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LUTAR E RESISTIR NO NORTE DE GOIÁS: A LABUTA CAMPESINA E A

RESILIÊNCIA DOS POVOS CERRADEIROS NO ASSENTAMENTO SALVADOR


ALLENDE

Matheus Lucio dos Reis Silva

Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar os processos de construção e consolidação do


assentamento “Salvador Allende” na cidade de Porangatu-GO, além de refletir sobre as lutas e
resistências enfrentadas pelos assentados. O presente trabalho é fruto de uma pesquisa
etnográfica, na qual através da convivência e diálogo com os assentados, pude observar o
cotidiano, o trabalho, as dificuldades, as labutas, bem como sua(s) identidade(s) e cultura(s).
Entendendo a etnografia na perspectiva de Clifford Geertz (2017), em especial na sua descrição
densa, procuro entender os pequenos detalhes do cotidiano. Ellen & Klass Woortmann (1997,
1998) afirmam que há uma lógica e simbólica nos modos de fazer camponês. Os golpes,
entendidos aqui na perspectiva de Certeau (2014), narram as estratégias cotidianas de
sobrevivência em um ambiente hostil, estando reféns do abandono político, seja do governo
federal ou municipal é responsável por produzir práxis específicas. No norte do estado, antigo
médio norte, o coronelismo sempre foi uma das grandes marcas históricas, também assinalada
por derramamento de sangue camponês. É entre a labuta do trabalho camponês e a resiliência
necessária no cerrado do norte goiano que se localizam esses sujeitos. E é nessa dinâmica diária
que se localiza o nosso ponto de estudo e reflexão. No qual pretendo refletir sobre esta ordem
moral camponesa.
Palavras-Chave: Assentado; Etnografia; Campesinato.

Considerações Iniciais

Se por um lado a pesquisa etnográfica permite aproximar-se do objeto estudado para


assim abstrair, ou tentar, da melhor maneira possível os significados dos sujeitos, julgo também
importante compreender os processos históricos, uma vez que estes revelam estruturas sociais
anteriores e de grande funcionalidade para um entendimento da sociedade observada.
Entendendo isto, este artigo procura refletir sobre o assentamento Salvador Allende,
este localizado no Norte de Goiás, na cidade de Porangatu, em especial, problematizar como
seus processos de construção, constituição e organização do assentamento auxiliam a entender
sua situação no presente, ou seja, como tais processos produziram significados importantes para
estes sujeitos, de maneira tal que sua estrutura social sofre importantes modificações, se
comparadas com aquilo que aparece como suas estruturas anteriores.


Graduando de Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Goiás.
krauch1@hotmail.com
Para isto, como apontado anteriormente, primeiramente irei tecer breves considerações
históricas, em especial, situar o leitor para um fato específico e delimitado, dado o pequeno
espaço que um artigo possui para examinar problemáticas. Deste modo, realizado os
apontamentos históricos refletirei sobre o processo de construção, constituição e organização
do assentamento estudado, para assim, problematizar os modos de fazer (CERTEAU, 2014)
específicos que estes processos produziram, além de entender como determinadas estruturas
sociais perpassam a história e (re)configuram-se sob outros aspectos.
Dado os apontamentos iniciais, devo também elucidar sobre a metodologia utilizada
para a produção desta reflexão. Parto, inicialmente, de uma pesquisa etnográfica, entendendo-
a como propõe Geertz (2017), uma vez que julgo importante, e para além de somente entrevistar
e observar, participar efetivamente dos modos de vida ali vivenciados. Esta aproximação
permitiu melhor abstrair os significados envolvidos nas questões propostas. Para preservar a
identidade dos assentados, ao transcrever suas falas irei substituir seus nomes por letras.
Por fim, este artigo é fruto de reflexões advindas de minha pesquisa monográfica, na
qual pretendo entender como é a maneira de viver, de um modo geral destes sujeitos; e quais
são precisamente os veículos através dos quais esta maneira de viver se manifesta (GEERTZ,
1997: 106). Dito isto, neste artigo pretendo sintetizar alguns aspectos importantes nos quais
trata sobre tais objetivos, em especial, salientando o Norte de Goiás como produtor de modos
de vida específicos.

Norte de Goiás: esperança, grilagem e “chumbo”

A Marcha para o Oeste representou uma das maiores migrações nacionais


contemporâneas, sendo o estado de Goiás, densamente povoado devido tal movimento.
Anterior a isto, a atividade de mineração representou importante processo de ocupação do Norte
(PÁDUA, 2007: 624), além também da dizimação de diversos povos indígenas que ali
habitavam.
Com extensas e enérgicas propagandas migratórias, tanto governos estaduais e federais
incentivavam a migração para esta região oferecendo terras livres para estes sujeitos.
Resultando em aumento populacional não controlado, as construções de Goiânia e Brasília
ampliaram significativamente a população urbana de Goiás, havendo uma grande concentração
demográfica e de recursos na região centro-sul do estado.
Neste caminho, tentativas de levar ao Norte tais benefícios proporcionaram a
instalação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), localizada no município de Ceres-
GO. Situado em terras altamente produtivas, a CANG representou grande sucesso, ocasionando
um expoente crescimento demográfico. Por fim, pela falta de espaço na Colônia, foi-se
necessário migrar para mais ao Norte, uma vez que os posseiros não mais conseguiam encontrar
terras disponíveis para viverem.
Assim, inicia-se a ocupação do Norte goiano pelos posseiros1, divididos em diferentes
regiões há um destaque para Porangatu-GO, Formoso-GO e Trombas-GO como expoentes
migratórios, sendo também estes locais de intensos conflitos, chegando até a massacres
camponeses. Como retrata Sampaio (2003), em sua dissertação A história da resistência dos
posseiros de Porangatu-GO (1940-1964), houve intenso processo de grilagem de terras nestas
cidades, resultando em movimentos de resistências dos posseiros frente a tais ações.
Neste percurso, com o forjamento de documentos que comprovariam a posse das
terras, os grileiros expulsaram os posseiros de suas terras ou realizaram ações que culminaram
na precarização destes sujeitos, uma vez que, colocando-os como dividendos e permitindo que
estes vivenciem ali em “suas terras”, dada as condições do trabalho, ocasionando um aumento
progressivo da mesma, desta forma o pagamento da dívida nunca acontecia, proporcionando
um regime de escravidão deste camponês.
Aliado a isto, o coronelismo, característico desta região, fazia-se importante aspecto
constituidor e até mesmo legitimador de tais relações, uma vez que os grileiros, agentes destas
ações, quase sempre, eram sujeitos pertencentes a alta sociedade ou aliado à mesma. Assim,
“contando com o apoio das principais autoridades municipais: prefeito, juiz e delegado” e em
principal, chefes de cartórios “tal apoio deixou a sociedade bastante amedrontada, muitos
temiam sofrer retaliações” (SAMPAIO, 2008: 17), não cabendo aos posseiros, com suas
devidas exceções, a quem recorrer, sintetizando, portanto, um cerceamento dos mesmos, os
quais produziram linhas de resistência e embate para lutar contra este processo.
De forma que o conflito nesta região foi iminente, pois os posseiros se recusaram a
sair de suas terras, e os fazendeiros passaram a contratar jagunços para retirá-los
de lá. E toda essa região se tornou palco de violência generalizada. A resistência dos
posseiros foi breve, já que não dispunham de recursos para enfrentar a ação dos
jagunços, fortemente armados. Nesse conflito morreram muitos posseiros, alguns

1
Sendo importante destacar que propriamente dito o Norte de Goiás já havia sido ocupado por
mineradores e bandeirantes, além também dos primeiros habitantes: os indígenas. Sugiro a leitura de Almeida
(2016), em seu texto O Sertão de Amaro Leite no século XIX , para maiores elucidações.
fugiram, mas um grupo resistiu na terra, por saberem que essas terras eram
devolutas.
Este grupo compreendeu que não bastava somente resistir em suas terras, uma vez
que as autoridades locais faziam vista grossa para a situação, por serem eles
integrantes do grupo de João Inácio. A partir daí resolveram criar a Associação dos
Lavradores de Porangatu, passando seus lideres a viajar constantemente para
Goiânia com o objetivo de buscar junto ás autoridades estaduais uma solução para
a complicada situação dos posseiros.
Apesar disso, as autoridades estaduais não davam a devida atenção ás reivindicações
dos posseiros [...] (SAMPAIO, 2008: 17-18).

Aliado a isto, duas situações produziram uma construção social destes posseiros, de
modo que estes passaram a serem identificados como “ladrões” por grande parte da sociedade.
Primeiramente, “não lhes foi fácil recomeçar a vida no norte goiano; por serem forasteiros e
pobres foram alvo do preconceito da população local” (SAMPAIO, 2008: 11), assim, a
alteridade foram-lhes o primeiro constituinte. Outra importante situação, na qual julgo ser a
principal, dá-se pela perspectiva de como os posseiros eram visualizados pela sociedade
naquele período, para isto, Sampaio revela um importante aspecto:
[...] o pobre migrante (posseiro) só podia sentir espanto, ao ser intimado a se retirar
da “terra alheia” que ocupava.
Terra alheia, sim, porque bem antes desse ultimato, tinha o grileiro efetuado várias
providências. Em primeiro lugar, a obtenção de títulos de propriedade da terra em
questão, Como? Empregando as mais diversas fraudes, falsificação de documentos,
ações judiciais tortuosas, em que a conivência de tabeliães, prefeitos, promotores,
juizes, etc, aplainava todos os caminhos (SAMPAIO, 2008: 9).

Dito isto, os posseiros eram entendidos como “ladrões” de terras, uma vez que
ocupavam terras alheias, neste sentido, haveria uma construção social destes sujeitos enquanto
invasões, o que resultava em uma perspectiva estereotipada dos mesmos, baseado na
fundamentação de falsos documentos, além de uma influência política e social que os grileiros,
aliado com os prefeitos, delegados e juízes, produziam.
Resultando, portanto, na discriminação destes sujeitos no meio social, só havendo
alguma modificação desta situação com a devida exposição das grilagens. Entretanto, este
preconceito estaria longe de terminar, especialmente porque, com o reconhecimento da
grilagem de algumas propriedades, houve uma ação judicial que retirou do grileiro a posse
forjada da terra, colocando à venda. Contudo, devido a situação precária em que os posseiros
viviam, era impossível estes realizarem a compra das terras, deste modo, estas, que
originalmente eram legitimamente dos posseiros, passaram a estar a venda, sendo que os
mesmos que efetuaram a grilagem realizaram a compra da terra, agora destinada a família por
meio legal.
Deste modo, ao final do processo, houve a formação de extensos latifúndios
aristocráticos na região, sendo que até hoje o principal capital motor da cidade de Porangatu-
GO são os grandes fazendeiros da região, advindos, em boa parcela, de terras conquistas através
da retirada legítima destes posseiros. Estes que vivenciaram três situações distintas, 1)
migraram para a cidade, em regiões periféricas, realizando trabalhos precários; 2) migraram
para estas fazendas para trabalharem como funcionários, denominado como “peões”, sendo que
alguns receberam “boas” condições de trabalho, já outros permanecem em constante processo
de migração entre propriedades rurais; 3) outros montaram acampamentos na região e entraram
para a luta da reforma agrária, em busca de retornar para sua própria propriedade.

O assentamento e a busca pelo retorno a terra

Segundo dados do INCRA (2018), a região Norte possui a maior quantidade de


assentamentos em todo o estado de Goiás. Se por um lado, há grandes quantidades de terras
concentradas na posse de poucos, dado o processo histórico de grilagem e apropriação posterior
pelos fazendeiros, por outro um dos principais motivos dá-se pela qualidade das terras desta
região.
Como aponta uma entrevistada, ao perguntar sobre o motivo da maior quantidade de
assentamentos nesta região:
Fazenda se for de terra muito boa, o governo não tem interesse de comprar porque é
caro, é melhor pro governo comprar terra ruim, mais barato, pra por muita gente.
Porque quando a fazenda não é produtiva o cara pede lá em cima, o INCRA oferece
a metade do processo, ele já tá vendendo a fazenda bem, quem paga o pato? ‘Nóis’!
‘Nói’s vem pra cá e não produz, ‘nóis’ tem que calcariar, fazer cerca, e se não produz
o povo fala: nossa mais é preguiçoso, quer terra pra que? Não faz nada! É ou não é?
Você num já ouviu isso? [sic] (ASSENTADA B).

Como aponta a assentada, ao final do processo, o maior beneficiado é proprietário, que


vende terras de baixa produtividade (neste caso, a baixa produtividade não se relaciona com o
não uso, mas com a ausência de condições que possibilite torná-lo produtivo) por um valor
acima do mercado. Assim, ao falar sobre os outros assentamentos, a entrevistada diz-me que:
Terra barata... mais ruim, seca, o lugar mais fácil de assentar nóis, vê o exemplo ali
da Deus me Deu, o povo tá buscando água a mais de 5km de carroça pra beber, ele
é do Porangatu, só que fica no entroncamento com São Miguel, então assim, como
que vai produzir? Hoje parece que, quase metade das famílias já abandonou a
parcela lá, você não vai ter um gado, uma galinha, não vai plantar nada, porque
como que ‘veve’? [sic] (ASSENTADA B).
Antes de iniciar a discussão sobre a produção, irei tornar ao ponto inicial: o processo
de vinda para a terra. No assentamento Salvador Allende não houve ocupação das terras, em
verdade, ela foi vendida ao Estado como pagamento de dívida, neste caso, em que a terra está
na posse do estado não é necessário que haja ocupação e negociação com o proprietário, a
disputa torna-se somente para chegar primeiro, uma vez que existem vários movimentos sociais
e acampamentos que também possuem o mesmo interesse. Desse modo, como disse-me a
assentada A, durante a vinda para terra, a preocupação era chegar o mais rápido possível para
garanti-la.
Sobre o processo de adquirir terra no assentamento, uma entrevistada disse que:
Funciona assim, eu posso hoje ir no município onde eu vou abrir um acampamento e
aí vou lá no INCRA, escolho uma sigla, um nome e cadastro. Essa é a bandeira que
eu vou levantar, então eu levanto, faço um acampamento e aí eu começo a fazer um
levantamento das fazendas que eu acho que não é produtiva, fazenda que fica ali
parada, não planta lavoura, as vezes fica vazia, não tem boi né, que o pessoal não tá
fazendo nada, as vezes fazenda endividada, levo pro INCRA: “Oh, queremos pleitear
qualquer uma dessas fazendas”. Mas é enganação, vou falar a verdade pra você,
porque fica naquele jogo de cintura lá na hora: “vai sair uma fazenda, vai sair depois
de amanhã”, coisa que você tem gasto, é sofrido esse processo. O INCRA vai vir, vai
conversar com o fazendeiro, vai avaliar se a fazenda dele é improdutiva ou não, se
der improdutiva, o INCRA vai entrar com um processo de desapropriação, se o
fazendeiro provar que a fazenda dele é produtiva aí entra com o processo de parar a
desapropriação, nisso vai nada nada cinco anos; tem fazenda que tem dez, cinco anos
que tá na briga, nenhum ganhou, aí depende do governo querer comprar, porque tem
fazenda que pode ser vendida e o governo não tem interesse em comprar
(ASSENTADA B).

Dado o processo inicial, a chegada a terra é um momento de grande importância e,


principalmente, de muita felicidade. Nesta etapa, denominada de pré-assentamento ou
acampamento, os assentados montam acampamentos de lona ou palha e realizam o trabalho em
conjunto, sendo que aqui estabelece-se um aspecto muito importante para estes assentados: a
união. Ela é muito referida por eles, como existente neste período de pré-assentamento, mas
que com a divisão das parcelas houve uma individualização destes sujeitos.
A diferença de acampamento pra assentamento é a seguinte: no acampamento se,
vamos supor, der uma briga aqui, junta todo mundo aqui e separa aquela briga; não
tem. sabe, se tem uma pessoa passando dificuldade, junta todo mundo, pega um
pouquinho dali, um pouquinho daqui e a pessoa não tem dificuldade, se falta um
remédio o povo ajuda, é um povo unido, quando plantava, todo mundo é unido e aqui
depois que entra pra cá [parcelas], não tem união mais, aí o povo acha que ficou
rico, só que esquece o seguinte, que quando nóis entra pra terra, as nossas
dificuldades agora que começou, porque ‘nóis’ sofre preconceito de tudo quanto é
jeito, é fazendeiro que não quer que seja assentamento, porque não gosta de sem-
terra, uma coisa que nóis é bicho, não é gente igual eles mesmos né [sic]
(ASSENTADA B).

A perca da união sempre é citada com tristeza, para estes sujeitos ela possui um intenso
significado, que, penso eu, ultrapassa o auxílio no trabalho, e que irei melhor abordar
posteriormente. A assentada A disse-me que, de maneira geral, em Goiás, há uma certa desunião
nos assentamentos, sendo que o MST já teria tentado realizar pesquisas para encontrar a(s)
justificativa(s), mas sem resultado.
Quando divide-se as parcelas, inicia-se outra etapa do processo: os primeiros trabalhos
na mesma. Neste período os assentados concentram-se em realizar os preparativos do solo, da
construção da casa, construção das cercas e demais atividades. Ainda em ranchos de palha ou
de lona, estes assentados encontram-se felizes por já estarem habitando sua terra.
No processo de finalização da aquisição da terra, incluem a construção da casa e
também a instalação de energia elétrica. Alguns assentamentos da cidade de Porangatu, segundo
relatou-me alguns assentados, até hoje não possuem energia elétrica, ultrapassando dez anos de
espera.
Tem assentamento mais velho que nós aqui e não tem moradia, aqui gastou muito,
mas dentro de um ano ‘nóis’ tava dentro da parcela e com dois anos ‘nóis’ tava com
casa, moradia e energia e tem assentamento que até hoje tá debaixo da barraca e sem
energia; a gente só consegue as coisas com dinheiro na frente [sic] (ASSENTADO
E).

Neste caminho, as dificuldades quase sempre são superadas pelo desejo de retorno a
terra. Segundo dados da FUNDATER (2015), no assentamento Salvador Allende 63% dos
moradores sempre trabalharam no campo, 33% trabalharam parte do tempo na cidade e apenas
4% nunca trabalharam no campo. Entretanto, gostaria aqui de tecer considerações sobre tais
dados, em especial questionando-os.
Todos os assentados, por mim entrevistados, relataram ter vivido uma parte de suas
vidas na cidade. Nascido e vivido até a adolescência na zona rural com seus pais, o motivo de
migração para a cidade varia, em especial, com o gênero; isto porque, os homens, salvo
exceções, migravam em busca de emprego ou por casamento; já as mulheres, também salvo
exceções, migravam em busca de realizar ou finalizar os estudos e também em busca de
emprego. Entretanto, era mais comum as mulheres irem para a cidade em busca de estudos e
consequentemente trabalhavam para manter condições que possibilitassem-lhes estudar, e os
homens, em grande parte, casavam-se, geralmente migrando para outra fazenda e trabalhando
como peão, no qual depois de um tempo migravam para a cidade para tentar melhorar a
condição financeira.
Mas se, todos os assentados tiveram, mesmo que rápida, experiência de morar e
trabalhar na cidade2, como pode 63% dos entrevistados pela FUNDATER responderem que
sempre trabalharam no campo. Fui entender este conflito de dados durante o convívio com os
mesmos, em especial para a diferenciação que o trabalho realizado na cidade e o trabalho
realizado na terra possuem. Em certa ocasião, ao dizer-me que seu marido havia ido trabalhar
na cidade, a assentada A apresentava um triste semblante e voz que salientava tal aspecto,
significando que dizer-me isto seria como atestar uma falha, ela complementou: “é triste quando
não é possível viver só de sua terra”. Pude entender que, para estes assentados, há uma diferença
entre o trabalho realizado na terra e o trabalho da cidade, mesmo que o trabalho realizado na
cidade resulte em uma maior quantidade de dinheiro, é preferível trabalhar na terra; em outro
caso, é preferível trabalhar em outras atividades no setor rural, como em conserto de cercas,
tiragem do leite, limpa de pastos ou quintais, e etc. do que trabalhar na cidade. Havendo, deste
modo, uma distinta atribuição de valores, estes que não estão diretamente associados com
gastos, como o transporte por exemplo, uma vez que o assentado G relatou-me que já andou
muito distante para consertar cercas, em uma distância maior do assentamento até a cidade, mas
este valor de trabalho está associado com a continuidade de uma práxis campesinas, em
especial, com seu modus operandi.
Desta forma, estes 63% que responderam sempre terem trabalhado no campo, o
disseram pelo não reconhecimento do tempo vivido na cidade enquanto uma práxis de fato,
uma vez que, o trabalho realizado na cidade, tinha como principal função o acumulo de recursos
para assim conseguir retornar para o campo. Neste sentido, a história dos assentados, retrata a
weltanschauung de camponeses que, nascidos e vividos até meados de sua adolescência “na
roça”, passam a conviver com o modus operandi da cidade, entretanto, este encontro provoca
nestes sujeitos um forte sentimento de não pertencimento ou de exclusão, resultando assim em
um desejo de retorno para a “roça”, que é então, em grande parte, a justificativa destes sujeitos
para procurarem os movimentos sociais e ingressarem, por fim, na luta da reforma agrária.

A campesinidade do Norte goiano como produtora de práxis específicas

2
Também havia casos de sujeitos que moravam na cidade, mas trabalhavam no campo.
O Norte goiano representa um dos mais recentes movimentos políticos e sociais da
campesinidade brasileira, há ainda assentamentos sendo implantados na região, além de outros
movimentos sociais que encontram-se em exercício. Mas antes de adentrar nesta reflexão sobre
esta região e como ela produz práxis específicas, irei agora conceituar e refletir sobre o
campesinato.
Primeiramente, preciso aqui salientar que entendo-o enquanto ordem moral, seguindo
a perspectiva de Woortmann (1990), dito isto, é preciso explicar do que trata-se este conceito.
Sendo uma ordem moral, o campesinato é, portanto, um conjunto de valores, podendo ser
individuais ou coletivos (compartilhados); sendo estes, norteadores das relações sociais, como
também da conduta destes sujeitos. Assim, reflito-a enquanto um aspecto cultural hierarquizado
e, por este fim, dotado de caráter valorativo.
Isto implica que, enquanto ordem moral, é preciso procurar pratica-lo, sendo nem
sempre possível, ou pelo menos não em sua totalidade, desta maneira, problematizo-a no
sentido de virtude. Aristóteles ao dissertar sobre a virtude disse que:
As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as - por
exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas
tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos,
moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa
asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam
os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os
legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é
sob este aspecto que a boa constituição difere da má (ARISTÓTELES, 1985:35-36).

Silveira (2000:4), realizando uma análise da perspectiva de Aristóteles diz que “o


objetivo de nossa vida é alcançar a felicidade. Para alcançarmos a felicidade, precisamos viver
racionalmente, e viver racionalmente significa viver segundo a virtude”. É neste sentido o qual
pretendo justificar o uso de virtude para compreender a campesinidade, e acredito que alguns
fatos permitem problematizar tal justificativa.
Primeiramente, é preciso delimitar o conceito de campesinidade, o qual além da
perspectiva de ordem moral, também possui outros entendimentos, mas, para além disto, é
preciso realizar uma delimitação geográfica, pois, se na campesinidade a relação homem-
natureza encontra-se em vias de fato, sendo o homem dependente da natureza para realizar-se,
fica evidente que práxis especializadas para a natureza circundante é a primeira das táticas
(CERTEAU, 2014:94-95) camponesas. Assim, destaco o Cerrado enquanto um local
sintetizador de práxis específicas, uma vez que existam problemáticas inerentes para tal região;
neste caminho Pelá e Mendonça tratam tal perspectiva, conceituando-os de Povos Cerradeiros,
eles definem como
sujeitos sociais trabalhadores/produtores que historicamente viveram nas áreas de
Cerrado e constituíram formas de uso da terra a partir das diferenciações naturais-
sociais experienciando formas materiais e imateriais de trabalho, que denotam
relações sociais de produção muito próprias e em acordo com as condições
ambientais, resultando em múltiplas práticas socioculturais. (2010:54)

Realizada esta primeira delimitação, é preciso agora realizar o último recorte, isto
porque os Povos Cerradeiros também possuem diferentes artes de fazer (CERTEAU, 2014). É
entendendo isto que compreendo os moradores do assentamento Salvador Allende enquanto
Povos Cerradeiros específicos, os quais praticam ou procuram praticar sua campesinidade nas
condições as quais possuem. Há dois tipos de moradores no assentamento: aqueles que foram
assentados e que, portanto, estão desde o início do processo de aquisição da terra; e há aqueles
que adquiriam/compraram a terra posterior ao processo de assentamento.
Há diferenças e similaridades entre os dois grupos, sendo os primeiros Povos
Cerradeiros, campesinos e que tiveram, na experiência do processo de ingressão no movimento
social e na luta pelo acesso a terra , uma construção própria de teias de significações (GEERTZ,
2017:4) singulares; já o segundo grupo, também são Povos Cerradeiros, nem sempre
campesinos, mas com a ausência da experiência do processo de ingressão no movimento social
e na luta pelo acesso a terra, uma vez que realizaram a compra/aquisição da mesma,
transpassado todo processo, desta forma, não compartilham de algumas teias de significações,
possuindo uma relação mais econômica com a terra, salvo exceções.
Dado esta delimitação, irei abordar, preferencialmente, o primeiro grupo, uma vez que
pude observar, nestes, tal campesinato, em especial este caráter de virtude. Para isto, pude
perceber que a melhor maneira de observar uma ordem moral é quando esta é questionada ou
impossibilitada, assim, a moral de um sujeito torna-se extrínseca em dadas situações. Por isto,
o Norte de Goiás possibilita uma boa análise do campesinato destes sujeitos. Preconceitos,
limitações políticas, limitações sociais, limitações naturais fazem ou fizeram parte da história
de vida destes assentados, assim, como muitos disseram-me, houve muitas desistências. Ao
perguntar sobre as dificuldades do assentamento uma das entrevistadas disse-me que:
Foi isso que aconteceu com aqueles que vendeu, eles vendeu porque não teve força
suficiente pra encarar a dificuldade, porque não viu com bons olhos a terra que tem.
Eu não consigo mais plantar pra vender, planto pra subsistência, alugo o gado, e
compro uma roupa, melhor viver aqui na roça com o mínimo do que viver na cidade,
porque ali talvez não consiga emprego e moradia, e o dinheiro que vendo aqui, talvez
não consigo comprar uma casa lá. Aqui no campo você tem uma vida melhor, respira
um ar melhor, uma água de qualidade, tudo isso soma, to longe da cidade. As vezes
minhas irmãs falam para minha filha: “porque você não vem pra cidade, está perdendo
tempo aí”. Não está perdendo tempo sabe, isso aqui é dela, se não quiser estudar mais,
não estuda, mas eu quero que ela estuda, aqui ela não está perdendo, essa é a casa
dela, a herança dela, pra eu passar pros meus filhos e netos. Também não acho, que
quem está na cidade está perdendo (ASSENTADA A).

É um consenso entre todos os entrevistados que, dentre todos os que venderam as


terras, em todos os casos a pessoa está em uma situação pior, mesmo que, como foi em um dos
exemplos, o sujeito estaria morando em uma boa casa, com um bom serviço, ainda assim este
foi considerado como uma situação pior, uma vez que a casa é alugada e ele precisa realizar
serviços “para os outros”, ou seja, ele não é dono de sua mão de obra.
Dentre as dificuldades, a principal delas está nas limitações políticas que perpassam
estes sujeitos. Para melhor exemplificar isto, irei transcrever um relato:
No governo do Eronildo [ex-prefeito], a secretária da agricultura saiu do cargo
porque ficou maltratando os assentados, e de tanto o prefeito receber reclamação ela
saiu. Ela nunca veio aqui, e quando vinha, ao conversarmos com ela, ela fazia crítica
da gente, e ela só ganha dinheiro pra gente, fazer projeto pros movimentos, ela falou
uma vez: que o prefeito não tinha que ajudar sem-terra não, sem-terra tinha que se
virar sozinho. Ih! falava muita coisa, recebia a gente só como sem-terra, ela foi muito
grossa, agora ela vem como amiga, porque quer fazer o projeto do PRONAF com a
gente (ASSENTADA A).

Os assentados relatam incoerências das prefeituras, isto utilizando-se de dois casos


específicos e importantes: a compra de produtos para a merenda escolar e no uso de
maquinários. Para o primeiro caso, foram vários anos sem a prefeitura comprar produtos para
a merenda escolar, sendo que 30% é reservado por lei, foi descumprida anteriormente, em
verdade, as prefeituras compravam exclusivamente dos sacolões da cidade3. Para o segundo
caso, o INCRA, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), destina para
as cidades que possuem assentamentos maquinários que, por lei, deveriam priorizar o
atendimento destes assentados, entretanto, na prática o que se vê é o atendimento priorizado
dos fazendeiros da região, sendo completamente negado o uso pelos assentados.
Isto inviabiliza a prática da agricultura familiar destas famílias, uma vez que, sem uma
saída comercial não é possível realizar o plantio, além disso alguns assentados alegam não haver

3
Durante o mês de junho de 2018, pela primeira vez, a prefeitura lançou um edital para compra de
alguns produtos. Mesmo que alguns estavam com valor abaixo do oferecido no mercado, isto representou um
grande avanço para os assentados.
espaço na feira municipal para os mesmos. Por fim, o preconceito de alguns secretários torna-
se tão evidentes, e até mesmo agressivos que, como relatado, tornou-se justificativa de
expulsão.
Este preconceito, que não se localiza somente no âmbito político é muito
frequentemente relatado pelas assentadas, sendo que os homens assentados não me relataram
ter sofrido. Dentre os relatos, irei destacar este:
Na Mara Móveis, uma vez fui lá pra comprar, nem me lembro bem, eles falaram que
não tinha interesse de mexer com sem-terra, eu falei: eu num sou sem-terra, eu tenho
a terra. “Não, ‘nóis’ não tem o interesse de vender”. Não abriram [crediário] porque
o endereço é a zona rural e eles só abrem pra cidade, porque não tinha interesse de
mexer com sem-terra. Já sofri preconceito em posto de saúde, em lojas; você vai
comprar, eles tratam a gente mal [sic] (ASSENTADA B).

Em outra conversa, a assentada A relata-me que para conseguir burlar isto ela, na hora
de realizar o crediário, declara-se como produtora rural. Este preconceito para com a situação
de assentado, mais especificamente de “sem-terra”, como são denominados no momento do
preconceito, produz nestes sujeitos reações diversas, desde o fortalecimento, os quais produzem
golpes (CERTEAU, 2014:71-74) que tem por finalidade burlar tais situações; como também
problemas sociais, como no caso do filho da assentada B que afastou-se por 3 anos da escola
devido os preconceitos sofridos por ser filho de assentado.
Se as limitações políticas e sociais parecem realizam grande barreira nas artes de fazer
destes sujeitos, por fim as limitações naturais realizam também grande impacto. Como apontado
no inicio deste texto, o assentamento Salvador Allende, assim como os demais da região Norte
do estado, localiza-se em terras pouco produtivas, tanto para pecuária quanto para a agricultura.
Para tentar superar isto, há mecanismos de correção do solo, entretanto, este envolve custos,
sendo que, com poucas exceções, os assentados não possuem condições financeiras de fazê-lo.
Entretanto, a pior das situações refere-se quanto a disponibilidade e o uso da água, localizado
em uma região extremamente seca4, com longos períodos de ausência de chuva. Em geral, para
tentar garantir o uso de água durante todo o ano os assentados possuem três alternativas:
formação de uma represa, poços e cisternas. Dentre as opções, somente as duas primeiras
fornecem água durante todo o ano, com exceção de duas represas que secam, já as cisternas,

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Deixo aqui uma reportagem realizada no assentamento que retrata tal situação:
http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2014/09/falta-de-chuva-no-norte-de-goias-preocupa-
criadores-de-gado.html
algumas falham. Nestes casos, é necessário buscar água em outro local, como é a realidade da
assentada H, a qual busca água com um carrinho de mão para suas criações e uso doméstico.
Quando perguntada sobre a dificuldade de produzir, uma entrevistada disse-me que:
É difícil devido não ter renda, porque nossa terra precisa de calcariar, pra produzir,
porque o básico a gente produz, não é aquela produção que seria o ideal, então teria
que calcaria a terra, tem que fazer curva de nível, pra melhorar o solo, por enquanto
‘nóis’ não deu conta, mais ‘tamo’ lutando pra dar conta, sou meia teimosa nisso, não
sou de desistir não [sic] (ASSENTADA B).

Assim, nestes casos citados, encontramos dificuldades naturais, políticas e sociais, que
por sua vez resultam em dificuldades econômicas, e neste cenário, a pergunta principal é: se
não há uma clara geração de grandes excedentes, porque estes sujeitos permanecem ali? A
primeira resposta que pode vir a mente seria a falta de opção, entretanto, para a grande maioria
do assentamento esta não é a situação e resposta, dado que alguns possuem casa na cidade de
Porangatu ou até mesmo em Goiânia, local do acampamento de origem dos assentados, assim,
não sendo a falta de opção, proponho refletir sobre a campesinidade, em especial para o fato de
como esta produz um caráter valorativo.
Como fonte de apoio destes sujeitos, a memória é o principal instrumento
estabilizador, uma vez que constantemente passado e presente cruzam-se salientando e exibindo
a essência e base da campesinidade destes sujeitos. É na fartura de comida e de amizades, de
seus tempos de criança e de adolescência, para alguns até também do inicio da vida adulta, que
encontramos importantes aspectos para refletir nesta resistência vivenciada.
Antigamente eu me lembro assim, até certo tempo eu me lembro, a gente morava na
fazenda, a gente tinha bastante coisa, quer dizer, a gente não comprava um óleo, uma
mistura era raramente, uma carne, comprava mais era o açúcar, esses ‘trem’ que não
produzia. Então naquela época, o custo de vida podia ser mais caro, mais era mais
fácil pra quem morava na zona rural, porque eu me lembro que a gente morava em
fazenda dos outros, nem era nossa, mais a gente sempre tinha, meu pai fazia as ‘tuia’,
você já ouviu falar em ‘tuia’? As ‘tuia’ sempre tava cheia de feijão, era saco e saco
de feijão e arroz, sempre tinha muito, hoje é raro você ver uma casa que tem, você
chega e tem saco de feijão, de arroz pra passar o ano, milho na palha, hoje é raro
você ver isso, hoje o povo já colhe lá na colhedeira e já sai tudo pra venda né, então
assim, antigamente a gente via isso muito. Eu fui criada assim, meu pai quando
matava um porco, sempre tinha aquele porco de carne e aquele de banha, então a
gente nunca ficava sem, e tinha mandioca, galinha, gado, né, sempre não tava
comprando esses ‘trem’. Arroz e feijão, meu pai tinha vez que abria assim pra colocar
mais saco, hoje você não vê mais isso, é raro chegar numa casa que tem, pra mim
aquela época era muito mais fácil, apesar de o povo falar que era mais difícil, até pra
criar um filho era mais fácil, num tinha o tanto de coisa que tem hoje, ai fala assim:
“hoje evoluiu, tem muita coisa boa”, mas tem muita coisa ruim, muito mais, no meu
ponto de ver. No tempo que trabalhava o dia inteiro pra trocar o dia num litro de
banha, mas também naquele tempo ‘cê’ tinha ‘vizim’, hoje você não pode falar que
tem vizinho, ele fica te vigiando pra você sair e ele [fez um gesto com a mão indicando
roubar]. Acontece muito isso, naquela época eu lembro as porta nem tinha chave, era
tramela, passava a faca e fechava, saia e chegava os trem tava tudo ‘quietim’, não
tinha esse tanto de roubo, não. Vou limpar o pasto, juntava aquele tanto de homem e
limpava o pasto, faz isso hoje pra ver se funciona, não funciona gente, então pra mim
naquela época era mais fácil, hoje tá mais difícil, hoje você não pode confiar, sai pra
ir ali e fica imaginando que só vai acontecer coisa ruim, pra você plantar hoje tem
muito mais praga, a terra tá mais fraca, num é que tá ruim, tá mais fraca, o povo
derrubou muito, os bicho muitas vezes ataca, que nem papagaio que ataca as
plantação, num é. Tem que comer ué, o povo tá derrubando tudo, tem que comer ué,
hoje tá mais difícil [sic] (ASSENTADA B).

Este passado é, para estes sujeitos, o produtor de sua ordem moral, que em
contraposição ao modus operandi realizado no meio urbano, produz práxis específicas e
próprias. Deste modo, estas práxis produzidas por tal ordem moral têm por função possibilitar
a prática da mesma, assim como um sujeito que pretende ter a honestidade enquanto moral,
precisa produzir práticas que possibilitem ele ser honesto. Desta maneira, “os homens se tornam
construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos
justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo
corajosamente” (ARISTÓTELES, 1985:35). Não obstante, os homens tornam-se campesinos
praticando a campesinidade. Isto posto, permanecer na terra, para além de outras implicações é
o resultado da não praticabilidade do campesinato na cidade, ou melhor, das poucas
possibilidades de praticá-la ali, por isto, mesmo não possuindo as condições ideais, ainda é
preferível resistir na terra e ali, dentro das possibilidades, praticá-la.
Tal esforço, vai de encontro com o fato de que “o objetivo de nossa vida é alcançar a
felicidade. Para alcançarmos a felicidade, precisamos viver racionalmente, e viver
racionalmente significa viver segundo a virtude” (SILVEIRA, 2000:4); ou seja, ser feliz para
estes sujeitos é praticar, ou na pior das hipóteses tentar praticar, o campesinato. Se hoje
consideram-se em uma situação não tão agradável, isto justifica-se pela medida de comparação
adotada, em primeiro ponto comparando com a fartura de comida e de amizades dos tempos
anteriores, estes veem-se em piores situações; mas com relação a aquisição de eletrodomésticos
e outros produtos, além da própria posse da terra, estes estão em melhores situações se
comparado com seus pais, mas, ainda assim, o estado de fartura de comida e de amizades5,
representa grande importância como objetivo de reconquista, ou seja, esta fartura ainda é um
grande objetivo perseguido para atingir tal virtude, desta forma, a fartura está diretamente, e de
modo importante, ligado com perspectiva de felicidade destes assentados.

5 Retratado também por Brandão (1981) ao analisar o êxodo rural de Mossâmedes


A situação retratada anteriormente, onde o marido precisa ir para a cidade trabalhar,
para aquela assentada, uma vez que, tendo como afirma Aristóteles (1985:36) “os legisladores
formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores;
os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo”, desta forma, assim como
um construtor sente-se deslocado caso precise deixar de construir para tocar cítara, o campesino
sente-se deslocado caso precise realizar outro trabalho que não pratique diretamente suas artes
de fazer, sua campesinidade.

Considerações finais

Neste caminho percorrido, procurei salientar de que maneira o campesinato, presente


nos assentados, constitui-se enquanto caráter valorativo, em especial, como uma virtude, no
sentido aristotélico apresentado. Por fim, quero destacar que, dada as dificuldades para praticar
sua campesinidade, por vezes, o sujeito vê-se na situação onde ele precisa negociar
determinados valores ou práticas próprias para conseguir praticar sua ordem moral. Neste
sentido, atalhos, curvas, golpes são (re)produzidos para possibilitarem a continuidade de sua
ordem moral.
Portanto, no Norte de Goiás, ao conviver com os assentados, pude observar que, tendo
por base sua “ordem moral ideal”, na qual tem nas práxis do passado, revividas pela memória,
seu ponto de comparação, é possível observar desvios e curvas, nas quais provaram ser táticas
adotadas por estes sujeitos para manterem a finalidade maior de suas práxis, mesmo que para
isto fosse necessário alterar seu meio, seu trajeto, seus modos de fazer.
Assim, mesmo que o arroz, feijão e a carne – a base da alimentação destes sujeitos-,
não seja mais produzido pelos menos, sendo agora comprados, representando uma grande
mudança se comparado com sua “ordem moral ideal”, ou seja, suas memórias, ainda assim, tal
curva não representa uma mudança da finalidade, é mister salientar o esforço destes sujeitos de
retornarem, ou tentar retornar, a tal estado ideal. Dito isto, problematizo a resistência destes
sujeitos como o esforço prolongado dos mesmos de modo que a procurar praticar sua ordem
moral, neste trajeto, por vezes faz-se necessário ressignificar aspectos fundantes da mesma, mas
que não resulta em uma mudança brusca no fim em si: ser um campesino.

Referências
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2016.

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim


Ferreira Alves. 22° edição. Petrópolis, RJ : Editora Vozes, 2014.

FUNDATER. Fundação de Desenvolvimento, Assistência Técnica e Extensão Rural de Goiás.


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SAMPAIO, Jacinta de Fátima Rolim. A Formação da Estrutura Agrária Capitalista em


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_____________________________. A história da resistência dos posseiros de


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Moral. Anuário Antropológico 87. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1990, pp. 11-73.

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