A VERDADE

SOBRE A MENTIRA
em artigos, contos, crônicas e poemas

de marcelo ferrari

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 1

A VERDADE SOBRE A MENTIRA
(INTRO)
Você sempre fala, e como fala, que
está interessado em encontrar a
verdade, custe o que custar. Diz que
busca a verdade dia e noite. Que quer
descobrir a verdadeira verdade. Diz
que não agüenta mais tanta filosofia de
botequim, doutrina de shopping center,
mestre sala, guru, blá-blá-blá, pipipi e
pópópó. Bem, isto é o que você diz,
agora, eu lhe pergunto: se você quer
saber a verdade, será que está
preparado para admitir a mentira
também? Sem folhas de parreira? Ou
será que está apenas buscando uma
nova mentira? Uma mentira mais
erudita? Mais cibernética? Mais
poética? Mais perfumada? Mais
apaixonante?
A verdade sobre a mentira é muito
simples: tudo que você conhece é
mentira. Eis a verdade! Verdade é
ciência da mentira. Tremendo
paradoxo, não é mesmo? Mas creio
que isto explica porque você roda-
roda, busca-busca, mas nunca que
encontra a verdadeira verdade. Você
busca uma verdade separada da
mentira, mas a verdade e a mentira
são como o oceano e a onda,
inseparáveis.
A verdade sobre a mentira não é uma
nova verdade. Muito pelo contrário! É
olhar para a mesma mentira de sempre
e reconhecer a mesma verdade de
sempre: tudo que você conhece é
mentira. Ou seja, você já sabe a
verdade, falta apenas saber que sabe.
Eis o truque. Se você está em frente
um espelho acreditando que você é
sua imagem, e, de repente, você se dá
conta que não é a imagem, o que
muda de fato? Nada muda. Você
apenas se dá conta que está olhando
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
para sua imagem. Saber a verdade é
simples assim: ver a mentira.
Vou ilustrar com outro exemplo. Certa
vez, negociando com um amigo, notei
que ele estava puxando a sardinha
para o lado dele. Fiz um semblante de
Francisco de Assis e o chamei de
egoísta. Ele me respondeu de supetão:
"Sou egoísta sim, porque, você não
é?". Ele quebrou minhas pernas e meu
nariz de Pinóquio. Fui obrigado a ver a
mentira evidente: meu Francisco de
Assis era um hipócrita.
Mas por que tanta confusão teórica
sobre algo tão simples? Ora,
justamente porque é simples. A função
do pensamento é iludir você, não é
despertá-lo. Sendo assim, se você
quer realmente saber a verdade,
sugiro que pare imediatamente de
buscar a verdade e passe a observar a
mentira. Por exemplo, até quando você
vai fingir que não é invejoso? Até
quando vai fingir que não sente raiva?
Até quando vai fingir que não cobiça a
mulher do próximo e do distante? Até
quando vai fingir que é feliz?
Para concluir esta introdução, quero
dizer que há um caminho filosófico
endeusado pelo racionalismo e trilhado
por seguidores fiéis, mas que não leva,
nunca levou e nunca levará você a
verdade: é o caminho teórico. Por que
digo isto? Primeiro porque já o trilhei.
Depois, porque buscar a verdade de
forma teórica é o mesmo que um cego
decorar a definição de visão e achar
que sabe o que é ver. Não é
raciocinando teorias sobre a verdade
que você sabe a verdade. A verdade
não é uma teoria, uma ideologia, uma
crença, um conhecimento cientifico,
nem espiritual, a verdade é o que você
sabe quando está olhando para a
mentira. Então, ainda que este livro
tenha sido escrito para ajudá-lo saber
a verdade, não espere encontrar a
verdade aqui, pois este livro não pode
ver a mentira, só quem pode ver a
mentira é você.
a parede e a verdade
Quer fazer a diferença?
Construa uma parede.
Quer mudar o mundo?
Pinte sua parede de amarelo manga.
Quer ensinar o tom certo?
Escreva a teoria do amarelo manga
na parede.
Quer que todos leiam?
Coloque a parede no meio da rua.
Quer transformar sua teoria
em religião?
Fale mal da parede dos outros.
Quer ser considerado messias?
Diga que construiu a parede do nada.
Quer que todos acreditem nisto?
Esconda os tijolos com massa corrida.
Quer criar uma franquia?
Escreva o livro da construção
da parede.
Quer ter muitos franqueados?
Diga que é pecado construir paredes
diferentes.
Quer que os franqueados acreditem?
Diga que do outro lado da parede
é o inferno.
Quer se sentir poderoso?
Sente-se no topo da parede.
Quer fingir que é humildade?
Olhe para baixo.
Quer saber a verdade?
Observe sua parede.
página 2
focinho de porco
Até explicar porque focinho de porco
não é tomada, melhor é ignorar a
questão, aconselha o ditado.
Contrariando a sabedoria popular, o
que vou fazer a seguir é justamente
explicar porque focinho de porco não é
tomada. Ou melhor, porque você não é
o que pensa que é. A questão é sutil,
contudo, é a mais simples, pois nada é
mais próximo de você do que você.
A neurolingüística tem uma frase que
irá nos ajudar neste trabalho: o mapa
não é o território. Esta frase
emblemática quer dizer que assim
como um mapa desses rodoviários é
uma construção cartográfica do
território (realidade), assim também é
nosso conhecimento da realidade, um
mundo pensado, ou seja, um mundo
feito de mentira.
Não é difícil perceber isto, mas
também não é comum. Muitas pessoas
nascem, vivem e morrem sem se dar
conta disto. Você, por exemplo, pode
ainda estar cultivando a ilusão de que
os sentidos lhe oferecem um
conhecimento direto da realidade. Não
é assim.
Da mesma forma como você não tem
acesso direto aos impulsos da internet,
mas vê a internet através de uma
imagem na tela, você também não está
tendo acesso direto a realidade, mas
está vendo a realidade através de uma
imagem dentro da sua cabeça.
Para se dar conta disto, basta você
notar que este mundo físico que você
está vendo dentro da sua cabeça não
está fisicamente dentro da sua cabeça.
O mundo que está dentro da sua
cabeça é um mundo pensado, um
mundo feito de mentira.
Sua cabeça está sempre construindo
um mundo de mentira para você. É
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
como se a sua cabeça fosse uma
câmera de vídeo 24 horas. Mas é ai
que está o truque.
Uma câmera de vídeo fica em contato
direto com a realidade e capta a
realidade, porém, quanto mais capta a
realidade mais a codifica em imagem
de vídeo (mentira de vídeo).
Analogamente, sua cabeça faz a
mesma coisa. Ela está em contato
direto com a realidade, porém, quanto
mais capta a realidade, mais a codifica
em pensamento (mentira).
Chegamos então ao momento onde a
porca torce o rabo. Se o mundo físico
que você está vendo, está dentro da
sua cabeça, e se sua cabeça faz parte
deste mundo físico, então, sua cabeça
está dentro da sua cabeça!
Percebe que você tem duas cabeças
ao mesmo tempo? Uma cabeça de
mentira e outra cabeça que está vendo
a cabeça de mentira. A cabeça de
mentira tem cor, cheiro, sabor,
dimensão, etc. Agora, cadê a cabeça
de verdade? O que é?
É você!
pergunta boba
o que é o que é?
eu pergunto ao barão
ele me diz o que pensa
me diz o que Aristóteles pensou
me diz tudo que já foi pensado
repensado, trepensado
mas não diz o que é o que é
não estou provocando o barão
nem jogando xadrez
estou apenas grávido da pergunta
e da convicção de que
não é preciso ir na escola
para saber a resposta
se fosse, as crianças não saberiam
os analfabetos não saberiam
e eu, que sou criança, bobo
e analfabeto, não apenas sei
como sou impossibilitado
de deixar de saber
nivelar a inteligência do barão
ao nível dos analfabetos
das crianças e dos bobos
é uma grande bobeira
suponho, não sei...
mas o barão tem certeza que sou bobo
que minha pergunta é febril
e que, uma resposta erudita
se não sair de seu próprio cachimbo
ou for decretada pelo rei
então, será bobeira
o barão tenta mais uma vez
fala em Goldiluck
explica a existência de três mundos
abre-os e fecha-os
como a caixa de pandora
lindos, lindos, lindos...
mas sempre o que é
dentro do que é
dentro do que é
dentro do que é
e nenhuma resposta
para o que é
o que é
página 3
fotografia metafórica da
ignorância científica
Era uma vez um cientista que não
acreditava na existência de deus e de
câmeras fotográficas. Ele dizia que
faltavam evidencias e que,
pessoalmente, nunca havia visto deus
nem uma câmera fotográfica. Foi então
que, outro cientista, amigo seu,
marcou para ele um encontro com uma
câmera fotográfica no laboratório em
que trabalhava. A câmera fotográfica
chegou primeiro e ficou aguardando. O
tempo foi passando, mas o cientista
não aparecia. Como já era tarde e a
câmera precisava ir embora, ela teve a
idéia de bater uma fotografia do
laboratório e deixar sobre o balcão
como prova de sua presença no
encontro. Junto com a foto a câmera
deixou um bilhete: “Olá Cientista,
estive aqui para o nosso encontro, mas
você não apareceu. Esta foto do
laboratório é uma prova da minha
presença”. No dia seguinte, o amigo do
cientista lhe perguntou sobre o
encontro. O cientista respondeu: “Meu
carro quebrou no caminho. Quando
cheguei no laboratório a suposta
câmera fotográfica já havia ido embora
e só encontrei esta foto do laboratório”.
O amigo indagou se agora, com a foto
de prova, ele acreditava em câmeras
fotográficas. O cientista respondeu:
“Claro que não! Examinei cada detalhe
da imagem e não encontrei a presença
da câmera em lugar nenhum!”.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
simples assim sei que sei (1)
o verde que você vê Quer saber como é a história de todos
não é o verde aqueles seres que chegaram a
o verde que você vê iluminação? Todas começam assim.
é o verde que você vê Era uma vez um ser que buscava
encontrar a verdade. O que vem
o vento que você ouve depois são mil e uma noites de
não é o vento cachorro correndo atrás do próprio
o vento que você ouve rabo, até que um dia... Mas se tudo
é o vento que você ouve que encontro é mentira, logo... Ops!
The end. E viveram felizes para
a vida que você vive sempre. Moral da história: iluminação
não é a vida não é saber tudo, mas saber que tudo
a vida que você vive é mentira. Inclusive o que você
é a vida que você vive conhece sobre você.
a verdade que você sabe Observe! Sem você, o mundo sabido
não é a verdade não existe. Por exemplo, você sabe
a verdade que você sabe está sentado numa cadeira, não sabe?
é a verdade que você sabe. Tire você, cadê a cadeira? Você sabe
que está sentindo calor? Tire você,
cadê a temperatura? Você sabe que
está com raiva? Tire você, cadê a
raiva? Você sabe que seu corpo é um
amontoado de carne e osso, tire você,
cadê seu corpo? Sem você nada existe
para você, percebe? Mas você não é o
que pensa que é. Você está mais perto
do que perto. Você é o observador da
mentira. Por isto não há outra maneira
de você saber a verdade sobre você
senão através da mentira.
sei que sei (2)
O filosofo Sócrates tem uma frase
famosa em que afirma: tudo que sei é
que nada sei. Esta frase aponta para a
verdade sobre a mentira. O filosofo
Sócrates, perguntador por natureza,
sempre se colocava na premissa de
não ter certeza durante os debates.
Porém, note que ao afirmar que sabe
que não sabe, Sócrates está
apontando para uma certeza. Ele esta
dizendo que tem certeza que “sabe
que não sabe”. Percebe que tem dois
saberes distintos ai? Dois olhares? Um
olhar que vê o mundo e um olhar que
vê o olhar que vê o mundo?
Surge, então, a pergunta: como pode o
não-saber ser saber (certeza)? Vamos
entender isto na prática. Vou lhe fazer
uma pergunta: você sabe o nome da
minha avó? Não sabe! Tem certeza
que você não sabe? Tem! Pois, então,
se tem certeza que não sabe o nome
da minha avó, é porque você sabe que
não sabe. Percebe?
Simples, não é? O truque é o seguinte,
o nome da minha avó não é saber, é
conhecimento (mentira). Você não se
dá conta disto, mas quando você diz
que conhece alguma coisa, é porque
você “sabe que conhece”. E quando
você diz que não conhece, é porque
você “sabe que não conhece”. Ou seja,
você pode não conhecer uma coisa,
mas é impossível não saber.
página 4
sei que sei (3)
Quando você não sabe? Me diga uma
vez, um instante sequer, em que você
não sabe? Não existe, não é mesmo?
O motivo é simples: é impossível não
saber. Saber é da natureza de todo
ser. Porém, você não é apenas um ser,
mas um serumano, e uma vez
serumano, você não apenas sabe, mas
sabe e conhece ao mesmo tempo,
logo, sabeconhece.
Por exemplo, você sabe que está
lendo um livro, não sabe? E o que é
que você está sabendo, e o que é que
você está conhecendo neste ato de
“sabeconhecer”? Vamos investigar.
Qual é o objeto do seu saber? É o
livro, não é? Então, o livro é o
conhecimento, é a mentira, é seu olhar
humano. Mas se o computador é olhar
humano, qual é o olhar do ser? É o
olhar que está olhando o seu olhar
humano: sei que sei.
Você não tem como não saber, deixar
de saber. Você pode pular de um
objeto para outro, de um conhecimento
para outro, do livro para a cadeira, da
cadeira para uma coceira no nariz, do
nariz para pensamentos sobre
espiritualidade, física quântica, mas
isto não significa que você está
deixando de saber. Pelo contrário,
significa que por mais que mude o
objeto do seu saber (conhecimento), o
saber é sempre permanente.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
sei que sei (4)
Talvez você já tenha escutado o
discurso de muitos mestres espirituais.
Talvez você já tenha comparado
religiões, filosofia, tirado suas próprias
conclusões, e assim, de posse de um
resumão, tipo aqueles dos
vestibulandos, você decorou a verdade
sobre você. Tudo bem! Deixe este
resumão ai onde está, na memória. No
dia em que as universidades tiverem
vestibular para iluminados ele pode ser
útil. Porém, se você quer realmente
saber a verdade sobre você, na
pratica, eu lhe proponho praticar outro
tipo de saber: sei que sei.
Ao invés do tradicional “sei”, pratique
“sei que sei”. Somente dando este
passo consciencial para trás, do “sei”
para o “sei que sei”, você pode por um
fim na sua infrutífera busca pela
verdade. Por exemplo, você sabe que
respira. Saiba que você sabe que
respira. Você sabe que jiló é amargo.
Saiba que você sabe que jiló é
amargo. Você sabe que você é um
bom filho. Saiba que você sabe que
você é um bom filho.
Vê como é simples? Saber que se
sabe é um saber dinâmico, vivo,
porém, sempre presente. Sabe por
quê? Porque você é o sabedor da
mentira. E só quando está sabendo a
mentira está sabendo a verdade.
sei que sei (5)
Praticar meditação é muito simples,
basta praticar “sei que sei”. Por
exemplo, se neste exato instante você
estiver sendo bombardeado por
pensamentos sobre o que está lendo,
mantenha-se sabendo que está sendo
bombardeado por pensamentos sobre
o que você está lendo.
Talvez surjam outros pensamentos
dizendo que você não está praticando
meditação, ou que está praticando
errado, ou que o cara que escreveu
este texto é que não sabe nada sobre
meditação, e assim sucessivamente.
Note que sensacional! Quando mais
um pensamento chega, mais o
pensamento vai embora.
O fluxo do pensamento é como um
trem passando pela estação. Quanto
mais vagões passam pela estação,
mais o trem vai embora. Você é a
estação onde o fluxo do pensamento
acontece. Sua vitória é certa. Um trem
de pensamentos, por mais longo que
for, tem fim, e nunca pode vencer a
eternidade do “sei que sei”.
sei que sei (6)
Iluminação não é saber tudo.
Iluminação é saber que tudo é mentira.
Então, da próxima vez que você estiver
rolando numa daquelas tempestades
sombrias de raciocínios e sofrimentos,
ao invés de enxergar um vilão
malvado, veja um despertador
amoroso e servil. Veja deus disfarçado
de diabo lhe dando a oportunidade de
acordar das complicações do “sei”
para a simplicidade do “sei que sei”.
Iluminação é simples assim. Tudo o
que é requerido é sua prontidão em se
manter no “sei que sei”. Iluminação
não é aquilo que você imagina que é,
nem aquilo que dizem que é. Qualquer
idéia de iluminação é o trem do
pensamento passando por você.
Apenas observe um vagão indo
embora para outro chegar, enquanto
você permanece em paz.
página 5
entre os dentes paradoxo do discurso do
mestre
a premissa é falsa
nenhum enlatado consegue respirar Me lembro do primeiro livro que li do
só os legumes existem Krishnamurti. Acho incrível. Porém,
a raiz do problema é um nabo mais incrível ainda é me lembrar do
primo da couve segundo livro. Como pode alguém ler
coca-cola não é arbusto Krishnamurti uma vez e querer ler de
arrotar é coisa para aspargos e novo? Eis ai a prova definitiva de que
cebolas carma é lei. Krishnamurti é um pé no
você teria que dizer vitamina saco, com chuteira. E não estou
mas seria um apelo irracional dizendo para você não ouvir o que
vital é a clorofila Krishnamurti tem a dizer. Ouça, se for
transcendemos através da alcachofra capaz. Mas saiba que quanto mais
podemos justificar o que existe ouvir, maior vai ser a sensação de que
com grãos de bico está indo do nada para lugar nenhum.
mas não podemos embalá-los a vácuo
se a mandioca postula uma nova Krishnamurti tem o dom da oratória.
metafísica Sabe discursar. É um pé no saco que
é porque também tem instintos fala pelos cotovelos. Assim, você,
olhe no espelho leitor, devorará páginas e mais
a resposta está entre os dentes páginas, livros e mais livros, discursos
feito um pedaço de alface e mais discursos de Krishnamurt,
que só você não vê. sempre na esperança de que, se este
homem sabe equacionar tão bem a
pergunta, logo, ele também sabe dar a
resposta. Santa ilusão!
Mas isto não significa que Krishnamurti
não saiba a resposta. Ele sabe. E,
assim como num filme de suspense, a
cada página, ele irá fazer com que a
óbvia resposta caminhe sempre ao seu
lado, que esteja sempre na sua cara.
Porém, tão na sua cara, mas tão na
sua cara, que será sempre invisível.
E você vai ficar furioso. Vai ter a
impressão de que ele está te fazendo
de bobo da corte. E ele está. Mas é por
uma causa nobre. Mais nobre do que
qualquer barão da corte possa
perceber. O que Krishnamurti quer que
você veja (por si só) é a coisa mais
boba que tem: O rei está nu! E pior
ainda: você é o rei!
Krishnamurti é um exemplo do
paradoxo do discurso do mestre que já
aconteceu comigo. E que paradoxo é
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
este? É o fato do discurso de um Fiquei indignado. Como assim? Não
mestre só fazer sentido para o aluno entendo? Entendo sim! Tô ligado! Tô
quando o aluno não precisa mais do sabendo! Eu manjo!… Nem lembro
discurso. Este é o paradoxo do mais quais eram as gírias que eles
discurso do mestre. No momento em usavam na época para expressar
que o aluno mais tenta entender o que sapiência, mas usei todas que vieram
um mestre está falando, menos ele a cabeça. O cara não discutiu comigo,
entende. Porém, quando a tempestade nem nada, apenas repetiu o mesmo
passa, quando o aluno já cumpriu a desacato com outras palavras: “Você
lição e não mais precisa das palavras ouve, sabe décor, mas não entende”.
do mestre, eis que a compreensão das Como? Entendo sim! Tô ligado! Tô
mesmas se tornam claras como água sabendo! Eu manjo!…
mineral.
Muitos anos depois, lá estava eu e
Foi isto que aconteceu comigo. Muito minha turma em estado de
tempo depois de ler Krishnamurti pela metamorfose ambulante, entrando de
primeira vez e enterrá-lo no cemitério ray-ban pela sala de aula. Da porta até
dos chatos-de-galocha, eis que um as cadeiras fomos homenageados com
livro dele apareceu na minha frente. o coro: “Quem não tem colírio usa
Com a auto-ajuda do destino, não óculos escuro…” Pooorra! Pensei.
havia nada menos insosso para ler no Quem não tem colírio usa óculos
banheiro. Nenhuma revista Caras, escuros! É isto! É óbvio! O tal dos
jornal velho, bula de remédio, nada, só óculos escuros não são substitutos
mesmo o livro do mala-sem-alça. improvisados para proteger os olhos
Comecei a ler. E para o meu próprio da claridade, mas da metamorfose
espanto, uma lógica incrível começou avermelhada! Eu não tava ligado! Não
a pular dos parágrafos. Era como se entendia! Não manjava!
eu estivesse assistindo o filme sexto
sentido pela segunda vez. Ou seja, o Era o paradoxo do discurso do mestre
óbvio não era mais invisível, era óbvio. se repetindo, como sempre.
Claro! Óbvio! Isto mesmo!
Mas esta não foi a primeira vez que o
paradoxo do discurso do mestre
aconteceu comigo, e creio que não
será a última. Quando era bem garoto,
minha irmã mais velha costumava
trazer uns amigos hippies para casa.
Eles usavam blusa de jeans, fumavam
cigarros e gostavam de ouvir Raul
Seixas. Eu ouvia Raul junto com eles,
e aquelas letras cantado em tom de
chacota me chamavam a atenção.
Então, certo dia, fui contar para um dos
iniciados que gostava das letras das
musicas. Sendo um CDF no assunto,
com a maior franqueza do universo, o
cara me disse: “Isto porque você não
entende nada do que o Raul está
dizendo!”.
página 6
anel de clarice
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice
desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice
desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente. Por fim,
Clarice se dá conta que o truque de
encontrar o que está procurando só
funciona de verdade quando ela
desiste de procurar de verdade, e, na
sua busca pela carteira de
documentos, ela não está desistido de
procurar, está apenas fingindo desistir
como forma de continuar procurando e
assim não funciona.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice
desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente. Por fim,
Clarice se dá conta que o truque de
encontrar o que está procurando só
funciona de verdade quando ela
desiste de procurar de verdade, e, na
sua busca pela carteira de
documentos, ela não está desistido de
procurar, está apenas fingindo desistir
como forma de continuar procurando e
assim não funciona. “Como faço para
desistir de procurar de verdade?”
Clarice se pergunta.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice
desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente. Por fim,
Clarice se dá conta que o truque de
encontrar o que está procurando só
funciona de verdade quando ela
desiste de procurar de verdade, e, na
sua busca pela carteira de
documentos, ela não está desistido de
procurar, está apenas fingindo desistir
como forma de continuar procurando e
assim não funciona. “Como faço para
desistir de procurar de verdade?”
Clarice se pergunta. Na verdade, não é
Clarice que se pergunta, é seu
personagem.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice
desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente. Por fim,
Clarice se dá conta que o truque de
encontrar o que está procurando só
funciona de verdade quando ela
desiste de procurar de verdade, e, na
sua busca pela carteira de
documentos, ela não está desistido de
procurar, está apenas fingindo desistir
como forma de continuar procurando e
assim não funciona. “Como faço para
desistir de procurar de verdade?”
Clarice se pergunta. Na verdade, não é
Clarice que se pergunta, é seu
personagem. Ou melhor, na verdade,
não é Clarice nem seu personagem
que se pergunta.
Começo a ler o texto. Clarice Lispector
está procurando um anel. Na verdade,
não é Clarice que está procurando, é
seu personagem. Ela revista as
gavetas, os armários, tudo, até que
desiste. Assim que desiste, vai até a
cozinha tomar chá e encontra o anel
dentro de uma xícara. Não é
exatamente assim, mas imagine assim
mesmo, é o suficiente. Depois do chá,
Clarice resolve sair e começa a
procurar a carteira de documentos. Na
verdade, não é Clarice que resolve sair
e procurar a carteira, é seu
personagem. Ela revista a bolsa, as
gavetas, os armários, tudo, até lembrar
que o anel só apareceu quando ela
desistiu de procurá-lo. Então, Clarice

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 7

desiste de procurar a carteira também.
Volta até a cozinha para tomar outro
chá, porém, desta vez, não encontra a
carteira dentro de nenhuma xícara.
Não é exatamente assim, mas imagine
assim mesmo, é o suficiente. Por fim,
Clarice se dá conta que o truque de
encontrar o que está procurando só
funciona de verdade quando ela
desiste de procurar de verdade, e, na
sua busca pela carteira de
documentos, ela não está desistido de
procurar, está apenas fingindo desistir
como forma de continuar procurando e
assim não funciona. “Como faço para
desistir de procurar de verdade?”
Clarice se pergunta. Na verdade, não é
Clarice que se pergunta, é seu
personagem. Ou melhor, na verdade,
não é Clarice nem seu personagem
que se pergunta, pois não é Clarice
nem seu personagem que está lendo o
texto.
HOMEN NU
Não tenho sonhos. Perdi as
esperanças quando cheguei nesta ilha.
Não sou pessimista como os
habitantes do continente povoado. Os
pessimistas do continente povoado
também têm sonhos. Eles esperam
pelo pior. Não espero pelo pior, nem
pelo melhor. Não tenho mais
esperança. Tive que me despir da
esperança para poder pisar aqui. Tive
que me despir do passado e do futuro,
de tudo que conhecia, até de mim
mesmo. Agora tenho nada. Este vazio
que é minha fé. Se você está no
continente povoado, lendo a
mensagem que mandei numa garrafa,
achará contraditório, pois no
continente povoado fé é sinônimo de
esperança. Pura ilusão povoada! A
esperança é assim, povoada e
condicional. Quem espera, espera
sempre algo. A fé é vazia e
incondicional. Quem tem fé, não
espera nada. Você sabe disto. Quando
deita e dorme você abandona o
continente povoado e volta para ilha.
Alguma vez, durante a viagem, teve
esperança de voltar ao continente?
Claro que não! Mas quando o mar da
vida lhe joga de volta no continente
povoado, você esvazia sua fé
enchendo o coração de esperança.
Sonha que pode chegar a algum lugar
além da ilha. Você não pode. Acorde
para o sonho. Olhe ao seu redor. Você
está ilhado em você.
dente de descartes
Hoje acordei com dor de dente. Se
você está sentindo dor de dente
também, com todo conhecimento de
causa que adquiri nesta manhã,
permita-me dizer: você merece! Vou
explicar. Mas antes preciso definir o
que vem a ser dente. Dente é esta
coisa que você acredita ter, dentro da
boca que você acredita ter, na parte
superior do corpo que você acredita
ser. Está vendo por onde começa sua
dor de dente? Não é pelo dente e pelo
acreditar. E quem é que acredita em
quem nessa história, o dente em você,
ou você no dente?
Sim, entendo sua indignação. Sei que
é difícil desacreditar de um dente,
principalmente quando está doendo,
doendo muito. Sou testemunha doentia
disto. Mas pense comigo, seu dente,
sua gengiva e sua boca são coisas que
estão dentro de sua cabeça, certo?
Muito bem, agora, mais
criteriosamente, observe que sua
cabeça também é uma coisa que está
dentro de sua cabeça! Sendo assim,
cabeça, dente, boca, nada disso existe
fora dessa cabeça que está dentro de
sua cabeça.
Ora, dizer que a dor de dente vem do
dente é apenas um ato de desespero
seu de tirar a culpa de si e colocar a
culpa no outro, no dente. É apenas
uma tentativa da cabeça, que não está
dentro de sua cabeça, de botar a culpa
em outra cabeça.
Mas se a cabeça que está dentro da
cabeça se esquecer de si mesma!? Se
ela sumisse, sumiria a boca, o dente e
a dor de dente junto! Vou tentar – já
volto… Vixe! Não funcionou! A cabeça
pensa que pensa, logo acredita que
acredita. Maldito Descartes! Onde
estava com a cabeça quando inventou
tal filosofia? Acho que Descartes
usava dentadura.
o circo humano
O circo humano é um circo tradicional.
Tradicional significa “de pai para filho”.
Os circos tradicionais usam sempre o
mesmo regulamento. Regulamento é a
forma de montagem – a praça, a
secretaria, os cativeiros. Uma geração
passa os regulamentos para a próxima
e assim segue o circo humano. Filho
de humano, como eu, nasce e se
prepara a vida inteira para cumprir o
destino de manter o circo vivo. Todos
os dias eu aprendo e exercito uma
tradição que sei que não é minha, mas
que faz de mim um elo entre meus
avós e meus netos. “Para o circo
humano sobreviver, ele necessita de
memória”, diz meu pai. Sem dúvida ele
não quer que o elo se quebre.
— A corda, Paulo! — diz meu pai me
ensinando a arte do equilíbrio.
Onde quer que o circo humano arme
seu limite, ele é sempre estrangeiro.
Ele é uma pátria intrusa, com leis e
tudo. Quem entra no circo humano,
mesmo que por engano, tem que
deixar o universo do lado de fora, pois
o circo humano possui uma atmosfera
própria, sem a qual não poderia
preservar sua identidade. Quem nasce
para viver no circo humano é um
predestinado, tem a sorte de conhecer
os mágicos, dormir com as bailarinas,
voar com os trapezistas, dar
cambalhotas com os palhaços...
— Acorda! — diz meu pai me ensinando
a arte do equilíbrio.
... e sobretudo participar do espetáculo
de andar entre o bem e o mal.

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 8

a volta dos que NÃO foram
Primeiro os mestres usam a palavra
"ego" e você constrói um conceito.
Talvez um conceito freudiano,
junguiano, behaviorista, neurocientista,
kardecista, budista, espiritualista, mas
enfim, um conceito. Depois eles dizem
que meditar é transcender o ego e
você quer transcender o conceito. Ora,
é impossível meditar assim. Quando
não se está olhando para o ego,
diretamente, o processo da meditação
não passa de enganação, pois meditar
é observar o ego.
Uma coisa é você debater sobre o
conceito de chuva, outra coisa é você
ficar observando a chuva cair.
Analogamente, o mesmo se dá com a
meditação. Meditar é o caminho para a
verdade sobre você, mas meditar é
observação prática, não é teoria da
observação. Quando você está
observando o ego (conhecimento), não
tem debate, não tem conceito. Você
está observando e pronto. Se alguém
diz que você está observando errado,
quem não sabe o que é meditação de
fato é quem está falando, pois não tem
observar certo ou errado. Certo e
errado é apenas para conceitos.
Um dos obstáculos para compreensão
da metáfora da Genesis é acreditar
que verdade é conhecimento,
agravado pelo fato dos verbos no texto
bíblico estarem conjugados no
passado: “deus criou, adão pecou, a
cobra seduziu, etc”. Deus não “criou”,
deus “cria” (de instante em instante).
Adão (espírito) não “pecou”, Adão
“peca”, (de instante em instante). A
cobra (ego), não “seduziu”, a cobra
seduz (de instante em instante). Ou
seja, Genesis é agora e sempre.
Quando o texto bíblico diz: “entrarão
no reino dos céus”, o verbo no futuro
induz você a pensar que o paraíso é
um lugar onde você ainda não está.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
Isto é um equivoco! O paraíso é o
estado de meditação, o estado de “sei
que sei”. Você já está no paraíso,
sempre está, nunca saí dele. Entrar no
reino dos céus é a volta dos que não
foram. O que acontece é que você se
esquece disto, sai do estado de “sei
que sei”, e quando sai, mesmo estando
no paraíso, mesmo sendo impossível
sair dele, “sente” como se não
estivesse.
o dia que o um deu dois
não sei ao certo
pois ocorreu numa época
em que deus ainda não havia
inventado
nem certo, nem errado
lembro apenas que estava sentado
em volta de uma fogueira de
pensamentos
quando deus me disse:
você é, sempre foi e sempre será eu
depois acendeu um baseado
feito com folhas da arvore do bem e do
mal
comprido como uma cascavel
e me deu para fumar
quanto mais eu fumava
mais me esquecia que eu era eu
então, com voz de fumaça,
deus me perguntava:
quem é você?
eu respondia: pedra sabão!
deus ria
quem é você?
eu respondia: samambaia!
deus ria
quem é você?
eu respondia: urubu!
deus ria
quem é você?
eu respondia: peixe espada!
deus ria
quem é você?
eu respondia: carlos drummond!
deus ria
depois deus me perguntou:
o que vê na fogueira?
eu respondi:
vejo altura, largura e profundidade
vejo cheiros, sabores e tatos
vejo emoções
vejo juízos de norte a sul
deus riu, riu, riu...
até o dia do apocalipse
altura, largura e profundidade
A cidade não tem mais noite. Sois
eletrônicos se acende por todos os
lados como num estádio de futebol e o
espetáculo da escuridão, mesmo
estando ali, fica invisível.
Morei na cidade bastante tempo.
Suficiente para minhas retinas se
esquecerem que são duas luas.
Atualmente, moro num sitio. Aqui,
quando fica de noite, fica de noite, e
tanto, que no quarto que durmo não
faz diferença se estou de olhos abertos
ou fechados. Assim, muitas vezes
acordo antes do sol, da memória e de
mim mesmo, só para ficar de olhos
abertos no breu.
Sei que acordei. Não sei como sei,
pois eu ainda não existo para estar
acordado e contido dentro de um
quarto. O que existe antes do sol
nascer é nada, um breu profundo e
absoluto. Só como os primeiros raios o
quarto vai encarando no espaço. Surge
a porta cor de burro quando foge, a
janela de ferro e o armário Marabras.
E, quanto maior a intensidade de luz,
maior é meu estado catatônico.
A.l.t.u.r.a !
L.a.r.g.u.r.a !
P.r.o.f.u.n.d.i.d.a.d.e !
De onde vem isto? Como pode um
absurdo destes?! Tenho certeza, não
estava aqui antes! Será que foi o sol
que trouxe? Então, ouço a galo
cantando sem parar. E já não sou o
único que quer acordar o mundo para
o absurdo que é o mundo.
página 9
meditação extraterrestre
Você já observou o comportamento de
um jogador numa partida de futebol?
Já notou que ele está sempre correndo
dentro das quatros linhas, nunca pega
a bola com a mão, sempre passa a
bola para o jogador de camisa da
mesma cor e nunca chuta contra o
próprio gol? Comportamento estranho,
você não acha?
Sendo humano e brasileiro, talvez
você ache normal o comportamento
dos jogadores, mas imagine que você
fosse de outro planeta e estivesse
assistindo um jogo de futebol pela
primeira vez. Você acharia ou não
acharia estranho o comportamento de
um jogador de futebol?
Você provavelmente se perguntaria:
“Por que ninguém passa a bola para o
cara de preto? Por que não pegam a
bola com a mão e saem correndo? Por
que o goleiro chuta a bola rumo ao gol
mais longe e não rumo ao gol mais
perto?” Consegue ver tudo isto com
um olhar de extraterrestre?
Os jogadores de futebol fazem o que
fazem porque estão seguindo as
regras do jogo de futebol. Usando uma
analogia, você faz a mesma coisa, só
que num jogo diferente: o egogame. E
qual é o objetivo deste jogo? Qual é a
meta? Simples: transcender o ego. E
como se faz isto? Meditando. E o que
é meditar? É observar as regras do
seu egogame com um olhar
extrahumano: olhos do ser.
Observe seu egogame. Se alguém lhe
diz “bom dia”, você responde
educadamente. Se alguém lhe xinga,
você responde com o dedo anular para
cima. Você escuta uma noticia xis e
fica irritado. Você muda de estação,
toca uma música épsilon, você deixa
de ficar irritado e começa a balançar a
cabeça para lá e para cá.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
Consegue perceber através deste
exemplo que assim como um jogador
de futebol cada mínima parcela do seu
comportamento é, numa visão
extrahumana, sem sentido
extrahumano?
Meditação é observar seu olhar
humano com um olhar extrahumano.
Por exemplo, se pergunto: "Fulana é
bonita?", qual é sua resposta?
Depende da regra que seu olhar
humano usa para ver beleza. Se você
responde: "Sim, Fulana é bonita". Você
pode meditar se perguntando: "Por que
acredito que Fulana é bonita?" Se a
resposta for: "Porque Fulana é
morena, tem olhos azuis e cabelo
curto." Esta é a regra de beleza do seu
olhar humano.
E não são apenas as regras de
satisfação (bom/ruim), que fazem parte
do egogame, as regras de juízo
(certo/errado) também. Por exemplo,
se pergunto: "Roubar é certo?", qual é
a sua resposta? Novamente depende
da regra que seu olhar humano usa
para ver certo e errado. Se você
responde: "Roubar é errado". Você
pode meditar se perguntando: "Por que
roubar é errado?" Se a resposta for:
"Porque vai contra os mandamentos
cristãos”. Esta é a regra de juízo do
seu olhar humano.
auto-observação
dia após dia
observei o esforço da jabuticaba
para produzir suco
até que percebi
que o esforço não era da jabuticaba
mas da jabuticabeira:
jabuticaba era minha
observação recortada da jabuticabeira
dia após dia
observei o esforço da jabuticabeira
para produzir jabuticabas
até que percebi
que o esforço não era da jabuticabeira
mas da natureza:
jabuticabeira era minha
observação recortada da natureza
dia após dia
observei o esforço da natureza
para produzir jabuticabeiras
até que percebi
que o esforço não era da natureza
mas da vida:
natureza era minha
observação recortada da vida
dia após dia
observei o esforço da vida
para produzir natureza
até que percebi
que o esforço não era da vida
mas da observação:
vida era minha
observação recortada de mim.
fliperama hare rama
Quando era moleque, tinha um primo
mais velho que adorava eletrônica. Ele
comprava umas revistinhas na banca e
depois montava umas maquinetas
malucas. Eu, que neste época já era fã
do professor pardal, ficava vidrado na
sua produção. Meu sonho era ser ele
quando crescer.
Um dia, fui visitar sua casa e ele me
mostrou sua mais nova maquineta.
Uma tábua cheia de interruptores de
ligar e desligar. Eu lhe perguntei o que
era aquilo e ele me respondeu: é um
computador. E para que serve? Eu
perguntei. Ele conectou a tábua na
televisão e começou a ligar e desligar
os interruptores. Por fim, surgiu um
quadradinho iluminado na tela que
andava batendo nas bordas, feito
carrinho de bate-bate. Mal sabia eu
que aquele quadradinho iluminado me
acompanharia pro resto da vida.
Pouco tempo depois meu primo
apareceu com um TK85. Creio que o
TK85 foi o primeiro PC (Personal
Computer) que colocaram no mercado
brasileiro. O TK85 não tinha entrada
para disket. Aliás, nem existia disket
ainda. Os programas para o TK85
vinham gravados em fitas K7 e os
usuários tinham que fazer o uploud dos
programas usando um toca-fitas
conectado ao computador.
Como todo moleque, fiquei bastante
entusiasmado com o TK85. Não
porque estava diante de uma
maravilha: um cérebro eletrônico. Mas
porque desejava o que todo moleque
deseja de um computador: jogar
joguinhos. Rapidamente, abri a caixa
de programas do meu primo, escolhi
uma fita K7 com a etiqueta “fliperama”,
coloquei no toca-fitas e apertei o play.
Só que cometi um dos erros mais
sensacionais da minha vida: esqueci
de ligar o fio do som que conectava o
página 10
toca-fitas ao computador. Por
conseqüência disto, comecei a escutar
uns barulhos sem sentido: pi to pu iiii
uu oo eeee pp ou ii ee xii... Fiquei
assustado achando que tinha
estragado alguma coisa e perguntei: o
que é isto? Meu primo respondeu: é o
jogo de fliperama.
LOUCO INTERATIVO
Quando era mais jovem, aconteceu
comigo coisa semelhante ao que
ocorreu com o protagonista do filme
“Bicho de sete cabeças”. Meu pai
achou que eu estava ficando louco e
quis me internar numa clínica. Ele não
fez por mal: apenas não sabia como
lidar com a loucura dos outros. A
loucura dele era ser contador. Para
ele, dois mais dois eram quatro. Foi
difícil para mim também. Ele não sabia
lidar com minha desordem, e eu não
sabia lidar com a ordem dele. Foi um
aprendizado de ambas as partes. Por
fim descobri o segredo do bem-viver: a
loucura interativa. Loucura interativa é
saber que tudo é mentira e verdade ao
mesmo tempo, saber que cada loucura
tem sua razão absurda. A pessoa
normal é aquela que sabe que dois
mais dois é igual a quatro. O louco
pensa que dois mais dois é igual a
cinco. Louco interativo é aquele ser
que descobriu que dois mais dois é
igual a xis.
deus e os caras
O cara descarado argumentou: "Deus
não existe porque nunca o viu andando
pela rua". Ora, se for assim – ver para
crer – precisamos rever também outros
ilustres desconhecidos. Os Caras, por
exemplo, será que existem mesmo?
Tal como Deus, dizem que os Caras
estão em todas: na política, na religião,
na cultura, no engarrafamento, na
internet, na pequena e na grande área.
Contudo, todavia, entretanto, eu
pessoalmente na pessoa de mim
mesmo, nunca vi os Caras andando
pela rua. Sei que os Caras são uns
filhos da puta. Sei que os Caras são
foda. Sei que os Caras não entendem
porra nenhuma. E sei também que a
culpa é dos Caras. Mas, cadê os
Caras? Talvez o Povo conheça os
caras. Será? Também nunca vi o Povo
cara a cara. Sei que o Povo é burro.
Sei que o Povo não sabe votar. Sei
que o Povo tem o governo que
merece. Mas, meu Deus, cadê o Povo
que não dá as caras?
Se o Povo passasse por mim agora,
juro por tudo que é mais sagrado que o
convidaria para tomar um copo. Talvez
o povo tenha algo a me dizer sobre os
Caras. Afinal, a voz do povo é a voz de
Deus, não é mesmo?
cambalhota do Buda
Hoje é domingo. Meus amigos me
convidaram para jogar futebol. Seria
um enorme prazer ficar correndo feito
bobo atrás de uma bola, mas hoje
também é dia de praticar meditação no
templo. Estou em dúvida. Será que
caso ou compro uma bicicleta? Buda
ou Pelé? Fazer 1000 gols efêmeros ou
chegar a iluminação? Quanto
sofrimento trás esta coisa de livre-
arbítrio. Nem fiz nada ainda e já estou
sofrendo como se estivesse numa
cadeira de dentista escutando o
barulho do motorzinho. Como será que
Sidarta se livrou deste inferno? De
qualquer maneira, acho melhor usar
meu livre-arbítrio e escolher ir pro
templo praticar Zazen. Quem sabe é
hoje que chego a iluminação!
Pronto, aqui estou! Mas como cheguei
aqui? Sim, usei meu livre-arbítrio.
Decidi pegar o ônibus, decidi entrar no
templo, decidi sentar nesta
almofadinha preta e agora estou
decidindo deixar os pensamentos
passarem. Estou decidindo não
acolhe-los nem rejeitá-los. Este
pensamento aqui, por exemplo, do
mestre Zen dançando com uma fruteira
na cabeça feito Carmem Miranda, é
bem engraçado. Será que posso dar
uma risadinha? Melhor não! Vou usar
meu livre-arbítrio e permitir que ele
passe. Você não sou eu, vá com deus.
Este outro aqui, sobre a violência
urbana, também não sou eu. Não
concordo com a violência, mas fazer o
que? Não posso acolher nem recusar
nada, eis a prática do Zazen.

Já deve ter passado pelo menos uma

meia hora. Se estou decidindo tudo
certinho, como manda o figurino,
porque não chego a iluminação? Tudo
quanto é pensamento que aparece eu
deixo passar, estou usando meu livre-
arbítrio da melhor maneira possível,

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 11

mas porque estas escolhas não me
levam a iluminação?
Chega! Vou me levantar. Foda-se o
Buda! Fo-da-se! Além do mais, minha
perna está doendo pracaralho! Para
ficar sofrendo aqui, muito melhor seria
sofre lá no campo de futebol. E se
Sidarta estiver errado? Ou então, se
ninguém entendeu o que o cara falou?
Vai ver a felicidade é realmente feita
de momentos efêmeros, como marcar
um gol e dar uma cambalhota. Vai ver
ela dura apenas o momento da
cambalhota. Um ciclo fechado que vai
do momento em que o pé sai do chão
até o momento em que volta.
Mas o que faço? Levanto ou não
levanto desta merda de almofadinha.
Mais uma vez é a porra do livre-
arbítrio! Que inferno! E o filho da puta
do Buda ali no altar, me olhando com
aquele sorrisinho de canto de boca,
feito a Monalisa. O cara deve ter
mesmo chegado a iluminação, por isto
fica rindo da nossa cara. Afinal, se o
budismo começou depois do Sidarta,
nem budista ele era. Ele não era porra
nenhuma. Era um mané que nem eu.
C-a-r-a-l-h-o! Não acaba nunca esta
porra de prática! Mas que merda de
livre-arbítrio é este que não me deixa
levantar e ir embora. É muito simples,
primeiro decido me levantar, então,
movimento o corpo e vou embora.
Porque não? O que me impede? Meu
livre-arbítrio? Mas não é justamente
para isto que ele serve? Para que eu
possa me levantar e ir embora? Vai ver
é assim que se chega a iluminação,
usando esta merda de livre-arbítrio
para fazer o que realmente temos
vontade de fazer e não para ficar
sentado nesta almofadinha esperando
o nirvana cair do céu.
É isto! Vou me levantar! Vou contar até
três, me levanto e nunca mais volto a
usar meu livre-arbítrio para mais nada
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
além do que dar cambalhotas
efêmeras. Um. Será que é isto
mesmo? Só tem um jeito de saber.
Dois. Vamos lá, você consegue! Livre-
arbítrio e determinação! Você quer ou
não quer ser feliz? Dois e meio. Rapaz,
mas o prazer é efêmero, o Sidarta
chegou a felicidade sentado debaixo
da figueira, este é o caminho do meio.
Dois e quase três. Ah! Foda-se o
caminho do meio, do lado e da frente!
Se o caminho é meu, deixa eu
caminhar, deixa eu. Três.
Não acredito que me levantei! Estou de
pé! O mestre está me olhando! Será
que eu atingi a iluminação? Será que
ele reconheceu isto? Ele não está me
censurando. Ah! Só pode ser isto a
iluminação! Os mestres nos deixam
aqui, subjugados pelas regras da
meditação, presos nessas
almofadinhas de merda, até
descobrirmos que a felicidade está no
livre-arbítrio de ir e vir. Vou embora e
não volto nunca mais. Agora sou um
homem livre, dono do meu livre-
arbítrio. Ou será que não? Ou será que
tudo que acreditei estar escolhendo foi
só uma seqüência de mentiras?
Cambalhotas efêmeras? Será que o
livre-arbitrio é uma mentira? Será que
eu sou uma men..? Ops!
cadê SEU livre-arbítrio?
Se você realmente pode escolher seu
destino, me diga, porque escolheu
começá-lo? Ou seja, porque escolheu
nascer? E mais, porque escolheu
nascer você? Não dava para ter
escolhido nascer o Brad Pitty, a Julia
Roberts, o Bill Gates, o Dalai Lama?
Porque não? Não sabe? Águas
passadas não movem moinho? Tudo
bem! Vamos ao aqui e agora.
Se você realmente pode escolher seu
destino, então, escolha, aqui e agora,
fechar este livro. Escolheu? Ah! Se
você fechar agora estará apenas me
obedecendo? Apenas realizando o
meu desejo e não o seu?
Mas você é o que tem "o poder de
desejar", não é? Você deseja, o
cérebro cria uma estratégia de ação, e
o corpo realiza o seu desejo, fecha o
livro para você. Mas quem lhe disse
que é você que deseja? Tem certeza?
Com base em que você afirma que
você é a origem do desejo. Se você
fosse a fonte do desejo, deveria saber
como você produz o desejo, não é?
Deveria ser capaz de parar de desejar
também, concorda? Mas porque não
sabe? E porque não é capaz de parar
de desejar?
Então, cadê seu livre-arbítrio?
só por hoje
Você já notou como o stress está
diretamente ligado a idéia de “erro”?
Erro seu e erro dos outros. No caso de
“erro dos outros” cito a música “Só
hoje” da banda Jota Quest. Tem um
trecho que diz assim: "Hoje eu preciso
tomar um café / ouvindo você suspirar /
e dizendo que eu sou o causador da
sua insônia / que eu faço tudo errado
sempre".
Ora, se alguém marca um encontro
com você as 6 da manhã e chega as 8
da noite, dá para se estressar com a
pessoa (o outro). Mas vamos supor
que o outro não tivesse livre-arbítrio?
Vamos supor que o outro, assim como
você, fizesse parte de um processo
natural, perfeito, indivisível e inevitável
chamado vida? Faria sentido você se
estressar com o atraso dele? Que
culpa ele teria sobre o descontrole?
Todo stress do erro surge por você
acreditar numa mentira: livre-arbítrio. O
indiano Ramesh explica esta mentira
assim: “Se analisar qualquer ação que
você considera ser sua ação, você vai
descobrir que é uma reação do cérebro
a um evento externo sobre o qual você
não tem nenhum controle. Um
pensamento vem – você não tem
nenhum controle sobre o pensamento
que chega. Algo é visto ou é ouvido -
você não tem nenhum controle sobre o
que você verá ou ouvirá em seguida.
Todos esses eventos acontecem sem
o seu controle. Então o que acontece?
O cérebro reage, também sem seu
controle. E a reação do cérebro é o
que você chama de sua ação”.
Em outras palavras: você não tem (de
fato) o que supõe (teoricamente) ter:
livre arbítrio. De fato, só existe uma
vontade no universo: a vontade do
universo. Esta vontade universal é o
que chamamos de vida.
página 12
Agora, pense bem: você não tem livre
arbítrio!!! Isto não é uma maravilha?
Não é paradoxalmente libertário?! Não
tira um peso tremendo de cima das
suas costas? Se nem “você” nem “o
outro” tem livre arbítrio, logo, assim
como você é incapaz de fazer qualquer
mal ao outro (faça o que fizer), o outro
também é incapaz de fazer qualquer
mal a você (faça o que dizer). Ou seja,
você não precisa se angustiar com o
que você fez, faz ou vier a fazer com
os outros, nem dos outros com você,
pois toda responsabilidade é única e
exclusivamente do universo.
Isto não é o paraíso?
Para terminar, eu proponho duas
mudanças na música do Jota Quest. A
primeira mudança vem dos Alcoólatras
Anônimos e consiste em trocar o título
da musica de “Só hoje”, por “Só por
hoje”. A segunda é uma alteração na
letra, ao invés de: "que o outro é
causador da minha insônia e que faz
tudo errado sempre", só por hoje,
cantemos assim: "que o outro é
instrumento de minha aprendizagem e
que faz tudo certo sempre".
Só por hoje!
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
destino livre para aceitar
o que você não devia ter feito Sei que muita gente famosa e anônima
já está feito já encheu a cara de convicção, subiu
perfeitamente em cima da mesa da filosofia e fez
do jeito que você não devia discurso inflamado de como é
impossível conciliar liberdade e
o que você não podia ter feito destino, mas afirmo que é possível
já está feito sim. O truque para resolver o impasse
perfeitamente entre livre-arbítrio e destino é muito
do jeito que você não podia simples, porém, como acontece dentro
de você, requer auto-observação e
o que você não queria ter feito clareza consciencial.
já está feito
perfeitamente Colocado em palavras, é o seguinte.
do jeito que você não queria Existem dois livres-arbítrios, um é falso
e o outro é verdadeiro. O falso e o
o que você não considera perfeito destino disfarçado de livre-arbítrio, é
já está perfeito aquele que você acredita que tem. O
perfeitamente verdadeiro é o verdadeiro, aquele que
do jeito que você não considera. você nem desconfia que tenha, pois o
falso faz você acreditar que o
verdadeiro não existe. Esta é a função
dele, se passar por verdadeiro. A
função do seu verdadeiro livre-arbítrio
e lhe dar a opção de reconhecer ou
não o falso como falso.
Ou seja, você é livre para aceitar ou
não aceitar seu destino.
A ESCOLHA CERTA
É impossível usar o livre-arbítrio para
praticar meditação. O motivo é muito
simples: livre-arbítrio é meditação. Seu
livre-arbítrio começa quando a
meditação começa e termina quando a
meditação termina.
Você pode escolher biscoitos no
supermercado, escolher roupas no
armário, escolher filmes na locadora,
escolher o presidente da republica,
mas se você não está em meditação
durante todos estes acontecimentos,
não está usando seu livre-arbítrio. Há
sim um drama de escolha, mas isto
não significa que você esteja usando
seu verdadeiro livre-arbítrio.
O drama da escolha é o drama do
sofrimento. Note que o enredo é
sempre o mesmo: o medo de errar.
Medo de escolher a opção errada ao
invés da opção que lhe levará a
felicidade futura. Mas felicidade não é
conseqüência. O prazer, sim. Mas
ainda assim, dura só algum tempo.
Felicidade é paz de espírito mesmo
dentro do sofrimento, ou seja, mesmo
dentro do drama da escolha.
Assim, acreditar que felicidade é algo
que se obtém como pagamento por
uma escolha certa no drama da
escolha, é pular do sofrimento de um
drama para outro, sempre na
expectativa de que o sofrimento
termine com a próxima escolha. Mas
se o drama é o próprio sofrimento,
percebe o circulo vicioso?
E como sair? Qual é a escolha certa
para se chegar a felicidade? A escolha
certa é a meditação.
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CRIADOR E CRIATURA pedro pedreiro
— Olá, tem alguém aí? Me lembro como se fosse hoje o dia
Serve eu? que descobri minha profissão. Era meu
— Quem é você? aniversário e estava usando uma
Eu sou você! daquelas botinhas ortopédicas com
— Como assim? meias brancas até o joelho. A casa
Eu sou você no mundo das letras. estava cheia, e eu louco para ir brincar
— Letras? O que é isso? no quintal com as outras crianças. Foi
É a forma que eu tenho no seu mundo. nesse momento que minha mãe
— Quer dizer que eu sou letras? resolveu me dar um presente que
Sim e não. Você também tem pernas e mudaria minha vida. Ela pediu para
braços. que eu me aproximasse e depositou
— O que é isso? gentilmente um tijolo sobre minhas
Não dá para explicar com letras. mãos. Tinha mais ou menos uns vinte
— Por que não? centímetros de comprimento, dez de
Porque não existe no seu mundo largura, pesava uns oitocentos
— Mas se eu sou você!? gramas, e no meio do objeto, em alto-
Você sou eu reduzido. relevo, estava escrito: “Um bom
— Reduzido? menino não se suja na terra”.
Reduzido a letras.
— Lá vem você com essa história de Peguei o bloco retangular sem saber o
novo! que fazer com ele. O peso da frase
Ué! Foi você quem começou! não me agradava, mas era um
— Mas se eu sou você, como posso ter presente. Minha mãe, percebendo
começado? minha falta de prática com a coisa,
Não pode. rapidamente explicou: “Meu filho,
— Então quem começou? tijolos são pesos feitos para nós,
Fui eu. pedreiros, carregarmos nas costas”.
— Mas cadê o meu direto de escolha? Em seguida, com muita paciência e
Está aqui, comigo. cuidado ela me ajudou a colocá-lo
— E será que posso conhecer você? sobre meu ombro direito. Para
Claro que pode! contrabalançar, ela colocou um outro
— Como faço isso? tijolo no ombro esquerdo. Neste estava
Livre-se do travessão. escrito: “Equilibre os tijolos com
— Não consigo. Tenho medo! cuidado e nunca os deixe cair”. Mal
Não pode ter medo! Você sou eu, sabia eu que muitos outros tijolos
lembra? ainda estavam por vir.
— É mesmo! E você não tem medo?
Medo de quem? Durante a juventude, ganhei centenas
Pronto. Tirei! E aí. Saiu? deles, e não vinham apenas de meus
Saiu. pais, mas de toda a sociedade
Mas não percebi nada. pedreira. Alguns eram contraditórios.
Pois é! No colégio, por exemplo, recebia tijolos
Quer dizer que agora somos um? dos professores que diziam: “Quem é
Sempre fomos. esperto estuda”. Porém, na hora do
recreio, recebia outros dos colegas
que diziam: “CDF é bunda mole,
esperto é quem cola”. Era difícil para
mim equilibrar esses tijolos
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
conflitantes, mas como não podia
deixá-los cair, sempre dava um jeito.
Me lembro de uma época, no meio da
adolescência, em que me revoltei.
Senti uma necessidade profunda de
me livrar daquele desconforto. Foi
então que um pedreiro amigo me
aconselhou a usar drogas. As químicas
não tiravam os tijolos das costas, mas
anestesiavam meus ombros por um
período de tempo, eliminando assim a
sensação de desconforto enquanto
duravam. Pena que, quando o efeito
químico acabava, o peso voltava. Por
fim, aquilo que servia como alívio,
acabou virando mais um tijolo para
carregar.
Na idade adulta, me tornei um pedreiro
famoso. Ganhei muito dinheiro, dei
palestras sobre construção civil e
moral, comprei carros, casas, tive
muitos filhos e muitas esposas. Mas
tudo parecia ter o mesmo efeito das
drogas: me entorpeciam durante algum
tempo e depois viravam tijolos
também. Em pouco tempo, o peso dos
tijolos era tanto, que minha vida se
resumia em alternar sofrimento,
estresse e doenças.
Cheguei ao fundo do poço num
domingo. Já que nada no mundo
material dava conta de eliminar minha
dor e angústia, fui até a religião mais
próxima pedir misericórdia. Entrei no
confessionário e saí com outro tijolo,
que dizia: “Você é um pecador”. Não
foi difícil sentir o peso dessa culpa
também. Caminhei mais um pouco e
caí neste caixão. Agora, não sinto mais
o peso dos tijolos. Nem sinto o peso de
mim mesmo. Estou inerte, com os
lábios cerrados. Contudo, ainda tenho
força suficiente para lhe entregar este
tijolo aqui. Você pode aceitá-lo ou
pode ir brincar na terra.
Eu, finalmente, vou brincar.
desista!
Você acredita que a resposta está no
livro do coelho? No disco do lobão? No
horóscopo chinês? Na poesia russa?
Num evangelho que ainda não foi
escrito, por um cara que ainda não
nasceu, que mora num planeta que
ainda não foi descoberto? Desista!
Não sei quem foi que lhe disse, nem
por que acreditou, porém, para o seu
próprio bem: desista! Desista do
parceiro ideal, da família ideal, da vida
ideal. Se quer ser feliz para sempre,
desista agora! Se espera trabalhar
duro, evoluir honestamente, se tornar
um cidadão respeitado, para ser feliz.
Desista! Não espere pela felicidade:
seja feliz desesperadamente! Se
pretende se tornar famoso, ser
reconhecido pelo talento, ser capa de
revista de fofocas para ser feliz.
Desista! Abandone a pretensão: seja
feliz despretensiosamente! Desista
agora! Não passe a vida buscando
outra vida. Desista de ser feliz um dia!
Apenas seja agora! Quando desistir,
compreenderá: todo lugar é o lugar
certo. Toda hora é ideal. Não existe
problema agora. Nem agora.
Tampouco agora. E assim nunca.
Quando desistir verá: você só enxerga
sua sombra quando está de costas
para o sol. Por isso desista! Desistir é
fácil. Simples como andar para frente.
Inevitável como o movimento dos
braços, dos rios, dos astros. Relaxe o
ser. Abra a mão. A pedra cai sozinha.
Desista do peso, da pedra, da pulga!
Simplesmente desista! Como um navio
que desiste da bússola e aceita a
viagem. A felicidade não está no porto
seguro. No ponto final o texto já
acabou. Na página em branco não
nasceu. Desista do fim para sempre.
Aceite o meio eternamente!
página 14
APENAS os irresponsáveis São
felizes
Você adora ou não adora sentir que o
mérito é seu? Você adora ou não
adora sentir que você é o cara? Que é
o responsável? Se você é médico, por
exemplo, você adora ou não adora
sentir que é você que está salvando a
vida do paciente? Se é psicólogo, você
adora ou não adora sentir que é você
que está curando o neurótico? Se é
político, você adora ou não adora
sentir que é você que está mudando o
mundo? Se é religioso, você adora ou
não adora sentir que é você que está
salvando o homem do inferno?
Percebe o que isto significa? Significa
que a continuidade da sua felicidade
depende completamente da
continuidade do seu sentimento de
mérito. E se o seu sentimento de
mérito depende do que acontece, eu
pergunto: você é capaz de controlar o
que acontece? Se não, como espera
ser feliz assim?
É ai que começa seu sofrimento, não é
mesmo? Nem mesmo seus atos, que
supostamente deveriam estar sob seu
controle, se comportam sempre à favor
do seu mérito. O paciente morre com o
remédio que você receita, o psicótico
se suicida com a pergunta que você
faz, o mundo entra em crise com a
decisão que você toma e o homem
pecador, que deveria ser salvo do
inferno, apenas se fanatiza mais com
seu discurso messiânico.
Eis como a embriagues do vinho do
mérito se transforma na ressaca
amarga do demérito. E você, crente
que é o responsável por seus atos,
segue pelos dias sofrendo de remorso
do passado e medo do futuro. Então,
qual é o grande beneficio que você
obtém por se manter acreditando na
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
mentira de que você é o responsável
por seus atos humanos?
Quer ser feliz agora? Independente do
que irá acontecer no futuro e do que
aconteceu no passado? Desista da
responsabilidade pelos seus atos
humanos. Apenas os seres
irresponsáveis são felizes.
Na verdade, você nem precisa desistir
da responsabilidade pelos seus atos
humanos, pois você não tem, nunca
teve, e nunca terá responsabilidade
pelos seus atos humanos. E, se você
não tem, como pode desistir de algo
que não tem? Assim, desistir é apenas
ver a mentira. Só isto.
Observe a vida. Todas as ações
acontecem ao mesmo tempo. Sabe por
quê? Porque não são várias ações
acontecendo ao mesmo tempo, é uma
ação só. Todas as ações é uma
mesma e única ação: a ação universal.
Isto não é sensacional?! Você coçando
o nariz, um extraterrestre passeando
de disco voador, o sol explodindo e o
Michael Jordan pulando para fazer um
cesta de três pontos na NBA, são a
mesma ação: a ação universal. A ação
que você adora sentir como sua, é a
ação universal também. Ou seja, seus
atos humanos acontecem, mas não
são seus. Deus é o cara.
insatisfeito feliz
Quando você está consciente da
Sou um insatisfeito feliz. É uma mentira você não pode estar ignorante
escolha que faço de instante em da mentira. É impossível. Um estado
instante. Você também pode ser um. consciencial exclui o outro, assim
Agora e sempre. Qualquer pessoa como o estado que chamamos de
pode. Basta reconhecer uma mentira acordado exclui o estado que
como mentira. Basta reconhecer que chamamos de dormindo.
satisfação não é felicidade, e
insatisfação não é sofrimento. Para concluir este texto, vou deixar
aqui uma historinha Zen muito
Esta mentira precisa ser reconhecida. ilustrativa sobre o assunto. É um
Acreditar nesta mentira é a única coisa diálogo assim:
que lhe mantém afastado da felicidade.
Então, se estiver disposto a O discípulo diz ao mestre:
reconhecer (de instante em instante) --- Mestre estou cansado de ser feliz!
que insatisfação não é sofrimento, O mestre responde:
você será (de instante em instante) --- Sim! E qual é o problema?
feliz, mesmo insatisfeito. O discípulo diz:
--- Quero sofrer!
Quando surge um desejo, se o desejo O mestre pergunta:
é satisfeito, o resultado é satisfação. --- Sofrer vai te fazer feliz?
Se o desejo não é satisfeito, fica a O discípulo responde:
insatisfação. Eis o processo que você --- Sim, mestre!
observa. Só observa, porque você não O mestre responde:
controla este processo. Acreditar que --- Então, seja feliz sofrendo!
você controla é o começo da mentira.
Satisfação e insatisfação é coisa que
acontece além do seu controle.
Felicidade e sofrimento é coisa que
você escolhe, é coisa da sua natureza.
Assim, é totalmente possível estar
insatisfeito e feliz ao mesmo tempo.
Basta aceitar a insatisfação. Basta
aceitá-la assim como se aceita um dia
de chuva ou de sol. Em outras
palavras, basta aceitar a insatisfação
em paz. Estou insatisfeito, e dai? Estou
insatisfeito, qual é o problema?
Observe: insatisfação não é problema.
Insatisfação é apenas um estado
emocional. Só quando você iguala
insatisfação com problema surge o
sofrimento de sete cabeças. Mas
quando você está vendo que
insatisfação é problema, porque
sofrer? Eis como se entra no Nirvana
(felicidade), mesmo permanecendo no
inferno (insatisfação).
página 15
humanamente impossível
Pergunta: Uma pessoa com fome pode
ser feliz?
Nem com fome, nem com a barriga
cheia. Satisfação não é felicidade.
Uma pessoa com a barriga cheia é
uma pessoa satisfeita, e que ruma
para a insatisfação, pois logo estará
com fome novamente. Felicidade não
é um estado emocional, é o estado
consciencial de estar em paz com os
estados emocionais.
Satisfação é de natureza humana
(emocional), mas felicidade é de
natureza consciencial (ser). Sendo
assim, você não é, nunca foi, e nunca
será humanamente feliz (satisfeito).
Por outro lado, espiritualmente falando,
você é feliz, sempre foi e sempre será
feliz. Apenas sente como se não fosse
quando deixa de saber disto.
Podemos dizer que a felicidade é
humanamente impossível. Á princípio
dói reconhecer isto. Lutamos uma vida
inteira para não admitir isto, pois é
como cometer suicídio. Mas acreditar
na mentira de que a felicidade é
humanamente possível é exatamente o
que nos mantêm presos ao sofrimento.
Só a partir do momento em que fica
inegável que a felicidade é
humanamente impossível, é que
saímos do ciclo vicioso que é o
sofrimento de buscá-la.
Pergunta: Se fome causa dor, como
ser feliz com dor?
Estamos falando de sofrimento. É
preciso entender que sofrimento e dor
são coisas distintas. O sofrimento não
vem da dor, mas de você não aceitar a
dor. Se você aceita a dor, a dor não
deixa de doer, mas você deixa de
sofrer, entende? Agora se você não
aceita a dor, a dor continua doendo e,
além de doer, você sofre.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
Prazer e dor, satisfação e insatisfação,
estão fora do seu controle. Já o
sofrimento, pelo contrário, depende da
sua aceitação ou recusa sobre o que
está fora do seu controle. Percebe o
truque? Você é irresponsável sobre
sua dor, mas tem total
responsabilidade sobre seu sofrimento.
Pergunta: Não é uma postura cômoda
achar que isso tudo é assim mesmo e
que não adianta querer mudar o
mundo?
Aos olhos de quem quer te manter
preso na roda do sofrimento (ego), sim,
é comodismo, passividade, covardia,
fraqueza, etc. Aos olhos do sei que sei
é autoconsciência. E veja, não
mudamos nada. Sua força não é sua, é
a forca do universal. Sua inteligência
não é sua, é a inteligência universal.
Sua matéria não é sua, é a matéria
universal. Quem muda é o universo.
Você apenas acredita que é você. Mas
não é. Só tem um agente no universo:
o próprio universo.
Pergunta: Qual é a vantagem de se
praticar meditação?
Qual o sabor da bala que está na
minha boca? Ora, seja cientista, faça a
experiência. Pratique meditação e
descubra o sabor por si mesmo. Se
digo que tem gosto de maça, não
estou lhe dando a verdade, estou lhe
dando um conceito. De que adianta
você acreditar em mais um conceito.
Mas posso sim lhe falar o sabor da
meditação: tem sabor de verdade. Mas
este sabor para você, enquanto não for
prático, é só teoria, só conceito.
bem-aventurado ego killer
seu defeito era assim Não era a primeira vez que esta
mesmo na merda ouvindo sobre aquele assunto: viagem
via na pedra astral. Havia lido numa revista que os
um triz de capim astronautas da NASA, deitados em
macas e usando óculos especiais,
seu defeito era colorido saiam do corpo e iam viajar pelo
coloridor universo. Devia ter uns treze anos de
nariz comprido idade quando li isto não lembro onde.
perna vesga Mas agora meu amigo estava me
cotovelo sem dor falando que podia ser feito sem
aparelhos, sem Nasa, apenas deitado
seu defeito era dançar na cama, mantendo-se alerta durante o
danças de salão estado de transição entre acordado e
sapatear dormido. Perguntei como se fazia e ele
se lambuzar me disse que tinha uma escola em São
de contradição Paulo que ensinava.
seu defeito era zen Sempre fui fascinado por guerras nas
olhar além estrelas e outros filmes de ficção
do continente cientifica, então, fiquei louco para ir na
gostar do frio tal escola. Mas era domingo e na
e do quente segunda feira eu havia programado
uma viagem. A solução foi ele me dar
seu defeito era amar dois livros da tal escola. Coloquei-os
– e pior no porta luvas do carro e ali eles
– tanto ficaram, até que cheguei num vilarejo
que saía pelo suor da Bahia, dois dias depois.
santo.
A viagem era econômica, então, fiquei
acampado. No dia seguinte, montei
uma rede, peguei o livro e comecei a
ler. O livro realmente falava da tal
viagem astral, porém, este era apenas
o queijo na ratoeira. Não foi preciso
virar muitas páginas para o livro me
levar a seguinte conclusão: eu não era
quem eu pensava que era. Aliás, muito
pior! Nem era eu que pensava
Foi neste livro que li pela primeira vez
a palavra “ego”. Já tinha ouvido as
pessoas xingarem umas as outras de
egoístas e também dizerem que
receber elogio fazia bem para o ego,
mas nunca havia escutado ninguém
dizer que o ego era a causa da minha
infelicidade. E foi por isto que pela
manhã, enchi o peito de maresia, e
gritei: “eu sou um ego killer”.
página 16

De lá para cá, se passaram uns 15
anos, muitas histórias de perseguição
ao ego, poucas viagens astrais, mas
absolutamente nenhum sucesso na
tentativa de assassinato. Mas
descobrir que este que passa todo o
tempo tentando matar o ego é o
próprio ego. E que o ego não é o vilão
da história, é a história inteira. Deuses,
demônios e todos os santos. Pois sem
a mentira (ego), não havia como nós
estarmos passando por esta viagem
humana. Ou seja, é graças ao ego que
esta viagem está sendo possível. E se
não percebemos isto, a culpa não é do
ego. Se percebemos, ele morre, mas
não há mais nenhum assassino.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
éden leite desnaturado parreira e juiz do bem e do mal. Até
que um dia choveu leite desnaturado e
estou sempre em repouso A poucas semanas do vestibular o as folhas caíram. Não sei explicar o
quando o futuro sussurra em meus professor de português me aconselha: que entendi do que a chuva me disse.
ouvidos “Se quiser passar na prova de Não foi um discurso racional. Foi
— venha conhecer o jardim! redação, diga que o copo está meio absurdo. Mas era como um rosto que
vazio, ou então, meio cheio, mas em refletia o sentimento de ser um
mordo o mundo e entro no tempo hipótese alguma, diga que é apenas velhinho e um menino ao mesmo
em busca de mel um copo com água”. Não entendi, tempo, e que se traduzia num sorriso.
em busca de mais disse. Ele explicou: “Nunca se mostre A vida voltou a ser bela.
em busca de mim contente com a realidade”. Perguntei
em busca de um jardim qual era o problema com isto e ele Ah! Não passei no vestibular.
que acabo de cegar disse: “Felicidade tem gosto de leite
desnatado, não convence o paladar da
a voz do instante me pergunta serpente”. Meu professor estava
— onde está você agora? apenas me aconselhando a escrever
como ele corrigia, adulto, crítico,
o futuro nunca chega cítrico, cético, Freud, Shopenhauer,
a pergunta se repete na próxima Darth Vader, pois só assim eu
mordida agradaria uma língua de duas pontas
— onde está você agora? que não tem apetite nem enzimas para
aceitar a vida como ela é.
o mundo muda
— onde está você agora? A frase ecoou no meu peito: “felicidade
não convence o paladar da serpente”.
o mundo mudo Neste dia, ficou claro para mim, que no
— onde está você agora? mundo racionalista, ver pêlo em copo e
fazer tempestade em ovo, é sinônimo
o mundo munda de grande inteligência racional, pois
eu desisto depõe a favor de uma alma que está
não penso comendo o fruto da arvore do bem e
logo não existo do mal. Aceitar é burrice, pois só
sou jardim ocorrem as almas fracas que insistem
jamais fui expulso em não cair em tentação.
de mim.
Como toda criança, nasci sabendo que
a vida é bela. Depois, para ser aceito
no clube dos intelectuais, passei para
o lado racionalista da força. É a
fantástica fabrica de chocolate dos
adultos, feita com sorvetes de
parafuso, bombons de rabugice, bolos
de estresse, pirulitos de medo, tortas
de rancor e milkshake de
autoflagelação. Mas admito que o
sabor ácido que meu professor disse
realmente serve de alimento as cobras
e lagartos nossas e alheias.
Então, durante algum tempo, segui
sabido, ardido, revestido com folhas de
página 17
xeque morte rodinhas espirituais
o desejo empurra eu Mestre espiritual é aquele ser que
para frente ensina o aluno a transcender o ego.
o medo puxa eu Mas o mestre ensina quem? O
para trás espírito? Não. Isto é impossível.
não importa qual força Espírito não tem boca nem ouvido.
vencerá a partida Sendo assim, quem o mestre ensina?
quer avance O mestre ensina o ego. Aliás, o mestre
quer retroceda também é um ego. Então, durante todo
em nenhum dos casos percurso até o aluno transcender o
sou capaz de sair ego, o que temos é um ego ensinando
um milímetro sequer outro ego a transcender o ego.
além de eu
Paradoxal isto, não é mesmo? Este
paradoxo são como aquelas rodinhas
de apoio que os pais colocam nas
bicicletas das crianças quando ainda
não sabem se equilibrar sozinhas.
Colocar teorias espirituais no ego é
necessário para dar as primeiras
noções de espiritualidade. Quando o
aluno transcende o ego (de fato),
transcende também o paradoxo e
compreende que eram as rodinhas que
o mantinha afastado do seu próprio
equilíbrio. Mas compreende também
que elas o ajudaram a começar.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
televiSão de deus minhas pretensões
Usando uma analogia, você é a não pretendo ir a lugar algum
televisão de deus. E apenas quando porque onde sou
você se dá conta disso, que vive de não há lugar para se chegar
fato. Enquanto não se dá conta, senão a esta conclusão
apenas sonha que vive.
não pretendo esperar o amanhã
Sonha que lê livros, que trabalha, que porque onde sou
bebe cerveja com os amigos, que faz não há futuro
terapia de vidas passadas, que assiste senão agora
o domingão do faustão, que vai a
igreja, que paga o dízimo, que tem não pretendo vencer ninguém
filhos lindos, que faz sexo com porque onde sou
camisinha, que joga futebol no não há outro para ser vencido
videogame, que recebe passes senão eu mesmo
magnéticos no centro espírita, que
estuda mecânica quântica na USP, não pretendo possuir coisa alguma
que fica de pernas cruzadas uma hora porque onde sou
por dia praticando meditação, que tem não há nada para se possuir
um carro esporte, uma casa senão a si mesmo
financiada, um cachorro chamado
maradona e um corpo humano. não pretendo fazer nada
porque onde sou
Este é o sonho de realidade que você não há nada para se fazer
e vive. Mas reflita: se você é a senão ser.
televisão da deus, então, a realidade
não é um processo acontecendo no
espaço, mas sim um processo
acontecendo em você. Percebe a
desinversão? Numa realidade você
está sonhando que vive no mundo. Na
outra, você é o sonhador do mundo em
que vive. Ou seja, você não é um ser
humano que vive experiências
espirituais, você é um ser espiritual
vivendo uma experiência humana.
Assista-se e aproveite-se!
página 18
tudo tudo tudo
Sartre disse que o inferno é o outro. O
que ele não sabia é que o outro é deus
também. E quando deus foi falar com
Sartre, feito Adão, Sartre pulou atrás
do arbusto e fez cara de
nuntôintendendo. Como se o arbusto
também não fosse o outro, e
conseqüentemente, deus. E pior, como
se deus não fosse o próprio Sartre.
Isto me faz lembrar das aulas de
catecismo, quando tive contato pela
primeira vez com as idéias sobre a
onipresença, onisciência e onipotência
de deus. Não lembro perfeitamente
como foi que a professora explicou a
onisciência, mas era algo como a visão
de raio-x do super-homem, onde deus
via até através das paredes. Nossa!
Mas ele vê tudo, professora? A gente
perguntava. Sim, ele vê tudo. Mas ele
vê tudo, tudo? Tudo mesmo?
Insistíamos. Tudo, tudo, tudo. Ela
afirmava categoricamente.
Era duro de aceitar aquilo tudo. Não
por ser ilógico. Lógica de criança é
diferente de lógica de adulto, Papai
Noel é um exemplo disto. A dificuldade
em aceitar estava no fim da
privacidade. Se deus via tudo, então,
via tudo, entende o problema?
A onipresença divina era a mais
simples de imaginar. E, principalmente,
de aceitar. Deus era a massinha de
modelar com a qual todas as coisas
eram feitas: estrelas, cachorros,
cadeiras e tudo mais. A onipotência
também era simples e não incomodava
tanto. Deus era o que dava vida a
todas as coisas feitas de massinha de
modelar. Nosso problema existencial
se dava mesmo era com a onisciência.
Vez ou outra, feito um participante de
Big Brother procurando falhas no
sistema, ressurgia a pergunta: mas
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
deus vê tudo, tudo, tudo, tudo, tudo,
tudo, tudo, tudo, mesmo, professora?
Mal sabíamos nós, mas estávamos
vivendo o mesmo drama de Sartre e
Adão. Queríamos pecar contra o outro,
pecados pequenos, coisas de criança,
como roubar frutas no pomar do
vizinho, olhar meninas pela fechadura
do banheiro, mas ainda assim, não
queríamos que deus ficasse sabendo.
Era o velho pecado original de novo. A
gente aprende estas idéias infantis
antes da primeira comunhão e nem se
dá conta da comunhão que esqueceu.
Hoje em dia, me pergunto, se deus,
com sua onisciência, sabe antes
durante e depois da gente pecar que a
gente vai pecar. Se deus, com sua
onipresença, é tanto a maça quanto a
boca de adão. E se deus, com sua
onipotência, comete o pegado junto
com o pecador. Então, qual é o
pecado?
Só consigo encontrar uma resposta,
achar que existe pecado. Só não
entendo porque deus não pensou nisto
antes.
brincandodedeus
a nuvem muda de estado
muda de cor
engorda de lado:
sou eu brincando de regador
a semente desperta na terra
rompe a espera
geme, explode e berra:
sou eu brincando de primavera
cortando o céu feito faca
as assas ditam
o caminho sem placa:
sou eu brincando de passarinho
camada sobre camada
glacê, açúcar e tijolo
copas, ouros, paus e espadas:
sou eu brincando de bolo
na lua cheia
o mar balança a saia
destruindo o castelo de areia:
sou eu brincando de praia
o bem faz mal
o mal faz bem
feito mola, exercício de vaivém:
sou eu brincando de escola
olho para ti
irmãos, pais, netos, avós
eros e psiquê:
sou eu brincando de nós.
relaxa senão Não encaixa
Até quando você vai continuar fazendo
vista grossa para a mentira do livre-
arbítrio humano e sofrendo de medo do
futuro e remorso do passado? Ora, se
deus é o responsável absoluto pela
realidade universal, logo tem que ser o
responsável absoluto pela realidade
humana também. Então, renda-se!
Depois cante junto com Djavan e
lucífer: “eu quis lutar / contra o poder
do amor / cai nos pés do vencedor /
para ser o serviçal do samurai / ah!
mas eu estou tão feliz”
Você é uma televisão capaz de assistir
o que está passando em si mesma.
Deus é a fonte transmitindo o filme que
você está assistindo. O filme é uma
produção intitulada ”Escrevendo certo
por linhas tortas”. Ou seja, relaxa
senão não encaixa! Você não relaxa e
é por isto que está doendo.
Quer um motivo bem íntimo para você
relaxar? Foi você mesmo que escreveu
o roteiro deste filme que você está
assistindo. Pense bem, se não fosse
assim, vive-lo seria injusto e deus seria
um carrasco, não é mesmo?
Então, relaxa, deus está criando seu
filme (destino) exatamente como você
pediu para ele fazer. Você não pode
mudar a trama porque quebraria o
propósito espiritual para o qual você
mesmo a programou. Que propósito
espiritual? O propósito de botar a
prova sua responsabilidade espiritual.
Que responsabilidade espiritual? A
responsabilidade de se manter em paz
durante a projeção do filme.
Encaixou agora?
página 19
as três notícias julgando deus
primeira notícia Você diz que está tudo errado. Diz que
— não há má notícia o inferno é aqui. Que o certo é assim e
não assado. Percebe como você se
segunda notícia julga mais responsável e mais justo do
— não há boa notícia que deus apenas porque deus não
está fazendo o que você acredita que
terceira notícia ele deveria estar fazendo? Você quer
— não há terceira notícia. que deus te obedeça. Quer que deus
siga seus critérios pessoais de certo e
errado. Enfim, você quer ensinar deus
a ser deus.
Dê uma risada! É assim mesmo. É
deus que está criando a realidade e
seu desejo em desacordo com a
mesma. Por que em desacordo? Para
te botar a prova. Há momentos em que
deus cria discursos de Madre Teresa,
há outros momentos em que cria
discursos de Hitler. Aceitar deus
apenas quando ele lhe dá satisfação e
blasfemá-lo quando ele lhe dá
insatisfação é ficar preso no ciclo
vicioso do sofrimento.
Dê um passo para trás. Os dois times
são um só jogo. Não há porque sofrer
com a derrota. A não ser que você
decida vestir a camisa de um time e
torcer contra o outro. Mas ainda que
decida, está tudo bem, tudo certo,
mesmo que pense que não.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
livro do autoconhecimento
humano
sofremos até a página sete
amamos o próximo até a página três
temos certeza absoluta
até a página dois
gostamos de peixe cru
até a página nove
achamos a julia roberts bonita
até a página cinco
conversamos como adultos
até a página seis
pensamos na camada de ozônio
até a página oito
acreditamos no ser humano
até a página um
aceitamos o mundo como ele é
até a página quatro
julgamos sempre pela capa.
o baile de máscaras
Acendem-se as luzes. De novo, um
novo dia. No palco, o mesmo planeta
de sempre. A peça em cartaz também
é a mesma: “O baile de máscaras”. Os
atores… Trimmmmm! Não dá mais
tempo, já vai começar.
Toca o despertador, e o homem com
máscara de empresário sai pela rua
com os vidros do carro fechados. Seu
sistema imunológico metaboliza títulos
em ordem alfabética. A mão com
máscara de coitada bate na janela,
mas o chofer com máscara de fiel diz
que hoje não. O farol abre. Na esquina,
o velho com máscara de síndico
conversa com a senhora com máscara
de lamento. Ela recita seu texto
chorosa e tranqüilamente, enquanto o
velho com máscara de síndico balança
a cabeça sem talento algum.
Na farmácia, alguém com máscara de
farmacêutico atende o rapaz com
máscara de doente. O cliente se irrita
com o preço do calmante. Atravessa a
rua e vai comprar cigarros na padaria
do senhor que não queria fazer o papel
de padeiro. Lá, muitos mascarados
passam em rodízio; alguns por
costume, outros por vício. Na hora do
almoço, entra em cena o rapaz com
máscara de garçom. Seu papel é servir
o pernil com máscara de saboroso ao
homem casado com a mulher com
máscara de indiferente. Seus filhos,
adolescentes, usam máscaras de
quem não tem máscara.
As luzes vão caindo pela ribalta. Os
mascarados disfarçam as curvas
indesejáveis, retocam a idade com
massa cosmética, e saem pelas sobras
da noite, peregrinando de bar em bar,
comprando gargalhadas com gotas de
álcool. Crentes de que são autênticos,
chegam ao clímax de quatro,
inventando significados enciclopédicos
para palavra “amor”. Depois engolem
página 20
as páginas junto com comprimidos. Do
outro lado do balcão, alguém revela a
verdade absoluta num longo arroto. De
tão distorcido, soa natural. O som se
propaga pelo salão-bar-de-beleza feito
telefone-sem-fio, ampliando-se copo a
copo.
Por fim, o mundo alcança o seu limite.
Não há mais como suportar a pressão
de viver pisando em ovos. O sol chega
inevitavelmente. Os mascarados,
então, voltam pelas ruas tentando
arrancar o que já está grudado. Alguns
desfalecem pelo caminho e resolvem
dormir para sempre nas praças.
Outros, persistentes, chegam até suas
casas e, de pijamas, sonham como
seria dormir nus.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
mais silva
Conta a história que Newton cochilava
num torpor prazeroso quando uma
maçã atingiu sua cabeça. Um
acontecimento trivial, mas que,
justamente pela trivialidade, acabou
levando o cientista a compreender a
órbita dos planetas.
Compreensão é assim mesmo, coisa
que acontece pela benção do Espírito
Susto – estupro inesperado perfurando
a carne virgem da mente. Num
momento estamos dormindo,
empanturrados pela rotina e, de súbito,
sem mais nem menos, a mesma rotina
de sempre cai feito maçã sobre nossas
cabeças, fazendo brotar ali um galo,
um canto que anuncia o raiar de um
novo dia, de novo.
— Quem gostaria de compartilhar a
experiência? — ele perguntou.
Uma tonelada de silêncio não seria
suficiente para pintar na imaginação
alheia o que eu tinha para dizer. Usar
palavras para exprimir o que havia
compreendido seria como gritar: “eu
sou mudo!” Havia acabado de dançar a
dança dos loucos. Uma estranha
compreensão morava dentro de mim,
cristalina, lúcida, trivial, mas
profundamente incomunicável. Como
expressar o olhar com palavras, se as
palavras só servem para distrair o
olhar?
— A ficha caiu! — declarei.
Não chacoalhei o galho nem cobicei a
maçã. Ela simplesmente caiu, como
um quadro que cai da parede depois
de ter permanecido no mesmo lugar
durante anos. Por que caiu nesse
instante e sobre minha cabeça, eu não
sei. Caiu! Caiu, e pronto. Caiu, e ponto.
Caiu, e ponto de exclamação! Caiu,
sem ponto de interrogação. A ficha
caiu, e uma ligação se completou. A
voz do outro lado disse “alô”, e eu
também. Não tenho como
descompreender o compreendido.
— Obrigado! Alguém mais quer
compartilhar? — ele disse.
Olhei ao redor. Ninguém parecia
espantado com minha declaração.
Meu espanto era meu. Minha
declaração era, além de egoísta,
apenas uma rotina de palavras. Cada
um permanecia um, ligado à sua
própria rotina e retina existencial.
Após o susto fui incorporando a minha
rotina também, em doses homem-
apáticas. Agora, com o auxílio da
memória, coloco o antes e o depois,
cara a cara. O que vejo é o mesmo de
sempre, porém, é um sempre mais
arrepiado, mais amplo, mais trivial,
mais Silva!
narrador absoluto
Meu nome não importa. O que importa
é o que passo a narrar agora. E o que
passo a narrar é algo que aconteceu
agora mesmo, neste instante, neste
teatro aqui. Depois de ter trabalhado
por uma eternidade na construção
deste cenário e também nos roteiros e
nos personagens da peça, então, bem
agora, sem mais nem por que,
aconteceu o seguinte com meu
personagem principal: você.
Era uma manhã comum e ensolarada
como de costume. Você acordou como
de costume. Tomou café como de
costume. Calçou os sapatos como de
costume. E foi trabalhar como de
costume. Entrou no ônibus como de
costume. E chegou no escritório como
de costume. Olhou na agenda como de
costume. E foi para reunião de
segunda-feira como de costume.
Sentou-se na cadeira da sala de
reunião como de costume. Pegou uma
caneta e um papel como de costume e
ccomeçou a fazer rabiscos
geométricos enquanto se entorpecia
com a fala dos colegas como de
costume.
Então, por algum motivo, que não era
de costume, você se deu conta de
alguma coisa que não era de costume.
Olhou ao redor, e tudo aquilo que
minutos atrás e durante toda sua vida
lhe parecia tão de costume, tomou um
ar de estranheza. Você sabia que tudo
aquilo era como de costume, mas, por
algum motivo, não estava se sentindo
acostumado como de costume. Você
estava muito incomodado, quase
irritado com o fato de aquilo estar
acontecendo.
Havia uma caneta em sua mão. Podia
senti-la. Será que podia? Será que era
caneta? Para aliviar sua angústia,
retirei a caneta da estória. Então, sem
caneta, você se concentrou no
página 21
blablablá dos colegas como não era de
costume. Passou a ouvir cada nuança
das palavras, suas formas sonoras,
sua arquitetura vibracional. Eram
lindas, mas todas lhe pareciam vazias
de significado. Como bolhas de sabão
as palavras explodiam ao se chocarem
com seus tímpanos. Aquilo voltou a lhe
causar angústia.
Então retirei também o som do
ambiente. Feito isso, seus colegas
gesticulavam e mexiam a boca, mas
você não ouvia mais som algum.
Então, você se perguntou sobre
aquelas pessoas. O que estariam
fazendo ali? Será que estavam mesmo
ali? Quem eram? Por que pessoas?
Que certeza você tinha daquelas
pessoas? De que se tratavam? Um
bando de corpos se mexendo com
uma convicção frenética. Que corpos?
Que convicção?
Retirei as pessoas da estória.
Aproveitei e retirei a mesa, as cadeiras
e todos os outros objetos que, como de
costume, montavam o cenário da sala.
Você ficou na sala vazia de frente para
uma porta. Você pensou em abri-la.
Mas não tinha certeza que a porta
estava ali. Não tinha certeza da porta.
Será que a porta é porta como de
costume? Pensou. Ou será que a porta
é um costume?
Retirei todo o cenário que era de
costume. Retirei o ônibus, o café, a
manhã, o sol, a segunda-feira, o chão
e a parede. Você ficou rodeado apenas
por seus pensamentos. Ficou
pensando como de costume. Se eu
estou pensando, logo existo. Será que
existo? Será que estou pensando?
Como sei que estou pensando? Se
posso duvidar, estou pensando.
Duvidar é pensar. Será que posso
duvidar? Pronto, duvidei e pensei.
Então eu sou a dúvida? Mas como eu
sei que sou a dúvida? Como eu sei
que duvido? O que sou? O que sei?
Será que sou eu que sei? O que não
sei? Como sei que não sei? Quem
sabe? Eu? Quem sou eu? Será que
saber que eu sei é um delírio? Delírio
de quem? Delírio meu? Delírio de mim
mesmo? Será que eu estou pregando
uma peça em mim mesmo?
Então, retirei o pensamento.
Meditação É suicídio profecia
Tenho duas noticias para te dar. Uma dizem os profetas
é boa, a outra você decide. A boa haver um momento na vida
noticia é que seu sofrimento pode em que o discurso perde as reticências
acabar hoje mesmo, aqui e agora, mas prefiro dizer
neste exato instante. A outra noticia é referências
que para isto acontecer você precisa já que sou de vidro
cometer suicídio.
dizem os profetas
Calma! Não estou falando em cortar os haver um momento na vida
pulsos ou comer jiló sem tempero. Não em que através dos cílios úmidos
é tão radical assim. Basta você morrer vemos o novo
em você, ou seja, morrer em si mas prefiro dizer ovo
mesmo. E como você pode fazer isto? já que estou chocado
Matando o sofredor em você. Como?
Dando um grito de independência. Que dizem os profetas
grito? O grito do silêncio. que neste momento inesperado
os contos de fadas chegam ao fim
Você é silencio e o fim do sofrimento mas prefiro dizer começo
vem quando você está escutando o já que sou narrador
barulho. O fim do sofrimento vem
quando você está escutando o barulho dizem os profetas
e se dá conta que você é, que chegar ao pé deste lugar nenhum
independente do que está escutando, é condenar-se a viver só
independente do chororô. mas prefiro dizer
consigo mesmo
já que estou aqui.

Retirei a porta e deixei apenas as

paredes, o chão e o teto. Você se
acalmou. Andou sobre o chão. Deu
alguns murros de leve nas quatro
paredes. Mas não demorou muito para
angústia voltar. Você começou a se
perguntar se aquelas paredes estavam
mesmo ali. Será que estou delirando?
Será que é uma alucinação? Uma
farsa? Será que eu sou essas
paredes? De que essas paredes são
feitas? Será que estou contido? Será
que eu sou uma parede ou será que a
parede sou eu?

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 22

 bola de neve
Existe a mentira de que meditação é
não raciocinar. Meditação é meta-
raciocinar. Meta significa "além",
"transcendência". Então, meditação é
raciocinar o raciocínio. Por exemplo,
você se aborrece com uma pessoa e
fica aquela bola de neve de
pensamentos e emoções que não
param. O que fazer? Observe a bola
de neve passar. Note que se você está
observando a bola de neve passar,
logo, você não é a bola passando.
Note que a bola de neve está
passando por você, e que você não é a
bola de neve, você é a montanha que
está servindo de palco para o passeio
da bola de neve. Note que quanto mais
a bola de neve rola e faz seu desfile,
mais ela passa e vai embora. Enfim,
assista o maravilhoso espetáculo da
bola de neve.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
o que importa agora
Não importa quantos pernilongos você
matou na noite passada. Não importa
quantas árvores plantou nas férias.
Não importa quantos livros leu ou
quantos escreveu. Não importa quanto
dinheiro ganhou honestamente. Não
importa se roubou. Não importa se
esteve sentado numa sala de reuniões,
bebendo café, fumando cigarros e
decidindo o destino da humanidade.
Não importa se chorou o leite
derramado. Não importa se esqueceu
de dar descarga. Não importa se subiu
na vida de escada rolante. Não importa
com quem se casou. Não importa por
que se separou. Não importa com
quem ficaram os discos do
Pixinguinha. Não importa por que
casou de novo. Não importa se teve
uma penca de filhos. Não importa se o
cachorro fez xixi na roda do seu carro.
Não importa se você nunca pôde
comprar presentes para o Natal. Não
importa se o homem já pisou na Lua.
Não importa se você pisou na bola
com seu melhor amigo. Não importa se
foi à igreja. Não importa se o
presidente, o clima e o PIB estão
assim e bife está assado. Nada disso
importa agora. O que importa é que
quando você acorda percebe que
estava sonhando.
zen bumdismo
O universo se mexe junto com a bunda
da mulata! Como assim? Assim ó…
ziriguidum… terecoteco… borogodó… As
duas montanhas de chocolate vão
fazendo sua evolução gelatinosa pelo
espaço e o espaço inteiro vai se
mexendo e remexendo junto com elas.
Isso não é um tesão!? E nada escapa
do compasso sincronizado. Desde o
rodopio do planeta em torno do mestre
Sol até o vaivém da mão do
adolescente de frente para tevê na
madrugada de Carnaval. Simples
assim. E neste exato compasso de
agora, enquanto você está lendo este
texto, eu estou pedalando em minha
bicicleta, o Paul McCartney está
cortando as unhas do pé, o John
Lennon está reencarnando na barriga
da filha do Ringo Starr que foi
fecundada pelo esperma do baterista
da Madonna. Ah! E as moléculas de
clorofila das samambaias de sua
cidade estão enchendo o ar com este
oxigênio que você acabou de inspirar.
Perdeu o fôlego? Os taoístas chamam
esse ritmo de “yin e yang”, e os hindus
dão ao movimento do casal pelo salão
cósmico o nome de “dança de Shiva”.
Porém, se apelarmos para o princípio
científico de que deus é brasileiro,
nada mais justo do que chamarmos a
dança de “miudinho” (para quem já
aprendeu o riscado), ou então de
“samba do crioulo doido” (para quem
vai ter que aprender tudo de novo, feito
o John Lennon). Mas se você for
convidado para subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado ou
então, para participar de uma reunião
globalizada da ONU, use
simplesmente o termo “vida” ou,
melhor, “life”, para mostrar que você é
jeca mais é jewelry.
página 23
koan pendurando
Estou pendurado no computador. Ela
chega e, com um tom disciplinar, pede
para que pendure a toalha molhada no
banheiro. Pego o ser de pano pelo
meio e o penduro no gancho, perto do
chuveiro. Pro meu espanto, o objeto
fica surpreso no ar, seguro pela falta
de respiração do espaço. Meu olhar se
des-pendura da toalha e busca ponto
fixo na parede. Contudo, vai
escorregando de marcha a ré por um
nó em cadeia. A toalha está pendurada
no gancho, que está pendurado na
parede, que está pendurada no
banheiro, na casa, na rua, no bairro, na
cidade, no estado, no país, no
continente, no planeta, na galáxia, que
está pendurada em algum lugar.
Vendo a toalha em seu devido ponto,
ela se curva como o tempo e
dependura um beijo de recompensa
em meu rosto. Eu me pergunto em voz
alta, apertando alternadamente
diferentes pontos alfabéticos do
teclado: se tudo o que vem a vista se
pendura em algum ponto, onde está
pendurado o ponto de vista? Ela sorri
sem entender, mas satisfeita por não
ver mais a toalha. Eu termino o texto e
penduro a pergunta no leitor.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
método para matar mortos
Como se faz para matar um fantasma
se o fantasma já está morto? O filme
Sexto Sentido nos dá a seguinte
resposta: fazendo o fantasma perceber
que já está morto. Esta resposta serve
também para não cair no truque do
problema. Todo problema é um
fantasma e o exorcismo dele acontece
quando você o percebe como tal. Ou
seja, um problema nunca vem do
acontecimento, mas sim de você
acreditar que vem.
Toda vez que você encara seus
problemas de frente, sem apego, sem
temor, o problema se desintegra e fica
só o acontecimento, a situação. Isso
acontece porque o ato consciencial de
observar problemas é o ato de
perceber que eles são o que são:
fantasmas mentais.
O Freddy Krueger só pode te
assombrar quando você caí no sono.
Socorro! Você grita acreditando no
pesadelo. Mas gritar não faz você sair
do pesadelo, apenas aumenta o terror.
Só tem um jeito de você sair de um
pesadelo: acordado. Observar o
problema é ficar acordado. Quando
você está de olhos abertos não pode
estar de olhos fechados ao mesmo
tempo. É impossível.
< PERGUNTAS E RESPOSTAS >
Interlocutor: Fugir do problema não é
solução?
Ferrari: Não é fugir, é ver o que é como
é, e aceitar como é, só isto.
Interlocutor: Você se desliga dos seus
problemas, mas cai na indiferença, na
alienação, na inércia.
Ferrari: Qual é a alienação em ver o
que é como é?
Interlocutor: Desse jeito prefiro ficar
com a minha dor.
Ferrari: Atenção, dor e sofrimento são
coisas distintas. Quando você vai no
dentista é porque está com dor de
dentes. Quando vai no psicólogo é
porque está sofrendo.
Interlocutor: Você vem pregar...
dizendo que tudo isso é muito
simples...
Ferrari: É a coisa mais simples que
tem. Mas não estou pregando, estou
apenas apontando. Meu limite é
apontar, ver é com você. Mas atenção,
ver o que é como é, não é crer, é
saber. Você acredita que existe ou
você sabe que existe?
Interlocutor: Você diz que isso não é
religião?
Ferrari: Sim, digo. E repito a pergunta:
o que tem de religião em ver o que é
como é?
Interlocutor: Você já dá por resolvida a
questão do ser. E o que os outros
acham não conta?
Ferrari: Se ser é o que é, o que tem
para resolver? Mas eu estou
apontando para o céu e você está
olhando para o meu dedo. Não é para
olhar para o meu dedo, é para olhar
para o céu. Observe o problema
acontecendo em você. Simples assim.
Seu problema não está acontecendo
em mim, mas em você. Observe-o e
não precisarei falar mais nada sobre o
método para matar mortos. Já está
tudo em você, é um fato: todo
problema é um fantasma mental.
Interlocutor: E se digo que não é?
Ferrari: Você pode dizer o que quiser,
difícil é fazer o que é deixar de ser.
Interlocutor: Isso parece religião,
embora você negue.
Ferrari: Respeito sua opinião. E não a
nego, discordo. Outros podem achar
que é loucura, que é arte culinária.
Respeito também, mas não concordo.
Para mim, ver o que é como é, não tem
nada de dogmático.
Interlocutor: Mas não é isso que você
está pregando, passar a encarar as
coisas como “fantasmas”?
Ferrari: Não é passar a encarar as
coisas como fantasmas, é perceber
que fantasmas são o que são:
fantasmas. Só isto. Agora, é simples
na prática, mas se você fica só na
teoria vira outro fantasma.
Interlocutor: Declarar que um problema
não é mais um problema por decreto
consciencial parece mais desespero
do que solução.
Ferrari: Não é "declarar", é "ver" o que
é como é. Por exemplo, uma situação
está acontecendo e você vê um
problema acontecendo. Mas que
problema? O que está acontecendo é
uma situação, só isto. Quando você
percebe o que é como é, você nem
precisa matar o problema. Não é
preciso matar o que não existe. Um
problema só existe enquanto você não
percebe que ele não existe. É assim
que um fantasma passa a existir,
mesmo nunca existindo.
Matar um problema, é como se você
fosse uma criança que acreditasse em
papai noel e descobrisse que o papai
noel é seu pai. Ou seja, você toma
consciência e a ilusão acaba, assim
como a escuridão acaba quando se
acende a luz. Então, não é "declarar"
que não existe, é apenas tomar
consciência que não existe. Qualquer
situação é o que é: uma situação.
página 24
Interlocutor: A consciência vê o
problema, sabe do problema, e depois
como num passe de mágica declara-o
inexistente?
Ferrari: Não é declarar! Quando a
consciência vê que o papai-noel é o
pai: pronto! Acabou a ignorância. Era
uma ilusão! Não tem o que resolver,
porque não se resolve ilusão, apenas
se percebe que uma ilusão é o que é:
ilusão. Não precisa declarar nada.
Você não declara que o papai-noel é
seu pai, você apenas toma consciência
disto. Observe seus ditos "problemas",
mas observe na prática, não na teoria.
Você verá que são papai-noeis. E não
verá isto porque estou dizendo, mas
porque são.
Interlocutor: Seria mais fácil você
admitir que tudo pode ser uma ilusão
(como Papai Noel)
Ferrari: Tudo é ilusão!
Interlocutor: Se um leão faminto surge,
você encara ele de frente? Você pula
feliz nas mandíbulas do bicho?
Ferrari: Não sei. Só na hora para
saber. Suponho que não. Porém, o que
felicidade tem a ver com esta
situação? Veja, um leão é o que é: um
leão. Um problema é o que é: um
problema. Logo, um leão não é um
problema, entende?
Interlocutor: Por que você disse "toda
vez que você encara seus problemas
de frente, sem apego, sem temor, o
problema se desintegra e fica só o fato,
a situação"?
Ferrari: Porque estou falando sobre
problemas e não sobre leões.
Interlocutor: Ser devorado vivo não é
um problema?
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
Ferrari: Não! Ser devorado vivo é o
que é: ser devorado vivo.
Interlocutor: Me admira o que é um
problema, então?
Ferrari: Simples, um problema é um
problema.
Interlocutor: Chamar a atenção para
você; passar por um filósofo profundo,
ou melhor, um iluminado, não pode ser
delírio de grandeza seu, ou até mesmo
uma esquizofrenia?
Ferrari: E se for? Qual o problema?
Interlocutor: Não é um problema para
você?
Ferrari: Talvez seja para você. Para
mim, o que estou fazendo é o que
estou fazendo, só isto.
Interlocutor: Você está pedindo para
enfrentar "de frente, sem apego, sem
temor" exatamente o que?
Ferrari: Exatamente o que é.
Interlocutor: Como desintegrar, por
exemplo, o problema "câncer"?
Ferrari: Observando que câncer não é
problema, é o que é: câncer.
Interlocutor: Como, entre uma
quimioterapia e outra, uma pessoa que
tem câncer conseguiria pensar que
câncer não é problema?
Ferrari: Não é pensar que não é
problema! É ver o que é como é!
Entende a diferença? Você olha e vê.
O que você pensa sobre o que você
está vendo não é o que você está
vendo, é o que você está pensando
sobre o que você está vendo. Então,
não é pensar "não é um problema". É
ver o que é: câncer.
Interlocutor: A teoria me parece
bastante simples. E a prática?
Ferrari: É mais simples ainda. O que
pode ser mais simples do que ver o
que é como é? Mas, na pratica, na
prática mesmo, quem tem que
resposta sua pergunta é você mesmo.
Pratique e se responda!
Interlocutor: Isso é genial. Sei que sou
leiga e talvez não esteja conseguindo
me explicar direito, mas entendi e me
esclareceu muito.
Ferrari: Se não consegue explicar é
sinal que entendeu mesmo! Meditação
é assim, extremamente simples e
inexplicável como ser.
só É feliz quem Não quer
Você sofre porque quer ser feliz.
Investigue por si mesmo. Quando
estiver se chicoteado e sofrendo mais
do que cristo na via crusis para ser
feliz, sem resultados, é claro,
considere se perguntar: porque estou
sofrendo? E não se prenda a teorias.
Como aconselha Lulu Santos: não
adianta fugir nem mentir para si
mesmo. Não fuja para justificativas
religiosas ou filosóficas como ego,
trauma, carma, destino, encosto, vida
passada, etc. Seu sofrimento não é
teoria, é um fato. Investigue a causa
factual do seu sofrimento. Sem medo.
Sem fuga. Investigue de frente. Se
pergunte: porque estou sofrendo neste
exato instante? Se o sofrimento está
acontecendo aqui e agora, logo a
causa também tem que estar aqui e
agora. Então, só adianta abrir o olho
da consciência e observar sem medo.
Ver o que está acontecendo de fato,
por mais “doloroso” que possa parecer.
Considere fazer isto e verá que seu
sofrimento é fruto do desejo de ser
feliz. Você sofre porque “quer ser feliz”,
porque tem a intenção de ser feliz,
porque pensa em ser feliz. Contudo,
quando você esquece a felicidade é
feliz naturalmente, pois não tem
intenção nenhuma de ser, apenas é.
O que acontece é que a felicidade é
como a saúde. Quando o corpo está
saudável, o corpo sequer se dá conta
que está saudável, apenas está no seu
natural. A saúde é o estado natural do
corpo, logo, o corpo não a percebe. O
corpo só se dá conta que a saúde é
seu estado natural quando fica doente.
O mesmo se dá com a felicidade.
Felicidade é saúde espiritual. Assim,
ironicamente, “querer ser feliz” é a
doença da felicidade. E por isto que só
é feliz quem não quer.
página 25
foda-se se! PUNHETA NO CINEMA
e daí se? Eu faço coisas estranhas. Me orgulhar
quem se importa? delas é uma das coisas estranhas que
isto mesmo! faço. Ontem, por exemplo, saí de casa
quem se importa? para ir ao cinema. No caminho fui
foda-se se! pensando em comprar algo para ficar
vou pegar folego mastigando durante a sessão. Meu
agora sim desejo de botar a língua para praticar
sem medo de ser feliz: yoga era muito maior do que o desejo
foooooda-se se! de assistir o filme. Entrei numa loja de
conveniência e as cores das
se vai, vai embalagens saltaram a vista. Uma
se não vai, não vai força maior tomou o controle dos meus
e daí se ou não se? olhos fazendo-os pular de guloseima
foooooda-se se! em guloseima. Eu quero! Gritou o
quem se importa? desejo. Qual? Perguntou o meu bolso
poisé! contando as moedas. Eu quero todas,
quero comer bala de goma até entrar
se tem, tem em coma, até desmaiar e acordar no
se não tem, não tem hospital depois da lavagem estomacal.
e daí se ou não se?
foooooda-se se! Comprei um saquinho de Disqueti,
quem se importa? uma versão superpobrinha do M&M’s.
poisé! Era o único milagre que dava para
fazer com aquele orçamento. Abre
se estou, estou logo! Disse o desejo. Calma, depois
se não estou, não estou não vai ter para comer na hora do
e daí se ou não se? filme. Respondi. Foda-se o filme!
foooooda-se se! Quem quer saber do filme? Nem você
quem se importa? quer saber do filme! Abre logo esta
poisé! porra! Resisti. O cinema ficava cada
vez mais perto. Comprei o ingresso
foda-se se tudo! com desconto.
foda-se se foda-se também!
foooooda-se se! A sala do cinema tinha acabado de ser
quem se importa? reformado, mas não deixou de ser
poisé! antiga. As luzes da rua atingiam sua
tela, enquanto os carros passavam em
foda-se se pareço bobo forma de sombra. A caverna de Platão
foda-se se pareço fraco está ali, no coração do Itaim. Põe logo
foda-se se pareço um espantalho a porra da bala na boca! Disse o
no meio milharal desejo. Não é bala, é chocolate. E o
em nome do pai, do filho filme ainda não começou. Foda-se o
e do espiro do santo filme! Eu já falei. Não quero saber de
foooooda-se se! filme. Quero saber da minha satisfação
que vem sendo adiada desde a Rua
João Cachoeira. Tudo bem, só um.
Abro o saquinho, pego uma bolota e
coloco na boca. O filme começa. Não o
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
que fui assistir, mas o que estava
programado para passar na minha
cabeça com o desenrolar do evento. O
chocolate começa a se dissolver em
minha boca e junto com o gozo
gustativo percebo que estou batendo
punheta. O sabor do chocolate satisfaz
meu desejo, mas o que está entrando
pela língua não é o chocolate. Se
fosse, quem tinha que engordar era a
minha língua. O desejo pelo chocolate
foi criado pela cabeça, mas também
está sendo satisfeito pela cabeça. A
cabeça estava satisfazendo o próprio
desejo. Eu estava batendo punheta no
cinema. Sou um punheteiro. Somos
todos punheteiros. Só muda a sala de
projeção.
É impossível Sair Do presente
Então tá! Suponho que você já fez o
dever de casa. Suponho que já assistiu
os filmes bola da vez, que já leu os
livros bola da vez e, provavelmente,
esteja relendo-os para ver se entendeu
mesmo. Mas que porra é esta de ficar
no presente! E o cara ainda diz que é
fácil. Diz que vai mudar o mundo. Que
vai me tirar do sofrimento. Será que
paga as contas também? Mas as
contas não estão aqui e agora, elas
vão vencer na semana que vem. Onde
é que eu tava mesmo? Sim, o
presente. Tenho que ficar no presente.
Mas como é que faço isto mesmo?
Perai, cadê o livro?!
Interessante notar que esta idéia de
ficar no presente está ganhando cada
vez mais exibição na mídia. Está
virando um espécie de meditação in
the box. É o novo upgrade da
autoajuda. Parece que aquela coisa de
alcançar os objetivos e fazer sucesso
não está fazendo mais ninguém feliz.
Então o que? Cadê esta tal de
felicidade? Jesus prometeu uma
felicidade eterna, mas não é deste
mundo, não tem para delivery.
Queremos felicidade numa pílula, nem
que for de ecstasy. E assim continua a
busca pela felicidade, pela verdade, e,
atualmente, pelo presente.
Tanta gente buscando ficar no
presente, e, contudo, é impossível sair
no presente. Sim, é impossível. E se
você realmente deseja se livrar do
sofrimento é fundamental perceber
esta impossibilidade.
Buscar o presente é a mesma ilusão
do discurso “minha mente”. É o que
chamo de eutenhocentrismo. Qual é a
mentira? Simples: você não tem uma
mente, você é a mente! Se você tem
uma mente, logo, você e sua mente
são entidades distintas, separadas.
Percebe a dualidade: “eu” e “minha
página 26
mente”. Acreditar que você tem uma
mente é supor você fora de si mesmo.
A mentira é semântica. Mas qualquer
livro de meditação que você ler, ou
qualquer palestrante de meditação que
você escutar, inclusive os bolas da
vez, vão cair neste equívoco.
Isto não significa que eles não saibam
do que estão falando, na maioria das
vezes sabem. Mas significa sim que
eles não sabem falar. Entende? Uma
pessoa pode ser muito boa em
matemática, na prática, mas isto não
significa que esta pessoa é um bom
professor. Ou seja, uma coisa é saber
do que se está falando, e outra é saber
falar do que se está falando.
Assim, na maioria das vezes, onde os
instrutores e livros usam a palavra
mente, sugiro trocar a palavra mente
pela palavra e ego, ou pensamento.
E o que isto tem a ver com a
impossibilidade de sair no presente?
Sair no presente também é uma
mentira. Você não fica no presente,
você é o presente que fica!
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
AGORA OU DEPOIS?
— O que você quer dizer quando afirma
que é.
— Quero dizer exatamente isso: eu sou.
— Não entendo!
— Não entende porque você não é.
— Como, não sou?
— Não há outro ser para ser comigo. Só
há agora, não há depois.
— Como afirma isso se estou
conversando com você agora?
— Agora está, mas tente conversar
comigo depois!
— Não vejo problema! Vou lhe fazer
uma pergunta agora e você me
responde depois. Tudo bem?
— Pronto — respondi.
— Viu? Foi depois!
— Não. Foi agora!
— Pare! Você está me confundindo.
— Não! Você que é a confusão.
— Ah, resolvo isto depois!
duas fontes
na ilha existem duas fontes
uma que é
outra que está
da fonte sai água e jorro
para escapar do encanto
é preciso beber a água no jorro
o jorro é sedutor
a água é água
não tem gosto
não tem cheiro nem sabor
tem a si mesma
só a água mata a sede
o jorro é sedutor.
a voz do ego É a voz de deus
Com base em que você afirma que
algo está certo ou errado? Percebe
como tem uma voz em você que julga
a vida? Uma voz que está sempre
querendo dizer a vida o que fazer?
Que quer dizer a vida o que é certo e o
que é errado? Percebe como esta voz
quer saber mais do que deus?
Observe esta voz. Sem medo. Apenas
observe. Escute seu lamento de
serpente hipnotizadora. É uma voz de
cabaré, que faz você chorar até que
sinta pena de si mesmo. É uma voz
lastimosa, rouca de hematomas, que
reclama, grita e se alimenta das
próprias feridas. É uma voz batendo o
martelo na cabeça de um deus injusto.
Percebe esta voz?
Então, me diga: você é capaz de amar
um deus assim? Um deus que lhe
obriga a viver uma vida de sofrimento?
Sinceramente: eu não sou! Como amar
um deus cruel? Só posso odiá-lo!
Está entendendo a função do ego? O
ego é o tentador, é a tentação, é a voz
da serpente que tenta tirar o homem
do éden. O ego é aquela voz que tenta
fazer você ver deus imperfeito, errado,
injusto, cruel. E, paradoxalmente o ego
é deus também. Percebe o truque?
Quem mais poderia ser o ego? Da
onde poderia vir o diabo? A palavra
“Lúcifer” significa “o fazedor de luz”.
Ou seja, a voz do ego é a voz de deus
(disfarçada de vilão). Entende a
provação pela qual você está
passando?
Está tudo perfeito. A imperfeição faz
parte da perfeição. A imperfeição é
perfeita. Tem uma história que ilustra
perfeitamente isto. Um mestre chega a
uma cidade e começa a discursar
sobre a perfeição de deus. Uma
pessoa na platéia grita que é mentira.
Depois a pessoa tira a camisa e
página 27
mostra sua corcunda como prova. O
mestre pede para a pessoa que se
aproxime. É uma corcunda enorme. O
mestre examina cada detalhe da
corcunda com calma. Todos ficaram
em silencio. Finalmente, o mestre olha
para o homem é pergunta: porque
você discorda? Sua corcunda é
perfeita!
Olhe para o seu ego. Ele não é
infalível? Perfeito em seu trabalho de
lhe colocar em provação? Cadê a
imperfeição?
Oração da Unidade
senhor, fazei-me instrumento
de vossa aparente dualidade
onde houver aparente amor
que eu leve aparente ódio
onde houver aparente perdão
que eu leve aparente ofensa
onde houver aparente união
que eu leve aparente discórdia
onde houver aparente fé
que eu leve aparente dúvida
onde houver aparente verdade
que eu leve aparente erro
onde houver aparente felicidade
que eu leve aparente sofrimento
onde houver aparente luz
que eu leve aparente trevas
mestre, fazei que procure mais
consolar que fingir que consolo
compreender que fingir que
compreendo
amar que fingir que amo
pois se apenas a unidade é real
foda-se as aparências!
AMAR É BURRICE
Você ama alguém? Desculpaí, mas
você é muito burro! Você ama de
verdade? Do fundo do coração? Então
você é um completo idiota. Não
importa se você ama seu pai, sua mãe,
seu marido, sua mulher, seu filho,
Jesus ou a humanidade, você é burro
do mesmo jeito!
Quer ver só? Se você ama, você
perdoa. Quer burrice maior do que
esta? A pessoa pinta e borda, sapateia
e caga na sua cara, e você,
emburricado de amor, ainda oferece a
outra face. Me diga: Qual a lógica
disso?
Outro exemplo, se você ama, você
trabalha de graça. Por amor ao ofício,
faz todo sacro-ofício, tipo Dalai-Lama,
Gandhi, Madre Teresa. Nem preciso
citar com celebridades: qualquer pai de
família anônimo que trabalhe de chofer
pros filhos já serve de exemplo. Ora,
se trabalhar de graça não é burrice, é
ao menos injusto. Não acha?
Agora, a pior notícia não é que amar é
burrice, afinal com o tempo a gente
cria uma maneira de conviver com
essa gripe. A pior notícia é que,
segundo algumas tradições religiosas,
o verdadeiro amor é um vírus que
nunca morre. Ou seja, se você ama,
além de burro, está eternamente
fodido.
Sua única salvação – aliás, nossa, pois
também sou vírus positivo – é a
esperança de que todas as ciências e
filosofias da razão pura estejam
completamente apaixonadas por si
mesmas, e, sendo assim, o amor não
emburreça, mas o raciocínio que se
torne burro para quem entende o amor.

Quer mais exemplos? Se você ama de

fato, você aceita o outro como ele é. Aí
a coisa já fica irracional mesmo. A
pessoa tem bafo de cinzeiro, barba
feita com saliva, coça o saco, fala mal
da sua família, come de boca aberta, e
você, amante, sempre com cara de
Ronald McDonald’s: sou palhaço e
amo muito tudo isto! Só estando
completamente fora do juízo para fazer
uma coisa dessas. Concorda?

E tem mais! Amar, além de burrice, é

indigesto. Se você ama, aposto que já
deve ter engolido muitos sapos,
ciúmes, dores-de-cotovelo, orgulhos,
comidas sem tempero, dívidas de
cerveja e o diabo. Assim, se você ama,
além de burro, deve ter um estômago
de avestruz.

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 28

ria do seu drama
Você já assistiu a aqueles filmes em
que uma pessoa cai na areia movediça
e, quanto mais tenta sair, mais afunda.
Este é o drama do poder (controle).
Você tenta controlar a insatisfação
para sair dela, e, quanto mais tenta,
mais afunda no sofrimento.
A grande ironia deste drama é que ele
é uma comédia. O drama só parece
um drama porque você o vê assim.
Observe as piadas. A grande maioria
delas narram dramas, desgraças.
Então, por que rimos? Porque revelam
nossa burrice, nossa teimosia, nossas
características humanas que, por
estarem acontecendo na piada,
relaxam os dentes serrados fazendo
nossos maxilares gozarem.
Dê um passo para trás de si mesmo e
assista seus dramas. Ria da piada que
é você tentando controlar sua
insatisfação. Eis a forma como você
escapar do drama-movediço. E rir não
é tão difícil assim.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
parábola do abmudo
Um mestre pára um discípulo na rua e
lhe: “Venho pedir humildemente para
que você seja meu mestre. Sei que
você tem muito a me ensinar. Sei que
eu ainda tenho muito que aprender”. O
discípulo responde: “Tudo que tenho
para lhe ensinar é que você não tem
nada para aprender.”
O mestre duvida. O discípulo explica:
“Claro que você duvida! Você não tem
livre-arbítrio para aceitar isto. Então,
vou passar um bom tempo lhe
ensinando que não há nada para
aprender e no fim, quando você
finalmente se der conta que não tem
nada para aprender, vai ficar
desiludido comigo e dirá: poxa, mas
você realmente não me ensinou nada.
Então, eu lhe direi: mas não foi isto
que lhe disse deste o começo?”
O mestre continua duvidando. E
pergunta: “Qual é a verdade?”. O
discípulo responde: “Eu sou mudo!”. O
mestre pensa: “Sim, o discípulo é
mudo! Esta é a verdade”. O discípulo
continua: “Você não está entendendo,
eu sou mudo!”. O mestre pensa: “Sim,
o discípulo é mudo! Esta é a verdade.
Mas eu não estou entendendo. É
porque eu não sou mestre! Um dia
entenderei”.
O discípulo percebe que quanto mais
fala que é mudo, mais o mestre não
compreende o absurdo. Mas o
discípulo sabe que ele não tem livre-
arbítrio também. Então, discípulo e
mestre seguem juntos gritando pela
rua: “eu sou mudo!”. Até que, numa rua
qualquer, o mestre acorda e se dá
conta do absurdo do abmudo. Agora,
discípulo e discípulo seguem gritando
pela rua: “somos mudo!”.
questionÁrio para quem quer
salvar o mundo
Você quer salvar o mundo? Se sua
resposta é “sim”, me diga que mundo
você quer salvar? O meu? O seu? O
mundo dos Raimundos? Das Marias?
Dos petistas? Dos tucanos? Dos
bicheiros? Dos americanos? Dos
muçulmanos? Dos chineses? Dos
cristãos? Dos judeus? Dos ricos? Dos
pobres? Da classe média? Das
formigas? Das minhocas? Dos
jacarés? Das samambaias? Das
cenouras? Dos plânctons? Dos
caramujos? Enfim, que mundo você
quer salvar se cada cabeça é um
universo?
Continua querendo salvar o mundo?
Se sua resposta ainda é “sim”, me diga
quem lhe disse que o mundo quer ou
precisa ser salvo? Você já conversou
com o mundo? Já perguntou ao mundo
se ele quer ser salvo?
Caro candidato a Che Guevara,
passou por esta mesma escola que
você está passando um rapaz que
nasceu a dez mil anos atrás e que
também queria salvar o mundo. No fim,
quando estava quase para morrer,
confessou humildemente: “Não sei por
que nasci para querer ajudar / a querer
consertar / o que não pode ser / Não
sei pois nasci para isso / e aquilo e o
enguiço / de tanto querer / o meu
egoísmo é tão egoísta / que o auge do
meu egoísmo é querer ajudar /
Carpinteiro do universo inteiro eu sou /
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
assim / no final / carpinteiro de mim”.
Você quer salvar quem mesmo?
imagine no stress
John Lennon, depois de vender muito
“Ticket to ride” na fase obaoba dos
Beatles, compôs a música “Imagine”, e
passou a vender tickets para um
mundo sem guerras. Concordo que o
sonho hippie de John parece o pôster
do paraíso, mas se cada John deste
mundo sonha com seu próprio obaoba,
como transformar todos os pôsteres
num Woodstock só?
Visando resolver problemas como
este, onde o livre arbítrio alheio faz de
qualquer paraíso utópico um
verdadeiro inferno, venho vender
tickets para o paraíso definitivo: um
mundo sem stress.
Para chegar lá é simples. Imagine que
você se mudou para um mundo onde
errar é impossível. Um mundo onde
todas as pessoas, inclusive você,
fazem tudo certo. Um mundo onde
tudo acontece exatamente como deve
acontecer para o bem de todos.
Imagine, porém, que embora você
tenha se mudado e esteja vivendo
neste mundo perfeito, devido a uma
limitação consciencial chamada “ego”,
você se encontra incapacitado de
perceber (racionalmente) a perfeição
em que está metido. Por fim, olhe ao
redor e imagine que este mundo
perfeito para onde você se mudou é
este mesmo mundo em que você está
vivendo agora, agora, agora...
It´s easy if you try.
página 29
atravesse sua ponte
Sei que é fundamental respeitar o
processo de cada ser, pois
desconhecemos o propósito e a
programação de cada jornada, mas
isto não me impede de disser o
seguinte: o conhecimento é uma
ponte, então, para se chegar ao
autoconhecimento é preciso atravessar
a ponte e seguir em frente!
Muitas pessoas que buscam o
autoconhecimento encontram pontes
lindas como a psicologia, o budismo, o
espiritismo, o cristianismo, etc. Beleza!
Faz parte do caminho chegar até as
pontes. Se as pontes existem é porque
tem um propósito. Mas tem pessoas
que se apegam tanto as suas pontes
que não querem mais seguir em frente.
Constroem casa na ponte, estendem o
varal, fazem um jardim e ficam
morando na ponte. Depois não
entendem porque não chegam nunca
ao autoconhecimento.
Caro amigo leitor, companheiro de
viagem, caçador de si, observe e veja
se este não é o seu caso. Se for, note
que as pontes, feitas com madeira da
árvore do bem e do mal, são bonitas,
úteis, fazem parte do caminho de volta
ao éden, mas é preciso atravessá-las e
seguir em frente para chegar a si
mesmo. Ou seja, você está se
esperando do outro lado: atravesse
sua ponte!
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
o cara que risca os fósforos
Desde que me entendo por vela estou
procurando o cara que risca os
fósforos. Eis o fogo de minha angustia.
Fogo que me consome, dia após dia.
Dizem que minha busca é benéfica aos
que me rodeiam, que gera luz e calor
no ambiente. Não me queimo por isto.
Foda-se a luz. Foda-se o ambiente.
Fodam-se os que amam e os que
odeiam minha combustão. Não me
queimo por ninguém. Me queimo por
mim mesmo. Me queimo de desejo
sem remédio. Ardo na procura do cara
que risca os fósforos. Ele escapa de
mim feito areia em uma ampulheta de
grãos de fogo. Uma ampulheta que me
leva, que me larva, que me livra, mas
que não me dá a medida.
Qual o tamanho do cara que risca os
fósforos? Talvez amanhã. Sempre
amanhã. Nunca. Sempre. Quando vou
encontrar o cara que risca os fósforos?
No meu centro tem um umbigo de
pano. Meu mundo começa e termina
nele. Antes dele, tudo. Depois dele,
nada. Será que o cara que risca os
fósforos está depois do meu umbigo?
O que será que será? Efeito de
parafina que não sacia.
Me lembro de muitos dias de fogo. Não
sei quanto tempo. Não sei até quando.
Tudo agora mesmo pode estar por um
segundo, canta a vela preta. Dizem
que só quem sabe o destino do velório
é o cara que risca os fósforos. Inferno
é saber apenas por não saber.
Peço que apareça com seus fósforos.
Ou sem eles. Fogo mundo. Fogo pião.
Não quero um perdão que nem dez
mandamentos vão conciliar. Não quero
ficar de joelhos neste altar, velando o
corpo de um filho que Prometeu voltar
sem corpo. Não me conformo com a
forma. Todos os santos de barro e
imaginários estão sendo consumidos
pela mesma pergunta que me
consome agora e sempre: cadê o cara
que risca os fósforos?
Desde que me entendo por vela estou
procurando-o. Por que será? Para
onde vai a vela quando a vela acaba?
Tenho cá para mim que agora sim me
foi enfim revelado. Mentira.
JUNTE-SE A ELE
Estava procurando deus. Procurando
eu. Coluna do meio. Coluna ereta.
Dedos em forma de triangulo de
Pitágoras. Ar entrando e saindo do
pulmão oceânico. A boca pronunciava
um mantra. O que é mantra? Tipo
assim: gasolina para os chacras. O
que são chacras? Tipo assim: rodas de
um carro que não paga pedágio.
Ele estava procurando ele também.
Deus também. Calça social. Terno e
gravata. Jornal com oferta de emprego
dentro da bíblia. O que é bíblia? Tipo
assim: uma caixa cheia de cartas
fechadas.
Depois de correr, eu costumava parar
debaixo daquela arvore. Praticar yoga.
O que é yoga? Tipo assim: oficina das
rodas (chacras). Me sentava na
penumbra da manha e, feito disco
riscado, emitia sempre o mesmo som:
oooooooooooom.
Não sei por que ele escolhia
justamente aquela pedra para se
sentar e cantar seus salmos. Ele sabia
que eu estava em silencio, fazendo
yoga. Podia me ver enquanto berrava
feito um trio elétrico.
Eu tentava me concentrar. E quanto
mais me esforçava, mais o mantra de
uma vogal só se misturava as canções
de padre Marcelo. Quem é o padre
Marcelo? Tipo assim: um cara que
substituiu a metodologia da inquisição
pela metodologia da diversão.
Achei que a presença do intruso seria
circunstancial, frente ao meu propósito
infinito. Engano meu. Parecia até
combinado. Mágica. Bastava fechar os
olhos e ele chegava.
Certo dia, cansado da luta mental,
abandonei o mantra e me concentrei
em sua voz desafinada. Ouvi diversos
página 30
salmos. Nada conhecido. Até que uma
canção fez meu catecismo vir a tona.
O que é catecismo? Tipo assim: uma
coleção de contos de fardos. “Se é
longa a jornada e te cansas na
caminhada, segura na mão de deus e
vai...” Ele cantou. Depois nunca mais
voltou. Talvez tenha encontrado um
emprego, ou então, deus. O que é
deus? Tipo assim: eu sou ele.
a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri
caminhe!
Caminhe, homem! Assim como contam
seus irmãos de pés cascudos. Assim
como sonham seus irmãos de pés de
seda. Caminhe ereto. Com a sombra
amarrada aos calcanhares. Com olhos
de girassol. Com o couro desgastando
feito sabão seguindo a regra três, onde
o menos vale mais
Caminhe, homem! Lábios calados em
punho. Corpo cajado em prumo. Passo
a passo, empurrando o mundo para
trás.
Caminhe, homem! Não porque
acredita ser necessário chegar ao final
da reta, mas porque é inevitável
curvar-se ao próprio destino.
Caminhe, homem! São mais de mil e
oitocentas colinas, novecentos
dragões de lama, sete demônios de
resistência, e todos vencidos pela
solidariedade de duas pernas que
servem de ombro uma à outra.
Caminhe, homem! Entregue-se à
dança dos bambus e eles dobrarão o
medo para você. Ande calmo entre as
vacas e elas ruminarão suas
angústias. Solte seus cabelos brancos
e o vento lhe responderá como
responde às árvores. Beba suas
mágoas gole após gole, que num ato
de alívio ela se juntará à enxurrada,
rumo ao rio, rumo ao mar.
Caminhe, homem! E quando cair,
levante-se. E quando levantar-se,
siga até cair de novo. E quando estiver
no chão, não reclame da profundidade
da sorte, nem da largura do azar antes
do próximo passo.
Caminhe, homem! Ouça os lírios do
campo. Plante um livro. Leia uma
árvore. O apito do tem trem gosto de
amora. Não olhe pela nuca. O caminho
está por todos os lados e todos levam
a Roma.
Caminhe, homem! Carros andam mais
rápido do que você. Cavalos andam
mais rápidos do que você. Cachorros
andam mais rápido do que você.
Tartarugas com câimbra andam mais
rápido do que você. Maas você não
pode andar mais rápido do que você.
Nem pode ser mais do que já é. Você
é uma criança jurada de morte pelo
tempo. Saboreie tanto a fome como a
refeição. Mais vale manteiga no pão
do que sebo nas canelas.
Caminhe, homem! Muitas vezes o
caminho será uma pedra no sapato.
Uma carga impossível de carregar.
Uma montanha intransponível.
Caminhe, homem, que em algum
momento do caminho seu coração
será tocado pela mesma força que dá
peso à carga, altura à montanha,
dureza à pedra. Caminhe para
compreender que sentar só faz sentido
quando se está andando e andar só
faz sentido quando se está sentado.
página 31
 de adulto, ânimo de criança e
sabedoria de ancião.

Caminhe, homem. E quando estiver Caminhe, homem! Porque o caminho é

com fome, coma. E quando estiver seu melhor amigo. Porque o caminho
com sede, beba. E quando tiver forças, só existe para lhe servir. Porque
ande. E quando não tiver mais, pare. caminhar é o seu caminho. Seu
destino de homem.

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 32

 SOBRE O AUTOR

Marcelo Ferrari nasceu em Santa Fé do Sul porque morava numa cidade que não tinha
hospital. Aos 14 anos de idade, dormiu em São José do Rio Preto e foi acordar em São
Paulo. Estudou a vida inteira para ser engenheiro, mas jogou truco no colegial. Mudou
de opinião, de área e hemisfério cerebral. É formado em Comunicação Social. Escreve
artigos, crônicas, contos e poemas. Publicou seu primeiro livro (Manga com Leite) em

a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 33

1998. O segundo livro (Xixi com Tinta) em 2005. O terceiro livro (Verdade sobre a
Mentira) em 2008. Também é musico e catador de carambolas.

Marcelo Ferrari publica nos seguintes endereços:

Pegando Buda pra Cristo – Blog de filosofia

http://budapracristo.blogspot.com

Matrix Zero – Blog de filosofia

http://matrix-zero.blogspot.com

Diário do Bobo da Corte – Blog de poesia

http://diariodobobo.blogspot.com

Xixi com Tinta – Blog de literatura

http://xixicomtinta.blogspot.com

Satsilvatube – Videos de filosofia no youtube

http://www.youtube.com/view_play_list?p=E223F9B55C145DCF

Clipoemas – Videos de poesia no youtube

http://www.youtube.com/view_play_list?p=2F9C5F213611ECB6

Violão&Voz – Videos de musica no youtube

http://www.youtube.com/view_play_list?p=E56171016A8EFC21

Satsilva - Grupo de debate no yahoogrupos

http://br.groups.yahoo.com/group/satsilva

Email para contato:

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a v e r d a d e s o b r e a m e n t i r a - marcelo ferrarri página 34