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HADDAD,

TempoFernando.
Social;Trabalho e classesUSP,
Rev. Sociol. sociais.Tempo Social;
S. Paulo, 9(2):Rev. Sociol. outubro
97-123, USP, S. Paulo, A R deT1997.
9(2): 97-123, outubro
de 1997. I G O

Trabalho e classes sociais


FERNANDO HADDAD

RESUMO: Exposição, discussão e refutação das principais tentativas de UNITERMOS:


atualizar a teoria marxista de classes e posterior reavaliação dessa teoria à luz classes sociais,
trabalho,
da transformação da ciência em fator de produção e da possível perda de
ciência,
centralidade do trabalho no processo produtivo, tendo por base as interpretações marxismo.
lógicas da obra de Marx feitas por Ruy Fausto.

C
reio que uma estratégia teórica razoável para enfrentar o persisten-
te problema da conceituação da categoria trabalho e das transfor-
mações do processo de trabalho nas sociedades contemporâneas
seja passar em revista algumas das principais teses que, de um século
para cá (desde a publicação do Livro III de O capital) esforçam-se por
compreender a estrutura de classes das sociedades contemporâneas: da
sociologia alemã do começo do século aos recentes estudos do marxismo
analítico, passando pelo austro-marxismo, pelo pensamento francês da década
de 60, pelos trabalhos dos teóricos anglofônicos, pela produção leste-européia
etc. Afinal, mal ou bem, todas essas teses sobre classes sociais, defendidas
com brilho pelos principais sociólogos do século, encontram seu fundamento
último no acompanhamento da evolução dos processos de trabalho, ou mais
propriamente, na forma como a sociedade se reproduz do ponto de vista
material.
Contra isso, pode-se argumentar que o fato de que nenhuma dessas
teses tornou-se hegemônica, a ponto de gozar do prestígio que a teoria de
classes marxista conheceu, indica que as visíveis deficiências desta última no
que diz respeito à explicação da dinâmica do capitalismo recente possam ser Professor do Depar-
insuperáveis a partir de um ponto de vista centrado no conceito de classe social. tamento de Ciência
Política da FFLCH-
É bem verdade que os progressos no campo de estudo das classes não são, de USP
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maneira nenhuma, negligenciáveis. Conceitos como os de “nova classe média”


(Lederer), “setor terciário ou de serviços” (Clark), “sociedade pós-industrial”
(Bell) etc. são referências obrigatórias para o estudioso que ousar entrar para
o debate, ainda que para rejeitá-los. Mas é igualmente certo que as divergên-
cias entre os teóricos são apreciáveis, desencorajando aquele que pretenda
apresentar uma nova alternativa para o problema. Contudo, na ciência como
na vida, os obstáculos são tão mais atraentes quanto maior a dificuldade em
transpô-los.
Preliminarmente, convém esclarecer que considero o assunto “classe
social” um objeto próprio da economia política (e secundariamente da
sociologia ou da ciência política). Diga-se, antes de mais nada, que esse era
também o entendimento de Marx. Com efeito, rigorosamente falando, o
conceito de classe social em sentido pleno é definido, dentro do discurso de
Marx, pelas relações de distribuição que são expressão imediata das relações
de produção. Isto significa que quando Marx se refere às três grandes classes,
a dos trabalhadores assalariados, a dos capitalistas e a dos proprietários
fundiários, não está ele querendo dizer que existam outras “pequenas camadas”
dignas do nome “classe”. Embora Marx use esta denominação para se referir
a outros grupos distintos dos “três grandes”, tudo leva a crer que, do ponto de
vista da dinâmica do sistema, a ele só interessava estudar as tendências relativas
ao comportamento daqueles grupos imediatamente ligados ao processo de
reprodução material da sociedade. De resto, esta é a única posição compatível
com um materialismo histórico fundado no paradigma da produção. Esse é o
motivo pelo qual Marx, por exemplo, apesar de prever (como veremos) o
aumento numérico relativo dos serviçais domésticos ou dos funcionários de
Estado, não lhes dedica atenção especial. Se a palavra “grande” da expressão
“grandes classes” dissesse respeito ao aspecto numérico da questão, este gru-
po, decerto maior do que o grupo dos capitalistas ou proprietários fundiários,
mereceria uma maior consideração.
Dito isso, podemos iniciar nossa análise pela teoria marxista clássi-
ca das classes, sem perder de vista, obviamente, a contribuição dos estudiosos
que se debruçaram sobre o assunto. Deixando de lado a caracterização e
distinção da classe dos capitalistas e dos proprietários fundiários, questões
menos problemáticas, comecemos pelo que nos interessa imediatamente: o
conceito de “classe dos trabalhadores assalariados”. No que segue contaremos
com o apoio dos estudos de Ruy Fausto, particularmente o ensaio “Sobre as
Classes”, publicado em Marx: lógica e política, Tomo II. Fausto propõe duas
questões sobre o tema, às quais acrescento uma terceira. A primeira questão
remete ao problema de saber até que limite um trabalhador qualificado per-
tence à classe dos trabalhadores assalariados. A segunda questão consiste em
saber se este conceito de trabalhadores assalariados compreende tanto os
trabalhadores improdutivos, interiores e exteriores à produção, quanto os
trabalhadores produtivos. A terceira questão consiste em pesquisar até que
ponto o proletário despossuído dos meios de produção, do ponto de vista da
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sua atividade ou inatividade, ou seja, do seu emprego ou desemprego, mantém


sua condição de trabalhador. A partir das respostas a estas três perguntas
coloca-se o problema, que é o que particularmente nos interessa, sobre as
tendências do sistema no que se refere à estrutura de classes.
Passemos à primeira questão, talvez a mais espinhosa e à qual
daremos, por enquanto, apenas uma resposta preliminar: a questão da
qualificação. Até que ponto um nível superior de salário ou algum tipo de
poder numa organização capitalista são atributos incompatíveis com a condi-
ção de membro da classe dos trabalhadores assalariados? Fausto, inspirado
na lógica hegeliana, ensina que as situações possíveis podem ser representadas
por três níveis que correspondem aos conceitos de identidade, de diferença e
de contradição. “No primeiro nível, ensina Fausto, diríamos ‘o trabalhador
assalariado é o possuidor da força de trabalho simples’; ou ‘o trabalhador
assalariado é pura e simplesmente subordinado à autoridade do capitalista’;
ou ‘o trabalhador assalariado recebe um salário que permite a conservação do
indivíduo que trabalha na sua condição normal de vida’. Nos três casos, o
predicado corresponde ao sujeito, temos juízo de inerência. Num segundo ní-
vel, continua Fausto, não é mais a identidade que é posta, mas a diferença.
Diríamos: ‘o trabalhador assalariado é o trabalhador qualificado’; ou ‘o traba-
lhador assalariado está submetido ao capitalista, mas, por sua vez, submete
em tal ou qual grau (intensivo ou extensivo) outros trabalhadores assalariados’;
ou ‘o trabalhador assalariado recebe um salário (bem) superior ao necessário
à conservação e reprodução do indivíduo enquanto trabalhador assalariado’.
Nesse caso, o sujeito está pressuposto, só o predicado está posto. O juízo é de
reflexão, mas não há contradição, só diferença, contrariedade se se quiser entre
sujeito e predicado. No terceiro caso, conclui Fausto, temos um enunciado que
corresponde a um juízo do devir (embora não exprima um devir efetivo). Não
só o sujeito é pressuposto e o predicado posto, mas o segundo contradiz o
primeiro: ‘o trabalhador assalariado o manager’ ” (cf. Fausto, 1987, p. 228 ss).
Essa passagem do ensaio de Fausto ajuda a evitar muita confusão conceitual.
Repare-se que, num primeiro momento ela distingue trabalho simples de
trabalho qualificado não gerencial. Num segundo momento, entre trabalho
(qualificado ou não) e gerência (management).
Subjacente ao problema da diferença (e não contradição) entre
trabalho simples e trabalho qualificado está a questão, que consumiu muito
tinta, da redução, operada pela teoria marxista do valor, deste àquele. Com
efeito, Marx estabelece que o trabalho qualificado não é senão uma potência
do trabalho simples, acrescentando que, na grande indústria capitalista
mecanizada, ao contrário da manufatura, há uma tendência a reduzir e igualar
todos os tipos de trabalho a um mesmo nível. Esse raciocínio (que Marx
compartilha com Ure e Proudhon contra Smith e Babbage) dividiu os estudio-
sos. Por um lado, houve quem (por exemplo, Dahrendorf) questionasse a
tendência à homogeneização da classe trabalhadora, propondo, justamente, o
movimento inverso: o de diferenciação progressiva e conseqüente decompo-
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sição do trabalho. Por outro lado, houve quem (por exemplo, Braverman,
baseando-se nos estudos empíricos de James Bright) defendesse a tendência
originalmente proposta por Marx.
Contudo, tenho para mim que o problema da redução do trabalho
qualificado ao trabalho simples não passa pela questão objetiva da tendência
à desqualificação ou não da força de trabalho (que não deixa de ser interessante),
mas diz respeito, mais propriamente, à questão do caráter da reprodutibilidade
da força de trabalho, seja qual for a sua utilização. A força de trabalho,
qualificada ou não, reproduz-se, sob o capitalismo, de uma maneira totalmente
distinta do virtuose medieval. A pessoalidade cede lugar à impessoalidade.
Essa verdadeira anonimização do processo de reprodução da força de trabalho
(independente da qualificação) operada pelo capitalismo expressa-se, com uma
clareza absoluta, na placa de “procura-se...” exposta nas fachadas das empresas
ou nos classificados de jornal. Por raro que seja o profissional procurado, o
próprio mercado de trabalho, em condições normais, cuida de produzi-lo sem
a interferência do capitalista que, em geral, só tratará de treiná-lo para
conformá-lo às peculiaridades da sua organização. Essa tendência de
anonimização só se modifica quando a Ciência passa à condição de fator de
produção e fundamento da riqueza, tema que abordaremos oportunamente;
neste caso, como veremos, já se ultrapassa o debate sobre qualificação do
trabalho porque se ultrapassa, no fundo, o próprio conceito de trabalho. Aqui,
não se trata da mera negação da forma, mas da negação da própria essência do
modo capitalista. É esta negação da essência que, como se estudará, fundamenta
todas as negações da forma aparentemente adequada ao sistema ou, se se quiser,
faz da forma negada a forma adequada ao modo de produção capitalista.
Deixando de lado, por ora, esta problemática, passemos adiante.
Quanto ao problema da contradição (e não simples diferença) entre trabalho e
gerência, as divergências entre os teóricos não são menores. Essas divergências
derivam do caráter contraditório do trabalho diretivo do gerente. Por um lado,
o gerente é um trabalhador assalariado. Enquanto tal, sua remuneração deve
ser o salário de mercado pago por um certo tipo de trabalho qualificado. Mas,
por outro lado, no que se refere às funções que o gerente desempenha, tem-se
que o seu trabalho é um tipo de trabalho ligado à exploração. Este trabalho de
comando, na medida em que resulta da forma específica da produção capitalista,
produz valor e, por conseguinte, mais-valia, mas, ao mesmo tempo, está ligado
à função de apropriar-se do trabalho alheio. Há contradição, portanto, tanto
em relação ao trabalhador quando em relação ao capitalista. Os gerentes
pertencem a uma categoria que está fora das grandes classes, mas está próxima
da classe dos proprietários do capital. Sua existência, contudo, pressupõe a
separação entre propriedade e função do capital, o que de certa forma neutraliza
a classe dos capitalistas. Marx e os marxistas supuseram que esta condição
prenunciava um período de transição para fora da ordem capitalista. Outros
teóricos (Burnham, Dahrendorf, Galbraith, etc.) preferiram acreditar que a
camada dos gerentes já representava a classe dominante de uma ordem pós-
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capitalista. Não obstante, a separação de função e propriedade do capital


revelou-se tão-somente a forma “mais adequada” que potencializa o processo
da sua reprodução ampliada.
Quanto à segunda questão, sobre a abrangência do conceito de
trabalhadores assalariados relativamente à produtividade ou improdutividade
do trabalho executado, há, primeiramente, que se fazer uma distinção entre
trabalhadores improdutivos exteriores à produção e trabalhadores improdutivos
que se situam no interior do processo global de produção. No primeiro caso, o
trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um “salário”, mas não a
vende ao capital. Deste grupo fazem parte, basicamente, os assalariados do
Estado e os domésticos. O “salário” que estes trabalhadores recebem, na
verdade, é o resultado de uma redistribuição dos rendimentos percebidos pelas
três grandes classes do sistema, os proprietários da força de trabalho que a
vendem ao capital, os proprietários do capital e os proprietários da terra, cujos
rendimentos são o salário, o lucro e a renda da terra, respectivamente. Feita
essa distinção, tomado o conceito de classe na acepção proposta, segue-se que
estes trabalhadores improdutivos exteriores à produção, embora trabalhadores
assalariados, não pertencem à classe dos trabalhadores assalariados.
No segundo caso, o dos trabalhadores improdutivos que se situam
no interior do processo de produção, isto é, assalariados que vendem sua força
de trabalho ao capital, seja capital comercial, capital financeiro ou capital
industrial (mas para executar tarefas comerciais ou financeiras), passa-se algo
diferente. Apesar de improdutivos, estes trabalhadores, pelo fato de o serem
no interior da esfera do processo global de produção, fazem parte da classe
dos trabalhadores assalariados. Seu rendimento deriva imediatamente das
relações de produção.
Em todos esses casos, os problemas teóricos a enfrentar são grandes.
Os trabalhadores improdutivos interiores ao processo de produção foram
apelidados pela literatura sociológica de “trabalhadores em escritório”. Essa
categoria compõe, agregada à outras, o que alguns teóricos chamam de “nova
classe média” ou “classe de serviços”. O vertiginoso aumento numérico desta
camada, absoluto e relativo, serviu de munição preciosa aos críticos da teoria
marxista. A situação agravou-se, ademais, porque os críticos não raramente
somavam o número dos “trabalhadores em escritório” ao número, também
crescente, dos “funcionários públicos”. Certamente, inspiraram-se em Weber
para quem “constitui um erro supor que o trabalho intelectual da oficina se
distinga, no mínimo detalhe, daquele do despacho estatal. Antes, ambos são
essencialmente homogêneos. Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno
é uma ‘empresa’ com o mesmo título que uma fábrica” (Weber, 1992, p. 1061).
Contudo, se adotada a terminologia até aqui defendida, os funcionários públicos
sequer poderiam ser considerados membros da classe dos trabalhadores
assalariados ou de qualquer outra classe.
De fato, Marx jamais manifestou a crença de que poderia haver um
aumento relativo destes trabalhadores em escritório em relação ao conjunto
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dos assalariados, embora tivesse previsto um aumento absoluto que pudesse


até ensejar uma certa divisão de trabalho no escritório. Essa previsível divisão
do trabalho associada à esperada universalização do ensino público, que faria
com que essa camada perdesse alguns de seus privilégios originais (status,
remuneração, poder) por conta do conseqüente aumento de oferta desse tipo
de trabalho, sugeria um quadro em que o problema não tinha relevância.
As coisas, porém, tiveram outra evolução. Ainda no século passado,
Charles Booth criticava o conceito marxista de força de trabalho média
indiferenciada na qual, segundo ele, Marx baseava sua gigantesca falácia,
justamente apelando para o exemplo dos trabalhadores em escritório. Contu-
do, os dados estatísticos indicam que, se Marx estava errado em relação ao
aspecto numérico do problema (houve, como salientou Weber, um aumento
relativo expressivo do número dos improdutivos interiores à produção), estava
parcialmente certo em relação ao problema do status (só uma parcela diminuta
destes trabalhadores goza, devido à intensa divisão do trabalho que o escritório
moderno experimentou, dos privilégios que essa camada detinha, no seu todo,
originalmente).
No século XIX, a meia dúzia de trabalhadores em escritório que só
as maiores empresas possuíam, em termos de função, poder, remuneração e
estabilidade estavam muito mais próximos do empregador do que do
trabalhador da fábrica. Em geral, esses trabalhadores executavam funções
típicas empresariais como contabilidade, contratação de pessoal, compra de
matéria-prima e bens de capital, venda do produto acabado, abertura de crédito
junto às instituições financeiras, aplicações financeiras, concessão de crédito
a clientes etc. Cabe observar que nenhuma dessas funções, no jargão marxista,
produz valor, distinguindo-se, portanto, do trabalho de gerência, estudado aci-
ma, enquanto trabalho de comando do trabalho produtivo, embora a divisão
do trabalho de escritório faça surgir a figura do improdutivo gerente de
escritório.
Todavia, todas essas funções improdutivas ganham importância
considerável no capitalismo contemporâneo. Um fato inquestionável é que,
em 1970 nos EUA, mais de 30% do total da força de trabalho empregada
pelas indústria compunha-se de empregados de escritório. Se considerarmos
que a indústria, naquele ano, empregava cerca de 25% do total dos assalaria-
dos (incluindo os exteriores à produção), temos que mais de 8% da força de
trabalho total daquele país empregava-se nos escritórios das indústrias. So-
mando-se a isso os cerca de 25% dos trabalhadores no comércio e nas finan-
ças, chega-se à conclusão de que cerca de 1/3 da força de trabalho total era
composta de empregados em escritório. Se acrescentarmos a este número (como
faz Renner, adotando uma conceituação de classe imprecisa) o total de funcio-
nários públicos (portanto, os trabalhadores improdutivos exteriores à produ-
ção, com exceção dos domésticos), chegamos aos 50%. Um número impressio-
nante comparado ao número de operários: cerca de 35%.
Há, contudo, um outro lado da questão. Como observou Hans Speier,
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já em 1934, “o nível social do empregado assalariado [de escritório – FH]


baixa com a extensão crescente do grupo” (apud Braverman, 1987, p. 295).
Aqui também não poderia deixar de vigorar o princípio de Babbage, que foi
quem primeiro percebeu o fato simples, mas que passou despercebido por
Adam Smith, de que dividir o trabalho não apenas aumenta sua produtividade
(efeito destacado por Smith), mas sobretudo barateia suas partes individuais
(fato tão ou mais importante que o primeiro numa sociedade baseada na compra
e venda da força de trabalho).
Assim, a partir de 1917, com os trabalhos de Leffingwell e Galloway,
os princípios do sistema taylorista de gerência científica começam a ser
aplicados na gerência de escritório. O trabalho em escritório, inicialmente
associado à idéia de trabalho mental, contrapunha-se, até então, ao trabalho
meramente manual. Mas logo se percebeu, sem dúvida graças a Taylor, que o
trabalho mental quase necessariamente assume forma num produto externo,
além de exigir uma série de operações manuais prévias. É, pois, possível e
desejável que se separe as funções de concepção e execução. Pode-se escrever
uma carta ou ditá-la a uma estenodatilógrafa. Pode-se, pessoalmente, entregar
um memorando a um colega de trabalho ou contar com uma equipe que funcione
como correio interno. Pode-se ter de arquivar documentos, apontar lápis, digitar
os números de um telefone, comprar um lanche ou servir-se café etc. etc. etc.
ou ter alguém que faça isso tudo, liberando alguém qualificado para compor
um grupo cada vez mais reduzido de pessoas que exercem as funções de
pensamento e planejamento. Se assim é, a aplicação dos princípios tayloristas
ao trabalho de escritório deveria provocar uma queda considerável dos ganhos
médios dessa camada de assalariados, o que as estatísticas confirmam ser o
caso. Diante disso, Wright Mills, por exemplo, muito à maneira das análises
de James Bright sobre mecanização do processo de produção, conclui, em seu
White collar (1951), que o efeito inicial de especializar mais os indivíduos
quando da introdução de uma nova divisão do trabalho em escritório é
posteriormente anulado pela fragmentação e mecanização de todas as tarefas
que, afinal, estreitam-se.
A partir dessas considerações, duas tendências teóricas verificaram-
se. A primeira, representada por Dahrendorf (1957) e Braverman (1974), buscou
recolocar na ordem do dia a visão dicotômica de sociedade de classes: este,
mediante a defesa da teoria marxista original, recuperando a oposição clássica
entre capital e trabalho; aquele, recusando esta oposição em virtude da
decomposição do capital (função versus propriedade) e da decomposição do
trabalho (heterogeneidade da força de trabalho) e, na esteira dos trabalhos de
Djilas e Burnham, reformulando a teoria dicotômica de classes por meio dos
conceitos de classe dirigente e classe dirigida (corte que, no seu entender, passa
tanto pela fábrica quanto pelo escritório, bem como por qualquer associação
imperativamente coordenada – Herrschaftsverband – uma categoria weberiana).
A segunda tendência, mais interessante, mas ainda insatisfatória,
representada, por exemplo, por Giddens (1973) e pelo marxista analítico E.
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O. Wright (1984), buscou recolocar mais uma vez, não sem trazer novos
elementos para o debate, o conceito de classe média (aparentemente
comprometido no âmbito da oposição entre trabalho produtivo na fábrica e
trabalho improdutivo no escritório), para o âmbito da oposição entre trabalho
qualificado e trabalho não-qualificado. Giddens abandona a posição dicotômica
centrada na propriedade ou não dos meios de produção, introduzindo o conceito
weberiano de habilidade vendável. Segundo Giddens, Marx fracassou em
reconhecer o significado potencial das diferenciações de possibilidade de
mercado, o que inclui habilidades reconhecidas que podem ser vistas como
propriedades que se trocam no mercado. A partir daí, Giddens faz uma
interessante distinção entre estruturação mediata e estruturação imediata de
classes. “Pelo primeiro termo, diz Giddens, refiro-me a fatores que intervêm
entre a existência de certas possibilidades de mercado e a formação de classes
como grupamentos sociais identificáveis” (Giddens, 1975, p. 128). Giddens
identifica três tipos de possibilidades de mercado: a propriedade dos meios de
produção, a posse de qualificações técnicas ou educacionais e a posse de força
de trabalho manual. Isso produz o fundamento para um sistema de três classes:
alta, média e baixa (ou classe trabalhadora). Mas há ainda três fontes de
estruturação imediata de classes que se referem a fatores que condicionam ou
moldam a formação de classes. São eles: a divisão do trabalho, as relações de
autoridade e a influência de grupamentos distributivos. A primeira fonte de
estruturação tende a produzir uma separação entre as condições de trabalho
de trabalhadores manuais e não-manuais. A isso sobrepõe-se o sistema de
autoridade típico das empresas (segunda fonte de estruturação). Uma terceira
fonte refere-se ao padrão de consumo como uma influência adicional na
estruturação de classes (ainda que Giddens concorde com Marx sobre a idéia
de que classe seja um fenômeno da produção e não do consumo). Quando as
estruturações de classes mediata e imediata se sobrepõem, como é o caso da
sociedade capitalista, as classes existem como formações distinguíveis. Essa
análise, segundo Giddens, tem a vantagem adicional de explicar a situação
intermediária de algumas camadas sociais, como o da pequena burguesia: “se
for o caso de que as chances de mobilidade da pequena para a grande posse de
propriedade (...) sejam pequenas, é provável que se isole o pequeno proprietá-
rio da filiação da classe mais alta como tal. Mas, o fato de desfrutar o controle
diretivo de uma empresa, por menor que seja, atua no sentido de diferençá-lo
daqueles que são parte de uma hierarquia de autoridade numa organização
maior. Por outro lado, a renda e outros benefícios econômicos da pequena
burguesia talvez sejam semelhantes aos do trabalhador white-collar e, portanto,
podem pertencer a grupamentos distributivos semelhantes” (Giddens, 1975,
p. 132).
Wright, por seu turno, abandona a posição dicotômica entre trabalho
e capital da seguinte maneira. A exemplo de outro marxista analítico, John
Roemer, Wright baseia seu conceito de exploração nas iniqüidades de
distribuição de ativos produtivos. Com uma diferença: aos dois ativos
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considerados por Roemer, ativos físicos (alienáveis) e ativos de habilidades


(inalienáveis), Wright acrescenta outros dois – ativos de força de trabalho e
ativos de organização. As iniqüidades na distribuição de ativos físicos (meios
de produção) caracterizam a sociedade capitalista. As iniqüidades na
distribuição de ativos de força de trabalho caracterizam a sociedade feudal
(um senhor dispõe de vários servos que, por sua vez, dispõem, individualmente
considerados, de menos do que uma unidade de força de trabalho, no caso,
parte da sua própria). As iniqüidades em ativos de organização, baseadas em
diferentes posições dentro de uma hierarquia de autoridade, caracterizam o
socialismo burocrático-estatal. Por fim, as iniqüidades na distribuição de ativos
de habilidades (skills) caracterizariam as sociedades socialistas futuras.
Como as sociedades, segundo Wright, dificilmente podem ser
caracterizadas por um único modo de produção, há posições que, no que diz
respeito a uma dimensão de exploração, são exploradoras e, no que diz respeito
à outra, são exploradas. Neste contexto, temos o caso dos profissionais
altamente bem remunerados: “eles são explorados capitalisticamente porque
eles carecem de ativos de capital e ainda assim são exploradores pelas
habilidades que possuem” (Wright, 1977, p. 126). É esta condição dúplice
que faz deles uma classe média dentro do sistema.
O problema da posição de Giddens e Wright diz respeito ao conceito
de habilidades vendáveis. Wright tenta defini-lo: “habilidade (skill) nesse
contexto não é um conceito trivial. A mera possessão de capacidades
aprimoradas de trabalho adquiridas por meio de treinamento não é suficiente
para gerar relações de exploração, já que a renda de tal trabalho treinado deve
refletir os custos de adquirir o treinamento. Em tais casos não há nem uma
transferência de mais-valia, nem o destreinado estaria melhor sob a espe-
cificação jogo-teórica de exploração se as habilidades fossem redistribuídas.
Para que uma habilidade seja a base de exploração, portanto, ela deve ser em
algum sentido escassa relativamente à demanda e deve haver algum mecanismo
por meio do qual os proprietários individuais de habilidades escassas sejam
capazes de traduzir essa escassez em maior renda” (Wright, 1977, p. 125).
Ora, o que fica claro é que, estas habilidades não estão sujeitas às regras do
mercado de trabalho convencional. Nem mesmo estão sujeitas ao padrão de
reprodutibilidade da força de trabalho nos marcos do capitalismo clássico.
Porém, ainda que a intenção de Giddens e Wright seja, ao que parece, tentar
estabelecer uma diferença importante entre estas habilidades e o trabalho
qualificado na forma tratada originalmente por Marx, eles não enfrentam o
desafio de frente.
Por ora, de tudo o que se falou, só podemos concluir, mantendo-nos
fiéis ao conceito de classe de Marx, que a classe dos trabalhadores assalariados
compreende os trabalhadores improdutivos, mas não todos os trabalhadores
improdutivos: os improdutivos exteriores à produção (funcionários públicos
e domésticos) estão excluídos. Quanto a estes últimos, há um comentário de
Marx sobre o aumento relativo do seu número que merece destaque. Marx
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esclarece: “se os trabalhadores produtivos são os que são pagos pelo capital e
trabalhadores improdutivos, os que são pagos pelo rendimento, é evidente
que a classe produtiva se relaciona com a improdutiva como o capital com o
rendimento. Entretanto, o crescimento proporcional das duas classes não
dependerá somente da relação existente entre a massa de capitais e a massa de
rendimentos. Ele dependerá da proporção em que o rendimento (lucro) crescente
se transforma em capital ou é gasto enquanto rendimento. Embora origi-
nalmente a burguesia fosse muito econômica, com a produtividade crescente
do capital, isto é, dos trabalhadores, ela imita o sistema de retainers dos
feudais”. Ao que Marx acrescenta: “que bela organização que faz suar uma
jovem operária durante 12 horas numa fábrica, para que o dono da fábrica
possa empregar, com uma parte do trabalho não pago dela, para o seu serviço
pessoal, a irmã dela como criada, seu irmão como valet de chambre e o seu
primo como soldado ou policial” (apud Fausto, 1987, p. 269).
Quanto à qualificação temos algo parecido. A classe dos
trabalhadores assalariados compreende os trabalhadores qualificados, mas não
todos os trabalhadores qualificados: o trabalho do manager é caracterizado
como função de exploração; ele é “trabalhador”, mas trabalhador enquanto
capitalista, o que, se não o torna um capitalista, o aproxima da classe dos
proprietários do capital. Haverá, contudo, no capitalismo avançado, alguma
outra categoria qualificada que não esteja compreendida no conceito de classe
trabalhadora, embora se venda ao capital?
O problema permanecerá, por enquanto, em aberto. Antes de enfren-
tá-lo definitivamente, tomemos uma última questão sobre a abrangência da
classe dos trabalhadores assalariados, agora no que diz respeito ao emprego
ou desemprego da força de trabalho. Em primeiro lugar, é preciso notar que a
acumulação de capital se caracteriza por um processo de concentração e
centralização. Como corolário, temos o crescimento de um contingente da
população, denominado exército industrial de reserva, cuja dimensão depende
das fases dos ciclos econômicos, mas que, tendencialmente, aumenta em termos
absolutos, mas também relativamente ao conjunto do proletariado. Com o
aumento do exército industrial de reserva, que, a rigor, pertence à classe
trabalhadora, uma vez que se caracteriza pela expectativa de se ver reincor-
porado ao contingente dos trabalhadores em atividade, aumenta também o
contingente da população desclassificada, o lumpemproletariado, que se
distingue do exército industrial de reserva porque, neste caso, não há a
possibilidade desse contingente ser reabsorvido pelo mercado de trabalho. Essa
condição coloca o lumpemproletariado fora do conceito de classe trabalhadora,
entre outras coisas porque, como Marx notou no Manifesto e no 18 Brumário,
“sua condição de vida o predispõe mais a vender-se à reação”. A relação entre
proletariado, exército industrial de reserva e lumpemproletariado pode ser mais
bem focalizada se nos utilizarmos das mesmas categorias lógicas que aplicamos
à questão do “nível de salário e poder” entre os assalariados produtivos, quais
sejam, identidade, diferença e contradição, e as aplicarmos à questão do
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

emprego (Fausto não faz esse desenvolvimento). Percebe-se que no juízo “o


proletário é o lúmpen” não só o predicado está posto e o sujeito pressuposto,
como também o predicado contradiz o sujeito. Não é o que acontece com o
juízo “o proletário é o desempregado”, onde há diferença entre sujeito e
predicado, uma vez que a condição de proletário exige que este venda sua
força de trabalho; mas não há contradição, em virtude da expectativa de que
isso ocorra na fase de expansão econômica. Já no juízo “o proletário é o em-
pregado” só há identidade. Aqui também tem-se que a classe dos trabalhado-
res assalariados compreende os despossuídos, mas não todos os despossuídos:
o lumpemproletariado está excluído.
Sobre este tema ainda, seria importante lembrar o conceito de “não-
classe dos não-trabalhadores” proposta por Gorz em Adeus ao proletariado
(1980). Sob essa denominação, Gorz parece incluir o exército de reserva e o
lumpemproletariado. Nos seus próprios termos: “essa não-classe engloba, na
realidade, o conjunto dos indivíduos que se encontram expulsos da produção
pelo processo de abolição do trabalho, ou subempregados em suas capacidades
pela industrialização (ou seja, pela automatização e pela informatização) do
trabalho intelectual. Engloba, continua Gorz, o conjunto desses extranumerário
da produção social que são os desempregados reais e virtuais, permanentes e
temporários, totais e parciais. É o produto da decomposição da antiga socie-
dade fundada no trabalho: na dignidade, na valorização, na utilidade social,
no desejo do trabalho. Estende-se a quase todas as camadas da sociedade, e
abrange muitos além daqueles que os Panteras Negras, no final da década de
1960, chamavam nos Estados Unidos, de lúmpen1 e, com uma antevisão no-
tável, opunham-nos à classe dos operários estáveis, sindicalizados, protegi-
dos por um contrato de trabalho e por uma convenção coletiva (cf. Gorz, 1987,
p. 87-88).
Esses trabalhadores acidentais que ocupam empregos precários para
os quais podem até mesmo ser superqualificados, estando condenados ao
desemprego dos seus conhecimentos muitas vezes aprendidos em escolas e
faculdades, não se sentem pertencer à classe dos operários ou a qualquer outra.
Ao contrário destes, esses não-trabalhadores são subjetivamente liberados:
procuram conquistar sua autonomia para além do gerenciamento dos aparelhos,
subtraindo-se à lógica produtivista da sociedade capitalista. Num contexto
onde se produz para trabalhar ao invés de se trabalhar para produzir, o trabalho
ele mesmo é atingido de não-sentido. Para Gorz, essa lógica levou a humani-
dade ao limiar da liberação, mas que só será transposto pela decomposição da
ética do trabalho, pela recusa da ética da acumulação e pela dissolução das
classes. Apenas a não-classe dos não-trabalhadores, segundo Gorz, é capaz
desse ato fundador.
É curiosíssimo notar que esta tese de Gorz visava, entre outras coisas,
1
refutar um outra tese defendida por ele próprio, em Estratégia operária e Conceito usado por
eles num sentido já
neocapitalismo (1964) e por Serge Mallet, em La nouvelle classe ouvrière mais amplo que o
(1963). Mallet, num instigante estudo sobre a indústria automatizada, observou marxista.

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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

a existência de dois tipos de trabalhadores assalariados dentro dessa


organização. 1) De um lado, dois grupos, “os vigias, encarregados, operadores,
conectados às unidades de produção automatizadas e os trabalhadores de
manutenção, encarregados do reparo e da vigilância dos mecanismos da
maquinaria”. A automação exige dos primeiros um conhecimento completo
do setor do processo de produção no qual estão inseridos, enquanto exige dos
últimos uma visão global de todos os setores. Não obstante essa diferença,
dentro da nova unidade de produção automatizada, os trabalhadores são
integrados de uma forma inédita. Observa-se ainda, segundo Mallet, uma
hierarquização entre eles, só que desta vez no interior de um mesmo grupo
social. Há uma homogeneização do trabalho, mas nivelado por cima. A
automação destrói a parcelização do trabalho e constitui, ao nível da equipe, a
visão do trabalho polivalente. 2) De outro lado, devotados à pesquisa e ao
estudo, à comercialização etc., encontram-se os “técnicos do escritório de
estudos”. Apesar da separação física destes trabalhadores dos operários da
fábrica e apesar do sentimento de superioridade que anima aqueles, as condi-
ções de trabalho nas unidades intelectuais de produção, com a mecanização
do escritório, a rotinização das tarefas e a submissão dos talentos à lógica da
acumulação, assemelham-se às condições experimentadas pelos operários. Ao
que o Gorz de 1964 acrescenta: “técnicos, engenheiros, estudantes, pesqui-
sadores descobrem que são assalariados como os outros (...). Descobrem que
a pesquisa a longo prazo, o trabalho criador de soluções originais, a paixão
pela profissão, são incompatíveis com os critérios de lucratividade capitalista
(...). Descobrem-se subordinados à lei do capital, não somente no trabalho,
mas em todas as esferas da vida” (Gorz, 1968, p. 111). Sem dúvida Gorz tem
em mente o fato, sublinhado por Weber, de que o capitalismo operou “uma
separação entre a massa dos pesquisadores (...) e seus ‘meios de produção’,
análoga à que tem lugar na empresa capitalista entre os trabalhadores e os
mesmos meios” (Weber, 1992, p. 738). Além disso, voltando a Mallet, as
diferenças que eventualmente persistem entre as duas categorias, como
remuneração diferenciada, não transformam os técnicos de escritório em uma
aristocracia do trabalho, mas em modelos para os demais trabalhadores. Estas
condições permitem a Mallet abrigar as duas categorias por ele observadas
sob a mesma rubrica de “nova classe operária”.
O Gorz de 1980 rompe com esta doutrina. E com o seguinte
argumento: “[Marx] acreditava ter finalmente encontrado, no operário
politécnico, a figura do proletário reconciliado com o proletariado, do sujeito
da história encarnado em um indivíduo de carne e osso. Ora, Marx enganou-
se. E, na sua esteira, enganaram-se todos os que pensavam2 que o aperfei-
çoamento das técnicas de produção e sua automatização iriam suprimir o tra-
balho não-qualificado, deixando subsistir apenas trabalhadores técnicos de
2
nível relativamente elevado, com uma visão global dos processos técnicos e
Gorz inclui a si pró-
prio numa nota de capazes de autogerir a produção. Sabe-se [conclui Gorz] que ocorreu exa-
rodapé. tamente o contrário” (Gorz, 1987, p. 39).
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

O pobre Marx, outrora criticado por ter previsto a desqualificação


do trabalho com o desenvolvimento da indústria, é agora acusado de ter previsto
uma qualificação que não aconteceu. Infelizmente, não ocorreu a Gorz (ou a
Mallet) uma hipótese bastante verossímil defendida, por exemplo, por Daniel
Bell: a de que houve uma cisão irrevogável no seio da classe assalariada. Divirjo
de Bell, não obstante, no que concerne à natureza dessa cisão. Para elucidar
definitivamente esta questão da qualificação, tomarei os próprios textos de
Marx, analisados com brilho por Fausto em A pós-grande indústria nos
Grundrisse (1989), para oferecer uma alternativa.
Antes de mais nada, convém relembrar a apresentação clássica do
movimento do capital. Até um certo ponto da apresentação de Marx, capitalistas
e trabalhadores encontram-se livremente no mercado dispostos a trocar aquilo
que cada um dispõe, o primeiro, uma determinada quantidade de dinheiro, o
segundo, a mercadoria força de trabalho. E o fazem, respeitando estritamente
o princípio geral da troca de equivalentes, pelo qual as mercadorias se trocam
pelo trabalho socialmente necessário a sua reprodução. No entanto, quando se
passa à análise do processo de acumulação, o movimento contínuo do capital
perde seu caráter aparentemente fortuito e a própria liberdade de contrato se
reduz a simples aparência. Perde-se, assim, a própria noção de troca de
equivalentes e, o que assim parecia, se revela apropriação sem equivalente do
trabalho alheio. Pelo menos até a grande indústria, o fundamento da riqueza
continua sendo a massa de tempo de trabalho utilizado na produção. Assim,
Marx estabelece: “a troca do trabalho vivo contra trabalho objetivado, isto é,
a posição do trabalho social na forma da oposição entre capital e trabalho – é
o último desenvolvimento da relação valor, e da produção que repousa sobre o
valor. Sua pressuposição é e permanece – a massa de tempo de trabalho
imediato, o quantum de trabalho utilizado como fator decisivo da produção
da riqueza” (apud Fausto, 1989, p. 50).
Contudo, a continuação deste trecho dos Grundrisse é surpreen-
dente. Marx prossegue: “mas à medida que a grande indústria se desenvolve,
a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo de trabalho
e do quantum de trabalho utilizado, do que da força dos agentes que são postos
em movimento durante o tempo de trabalho, poder que por sua vez – sua
poderosa efetividade- não tem mais nenhuma relação com o tempo de trabalho
imediato que custa à sua produção, mas depende antes da situação geral da
ciência, do progresso da tecnologia, ou da utilização da ciência na produção”
(Fausto, 1989, p. 50). Em seguida, Marx acrescenta: “a riqueza efetiva se
manifesta (...) numa desproporção monstruosa entre o tempo de trabalho
empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre o
trabalho reduzido a uma pura abstração e o poder do processo de produção
que ele vigia”. Finalmente, conclui: “o trabalho não aparece mais até o ponto
de estar incluído no processo de produção, mas o homem se relaciona antes
como guardião e regulador do próprio processo de produção” (Fausto, 1989,
p. 50).
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Ora, se assim é, o desenvolvimento da superindústria3 capitalista,


definida como aquela que incorpora a ciência como fator de produção (o que
rigorosamente só acontece décadas depois de Marx ter escrito essas linhas),
representa a negação do trabalho no interior do próprio sistema. É da ciência
posta em movimento durante o tempo de produção, e não mais do tempo de
trabalho socialmente necessário na produção, que a criação da riqueza efetiva
depende cada vez mais. Essa negação progressiva do trabalho ainda no seio
do capitalismo traz muitas conseqüências. Em primeiro lugar, a distinção entre
trabalhadores produtivos, reduzidos a vigias, e trabalhadores improdutivos
interiores à produção se torna tênue, ou antes, o trabalho produtivo se aproxima
morfologicamente do improdutivo, sem com ele se confundir. Mas só o trabalho
produtivo do vigia se aproxima do trabalho improdutivo. O “trabalho” portador
do conhecimento científico, executado primordialmente nos Departamentos
de Pesquisa e Desenvolvimento, não.
Marx não conheceu o exército de homens de ciência (cientistas,
engenheiros e técnicos) contratado pelo capital. Não podia, portanto, prever
as conseqüências da internalização e mecanização do processo de inovação
tecnológica promovido pela superindústria (fato só descrito por Schumpeter
em 1942). Entre outros desdobramentos, na superindústria, o “trabalho” por-
tador do conhecimento científico já não é mais trabalho simples potenciado.
Se na grande indústria a redução do trabalho qualificado a trabalho simples já
era complexa, ainda que se estabelecesse que a lei do valor antes exigia esta
redução do que a pressupunha, na superindústria esta redução, dada a negação
progressiva do trabalho como fundamento da riqueza, está excluída. A rigor,
na superindústria, o “trabalho” portador do conhecimento científico não é
sequer trabalho. É, preferencialmente, atividade.
É como se a posição da ciência estabelecesse uma segunda diferença
entre trabalho simples e trabalho qualificado (que deixa de ser trabalho e passa
a ser atividade), determinando uma contradição entre eles. Por certo, uma
contradição diferente daquela que existe entre o trabalho simples e o trabalho
(na verdade, função e não trabalho) de gerência, pois o último está ligado com
a exploração, o que não é o caso de uma atividade inovadora. Pode até continuar
existindo, no interior da superindústria, o clássico trabalho qualificado enquanto
trabalho simples potenciado – como parece ser o caso do trabalho na
organização toyotista –, mas o que estamos discutindo nesse momento é a
incorporação da atividade científica (que passa a fator de produção) para o
interior do universo produtivo, atividade que não se confunde com trabalho.
E os critérios para distinguir uma atividade inovadora de um trabalho
qualificado são os seguintes. 1) Em primeiro lugar, a atividade inovadora não
tem relação com o tempo de trabalho, embora exercida durante o tempo de
3
Prefiro o termo super- trabalho. Em outras palavras, o agente inovador, ao contrário do trabalhador
indústria à pós-grande qualificado, não tem jornada de trabalho. Ele pode até ser obrigado a bater o
indústria para evitar
confusão com o termo ponto, para efeitos legais, mas, a rigor, não tem jornada fixa. Isto só é possível
pós-industrial. porque os agentes envolvidos com o processo de inovação exercem atividades
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de cunho teórico abstrato, dos técnicos até os cientistas, passando pelos


engenheiros. Suas atividades incomodam-lhes o sono, perturbam suas férias
etc., o que não significa necessariamente que elas não lhes sejam prazerosas.
Não se aplica aqui o velho chavão levar-trabalho-para-casa, no sentido de
levar material para manusear, sejam fichas, livros contáveis, registros, cálculos
etc. Esses agentes inovadores não levam trabalho para casa. O “trabalho”, de
certa maneira, os acompanha. Se o trabalhador simples, regra geral, vende ao
capital sua força física, e o trabalhador qualificado, sua força mental, os agentes
inovadores vendem sua força anímica. 2) Em segundo lugar, o padrão de
reprodutividade dessa força produtiva guarda mais relação com o antigo
virtuose medieval do que com o trabalhador moderno. O processo de
reprodução já não é tão anônimo. A rigor, o tipo ideal de agente inovador é o
pós-graduado que se submeteu à uma orientação pessoal de alguém que detém
uma parcela de conhecimento não totalmente socializado (saber de fronteira),
seja por conta do nível de profundidade, seja por conta do grau de
especialização. Há, por certo, muitos agentes inovadores autodidatas ou que
não contaram com um apoio pessoal à moda da relação mestre-aprendiz
medieval ou, ainda, que não contaram com nenhum apoio institucional, estatal
ou privado. Esses casos, não obstante, tendem a se tornar cada vez mais raros.
3) Em terceiro lugar, o rendimento de um agente inovador, apesar da forma
que assume, não é, a rigor, salário. Esse rendimento, aliás, guarda algumas
semelhanças com a renda fundiária. Da mesma forma que a propriedade
fundiária é o outro do capital (seu pressuposto) e a renda fundiária é a
contrapartida do monopólio da classe proprietária da terra, a ciência é o outro
do trabalho (posto pelo capital) e a “renda do saber” é a contrapartida da
posse (oligopolística) de conhecimento relativamente exclusível (excludable),
para usar um jargão dos economistas (sobre isso, diremos um pouco mais,
abaixo). Tecnicamente, um bem exclusível é aquele que o proprietário pode
evitar que outros o usem. Um bem relativamente exclusível é um conceito
análogo aplicável ao caso de uma situação oligopolística. O que torna o saber
de fronteira, incorporado na tecnologia de ponta, um bem relativamente
exclusível é o fato de que o acesso a ele e, portanto, sua oferta são, por definição,
limitados. Em outras palavras, está-se se defendendo a hipótese de que, sob a
superindústria capitalista, a fronteira do saber move-se numa velocidade
superior àquela do processo de socialização do saber. 4) Em quarto lugar, a
atividade inovadora, ao contrário do trabalho qualificado, não produz valor.
Marx, corretamente, nas citações acima, declara a ciência fundamento da
riqueza, e não do valor, e identifica a posição do trabalho social na forma da
oposição entre capital e trabalho, e não qualquer outra oposição, como o último
desenvolvimento da relação valor. O fato de o capital internalizar a ciência ao
processo produtivo, contratando agentes inovadores com esse objetivo, fato
estranho ao século XIX, não muda esse aspecto da questão. Sem dúvida, o
resultado da atividade de pesquisa e desenvolvimento se incorpora às
mercadorias. Mas ela não é uma atividade produtiva, no sentido exato da
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

palavra. Ela não produz mercadorias, embora funcione como promotora do


aperfeiçoamento do processo de produção de mercadorias. Podemos até utilizar
aqui, num sentido muitíssimo menos amplo, o conceito de meta-trabalho ou
trabalho reflexivo de Claus Offe (cf. 1989; 1991). Habermas, em Crise de
legitimação do capitalismo tardio, se dá conta da complexidade do problema,
sem, contudo, resolvê-lo: “o trabalho reflexivo, diz ele, não é produtivo num
sentido da produção direta da mais valia. Mas não é também improdutivo;
pois então não teria efeito líquido na produção de mais valia” (Habermas,
1994, p. 75-76).
Quanto a mim, prefiro afirmar que, embora a internalização da
Ciência ao universo produtivo não comprometa a teoria do valor trabalho, o
mesmo não se pode dizer da teoria dos preços, pelo menos dos preços daqueles
novos produtos que o capitalismo despeja diariamente no mercado. O processo
de inovação tecnológica que, nos tempos de Marx, podia ser visto como uma
sucessão de pontos discretos relativamente visíveis, tornou-se, com a
internalização da ciência como fator de produção, um processo contínuo.
Quando um certo quantum de conhecimento relativamente exclusível
incorpora-se numa nova mercadoria, ela goza do mesmo grau de irreprodu-
tibilidade daquele fator de produção que a concebeu. Até que esse conheci-
mento relativamente exclusível deixe de sê-lo, os preços das novas mercado-
rias sofrem uma distorção na exata medida da excludibilidade do saber que
elas comportam. Dessa “distorção”, que representa uma segunda negação da
lei do valor, apropriam-se os capitalistas proprietários dos “meios de produ-
ção da ciência” e os agentes inovadores que os põem em marcha. E a forma da
divisão entre eles atende mais a critérios extra-econômicos que econômicos:
expectacionais, idiossincráticos, pessoais etc. Isso vem confirmar a tese de
que “renda do saber” não é salário.
Por certo, a inovação tecnológica e o lucro extraordinário dela
decorrente são velhos conhecidos da teoria marxista. Entretanto, o novo na
superindústria é que o lucro extraordinário torna-se um “fluxo ordinário”, e
isso graças à ação de pessoas contratadas diretamente pelo capital para essa
função. Assim, o extraordinário torna-se “ordinário”, mas só como con-
trapartida de ser compartilhado: o capital paga o preço, certamente inferior ao
ganho, de não mais se apropriar dele exclusivamente; em compensação, sente
o aconchego da sua presença permanente.
Essas considerações deixam claras as divergências que mantenho
com alguns dos teóricos já mencionados. O conceito de habilidade vendável,
4
Veja-se, por exemplo, que Giddens empresta de Weber, e o conceito de skill, tal como usado por
o elegante modelo ma- Wright, tornam-se mais rigorosos, diria até compreensíveis, a partir do conceito
temático neoclássico,
desenvolvido pelo eco-
de conhecimento relativamente exclusível, uma variante do conceito utilizado
nomista neo-schum- pelos economistas4. Ao contrário desses teóricos, porém, não vejo razão para
peteriano Paul Romer definir a classe que detém esse conhecimento como uma classe média. A
em Endogenous te-
chnological change totalidade dos agentes inovadores merece a denominação de classe por deter
(1990). aquilo que deixa de ser simples produto social para se tornar mais um fator de
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

produção. Como as demais classes, ela são a expressão imediata de (novas)


relações de produção (postas pelo capital). Mas essa classe é simplesmente
outra classe e, a título nenhum, encontra-se no meio de quaisquer outras duas.
Disso tudo decorre também minhas divergências com Mallet e o
primeiro Gorz. Não se pode classificar essa classe como uma das categorias
que compõe uma suposta nova classe trabalhadora. Para mim, essa classe é
distinta da classe dos trabalhadores assalariados pelo simples fato de não vender
propriamente força de trabalho, como espero ter deixado claro acima. A
natureza do contrato que esta classe estabelece com a classe dos capitalistas é
de natureza distinta. Se, por um lado, a relação entre agentes inovadores envolve
o conceito de alienação (tanto quanto a relação entre capitalistas e traba-
lhadores), por outro, a relação entre agentes inovadores e capitalistas não
envolve a noção de exploração (tanto quanto a relação entre capitalistas e
proprietários fundiários).
Das tendências até aqui apresentadas, podemos inferir que o trabalho
é negado em pelo menos quatro níveis distintos. 1) O crescimento do lum-
pemproletariado representa a negação do trabalho numa esfera que é exterior
ao sistema. 2) O crescimento do número de trabalhadores improdutivos
exteriores à produção representa a negação do trabalho numa esfera que embora
exterior ao sistema, pertence à exterioridade no sistema. 3) O crescimento do
número de trabalhadores improdutivos que se vendem ao capital representa
uma negação parcial do trabalho produtivo já no interior do sistema. 4) Com
a posição dos homens de ciência como agentes da produção, o trabalho perde
centralidade no interior da própria produção.
Os sociólogos dividem-se em relação à atenção que dedicam a cada
um desses fenômenos. Há quem prefira privilegiar o primeiro fenômeno, como
recentemente Gorz, alargando o conceito de lumpem, por meio do conceito de
não-classe de não-trabalhadores. Outros preferem dedicar a este aspecto
particular somente alguns comentários sobre os programas de renda mínima
garantida para os excluídos da sociedade do trabalho. Alguns mesclam o
segundo e o terceiro fenômenos para cunhar o conceito de classe de serviço
(Renner). Outros, o terceiro e o quarto, para cunhar o conceito de nova classe
operária (Mallet). Alguns chegam a mesclar os três últimos para caracterizar
a chamada sociedade pós-industrial (Bell, Touraine, Offe). Para mim, tratam-
se de fenômenos distintos e igualmente importantes, não obstante estarem os
três primeiros fundamentados exclusivamente no último.
Para perceber melhor esse movimento, vejamos, ainda no âmbito
da discussão concernente ao conceito de classe em si, como as coisas se passam
do ponto de vista dinâmico. As tendências estudadas até aqui foram analisadas
do ponto de vista de estática, comparativamente à teoria marxista tradicional.
Discutiu-se, particularmente, os aspectos lógicos da questão. Contudo, não se
descreveu o processo por meio do qual se chegou à estrutura de classes
contemporânea.
O primeiro ponto a abordar, num contexto dinâmico, diz respeito à
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

questão distributiva. Sabe-se que nos textos de Marx há uma diferença de


abordagem dessa questão. Em O capital, Marx analisa o problema do ponto
de vista da tendência objetiva do sistema, estando as classes em inércia. Em
Salário, preço e lucro, Marx estuda a distribuição, já considerando os efeitos
da luta de classes. É verdade que em O capital há pelo menos uma exceção a
esta regra, concernente à determinação da jornada de trabalho. Neste caso, a
luta de classes é inserida no plano do discurso de O capital. Mas isso é feito
por uma razão particular. “O capitalista, diz Marx, afirma o seu direito como
comprador, quando procura fazer a jornada de trabalho tão longa quanto
possível, e quando possível, de uma jornada de trabalho, duas. Por outro lado,
a natureza específica da mercadoria vendida contém uma limitação de seu
consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito como vendedor,
quando quer limitar a jornada de trabalho a uma grandeza normal determinada.
Assim, há uma antinomia, direito contra direito, ambos igualmente legitimados
pelo intercâmbio de mercadorias. Entre dois direitos iguais, conclui Marx,
decide a violência” (apud Fausto, 1987, p. 119, nota). Ora, aqui não há
propriamente luta de classes, uma vez que é a própria lógica do intercâmbio
de mercadorias que coloca o trabalhador frente ao capitalista de igual para
igual. A “luta” aparece para resolver uma antinomia das leis do sistema.
Com o salário, ou seja, o preço da mercadoria força de trabalho, as
coisas não se passam assim. O preço da força de trabalho é determinado por
uma lei geral: como qualquer mercadoria, seu preço é determinado pelo tempo
de trabalho necessário a sua reprodução. A luta que almeja um aumento do
preço da força de trabalho para além do estabelecido pela lei geral não vem
resolver uma antinomia do sistema, mas subverter essa lei geral. “Sem dúvida,
como ensina Fausto, essa lei introduz um ‘elemento histórico e moral’. Mas,
este é a sua maneira também inerte, porque remete ao ‘nível de civilização de
um país’ inclusive e essencialmente aos ‘hábitos e exigências vitais com que
se formou a classe dos trabalhadores livres’” (Fausto, 1987, p. 121).
Assim, o discurso de O capital contempla, a partir do progresso
técnico, dois vetores (exclusive a luta de classes) na determinação do salário:
por um lado, barateia as mercadorias que garantem a reprodução da força de
trabalho, o que aumentaria o poder de compra do salário real; por outro lado,
aumenta a oferta da mercadoria força de trabalho, o que provocaria sua
desvalorização. Respeitada a lei geral do sistema, entretanto, não há dúvida
de que a acumulação de riqueza, de um lado, implica acumulação de pobreza,
de outro. Mas isso, do ponto de vista da tendência objetiva. Quando Marx
introduz, em Salário, preço e lucro, o elemento luta de classes na discussão
sobre salário, ele, aparentemente, abre espaço para a possibilidade de que a
luta entre trabalhadores e capitalistas pudesse não ser inglória para os primeiros.
Marx vislumbra, como caso limite, a hipótese do trabalhador conseguir não
só um aumento do salário real, mas também a manutenção do valor da força
de trabalho. Num contexto em que as mercadorias são barateadas pelo
progresso tecnológico, isto representaria um enriquecimento absoluto do
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

trabalhador. Esse caso limite proposto por Marx foi realmente o que aconteceu
nos países capitalistas avançados. E o que parece ter tornado o caso limite um
caso padrão foi a velocidade do progresso por meio da transformação da ciência
em fator de produção. A partir daí, a luta distributiva passou a ser muito mais
custosa para o capital, e sua contrapartida, a pacificação dos conflitos distri-
butivos, tornou-se um bom negócio.
Com isso, muitas hipóteses inverossímeis nos tempos de Marx
tornaram-se realidade. Mesmo no começo do século, dificilmente poderia se
imaginar uma sociedade de consumo de massa nos moldes das atuais. Discu-
tiam-se teses como as de crise por insuficiência de consumo (Rosa Luxemburg)
ou a de produção de máquinas por máquinas (Tugan-Baranowsky). A revolu-
ção keynesiana que concebeu a insuficiência de demanda por conta da volubi-
lidade do investimento (e não do consumo) só aparece em 1936 (data da pu-
blicação da Teoria geral de Keynes).
Sociedade de consumo, em geral, todas são. A expressão é aqui
utilizada para caracterizar uma situação inédita na história na qual o rendimento
da classe dominada compra cada vez mais valores de uso. Isso evidentemente
não implica necessariamente maior satisfação, já que nada se disse a respeito
do que o salário não compra; isto quer dizer: a satisfação só aumentaria
indubitavelmente caso o nível de necessidades permanecesse constante ou
aumentasse menos do que o poder de compra do salário medido em valores de
uso, o que não parece ser o caso. Mas ainda assim, nada disso modifica a
novidade histórica dessa situação.
Na sociedade de consumo, o trabalhador, como em todas as
sociedades, utilizará seu rendimento para dispor daqueles bens, ditos de
primeira necessidade, que garantem a reprodução da sua capacidade de
trabalho: habitação, vestuário, alimentação. Mas, diferentemente das outras
sociedades, o trabalhador dos países capitalistas avançados podem vestir-se
melhor, comer mais e melhor, morar melhor, comprar supérfluos, investir no
seu próprio lazer ou ainda poupar. As conseqüências óbvias desse aumento de
disponibilidade material das massas trabalhadoras só poderiam ser uma
hipertrofia do setor comercial e financeiro, uma hipertrofia do escritório da
indústria e o fortalecimento igualmente imprevisto da produção capitalista de
mercadorias imateriais.
Uma sociedade de consumo de massa requer, em primeiro lugar,
meios de distribuição de massa. E dada as defasagens de racionalização do
setor de distribuição em relação ao setor de produção, o primeiro experimenta
uma hipertrofia em relação ao último. O progresso técnico na indústria e
principalmente na agricultura propiciaram uma poupança significativa do fator
trabalho na produção da maioria dos bens materiais. A produção agrícola por
habitante aumentou significativamente ao mesmo tempo em que a parcela da
população empregada no campo caiu drasticamente. Na indústria, embora a
proporção dos trabalhadores em relação ao total da força de trabalho tenha se
mantido constante (cerca de 1/3), o aumento da produtividade do trabalho
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HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-123, outubro de 1997.

também foi estupendo. Do lado da distribuição, entretanto, o progresso nesta


área tem sido bem mais lento. Apesar de que até alguns economistas
schumpeterianos, numa crítica ao mestre, terem despertado a atenção para o
fenômeno da inovação nas áreas administrativas em geral, o fato inquestionável
é que este tipo de inovação acontece mais raramente e tem um menor alcance
que o progresso técnico na produção propriamente dita. Além disso, o setor
comercial enfrenta um tipo de problema menos freqüente no âmbito da
produção. O industrial, em condições normais, planeja o volume a ser produzido
num determinado período de tempo e distribui a produção por esse período de
uma forma regular, considerando, é claro, descanso remunerado, férias,
adicional por horas extras trabalhadas etc. Dessa forma, o industrial procura
dimensionar otimamente a planta e, principalmente, o emprego, mesmo sabendo
que as encomendas do setor de distribuição, composto de uma rede de varejis-
tas e atacadistas, podem flutuar ao longo do tempo. Quando o industrial não
pode impor ao setor distribuidor um regime qualquer de cotas, obrigando os
comerciantes a manterem o ritmo de compras, ele, preventivamente, reserva
um montante adequado de capital de giro, para quando as encomendas
diminuírem, e conserva um volume razoável de estoques, para quando elas
crescerem. Já o comerciante, por seu turno, não pode proceder exatamente da
mesma maneira. Ele depende de uma variável que ele não pode controlar: o
comportamento do consumidor, que é quem decide o momento e o lugar da
compra. Sendo assim, ainda que ele preveja os períodos de pico e de baixa de
vendas, ele é obrigado a manter, para prestar um bom serviço ao público, um
aparato de atendimento superdimensionado. Pelas razões apontadas, uma
sociedade de consumo de massa não poderia deixar de observar um aumento
importante do emprego no setor comercial relativamente ao total dos
assalariados.
No setor financeiro da economia, as coisas não se passam de forma
muito diferente. Quando se diz que, na sociedade de consumo, o trabalhador
compra cada vez mais valores de uso, diz-se implicitamente que o trabalhador
tem uma capacidade cada vez maior de poupança. O trabalhador, pode agora,
ou seja, é-lhe facultado, poupar. O salário fixado no nível de subsistência não
permitiria essa possibilidade. E diante dessa faculdade, o setor financeiro,
cujo crescimento Marx havia previsto, conhece uma instituição com a qual
Marx não sonharia: o banco de varejo. Erige-se um sistema bancário de
dimensões enormes, lançando “produtos” os mais exóticos no mercado
financeiro, com o fim de captar a eventual poupança do trabalhador (e da
pequena burguesia que não sai de cena). Os bancos administram fundos de
pensão, fundos de ações, fundos de renda fixa, intermedeiam o lançamento de
debêntures de sociedade anônimas, vendem apólices de seguros os mais
variados, criam sofisticados mecanismos de crédito ao consumidor, fundos de
capitalização, planos de previdência privada, além de um notável sistema de
pagamento e recebimento de contas, carnês, duplicatas etc. O número de
agências cresce e distribuem-se também pelos bairros residenciais, incluindo
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os periféricos. Cresce também, como conseqüência óbvia, o número de


trabalhadores assalariados do setor financeiro relativamente ao número total
de trabalhadores assalariados.
Outro fenômeno a destacar é a hipertrofia do escritório da indús-
tria. O brutal desenvolvimento tecnológico ao mesmo tempo que elimina, cria
novos postos de trabalho, o que exige um departamento pessoal e de
treinamento ágil. Novas matérias-primas são continuamente lançadas no
mercado, bem como mais modernos bens de capital, o que exige um departa-
mento de compras. O sistema bancário, como vimos, cresce. Com ele, fortalece-
se os mercados de ações, o de renda fixa, as movimentações interbancárias, o
mercado creditício etc., exigindo da empresa produtiva um atento departamento
financeiro que otimize o retorno de seu portfolio de investimentos. Cresce o
comércio, nacional e internacional, muitas vezes confiado à pequena burguesia 5
O setor de serviços,
(em virtude dos baixos ganhos de escala neste setor e em virtude do enorme rigorosamente falan-
sistema tributário e previdenciário estatal que favorece a pequena empresa do, não produz bens
materiais ou imate-
sonegadora): erige-se um poderoso departamento comercial dentro das riais. É o caso de
empresas produtivas. Evidentemente, parte dessas funções podem ser serviços médicos, ser-
viços de segurança,
terceirizadas, o que, em absoluto, muda a natureza do fenômeno. serviços de esteticis-
Mas há ainda outro setor da economia que cresce com a sociedade mo etc., prestados por
de consumo de massa: o setor de produção de mercadorias imateriais, muitas profissionais autôno-
mos que, regra geral,
vezes erroneamente chamado de setor de serviços5 (em sentido estrito). Se detêm os meios ne-
aumenta o poder de compra de bens materiais e o poder de poupança do cessários para ofere-
cê-los. Essas ativida-
trabalhador, é claro que aumenta o poder de compra de bens imateriais, abrindo- des, desde sempre,
se assim mais um espaço para a exploração de tipo capitalista. Neste caso em puderam também ser
especial, vale a pena uma análise mais detida dos textos de Marx. Numa exploradas de forma
capitalista, “proleta-
passagem ilustrativa das possibilidades de produção imaterial, Marx declara: rizando” aquele pro-
“uma cantora que canta como um pássaro é um trabalhador improdutivo. Se fissional autônomo
que, ainda nessa si-
ela vende seu canto é nessa medida trabalhadora assalariada ou vendedora de tuação, continua um
mercadorias. Mas a mesma cantora, contratada por um empresário que a faz prestador de serviço.
cantar para ganhar dinheiro é um trabalhador produtivo, por que produz Contudo, um fato que
merece destaque é a
diretamente capital” (apud Fausto, 1987, p. 247). Dissecando os momentos recente conversão de
constitutivos da passagem, percebemos quatro possibilidades distintas. A alguns desses servi-
ços em “mercadorias”.
primeira, de pouco interesse, trata da produção não propriamente econômica: Exemplificando: um
uma cantora que canta enquanto se banha, ou enquanto cozinha, ou para os spa, uma academia de
amigos, numa festa de aniversário etc., sem dúvida produz o canto, mas numa ginástica, uma rede
de hotéis etc. não
forma não econômica. Numa segunda possibilidade, a cantora poderá cobrar mais oferecem ser-
para cantar, caso em que vende seu canto como um produto imaterial viços propriamente,
mas vendem como
diretamente para o consumidor. Mas a cantora pode também (terceira mercadoria aquilo
possibilidade), ao invés de vender o canto como produto imaterial, vender sua que por natureza ja-
força de trabalho para alguém que a utiliza improdutivamente como valor de mais poderia ser con-
cebido como tal: saú-
uso, tornando-se, nesse caso, um assalariado improdutivo (exterior à produção). de, beleza, bem-estar
Por fim, a cantora pode vender sua força de trabalho a alguém que explorará etc. Essas empresas,
com suas dezenas de
seu talento com objetivo de lucro. Às três últimas possibilidades correspondem “operários”, funcio-
as figuras do trabalhador autônomo, do empregado doméstico e do trabalhador nam quase que como

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produtivo de mercadoria imaterial, respectivamente.


Dessas três possibilidades econômicas, interessa-nos, a princípio,
a última. A produção não material, explorada pelo capital, pode resultar em
mercadorias que existem separadamente do produtor, podendo inclusive circular
entre o ato da produção e o ato do consumo, como livros, quadros, CDs etc.
(caso que oferece poucas dificuldades teóricas porque se assemelha ao caso
clássico de produção material); ou pode resultar em mercadorias cujo consumo
se dá no ato da produção: quando o capitalista explora o trabalho de atores
teatrais, cantores, artistas de circo etc. No caso da produção capitalista não
material (deixe ou não um resultado material, como na produção literária) o
trabalhador contratado pelo capital é um trabalhador produtivo porque troca
sua força de trabalho por uma parte do capital variável, produzindo mais-
valia para ele. O caráter material ou não do produto é irrelevante para a
caracterização do trabalho produtivo enquanto tal. Marx inclusive critica Adam
Smith por ter considerado a materialidade do produto uma segunda
determinação necessária do trabalho produtivo, atribuindo essa sua postura a
uma concepção fetichista própria ao modo capitalista de produção.
Contudo, o próprio Marx reconhece que, como a produção imaterial
na maior parte dos casos não produz um resultado material, ela teria pouca
importância no modo capitalista de produção. O produto imaterial, ainda que
“indústrias”, nas quais possua valor de uso e valor de troca, não podendo servir de suporte para o
o corpo é um dos insu- último, revela-se inadequado ao sistema por exigir consumo simultâneo à
mos e esse insumo,
depois de transfor- produção. Com efeito, das três categorias mencionadas, a do autônomo, do
mado por operações doméstico e do assalariado produtor de mercadoria imaterial, a teoria marxista
as mais variadas, um só previu o aumento relativo da segunda (que de fato ocorreu). Quanto aos
novo produto. Mas
não só os “bens ter- primeiros, os autônomos, que caracterizam-se basicamente pela propriedade
renos” podem ser, por dos meios de produção (o barbeiro proprietário do salão, a costureira
assim dizer, “indus-
trializados”. “Bens proprietária da máquina de costura, o médico proprietário da clínica etc.),
soteriológicos”, que Marx previu sua diminuição por meio de um processo de assalariamento (que
sempre foram ofe- também ocorreu) que operou de forma muito variada e muitas vezes velada
recidos pelos “servi-
ços religiosos”, pas- (caso dos planos de saúde que proletarizam os médicos sem lhes desincumbir
sam a ser “produzi- do encargo de manter seus consultórios; caso da costureira que é “presenteada”,
dos”. Não estamos
vendo surgir, ante em sua casa, com uma máquina nova em troca de uma remuneração por peça
nossos olhos, uma que lhe rende mais que um salário, mas poupa o capitalista dos encargos
verdadeira “indústria trabalhistas etc.)
da salvação” que su-
planta os “serviços de Não obstante os acertos de Marx quanto aos autônomos e
salvação” e compete domésticos, a sociedade de consumo, no que toca à produção capitalista de
com a “indústria do
entretenimento”? A- mercadorias imateriais, mudou um pouco o rumo das coisas. O maior poder
qui, porém, é o espí- de compra do trabalhador, medido em valores de uso, aumentou a demanda
rito – que também por esse tipo de mercadoria, dando ensejo à exploração de tipo capitalista de
passa pelas mais exó-
ticas experimentações uma “indústria” de lazer e entretenimento sem precedentes na História, o que
– um dos insumos do elevou muito o número de trabalhadores assalariados nessas atividades
processo, e um novo
destino, o produto exploradas pelo capital. Mas esse resultado está longe de ser o mais importante.
prometido. Mais do que sobre a teoria de classes, a chamada “indústria cultural” teve um
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efeito perturbador sobre a teoria da consciência de classe, obrigando Adorno


e Horkheimer, seguidos por Habermas, a modificar a teoria de Lukács.
Além dessas alterações na composição interna da classe dos
trabalhadores assalariados (pois como vimos, essa classe é formada, não só
pelos operários, mas igualmente pelos trabalhadores empregados pelo capital
comercial e financeiro ou pelo capital industrial para a execução de tarefas
comerciais ou financeiras, bem como os trabalhadores empregados pelo capital
para a produção de bens imateriais), temos uma outra alteração importante
concernente a uma das categorias que compõem a camada dos trabalhadores
assalariados exteriores à produção, qual seja, a dos funcionários públicos.
Com a sociedade de consumo nasce a figura do contribuinte. Tanto
quanto a palavra consumo ou consumidor, a palavra contribuinte está sendo
usada aqui numa acepção particular. No capitalismo clássico, os impostos
que recaíam sobre os salários o faziam de uma forma sempre indireta.
Geralmente, o Estado taxava os gêneros de primeira necessidade, encarecendo-
os. Imposto direto sobre o contra-cheque era coisa, salvo engano, inexistente.
Com o advento da sociedade de consumo, contudo, criaram-se as condições
políticas para que o imposto de renda afetasse uma parcela significativa da
classe trabalhadora. Quem pode se dar ao luxo de consumir supérfluos ou
mesmo poupar, pode igualmente pagar impostos. Nesse sentido, se, de uma
lado, o trabalhador virou consumidor, de outro, o cidadão virou contribuinte.
A contrapartida disso foi que o Estado passou a assumir uma série de tarefas
que, ou não eram rentáveis para a iniciativa privada, ou não deviam sê-lo, aos
olhos da opinião pública. Além dos gastos de defesa externa (exército),
manutenção da ordem interna (polícia), administração da justiça, relações
exteriores e outras funções clássicas, o Estado criou uma estrutura para prestar
serviços públicos, especialmente nas áreas de educação e saúde, áreas que
consomem cerca de 50% do orçamento público (federal, estadual e municipal)
de um país como os Estados Unidos, orçamento que consome cerca de 30%
do PIB! Como conseqüência, verificou-se um notável aumento do número de
funcionários empregados pelo Estado, sendo que em 1970, esse número já
chegava a quase 1/6 da força de trabalho total.
Todas essas mudanças de forma por que passou o capitalismo
avançado assentam-se, como já disse, numa mudança essencial: a internalização
e rotinização do processo de inovação tecnológica. A pacificação da questão
distributiva, o crescimento do comércio e do sistema financeiro, o aparecimento
da “indústria” do lazer e do entretenimento, bem como o advento e estabilização
do Welfare State, explicam-se a partir daquele fenômeno, descrito pela primeira
vez por Schumpeter. Mas a operacionalização dessa mudança só foi possível
graças a drásticas medidas de cunho material. As empresas passaram a inves-
tir um volume enorme de recursos em pesquisa e desenvolvimento. Os
departamentos de P&D criados para esse fim acolheram um contingente
expressivo de cientistas, engenheiros e técnicos incumbidos de transformar o
outrora discreto processo de destruição criativa num processo contínuo e
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rotineiro. “Em 1920, conta-nos Braverman, havia [nos Estados Unidos] talvez
300 desses laboratórios [de pesquisa] de empresa, e em 1940, mais de 2200.
Daí por diante, empresas com um ativo tangível acima de 100 milhões de
dólares tinham um pessoal de pesquisa de 170 em média, e as que possuíam
ativo acima de um bilhão de dólares empregavam em média 1.250
pesquisadores. Os laboratórios da Bell Telephone, empregando acima de 5.000
era, longe, a maior organização de pesquisa do mundo” (Braverman, 1987, p.
144). Hoje, os Laboratórios Bell contam com cerca de 30.000 pesquisadores
espalhados pelos 5 continentes.
Os dados de 1960 do recenseamento americano revelam que cerca
de 3% da população era composta por cientistas, engenheiros e técnicos, metade
dos quais empregados pela indústria manufatureira, sendo que desses, 30%
estavam diretamente envolvidos com atividades de pesquisa e desenvolvimento.
Tomando-se a população economicamente ativa, tem-se que mais de 1,5% da
força de trabalho total era composta por agentes inovadores contratados
exclusivamente pelo capital, ou seja, excluindo-se o “exército científico de
reserva” empregado pelo Estado e pelas universidades (ver Daniel Bell). Isso
significa uma proporção de mais de 1 agente inovador para cada 25 operários
ou para cada 7 trabalhadores em escritório empregados pela indústria!
Portanto, da análise das classes que acabamos de empreender, penso
ser possível identificar quatro classes distintas na sociedade superindustrial:
1) a classe constituída pelos proprietários do capital, pelos funcionários do
capital (alta gerência) e pelos proprietários fundiários; 2) a classe dos agentes
sociais inovadores, portadores do conhecimento científico-tecnológico aplicado
à produção. Aqui uma observação se faz necessária. Muito freqüentemente,
essa classe está envolvida num processo de inovação tecnológica, em geral,
executado em departamentos específicos. Mas, com o crescimento do trabalho
em escritório, não raramente encontram-se, dentro das empresas, agentes
inovadores atuando na área de inovações administrativas (esse fenômeno
recente foi observado até por discípulos de Schumpeter, que o criticam nesse
particular): esses elementos, evidentemente, compõem a classe em questão.
Além disso, temos o “exército científico de reserva”, composto por professores
universitários, pesquisadores de instituições públicas e privadas, e afins. Note-
se que, diferentemente do caso dos trabalhadores assalariados, não há mem-
bros da classe tecno-científica exteriores à produção. Do ponto de vista teórico,
inclusive econômico, importa menos a natureza de seu rendimento do que a
função social que exercem. E só uma teoria ingênua poderia enfocar instituições
como, por exemplo, a Universidade do ponto de vista exclusivo da reprodução
simbólica da sociedade; 3) a classe dos trabalhadores assalariados interiores à
produção. E aqui é mister distinguir produtivos e improdutivos, qualificados,
semi-qualificados e não-qualificados, empregados, subempregados e desem-
pregados eventuais; e 4) os desclassificados, ou seja, a não-classe dos não-
trabalhadores (num sentido mais restrito que o de Gorz) composta pelos
elementos heterônomos da sociedade. Aceito de Gorz, como se vê, a sugestão
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de tratar uma não-classe como classe porque, com efeito, o não-rendimento


dessa categoria é também uma conseqüência imediata das relações de
produção, tanto quanto o salário ou o lucro. Ao lado dessas quatro grandes
classes, parece-me importante considerar, para fins analíticos, três camadas
sociais que, a rigor, não pertencem a qualquer das classes sociais mencionadas:
a dos domésticos (que vendem sua força de trabalho como valor de uso), a dos
autônomos (que vendem bens e serviços produzidos com meios próprios) e a
dos funcionários públicos.

Recebido para publicação em junho/1997

HADDAD, Fernando. Work and social classes.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 97-
123, october 1997.

ABSTRACT: Exposition, discussion and refutation of the main attempts of UNITERMS:


actualizing marxist class theory and a posterior reevaluation of this theory taking social classes,
work,
into account the transformation of Science into a factor of production and of the
science,
possible centrality-loss of work in the productive process, based on the logic marxism.
interpretations of Marx’s work made by Ruy Fausto.

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