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A paixão em “O Discurso do Rei”


Phatos in “The King’s Speech”

Michelle Silva dos Santos*


Hélia Coelho Mello Cunha**

“Não existe cultura sem formação retórica. E aprender a


arte de bem dizer é já e também aprender a ser”.
(Olivier Reboul)

RESUMO ABSTRACT

Na iminência da Segunda Guerra Mundial, o On the eve of World War II, King George
rei George VI da Inglaterra fazia a toda a VI of England made to the whole Britain his
nação britânica o seu pronunciamento que foi speech that was broadcasted on BBC radio.
transmitido pela rede radiofônica da BBC. This remarkable historical fact of the
Esse marcante fato histórico do século XX twentieth century has been showed in the
foi abordado no cinema com o filme “O cinema through the movie "The King's
Discurso do Rei”, lançado no ano de 2010. Speech," released in 2010. Thus, this article
Assim, este artigo, fundamentado na teoria aims to analyze the resources used in the
da Retórica, analisa os recursos empregados Royal speech based on the rhetoric theory.
nesse discurso real. Para isso, será In order to do so it will be used PATHOS’
demonstrada a importância do PATHOS e do and ETHOS’ importance in the persuasion
ETHOS na persuasão do auditório, a partir of the audience, from the writings of
dos escritos de Aristóteles, Olivier Reboul e Aristotle, Olivier Reboul and Perelman,
Perelman, entre outros. Este artigo foi among others. This article was developed in
desenvolvido na linha de pesquisa the research line “Literature, Language and
“Literatura, Linguagem e Sociedade”, do Society”, of the specialization course on
curso de especialização em “Literatura, “Literature, Cultural Memory and Society”
Memória Cultural e Sociedade” do IF of IF Fluminense Campos dos Goytacazes.
Fluminense Campos dos Goytacazes.

Palavras-chave: pathos, discurso, Key words: pathos, discourse,


argumentação, retórica argumentation, rhetoric

* Pós-graduanda em Literatura, Memória Cultural e Sociedade – IF Fluminense campus Campos-Centro.


** Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF,
Professora do IF Fluminense campus Campos-Centro, orientadora da pesquisa.
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INTRODUÇÃO
Como conquistar a confiança de um povo e ainda convencê-lo a manter-se
calmo e unido, na iminência de uma guerra?
Esse foi o maior desafio enfrentado por George VI, na condição de rei da
Inglaterra, além de tentar superar um problema de gagueira e a insegurança ao discursar
publicamente.
Conquanto o tema “gagueira” tenha sido considerado em outros trabalhos a
partir do filme, o objetivo deste artigo é demonstrar a importância da arte de
argumentar, sobretudo da Retórica como geradora de persuasão.
Remonta à Antiguidade Clássica a preocupação com o domínio da expressão
verbal. Essa inquietação surgiu com os gregos, a partir da necessidade de justificarem
publicamente seus ideais de democracia.
Seja na política, na área do Direito ou em qualquer contexto de discurso público,
“vivemos sempre uma situação polêmica, em que as armas
mais eficazes são as da palavra, visto que só ela – e não a
força física – define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o
nobre e o desprezível. A Retórica, arte ou técnica da
palavra, é, portanto, indispensável. E aí está o que a
legitima”. (REBOUL, 2000, 25)
Córax, discípulo do filósofo Empédocles, foi quem deu a primeira definição para
o termo Retórica. Para o discípulo, ela é “criadora de persuasão”. Já Aristóteles define a
Retórica como “a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de
gerar a persuasão”. (ARISTÓTELES, Nd, 33). Olivier Reboul, por sua vez, afirma que a
“Retórica é a arte de persuadir pelo discurso”. (2000, xiv)
Destarte, fundamentado na teoria da Retórica, este artigo pretende apontar, no
discurso do rei George VI, os recursos que foram utilizados com o objetivo de persuadir
os ouvintes, principalmente para incitar a paixão neles.
Em sentido geral de instrumentos de persuasão, Aristóteles define três pilares da
boa argumentação: pathos e ethos que são voltados para a afetividade, e logos, para a
racionalidade.
No discurso real, objeto de análise deste artigo, é possível perceber, entre outros
recursos, a importância dos argumentos de ordem afetiva, sobretudo do pathos.
Segundo Aristóteles, as paixões (pathos) “são todos aqueles sentimentos que, causando
mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos”. (ARISTÓTELES, 2000, 5)
No primeiro capítulo deste artigo, serão abordadas a origem da Retórica e sua
importância para a persuasão de um auditório. O capítulo seguinte apresentará
transcrição e tradução do discurso do rei George VI, versará sobre o contexto no qual
foi elaborado e apresentará a questão mais importante desta pesquisa: a sua análise
retórica.
Nessa análise, foi feita uma revisão bibliográfica de autores como Aristóteles,
Olivier Reboul e Perelman, entre outros, que serviram de base para este trabalho.

I- ORIGEM E IMPORTÂNCIA DA RETÓRICA


O homem é um ser estritamente social. Desde os primórdios, ele vem buscando
maneiras de interagir com o outro, seja por meio da linguagem verbal, da não-verbal,
enfim, o ser humano sempre necessitou de comunicação. Além disso, é possível afirmar
que, desde outrora, a linguagem é utilizada, por vezes, com o intuito de persuadir.
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Assim, pode-se dizer que “a Retórica é anterior à sua história, e mesmo a qualquer
história, pois é inconcebível que os homens não tenham utilizado a linguagem para
persuadir”. (REBOUL, 2000,1)
Do ponto de vista histórico, a Retórica surgiu na Grécia. Foi por volta de 465
que os gregos inventaram a “técnica retórica”, cuja origem não é literária, mas
judiciária. Tudo começou na Sicília grega, após a expulsão de tiranos.

“Os cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus


bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros conflitos
judiciários. Numa época em que não existiam advogados,
era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua
causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o
seu próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma “arte
oratória” (tekhné rhetoriké), coletânea de preceitos
práticos que continha exemplos para uso das pessoas que
recorressem à justiça. Ademais, Córax dá a primeira
definição da retórica: ela é “criadora de persuasão”.
(REBOUL, 2000, 2)
A Retórica, vista como recurso estético e literário, surgiu com Górgias, siciliano
e também discípulo de Empédocles. Em 427, foi para Atenas, e diz-se que lá ele
encantou os atenienses com sua eloquência, a ponto de garantir o seu retorno ao lugar.
“Sua retórica é bastante sofística, visto que se baseia em
uma petição de princípio. (...) Aliás, é no sentido mais
técnico que Górgias merece a denominação de sofista.
Como todos os outros – Pitágoras, Pródico, Trasímaco,
Hípias, Crítias, etc. – ele foi professor; dava de cidade em
cidade lições de eloquência e de filosofia, cobrando a cada
uma delas o fabuloso salário de cem minas. (...) Esse
ensino preenchia uma necessidade, pois até então os
gregos só recebiam uma formação elementar, sem nada de
parecido com um ensino superior ou mesmo secundário.
(...) Górgias foi criticado pela ênfase de sua prosa, que
carecia demais de simplicidade; o verbo gorgia-z-o ficou
como sinônimo de grandiloquência.(...) Górgias pôs a
retórica a serviço do belo”. (REBOUL, 2000, 5;6)
Com isso, é possível afirmar que a Retórica como arte do discurso persuasivo foi
criada pelos sofistas. Para eles, “a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores,
acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão
não seria possível”. (REBOUL, 2000, 9) Contudo, o fundamento que eles deram à
Retórica parecia um tanto arriscado. Isso porque o objetivo dessa Retórica era ser
eficaz, dominar por meio das palavras; independentemente da veracidade ou
verossimilhança do discurso.
A Retórica auxiliou os gregos em diversos aspectos: técnica judiciária, prosa
literária, filosofia, ensino. E foi Isócrates que conseguiu contentar essas necessidades
com uma proposta de Retórica mais moral e admissível. Sua debilidade vocal e sua
timidez impossibilitaram-no de ser orador, destarte, tornou-se professor de arte oratória.
Indo de encontro aos sofistas, ele mostra que o ensino não é “todo-poderoso”. Para ele,
são necessários três requisitos para ser um orador eficiente: aptidões naturais, prática
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constante e ensino sistemático. De acordo com Isócrates, “Prática e ensino podem


melhorar o orador, mas não criá-lo”. Ele também prega que “a retórica deve ter um
objetivo para depois procurar todos os meios de atingi-lo sem nada deixar ao acaso”.
(REBOUL, 2000,11)
Na concepção de Aristóteles, integrante da Academia de Platão durante vinte
anos,
“A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e o justo
mais força natural que os seus contrários, se os
julgamentos não são proferidos como conviria, é
necessariamente por sua única culpa que os litigantes [cuja
causa é justa] são derrotados. Sua ignorância merece,
portanto, censura. (...) Ademais, é preciso ser capaz de
persuadir dos prós e dos contras, como no silogismo
dialético. Não para pôr os prós e os contras em prática –
pois não se deve corromper pela persuasão – mas para
saber claramente quais são os fatos e para, caso alguém se
valha de argumentos desonestos, estar em condições de
refutá-lo”. (REBOUL, 2000, 22)
Além de uma argumentação bem proferida, conforme propõe Aristóteles, é
imprescindível também atentar, antes da elaboração de um discurso, para o tipo de
auditório que se quer atingir, pois é a ele “que cabe o papel principal para determinar a
qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores”. (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, 27)
Reboul afirma que “sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que
pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-se auditório, termo que se
aplica até aos leitores”. (REBOUL, 2004, 92)
Assim, para o auditório aderir a um discurso, é fundamental que o orador saiba a
quem vai falar, crie um ambiente receptivo e busque acordo com certas premissas já
aceitas pelos ouvintes. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca,

“tanto o desenvolvimento como o ponto de partida da


argumentação pressupõem acordo do auditório. Esse
acordo tem por objeto ora o conteúdo das premissas
explícitas, ora as ligações particulares utilizadas, ora a
forma de servir-se dessas ligações; do princípio ao fim, a
análise da argumentação versa sobre o que é
presumidamente admitido pelos ouvintes”. (PERELMAN
e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, 73)
Após definido o auditório, é necessário argumentar. No que tange aos
argumentos, pode-se dizer que existem três pilares da boa argumentação: ethos, pathos e
logos. Ethos e pathos são direcionados à afetividade, já logos, à racionalidade.

“O etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar


confiança no auditório (...) ele deve preencher as
condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato,
sincero e simpático. (...) O patos é o conjunto de emoções,
paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no
auditório com seu discurso. (...) Se o etos diz respeito ao
orador e o patos ao auditório, o logos diz respeito à
6

argumentação propriamente dita do discurso”. (REBOUL,


2000, 48;49)
Segundo Aristóteles:
“Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando
o discurso procede de maneira que deixa a impressão de o
orador ser digno de confiança. (...) Obtém-se a persuasão
nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma
paixão, porque os juízos que proferimos variam, consoante
experimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio. (...)
Enfim, é pelo discurso que persuadimos, sempre que
demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade, de
acordo com o que, sobre cada assunto, é suscetível de
persuadir”. (ARISTÓTELES, Nd, 33;34)
Um discurso argumentativo precisa provocar paixão em seu auditório e a
utilização de estratégias de envolvimento é fundamental para que se atinja a persuasão.
Muitos são os recursos retóricos que podem ser utilizados para tal objetivo. Serão
abordados, a seguir, alguns destes na análise retórica que será feita do discurso do rei
George VI.

II- CONTEXTO HISTÓRICO DO DISCURSO REAL

No filme “O Discurso do Rei”, escrito por David Seidler e dirigido por Tom
Hooper, a dificuldade de discursar em público devido a uma gagueira é o tema central
abordado. Baseado na história da Família Real Inglesa do século XX, a produção
cinematográfica conta a trajetória do Príncipe Albert, Bertie para os mais íntimos,
interpretado pelo ator Colin Firth. Bertie era o segundo na linha de sucessão. Devido à
imaturidade de seu irmão mais velho David (Guy Pierce), sucessor natural ao trono, vê-
se no compromisso de assumir o reinado que perdurou de 1936 até 1952, ano de sua
morte. Por ser gago, é submetido a diversos tratamentos, todos com insucesso. Diante
disso, sua esposa Elizabeth (Helena Bonham Carter) chega ao Lionel Logue (Geoffrey
Rush), especialista em problemas de fala. Após alguma resistência, ele inicia o
tratamento.
Para alcançar êxito, o terapeuta da fala, com seus métodos pouco convencionais,
procurou ganhar a confiança de Bertie (como príncipe e depois como rei). O terapeuta
empenhou-se a fim de estabelecer uma relação de igualdade e de amizade com seu
paciente. Assim, com o tratamento e apoio de Lionel Logue, gradativamente, Bertie foi
resgatando a segurança necessária para discursar publicamente.
Já na condição de George VI, após muita terapia e com a iminência da Segunda
Guerra Mundial, chega o momento do tão esperado discurso real, proferido a toda a
nação britânica, pela rede radiofônica da BBC.
Esse discurso, proclamado num contexto crítico da história, deveria ser dotado
de elementos que realmente conseguissem alcançar o auditório, ou seja, um povo de
princípios bastante conservadores. Destarte, o discurso do rei George VI foi elaborado
de forma a provocar a paixão (pathos) nos ouvintes, bem como credibilidade (ethos).
Para isso, foram empregados variados recursos retóricos que serão detalhados no
decorrer deste trabalho.
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2.1- O MOMENTO DO DISCURSO, TRANSCRIÇÃO E TRADUÇÃO

No filme, os instantes que antecederam o discurso demonstraram que George VI


ainda denotava insegurança em ter que discursar para um público, ainda que fosse pelo
rádio. Minutos antes do início da proferição, o rei praticava exercícios fonéticos e
mostrava dificuldades na leitura de algumas partes do texto. A performance do rei, no
momento do discurso, será revelada posteriormente. A seguir, a transcrição1 e a
tradução2 do texto.

TEXTO ORIGINAL

In this grave hour, perhaps the most fateful in our history, I send to every
household of my peoples, both at home and overseas, this message spoken with the
same depth of feeling for each one of you as if I were able to cross your threshold and
speak to you myself.
For the second time in the lives of most of us we are at war. Over and over again
we have tried to find a peaceful way out of the differences between
ourselves and those who are now our enemies. But it has been in vain.
We have been forced into a conflict. For we are called, with our allies, to meet
the challenge of a principle which, if it were to prevail, would be fatal to any civilized
order in the world. Such a principle, stripped of all disguise, is surely the mere
primitive doctrine that might is right.
For the sake of all that we ourselves hold dear, and of the world’s order and
peace, it is unthinkable that we should refuse to meet the challenge. It is to this high
purpose that I now call my people at home and my peoples across the seas, who will
make our cause their own.
I ask them to stand calm and firm, and united in this time of trial. The task will
be hard. There may be dark days ahead, and war can no longer be confined to the
battlefield. But we can only do the right as we see the right and reverently commit our
cause to God.
If one and all we keep resolutely faithful to it, then, with God’s help, we shall
prevail.

TRADUÇÃO

Neste grave momento, talvez o mais decisivo de nossa história, eu envio para
cada família de meu povo, tanto aqui como em outras terras, esta mensagem, dita com
a mesma profundidade de sentimento para cada um de vocês como se eu fosse capaz de
passar pela soleira de suas casas e falar-lhes pessoalmente.
Pela segunda vez na vida da grande maioria de nós, nós estamos em
guerra. Muitas e muitas vezes tentamos encontrar uma saída pacífica para as
diferenças entre nós e aqueles que são agora nossos inimigos. Mas tudo foi em vão.
Nós fomos forçados a um conflito. Porque nós somos chamados, com nossos
aliados, a enfrentar o desafio de um princípio que, se fosse prevalecer, seria fatal para
qualquer ordem civilizada no mundo. Tal princípio, despojado de qualquer disfarce, é
seguramente a mera doutrina primitiva de que a força está com a razão.
Em nome de tudo aquilo que nós mesmos valorizamos, e da ordem e paz
mundial, é impensável que nós nos recusássemos a enfrentar este desafio. É por causa

1
O discurso do rei George VI foi adaptado para o filme.
2
A tradução foi feita pela autora deste artigo.
8

deste elevado propósito que eu agora conclamo meu povo em minha terra e meus povos
em terras de além-mar a fazer da nossa causa a sua própria causa.
Peço-lhes então que se mantenham calmos e firmes, e unidos neste momento de
provação. A tarefa será difícil. Poderão vir dias sombrios pela frente, e a guerra
poderá não ficar confinada aos campos de batalha. Mas só podemos fazer o certo da
maneira como vemos o certo e, reverentemente, confiar nossa causa a Deus.
Se cada um e todos nós continuarmos resolutamente fiéis a ela, então, com a
ajuda de Deus, nós prevaleceremos.

2.2- ANÁLISE DOS RECURSOS RETÓRICOS EMPREGADOS NO DISCURSO


REAL

No discurso em análise, conforme já mencionado, será abordada a argumentação


do ponto de vista da afetividade, sobretudo do pathos.
Há o intuito de se alcançar comunhão com o auditório e também credibilidade.
Para isso, o orador cria uma imagem de seu auditório considerando seu projeto
argumentativo. Segundo Fiorin (1997, 53), “a argumentação consiste no conjunto de
procedimentos linguísticos e lógicos utilizados pelo enunciador para convencer o
enunciatário” e “o falante organiza sua estratégia discursiva em função de um jogo de
imagens: a imagem que ele faz do interlocutor, a que ele pensa que o interlocutor tem
dele, a que ele deseja transmitir ao interlocutor etc”. (Id,1997, 18)
Para conseguir essa comunhão, o orador utiliza, entre outros recursos, pronomes
e verbos em primeira pessoa do plural, adjetivos e diálogo com os ouvintes a fim de
enfatizar a proximidade orador/auditório. No trecho “dita com a mesma profundidade de
sentimento para cada um de vocês como se eu fosse capaz de passar pela soleira de suas
casas e falar-lhes pessoalmente”, o orador procura comover e mostrar intimidade com o
auditório. Além disso, reforça o aspecto emotivo (pathos), ao falar de sentimento.
Por outro lado, em “Muitas e muitas vezes tentamos encontrar uma saída
pacífica para as diferenças entre nós e aqueles que são agora nossos inimigos”, o orador
reitera as tentativas de paz; quer mostrar-se um sujeito ético, com caráter e que quer
solucionar as questões de forma pacífica, recorrendo, nesse ponto, ao ethos.
Para explicar o ethos, Ruth Amossy (2008, 10) fez uso das palavras de Roland
Barthes que o define como

“os traços de caráter que o orador deve mostrar ao


auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar
boa impressão: é o seu jeito [...]. O orador enuncia uma
informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou
aquilo”.

Embora o discurso também apresente argumentação baseada no ethos, conforme


demonstrado acima, é predominante o uso do pathos, pois a todo momento o orador
tenta uma comunhão com o auditório com o propósito de comover e conquistar o apoio
do povo.
Também com o intuito da interação orador/auditório, o discurso foi elaborado
em nível coloquial, uma vez que o objetivo era alcançar toda a nação. Para isso, o
orador faz uso de um vocabulário acessível a todos os ouvintes, sem utilizar palavras
rebuscadas.
Além disso, o discurso expressa certa afetividade, característica da linguagem
informal. Ao utilizar o pronome possessivo em “meu povo”, o orador quer mostrar-se
9

próximo, íntimo, e isso é reforçado ao valer-se do diálogo com o ouvinte ao utilizar o


pronome de tratamento vocês na expressão “falar com vocês pessoalmente”.
O orador inicia o discurso valendo-se dos adjetivos “grave” e “decisivo”,
capazes de atingir o emocional de quem está ouvindo, além de deixar evidente a
densidade da situação e a confirmação de que a Inglaterra entraria em guerra. O
advérbio “talvez”, usado no mesmo trecho, é um indicador modal que denota a
possibilidade de se tratar do momento mais crítico da história.
A utilização de figuras retóricas também se faz presente no discurso. Segundo
Reboul (2000, 113), “a expressão ‘figuras de retórica’ não é pleonasmo, pois existem
figuras não retóricas que são poéticas, humorísticas ou simplesmente de palavras. A
figura só é de retórica quando desempenha papel persuasivo”.
No trecho “Pela segunda vez na vida da grande maioria de nós, nós estamos em
guerra. Muitas e muitas vezes tentamos encontrar uma saída pacífica para as diferenças
entre nós e aqueles que são agora nossos inimigos. Mas tudo foi em vão”, o orador faz
referência a um fato passado e, com isso, traz à memória das pessoas tudo o que foi
vivenciado outrora, ou seja, uma participação árdua, porém vitoriosa na Primeira
Guerra. Há, nesse caso, exemplo de hipotipose. Segundo Reboul (2000, 136), essa
figura “consiste em pintar o objeto de que se fala de maneira tão viva que o auditório
tem a impressão de tê-lo diante dos olhos. Sua força de persuasão provém do fato de
que ela ‘mostra’ o argumento, associando o patos ao logos”.
Assim, enfatiza mais uma vez a gravidade do momento, mostrando a
necessidade de irem novamente ao combate.
No mesmo período, é possível perceber que a repetição “Muitas e muitas” teve a
intenção de acentuar o esforço pela solução pacífica, o que reforça o caráter e a
credibilidade do orador.
Ademais, foi utilizado o operador argumentativo “mas”. Nesse caso, ocorre a
retirada da força argumentativa da primeira proposição “Muitas e muitas vezes tentamos
encontrar uma saída pacífica para as diferenças entre nós e aqueles que são agora nossos
inimigos” e o fortalecimento da segunda “Mas tudo foi em vão”. Geraldi (2000, 82)
afirma que “o ‘mas’ serve, assim, para desviar o ouvinte de uma conclusão mais ou
menos esperada, alterando desse modo a orientação argumentativa que o locutor
imprime à interação verbal de que participa”.
Segundo Ducrot (apud KOCH, 2002, 105) o mas e seus similares é “operador
argumentativo por excelência”. O orador introduz um argumento possível para uma
determinada conclusão e, em seguida, opõe-lhe um argumento decisivo para a
conclusão pretendida.
Guimarães (2001a:109-122) diz que ao utilizar o mas, aplica-se a “estratégia do
suspense”.
Ainda no trecho citado anteriormente, o pronome “aqueles” está, provavelmente,
fazendo referência a nações como Itália e Alemanha, principais inimigas da Inglaterra
na Segunda Guerra Mundial.
Os tempos verbais também são comumente usados como recursos expressivos.
No trecho seguinte, o pretérito imperfeito do subjuntivo foi utilizado com esse intento:
“Nós fomos forçados a um conflito. Porque nós somos chamados, com nossos aliados, a
enfrentar o desafio de um princípio que, se fosse prevalecer, seria fatal para qualquer
ordem civilizada no mundo”. Nesse exemplo, o verbo “fosse” expressa uma
possibilidade, uma hipótese; e essa possível consequência é marcada mais uma vez por
um adjetivo de forte conotação “fatal”, o que provavelmente afeta o emocional dos
ouvintes. Pode-se dizer que foi utilizado, nesse caso, o argumento de consequência, ao
afirmar que “se fosse prevalecer, seria fatal para qualquer ordem civilizada no mundo”.
10

No trecho inicial “Nós fomos forçados a um conflito. Porque nós somos


chamados”, o orador, por meio de pronomes e verbos em primeira pessoa do plural,
tenta alcançar uma comunhão com os ouvintes, envolvendo-os de forma que eles se
sintam em compromisso com a causa, principalmente quando é dito “porque nós somos
chamados”.
Além disso, o uso da voz passiva, em que o sujeito sofre a ação (sujeito
paciente), coloca a Inglaterra na condição de vítima, reforçando, nesse ponto, a
credibilidade do orador.
No segmento “Tal princípio, despojado de qualquer disfarce, é seguramente a
mera doutrina primitiva de que a força está com a razão”, o orador quer mostrar que o
propósito inimigo é fazer prevalecer a força, atitude repelida por ele. Nessa declaração,
percebe-se uma informação implícita. Segundo Koch (2000, 156), “há palavras que,
colocadas estrategicamente no texto, trazem consigo uma carga poderosa de implícitos”.
É possível depreender que, nesse trecho, há uma referência à Itália e à Alemanha que,
com seus regimes totalitários, faziam uso da força para alcançarem seus interesses, o
que levou a Inglaterra, entre outros motivos, à decisão de entrar no conflito bélico.
No parágrafo que segue “Em nome de tudo aquilo que nós mesmos valorizamos,
e da ordem e paz mundial, é impensável que nós nos recusássemos a enfrentar este
desafio. É por causa deste elevado propósito que eu agora conclamo meu povo em
minha terra e meus povos em terras de além-mar a fazer da nossa causa a sua própria
causa”, o orador convoca seu povo ao desafio bélico. Para isso, ele utiliza vocábulos
que denotam situações genuinamente nobres e humanitárias como é o caso da “ordem e
paz mundial”.
Embora exista um paradoxo no fato de se buscar a ordem e a paz mundial por
meio de uma guerra, ao valer-se do verbo “recusar” em “é impensável que nós nos
recusássemos a enfrentar este desafio”, subentende-se que o desafio bélico não partiu da
Inglaterra.
Vale ressaltar novamente a relevância do emprego dos pronomes no discurso
real: “nós mesmos, nós, eu, meu, minha, meus, nossa”. Quando utiliza a expressão
“meus povos” no trecho ora citado, é notável a preocupação de mostrar que ele fala para
todos, inclusive para seus súditos, por se referir a todos os povos do Reino Unido,
demonstrando respeito também por aqueles que estão distantes do reino, em “terras de
além-mar”.
Já ao final do discurso, o orador vale-se de três adjetivos “calmos, firmes e
unidos”, conforme pode ser lido no trecho seguinte: “Peço-lhes então que se mantenham
calmos e firmes, e unidos neste momento de provação. A tarefa será difícil. Poderão vir
dias sombrios pela frente, e a guerra poderá não ficar confinada aos campos de batalha.
Mas só podemos fazer o certo da maneira como vemos o certo e, reverentemente,
confiar nossa causa a Deus”. Neste fragmento, há a preocupação de alertar a população
para os possíveis “dias sombrios” e de passar confiança a ela. Além disso, o orador
deixa implícito que podem ocorrer ataques em outros lugares ao afirmar “a guerra
poderá não ficar confinada aos campos de batalha”.
Ademais, a repetição da conjunção “e” em “calmos e firmes, e unidos” transmite
um tom de oralidade, de informalidade, como se o discurso estivesse sendo elaborado
no momento da fala. Trata-se de um texto que foi escrito já com o intuito de ser lido
pelo orador, aparentando, dessa forma, um discurso espontâneo.
Ainda no fragmento citado acima, percebe-se também uma gradação (figura
retórica) com os vocábulos “calmos”, “firmes” e “unidos” dispostos em ordem
crescente, acentuando, com isso, a relevância de tais características.
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Já no trecho “Mas só podemos fazer o certo da maneira como vemos o certo”, o


cuidado na seleção lexical e a repetição contribuíram para enfatizar o valor do “certo”,
reforçando, assim, a credibilidade do orador, além de comover os ouvintes.
Perelman-Tyteca “vêem na repetição uma figura de ‘presença’, uma das que
fazem sentir o argumento. Para eles, porém, ela não se reduz ao patos; não é apenas o
que facilita o argumento, mas constitui o próprio argumento”. (apud REBOUL, 2000,
114)
Para finalizar o discurso, o orador expõe a importância de se confiar a causa a
Deus: “Se cada um e todos nós continuarmos resolutamente fiéis a ela, então, com a
ajuda de Deus, nós prevaleceremos”. Nesse caso, temos novamente o apelo ao pathos,
pois o orador entra no campo das crenças, da fé do povo ao falar de Deus.
Ao usar a expressão “cada um e todos nós”, o orador frisa a importância não
somente de cada um fazer a sua parte, mas também de se fazer com união. Destarte, é
finalizado o discurso: comprometendo a causa a Deus e mostrando a relevância de se
manterem fiéis aos preceitos da sociedade britânica.
Essa análise expôs alguns dos recursos retóricos utilizados no discurso do rei
George VI com o propósito de angariar a simpatia e o apoio do povo. Conforme
demonstrado, o discurso valeu-se sobretudo da argumentação sob o ponto de vista do
pathos.
Diante do que foi observado no discurso e nas cenas finais do filme, nas quais os
ouvintes respondem ao discurso real por meio de aplausos e de expressões faciais de
aprovação, é possível dizer que George VI obteve êxito em sua proferição e alcançou
seu propósito argumentativo.
Assim, fica evidente a contribuição da Retórica na elaboração de textos cujo
objetivo principal é a persuasão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do filme “O Discurso do Rei” foi possível o acesso ao discurso que
norteou todo o trabalho desenvolvido neste artigo cujo objetivo era confirmar a
importância da Retórica na função persuasiva.
A análise desse discurso demonstrou que os argumentos de ordem afetiva
(principalmente, os baseados no pathos) definidos por Aristóteles tiveram relevante
contribuição para que o rei George VI da Inglaterra pudesse alcançar seu propósito que
era ganhar a confiança e o apoio da nação britânica na iminência da Segunda Guerra
Mundial. As figuras retóricas, entre outros recursos, tiveram papel essencial para se
alcançar a persuasão pretendida.
O conhecimento da Retórica é algo valioso, pois possibilita a fruição dessa arte
de argumentar, seja empregando os recursos retóricos, seja identificando-os em
qualquer discurso que tenha como objetivo primordial a persuasão.
Tudo isso incita-nos à reflexão da importância de se saber argumentar, de se
fazer bom uso da língua como forma, inclusive, de exercer a cidadania.

“Saber argumentar não é um luxo, mas uma necessidade.


Não saber argumentar não seria, aliás, uma das grandes
causas recorrentes da desigualdade cultural, que se
sobrepõe às desigualdades sociais e econômicas,
reforçando-as. Não saber tomar a palavra para convencer
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não seria, no final das contas, uma das grandes causas de


exclusão?” (PHILIPPE BRETON,1999, 19)

Considerando que cada vez mais o domínio das palavras é sinônimo de poder e
de ascensão social, fica evidente a necessidade de as pessoas conhecerem os recursos
retóricos e de bem empregá-los nas mais variadas situações argumentativas que são
enfrentadas cotidianamente.
Que todos nós sintamos o desejo de busca e de aprofundamento nos
conhecimentos retóricos e que a Retórica, como “arte de persuadir pelo discurso”, seja,
assim, mais um meio de inclusão social e de conquista do auditório conforme foi
demonstrado pelo discurso do rei George VI!

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth.
(Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho.
16ed. Rio de Janeiro: Ediouro.
____________ Retórica das Paixões. Tradução do grego: Isis Borges B. da Fonseca.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Tradução: Viviane Ribeiro.
Bauru, SP: EDUSC, 1999.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 6ed. São Paulo: Contexto, 1997.
GERALDI, João Wanderley & ILARI, Rodolfo. Semântica. 10ed. São Paulo: Ática,
2000.
GUIMARÃES, Eduardo. Texto e Argumentação: um estudo de conjunções do
Português. 2ed. São Paulo, Campinas: Pontes, 2001a.
KOCH, I. G. V. Argumentação e Linguagem. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova
Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
THE KING’S SPEECH (2010) Reino Unido. Roteiro: David Seidler. Direção: Tom
Hooper. Gênero: Histórico, Biografia, Drama.
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