: 131), já assinalámos que a necessidade inerente
ao juízo de gosto é uma necessidade subjectiva. Assim sendo, num juízo
de gosto, o dever – usando as palavras do §19 – «é portanto expresso só
condicionadamente (nur bedingt ausgesprochen)» (Kant, 1998: 128).
Uma outra noção que Kant utiliza para caracterizar a necessidade
subjectiva inerente ao juízo de gosto é a noção de necessidade exemplar
(exemplarische Notwendigkeit). Essa necessidade, de acordo com o que o
nosso autor escreve no §18, é «uma necessidade do assentimento de todos
a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal que
não se pode indicar (eine Notwendigkeit der Bestimmung aller zu einem
Urteil, was als Beispiel einer allgemeinen Regel, die man nicht angeben
kann, angesehen wird)» (Kant, 1998: 128). Ora, precisamente por
constituir um exemplo é que o juízo de gosto tem aquilo a que alguns
parágrafos depois, no §22, Kant chama «validade exemplar
(exemplarische Gültigkeit)» (Kant, 1998: 131). Cada juízo que com ele
concorda é, neste contexto, uma instância da referida regra universal que
não se pode indicar. Usando as palavras do §8, diremos que o acordo é
«um caso da regra (einen Fall der Regel)» (Kant, 1998: 105). É no mesmo
§8, de resto, que Kant salvaguarda que a única coisa que o juízo de gosto
«postula (postuliert)» é uma «voz universal (allgemeine Stimme) com
vista ao comprazimento sem mediação dos conceitos; por conseguinte a
possibilidade de um juízo estético, que ao mesmo tempo possa ser
considerado como válido para qualquer um» (Kant, 1998: 104).91

2.6. Justificação do sentido comum


Pois bem, embora a citada voz universal seja, como é afirmado ainda no
§8, «somente uma ideia (nur eine Idee)» (Kant, 1998: 105), embora o

91
Esta é a primeira das passagens do §8 nas quais Kant usa especificamente o verbo
“postulieren”.

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JUÍZO DE GOSTO

sensus communis, seja, como mais à frente, no §22, se escreve, «uma


simples norma ideal (eine bloße idealische Norm)», este pode ser, de
acordo com Kant, «admitido como subjectivo-universal (uma ideia
necessária para qualquer um) (für subjektiv-allgemein (eine jedermann
notwendige Idee) angenommen)» (Kant, 1998: 131). Pode sê-lo na medida
em que se esteja autorizado a admiti-lo como condição indispensável à
validade universal do conhecimento. No §21, tal como tivemos
oportunidade de assinalar, Kant defende que, se o conhecimento é
universalmente comunicável, então a disposição das faculdades da
imaginação e do entendimento entre si para um conhecimento em geral
também o é. Ora, ainda nesse parágrafo, o nosso autor acrescenta,
primeiro, que a referida disposição das faculdades de conhecimento é algo
cujo sentimento também é universalmente comunicável e, logo a seguir,
que, pressupondo a comunicabilidade universal de um sentimento um
sentido comum, então um tal sentido pode ser admitido como condição
sine qua non da comunicabilidade universal do conhecimento:
visto que esta própria disposição [das faculdades de conhecimento para
um conhecimento em geral] tem que poder comunicar-se universalmente
e, por conseguinte também o sentimento da mesma (numa representação
dada), mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento
pressupõe um sentido comum: assim este poderá ser admitido com razão
(die allgemeine Mitteilbarkeit eines Gefühls setzt einen Gemeinsinn
voraus: so wird dieser mit Grunde angenommen werden können), e na
verdade sem neste caso se apoiar em observações psicológicas, mas
como a condição necessária da comunicabilidade universal do nosso
conhecimento, a qual é pressuposta em toda a lógica e em todo o
princípio dos conhecimentos que não seja céptico (Kant, 1998: 130).
A tentativa de justificação do sentido comum está, assim, efectuada. Com
ela é dado, no entender de Kant, um passo indispensável para a dedução
transcendental do juízo estético reflexivo.
De resto, apesar de o comprazimento no belo (o prazer sentido por
ocasião do proferimento de um juízo de gosto) ser um prazer cuja
necessidade é subjectiva, essa sua necessidade é, no entanto, segundo
Kant, uma necessidade a priori que assenta numa condição universal. O

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 79


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

juízo através do qual se declara belo um objecto, a saber, o juízo de gosto,


é, então, de acordo com o nosso autor, um juízo dotado de validade
universal a priori, não obstante essa validade universal não ser uma
universalidade lógica. Embora esta posição seja explicitada no §31,
concretamente quando Kant identifica universalidade subjectiva
(subjektive Allgemeinheit) com «o assentimento de qualquer um
(jedermanns Beistimmung)» (Kant, 1998: 181) e refere que a validade
universal a priori do juízo de gosto não é «uma universalidade lógica
segundo conceitos mas a universalidade de um juízo singular (die
Allgemeinheit eines einzelnen Urteils)» (Kant, 1998: 182), a sua
possibilidade assenta logo no §6, onde se assinala que a reivindicação que
tem de ligar-se ao juízo de gosto é «uma reivindicação de universalidade
subjectiva (ein Anspruch auf subjektive Allgemeinheit)» (Kant, 1998:
100), e no §8, em cujo título o nosso autor afirma que «[a] universalidade
do comprazimento é representada num juízo de gosto somente como
subjectiva ([d]ie Allgemeinheit des Wohlgefallens wird in einem
Geschmacksurteile nur als subjektiv vorgestellt)» (Kant, 1998: 101).92

2.7. Um princípio
Regressemos, agora, ao princípio do gosto. Importa fazer um
esclarecimento concernente à relação entre o sentido comum e o princípio
da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de

92
Igualmente no §8, Kant acrescenta as expressões validade comum
(Gemeingültigkeit) e universalidade estética (ästhetische Allgemeinheit) para
designar essa universalidade subjectiva e distingui-la da universalidade lógica: de
acordo com Kant, o juízo de gosto é dotado de uma «validade comum, a qual designa
a validade não da referência de uma representação à faculdade de conhecimento, mas
ao sentimento de prazer e desprazer para cada sujeito» (Kant, 1998: 103); a sua
universalidade é uma «universalidade estética», que «não conecta o predicado da
beleza ao conceito do objecto, considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto
estende o mesmo sobre a esfera inteira dos que julgam» (Kant, 1998: 103); aquilo que
ele traz consigo é não uma «quantidade objectiva do juízo, mas somente uma
subjectiva (nur eine subjektive)» (Kant, 1998: 103), ou seja, «uma quantidade estética
da universalidade, isto é, da validade para qualquer um (eine ästhetische Quantität der
Allgemeinheit, d. i. der Gültigkeit für jedermann)» (Kant, 1998: 104).

80 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

conhecimento. Na passagem para a “Dedução dos juízos estéticos puros”,


Kant afirma que «sem que [o gosto] mesmo tenha princípios a priori, ser-
lhe-ia impossível dirigir os juízos de outros e, com pelo menos alguma
aparência de direito, apresentar pretensões de aprovação ou rejeição a
respeito deles (ohne dass derselbe Prinzipien a priori habe, könnte er
unmöglich die Urteile anderer richten und über sie auch nur mit einigem
Scheine des Rechts Billigungs – oder Verwerfungsaussprüche fällen)» e
que «[a] pretensão de um juízo estético à validade universal para todo o
sujeito carece, como um juízo que tem de apoiar-se sobre algum princípio
a priori, de uma dedução (isto é, de uma legitimação da sua presunção)
([d]er Anspruch eines ästhetischen Urteils auf allgemeine Gültigkeit für
jedes Subjekt bedarf als ein Urteil, welches sich auf irgend ein Prinzip a
priori fußen muss, einer Deduktion (d. i. Legitimation seiner Anmaßung)»
(Kant, 1998: 179). Assumir que a condição na qual a reivindicação de
universalidade do juízo de gosto (universalidade estética, subjectiva,
validade comum) assenta é a pressuposição de um sentido comum, tal não
resulta na afirmação de uma multiplicidade de princípios para o juízo de
gosto. O princípio a priori do gosto – e, portanto, do juízo de gosto – é o
princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas
faculdades de conhecimento. Segundo Kant, a legalidade desse princípio
só pode ser entendida por relação ao conceito racional transcendental do
supra-sensível: a ideia do supra-sensível é o fundamento da referida
conformidade.93 Ora, através da introdução do gosto como sentido

93
É como condição do entendimento da legalidade do princípio da conformidade a
fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento que se situa a ideia
do supra-sensível na argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do
juízo de gosto. Indicará Guyer, neste contexto, que Kant parece supor que a
conformidade a fins na qual consiste o movimento livre e harmónico das faculdades
de conhecimento entre si, estabelecida para nós pela nossa própria natureza, só pode
ser explicada «se transcendermos os limites do mundo empírico e as faculdades
necessárias para compreendê-lo e, em vez disso, invocarmos alusões à realidade
numénica» (Guyer, 1997: 304). À questão de saber se uma tal explicação é necessária
e, portanto, à questão de saber se a recorrência à ideia do supra-sensível é
indispensável, ou, sequer, útil, a essa questão podemos abster-nos de responder

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 81


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

comum, Kant procura licenciar a ligação de um sentimento de prazer (o


comprazimento da reflexão, não o comprazimento dos sentidos) ao
mencionado princípio da conformidade a fins formal da natureza para as
nossas faculdades de conhecimento. É assim que ele tenta legitimar a
«reivindicação de universalidade» que diz pertencer «tão essencialmente
a um juízo pelo qual declaramos algo belo» (Kant, 1998: 102); é assim
que ele tenta sustentar «a validade universal de um juízo singular» (Kant,
1998: 181); é assim que ele tenta justificar, enfim, a «validade universal a
priori» do juízo de gosto (Kant, 1998: 182). Proferir um juízo de gosto é
proferir um juízo estético (baseado num sentimento de prazer) que assenta
na representação de uma conformidade a fins formal do objecto para as
faculdades de conhecimento do sujeito. Essa representação, no entender
de Kant, não pode ocorrer sem referência ao conceito racional
transcendental do supra-sensível e depende de que aquele que ajuíza ajuíze
através de um sentido comum (o gosto) mediante o qual ele considera
apenas o sentimento de prazer ligado a um movimento simultaneamente
livre e harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si por
ocasião da representação do objecto.94

2.8. Juízo erróneo


Um segundo esclarecimento prende-se com o proferimento de juízos
erróneos. De acordo com o §22 da Crítica da Faculdade do Juízo, que
aquele que ajuíza esteja «seguro de ter feito a subsunção correcta (sicher
richtig subsumiert zu haben)» (Kant, 1998: 131) é condição necessária
para que ele exija assentimento universal. Essa condição é, entretanto,
mais duas vezes citada por Kant, a saber, na observação que faz ao
parágrafo intitulado «[d]edução dos juízos de gosto (Deduktion der
Geschmacksurteile)» (Kant, 1998: 191), observação na qual afirma que

enquanto o nosso objectivo for o de meramente explicitar como tenta Kant assegurar
que o juízo de gosto é um juízo estético universalmente válido a priori.
94
Para uma compreensão esquemática deste processo, remetemos o leitor para o anexo
“2. Articulação”.

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JUÍZO DE GOSTO

essa dedução «é tão fácil» (Kant, 1998: 192) pelo facto de o juízo de gosto
afirmar
somente que estamos autorizados a pressupor universalmente em cada
homem as mesmas condições subjectivas da faculdade do juízo que
encontramos em nós, e ainda, que sob estas condições subsumimos
correctamente o objecto dado (wir unter diesen Bedingungen das
gegebene Objekt richtig subsumiert haben) (Kant, 1998: 192),
e, logo a seguir, no §39, onde o nosso autor acrescenta que
aquele que julga com gosto (contanto que ele não se engane nesta
consciência e não tome a matéria pela forma, o atractivo pela beleza
(wenn er nur in diesem Bewusstsein nicht irrt und nicht die Materie für
die Form, Reiz für Schönheit nimmt)) pode postular em todo o outro a
conformidade a fins subjectiva, isto é o seu comprazimento no objecto,
e admitir o seu sentimento como universalmente comunicável e na
verdade sem mediação dos conceitos (Kant, 1998: 195).95
A questão que emerge, neste contexto, é a de saber se aquele que ajuíza
pode estar certo de fazer a subsunção correcta, de subsumir correctamente
o objecto dado, de ajuizar com gosto – poderá ele ter a certeza de que
ajuíza através do gosto, de que profere um juízo de gosto, de que o seu
juízo é alicerçado num comprazimento desinteressado?
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a propósito da acção
moral, Kant indica que
não se pode (…) provar com exactidão a partir de nenhum exemplo que
a vontade seja aqui determinada unicamente pela lei sem qualquer outro
móbil para além dela, ainda que o pareça, pois é sempre possível que o
temor do opróbio, talvez mesmo uma obscura premonição de outros
perigos, tenham sobre a vontade uma secreta influência (Kant, 2003:
89).96

95
Tendo em conta a argumentação por nós anteriormente apresentada, consideramos
que, também nesta passagem, “ansinnen” seria melhor traduzido por “imputar” – e
não por “postular”, como é o caso.
96
A questão em causa é a de saber «[c]omo provar através da experiência a não
realidade de uma causa, se a experiência nada nos ensina para além do facto de que
somos incapazes de apreender essa mesma causa?» (Kant, 2003: 89). Antecipando
essa questão, Kant, na mesma obra, assinala que «é perfeitamente impossível

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 83


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Aplicando esta tese ao juízo de gosto, afirmaremos, com Guyer, que


«nenhuma falha para mostrar evidência de um interesse após uma procura
de qualquer particular extensão pode provar que nenhum interesse causou
o prazer da pessoa» (Guyer, 1997: 182).97 Esta impossibilidade constitui
uma limitação inerente aos juízos causais: «[o] facto de que uma procura
finita possa estabelecer conclusivamente a presença de uma causa
possível, mas não a sua ausência, é um problema para o juízo causal em
geral» (Guyer, 1997: 183). Por isso é que qualquer juízo causal tem aquilo
a que Guyer chama uma «corrigibilidade intrínseca» (Guyer, 1997: 182).

determinar a partir da experiência, com absoluta certeza, um só caso em que a máxima


de uma acção, de resto conforme ao dever, tenha tido como único motivo os princípios
morais e a representação do mesmo dever. Pois na verdade acontece, por vezes,
mesmo depois do mais escrupuloso exame de consciência, não encontrarmos
absolutamente nada que, para além do princípio moral do dever, tenha tido poder
suficiente para nos levar a praticar uma qualquer boa acção, ou submetermo-nos a um
qualquer grande sacrifício; mas nada nos permite inferir dessas circunstâncias com
certeza absoluta que não tenha realmente sido um secreto impulso do amor-próprio,
embora oculto sob a simples aparência daquela ideia, a verdadeira causa determinante,
da vontade; o facto é que nos é extremamente agradável atribuirmo-nos, mesmo que
sem fundamento, um princípio de determinação mais nobre; mas na realidade, nunca
poderemos, por mais rigoroso que seja o exame a que nos submetamos, penetrar
completamente até aos móbiles secretos; ora, quando se trata de valor moral, o
essencial não reside nas acções em si mesmas, mas nos seus princípios interiores, que
não se vêem» (Kant, 2003: 75). Anos depois, no texto Sobre a Expressão Corrente:
Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, o nosso autor reafirma a
sua tese: «Concedo de bom grado que nenhum homem pode tornar-se consciente com
toda a certeza de ter cumprido o seu dever de um modo inteiramente desinteressado,
pois isso cabe à experiência interna, e para esta consciência do seu estado de alma
seria preciso ter uma representação perfeitamente clara de todas as representações
marginais e de todas as considerações associadas ao conceito de dever mediante a
iamginação, o hábito e a inclinação, representação essa que em nenhum caso se pode
exigir; a inexistência de algo (por conseguinte, também de uma vantagem
secretamente pensada) não pode em geral ser também objecto da experiência» (Kant,
2004: 68).
97
Concluir que um comprazimento é desinteressado depende «da consciência da
presença ou ausência de outros factos ou estados de mente associados a isso» (Guyer,
1997: 180). Acontece que «[s]e a procura por um interesse é uma procura na rede dos
próprios pensamentos e associações de alguém, é sempre possível que ele não tenha
procurado suficientemente longe ou na direcção certa» (Guyer, 1997: 182).

84 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Ora, o juízo relativo à causa do sentimento de prazer é, também ele, um


juízo causal: trata-se de um juízo empírico relativo à causa do sentimento
de prazer daquele que ajuíza.98 Note-se que o carácter desinteressado de
um comprazimento «não pode ser manifestado por um sentimento especial
e característico» e que «[a] consciência de desinteresse «não é
apercebimento de qualquer sentimento fenomenologicamente único»
(Guyer, 1997: 180). O juízo através do qual se afirma que o
comprazimento que se sente é um comprazimento desinteressado constitui
«um juízo indirecto que liga um prazer sentido à harmonia das faculdades
em virtude da ausência de evidência para certos outros juízos acerca da
causa ou efeito desse prazer», sendo que, como tal, ele não pode fornecer
«evidência conclusiva» (Guyer, 1997: 181). Trata-se, então, de «um juízo
falível» (Guyer, 1997: xix). Por essa razão, o juízo de gosto, ainda de
acordo com Guyer, «retém sempre um elemento de incerteza» (Guyer,
1997: 143) e «tem de ser sempre menos do que completamente certo»
(Guyer, 1997: 248). Aquele que ajuíza não pode estar completamente
certo de que o prazer que sente por ocasião da representação que faz do
objecto é derivado de uma harmonia livre das suas faculdades de
conhecimento – o movimento das suas faculdades de conhecimento entre
si pode não ser um movimento livre, embora sendo harmónico, e aquele
que ajuíza pode não saber disso.
Será, porém, que a impossibilidade de aquele que ajuíza estar certo
quanto ao carácter desinteressado do seu comprazimento coloca em causa
a pretensão do juízo de gosto à validade universal a priori? Será que um
eventual engano coloca em causa essa pretensão? Na supracitada
observação que se segue ao §38, depois de defender que o juízo de gosto

98
Trata-se – usando novamente as palavras de Guyer – de um «juízo empírico acerca
do seu próprio estado mental», de uma «hipótese acerca de um troço da sua própria
história mental, onde há sempre espaço para erro e motivação escondida» (Guyer,
1997: 134), trata-se de «um juízo acerca de uma ligação causal particular na minha
própria história mental» (Guyer, 1997: 147), trata-se de um juízo caracterizado por
«hipóteses e conjecturas acerca de conexões causais na história mental da pessoa»
(Guyer, 1997: 182), trata-se de um juízo empírico acerca da própria história mental
de alguém» (Guyer, 1997: 292).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

afirma que sob as condições subjectivas universais da faculdade do juízo


há uma subsunção correcta do objecto dado, Kant acrescenta que
conquanto este último ponto contenha dificuldades inevitáveis, que não
são inerentes à faculdade de juízo lógica (porque nesta se subsume em
conceitos, enquanto na faculdade de juízo estética se subsume numa
relação – que meramente pode ser sentida – da faculdade da imaginação
e do entendimento reciprocamente concordantes entre si na forma
representada do objecto, em cujo caso a subsunção facilmente pode
enganar), porém com isso não se retira nada da legitimidade da pretensão
da faculdade do juízo de contar com um assentimento universal,
pretensão que somente decorre de julgar de um modo válido a correcção
do princípio a partir de fundamentos subjectivos para qualquer um (so
wird dadurch doch der Rechtmäßigkeit des Anspruchs der Urteilskraft,
auf allgemeine Beistimmung zu rechnen, nichts benommen, welcher nur
darauf hinausläuft, die Richtigkeit des Prinzips aus subjektiven Gründen
für jedermann gültig zu urteilen) (Kant, 1998: 192-193).
A razão é apresentada pelo nosso autor imediatamente a seguir:
no que concerne à dificuldade e à dúvida quanto à correcção da
subsunção naquele princípio, ela torna tão pouco duvidosa a legitimidade
da pretensão a esta validade de um juízo estético em geral, por
conseguinte o próprio princípio, quanto a igualmente errónea (embora
não tão frequente e fácil) subsunção da faculdade de juízo lógica no seu
princípio pode tornar duvidoso este princípio, que é objectivo (was die
Schwierigkeit und den Zweifel wegen der Richtigkeit der Subsumtion
unter jenes Prinzip betrifft, so macht sie die Rechtmäßigkeit des
Anspruchs auf diese Gültigkeit eines ästhetischen Urteils überhaupt,
mithin das Prinzip selber so wenig zweifelhaft, als die eben sowohl
(obgleich nicht so oft und leicht) fehlerhafte Subsumtion der logischen
Urteilskraft unter ihr Prinzip das letztere, welches objektiv ist,
zweifelhaft machen kann) (Kant, 1998: 193).
Proferir um juízo de gosto pressupõe fazer a subsunção correcta; se a
subsunção é errada, aquele que ajuíza não está a proferir um juízo de gosto,
isto é, não está a ajuizar através da faculdade de juízo estética e do seu
princípio. Nesse caso, a razão da discórdia residirá no proferimento de
juízos de espécies diferentes – um, de gosto; outro, não. Trata-se apenas
da «aplicação incorrecta a um caso particular da autorização que uma lei
nos dá (die unrichtige Anwendung der Befugnis, die ein Gesetz uns gibt,

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JUÍZO DE GOSTO

auf einen besondern Fall)», sendo que «com isso a autorização em geral
não é suprimida (wodurch die Befugnis überhaupt nicht aufgehoben
wird)» (Kant, 1998: 268). Não existirá, neste contexto, aquilo a que, no
§8, Kant chama «juízo de gosto erróneo (irriges Geschmacksurteil)»
(Kant, 1998: 105). Um juízo de gosto erróneo não é um juízo de gosto; é
um juízo que assenta em algo que não o sentimento de prazer na harmonia
livre das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação
de um objecto.99 Tal não significa que aquele que ajuíza esteja ou sequer
possa estar certo de que o juízo de gosto que profere é efectivamente um
juízo de gosto – significa apenas que esse juízo é um juízo de gosto,
independentemente de se estar ou não estar certo de que o é, de poder-se
ou não se poder estar certo de que o é. Não é colocada em causa, assim,
através da introdução da possibilidade de ajuizar-se erradamente, a
argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo de
gosto. Se aquele que ajuíza profere um juízo de gosto, então, segundo
Kant, ele reivindica de todos os outros a aprovação, reclama deles, sejam
eles quem forem, sem excepção, o assentimento ao seu juízo, singular,
presume em qualquer um deles a adesão a esse juízo, imputa-lhes, atribui-
lhes, o mesmo comprazimento, como se este fosse um predicado do
conhecimento do objecto, exige-lhes o seu acordo.

***

Consideramos ter tornado claro, ao longo desta segunda secção, em que


medida o juízo de gosto é, no entender de Kant, um juízo dotado de
validade universal a priori. Fizemo-lo conscientes da complexidade da
argumentação da Crítica da Faculdade do Juízo, mas evitando

99
De resto, apesar de usar a expressão juízo de gosto erróneo e de indicar que aquele
que ajuíza profere juízos de gosto erróneos, Kant não deixa de referir «aquele que crê
proferir um juízo de gosto (der, welcher ein Geschmacksurteil zu fällen glaubt)», e
não aquele que efectivamente profere um juízo de gosto (Kant, 1998: 105).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

desenvolver os problemas dessa argumentação. 100 A mesma opção


metodológica foi tomada na primeira secção. Nem os problemas
relacionados com a caracterização do juízo de gosto como juízo estético
reflexivo, nem aqueles que concernem especificamente à argumentação
de Kant a favor da validade universal a priori do juízo de gosto
constituem o objecto principal da nossa investigação. Pretendemos saber
se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte – se e como
poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do
Juízo. Para responder de maneira suficientemente sustentada a essa
questão era indispensável elencar detalhada, justificada e articuladamente
as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se
declare belo um objecto. É isso que consideramos ter feito ao longo do
primeiro capítulo da nossa tese.

100
Talvez o principal problema da argumentação de Kant em prol da validade
universal a priori do juízo de gosto se prenda com a suposição de que a relação livre
e harmónica das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza ocorre sob as mesmas
condições em todos aqueles que ajuízam. Essa ocorrência é contingente. Aliás, como
alerta Guyer, é precisamente por ser contingente que «a ocorrência desta harmonia
ocasiona um prazer que não é sentido em todos os casos de conhecimento» (Guyer,
1997: 288). Assim, «se há um problema para a dedução de Kant do juízo estético, é
que uma similaridade geral das faculdades de conhecimento humanas não parece
implicar que nós temos todos de responder da mesma maneira a objectos particulares»
(Guyer, 1997: 305). É essa implicação, contudo, que uma dedução transcendental do
juízo de gosto exige.

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Capítulo II: Arte

1. JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA ARTÍSTICO UM


OBJECTO

1.1. Obra de arte


Elencados os critérios através dos quais algo é declarado belo, enunciadas
as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se
declare que um objecto é belo, as características essenciais do juízo de
gosto, é tempo de elencarmos os critérios através dos quais algo é
declarado uma obra de arte, de enunciarmos os requisitos indispensáveis
à declaração de uma coisa como artística, as características essenciais do
juízo através do qual se declara artístico um objecto.
Na primeira alínea do primeiro parágrafo acerca da arte (Kunst) em
geral (§43) Kant salienta que, sendo pensado por uma causa que actua

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

sob uma específica ponderação da razão, um objecto artístico (um


produto artístico) é não um efeito (Wirkung), mas uma obra (Werk) (cf.
Kant, 1998: 206).101 No seguimento é, aliás, sugerida uma tripla
caracterização de um tal produto: um produto artístico é o resultado de
um exercício da liberdade, assim da razão do homem, portanto de um ser
humano (cf. Kant, 1998: 206-207). De resto, Kant conclui a mesma
alínea afirmando que «se (…) se denomina algo absolutamente uma obra
de arte (ein Kunstwerk), para distingui-la de um efeito da natureza (eine
Naturwirkung), então entende-se sempre por isso uma obra dos homens
(ein Werk der Menschen)» (Kant, 1998: 207) 102. Os produtos artísticos
são, por definição, obras dos homens, consequências do exercício da sua
razão e do seu arbítrio.103 Na alínea seguinte (2)), embora constatemos
reforçado o estatuto da arte como obra dos homens, observamo-la
enquanto distinta da ciência (Wissenschaft): a arte é uma habilidade
(Geschicklichkeit), exige uma técnica (Technik), efectivá-la requer um
poder de execução que não seja imediatamente derivado de um saber (cf.
Kant, 1998: 207). Finalmente, na terceira alínea (3)), e estendendo os
seus comentários ao parágrafo seguinte (§44), Kant divide a arte em

101
O nosso autor escreve também os termos latinos correspondentes, respectivamente
effectus e opus.
102
Uma eventual distinção entre artístico (künstlich) e artificial (künstlich) prender-
se-á unicamente com o carácter não casual das obras de arte. Todos os objectos
artísticos são objectos artificiais – não naturais, portanto – mas nem todos os objectos
artificiais são objectos artísticos: entre os objectos artificiais, uns há que são obras de
arte; outros, produtos do acaso. Ainda assim, devemos salientar que os termos por nós
referidos partem de uma única e mesma palavra: künstlich.
103
Não só no §43, mas também no §90, já na “Crítica da Faculdade de Juízo
Teleológica”, concretamente numa nota às inferências segundo a analogia, Kant
recusa qualquer identificação da arte com aquilo que ele designa por «instinto artístico
(Kunstinstinkt)» (Kant, 1998: 372) ou «faculdade artística animal (tierischen
Kunstvermögen)» (Kant, 1998: 425), vedando o acesso dos animais ao terreno da
primeira. Isso não significa, contudo, que ele os considere máquinas – de acordo com
o nosso autor, os animais estão, aliás, «unidos ao homem (enquanto seres vivos)
segundo o género», pois «também agem segundo representações» (Kant, 1998: 426);
o que, no entanto, não se pode concluir é que os animais têm uma razão igual à dos
homens ou sequer uma razão (cf. Kant, 1998: 425-426).

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ARTE

várias ramificações, a saber, arte livre (Freiekunst), arte remunerada


(Lohnkunst) ou ofício (Handwerk), arte mecânica (mechanische Kunst)
e arte estética (ästhetische Kunst) (cf. Kant: 1998: 207-209).104 A arte
estética é «ou arte agradável ou bela arte (angenehme oder schöne
Kunst)» (Kant, 1998: 209).
Ainda no §43, na sua parte final, Kant afirma que
em todas as artes livres se requer (…) algo coercivo ou, como se diz, um
mecanismo (in allen freien Künsten etwas Zwangsmäßiges, oder, wie
man es nennt, ein Mechamismus), sem o qual o espírito, que na arte tem
de ser livre e o qual unicamente vivifica a obra, não teria absolutamente
nenhum corpo e volatilizar-se-ia integralmente (por exemplo na poesia a
correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica)
(Kant, 1998: 208);
e no §47, o nosso autor refere que «não há nenhuma arte bela na qual
algo mecânico, que pode ser captado e seguido segundo regras, e
portanto algo escolástico, não constitua a condição essencial da arte
(gibt es keine schöne Kunst, in welcher nicht etwas Mechanisches,
welches nach Regeln gefasst und befolgt werden kann, und also etwas
Schulgerechtes die wesentliche Bedingung der Kunst ausmachte)»
(Kant, 1998: 215). A razão da necessidade desta componente mecânica
e escolástica da arte – e, de acordo com a última passagem, da bela arte
– é sublinhada em vários excertos da Crítica da Faculdade do Juízo:
assim, na Introdução, Kant assinala que «na arte (…) realizamos um
conceito de um objecto antecipadamente concebido que é para nós fim
(wir einen vorhergefassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns
Zweck ist, realisieren)» (Kant, 1998: 78); no §47, indica que um
objecto só é artístico se algo for «pensado como fim (als Zweck
gedacht)» (Kant, 1998: 215); e, finalmente, no §48, reforça que «a arte
sempre pressupõe um fim na causa (e na sua causalidade) (Kunst setzt
immer einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraus)»

104
Salvaguarde-se, entretanto, a possibilidade de eventuais cruzamentos entre
algumas das referidas ramificações: a arte mecânica, por exemplo, pode
simultaneamente ser um ofício (arte remunerada).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(Kant, 1998: 216).105 Pois bem, a actualização de um fim pressupõe


determinadas regras. Como defende Kant, no §46, «para pôr um fim
em acção são requeridas determinadas regras, das quais não se pode
dispensar-se ([u]m einen Zweck ins Werk zu richten, dazu werden
bestimmte Regeln erfordert, von denen man sich nicht frei sprechen
darf)» (Kant, 1998: 215).106 Assim sendo, devemos afirmar, como o
nosso autor afirma, no §46, que «cada arte pressupõe regras, através de
cuja fundamentação pela primeira vez um produto, se ele deve chamar-
se artístico, é representado como possível (jede Kunst setzt Regeln
voraus, durch deren Grundlegung allererst ein Produkt, wenn es
künstlich heißen soll, als möglich vorgestellt wird)» e que «sem uma
regra precedente um produto jamais se pode chamar arte (ohne
vorhergehende Regel in Produkt niemals Kunst heißen kann)» (Kant,
1998: 211).

1.2. Representação de uma conformidade a fins objectiva interna

Importa compreender o que é um fim. Citemos três passagens nas quais,


de uma maneira explícita, Kant apresenta a noção de fim (Zweck): uma, da
Introdução, é aquela na qual o nosso autor afirma que «o conceito de um
objecto, na medida em que ele ao mesmo tempo contém o fundamento da
efectividade deste objecto, se chama fim (der Begriff von einem Objekt,
sofern er zugleich den Grund der Wirklichkeit dieses Objekts enthält, heißt
der Zweck)» (Kant, 1998: 63); a segunda, do §10, é a passagem em que,
no contexto da reintrodução e abordagem da noção de conformidade a fins
(Zweckmäßigkeit), Kant diz que «fim é o objecto de um conceito, na
medida em que este for considerado como a causa daquele (o fundamento

105
Na primeira alínea do §43, não obstante não usar a palavra fim (Zweck), Kant
sugere que no caso de uma obra de arte o efeito é «pensado pela causa» (Kant, 1998:
207).
106
Se quisermos citar a parte final do §45, diremos que essas são as «regras segundo
as quais unicamente o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser» (Kant, 1998:
211).

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real de sua possibilidade) (Zweck ist der Gegenstand eines Begriffs, sofern
dieser als die Ursache von jenem (der reale Grund seiner Möglichkeit)
angesehen wird)», concluindo que «[o]nde pois não é porventura pensado
simplesmente o conhecimento de um objecto mas o próprio objecto (a
forma ou existência do mesmo) como efeito, enquanto possível somente
mediante um conceito do último, aí se pensa um fim ([w]o also nicht etwa
bloß die Erkenntnis von einem Gegenstande, sondern der Gegenstand
selbst (die Form oder Existenz desselben) als Wirkung, nur als durch
einen Begriff von der letztern möglich gedacht wird, da denkt man sich
einen Zweck)» (Kant, 1998: 109); finalmente, numa terceira passagem, no
§15, Kant escreve que «fim em geral é aquilo cujo conceito pode ser
considerado como fundamento da possibilidade do próprio objecto (Zweck
überhaupt dasjenige ist, dessen Begriff als der Grund der Möglichkeit des
Gegenstandes selbst angesehen werden kann)» (Kant, 1998: 117-118).
Em qualquer das três passagens citadas a noção de fim é apresentada em
estreita ligação com a noção de conceito (Begriff).107 O produto artístico
constitui-se, neste contexto, como efeito de um conceito do objecto, isto
é, como efectivação, enquanto objecto, do conceito que orientou a sua

107
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma,
respectivamente, que fins são «representações que têm de ser, elas mesmas,
consideradas como condições da causalidade de seus objet os (como efeitos)»
(Kant, 1995: 69) e que «somente em produtos da arte podemos tomar
consciência da causalidade da razão em relação a objetos que por isso se
chamam finais ou fins e, quanto a eles, denominar técnica à razão é adequado à
experiência da causalidade da nossa própria faculdade» (Kant, 1995: 72); na
“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, o nosso autor dirá que «chamamos
fim o produto de uma causa, cujo fundamento de determinação é simplesmente
a representação do respectivo efeito» (Kant, 1998: 332) e que «o efeito
representado, cuja representação é ao mesmo tempo o fundamento de
determinação da causa inteligente actuante, chama-se fim» (Kant, 1998: 354).
Embora nestas passagens não seja usado o termo conceito, é evidente o acordo
de qualquer uma delas com as três anteriormente transcritas. Ressalvemos, no
entanto, que não deve ser lida nas nossas palavras qualquer identificação entre
as noções de conceito e de fim. Aliás, nem sequer pode ser afirmado que um
conceito é sempre pensado como um fim.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

criação. Há, na criação artística, um nexus finalis, uma conexão das causas
ideais.108
Consideremos, complementarmente, algo que Kant escreve numa nota
à explicação do belo deduzida do “Terceiro momento do juízo de gosto,
segundo a relação dos fins que neles é considerada”. A propósito de
«coisas nas quais se vê uma forma (Form) conforme a fins, sem
reconhecer nelas um fim», isto é, de objectos que «em sua figura (Gestalt)
[denunciam] claramente uma conformidade a fins, para a qual não se
conhece o fim», o nosso autor assinala que «o facto de que se os considera
uma obra de arte é já suficiente para ter que admitir que a gente refere a
sua figura a alguma intenção qualquer e a um fim determinado (dass man
sie für ein Kunstwerk ansieht, ist schon genug, um gestehen zu müssen,
dass man ihre Figur auf irgend eine Absicht und einen bestimmten Zweck
bezieht)» (Kant, 1998: 268). Se assim é, temos de concluir não apenas que
o artista refere a figura do seu objecto à intenção que orientou a sua
construção, isto é, à «determinada intenção de produzir algo (bestimmte
Absicht etwas hervorzubringen)» que, no §45, Kant sublinhará que «a arte
tem sempre (hat Kunst jederzeit)» (Kant, 1998: 210), mas também que a
própria declaração desse objecto como artístico pressupõe a referência da
sua figura ao conceito de um fim – ao ajuizarmos um objecto como obra
de arte, somos obrigados a considerar um fim determinado, somos

108
Vejamos o que significa conexão das causas ideais (die
Idealenursachenverknüpfung). Trata-se de «uma ligação causal segundo um conceito
da razão (de fins), ligação que, se a considerarmos como uma série, conteria tanto no
sentido descendente, como no ascendente uma forma de dependência, na qual a coisa,
que uma vez foi assinalada como efeito, passa então no sentido ascendente a merecer
o nome de uma causa daquela coisa de que ela fora o efeito» (Kant, 1998: 289-290).
Apesar de Kant só referir uma tal conexão já na “Crítica da Faculdade de Juízo
Teleológica”, pelo menos utilizando exactamente essa expressão, ele refere-a
sugerindo tratar-se de uma conexão que facilmente se encontra no domínio da arte.
Observe-se, a propósito, o exemplo do objecto casa: «a casa (…) na verdade é a causa
dos rendimentos que são recebidos pelo respectivo aluguer, porém também
inversamente foi a representação deste possível rendimento a causa da construção da
casa» (Kant, 1998: 290). É neste âmbito que nos parece relevante assinalar a noção de
conexão das causas ideais.

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obrigados a considerar o conceito daquilo que esse objecto deve ser, e a


referir a sua forma a esse conceito.109
Referir a forma de um objecto ao conceito que fundamenta a
possibilidade desse objecto, ou, melhor, constatar a concordância dessa
forma com o conceito que fundamenta o próprio objecto e a sua forma, tal
significa constatar a conformidade a fins objectiva do objecto. 110 A
perfeição é um tipo de conformidade a fins objectiva, a saber, uma
conformidade a fins objectiva interna. 111 Ora, se, como Kant afirma, na
Introdução, a representação de uma conformidade a fins dessa espécie –
isto é, objectiva: representada, portanto, com base num princípio objectivo
– ao relacionar a forma do objecto «com um conhecimento determinado
do objecto sob um conceito dado, nada tem a ver com o sentimento de
prazer nas coisas, mas sim com o entendimento no julgamento das mesmas
(hat nichts mit einem Gefühle der Lust an den Dingen, sondern mit dem
Verstande in Beurteilung derselben zu tun)» (Kant, 1998: 78), então a
representação de uma perfeição, sendo ela um tipo de conformidade a fins
objectiva, igualmente tem a ver não com o sentimento de prazer nos
objectos, mas com o entendimento no julgamento dos mesmos. 112 Logo,

109
Facilmente se observa, nas nossas palavras, um uso indistinto dos termos forma,
eleito por António Marques e Valério Rohden para traduzir Form, e figura, eleito
pelos mesmos tradutores para abarcar os termos Gestalt e Figur. A possibilidade de
ser o próprio Kant a permitir-nos tal uso poderá ser atestada na secção “Forma”,
nomeadamente através da recorrência a passagens dos §14 (cf. Kant, 1998: 116), §16
(cf. Kant, 1998: 120-121), §30 (cf. Kant, 1998: 179-180) e §48 (cf. Kant, 1998: 216-
217). Por ora, não precisamos de citar essas passagens. Em si mesma, a
supramencionada nota à explicação do belo deduzida do “Terceiro momento do juízo
de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada” envolve um uso
indistinto dos termos Form, Gestalt e Figur.
110
De acordo com o §15, como já vimos, a conformidade a fins objectiva «é a
referência do objecto a um fim determinado (die Beziehung des Gegenstandes auf
einen bestimmten Zweck)» (Kant, 1998: 117).
111
É igualmente no §15, como também já vimos, que Kant identifica a conformidade
a fins objectiva interna com a perfeição, assim como identifica a conformidade a fins
objectiva externa com a utilidade (cf. Kant, 1998: 117).
112
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, lê-se, no mesmo sentido,
que «perfeição, como mera completude da pluralidade na medida em que constitui

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

quando ajuizamos a conformidade de um objecto em relação ao conceito


do fim que é o fundamento da sua possibilidade, embora possamos estar a
ajuizar esse objecto enquanto obra de arte, não estamos a ajuizá-lo quanto
à beleza.113

1.3. Possibilidade de falar-se de bela arte


Por si só ou conjuntamente, nenhum dos requisitos que enunciámos
enquanto indispensáveis à declaração de um objecto como artístico
impede que um objecto artístico possa ser declarado belo. Vimos que, por
definição, na causa de uma obra de arte, como condição da sua
possibilidade, como fundamento da sua efectividade, da sua realização,
está um fim (um conceito daquilo que o objecto deve ser, o efeito
representado). Além disso, a própria declaração do objecto como artístico
pressupõe a referência da sua figura a esse conceito de fim. No entanto,
nenhum desses requisitos impede que o mesmo objecto possa ser
declarado belo. Se tivermos em conta algo que está escrito no §16,
assumiremos ser possível proferir um juízo de gosto a respeito de um
objecto no fundamento do qual esteja uma finalidade interna determinada.

uma unidade, é um conceito ontológico, que é o mesmo que o da totalidade de um


composto (por coordenação do diverso em um agregado ou, ao mesmo tempo, pela
subordinação do mesmo como fundamentos e conseqüências em uma série), e não tem
o mínimo que ver com o sentimento de prazer e desprazer (mit dem Gefühle der Lust
oder Unlust nicht das mindeste zu tun hat)» (Kant, 1995: 64).
113
Como assinala Kant, no §15, não obstante a perfeição estar, por comparação com
a utilidade, isto é, com a conformidade a fins externa objectiva, mais próxima da
beleza, só é tomada como idêntica a esta última «se ela for pensada confusamente
(wenn sie verworren gedacht wird)» (Kant, 1998: 117). Entretanto, no §58, o nosso
autor sublinhará a diferença entre a beleza e a perfeição: «visto que, considerados em
si, nem um juízo de gosto é um juízo de conhecimento, nem a beleza é uma qualidade
do objecto, assim o racionalismo do princípio de gosto jamais pode ser posto no facto
de que nesse juízo a conformidade a fins seja pensada como objectiva, isto é que o
juízo tenha a ver teoricamente, por conseguinte também logicamente (se bem que
somente num julgamento confuso), com a perfeição do objecto (die Zweckmäßigkeit
in diesem Urteile als objektiv gedacht werde, d. i. dass das Urteil theoretisch, mithin
auch logisch (wenn gleich nur in einer verworrenen Beurteilung) auf die
Vollkommenheit des Objekts)» (Kant, 1998: 255).

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ARTE

Assim, na parte final desse parágrafo, Kant afirma que «[u]m juízo de
gosto seria puro com respeito a um objecto com fim interno determinado
somente se aquele que julga não tivesse nenhum conceito desse fim ou se
abstraísse dele em seu juízo ([e]in Geschmacksurteil würde in Ansehung
eines Gegenstandes von bestimmtem innern Zwecke nur alsdann rein sein,
wenn der Urteilende entweder von diesem Zwecke keinen Begriff hätte,
oder in seinem Urteile davon abstrahierte)» (Kant, 1998: 122). O mesmo
é dizer que um tal objecto pode ser declarado belo. Podemos declará-lo
como tal se ignorarmos a finalidade interna determinada que está no seu
fundamento ou se no nosso juízo abstrairmos dela.
Considerando aquilo que expusemos até agora, podemos concluir que
a declaração de um objecto como belo nada tem a ver com a representação
de uma conformidade a fins objectiva, seja essa interna ou externa.
Artístico ou natural, o objecto será declarado belo se, por ocasião da sua
representação, aquele que ajuíza sentir uma harmonia livre das suas
faculdades de conhecimento entre si, por conseguinte, se ele observar uma
conformidade a fins sem fim, uma conformidade a fins subjectiva, uma
conformidade a fins formal.
No que diz respeito aos objectos da natureza, mais do que ignorarmos
qual o fim interno determinado a que a sua criação poderá ter estado
submetida, não temos conhecimento de que essa criação tenha estado
submetida a um conceito de um fim. Assim, no caso do «belo na figura
humana», de acordo com a “Observação geral sobre a exposição dos juízo
reflexivos estéticos”,
não temos que recorrer a conceitos de fins, como fundamentos
determinantes do juízo e em vista dos quais todos os seus membros
existem, nem deixar a concordância com esses conceitos influir sobre o
nosso (então não mais puro) juízo estético (Kant, 1998: 169).
Mesmo que, aliás, concebêssemos um eventual fim interno determinado que
teria regido a criação de um objecto da natureza, essa possibilidade não
impediria que sobre um tal objecto proferíssemos um puro juízo de gosto e
que livremente pudéssemos declará-lo belo. Para que como tal pudéssemos
ajuizá-lo, teríamos de abstrair de qualquer conformidade a fins objectiva, isto

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

é, de qualquer concordância entre o objecto e um conceito daquilo que ele


deva ser. Kant dá um exemplo desta possibilidade no §16. Afirma ele:
Flores são belezas naturais livres. Que espécie de coisa uma flor deva
ser, dificilmente o saberá alguém além do botânico; e mesmo este, que
no caso conhece o órgão de fecundação da planta, se julga a este respeito
através do gosto, não toma em consideração este fim da natureza. Logo,
nenhuma perfeição de qualquer espécie, nenhuma conformidade a fins
interna, à qual se refira a composição do múltiplo, é posta no fundamento
deste juízo (Es wird also keine Vollkommenheit von irgend einer Art,
keine innere Zweckmäßigkeit, auf welche sich die Zusammensetzung des
Mannigfaltigem beziehe, diesem Urteile zum Grunde gelegt) (Kant,
1998: 120).
Para ajuizar se uma flor é bela, o botânico tem apenas de abstrair de
qualquer fim a que a sua criação eventualmente tenha estado submetida,
tendo, por conseguinte, de ignorar qualquer conformidade a fins objectiva
interna da flor a esse conceito de fim.
Retomando as nossas considerações acerca das obras de arte, resta-nos
salientar, então, duas teses: o juízo através do qual se declara belo um
objecto e o juízo através do qual se declara artístico um objecto não
obedecem aos mesmos critérios; os critérios a que cada uma dessas
espécies de juízos obedece não tornam incompatível a declaração de um
objecto artístico como belo. Tendo em conta o que temos vindo a
explicitar, devemos responder afirmativamente à questão de saber se
poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto, se
poderá uma obra de arte ser declarada bela, e, por conseguinte, à questão
de saber se é legítimo falar-se de bela arte.

2. JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA BELA UMA OBRA DE


ARTE

2.1. Impossibilidade de falar-se de bela arte


Sem prejuízo do que temos vindo a explicitar, devemos admitir que tal não
é tudo o que Kant assinala acerca da beleza, da arte ou da beleza da arte.
No §48, o nosso autor profere a seguinte afirmação:

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ARTE

Se (…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser
declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um
conceito daquilo que a coisa deva ser, porque a arte sempre pressupõe
um fim na causa (e na sua causalidade); e visto que a consonância do
múltiplo numa coisa com vista a uma determinação interna da mesma
enquanto fim é a perfeição da coisa, assim no julgamento da beleza da
arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa
(Wenn (…) der Gegenstand für ein Produkt der Kunst gegeben ist und
als solches für schön erklärt werden soll: so muss, weil Kunst immer
einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraussetzt, zuerst
ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding sein soll;
und da die Zusammenstimmung des Mannigfaltigen in einem Dinge zu
einer innern Bestimmung desselben als Zweck die Volkommenheit des
Dinges ist, so wird in der Beurteilung der Kunstschönheit zugleich die
Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht werden müssen) (Kant,
1998: 216).
De acordo com esta passagem, ajuizar um objecto artístico como belo
supõe a representação de uma conformidade a fins objectiva interna desse
objecto, representação que, como sabemos, assenta na constatação de que
o objecto exibe adequadamente o conceito de fim que o causou, isto é, na
constatação de que o objecto apresenta para esse conceito uma intuição
que lhe corresponde. Aquele que ajuíza acerca da beleza de um objecto
artístico tem de ter em conta, no seu juízo, a finalidade interna determinada
que está na causa desse objecto, não podendo, portanto, abstrair do
conceito dessa finalidade.
A questão à qual desde o início da nossa investigação nos propusemos
responder é a de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de
bela arte, isto é, se e como poderá uma obra de arte ser declarada bela.
Contrariamente aos requisitos indispensáveis à declaração de um objecto
como artístico, a exigência que agora apresentamos parece impedir que
possa declarar-se bela uma obra de arte, pois, como vimos, o juízo
através do qual se declara belo um objecto é o juízo de gosto, juízo que,
segundo o título do §15, «é totalmente independente do conceito de
perfeição (ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich
unabhängig)» (Kant, 1998: 117). A possibilidade de proferimento de um
juízo de gosto com respeito a um objecto com fim interno determinado

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

parece, então, não se confirmar. Colocando lado-a-lado as condições


indispensáveis ao julgamento de um objecto como belo e a exigência
segundo a qual ao ajuizar se uma obra de arte é bela aquele que ajuíza
tem de considerar a conformidade a fins objectiva interna da coisa,
parecemos obrigados a concluir que uma obra de arte não pode ser
declarada bela.114 Aquilo que faz aparecer como inaceitável a conclusão
contrária (uma obra de arte poder ser declarada bela) é a
incompatibilidade entre, por um lado, a total independência do juízo de
gosto em relação ao conceito de perfeição, isto é, à conformidade a fins
objectiva interna da coisa e, por conseguinte, ao conceito daquilo que o
objecto deva ser, e, por outro lado, a dependência – por mínima que
possa ser – do julgamento da beleza da arte em relação a esse mesmo
conceito de perfeição. Se o juízo através do qual se declara belo um
objecto é o juízo de gosto, como inicialmente notámos, se o juízo de
gosto é absolutamente independente do conceito de perfeição, como
entretanto acrescentámos, e se no juízo através do qual se declara bela
uma obra de arte tem de ser tida em conta a perfeição do objecto, como
no-lo indica o §48, então parece não poder ajuizar-se acerca da eventual
beleza de uma obra de arte – por outras palavras: uma obra de arte não
pode ser declarada bela, não é legítimo falar-se de bela arte.115

2.2. Perfeições
Regressemos ao §15. Nesse parágrafo, Kant estabelece uma distinção
entre dois tipos de perfeição, a saber, perfeição qualitativa (qualitative

114
Sublinhe-se a inexistência de qualquer incompatibilidade entre as condições
indispensáveis à declaração de um objecto como belo e os requisitos a preencher para
se declarar um objecto como artístico. Nem sequer há uma incompatibilidade entre as
mencionadas condições e a necessidade de na declaração de um objecto como artístico
se referir o objecto em causa à finalidade determinada que orientou a sua criação, isto
é, ao conceito precedente daquilo que o objecto deva ser.
115
Se «[o] juízo de gosto é totalmente independente do conceito de perfeição» (Kant,
1998: 117), então, visto que «no julgamento da beleza da arte tem que ser tida em
conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa» (Kant, 1998: 216), a bela arte ou não é
exactamente bela ou não é exactamente artística.

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ARTE

Vollkommenheit) e perfeição quantitativa (quantitative Vollkommenheit)


(cf. Kant, 1998: 118). A perfeição quantitativa é definida como «a
completude de cada coisa em sua espécie, e simples conceito de
quantidade (da totalidade) (die Vollständigkeit eines jeden Dinges in
seiner Art, ein bloßer Größenbegriff (der Allheit) )» (Kant, 1998:
118). No juízo acerca deste tipo de perfeição «já é antecipadamente
pensado como determinado o que a coisa deva ser» (Kant, 1998: 118).
Apenas se pergunta se está no objecto «todo o requerido para isso»
(Kant, 1998: 118). Representar uma perfeição qualitativa significa,
por sua vez, representar numa coisa «a concordância do múltiplo (die
Zusammenstimmung des Mannigfaltigen)» com «o conceito do que
esta coisa deva ser (der Begriff von diesem, was es für ein Ding sein
solle)» (Kant, 1998: 118). Um tal conceito precede o objecto e
«fornece nele a regra da ligação do mesmo» (Kant, 1998: 118).
Assim, enquanto num juízo acerca da perfeição quantitativa de um
objecto, aquele que ajuíza quer unicamente saber o grau de
conformidade do objecto em relação àquilo que um objecto da sua
espécie requer, num juízo acerca da perfeição qualitativa, desse ou
de outro objecto, aquele que ajuíza avalia a conformidade do objecto
à intenção que precede a sua criação e de acordo com a qual o
objecto é avaliado como perfeito ou imperfeito. Na passagem
supramencionada do §48, a perfeição qualitativa parece ser aquela a
necessariamente ter em conta no juízo através do qual se declara bela
uma obra de arte. No entanto, segundo o título do §15, há uma total
independência do juízo de gosto em relação ao conceito de perfeição .
Logo, um juízo no qual tem de ser tida em conta a perfeição,
qualitativa ou quantitativa, não é um juízo de gosto. A distinção entre
perfeição qualitativa e perfeição quantitativa revela-se irrelevante,
então, no que concerne à questão de saber se o juízo através do qual
se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto. Considerando o
que até agora expusemos, vemo-nos obrigados a concluir que o juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte não é um juízo de

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

gosto e, por conseguinte, que uma obra de arte não pode ser declarada
bela, que não é legítimo falar-se de bela arte.

2.3. Beleza aderente e juízo de gosto aplicado


No §16, sem que algo o fizesse prever, Kant estabelece uma divisão que,
sob um certo ponto de vista, autorizaria que se falasse de bela arte. Trata-se
da divisão da beleza em beleza livre (freie Schönheit) e beleza simplesmente
aderente (bloß anhängende Schönheit) (cf. Kant, 1998: 120).116 Ainda no
início desse parágrafo, logo a seguir a nomear essas duas espécies de beleza,
o nosso autor assinala que a segunda, sendo «aderente a um conceito (beleza
condicionada) (einem Begriffe anhängend (bedingte Schönheit))», e,
portanto, «atribuída a objectos que se encontram sob o conceito de um fim
particular (Objekten, die unter dem Begriffe eines besondern Zwecks stehen,
beigelegt)» (Kant, 1998: 120), pressupõe um conceito daquilo que o objecto
deva ser (setzt einen Begriff von dem voraus, was der Gegenstand sein soll)
e a perfeição do objecto segundo esse conceito (die Vollkommenheit des
Gegenstandes nach demselben) (cf. Kant, 1998: 120). Pois bem, se no
julgamento da beleza de tais objectos – nomeadamente igrejas, palácios,
arsenais ou casas de campo, exemplos dados por Kant e que não são
exemplos de objectos da natureza – de maneira a declará-los belos, têm de
ser tidos em conta os conceitos de fins que determinam aquilo que os
respectivos objectos devam ser e, além disso, a perfeição de cada um desses
objectos segundo os respectivos conceitos de fins, então, se assim é, uma
obra de arte pode, sem hesitação, ser considerada bela. É a própria noção de
beleza aderente, note-se, precisamente enquanto cumprindo, por definição,
o que no §48 é apresentado como um requisito indispensável ao julgamento
da beleza da arte – a saber, que seja tida em conta ao mesmo tempo a
perfeição do objecto – aquilo autoriza que se fale de bela arte. Se as
condições para que se considere belo um objecto artístico – nomeadamente
a condição acrescentada no §48 – não entram em conflito com as exigências

116
Kant escreve igualmente os termos latinos correspondentes, a saber, pulchritudo
vaga e pulchritudo adhaerens.

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ARTE

que um juízo tem de cumprir para que se declare que algo é belo – o que
nos é permitido concluir se admitirmos que a beleza pode ser aderente, ou,
melhor, que a beleza aderente é, de direito, uma espécie de beleza – então é
permitido falar-se de bela arte.
O problema não é, no entanto, de tão fácil solução. Será legítima a
introdução de uma espécie de beleza cujos critérios entram em conflito
com os critérios da própria beleza? Admitir a beleza aderente como uma
espécie de beleza obrigaria a admitir que o juízo através do qual se declara
belo um objecto não é necessariamente o juízo de gosto, pois o juízo de
gosto é totalmente independente do conceito de perfeição. 117 Kant não
admite que o juízo através do qual se declara belo um objecto não é
necessariamente o juízo de gosto. No entanto, ele estabelece uma distinção
entre juízos de gosto que é análoga à distinção entre beleza livre e beleza
aderente, a saber, a distinção entre puro juízo de gosto (reines
Geschmacksurteil) e juízo de gosto aplicado (angewandtes
Geschmacksurteil). Assim, na parte final do §16, sugerindo a
possibilidade de dois indivíduos discordarem acerca da beleza de um
objecto, o nosso autor afirma que
[a]través desta distinção pode-se dissipar muita dissenção dos juízos de
gosto sobre a beleza, enquanto se lhes mostra que um considera a beleza
livre, o outro a beleza aderente, o primeiro profere um juízo de gosto
puro, o segundo um juízo de gosto aplicado (der erstere ein reines, der
zweite ein angewandtes Geschmacksurteil fälle) (Kant, 1998: 122).
A questão que emerge é a de saber se a noção de juízo de gosto aplicado é,
ela mesma, legítima, ou, melhor, a questão de saber se é legítimo admitir
uma espécie de juízo de gosto cujos critérios entram em conflito com os
critérios do próprio juízo de gosto enquanto juízo estético. Nada do que até
agora expusemos sustenta uma tal admissão. Um juízo de gosto é um juízo
estético, portanto um juízo cujo fundamento de determinação é o sentimento
de prazer ou desprazer que se liga à representação do objecto. O juízo de

117
Repetimo-lo: «O juízo de gosto é totalmente independente do conceito de
perfeição» (Kant, 1998: 117).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 103


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

gosto não é, então, um juízo de conhecimento. Kant associa esta subespécie


de juízo estético (o juízo estético reflexivo, o juízo de gosto) à beleza livre.
O juízo de gosto aplicado, diferentemente, é associado por Kant à beleza
aderente. Já dissemos que no julgamento da beleza aderente têm de ser tidos
em conta o conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição do objecto
segundo esse conceito, portanto a conformidade a fins objectiva interna da
coisa. Nesse caso, a representação do objecto é referida a um conceito de
fim; não apenas ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. É
isso que, segundo Kant, ocorre nos juízos que ele coloca no âmbito dos
juízos de gosto impuros, juízos que o nosso autor não deixa de considerar
de gosto, embora sem que apresente uma justificação para tal. Vejam-se,
nesse sentido, desde logo o título do §16, no qual é afirmado que «[o] juízo
de gosto, pelo qual um objecto é declarado belo sob a condição de um
conceito determinado, não é puro ([d]as Geschmacksurteil, wodurch ein
Gegenstand unter der Bedingung eines bestimmten Begriffs für schön
erklärt wird, ist nicht rein)» (Kant, 1998: 120), e a passagem, do mesmo
parágrafo, segundo a qual um juízo de gosto que se torne dependente de um
conceito de perfeição e por esse se torne limitado «deixa de ser um juízo de
gosto livre e puro (ist nicht mehr ein freies und reines Geschmacksurteil)»
(Kant, 1998: 121). Acontece que um juízo que não seja livre não pode ser
um juízo de gosto. Ele é um juízo interessado e, portanto, viciado, faccioso
e parcial, algo que o juízo de gosto não pode ser. O prazer que se sente por
ocasião do proferimento de um juízo de gosto é sem interesse, é um
comprazimento desinteressado, é um comprazimento totalmente livre. A
noção de juízo de gosto aplicado não pode, então, ser admitida. O chamado
juízo de gosto aplicado não é um juízo de gosto. Por conseguinte, não pode
declarar-se belo um objecto através do chamado juízo de gosto aplicado.
Assim, a resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte é uma
resposta negativa: não pode falar-se de bela arte.
2.4. Juízo estético logicamente condicionado
Centremo-nos agora noutra passagem do §48. Ao distinguir beleza da
natureza (Naturschönheit) e beleza da arte (Kunstschönheit), utilizando

104 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


ARTE

os casos do ser humano e do cavalo, já utilizados no §16 (cf. Kant, 1998:


121), Kant diz o seguinte:
Na verdade, no julgamento principalmente dos objectos animados da
natureza, por exemplo do homem ou de um cavalo, é habitualmente
tomada também em consideração a conformidade a fins objectiva para
julgar sobre a beleza dos mesmos; porém então o juízo também deixa de
ser puramente estético, isto é um simples juízo de gosto (ist das Urteil
nicht mehr rein-ästhetisch, d. i. bloßes Geschmacksurteil) (Kant, 1998:
216).
Num tal juízo, «[a] natureza não é mais ajuizada como ela aparece
enquanto arte, mas na medida em que ela é efectivamente arte (embora
sobre-humana) ([d]ie Natur wird nicht mehr beurteilt, wie sie als Kunst
erscheint, sondern sofern sie wirklich (obzwar übermenschliche) Kunst
ist)» (Kant, 1998: 216). Trata-se de um juízo no qual um «juízo teleológico
serve ao juízo estético como fundamento e condição que este tem que
tomar em consideração (das teleologische Urteil dient dem ästhetischen
zur Grundlage und Bedingung, worauf díeses Rücksicht nehmen muss)»
(Kant, 1998: 216). Kant exemplifica-o com a frase «esta é uma mulher
bonita», na qual «não se pensa senão isto: a natureza representa belamente
na sua figura os fins na estatura feminina (die Natur stellt in ihrer Gestalt
die Zwecke im weiblichen Baue schön vor)» (Kant, 1998: 216). É o próprio
Kant a admitir que, em casos como este, «tem que se estender a vista para
além da simples forma até um conceito (man muss noch über die bloße
Form auf einen Begriff hinaussehen)» (Kant, 1998: 216). Ora, no entender
do nosso autor, o juízo em causa é «um juízo estético logicamente
condicionado (ein logisch-bedingtes ästhetiches Urteil)» (Kant, 1998:
217). Acontece que, como vimos no primeiro capítulo da nossa tese, o
juízo estético é sem conceito. Assim, o chamado juízo estético
logicamente condicionado não é, nem pode ser, um juízo estético – trata-
se de um juízo acerca da perfeição. Nessa medida, ele não pode ser
considerado um juízo de gosto. O proferimento de um juízo de gosto não
envolve o conhecimento do tipo de coisa que o objecto deva ser, um
conceito desse objecto. Ora, tal como não pode declarar-se belo um

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 105


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

objecto através do chamado juízo de gosto aplicado, também não pode


declarar-se belo um objecto através do chamado juízo estético
logicamente condicionado. A introdução da noção de juízo estético
logicamente condicionado (logisch-bedingtes ästhetiches Urteil) não
permite que se responda afirmativamente à questão de saber se uma obra
de arte pode ser declarada bela. Por conseguinte, a resposta a essa questão
continua a ser uma resposta negativa: uma obra de arte não pode ser
declarada bela – não é legítimo falar-se de bela arte.

2.5. Beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado

Não deixa de ser relevante salientar, por outro lado, os exemplos que, no §16,
Kant dá de objectos que são do âmbito da beleza aderente. Aí, o nosso autor
fornece exemplos não apenas de objectos artísticos, mas também de objectos
naturais, cuja beleza é aderente, nomeadamente seres humanos e cavalos:
a beleza de um ser humano (e dentro desta espécie a de um homem ou
uma mulher ou uma criança), a beleza de um cavalo, de um edifício
(como igreja, palácio, arsenal ou casa de campo) pressupõe um conceito
do fim que determina o que a coisa deve ser, por conseguinte um
conceito da sua perfeição, e é portanto beleza simplesmente aderente
(setzt einen Begriff von Zwecke voraus, welcher bestimmt, was das Ding
sein soll, mithin einen Begriff seiner Vollkommenheit, und ist also bloß
adhärirende Schönheit) (Kant, 1998: 121).
A inclusão de objectos naturais no âmbito da beleza aderente – e, portanto,
dos juízos de gosto aplicados ou dos juízos estéticos logicamente
condicionados – não pode ser compreendida sem a introdução da noção
de ideal da beleza (Ideale der Schönheit). Kant explicita-a no §17. De
acordo com o que está escrito nesse parágrafo, ideal (Ideal) significa «a
representação de um ente individual como adequado a uma ideia (die
Vorstellung eines einzelnen als einer Idee adäquaten Wesens)», isto é,
como adequado a «um conceito da razão» (Kant, 1998: 123). Embora
«certamente repousando sobre a ideia indeterminada da razão de um
máximo», o ideal da beleza «não pode no entanto ser representado
mediante conceitos (doch kann nicht durch Begriffe vorgestellt werden)»

106 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


ARTE

(Kant, 1998: 123).118 Ele repousa «sobre a apresentação», ele «somente


[pode ser representado] por apresentação individual» (Kant, 1998: 123).
Ora, como «a faculdade de apresentação, porém, é a imaginação», o ideal
da beleza «será simplesmente um ideal da faculdade da imaginação»
(Kant, 1998: 123). Assim, «se não estamos imediatamente na posse dele,
contudo aspiramos produzi-lo em nós», ou seja, «o modelo mais elevado,
o original do gosto», isto é, o ideal da beleza, «é uma simples ideia que
cada um tem de produzir em si próprio» (Kant, 1998: 123).
É de notar, entretanto, que, segundo Kant, somente o «homem é (…)
capaz de um ideal da beleza» (Kant, 1998: 124). Somente o homem porque
somente este «tem o fim da sua existência em si próprio» e «pode
determinar ele próprio os seus fins pela razão» ou «compará-los aos fins
essenciais e universais e pode então ajuizar também esteticamente a
concordância com esses fins» (Kant, 1998: 124). Por essa razão,
a beleza, para a qual deve ser procurado um ideal, não tem que ser
nenhuma beleza vaga, mas uma beleza fixada por um conceito de
conformidade a fins objectiva, consequentemente não tem que pertencer
a nenhum objecto de um juízo de gosto totalmente puro, mas ao de um
juízo de gosto em parte intelectualizado (die Schönheit, zu welcher ein
Ideal gesucht werden soll, keine vage, sondern durch einen Begriff von
objektiver Zweckmäßigkeit fixierte Schönheit sein, folglich keinem
Objekte eines ganz reinen, sondern dem eines zum Teil intellektuierten
Geschmacksurteils angehören müsse) (Kant, 1998: 124),
isto é, «seja em que espécie de fundamentos do julgamento um ideal deve
ocorrer, aí tem que se encontrar alguma ideia da razão segundo conceitos
determinados, que determina a priori o fim sobre o qual a possibilidade
interna do objecto repousa (muss irgend eine Idee der Vernunft nach
bestimmten Begriffen zum Grunde liegen, die a priori den Zweck bestimmt,
worauf die innere Möglichkeit des Gegenstandes beruht)» (Kant, 1998: 124).
No entanto, precisamente pelas mesmas razões, «[u]m ideal de flores belas,
de um mobiliário belo, de um belo panorama não pode ser pensado» e

118
Logo depois de assinalar isso mesmo, Kant afirma que o referido ideal «não
repousa sobre conceitos (nicht auf Begriffen beruht)» (Kant, 1998: 123).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 107


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

tão pouco se pode representar o ideal de uma beleza aderente a fins


determinados, por exemplo de uma bela residência, de uma bela árvore, de
um belo jardim, etc.; presumivelmente porque os fins não são suficientemente
determinados e fixados pelo seu conceito, consequentemente a
conformidade a fins é quase tão livre como na beleza vaga (Kant, 1998: 124).
Assim, «pelas razões já apresentadas», como nota Kant, «o ideal (…) se
pode esperar unicamente na figura humana» (Kant, 1998: 127).
Pois bem, de acordo com as palavras do nosso autor, na figura humana
«o ideal consiste na expressão do moral, sem o qual o objecto não
aprazeria universalmente e além disso positivamente (não apenas
negativamente numa apresentação academicamente correcta)» (Kant,
1998: 127). Assim, «a ideia da razão (…) faz dos fins da humanidade, na
medida em que não podem ser representados sensivelmente, o princípio
do julgamento da sua figura, através da qual aqueles se revelam como sem
efeito no fenómeno» (Kant, 1998: 124-125). Isto significa, no entanto, que
«o julgamento segundo um tal padrão de medida jamais pode ser
puramente estético e o julgamento segundo um ideal da beleza não é
nenhum simples juízo de gosto (die Beurteilung nach einem solchen
Maßstabe niemals rein ästhetisch sein könne, und die Beurteilung nach
einem Ideale der Schönheit kein bloßes Urteil des Geschmacks sei)»
(Kant, 1998: 127). Acontece que, tal como Kant afirma numa fase ainda
inicial do §17, é segundo esse ideal que aquele que ajuíza «tem que ajuizar
tudo o que é objecto do gosto, o que é exemplo do julgamento pelo gosto
e mesmo o gosto de qualquer um (er alles, was Objekt des Geschmacks,
was Beispiel der Beurteilung durch Geschmack sei, und selbst den
Geschmacks von jedermann beurteilen muss)» (Kant, 1998: 123). Logo,
aquele que ajuíza segundo esse ideal não profere um juízo de gosto puro
– por outras palavras: aquele que ajuíza segundo o ideal do gosto não
ajuíza através de um juízo de gosto.

2.6. Não pode falar-se de bela arte


Tanto no caso do chamado juízo de gosto aplicado, como no do
chamado juízo estético logicamente condicionado ou do juízo de gosto

108 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


ARTE

em parte intelectualizado, então, há uma dependência do juízo em


relação a um conceito de fim. Esses juízos não são juízos livres; são
juízos condicionados pelo referido conceito – são os juízos
condicionados através dos quais se declara que um objecto é belo, são
os juízos através dos quais se declara condicionadamente que um
objecto é belo, são os juízos através dos quais se declara que um
objecto é condicionadamente belo. Os chamados juízo de gosto
aplicado, juízo estético logicamente condicionado ou juízo de gosto em
parte intelectualizado não são, nem podem ser, juízos de gosto – não é,
nem pode ser, através de um juízo de gosto aplicado, de um juízo
estético logicamente condicionado ou de um juízo de gosto em parte
intelectualizado que se declara belo um objecto.
Temos vindo a mostrar que não se pode admitir que o juízo de gosto
aplicado, o juízo estético logicamente condicionado ou o juízo de gosto
em parte intelectualizado sejam juízos de gosto – de acordo com a
descrição que Kant dá de juízo de gosto, por um lado, e de juízo de
gosto aplicado, de juízo estético logicamente condicionado ou de juízo
de gosto em parte intelectualizado, por outro – ou a beleza aderente ou
fixada uma espécie de beleza – igualmente considerando a descrição
que o nosso autor dá de beleza, por um lado, e de beleza aderente ou
fixada, por outro. Mostrámos, por conseguinte, que a divisão entre
beleza livre e beleza aderente ou fixada não serve para sustentar uma
resposta afirmativa à questão de saber se pode falar-se de bela arte,
isto é, à questão de saber se um objecto artístico pode ser ajuizado
através de um juízo de gosto, se um objecto artístico pode ser declarado
belo. Pois bem, considerando que, quando quer ajuizar-se acerca da
beleza de uma obra de arte, surge um conflito entre a independência do
juízo de gosto e da beleza relativamente ao conceito de perfeição e a
dependência do julgamento da beleza da arte em relação a esse
conceito, somos obrigados a manter a conclusão a que tínhamos
chegado antes de referirmos a divisão feita por Kant no §16.
Repetiremos, assim, que uma obra de arte não pode ser ajuizada através
de um juízo de gosto, que uma obra de arte não pode ser declarada bela,

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 109


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

que não é legítimo falar-se de bela arte.119 Considerando que os


critérios da chamada beleza aderente ou fixada entram em contradição
com os critérios da beleza, considerando que as propriedades do
chamado juízo de gosto aplicado, ou do chamado juízo estético
logicamente condicionado, ou do chamado juízo de gosto em parte
intelectualizado, são insuficientes para que possa responder-se
afirmativamente à questão de saber se é legítimo falar-se de bela arte,
isto é, à questão de saber se é legitimo falar-se de objectos artísticos
belos, de saber se uma obra de arte pode ser ajuizada através de um
juízo de gosto, de saber se uma obra de arte pode ser declarada bela,
então, somos obrigados a manter aquilo que dissemos no início desta
secção, ainda antes, portanto, da introdução das noções de beleza
aderente, beleza fixada, juízo de gosto aplicado, juízo estético
logicamente condicionado e juízo de gosto em parte intelectualizado,
a saber, que não pode ajuizar-se acerca da eventual beleza de uma obra
de arte através de um juízo de gosto – por outras palavras: que uma
obra de arte não pode ser declarada bela, que não é legítimo falar-se de
bela arte.
Afirmar o contrário teria como consequências admitir uma espécie
de beleza (a beleza aderente ou fixada) cujos critérios entram em
contradição com os critérios da beleza, admitir uma espécie de juízo de
gosto (o juízo de gosto aplicado, o juízo estético logicamente
condicionado ou o juízo de gosto em parte intelectualizado) cujas

119
Esta é a maneira mais simples de responder à questão. Se, porém, quisermos
responder-lhe utilizando as distinções estabelecidas por Kant entre, respectivamente,
beleza livre e beleza aderente ou fixada e puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado,
juízo estético logicamente condicionado ou juízo de gosto em parte intelectualizado,
nesse caso diremos o seguinte: se por bela arte se entende uma arte cuja beleza é
declarada livremente, isto é, através de um puro juízo de gosto, então, não pode falar-
se de bela arte. Só condicionadamente, portanto através de um juízo de gosto aplicado,
de um juízo estético logicamente condicionado ou de um juízo de gosto em parte
intelectualizado, poderia declarar-se belo um objecto artístico – nesse caso a obra de
arte seria condicionadamente bela. Tal, porém, significaria confundir o juízo de gosto
com um juízo acerca da perfeição.

110 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


ARTE

propriedades entram em contradição com as propriedades do juízo de


gosto, confundir uma espécie de beleza com uma conformidade a fins
objectiva e confundir uma espécie de juízo de gosto com um juízo
acerca da perfeição. Isso não significaria abdicar da especificidade da
faculdade de juízo enquanto faculdade superior. Tendo em conta o que
vimos até agora, significaria, no entanto, uma limitação da sua
aplicação enquanto tal unicamente a objectos da natureza – e, mesmo
entre os objectos da natureza, talvez apenas a alguns – e, portanto, uma
limitação da beleza (beleza livre) e do juízo de gosto (puro juízo de
gosto) a alguns objectos naturais. Poder-se-ia ajuizar como belo um
dado objecto da natureza se, nesse juízo, se ignorasse ou abstraísse de
qualquer conformidade a fins objectiva, isto é, de qualquer
concordância entre o objecto e um conceito daquilo que ele deva ser.
O mesmo não poderia fazer-se relativamente a um objecto artístico,
pois, por definição, na causa de um objecto artístico é pressuposto um
fim e, além disso, no juízo através do qual esse objecto é declarado
belo tem de considerar-se a sua conformidade ao referido fim.

***

Vários comentadores da Crítica da Faculdade do Juízo reconhecem a


dificuldade causada pela passagem, do §48, de acordo com a qual «se
(…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser
declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um
conceito daquilo que a coisa deva ser» e «no julgamento da beleza da
arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa»
(Kant, 1998: 216). Paul Guyer, por exemplo, admite que, a ser
assumida, sem mais, esta passagem «implicaria que apenas a beleza
natural, e não a artística, poderia ser um adequado objecto de gosto»
(Guyer, 1997: 214); Salim Kemal propõe que um objecto não pode ser
simultaneamente considerado belo e artístico (cf. Kemal, 1986: 36);

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 111


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Henry E. Allison considera-a um «problema central», na medida em


que «o requisito segundo o qual a avaliação da beleza artística
pressupõe um conceito do tipo de coisa que a obra é suposta ser (…)
parece, segundo os critérios do §16, tornar aderente toda a beleza
artística (ou pelo menos os juízos a ela concernentes)» (Allison, 2001:
296). A propósito da distinção entre beleza artística e juízos a ela
concernentes, é de referir a visão de Donald W. Crawford acerca do
assunto. Crawford assume que a distinção entre beleza livre e beleza
aderente é uma distinção concernente não aos objectos, mas àquilo que
se considera no juízo acerca dos objectos (cf. Crawford, 1974: 114-
116). A partir dessa assunção, ele sugere ser sempre possível «abstrair
de qualquer conceito de um propósito que determine a forma daquilo
que estamos a considerar» (Crawford, 1974: 116). No entanto, várias
são as passagens do texto de Kant a indicar que nem sempre é possível
proceder a uma tal abstracção. Uma dessas passagens é precisamente a
passagem, do §48, que temos vindo a apresentar como causa do
problema que nos propusemos abordar. Logo, a perspectiva
apresentada por Crawford não contribui especialmente para a resolução
desse problema. Embora remetendo para o §45, também a perspectiva
de Fiona Hughes assenta na possibilidade de abstracção. No entender
da intérprete, o simples facto de a bela arte ter de ser vista como se
fosse natural e, por conseguinte, a necessidade de se abstrair de
quaisquer fins envolvidos na produção de uma bela obra de arte, tal
torna «desnecessária» a conclusão de acordo com a qual «a beleza
artística não pode qualificar-se para o gosto, mas unicamente para a
beleza aderente» (Hughes, 2010: 121). Hughes parece esquecer o que
é afirmado no §48. Precisamente porque no juízo através do qual se
declara bela uma obra de arte tem de ser considerado um conceito
daquilo que o objecto deva ser, nesse juízo não pode abstrair-se desse
conceito. 120 H. W. Cassirer não ignora essa exigência. No entanto,

120
Ainda assim, não deixa de ser de destacar a separação que, na passagem
supracitada, Hughes estabelece entre gosto, por um lado, e beleza aderente, por outro.

112 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


ARTE

apesar de considerá-la «surpreendente», pois a Crítica da Faculdade


do Juízo sempre nos informou «que os nossos juízos acerca da beleza
de modo nenhum pressupõem um conceito definido do objecto (fim) e
que a beleza é uma qualidade que é fundamentalmente diferente da
perfeição», Cassirer considera o problema por ela levantado «fácil de
resolver» (Cassirer, 1970: 277). O comentador não o resolve, porém.
Ele limita-se a afirmar que «em comparação com os nossos juízos sobre
objectos naturais belos, os nossos juízos acerca de produtos de arte
belos pressupõem a Ideia de um fim» e que «isso não altera o facto de
que mesmo no caso dos produtos artísticos belos o fim envolvido não
é um fim objectivo definido e de que o conceito não é um conceito
definido», acrescentando, logo a seguir, que «[o] princípio que subjaz
todos os nossos juízos acerca da beleza é o princípio da conformidade
a fins subjectiva, ou conformidade a fins sem fim» (Cassirer, 1970:
277). Uma possível explicação para a perspectiva de Cassirer assentará
na sua opção por não abordar, entre outros, os §15-§17, inserindo-os
no grupo dos parágrafos que não estão imediatamente ligados às
questões principais da terceira Crítica (cf. Cassirer, 1970: vii).
Particularmente centrada no §16, Eva Schaper, chamando a atenção
para um uso opaco e ambivalente da noção de representação, contribui
sobremaneira para a elaboração de uma resposta consistente à questão
de saber se pode falar-se de bela arte. Ainda assim, ela não parece
colocar essa questão. Schaper parece simplesmente aceitar que pode
falar-se de beleza artística.121 Schaper está mais interessada em
contrariar a visão segundo a qual «a arte não-representativa, no sentido
moderno de arte abstracta, providencia o paradigma para os puros
juízos de gosto» e segundo a qual «a arte que retrata ou descreve é,
simplesmente por essa razão, material meramente para avaliações

121
Numa abordagem que faz do §42, a comentadora refere mesmo que «o puro
juízo de gosto (…) é agora explicitamente estendido para incluir a resposta à
beleza na arte» (Schaper, 2007: 388); mais à frente, ela acrescenta que a beleza
dos produtos do génio «pode ser ajuizada como puramente formal em puros juízos
de gosto» (Schaper, 2007: 392).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 113


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

estéticas impuras», por outras palavras, em contrariar a perspectiva de


acordo com a qual há uma «primazia da arte não-representativa sobre
a arte representativa» (Schaper, 2003: 117).122 Finalmente, Hans-Georg
Gadamer afirma que «o conceito de gosto perde o seu significado se o
fenómeno da arte passar para primeiro plano» (Gadamer, 2006: 49).

122
Para tal, a intérprete aborda a questão de saber se «os fundamentos para a distinção
entre duas espécies de beleza são os mesmos para a natureza e para a arte» (Schaper,
2003: 102), isto é, «se Kant pretende dar as mesmas razões ou aplicar os mesmos
critérios para a atribuição da beleza pura a objectos naturais e a objectos feitos pelo
homem» (Schaper, 2003: 105). Mas ela não estabelece qualquer relação entre a sua
abordagem e o que é escrito no §48 da Crítica da Faculdade do Juízo.

114 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


Capítulo III: Bela Arte

1. BELAS OBRAS DE ARTE

1.1. Obras de arte livremente declaradas belas


A questão que conduz a nossa investigação é a de saber se e como poderá
falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo.
Queremos averiguar se e sob que condições será legítimo usar-se a
expressão bela arte no âmbito da terceira Crítica de Kant. Poderá uma
obra de arte ser ajuizada através de um juízo de gosto? Poderá um objecto
artístico ser declarado belo? Os argumentos que apresentámos contra a
possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela, os argumentos que
apresentámos contra a possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico
através de um juízo de gosto, por outras palavras, os argumentos que

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

apresentámos a favor da impossibilidade de falar-se de bela arte, tais


argumentos não devem levar-nos a ignorar três factos do texto de Kant.
Em primeiro lugar, há que assinalar que a “Crítica da Faculdade de
Juízo Estética” da Crítica da Faculdade de Juízo vive entre a limitação
de uma obra de arte ser declarada bela através de um juízo de gosto
aplicado, de um juízo estético logicamente condicionado ou de um juízo
de gosto em parte intelectualizado e a possibilidade de essa mesma obra
ser declarada bela através de um (puro) juízo de gosto, entre a mera
aptidão das obras de arte para a beleza simplesmente aderente ou fixada
e a sua eventual aptidão para a beleza (livre), entre a possibilidade e a
impossibilidade de obras de arte serem (livremente) declaradas belas,
entre a legitimidade e a ilegitimidade de falar-se de bela arte enquanto
arte que é (livremente) declarada bela. Em segundo lugar devemos
salientar um facto claro: Kant ocupa uma parte significativa do seu texto
a falar de bela arte.123 Por si só, estes dois factos não seriam, no entanto,
suficientes para que acrescentássemos o que quer que seja ao que
dissemos no segundo capítulo da nossa tese – o primeiro porque, embora
legítimo, é mais um ponto de vista acerca do texto de Kant do que
propriamente um facto; o segundo porque, embora seja um facto claro,
poderá significar que, quando fala de bela arte, Kant está a falar tão-
somente de uma arte condicionadamente bela, isto é, de obras de arte que
só condicionadamente, não livremente, portanto através dos chamados
juízos de gosto aplicados, dos chamados juízos estéticos logicamente
condicionados ou dos chamados juízos de gosto em parte
intelectualizados, não de puros juízos de gosto, são declaradas belas. 124
Se efectivamente for esse o caso, então o facto de Kant ocupar uma parte
significativa do seu texto a falar de bela arte não contribui minimamente

123
Não elencaremos as ocorrências da expressão bela arte na Crítica da Faculdade
do Juízo. Algumas dessas ocorrências foram enunciadas na introdução a esta tese.
Citemos apenas o título do §44: «Da bela arte (Von der schönen Kunst)» (Kant, 1998:
208).
124
Ora, nós temos vindo a sustentar que tais juízos não são juízos de gosto, que a
beleza livre não é uma beleza.

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BELA ARTE

para que se afirme a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela
através de um (puro) juízo de gosto, a aptidão das obras de arte para a
beleza (livre), a possibilidade de as obras de arte serem (livremente)
declaradas belas, a legitimidade de falar-se de bela arte enquanto arte
que é (livremente) declarada bela. Se esse for efectivamente o caso,
então um objecto artístico não pode ser ajuizado através de um juízo de
gosto, uma obra de arte não pode ser declarada bela, não é legítimo falar-
se de bela arte.
Esse poderá não ser o caso, no entanto. Henry E. Allison, por exemplo,
considera que «[m]esmo quando passa para a natureza da produção
artística e sua relação com o génio (…) Kant continua a orientar-se em
direcção ao juízo de gosto» (Allison, 2001: 271). Nesse sentido, em Kant’s
Theory of Taste, o comentador assinala que «a preocupação básica» de
Kant «poderá ser descrita como contribuir para a possibilidade de um puro
juízo de gosto relativo à bela arte» (Allison, 2001: 271).125 Ainda que a
interpretação de Allison possa ser incorrecta e que, ao falar de bela arte,
Kant possa remeter apenas para uma arte condicionadamente bela, facto é
que Kant menciona objectos artísticos como sendo livremente declarados
belos. Fá-lo no §16, ao afirmar, explicitamente, que «os desenhos à la
grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede (die
Zeichnungen à la grecque, das Laubwerk zu Einfassungen oder auf
Papiertapeten)», objectos artísticos, «são belezas livres (sind freie
Schönheiten)» (Kant, 1998: 120). Fá-lo, igualmente, no seguimento dessa
afirmação, ao referir «o que na música se denomina fantasias (sem tema),

125
Entretanto, as considerações de Allison a este propósito reaparecem mais à frente
na sua obra: do seu ponto de vista, «é precisamente o problema de justificar a
possibilidade da produção de uma bela obra de arte» aquilo «que leva Kant de um
foco exclusivo na questão do gosto (ou de uma “recepção estética”) a uma
preocupação com a produção artística (ou de uma “criação estética”)» (Allison, 2001:
279). Por essa razão, no entender do intérprete, «só à luz desse problema é que
podemos compreender a função sistemática da discussão de Kant acerca da bela arte
no interior da Crítica da Faculdade do Juízo» (Allison, 2001: 279). Note-se, de resto,
que os parágrafos da terceira Crítica directamente concernentes à bela arte se situam
na chamada “Dedução dos juízos estéticos puros”.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 117


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

e até toda a música sem texto (das, was man in der Musik Phantasieen
(ohne Thema) nennt, ja die ganze Musik ohne Text)», também, esses,
objectos artísticos, como exemplos de objectos que «se pode contar como
da mesma espécie (man kann das zu derselben Art zählen)» (Kant, 1998:
120). Nestes excertos, do §16, de facto, Kant apresenta exemplos de
objectos artísticos que são livremente declarados belos, exemplos de
objectos artísticos que são declarados belos através de puros juízos de
gosto. É este o terceiro e mais decisivo facto que devemos salientar do
texto de Kant. De maneira nenhuma podemos ignorá-lo. A sua aceitação
tem como consequência a aceitação de que uma obra de arte pode ser
(livremente) declarada bela, a aceitação de que uma obra de arte pode ser
declarada bela através de um (puro) juízo de gosto. De outra maneira: a
sua aceitação tem como consequência a aceitação de que um objecto
artístico pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, de que uma obra
de arte pode ser declarada bela, de que é legítimo falar-se de bela arte.
Paul Guyer reconhece o seu carácter decisivo. Em Kant and the Claims of
Taste, ele assinala que os próprios exemplos dados por Kant «tornam claro
que pelo menos algumas obras de arte podem ser consideradas belezas
livres» (Guyer, 1997: 222). Resta-nos descobrir como podem obras de arte
ser consideradas belezas livres.

1.2. A noção de bela arte segundo os §44-§46 da Crítica da Faculdade


do Juízo
Embora um tal facto seja de destacar, devemos admitir que no parágrafo
a partir do qual ele emerge (§16) nada parece ser dito no sentido da
sustentação da possibilidade de um objecto artístico ser livremente
declarado belo, e, portanto, no sentido da sustentação da possibilidade de
falar-se de bela arte. Pelo contrário, esse é precisamente o parágrafo no
qual surgem as noções de beleza aderente e de juízo de gosto aplicado,
como já tivemos oportunidade de notar, noções cuja relevância ou mesmo
legitimidade temos vindo a recusar. Nos parágrafos anteriores e nos
parágrafos que imediatamente se lhe seguem também nada se encontra no
sentido da referida sustentação. Efectivamente, só a partir do §44 parecem

118 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

poder ser encontradas informações que sustentem explicitamente a


possibilidade de falar-se de bela arte.126
Uma visão direccionada do §44 permite-nos observar não só que,
sendo arte estética, a bela arte, por definição, «tem por intenção imediata
o sentimento de prazer (hat sie das Gefühl der Lust zur unmittelbaren
Absicht)», como também que o seu fim é não «que o prazer acompanhe as
representações enquanto simples sensações (dass die Lust die
Vorstellungen als bloße Empfindungen begleite)», caso da arte agradável,
cujo padrão de medida é a sensação sensorial, mas que «o prazer as
acompanhe enquanto modos de conhecimento (dass sie dieselben als
Erkenntnisarten begleite)» (Kant, 1998: 209). Para uma obra de arte ser
bela, o comprazimento que o sujeito sente por ocasião da sua
representação tem de estar ligado a uma disposição reciprocamente
harmónica das faculdades da imaginação e do entendimento enquanto
condição do conhecimento. 127 Entretanto, Kant afirma que a bela arte «é
um modo de representação que é por si própria conforme a fins (…) sem
fim (ist eine Vorstellungsart, die für sich selbst zweckmäßig ist und (…)
ohne Zweck)» (Kant, 1998: 209) e que o seu padrão de medida é «a
faculdade de juízo reflexiva (die reflektierende Urteilskraft)» (Kant, 1998:
210).
Será, porém, legítimo falar-se de uma arte cujo padrão de medida é a
faculdade de juízo reflexiva? Poderá falar-se de uma arte cuja beleza
assenta numa conformidade a fins que é, no entanto, sem fim? Estaremos
autorizados a falar de bela arte? É importante recordar que, de acordo com
o §48, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte «tem que
ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser

126
Não defendemos, com esta afirmação, que, a partir do §44, Kant tem como
objectivo a sustentação da possibilidade de falar-se de bela arte.
127
Assim, de acordo com o que Guyer propõe, «uma obra de bela arte é um objecto
intencionalmente produzido pela capacidade humana com o objectivo de produzir
prazer nos elementos do seu público ocupando as suas faculdades de conhecimento
superiores e induzindo um jogo harmónico entre a sua imaginação e o seu
entendimento» (Guyer, 1997: 355).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 119


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(muss zuerst ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding
sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da
coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht
werden müssen)» (Kant, 1998: 216). Se consideramos essa informação,
não devemos deixar ficar a nossa indagação pelo §44, pois o que é
afirmado nesse parágrafo não anula nem sequer diminui, por si só, as
dificuldades causadas por aquele outro.128
Como título do §45, Kant escreve: «Bela arte é uma arte enquanto ao
mesmo tempo parece ser natureza (Schöne Kunst ist eine Kunst, sofern
sie zugleich Natur zu sein scheint)» (Kant, 1998: 210). No caso da beleza
da natureza, como já vimos, a representação da conformidade a fins do
objecto não envolve um conceito daquilo que esse objecto deva ser.
Parecer ser natureza (Natur zu sein scheinen), de acordo com o que nos é
dado a entender no §45, significa que a conformidade a fins do produto
parece livre, parece não intencional, parece não submetida às «regras
segundo as quais unicamente o produto pode tornar-se aquilo que ele deve
ser (Regeln, nach denen allein das Produkt das werden kann, was es sein
soll)» (Kant, 1998: 211).129 Assim, no caso da bela arte, esconde-se «a
forma escolástica (die Schulform)» e qualquer «vestígio de que a regra
tenha pairado diante do artista e tenha algemado as faculdades do ânimo
(Spur, dass die Regel dem Künstler vor Augen geschwebt und seinen
Gemütskräften Fesseln angelegt habe)» (Kant, 1998: 211).

128
Neste estádio da nossa investigação, continuamos obrigados a afirmar que não pode
declarar-se belo um objecto artístico, que um objecto artístico não pode ser ajuizado
através de um juízo de gosto. No entanto, devemos notar desde já que, analisados por
relação com os conteúdos de outros parágrafos da Crítica da Faculdade do Juízo, os
conteúdos do §44 revelar-se-ão importantes na compreensão das condições de
possibilidade de falar-se de bela arte. O mesmo pode ser assinalado relativamente aos
conteúdos do §45.
129
Segundo Allison, isso quer dizer que o objecto tem de «comprazer de uma certa
maneira, nomeadamente, no simples julgamento ou reflexão independentemente de
um conceito», de uma maneira «que preserve a liberdade da imaginação», por outras
palavras, que o objecto tem de «ocasionar uma harmonia das faculdades em jogo
livre» (Allison, 2001: 276).

120 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Aquilo que se impõe saber, porém, é se uma tal condição para que a
arte seja bela tem, por si só, alguma utilidade para sustentar a hipótese de
uma resposta afirmativa à questão acerca da legitimidade da noção de bela
arte. Ao longo do §45, Kant salienta que a beleza da arte depende não
apenas de essa arte parecer ser natureza, mas também da consciência de
que se trata de arte, de que é arte.130 Se assim é, então nós sabemos que a
conformidade a fins do objecto é efectivamente intencional e, de acordo
com o §48, que somos obrigados a tê-la em conta no julgamento da beleza
do objecto (cf. Kant, 1998: 216). Nesse caso, o movimento das faculdades
de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto será um
movimento conforme a fins, mas que, não sendo um movimento livre, não
será conforme a fins sem fim. Nem o juízo será um juízo de gosto, nem o
objecto poderá ser declarado belo. Assim, na ausência de mais
explicações, não pode aceitar-se a afirmação de Kant, de acordo com a
qual «quer se trate da beleza da natureza ou da arte, podemos dizer de um
modo geral: belo é aquilo que apraz no simples julgamento (não na
sensação sensorial nem mediante um conceito) (wir können allgemein
sagen, es mag die Natur- oder die Kunstschönheit betreffen: schön ist das,
was in der bloßen Beurteilung (nicht in der Sinnenempfindung, noch durch
einen Begriff) gefällt)» (Kant, 1998: 210). No caso da arte, aquilo a que se
chama beleza não parece poder aprazer no simples julgamento. Logo, a
isso não pode chamar-se beleza. Não pode declarar-se bela uma obra de
arte. A resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte é, então,
uma resposta negativa: não pode falar-se de bela arte.

130
Kant repete-o, insistentemente, no mesmo parágrafo: afirma, primeiro, que «[f]ace
a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é arte e não natureza
([a]n einem Produkte der schönen Kunst muss man sich bewusst werden, dass es
Kunst sei und nicht Natur)» (Kant, 1998: 210); reitera, depois, que «a arte somente
pode ser denominada bela se temos consciência de que ela é arte e que ela apesar disso
nos parece ser natureza (die Kunst kann nur schön genannt werden, wenn wir uns
bewusst sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als Natur aussieht)» (Kant, 1998: 210);
sublinha, finalmente, que «a bela arte tem que passar por natureza, conquanto na
verdade tenhamos consciência dela como arte (schöne Kunst muss als Natur
anzusehen sein, ob man sich ihrer zwar als Kunst bewusst ist)» (Kant, 1998: 211).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 121


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

No §46, Kant apresenta uma outra condição no sentido da possibilidade


de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto, isto é, no
sentido da possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela: essa
condição é a de que o juízo usado para declará-la como tal não seja
«deduzido de qualquer regra que tenha um conceito como fundamento
determinante (von irgend einer Regel abgeleitet werde, die einen Begriff
zum Bestimmungsgrunde habe)», portanto que ele não tenha «no
fundamento um conceito da maneira como [o produto] é possível (einen
Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege)» (Kant, 1998:
211)131. Nesta fase da nossa investigação, não é difícil compreender que,
tal como os excertos que citámos dos §44 e §45, também esta passagem,
do §46, parece não se coadunar com o enunciado de acordo com o qual no
julgamento da beleza da arte têm de ser tidos em conta um conceito
daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse
conceito (cf. Kant, 1998: 216). Assim sendo, poderíamos nada mais dizer
além de que não é possível declarar-se belo um objecto artístico, não é
possível ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto, não é
legítimo falar-se de bela arte. Devemos salientar, no entanto, que o
contexto em que ela está inserida é o da introdução, na Crítica da
Faculdade de Juízo, de uma noção cuja explicitação nos levará a repensar
precisamente a posição adoptada por Kant no §48.132 Trata-se da noção de
génio (Genie), talento para a bela arte. Em nosso entender, a introdução
dessa noção, assim como o alargamento das capacidades da faculdade da
imaginação enquanto faculdade de conhecimento produtiva (produktives
Erkenntnisvermögen), a recorrência à noção de ideia estética (ästhetische
Idee) como representação inexponível da faculdade da imaginação

131
No entender de S. Körner, esta passagem indica que a perspectiva segundo a qual
«não há quaisquer padrões de medida ou critérios conceptuais da beleza quer na arte
quer na natureza é absolutamente incompatível com o espírito e mesmo com a letra
da filosofia do gosto kantiana» (Körner, 1984: 194)
132
Não anunciamos com esta frase qualquer recusa do que Kant afirma no §48.
Limitamo-nos a indicar que, mais à frente, retomaremos as afirmações de Kant nesse
parágrafo. De resto, voltaremos igualmente àquilo que o nosso autor escreve nos §15-
§16.

122 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

(inexponible Vorstellung der Einbildungskraft) e a denominação da beleza


como expressão de ideias estéticas (Ausdruck ästhetischer Ideen), todos
esses factores contribuirão para a elaboração de uma resposta
suficientemente fundamentada à questão de saber se e como poderá um
objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto, se e como
poderá uma obra de arte ser declarada bela, se e como poderá a beleza da
arte ser uma beleza, e, portanto, à questão de saber se e sob que condições
será legítimo falar-se de bela arte.

2. GÉNIO, IDEIA ESTÉTICA, EXPRESSÃO DE IDEIAS ESTÉTICAS


E REFERÊNCIA DO JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA
BELA UMA OBRA DE ARTE AO PRINCÍPIO DA CONFORMIDADE
A FINS FORMAL DA NATUREZA

2.1. Génio
Começámos por indicar, no capítulo inaugural da nossa tese, que o juízo
através do qual se declara belo um objecto é o juízo de gosto. Ainda na
primeira parte desse capítulo, transcrevemos o título do §15: «O juízo de
gosto é totalmente independente do conceito de perfeição (Das
Geschmacksurtheil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich
unabhängig)» (Kant, 1998: 117). A questão de saber se e sob que
condições será legítimo falar-se de bela arte – questão que guia esta nossa
investigação – foi suscitada quando se adicionou, às afirmações
supracitadas, a tese, do §48, segundo a qual no julgamento da beleza da
arte «tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a
coisa deva ser (muss zuerst ein Begriff von dem zum Grunde gelegt
werden, was das Ding sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo
tempo a perfeição da coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges
in Anschlag gebracht werden müssen)» (Kant, 1998: 216). Suspendámo-
la provisoriamente. Centremo-nos no primeiro parágrafo directamente
concernente à noção de génio (Genie). O §46 afigura-se indispensável
para a elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 123


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte. Fá-lo desde logo
por intermédio da frase que o intitula. Ei-la: «Bela arte é arte do génio
(Schöne Kunst ist Kunst des Genies)» (Kant, 1998: 211).133 Se, no
entender de Kant, bela arte é arte do génio, então, compreender o que é o
génio anuncia-se incontornável para compreender a concepção kantiana
de bela arte.
No início do §46, Kant assinala que o génio é uma «faculdade
produtiva (produktives Vermögen)» (Kant, 1998: 211). Recordemos algo
que salientámos no primeiro capítulo da nossa tese: o juízo através do qual
se declara belo um objecto não se funda em conceitos. O belo não pode
ser determinado mediante conceitos. Se assim é, a regra da bela arte não
pode fundar-se num conceito. Ela não pode ser uma regra determinada.
Ora, na primeira conclusão que apresenta acerca da noção de génio,
precisamente no §46, Kant descreve-o como «um talento para produzir
aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada (ein
Talent sei, dasjenige, wozu sich keine bestimmte Regel geben
hervorzubringen lässt)» (Kant, 1998: 212). O génio é um talento para a
produção da beleza, um talento para criar obras de arte belas, um talento,
portanto, para a bela arte. Embora apenas gramaticalmente, vemo-lo
antecipado no já citado título do §46 (cf. Kant, 1998: 211).134
Ainda no início do §46, Kant assinala que «o próprio talento enquanto
faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza (das Talent als
angebornes produktives Vermögen des Künstlers selbst zur Natur
gehört)» e que «[g]énio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela

133
Se quisermos ser exactos, diremos que a primeira referência que na “Crítica da
Faculdade de Juízo Estética” é feita à noção de génio ocorre numa nota do §17, acerca
do ideal da beleza. Aí, o nosso autor menciona aquilo «que se denomina génio
(Genie)» para dizer que, nisso que como tal é designado, «a natureza parece afastar-
se das relações normais das faculdades do ânimo em benefício de uma faculdade só»
(Kant, 1998: 268). Daremos o devido destaque a essa referência no último capítulo da
nossa dissertação.
134
As razões não meramente gramaticais para que a bela arte seja a arte do génio –
assim como as consequências que podemos extrair dessa afirmação, e mesmo as
condições para o seu proferimento – serão abordadas mais à frente.

124 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

qual a natureza dá a regra à arte ([g]enie ist die angeborne Gemütsanlage


(ingenium), durch welche die Natur der Kunst die Regel gibt)» (Kant,
1998: 211). Algo deve desde já ser ressalvado: estas duas afirmações não
significam que os produtos do génio sejam efeitos da natureza, objectos
naturais. Kant salvaguarda-o no parágrafo anterior, ao referir, como já
notámos, que «[f]ace a um produto da bela arte temos que tomar
consciência que ele é arte e não natureza ([a]n einem Produkte der
schönen Kunst muss man sich bewusst werden, dass es Kunst sei und nicht
Natur)» (Kant, 1998: 210). No caso das obras de arte do génio, aquilo que
dá a regra é a natureza do sujeito: no §46, o nosso autor indica que «a
natureza do sujeito (e pela disposição da faculdade do mesmo) tem que
dar a regra à arte (muss die Natur im Subjekte (und durch die Stimmung
der Vermögen desselben) der Kunst die Regel geben)» (Kant, 1998: 211-
212); no parágrafo seguinte (§47) ele acrescenta que «[a]s ideias do artista
provocam ideias semelhantes no aprendiz, se a natureza o proveu com uma
proporção semelhante de faculdades do ânimo ([d]ie Ideen des Künstlers
erregen ähnliche Ideen seines Lehrings, wenn ihn die Natur mit einer
ähnlichen Proportion der Gemütskräfte versehen hat)» (Kant, 1998:
214).135 É no concernente a essa proporção que aquele que é dotado de
génio é um preferido pela natureza. 136

135
Ainda nos §46 e §47, Kant nota, respectivamente, que é «como natureza (als
Natur)» que o génio «fornece a regra (die Regel gebe)» (Kant, 1998: 212) e que «o
dom natural tem de dar a regra à arte (enquanto bela arte) (die Naturgabe der Kunst
(als schönen Kunst) die Regel geben muss)» (Kant, 1998: 214). Na medida em que
essas indicações nada ostentam no que diz respeito a uma proporção especial das
faculdades do ânimo, elas não são por nós consideradas tão relevantes quanto as outras
que citámos. Mesmo assim, elas ajudam a compreender que aquele que é dotado de
génio dá a regra à bela arte através da sua natureza, genial.
136
No §47, Kant adjectiva de «preferidos pela natureza (Günstlinge der Natur)
relativamente ao seu talento para a arte bela» (Kant, 1998: 213) os homens dotados
de génio, isto é, «[a]queles que merecem a honra de chamar-se génios» (Kant, 1998:
214). Mais à frente, no olhar retrospectivo que lança sobre a explicação desse talento,
afirma que «o génio é um favorito da natureza, que somente se pode considerar como
aparição rara (ein Günstling der Natur ist, dergleichen man nur als seltene
Erscheinung anzusehen hat)» (Kant, 1998: 224). A proporção das faculdades provida
aos génios é, então, algo raro. Ela não corresponde à proporção «requerida para o

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 125


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Embora aquele que é dotado de génio tenha consciência de que possui


um dom natural, ele não tem, no entanto, qualquer noção de como surge
nele a disposição das faculdades que lhe permite criar obras de arte belas
ou de como se encontra nele, pelo menos nos termos em que se encontra,
aquilo através do qual ele realiza essas obras. 137 Não tendo ele qualquer
explicação para isso, não pode ensinar a outros como podem eles chegar
a essa disposição do ânimo e, portanto, não pode prescrever-lhes,
metodicamente, o modo como poderão produzir belas obras de arte.138

gosto (zum Geschmack erfordert wird)», referida por Kant no §39, e que «também é
exigida para o são e comum entendimento que se pode pressupor em qualquer (auch
zum gemeinen und gesunden Verstande erforderlich ist, den man bei jedermann
voraussetzen darf)» (Kant, 1998: 195). De resto, no §17, Kant afirma que «se
nenhuma das disposições do ânimo é saliente sobre aquela proporção que é requerida
para constituir simplesmente um homem livre de defeitos, nada se pode esperar
daquilo que se denomina génio (wenn keine von den Gemütsanlagen über diejenige
Proportion hervorstechend ist, die erfordert wird, bloß einen fehlerfreien Menschen
auszumachen, nichts von dem, was man Genie nennt, erwartet werden darf)» (Kant,
1998: 267-268). Entretanto, o nosso autor reforça essa tese no §49, nomeadamente ao
assinalar que a reunião das faculdades da imaginação e do entendimento constitui o
génio somente «em certas relações (in gewissem Verhältnisse)» (Kant, 1998: 222).
137
Veja-se a terceira conclusão acerca do génio que é apresentada no §46, a saber, que
«o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso
as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou
planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as põem em condição
de produzir produtos homogéneos (der Urheber eines Produkts, welches er seinem
Genie verdankt, selbst nicht weiß, wie sich in ihm die Ideen dazu herbei finden, auch
es nicht in seiner Gewalt hat, dergleichen nach Belieben oder planmäßig auszudenken
und anderen in solchen Vorschriften mitzutheilen, die sie in Stand setzen,
gleichmäßige Produkte hervorzubringen)» (Kant, 1998: 212). De resto, terá sido essa
a razão, no entender de Kant, por que «presumivelmente a palavra génio foi derivada
de genius, o espírito peculiar, protector e guia, dado conjuntamente a um homem por
ocasião do nascimento, e de cuja inspiração aquelas ideias originais procedem (von
dessen Eingebung jene originale Ideen herrührten)» (Kant, 1998: 212). Essas ideias
originais são as ideias estéticas, às quais daremos o devido destaque na subsecção
seguinte.
138
A esse propósito, é de citar não apenas o início da conclusão mencionada na nota
anterior, a saber, «o génio (…) ele próprio não pode descrever ou indicar
cientificamente como realiza o seu produto (es, wie es sein Produkt zu Stande bringe,
selbst nicht beschreiben, oder wissenschaftlich anzeigen könne)» (Kant, 1998: 212),
mas também a referência que, no parágrafo seguinte, Kant faz a dois génios, ou,

126 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Pelas mesmas razões – repitamo-lo, mas de um outro ponto de vista – não


é possível aprender a criar objectos assim. 139 A originalidade (die
Originalität) do génio, assim como o facto de aquele que o possui não
saber como surge nele a disposição das faculdades que lhe permite criar
obras de arte belas ou como se encontra nele, nos termos em que se
encontra, aquilo através do qual ele realiza tais obras, esses dois aspectos
não implicam, porém, que as obras de génio não possam servir de produtos
exemplares (exemplarisch) e, aliás, de padrão de medida (Richtmaße) ou
regra de julgamento (Regel der Beurteilung) para aqueles que as acolhem
(cf. Kant, 1998: 212). Analisaremos essa possibilidade em momento
oportuno. Manter-nos-emos, por ora, no âmbito da originalidade daquele
que é dotado de génio. Feita uma introdução do génio enquanto talento
para a bela arte, daremos destaque a dois outros factores que, no fim da
secção anterior, mencionámos como relevantes para a construção de uma
resposta adequada à questão de saber se e como poderá falar-se de bela

melhor, a dois homens com génio: «nenhum Homero ou Wieland pode indicar como
as suas ideias imaginosas, e contudo ao mesmo tempo cheias de pensamento, surgem
e se reunem na sua cabeça, porque ele mesmo não o sabe e portanto também não o
pode ensinar a nenhum outro (kein Homer oder Wieland anzeigen kann, wie sich seine
phantasiereichen und doch zugleich gedankenvollen Ideen in seinem Kopfe hervor
und zusammen finden, darum weil er es selbst nicht weiß und es also auch keinen
andern lehren kann)» (Kant, 1998: 213). Notemos, de resto, que a regra da bela arte
«não pode ser surpreendida numa fórmula e servir como preceito; pois de contrário o
juízo sobre o belo seria determinável segundo conceitos (kann in keiner Formel
abgefasst zur Vorschrift dienen; denn sonst würde das Urteil über das Schöne nach
Begriffen bestimmbar sein)» (Kant, 1998: 214), que o génio «é um talento para a arte,
não para a ciência, a qual tem que ser precedida por regras claramente conhecidas que
têm que determinar o seu procedimento (ein Talent zur Kunst sei, nicht zur
Wissenschaft, in welcher deutlich gekannte Regeln vorangehen und das Verfahren in
derselben bestimmen müssen)» (Kant, 1998: 223) e que a bela arte (arte do génio) não
é «um produto do entendimento e da ciência (ein Produkt des Verstandes und der
Wissenschaft)» (Kant, 1998: 260).
139
Por exemplo, «não se pode aprender a escrever com engenho, por mais minuciosos
que possam ser todos os preceitos da arte poética e por mais excelentes que possam
ser os meus modelos (man kann nicht geistreich dichten lernen, so ausführlich auch
alle Vorschriften für die Dichtkunst und so vortrefflich auch die Muster derselben sein
mögen)» (Kant, 1998: 213).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 127


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. São eles o alargamento


das capacidades da faculdade da imaginação enquanto faculdade de
conhecimento produtiva e a recorrência à noção de ideia estética como
representação inexponível da faculdade da imaginação.

2.2. Ideia estética


Na primeira observação que se segue ao §57, Kant refere que «podemos
explicar o génio também pela faculdade de ideias estéticas, com o que é
ao mesmo tempo indicada a razão pela qual, em produtos do génio, a
natureza (do sujeito) e não um fim reflectido dá a regra à arte (à produção
do belo) ([m]an kann diesem zufolge Genie auch durch das Vermögen
ästhetischer Ideen erklären: wodurch zugleich der Grund angezeigt wird,
warum in Produkten des Genies die Natur (des Subjekts), nicht ein
überlegter Zweck der Kunst (der Hervorbringung des Schönen) die Regel
gibt)» (Kant, 1998: 251-252). Não nos preocupemos em mostrar desde já
o estatuto de uma tal explicação do génio como, ela própria, explicação
para que a criação de belas obras de arte seja regrada pela natureza do
sujeito. Por ora, registemos apenas que o génio pode ser explicado pela
faculdade de ideias estéticas.
As principais referências à noção de ideia estética são feitas por Kant
no §49 e na mencionada primeira observação que se segue ao §57.140
Qualquer dessas referências nos indica que as ideias estéticas não são

140
Tal como acontece no que concerne à noção de génio, também a primeira
ocorrência da noção de ideia estética na “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” se
dá no §17, acerca do ideal da beleza. Aí, porém, estava em causa «a ideia normal
estética (die ästhetische Normalidee)» (Kant, 1998: 124). A ideia normal estética é
«uma intuição singular (da faculdade da imaginação), que representa o padrão de
medida do [julgamento de uma coisa] como de uma coisa pertencente a uma espécie»
(Kant, 1998: 124), é «a regra», é «somente a forma, que constitui a condição
imprescindível de toda a beleza, por conseguinte simplesmente a correcção na
exposição da espécie» (Kant, 1998: 126). Como tal, ela «não pode conter nada
especificamente característico; pois de contrário não seria ideia normal para a
espécie» (Kant, 1998: 126). Não é a esse tipo de ideia estética que o nosso autor faz
referência no §49 e na primeira observação que se segue ao §57.

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BELA ARTE

intuições como quaisquer outras – as ideias estéticas são representações


inexponíveis da faculdade da imaginação. 141 É precisamente por o serem
que tais ideias não podem tornar-se conhecimento. As ideias da razão não
podem tornar-se conhecimento porque os seus conceitos – ou melhor, elas
próprias: ideias da razão, conceitos da razão – são conceitos
transcendentes, conceitos a que nenhuma intuição pode corresponder
adequadamente, e, portanto, conceitos de realidade objectiva não provável
(indemonstrável) no âmbito do conhecimento teórico, conceitos
indemonstráveis da razão (cf. Kant, 1998: 249-250). A impossibilidade de
as ideias estéticas se tornarem conhecimento prende-se, diferentemente,
com o facto de essas intuições internas da faculdade da imaginação não
serem adequadamente alcançáveis através de conceitos do entendimento,
isto é, com o facto de nenhum conceito do entendimento ser ou poder ser-
lhes inteiramente adequado.142 A ideia estética dá muito que pensar – dá

141
Kant utiliza mais do que uma vez a mesma denominação. Veja-se a primeira
observação que se segue à resolução da antinomia do gosto, observação na qual o
nosso autor diz crer «que se pode denominar a ideia estética uma representação
inexponível da faculdade da imaginação (eine inexponible Vorstellung der
Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 250) e acrescenta que «visto que conduzir a conceitos
uma representação da faculdade da imaginação equivale a expô-los, assim a ideia pode
denominar-se uma representação inexponível da mesma (em seu jogo livre) (eine
inexponible Vorstellung derselben (in ihrem freien Spiele))» (Kant, 1998: 251).
142
A inadequabilidade essencial entre as ideias estéticas e os conceitos do
entendimento também é repetidamente referida por Kant. Atente-se, nesse sentido, ao
que ele afirma no §49, a saber, que «[t]ais representações da faculdade da imaginação
podem chamar-se ideias (…) principalmente, porque nenhum conceito lhes pode ser
plenamente adequado enquanto intuições internas (ihnen als innern Anschauungen
kein Begriff völlig adäquat sein kann)» (Kant, 1998: 219-220), e, igualmente, à
primeira observação que se segue ao §57, na qual Kant assinala que «[u]ma ideia
estética não pode tornar-se um conhecimento porque ela é uma intuição (da faculdade
da imaginação), para a qual jamais pode encontrar-se adequadamente um conceito
(eine Anschauung (der Einbildungskraft) ist, der niemals ein Begriff adäquat
gefunden werden kann)» (Kant, 1998: 249-250) e que «numa ideia estética o
entendimento jamais alcança através dos seus conceitos a inteira intuição interna da
faculdade da imaginação, que ela liga a uma representação dada (erreicht bei einer
ästhetischen Idee der Verstand durch seine Begriffe nie die ganze innere Anschauung
der Einbildungskraft, welche sie mit einer gegenenen Vorstellung verbindet)» (Kant,
1998: 251).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 129


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

tanto que pensar que, como é referido no §49, «nenhuma linguagem [a]
alcança inteiramente nem [a] pode tornar compreensível (keine Sprache
völlig erreicht und verständlich machen kann)» (Kant, 1998: 219), dá
tanto que pensar que «jamais deixa compreender-se num conceito
determinado (sich niemals in einem bestimmten Begriff zusammenfassen
lässt)» (Kant, 1998: 220).
Não obstante o génio poder ser explicado pela faculdade de ideias
estéticas, a faculdade responsável pela produção de tais ideias é, ressalve-
se, a faculdade da imaginação.143 A faculdade da imaginação produ-las
«enquanto faculdade de conhecimento produtiva (als produktives
Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 219). Na bela arte, em vez de
proceder-se a uma apresentação lógica de um conceito, o que se faz, de
acordo com as palavras do §49, é ligar à «representação da faculdade da
imaginação associada a um conceito dado (eine einem gegebenen Begriffe
beigesellte Vorstellung der Einbildungskraft)» uma «multiplicidade de
representações parciais no uso livre das mesmas (eine Mannigfaltigkeit
der Teilvorstellungen in dem freien Gebrauche derselben)», naquilo que
constitui um insuflar de «espírito à linguagem enquanto simples letra
(Geist mit der Sprache, als bloßem Buchstaben)» (Kant, 1998: 222). Um
tal procedimento depende da recorrência aos atributos estéticos dos
objectos.144 É através da recorrência a esses atributos que a imaginação se

143
Como nota Lambert Zuidervaart, «[a] fonte mais precisa de ideias estéticas é não
o génio, no entanto, mas a imaginação criativa» (Zuidervaart, 2003: 200).
144
Segundo Kant, os atributos estéticos (ästhetiche Attribute) são «[a]quelas formas
que não constituem a apresentação de um dado conceito, ele mesmo, mas somente
expressam, enquanto representações secundárias da faculdade da imaginação, as
consequências conectadas com elas e o parentesco do conceito com outros (diejenigen
Formen, welche nicht die Darstellung eines gegebenen Begriffs selber ausmachen,
sondern nur als Nebenvorstellungen der Einbildungskraft die damit verknüpften
Folgen und die Verwandtschaft desselben mit andern ausdrücken)» (Kant, 1998:
220). Exemplos de atributos estéticos dados por Kant são «a águia de Júpiter com o
relâmpago nas garras» (Kant, 1998: 220) ou «o pavão da esplêndida rainha do céu»
(Kant, 1998: 220-221). Os conceitos em causa são os «da sublimidade e majestade da
criação» (Kant, 1998: 221). As ideias estéticas são Júpiter, o «poderoso rei do céu»
(Kant, 1998: 220), e Juno, a «esplêndida rainha do céu» (Kant, 1998: 220-221).

130 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

exerce como faculdade de conhecimento produtiva e se permite «alastrar-


se por um grande número de representações afins, que permitem pensar
mais do que se pode expressar num conceito determinado por palavras
(sich über eine Menge von verwandten Vorstellungen zu verbreiten, die
mehr denken lassen, als man in einem durch Worte bestimmten Begriff
ausdrücken kann)» (Kant, 1998: 221). Ora, sendo essas representações
que fornecem a ideia estética (cf. Kant, 1998: 221), assim, uma tal ideia
«amplia esteticamente o próprio conceito de maneira ilimitada (den
Begriff selbst auf unbegränzte Art ästhetisch erweitert)» (Kant, 1998:
220), abre o ânimo à «perspectiva de um campo incalculável de
representações afins (die Aussicht in ein unabsehliches Feld verwandter
Vorstellungen)» (Kant, 1998: 221) e «permite pensar [desse] conceito
muita coisa inexprimível, cujo sentimento vivifica as faculdades de
conhecimento (zu einem Begriffe viel Unnennbares hinzu denken lässt,
dessen Gefühl die Erkenntnisvermögen belebt)» (Kant, 1998: 222).
A descrição que acabámos de dar da maneira como se procede na bela
arte, nomeadamente a explicitação do exercício produtivo da faculdade da
imaginação, não pode ser aceite sem que regressemos à Crítica da Razão
Pura. Tendo em conta o modo como a faculdade da imaginação é descrita
nesse texto, não podemos deixar de perguntar como pode ela exercer-se
produtivamente no sentido que a Crítica da Faculdade do Juízo dá a esse
exercício, isto é, como pode a faculdade da imaginação produzir ideias
para um conceito dado que, no entanto, vão além desse conceito. Para
responder a essa questão, é indispensável notar ser incorrecta a
identificação do uso do predicado produtiva (productiv) na Crítica da
Razão Pura e na Crítica da Faculdade do Juízo. Na primeira Crítica, a
faculdade da imaginação é tomada como produtiva – ou produtora – na
medida em que a sua síntese é um exercício da espontaneidade, enquanto
sintetiza a priori, e, portanto, enquanto a sua síntese serve de fundamento
à possibilidade da experiência (cf. Kant, 2001: 152, 160 e 165). É como
tal que, na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant a designa por
«faculdade transcendental da imaginação (transzendentale Vermögen der
Einbildungskraft)» (Kant, 2001: 141). Há, nesse contexto, salvaguarde-se,

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 131


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

uma dependência da faculdade da imaginação em relação ao


entendimento: a sua síntese, síntese transcendental «que é um efeito do
entendimento sobre a sensibilidade e que é a primeira aplicação do
entendimento (e simultaneamente o fundamento de todas as restantes) a
objectos da intuição possível para nós (welches eine Wirkung des
Verstandes auf die Sinnlichkeit und die erste Anwendung desselben
(zugleich der Grund aller übrigen) auf Gegenstände der uns möglichen
Anschauung ist)», está, como o nosso autor salienta, na segunda edição,
«de conformidade com as categorias (den Kategorien gemäß)» (Kant,
2001: 152).
Acontece, porém, que, apesar de, no plano do conhecimento objectivo,
a faculdade da imaginação estar submetida ao entendimento, o
conhecimento objectivo não esgota todas as capacidades da nossa mente.
Na Crítica da Faculdade do Juízo, a faculdade da imaginação é tida como
produtiva não (tanto) enquanto poder de sintetizar a priori, mas enquanto
capaz de produzir intuições não subsumíveis em conceitos do
entendimento. Embora para um conhecimento objectivo as
representações da faculdade da imaginação sejam subsumidas em
conceitos do entendimento, nem tudo se limita ao conhecimento
objectivo e, portanto, nem todas as representações dessa faculdade são
subsumidas em conceitos do entendimento. A parte final do §49 é
particularmente clara quanto a esse ponto: enquanto «no seu uso para o
conhecimento a faculdade da imaginação está submetida à coerção do
entendimento e à limitação de ser adequada ao conceito do mesmo (im
Gebrauch der Einbildungskraft zum Erkenntnisse die Einbildungskraft
unter dem Zwange des Verstandes und der Beschränkung unterworfen
ist, dem Begriffe desselben angemessen zu sein)», de um outro ponto de
vista, concretamente «do ponto de vista estético (in ästhetischer
Absicht)», ela «é livre para fornecer, além daquela concordância com o
conceito, ainda espontaneamente, uma matéria rica e não elaborada para
o entendimento (frei ist, um noch über jene Einstimmung zum Begriffe,
doch ungesucht reichhaltigen unentwickelten Stoff für den Verstand zu
liefern)» (Kant, 1998: 222). Essa matéria rica e não elaborada é feita das

132 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

ideias estéticas. Ora, é através de um tal material que a faculdade da


imaginação, depois de tomar «emprestada da natureza a matéria (von der
Natur Stoff geliehen)», se exerce «enquanto faculdade de conhecimento
produtiva (als produktives Erkenntnisvermögen)» e assim mostra ser
«mesmo muito poderosa na criação como que de uma outra natureza a
partir da matéria que a natureza efectiva lhe dá (nämlich sehr mächtig in
Schaffung gleichsam einer andern Natur aus dem Stoffe, den ihr die
wirkliche gibt)» (Kant, 1998: 219).145 Quanto ao entendimento, apesar de
meramente através dos seus conceitos não poder abarcar uma tal matéria
(as ideias estéticas) ele não deixa de empregá-la, embora «não tanto
objectivamente para o conhecimento, mas mais subjectivamente para a
vivificação das faculdades de conhecimento, indirectamente portanto
também para conhecimentos (nicht sowohl objektiv zum Erkenntnisse, als
subjektiv zur Belebung der Erkenntniskräfte, indirekt also doch auch zu
Erkenntnissen)» (Kant, 1998: 222). Assim, mesmo sendo em vão que
tenta, através dos seus conceitos determinados, compreender as intuições
internas que a faculdade da imaginação fornece enquanto produtiva, o
entendimento colabora para a vivificação do ânimo. 146

145
Rudolf A. Makkreel caracteriza a faculdade da imaginação da primeira e terceira
Críticas, respectivamente, como «faculdade de produzir e reproduzir representações
(Vorstellungen)» e como «faculdade de criar apresentações (Darstellungen)»
(Makkreel, 1994: 128). Note-se, no entanto, que a faculdade da imaginação não cria
ex nihilo. Tal como assinala o intérprete, «[a] criação envolvida nas ideias estéticas
não é uma Urbildung, ou formação original, mas uma espécie de Umbildung, ou
processo remodelador. Mediante a criação de outra natureza pela imaginação, nós
“remodelamos” a experiência de acordo com leis analógicas e os princípios superiores
da razão. No processo de remodelação, a imaginação é libertada da lei da associação
de maneira que a matéria que nos é dada pela natureza segundo essa lei “pode ser
reelaborada por nós para algo diverso (…) que ultrapassa a natureza”» (Makkreel,
1994: 120).
146
Veja-se a descrição que Vítor Moura dá daquilo a que chama vaivém cognitivo
entre as faculdades: «quando o entendimento conquista uma nova ordenação do
material fornecido pela imaginação (e. g., tal como uma águia, a majestade estende o
seu raio de acção sobre todo um território, não deixando lugar para nenhum
competidor), a imaginação responde, fornecendo uma nova imagem (e. g., a soberania
como águia vigilante pronta a atacar com o raio que traz nas suas garras) à qual o

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Importa, agora, perguntar o seguinte: envolverá, a referida vivificação,


um exercício livre da faculdade da imaginação daquele que ajuíza? Estará
essa faculdade em harmonia com o entendimento? Poderá o juízo, desse
que ajuíza a obra de arte, ser um juízo de gosto? Abordar estas questões é
indispensável para responder às perguntas que nos têm acompanhado
desde o início da nossa investigação – Poderá falar-se de bela arte? A ser
legítimo, sob que condições poderá isso ser feito?
Pensemos, em primeiro lugar, na liberdade da faculdade da
imaginação. A questão central que se coloca – dada a caracterização que
fizemos quer das ideias estéticas, quer do exercício da imaginação
enquanto faculdade de conhecimento produtiva, isto é, enquanto
produtora das referidas ideias – é a de saber se, no movimento das
faculdades de conhecimento entre si, por ocasião da representação do
objecto artístico genial, a faculdade da imaginação daquele que ajuíza está
em liberdade. Para respondermos a essa questão, devemos manter entre
parêntesis a tese, do §48, de acordo com a qual no julgamento da beleza
de uma obra de arte têm de ser considerados um conceito daquilo que o
objecto deva ser e a perfeição da referida obra de arte segundo esse
conceito (cf. Kant, 1998: 216). No caso de não o fazermos, seríamos
obrigados a afirmar, nesta fase, que o exercício da faculdade da

entendimento é aplicado uma e outra vez» (Moura, 2006: 341). Ora, «quando o
entendimento tenta encontrar um conceito determinado capaz de organizar o material
proposto pela imaginação, falha e balança de novo em direcção à imagem» (Moura,
2006: 343-344). Tal acontece «[p]orque não existe nenhum conceito determinado ao
qual o entendimento se possa agarrar» (Moura, 2006: 342). Sendo assim, o
entendimento «regressa recorrentemente à imagem proposta pela imaginação e tenta
pensar a imagem qua conceito, justapondo os atributos estéticos e os atributos lógicos
de ambos os termos» (Moura, 2006: 342). Segundo Moura, esse «feedback constante
e o vaivém cognitivo entre as faculdades constituem-se como a característica mais
importante tanto da criação como da compreensão das ideias estéticas. Avaliado
enquanto sensação, este vaivém é caracterizado como “agradável”. Considerado do
ponto de vista gnoseológico, ele fortalece a consciência do nosso próprio poder de
pensar e agir. Dá-nos uma “sensação de vida” que deriva do facto de o poder intrínseco
de cada faculdade cognitiva estar a ser desenvolvido na sua máxima extensão, porque
não condicionado pela empiria» (Moura, 2006: 341).

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BELA ARTE

imaginação não é um exercício livre – pois as intuições por ela produzidas


contribuiriam para a representação de uma conformidade a fins objectiva
interna – e, por conseguinte, que o juízo em causa não é um juízo de
gosto.147 Considerando que só através de um juízo de gosto pode um
objecto ser declarado belo, imediatamente se compreende a relevância da
questão de saber se, em face de uma obra de arte de génio, a faculdade da
imaginação se exerce livremente para a questão de saber se poderá falar-
se de bela arte. Que, perante um tal objecto artístico, a faculdade da
imaginação daquele que ajuíza se exerça em liberdade, essa é uma
condição necessária para a declaração do referido objecto como belo e,
por conseguinte, para a legitimação da noção de bela arte.
Afirmar que o juízo de gosto é um juízo livre corresponde a afirmar
que ele não tem um conceito como fundamento de determinação. 148 Se um
juízo é fundado num conceito, então, nesse juízo, o exercício da faculdade
da imaginação é submetido a esse conceito. Nesse caso, o que está em
causa é uma conformidade a fins objectiva. As faculdades de
conhecimento não estão num jogo livre. Ora, se o movimento das
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza não consiste num jogo
livre, então o seu juízo não pode ser um juízo de gosto.
Consequentemente, o objecto por ocasião da representação do qual se
ajuíza não pode ser declarado belo.
Regressemos ao §49 e à noção de ideia estética. Não obstante nenhum
conceito do entendimento poder ser plenamente adequado a uma ideia

147
Se, para reiterar que num juízo de gosto a faculdade da imaginação tem de exercer-
se livremente, quisermos abster-nos de elencar novamente as referências que fizemos
à liberdade da faculdade da imaginação quando, no primeiro capítulo da nossa tese,
descrevemos o juízo de gosto, podemos limitar-nos a mencionar o §9, no qual Kant
usa quatro vezes a expressão jogo livre (freies Spiel) para referir-se ao movimento das
faculdades da imaginação e do entendimento entre si por ocasião da representação de
um objecto quando se trata de proferir um juízo de gosto (cf. Kant, 1998: 106).
148
Em nome do rigor, devemos recordar que, para um juízo estético – como é o caso
do juízo de gosto – ser um juízo livre, ele também não pode ser um juízo estético dos
sentidos, um juízo acerca da agradabilidade. Esta condição não tem, no entanto,
qualquer relevância para o que agora nos interessa averiguar.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

estética, Kant sugere, no §49, que uma ideia estética pertence à


apresentação de um conceito (cf. Kant, 1998: 220). Ainda nesse parágrafo,
ele define-a como «uma representação da faculdade da imaginação
associada a um conceito dado (eine einem gegebenen Begriffe beigesellte
Vorstellung der Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 222).149 Embora as ideias
estéticas carreguem algo que objectivamente não corresponde a um tal
conceito, na criação de uma bela obra de arte esse conceito não é
suprimido. Ora, também no juízo através do qual essa obra de arte é
declarada bela ele não pode ser suprimido. O conceito dado tem de ser
reconhecido por aquele que ajuíza a obra de arte como bela. A
possibilidade de o fornecimento de ideias estéticas promover um
movimento harmónico recíproco das faculdades de conhecimento daquele
que ajuíza pressupõe o reconhecimento da associação entre essas ideias e
o conceito dado e, por conseguinte, o reconhecimento desse mesmo
conceito. Se aquele que ajuíza não reconhecer esse conceito, ele não pode
declarar bela a obra de arte. Não pode declará-la como tal porque não sente
um prazer ligado a uma disposição conforme a fins das suas faculdades de
conhecimento entre si promovida pelo fornecimento de ideias estéticas –
não sente esse prazer porque as faculdades de conhecimento simplesmente
não se colocam nessa disposição. 150
A obrigação de aquele que ajuíza reconhecer o conceito dado não
equivale, porém, a uma submissão da faculdade da imaginação ao
entendimento. Mediante o fornecimento de uma matéria rica, a faculdade
da imaginação desafia o entendimento a algo para o qual ele não é
suficiente. Entretanto, o entendimento igualmente provoca a faculdade da
imaginação. Através dessa estimulação recíproca, as duas faculdades
relacionam-se. Assim, apesar de iniciada num conceito dado, a relação das
faculdades de conhecimento entre si vai além desse conceito, inicialmente

149
Já o tínhamos citado.
150
Veja-se o que afirma Paul Guyer a este propósito: «o prazer na resposta estética»
assenta na maneira como a imaginação é induzida «a ir além de qualquer conceito
determinado, mas ao mesmo tempo este prazer não pode sequer ser sentido a não ser
que o conceito seja de facto reconhecido» (Guyer, 1997: 359).

136 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

dado, ou de qualquer outro que o entendimento proponha à imaginação.


Por esta razão, ela não pode ser representada como uma conformidade a
fins objectiva, pois não consiste – nem pode consistir – na compreensão,
por parte do entendimento daquilo que lhe é fornecido pela faculdade da
imaginação.151 A vivificação recíproca das faculdades de conhecimento
não envolve, nem pode envolver, então, uma relação de submissão das
intuições internas da imaginação ao conceito determinado do objecto e,
portanto, uma relação de submissão da faculdade da apresentação ao
entendimento. Ao ser representada como conforme a fins, ela tem de ser
representada como uma conformidade a fins meramente subjectiva. 152
A questão à qual devemos responder, por conseguinte, é a de saber
se, ao produzir representações associadas a um conceito dado, a
faculdade da imaginação se exerce livremente. Coloquê-mo-la
unicamente por relação ao juízo: não obstante ter de reconhecer o
conceito inicialmente dado, poderá, aquele que ajuíza, proferir um juízo
no qual as suas faculdades de conhecimento se movimentem em
liberdade? Uma ideia estética é, por definição, uma intuição associada a
um conceito dado. Quando se trata de sentir um prazer no movimento
das faculdades de conhecimento entre si por ocasião do fornecimento de
ideias estéticas para um conceito dado, esse conceito não é suprimido.
Apesar disso, quer na produção da obra de arte, quer no concernente ao
movimento das faculdades de conhecimento daquele que a ajuíza como
bela, o exercício da faculdade da imaginação é tido por Kant como sendo

151
Se a aferição da adequabilidade das ideias estéticas à apresentação do conceito
consistisse na observação da sua contribuição para o conhecimento objectivo, então,
tendo em conta que, no âmbito desse conhecimento, o entendimento apenas considera
as intuições objectivamente correspondentes aos seus conceitos, e quaisquer outras
são tidas como meramente inadequadas, as ideias estéticas seriam tidas como
meramente inadequadas. A aplicação de um tal critério, porém, ou levaria a que se
ignorasse que há uma vivificação recíproca das faculdades de conhecimento ou
simplesmente impediria que se compreendesse a participação do entendimento na
manutenção desse movimento entre as faculdades.
152
De resto, dessa vivificação do ânimo, enquanto subjectivamente conforme a fins,
só pode tomar-se consciência esteticamente, através de um sentimento de prazer. Ora,
é num tal sentimento que o juízo de gosto se funda.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

um exercício livre. Há várias passagens que o atestam: recordemos que,


no §49, Kant assinala que o uso que se faz da multiplicidade de
representações parciais que se ligam à ideia estética é um «uso livre
(freier Gebrauch)» e que, quanto a fornecer ideias estéticas para um
conceito dado, a faculdade da imaginação «é livre (ist frei)» (Kant, 1998:
222); no §53, logo no início da comparação que estabelece entre as belas-
artes quanto ao valor estético de cada uma, Kant afirma que a poesia
«alarga o ânimo pelo facto de pôr em liberdade a faculdade da
imaginação (die Einbildungskraft in Freiheit setzt)» (Kant, 1998: 233);
na primeira observação que se segue ao §57, o nosso autor indica, como
já citámos, que a ideia estética é uma representação da faculdade da
imaginação «em seu jogo livre (in ihrem freien Spiele)» (Kant, 1998:
251); finalmente, no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo
Estética” (§60) Kant refere que sem «a própria liberdade da faculdade
da imaginação na sua conformidade a leis» (die Freiheit der
Einbildungskraft selbst in ihrer Gesetzmäßigkeit) não é possível
«nenhuma bela arte (keine schöne Kunst), nem sequer um gosto próprio
correcto que a ajuíze (nicht einmal ein richtiger sie beurteilender eigener
Geschmack)» (Kant, 1998: 265).153 Se a representação fornecida pela
faculdade da imaginação for além daquilo que o conceito ao qual está
associada – ou que qualquer outro conceito que o entendimento lhe
forneça – for capaz de abranger, então a faculdade da imaginação é tida
por Kant como exercendo-se livremente. Independentemente de aquele
que ajuíza ter de reconhecer o conceito ao qual a ideia estética está
associada – e ele, de facto, tem de reconhecer um tal conceito – o

153
Estas são as passagens nas quais a posição de Kant é mais evidente. Seja como for,
ela é indiciada desde a introdução da noção de bela arte, no §44. De resto, o simples
facto de Kant falar de uma arte que é bela constitui um indício de que, no juízo através
do qual uma obra de arte é declarada bela, a faculdade da imaginação se exerce
livremente. A razão pela qual não podemos usar esse facto para prová-lo é óbvia –
aquilo que estamos a avaliar é precisamente a legitimidade de falar-se de bela arte,
isto é, a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela, a possibilidade de
ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto.

138 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

exercício da faculdade da imaginação é um exercício livre. 154 Assim, no


que diz respeito à liberdade dessa faculdade, o juízo através do qual se
declara bela uma obra de arte pode ser um juízo de gosto. Ora, sendo a
liberdade da faculdade da imaginação uma condição indispensável para
a declaração de um objecto como belo, no concernente à satisfação dessa
condição a obra de arte pode ser declarada bela. Por conseguinte, se
mantivermos entre parêntesis a passagem, do §48, de acordo com a qual
no juízo através do qual se declara belo um objecto artístico têm de ser
tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição
(a conformidade a fins objectiva interna) deste relativamente àquele (cf.
Kant, 1998: 216), então poderemos responder afirmativamente à questão
de saber se é possível ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo
estético reflexivo, se uma obra de arte pode ser declarada bela, e,
portanto, à questão que tem conduzido a nossa investigação, a de saber
se é legítimo falar-se de bela arte.

2.3. Expressão de ideias estéticas


Principalmente mediante uma explicitação da noção de ideia estética,
sustentámos, na subsecção anterior, que o exercício da faculdade da
imaginação é, no contexto da bela arte, um exercício livre. Mostrámos que
a faculdade da imaginação pode exercer-se livremente mesmo quando as
representações por ela fornecidas são representações associadas a um
conceito dado e o prazer sentido por ocasião do seu fornecimento
pressupõe o reconhecimento desse conceito. 155 No âmbito da bela arte, o
exercício da faculdade da imaginação é livre precisamente porque tem
ideias estéticas (representações inexponíveis) como matéria. Por ocasião

154
Guyer assinala que «a caracterização de Kant de ideias estéticas torna evidente que
a nossa resposta a obras de arte que manifestam tais ideias é sempre ligada a conceitos
mas nunca determinada ou esgotada por esses conceitos» (Guyer, 1997: 359).
155
Fizemo-lo mantendo entre parêntesis a tese, do §48, de acordo com a qual no juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito
daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf.
Kant, 1998: 216).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 139


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, é promovido


um movimento livre das faculdades de conhecimento entre si.
Devemos verificar, agora, se e como o exercício referido está em
harmonia com o entendimento, isto é, se e como, ao exercer-se livremente,
a faculdade da imaginação se exerce harmonicamente com o exercício do
entendimento. Uma obra de arte só pode ser declarada bela se o
movimento das faculdades de conhecimento entre si for representado
como conforme a fins; e esse movimento só pode ser representado como
conforme a fins se for um movimento harmónico. Logo, só se o
movimento das faculdades de conhecimento entre si for harmónico pode
a obra de arte ser declarada bela, isto é, ser uma bela obra de arte – e só se
uma obra de arte puder ser declarada bela, puder ser uma bela obra de arte,
pode falar-se de bela arte. A questão de saber se, em face de uma obra de
arte genial, o exercício livre da faculdade da imaginação daquele que
ajuíza é um exercício que está em harmonia com o exercício do
entendimento, esta questão é, então, indispensável para a elaboração de
uma resposta suficientemente fundamentada à questão de saber se um
objecto artístico pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, isto é, se
um objecto artístico pode ser declarado belo. Quando soubermos a
resposta a essa questão, afirmativa ou negativa, estaremos em melhores
condições de responder à questão que nos tem acompanhado desde o
início deste trabalho – a de saber se é legítimo falar-se de bela arte.
Em pleno contexto das suas considerações acerca da bela arte, na parte
final do §49, Kant afirma o seguinte:
o génio consiste na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e
nenhuma diligência pode aprender, de encontrar ideias para um
conceito dado e por outro lado de encontrar para elas a expressão pela
qual a disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto
acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros
(besteht das Genie eigentlich in dem glücklichen Verhältnisse, welches
keine Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem
gegebenen Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den
Ausdruck zu treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive
Gemütstimmung, als Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt
werden kann) (Kant, 1998: 223).

140 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

O nosso autor associa à comunicabilidade de uma disposição subjectiva


do ânimo, enquanto acompanhamento de um conceito, a expressão de
ideias estéticas. Aquele que é dotado de génio não apenas fornece ideias
estéticas, através da capacidade produtiva da sua imaginação, mas
igualmente dá a essas ideias uma expressão mediante a qual, enquanto
acompanhamento de um conceito, o movimento das faculdades de
conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que
ele faz do objecto, um movimento universalmente comunicável, ou seja,
um movimento reciprocamente concordante, um movimento harmónico.
O fornecimento de ideias estéticas não é, então, suficiente para colocar o
ânimo daquele que ajuíza numa disposição harmónica. Por conseguinte, a
mera produção de representações inexponíveis da faculdade da
imaginação não é suficiente para que ele declare belo o objecto em causa,
para que a obra de arte seja bela, pois uma livre disposição anímica não é
suficiente para a beleza – além de livre, a disposição das faculdades do
ânimo tem de ser concordante, consonante, harmónica. A produção de
ideias estéticas, sem mais, é insuficiente para a beleza. Requer-se
igualmente que a essas representações (as ideias estéticas) se dê uma certa
expressão. É (também) a expressão, uma certa expressão, e não
(meramente) a produção de ideias estéticas, aquilo que gera, naquele que
ajuíza, o movimento conforme a fins das suas faculdades de conhecimento
entre si para o conhecimento em geral por ocasião da representação que
ele faz do objecto. Tal é reforçado, de resto, numa passagem posterior, a
saber, aquela com que Kant inaugura o §51, na qual é afirmada a
possibilidade de denominação da beleza precisamente como «expressão
de ideias estéticas (den Ausdruck ästhetischer Ideen)» (Kant, 1998: 226).
O nosso autor afirma a possibilidade de denominar-se a beleza não como
produção de ideias estéticas, mas, precisamente, como expressão de ideias
estéticas.
É importante assinalar, desde já, que, no concernente à liberdade da
faculdade da imaginação, também no caso da expressão de ideias estéticas,
como no caso do seu fornecimento, o exercício dessa faculdade é tido por
Kant como livre. Esta tese pode ser atestada na terceira conclusão

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 141


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

apresentada pelo nosso autor por ocasião do olhar retrospectivo que ele
lança sobre a explicação da noção de génio. Afirma Kant, aí, que o génio
se mostra não tanto na realização do fim proposto na exibição de um
conceito determinado, mas muito mais na exposição ou expressão de
ideias estéticas, que contêm uma rica matéria para aquele fim, por
conseguinte ele representa a faculdade da imaginação na sua liberdade
relativamente a toda a instrução de regras e no entanto como conforme a
fins para a exibição do conceito dado (es sich nicht sowohl in der
Ausführung des vorgesetzten Zwecks in Darstellung eines bestimmten
Begriffs, als vielmehr im Vortrage, oder dem Ausdrucke ästhetischer
Ideen, welche zu jener Absicht reichen Stoff enthalten, zeige, mithin die
Einbildungskraft in ihrer Freiheit von aller Anleitung der Regeln
dennoch als zweckmäßig zur Darstellung des gegebenen Begriffs
vorstellig mache) (Kant, 1998: 223-224).
Esta passagem torna evidente a posição de Kant: mesmo quando envolve
expressão de ideias estéticas, e não apenas a produção, o fornecimento
dessas ideias, a faculdade da imaginação exerce-se livremente. Além
disso, na medida em que menciona a representação da faculdade da
imaginação como conforme a fins, ela torna também evidente a posição
do nosso autor quanto à harmonia das faculdades de conhecimento entre
si.156 É a essa harmonia, a essa concordância, que agora pretendemos
dedicar a nossa atenção.
Tendo uma tal pretensão em conta, devemos regressar à parte final do
§49. Imediatamente a seguir ao excerto por nós citado no início desta
subsecção, Kant indica que o talento através do qual se encontra a
expressão de ideias estéticas adequada à beleza é o espírito: «[o] último
talento é propriamente aquilo que se denomina espírito ([d]as letztere
Talent ist eigentlich dasjenige, was man Geist nennt)» (Kant, 1998: 223).
No início do mesmo parágrafo, a propósito da noção de espírito, o nosso
autor declara o seguinte:

156
De resto, na quarta conclusão que apresenta por ocasião do olhar retrospectivo que
lança sobre a explicação da noção de génio, Kant refere uma «concordância livre da
faculdade da imaginação com a legalidade do entendimento (freien Übereinstimmung
der Einbildungskraft zur Gesetzlichkeit des Verstandes)» (Kant, 1998: 224).

142 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Espírito, num sentido estético significa o princípio vivificante no


ânimo. Aquilo porém pelo qual este princípio vivifica a alma, o
material que ele utiliza para isso, é o que conformemente a fins,
põe em movimento as faculdades do ânimo, isto é um jogo que se
mantém por si próprio e fortalece ainda as faculdades para o mesmo
(Geist in ästhetischer Bedeutung heißt das belebende Prinzip im
Gemüte. Dasjenige aber, wodurch díeses Prinzip die Seele belebt,
der Stoff, den es dazu anwendet, ist das, was die Gemütskräfte
zweckmäßig in Schwung versetzt, d. i. in ein solches Spiel, welches
sich von selbst erhält und selbst die Kräfte dazu stärkt) (Kant, 1998:
218-219).
As ideias estéticas activam as faculdades de conhecimento daquele
que ajuíza, dão movimento ao ânimo. Através do espírito, dá-se a essas
ideias uma expressão mediante a qual o mencionado movimento é
tornado conforme a fins. Por intermédio do espírito, aquele que é dotado
de génio apresenta as ideias estéticas, associadas a um conceito dado,
de uma maneira que coloca as faculdades do ânimo daquele que ajuíza,
por ocasião da representação que ele faz do objecto, numa disposição
conforme a fins para o conhecimento em geral. O espírito não produz
ideias estéticas; ele apresenta-as: o espírito «não é nada mais que a
faculdade da apresentação de ideias estéticas (sei nichts anders, als
das Vermögen der Darstellung ästhetischer Ideen)» (Kant, 1998: 219).
Apresentar (darstellen) não pode ser identificado com fornecer (liefern)
ou produzir (hervorbringen): a faculdade que fornece ideias estéticas
é, como já vimos, a faculdade da imaginação enquanto faculdade de
conhecimento produtiva; a faculdade responsável pela maneira como
essas ideias são apresentadas – por outras palavras: o talento responsável
pela expressão das ideias estéticas adequada à beleza – é, diferentemente,
o espírito.
Recordemos que as ideias estéticas não podem tornar-se
conhecimento:
por uma ideia estética entendo (…) aquela representação da
faculdade da imaginação que dá muito que pensar, sem que contudo
qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe
adequado, representação que consequentemente nenhuma linguagem

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 143


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

alcança inteiramente nem pode tornar compreensível (unter einer


ästhetischen Idee (…) verstehe ich diejenige Vorstellung der
Einbildungskraft, die viel zu denken veranlasst, ohne daß ihr doch
irgend ein bestimmter Gedanke, d. i. Begriff, adäquat sein kann,
die folglich keine Sprache völlig erreicht und verständlich machen
kann) (Kant, 1998: 219).
Além disso, elas tentam apresentar o inefável (das Unnennbare).
É de assinalar, neste contexto, que as ideias estéticas substituem
a apresentação lógica para ideias da razão. De facto, Kant afirma,
na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos
estéticos”, que «[t]omadas literalmente e consideradas logicamente,
as ideias não podem ser apresentadas ([b]uchstäblich genommen
und logisch betrachtet, können Ideen nicht dargestellt werden)»
e que não podemos «realizar objectivamente (objektiv zu Stande
bringen)» a apresentação de algo supra-sensível (Kant, 1998: 166).
A explicação dessa impossibilidade é dada poucas palavras depois,
quando o nosso autor lembra que há uma «inadequação objectiva
da faculdade da imaginação na sua máxima ampliação em relação à
razão (enquanto faculdade das ideias) (objektive Unangemessenheit
der Einbildungskraft in ihrer größten Erweiterung für die Vernunft
(als Vermögen der Ideen))» (Kant, 1998: 168). Não podemos deixar
de notar, no entanto, que a inadequação da faculdade da imaginação
relativamente à razão é unicamente objectiva, que a realização da
apresentação de algo supra-sensível só objectivamente é impossível e
que as ideias da razão só não podem ser apresentadas quando tomadas
literalmente e consideradas logicamente. É também por as ideias
estéticas tentarem apresentar conceitos da razão que Kant as designa
por ideias:
Tais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se
ideias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima
dos limites da experiência e assim procuram aproximar-se de uma
apresentação dos conceitos da razão (das ideias intelectuais) (Man
kann dergleichen Vorstellungen der Einbildungskraft Ideen nennen:
eines Teils darum, weil sie zu etwas über die Erfahrungsgrenze
hinaus Liegendem wenigstens streben und so einer Darstellung der

144 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

Vernunftbegriffe (der intellectuellen Ideen) nahe zu kommen suchen)


(Kant, 1998: 219). 157

157
Conceitos da razão de «entes invisíveis, o reino dos bem-aventurados, o reino do
inferno, a eternidade, a criação, etc», os «nossos conceitos da sublimidade e majestade
da criação», a «ideia racional de intenção cosmopolita» (Kant, 1998: 221) – eis alguns
exemplos de ideias da razão que a bela arte, enquanto expressão de ideias estéticas,
pode tentar apresentar. Brigitte Sassen faz assentar o carácter estranho da concepção
kantiana de ideia estética na unificação, pela terceira Crítica, de duas noções outrora
afastadas, a saber, a noção de ideia e a noção de estético. Na «teoria de conhecimento de
Kant», afirma Sassen, «uma ideia é um conceito da razão. Exemplos de tais conceitos
são os conceitos de Deus, liberdade ou imortalidade. Como conceitos supra-sensíveis,
eles não podem ser intuídos ou conhecidos, e dado que conceitos sem intuições são
vazios, eles podem ter no máximo uma função reguladora. No entanto, na medida em
que “estético” tem a ver com a maneira na qual nós intuímos, a conjunção peculiar
de estético e ideia sugere que as ideias estéticas fornecem a contraparte intuitiva e o
conteúdo das ideias intelectuais. Ao chamar “estéticas” tais ideias, Kant torna bastante
claro que o que quer que sejam mais, elas constituem um diverso intuído. Como
tal, podem fazer sensíveis ideias supra-sensíveis e fornecer material intuitivo para
ideias abstractas que similarmente não podem ser compreendidas por um conceito»
(Sassen, 2003: 173). A propósito da sensibilização das ideias da razão, Moura indica
que a ideia estética «funciona como interface entre a ideia racional e a imagética
da imaginação (e. g., a ideia imaginativa da águia como encarnação da encarnação
de Júpiter das ideias de sublimidade e majestade)» (Moura, 2006: 342), serve de
«mediação entre o material imaginativo e uma ideia racional» (Moura, 2006: 343). No
contexto da arte do génio, a apresentação das ideias da razão é, utilizando as palavras
de Gilles Deleuze, uma apresentação «positiva, mas secundária» e feita «por criação
de outra natureza» (Deleuze, 2000: 64). Igualmente devemos notar, entretanto, que
uma tal apresentação envolve necessariamente a concessão de deformidades. Na
sequência do olhar retrospectivo que lança sobre a explicação dada por ele próprio
acerca do génio, Kant refere algo que «enquanto deformidade o génio somente teve
que conceder, porque não podia eliminá-la sem enfraquecer a ideia (was das Genie
als Missgestalt nur hat zulassen müssen, weil es sich, ohne die Idee zu schwächen,
nicht wohl wegschaffen ließ)» e acrescenta que esse «desvio da regra comum
(Abweichung von der gemeinen Regel)» permanece «em si sempre um erro que se
tem que procurar extirpar (immer an sich ein Fehler, den man wegzuschaffen suchen
muss)» (Kant, 1998: 224). Quando se trata da apresentação de ideias da razão pela via
artística, quando se trata de torná-las sensíveis numa obra de arte, o erro é inevitável.
Um mesmo tipo de inevitabilidade é esboçado por Longino, no seu tratado sobre
o sublime. Podemos abordá-lo por intermédio de Jean-François Lyotard. No texto
“Représentation, présentation, imprésentable”, compilado em L’inhumain – Causeries
sur le temps, Lyotard afirma que «[q]uando procuramos apresentar que existe algo que

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 145


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Ora, aquilo que o génio faz, mediante o espírito, é apresentar de


uma maneira adequada a uma disposição anímica universalmente

não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação» (Lyotard, 1997: 129). Ao


esforçar-se para apresentar que há qualquer coisa que não pode ser apresentada, a
imaginação, faculdade da apresentação, martiriza a apresentação. Em “Le sublime et
l’avant-garde”, igualmente incluído em L’inhumain – Causeries sur le temps, Lyotard
acrescenta que «[u]ma falha no ofício é (…) venial, se for o preço de uma “verdadeira
grandeza”» e que «[a] grandeza do discurso é verdadeira, quando testemunha da
incomensurabilidade do pensamento com o mundo real» (Lyotard, 1997: 100). Lyotard
escreve essas palavras precisamente por referência ao Peri Hypsous, de Longino.
Concluímos, a partir delas, que o martírio acima sugerido não diminui a sublimidade
da apresentação – ele engrandece-a. De facto, no entender de Longino, a grandeza,
mesmo correndo o risco de ser defeituosa, é preferível à vulgaridade da sã e imaculada
correcção. Justificando o carácter defeituoso dos grandes discursos precisamente no
facto de remeterem para algo superior, o que não acontece com os discursos menores,
ele assinala, primeiro, que, sendo «quase impossível que os engenhos humildes e
medíocres não sejam pela maior parte sem defeito e que deixem de discorrer com
mais segurança; porque não se elevam jamais a coisas sumas, nem ainda se arriscam
a entrar nelas», o sublime é «de si mesmo perigoso pela sua elevação e grandeza»
(Longino, 1984: 122), e, depois, que enquanto «[a] isenção de defeitos impede a
crise», aquilo que é «grande e maravilhoso excita de mais a admiração» (Longino,
1984: 128). Ora, é exactamente a remissão dos grandes discursos para algo superior
aquilo que leva Longino a concluir que «cada um daqueles Escritores com uma só
sublimidade e perfeição resgatam todos os seus erros; e, sobretudo, [que] se alguém
colhesse todas as faltas de Homero, Demóstenes, Platão e de quantos há célebres e da
mesma grandeza, e as comparasse com as belezas que a cada passo se acham nesses
mesmos Heróis, acharia não fazerem a menor parte, ou, para melhor dizer, a mínima
de suas obras» (Longino, 1984: 128), ou, ainda antes, que «as dolosas subtilezas
da Retórica se ofuscam, se são cercadas por todas as partes da copiosa torrente da
sublimidade» (Longino, 1984: 96). Quando se trata de apresentar ideias da razão num
objecto artístico, aquele que é dotado de génio concede deformidades, comete erros,
a apresentação é martirizada, o artista falha, a obra é defeituosa, envolve faltas. O
dolo é, ainda assim, um mal menor. As deformidades e os erros que as obras de arte
geniais carregam consigo podem ser sintomas que remetem para a impossibilidade
de a faculdade da apresentação satisfazer a exigência da razão, indícios do estado em
que o ânimo entra quando a imaginação força maximamente os seus limites, figuras
que sugerem que ela está a tentar eliminar as suas barreiras e tornar-se ilimitada.
Não desenvolveremos esta interpretação das deformidades e dos erros que as obras
de arte de génio necessariamente envolvem quando se trata de apresentarem ideias
da razão, interpretação que, de resto, poderia conduzir-nos a pensar eventuais

146 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


JUÍZO DE GOSTO

comunicável algo que não pode tornar-se conhecimento – é, nas palavras


de Kant, «expressar o inefável, no estado do ânimo por ocasião de uma
certa representação, e torná-lo universalmente comunicável – quer a
expressão consista na linguagem, na pintura ou na arte plástica (das
Unnennbare in dem Gemütszustande bei einer gewissen Vorstellung
auszudrücken und allgemein mitteilbar zu machen, der Ausdruck mag
nun in Sprache, oder Malerei, oder Plastik bestehen)» (Kant, 1998:
223). Pode afirmar-se, por conseguinte, que o espírito expressa ideias
estéticas e ideias da razão – ao expressar ideias estéticas, associadas a
ideias da razão, ele expressa ideias da razão. O espírito expressa ideias
da razão através de uma expressão de ideias estéticas que faz com que
a disposição livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza
seja, por ocasião da representação que ele faz do objecto artístico, uma
disposição reciprocamente harmónica.158 É através do espírito, então,
que se dá ao material fornecido pela faculdade produtiva da imaginação,

ligações entre o belo e o sublime, não contempladas de modo explícito pela Crítica
da Faculdade do Juízo, mas, ainda assim, sugeridas – sublinhe-se, por exemplo,
que «a apresentação do sublime (…) pertence à bela arte (die Darstellung des
Erhabenen gehört zur schönen Kunst)» (Kant, 1998: 232). A nossa tese é movida
pela questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da terceira
Crítica de Kant. É a essa questão que nos propomos responder satisfatoriamente.
Nesta fase, importa continuar a explicitar a noção de bela arte, enquanto arte
do génio, e clarificar quer a denominação da beleza artística como expressão
de ideias estéticas, quer a importância do espírito nessa expressão.
158
De resto, se, no âmbito da bela arte, aquilo que o espírito expressa, através da
expressão de ideias estéticas, são ideias da razão, então, nesse mesmo âmbito, pode
falar-se não de uma concordância objectiva entre ideia estética e conceito dado, pois
este é uma ideia da razão, mas de uma concordância das faculdades de conhecimento
entre si no seu jogo livre. Afirmar o contrário significaria colocar em causa não
apenas a definição de ideia estética como «representação inexponível da faculdade da
imaginação (inexponible Vorstellung der Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 250), mas
igualmente a definição de ideia da razão como «conceito ao qual nenhuma intuição
(representação da faculdade da imaginação) pode ser adequada (Begriff, dem keine
Anschauung (Vorstellung der Einbildungskraft) adäquat sein kann)» (Kant, 1998:
219), como «conceito» que «não pode ser apresentado adequadamente (nicht adäquat
dargestellt werden kann)» (Kant, 1998: 220), como «conceito indemonstrável
da razão (indemonstrabeln Begriff der Vernunft)» (Kant, 1998: 250).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 147


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

nomeadamente às ideias estéticas, a expressão pela qual as faculdades de


conhecimento, enquanto acompanhamento de um conceito, são colocadas
numa disposição conforme a fins para o conhecimento em geral. Para
tal, o espírito apreende «o jogo fugaz da faculdade da imaginação
(das schnell vorübergehende Spiel der Einbildungskraft)», isto é, o
fornecimento de representações inexponíveis por parte dessa faculdade
em seu jogo livre, e reúne-o «num conceito que permite comunicar-se
sem coerção de regras (in einen Begriff, der sich ohne Zwang der Regeln
mitteilen lässt)» (Kant, 1998: 223). Salvaguarde-se, a esse propósito, que
reunir (vereinigen) não é o mesmo que compreender (zusammenfassen).
A compreensão pressuporia a descoberta de um conceito determinado
ao qual pudessem ser submetidas as ideias estéticas. Acontece que
«não se pode encontrar para [a ideia estética] nenhuma expressão que
denote um conceito determinado (für sie kann kein Ausdruck, der einem
bestimmten Begriff bezeichnet, gefunden werden)» (Kant, 1998: 222). As
ideias estéticas não são adequadamente alcançáveis pelo entendimento,
através dos seus conceitos. Assim, o conceito no qual o espírito reúne o
jogo da faculdade da imaginação não é – nem pode ser – um conceito
determinado. Só pode tratar-se de um conceito indeterminado. Trata-se
do conceito da conformidade a fins formal da natureza para as nossas
faculdades de conhecimento, sob a forma de uma obra de arte genial,
enquanto, por intermédio de um tal objecto, aquele que é dotado de génio,
fornecendo ideias estéticas para um conceito dado, através da capacidade
produtiva da sua imaginação, e apresentando essas ideias de uma
maneira adequada à beleza, mediante o seu espírito, gera nas faculdades
de conhecimento daquele que ajuíza, por ocasião da representação que
ele faz do objecto, um movimento simultaneamente livre e harmónico,
isto é, um movimento formalmente, subjectivamente, esteticamente
conforme a fins, um movimento conforme a fins sem fim.
Consideramos estar sinalizado e descrito aquilo que é necessário para
que o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja,
por ocasião da representação que ele faz de um objecto artístico genial,
não apenas um movimento livre, mas também um movimento harmónico.
Cumprida essa tarefa, e mantendo entre parêntesis a tese, do §48, de

148 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de
arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser
e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216),
estamos em condições de afirmar que é possível ajuizar-se um objecto
artístico através de um juízo de gosto, que uma obra de arte pode ser
declarada bela, que é legítimo falar-se de bela arte. O talento necessário
para que o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza
seja, por ocasião da representação que ele faz de uma obra de arte de génio,
um movimento conforme a fins, embora sem fim, é o espírito – é-o
precisamente enquanto talento por intermédio do qual o génio encontra,
para as representações inexponíveis que a sua faculdade da imaginação
produz, uma maneira de apresentá-las, uma expressão, mediante a qual «a
disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento
de um conceito, pode ser comunicada a outros» (Kant, 1998: 223). O
espírito é, assim, a faculdade através da qual o génio cumpre um dos
aspectos essenciais do seu carácter, a saber, a exemplaridade.
Desde logo nos primeiros parágrafos centrados na noção de génio
(§46 e §47) Kant assinala que a «originalidade (Originalität)» é a
«primeira propriedade (erste Eigenschaft)» (Kant, 1998: 212) e, por
conseguinte, um «aspecto essencial do carácter do génio (wesentliches
Stück vom Charakter das Genies)» (Kant, 1998: 215). Aquele que é
dotado de génio é original se, através da capacidade produtiva da sua
faculdade da imaginação, fornecer ideias estéticas para um conceito
dado. Ser original não é, no entanto, o único aspecto essencial da
genialidade (cf. Kant, 1998: 215). Perante a possibilidade de uma
«extravagância original (originalen Unsinn)», o nosso autor ressalva que
os produtos do génio «têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é
exemplares (Muster, d. i. exemplarisch)» e, portanto, «têm que servir a
outros como padrão de medida ou regra de julgamento (Richtmaße oder
Regel der Beurteilung)» (Kant, 1998: 212)159. A originalidade do génio

159
Já o tínhamos indiciado na subsecção “Génio”. Kant fá-lo precisamente no
parágrafo no qual introduz a noção de génio (§46).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 149


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

tem de ser, então, exemplar – no §49, Kant define mesmo o génio como
«a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre
das suas faculdades de conhecimento (die musterhafte Originalität
der Naturgabe eines Subjekts im freien Gebrauche seiner
Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 224). Pois bem, mediante a
introdução da noção de espírito, o nosso autor dá ao génio o instrumento
em falta para que os seus objectos artísticos sejam exemplares.160 Cada
um dos elementos da feliz relação na qual o génio consiste corresponde,
então, a um dos aspectos essenciais do carácter do génio: a capacidade
de fornecer ideias estéticas para um conceito dado, através da faculdade
produtiva da imaginação, corresponde à originalidade; a capacidade de
apresentar essas ideias de uma maneira adequada à beleza, por
intermédio do espírito, corresponde à exemplaridade. Carecendo de
espírito, o génio produziria extravagâncias originais. Ele seria original,
mas a sua originalidade seria extravagante. As ideias estéticas seriam
apresentadas de uma maneira inadequada à beleza. Se assim fosse, o
génio não daria a regra à bela arte. Ele seria um talento para a produção,
mas não aquilo que o nosso autor diz que ele é, a saber, «um talento para
produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra
determinada» (Kant, 1998: 212).
A não introdução da noção de espírito colocaria imediatamente em
causa o título do §46: «Bela arte é arte do génio (Schöne Kunst ist Kunst
des Genies)» (Kant, 1998: 211). Se o génio não fosse dotado de espírito,
a bela arte não seria a arte do génio. Dotado de espírito, porém, o génio
produz necessariamente belas obras de arte.

160
Makkreel explica a necessidade da introdução do espírito na proporção das
faculdades de conhecimento inerente ao génio: «Não há garantia de que as proporções
especiais das faculdades mentais características do génio possam ser relacionadas com
a proporção normal necessária para o conhecimento intersubjectivo. Assim, a
originalidade do génio na produção de ideias estéticas tem de ser conciliada com um
poder para comunicá-las. Para tal, o génio requer um talento especial a que Kant
chama “espírito”» (Makkreel, 1994: 122). Nesse sentido, «o espírito é o “talento” para
dar expressão concreta às ideias estéticas de maneira a que a vida da mente possa ser
partilhada» (Makkreel, 1994: 122).

150 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Torna-se possível, por conseguinte, a partir da introdução da noção de


espírito na Crítica da Faculdade do Juízo, adoptar a tese segundo a qual
uma obra de arte de génio é um objecto que, através de um juízo de gosto,
não pode ser declarado senão como belo.161 Já vimos que o espírito é o
talento mediante o qual se expressa o inefável e se o torna universalmente
comunicável através de uma disposição subjectiva do ânimo por ocasião
de uma certa representação (cf. Kant, 1998: 223). Afirmá-lo, equivale a
afirmar que o espírito torna universalmente comunicável o sentimento
daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto
artístico. Devemos recordar, agora, que a faculdade por intermédio da qual
se ajuíza quer aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento
referido, quer a comunicabilidade desse sentimento, é o gosto. Na parte
final do §40, como tivemos oportunidade de citar no primeiro capítulo da
nossa dissertação, Kant começa por assinalar que «[p]oder-se-ia até definir
o gosto pela faculdade de julgamento daquilo que torna o nosso
sentimento, numa representação dada, universalmente comunicável, sem
mediação de um conceito (durch das Beurteilungsvermögen desjenigen,
was unser Gefühl an einer gegebenen Vorstellung ohne Vermittelung
eines Begriffs allgemein mitteilbar macht)» (Kant, 1998: 198). Entretanto,
ele acrescenta, como também vimos, que «o gosto é a faculdade de ajuizar
a priori a comunicabilidade dos sentimentos que são ligados a uma
representação dada (sem mediação de um conceito) (das Vermögen, die
Mitteilbarkeit der Gefühle, welche mit gegebener Vortsellung (ohne
Vermittelung eines Begriffs) verbunden sind, a priori zu beurteilen)»
(Kant, 1998: 198). Assim, quando se trata de uma obra de arte de génio,
ajuíza-se como belo, através do gosto, não apenas algo que só por

161
Referindo-se à arte do génio, à bela arte, Fernando Gil afirma que «a obra de arte
autêntica só pode ser um bom exemplo» (Gil, 1998: 276) e que relativamente à sua
beleza «a exigência de adesão é imperiosa» (Gil, 1998: 277). No entanto, naquilo que
pode ser entendido como uma salvaguarda, imediatamente a seguir a indicar que «o
gosto pode ser exemplar», Gil assinala que «o génio é-o em princípio sempre» (Gil,
1998: 273). A razão pela qual podemos dizer que só em princípio é que o génio é
sempre exemplar será apresentada no último capítulo da nossa dissertação,
precisamente por relação ao que nesta fase estamos a alegar.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 151


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

intermédio de um juízo de gosto pode ser ajuizado como belo, mas aquilo
que por intermédio de um juízo de gosto só pode ser ajuizado como belo.
Compreende-se, dada a explicação que acabámos de dar, a afirmação de
Kant, de acordo com a qual «belas-artes necessariamente têm que ser
consideradas como artes do génio (schöne Künste notwendig als Künste
des Genies betrachtet werden müssen)» (Kant, 1998: 211) e «para a
própria arte, isto é para a produção de [objectos belos], requer-se génio
(zur schönen Kunst selbst, d. i. der Hervorbringung solcher Gegenstände,
wird Genie erfordert)» (Kant, 1998: 215)162. O gosto ajuíza a beleza; o
espírito é o talento através do qual o inefável é expressado de uma maneira
adequada à beleza; se, numa obra de arte de génio, por ocasião do
fornecimento e de uma certa expressão de ideias estéticas para um
conceito dado, esse conceito é apresentado de uma maneira adequada à
beleza, então aquele que ajuíza através do gosto tem de declarar bela a
mencionada obra de arte. Pode repetir-se, por conseguinte, e
convictamente, aquilo que está escrito no título do §46: «Bela arte é arte
do génio» (Kant, 1998: 211).163

162
Em bom rigor, no texto de Kant está escrito que o génio é requerido para a bela
arte. Esta lacuna da tradução por nós utilizada não é, no entanto, origem de qualquer
problema, pois a identificação da referida arte com a produção de objectos belos faz
com que aquilo que está em causa seja necessariamente a bela arte, não toda a arte.
Ora, por esta altura não temos qualquer dificuldade em reconhecer que não é para toda
a arte que se requer génio. Mais importante é acrescentar que, dada a explicação
supramencionada, também se compreendem as afirmações segundo as quais «se
considera o génio como o talento para a arte bela (man das Genie als Talent zur
schönen Kunst betrachtet)» (Kant, 1998: 215) e a «possibilidade (Möglichkeit)» da
beleza da arte «requer génio (Genie erfordert)» (Kant, 1998: 216).
163
Ainda assim, é nossa obrigação ressalvar que a convicção que sentimos está
condicionada pela colocação entre parêntesis da tese, do §48, de acordo com a qual
no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser considerados um
conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da referida obra de arte segundo
esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). Só depois de retomarmos a passagem mencionada
é que estaremos em condições de apresentar uma resposta suficientemente justificada
à questão de saber se e como poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um
juízo de gosto, se e como poderá uma obra de arte ser declarada bela, se e como será
legítimo falar-se de bela arte. Ainda não é este o momento no qual retomaremos essa
passagem.

152 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

2.4. Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de


arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza

A questão que move a nossa investigação é a de saber se e como poderá


falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Temos
vindo a indicar que responder a essa questão pressupõe responder às
questões de saber se e como poderá um objecto artístico ser declarado
belo, se e como poderá ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de
gosto, se e como poderá o juízo através do qual se declara bela uma obra
de arte ser um juízo de gosto. Para que o juízo através do qual se declara
bela uma obra de arte seja um juízo de gosto, ele tem de referir-se ao
princípio do gosto, a saber, o princípio da conformidade a fins formal da
natureza para as nossas faculdades de conhecimento.
Acabámos de ver, na subsecção anterior, que, através do fornecimento
de ideias estéticas para um conceito dado, pela faculdade produtiva da
imaginação, e da descoberta de uma certa expressão para essas ideias, pelo
espírito, o génio produz um objecto por ocasião da representação do qual
as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se dispõem
harmonicamente enquanto acompanhamento de um conceito. Dadas as
características das ideias estéticas, somos obrigados a afirmar que essa
disposição harmónica das faculdades da imaginação e do entendimento
entre si por ocasião da representação do objecto não plasma uma
concordância objectiva. A conformidade a fins do objecto é representada
como uma conformidade a fins subjectiva. Não há uma submissão da
faculdade da imaginação à legalidade do entendimento. A faculdade da
imaginação exerce-se livremente.
Para que o objecto por ocasião da representação do qual as nossas
faculdades de conhecimento se dispõem livre e harmonicamente entre si
seja declarado belo, é necessário que no juízo por intermédio do qual o
objecto é declarado como tal haja uma referência ao princípio do gosto,
isto é, ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as
nossas faculdades de conhecimento. O prazer que o sujeito sente por
ocasião da sua representação tem de estar ligado a esse princípio. No

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 153


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

entanto, no caso da arte, o objecto em causa é um objecto artístico, uma


obra de arte, não um objecto da natureza. A questão que se coloca, por
conseguinte, é a de saber se e como num juízo acerca da beleza de um
objecto artístico (o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte)
o prazer é referido ao princípio de uma conformidade a fins formal da
natureza para as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza.
A resposta a essa questão é dada por Kant na parte final da primeira
observação que se segue ao §57. O nosso autor começa por afirmar algo
que citámos por ocasião de uma primeira menção que fizemos da noção
de génio, a saber: «podemos explicar o génio também pela faculdade de
ideias estéticas ([m]an kann diesem zufolge Genie auch durch das
Vermögen ästhetischer Ideen erklären)» (Kant, 1998: 251).
Imediatamente a seguir, Kant acrescenta que com essa explicação «é ao
mesmo tempo indicada a razão pela qual, em produtos do génio, a natureza
(do sujeito) e não um fim reflectido dá a regra à arte (à produção do belo)
(zugleich der Grund angezeigt wird, warum in Produkten des Genies die
Natur (des Subjekts), nicht ein überlegter Zweck der Kunst (der
Hervorbringung des Schönen) die Regel gibt)» (Kant, 1998: 251-252).
Estando consciente de uma disposição concordante das suas faculdades de
conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto e sabendo
que essa disposição é livre (não pode ter sido determinada por um conceito
dado, não correspondendo, por conseguinte, a uma submissão da
faculdade da imaginação ao entendimento, a um acordo objectivo entre a
intuição e o conceito, e, consequentemente, não plasmando uma
conformidade a fins objectiva) aquele que ajuíza concebe a possibilidade
de ter sido a natureza a promover a mencionada concordância. Fá-lo
recorrendo a um princípio que, sendo «subjectivo (subjektives)», é
«contudo universalmente válido (doch allgemeingültiges)», a saber, o
princípio segundo o qual «o fim último dado pelo inteligível à nossa
natureza é tornar concordantes todas as nossas faculdades de
conhecimento (alle unsere Erkenntnisvermögen zusammenstimmend zu
machen, der letzte durch das Intelligible unserer Natur gegebene Zweck
ist)» (Kant, 1998: 252). Ao fazê-lo, aquele que ajuíza estabelece como

154 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

«fundamento (Grunde)» e «padrão de medida (Richtmaße)» da


«conformidade a fins estética porém incondicionada na arte bela, que
legitimamente deve reivindicar ter de aprazer a qualquer um (ästhetischen,
aber unbedingten Zweckmäßigkeit in der schönen Kunst, die jedermann
gefallen zu müssen rechtmäßigen Anspruch machen soll)» simplesmente
«aquilo que no sujeito é simples natureza e não pode ser captado sob regras
ou conceitos, isto é o substracto supra-sensível de todas as suas faculdades
(o qual nenhum conceito do entendimento alcança) (das, was bloß Natur
in Subjekte ist, aber nicht unter Regeln oder Begriffe gefasst werden kann,
d. i. das übersinnliche Substrat aller seiner Vermögen (welches kein
Verstandesbegriff erreicht))» (Kant, 1998: 252).
Devemos ressalvar, agora, que a referência ao princípio segundo o qual
a natureza tem como fim último a concordância das faculdades de
conhecimento do sujeito não faz do juízo através do qual se declara bela
uma obra de arte de génio um juízo estético logicamente condicionado.
Esse princípio é dado pela faculdade do juízo a si mesma, enquanto
reflexiva – como tal, ele é um princípio regulativo. Afirma-se apenas que
é como se a natureza quisesse, acima de tudo, tornar concordantes todas
as nossas faculdades de conhecimento. Na única menção que faz do juízo
estético logicamente condicionado, no §48, Kant indica que, num tal juízo,
a natureza é ajuizada «na medida em que ela é efectivamente arte (embora
sobre-humana) (sofern sie wirklich (obzwar übermenschliche) Kunst ist)»
(Kant, 1998: 216). Se quisermos continuar a usar as palavras do §48,
diremos que, diferentemente, no juízo através do qual se declara bela uma
obra de arte de génio, a natureza é «ajuizada como ela aparece enquanto
arte (wie sie als Kunst erscheint)» (Kant, 1998: 216). Por outras palavras
(as da “Analítica do sublime”) os fenómenos da natureza são «ajuizados
como pertencentes não simplesmente à natureza no seu mecanismo sem
fim, mas também à analogia com a arte (als zur Analogie mit der Kunst
gehörig)» (Kant, 1998: 139).
No âmbito da reflexão (problematicamente) ajuizar a natureza por
analogia com a arte é legítimo: pode falar-se de uma técnica da natureza
(Technik der Natur) – e não meramente de um mecanismo sem fim

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 155


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(zwecklosen Mechanismus). Kant refere essa legitimidade desde a


Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, na qual anuncia que
usará a noção de técnica não só no que concerne às prescrições da
habilidade, mas também
onde objetos da natureza, às vezes, são julgados somente como se sua
possibilidade se fundasse em arte, casos em que os juízos (…) não
determinam nada da índole do objeto, nem do modo de produzi-lo, mas
através deles a natureza mesmo é julgada meramente por analogia com
uma arte, e aliás na referência subjetiva a nossa faculdade-de-
conhecimento, e não na referência objetiva aos objetos (wo Gegenstände
der Natur bisweilen bloß nur so beurteilt werden, als ob ihre Möglichkeit
sich auf Kunst gründe, in welchen Fällen dir Urteile (…) nichts von der
Beschaffenheit des Objekts, noch der art, es hervorzubringen,
bestimmen, sondern wodurch die Natur selbst, aber bloß nach der
Analogie mit einer Kunst, und zwar in subjektiver Beziehung auf unser
Erkenntnisvermögen nicht in objektiver auf die Gegenstände beurteilt
wird) (Kant, 1995: 36).
Ajuizar a natureza por analogia com a arte significa ajuizá-la como arte,
como se/que fosse arte. As expressões como (als) e como se/que (als ob),
assim como a diferença entre ser (sein) e parecer (scheinen e aussehen),
denotam um uso reflexivo da faculdade do juízo. Elas indicam que a
faculdade do juízo está a exercer-se reflexivamente. Ao longo do seu
texto, Kant recorre múltiplas vezes à diferença e às expressões
mencionadas: na “Analítica do sublime”, ao distinguir o sublime do belo,
o nosso autor nota que, no caso do último, o objecto, através da
conformidade a fins da sua forma, «parece predeterminado para a nossa
faculdade de juízo (für unsere Urteilskraft vorherbestimmt zu sein
scheint)» (Kant, 1998: 138); no §42, depois de referir «uma linguagem
cifrada pela qual a natureza em suas belas formas nos fala
figuradamente», isto é, «uma linguagem que a natureza nos dirige e que
parece ter um sentido superior (eine Sprache, die die Natur zu uns führt,
und die einen höhern Sinn zu haben scheint)», Kant ressalva que essa é
apenas a maneira como «interpretamos (…) a natureza, quer seja essa a
sua intenção quer não» (Kant, 1998: 204-205); ainda no mesmo
parágrafo, ao citar «a admiração da natureza», Kant indica que ela «se

156 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

mostra em seus belos produtos como arte (sich an ihren schönen


Produkten als Kunst zeigt), não simplesmente por acaso, mas por assim
dizer intencionalmente, segundo uma ordenação conforme a leis e como
conformidade a fins sem fim» (Kant, 1998: 204); essa tese vem a ser
reforçada no §45, onde o nosso autor assinala que «[a] natureza era bela
se ela ao mesmo tempo parecia ser arte ([d]ie Natur war schön, wenn sie
zugleich als Kunst aussah)» (Kant, 1998: 210); no primeiro parágrafo da
“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, por sua vez, Kant afirma
que, entre os produtos da natureza, «podemos esperar que sejam
possíveis alguns contendo formas específicas [adequadas à faculdade do
juízo humana] como se afinal estivessem dispostas para a nossa
faculdade do juízo (als ob sie ganz eigentlich für unsere Urteilskraft
angelegt wären)» (Kant, 1998: 273).164
Ora, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte de
génio, a natureza é ajuizada por analogia com a arte – como se fosse
arte. Ajuíza-se a natureza como se ela tivesse um fim, nomeadamente
o de gerar uma concordância entre todas as faculdades de
conhecimento do sujeito. Recorrendo a essa pressuposição, aquele que
ajuíza refere a conformidade a fins estética – promovida pelo génio,
através do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, pela
faculdade produtiva da imaginação, e de uma certa expressão dessas
ideias, pelo espírito – ao princípio do gosto, a saber, ao princípio da
conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de
conhecimento. Por ocasião da representação de uma obra de arte do
génio, ele afirma que é como se a natureza, na forma dessa obra de arte,
estivesse disposta para as suas faculdades de conhecimento. O juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte do génio (o juízo acerca
da beleza da arte) é, então, um juízo referido ao princípio do gosto, a

164
De resto, acerca dessas formas, ele acrescentará que «através da sua multiplicidade
e unidade, servem para simultaneamente fortalecer e entreter as faculdades do ânimo
(que estão em jogo por ocasião do uso desta faculdade)» e que, por isso, atribuir-lhes-
emos «o nome de formas belas (schöne Formen)» (Kant, 1998: 273). Citámo-lo no
primeiro capítulo deste estudo.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

saber, o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as


faculdades de conhecimento do sujeito, princípio cujo fundamento
reside na ideia do supra-sensível. 165
Entretanto, importa também ressalvar que nada do que dissemos
transforma a obra de arte de génio num efeito, num objecto da natureza.
Ela não deixa de ser uma obra de arte e, como tal, um produto do homem.
Recordemos, neste contexto, o que é afirmado no §45, a saber, que
«[f]ace a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é
arte e não natureza ([a]n einem Produkte der schönen Kunst muss man
sich bewusst werden, dass es Kunst sei und nicht Natur)» (Kant, 1998:
210). Salvaguarda-se apenas que o fundamento para a conformidade a
fins estética incondicionada que se observa por ocasião da sua
representação envolve uma referência necessária à possibilidade de a
natureza ser técnica, ter fins, uma referência à analogia da natureza com
a causalidade segundo fins, isto é, com a arte. Assim, enquanto «[a]
natureza era bela se ela ao mesmo tempo parecia ser arte», a arte é bela
se «ao mesmo tempo parece ser natureza (sie zugleich Natur zu sein
scheint)», se «temos consciência de que ela é arte (wir uns bewusst sind,

165
Note-se, de resto, ser o próprio Kant quem, ainda na Introdução, estende à arte o
âmbito de aplicação do princípio de uma conformidade a fins formal da natureza. Em
primeiro lugar, na secção VII, ele nota que o fundamento para o prazer na beleza «se
encontra na condição universal, ainda que subjectiva, dos juízos reflexivos,
nomeadamente na concordância conforme a fins de um objecto (seja produto da
natureza ou da arte (er sei Produkt der Natur oder der Kunst)) com a relação das
faculdades de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo o conhecimento
empírico (da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76); ainda
na mesma secção, ao afirmar que «[a] receptividade de um prazer a partir da reflexão
sobre as formas das coisas» assinala «uma conformidade a fins dos objectos», Kant
identifica essas coisas como sendo «da natureza, assim como da arte (der Natur
sowohl als der Kunst)» (Kant, 1998: 77); finalmente, na secção IX, ao indicar que «[o]
conceito da faculdade do juízo de uma conformidade a fins da natureza pertence ainda
aos conceitos desta, mas somente como princípio regulativo da faculdade de
conhecimento» e que «o juízo estético» que ocasiona esse conceito é «um princípio
constitutivo com respeito ao sentimento do prazer ou desprazer», o nosso autor adianta
que esse juízo estético pode ser sobre objectos «da natureza ou da arte (der Natur oder
der Kunst)» (Kant, 1998: 83).

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BELA ARTE

sie sei Kunst)» (Kant, 1998: 210) e – podemos acrescentar, agora – se na


bela arte, da qual temos consciência como arte, mas que parece natureza,
a natureza parecer ser arte.
É igualmente de assinalar, finalmente, que a obra de arte de génio,
levando aquele que ajuíza a ligar ao princípio da conformidade a fins
formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento o prazer
que sente por ocasião da sua representação, concretiza a definição,
proposta no §44, segundo a qual «a arte estética é, enquanto arte bela,
uma arte que tem por padrão de medida a faculdade de juízo reflexiva
(ist ästhetische Kunst als schöne Kunst eine solche, die die
reflektierende Urteilskraft zum Richtmaße hat)» (Kant, 1998: 210). O
seu princípio é o da faculdade de juízo reflexiva, a saber, o referido
princípio da conformidade a fins formal da natureza para as faculdades
de conhecimento do sujeito, não obstante as belas obras de arte serem
produtos do homem, não efeitos da natureza. Fica reconhecido, assim,
o estatuto quer do §44, quer do §45, no âmbito da legitimação da noção
de bela arte, estatuto que, na secção “Belas obras de arte”, não
tínhamos chegado a justificar.

3. FORMA

3.1. Conformidade a fins da forma


A possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias
estéticas acarreta uma consequência relacionada com a importância da
forma na beleza da arte. Ela serve de argumento a favor da tese segundo
a qual são vários os elementos responsáveis pelo movimento livre e
harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da
representação que aquele que ajuíza faz de um objecto artístico. Ao
fazê-lo, ela coloca em causa uma outra tese, que aparentemente se lhe
opõe, segundo a qual há um único elemento responsável por esse
movimento – a forma.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 159


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

A conformidade a fins estética a que temos vindo a fazer referência ao


longo da nossa investigação é uma conformidade a fins formal. 166 Tal deve
significar que aquilo que se tem em conta num juízo de gosto é apenas a
condição formal da faculdade do juízo, na medida em que ela é livremente
alcançada.167 Entretanto, o facto de a beleza poder ser denominada
expressão de ideias estéticas parece indicar que o movimento recíproco
formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que
ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto pode ser
suscitado por múltiplos elementos.168 Algo diferente, porém, é anunciado
numa parte significativa da Crítica da Faculdade do Juízo. Analisá-lo
afigura-se indispensável para prosseguirmos a nossa investigação acerca
da legitimidade e das condições de legitimidade da noção de bela arte
tendo como ponto assente a possibilidade de denominação da beleza como
expressão de ideias estéticas.

166
Kant usa as expressões conformidade a fins (meramente) formal ((bloß) formale
Zweckmäßigkeit) (cf. Kant, 1998: 64, 74, 112 e 117) e (simples) forma da
conformidade a fins ((bloße) Form der Zweckmäßigkeit) (cf. Kant, 1998: 110, 111,
112 e 187).
167
Sublinhe-se, nesse sentido, o segundo requisito que, numa nota do §38, Kant
apresenta para que se tenha «direito a reivindicar um assentimento universal num juízo
da faculdade de juízo estética, baseado simplesmente sobre fundamentos subjectivos»,
a saber, que no juízo se considere somente «a condição formal da faculdade do juízo
(die formale Bedingung der Urteilskraft)» e que este não esteja «mesclado nem com
conceitos do objecto nem com sensações enquanto razões determinantes» (Kant,
1998: 268). Essa condição formal é «a relação das faculdades de conhecimento aí
postas em actividade com vista a um conhecimento em geral» (Kant, 1998: 268). Já o
tínhamos sugerido, na secção “Juízo estético reflexivo”. Nessa secção, tivemos
oportunidade de assinalar que, constituindo a «consonância proporcionada, que
exigimos para todo o conhecimento» (Kant, 1998: 108), a relação mencionada
corresponde à «condição subjetiva, meramente sensível, do uso objetivo do Juízo»
(Kant, 1995: 60), à «condição subjectiva do conhecer» (Kant, 1998: 130), à «condição
formal subjectiva de um juízo em geral (subjektive formale Bedingung eines Urteils
überhaupt)» (Kant, 1998: 188). De resto, tivemos também oportunidade de chamar a
atenção para as várias passagens nas quais o nosso autor, mais explicitamente, nuns
casos, menos, noutros, faz referência a essa condição.
168
Importa recordar, neste contexto, que as ideias estéticas são representações da
faculdade da imaginação associadas a conceitos dados (cf. Kant, 1998: 222).

160 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Segundo o nosso autor, no juízo de gosto, o prazer está «ligado à


simples apreensão (apprehensio) da forma de um objecto da intuição
(mit der bloßen Auffassung (apprehensio) der Form eines Gegenstandes
der Anschauung)» (Kant, 1998: 74).169 No juízo de gosto, o prazer
relaciona-se com a forma do objecto, enquanto ela se mostra conforme a
fins. Aquilo que é conforme a fins é a forma do objecto. 170 Há uma
«adequação desse produto (da sua forma) às nossas faculdades de
conhecimento (Angemessenheit desselben (seiner Form) zu unseren
Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 80). Trata-se, portanto, de «uma
conformidade a fins segundo a forma (eine Zweckmäßigkeit der Form)»
(Kant, 1998: 110), isto é, da «conformidade a fins subjectiva (subjektive
Zweckmäßigkeit)» da «forma (Form)» do «objecto (Gegenstande)»
(Kant, 1998: 191). É essa conformidade a fins que o juízo de gosto tem
como fundamento de determinação, é essa conformidade a fins que ele

169
Kant reforça esta tese não apenas na Introdução, ao afirmar que «o
fundamento do prazer é colocado simplesmente na forma do objecto (der Grund
der Lust bloß in der Form des Gegenstandes)» (Kant, 1998: 75), que aquele que
ajuíza «sente prazer na simples reflexão sobre a forma de um objecto (in der
bloßen Reflexion über die Form eines Gegenstandes Lust empfindet)» (Kant,
1998: 76) ou que a representação da conformidade a fins «assenta no prazer
imediato na forma do objecto na simples reflexão sobre ela ( auf der
unmittelbaren Lust an der Form des Gegenstandes in der bloßen Reflexion über
sie beruhe)» (Kant, 1998: 78), mas também na “Crítica da Faculdade de Juízo
Estética”, nomeadamente nos §14, §30 e §38, ao indicar, respectivamente, que
no juízo de gosto há um «comprazimento na forma (Wohlgefallen an der Form)»
(Kant, 1998: 116), que o «comprazimento ou desagrado concerne à forma do
objecto (Wohlgefallen oder Missfallen an der Form des Objekts betrifft)» (Kant,
1998: 179) ou que «o comprazimento no objecto (das Wohlgefallen an dem
Gegenstande)» está «ligado ao simples julgamento da sua forma (mit der bloßen
Beurteilung seiner Form verbunden)» (Kant, 1998: 191). No §15, o nosso autor
faz referência a «uma satisfação para captar uma forma dada na faculdade da
imaginação (eine Behaglichkeit eine gegebene Form in die Einbildungskraft
aufzufassen)» (Kant, 1998: 118).
170
Veja-se algo que, na Introdução, Kant afirma acerca do juízo de gosto, a
saber, que nesta espécie de juízo «a forma do objecto é conforme a fins ( die
Form des Objekts zweckmäßig ist)» (Kant, 1998: 77).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

expressa.171 É essa conformidade a fins que se situa no fundamento do


juízo através do qual se declara belo um objecto. 172 Por conseguinte,
aquilo a que a beleza concerne é a forma do objecto. 173 Assim pode
explicar-se, de resto, que Kant fale, no §14, de uma «forma bela (schöne
Form)» (Kant, 1998: 115 e 116), no §41, de «belas formas (schöne

171
Considere-se o §13, no qual Kant diz que um puro juízo de gosto «tem como
fundamento de determinação simplesmente a conformidade a fins da forma (bloß die
Zweckmäßigkeit der Form zum Bestimmungsgrunde hat)» (Kant, 1998: 113), e o §31,
onde o nosso autor refere que essa espécie de juízo «expressa a conformidade a fins
subjectiva de uma representação empírica da forma de um objecto (die subjektive
Zweckmäßigkeit einer empirischen Vorstellung der Form eines Gegenstandes
ausdrückt)» (Kant, 1998: 181). Além disso, recorde-se a seguinte referência que, na
secção VIII da Introdução, é feita ao princípio do gosto: este princípio «consiste em
representar uma conformidade a fins da natureza, na relação subjectiva às nossas
faculdades de conhecimento, na forma de uma coisa (an der Form eines Dinges)»
(Kant, 1998: 79). Como tivemos oportunidade de notar, Kant também lhe chama
«conceito de uma conformidade a fins subjectiva da natureza, nas suas formas (in
ihren Formen) segundo leis empíricas» (Kant, 1998: 78).
172
Na “Analítica do sublime”, Kant sugere que no belo «o juízo estético dizia respeito
à forma do objecto (das ästhetische Urteil die Form des Objekts betraf)» (Kant, 1998:
141). Igualmente no segundo livro da “Analítica da faculdade de juízo estética”, ao
distinguir entre a sublimidade e beleza, o nosso autor afirma que naquela «não se
[situa] no fundamento [do julgamento] nenhuma conformidade a fins da forma do
objecto (como no belo) (hier keine Zweckmäßigkeit der Form des Gegenstandes (wie
beim Schönen) der Beurteilung zum Grunde liegt)» (Kant, 1998: 148). Em jeito de
comentário lateral, devemos notar que, de facto, a ausência de forma ou de figura pode
ser conveniente ao sentimento do sublime – como nota Kant, no §23: «a natureza (…)
no seu caos ou na sua desordem e devastação mais selvagem e desregrada é que suscita
as ideias do sublime, quando somente magnitude e poder se deixam ver» (Kant, 1998:
140).
173
Se, no §13, Kant afirma que a beleza «deveria concernir propriamente só à forma
(eigentlich bloß die Form betreffen sollte)» (Kant, 1998: 113), no §16, o nosso autor
diz explicitamente que a beleza livre «propriamente só concerne à forma (eigentlich
nur die Form betrifft)» (Kant, 1998: 121). No mesmo parágrafo, Kant já tinha referido
que a beleza é ajuizada «segundo a mera forma (der bloßen Form nach)» (Kant, 1998:
120); no §14, tinha assinalado que ela é «atribuída ao objecto em virtude da sua forma
(die dem Gegenstande seiner Form wegen beigelegte Schönheit)» (Kant, 1998: 115).
Entretanto, no primeiro parágrafo da “Analítica do sublime”, ele sublinhará que «[o]
belo da natureza concerne à forma do objecto, que consiste na limitação ([d]as Schöne
der Natur betrifft die Form des Gegenstandes, die in der Begrenzung besteht)» (Kant,
1998: 137).

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Formen)» (Kant, 1998: 200), ou, no §42, de «formas belas da natureza


(schönen Formen der Natur)» (Kant, 1998: 202).

3.2. Figura
Procuremos saber a que corresponde a noção forma (Form) na Crítica da
Faculdade do Juízo. Desde logo no §16, encontra-se uma passagem que
satisfaz a nossa inquietação:
No julgamento de uma beleza livre (segundo a mera forma) o juízo de
gosto é puro. Não é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para
o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva
representar, mediante o que unicamente seria limitada a liberdade da
faculdade da imaginação, que joga por assim dizer na observação da
figura (In der Beurteilung einer freien Schönheit (der bloßen Form nach)
ist das Geschmacksurteil rein. Es ist kein Begriff von irgend einem
Zwecke, wozu das Mannigfaltige dem gegebenen Objekte dienen und
was dieses also vorstellen sole, vorausgesetzt, wodurch die Freiheit der
Einbildungskraft, die in Beobachtung der Gestalt gleichsam spielt, nur
eingeschränkt warden würde) (Kant, 1998: 120-121).
Forma corresponde a figura (Gestalt). De acordo com esta passagem, no
juízo de gosto, o movimento livre e harmónico das faculdades de
conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto é activado
através da observação da figura.174 Esta tese vem a ser reforçada, no §30,
quando o nosso autor afirma que no juízo através do qual se declara belo
um objecto natural
a conformidade a fins tem então o seu fundamento no objecto e na sua
figura, conquanto ela não indique a relação do mesmo a outros objectos
segundo conceitos (para o juízo de conhecimento), mas concerne
simplesmente em geral à apreensão desta forma, enquanto ela no ânimo

174
Considerando a posição que sustentámos na secção “Juízo através do qual se
declara bela uma obra de arte”, continuamos a usar indistintamente as expressões juízo
de gosto puro (reines Geschmacksurteil) e juízo de gosto (Geschmacksurteil), assim
como beleza (Schönheit) e beleza livre (freie Schönheit). Note-se, além disso, que
mantemos entre parêntesis a afirmação, do §48, de acordo com a qual no juízo através
do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo
que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 163


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

se mostra conforme à faculdade, tanto dos conceitos como da


apresentação dos mesmos (que é idêntica à faculdade de apreensão) (die
Zweckmäßigkeit hat alsdann doch im Objekte und seiner Gestalt ihren
Grund, wenn sie gleich nicht die Beziehung desselben auf andere
Gegenstände nach Begriffen (zum Erkenntnisurteile) anzeigt; sondern
bloß die Auffassung dieser Form, sofern sie dem Vermögen sowohl der
Begriffe, als dem Darstellung derselben (welches mit dem der
Auffassung eines und dasselbe ist) im Gemüt sich gemäß zeigt,
überhaupt betrifft) (Kant, 1998: 179-180).
Pois bem, tal como associa a beleza à forma, isto é, à figura do objecto,
Kant associa a agradabilidade à matéria (Materie). Ora, como sabemos, a
beleza é independente da agradabilidade – o juízo de gosto é independente
da sensação através da qual declaramos agradável um objecto. Assim, de
acordo com o nosso autor, aquilo que num juízo de gosto tem de ser
considerado é a forma do objecto, não a matéria. Embora o sugira desde
logo na Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, nomeadamente ao
indicar que tem «de se ajuizar a forma do objecto (não o material da sua
representação, como sensação) (Wessen Gegenstandes Form (nicht das
Materielle seiner Vorstellung, als Empfindung)) na simples reflexão sobre
a mesma (sem ter a intenção de obter um conceito dele), como o
fundamento de um prazer na representação de um tal objecto» (Kant,
1998: 75), é nos §13, §39 e §40 que Kant mais claramente identifica a
matéria com a agradabilidade e, por conseguinte, a impede de servir de
fundamento de determinação do juízo de gosto. As passagens em causa
são as seguintes, respectivamente:
atractivos frequentemente são, não apenas contados como beleza (que
todavia deveria concernir propriamente só à forma) como contribuição
para o comprazimento estético universal, mas até são feitos passar em si
mesmos por belezas, por conseguinte a matéria do comprazimento é feita
passar pela forma; um equívoco que, como muitos outros – que
entretanto sempre ainda tem algo verdadeiro por fundamento – deixa-se
remover mediante cuidadosa determinação destes conceitos (werden
Reize doch öfter nicht allein zur Schönheit (die doch eigentlich bloß die
Form betreffen sollte) als Beitrag zum ästhetischen allgemeinen
Wohlgefallen gezählt, sondern sie werden wohl gar an sich selbst für
Schönheiten, mithin die Materie des Wohlgefallens für die Form

164 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

ausgegeben: ein Missverstand, der sich so wie mancher andere, welcher


doch noch immer etwas Wahres zum Grunde hat, durch sorgfältige
Bestimmung dieser Begriffe heben lässt) (Kant, 1998: 113);
aquele que julga com gosto (contanto que ele não se engane nesta
consciência e não tome a matéria pela forma, o atractivo pela beleza)
pode postular em todo o outro a conformidade a fins subjectiva, isto é o
seu comprazimento no objecto, e admitir o seu sentimento como
universalmente comunicável e na verdade sem mediação dos conceitos
(darf der mit Geschmack Urteilende (wenn er nur in diesem Bewusstsein
nicht irrt und nicht die Materie für die Form, Reiz für Schönheit nimmt)
die subjektive Zweckmäßigkeit, d. i. sein Wohlgefallen am Objekte,
jedem andern ansinnen und sein Gefühl als allgemein mitteilbar und
zwar ohne Vermittelung der Begriffe annehmen) (Kant, 1998: 195);
e
simplesmente abstraímos das limitações que acidentalmente aderem ao
nosso próprio julgamento: o que é por sua vez produzido pelo facto que
na medida do possível se elimina aquilo que no estado da representação
é matéria, isto é sensação, e presta-se atenção pura e simplesmente às
peculiaridades formais da sua representação ou do seu estado de
representação (man bloß von den Beschränkungen, die unserer eigenen
Beurteilung zufälliger Weise anhängen,abstrahiert: welches wiederum
dadurch bewirkt wird, dass man das, was in dem Vorstellungszustande
Materie, d. i. Empfindung ist, so viel möglich weglässt und lediglich auf
die formalen Eigentümlichkeiten seiner Vorstellung oder seines
Vorstellungszustandes Acht hat) (Kant, 1998: 196).
De resto, é precisamente por causa da identificação da matéria com a
agradabilidade que Kant exclui as cores – assim como os sons – do âmbito
daquilo que num juízo de gosto é considerado. É no §14 que o nosso autor
procede a essa exclusão. 175

175
Vejam-se, nesse sentido, as seguintes passagens: «[u]ma simples cor, por exemplo
a cor [verde] da relva, um simples som (à diferença do eco e do ruído), como
porventura o de um violino, é em si declarado belo pela maioria das pessoas, se bem
que ambos pareçam ter por fundamento simplesmente a matéria das representações, a
saber pura e simplesmente a sensação e por isso mereceram ser chamados somente
agradáveis ([e]ine bloße Farbe, z. B. die grüne eines Rasenplatzes, ein bloßer Ton
(zum Unterschiede vom Schalle und Geräusch), wie etwa der einer Violine, wird von
den Meisten an sich für schön erklärt; obzwar beide bloß die Materie der

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 165


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

3.3. Jogo
Ainda no parágrafo no qual exclui as cores e os sons do âmbito do
fundamento do juízo de gosto (§14) Kant associa a noção de forma não
apenas à noção de figura, mas também à noção de jogo (Spiel). Afirma ele
que «[t]oda a forma dos objectos dos sentidos (dos externos assim como
mediatamente do interno) é ou figura ou jogo; no último caso, ou jogo das
figuras (no espaço: a mímica e a dança); ou simples jogo das sensações
(no tempo) ([a]lle Form der Gegenstände der Sinne (der äußern sowohl
als mittelbar auch der innern) ist entweder Gestalt, oder Spiel; im letztern
Falle entweder Spiel der Gestalten (im Raume die Mimik und der Tanz);
oder bloßes Spiel der Empfindungen (in der Zeit))» (Kant, 1998: 116). A
forma de um objecto dos sentidos pode ser ou figura ou jogo. No caso de
a forma ser figura, aquilo que importa no juízo de gosto é o desenho
(Zeichnung); se a forma for jogo – seja jogo das figuras, seja jogo das
sensações – o que importa na declaração do objecto como belo é a
composição (Komposition): «o desenho na primeira e a composição no
último constitui o verdadeiro objecto do juízo de gosto puro (die
Zeichnung in der ersten und die Komposition in dem letzten machen den
eigentlichen Gegenstand der reinen Geschmacksurteil aus)» (Kant, 1998:
116). Nesse último caso, o juízo de gosto centra-se na maneira como as

Vorstellungen, nämlich lediglich Empfindung, zum Grunde zu haben scheinen und


darum nur engenehm genannt zu werden verdienten)» (Kant, 1998: 114); e «[a]s cores
que iluminam o esboço pertencem ao atractivo; elas na verdade podem vivificar o
objecto em si para a sensação, mas não o tornar digno de intuição e belo; elas até em
grande parte são limitadas muito por aquilo que a forma bela requer, e mesmo lá onde
o atractivo é admitido são enobrecidas unicamente por ela ([d]ie Farben, welche den
Abriss illuminieren, gehören zum Reiz; den Gegenstand an sich können sie zwar für
die Empfindung belebt, aber nicht anschauungswürdig und schön machen; vielmehr
werden sie durch das, was die schöne Form erfordert, mehrentheils gar sehr
eingeschränkt und selbst da, wo der Reiz zugelassen wird, durch die erstere allein
veredelt)» (Kant, 1998: 115). Entretanto, no §41, Kant voltará a identificar as cores
com aquilo que meramente atrai: como primeiro exemplo de «atractivos (Reize)» ele
dá «cores para se pintar (rocou entre os caraibenhos e cinabre entre os iroqueses)
(Farben, um sich zu bemalen (Rocou bei den Karaiben und Zinnober bei den
Irokesen))» (Kant, 1998: 200).

166 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

figuras jogam no espaço ou como as sensações jogam no tempo, isto é, na


maneira como as figuras e as sensações estão compostas respectivamente
no espaço e no tempo. É enquanto enformadas, enquanto formalmente
organizadas, enquanto submetidas à forma, que as cores podem contribuir
para a beleza. É assim que elas podem mesmo ser belas:
Se com Euler se admite que as cores sejam simultaneamente pulsações
(pulsus) do éter sucessivas umas às outras, como sons do ar vibrado na
ressonância e, o que é o mais nobre, que o ânimo perceba (do que
absolutamente não duvido) não meramente pelo sentido o efeito disso
sobre a vivificação do órgão, mas também pela reflexão o jogo regular
das impressões (por conseguinte a forma na ligação de representações
diversas): então cor e som não seriam simples sensações, mas já
determinações formais da unidade de um múltiplo dos mesmos e neste
caso poderiam ser também contados por si como belezas (würde Farbe
und Ton nicht bloße Empfindungen, sondern schon formale Bestimmung
der Einheit eines Mannigfaltigen derselben sein und alsdann auch für
sich zu Schönheiten gezählt werden können)» (Kant, 1998: 114-115).
Entretanto, Kant desenvolve a possibilidade de as cores serem belas
através de uma associação entre pureza e forma:
o elemento puro de um modo simples de sensação significa que a
uniformidade da mesma não é perturbada e interrompida por nenhum
modo estranho de sensação e pertence meramente à forma; porque neste
caso se abstrai da qualidade daquele modo de sensação (seja que cor ou
som ele represente). Por isso todas as cores simples, na medida em que
são puras, são consideradas belas ([d]as Reine einer einfachen
Empfindungsart bedeutet, dass die Gleichförmigkeit derselben durch
keine fremdartige Empfindung gestört und unterbrochen wird, und
gehört bloß zur Form: weil man dabei von der Qualität jener
Empfindungsart (ob und welche Farbe, oder ob und welchen Ton sie
vorstelle) abstrahieren kann. Daher werden alle einfache Farben, sofern
sie rein sind, für schön gehalten) (Kant, 1998: 115).
Assim,
as sensações da cor como as do som somente se consideram no direito
de valer como belas na medida em que ambos são puras; o que é uma
determinação que já concerne à forma e ao único dessas representações
que com certeza pode comunicar-se universalmente (die Empfindungen
der Farbe sowohl als des Tons sich nur sofern für schön zu gelten

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 167


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

berechtigt halten, als beide rein sind; welches eine Bestimmung ist, die
schon die Form betrifft, und auch das einzige, was sich von diesen
Vorstellungen mit Gewissheit allgemein mitteilen lässt) (Kant, 1998:
114).176
Quanto às cores mescladas, elas «não têm esta prerrogativa
precisamente porque, já que não são simples, não possuímos nenhum
padrão de medida para o julgamento sobre se devemos chamá-las puras
ou impuras (haben diesen Vorzug nicht: eben darum weil, da sie nicht
einfach sind, man keinen Maßstab der Beurteilung hat, ob man sie rein
oder unrein nennen solle)» (Kant, 1998: 115). Sem prejuízo do que
acabámos de assinalar, salvaguarde-se, ainda assim, que mesmo as
cores puras só podem contribuir para a beleza enquanto podem
contribuir para a forma:
o facto que a pureza das cores assim como a dos sons, mas também
a multiplicidade dos mesmos e o seu contraste, pareçam contribuir
para a beleza, não quer significar que é como se produzissem um
acréscimo homogéneo ao comprazimento na forma, porque são por
si agradáveis, mas somente porque elas tornam esta última mais
exacta, determinada e completamente intuível, e além disso
vivificam pelo seu atractivo as representações, enquanto despertam
e mantêm a atenção sobre o próprio objecto (das die Reinigkeit der
Farben sowohl als der Töne, oder auch die Mannigfaltigkeit
derselben und ihre Abstechung zur Schönheit beizutragen scheint,
will nicht so viel sagen, dass sie darum, weil sie für sich angenehm
sind, gleichsam einen glaichartigen Zusatz zu dem Wohlgefallen an
der Form abgeben, sondern weil sie diese letztere nur genauer,
bestimmter und vollständiger anschaulich machen und überdem
durch ihren Reiz die Vorstellung beleben, indem sie die
Aufmerksamkeit auf den Gegenstand selbst erwecken und erhalten)
(Kant, 1998: 116).

176
O mesmo se passa com «aquilo a que se chama ornamentos (parerga) (Zierraten
(Parerga)) isto é, [com aquilo] que não pertence à inteira representação do objecto
como parte integrante internamente, mas só externamente como acréscimo» (Kant,
1998: 116). É «somente pela sua forma (nur durch seine Form), como as molduras
dos quadros, ou as vestes em estátuas, ou as arcadas em torno de edifícios
sumptuosos» que um ornamento «aumenta o comprazimento do gosto (das
Wohlgefallen des Geschmacks vergrößert)» (Kant, 1998: 116).

168 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Por isso é que pode falar-se – como Kant efectivamente fala, no §41 – de
«flores, conchas, penas de pássaros belamente coloridas (schönfarbige)»
(Kant, 1998: 200). Outras haverá que são coloridas, mas não belamente,
isto é, que não tornam a forma mais exacta, determinada e completamente
intuível, que não despertam nem mantêm a atenção sobre o próprio objecto
e que não vivificam pelo seu atractivo as representações.
Mais à frente, no §42, Kant retomará as teses defendidas no §14. No
parágrafo acerca do interesse intelectual pelo belo, o nosso autor afirma
que «[o]s atractivos ([d]ie Reize)» que «pertencem às modificações da luz
(na coloração) ou às do som (em tons) (sind entweder zu den
Modifikationen des Lichts (in der Farbengebung) oder des Schalles (in
Tönen) gehörig)» são «tão frequentemente (…) encontrados como que
amalgamados com a forma bela (so häufig mit der schönen Form
gleichsam zusammenschmelzend angetroffen)» (Kant, 1998: 205) porque
aquelas
são as únicas sensações que não permitem simplesmente um sentimento
sensorial, mas também reflexão sobre a forma destas modificações dos
sentidos, e assim contêm com que uma linguagem que a natureza nos
dirige e que parece ter um sentido superior (sind die einzigen
Empfindungen, welche nicht bloß Sinnengefühl, sondern auch Reflexion
über die Form dieser Modifikationen der Sinne verstatten und so
gleichsam eine Sprache, die die Natur zu uns führt, und die einen höhern
Sinn zu haben scheint, in sich enthalten) (Kant, 1998: 205).
O mesmo se passa no §51. Aí, Kant nota que o ouvido e a vista
com excepção da receptividade para sensações, na medida do que é
requerido para obter por intermédio delas conceitos de objectos
exteriores, são ainda capazes de uma sensação particular ligada a eles,
sobre a qual não se pode decidir com certeza se ela tem por fundamento
o sentido ou a reflexão (außer der Empfänglichkeit für Eindrücke, so viel
davon erforderlich ist, um von äußern Gegenständen vermittelst ihrer
Begriffe zu bekommen, noch einer besondern damit verbundenen
Empfindung fähig sind, von welcher man nicht recht ausmachen kann,
ob sie den Sinn, oder die Reflexion zum Grunde habe) (Kant, 1998: 230),
ou seja, que «não se pode dizer com certeza se uma cor ou um tom (som)
são simplesmente agradáveis, ou se já é em si um jogo belo de sensações

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 169


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

e se como tal traz consigo, no julgamento estético, um comprazimento na


forma (man kann nicht mit Gewissheit sagen: ob eine Farbe oder ein Ton
(Klang) bloß angenehme Empfindungen, oder an sich schon ein schönes
Spiel von Empfindungen sei und als ein solches ein Wohlgefallen an der
Form in der ästhetischen Beurteilung bei sich führe)» (Kant, 1998: 231).
Não obstante a afirmação da possibilidade de as cores contribuírem
para a beleza – ou, até, de serem, elas mesmas, belas, desde que
enformadas – aquilo que num juízo de gosto se considera é, segundo o
nosso autor, a forma do objecto, isto é, a sua figura ou o seu jogo, a
composição deste ou o desenho daquela. 177 Esses são os elementos
essenciais quer para a beleza da natureza, quer para a beleza da arte, para
as chamadas belas-artes (schöne Künste):
Na pintura, na escultura, enfim em todas as artes plásticas, na
arquitectura, na jardinagem, na medida em que são belas-artes, o
desenho é o essencial, no qual não é o que deleita na sensação, mas
simplesmente o que apraz pela sua forma que constitui o fundamento de
toda a disposição para o gosto (In der Malerei, Bildhauerkunst, ja allen
bildenden Künsten, in der Baukunst, Gartenkunst, sofern sie schöne
Kunste sind, ist die Zeichnung das Wesentliche, in welcher nicht, was in
der Empfindung vergnügt, sondern bloß was durch seine Form gefällt,
den Grund aller Anlage für den Geschmack ausmacht) (Kant, 1998:
115).
Também no caso das belas-artes pode ser «acrescido (hinzukommen)» à
forma (à figura, ao jogo, ao desenho, à composição) o «atractivo das cores
(Reiz der Farben)» ou, se nos referirmos em particular à arte do som (a
música) o atractivo «de tons agradáveis do instrumento (angenehmer Töne

177
Veja-se, a este propósito, o que afirma Deleuze: «Acontece por vezes a Kant
perguntar: uma cor, um som, podem ser ditos belos por si mesmos? Talvez o fossem
se, em lugar de apreendermos materialmente o seu efeito qualitativo sobre os nossos
sentidos, fôssemos capazes de reflectir pela nossa imaginação as vibrações de que eles
se compõem. Mas a cor e o som são demasiado materiais e acham-se demasiado
impregnados nos nossos sentidos para se reflectirem assim na imaginação: são
adjuvantes, mais do que elementos da beleza. O essencial é o desenho, é a composição,
os quais são precisamente manifestações da reflexão formal» (Deleuze, 2000: 54).

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BELA ARTE

des Instruments)» (Kant, 1998: 116).178 No entanto, aquilo em que o


sujeito se fundamenta para declarar belo o objecto artístico é, segundo
Kant, a forma desse objecto. O juízo de gosto é baseado, aí, não na
«simples impressão dos sentidos (bloßen Sinneneindruck)», na sensação
do «efeito (Wirkung)» dos «estremecimentos (Zitterungen)» provocados
pelas «vibrações do ar (Luftbebungen)» nas «partes elásticas de nosso
corpo (elastischen Teile unsers Körpers)», mas no apercebimento da
«divisão do tempo (Zeiteinteilung)», isto é, no «matemático que na música
e no seu julgamento se deixa expressar sobre a proporção dessas vibrações
(Mathematische, welches sich über die Proportion dieser Schwingungen
in der Musik und ihre Beurteilung sagen lässt)», ou seja, na «composição
(Komposition)», na «forma no jogo de muitas sensações (Form im Spiele
vieler Empfindungen)» (Kant, 1998: 231). Nesse caso a música pode ser
definida «como o jogo belo das sensações (pelo ouvido) (das schöne Spiel
der Empfindungen (durch das Gehör))» (Kant, 1998: 231). Kant indica-o
no §51. No §53, ele sublinha a separação – entre forma, por um lado, e
agradabilidade, atractivo, matéria, por outro. Segundo o nosso autor,
no atractivo e no movimento do ânimo, que a música produz, a
matemática não tem certamente a mínima participação; ela é somente a
condição indispensável (conditio sine qua non) daquela proporção das
impressões, tanto na sua ligação como na sua mudança, pela qual se torna
possível compreendê-las e impedir que elas se destruam mutuamente,
mas concordem com um movimento contínuo e uma vivificação do
ânimo através de afectos consonantes com ele, e assim concordem numa
agradável autofruição (am dem Reize und der Gemütsbewegung, welche
die Musik hervorbringt, hat die Mathematik sicherlich nicht den
mindesten Anteil; sondern sie ist nur die unumgängliche Bedingung
(conditio sine qua non) derjenigen Proportion der Eindrücke in ihrer
Verbindung sowohl als ihrem Wechsel, wodurch es möglich wird sie
zusammen zu fassen und zu verhindern, dass diese einander nicht
zerstören, sondern zu einer kontinuierlichen Bewegung und Belebung

178
Recordemos a salvaguarda que é feita na parte final do §13, segundo a qual
«atractivo e comoção (Reiz und Rührung)» se deixam «ligar ao comprazimento no
belo (mit dem Wohlgefallen am Schönen verbinden)» (Kant, 1998: 113).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

des Gemüts durch damit konsonierende Affekten und hiemit zu einem


behaglichen Selbstgenusse zusammenstimmen) (Kant, 1998: 235-236).
É para a beleza da música que a matemática tem importância – à «forma
matemática, embora não representada por conceitos determinados,
unicamente se prende o comprazimento que a simples reflexão (…)
conecta com este jogo das mesmas como condição da sua beleza, válida
para qualquer um (mathematischen Form, obgleich nicht durch
bestimmte Begriffe vorgestellt, hängt allein das Wohlgefallen, welches
die bloße Reflexion mit diesem Spiele derselben als für jedermann
gültige Bedingung seiner Schönheit verknüpft)» (Kant, 1998: 235);
além disso «somente segundo tal forma o gosto pode arrogar-se um
direito de pronunciar-se antecipadamente sobre o juízo de qualquer um
(sie ist es allein, nach welcher der Geschmack sich ein Recht über das
Urteil von jedermann zum voraus auszusprechen anmaßen darf)»
(Kant, 1998: 235).179

3.4. Da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura ao


“Terceiro momento do juízo de gosto” da Crítica da Faculdade do
Juízo
Nas passagens que temos vindo a citar dos §51 e §53 – assim como, mais
residualmente, na “Analítica do sublime” e nos §39-§42 – são reforçadas
as teses explicitadas por Kant ao longo do “Terceiro momento do juízo de
gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”, muito em
particular no §14. Crawford considera ser esse o momento no qual «a

179
No entender de Kant, ainda assim, se «[a]juizada pela razão (durch Vernunft
beurteilt)», a arte do som «possui valor menor que qualquer outra das belas-artes (hat
weniger Wert, als jede andere der schönen Künste)», pois, apesar de mover «o ânimo
de modo mais variado e, embora só passageiramente, no entanto mais intimamente
(das Gemüt mannigfaltiger und, obgleich bloß vorübergehend, doch inniglicher)»,
essa arte «é certamente mais gozo que cultura (o jogo de pensamento, que
incidentemente é com isso suscitado, é simplesmente o efeito de uma associação por
assim dizer mecânica) (ist freilich mehr Genuß als Kultur (das Gedankenspiel, was
nebenbei dadurch erregt wird, ist bloß die Wirkung einer gleichsam mechanischen
Assoziation))» (Kant, 1998: 234).

172 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

experiência subjectiva do apreciador é ligada às qualidades do objecto em


apreciação» (Crawford, 1974: 96).180 Na mesma linha de pensamento,
Guyer toma o terceiro momento como mostrando o esforço feito por Kant
com vista a associar a propriedades particulares dos objectos – ou mesmo
a tipos específicos de objectos – a disposição formalmente conforme a fins
das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza:
[o] terceiro momento representa a tentativa de Kant para alcançar o
objectivo tradicional da estética: o de especificar directamente certas
propriedades ou mesmo tipos de objectos que autorizem os juízos de
gosto, sem necessidade de reflexão adicional acerca da nossa resposta a
esses aspectos ou tipos de objectos (Guyer, 1997: 185).
Aquilo que Kant tenta ao longo dos parágrafos relativos a esse momento
é, segundo o comentador, «associar o conceito geral da forma da
finalidade com um tipo de forma mais específico» (Guyer, 1997: 187). Ao
fazê-lo, Kant, ainda de acordo com Guyer, «finalmente afirma uma
doutrina do formalismo genuinamente restritiva» (Guyer, 1997: 201). De
facto, ao identificar a forma com a figura ou com o jogo, com o desenho
ou com a composição, Kant coloca como fundamento de determinação do
juízo de gosto o movimento harmónico das faculdades de conhecimento
entre si enquanto suscitado por um elemento específico do objecto – e não
independentemente dos elementos que possam suscitar essa disposição
anímica – nomeadamente pela figura ou pelo jogo, pelo desenho ou pela
composição – e não pela expressão de ideias estéticas que a representação
do objecto envolve. Interessa-nos saber não apenas por que razão Kant o
faz, mas igualmente se a sua posição é uma consequência das exigências
por si estabelecidas para que um juízo seja um juízo de gosto. Só assim
poderemos saber se – e, eventualmente, sob que condições – será a forma
do objecto o elemento responsável pelo movimento formalmente
conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por
ocasião da representação que ele faz desse mesmo objecto.

180
No entender do intérprete, é nesse momento do juízo de gosto que Kant «dá
substância à sua teoria estética» (Crawford, 1974: 96).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Façamos um percurso pelo primeiro parágrafo da “Estética


transcendental” da Crítica da Razão Pura. Nesse parágrafo, Kant
define sensação (Empfindung) e distingue intuição empírica de
intuição pura: a sensação é «[o] efeito de um objecto sobre a
capacidade representativa, na medida em que por ele somos afectados
([d]ie Wirkung eines Gegenstandes auf die Vorstellungsfähigkeit,
sofern wir von demselben afficiert werden)» (Kant, 2001: 61); quanto
aos tipos de intuição, Kant chama empírica (empirisch) à «intuição
que se relaciona com o objecto, por meio de sensação (Anschauung,
welche sich auf den Gegenstand durch Empfindung bezieht)» (Kant,
2001: 61), implicando esta definição que a sensação esteja contida na
intuição, e chama «puras (no sentido transcendental) todas as
representações em que nada se encontra que pertença à sensação (rein
(im transzendentale Verstande) alle Vorstellungen in denen nichts,
was zur Empfindung gehört, angetroffen wird )» (Kant, 2001: 62).181
Além de estabelecer a distinção mencionada e de definir sensação, o
nosso autor chama matéria (Materie) precisamente «ao que no
fenómeno corresponde à sensação ([i]n der Erscheinung was der
Empfindung korrespondiert)»; quanto ao termo forma (Form), ele
aplica-o «ao que, porém, possibilita que o diverso do fenómeno possa
ser ordenado segundo determinadas relações (dasjenige aber, welches
macht, dass das Mannigfaltige der Erscheinung in gewissen
Verhältnissen geordnet werden kann)» (Kant, 2001: 62).182 Ora,
sendo, a forma, aquilo a que concerne a unidade do diverso empírico,
é a forma o elemento responsável pelo estabelecimento de um
movimento reciprocamente harmónico das faculdades de

181
Tal não significa que entre a intuição pura e a representação sensorial não existe
uma conexão. A intuição pura está relacionada com a percepção através da forma do
fenómeno.
182
A própria distinção entre juízo empírico e juízo puro está dependente da divisão do
fenómeno em matéria e forma – isto é, em constituintes materiais, dados pela
sensação, e constituintes formais – pois o primeiro tipo de juízo depende de intuições
empíricas e o segundo depende de intuições puras.

174 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que


ele faz do objecto.183
Mantenhamo-nos no início da primeira parte da “Doutrina
Transcendental dos Elementos”. Kant afirma que «se a matéria de
todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve
encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto
tem que poder ser considerada independentemente de qualquer
sensação (ist uns zwar die Materie aller Erscheinung nur a posteriori
gegeben, die Form derselben muss zu ihnen insgesamt im Gemüte a
priori bereit liegen und daher abgesondert von aller Empfindung
können betrachtet werden)» (Kant, 2001: 62).184 Existe, então, a
possibilidade de abstrair os aspectos formais da representação dos

183
Sem prejuízo das definições de forma e de matéria que aqui transcrevemos,
devemos salvaguardar, com Crawford, que o uso dado por Kant à distinção entre essas
duas noções é, na Crítica da Razão Pura, um «uso amplo» (Crawford, 1974: 97).
Segundo Crawford, Kant aplica essa distinção (forma-matéria, ou, alternativamente,
forma-conteúdo) a quatro níveis (cf. Crawford, 1974: 97-98). Assim, como o
comentador ressalva, «o elemento material de uma aplicação da distinção pode ele
mesmo num outro nível de aplicação ser analisado nos seus elementos formais e
materiais. Por exemplo, ao nível de uma dada cognição ou experiência, o elemento
formal consiste em categorias e conceitos e o elemento material consiste nas intuições
(apercepções particulares) dadas através da faculdade da sensibilidade. Mas qualquer
destas intuições pode ela mesma ser analisada nos seus componentes formais e
materiais. Logo, o que pode ser dito ser o elemento formal ou material depende do
nível de aplicação da distinção forma-conteúdo» (Crawford, 1974: 97). No entanto,
Crawford não deixa de assinalar – e isso é o que mais nos interessa sublinhar – que,
em qualquer das quatro aplicações da distinção referida, «a matéria ou conteúdo
consiste em certos elementos e a forma é a maneira na qual, ou a estrutura em termos
da qual, estes elementos são relacionados entre si» (Crawford, 1974: 98). A forma é
mencionada como «ordenando a matéria, relacionando os elementos de uma maneira
que lhes dá unidade» (Crawford, 1974: 98).
184
Na tradução que fazem da primeira Crítica, Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão fazem corresponder “Gemüte” a “espírito”; na tradução por nós
citada da terceira Crítica, assim como ao longo da nossa tese, “espírito” corresponde
única e exclusivamente a “Geist”. Importa não confundir o Geist da terceira Crítica,
que apresentámos na subsecção “Expressão de ideias estéticas”, com o espírito da
tradução que citamos da primeira Crítica – esse espírito tem o ânimo como termo
correspondente na nossa tese.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 175


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

objectos dos seus aspectos materiais. O juízo puro a priori incide sobre
essa «forma pura das intuições sensíveis em geral (reine Form
sinnlicher Anschauungen überhaupt)» que «deverá encontrar-se
absolutamente a priori no espírito (im Gemüte a priori angetroffen
werden)» e «na qual todo o diverso dos fenómenos se intui em
determinadas condições (worin alles Mannigfaltige der Erscheinungen
in gewissen Verhältnissen angeschauet wird)» (Kant, 2001: 62).
Em terceiro lugar, importa notar que Kant nos informa acerca das
referidas condições: de acordo com o nosso autor, se apartarmos da
intuição empírica «tudo o que pertence à sensação (…) se apurará que há
duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento
a priori, a saber, o espaço e o tempo (alles, was zur Empfindung gehört
(…) wird sich finden, dass, es zwei reine Formen sinnlicher Anschauung
als Prinzipien der Erkenntnis a priori gebe, nämlich Raum und Zeit)»
(Kant, 2001: 63). A forma a priori de todos os fenómenos é, então, espaço
e tempo. É por isso, aliás, que
quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa
dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que
pertence à sensação, como seja impenetrabilidade, dureza, cor, etc., algo
me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura (wenn ich
von der Vorstellung eines Körpers das, was der Verstand davon denkt,
als Substanz, Kraft, Teilbarkeit etc., imgleichen was davon zur
Empfindung gehört, als Undurchdringlichkeit, Härte, Farbe, etc.,
absondere, so bleibt wir aus dieser empirischen Anschauung noch etwas
übrig, nämlich Ausdehnung und Gestalt) (Kant, 2001: 62).
Segundo Kant, a extensão e a figura «pertencem à intuição pura, que se
verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um objecto real
dos sentidos ou da sensação, como forma da sensibilidade (gehören zur
reinen Anschauung, die a priori, auch ohne einen wirklichen Gegenstand
der Sinne oder Empfindung, als eine bloße Form der Sinnlichkeit im
Gemüte stattfindet)» (Kant, 2001: 62). O objecto do juízo puro a priori é,
por conseguinte, constituído pelos aspectos espaciais e temporais dos
objectos: no que concerne ao sentido externo, a extensão e a figura; no que
concerne ao sentido interno, o jogo.

176 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Percorrido nada mais do que o primeiro parágrafo da “Estética


transcendental”, e não deixando escapar aquilo que é defendido por
Kant no chamado terceiro momento do juízo de gosto, podemos
concluir que Kant transfere para a Crítica da Faculdade do Juízo – ou,
pelo menos, para o mencionado momento do juízo de gosto – quer a
distinção forma-matéria, quer a teoria da percepção esboçada no início
da primeira parte da “Doutrina Transcendental dos Elementos” da
Crítica da Razão Pura. De facto, é a partir de uma tal transferência que
se supõem a figura e o jogo como sendo os objectos únicos do juízo de
gosto. É a partir dessa transferência que matéria e conceitos daquilo
que o objecto deva ser são considerados como a ignorar num tal juízo.
Assim, como assinala Guyer, o resultado da transferência para a
terceira Crítica da teoria exposta na “Estética transcendental” é a
suposição de que «um juízo de gosto material tem de ser ocasionado
pela matéria do fenómeno e que um juízo de gosto formal só pode ser
ocasionado pela forma da sensação» (Guyer, 1997: 201).
Uma tal transferência e uma tal suposição não são, no entanto,
necessárias. No seu estudo acerca da base epistemológica do formalismo
estético kantiano, Crawford chama a atenção para a importância que a
modificação que Kant faz da distinção lockeana entre qualidades
primárias e qualidades secundárias dos objectos tem sobre o
estabelecimento desse formalismo.185 Modificada por Kant, a distinção
mencionada torna-se uma distinção do âmbito fenoménico paralela à
distinção entre forma e matéria. A estrutura resultante desse paralelismo
consiste em duas colunas: de um lado, as qualidades primárias, entendidas
como qualidades objectivas das coisas tal como nos aparecem, constituem
a forma do fenómeno; do outro, as qualidades secundárias constituem a
matéria do fenómeno. De facto, submetidas a uma tal estrutura, as
sensações da cor ou do tom, enquanto qualidades atribuídas por cada um
às coisas tal como nos aparecem, enquanto dependentes das variações

185
Cf. Crawford, 1974: 102-105, para observar detalhadamente a descrição que
Crawford apresenta das referidas distinção e modificação.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 177


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

entre sujeitos e, portanto, enquanto jamais objectivas, não podem


contribuir para o conhecimento nem ser objecto de um juízo dotado de
validade universal a priori (o juízo de gosto).186 Acontece, porém, que, no
contexto da primeira Crítica – nota Crawford – o espaço e o tempo são
relevados não para falar-se de «relações espaciais e temporais
determinadas», mas «como sendo objectos puros da intuição (e como as
formas a priori que a intuição toma)» (Crawford, 1974: 110). Ora, como
acrescenta o comentador, «na experiência de um objecto da beleza, como
uma pintura, o que conta são as relações determinadas, não a
relacionalidade espacial em geral» (Crawford, 1974: 110). De uma
valorização do espaço e do tempo não tem de resultar, então, uma
valorização de uma determinada organização espácio-temporal de um
objecto, como é o seu desenho ou a sua composição, ou uma
desvalorização dos seus elementos materiais.187
Pois bem, considerando que a valorização da forma não é
necessariamente equivalente à valorização da figura ou do jogo e à
desvalorização da cor ou do tom, devemos afirmar, com Crawford, que a
aplicação da distinção forma-matéria, da Crítica da Razão Pura, à Crítica
da Faculdade do Juízo, nomeadamente à identificação daquilo que motiva
o movimento recíproco formalmente conforme a fins das faculdades de
conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que faz de
um objecto, é uma «aplicação precipitada» (Crawford, 1974: 110). Kant
não justifica satisfatoriamente a tese de acordo com a qual a forma

186
Crawford considera ser precisamente a atribuição de um estatuto epistemológico
inferior às chamadas qualidades secundárias, por parte de Kant, aquilo que leva à
exclusão dessas qualidades do âmbito do gosto (cf. Crawford, 1974: 110).
187
A este propósito, Crawford ressalva que «dizer que qualquer conjunto particular
de relações espaciais ou temporais (isto é, um conjunto de relações determinadas) é
objectivo de uma qualquer maneira que as cores, os tons, os paladares e os cheiros não
são, é uma alegação adicional e mais forte» do que a simples alegação de que «espaço
e tempo são as formas necessárias dos fenómenos» (Crawford, 1974: 105-106). Como
continua o intérprete, «[a] posição geral de Kant é que qualquer fenómeno tem de ter
algumas propriedades espaciais e temporais, não que qualquer fenómeno dado tem
determinadas propriedades espaciais e temporais que podem ser verificadas a priori»
(Crawford, 1974: 106).

178 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

corresponde à figura ou ao jogo, ao desenho ou à composição do objecto;


por conseguinte, ele não sustenta suficientemente a tese de acordo com a
qual é mediante esses elementos que as faculdades de conhecimento
daquele que ajuíza se movimentam entre si de uma maneira
simultaneamente livre e harmónica por ocasião da representação que ele
faz do objecto.

3.5. Vários Elementos


A possibilidade de representação de uma conformidade a fins baseada
no movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre
si não depende de uma exclusão da matéria ou sequer está ligada a uma
tal exclusão. O facto de o comprazimento implicado na beleza ter de
envolver reflexão sobre o diverso apresentado pela faculdade da
imaginação não torna necessário que as características desse diverso não
possam ser sensações, como a cor ou o tom.188 Efectivamente, nada do
que é afirmado por Kant acerca da beleza, nada da sua teoria do gosto –
ou mesmo da sua teoria de conhecimento, como acabámos de ver –
fundamenta devidamente a submissão do juízo de gosto aos
constrangimentos formais previstos nos parágrafos relativos ao
“Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que
neles é considerada”. As restrições impostas nesse momento não são
uma consequência daquilo que dissemos serem os requisitos que um
juízo tem de satisfazer para que através dele se declare belo um objecto,
nomeadamente, a possibilidade de o último ser representado como
formalmente conforme a fins na medida em que a sua representação
motiva um movimento recíproco simultaneamente livre e harmónico nas
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza. É nessa capacidade do
objecto que reside a sua conformidade a fins formal: a representação do

188
Neste contexto, Guyer sugere mesmo que «precisamente o facto de que tais
características dos objectos não são elementos puros a priori do seu fenómeno e assim
não susceptíveis ao esquematismo dos conceitos a priori do entendimento faz com
que seja mais provável que eles possam servir para a síntese sem conceitos sentida
que funda a resposta estética» (Guyer, 1997: 205).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 179


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

objecto pode satisfazer um fim meramente formal, a saber, o do


conhecimento em geral – por ocasião da representação que aquele que
ajuíza faz do objecto, as suas faculdades de conhecimento podem ser
dispostas para o conhecimento em geral. Mas a ligação entre a beleza de
uma coisa e a sua aptidão à representação de uma tal conformidade a fins
não carrega consigo a dependência dessa aptidão relativamente a
quaisquer propriedades da sua organização espácio-temporal ou ao facto
de essa coisa ser de um certo tipo. 189 Não há uma relação de causalidade
entre a forma do objecto, enquanto sua organização espácio-temporal, e
o movimento recíproco livre e harmónico das faculdades de
conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele
faz desse objecto. Não é especialmente por causa do desenho ou da
composição do objecto que podemos representá-lo como formalmente
conforme a fins. Não menos do que a forma – a figura ou o jogo, o
desenho ou a composição do objecto, que, numa parte significativa da
Crítica da Faculdade do Juízo, Kant coloca como fundamento do juízo
de gosto – também a matéria da sensação – que Kant parece excluir do
fundamento do referido juízo – pode contribuir para que, por ocasião da
representação do objecto, as faculdades da imaginação e do
entendimento daquele que ajuíza se disponham conformemente a fins
para o conhecimento em geral. O fundamento de determinação do juízo
de gosto é o movimento recíproco formalmente conforme a fins das
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da
representação que ele faz do objecto; esse movimento pode ser motivado
por vários elementos; o juízo de gosto não deixa de ser formal, isto é,
um juízo fundado num comprazimento assente no movimento conforme
a fins das faculdades de conhecimento entre si na medida em que esse

189
Como afirma Guyer, «[a]tribuir finalidade formal a um objecto é reivindicar que
ele é adequado para ocasionar este estado [de jogo livre], mas não é reivindicar que
ele o faz em virtude de quaisquer propriedades específicas» (Guyer, 1997: 195).
Assim, «[o] conceito de mera forma da finalidade (…) não é idêntico a qualquer noção
particular de forma estética, e ele mesmo não implica uma restrição do gosto aos tipos
de propriedades que Kant dá como exemplos de forma estética» (Guyer, 1997: 195).

180 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

movimento é alcançado livremente por ocasião da representação que


aquele que ajuíza faz do objecto.
A tese de acordo com a qual são vários – e não apenas a forma,
enquanto figura ou jogo, desenho ou composição – os elementos que
contribuem para que as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se
disponham livre e harmonicamente entre si por ocasião da representação
que ele faz do objecto, tal tese é reforçada, de resto, pela introdução da
noção de ideia estética no texto de Kant – mais precisamente: ela é
confirmada pela denominação da beleza como expressão de ideias
estéticas. Se a beleza é expressão de ideias estéticas, então é evidente que
também as ideias estéticas, e a expressão de tais ideias, podem contribuir
para a beleza de um objecto. A sua contribuição é, aliás, necessária, pois
não apenas a beleza da arte, como também a beleza da natureza, é
expressão de ideias estéticas (cf. Kant, 1998: 226). São vários, por
conseguinte, os elementos em causa para que uma coisa seja declarada
bela. Além da forma do objecto e da matéria da sensação, também as ideias
estéticas, suscitadas na sua representação, assim como a expressão dessas
ideias, contribuem para que, por ocasião da referida representação, as
faculdades da imaginação e do entendimento daquele que ajuíza se
disponham entre si conformemente a fins para o conhecimento em geral.
Centremo-nos unicamente no âmbito da arte. Mantenhamos entre
parêntesis a afirmação, do §48, de acordo com a qual no juízo através do
qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um
conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte
segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). Aquele que ajuíza um objecto
artístico através do gosto considera o movimento harmónico das suas
faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que faz
desse objecto. Um tal movimento pode ser suscitado por uma
multiplicidade de elementos. 190 Nenhum deles, nem mesmo um conceito,
impede que o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza

190
Lembremos, uma vez mais, que as ideias estéticas são representações associadas a
conceitos dados.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 181


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

seja um exercício livre. Independentemente de as ideias estéticas serem


representações associadas a conceitos dados, devemos recordar que, no
fornecimento de tais ideias, a faculdade da imaginação daquele que ajuíza
exerce-se livremente. A beleza de uma obra de arte depende, então, da
participação de vários elementos como causa de um sentimento de prazer
que, no entanto, ou, melhor, por isso mesmo, não deixa de ser um
sentimento de prazer num movimento simultaneamente livre e harmónico
das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que
aquele que ajuíza faz do objecto em questão.191 Assim, tal como
assinalámos no início desta secção, a tese de acordo com a qual a beleza
pode ser denominada expressão de ideias estéticas tem como
consequência a colocação em causa da tese, que aparentemente se lhe
opõe, segundo a qual há um único elemento responsável pelo movimento
livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da
representação que aquele que ajuíza faz de um objecto artístico – a forma.

3.6. Forma e expressão


As duas teses são, no entanto, conciliáveis. Por ocasião da explicitação
que fizemos da noção de ideia estética, dissemos que uma ideia estética
era fornecida por atributos estéticos. De acordo com Allison, os atributos
estéticos «constituem o que podemos chamar a “matéria” da ideia estética,
mas igualmente essencial a uma ideia tal é a sua “forma”» (Allison: 2001:
283). Neste contexto, a forma da ideia estética é a organização dos
atributos estéticos de maneira a constituírem não uma multiplicidade
caótica de imagens, mas, precisamente, uma ideia estética. Ora, é por

191
É a atribuição de uma tal importância a diferentes elementos, de resto, aquilo que
serve de base à censura que Guyer faz das «teorias reducionistas da bela arte, mais
obviamente [daquelas] que colocariam a essência da arte apenas na forma
perceptiva, mas também [daquelas] que restringiriam a essência da arte a qualquer
outro factor singular» (Guyer, 1997: 353). No entender de Guyer, «a concepção de
bela arte de Kant deve servir de inspiração àqueles que encontrariam o poder e o
valor da arte precisamente na complexidade da resposta que ela pode provocar»
(Guyer, 1997: 353).

182 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

intermédio dessa forma que, segundo Allison, as ideias estéticas se tornam


universalmente comunicáveis (cf. Allison, 2001: 284 e 288). A forma é,
então, condição necessária da expressão bela de ideias estéticas (cf.
Allison, 2001: 284 e 288). O mesmo é dizer que ela é condição necessária
da beleza. Assim, Allison refere um sentido «largo, não restritivo» de
forma, implicado pela concepção kantiana da harmonia livre das
faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que
aquele que ajuíza faz do objecto, pois «só uma tal ordem ou um tal arranjo
do dado sensível (qua apreendido pela imaginação) poderia ser adequado
à exibição de um conceito (embora nenhum conceito em particular)»
(Allison, 2001: 288). Interpretado deste modo, o formalismo é compatível
e mesmo indispensável à denominação da beleza como expressão de ideias
estéticas.192 De resto, o sentido lato de formalismo é, de alguma maneira,
embora não de uma maneira explícita, proposto por Guyer. Veja-se, a
propósito, a afirmação segundo a qual
[n]a verdadeira teoria de Kant, a comprazedora liberdade da imaginação
na sua resposta à arte, que é o que faz estética essa resposta, não requer
a supressão de quaisquer conceitos, mas emerge precisamente da
complexidade da interacção entre a forma de uma obra de arte e o
conteúdo e espírito a que dá expressão (Guyer, 1997: 353).193
De acordo com esta perspectiva, aquilo que num objecto artístico dá
expressão a um conteúdo é a forma desse objecto – forma que, neste caso,

192
Consequentemente, ele coloca em causa a posição de D. W. Gotshalk, de acordo
com a qual Kant tem duas teorias: uma, formalista, acerca da beleza da natureza; outra,
expressionista, acerca da beleza da arte. Recordemos as palavras de Gotshalk:
«enquanto a forma é absolutamente essencial para a Arte Bela, ela não é suficiente e
é de facto a necessidade menor no que concerne a satisfazer valor estético na arte»
(Gotshalk, 1967: 259). Deleuze prefere referir uma «estética formal do gosto», isto é,
a estética «da linha e da composição», e uma «meta-estética material», a «meta-
estética das matérias, das cores e dos sons», concluindo que «o classicismo acabado e
o romantismo nascente encontram um equilíbrio completo» precisamente na Crítica
da Faculdade do Juízo (Deleuze, 2000: 64).
193
Obviamente, nesta passagem, de Guyer, “espírito” não corresponde ao Geist por
nós explicitado na subsecção “Expressão de ideias estéticas”.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 183


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

deverá ser interpretada não no sentido estreito de figura ou jogo, de


desenho ou composição, mas num sentido alargado.
Precisamente no contexto de uma interpretação alargada da noção de
forma, importa destacar algumas passagens da Crítica da Faculdade do
Juízo nas quais transparece uma grande proximidade entre essa noção e a
noção de expressão. No §47, por exemplo, Kant afirma que «[o] génio
somente pode fornecer uma matéria rica para produtos da arte bela ([d]as
Genie kann nur reichen Stoff zu Produkten der schönen Kunst hergeben)»
e que «a elaboração da mesma e a forma requerem um talento moldado
pela escola, para fazer dele uso que possa ser justificado perante a
faculdade do juízo (die Verarbeitung desselben und die Form erfordert ein
durch die Schule gebildetes Talent, um einen Gebrauch davon zu machen,
der vor der Urteilskraft bestehen kann)» (Kant, 1998: 215).194 A forma a
que Kant faz referência é, no contexto da bela arte, «a forma da
apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente
(die Form der Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein
mitgeteilt wird)» (Kant, 1998: 217). Vemo-lo no §48. Entretanto, no §49,
Kant descreve o génio – já o dissemos – como consistindo
na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e nenhuma diligência
pode aprender, de encontrar ideias para um conceito dado e por outro
lado de encontrar para elas a expressão pela qual a disposição subjectiva
do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento de um conceito,
pode ser comunicada a outros (in dem glücklichen Verhältnisse, welches
keine Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem
gegebenen Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den
Ausdruck zu treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive
Gemütstimmung, als Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt
werden kann) (Kant, 1998: 223).
Se colocarmos lado-a-lado as passagens que acabámos de transcrever dos
§47 e §49, podemos associar as noções de forma e de expressão.
Apresentadas (expressadas/enformadas) de uma certa maneira, as ideias

194
Não nos preocupemos, agora, com as consequências a retirar do facto de esse
talento ser o gosto. Abordaremos esse assunto na última secção deste capítulo.

184 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

estéticas – que constituem uma matéria rica – apresentam um conceito de


uma maneira que promove um movimento harmónico das faculdades de
conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto. Aquilo que
possibilita a referida apresentação do conceito é a maneira como a matéria
rica é expressada/enformada. Allison considera haver mesmo uma
«reciprocidade entre forma e expressão» no texto de Kant (Allison, 2001:
289). Ele observa essa reciprocidade no §42 e, muito claramente, no §53,
nas referências feitas por Kant à expressão de ideias estéticas no contexto
da arte do som (música). Segundo Kant, o atractivo da arte do som repousa
no facto, entre outros, de que
assim como a modulação é por assim dizer uma linguagem universal das
sensações compreensível a cada homem, a arte do som exerce por si só
esta linguagem no seu inteiro ênfase, a saber como linguagem dos
afectos, e assim comunica universalmente segundo a lei da associação as
ideias estéticas naturalmente ligadas a elas; mas que, pelo facto de
aquelas ideias estéticas não serem nenhum conceito e pensamento
determinado, a forma da composição destas sensações (harmonia e
melodia) serve somente, como forma de uma linguagem, para, mediante
uma disposição proporcionada das mesmas (a qual pode ser submetida
matematicamente a certas regras, porque nos sons ela assenta sobre a
relação do número das vibrações de ar, ao mesmo tempo, na medida em
que os sons são ligados simultânea ou também sucessivamente),
expressar a ideia estética de um todo interconectado de uma inominável
profusão de pensamentos, em conformidade a um certo tema, que
constitui na peça o afecto dominante (so wie die Modulation gleichsam
eine allgemeine jedem Menschen verständliche Sprache der
Empfindugen ist, die Tonkunst diese für sich allein in ihrem ganzen
Nachdrucke, nämlich als Sprache der Affekten, ausübt und so nach dem
Gesetze der Assoziation die damit natürlicher Weise verbundenen
ästhetischen Ideen allgemein mittheilt; das saber, weil jene ästhetischen
Ideen keine Begriffe und bestimmte Gedanken sind, die Form der
Zusammensetzung dieser Empfindungen (Harmonie und Melodie) nur
statt der Form einer Sprache dazu dient, vermittelst einer
proportionierten Stimmung derselben (welche, weil sie bei Tönen auf
dem Verhältnis der Zahl der Luftbebungen in derselben Zeit, sofern die
Töne zugleich oder auch nach einander verbunden werden, beruht,
mathematisch unter gewisse Regeln gebracht weden kann) die
ästhetische Idee eines zusammenhängen- den Ganzen einer

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 185


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

unnennbaren Gedankenfülle einem gewissen Thema gemäß, welches den


in dem Stücke herrschenden Affekt ausmacht, auszudrücken) (Kant,
1998: 235).
Nesta passagem, Kant indica claramente que, na música, aquilo que
expressa uma ideia estética é a forma como as sensações são compostas.
Assim, no entender de Allison, «muito dificilmente Kant poderia ter sido
tão claro no que concerne à correlação entre forma e expressão na música»
(Allison, 2001: 289). Ora, somente através desta correlação pode a forma
do objecto ter a importância que Kant lhe atribui na Crítica da Faculdade
do Juízo.
Em jeito de conclusão, interessa-nos sublinhar, então, serem vários
os elementos que contribuem para que a disposição recíproca das
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da
representação que ele faz do objecto, uma disposição formalmente
conforme a fins. Se for outro o caso, se preferirmos defender que só um
elemento contribui para essa disposição e que esse elemento é a forma,
então deveremos interpretar a noção de forma não no sentido de figura
ou jogo, de desenho ou composição, mas num sentido alargado. Não
obstante essa opção ser legítima, ela conduz-nos a uma afirmação
tautológica: o elemento que suscita, naquele que ajuíza, um movimento
formalmente conforme a fins das suas faculdades de conhecimento entre
si por ocasião da representação que ele faz do objecto é o elemento que
suscita, naquele que ajuíza, um movimento formalmente conforme a fins
das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da
representação que ele faz do objecto. A esse elemento poderemos
chamar forma ou expressão. Em qualquer dos casos fica salvaguardada
a correcção da denominação da beleza da arte como expressão de ideias
estéticas.195 A relevância da compreensão dessa denominação para

195
Kant igualmente considera possível que assim se denomine a beleza da natureza,
como tivemos oportunidade de assinalar. No entanto, para responder à questão de
saber se e como poderá falar-se de bela arte, importa-nos mais imediatamente saber
que a beleza da arte pode denominar-se, segundo o nosso autor, expressão de ideias
estéticas.

186 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

responder à questão de saber se e sob que condições será legítimo falar-


se de bela arte revelar-se-á plenamente no capítulo seguinte.

3.7. Importância da forma no sentimento do sublime


Antes de avançarmos, porém, será pertinente ressalvarmos que a
problematização da importância da forma na beleza de um objecto, ou
mesmo a reinterpretação que apresentámos da noção de forma, não coloca
em causa a importância dada por Kant à forma – ou à ausência de forma –
na ocorrência do sentimento do sublime (das Erhabene), igualmente não
colocando em causa, por conseguinte, a necessidade da “Analítica do
sublime”, isto é, a necessidade de pensar um sentimento de prazer
universalmente válido numa forma que, sob um certo ponto de vista, não
é conforme a fins, aparecendo mesmo como contrária a fins. 196 Também
no concernente ao sentimento do sublime, aquilo que está em causa é a
forma da conformidade a fins, isto é, a relação das faculdades de
conhecimento entre si por ocasião da representação que o sujeito faz do
objecto.197 O eixo a partir do qual cada uma das Analíticas (a do belo e a
do sublime) se desenha é um eixo comum, a saber, a observação de uma
conformidade a fins sem fim por ocasião da representação do objecto em
causa no juízo. Acontece que, enquanto no belo imediatamente se
representa uma conformidade a fins sem fim, no caso do sentimento do
sublime, a representação de uma tal conformidade é antecedida pela
representação de uma inconformidade. É esta última peculiaridade que o
torna específico.
Afirma Kant, ainda numa fase inicial da “Observação geral sobre a
exposição dos juízos reflexivos estéticos”: «Pode-se descrever o sublime
da seguinte maneira: ele é um objecto (da natureza), cuja representação

196
Tanto no caso da confrontação com uma medida maximamente grande, como no
caso da confrontação com um poder e uma força irresistíveis, parece não haver (e de
facto, sob um certo ponto de vista, não há) uma conformidade a fins das coisas da
natureza.
197
No caso do sublime, as faculdades em movimento são a faculdade da imaginação
e a razão.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 187


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

determina o ânimo a imaginar o carácter inalcançável da natureza como


apresentação de ideias (es ist ein Gegenstand (der Natur), dessen
Vorstellung das Gemüt bestimmt, sich die Unerreichbarkeit der Natur als
Darstellung von Ideen zu denken)» (Kant, 1998: 166). Essa determinação
sobre o ânimo é exercida na medida em que o «julgamento estético [do
objecto] aplica até aos seus limites a faculdade da imaginação, seja à
ampliação (matematicamente) ou ao seu poder sobre o ânimo
(dinamicamente) (dessen ästhetische Beurteilung die Einbildungskraft bis
zu ihrer Grenze, es sei der Erweiterung (mathematisch), oder ihrer Macht
über das Gemüt (dynamisch), anspannt)» (Kant, 1998: 167). Quando um
objecto é demasiado grande para que o compreendamos esteticamente, ou
quando ele é demasiado forte para que possamos resistir-lhe enquanto
entes da natureza, quando, portanto, somente magnitude ou poder se
deixam ver e, por conseguinte, a faculdade da imaginação é matemática
ou dinamicamente ampliada, nesses casos aquilo que obriga essa
faculdade a manter o seu esforço em direcção à superação dos seus limites
é a razão, ao impor-lhe que represente sensivelmente as suas ideias,
racionais.198 Pois bem, embora um tal esforço seja vão, na medida em que
entre a faculdade da imaginação e a razão há uma inadequação objectiva,
é, no entanto, exactamente esse esforço – enquanto, ao ser sentido,
apresenta sensivelmente a referida inadequação – que activa e chama ao
ânimo as ideias da razão. Apesar de não haver uma sensificação das ideias
da razão, o esforço do ânimo de tornar-lhes adequada a representação dos
sentidos, esse esforço remete-nos para um plano supra-sensível, torna-nos
conscientes da nossa ligação a um domínio prático, a um domínio

198
Kant afirma que «se ampliamos metemática ou dinamicamente a nossa faculdade
empírica de representação para a intuição da natureza, então inevitavelmente se
juntará a ela a razão como faculdade da independência da totalidade absoluta e produz
o esforço do ânimo, se bem que vão, de lhes tornar adequada a representação dos
sentidos (wenn wir unser empirisches Vorstellungsvermögen (mathematisch, oder
dynamisch) für die Anschauung der Natur erweitern: so tritt unausbleiblich die
Vernunft hinzu, als Vermögen der Independenz der absoluten Totalität, und bringt
die, obzwar vergebliche, Bestrebung der Gemüts hervor, die Vorstellung der Sinne
dieser angemessen zu machen)» (Kant, 1998: 166).

188 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

incondicionado. Por esse motivo, o objecto é ajuizado como


subjectivamente conforme a fins. 199 Perante objectos que desafiam a
faculdade da imaginação a confrontar os seus limites, o sujeito, consciente
do incondicionado, é obrigado «a pensar subjectivamente a própria
natureza, na sua totalidade, como apresentação de algo supra-sensível (die
Natur selbst in ihrer Totalität, als Darstellung von etwas Übersinnlichem,
zu denken)», isto é, como apresentação da ideia do supra-sensível, e
lembrado que apenas tem «a ver com uma natureza enquanto fenómeno, e
que esta mesma ainda tem que ser considerada como simples apresentação
de uma natureza em si (que a razão tem na ideia) (mit einer Natur als
Erscheinung zu tun haben, und diese selbst noch als bloße Darstellung
einer Natur an sich (welche die Vernunft in der Idee hat) müsse angesehen
werden)» (Kant, 1998: 166). Por isso o sublime parecer ser considerado
«como apresentação de um conceito [indeterminado] da razão (die
Darstellung eines dergleichen Vernunftbegriffs)» (Kant, 1998: 138) e por
isso poder falar-se de um «esforço da faculdade da imaginação em tratar
a natureza como um esquema para as ideias (Anspannung der
Einbildungskraft, die Natur als ein Schema für die letztern zu behandeln)»
(Kant, 1998: 162).
Há, então, também no caso do sublime, uma conformidade a fins das
coisas da natureza: o objecto é ajuizado como conforme a fins enquanto a
faculdade do juízo o considera «apto à exposição de uma sublimidade que
pode ser encontrada no ânimo (zur Darstellung einer Erhabenheit tauglich

199
Na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, Kant
refere precisamente uma «conformidade a fins subjectiva do nosso ânimo no uso da
faculdade da imaginação para o seu destino supra-sensível (subjektiven
Zweckmäßigkeit unseres Gemüt im Gebrauche der Einbildungskraft für dessen
übersinnliche Bestimmung)» (Kant, 1998: 166) e um «sentimento de um destino [do
ânimo], que ultrapassa totalmente o domínio da faculdade da imaginação (quanto ao
sentimento moral), com respeito ao qual a representação do objecto é ajuizada
subjectivamente conforme a fins (Gefühle einer Bestimmung desselben, welche das
Gebiet der ersteren gänzlich überschreitet (dem moralischen Gefühl), in Ansehung
dessen die Vorstellung des Gegenstandes als subjektiv-zweckmäßig beurteilt wird)»
(Kant, 1998: 167).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 189


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

sei, die im Gemüte angetroffen werden kann)» (Kant, 1998: 139). O


sensível é representado como conforme a fins enquanto é julgado como
susceptível a um uso supra-sensível.200 Na medida em que provoca um
jogo consonante201, embora mediante contraste, através de um conflito, de
violência, entre a imaginação e a razão, ou seja, na medida em que provoca
um acordo entre a faculdade da apresentação e a faculdade dos conceitos
da razão, sem determinar estes, mas promovendo a faculdade a que
concernem, o objecto é representado como subjectivamente conforme a
fins, como conforme a fins sem fim, assim como o é o juízo que lhe diz
respeito e a disposição das faculdades anímicas, a relação entre as
faculdades de conhecimento.202 Ora, precisamente por isso é que o objecto
apraz – por «a desconformidade a fins da faculdade da imaginação a ideias
da razão e ao seu suscitar (die Unzweckmäßigkeit des Vermögens der
Einbildungskraft doch für Vernunftideen und deren Erweckung)» ser

200
Kant diz mesmo que «[o] sublime consiste simplesmente na relação em que o
sensível, na representação da natureza, é ajuizado como apto a um possível uso supra-
sensível do mesmo ([d]as Erhabene besteht bloß in der Relation, worin das Sinnliche
in der Vorstellung der Natur für einen möglichen übersinnlichen Gebrauch desselben
als tauglich beurteilt wird)» (Kant, 1998: 165).
201
É certo que, enquanto comoção, o sentimento do sublime envolve «seriedade na
ocupação da faculdade da imaginação (Ernst in der Beschäftigung der
Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 138). Kant nota-o logo no §23. Não podemos
esquecer, porém, que é igualmente o próprio Kant quem, mais à frente, no §27, e
referindo-se ao juízo estético acerca do sublime, fala de um «jogo subjectivo das
faculdades do ânimo (imaginação e razão) (subjektive Spiel der Gemütskräfte
(Einbildungskraft und Vernunft))» e diz que esse jogo é representado «como
harmónico (als harmonisch)» (Kant, 1998: 154).
202
Acerca da disposição das faculdades anímicas, veja-se o §27, no qual é dito que
«faculdade da imaginação e razão produzem aqui, através do seu conflito, a
conformidade a fins subjectiva das faculdades do ânimo (bringen Einbildungskraft
und Vernunft hier durch ihren Widerstreit subjektive Zweckmäßigkeit der
Gemütskräfte hervor)» (Kant, 1998: 154-155); a propósito do juízo, note-se, no
mesmo parágrafo, que «o próprio juízo estético torna-se subjectivamente conforme a
fins para a razão como fonte das ideias, isto é de uma tal compreensão intelectual,
para a qual toda a compreensão estética é pequena (wird das ästhetische Urteil selbst
subjektiv-zweckmäßig für die Vernunft, als Quell der Ideen, d. i. einer solchen
intellektuellen Zusammenfassung, für die alle ästhetische klein ist)» (Kant, 1998:
156).

190 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

«efectivamente representada como conforme a fins (als zweckmäßig


vorgestellt)» (Kant, 1998: 156).
Kant é claro: «o sublime apraz (das Erhabene gefällt)» (Kant, 1998:
141). Mas ele precisa de avançar uma explicação, pois «como pode ser
caracterizado com uma expressão de aprovação o que em si é apreendido
como contrário a fins? (wie kann das mit einem Ausdrucke des Beifalls
bezeichnet werden, was an sich als zweckwidrig aufgefasst wird?)» (Kant,
1998: 139), «[q]uem quereria denominar sublimes também massas
informes de cordilheiras amontoadas umas sobre outras em desordem
selvagem, com as suas pirâmides de gelo, ou o sombrio mar furioso, etc.?
([w]er wollte auch ungestalte Gebirgsmassen, in wilder Unordnung über
einander getürmt, mit ihren Eispyramiden, oder die düstere tobende See
usw. erhaben nennen?)» (Kant, 1998: 152). Por outras palavras: como
chamar sublime a algo cuja «contemplação é horrível (Anblick ist
gräßlich)» (cf. Kant, 1998: 139), a algo cujo «aspecto (Anblicke)» é
«aterrorizante (abschrecken)» (cf. Kant, 1998: 194)? O que se passa é que
o conceito do sublime da natureza (…) em geral não denota nada que
seja conforme a fins na própria natureza, mas somente no uso possível
das suas intuições, para suscitar em nós próprios o sentimento de
conformidade a fins totalmente independente da natureza (der Begriff
des Erhabenen (…) überhaupt nichts Zweckmäßiges in der Natur selbst,
sondern nur in dem möglichen Gebrauche ihrer Anschauungen, um eine
von der Natuz ganz unabhängige Zweckmäßigkeit in uns selbst fühlbar
zu machen, anzeige) (Kant, 1998: 140).
Esta tese, proposta no §23, é indispensável para a compreensão de todo
o processo que leva ao sentimento do sublime. O que está em causa é o
uso que se faz das representações dos objectos da natureza. É isso que
está em causa quer ao nível do sublime matemático, onde absolutamente
grande é «o uso que a faculdade do juízo naturalmente faz de certos
objectos para o fim daquele (sentimento), com respeito ao qual todavia
todo e qualquer outro uso é pequeno (der Gebrauch, den die Urteilskraft
von gewissen Gegenständen zum Behuf des letzteren (Gefühls)
natürlicher Weise macht, gegen ihn aber jeder andere Gebrauch klein
ist)» (Kant, 1998: 145), quer ao nível do sublime dinâmico, onde a força

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 191


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

maior é não a das coisas da natureza, por mais poderosas que sejam, mas
«a nossa força (que não é natureza) (unsere Kraft (die nicht Natur ist))»
(Kant, 1998: 159). Trata-se da maneira de pensar adequada: o
fundamento para o sublime tem de ser procurado «simplesmente em nós
e na maneira de pensar que introduz sublimidade (bloß in uns und der
Denkungsart, die Erhabenheit hineinbringt)» (Kant, 1998: 140). Kant
chega mesmo a dizer, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos
reflexivos estéticos”, que «o sublime sempre tem que se referir à
maneira de pensar, isto é a máximas, para conseguir o domínio do
intelectual e das ideias da razão sobre a sensibilidade (muss das
Erhabene jederzeit Beziehung auf die Denkungsart haben, d. i. auf
Maximen, dem Intellektuellen und den Vernunftideen über die
Sinnlichkeit Obermacht zu verschaffen)» (Kant, 1998: 173).
Assim, o prazer do sentimento do sublime «só é possível mediante um
desprazer (nur vermittelst einer Unlust möglich ist)» (Kant, 1998: 156).
Embora alcançado mediante um prévio desprazer 203, o sentimento de que
o nosso ânimo pode ultrapassar a sensibilidade, o sentimento de que no
nosso ânimo há algo de superior à natureza, esse sentimento da nossa
superioridade em relação à natureza 204, é, então, um sentimento de prazer.
Trata-se de um prazer indirecto, de um prazer que, para surgir, implica que
no julgamento do objecto haja um movimento do ânimo. 205 Esse

203
Há um desprazer na medida em que há um apercebimento de uma inadequação da
imaginação à exigência da razão, dado que a primeira é incapaz de cumprir o que a
última lhe exige.
204
Há um sentimento de superioridade em relação à natureza na medida em que há
um despertar da nossa determinação supra-sensível. É, aliás, precisamente nessa
medida que, quer o objecto, quer o juízo e a relação entre as faculdades, são
considerados conformes a fins.
205
Em jeito de comentário lateral, devemos lembrar que, em A Philosophical Enquiry
into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful, Burke associa o sublime
não a um prazer positivo, um prazer que simplesmente é, sem qualquer relação, mas
a um «prazer relativo», um prazer que só existe por relação, particularmente por
relação com as ideias de dor ou perigo (Burke, 2008: 34). Ora, a noção burkeana de
deleite (Delight) expressa precisamente «a sensação que acompanha a remoção de dor
ou perigo» (Burke, 2008: 34). Entretanto, Burke acabará por afirmar que o deleite é

192 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

movimento é descrito, no §23, como «momentânea inibição das forças


vitais e (…) efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das
mesmas (augenblicklichen Hemmung der Lebenskräfte und (…) darauf
sogleich folgenden desto stärkern Ergießung derselben)» (Kant, 1998:
138), e comparado, mais à frente, no §27, «a um abalo, isto é a um repelir
rapidamente variável e a um atrair do mesmo objecto (mit einer
Erschütterung, d. i. mit einem schnellwechselnden Abstoßen und
Anziehen eben desselben Objekts)» (Kant, 1998: 154). É esta alternância
anímica entre repulsão e atracção pelo objecto, de resto, aquilo que leva
Kant a ligar o prazer do sentimento do sublime à comoção, isto é, a uma
«sensação em que o agrado é produzido somente através da inibição
momentânea e subsequente efusão mais forte da força vital (Empfindung,
wo Annehmlichkeit nur vermittelst augenblicklicher Hemmung und
darauf erfolgender stärkerer Ergießung der Lebenskraft gewirkt wird)»
(Kant, 1998: 116).
Aquilo que mais importa reter da descrição que acabámos de fazer do
sentimento do sublime é o facto de a representação de uma conformidade
a fins formal somente ser possível mediante a representação de uma
desconformidade a fins da forma do objecto. Ora, se esta representação é,
no contexto do sentimento do sublime, condição necessária daquela, então
a forma – ou a ausência dela – é um elemento indispensável para a

«não um prazer, mas uma espécie de horror delicioso, uma espécie de tranquilidade
tingida com terror» (Burke, 2008: 123). Embora a afecção seja «indubitavelmente
positiva», a causa é «um tipo de Privação» (Burke, 2008: 33): é a dor ou perigo de
nos vermos privados de algo de extrema importância (a luz, o som, as coisas, os
outros, a saúde, a vida, etc). Note-se que, em seu entender, «o terror é em qualquer
caso, de modo mais aberto ou latente, o princípio regulador do sublime» (Burke, 2008:
54), isto é, «o tronco comum de tudo o que é sublime» (Burke, 2008: 59). Sem prejuízo
do que é afirmado neste comentário lateral, não cedamos, no entanto, a qualquer
eventual tentação de aproximar demasiado as posições de Burke e de Kant: no
entender deste, a permanência na «exposição meramente empírica do sublime»
elaborada por Burke, que faz assentar o comprazimento no sublime inteiramente no
facto de que ele deleita mediante comoção, impede a pretensão de que qualquer outro
«dê seu assentimento ao juízo estético que nós proferimos» e o conhecimento de
«como se deve julgar» (Kant, 1998: 177-178).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 193


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

ocorrência desse sentimento. Podemos afirmar, sendo assim, que nem a


problematização da importância da forma na beleza de um objecto, nem a
reinterpretação que apresentámos da noção de forma, nenhuma dessas
opções retira à forma – ou à sua ausência – a importância que Kant lhe
atribui para a ocorrência do sentimento do sublime. Devemos concluir, por
conseguinte, que nenhuma delas coloca em causa a necessidade da
“Analítica do sublime” na Crítica da Faculdade do Juízo. Feita esta
incursão, em jeito de salvaguarda, pelo segundo livro da “Analítica da
faculdade de juízo estética”, consideramo-nos em condições de regressar
à questão que motiva a nossa investigação: saber se e como será legítimo
falar-se de bela arte.

4. BELEZA ADERENTE COMO BELEZA

4.1. Beleza da arte como beleza aderente


Aquilo que move a nossa investigação é a questão de saber se e sob que
condições poderá falar-se de bela arte no âmbito da Crítica da Faculdade
do Juízo. Poderá um objecto artístico ser declarado belo? Poderá um
objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto? Poderá o juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte ser um juízo de gosto? Eis
algumas das ramificações da questão à qual temos vindo a tentar responder
ao longo deste estudo.
Para elaborarmos uma resposta devidamente sustentada a essas
questões, temos vindo a colocar entre parêntesis o excerto, do §48,
segundo o qual
[s]e (…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser
declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um
conceito daquilo que a coisa deva ser, porque a arte sempre pressupõe
um fim na causa (e na sua causalidade); e visto que a consonância do
múltiplo numa coisa com vista a uma determinação interna da mesma
enquanto fim é a perfeição da coisa, assim no julgamento da beleza da
arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa
([w]enn (…) der Gegenstand für ein Produkt der Kunst gegeben ist und

194 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

als solches für schön erklärt werden soll: so muss, weil Kunst immer
einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraussetzt, zuerst
ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding sein soll;
und da die Zusammenstimmung des Mannigfaltigen in einem Dinge zu
einer innern Bestimmung desselben als Zweck die Volkommenheit des
Dinges ist, so wird in der Beurteilung der Kunstschönheit zugleich die
Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht werden müssen) (Kant,
1998: 216).
Temo-lo feito com o objectivo, específico, de tornar clara a possibilidade
de a faculdade da imaginação quer do criador de uma obra de arte, quer
daquele que a ajuíza como bela, se exercer livremente mesmo que ele
tenha de reconhecer o conceito dado a partir do qual se inicia esse
exercício. Se retomarmos o excerto transcrito, ver-nos-emos obrigados a
recusar a possibilidade de uma obra de arte ser ajuizada através de um
juízo de gosto, de um objecto artístico ser declarado belo, de falar-se de
bela arte.206 No entanto, na secção “Belas obras de arte”, tivemos
oportunidade de mencionar vários factos que favorecem a aceitação dessa
possibilidade. Devemos continuar a procurar saber sob que condições
poderá ela ser aceite.
Imediatamente antes do excerto supracitado, Kant afirma o seguinte:
«Um beleza da natureza é uma coisa bela; a beleza da arte é uma
representação bela de uma coisa (Eine Naturschönheit ist ein schönes
Ding; die Kunstschönheit ist eine schöne Vorstellung von einem Dinge)»
(Kant, 1998: 216). Aceitemos ambas as passagens do §48 e adoptemos a
identificação da beleza da arte como representação bela de uma coisa
como novo ponto de partida para pensar o juízo através do qual se declara
bela uma obra de arte. Suspendamos, então, a total independência do juízo
de gosto em relação à perfeição, imposta pelo título do §15 (cf. Kant, 1998:
117). No juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser

206
Se aquele que ajuíza tem de considerar a conformidade a fins objectiva interna da
coisa, então a sua imaginação não se exerce livremente. O exercício livre dessa
faculdade é, contudo, condição indispensável ao proferimento de um juízo de gosto.
Um juízo no qual se considera necessariamente a perfeição não é um juízo totalmente
independente do conceito de perfeição; logo, ele não é um juízo de gosto.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 195


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da


obra de arte segundo esse conceito. Devemos procurar saber que conceito
poderá ser esse.
Suponhamos que uma dada obra de arte deve representar belamente a
ideia racional de intenção cosmopolita. Se para o cumprimento de tal fim
se recorre à expressão de ideias estéticas, como tem de ser feito para que
a representação seja bela, então aquele que ajuíza não pode observar uma
conformidade a fins objectiva – por conseguinte, uma perfeição. Não pode
fazê-lo porque as representações fornecidas pela faculdade da imaginação
em seu jogo livre, a saber, as ideias estéticas, são representações
inexponíveis da mesma faculdade. Sendo elas representações
inexponíveis da faculdade da imaginação, nenhum conceito pode ser-lhes
inteiramente adequado. Por conseguinte, no concernente à relação entre a
ideia racional de intenção cosmopolita e a representação bela dessa mesma
ideia, não pode ser observada uma conformidade a fins objectiva
interna.207 O conceito daquilo que o objecto deva ser, enquanto fim que a
bela obra de arte tem de satisfazer, não pode ser identificado com aquilo
que pretende representar-se belamente.
Temos de colocar uma segunda hipótese quanto à finalidade a ser
considerada no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte. Os
exemplos que Kant fornece a propósito das possibilidades abertas pela
bela arte, no §48, indiciam que por representação (Vorstellung) deverá
entender-se descrição (Beschreibung). Desde logo, a explicação da
preeminência da bela arte assenta «no facto que ela descreve belamente as
coisas que na natureza seriam feias ou desaprazíveis (dass sie Dinge, die
in der Natur häßlich oder missfällig sein würden, schön beschreibt)»
(Kant, 1998: 217). Assim, mesmo essas coisas «podem ser descritas muito
belamente, até mesmo ser representadas em pinturas (können sehr schön
beschrieben, ja sogar im Gemälde vorgestellt werden)» (Kant, 1998: 217).

207
De resto, quando se trata de conceitos da razão, há uma segunda explicação para a
impossibilidade de observar-se uma perfeição. Já a tínhamos referido: nenhuma
intuição pode ser inteiramente adequada a um conceito da razão, pois, como vimos,
um tal conceito é indemonstrável.

196 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

No entanto, o sentido de descrição não esgota todos os sentidos que ao


longo da Crítica da Faculdade do Juízo podem ser dados à noção de
representação.
Um dos comentadores que chamam a atenção para o uso opaco e
ambivalente que Kant faz de representação, na terceira Crítica, é Eva
Schaper (cf. Schaper, 2003: 113 e 116). Segundo Schaper, não é sempre
no mesmo sentido que os objectos são representativos (cf. Schaper, 2003:
115). Assim, a comentadora salienta serem vários os casos nos quais «a
noção de representação não pode ter o sentido usual de “retrato” ou
“descrição”» (Schaper, 2003: 107) e, portanto, considera necessário
«divorciar “representação” de “descrição”» (Schaper, 2003: 110). No
entanto, Schaper não remete a mencionada chamada de atenção para o
§48. Por conseguinte, ela não aborda a questão de saber se pode falar-se
de bela arte.
Allison também salienta que Kant usa representação «em sentidos
muito diferentes, embora relacionados, sem parar para informar o leitor
acerca desse facto» (Allison, 2001: 292). O comentador propõe que a
noção de representação seja interpretada em três sentidos, consoante as
passagens em causa. O primeiro sentido por ele mencionado é
precisamente o sentido descritivo (cf. Allison, 2001: 294). Acabámos de
citar duas passagens, do §48, que autorizam uma interpretação de
representação nesse sentido (cf. Kant, 1998: 217). Além do sentido
descritivo, Allison propõe a interpretação de representação em mais dois
sentidos: no sentido exemplificativo ou como expressão de ideias estéticas
(cf. Allison, 2001: 294). Ainda no §48, Kant identifica a representação
bela de um objecto com «a forma de apresentação de um conceito, pela
qual este é comunicado universalmente (die Form der Darstellung eines
Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt wird)» (Kant, 1998:
217). Essa forma é, segundo Kant, «o veículo da comunicação e uma
maneira por assim dizer da exposição (das Vehikel der Mitteilung und eine
Manier gleichsam des Vortrages)» do conceito (Kant, 1998: 218). Se
recordarmos aquilo que, na parte final do §49, o nosso autor afirma acerca
do génio, a saber, que, através do espírito, ele encontra para ideias estéticas

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 197


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

«a expressão pela qual a disposição subjectiva do ânimo (…) enquanto


acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (den
Ausdruck, durch den die subjektive Gemütsstimmung, als Begleitung
eines Begriffs, anderen mitgeteilt werden kann)» (Kant, 1998: 223),
podemos concluir que representar belamente é expressar ideias estéticas
belamente.208
Entre os sentidos propostos por Allison para representação, aquele que
agora mais nos interessa é, no entanto, o sentido exemplificativo. Nesse
sentido, um objecto representar algo significa ser «um excelente exemplar
de um tipo», exemplificar «a perfeição peculiar desse tipo», ser «bom
para» (Allison, 2001: 293). Desde logo no §16, encontra-se uma
passagem na qual pode interpretar-se representar no sentido
exemplificativo: no chamado puro juízo de gosto, de acordo as palavras
de Kant, «[n]ão é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para o
qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva
representar ([e]s ist kein Begriff von irgend einem Zwecke, wozu das
Mannigfaltige dem gegebenen Objekte dienen und was díeses also
vorstellen solle, vorausgesetzt)» (Kant, 1998: 120-121). Representar um
conceito de fim pode significar, neste contexto, exemplificar esse
conceito. Ora, transportando o sentido exemplificativo de representação
para a passagem, do §48, segundo a qual no juízo através do qual se
declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito
daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse
conceito (cf. Kant, 1998: 216), Allison propõe que o conceito daquilo que
o objecto deva ser (Begriff, was der Gegenstand für ein Ding sein solle)
seja identificado com «o tipo de obra que [o objecto] deve ser visto como
sendo para o seu público» (Allison, 2001: 295). Assim, no contexto da
bela arte, «o que é exemplificado, e por conseguinte representado, é

208
De resto, esta conclusão contribui para alicerçar a tese, considerada na secção
“Forma”, segundo a qual há uma reciprocidade entre as noções de forma e de
expressão. A forma das ideias estéticas adequada à beleza é a expressão de ideias
estéticas adequada à beleza. Ambas são representações adequadas à beleza –
representações belas.

198 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

apenas a forma de arte ou género» (Allison, 2001: 296). Uma obra de arte
representa (exemplifica) necessariamente um tipo, uma forma, um género
de arte. No juízo através do qual ela é declarada bela, o conceito desse tipo
e a conformidade objectiva interna da obra a esse conceito têm de ser
considerados. No entender de Allison, «sem algum conhecimento desse
tipo, que em muitos casos pode ser praticamente minimal, não pode
começar a avaliar-se uma obra de arte, pois não se está consciente do que
o artista está a tentar fazer» (Allison, 2001: 295).209
Pensemos, então, numa forma de arte – a poesia, por exemplo. Como
arte que é, a poesia obedece a regras determinadas. No §43, Kant faz
referência a algumas dessas regras: «a correcção e a riqueza da
linguagem, igualmente a prosódia e a métrica (die Sprachrichtigkeit und
der Sprachreichtum, imgleichen die Prosodie und das Silbenmaß)»
(Kant, 1998: 208). Só cumprindo essas regras é que a obra de arte pode
ser uma representação poética de uma coisa. Assim, se o fim pressuposto
na causa da obra de arte for que ela seja uma bela representação poética
de uma coisa, então no juízo através do qual se declara bela essa obra de
arte tem de ser tida em conta a perfeição da mesma segundo o conceito
de poesia. Suponhamos, então, que o conceito daquilo que o objecto deva
ser corresponde à forma de arte. Mantendo entre parêntesis a afirmação
que intitula o §15, a primeira questão que se coloca é a de saber se quanto
a ser uma poesia pode ser observada uma conformidade a fins objectiva

209
Embora não lhe chamando sentido exemplificativo, Schaper propõe claramente um
tal sentido de representação. Sem deixar de referir que, em algumas passagens do
texto de Kant, representar pode ser identificado com descrever ou retratar, e,
portanto, que «[o] sentido estreito de “representação” como “descrever” ou “retratar”
tem algum tipo de aplicação» (Schaper, 2003: 114), a comentadora acrescenta que «o
significado central seria reservado para a exemplificação do que quer que seja que
uma coisa pudesse ser considerada capaz de ser, isto é, a sua perfeição» (Schaper,
2003: 117). Assim, representar pode significar «encarnar [um] fim de maneira a que
a sua possível perfeição, “o que o objecto deva ser”, brilhe através disso» (Schaper,
2003: 111). Neste contexto, Schaper fala de um «sentido alargado» de representação
(Schaper, 2003: 115). No sentido alargado, os objectos representarem algo significa
os objectos representarem «aquilo que eles podem ser vistos como sendo,
nomeadamente retratos, narrativas e por aí em diante» (Schaper, 2003: 115).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 199


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

interna por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz da obra
de arte. A resposta a essa questão não envolve dificuldade: se o objecto
cumprir as regras que um objecto tem de cumprir para ser uma poesia –
se nele não houver falhas quanto à correcção e à riqueza da linguagem,
se nele não houver erros respeitantes à prosódia e à métrica, se ele
satisfizer essas e todas as outras condições indispensáveis à poesia –
então ele é considerado perfeito. No concernente ao conceito daquilo que
o objecto deva ser enquanto forma de arte – ele ser uma representação
poética, por exemplo – pode ser tida em conta uma perfeição. Assim, no
juízo através do qual se declara bela uma representação poética de uma
coisa, têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva
ser e a perfeição da representação segundo esse conceito – têm de ser
tidos em conta, respectivamente, o conceito de poesia e a conformidade
objectiva da obra de arte a esse conceito. Além disso, para declarar bela
a obra de arte, poética, aquele que ajuíza terá de sentir um
comprazimento num movimento simultaneamente livre e harmónico das
suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação
que faz dessa mesma obra.
A segunda questão a colocar – ainda antes de regressarmos ao título do
§15 – prende-se com a possibilidade ou impossibilidade de aquele que
ajuíza observar uma conformidade a fins subjectiva mesmo quando tem
de observar uma conformidade a fins objectiva interna. Mais
concretamente, importa saber se a faculdade da imaginação daquele que
ajuíza pode exercer-se livremente mesmo tendo ele em conta,
necessariamente, um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição
da obra de arte segundo esse conceito. Decidir acerca desta questão
reveste-se de importância capital para a questão de saber se e como poderá
falar-se de bela arte porque só um juízo no qual o exercício da faculdade
da imaginação é livre pode ser um juízo de gosto. A liberdade da faculdade
da imaginação é, como temos vindo a repetir, uma condição necessária
para o proferimento de um juízo de gosto.
Acerca daquilo que se requer para que o exercício da faculdade da
imaginação seja um exercício livre, tecemos algumas considerações por

200 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

ocasião da descrição da maneira de proceder na arte do génio,


concretamente por intermédio da explicitação que fizemos do
fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado e da expressão de
tais ideias no contexto dessa arte. Salientámos, nessa altura, que o
exercício da faculdade da imaginação quer do criador de uma obra de arte,
quer daquele que a ajuíza como bela, é tido por Kant como sendo um
exercício livre, independentemente de tanto na criação dessa obra, como
no juízo através do qual ela é declarada bela, ter de reconhecer-se o
conceito a que as ideias estéticas fornecidas estão associadas e ao qual a
expressão de tais ideias, ela própria, dá expressão. 210 No seguimento,
pudemos assumir que o juízo através do qual se declara bela uma obra de
arte é um juízo de gosto. Fizemo-lo, porém, condicionalmente: sob a
condição de colocarmos entre parêntesis o excerto, do §48, de acordo com
o qual num tal juízo têm de ser considerados não apenas um conceito –
concretamente, um conceito daquilo que o objecto deva ser, que, como
entretanto vimos, pode corresponder a uma forma de arte – mas
igualmente a perfeição da obra segundo esse conceito, isto é, a
conformidade a fins objectiva interna do objecto artístico ao referido
conceito (Kant, 1998: 216). Assim, o que agora nos interessa conhecer é
a posição de Kant relativamente à liberdade da faculdade da imaginação
quer do criador, quer, principalmente, daquele que ajuíza a obra de arte,
quando – embora não apenas, certamente também – têm de ser tidos em
conta um conceito daquilo que o objecto deva ser, enquanto representação

210
Para o justificarmos, citámos várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo
que mostram ser essa a posição do nosso autor. A este propósito, Guyer nota que «a
discussão detalhada da bela arte mostra que no caso paradigmático de uma obra de
génio (por exemplo, a encarnação infinitamente sugestiva de uma ideia da razão
inesgotável num poema ou símbolo visual) nós podemos ser conscientes da concepção
que é encarnada numa obra de arte e dos conceitos que tipicamente constituem o seu
conteúdo sem sacrificarmos a liberdade da imaginação, que é a fonte do nosso prazer
na beleza» e «que a liberdade da imaginação tanto do artista como do público de uma
obra assenta precisamente na maneira como a forma de uma obra de arte dá expressão
a um conceito mas vai além do que quer que seja que pudesse ser deduzido de alguma
regra providenciada por esse ou qualquer outro conceito» (Guyer, 1996: 149).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 201


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

através de uma certa forma de arte, e a perfeição da obra de arte segundo


esse conceito, enquanto satisfação das condições para ser uma
representação através da forma de arte em causa.
Pois bem, também no concernente a esse caso, Kant considera que o
exercício da faculdade da imaginação é um exercício livre. Depois de
afirmar que a representação bela de uma coisa é «a forma de apresentação
de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente» (Kant,
1998: 217), o nosso autor acrescenta que, relativamente a essa forma, «em
certa medida ainda se permanece livre, embora ela de resto esteja
comprometida com um determinado fim (man noch in gewissen Maße frei
bleibt, wenn er doch übrigens an einen bestimmten Zweck gebunden ist)»
(Kant, 1998: 218). Tal como a ideia racional de intenção cosmopolita – ou
outra ideia da razão – não esgota as ideias estéticas que a ela estão
associadas, também a satisfação daquilo que se requer para que algo seja
uma representação poética da mencionada ou de outra ideia racional – e,
portanto, a observação de uma perfeição – não esgota a liberdade da
faculdade da imaginação – e, por conseguinte, o tipo de conformidade a
fins que pode observar-se a par da consideração dessa satisfação. Através
de uma certa capacidade produtiva da sua imaginação, aquele que é dotado
de génio fornece ideias estéticas para um conceito dado; por intermédio
do seu espírito, ele dá a essas ideias uma expressão mediante a qual as
faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se movimentam livre e
harmonicamente entre si por ocasião da representação que ele faz do
objecto.211 Ora, é mediante a observação de um tal movimento, através de
um sentimento de prazer, que aquele que ajuíza declara belo o objecto.
Assim, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, embora
tenham de ser considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e
a perfeição da obra de arte segundo esse conceito, igualmente é
considerado aquilo que de incompreensível por conceitos a faculdade da

211
É assim que aquele que é dotado de génio torna universalmente comunicável o
conceito dado, independentemente de a expressão consistir «na linguagem, na pintura
ou na arte plástica (in Sprache, oder Malerei, oder Plastik)» (Kant, 1998: 223).

202 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

imaginação livremente fornece e o que a expressão de um tal material


promove nas faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, a saber, uma
disposição harmónica que, sendo livre, isto é, não determinada pelo
conceito daquilo que o objecto deva ser, é representada como
subjectivamente conforme a fins.
Quer quando se impõe o reconhecimento de um conceito dado – um
conceito da razão como a ideia racional de intenção cosmopolita, por
exemplo – quer quando tem de considerar-se um conceito daquilo que
o objecto deva ser enquanto forma de arte – poesia, por exemplo – e a
perfeição da obra de arte segundo esse conceito – no caso de uma obra
poética, o cumprimento das regras que um objecto tem de cumprir para
ser uma poesia – o exercício da faculdade da imaginação pode ser, do
ponto de vista de Kant, um exercício livre. É isso que mostram não
apenas o supracitado excerto, do §48, no qual Kant nota que, apesar de
a forma de apresentação de um conceito mediante a qual este é tornado
universalmente comunicável estar comprometida com um fim
determinado, a liberdade permanece, mas também todas as referências
àquelas belas-artes na definição das quais é pressuposto que a
faculdade da imaginação se exerça livremente. Assim, no §51, Kant
define poesia como «arte de executar um jogo livre da faculdade da
imaginação como um ofício do entendimento (die Kunst, ein freies
Spiel der Einbildungskraft als ein Geschäft der Verstandes
auszuführen)» (Kant, 1998: 227), assinala, em nota de rodapé, que a
jardinagem «tem como condição da sua composição (…) simplesmente
o jogo livre da faculdade da imaginação na contemplação (zur
Bedingung ihrer Zusammenstellung hat, bloß das freie Spiel der
Einbildungskraft in der Beschauung)» (Kant, 1998: 269) e acrescenta
que a pintura «está aí simplesmente para ser vista, para entreter a
faculdade da imaginação no jogo livre com ideias e ocupar a faculdade
do juízo estética sem um fim determinado (bloß zum Ansehen da ist,
um die Einbildungskraft im freien Spiele mit Ideen zu unterhalten und
ohne bestimmten Zweck die ästhetische Urteilskraft zu beschäftigen )»
(Kant, 1998: 230). Entretanto, no §53, o nosso autor afirma que as artes

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 203


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

figurativas «transpõem a faculdade da imaginação para um jogo livre e


contudo ao mesmo tempo conforme ao entendimento (die
Einbildungskraft in ein freies und doch zugleich dem Verstande
angemessenes Spiel versetzen)» (Kant, 1998: 236).
Não obstante todas essas indicações dadas pelo texto de Kant, a letra
do §16 obriga-nos a lembrar que um juízo de gosto no qual se pressupõe
um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição do objecto
segundo esse conceito é um juízo de gosto aplicado – ou,
equivalentemente, uma beleza que pressuponha um tal conceito e a
perfeição da coisa segundo o mesmo é uma beleza aderente. Ora, a letra
do §15, nomeadamente o seu título, que temos vindo a colocar entre
parêntesis, impede-nos de admitir o chamado juízo de gosto aplicado e
a chamada beleza aderente nos âmbitos do juízo de gosto e da beleza,
respectivamente. Ei-lo novamente: «O juízo de gosto é totalmente
independente do conceito de perfeição (Das Geschmacksurteil ist von
dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998:
117). Se assim for, não pode proferir-se um juízo de gosto acerca de
uma obra de arte, uma obra de arte não pode ser declarada bela, não
pode falar-se de bela arte. Pensar a possibilidade de falar-se de bela
arte impõe uma revisão dos conteúdos desses dois parágrafos.
Por ocasião da primeira referência que fizemos à distinção entre beleza
livre e beleza aderente – e, equivalentemente, entre puro juízo de gosto e
juízo de gosto aplicado – apresentámos uma justificação para a
ilegitimidade de chamar-se beleza à chamada beleza aderente e de chamar-
se juízo de gosto ao chamado juízo de gosto aplicado. Enquanto nada
houver a acrescentar, essa justificação revela-se suficiente: os critérios do
chamado juízo de gosto aplicado afiguram-se contraditórios com os
critérios do juízo de gosto; os critérios da chamada beleza aderente
afiguram-se contraditórios com os critérios da beleza. 212 Apesar disso, em

212
De resto, como lembra Guyer, «a descrição de Kant de beleza dependente não está
longe da explicação da beleza típica da estética racionalista e de pelo menos alguma
estética empirista» (Guyer, 1997: 400).

204 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

nenhum momento propusemos uma explicação para a opção de Kant por


algo que aparenta ser uma contradição.213
Uma explicação plausível para tal opção prende-se com a questão de
saber o que é necessário para que o exercício da faculdade da imaginação
seja suficientemente livre para que aquele que ajuíza profira um juízo de
gosto. É de conceber que Kant pense que, no chamado juízo de gosto
aplicado, a liberdade da faculdade da imaginação é limitada – pela
consideração do conceito daquilo que o objecto deva ser e da perfeição
desse objecto segundo o mesmo conceito – mas não esgotada. A partir da
introdução da noção de bela arte, várias são as passagens indicadoras de
que essa é a posição de Kant. A mesma abundância não se constata no que
antecede essa parte da Crítica da Faculdade do Juízo. Ainda assim, há
pelo menos uma passagem que no-lo indicia. Ela pertence ao §16 –
precisamente o parágrafo no qual Kant introduz as noções de beleza
aderente e juízo de gosto aplicado. Já a citámos. Acerca do juízo através
do qual livremente se declara belo um objecto – o chamado puro juízo de
gosto – Kant afirma que nesse juízo «[n]ão é pressuposto nenhum conceito
de qualquer fim, para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o
qual este último deva representar, mediante o que unicamente seria
limitada a liberdade da faculdade da imaginação (wodurch die Freiheit der
Einbildungskraft nur eingeschränkt werden würde)» (Kant, 1998: 121).
Por contraste, no chamado juízo de gosto aplicado, é pressuposto um
conceito de fim para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual
este último deva representar. A liberdade da faculdade da imaginação é

213
Schaper identifica claramente o que está em causa. Ela afirma, primeiro, que «[o]
que é surpreendente não é que, tendo distinguido dois tipos de beleza, Kant devesse
estabelecer uma distinção entre dois tipos de juízo, mas que ele devesse estabelecer
uma distinção entre dois tipos de juízo de gosto», e prossegue, logo a seguir,
registando que «[a] ideia de que apreciações estéticas de um objecto sejam conectadas
ou mesmo baseadas num conceito do seu fim ou propósito pareceriam uma
contradição nos termos (cf. §15)» (Schaper, 2003: 104). Em The Genesis of Kant’s
Critique of Judgment, John H. Zammito coloca explicitamente a questão: «O
problema é, em que sentido é a “beleza aderente” (pulchritudo adhaerens) ainda
beleza?» (Zammito, 1992: 126). Infelizmente, o intérprete não lhe dá resposta.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 205


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

limitada por esse conceito de fim. Tal, porém, não quer dizer que seja
esgotada. A explicação proposta sugere que, podendo a faculdade da
imaginação exercer-se livremente em alguma medida, pode o juízo não
ser totalmente determinado pela consideração do conceito daquilo que o
objecto deva ser e da perfeição desse objecto segundo o mesmo conceito,
podendo, por essa razão, ser ainda um juízo estético e, não sendo um juízo
estético dos sentidos, ser um juízo de gosto, apesar de condicionado,
precisamente pela consideração do conceito daquilo que o objecto deva
ser e da perfeição desse objecto segundo um tal conceito.
Esta explicação tem a vantagem imediata de legitimar as noções de
juízo de gosto aplicado e de beleza aderente: o chamado juízo de gosto
aplicado é um juízo de gosto e a chamada beleza aderente é uma beleza.
No proferimento de um juízo de gosto aplicado – e, equivalentemente, na
declaração condicionada de algo como belo, na declaração de algo como
condicionadamente belo – presta-se «atenção ao fim do objecto (auf den
Zweck des Gegenstandes sieht)», considera-se o que se «tem no
pensamento (in Gedanken hat)» (Kant, 1998: 122). Nada disso impede,
contudo, que o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza
seja um exercício livre. Trata-se da explicação sugerida por Guyer para a
manutenção dos termos beleza e juízo de gosto quando estão em causa
juízos nos quais é considerado um conceito daquilo que o objecto deva ser
e a conformidade a fins interna do objecto a esse conceito. Guyer sublinha
que Kant «não nega de todo que a beleza aderente seja um tipo de beleza»
(Guyer, 1996: 155). Assim, no entender do intérprete, não obstante o
conceito daquilo que o objecto deva ser impor «algum constrangimento
na liberdade da imaginação com respeito ao fenómeno [do objecto]», ele
«ainda deixa a essa faculdade uma tal latitude dentro deste
constrangimento que o prazer pode ainda ser produzido pela sua livre
harmonia com a exigência do entendimento por unidade» (Guyer, 1997:
219). Ora, se o comprazimento é sentido por ligação a um movimento
recíproco livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que
ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto, então o juízo
será um juízo estético e, não sendo um juízo acerca do agradável, será um

206 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

juízo de gosto. Assim, numa parte posterior do seu texto, relacionando a


distinção estabelecida por Kant, no §16, entre beleza livre e beleza
aderente, com a passagem, do §48, que motivou a nossa indagação, Guyer
assinala o seguinte:
de maneira a avaliar adequadamente uma obra de arte, tem de
reconhecer-se não meramente que essa obra é um produto da intenção
geral de produzir prazer através do engajamento das faculdades de
conhecimento, mas também que se pretendeu que essa obra fosse um
objecto de algum tipo particular – embora, obviamente, o conceito desse
tipo de objecto não possa ser visto como um que determina totalmente a
forma do objecto particular, pois então não haveria espaço para resposta
e juízo estéticos (Guyer, 1997: 356-357).214
Partindo da letra da Crítica da Faculdade do Juízo – concretamente da
letra do §16, no qual se chama beleza à beleza aderente e juízo de gosto
ao juízo de gosto aplicado – libertamo-nos das conclusões que
apresentámos na secção “Juízo através do qual se declara bela uma obra
de arte”. A partir de uma interpretação da noção de beleza aderente
baseada numa consideração de uma razão plausível para que Kant tenha
decidido manter o termo beleza – mesmo quando está em causa um juízo
no qual é tido em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a
perfeição desse objecto segundo esse conceito – afirma-se a possibilidade
de uma obra de arte ser ajuizada através de um juízo aplicado mas
legitimamente de gosto, afirma-se a possibilidade de uma obra de arte ser,
condicionada mas legitimamente, declarada bela – afirma-se, por
conseguinte, a legitimidade de falar-se de uma arte que é bela, isto é, de
bela arte.
É certo que tais afirmações não podem ser proferidas sem uma
consequência para o texto de Kant: a negação do título do §15 (cf. Kant,

214
Entretanto, o comentador prosseguirá afirmando que «os conceitos são manifestos
mas nunca sentidos como constrangedores ou determinantes. Apesar da sugestão
enganadora da discussão de Kant acerca da beleza livre e da beleza aderente (§16),
então, a arte não tem de carecer de conteúdo para que produza uma resposta puramente
estética, nem nós temos de abstrair desse conteúdo para desfrutar de uma tal resposta»
(Guyer, 1997: 357-358).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 207


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

1998: 117). Se aceitarmos a colocação no âmbito do juízo de gosto de um


juízo no qual são considerados um conceito daquilo que o objecto deva
ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito, então somos obrigados
a afirmar que o juízo de gosto não é (não tem de ser) totalmente
independente do conceito de perfeição. Ele poderá sê-lo, aparentemente,
no caso de tratar-se de um puro juízo de gosto, acerca da beleza de um
objecto natural; mas não o é necessariamente – se for um juízo de gosto
aplicado, se for o juízo condicionado através do qual se declara bela uma
obra de arte (o juízo através do qual condicionadamente se declara bela
uma obra de arte, o juízo através do qual se declara condicionadamente
bela uma obra de arte), então ele não é totalmente independente do
conceito de perfeição.
Tal, porém, não significa confundir a beleza com a perfeição, dissolver
a beleza na perfeição ou fazer corresponder a beleza a um conceito
confuso de perfeição (cf. Kant, 1998: 117 e 119).215 O juízo de gosto
aplicado – e, portanto, o juízo através do qual se declara bela uma obra de
arte – não é um juízo de conhecimento. Por isso é que ele pode ser um
juízo de gosto. Ele apenas pressupõe um juízo de conhecimento. Não
deixa, contudo, de ser um juízo estético. O juízo através do qual se declara
bela uma obra de arte é um juízo cujo «fundamento de determinação não
é nenhum conceito, mas sim o sentimento (do sentido interno) daquela
unanimidade no jogo das faculdades do ânimo, na medida em que ela pode
ser somente sentida (Bestimmungsgrund kein Begriff, sondern das Gefühl
(des innern Sinnes) jener Einhelligkeit im Spiele der Gemütskräfte ist,
sofern sie nur empfunden werden kann)» (Kant, 1998: 119). Nele é
considerado um conceito; mas o conceito não é o seu fundamento de
determinação.216 Nele é considerado um conceito daquilo que o objecto

215
Se quisermos remeter para o §57, afirmaremos que o juízo de gosto aplicado
não se funda num «conceito intelectual confuso como o de perfeição (verworrener
Verstandesbegriff etwa von Vollkommenheit)» (Kant, 1998: 247).
216
Remetendo para o §46, confirmamos, agora, que o juízo através do qual se
declara belo um objecto artístico não é «deduzido de qualquer regra que tenha
um conceito como fundamento determinante, por conseguinte que ponha no

208 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito; mas nem o


referido conceito, nem a conformidade a fins objectiva interna da obra de
arte ao mesmo servem de fundamento de determinação do juízo. Se
remetermos para o §58, afirmaremos que o juízo através do qual se declara
bela uma obra de arte tem a ver «teoricamente, por conseguinte também
logicamente (…) com a perfeição do objecto (theoretisch, mithin auch
logisch auf die Vollkommenheit des Objekts)» (Kant, 1998: 255). No
entanto, aquilo que importa para a determinação desse juízo é «a
concordância da [representação do objecto] na faculdade da imaginação
com os princípios essenciais da faculdade do juízo em geral (die
Übereinstimmung seiner Vorstellung in der Einbildungskraft mit den
wesentlichen Prinzipien der Urteilskraft überhaupt)» (Kant, 1998: 255).
Tal é assim porque, como Kant nota, no mesmo parágrafo, «o
comprazimento mediante ideias estéticas não tem que depender do alcance
de fins determinados (enquanto arte mecanicamente intencional) (das
Wohlgefallen durch ästhetische Ideen nicht von der Erreichung
bestimmter Zwecke (als mechanisch absichtliche Kunst) abhängen
müsse)» (Kant, 1998: 259). Assim, não obstante estar necessariamente
contido, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, um
comprazimento interessado – a saber, um prazer na exibição de um
conceito daquilo que o objecto deva ser e, portanto, um prazer na
representação, lógica, de uma conformidade a fins objectiva – o prazer que
lhe serve de fundamento de determinação é um comprazimento sem
interesse, independente de qualquer interesse, desinteressado – o
comprazimento na representação, estética, de uma conformidade a fins
formal. Logo, embora o juízo através do qual se declara bela uma obra de
arte não seja um puro juízo de gosto, ele é um juízo estético e, portanto,
não sendo um juízo acerca do agradável, é um juízo de gosto, mesmo que

fundamento um conceito da maneira como ele é possível ( von irgend einer


Regel abgeleitet werde, die einen Begriff zum Bestimmungsgrunde habe,
mithin einen Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege)» (Kant,
1998: 211).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 209


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

aplicado.217 Estamos, então, em condições de responder afirmativamente


à questão que move a nossa investigação – a questão de saber se e como
pode falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo.
Se o juízo de gosto aplicado é um juízo de gosto e o juízo através do qual
se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto aplicado, então o
juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto.
Uma obra de arte pode ser ajuizada através de um juízo de gosto se esse
juízo for um juízo de gosto aplicado; uma obra de arte pode ser declarada
bela se essa declaração for condicionada. No contexto da Crítica da
Faculdade do Juízo, é legítimo falar-se de bela arte – enquanto arte,
condicionada mas legitimamente, declarada bela, enquanto arte declarada
bela através de juízos aplicados mas legitimamente de gosto.

4.2. Beleza da arte como beleza livre


Legitimadas que estão as noções de juízo de gosto aplicado, enquanto
espécie de juízo de gosto, e de beleza aderente, enquanto espécie de
beleza, pode falar-se de bela arte.218 O juízo através do qual
condicionadamente se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto
aplicado – por conseguinte, um juízo de gosto. Ainda assim, não obstante,
então, o sucesso alcançado na resolução da questão de saber se pode falar-
se de bela arte, não podemos afirmar que todas as nossas dificuldades
estão ultrapassadas. O principal facto a que recorremos para mostrar a
relevância dessa questão consiste na referência de Kant a objectos
artísticos como belezas livres. Importa recordar que, de acordo com o
nosso autor, «os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou
sobre papel de parede (die Zeichnungen à la grecque, das Laubwerk zu
Einfassungen oder auf Papiertapeten)», todos esses objectos «são belezas
livres (sind freie Schönheiten)» (Kant, 1998: 120). Além desses, pode

217
Se tivermos em conta os critérios apresentados no início do §14, podemos afirmar
que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um puro juízo estético
e, por conseguinte, um autêntico juízo de gosto.
218
Pode falar-se de arte aderentemente bela, se preferirmos.

210 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

igualmente ser contado como beleza livre «o que na música se denomina


fantasias (sem tema), e até toda a música sem texto (was man in der Musik
Phantasieen (ohne Thema) nennt, ja die ganze Musik ohne Text)» (Kant,
1998: 120). Tal implica que esses objectos artísticos possam ser
declarados belos através de puros juízos de gosto, não através de juízos de
gosto aplicados.
A razão que Kant apresenta para que os objectos mencionados possam
ser livremente declarados belos é a seguinte: eles «por si não significam
nada: não representam nada, nenhum objecto sob um conceito
determinado (bedeuten für sich nichts: sie stellen nichts vor, kein Objekt
unter einem bestimmten Begriffe)» (Kant, 1998: 120). Se representar for
identificado com descrever, não há qualquer dificuldade em aceitar a tese
segundo a qual esses objectos nada representam. Podemos conceber que
os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de
parede, o que na música se denomina fantasias e a música sem texto não
descrevem o que quer que seja. A referida identificação não é, no entanto,
suficiente para sustentar que esses objectos são belezas livres.
Considerando a identificação da beleza da arte como representação bela
de uma coisa (Kant, 1998: 216), que adoptámos no início desta secção,
somos obrigados a afirmar que também os objectos mencionados
representam alguma coisa, não obstante eles nada descreverem.
Retomemos os sentidos de representação propostos por Allison:
sentido descritivo, sentido exemplificativo e expressão de ideias estéticas.
Qualquer objecto belo expressa ideias estéticas. Expressar ideias estéticas
é condição da beleza, seja ela artística ou natural (cf. Kant, 1998: 226).219
Por conseguinte, os objectos mencionados representam algo – no sentido
em que expressam ideias estéticas. Acontece que uma redução do carácter
representativo da beleza da arte à expressão de ideias estéticas resultaria

219
Note-se, lateralmente, que, como salvaguarda Allison, «não há contradição entre a
posição [de Kant] relativamente ao génio e a [sua] concepção de beleza natural como
expressando ideias estéticas. Uma contradição emergiria unicamente se o génio fosse
tido como sendo uma condição para a produção de ideias estéticas, mas Kant não está
comprometido com qualquer tese desse tipo» (Allison, 2001: 286-287).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 211


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

numa indistinção entre uma tal beleza e a beleza da natureza.220 Devemos


averiguar a hipótese de os objectos mencionados representarem no sentido
de exemplificarem algo. Eles são, de facto, objectos de um certo tipo.
Enquanto tal, cada um deles é um exemplo de um objecto desse tipo. Um
desenho à la grecque é um exemplo do tipo “desenho à la grecque”. Nesse
sentido, ele representa o seu tipo, exemplifica o seu tipo. Está confirmada
a hipótese de os objectos mencionados representarem no sentido de
exemplificarem algo. Assim, embora nada descrevam, eles expressam
ideias estéticas e exemplificam.
O problema com que nos defrontamos (saber se e como os desenhos à
la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede, o que na
música se denomina fantasias e a música sem texto podem ser belezas
livres – mais geralmente, saber se e sob que condições poderá uma obra
de arte ser livremente declarada bela, saber se e sob que condições poderá
uma obra de arte ser declarada bela através de um puro juízo de gosto,
saber se e como será legítimo falar-se de bela arte enquanto arte
livremente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de puros
juízos de gosto) não está, porém, resolvido. De acordo com o que temos
vindo a defender, um juízo no qual tenham de ser considerados um
conceito daquilo que o objecto deva ser – mesmo que esse conceito
corresponda a um tipo de objecto, a uma forma de arte – e a perfeição do
objecto segundo esse conceito – mesmo correspondendo essa perfeição à
satisfação das condições para que um objecto seja um exemplar do tipo
mencionado, da forma de arte referida – só pode ser um juízo de gosto
aplicado, não um puro juízo de gosto. Só condicionadamente pode
declarar-se belo o objecto em causa. A sua beleza só pode ser uma beleza
aderente, não uma beleza livre. Ora, segundo o §16, um desenho à la

220
O próprio Allison o assinala: «na medida em que quer a beleza natural, quer a
beleza artística, consiste na expressão de ideias estéticas, toda a beleza (incluindo a
variedade natural) “representa” neste sentido. Consequentemente, ele não providencia
um meio para compreender a distinção entre uma “coisa bela” e uma “representação
bela de uma coisa”, na qual supostamente é baseada toda a referência de Kant à bela
arte» (Allison, 2001: 295).

212 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

grecque, uma folhagem para molduras ou sobre papel de parede, uma


fantasia musical ou uma música sem texto, qualquer destes objectos
artísticos pode ser livremente declarado belo, isto é, pode ser declarado
belo através de um puro juízo de gosto.
Perante esta dificuldade, poderia perguntar-se o que distingue objectos
dos tipos mencionados das belas obras de arte dos tipos que Kant refere a
partir da sua abordagem da noção de bela arte. Concretamente, perguntar-
se-ia o que faz com que os primeiros sejam belezas livres e, as segundas,
belezas aderentes. Esta pergunta seria, contudo, precipitada. Em bom
rigor, Kant nunca afirma que a beleza da bela arte (a beleza da arte do
génio) é – ou é necessariamente – uma beleza aderente. Pelo contrário,
embora também nunca afirmando explicitamente que a beleza das belas-
artes – ou de algumas dessas artes – é livre, ele indicia-o em várias
passagens. Fá-lo por diversas vezes no §51. Em primeiro lugar, Kant
afirma que, na escultura, «o objectivo principal é a simples expressão de
ideias estéticas (ist der bloße Ausdruck ästhetischer Ideen die
Hauptabsicht)» (Kant, 1998: 228-229) e que «uma simples obra de
figuração (…) é feita apenas para ser olhada e deve aprazer por si própria
(ein bloßes Bildwerk (…) lediglich zum Anschauen gemacht ist und für
sich selbst gefallen soll)» (Kant, 1998: 229)221. Seguidamente, o nosso
autor nota que a jardinagem «não tem como condição da sua composição
nenhum conceito do objecto e do seu fim (como talvez a arquitectura)
(keinen Begriff von dem Gegenstande und seinem Zwecke (wie etwa die
Baukunst) zur Bedingung ihrer Zusammenstellung hat)», mas, sim, como
já assinalámos, «simplesmente o jogo livre da faculdade da imaginação na
contemplação (bloß das freie Spiel der Einbildungskraft in der

221
Kant afirma-o por oposição àquilo que afirma relativamente à arquitectura, bela-
arte na qual «o principal é um certo uso do objecto artístico a cuja condição as ideias
estéticas são limitadas (ist ein gewisser Gebrauch des künstlichen Gegenstandes die
Hauptsache, worauf als Bedingung die ästhetischen Ideen eingeschränkt werden)»
(Kant, 1998: 228). Segundo o nosso autor, «a conformidade do produto a um certo
uso constitui o essencial de uma obra de construção (die Angemessenheit des Produkts
zu einem gewissen Gebrauche das Wesentliche eines Bauwerks ausmacht)» (Kant,
1998: 229).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 213


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Beschauung)» (Kant, 1998: 269). Finalmente, Kant indica que a pintura


«é dada somente para o olho (nur für das Auge gegeben)» (Kant, 1998:
229) ou, como também já vimos, que ela «está aí simplesmente para ser
vista, para entreter a faculdade da imaginação no jogo livre com ideias e
ocupar a faculdade do juízo estética sem um fim determinado (bloß zum
Ansehen da ist, um die Einbildungskraft im freien Spiele mit Ideen zu
unterhalten und ohne bestimmten Zweck die ästhetische Urteilskraft zu
beschäftigen)» (Kant, 1998: 230). Entretanto, no §53, o nosso autor volta
a indiciar que a beleza das belas-artes é uma beleza livre – fá-lo ao
identificar a pintura como «arte do desenho (Zeichnungskunst)» (Kant,
1998: 237). Além disso, pelo menos uma das belas-artes abordadas por
Kant nos §51 e §53 corresponde a uma forma de arte mencionada no §16:
a música.222 Dados estes indícios, assim como a passagem, do §16,
segundo a qual objectos artísticos de certos tipos são belezas livres, a
questão que se coloca é a de saber o que permite ou impede ajuizar como
livremente belos, através, portanto, de puros juízos de gosto, objectos
artísticos de certos tipos, e não objectos artísticos de outros tipos.
Para responder a essa questão, recorreremos novamente a Allison.223
No interior do sentido exemplificativo da noção de representação, Allison

222
Devemos admitir, porém, que, no §53, as referências feitas à música dão a entender
que Kant está a abordar música com tema, não a música sem tema ou a música sem
texto, mencionadas no §16.
223
A proposta de Schaper não é minimamente satisfatória. A comentadora limita-se a
aceitar que «[m]esmo os papéis de parede têm uma função – a de cobrirem as nossas
paredes prazenteiramente e apropriadamente» e que essa função «não tem lugar na
nossa avaliação deles como livremente belos» (Schaper, 2003: 110), isto é, que «os
padrões dos papéis de parede têm um propósito ou uma função como papéis de
parede», mas «sem que esses fins sejam relevantes para a avaliação» (Schaper, 2003:
111). Nesse caso, segundo Schaper, «[a]valiar como livremente belo um objecto feito
pelo homem seria, como é no caso dos objectos naturais, avaliá-lo sem consideração
do conceito de um fim sob o qual ele pode ou pode não se encontrar, e
consequentemente como nada representando» (Schaper, 2003: 111). No entanto, tal
não pode ser aceite se considerarmos a passagem, do §48, de acordo com a qual no
juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um
conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse
conceito. Ora, como já referimos, Schaper não relaciona a sua análise da distinção

214 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

estabelece uma distinção entre propósitos e constrangimentos estéticos,


por um lado, e propósitos e constrangimentos extra-estéticos, por outro
(cf. Allison, 2001: 296). É precisamente à luz desta distinção que ele
considera dever ser lida a distinção estabelecida por Kant entre beleza
livre e beleza aderente. O que está em causa na beleza aderente é, segundo
Allison, um «propósito extra-estético que a obra [é] suposta servir»,
propósito que, ainda segundo o comentador, impõe «constrangimentos
extra-estéticos quanto ao que é apropriado» (Allison, 2001: 296).
Observe-se a seguinte passagem, do §16:
Poder-se-ia colocar num edifício muita coisa de aprazível imediatamente
na intuição, desde que não se tratasse de uma igreja: poder-se-ia
embelezar uma figura com toda a sorte de floreados e com linhas leves
porém regulares, assim como o fazem os neozelandezes com a sua
tatuagem, desde que não se tratasse de um homem; e este poderia ter
traços muito mais finos e uma fisionomia com um perfil mais aprazível
e suave, desde que não devesse representar um homem ou mesmo um
guerreiro (Man würde vieles unmittelbar in der Anschauung Gefallende
an einem Gebäude anbringen können, wenn es nur nicht eine Kirche sein
sollte; eine Gestalt mit allerlei Schnörkeln und leichten, doch
regelmäßigen Zügen, wie die Neuseeländer mit ihrem Tettowiren tun,
verschönern können, wenn es nur nicht ein Mensch wäre; und dieser
könnte viel seinere Züge und einen gefälligeren, sanftern Umriß der
Gesichtsbildung haben, wenn er nur nicht eine Mann, oder gar einen
kriegerischen vorstellen sollte) (Kant, 1998: 121).
Nesta passagem, representar pode ser interpretado no sentido
exemplificativo. Se o que está em causa é representar um homem, ou um
guerreiro, se o que está em causa é fornecer um exemplar do conceito
homem, ou do conceito guerreiro, a figura, de acordo com as palavras de
Kant, não pode ser embelezada com toda a sorte de floreados e com linhas
leves e regulares, nem pode ter traços muito mais finos e uma fisionomia
com um perfil mais aprazível e suave. Neste contexto, a representação bela
de um homem ou de um guerreiro envolve necessariamente a consideração

entre beleza livre e beleza aderente – nem sequer o seu estudo acerca do uso feito por
Kant da noção de representação – com o que está escrito no §48 da Crítica da
Faculdade do Juízo.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 215


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

de um conceito daquilo que um homem ou um guerreiro deva ser e a


perfeição da representação segundo esse conceito. Os constrangimentos
inerentes a essa consideração são, segundo Allison, constrangimentos
extra-estéticos. Por essa razão, o juízo através do qual se declara belo o
objecto artístico em causa é um juízo de gosto aplicado e a beleza desse
objecto só pode ser uma beleza aderente. Diferentemente, a forma de arte,
ainda de acordo com o que é afirmado pelo comentador, «impõe
constrangimentos quanto ao que é apropriado; mas estes já não são extra-
estéticos» (Allison, 2001: 296).
Pois bem, no entender de Allison, o que Kant pretende com a distinção
entre beleza livre e beleza aderente, estabelecida no §16, é precisamente
distinguir entre juízos estéticos que consideram constrangimentos
estéticos e juízos estéticos que consideram constrangimentos extra-
estéticos (cf. Allison, 2001: 298). Se lermos a distinção estabelecida por
Kant à luz da distinção proposta por Allison, então colocaremos, de um
lado, o juízo através do qual se declara belo um objecto, natural,
independentemente de um conceito daquilo que esse objecto deva ser e,
por conseguinte, da perfeição desse objecto – independentemente,
portanto, de qualquer propósito ou constrangimento, estético ou extra-
estético – e o juízo através do qual se declara belo um objecto, artístico,
considerando um conceito daquilo que esse objecto deva ser e a perfeição
desse objecto segundo um tal conceito – correspondendo esse conceito ao
tipo de obra, isto é, ao propósito estético, e correspondendo a perfeição à
satisfação de tudo aquilo a que esse tipo de obra obriga, isto é, à satisfação
dos constrangimentos estéticos derivados do referido propósito estético –
e, de outro lado, o juízo através do qual se declara belo um objecto tendo
em conta um conceito daquilo que esse objecto deva ser e a perfeição desse
objecto – neste caso, correspondendo o conceito daquilo que o objecto
deva ser a um propósito extra-estético e correspondendo a perfeição à
satisfação dos constrangimentos extra-estéticos derivados do referido
propósito extra-estético. Mais simplesmente, dividiremos os juízos de
gosto da seguinte maneira: do lado do puro juízo de gosto, os juízos de
gosto que não consideram qualquer conceito daquilo que o objecto deva

216 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

ser, que só podem referir-se a objectos naturais, e os que consideram um


conceito daquilo que o objecto deva ser enquanto propósito estético, que
só podem referir-se a obras de arte; do lado do juízo de gosto aplicado,
os juízos que consideram um propósito não estético. A distinção entre
puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado, ou, equivalentemente, a
distinção entre beleza livre e beleza aderente, corresponderá a uma
distinção entre, por um lado, juízos/belezas nos/nas quais não se
considera um conceito daquilo que o objecto deva ser ou nos quais
apenas se considera um conceito daquilo que esse objecto deva ser,
enquanto propósito estético, e a sua perfeição, enquanto satisfação dos
constrangimentos estéticos derivados do referido propósito estético; e,
por outro lado, juízos/belezas nos/nas quais se considera um conceito
daquilo que o objecto deva ser, enquanto propósito não estético, e a sua
perfeição, enquanto satisfação dos constrangimentos não estéticos
derivados do referido propósito não estético.
De acordo com a proposta interpretativa lançada por Allison, o
conhecimento daquilo que uma obra de arte deva ser, um tal
conhecimento, por si só, não torna aplicado o juízo através do qual se
declara bela essa obra de arte. A necessidade de uma obra de arte
satisfazer um propósito estético, precisamente para que seja declarada
bela, não faz da sua beleza uma beleza aderente. 224 Quando se trata de
satisfazer aquilo a que a forma, o género, o tipo de obra obriga, o prazer
ou desprazer sentidos por ocasião da representação do objecto é

224
Esta é a vertente mais ambiciosa da proposta em causa. Também importante é
perceber que, no segundo sentido exemplificativo de representação, a saber, o que
comporta apenas propósitos e constrangimentos estéticos, apenas as obras de arte
representam algo: esse sentido «é aplicável a todas as obras de bela arte, mas não às
belezas naturais» (Allison, 2001: 296). Tal é importante porque preserva a distinção
entre beleza da natureza e beleza da arte. Recorde-se que, enquanto expressando
ideias estéticas, qualquer objecto belo – natural ou artístico, portanto – é
representativo. Ora, se entendermos representação como exemplificação de algo
submetida a propósitos e constrangimentos meramente estéticos, «mesmo um desenho
à la grecque é representativo neste sentido (há algo que o artista tem de ser visto como
tentando fazer), enquanto um belo pôr-do-sol não o é» (Allison, 2001: 296).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 217


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

dependente de um conceito daquilo que esse objecto deva ser e da


conformidade objectiva interna do último ao referido conceito. Aquilo
que está em causa neste contexto é a perfeição do objecto. A
consideração dessa perfeição, porém, não só não coloca em causa o
proferimento de um juízo de gosto e a declaração do objecto como belo,
como nem sequer coloca em causa o proferimento de um puro juízo de
gosto e a livre declaração do objecto como belo. Assim sendo, o juízo
através do qual se declara bela uma obra de arte pode ser um puro juízo
de gosto, uma obra de arte pode ser ajuizada através de um puro juízo
de gosto, uma obra de arte pode ser livremente declarada bela, pode
falar-se de bela arte enquanto arte que é livremente declarada bela,
enquanto arte declarada bela através de um puro juízo de gosto.
Algumas obras de arte são belezas livres.

4.3. Gostos
Sem prejuízo dos seus méritos, a proposta de Allison carece de uma
explicação relativa aos critérios segundo os quais propósitos e
constrangimentos podem ser divididos em estéticos e extra-estéticos.
Devemos recordar, antes de mais, que, na Crítica da Faculdade do Juízo,
estético (ästhetisch) é «aquilo cujo fundamento de determinação não pode
ser senão subjectivo (dasjenige, dessen Bestimmungsgrund nicht anders
als subjektiv sein kann)» (Kant, 1998: 89). Por conseguinte, para algo ser
designado estético tem de ter como fundamento de determinação o
sentimento de prazer ou desprazer ligados à sua representação. O que são
propósitos e constrangimentos estéticos? Por que é que o são? Por que é
que tais propósitos e constrangimentos permitem que o juízo seja um puro
juízo de gosto? A explicação supracitada é indispensável, pois, no interior
da tese de Allison, é a partir da distinção entre propósitos e
constrangimentos estéticos, por um lado, e propósitos e constrangimentos
extra-estéticos, por outro, que o juízo através do qual se declara bela uma
obra de arte considera um conceito daquilo que essa obra de arte deva ser,
tem em conta a perfeição do objecto e, ainda assim, pode não deixar de
ser um puro juízo de gosto.

218 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Segundo Allison, os constrangimentos estéticos, associados a um tipo,


um género ou uma forma de arte, «podem ser vistos como envolvendo as
normas académicas ou os padrões de medida da correcção para essa
forma» (Allison, 2001: 296). Um dos parágrafos da Crítica da Faculdade
do Juízo para o qual esta identificação pode remeter é o §17, concernente
ao ideal da beleza. Concretamente, ela pode remeter para a noção de ideia
normal estética (ästhetische Normalidee). A ideia normal estética é, como
tivemos oportunidade de assinalar, na subsecção “Ideia estética”, «uma
intuição singular (da faculdade da imaginação), que representa o padrão
de medida do [julgamento de uma coisa] como de uma coisa pertencente
a uma espécie (eine einzelne Aufschauung (der Einbildungskraft), die das
Richtmaß seiner Beurteilung, als eines zu einer besonderen Tierspezies
gehörigen Dinges)» (Kant, 1998: 124). Ainda de acordo com as palavras
de Kant, ela é «a regra [die Regel]», é «somente a forma, que constitui a
condição imprescindível de toda a beleza, por conseguinte simplesmente
a correcção na exposição da espécie (nur die Form, welche die
unnachlaßliche Bedingung aller Schönheit ausmacht, mithin bloß die
Richtigkeit in Darstellung der Gattung)» (Kant, 1998: 126). Como tal, a
ideia normal estética «não pode conter nada especificamente
característico; pois de contrário não seria ideia normal para a espécie
(kann nichts Spezifisch-Charakteristisches enthalten; denn sonst wäre sie
nicht Normalidee für die Gattung)» (Kant, 1998: 126). Assim, tal como
admite o nosso autor, «[a] sua apresentação tão pouco apraz pela beleza,
mas simplesmente porque não contradiz nenhuma condição, sob a qual
unicamente uma coisa desta espécie pode ser bela ([i]hre Darstellung
gefällt auch nicht durch Schönheit, sondern bloß weil sie keiner
Bedingung, unter welcher allein ein Ding dieser Gattung schön sein kann,
widerspricht)» (Kant, 1998: 126-127). Na ideia normal estética, «[a]
apresentação é apenas academicamente correcta ([d]ie Darstellung ist
bloß schulgerecht)» (Kant, 1998: 127). Por contraste com a ideia da razão,
podemos afirmar, então, que a ideia normal estética permite apenas um
comprazimento negativo na correcção académica da apresentação (cf.
Kant, 1998: 127). Poderá ser na ideia normal estética de cada tipo, género

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 219


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

ou forma de arte, por conseguinte, que residem os constrangimentos


estéticos impostos pelo propósito, estético, inerente a uma obra de arte que
se pretende que seja de um tipo, género ou forma particular.
Ainda que também possam remeter para a noção de ideia normal
estética, os constrangimentos estéticos referidos por Allison remetem
certamente para a componente mecânica, coerciva e escolástica inerente a
qualquer arte – mesmo às artes livres e, portanto, à bela arte – à qual Kant
faz referência explícita nos §43, §45, §47 e §49. Na secção “Juízo através
do qual se declara artístico um objecto”, tivemos oportunidade de citar
algumas das menções feitas por Kant a essa componente. Assim, no §43,
criticando aqueles «mais recentes pedagogos (neuere Erzieher)» que
«crêem promover da melhor maneira uma arte livre quando eliminam dela
toda a coerção e a convertem de trabalho em simples jogo (eine freie Kunst
am besten zu befördern glauben, wenn sie allen Zwang von ihr
wegnehmen und sie aus Arbeit in bloßes Spiel verwandeln)» (Kant, 1998:
208), Kant lembra que
em todas as artes livres se requer todavia algo coercivo ou, como se diz,
um mecanismo, sem o qual o espírito, que na obra tem de ser livre e o
qual unicamente vivifica a obra, não teria absolutamente nenhum corpo
e volatilizar-se-ia integralmente (in allen freien Künsten dennoch etwas
Zwangsmäßiges, oder, wie man es nennt, ein Mechanismus erforderlich
sei, ohne welchen der Geist, der in der Kunst frei sein muss und allein
das Werk belebt, gar keinen Körper haben und gänzlich verdunsten
würde) (Kant, 1998: 208).
No §45, o nosso autor menciona «a forma escolástica (die Schulform)»
que uma bela obra de arte não pode deixar «que transpareça (durchblickt)»
(Kant, 1998: 211). No §47, Kant reforça que «não há nenhuma arte bela
na qual algo mecânico, que pode ser captado e seguido segundo regras, e
portanto algo escolástico, não constitua a condição essencial da arte (gibt
es keine schöne Kunst, in welcher nicht etwas Mechanisches, welches
nach Regeln gefaßt und befolgt werden kann, und also etwas
Schulgerechtes die wesentliche Bedingung der Kunst ausmachte)» e
aproveita para criticar aquelas «pessoas superficiais (seichte Köpfe)» que
«crêem que não poderiam mostrar melhor que seriam génios florescentes

220 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

do que quando renunciam à coerção escolar de todas as regras e acreditam


que se desfile melhor sobre um cavalo desvairado do que sobre um cavalo
treinado (glauben, dass sie nicht besser zeigen können, sie wären
aufblühende Genies, als wenn sie sich vom Schulzwange aller Regeln
losfagen, und glauben, man paradiere besser auf einem kollerichten
Pferde, als auf einem Schulpferde)» (Kant, 1998: 215).225 Finalmente, no
§49, Kant nota que no produto de um génio há algo atribuível «ao possível
aprendizado ou à escola (der möglichen Erlernung oder der Schule)»
(Kant, 1998: 224).
Igualmente de assinalar, ainda a propósito da componente mecânica,
coerciva e escolástica da bela arte, são os exemplos que o nosso autor
fornece dos constrangimentos mecânicos, coercivos e escolásticos
derivados dos diferentes tipos, géneros ou formas de arte a que se pretende
que uma obra particular pertença. No caso da poesia, por exemplo, Kant
cita, no §43, «a correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia
e a métrica (die Sprachrichtigkeit und der Sprachreichtum, imgleichen die
Prosodie und das Silbenmaß)» (Kant, 1998: 208); relativamente à «arte de
falar bem (Wohlredenheit)» e à «arte do som (Tonkunst)», ele menciona,

225
Nesse contexto, o nosso autor acrescenta que aquele que «fala e decide como um
génio até em assuntos da mais cuidadosa investigação da razão, então torna-se
completamente ridículo (sogar in Sachen der sorgfältigsten Vernunftuntersuchung
wie ein Genie spricht und entscheidet, so ist es vollends lächerlich)» (Kant, 1998:
215). Quando assim é, diz Kant que «não se sabe bem se se deve rir mais do impostor
que difunde tanto fumo em torno de si e em que não se pode ajuizar nada claramente,
mas muito mais se imagina, ou se se deve rir mais do público, que candidamente
imagina que a sua incapacidade de reconhecer e captar claramente a obra-prima da
perspiciência provém de que verdades novas lhe são lançadas às mãos cheias e contra
o que a minúcia (através de explicações pontuais e exame sistemático dos princípios)
lhe parece ser somente obra de ignorante (man weiß nicht recht, ob man mehr über
den Gaukler, der um sich so viel Dunst verbreitet, wobei man nichts deutlich
beurteilen, aber desto mehr sich einbilden kann, oder mehr über das Publicum lachen
soll, welches sich treuherzig einbildet, dass sein Unvermögen, das Meisterstück der
Einsicht deutlich erkennen und fassen zu können, daher komme, weil ihm neue
Wahrheiten in ganzen Massen zugeworfen werden, wogegen ihm das Detail (durch
abgemessene Erklärungen und schulgerechte Prüfung der Grundsätze) nur
Stümperwerk zu sein scheint)» (Kant, 1998: 215).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 221


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

no §53, respectivamente as «regras de eufonia da língua ou da


conveniência da expressão para ideias da razão (Regeln des Wohllauts der
Sprache, oder der Wohlanstäntigkeit des Ausdrucks für Ideen der
Vernunft)» (Kant, 1998: 234) e a «harmonia (Harmonie)», a «melodia
(Melodie)» e a «forma matemática (mathematischen Form)» a elas ligada
(Kant, 1998: 235); finalmente, no §54, Kant indica que o objecto da bela
arte – seja ele do tipo, género ou forma que for – «requer uma certa
seriedade na apresentação (ein gewissen Ernst in der Darstellung
erfordert)» (Kant, 1998: 243).
O mais interessante a notar, porém, é a associação que Kant estabelece
entre os referidos constrangimentos – e, portanto, entre a componente
mecânica, coerciva e escolástica da bela arte – e o gosto. Os critérios
enunciados no início do §49 – a saber, a graciosidade e a elegância de uma
poesia, a precisão e o ordenamento de uma história, a profundidade e o
requinte de um discurso festivo, a dotação de entretenimento de uma
conversação ou a boniteza, a comunicatividade e a correcção de uma
mulher – são concernentes ao gosto. Acerca dos produtos que os
satisfazem, Kant afirma que «no que concerne ao gosto não se [encontra]
neles nada censurável (man an ihnen, was den Geschmack betrifft, nicht
zu tadeln findet)» (Kant, 1998: 218). Assim, se, na produção de uma obra
de arte, apenas os mencionados constrangimentos forem satisfeitos, essa
obra, embora possa ser «um produto pertencente à arte útil e mecânica ou
até mesmo à ciência segundo determinadas regras que podem ser
apreendidas e têm que ser rigorosamente seguidas (ein zur nützlichen und
mechanischen Kunst, oder gar zur Wissenschaft gehöriges Produkt nach
bestimmten Regeln sein, die gelernt werden können und genau befolgt
werden müssen)», como é salvaguardado pelo nosso autor, na parte final
do §48, «nem por isso é uma obra de arte bela (ist darum eben nicht ein
Werk der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 218).
O alicerce da mencionada associação reside numa tese que surge no
§47 e que tem a sua concretização no §48. Já citámos algumas das
passagens que em seguida citaremos. No §47, Kant assinala o seguinte:
«O génio pode somente fornecer uma matéria rica para produtos da arte

222 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

bela; a elaboração da mesma e a forma requerem um talento moldado pela


escola, para fazer dele uso que possa ser justificado perante a faculdade
do juízo ([d]as Genie kann nur reichen Stoff zu Produkten der schönen
Kunst hergeben; die Verarbeitung desselben und die Form erfordert ein
durch die Schule gebildetes Talent, um einen Gebrauch davon zu machen,
der vor der Urteilskraft bestehen kann)» (Kant, 1998: 215). Que esse
talento é o gosto, confirmamo-lo no parágrafo seguinte, como já
mostrámos. Aí, depois de estabelecer uma distinção entre beleza da
natureza e beleza da arte, chamando à beleza da arte «uma representação
bela de uma coisa (eine schöne Vorstellung von einem Dinge)» (Kant,
1998: 216), Kant afirma que a «representação bela de um objecto (schönen
Vorstellung eines Gegenstandes)» é apenas «a forma da apresentação de
um conceito, pela qual este é comunicado universalmente (die Form der
Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt
wird)», acrescentando, logo a seguir, que «para dar esta forma ao produto
da bela arte requer-se simplesmente gosto ([d]iese Form dem Produkte der
schönen Kunst zu geben, dazu wird bloß Geschmack erfordert)» (Kant,
1998: 217). Entretanto, ainda no §48, o nosso autor ressalva que a forma
citada «é somente o veículo da comunicação e uma maneira por assim
dizer da exposição, com respeito à qual em certa medida ainda se
permanece livre, embora ela de resto esteja comprometida com um
determinado fim (ist nur das Vehikel der Mitteilung und eine Manier
gleichsam des Vortrages, in Ansehung dessen man noch in gewissen Maße
frei bleibt, wenn er doch übrigens an einen bestimmten Zweck gebunden
ist)» (Kant, 1998: 218). Por isso é que a forma encontrada pelo artista é
tornada «adequada ao pensamento, sem todavia prejudicar a liberdade no
jogo daquelas faculdades (dem Gedanken angemessen und doch der
Freiheit im Spiele derselben nicht nachteilig werden zu lassen)» (Kant,
1998: 218). Assim, a partir de uma distinção entre génio e gosto, surgida
no §47 e concretizada no §48, «se pode perceber, numa obra que deve ser
de arte bela, frequentemente um génio sem gosto, e numa outra um gosto
sem génio (kann man an einem seinsollenden Werke der schönen Kunst
oftmals Genie ohne Geschmack, an einem andern Geschmack ohne Genie

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 223


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

wahrnehmen)» (Kant, 1998: 218). A distinção enunciada é, de resto,


reforçada no §50. Aí, ao mesmo tempo que coloca o génio do lado da
riqueza de espírito enquanto liberdade da faculdade da imaginação para
produzir disparates através do fornecimento de ideias estéticas originais,
Kant liga o gosto à faculdade do juízo enquanto faculdade de ajustamento
da liberdade, riqueza e originalidade da faculdade da imaginação à
legalidade do entendimento (cf. Kant, 1998: 225-226).
Associar a componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte
ao gosto é, necessariamente, associá-la à beleza. Assim, ainda no §50,
Kant indica que «unicamente em relação ao gosto [uma arte] merece ser
chamada uma bela arte (eine Kunst in Ansehung des zweiten allein eine
schöne Kunst genannt zu werden verdient)» e que o gosto «é, pelo
menos, enquanto condição indispensável (conditio sine qua non), o mais
importante que se tem de considerar no julgamento da arte como bela
arte (ist wenigstens als unumgängliche Bedingung (conditio sine qua
non) das Vornehmste, worauf man in Beurteilung der Kunst als schöne
Kunst zu sehen hat)» (Kant, 1998: 225). Tal é reforçado no §53. No
contexto das suas referências à música, o nosso autor sugere ser a forma
matemática o elemento ao qual «se prende o comprazimento que a
simples reflexão – acerca de um tão grande número de sensações que se
acompanham ou sucedem umas às outras – conecta com este jogo das
mesmas como condição da sua beleza (hängt das Wohlgefallen, welches
die bloße Reflexion über eine solche Menge einander begleitender oder
folgender Empfindungen mit diesem Spiele derselben als Bedingung
seiner Schönheit verknüpft)» (Kant, 1998: 235).226 Entretanto, no último
parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant
sublinha que «em cada arte o científico, que se refere à verdade na
apresentação de seu objecto, é com efeito a condição indispensável
(conditio sine qua non) da bela arte (was das Wissenschaftliche in jeder
Kunst anlangt, welches auf Wahrheit in der Darstellung ihres Objekts
geht, so ist díeses zwar die unumgängliche Bedingung (conditio sine qua

226
A matemática será, neste contexto, a condição indispensável da beleza.

224 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

non) der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 264). Todas estas passagens
exprimem uma associação da componente mecânica, coerciva e
escolástica da arte à beleza. De resto, elas são concordantes com a
designação que Kant dá, no §48, da forma da apresentação de um
conceito, pela qual este é comunicado universalmente (Form der
Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt
wird), forma que dissemos requerer apenas gosto. Nas palavras de Kant,
ela é a «forma da arte bela (Form der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 218).
Tendo em conta a maneira como iniciámos a nossa tese, a saber,
salientando que a faculdade através da qual se ajuíza o belo é o gosto e
que os juízos provenientes do gosto são juízos estéticos, afirmaríamos,
agora, que, estando associada ao gosto e à beleza, a componente mecânica,
coerciva e escolástica da bela arte é geradora de constrangimentos
meramente estéticos. Por serem concernentes ao gosto, à beleza, os
constrangimentos derivados do tipo, género ou forma de obra de arte que
uma obra de arte particular é suposto ser podem chamar-se estéticos. Uma
tal afirmação pode ser proferida. No entanto, ela tem de envolver uma
salvaguarda.
Considerando aquilo que mostrámos na secção “Juízo através do qual
se declara artístico um objecto”, torna-se claro que, antes de associar a
componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte ao gosto e à
beleza – algo que faz a partir do §48 – Kant associa-a ao lado artístico da
bela arte. No §43, Kant lembra que nas artes livres – e, portanto, na bela
arte – todavia (dennoch) se requer uma componente coerciva, mecânica
(cf. Kant, 1998: 208). De acordo com o §47, essa componente mecânica,
escolástica, é condição essencial não da vertente bela da beleza da arte,
não da beleza da bela arte, mas da sua vertente artística, da sua arte (Kunst)
(cf. Kant, 1998: 215). É para designar-se artístico (künstlich), segundo as
palavras do §46, e não para designar-se belo, que um objecto pressupõe
regras (cf. Kant, 1998: 211). Assim, a questão que importa colocar é a de
saber que gosto e que beleza são esses, associados por Kant ao lado
artístico da bela arte, que gosto e que beleza são esses, apresentados pelo
nosso autor como determinando toda uma componente mecânica, coerciva

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 225


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

e escolástica, que gosto e que beleza são esses, ligados a regras


determinadas, ao entendimento, à ciência. 227
Não pode tratar-se do gosto (Geschmack) que a Crítica da Faculdade
do Juízo critica e que pode ser aprimorado e consolidado pela crítica.228
Esse gosto, aprimorável e consolidável, eventualmente aprimorado e
consolidado com a terceira Crítica, é unicamente uma faculdade de juízo,
estética; o seu juízo baseia-se não em regras determinadas, mas num
sentimento de prazer no movimento recíproco simultaneamente livre e
harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por
ocasião da representação que ele faz de um objecto, na medida em que
esse movimento é formalmente conforme a fins. Também não pode tratar-
se do gosto (Geschmack) de cada um, enquanto faculdade de juízo estética
de um indivíduo, isto é, enquanto instância, num indivíduo, da faculdade
de juízo criticada no texto de Kant. Se a faculdade de juízo de um

227
Zammito apercebe-se da dificuldade em causa. Em primeiro lugar, ele assinala o
seguinte: «Espírito e vida, na ordem das coisas kantiana normal, deveriam condizer
com forma. Mecanismo e “corpo” deveriam, na ordem das coisas kantiana normal,
condizer com “matéria”. Mas mecanismo tem sido associado com gosto, e gosto com
“forma”, enquanto génio tem sido associado com “matéria”. No entanto, “espírito” e
“vida” claramente caem para o lado do génio» (Zammito, 1992: 144-145). Depois,
afirma que «tomando o gosto isoladamente» apenas pode produzir-se «um produto
“mecânico”, academicamente correcto, mas sem vida» (Zammito, 1992: 145).
Entretanto, em nota de rodapé, Zammito acrescenta que «isso que tem apenas gosto,
mas nenhum vestígio de génio, é, certamente, na medida em que se conforma a regras,
“correcto” e, Kant parece mesmo sugerir, belo» (Zammito, 1992: 381). De facto, é
isso que uma parte significativa da Crítica da Faculdade do Juízo nos leva a concluir.
O problema é que, mais preocupado com a consistência da descrição kantiana do génio
e do gosto, o intérprete não pensa qualquer consequência da associação da beleza ao
carácter coercivo, mecânico e escolástico da arte.
228
Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, imediatamente antes de
mencionar a «perspectiva surpreendente (auffallende Aussicht)» e «muito promissora,
em um sistema completo de todos os poderes-da-mente (viel verheißende in ein
vollständiges System aller Gemütskräfte)» que uma tal crítica «abre, ao preencher uma
lacuna no sistema de nossas faculdades-de-conhecimento (eröffnet, dadurch, dass sie
eine Lücke im System unserer Erkenntnisvermögen ausfüllt)», Kant refere-a como
«usada para o aprimoramento ou consolidação do próprio gosto (zur Verbesserung
oder Befestigung des Geschmacks selbst gebraucht wird)» (Kant, 1995: 83).

226 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

indivíduo for por ele exercida esteticamente, então o seu fundamento de


determinação é o fundamento de determinação da faculdade de juízo
estética, não, portanto, uma regra determinada. Por exclusão de partes, só
pode tratar-se do gosto (Geschmack) referido na parte final do Prólogo à
primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo. Afirma Kant, aí, que
a investigação da faculdade do gosto, enquanto faculdade de juízo
estética, não é aqui empreendida para a formação e cultura do gosto (pois
esta seguirá como até agora o seu caminho, mesmo sem todas aquelas
perquisições), mas simplesmente com um propósito transcendental (die
Untersuchung des Geschmacksvermögens, als ästhetischer Urteilskraft,
hier nicht zur Bildung und Kultur des Geschmacks (denn diese wird auch
ohne alle solche Nachforschungen, wie bisher, so hernerhin, ihren Gang
nehmen), sondern bloß in transzendentaler Absicht angestellt wird)
(Kant, 1998: 48).
Trata-se desse gosto (Geschmack) cuja formação e cultura é independente
de uma crítica do gosto enquanto crítica da faculdade de juízo estética,
independente, por conseguinte, daquilo que se faz na Crítica da Faculdade
do Juízo. Essa formação e cultura seguem um caminho próprio porque,
independentemente da legitimação de uma faculdade de juízo estética, têm
vindo a constituir um corpus. Um tal corpus tem como conteúdo objectos
artísticos que satisfazem os constrangimentos gerados pela componente
mecânica, coerciva e escolástica da bela arte, isto é, objectos que cumprem
regras determinadas pela forma de arte que representam. 229 Esses objectos
artísticos são mencionados naquelas ciências históricas às quais também
se chama, habitual mas equivocadamente, ciências belas (schöne
Wissenschaften). Compreendemo-lo através da explicação que, no §44,
Kant dá dessa designação:
O que ocasionou a expressão habitual ciências belas não foi sem dúvida
outra coisa que o ter-se observado bem correctamente que para a bela
arte em sua inteira perfeição se requer muita ciência, como por exemplo
o conhecimento de línguas antigas, conhecimento literário de autores que
são considerados clássicos, história, conhecimento das antiguidades,

229
Já citámos algumas dessas regras: «por exemplo na poesia a correcção e a riqueza
da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica» (Kant, 1998: 208).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 227


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

etc., e por isso estas ciências históricas, pelo facto de constituírem a


preparação necessária e a base para a bela arte, em parte também porque
nesse conceito foi compreendido mesmo o conhecimento dos produtos
da mesma (oratória e poesia), por um equívoco terminológico foram
mesmo chamadas ciências belas (Was den gewöhnlichen Ausdruck
schöne Wissenschaften veranlaßt hat, ist ohne Zweifel nichts anders, als
dass man ganz richtig bemerkt hat, es werde zur schönen Kunst in ihrer
ganzen Vollkommenheit viel Wissenschaft, als z. B. Kenntnis alter
Sprachen, Belesenheit der Autoren, die für Klassiker gelten, Geschichte,
Kenntnis der Altertümer usw., erfordert, und deshalb diese historischen
Wissenschaften, weil sie zur schönen Kunst die notwendige Vorbereitung
und Grundlage ausmachen, zum Teil auch weil darunter selbst die
Kenntnis der Produkte der schönen Kunst (Beredsamkeit und
Dichtkunst) begriffen worden, durch eine Wortverwechselung selbst
schöne Wissenschaften genannt hat) (Kant, 1998: 208-209).
Independentemente do contra-senso (Unding) que a designação implica,
as chamadas ciências belas contêm referências a produtos da bela arte, isto
é, a obras de arte que cumprem regras ligadas à componente mecânica,
coerciva e escolástica da bela arte.230 É nessas ciências históricas que são
referidos os «modelos da bela arte (Muster der schönen Kunst)», acerca
dos quais Kant diz serem «os únicos meios de orientação para conduzir a
arte à posteridade (die einzigen Leitungsmittel, diese auf die
Nachkommenschaft zu bringen)» (Kant, 1998: 214). Numa nota a uma
passagem do §17, Kant chamava-lhes «[m]odelos do gosto (Muster des
Geschmacks)» (Kant, 1998: 267). As habitual mas equivocadamente
chamadas ciências belas plasmam aquele corpus no qual o gosto tem
vindo a constituir-se independentemente da legitimação de uma faculdade
de juízo estética.
Assim, embora os constrangimentos gerados pela componente
mecânica, coerciva e escolástica da bela arte sejam constrangimentos aos
quais pode chamar-se estéticos, precisamente porque ligados ao gosto,
essa designação baseia-se num uso indistinto da noção de gosto em
sentidos diferentes. Para ser livremente declarada bela, isto é, para ser

230
É também enquanto tal que essas ciências são tão importantes para a bela arte
como, na passagem citada, Kant afirma que elas são.

228 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

declarada bela através de um puro juízo de gosto, uma obra de arte tem de
satisfazer constrangimentos ligados ao gosto. 231 Mas o gosto a que tais
constrangimentos estão associados não corresponde ao gosto enquanto
faculdade de juízo estética.
Ainda assim, devemos notar ser o próprio Kant quem usa
indistintamente a palavra gosto. Esse facto, por si só, possibilita que a
beleza de alguma arte seja uma beleza livre, uma beleza declarada através
de puros juízos de gosto. Talvez seja essa a razão pela qual, na Crítica da
Faculdade do Juízo, nunca é colocada – pelo menos explicitamente – a
questão de saber se pode falar-se de bela arte enquanto arte livremente
declarada bela, isto é, enquanto arte declarada bela através de puros juízos
de gosto.232 No entanto, é pertinente ressalvar que aceitá-lo significa
resolver através de uma coincidência meramente terminológica uma
questão cuja dificuldade assenta nas exigências estabelecidas pelo gosto
enquanto faculdade de juízo estética.

***

Consideramos ter respondido de maneira suficientemente fundamentada à


questão de saber se e como pode falar-se de beleza artística no contexto
da Crítica da Faculdade do Juízo, se e sob que condições é legítimo usar-
se essa expressão no âmbito da terceira Crítica de Kant. Está legitimada a
noção de bela arte.
Para o fazermos, fomos obrigados a partir da sua definição como arte
do génio, da explicitação da noção de ideia estética e da denominação da
beleza como expressão de ideias estéticas. Essa opção permitiu-nos

231
Não constituindo uma condição suficiente para tal, essa condição é, ainda assim,
uma condição necessária.
232
De resto, de modo explícito, Kant não coloca sequer a questão de saber se pode
falar-se de bela arte enquanto arte condicionadamente declarada bela, enquanto arte
declarada bela através de juízos de gosto aplicados.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 229


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

concluir que, de acordo com Kant, o exercício da faculdade da imaginação


daquele que ajuíza pode ser não apenas um exercício harmónico com a
actividade do entendimento, mas igualmente um exercício livre, mesmo
quando no seu juízo ele é obrigado a reconhecer um conceito dado.
Concluímos também que, de novo no entender de Kant, o exercício da
faculdade da imaginação daquele que ajuíza pode ser um exercício livre
mesmo se for tida em conta a perfeição do objecto artístico.
É precisamente essa possibilidade que autoriza que a beleza aderente
seja beleza e que o juízo de gosto aplicado seja juízo de gosto. Assim
sendo, é através dela que justificamos a possibilidade de ajuizar-se um
objecto artístico através de um juízo de gosto, a possibilidade de declarar-
se bela uma obra de arte, a possibilidade de falar-se de bela arte – a
possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de
gosto aplicado, a possibilidade de condicionadamente se declarar bela uma
obra de arte, a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte
condicionadamente declarada bela, a possibilidade de falar-se de bela arte
enquanto arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados.
Não é ela, porém, que autoriza que a beleza da arte seja uma beleza
livre. A possibilidade de livremente se declarar bela uma obra de arte, a
possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte através de um puro juízo
de gosto, tal possibilidade depende de uma interpretação do termo
representação num sentido exemplificativo ligado ao gosto, de uma nova
releitura das distinções “beleza livre – beleza aderente” e “puro juízo de
gosto – juízo de gosto aplicado”, que as entenda como distinções entre
belezas ou juízos de gosto nos quais apenas são considerados propósitos e
constrangimentos do âmbito do gosto e belezas ou juízos de gosto nos
quais são tidos em conta propósitos e constrangimentos que não pertencem
a esse âmbito, e, finalmente, da aceitação da plurivocidade de sentido da
noção de gosto.233

233
Para uma compreensão esquemática das condições de possibilidade de se declarar
livremente bela uma obra de arte, remetemos o leitor para o anexo “3. Livre
Declaração da Obra de Arte como Bela”.

230 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


BELA ARTE

Legitimada a noção de bela arte, quer enquanto arte


condicionadamente declarada bela, isto é, arte declarada bela através de
juízos de gosto aplicados, quer enquanto arte livremente declarada bela,
isto é, arte declarada bela através de puros juízos de gosto, estamos em
condições de tentar responder à questão de saber o que é necessário para
a produção de belas obras de arte.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 231


Capítulo IV: Para a Produção
de Bela Arte

1. EDUCAÇÃO DO GÉNIO

A questão que até aqui moveu a nossa investigação foi a de saber se e


como pode falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do
Juízo. Respondida essa questão, apresentadas as condições sob as quais é
legítimo falar-se de bela arte no âmbito da terceira Crítica de Kant, é
nossa tarefa responder à questão de saber o que é necessário para a
produção de bela arte, o que é necessário para a produção de objectos
artísticos belos.
Na subsecção “Expressão de ideias estéticas”, reproduzimos e
justificámos a afirmação de Kant segundo a qual «[b]ela arte é arte do
génio ([s]chöne Kunst ist Kunst des Genies)» (Kant, 1998: 211). À

232 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

questão de saber o que é necessário para a produção de obras de arte belas


seria de prever que, legitimada a noção de bela arte, respondêssemos com
uma única palavra: génio. Uma tal resposta seria precipitada. Há várias
passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que nos impedem de dá-la.
Devemos dedicar-lhes a nossa atenção.
Na parte final do §47, Kant assinala que «[o] génio pode somente
fornecer uma matéria rica para produtos da arte bela ([d]as Genie kann
nur reichen Stoff zu Produkten der schönen Kunst hergeben)» (Kant,
1998: 215). Essa matéria rica é constituída por ideias estéticas, que aquele
que é dotado de génio fornece através da capacidade produtiva da sua
imaginação. Numa nota a uma passagem do §17 – também já lhe fizemos
referência – o nosso autor indica que naquilo «que se denomina génio (…)
a natureza parece afastar-se das relações normais das faculdades do ânimo
em benefício de uma faculdade só (dem, was man Genie nennt (…) die
Natur von ihren gewöhnlichen Verhältnissen der Gemütskräfte zum
Vorteil einer einzigen abzugehen scheint)» (Kant, 1998: 268). A faculdade
beneficiada é a imaginação, faculdade através do qual o génio fornece a
mencionada matéria rica para obras de arte belas. Acontece que, como
Kant vem a acrescentar, no §50, «toda a riqueza da [faculdade da
imaginação] não produz, na sua liberdade sem leis, senão disparates (aller
Reichtum der ersteren bringt in ihrer gesetzlosen Freiheit nichts als
Unsinn hervor)» (Kant, 1998: 225). Se assim é, então, considerar o
exercício do génio, por si só, suficiente para a produção de belas obras de
arte tem como consequência identificar a bela arte com uma produção
disparatada de matéria. Mas, visto que uma tal identificação não é, de todo,
aceitável, o nosso autor conclui que «[s]e portanto no conflito de ambas
as espécies de propriedades algo deve ser sacrificado num produto, então
isto terá que ocorrer antes do lado do génio ([w]enn also im Widerstreite
beiderlei Eingeschaften an einem Produkte etwas aufgeopfert werden soll,
so müsste es eher auf der Seite des Genies geschehen)» (Kant, 1998: 226).
O sacrifício não pode incidir sobre o gosto ou sobre a faculdade do juízo
em geral, que ajusta a riqueza da faculdade da imaginação ao
entendimento.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 233


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

De certa maneira, as passagens que acabámos de citar contrariam uma


outra, já transcrita por nós, segundo a qual
o génio consiste na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e
nenhuma diligência pode aprender, de encontrar ideias para um conceito
dado e por outro lado de encontrar para elas a expressão pela qual a
disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto
acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (besteht
das Genie eigentlich in dem glücklichen Verhältnisse, welches keine
Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem gegebenen
Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den Ausdruck zu
treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive Gemütstimmung, als
Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt werden kann) (Kant, 1998:
223).234
Nesta passagem, da parte final do §49, Kant sugere que o génio tem mais
poderes do que aqueles que lhe são atribuídos ou aos quais é associado nas
passagens que acima citámos. O génio não apenas encontra ideias
estéticas, mas igualmente encontra para essas ideias uma expressão
mediante a qual as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se
dispõem conformemente a fins para o conhecimento em geral. 235
Não só a noção de gosto é usada por Kant em sentidos diferentes e sem
que haja qualquer explicação ou sequer aviso para tal uso, então, como
vimos no capítulo anterior; igualmente o é a noção de génio. A partir da
descrição do génio proposta no §49, conclui-se que para a bela arte é
necessário apenas génio. Por intermédio do espírito, o génio apresenta as
ideias estéticas de uma maneira adequada à beleza. Tal é concordante com
a primeira consequência por nós observada, na subsecção “Expressão de
ideias estéticas”, precisamente a partir da descrição da noção de espírito
elaborada por Kant no §49. Dissemos nós, nessa altura, que uma obra de
arte de génio é um objecto que através de um juízo de gosto não pode ser
declarado se não como belo. No entanto, acabámos de citar algumas

234
Essa expressão – assinalámo-lo – é encontrada pelo espírito.
235
Daí assinalar Gilles Deleuze que «[o] acordo da imaginação e do entendimento,
nas artes, só é vivificado pelo génio, e sem ele ficaria incomunicável» (Deleuze,
2000: 63).

234 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que sugerem uma


insuficiência do génio para a bela arte. 236 Além disso, a descrição do génio
proposta no §49 parece contraditória com algo afirmado por Kant no §48,
a saber, que o gosto é a faculdade através da qual se dá a uma obra de arte
«a forma da apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado
universalmente (die Form der Darstellung eines Begriffs, durch welche
dieser allgemein mitgeteilt wird)» (Kant, 1998: 217). De acordo com esta
passagem, no contexto da bela arte, um conceito torna-se universalmente
comunicável através do gosto; segundo aquela, do §49, é através do génio
– nomeadamente, por intermédio do espírito – que tal acontece. 237
Uma tentativa de ultrapassar os conflitos evidenciados pela
confrontação das passagens por nós mencionadas consiste na tese de
acordo com a qual, entre o §47 e o §49, Kant terá alterado a sua posição
concernente às capacidades do génio. Essa tese privilegia a posição de
Kant plasmada no §49, na medida em que este parágrafo está mais
próximo do final da Crítica da Faculdade do Juízo – ou do término de
uma parte da mesma. Uma tal tomada de partido é consonante com muito
do que é afirmado no §48, quer acerca do gosto, quer acerca do génio.
Respectivamente, no início e no fim desse parágrafo, Kant salienta que
«[p]ara o julgamento de objectos belos enquanto tais requer-se gosto ([z]ur

236
Henry E. Allison chega a considerar que o §50 pode ser interpretado como uma
parte do texto de Kant na qual o nosso autor parece insinuar que o gosto constitui
condição suficiente para que se produzam obras de arte belas. Diz o comentador que
«Kant parece sugerir ao mesmo tempo que o génio é necessário para a produção de
bela arte (§46) e que o gosto sem génio é suficiente (§50)» (Allison, 2001: 273).
237
Os conflitos para os quais aqui chamamos a atenção ocorrem no interior da Crítica
da Faculdade do Juízo, mediante a contraposição de algumas passagens da obra. Num
âmbito mais alargado, a saber, o do inteiro trabalho filosófico de Kant, a plurivocidade
de sentido da noção de génio é ainda mais evidente. A nossa intenção não passa,
contudo, por descrever o desenvolvimento da noção de génio ao longo do trabalho
filosófico de Kant. Àqueles que pretendam satisfazer um tal fim, sugere-se desde logo
a leitura do artigo “Kant’s Early Theory of Genius (1770-1779)”, no qual Giorgio
Tonelli tenta «reconstruir o desenvolvimento das ideias de Kant acerca do génio
utilizando os materiais contidos no seu Nachlass, publicado por Adickes» (Tonelli,
1966: 109), assim como de Kants Lehre von Genie und die Entstehung der “Kritik
der Urteilskraft”, texto no qual Otto Schlapp recorre aos Kolleghefte.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 235


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Beurteilung schöner Gegenstände als solcher wird Geschmack


erfordert)» (Kant, 1998: 215) e que «[o] gosto é (…) simplesmente uma
faculdade de julgamento e não uma faculdade produtiva (Geschmack ist
bloß ein Beurteilungs-, nicht ein produktives Vermögen)» (Kant, 1998:
218). No mesmo parágrafo, o nosso autor lembra que «para a própria arte,
isto é para a produção de [objectos belos], requer-se génio (zur schönen
Kunst selbst, d. i. der Hervorbringung solcher Gegenstände, wird Genie
erfordert)» (Kant, 1998: 215)238,e assim repete o primeiro ponto que ele
próprio assinalou na sua primeira explicação da noção de génio, a saber,
que o génio «é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode
fornecer nenhuma regra determinada (ein Talent sei, dasjenige, wozu sich
keine bestimmte Regel geben lässt, hervorzubringen)» (Kant, 1998: 212).
O gosto, então, é uma faculdade para ajuizar; o génio, por sua vez, um
talento para a produção. O gosto não produz; o génio não ajuíza. Não
obstante ambos serem necessários para a bela arte, um para produzir, o
outro para ajuizar, não haverá, nesse contexto, qualquer relação entre eles.
Embora possa ser tentadora, a proposta que acabámos de apresentar –
de acordo com a qual Kant terá alterado a sua posição concernente às
capacidades do génio, tendo passado a considerá-lo condição suficiente
para a produção de bela arte e a defender a inexistência de quaisquer
relações entre esse talento e o gosto – não pode ser admitida. Ela entra em
conflito desde logo com o título do §48: «Da relação do génio com o gosto
(Vom Verhältnisse des Genies zum Geschmack)» (Kant, 1998: 215).
Mesmo que este título fosse encarado como uma imprecisão decorrente de
uma hesitação de Kant – até pela sua colocação, como título do parágrafo
que medeia aqueles nos quais a posição do nosso autor relativamente às
capacidades do génio alegadamente se altera – facto é que o título do §50,
a saber, «Da ligação do gosto com o génio em produtos da bela arte (Von
der Verbindung des Geschmacks mit Genie in Produkten der schönen

238
Já tivemos o cuidado de assinalar que, no concernente a esta passagem, a tradução
elaborada por António Marques e Valério Rohden é incompleta. O génio é requerido
unicamente para a bela arte, não para toda e qualquer arte.

236 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

Kunst)» (Kant, 1998: 225) reforça a relação entre os dois talentos em


causa no contexto da beleza artística. Além disso, os conteúdos do §50
plasmam uma insuficiência do génio para a bela arte. A frase com que
Kant fecha esse parágrafo indica-o claramente: «para a arte bela requerer-
se-iam faculdade da imaginação, entendimento, espírito e gosto ([z]ur
schönen Kunst würden Einbildungskraft, Verstand, Geist und Geschmack
erforderlich sein)» (Kant, 1998: 226), sendo que «[a]s três primeiras
faculdades obtêm a sua unificação antes de tudo pela quarta ([d]ie drei
ersteren Vermögen bekommen durch das vierte allererst ihre
Vereinigung)» (Kant, 1998: 269), isto é, pelo gosto.
Perante a dificuldade com que nos confrontamos, poderia
simplesmente admitir-se a inconsistência da Crítica da Faculdade do
Juízo no que concerne às noções de gosto e de génio – por conseguinte,
relativamente àquilo que é necessário para a bela arte – e assumir-se que
há duas concepções, incompatíveis, sem adiantar qualquer explicação para
elas.239 Em nosso entender, porém, há uma perspectiva a partir da qual
aquilo que de aparentemente contraditório Kant nota acerca do génio não
carece de compatibilidade. Essa perspectiva assenta na tese segundo a qual
nem todos os homens dotados de génio estão no mesmo patamar de
prontidão para produzir belas obras de arte.
Ser dotado de génio corresponde a possuir um talento outorgado pela
natureza sob a forma de uma proporção especial das faculdades do ânimo.
No entanto, apesar de todos os génios (todos os homens dotados de génio)
possuírem, por definição, um tal dom, nem todos estão nas mesmas
condições para a produção de objectos artísticos belos. Desde logo no §47,
ao elucidar e confirmar a introdução da noção de génio feita no parágrafo
anterior, Kant menciona a figura do aprendiz (Lehrling) (cf. Kant, 1998:
214). Entretanto, no §60, no âmbito das suas últimas considerações
relativas à bela arte, o nosso autor faz referência às figuras do mestre

É essa a tese de Allison, de novo, para quem no texto de Kant podem observar-se
239

duas concepções de génio: uma «concepção grossa» e uma «concepção fina» (Allison,
2001: 301).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 237


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(Meister) e do discípulo (Schüler) (cf. Kant, 1998: 264). Se recorrermos à


explicitação do processo de sucessão entre génios, isto é, entre mestre e
aprendiz ou discípulo, compreendemos que o simples facto de este último
possuir um dom natural ao qual se chama génio não é suficiente para que
ele produza uma bela obra de arte. Um outro talento é necessário para a
produção de objectos artísticos belos.240
Quando, no §46, refere que os produtos do génio têm de ser exemplares
e, portanto, servir de padrão de medida ou regra de julgamento, Kant
assinala que «eles próprios não surgiram por imitação (selbst nicht durch
Nachahmung entsprungen)» (Kant, 1998: 212). Assim como não surgiram
por imitação, os produtos do génio não podem servir de padrão de medida
ou regra de julgamento para aqueles que os acolhem se estes os encararem
como protótipos e optarem pela cópia, pela imitação. Nesse caso, asfixia-
se (erstickt man) a liberdade da faculdade da imaginação, perde-se o
ímpeto espiritual (Geistesschwunges), anula-se o carácter genial da obra
(cf. Kant, 1998: 224 e 265).241 A imitação revela apenas habilidade.242 No
âmbito da imitação, há, como é indicado no §47, diferenças de grau
(Grade), não diferenças específicas (spezifische Unterschiede) (cf. Kant,
1998: 213). Os maiores descobridores, como Newton, que não apenas
apreendem aquilo que por outros foi pensado, mas também pensam e

240
Por isso é que deve afirmar-se que só em princípio é que o génio é sempre exemplar
(cf. Gil, 1998: 273).
241
Segundo Kant, o exercício do génio nem sequer deve envolver «uma precaução
receosa (ängstliche Behutsamkeit)» (Kant, 1998: 224). Ele deve envolver coragem,
mesmo que tal resulte na concessão de deformidades (Missgestalten): «Unicamente
num génio esta coragem é mérito; e uma certa audácia na expressão e em geral algum
desvio da regra comum fica-lhe bem (Dieser Mut ist an einem Genie allein Verdienst;
und eine gewisse Kühnheit im Ausdrucke und überhaupt manche Abweichung von der
gemeinen Regel steht demselben wohl an)» (Kant, 1998: 224). Esta tese pode ser
encarada como de alguma maneira já sugerida em O Belo e o Sublime, de 1764, onde
Kant refere os «movimentos livres e naturais do génio, cuja beleza resultaria somente
desfigurada por uma correcção trabalhosa dos defeitos» (Kant, 1943: 74).
242
Como é dito no §17, acerca do ideal da beleza, «quem (…) imita um modelo, na
verdade mostra, na medida em que o consegue, habilidade (wer ein Muster nachahmt,
zeigt, sofern als er es trifft, zwar Geschicklichkeit)» (Kant, 1998: 123).

238 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

imaginam, eles próprios, são grandes cabeças (große Köpfe); os mais


laboriosos imitadores e aprendizes, são, no entender de Kant, patetas
(Pinsel) (cf. Kant, 1998: 212-213). Para as grandes cabeças, o exemplo do
génio produz «uma escola, isto é um ensinamento metódico segundo
regras, na medida em que se tenha podido extraí-lo daqueles produtos do
espírito e da sua peculiaridade (eine Schule, d. i. eine methodische
Unterweisung nach Regeln, soweit man sie aus jenen Geistesprodukten
und ihrer Eigentümlichkeit hat ziehen können)», mas, mesmo para elas, a
bela arte é «uma imitação para a qual a natureza deu, através do génio, a
regra (Nachahmung, der die Natur durch ein Genie die Regel gab) (Kant,
1998: 224). Quanto aos patetas, que copiam «tudo, até aquilo que
enquanto deformidade o génio somente teve que conceder, porque não
podia eliminá-la sem enfraquecer a ideia (alles, was das Genie als
Missgestalt nur hat zulassen müssen, weil es sich, ohne die Idee zu
schwächen, nicht wohl wegschaffen ließ)», para esses «aquela imitação
torna-se macaquice (diese Nachahmung wird Nachäffung)» (Kant, 1998:
224).243 Segundo Kant, uma obra de arte de génio serve de produto
exemplar e, assim, de padrão de medida ou regra de julgamento para
aquele que a acolhe, se este a encarar como modelo da sucessão (cf. Kant,
1998: 214).244

243
Uma espécie de macaquice é o maneirismo (das Manierieren), imitação «da
simples peculiaridade (originalidade) em geral, para distanciar-se o mais possível dos
imitadores, sem contudo possuir o talento para ser ao mesmo tempo exemplar (der
bloßen Eigentümlichkeit (Originalität) überhaupt, um sich ja von Nachahmern so
weit als möglich zu entfernen, ohne doch das Talent zu besitzen, dabei zugleich
musterhaft zu sein)» (Kant, 1998: 224-225). Trata-se de um produto «amaneirado
unicamente se a apresentação da sua ideia visar nele a singularidade e não for
adequada à ideia ([a]llein manieriert nur alsdann, wenn der Vortrag seiner Idee in
demselben auf die Sonderbarkeit angelegt und nicht der Idee angemessen gemacht
wird)» (Kant, 1998: 225).
244
Notam Marques e Rohden, que «[n]o manuscrito de Kant constou Nachahmung …
Nachahmung (imitação … imitação)», sendo que «“[c]ópia” e “imitação” são
expressões devidas a Kiesewetter» (Kant, 1998: 214). A edição da Preußische
Akademie der Wissenschaften preserva o que se lê no manuscrito. O mais importante,
porém, é assinalar, precisamente como fazem os autores da tradução por nós utilizada
da Kritik der Urteilskraft para o Português, que «Kant teria querido escrever

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 239


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

O que é que significa sucessão (Nachfolge) – como é que, no


contexto da bela arte, se sucede? Embora, no âmbito dos §46 e §47,
depois de afirmar que «a regra tem que ser abstraída do acto, isto é do
produto, no qual outros queiram testar o seu próprio talento (die Regel
muss von der Tat, d. i. vom Produkt, abstrahiert werden, an welchem
andere ihr eigenes Talent prüfen mögen)», Kant admita que «[é] difícil
explicar como isto seja possível» e acrescente apenas que «[a]s ideias
do artista provocam ideias semelhantes no aprendiz, se a natureza o
proveu com uma proporção semelhante de faculdades do ânimo ([d]ie
Ideen des Künstlers erregen ähnliche Ideen seines Lehrlings, wenn ihm
die Natur mit einer ähnlichen Proportion der Gemütskräfte versehen
hat)» (Kant, 1998: 214); apesar disso, muito antes, no §32, logo depois
de ter descrito a sucessão como sendo «a influência que produtos de
um autor original podem ter sobre outros (Einfluß, welchen Produkte
eines exemplarischen Urhebers auf Andere haben können)», ele afirma
que tal somente quer dizer «haurir das mesmas fontes das quais aquele
próprio hauriu e apreender do seu predecessor somente a maneira de
proceder nesse caso (aus denselben Quellen schöpfen, woraus jener
selbst schöpfte, und seinem Vorgänger nur die Art, sich dabei zu
benehmen, ablernen)» (Kant, 1998: 184).
Que maneira é essa? Embora não seja possível ensinar
metodicamente o modo de proceder na bela arte, tal modo é passível
de sucessão se o discípulo tiver como padrão de medida aquilo a que
Kant chama «o sentimento da unidade na apresentação (das Gefühl
der Einheit in der Darstellung)» (Kant, 1998: 225). É esse o padrão

Nachahmung … Nachfolge (imitação … sucessão)» (Kant, 1998: 214). Tal tese é


muito significativamente reforçada por uma passagem do olhar retrospectivo que Kant
lança sobre a explicação da noção de génio, na qual o nosso autor afirma que «o
produto de um génio (de acordo com o que nele é atribuível ao génio e não ao possível
aprendizado ou à escola) é um exemplo não para a imitação (…) mas para a sucessão
por um outro génio (ist das Produkt eines Genies (nach demjenigen, was in demselben
dem Genie, nicht der möglichen Erlernung oder der Schule zuzuschreiben ist) ein
Beispiel nicht der Nachahmung, sondern der Nachfolge für ein anderes Genie)»
(Kant, 1998: 224).

240 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

do modus aestheticus, isto é, da maneira (Manier).245 É o sentimento


da unidade na apresentação, então, aquilo que possibilita que a
faculdade da imaginação do discípulo seja despertada «para a
conformidade com um conceito dado (zur Angemessenheit mit einem
gegebenen Begriffe)» (Kant, 1998: 264); e é por intermédio de um tal
sentimento, por conseguinte, que – experimentando o seu génio,
através da produção de ideias estéticas, no produto de outro génio –
o discípulo «é despertado para o sentimento da sua própria
originalidade, exercitando na arte uma tal liberdade em relação à
coerção de regras, que a própria arte obtém por este meio uma nova
regra, pela qual o talento se mostra como exemplar (zum Gefühl
seiner eigenen Originalität aufgeweckt wird, Zwangsfreiheit von
Regeln so in der Kunst auszuüben, dass diese dadurch selbst eine
neue Regel bekommt, wodurch das Talent sich als musterhaft zeigt )»
(Kant, 1998: 224). O processo de sucessão só se efectiva se, em face
da obra do mestre, o aprendiz, além de ser original, sentir a unidade
na apresentação, padrão do modus aestheticus, único modo de
composição dos pensamentos válido para a bela arte.
Enunciado o carácter decisivo da sucessão para a produção de
belas obras de arte, aquilo que agora importa notar é que o
sentimento da unidade na apresentação pode ocorrer unicamente se
o aprendiz exercer a sua faculdade de juízo estética, isto é, se ele

245
A clarificação da distinção entre método e maneira é apresentada por Kant no final
da revisão da noção de génio, depois do §49: «Na verdade há na exposição dois modos
(modus) em geral de composição dos seus pensamentos, um dos quais chama-se
maneira (modus aestheticus) e o outro, método (modus logicus), que se distinguem
entre si no facto que o primeiro modo não possui nenhum outro padrão que o
sentimento da unidade na apresentação, enquanto que o outro segue princípios
determinados; para a arte bela vale portanto só o primeiro modo (Zwar gibt es
zweierlei Art (modus) überhaupt der Zusammenstellung seiner Gedanken des
Vortrages, deren die eine Manier (modus aestheticus), die andere Methode (modus
logicus) heißt, die sich darin von einander unterscheiden: dass die erstere kein
anderes Richtmaß hat, als das Gefühl der Einheit in der Darstellung, die andere aber
hierin bestimmte Prinzipien befolgt; für die schöne Kunst gilt also nur die erstere)»
(Kant, 1998: 225).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 241


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

exercer o seu gosto. Estamos autorizados a afirmar, então, que só


exercendo o seu gosto pode o discípulo tornar-se mestre; só assim
pode ele impedir que a sua faculdade da imaginação, enquanto
produtora, se exerça num regime de liberdade sem leis e,
consequentemente, de produção de meros disparates; só exercendo
o seu gosto pode o discípulo averiguar e melhorar a adequabilidade
das suas ideias e da maneira como as apresenta, a qualidade da sua
expressão, verificar se essa expressão dispõe as faculdades da
imaginação e do entendimento conformemente a fins para o
conhecimento em geral, se a maneira de apresentar o m aterial
fornecido pela capacidade produtiva da faculdade da imaginação é
adequada para comunicar universalmente o inefável, se ela é
adequada à comunicabilidade universal da disposição subjectiva do
ânimo por ocasião da representação do objecto, podendo me lhorá-la
se não for; só assim pode aquele que é dotado de génio avaliar e
possibilitar o reforço da consistência das suas ideias, da capacidade
de as suas ideias serem universal e duradouramente aprovadas, pode
ele avaliar e possibilitar o reforço da capacidade que essas ideias
terão de promover a sucessão de outros e o crescimento da cultura;
só se o génio exercer o seu gosto podem os seus produtos ser não
apenas originais, mas também exemplares e, por conseguinte, servir
de padrão de medida ou regra de julgamento para outros. Por outras
palavras, só através do exercício do gosto pode ser desenhado o
círculo produtivo, pode ser feita a sucessão entre mestre e discípulo,
pode o novo génio ser «a originalidade exemplar do dom natural de
um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento» (Kant,
1998: 224), pode ele ser aquele que «é original e ao mesmo tempo
inaugura uma nova regra, que não pôde ser inferida de quaisquer
princípios ou exemplos anteriores (original ist und zugleich eine
neue Regel eröffnet, die aus keinen vorhergehenden Prinzipien oder
Beispielen hat gefolgert werden können)» (Kant, 1998: 223). Só se
o génio exercer o seu gosto podem os seus produtos ser exemplos
para a sucessão por génios subsequentes; só assim pode ele

242 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

inaugurar uma nova regra. Só se o génio exercer o seu gosto pode a


natureza, através dele, dar a regra à bela arte; só assim podem as
suas obras de arte ser belas. 246
Mediante a proposta que acabámos de apresentar para salvar as
considerações que Kant faz acerca do génio da queda numa
contradição, proposta que encara como decisiva a distinção
estabelecida por Kant entre mestre, por um lado, e aprendiz ou
discípulo, por outro, assim como a importância do gosto para a
efectivação do processo de sucessão entre artistas dotados de génio,
pode ser compreendida, finalmente, e reconhecida como feliz, a
analogia sugerida por Gary Banham, para quem
[s]e o génio nos providencia a noção de uma segunda natureza, o
gosto é como um segundo juízo dentro dessa segunda natureza,
regulando a nossa dieta de maneira a que a nova natureza se mantenha
numa condição saudável. O gosto é o médico da segunda natureza
(Banham, 2000: 113).
O exercício do génio pode levar, de facto, a uma produção
disparatada de matéria. Mas se o exercício do génio, enquanto um
tal talento é um talento para a bela arte, não pode ser identificado
com uma produção disparatada de matéria, se, portanto, a arte do
génio, enquanto bela arte, não é o resultado de uma produção desse
tipo, então aquele que é dotado de génio tem de exercer o seu gosto.
O exercício do génio no sentido da produção de objectos belos
depende do exercício do gosto – para produzir belas obras de arte,
aquele que é dotado de génio tem de exercer a sua faculdade de juízo
estética. A razão disso é que ele (aquele que é dotado de génio, não
o próprio génio, enquanto talento) tem de ajuizar, sendo que a
faculdade através da qual se ajuíza o belo não é outra que não o
gosto, faculdade de juízo estética.

246
Respondemos deste modo à questão, lançada por Fernando Gil, de sabe r
«[c]omo se concilia a exemplaridade do gosto e do génio com a
“subjectividade” do juízo de gosto e com a “originalidade” do génio» (Gil, 1998:
273).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 243


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

2. CULTIVO, EXERCITAMENTO E CORRECÇÃO DO GOSTO

Numa tentativa inicial de responder à questão de saber o que é necessário


para a produção de bela arte, acabámos de mostrar que, sendo condição
indispensável, o génio não é condição suficiente para tal. Para produzir
objectos artísticos belos é igualmente necessário gosto – aquele que é
dotado de génio tem de exercer a sua faculdade de juízo estética. Sem
prejuízo desta afirmação, devemos notar, porém, haver várias passagens
da Crítica da Faculdade do Juízo a indicar que, assim como nem todos
aqueles que são dotados de génio estão no mesmo patamar de prontidão
para produzir belas obras de arte, também nem todos aqueles que são
dotados de gosto estão nas mesmas condições para ajuizar correctamente
uma obra de arte como bela. Tais passagens deverão ser consideradas
numa tentativa de fornecer uma resposta mais completa à questão de
saber o que é necessário para produzir objectos artísticos belos. Fá-lo-
emos sem negar que um génio que exerça o seu gosto é indispensável à
produção de bela arte.
No “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins
que neles é considerada”, Kant indica que o gosto é cultivado. Fá-lo no
§14, ao mencionar a «cultura (Kultur)» do gosto (Kant, 1998: 115). No
mesmo parágrafo, o nosso autor refere um gosto «autêntico, incorrompido
e sólido (echten, unbestochenen, gründlichen)» e sugere diferentes fases
do gosto, por exemplo aquela na qual ele é «ainda rude e não exercitado
(noch roh und ungeübt)», é «ainda fraco e não exercitado (schwach und
ungeübt)» (Kant, 1998: 115).247 O gosto (a faculdade de juízo estética) é
uma faculdade cultivável e exercitável. 248 Entretanto, no §48, Kant
acrescenta que o gosto é «exercitado e corrigido através de diversos

247
Tal vai ao encontro do parágrafo anterior (§13) no qual Kant refere um gosto «ainda
bárbaro (noch barbarisch)» (Kant, 1998: 113).
248
A afirmação de um gosto que se desenvolve não é uma novidade da Crítica da
Faculdade do Juízo. Em O Belo e o Sublime, Kant refere um «gôsto que por vezes se
afina» (Kant, 1943: 60). Esse gosto, inicialmente «rude» (Kant, 1943: 60), pode
transformar-se num «gôsto muito apurado» (Kant, 1943: 63).

244 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

exemplos da arte ou da natureza (durch mancherlei Beispiele der Kunst


oder der Natur geübt und berichtigt)» (Kant, 1998: 217). Essa afirmação
vai ao encontro de uma outra, proferida no fecho do §32:
entre todas as faculdades e talentos o gosto é aquele que, porque o seu
juízo não é determinável mediante conceitos e preceitos, maximamente
precisa de exemplos daquilo que na evolução da cultura durante maior
tempo recebeu aprovação, para não se tornar logo de novo grosseiro e
recair na rudeza das primeiras tentativas (unter allen Vermögen und
Talenten ist der Geschmack gerade dasjenige, welches, weil sein Urteil
nicht durch Begriffe und Vorschriften bestimmbar ist, am meisten der
Beispiele dessen, was sich im Fortgange der Kultur am längsten in
Beifall erhalten hat, bedürftig ist, um nicht bald wieder ungeschlacht zu
werden und in die Rohigkeit der ersten Versuche zurückzufallen) (Kant,
1998: 184-185).
Em primeiro lugar, importa salientar que o gosto é uma faculdade
cultivável, exercitável e corrigível através de exemplos.249 É também
importante notar, em segundo lugar, ser enquanto faculdade cujo
fundamento de determinação é um sentimento, não um conceito ou um
preceito, que o gosto mais precisa de exemplos. Finalmente, deve ser
assinalado que os exemplos daquilo que na evolução da cultura durante
maior tempo recebeu aprovação são os objectos referidos nas ciências

249
A propósito da noção de exemplo – ou, melhor, a propósito das noções de Exempel
e Beispiel, traduzidas para Português através do termo “exemplo” – é de observar a
distinção identificada por Fernando Gil. Sem prejuízo da admissão de que Kant «não
é sempre fiel ao princípio da distinção», e notando que «a existência, em alemão, de
um só adjectivo, exemplarisch, para os dois nomes do exemplo presta à confusão»
(Gil, 1998: 267), Gil considera que, enquanto Exempel «está ligado à exemplificação
entendida como simples instanciação de uma regra geral, como “caso particular” da
regra», tratando-se, portanto, «somente de uma quantificação existencial, sem
qualquer acréscimo de inteligibilidade relativamente à regra», Beispiel,
diferentemente, «não representa a instanciação de uma regra», tratando-se «antes a
invenção de um modelo» (Gil, 1998: 266-267). Nesse sentido, o Beispiel é
«“introduzido” (o verbo é anführen) – isto é, produzido, comparado com outros
exemplos possíveis» (Gil, 1998: 266). Ele está estreitamente ligado ao objectivo de
«contribuir para a “compreensão de uma expressão” (zur Verständlichkeit eines
Ausdrucks)», e por isso é requerido «quando há um défice de compreensão» (Gil,
1998: 266-267).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 245


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

históricas mencionadas por Kant no §44 (cf. Kant, 1998: 208-209). Assim
sendo, as habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas podem
contribuir para o gosto enquanto faculdade de juízo estética de que cada
indivíduo é dotado, para o cultivo dessa faculdade em cada indivíduo, para
o seu exercitamento, para a sua correcção.
Uma chamada de atenção poderá ser-nos feita imediatamente. Ela
apontará para a eventualidade de surgir uma contradição se à nossa tese
juntarmos a afirmação de que o gosto (faculdade de juízo estética)
reivindica simplesmente autonomia. De facto, no §32, como já citámos,
Kant afirma que «[o] gosto reivindica simplesmente autonomia ([d]er
Geschmack macht bloß auf Autonomie Anspruch)» (Kant, 1998: 183).
Essa afirmação é, de resto, reforçada nos parágrafos seguintes (§33 e §34).
O prazer que aquele que ajuíza tem por ocasião da representação do
objecto é um prazer imediato; logo, não é através de um argumento, seja
esse um argumento empírico ou um argumento a priori, que ele o sente.
O fundamento do juízo de gosto é a «reflexão do sujeito sobre o seu
próprio estado (de prazer ou desprazer), com rejeição de todos os preceitos
e regras (Reflexion des Subjekts über seinen eigenen Zustand (der Lust
oder Unlust) mit Abweisung aller Vorschriften und Regeln)» (Kant, 1998:
187). No próprio §44, antes de usar a expressão ciências belas, Kant
sustenta a tese segundo a qual não pode haver uma ciência do belo (cf.
Kant, 1998: 208).250 Entretanto, nos §58 e §59, o nosso autor assinala,
respectivamente, que o juízo de gosto é «livre (frei)» e tem «autonomia

250
Nesse parágrafo, Kant diz apenas que «[n]ão há ([e]s gibt weder)» uma tal ciência,
assim como não há «uma ciência bela (noch schöne Wissenschaft)» (Kant, 1998: 208).
Veja-se, no entanto, a sua justificação: se houvesse uma ciência do belo, «deveria
então ser decidido nela cientificamente, isto é por argumentos, se algo deve ser tido
por belo ou não; portanto se o juízo sobre a beleza pertencesse à ciência, ele não seria
nenhum juízo de gosto (so würde in ihr wissenschaftlich, d. i. durch Beweisgründe,
ausgemacht werden sollen, ob etwas für schön zu halten sei oder nicht; das Urteil
über Schönheit würde also, wenn es zur Wissenschaft gehörte, kein Geschmacksurteil
sein)» (Kant, 1998: 208). Por essa razão, não só não há, como também não pode haver
uma ciência do belo. É exactamente isso que Kant salienta no §60: «não há nem pode
haver uma ciência do belo (es keine Wissenschaft des Schönen gibt noch geben kann)»
(Kant, 1998: 264). Já tínhamos transcrito estas passagens.

246 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

por fundamento (Autonomie zum Grunde)» (Kant, 1998: 259) e que a


faculdade do gosto «dá a si própria a lei com respeito aos objectos de um
comprazimento tão puro, assim como a razão o faz com respeito à
faculdade da apetição (gibt in Ansehung der Gegenstände eines so reinen
Wohlgefallens ihr selbst das Gesetz, so wie die Vernunft es in Ansehung
des Begehrungsvermögens tut)» (Kant, 1998: 263). Dadas estas restrições,
duas questões devem ser levantadas: a primeira é a de saber se as ciências
mencionadas por Kant no §44 podem contribuir para uma faculdade que
reivindica simplesmente autonomia (o gosto); a segunda depende de uma
resposta afirmativa à primeira e é a questão de saber em que medida
poderão tais ciências contribuir para essa faculdade.
À primeira questão responde-se ressalvando que a afirmação segundo
a qual o gosto reivindica simplesmente autonomia não impede que aquele
que ajuíza tenha em conta o conhecimento que possui de línguas antigas,
o conhecimento literário de autores clássicos, a história e o conhecimento
das antiguidades, entre outros. Não é necessariamente que há contradição
entre essa tese e a possibilidade de aquele que ajuíza ter em conta objectos
que ao longo da história foram ou têm vindo a ser considerados belos, isto
é, coisas que foram ou têm vindo a ser consideradas exemplos de beleza.
Só há contradição se o facto de esses objectos terem sido ou terem vindo
a ser considerados exemplos de beleza for o fundamento em que aquele
que os ajuíza se baseia para os ajuizar como belos. No juízo de gosto, esse
não é, contudo, o caso.
O facto de tais objectos terem sido ou terem vindo a ser considerados
exemplos de beleza deve servir – e assim iniciamos a resposta à segunda
questão – tão-somente de incentivo a que aquele que ajuíza procure e
encontre mais facilmente em si os princípios do gosto, o que seria mais
difícil se ele ajuizasse a partir de uma índole bruta, grosseira e rude. Note-
se que, no parágrafo no qual indica que a faculdade de juízo estética
reivindica simplesmente autonomia, Kant acrescenta que
[n]ão há absolutamente nenhum uso das nossas forças, por livre que ele
possa ser, e mesmo da razão [que tem de haurir todos os seus juízos da
fonte comum a priori] que não incidiria em falsas tentativas se cada

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 247


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

sujeito sempre devesse começar totalmente da disposição bruta da sua


índole, se outros não o tivessem precedido com as suas tentativas, não
para fazer dos seus sucessores simples imitadores, mas para pôr outros a
caminho pelo seu procedimento, afim de procurarem em si próprios os
princípios e assim tomarem o seu caminho próprio e frequentemente
melhor (Es gibt gar keinen Gebrauch unserer Kräfte, so frei er auch sein
mag, und selbst der Vernunft (die alle ihre Urteile aus der
gemeinschaftlichen Quelle a priori schöpfen muss), welches, wenn jedes
Subjekt immer gänzlich von der rohen Anlage seines Naturells anfangen
sollte, nicht in fehlerhafte Versuche geraten würde, wenn nicht andere
mit den ihrigen ihm vorgegangen wären, nicht um die Nachfolgenden zu
bloßen Nachahmern zu machen, sondern durch ihr Verfahren andere auf
die Spur zu bringen, um die Prinzipien in sich selbst zu suchen und so
ihren eigenen, oft besseren Gang zu nehmen) (Kant, 1998: 184).251
Procurar os princípios (die Prinzipien suchen) significa tentar descobrir
em que se baseia um juízo – de maneira a que possa ajuizar-se
fundamentando o juízo nesses princípios. Ora, as ciências referidas por
Kant no §44, ao providenciarem àquele que ajuíza um conhecimento
daquilo que foi ou tem vindo a ser considerado exemplo de beleza,
convidam-no a ser o mais correcto possível no que concerne à maneira
como ajuíza. Se ele não considerar belo um objecto, mas tiver
conhecimento de que esse objecto foi ou tem vindo a ser considerado belo,
então é possível – será mesmo plausível ou até provável – que ele hesite
relativamente à correcção do seu juízo, isto é, que tenha dúvidas quanto
àquilo no qual está a fundar o seu juízo. No §33, Kant chama a atenção
para essa possibilidade:
[s]e alguém não considera belo um edifício, uma vista, uma poesia, então
ele (…) pode até começar a duvidar se também formou suficientemente
o seu gosto pelo conhecimento de um número satisfatório de objectos de

251
No mesmo sentido, veja-se a seguinte passagem do texto Ideia de uma História
Universal com um Propósito Cosmopolita, de 1784: «A razão numa criatura é uma
faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de todas as suas forças muito além
do instinto natural, e não conhece limites alguns para os seus projectos. Não actua,
porém, instintivamente, mas precisa de tentativas, de exercício e aprendizagem,
para avançar de modo gradual de um estádio do conhecimento para outro» (Kant,
2004: 23).

248 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

uma certa espécie ([w]enn jemand ein Gebäude, eine Aussicht, ein
Gedicht nicht schön findet, so kann er sogar zu zweifeln anfangen, ob er
seinen Geschmack durch Kenntnis einer genugsamen Menge von
Gegenständen einer gewissen Art auch genug gebildet habe) (Kant,
1998: 185).
Um tal conhecimento pode contribuir para o gosto precisamente na
medida em que pode contribuir para que aquele que ajuíza se questione
quanto à correcção do seu juízo, isto é, quanto ao fundamento, aos
princípios, no qual o seu juízo se baseia – ou, por outras palavras, quanto
a estar a proferir um juízo de gosto ou um juízo de outro tipo.252 É nesse
sentido que «[o] juízo de outros que nos é desfavorável na verdade pode
com razão tornar-nos hesitantes com respeito ao nosso ([d]as uns
ungünstige Urteil anderer kann uns zwar mit Recht in Ansehung des
unsrigen bedenklich machen)» (Kant, 1998: 185). Esse juízo,
desfavorável, pode tornar-nos hesitantes no que concerne ao nosso,
precisamente enquanto pode levar a que questionemos se, de facto,
estaremos a ajuizar segundo os princípios do gosto.
Não é unicamente para o gosto, no entanto, que os conhecimentos
sublinhados por Kant, no §44, podem contribuir. Melhor: não é
directamente que eles podem fazê-lo. Antes de mais, esses conhecimentos

252
É também no interior deste contexto que pode compreender-se algo afirmado por
Kant no §60, a saber, «parece evidente que a verdadeira propedêutica para a fundação
do gosto seja o desenvolvimento de ideias morais e a cultura do sentimento moral
(leuchtet ein, dass die wahre Propädeutik zur Gründung des Geschmacks die
Entwicklung sittlicher Ideen und die Kultur des moralischen Gefühls sei)» (Kant,
1998: 266). Na medida em que também no caso da moralidade se requer que o sujeito
supere aquilo que meramente agrada aos sentidos e, portanto, que ele não se deixe
levar por inclinações, nessa medida, o desenvolvimento de ideias morais e a cultura
do sentimento moral podem ser úteis no encaminhamento daquele que ajuíza para a
procura e descoberta em si mesmo dos princípios do gosto. O mesmo se passa – e, de
resto, de maneira ainda mais clara – relativamente ao juízo acerca do sublime. Na
medida em que o seu fundamento reside precisamente «na disposição ao sentimento
para ideias (práticas), isto é ao sentimento moral (in der Anlage zum Gefühl für
(praktische) Ideen, d. i. zu dem moralischen)» (Kant, 1998: 163), a preparação para
ajuizar acerca do sublime deverá consistir no desenvolvimento de ideias morais e na
cultura do sentimento moral.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 249


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

podem contribuir para a faculdade do juízo. Aquilo que pode ser


directamente cultivado, exercitado e corrigido através da recorrência às
obras de arte referenciadas nas equivocadamente chamadas ciências belas
é a faculdade do juízo. Esta nossa ressalva assenta numa passagem do já
citado §32. Nessa passagem, Kant refere que, apesar de inicialmente «um
jovem poeta não se [deixar] demover, nem pelo juízo do público nem pelo
dos seus amigos, da persuasão de que sua poesia seja bela (lässt sich ein
junger Dichter von der Überredung, dass sein Gedicht schön sei, nicht
durch das Urteil des Publikums, noch seiner Freunde abbringen)», ele
pode acabar por alterar o seu juízo – pode fazê-lo, nas palavras do nosso
autor, «mais tarde, quando a sua faculdade do juízo tiver sido mais
aguçada pelo exercício (späterhin, wenn seine Urteilskraft durch
Ausübung mehr geschärft worden)» (Kant, 1998: 183)253.
A faculdade do juízo é, ou, pelo menos, pode ser, aguçada (geschärft).
Uma faculdade do juízo mais aguçada é uma faculdade do juízo mais
preparada para proporcionar um juízo correcto (seja ele de gosto, seja ele
de outro tipo) do que o é uma faculdade do juízo menos aguçada. 254

253
Como assinala Maria Filomena Molder: «eis que a apreciação estética se descobre
susceptível de ser aperfeiçoada, capaz de afinação» (Molder, 2007: 381). É certo que
«[a] autonomia, isto é, a indiferença à apreciação alheia, é a regra da apreciação
estética», mas «[s]e a apreciação estética deve ser de cada vez autónoma, a fim de que
o juízo seja verdadeiramente puro, isso não quer dizer que não haja possibilidade
legítima de alteração, isso não impede a inversão do juízo» (Molder, 2007: 381).
Referindo-se especificamente à passagem que acabámos de citar da Crítica da
Faculdade do Juízo, Molder acrescenta que «a autonomia do juízo é integrada, e não
ameaçada» e que «ela é mesmo vivificada no campo tensional baptizado como
exercício, o elemento da Ausübung, cujos efeitos se mostram no gesto de colocar-se
no caminho dos outros poetas» (Molder, 2007: 381). Assim, no entender de Molder,
«é da Ausübung, do exercício, que deriva a legitimidade da mudança da apreciação»,
o que significa que «[s]e o jovem poeta se comprometer num verdadeiro exercício
poético, então a mudança de opinião mostra-se legítima» (Molder, 2007: 382).
254
Em 1785, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a propósito das leis a
priori, Kant assinala que elas «exigem, para além do mais, uma faculdade de juízo
aguçada pela experiência que, por um lado, permita discernir em que situações elas se
tornam aplicáveis e, por outro, lhes faculte um acesso à vontade humana e eficácia no
seu exercício prático, pois que o homem, afectado como é por tantas inclinações, é
bem capaz de conceber a ideia de uma razão pura, mas não terá tão facilmente o poder

250 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

Quanto ao exercício (Ausübung) que a aguça, esse exercício é qualquer


um que possa contribuir para que aquele que ajuíza ajuíze através da
faculdade de juízo adequada para a questão em causa e segundo os
princípios dessa mesma faculdade. Se, por exemplo, a questão em causa
for a de ajuizar se um objecto é belo, nesse caso ele tem de ajuizar através
da faculdade de juízo estética (o gosto) e segundo os seus princípios. Ora,
como acabámos de mostrar, para que tal aconteça pode ser útil o
conhecimento de um número satisfatório de objectos de uma certa espécie,
referido por Kant no §33, conhecimento que pode ser adquirido através
das ciências citadas pelo nosso autor no §44.255 Esse conhecimento pode
aguçar a faculdade do juízo – pode fazê-lo enquanto pode contribuir para
que aquele que ajuíza procure em si próprio os princípios do gosto e
descubra em que é que um juízo de gosto se baseia, por conseguinte na
medida em que pode contribuir para que ele ajuíze correctamente. Aquilo
que se usa correcta ou incorrectamente é não o gosto, mas a faculdade do
juízo. Cultivar, exercitar e corrigir o gosto significa, mais geralmente,
aguçar a faculdade do juízo, de maneira a que, quando se pretende ajuizar
se um objecto é belo, se o faça através da faculdade de juízo estética (o
gosto) e segundo os seus princípios.
É de notar, entretanto, que nem o facto de a faculdade do juízo ser algo
que é aguçado, nem o facto de as ciências belas poderem ter importância
para o proferimento do juízo de gosto, nenhum desses factos interfere na
validade de que Kant tenta dotar a referida espécie de juízo. Se a
ignorância quanto aos conteúdos das ciências mencionadas por Kant no

de a tornar eficaz in concreto no seu comportamento» (Kant, 2003: 55). Ainda na


mesma obra, de resto, ele fala de um «juízo amadurecido pela experiência e aguçado
pela observação» (Kant, 2003: 75). A faculdade do juízo é uma faculdade passível de
aguçamento; e o aguçamento da faculdade do juízo contribui para o seu uso correcto,
por conseguinte para o proferimento de juízos correctos, sejam eles de gosto ou de
outro tipo.
255
Entretanto, se recorremos à Crítica da Razão Pura, vemos afirmado que «a
faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser
ensinado, apenas exercido» (Kant, 2001: 177) e que «[a]guçar a faculdade de julgar
(…) é a grande e única utilidade dos exemplos» (Kant, 2001: 178).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 251


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

§44 levar a que aqueles que os ignoram discordem dos que conhecem tais
conteúdos, aquilo de que deveremos falar é não de uma discórdia patente
em juízos de gosto, mas simplesmente de uma incorrecção, por parte de
um dos grupos, na aplicação da faculdade do juízo. A diferença que um
nível superior de desenvolvimento da faculdade do juízo pode fazer em
relação a um nível inferior resume-se à maior probabilidade de, quando
pretende ajuizar se um objecto é belo, aquele que possui uma faculdade
menos desenvolvida ajuizar através de algo que não o gosto e os princípios
do gosto, o que constitui tão-só e apenas uma incorrecção quanto àquilo
mediante o qual se ajuíza. 256

256
Esta tese pode ser perspectivada como estando presente desde logo em O Belo e o
Sublime, de 1764, ainda que noutros termos. Afirma Kant, aí, que «[q]ualquer que
seja o género das sensações tam delicadas de que tratamos até aqui, sublimes ou belas,
sofrem o destino comum de aparecerem como falsas e absurdas aos olhos de todo
aquêle cuja sensibilidade não concorda com elas» (Kant, 1943: 36). Tal acontece
porque «[a]inda que não falte por completo uma sensibilidade apropriada, existem
graus muito diferentes, e vê-se que um encontra nobre e digno uma coisa que para
outros é extravagante» (Kant, 1943: 37). Mas o que está em causa é sempre aquilo no
qual o juízo é baseado. Daí o nosso autor acrescentar que «[n]ão se tem razão quando
se acusa de não entender a quem não vê o valor ou a formosura do que nos comove
ou encanta», pois «[t]rata-se aqui não tanto do que o entendimento compreende como
do que o sentimento experimenta» (Kant, 1943: 38). Coerentemente, no texto
Investigação sobre a Clareza dos Princípios da Teologia Natural e da Moral, também
de 1764, Kant assinala que «[o]s erros (…) não decorrem unicamente do facto de não
se saber certas coisas, mas de se ousar julgar, mesmo que ainda não se saiba tudo o
que para tal seria necessário» (Kant, 2006: 87). A este propósito, é igualmente
relevante fazer uma referência a Donald W. Crawford. Questionando-se acerca do
lugar que a apresentação de razões poderá ter na teoria estética de Kant, Crawford
propõe a possibilidade de discórdia relativamente à beleza de um objecto sem que os
juízos em causa deixem de ser juízos de gosto. Segundo Crawford, essa discórdia
parece ser «o resultado não do tipo de atenção errado ou da atitude (“impura” como
oposta a “pura”, “interessada” como oposta a “desinteressada”), mas de uma atenção
ou de um apercebimento incompleto das características esteticamente relevantes da
obra a ser considerada» (Crawford, 1974: 168). Exemplificando, o comentador afirma
que «alguém pode ter falhado em notar e incorporar nos fundamentos do seu juízo
acerca da Nona Sinfonia de Beethoven a importante estrutura da abertura do
movimento final – a justaposição do baixo de cordas recitativo com o tema principal
de cada um dos movimentos precedentes em jogo, dando espaço a uma voz baixa
recitativa e finalmente a uma afirmação completa do tema principal do movimento

252 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

Algo análogo se passa no que diz respeito à validade do sublime.


No concernente à quantidade, Kant informa, logo no parágrafo
inaugural da “Analítica do sublime” (§23) que os juízos acerca do
sublime, tal como os juízos acerca do belo, são «singulares (einzeln)»
(Kant, 1998: 137). São-no porque reivindicam «simplesmente o
sentimento de prazer e não o conhecimento do objecto (bloß auf das
Gefühl der Lust und auf kein Erkenntnis des Gegenstandes)» (Kant,
1998: 137). Ao mesmo tempo, porém, eles são, segundo Kant, «juízos
que se anunciam como universalmente válidos com respeito a cada
sujeito (sich für allgemeingültig in Ansehung jedes Subjekts
ankündigende Urteile)» (Kant, 1998: 137). Essa tese é reforçada e
complementada no parágrafo seguinte: «o comprazimento no sublime,
assim como no belo, tem que ser, segundo a quantidade, de modo
universalmente válido (muss das Wohlgefallen am Erhabenen eben
sowohl als am Schönen der Quantität nach allgemeingültig machen)»
(Kant, 1998: 140); e «segundo a modalidade (der Modalität nach)»
esse comprazimento tem de representar a conformidade a fins
subjectiva «como necessária (als notwendig)» (Kant, 1998: 140). O
comprazimento no sublime é, então, de acordo com o que Kant sugere,
quer no §25, quer na “Observação geral sobre a exposição dos juízos
reflexivos estéticos”, universalmente comunicável (cf. Kant, 1998: 143
e 175); o juízo sobre o sublime pretenderá àquilo a que o nosso autor
chama, no §30, «validade universalmente necessária (allgemein-
notwendige Gültigkeit)» (Kant, 1998: 181).
Ainda no §23, Kant afirma que

final» (Crawford, 1974: 168). No entanto, como o próprio Crawford bem acaba por
sugerir, a discórdia pode ser meramente aparente – cada um dos juízes pode referir-se
a um objecto diferente: «o “este” em cada um dos seus juízos de gosto refere-se a
diferentes objectos de apercebimento» (Crawford, 1974: 168), não havendo, portanto,
«uma base comum de juízo», isto é, «um objecto comum (intersubjectivo) de
experiência e por conseguinte de avaliação» (Crawford, 1974, 169). Citando S.
Körner, diríamos que nestes casos há uma «falha para identificar o todo final, com o
qual se é confrontado com alguma obra de arte cuja estrutura se nos desvenda apenas
depois de muita atenção, trabalho e paciência» (Körner, 1984: 187-188).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 253


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

já se tem que ter preenchido o ânimo com muitas ideias se através de


uma tal intuição [a saber, a intuição do extenso oceano, revolto por
tempestades] nos devemos dispor a um sentimento, o qual é ele mesmo
sublime, enquanto o ânimo é incitado a abandonar a sensibilidade e
ocupar-se com ideias que possuem uma conformidade a fins superior
(man muss das Gemüt schon mit mancherlei Ideen angefüllt haben, wenn
es durch eine solche Anschauung zu einem Gefühl gestimmt werden soll,
welches selbst erhaben ist, indem das Gemüt die Sinnlichkeit zu
verlassen und sich mit Ideen, die höhere Zweckmäßigkeit enthalten, zu
beschäftigen angereizt wird) (Kant, 1998: 139).
Entretanto, no §25, o nosso autor acrescenta que «o sublime não deve ser
procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias (das
Erhabene nicht in den Dingen der Natur, sondern allein in unsern Ideen
zu suchen sei)» (Kant, 1998: 144). Uma maior clarificação dessa tese
encontra-se no parágrafo que especificamente diz respeito ao sublime
dinâmico (§28) e naquele que imediatamente se lhe segue e que tem como
assunto a modalidade do juízo sobre o sublime da natureza (§29). Se no
primeiro se fala de uma «efectiva impotência momentânea
(gegenwärtigen wirklichen Ohnmacht)» da qual o sujeito pode «ser
consciente (bewusst sein)» (Kant, 1998: 159); é contudo no segundo que
se percebe que essa só é ultrapassada sob a pressuposição de ideias, pois
«só sob a pressuposição das mesmas (nur unter der Voraussetzung
derselben)» é que «o terrificante para a sensibilidade (das Abschreckende
für die Sinnlichkeit)» se torna «ao mesmo tempo atraente (zugleich
anziehend)» (Kant, 1998: 162). A que ideias se refere Kant nesses dois
parágrafos? Se no §28 o nosso autor adianta que a disposição à
sublimidade «se encontra na nossa natureza, enquanto o desenvolvimento
e exercício [da faculdade espiritual] nos é confiado e permanece obrigação
nossa (in unserer Natur ist; indessen dass die Entwickelung und Übung
desselben uns überlassen und obliegend bleibt)» (Kant, 1998: 159); é no
parágrafo seguinte que ele concretiza a sua perspectiva, nomeadamente ao
referir que o fundamento do juízo acerca do sublime reside «na natureza
humana e, na verdade, naquela que com o são entendimento se pode ao
mesmo tempo imputar e exigir de qualquer um, a saber na disposição ao

254 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

sentimento para ideias (práticas), isto é ao sentimento moral (in der


menschlichen Natur und zwar demjenigen, was man mit dem gesunden
Verstande zugleich jedermann ansinnen und von ihm fordern kann,
nämlich in der Anlage zum Gefühl für (praktische) Ideen, d. i. zu dem
moralischen)» (Kant, 1998: 163). Pressupondo, então, que o ânimo está
preenchido com ideias práticas e, na medida em que é nossa obrigação,
enquanto homens, cultivar (desenvolver e exercitar) a faculdade espiritual,
pressupondo que é da natureza humana estar disposto ao sentimento
moral, assim tenta Kant sustentar aquilo que diz ser «a necessidade do
assentimento do juízo de outros com o nosso acerca do sublime, o qual ao
mesmo tempo incluímos neste juízo (die Notwendigkeit der Beistimmung
des Urteils anderer vom Erhabenen zu dem unsrigen, welche wir in diesem
zugleich mit einschließen)» (Kant, 1998: 163).
É de ressalvar, porém, que não obstante o cultivo (a cultura) da
faculdade espiritual tratar-se de algo a que estamos obrigados, não
obstante, então, devermos proceder ao desenvolvimento de ideias morais,
isso não significa que sempre o façamos. Como o próprio Kant nota, já
depois da “Analítica do sublime”, no §39,
[n]ão estou absolutamente autorizado a pressupor que outros homens
tomem esse sentimento [a saber, o sentimento do seu destino supra-
sensível, o qual, por mais obscuro que possa ser, tem uma base moral]
em consideração e encontrem na contemplação da grandeza selvagem da
natureza um comprazimento (que verdadeiramente não pode ser
atribuído ao seu aspecto e que é antes aterrorizante) ([d]as aber andere
Menschen darauf Rücksicht nehmen und in der Betrachtung der rauhen
Größe der Natur ein Wohlgefallen finden werden (welches wahrhaftig
dem Anblicke derselben, der eher abschreckend ist, nicht zugeschrieben
werden kann), bin ich nicht schlechthin vorauszusetzen berechtigt)
(Kant, 1998: 194).
Aqueles que mais facilmente tomam o sentimento do seu destino supra-
sensível em consideração são os homens a que, no §29, o nosso autor
chama «preparados pela cultura (durch Kultur vorbereitet)», e por isso
as reacções que eles têm perante as «demonstrações de violência da
natureza em sua destruição e na grande medida do poder desta

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 255


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

(Beweistümern der Gewalt der Natur in ihrer Zerstörung und an dem


großen Maßstabe ihrer Macht)» são completamente diferentes das do
«homem inculto (rohen Menschen)» (Kant, 1998: 162). Onde os homens
preparados pela cultura descobrem a sublimidade, o homem inculto vê
«puro sofrimento, perigo e privação (lauter Mühseligkeit, Gefahr und
Not)» (Kant, 1998: 162). De resto, é igualmente a tese segundo a qual o
sentimento do sublime pressupõe a tomada em consideração de ideias
morais aquilo que leva Kant a afirmar que «com os nossos juízos sobre
o sublime na natureza não podemos iludir-nos tão facilmente [como com
os nossos juízos sobre o belo na natureza] sobre a adesão de outros (mit
unserm Urteile über das Erhabene in der Natur können wir uns nicht so
leicht Eingang bei andern versprechen)» e que no caso do sublime
«parece exigível uma cultura de longe mais vasta (es scheint eine bei
weitem größere Kultur erforderlich zu sein)» para que possamos
«imputar, e também sem errar muito, [possamos] esperar directamente
de qualquer um, unanimidade do juízo com o nosso (Einstimmigkeit des
Urteils mit dem unsrigen jedermann geradezu ansinnen und auch, ohne
sonderlich zu fehlen, erwarten können)» (Kant, 1998: 162).257 No caso
do belo, o âmbito é o daquela maneira de pensar a que Kant chama, no
§40, maneira de pensar alargada (erweiterten Denkungsart) (cf. Kant,
1998: 196-197); no caso do sublime, trata-se do âmbito da maneira de
pensar consequente (konsequenten Denkungsart), acerca da qual Kant
diz que «é a mais difícil de se alcançar (ist am schwersten zu erreichen)»
(Kant, 1998: 198). A emergência do sentimento do sublime é facilitada
por um maior desenvolvimento de ideias morais, isto é, pelo alcance de
uma cultura vasta. A possibilidade de alguém ser inculto e não
considerar o seu destino supra-sensível, porém, não enfraquece as razões
que aquele que sente um comprazimento perante a supracitada grandeza
selvagem da natureza tem, segundo o nosso autor, para «postular em

257
Essa posição é reforçada, ainda no mesmo parágrafo, quando Kant assinala que o
juízo acerca do sublime necessita «cultura (mais do que o juízo sobre o belo) (Kultur
(mehr als das über das Schöne)» (Kant, 1998: 163).

256 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

qualquer um aquele comprazimento (jenes Wohlgefallen jedermann


ansinnen)» (Kant, 1998: 194). Embora nem todos os homens cumpram
sempre a obrigação de ter em vista as referidas disposições morais, a
observação dessas disposições não deixa de ser sua obrigação.
A ligação entre o sentimento do sublime, as ideias morais e a cultura
permite-nos compreender, de resto, duas conclusões, elas próprias ligadas
entre si. A validade universal de que o comprazimento no sublime é
dotado, embora seja uma validade universal subjectiva, não deixa de ser
uma validade universal a priori. É uma validade universal subjectiva
porque a pressuposição que sustenta a exigência de comprazimento
universal é «uma pressuposição subjectiva (einer subjektiven
Voraussetzung)» (Kant, 1998: 163); é uma validade universal a priori
porque, sendo a observação das disposições morais, e portanto o
sentimento moral, um dever de todos os homens, aquela pressuposição
subjectiva é uma pressuposição subjectiva «que porém nos cremos
autorizados a poder postular de qualquer um (die wir aber jedermann
ansinnen zu dürfen uns berechtigt glauben)» (Kant, 1998: 163). Esta é a
primeira conclusão que agora se compreende. 258 Uma segunda conclusão
também se refere à validade do juízo acerca do sublime. No caso deste
juízo estético, a faculdade do juízo, como é assinalado no §29, «refere a
faculdade da imaginação à razão como faculdade das ideias (die
Einbildungskraft auf Vernunft als Vermögen der Ideen bezieht)» (Kant,
1998: 163). Ora, enquanto a consideração dessas ideias constitui um
dever, a pretensão do juízo acerca do sublime à validade universal a priori
não carece, segundo o nosso autor, de uma dedução – isto é, nas palavras
do §30, «de uma legitimação da sua presunção (einer Legitimation seiner
Anmaßung)» (Kant, 1998: 179), de «uma dedução da sua pretensão a
algum princípio a priori (subjectivo) (eine Deduktion seines Anspruchs

258
É a universalidade subjectiva a priori do comprazimento no sublime, aliás, aquilo
que, segundo Kant, nos leva a dizermos que «não tem nenhum sentimento aquele que
permanece insensível junto ao que julgamos ser sublime (von dem, der bei dem, was
wir erhaben zu sein urteilen, unbewegt bleibt, er habe kein Gefühl)» (Kant, 1998:
163).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 257


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

auf irgend ein (subjektives) Prinzip a priori)» (Kant, 1998: 180). Essa
presunção estará legitimada precisamente enquanto o postular em
qualquer outro do comprazimento no sublime somente é possível,
conforme salvaguardado no §39, «através da lei moral, que é por sua vez
fundada sobre conceitos da razão (vermittelst des moralischen Gesetzes,
welches seinerseits wiederum auf Begriffen der Vernunft gegründet ist)»
(Kant, 1998: 194).
A dispensa de uma dedução para o caso do juízo acerca do sublime é
explicada por Kant no primeiro parágrafo da “Dedução dos juízos
estéticos puros”, o já citado §30, cujo título é, precisamente, «A dedução
dos juízos estéticos sobre os objectos da natureza não pode ser dirigida
àquilo que nesta chamamos sublime (Die Deduktion der ästhetischen
Urteile über die Gegenstände der Natur darf nicht auf das, was wir in
dieser erhaben nennen, sondern nur auf das Schöne gerichtet werden)»
(Kant, 1998: 179). Embora logo no primeiro parágrafo da “Analítica do
sublime” (§23) Kant adiante que o fundamento para o sublime tem de ser
procurado «simplesmente em nós e na maneira de pensar que introduz
sublimidade (bloß in uns und der Denkungsart, die Erhabenheit
hineinbringt)» (Kant, 1998: 140), apesar de, além disso, na “Observação
geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso autor
afirmar que «o sublime sempre tem que se referir à maneira de pensar,
isto é a máximas, para conseguir o domínio do intelectual e das ideias da
razão sobre a sensibilidade (muss das Erhabene jederzeit Beziehung auf
die Denkunsart haben, d. i. auf Maximen, dem Intellektuellen und den
Vernunftideen über die Sinnlichkeit Obermacht zu verschaffen)» (Kant,
1998: 173); é só no §30, porém, que ele concretiza essa afirmação: «o
sublime da natureza só impropriamente é chamado assim e propriamente
só tem que ser atribuído à maneira de pensar, ou muito antes ao
fundamento da mesma na natureza humana (das Erhabene der Natur nur
uneigentlich so genannt werde und eigentlich bloß der Denkungsart, oder
vielmehr der Grundlage zu derselben in der menschlichen Natur beigelegt
werden müsse)» (Kant, 1998: 180). Essa maneira de pensar é, como já
vimos, a maneira de pensar consequente, e a sua máxima, que incita a

258 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

«[p]ensar sempre de acordo consigo próprio ([j]ederzeit mit sich selbst


einstimmig denken)» (Kant, 1998: 196), não é outra que não a máxima «da
razão (der Vernunft)» (Kant, 1998: 198). O seu fundamento na natureza
humana, por sua vez, é a lei moral, e, por conseguinte, a disposição ao
sentimento moral. Ora, aquilo que Kant assinala no §30 é que «[a]
apreensão de um objecto, aliás sem forma e não conforme a fins, dá
meramente motivo para nos tornarmos conscientes deste fundamento [da
maneira de pensar na natureza humana] ([d]ieser sich bewusst zu werden,
gibt die Auffassung eines sonst formlosen und unzweckmäßigen
Gegenstandes bloß die Veranlassung)» (Kant, 1998: 180). Pois bem,
sendo isso o que acontece no processo que conduz à ocorrência do
sentimento do sublime, Kant conclui que «a nossa exposição dos juízos
sobre o sublime da natureza era ao mesmo tempo a sua dedução (war
unsere Exposition der Urteile über das Erhabene der Natur zugleich ihre
Deduktion)» (Kant, 1998: 180), pois, como continua imediatamente a
seguir,
quando decompusemos nos mesmos a reflexão da faculdade do juízo,
encontramos neles uma relação conforme a fins das faculdades do
conhecimento, que tem de ser posta a priori no fundamento da faculdade
dos fins (a vontade) e por isso é ela mesma a priori conforme a fins; o
que contém pois imediatamente a dedução, isto é a justificação da
pretensão de um semelhante juízo à validade universalmente necessária
(wenn wir die Reflexion der Urteilskraft in denselben zerlegten, so
fanden wir in ihnen ein zweckmäßiges Verhältnis der
Erkenntnisvermögen, welches dem Vermögen der Zwecke (dem Willen)
a priori zum Grunde gelegt werden muss und daher selbst a priori
zweckmäßig ist: welches denn sofort die Deduktion, d. i. die
Rechtfertigung des Anspruchs eines dergleichen Urteils auf allgemein-
notwendige Gültigkeit, enthält) (Kant, 1998: 180-181).
Ficam, assim, respondidas as duas questões que aparecem no final do §26:
Visto que tudo o que deve aprazer sem interesse à faculdade do juízo
meramente reflexiva tem de comportar, na sua representação, uma
conformidade a fins subjectiva e como tal universalmente válida, se
bem que aqui não se situe no fundamento nenhuma conformidade a
fins da forma do objecto (como no belo), pergunta-se: qual é esta

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 259


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

conformidade a fins subjectiva? E através de que é ela prescrita como


norma, para na simples apreciação da grandeza – e na verdade daquela
que foi levada até à inadequação da nossa faculdade da imaginação na
exposição do conceito de uma grandeza – fornecer um fundamento
para o comprazimento universalmente válido? (Weil alles, was der
bloß reflektierenden Urteilskraft ohne Interesse gefallen soll, in seiner
Vorstellung subjektive und als solche allgemein-gültige
Zweckmäßigkeit bei sich führen muss, gleichwohl aber hier keine
Zweckmäßigkeit der Form des Gegenstandes (wie beim Schönen) der
Beurteilung zum Grunde liegt, so fragt sich: welches ist diese
subjektive Zweckmäßigkeit? und wodurch wird sie als Norm
vorgeschrieben, um in der bloßen Größenschätzung und zwar der,
welche gar bis zur Unangemessenheit unseres Vermögens der
Einbildungskraft in Darstellung des Begriffs von einer Größe
getrieben worden, einen Grund zum allgemeingültigen Wohlgefallen
abzugeben?) (Kant, 1998: 148).
A conformidade a fins pela qual se pergunta é a conformidade a fins em
referência aos fins da razão prática. 259 Ela é prescrita como norma
através do interesse moral. No caso do juízo acerca do sublime, a
comunicabilidade universal do nosso sentimento comporta em si um
interesse para nós – o interesse moral. Por essa razão é que a sua
pretensão, segundo Kant, não carece de uma dedução «a algum princípio
a priori (subjectivo) (auf irgend ein (subjektives) Prinzip a priori)»
(Kant, 1998: 180).
Feita esta digressão pelo sentimento do sublime, nomeadamente pela
temática da validade de um tal sentimento, para mostrar que o facto de
esse sentimento aconselhar cultura não tem qualquer influência sobre a
validade de que Kant o tenta dotar, devemos regressar à faculdade do juízo
e ao seu aguçamento. Mais concretamente, devemos observar a
contribuição que esse aguçamento poderá ter para a bela arte.

259
Esta tese está plasmada na “Observação geral sobre a exposição dos juízos
reflexivos estéticos”, onde Kant nota que o sublime, como explicação «do julgamento
estético universalmente válido (ästhetischer allgemeingültiger Beurteilung)», refere-
se «a fundamentos subjectivos (…) em oposição à sensibilidade para os fins da razão
prática (sich auf subjektive Gründe wie sie wider dieselbe, dagegen für die Zwecke
der praktischen Vernunft bezieht)» (Kant, 1998: 166).

260 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

Aguçada a faculdade do juízo daquele que é dotado de génio,


cultivado, exercitado e corrigido o seu gosto, através do julgamento de
objectos que foram ou têm vindo a ser considerados exemplos de
beleza, torna-se mais fácil para ele não apenas ajuizar correctamente –
o que, quando se trata de beleza, significa ajuizar segundo os princípios
do gosto – mas, através de um juízo correcto, avaliar a capacidade que
a sua obra tem de fazer com que qualquer outro possa melhor procurar,
em si mesmo, por ocasião da representação dela, os princípios do gosto.
Fica, assim, compreendido em que medida «para a bela arte em sua
inteira perfeição se requer muita ciência (es werde zur schönen Kunst
in ihrer ganzen Vollkommenheit viel Wissenschaft erfordert)» (Kant,
1998: 208) e as equivocadamente chamadas ciências belas constituem
«a preparação necessária e a base para a bela arte (zur schönen Kunst
die notwendige Vorbereitung und Grundlage)» (Kant, 1998: 209). Ao
mostrarmos a importância dessas ciências para a faculdade do juízo, e
consequentemente para o gosto, mostramos, ao mesmo tempo, a sua
importância para a bela arte. 260

260
De acordo com Maria Filomena Molder, aquilo que um poeta tem de fazer «para
se tornar poeta» é «[a]prender a reconhecer a poesia graças à leitura dos outros poetas,
conseguir a maestria do talento, desdobrá-lo, expandi-lo» (Molder, 2007: 383).
Molder está a falar «da educação, do progresso do sentimento naquele que produz
obras poéticas, obras de arte» (Molder, 2007: 382). Diz ela que «[o] poeta tem de
cultivar a poesia a fim de purificar, firmar, afinar o seu próprio juízo, quer dizer,
educar o seu próprio sentimento» (Molder, 2007: 382). Trata-se de «educação
sentimental», trata-se daquilo que a intérprete diz ser «a tarefa mais humana: aprender
a aceitar a beleza» (Molder, 2014: 118), pois «[m]esmo se sabemos ler, mesmo se
ouvimos e vemos muito bem, mesmo se os nossos ouvidos e os nossos olhos
preenchem a sua função, podemo-nos descobrir surdos e cegos, incapazes de ouvir a
palavra dos poetas, incapazes de ver uma pintura ou uma escultura» (Molder, 2014:
116). O poeta educa-se no plano sentimental através de um «movimento de olhar para
trás [que] se manifesta como descoberta do outro, procura das fontes, acto de
rememoração: o sentido de realizar um gesto, de acenar para o sentido, de receber e
de transmitir» (Molder, 2007: 383). No entender de Molder, «a tradição é a atmosfera
nutritiva da actividade poética e, além disso, a actividade poética apresenta-se como
a imagem originária da história; dito de outro modo, a poesia como tradição revela ser
o modelo da história sob todas as suas formas» (Molder, 2007: 383).

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 261


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Não é apenas enquanto os objectos artísticos mencionados nas ciências


referidas por Kant no §44 são exemplos do cumprimento das regras
associadas à componente mecânica, coerciva e escolástica do tipo de arte
que representam que essas ciências são importantes para a bela arte. 261
Para que aquele que ajuíza – seja ele um génio ou não o seja – ajuíze
correctamente, é aconselhável que a sua faculdade do juízo esteja aguçada.
Acabámos de ver que e como para o aguçamento da faculdade do juízo
podem contribuir os juízos acerca de belas obras de arte. Tendo em conta
que muitas belas obras de arte estão referenciadas nas equivocadamente
chamadas ciências belas, o conhecimento dos conteúdos dessas ciências é
importante para o aguçamento da faculdade do juízo e, portanto, para o
uso correcto dessa faculdade – por exemplo, para o proferimento de um
juízo de gosto quando se pretende ajuizar se algo é belo. Sendo assim,
estamos em condições de afirmar que tais ciências podem contribuir para
a bela arte na medida em que podem contribuir para o aguçamento da
faculdade do juízo e, portanto, para o proferimento de juízos correctos,
nomeadamente da parte do artista genial. 262 Devemos recordar que o génio

261
Nesse sentido, eles, assim como as ciências que os mencionam, plasmam o gosto
enquanto corpus. O conhecimento das referidas regras, através do conhecimento de
objectos que as cumprem, promove a criação de obras de arte nas quais essas regras
igualmente são cumpridas.
262
Compreende-se, também neste contexto, algo que Kant afirma no último parágrafo
da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60), a saber, que «[a] propedêutica a
toda a bela arte, na medida em que está disposta para o mais alto grau da sua perfeição,
não parece encontrar-se em preceitos, mas na cultura das faculdades do ânimo através
daqueles conhecimentos prévios que se chamam humaniora ([d]ie Propädeutik zu
aller schönen Kunst, sofern es auf den höchsten Grad ihrer Vollkommenheit angelegt
ist, scheint nich in Vorschriften, sondern in der Kultur der Gemütskräfte durch
diejenigen Vorkenntnisse zu liegen, welche man humaniora nennt)» (Kant, 1998: 265).
Ajudando a que aquele que ajuíza se questione quanto à correcção do seu juízo, isto
é, quanto a estar a ajuizar através da faculdade adequada e considerando os princípios
dessa faculdade, o conjunto de conhecimentos supracitado possibilita-lhe o
aguçamento da sua capacidade de ajuizar e, por conseguinte, se ele, além de fruidor,
é criador, um embelezamento da sua arte. Note-se, aliás, que no mesmo parágrafo,
ainda antes das palavras que acabámos de citar, Kant indica que a efectivação do
processo de sucessão entre artistas dotados de génio requer uma «crítica penetrante
(scharfe Kritik)» (Kant, 1998: 265).

262 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE

é educável – concretamente, ele é educado pelo gosto (cf. Kant, 1998:


226). Assim, para produzir objectos artísticos belos, aquele que é dotado
de génio tem de exercer o seu gosto, e o seu gosto tem de ser um gosto
exercitado, uma faculdade do juízo aguçada. Só exercitando o seu gosto,
só aguçando a sua faculdade do juízo, só recorrendo a uma faculdade do
juízo aguçada, só exercendo um gosto exercitado, só assim pode ele
produzir uma bela obra de arte.

***

Consideramos ter respondido de maneira suficientemente fundamentada à


questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte, isto é,
para a produção de objectos artísticos belos.
Para tal, fomos obrigados a conciliar os indícios contraditórios dados
na Crítica da Faculdade do Juízo relativamente aos talentos necessários
para a produção de belas obras de arte. Fizemo-lo através de uma chamada
de atenção para o carácter educável do génio, para o carácter cultivável,
exercitável e corrigível do gosto e para o carácter aguçável da faculdade
do juízo.
Aquele que é dotado de génio só está pronto para produzir belas obras
de arte se exercitar o seu gosto e se o seu gosto estiver suficientemente
cultivado, exercitado e corrigido. O seu gosto é cultivado, exercitado e
corrigido através do aguçamento da sua faculdade do juízo. A sua
faculdade do juízo é aguçada mediante o conhecimento de obras de arte
que ao longo da história foram ou têm vindo a ser consideradas exemplos
de beleza. Essas obras de arte fazem parte dos conteúdos das
equivocadamente chamadas ciências belas. Assim sendo, o conhecimento
(de objectos que compõem os conteúdos) dessas ciências contribui
especialmente para a produção de belos objectos artísticos, para a
produção de obras de arte belas, para a produção de bela arte.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 263


Conclusão

Ao longo deste estudo, tentámos responder a duas questões: a de saber se


e como pode falar-se de bela arte, não obstante uma tal noção atravessar
a primeira parte da Crítica da Faculdade do Juízo, e a de saber o que é
necessário para a produção de obras de arte belas, sem prejuízo da
afirmação segundo a qual a bela arte é a arte do génio.
A elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à
primeira questão obrigou-nos a convocar várias outras. Entre elas, ainda
na primeira metade da nossa tese, as questões de saber o que é um juízo
de gosto, qual o princípio do gosto, como tenta Kant justificar que o juízo
de gosto seja um juízo estético universalmente válido a priori, quais os
requisitos que um juízo tem de cumprir para que através dele se declare
artístico um objecto ou que exigências tem um juízo de satisfazer para que
através dele se declare bela uma obra de arte.

264 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


CONCLUSÃO

Foi precisamente a enunciação das exigências que um juízo –


pretendido ser de gosto – tem de satisfazer para que através dele uma obra
de arte seja declarada bela que nos levou a questionar o significado e a
legitimidade da noção de bela arte. Colocada lado-a-lado com a
apresentação dos requisitos que um juízo tem de cumprir para ser um juízo
de gosto, aquela enunciação torna a noção de bela arte uma contradição
nos termos, levando-nos a concluir que não pode ajuizar-se uma obra de
arte através de um juízo de gosto, declarar-se belo um objecto artístico,
falar-se de bela arte.
Uma tal conclusão é, no entanto, precipitada. Kant não apenas ocupa
uma parte significativa do seu texto a falar de bela arte, como menciona
mesmo obras de arte declaradas belas.
Procurando compreender o significado da noção de bela arte, legítima
ou não, a partir da sua definição como arte do génio, e, muito
particularmente, a partir da explicitação da noção de ideia estética e da
denominação da beleza como expressão de ideias estéticas, fomos levados
a considerar que, no entender de Kant, o exercício da faculdade da
imaginação daquele que ajuíza, mesmo quando no seu juízo ele considera
conceitos determinados, pode ser não meramente um exercício harmónico
com a actividade do entendimento, mas também um exercício livre. É
possível um exercício livre da faculdade da imaginação, aliás, mesmo se
for tida em conta uma perfeição do objecto, isto é, uma conformidade a
fins objectiva interna. Trata-se de um exercício livre mas limitado.
Pois bem, na medida em que é essa possibilidade que legitima as
noções de beleza aderente como beleza e de juízo de gosto aplicado como
juízo de gosto, é ela que sustenta a possibilidade de ajuizar-se uma obra
de arte através de um juízo de gosto, a possibilidade de declarar-se belo
um objecto artístico, a possibilidade de falar-se de bela arte, enfim, a
legitimidade desta noção. Entretanto, a partir de uma interpretação do
termo representação e de uma segunda releitura das distinções
estabelecidas por Kant entre beleza livre e beleza aderente e entre puro
juízo de gosto e juízo de gosto aplicado – assim como da aceitação da
plurivocidade de sentido da noção de gosto na Crítica da Faculdade do

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 265


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

Juízo – sustentámos aquilo que de mais exigente o §16 nos solicita: a


admissão da possibilidade de ajuizar-se uma obra de arte através de um
puro juízo de gosto, a admissão da possibilidade de declarar-se livremente
belo um objecto artístico, a legitimidade de falar-se de bela arte como
beleza livre.
Recapitulemos, então, as condições para responder à questão de saber
se é legítimo falar-se de bela arte. A essa questão pode responder-se
afirmativa ou negativamente. A nossa investigação mostrou que uma
resposta negativa deve ser recusada. 263 Ainda assim, é importante
recordar as suas condições. Entre as respostas positivas, há duas
respostas devidamente fundamentadas. Resumiremos aquilo no qual
cada uma delas assenta.
Uma resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte baseada
no título do §15, de acordo com o qual «[o] juízo de gosto é totalmente
independente do conceito de perfeição ([d]as Geschmacksurteil ist von
dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998:
117), e na tese, do §48, segundo a qual no juízo através do qual se declara
bela uma obra de arte «tem que ser posto antes no fundamento um conceito
daquilo que a coisa deva ser (muss zuerst ein Begriff von dem, was das
Ding sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição
da coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges in Anschlag
gebracht werden müssen)» (Kant, 1998: 216), uma tal resposta tem de ser
negativa. Se o juízo através do qual se declara belo um objecto é um juízo
de gosto e se o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não
pode ser um juízo de gosto, então uma obra de arte não pode ser declarada
bela – mais simplesmente: uma obra de arte não pode ser bela. Por
conseguinte, não é legítimo falar-se de bela arte.

263
Embora seja a letra da Crítica da Faculdade do Juízo, nomeadamente o título do
§15, a possibilitar essa resposta, negativa, é igualmente a letra da terceira Crítica,
nomeadamente a manutenção dos termos beleza e juízo de gosto, no §16, quando se
trata, respectivamente, de beleza aderente e de juízos de gosto aplicados, a indiciar a
carência de justificações satisfatórias para uma tal resposta. O espírito da obra de Kant
dá força à tese segundo a qual pode falar-se de bela arte.

266 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


CONCLUSÃO

Ao dar essa resposta, considera-se ilegítima a distinção estabelecida


por Kant, no §16, entre beleza livre e beleza aderente – ou,
equivalentemente, entre puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado.264
Há um conflito entre os critérios da beleza aderente e os critérios da
beleza, entre os critérios do juízo de gosto aplicado e os critérios do juízo
de gosto: se a beleza aderente pressupõe um conceito daquilo que o
objecto deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito, então ela
não pode ser uma beleza; se num juízo de gosto aplicado se considera o
fim do objecto, e, portanto, o que se tem no pensamento, então um juízo
de gosto aplicado não pode ser um juízo de gosto. Embora alicerçada
precisamente no título do parágrafo anterior (§15) uma tal recusa da
distinção estabelecida por Kant supõe uma não consideração de quais
serão as razões para o nosso autor chamar beleza à beleza aderente e juízo
de gosto ao juízo de gosto aplicado. Além disso, ela entra em conflito com
qualquer referência de Kant à beleza da arte, à beleza de obras de arte, à
bela arte. Ora, ao longo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, com
especial destaque para os §44-§53, são inúmeras as referências do nosso
autor a uma bela arte. 265
Uma segunda resposta à questão de saber se e sob que condições é
legítimo falar-se de bela arte pode ter como ponto de partida precisamente
a procura das razões pelas quais Kant chama beleza à beleza aderente e
juízo de gosto ao juízo de gosto aplicado e as inúmeras referências a uma
arte bela feitas pelo nosso autor. No caso de se considerar que um juízo no
qual a faculdade da imaginação se exerce livremente, mesmo que limitada,
pode ser um juízo de gosto, nesse caso pode falar-se de bela arte. A

264
Igualmente se consideram ilegítimas as noções de beleza fixada e juízo de gosto
em parte intelectualizado, introduzidas no §17, e de juízo estético logicamente
condicionado, mencionada no §48.
265
Tivemos oportunidade de salientar esse facto do texto de Kant como segundo facto
a ter em conta para não limitar a resposta à questão de saber se pode falar-se de bela
arte a uma consideração do título do §15 e da passagem, do §48, de acordo com a qual
no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta
um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse
conceito.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 267


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

afirmação da correcção dessa premissa legitima as distinções


estabelecidas por Kant no §16. Fá-lo em detrimento do título do §15. Esse
título tem de ser refutado: num juízo de gosto (num juízo através do qual
se declara belo um objecto) pode ser tida em conta a perfeição do objecto.
Nesse caso, o juízo de gosto é aplicado, a beleza do objecto é aderente, o
objecto é condicionadamente declarado belo.
Pois bem, as considerações que, ao longo dos §44-§53, Kant profere
acerca do exercício da faculdade da imaginação, tais considerações
indicam que o exercício dessa faculdade é, no contexto da bela arte, um
exercício livre. Embora Kant não nos informe explicitamente daquilo que
é necessário para que o exercício da faculdade da imaginação seja um
exercício livre, embora ele não elenque as condições da liberdade dessa
faculdade, o que ele afirma na parte mencionada da “Crítica da Faculdade
de Juízo Estética” indica que, quando se trata de produzir ou ajuizar obras
de arte do génio, o exercício da faculdade da imaginação é um exercício
suficientemente livre para que se profira um juízo de gosto, não obstante
condicionado pelo reconhecimento de um conceito dado – por exemplo,
uma ideia da razão – assim como pelo reconhecimento de um conceito
daquilo que o objecto deva ser e pela observação da perfeição da obra de
arte segundo esse conceito. A liberdade da faculdade da imaginação é
limitada, mas não esgotada.
A segunda resposta à questão de saber se é legítimo falar-se de bela
arte assenta, então, na tese de acordo com a qual uma obra de arte pode
ser condicionadamente declarada bela, isto é, na tese segundo a qual um
objecto artístico pode ser declarado belo através de um juízo de gosto
aplicado. Trata-se de uma resposta afirmativa: pode falar-se de bela arte.
Quando se fala de bela arte, está a falar-se de uma arte condicionadamente
declarada bela, de uma arte declarada bela através de juízos de gosto
aplicados. A beleza da arte é, no contexto desta resposta, uma beleza
aderente; o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é, neste
âmbito, um juízo de gosto aplicado.
Importa notar, porém, que uma resposta afirmativa à questão de saber se
pode falar-se de bela arte não tem de ser acompanhada pela afirmação

268 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


CONCLUSÃO

segundo a qual a beleza da arte é uma beleza aderente – ou,


equivalentemente, o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte
é um juízo de gosto aplicado. Essa necessidade não pode ser admitida se
tivermos em conta o facto principal por nós apresentado como a considerar
para uma legitimação da noção de bela arte: há obras de arte que são belezas
livres, há objectos artísticos que são livremente declarados belos, que são
declarados belos através de puros juízos de gosto (cf. Kant, 1998: 120).
Conceber esse facto supõe, em primeiro lugar, interpretar o termo
representação num sentido exemplificativo ligado ao gosto. Além disso,
supõe que, no contexto da bela arte, a distinção entre beleza livre e beleza
aderente – ou, equivalentemente, entre puro juízo de gosto e juízo de
gosto aplicado – seja interpretada como uma distinção entre,
respectivamente, declarações de beleza nas quais apenas são
considerados propósitos e constrangimentos do âmbito do gosto e
declarações de beleza nas quais são tidos em conta propósitos e
constrangimentos que não pertencem a esse âmbito. As obras de arte que
– à semelhança dos objectos artísticos mencionados no §16 como sendo
belezas livres – representam apenas o tipo de obra de arte que devem ser,
tais obras são livremente declaradas belas, isto é, declaradas belas
através de puros juízos de gosto. Assim, entre as respostas afirmativas à
questão de saber se pode falar-se de bela arte, há uma que afirma a
possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada
bela, enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto.
Algumas obras de arte são belezas livres, a beleza de alguma arte é uma
beleza livre, a beleza da arte pode ser uma beleza livre.
Recapituladas as condições para responder à questão de saber se pode
falar-se de bela arte, voltemo-nos de novo para a resposta à questão de
saber o que é necessário para a produção de obras de arte belas. A
elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada a esta questão
obrigou-nos a examinar e de alguma maneira conciliar as considerações
aparentemente contraditórias que, em especial nos parágrafos
directamente concernentes à bela arte, Kant profere acerca do génio, do
gosto e da relação entre esses dois talentos. A chave dessa conciliação

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 269


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

reside no carácter educável do génio e no carácter cultivável, exercitável


e corrigível do gosto.
Não obstante vários artistas poderem ter em comum entre si o facto de
serem dotados de génio, o nosso estudo mostrou que esse facto não é
suficiente para que cada um deles produza objectos artísticos belos. Um
aprendiz ou discípulo não está no mesmo patamar de prontidão que um
mestre para produzir uma bela obra de arte. Para que passe a estar, é-lhe
necessário atravessar um processo de sucessão no qual a sua faculdade de
juízo estética, enquanto ajuizando a partir do sentimento da unidade na
apresentação, desempenha um papel crucial. Só exercendo o seu gosto
pode o aprendiz ou discípulo dotado de génio sentir a unidade na
apresentação, suceder, tornar-se um mestre e, por conseguinte, passar a
estar efectivamente pronto para produzir objectos artísticos que, além de
originais, sejam exemplares – obras de arte de génio, obras de arte geniais,
belas obras de arte.
Mas a nossa investigação não mostrou apenas que nem todos os
artistas dotados de génio estão no mesmo patamar de prontidão para
produzir belas obras de arte. Ela mostrou igualmente que nem todos
aqueles que são dotados de gosto estão nas mesmas condições para ajuizar
correctamente uma obra de arte como bela. Por conseguinte, nem apenas
o génio, nem sequer o génio e o gosto, constituem condição suficiente para
a produção de objectos artísticos belos. Só um génio educado e um gosto
cultivado, exercitado e corrigido compõem uma tal condição.
Pois bem, o cultivo, o exercitamento e a correcção do gosto
correspondem ao aguçamento da faculdade do juízo, nomeadamente de
maneira a que, quando se trata de belas obras de arte, aquele que ajuíza
ajuíze através dos princípios da faculdade de juízo estética. Ora, assim
como o génio é educado pelo gosto, a faculdade do juízo é aguçada para o
julgamento da beleza da bela arte mediante objectos que ao longo da
história foram ou têm vindo a ser considerados exemplos de beleza,
objectos esse que fazem parte dos conteúdos das equivocadamente
chamadas ciências belas. Por conseguinte, o conhecimento (de objectos
que compõem os conteúdos) de tais ciências, ao contribuir para o

270 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


CONCLUSÃO

aguçamento da faculdade do juízo, contribui especialmente para a


produção de bela arte.
Estão respondidas as questões que conduziram a nossa
investigação – Se e como poderá falar-se de bela arte? O que é
necessário para a produção de belas obras de arte? Estão recapituladas
as nossas respostas. Várias perguntas foram deixadas em aberto ao
longo deste estudo – necessariamente. Uma outra deve agora ser
lançada.
Cultivada, exercitada e corrigida a sua faculdade do juízo, aguçada
a sua faculdade do juízo através do conhecimento de objectos que
foram ou tenham vindo a ser considerados exemplos de beleza, aquele
que ajuíza – seja ele um génio ou não o seja – está mais apto a proceder
a uma crítica do gosto já não como ciência, pois, enquanto tal, a Crítica
da Faculdade do Juízo já critica o gosto, e assim o aprimora e
consolida, mas como arte. No §34, logo a seguir a afirmar que a crítica
do gosto «é arte (ist Kunst)» se mostrar «somente em exemplos (nur
an Beispielen)» a «relação recíproca do entendimento e da
sensibilidade na representação dada (sem referência à sensação ou
conceito precedentes), por conseguinte a unanimidade ou não
unanimidade de ambos (wechselseitige Verhältnis des Verstandes und
der Einbildungskraft zu einander in der gegebenen Vorstellung (ohne
Beziehung auf vorhergehende Empfindung oder Begriff), mithin die
Einhelligkeit oder Misshelligkeit derselben)» (Kant, 1998: 187)266,
Kant acrescenta que
[a] crítica como arte procura meramente aplicar as regras fisiológicas
(aqui psicológicas), por conseguinte empíricas, segundo as quais o gosto
efectivamente procede (sem reflectir sobre a sua possibilidade), ao
julgamento dos seus objectos e critica os produtos da bela arte ([d]ie
Kritik als Kunst sucht bloß die physiologischen (hier psychologischen),
mithin empirischen Regeln, nach denen der Geschmack wirklich

266
No lugar de “sensibilidade”, deve escrever-se “faculdade da imaginação”. A
palavra usada por Kant é “Einbildungskraft”, como pode ser confirmado por
intermédio da transcrição que fazemos do texto da Preußische Akademie der
Wissenschaften.

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 271


SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

verfährt, (ohne über ihre Möglichkeit nachzudenken) auf die Beurteilung


seiner Gegenstände anzuwenden und kritisiert die Produkte der schönen
Kunst) (Kant, 1998: 187-188).
Pois bem, ao aplicar as referidas regras e ao criticar as obras de arte
que ao longo da evolução da cultura foram ou têm vindo a ser
aprovadas durante mais tempo, a crítica do gosto como arte pode
colocar em causa os conteúdos das ciências mencionadas no §44.
O princípio do gosto é o princípio da conformidade a fins formal
da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. A observação
de uma tal conformidade a fins é possível mediante um sentimento de
prazer no movimento simultaneamente livre e harmónico das
faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do
objecto. Proferir um juízo de gosto é proferir um juízo baseado nesse
princípio, isto é, na observação de uma conformidade a fins formal
do objecto, seja ele natural ou artístico, para as nossas faculdades de
conhecimento. Se, por ocasião da representação de uma obra de arte
referenciada nas equivocadamente chamadas ciências belas, aquele
que ajuíza não observar uma conformidade a fins formal desse objecto
para as suas faculdades de conhecimento, então ele pode questionar
que tal objecto seja parte dos conteúdos dessas ciências. Pode
questioná-lo pela simples razão de que não considera belo o objecto
em causa. O mesmo acontece em sentido inverso. Se, mediante o
proferimento de um juízo de gosto, aquele que ajuíza declarar bela
uma obra de arte, então ele pode defender que essa obra de arte passe
a fazer parte dos conteúdos das referidas ciências.
Além de termos mostrado a importância de tais ciências para o
gosto – para o seu cultivo, para o seu exercício, para a sua correcção
– e, derivadamente, para a bela arte, mostramos, agora, a influência
que o cultivo, o exercício e a correcção do gosto poderão ter sobre
elas, sobre o que nelas é afirmado. Considerando essa influência, a
questão que deixamos em suspenso é a de saber se é legítimo
defender-se que a bela arte será conduzida à posteridade unicamente
através de modelos de gosto de condições bem definidas consoante a

272 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


CONCLUSÃO

espécie de bela-arte em causa267 ou se essa condução dependerá da


inauguração de uma nova regra de cada vez que um artista genial
produz uma bela obra de arte 268. Possam os nossos estudos ser
conduzidos à posteridade, possamos responder a essa questão em
investigações posteriores.

267
No §47, Kant assinala que «[o]s modelos da bela arte são (…) os únicos meios de
orientação para conduzir a arte à posteridade ([d]ie Muster der schönen Kunst sind die
einzigen Leitungsmittel, diese auf die Nachkommenschaft zu bringen)», como já
notámos, e acrescenta que «no ramo das artes do discurso (…) somente podem tornar-
se clássicos os modelos em línguas antigas, mortas e agora conservadas apenas como
línguas cultas (im Fache der redenden Künste können nur die im alten, toten und jetzt
nur als gelehrte aufbehaltenen Sprachen klassisch werden)» (Kant, 1998: 214). Antes,
numa nota a uma passagem do §17, o nosso autor refere que «[m]odelos do gosto com
respeito às artes elocutivas têm que ser compostos numa língua morta e culta:
primeiro, para não ter que sofrer uma alteração, a qual atinge inevitavelmente as
línguas vivas, de modo que expressões habituais tornam-se arcaicas e expressões
recriadas são postas em circulação por somente um curto período de tempo; segundo,
para que ela tenha uma gramática que não seja submetida a nenhuma mudança
caprichosa da moda, mas possua a sua regra imutável ([M]uster des Geschmacks in
Ansehung der redenden Künste müssen in einer toten und gelehrten Sprache abgefaßt
sein: das erste, um nicht die Veränderung erdulden zu müssen, welche die lebenden
unvermeidlicher Weise trifft, dass edle Ausdrücke platt, gewöhnliche veraltet und
neugeschaffene in einen nur kurz dauernden Umlauf gebracht werden; das zweite,
damit sie eine Grammatik habe, welche keinem mutwilligen Wechsel der Mode
unterworfen sei, sondern ihre unveränderliche Regel hat)» (Kant, 1998: 267).
268
Recordemos que no processo de sucessão a arte obtém «uma nova regra (eine neue
Regel)» (Kant, 1998: 224) através de cada nova obra produzida pelo artista dotado de
génio, regra essa «que não pôde ser inferida de quaisquer princípios ou exemplos
anteriores (die aus keinen vorhergehenden Prinzipien oder Beispielen hat gefolgert
werden können)» (Kant, 1998: 223).

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Bibliografia

Obras de Kant
A edição alemã das obras completas de Kant usada nesta tese é a seguinte:
Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich
Preußischen Akademie der Wissenschaften. Berlin: Walter de Gruyter,
1902-1983. Foram usadas as seguintes traduções:

KANT, Immanuel (2004). A Paz Perpétua e outros opúsculos [1784-


1797]. Artur Morão (trad.). Lisboa: Edições 70.
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(1998). Crítica da Faculdade do Juízo [1793]. António Marques e
Valério Rohden (trad.). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
_____
(2001). Crítica da Razão Pura [1787]. Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão (trad.). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.

274 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


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Gottschalk (trad.). Lisboa: Lisboa Editora.
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Natural e da Moral [1764]. Carlos Morujão, Américo Pereira e Mónica
Dias (trad.). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
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Porto: Livraria Educação Nacional.
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Obras sobre Kant


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Agreeable. London and New York: Continuum.
BURGESS, Craig (1989). Kant’s Key to the Critique of Taste. The
Philosophical Quarterly, 39, 157 (pp. 484-492).
CAFFARENA, José Gomes (1992). La Crítica del Juicio a sólo dos años
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la cumbre del criticismo – Simposio sobre la Crítica del Juicio de Kant
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DUQUE, Félix (1992). El Sentimiento como Fondo de la Vida y del Arte.
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Outras obras
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BARTHES, Roland (1984). Degré zero de l’écriture [1953], trad. Maria
Margarida Barahona, O Grau Zero da Escrita. Lisboa: Edições 70.
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CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 281


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Oliveira, Tratado do Sublime. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
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LYOTARD, Jean-François (1979). Discours, figure [1971], trad. Carlota
Hesse e Josep Elias. Discurso, Figura. Barcelona: Gustavo Gili.
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Seabra e Elisabete Alexandre, O Inumano – Considerações sobre o
Tempo. Lisboa: Editorial Estampa.
MORLEY, Simon (ed.) (2010). The Sublime – Documents of
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NIETZSCHE, Friedrich (1984). Das Philosophenbuch [1872-1875], trad.
Ana Lobo. O Livro do Filósofo. Porto: Rés.
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(1997). Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn [1873],
trad. Helga Hoock Quadrado. Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral. Lisboa: Relógio d’Água.
PARSONS, Glenn; Carlson, Allen (2008). Functional Beauty. Oxford:
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PERNIOLA, Mario (2005). Contro la comunicazione [2004], trad.
Manuel Ruas, Contra a Comunicação. Lisboa: Editorial Teorema.
RICOEUR, Paul (1995). Interpretation Theory: discourse and the surplus
of meaning [1976], trad. Artur Morão, Teoria da Interpretação. Porto:
Porto Editora.
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(1983). La Métaphore Vive [1975], trad. Joaquim Torres Costa e
António M. Magalhães, A Metáfora Viva. Porto: Rés.
SCHOPENHAUER, Arthur (s.d.). Die Welt als Wille und Vorstellung
[1819], trad. M. F. Sá Correia. O Mundo como Vontade e Representação.
Porto: Rés.
TOWSEND, Dabney (2001). Hume’s Aesthetic Theory – Taste and
sentiment. London and New York: Routledge.

282 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


Anexos
1. TÍTULOS

Crítica da Faculdade do Juízo


Prólogo
Primeira Introdução
Introdução
“Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (primeira parte)
“Analítica da faculdade de juízo estética” (primeira secção)
“Analítica do belo” (primeiro livro)
“Primeiro momento do juízo de gosto, segundo a
qualidade”
explicação do belo inferida do primeiro
momento
“Segundo momento do juízo de gosto, a saber
segundo a sua quantidade”
explicação do belo inferida do segundo
momento
“Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a
relação dos fins que neles é considerada”
explicação do belo deduzida deste
terceiro momento
“Quarto momento do juízo de gosto segundo a
modalidade do comprazimento no objecto”
explicação do belo inferida do quarto
momento
“Observação geral sobre a primeira secção da analítica”*
“Analítica do sublime” (segundo livro)
“A. Do matemático-sublime”
“B. Do dinâmico-sublime da natureza”
“Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos
estéticos”
“Dedução dos juízos estéticos puros”
“Dialéctica da faculdade de juízo estética” (segunda secção)
“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica” (segunda parte)
“Analítica da faculdade de juízo teleológica” (primeira divisão)
“Dialéctica da faculdade de juízo teleológica” (segunda divisão)
“Doutrina do método da faculdade de juízo teleológica” (apêndice)
“Observação geral sobre a teleologia”

* Não existe uma primeira secção da analítica; existe uma “primeira secção” da “Crítica
da Faculdade de Juízo Estética” e um “primeiro livro” da “Analítica da faculdade de juízo
estética” (cf. Kant, 1998: 469 e 471). A “Observação geral sobre a primeira secção da
analítica” é uma observação geral sobre o primeiro livro da “Analítica da faculdade de
juízo estética”, denominado “Analítica do belo”.

284 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


2. ARTICULAÇÃO

(Representação do) Objecto


Sensus Communis Aestheticus, Gosto, Faculdade de Juízo Estética



Movimento Livre e Harmónico das Faculdades de Conhecimento

Prazer

Princípio da Conformidade a Fins Formal da Natureza para a


nossa Faculdade de Conhecimento

Conceito Racional Transcendental do Supra-Sensível
- condição do entendimento da legalidade do princípio da
conformidade a fins formal da natureza para a nossa
faculdade de conhecimento
- fundamento da conformidade a fins subjectiva da
natureza para a nossa faculdade do juízo

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 285


3. LIVRE DECLARAÇÃO DA OBRA DE ARTE COMO BELA

Obra de Arte

Puro Juízo de Gosto

Propósito Estético** / Propósito do âmbito do Gosto***


- conceito do que a coisa deva ser enquanto tipo de obra
Constrangimentos Estéticos** / Constrangimentos do âmbito do
Gosto***
- exigências inerentes ao tipo de obra

Perfeição
- cumprimento das exigências inerentes ao tipo de obra

Declaração da Obra de Arte como Livremente Bela

** “Estético” ≠ aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão


subjectivo
*** “Gosto” ≠ faculdade de juízo estética

286 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana


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Claudio La Rocca (Univ. of Genua, Italy)
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Translatio Kantiana E-Book Series
The Translatio Kantiana Series seeks to make available to Kant
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Writings into Spanish, German, English, French, Italian and
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Quaestiones Kantianas Series aims at retrieving classical
interpretative essays focusing on different features of Kant’s thought
and work, in their original language or translated for broadening the
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Hermeneutica Kantiana E-Book Series


Hermeneutica Kantiana Series seeks proposals that will bring to a
multilingual audience interpreting essays regarding all areas of Kant’s
critical thought.

Dialectica Kantiana E-Book Series


Dialectica Kantiana Series promotes essays of the Kantian legacy,
gathered in collective volumes, focusing on subjects tackling key
ethical, political and social challenges that may help us to better
assess the problems of our present time.
Este primer libro de
la Biblioteca Digital de Estudios Kantianos,
que inaugura la serie Hermeneutica kantiana de CTK E-Books,
fue terminado por Ediciones Alamanda
el día 10 de febrero de 2017

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