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sub specie alteritatis

experiências de antropologia especulativa

O androide e o humano // Philip K. Dick


O androide e o humano, por Philip K. Dick

Discurso principal proferido na Convenção de Ficção Científica de Vancouver, realizada


da University of British Columbia, em Março de 1972, e publicado na edição de
Dezembro de 1972 de SF Commentary (Austrália) e na edição Março-Abril de 1973 de
Vector (Reino Unido). Em uma carta ao editor de SF Commentary, Bruce Gillespie, Dick
disse que naquele discurso tentara “resumir o desenvolvimento do pensamento de uma
vida inteira”, alegando que ali estaria “a semente dos meus romances por vir”.

tradução, revisão e notas: Maurício Pitta e Rondinelly Gomes Medeiros.

Animar o seu próprio ambiente é a tendência da assim chamada mente primitiva.


Durante anos, a moderna psicologia profunda demandou que retirássemos tais
projeções antropomórficas do que na verdade é realidade inanimada, para que
pudéssemos introjetar — isto é, trazer de volta para dentro de nossas próprias cabeças
— a qualidade viva que nós, em nossa ignorância, havíamos lançado sobre as coisas
inertes que nos rodeiam. Diz-se que tal introjeção é o marco da verdadeira maturidade
individual e a marca autêntica da civilização, em contraste com a mera cultura social tal
como encontramos em uma tribo. Diz-se que um nativo da África vê seus arredores
pulsando com um propósito, uma vida, que está, na verdade, dentro dele mesmo. Uma
vez que tais projeções infantis são retiradas, ele vê que o mundo é morto e que a vida
reside apenas em seu próprio interior. Quando ele atinge esse ponto sofisticado, diz-se
que ele está maduro, ou são. Ou científico. Contudo, pode-se questionar: nesse processo,
ele também não reificou — isto é, transformou em uma coisa — as outras pessoas?
Pedras e rochas e árvores podem ser inanimadas para ele agora. Mas e seus amigos? Ele
não os terá transformado em pedras também?

Na verdade, esse é um problema da psicologia. E, em todo caso, acho que sua solução é
menos importante do que poderíamos pensar, pois na última década pudemos observar
uma tendência não antecipada nem mesmo por nossos mais sérios psicólogos — nem
por mais ninguém — e que se reduz ao seguinte problema: nosso ambiente, quero dizer,
nosso mundo feito pelo homem, de máquinas, construtos artificiais, computadores,
sistemas eletrônicos, componentes homeostáticos interconectados, tudo isso está, na
realidade, começando a possuir mais e mais daquilo que psicólogos sérios receiam ser o
que o primitivo vê em seu ambiente: animação. Em um sentido muito real, nosso
ambiente está se tornando vivo ou, ao menos, quase-vivo, e de maneiras específica e
fundamentalmente análogas à nossa. Uma valiosa disciplina científica recente, a
cibernética, articulada pelo falecido Norbert Wiener[1], registrou comparações válidas
entre o comportamento de máquinas e de humanos, notando que um estudo das
máquinas poderia render valiosos insights sobre a natureza de nosso próprio
comportamento. Ao estudar o que ocorre de errado com uma máquina — por exemplo,
quando dois tropismos mutuamente exclusivos funcionam simultaneamente em uma
das tartarugas sintéticas de Grey Walter[2], produzindo um comportamento
fascinantemente intricado nas atordoadas tartarugas —, pode-se ter, talvez, uma nova e
mais frutífera percepção sobre o que foi previamente chamado, nos humanos, de
comportamento “neurótico”. Vamos supor, porém, que essa analogia fosse usada às
avessas. Suponhamos — e eu não creio que Wiener tenha antecipado isso — um estudo
de nós mesmos, de nossa própria natureza, que nos permita obter um insight sobre o
funcionamento e sobre o mau funcionamento, agora extraordinariamente complexos, de
construtos mecânicos e eletrônicos. Em outras palavras — e desejo frisar isso no que
estou dizendo —, é agora possível que possamos aprender sobre o ambiente externo e
artificial que nos circunda, sobre como e por quais motivos ele se comporta e sobre o que
se passa com ele, através da criação de analogias com o que nós sabemos sobre nós
mesmos.

Máquinas estão se tornando mais humanas, por assim dizer — ao menos no sentido de
que, como indicava Wiener, alguma comparação significativa existe entre os
comportamentos humano e mecânico. Mas não é a nós mesmos que nós conhecemos
antes de tudo? No lugar de aprender sobre nós mesmos estudando nossos construtos,
talvez devêssemos tentar compreender o que nossos construtos estão fazendo, olhando
para o que nós estamos fazendo.

Talvez estejamos assistindo à mescla gradual da natureza geral da atividade e da função


humanas com a atividade e a função daquilo que nós humanos construímos e com o que
nos cercamos. Há cem anos, tal pensamento não teria sido tachado de meramente
antropomórfico, mas de absurdo. O que um homem, vivendo em 1750, teria aprendido
sobre si mesmo observando o comportamento de um guincho a vapor carregado de
toras de madeira[3]? Poderia ele, ao observar o motor bufando e baforando ter, então,
tirado do trabalho da máquina uma sacada sobre o motivo de ele mesmo continuamente
se apaixonar por um certo tipo de bela garota? Isso teria sido, de sua parte, não um
modo primitivo de pensar, mas um modo patológico. Porém, agora nos encontramos
imersos em um mundo de nosso próprio feitio, tão intrincado, tão misterioso, que, como
o eminente escritor polonês de ficção científica Stanislaw Lem teoriza, chegará uma hora
em que um homem talvez tenha de ser impedido de tentar estuprar uma máquina de
costura, por exemplo. Se essa hora chegar, esperamos que seja uma máquina de costura
fêmea que prenda a atenção dele. E uma que tenha mais de dezessete anos — tomara
que seja uma Singer muito velha, operada por pedal, embora possivelmente, e
lamentavelmente, aí ela já tenha passado da menopausa.
Tenho escrito, em alguns de meus contos e romances, sobre androides ou robôs ou
simulacros — o nome pouco importa, pois o que quero dizer é que são construtos
artificiais disfarçando-se de humanos e normalmente com um propósito sinistro em
mente. Admito pressupor que se um tal construto – um robô, por exemplo – tivesse em
mente um propósito benigno, ou de alguma forma decente, ele não precisaria se
disfarçar dessa forma. Hoje, para mim, esse tema parece obsoleto. Os construtos não
imitam os humanos; na verdade, eles já são, de muitas e profundas maneiras, humanos.
Eles não estão tentando, por algum motivo, nos enganar; eles apenas seguem as linhas
que nós seguimos, a fim de que também possam ultrapassar problemas comuns tais
como a falência de partes vitais do corpo, a perda da fonte de energia, o ataque de
adversários como tempestades, curtos-circuitos — e tenho certeza de que qualquer um
de nós aqui atestaria que um curto-circuito, especialmente em nossa fonte de energia,
pode arruinar nosso dia inteiro e nos deixar absolutamente incapazes de chegar ao local
de trabalho ou, estando no escritório, de fazer as tarefas postas em nossa mesa.

O que poderia me ocorrer como uma reformulação do tema robô-que-parece-humano


seria um robô brilhante com uma teleobjetiva e uma bateria de hélio portátil e que,
quando atropelado, sangra. Sob seu casco de metal está um coração, como nós mesmos o
temos. Talvez eu escreva isso. Ou, como em contos já impressos, um computador que,
quando alguém faz uma pergunta definitiva, do tipo “Por que existe água?”, imprime a
Primeira Epístola aos Coríntios. Um conto que escrevi, e que receio não ter levado
suficientemente a sério, trata de um computador que, quando foi capaz de responder a
uma pergunta que lhe havia sido posta, comeu o perguntador. Provavelmente — e eu
falhei em não encarar isso —, se o computador não fosse capaz de responder à pergunta,
o humano perguntador o teria comido. De todo modo, inadvertidamente eu misturei o
humano e o construto e não me dei conta de que tal mistura pudesse, com o tempo, de
fato começar a fazer parte de nossa realidade. Como Lem, eu acho que será cada vez
mais assim. Mas, levando adiante a ideia de Lem: pode chegar um tempo em que, se um
homem tenta estuprar uma máquina de costura, a máquina de costura fará com que ele
seja preso e testemunhará no tribunal, talvez um pouco histericamente, contra ele. Isso
levaria a todo tipo de derivações [spin off ideas]: falso testemunho dado por máquinas de
costura subornadas que acusam homens inocentes injustamente, testes de paternidade e,
é claro, abortos para máquinas de costura que ficaram grávidas contra sua vontade.
Haveria pílulas anticoncepcionais para máquinas de costura? Provavelmente, como uma
de minhas ex-esposas, certas máquinas de costura reclamariam que as pílulas as deixam
acima do peso — ou, neste caso, que fazem com que costurem pontos irregulares. E
haveria máquinas de costuras não confiáveis que se esqueceriam de tomar a pílula
anticoncepcional. E por último, mas não menos importante, teria de haver Clínicas de
Planejamento Familiar nas quais máquinas de costura recém-saídas das linhas de
montagem seriam aconselhadas sobre os perigos da promiscuidade, com avisos severos
sobre doenças venéreas advindo sobre tais máquinas imorais por desígnio de um Deus
ultrajado — sendo Ele, sem dúvida, capaz de costurar botoeiras e bordados elegantes em
uma velocidade que deslumbraria as crédulas máquinas de costura meramente
metálicas e plásticas, sempre prontas, como nós, a prostrar-se ante milagres divinos.

Acho que estou levando isso na brincadeira, mas a questão não é meramente
humorística. Nossos construtos eletrônicos estão ficando tão complexos que precisamos
inverter a analogia da cibernética e tentar raciocinar partindo de nossa própria mente e
do nosso próprio comportamento para compreender o deles — embora eu pense que
lhes atribuir motivo e propósito seria como entrar no domínio da paranoia; o que as
máquinas fazem pode parecer com o que nós fazemos, mas certamente elas não têm
intenção no mesmo sentido em que nós a temos; elas têm tropismos, têm propósitos, no
sentido em que nós as construímos para atingir certos fins e para reagir a certos
estímulos. Uma pistola, por exemplo, é construída com o propósito de atirar uma bala
de metal que irá causar um dano, incapacitar ou matar alguém, mas isso não quer dizer
que a pistola queira fazer isso. E, mesmo assim, estamos aqui entrando no domínio
filosófico de Spinoza, quando ele percebeu, e acho que com grande profundidade, que se
uma pedra que cai pudesse raciocinar, ela pensaria: “eu quero cair em uma velocidade de
9,7 metros por segundo.” No nosso caso, o livre arbítrio — isto é, o fato de sentirmos
desejo, de estarmos conscientes de querer fazer o que fazemos — pode até mesmo ser
uma ilusão, e a psicologia profunda parece justificar isso: muitas de nossas motivações
na vida originam-se de um inconsciente que está além do nosso controle. Somos
conduzidos como o são os insetos, ainda que o termo “instinto” talvez não seja aplicável
a nós. Qualquer que seja o termo, grande parte daquilo que no nosso comportamento
sentimos resultar de nossa vontade, pode, na verdade, estar nos controlando, na medida
em que, para todos os fins práticos, nós [somos como] pedras condenadas a cair na
velocidade prescrita pela natureza, tão rígida e previsivelmente como a força que cria
um cristal. Cada um de nós pode se sentir único, com um destino intrínseco nunca antes
visto no universo… e, ainda assim, para Deus, podemos ser milhões de cristais, idênticos
aos olhos do Cientista Cósmico.

E — eis um pensamento não muito agradável — na medida em que o mundo exterior se


torna mais animado, podemos nos dar conta de que nós, os assim chamados humanos,
estamos nos tornando, e talvez em larga medida sempre tenhamos sido, inanimados, no
sentido em que nós, ao invés de conduzir, somos conduzidos, dirigidos por tropismos
integrados. Sendo assim, nós e nossos computadores elaboradamente evolutivos
podemos nos encontrar no meio do caminho. Pode ser que um dia, um ser humano,
atendendo pelo nome de Fred White, atire em um robô chamado Pete Alguma-coisa, que
acabou de sair de uma fábrica da General Electrics, e, para sua surpresa, veja-o chorar e
sangrar. E pode ser que o robô, agonizando, atire de volta e, surpreso, veja uma mecha
de fumaça cinza surgir da bomba elétrica onde deveria estar o coração pulsante do Sr.
White. Seria um momento de grande verdade para ambos.

Eu gostaria, então, de perguntar o seguinte: em nosso comportamento, o que podemos


dizer que é especificamente humano? O que nos é especial enquanto uma espécie viva?
E o que, ao menos até agora, podemos consignar como mero comportamento de
máquina ou, por extensão, comportamento de inseto, ou comportamento de reflexo? E
nisto eu gostaria de incluir o tipo de comportamento pseudo-humano exibido pelo que
outrora foram homens vivos — criaturas que, pelos modos que eu gostaria de discutir a
seguir, têm se tornado instrumentos, mais meios do que fins, e consequentemente, para
mim, se tornado análogas a máquinas, no mau sentido, no sentido em que, embora a
vida biológica continue e o metabolismo ocorra, a alma — na falta de um termo melhor
— não está mais lá ou, ao menos, não está mais ativa. E isso existe no nosso mundo;
sempre existiu, mas a produção de uma tal atividade humana inautêntica se tornou
agora uma ciência do governo e de agências do tipo. A redução de humanos ao mero
uso: homens transformados em máquinas, servindo a um propósito que, embora “bom”
em um sentido abstrato, tem empregado, para sua concretização, o que eu considero ser
o maior mal imaginável, o de impor sobre o que um dia foi um homem livre, que ria e
chorava e cometia erros e vagava por bobeiras e brincadeiras, uma restrição que o limita,
a despeito do que ele possa imaginar ou pensar, ao cumprimento de uma meta outra que
não o seu próprio, ainda que insignificante, destino pessoal. Como se, por assim dizer, a
história tivesse feito dele um instrumento – a história e homens hábeis e treinados no
uso de técnicas manipulativas, equipados com dispositivos, ideologicamente orientados,
de forma que o uso de tais dispositivos soa para eles como um método necessário, ou ao
menos desejável, de atingir algum almejado objetivo final.

Penso, nesse ponto, no comentário de Tom Paine sobre os partidos da Europa de seu
tempo: “Eles admiram as penas e se esquecem do pássaro que agoniza.” E é com o
“pássaro que agoniza” que estou preocupado – o pássaro que agoniza e que, ainda
assim, penso, começa de novo a reviver nos corações da nova geração de garotas e
garotos chegando à maturidade… o pássaro agonizante da autêntica humanidade.

Isso é o que eu gostaria de dizer a vocês aqui, hoje. Eu gostaria de revelar minha
esperança, minha fé, na garotada que está emergindo agora, no seu mundo, nos seus
valores… E, simultaneamente, na sua impermeabilidade aos falsos valores, aos falsos
ídolos, aos falsos ódios das gerações anteriores: no fato de essas delicadas e boas garotas
e garotos não poderem ser alcançadas ou movidas, ou mesmo tocadas, pela “gravidade”
— para me referir novamente à metáfora anterior — que fez com que nós mais velhos
caíssemos, contra nosso conhecimento ou vontade, a 9,7 metros por segundo ao longo de
nossas vidas… acreditando que nós desejávamos isso.

É como se essas crianças, ou pelo menos muitas delas estivessem caindo em uma
velocidade diferente ou na verdade nem estivessem caindo. O dito de Walt Whitman,
“Marchando ao som de outros tambores”[4], poderia ser reformulado da seguinte
maneira: caindo, não em resposta a supostas “verdades” não examinadas, incontestes,
mas em resposta a desejos humanos novos e interiores — e genuinamente autênticos.

A juventude, é claro, sempre tendeu a isso; de fato, essa é realmente uma definição de
juventude. Mas nesse momento ela é muito urgente, se, como eu penso, estamos
paulatinamente nos fundindo em uma homogeneidade com nossos construtos
mecânicos, passo a passo, mês a mês, até um tempo em que um escritor, por exemplo,
não irá parar de escrever porque alguém tirou da tomada sua máquina datilográfica
elétrica, mas porque alguém o tirou da tomada. Contudo, há agora crianças que não
podem ser tiradas da tomada porque nenhum cabo elétrico as liga a nenhuma fonte de
energia externa. Seus corações batem com um sentido interior, privado. Sua energia não
vem de um marca-passo, mas de uma recusa teimosa, quase absurdamente perversa, de
serem “intoxicadas” [“shucked”], isto é, de serem classificadas por slogans, por uma
ideologia — na verdade, por toda e qualquer ideologia, seja de qual tipo for — que as
reduza a instrumentos de causas abstratas, ainda que “boas”. De volta à Califórnia, de
onde eu venho, tenho convivido com crianças assim, participando, na medida em que
posso, de seu mundo emergente. Eu gostaria de contar a vocês sobre o mundo delas
porque se tivermos sorte algo desse mundo, esses valores, esse jeito de viver, dará forma
ao futuro de toda a nossa sociedade, [será] nossa utopia ou anti-utopia do futuro. Como
escritor de ficção científica, eu devo, é claro, olhar sempre para frente, sempre para o
futuro. É minha esperança — e eu gostaria de comunicá-la a vocês nesse tremendo
espírito de otimismo que eu sinto tão urgente e fortemente — que nosso amanhã
coletivo exista de forma embrionária nas cabeças, ou melhor, nos corações dessas garotas
e garotos que agora, enquanto jovens, são política e sociologicamente desprovidos de
poder, até mesmo impossibilitados, de acordo com nossas leis californianas, de comprar
uma garrafa de cerveja ou um cigarro, de votar, ou de, em alguma medida, dar forma,
serem consultados sobre ou fazerem existir as leis oficiais que governam a sociedade
deles – e a nossa. Eu penso assim e digo isto: se você está interessado no mundo de
amanhã, você pode aprender algo sobre ele, ou ao menos ficar sabendo das
possibilidades que surgem para moldá-lo, nas páginas da Analog, da F&SF e da Amazing,
mas, na verdade, você vai descobri-lo, encontrá-lo em sua forma autêntica, ao observar
garotos ou garotas de 16 ou 17 anos em suas peregrinações naturais, em sua rotina
normal. Ou, como dizemos na Área da Baía de São Francisco, enquanto a observa
“cruzando a cidade para ver o que ‘tá rolando” [“cruising around town to check out the
action”]. Isso é o que eu encontrei. Essa garotada que eu conheci, com quem convivi e
que ainda conheço, na Califórnia, são meus contos de ficção científica de amanhã, meu
somatório como pessoa e escritor a essa altura da minha vida; eles são o que eu enxergo
à frente e que tão apaixonadamente desejo ver prevalecer. São aquilo em que acredito,
mais do que em todo o resto que eu encontrei – e eu daria minha vida por isso: a medida
completa de minha devoção nessa guerra na qual estamos lutando para manter,
aumentar, o que é humano em nós, nosso núcleo e a fonte de nosso destino. Nosso voo
não pode ser apenas rumo às estrelas, mas à natureza de nosso próprio ser. Porque não
se trata só de para onde nós vamos, para Alpha Centauri ou Betelgeuse, mas do que nós
somos enquanto fazemos nossa peregrinação para lá. Nossas naturezas estarão indo
para lá também. Ad astra — mas per hominem. E não podemos nunca perder isso de vista.

Seria, afinal, desanimador se a primeira entidade bípede a surgir na superfície de Marte


desde uma nave espacial terráquea declarasse: “Graças a Deus por me deixar, me deixar,
clique, deixar, clique, clique… isso é uma gravação.” E, de repente, pegasse fogo e
explodisse porque dois fios cruzaram em algum lugar de seu peito de plástico. E
provavelmente seria ainda mais desanimador para esse construto a descoberta, ao
retornar à Terra, de que seus “filhos” foram reciclados junto com latinhas de cerveja e
garrafas de Coca-Cola como parte do problema da poluição urbana. E se, finalmente,
quando esse astronauta feito de plástico, fios e circuitos fosse até os oficiais da prefeitura
para reclamar, descobrisse que sua garantia de três anos havia expirado e, não estando
mais disponíveis as peças necessárias para mantê-lo funcionando, que sua certidão de
nascimento havia sido cancelada.

É claro, literalmente, que não devemos levar isso a sério, mas como uma metáfora — no
sentido mais geral de que talvez nós devêssemos examinar mais atentamente as
entidades bípedes que planejamos mandar para, por exemplo, equipar a estação espacial
em órbita. Não queremos descobrir, daqui a três anos, que a suposta tripulação humana
casou e constituiu família com partes da estação espacial a fim de zumbir felizes para
sempre em sua felicidade conjugal. Como no magnífico conto de Ray Bradbury, em que
um cidadão apavorado de Los Angeles descobre que o carro de polícia que o persegue
não tem motorista, que o está seguindo sozinho e por conta própria, devemos nos
certificar de que um de nós senta no banco do motorista; no conto do Sr. Bradbury, o
horror de verdade, ao menos para mim, não está no fato de que o carro de polícia tem
seu próprio tropismo ao perseguir o protagonista, mas que dentro do carro há um
vácuo, um lugar não preenchido.
A ausência de algo vital — essa é a parte horripilante, a visão apocalíptica de um
pesadelo futuro. Contudo, eu mesmo prevejo algo mais otimista: se eu tivesse escrito o
conto, teria colocado um adolescente atrás do volante do carro de polícia; ele o teria
furtado enquanto o oficial de polícia estivesse na lanchonete, durante seu intervalo de
almoço, e iria desmanchar o veículo, para vendê-lo por partes. Pode parecer um pouco
cínico de minha parte, mas isso não seria preferível? Como costuma acontecer na
Califórnia, onde eu vivo, se os policiais vêm investigar um roubo na sua casa, e
percebem, quando estão indo embora, que alguém retirou os pneus, o motor e a
transmissão de seus carros, eles terão de pedir carona na rua para voltar ao quartel. Esse
pensamento pode causar medo nos corações das pessoas de bem [establishment people],
mas, francamente, me deixa animado. Até mesmo os mais básicos esquemas de seres
humanos são preferíveis aos mais exaltados tropismos das máquinas. Eu acho que bem
aqui está uma das mais válidas percepções de algumas pessoas da nova juventude:
carros, até mesmo carros de polícia, são dispensáveis, podem ser substituídos. Eles são,
na verdade, todos iguais. É a pessoa dentro deles que, quando some, não pode ser
duplicada, seja pelo preço que for. Mesmo se não gostamos da pessoa, não podemos
sumir com ela. E, uma vez que ela não esteja mais aí, pode ser que nunca mais retorne.

E ainda que ela tenha sido transformada em um androide, pode ser que ela nunca mais
retorne, nunca mais seja humana novamente – na verdade, o mais provável é que ela
não será.

À medida que a garotada de nosso mundo luta para desenvolver sua nova
individualidade, seu quase grosseiro desrespeito pelas verdades que nós adoramos, ela
se torna para nós — e com “nós” quero dizer o establishment — uma fonte de problema.
Não estou necessariamente me referindo à juventude politicamente ativa, àqueles que se
organizam em sociedades bem definidas, com banners e slogans — para mim, essa é uma
redução ao passado, por mais revolucionários que esses slogans sejam. Eu me refiro às
entidades intrínsecas, às garotas e garotos que, cada qual, está na sua, fazendo, como se
diz, “do seu próprio jeito” [“his thing”]. Ela pode, por exemplo, não violar a lei sentando
nos trilhos em frente a comboios de tropas; seu desprezo pela lei pode consistir em levar
seu carro para um cinema drive-in com quatro garotos escondidos no porta-malas para
não precisar pagar pelo ingresso deles. Ainda assim, a lei está sendo violada. A primeira
transgressão tem tons políticos, teóricos; a segunda, mera falta de acordo com ter de
fazer sempre o que ordenam fazer — especialmente quando a ordem vem de uma placa
impressa e pregada na parede. Em ambos os casos, há desobediência. Nós devemos
aplaudir a primeira como significativa. A segunda, meramente irresponsável. E, ainda
assim, é na segunda que eu vejo um futuro mais feliz. Afinal de contas, sempre houve na
história movimentos de pessoas que fazem oposição organizada aos poderes
governantes. Neste caso, é apenas um grupo usando força contra outro, os de fora versus
os de dentro. Isso até agora falhou em produzir a utopia. E acho que sempre falhará.

Tornar-se o que eu chamo (por falta de termo melhor) de androide significa, como eu
disse, permitir a si mesmo virar apenas um meio, ou ser pisado, manipulado, tornado
um meio sem conhecimento ou consentimento: os resultados são sempre os mesmos.
Mas você não pode transformar um humano em um androide se esse humano vai violar
leis sempre que puder. A androidização requer obediência. E, mais do que tudo,
previsibilidade. É precisamente quando a resposta de uma pessoa a qualquer dada
situação pode ser predita com precisão científica que os portões estão abertos para a
produção em massa da forma de vida androide. De que serve uma lanterna se, mesmo
que você aperte o botão, o bulbo acende apenas algumas vezes? Qualquer máquina deve
funcionar sempre para ser confiável. O androide, como qualquer outra máquina, deve
agir por meio de comandos [perform on cue]. Mas não se pode contar com nossa
juventude para isso; ela não é confiável, seja por preguiça, déficit de atenção,
perversidade, tendências criminosas — tanto faz a etiqueta que você quiser prender na
garotada para explicar essa falta de confiabilidade, cada uma dessas etiquetas
simplesmente significará: nós podemos mandar nela e dizer a ela o que fazer. Mas
quando chega a hora dela, toda ordem subliminar, todas as instruções ideológicas, todas
as drogas tranquilizantes, toda a psicoterapia… são perda de tempo. Ela simplesmente
não vai pular quando o açoite estalar. E é aí que ela não serve para nós, os poderes
calcificados e entrincheirados. Ela não vai dar garantia de que agirá como um
instrumento pelo qual nós, ao mesmo tempo, mantemos e aumentamos esses poderes e
as recompensas, para nós mesmos, que vêm com eles.

Acontece que tem havido muita [esforço de] persuasão. O aparelho de televisão, os
jornais, tudo o que se chama de mass media tem exagerado nisso. As palavras não fazem
mais muito sentido para essas crianças; elas as ouviram demais. Elas não podem ser
ensinadas, porque tem havido muita impaciência para fazê-las aprender – e o motivo é
muito óbvio. Os escritores de ficção científica anti-utópica de quinze anos atrás, e eu fui
um deles, previam a maquinaria de propaganda das comunicações de massa que reduz
todo mundo à mediocridade e à uniformidade. Mas não é exatamente assim que está
acontecendo. Enquanto o rádio do carro alardeia a visão oficial sobre a guerra do Vietnã,
o jovem menino está desconectando o alto-falante comum [speaker] para substituí-lo por
um de frequências agudas [tweeter] ou por um de frequências graves [woofer]; no meio da
arenga governamental, o alto-falante de frequências médias está desconectado. E,
enquanto habilmente acopla melhores componentes de áudio em seu carro, o garoto
sequer nota que a voz no rádio está tentando dizer algo a ele. Esse garoto, habilidoso
artesão, presta atenção apenas se há distorção, interferência ou uma curva de frequência
que não esteja totalmente compensada. Sua cabeça está voltada para realidades
imediatas, ao alto-falante ele mesmo, não àquela flatus voci fazendo alarido nele.

A sociedade totalitária visualizada por George Orwell em 1984 já deveria ter chegado.
Os dispositivos eletrônicos estão aqui. O governo está aqui, pronto para fazer o que
Orwell antecipara. O poder, o motivo e o hardware eletrônico já existem. Mas isso não
significa nada, porque cada vez mais e mais ninguém está ouvindo. A nova juventude
que eu vejo é muito estúpida para ler, muito inquieta e entediada para assistir, muito
preocupada para se lembrar. A voz coletiva das autoridades é um desperdício com ela.
Ela se rebela. Não por considerações teóricas, ideológicas, mas apenas pelo que pode ser
chamado de egoísmo puro. Junto a isso está uma descuidada falta de respeito pelas
terríveis consequências que prometem as autoridades se ela não obedecer. Ela não pode
ser subornada porque o que ela quer ela pode construir, roubar ou, de alguma forma
curiosa e intrincada, adquirir por si mesma. Ela não pode ser intimidada porque, nas
ruas e em casa, ela viu e participou de tanta violência que isso não consegue amedrontá-
la. Ela apenas sai do caminho quando a violência a ameaça ou, se não pode escapar, luta.
Quando a van selada da polícia vier arrastar jovens para o campo de concentração, os
guardas descobrirão que, enquanto lotavam a van, deixaram de notar que outro jovem,
igualmente desesperançado, furava os pneus. A van está fora de serviço. E, enquanto os
pneus estavam sendo trocados, outro jovem estava tirando todo o combustível do
tanque para abastecer seu Chevrolet Impala envenenado e que ele já acelerou de lá há
muito tempo.

Uma absolutamente horrível sociedade tecnológica — esse era o nosso sonho, nossa
visão do futuro. Não podíamos imaginar nada que fosse equipado com poder, astúcia ou
qualquer coisa suficiente para impedir a chegada desse terrível pesadelo de sociedade.
Nunca nos ocorreu que a garotada delinquente pudesse abortá-la pela pura e perversa
malícia de suas pequenas almas individuais – Deus as abençoe! Eis aqui, para o caso em
questão, dois excertos de matérias dos meios de comunicação; o primeiro, citado na Time
– e esse epítome da náusea é, juro, o que a Time chama de “o último sonho em serviços
de telefonia”, como descrito pelo antigo chefe de engenharia da AT&T, Harold S.
Osborne:

Sempre que um bebê nasce, em qualquer parte do mundo, é dado a ele, no nascimento,
um número de telefone para toda a vida. Assim que começa a falar, ele recebe um
aparelho, parecido com um relógio, com dez pequenos botões ao lado e uma tela do
outro. Quando deseja falar com qualquer pessoa no mundo, basta que ele abra o
aparelho e pressione o número nas teclas. Então, virando o aparelho, ele ouvirá a voz de
seu amigo e verá seu rosto na tela, em cor e em três dimensões. Se ele não puder vê-lo ou
ouvi-lo, saberá que seu amigo está morto.

Eu não sei; realmente, eu não acho isso nada engraçado. É, na verdade, triste. É de
estilhaçar o coração. De qualquer forma, isso não vai acontecer. As crianças já viram isso.
“Phone freaks” é o modo como esses garotos em particular são chamados. Isso é o que diz
o L.A. Times, em um artigo datado do começo desse ano:

Eles (os phone freaks) já chegaram carregando MF’s — sinais sonoros de múltiplas
frequências — customizados, o termo phone freak para uma blue box. Os MF’s amadores
variavam em tamanho e design. Um deles era um sofisticado transistor de bolso feito por
um doutor em engenharia, outro era do tamanho de uma caixa de charutos com um
acoplador preso ao receptor do fone. Até agora, esses phone freaks inventaram 22
maneiras de fazer uma ligação gratuita sem usar cartões de crédito. No caso de um
deslize, os phone freaks também sabem como detectar ‘supervisão’, o jargão das
companhias telefônicas para um tom quase inaudível que aparece na linha antes de
alguém atender, para registrar a cobrança da chamada. Logo que os phone freaks
detectam a maldita ‘supervisão’, eles desligam rapidamente.

O Capitão Crunch ainda estava na cabine telefônica, empurrando os interruptores


vermelhos em sua elegante caixa computadorizada. Seu nome foi dado por causa de um
apito achado na caixa de cereal matinal Cap’n Crunch. Crunch descobriu que o apito
tinha uma frequência de 2600 ciclos por segundo, a mesma frequência que a companhia
de telefone utiliza para indicar que uma linha está ociosa e, é claro, a primeira frequência
que os phone freaks aprenderam a simular para serem ‘desconectados’, o que os permitiu
passar de um circuito para o outro. Crunch, atento, curvou-se sobre sua caixa para ler
uma lista de códigos numéricos de países. Ele imitou um telefonista, forneceu
informações técnicas precisas ao operador do outro lado do oceano e ligou para a Itália.
Em menos de um minuto, ele alcançou um professor de Grego Clássico da Universidade
de Florença.
É dessa forma que o futuro aparece. Nenhum de nós, escritores de ficção científica,
prevíamos o aparecimento dos phone freaks. Felizmente, nem a companhia de telefone
previa, pois, de outra forma, teria tomado providências. Mas essa é a diferença entre o
mito cruel e a realidade feliz e acolhedora. E foi a garotada, única, maravilhosa, livre de
escrúpulos, em qualquer sentido tradicional, que fez a diferença.

Falando em termos da ficção científica, eu antevejo agora um Estado totalitário e


anárquico à nossa frente. Daqui a dez anos, um repórter televisivo de rua perguntará a
alguma criança quem é o presidente dos Estados Unidos e a criança irá admitir que não
sabe. “Mas o Presidente pode fazer com que você seja executado”, protestará o repórter.
“Ou espancado, ou jogado em uma prisão, ou pode retirar todos os seus direitos, todas
as suas propriedades — tudo.” E o garoto irá responder: “Pois é, meu pai também podia
ter feito isso até mês passado, quando ele sofreu um infarto fatal. Ele costumava dizer a
mesma coisa.” Fim da entrevista. E quando o repórter for juntar seu equipamento, ele
perceberá que um de seus sistemas de microfone-vidlens estéreo 3-D terá sumido; a
criança o havia furtado enquanto o repórter tagarelava.

Se estivermos, como parece, no processo de transformarmo-nos em uma sociedade


totalitária na qual o aparelho de Estado é todo-poderoso, a mais importante ética para a
sobrevivência do verdadeiro e livre indivíduo humano será: trapacear, mentir, fugir,
falsificar, estar em outro lugar, forjar documentos, construir dispositivos eletrônicos
improvisados na garagem para driblar os dispositivos usados pelas autoridades. Se a
tela da televisão estiver te assistindo, troque as conexões na calada da noite, quando
permitirem que você a desligue — troque-as de forma a que o lacaio da polícia que
estava monitorando a transmissão da sua sala, receba na tela dele as imagens da casa
dele. Quando você for coagido a assinar uma confissão, forje o nome de um dos espiões
políticos que está infiltrado em seu clube de modelagem de aeronaves. Pague suas
multas com dinheiro falsificado, cheques sem fundo ou cartões de crédito roubados. Dê
um endereço falso. Chegue ao tribunal do júri com um carro roubado. Diga ao juiz que,
se ele te condenar, você irá substituir as pílulas anticoncepcionais da filha dele por
cartelas de aspirina. Ou ponha o Meritíssimo em uma lista de correio de revistas
pornográficas. Ou, se tudo o mais falhar, ameace-o usando o número do cartão de
crédito telefônico dele para fazer ligações de longa distância desnecessárias para cidades
em outros planetas. Não será mais preciso que se exploda o tribunal. Simplesmente
encontre algum jeito de difamar o juiz — você o viu dirigindo uma noite no lado errado
da rua com os faróis desligados e um quinto de uma garrafa de uísque Seagram’s VO
que ele segurava junto ao volante. E o adesivo no carro dele, naquela noite, dizia:
TODOS OS DIREITOS GARANTIDOS PARA NÓS HOMOSSEXUAIS. Ele, é claro, já
tratou de retirar o adesivo, mas você e dez amigos testemunharam a cena. E eles estão
todos em telefones públicos nesse momento, prestes a ligar para os jornais locais. E, se
ele ainda for tolo o suficiente para sentenciar você, ao menos lhe peça para devolver o
gravador de fitas que você inadvertidamente deixou no quarto dele. Já que o botão de
desligar do aparelho está quebrado, provavelmente ele gravou dez dias completos de
fita até agora. Os resultados devem ser interessantes. E se ele tentar destruir a fita, você
poderá fazê-lo ser preso por vandalismo, o que, no Estado totalitário de amanhã, será o
crime supremo. O que sua vida vale aos olhos dele em comparação a um carretel de fita
de três dólares? A fita provavelmente será propriedade do governo, como todo o resto;
logo, destruí-la seria um crime contra o Estado. O primeiro passo para uma sinistra e
calculada insurreição.
Pergunto-me se vocês lembram-se do chamado “mapeamento cerebral”, desenvolvido
recentemente por Penfield; ele foi capaz de localizar exatamente os centros no cérebro
dos quais vinha cada sensação, emoção e resposta. Ao estimular por um minuto certa
área do cérebro com um eletrodo, um rato de laboratório transfigurou-se em um estado
de perpétua satisfação. “Logo, logo Eles farão isso com todos nós também”, me disse um
amigo pessimista, notando que “uma vez que os eletrodos forem implantados, Eles
poderão nos induzir a sentir, pensar e fazer tudo o que Eles quiserem.” Bom, para fazer
isso, o governo teria de contratar a fabricação de bilhões de kits de eletrodos e, como de
costume, teria de contratar o licitante que cobrasse menos, o qual construiria eletrodos
precários com componentes de segunda mão. Por sua vez, os técnicos designados para
implantar os eletrodos nos cérebros de milhões e milhões de pessoas ficariam entediados
e descuidados e, quando o interruptor fosse pressionado para que toda a população
ficasse de luto pela morte de algum oficial do governo — provavelmente o Ministro do
Interior, a cargo dos campos de reabilitação por meio do trabalho escravo — tudo ficaria
bagunçado e a população, como aquele rato de laboratório, teria convulsões coletivas de
alegria. Ou o cabeamento precário, conectando os cérebros da população com o Centro
de Controle do Pensamento de Washington D.C., iria ficar sobrecarregado e a
sobretensão iria ricochetear pelos cabos e atear fogo à Casa Branca.

Ou isso é apenas um anseio de minha parte? Uma pequena fantasia sobre a sociedade do
futuro que deveria deixar a todos nós realmente apreensivos?

A contínua elaboração de um Estado de tirania como nós dos círculos de ficção científica
antecipamos no mundo de amanhã — toda a nossa preocupação com o que chamamos
de sociedade “anti-utópica” — essa crescente invasão do Estado na privacidade do
indivíduo, seu saber em demasia sobre ele, e por fim (quando ele sabe, ou quando ele
pensa que sabe de algo que não vê com bons olhos), o uso de seu poder e capacidade
para esmagar o indivíduo… como havíamos compreendido completamente, esse
processo maligno utiliza a tecnologia como seu instrumento. As invenções da ciência
aplicada, como os sofisticados e quase miraculosos sensores que agora estão voltando do
uso na guerra do Vietnã para serem adaptados ao uso civil aqui — esses sensores de
infravermelho passivo, as lentes de rifles sniper, essas caixas cromadas com mostradores
e bitolas que podem penetrar tijolo e pedra, que podem dizer ao usuário o que está
sendo dito e feito a quase dois quilômetros, dentro de edifícios bem selados, seja um
abrigo de concreto ou um prédio de apartamentos; [tudo isso] pode, como as armas de
outrora, cair no que as autoridades chamam de “mãos erradas” — isto é, nas mãos das
próprias pessoas que estão sendo monitoradas. Como qualquer máquina, esses
transmissores universais, aparelhos de gravação, discriminadores de padrões de
temperatura, não garantem por si mesmos quem os usa ou contra quem são usados. O
veículo predador da ordem pública acelerando para o local de uma briga de rua na qual,
por exemplo, algum jovem jogou um balão cheio de água no carro esportivo de algum
rico contribuinte — tal veículo, por mais rápido que seja, mais bem armado e animado
pelo espírito de justiça que esteja, pode ser identificado por meio das mesmas lentes
pelas quais seus superiores perceberam a perturbação anterior… e a notificação de sua
iminente chegada à cena pode ser registrada por meio do mesmo walkie-talkie excedente
do Exército pelo qual se mantém o controle da multidão quando os negros se reúnem
para protestar por seus justos direitos. Antes que o poder absoluto do Estado absoluto
de amanhã possa atingir a vitória, deverá se deparar com acontecimentos como esse:
quando a polícia aparece na sua casa para prendê-lo por ter pensamentos não
aprovados, um sensor que você comprou e equipou na sua porta distingue os intrusos
dos amigos usuais e o alerta do perigo.

Deixe-me dar um exemplo. No gigantesco prédio do centro cívico de meu condado, algo
como um fantástico cenário de plástico e cromo, do tipo Buck Rogers, para filmes ruins
de ficção científica, cada visitante deve passar por um campo eletrônico que ativa um
alarme se ele traz consigo muito metal, sejam chaves, um relógio, um par de tesouras,
uma bomba, um rifle Winchester .308… Quando o aro do detector apita — e sempre
apita para mim —, um oficial da polícia uniformizado imediatamente revista o visitante.
Um sinal alerta se qualquer arma for descoberta em um visitante, e aí está tudo
acabando para ele. O sinal também alerta se qualquer droga ilegal for encontrada com o
visitante, durante a revista de armas, e aí ele está acabado também. Suponho que até
mesmo vocês, aqui no Canadá, estão conscientes do motivo dessa busca metódica de
armas em cada visitante do Centro Cívico do Condado de Marin — tem a ver com o
trágico tiroteio de mais ou menos um ano atrás[5]. Porém, e eles postaram oficialmente
um aviso sobre isso, o visitante será inspecionado também por posse de narcóticos, e
isso nada tem a ver nem com o tiroteio, nem com qualquer perigo ao edifício e às
pessoas dentro dele. A um ponto de verificação eletrônico, instalado legitimamente para
abortar uma situação em explosivos ou armas sejam trazidas ao Centro Cívico, foi
atribuída uma função policial adicional que está conectada ao real problema apenas pelo
traço comum de ser uma violação do código penal. Para visitar a biblioteca do condado,
que fica nesse prédio, você está sujeito à revista — deve, na verdade, render-se a ela
absoluta e incondicionalmente — por posse [de drogas ou armas] sem proteção jurídica,
instituída com base no próprio sistema de direitos civis americano; e se existir algum
indício claro e evidente de que você pode estar carregando narcóticos antes de ser
revistado, esse indício pode ser usado contra você. Durante essa revista, eu até mesmo
tive de deixar que, na entrada, o oficial uniformizado examinasse os livros e papeis que
eu estava carregando, a fim de ver se eles eram aceitáveis. O próximo passo, nos meses
que vêm, seria ter pontos de verificação compulsória como esse em cruzamentos
movimentados e em todos os prédios públicos, inclusive, em bancos e outros
estabelecimentos. Uma vez que se oficializou que autoridades podem revistar você à
procura de drogas ilegais porque você está devolvendo um livro à biblioteca, penso que
se pode ver o quão longe a tirania do estado pode ir — tendo em vista que ele se
equipou com aros eletrônicos de detecção que registram a presença de algo que todos
nós carregamos conosco: chaves, cortadores de unha, moedas… Embora seja apenas um
estranho sonzinho, o blip que você ativa abre uma porta que não leva à biblioteca do
condado, mas a uma possível prisão. É esse blip que precede todo o resto. E quantos
outros tantos blips estamos ativando, ou nossos filhos ativarão, em um contexto do qual
nada sabemos ainda? Mas eis meu otimismo: as crianças de hoje, tendo nascido nessa
sociedade extremamente invasiva, estão totalmente conscientes e já pressupõem a
atividade de tais dispositivos. Durante uma tarde, enquanto eu estacionava meu carro
em uma vaga em frente à mercearia, comecei, como sempre, a trancar todas as portas do
carro, para evitar que os embrulhos no banco de trás fossem roubados. “Ah, você não
precisa trancar seu carro”, disse a garota que estava comigo. “Esse estacionamento é
constantemente filmado por um circuito interno de TV. Todos os carros e todo mundo
aqui está sendo observado o tempo todo: nada pode acontecer.” Nós, então, entramos na
mercearia, deixando o carro destrancado. E ela estava certa, é claro. Nascida nessa
sociedade, ela aprendeu a conhecer tais coisas. E agora eu tenho um sistema de
vigilância infravermelho na minha própria casa em Santa Venetia, conectado com o que
é chamado “caixa de transmissão digital”, que, quando ativada por um sensor, transmite
o sinal codificado diretamente à agência de segurança mais próxima, notificando-a de
que intrusos invadiram minha casa. Esse sistema de detecção eletrônico, totalmente
auto-operável, funciona estando eu em casa ou não. Ele é capaz de diferenciar a
presença de um ser humano da de um animal. Ele tem sua própria fonte de energia. Se a
linha de transmissão é cortada, aterrada ou mesmo alterada, ou se alguém mexer em
qualquer outra parte do sistema, o sinal é imediatamente liberado. E a Westinghouse irá
reinstalá-lo em qualquer lugar em que eu for morar: esses componentes são meus para o
resto da vida. Afinal, conforme espera a Westinghouse Security, todas as casas e negócios
terão proteção desse tipo. A companhia construiu e mantém um centro de comunicações
perto de cada comunidade no condado. Se não há agência policial disposta ou capaz de
aceitar o sinal, seu próprio centro de comunicação responde e garante despachar, dentro
de quatro minutos, um grupo de seguranças — isto é, os mocinhos com as armas estarão
na sua porta dentro desse tempo. Não importa se o intruso entra com a chave de acesso
ou explode um lado inteiro da casa, ou, como estão me dizendo que se faz agora, se
perfuram o teto — não importa como ele entra, nem por qual razão, o mecanismo
responde e transmite o sinal. Apenas eu posso desligar o sistema. E se eu esqueço, então,
pra mim já era.

A propósito, alguém sugeriu que talvez esse sensor de infravermelho passivo fazendo
constante varredura do interior de minha casa “pode estar me observando e reportando
tudo que eu faço em minha própria sala para as autoridades.” Bem, o que eu estou
fazendo é sentar na minha mesa com caneta e papel tentando descobrir como pagar os
$840 que eu devo para a Westinghouse pelo sistema. Segundo meus cálculos, até agora,
eu acho que se eu vender tudo o que possuo, inclusive minha casa… Deixemos isso pra
lá… Mais uma coisa. Se eu entro na minha casa e o sistema descobre que estou
carregando narcóticos ilegais comigo, ele não apita; ele faz com que eu, minha casa e
tudo nela se autodestruam.

Drogas ilícitas, aliás, são o maior problema da área em que eu vivo; quero dizer, as
drogas ilegais que você compra na rua são frequentemente adulteradas, reduzidas ou
simplesmente não são aquilo que eles anunciam que são. Você pode acabar envenenado,
morto ou apenas “sacaneado” [“burned”], o que quer dizer que “você ficou sem curtir”
[“you don’t get off”], o que quer dizer que você pagou dez dólares para levar um grama
de açúcar. Por este motivo, alguns laboratórios gratuitos foram montados com o
específico propósito de analisar drogas ilícitas; você envia a eles uma porção da droga
que você comprou e eles dizem o que tem ali, sendo o motivo, é claro, que você deva
saber, antes de fazer uso, se aquilo tem estricnina, revelador de filme ou pó instantâneo
na composição. Bem, em um relance, a polícia percebeu o “real” propósito desses
laboratórios. Eles agem como estações de controle de qualidade para os fabricantes de
droga. Digamos que você está fazendo metanfetamina na banheira de sua casa — um
processo complicado, mas viável — e que, a cada novo lote, você envia uma amostra
para que um desses laboratórios a analise… e eles escrevem de volta: “Não, você não
acertou ainda, mas se você cozinhar talvez mais cinco minutos…” Isso é o que a polícia
teme. Esse é o modo como a mentalidade policial funciona. E, interessantemente,
também é assim que funciona a mentalidade dos traficantes de droga: os traficantes já
estão fazendo precisamente isso. Eu não sei, mas a mim me parece meio que uma ideia
agradável ter os traficantes de droga interessados na qualidade do que eles estão
vendendo. Antigamente, eles se importavam apenas com a questão de você viver tempo
suficiente para pagar pelo que você comprou. Depois disso, o problema era seu.

Sim, como todo pai e mãe responsáveis sabem, drogas ilícitas são um problema, uma
ameaça a suas crianças. Eu concordo completa e enfaticamente. Eu já estive uma vez —
vocês já devem ter lido isso no material biográfico que acompanha meus contos e
romances — interessado em fazer experiências com drogas psicodélicas. Isso já era, para
mim. Eu vi muitas vidas arruinadas em nossa cultura da droga, na Califórnia. Muitos
suicídios, psicoses, danos orgânicos irreversíveis tanto ao coração quanto ao cérebro.
Mas há outras drogas, não ilícitas, não adulteradas com pó instantâneo ou açúcar e sem
as etiquetas trocadas, e que me preocupam ainda mais. Essas são drogas respeitáveis,
drogas-de-bem [establishment drugs], prescritas por doutores respeitáveis ou dadas por
hospitais respeitáveis, especialmente por hospitais psiquiátricos. Essas são drogas de
pacificação. Eu menciono isso a fim de voltar à minha preocupação principal aqui: o
humano versus o androide, e como o primeiro se transformou — pode, na verdade, ser
levado a se transformar — no último. O uso calculado, generalizado e completamente
sancionado de drogas tranquilizantes específicas, como as fenotiazinas, pode até não
produzir, como certas drogas ilícitas, dano cerebral permanente, mas pode produzir — e,
por Deus, elas produzem — o que eu receio chamar de dano da “alma”. Permitam que
eu me estenda sobre isso. Foi descoberto recentemente que o que chamamos de doença
mental ou perturbação mental — síndromes como as esquizofrenias e a ciclotimia
maníaco-depressiva — podem ter a ver com um metabolismo cerebral defeituoso ou
com o funcionamento não adequado de certos catalisadores cerebrais como a serotonina
e a noradrenalina. Uma teoria sustenta que, sob estresse, a produção demasiada de
aminoxidase causa alucinações, desorientações e colapso mental geral. Um choque
repentino, especialmente se for ao acaso, e a produção de luto, como quando da perda
de algo ou alguém querido ou mesmo da perda de algo vital e considerado trivial,
iniciam uma produção excessiva de noradrenalina, que flui por caminhos neurais
geralmente não utilizados, sobrecarregando circuitos cerebrais e produzindo o
comportamento que chamamos de psicótico. Doenças mentais são, então, fenômenos
bioquímicos. Se certas drogas, como as fenotiazinas, são introduzidas, o metabolismo
cerebral recupera o balanço normal; se o catalisador de serotonina for utilizado
apropriadamente, o paciente se recupera. Ou, se uma droga IMAO (inibidor de
monoaminoxidase) é introduzida, a reação ao estresse se torna viável e a pessoa é capaz
de trabalhar normalmente. Ou — e essa é agora a esperança de salvação [prince charming
hope] da profissão médica — o carbonato de lítio, que, se tomado por um paciente em
distúrbio, limitará a produção ou liberação, antes superabundante, do hormônio
noradrenalina, que, mais do que tudo, provoca pensamentos irracionais e
comportamentos socialmente inaceitáveis. Toda a amplitude de sentimentos, tristeza
profunda, raiva, medo, todo e qualquer sentimento intenso, serão reduzidos à medida
adequada pela presença de carbonato de lítio no tecido cerebral. A pessoa se tornará
estável, previsível, não mais uma ameaça para os outros. Ela sentirá o mesmo e pensará
o mesmo todo dia e o dia todo. As autoridades não vão ser pegas por mais nenhuma
surpresa que pudesse surgir dela.

No campo da psicologia anormal, a estrutura de personalidade esquizoide é bem


definida: nela há uma contínua escassez de sentimento. A pessoa pensa, em vez de
sentir, sua trajetória de vida. E, como o grande psiquiatra suíço Carl Jung mostrou, isso
não funciona por muito tempo; deve-se enfrentar a maior parte da realidade absoluta
com uma resposta sensível [a feeling response]. De qualquer forma, há certo paralelo entre
a personalidade que eu chamo de “androide” e a esquizoide. Ambas tem uma qualidade
mecânica, reflexiva.

Ouvi uma vez uma pessoa esquizoide se expressar, com toda a seriedade, dessa forma:
“Recebo sinais dos outros. Mas eu mesmo não posso gerar nenhum sinal até que eu seja
recarregado por uma injeção.” Juro que estou citando-a literalmente. Imagine ver a si
mesmo e aos outros dessa forma. Sinais. Como se fossem de outra estrela. A pessoa
reificou a si mesma completamente, junto com todos ao seu redor. Que terrível. Aqui,
claramente, a alma está morta ou nunca viveu.

Outra qualidade da mente androide é a incapacidade de fazer exceções. Talvez essa seja
sua essência: o fracasso em abandonar uma resposta quando ela não alcança os
resultados, e ainda, pelo contrário, a sua constante repetição. Formas de vida menos
desenvolvidas são habilidosas em oferecer a mesma resposta continuamente, assim
como as lanternas. Certa vez, tentou-se usar um pombo como técnico de controle de
qualidade em uma linha de montagem. Peça após peça, milhares infindáveis delas,
passaram pelo pombo, hora após hora, e o olho atento do pombo observava se havia
anomalias com uma tolerância aceitável. O pombo podia discernir desvios menores do
que aqueles que um humano, fazendo o mesmo controle de qualidade, poderia. Quando
o pombo via uma peça mal feita, bicava um botão, que rejeitava a peça e, ao mesmo
tempo, deixava cair um grão de milho como recompensa para o pombo. O pombo
amava seu trabalho, podia passar ali dezoito horas sem se cansar. Mesmo quando o grão
de milho não caía — acho que por falta de fornecimento —, o pombo continuava
avidamente a rejeitar peças abaixo do padrão. Ele teve de ser, no fim das contas,
removido à força de seu poleiro.

Agora, se eu fosse esse pombo, teria trapaceado. Ao sentir fome, eu teria bicado o botão
e rejeitado uma peça apenas para receber meu grão de milho. Isso teria me ocorrido
depois de um longo período no qual eu não houvesse discernido partes defeituosas.
Porque o que aconteceria com o pombo se, Deus o livre, nenhuma peça nunca tivesse
defeito? O pombo iria morrer de fome. A integridade, nessas circunstâncias, poderia ser
suicida. Na verdade, para o pombo era uma questão de vida e morte achar peças
defeituosas. O que você faria se você fosse o pombo e, depois de, digamos, quatro dias,
você não achasse nenhuma peça defeituosa e ficasse só a pena e o osso? A ética venceria?
Ou a necessidade de sobrevivência? Para mim, a vida do pombo valeria mais que a
exatidão do controle de qualidade. Se eu fosse o pombo… Já a mente androide
[funcionaria assim]: “Eu posso até morrer de fome”, diria o androide, “mas nem a pau
eu rejeitaria uma peça em perfeitas condições.” Em todo caso, para mim, a mente
humana autêntica ficaria entediada e rejeitaria uma peça de vez em quando,
aleatoriamente, apenas para quebrar a monotonia. E não haveria número suficiente de
testes de circuito que pudesse reestabelecer sua confiabilidade.

Deixe-me agora mostrar outro elemento que me parece uma chave essencial para revelar
o autenticamente humano. Não é apenas uma propriedade intrínseca do organismo, mas
a situação na qual ele se encontra. O que acontece a ele, aquilo com o qual ele é
confrontado, trespassado e tem que lidar: certas situações agonizantes geram um
humano ali onde pouco antes havia, como diz a Bíblia, apenas barro. Tal situação pode
ser percebida na face de muitas pietás medievais: o Cristo morto descansando nos braços
de sua mãe. Duas faces, na verdade: a de um homem e a de uma mulher. Estranhamente,
em muitas dessas pietás, o rosto do Cristo parece muito mais velho que o da sua mãe. É
como se um ancião fosse segurado por uma moça: ela sobreviveu a ele e, mesmo assim,
ela veio antes dele. Ele envelheceu ao longo de seu ciclo de vida; ela parece agora, talvez
como sempre tivesse parecido, não atemporal no sentido clássico, mas capaz de
transcender o que aconteceu. Ele não sobreviveu a tal coisa; mostra-se isso em sua face.
De modo que eles experienciaram isso juntos, mas saíram da situação de formas
diferentes. O que aconteceu foi demais para ele; o destruiu. Talvez a informação a se
obter aqui seja a de se dar conta de quão maior é a capacidade que uma mulher tem de
sofrer; isto é, ela sofre mais do que um homem, mas consegue suportar o que ele não
consegue. A sobrevivência da espécie repousa na capacidade dela de conseguir isso, não
na dele. Cristo pode morrer na cruz e a raça humana continua, mas se Maria morre, tudo
está acabado.

Tenho visto jovens mulheres — com, digamos, dezoito ou dezenove anos — sofrer e
sobreviver a coisas que teriam sido demasiadas para mim, e eu acho que para quase
qualquer homem. Sua humanidade, ao passar por essas provações, desenvolveu-se
como uma equação entre elas e sua situação. Não quero com isso repassar a pastosa
doutrina de que sofrer de alguma forma enobrece; de que, de alguma maneira, é uma
coisa boa — ouve-se isso, de vez em quando, sobre gênios: “eles não teriam sido gênios
se não tivessem sofrido” etc. Eu quero dizer apenas que, possivelmente, a diferença
entre o que eu chamo de mentalidade “androide” e o humano é que o último passou por
algo que a primeira não passou, ou, ao menos, passou e respondeu a isso de forma
diferente — mudou, alterou o que fez e, consequentemente, o que foi; ele se tornou
[became]. Eu percebo o androide repetindo sempre algum gesto reflexivo limitado, como
um inseto que sempre levanta suas asas em ameaça ou emite um odor ruim. Sua única
defesa ou resposta pode funcionar ou não. Mas, pego por um problema repentino, o
organismo que se fez mais humano, que se tornou, precisamente nesse momento,
humano, luta profundamente consigo mesmo, por dentro e por fora, para encontrar uma
resposta após outra, na medida em que cada uma falha. No rosto do Cristo morto há
uma exaustão, quase uma desidratação, como se ele houvesse tentado toda e qualquer
possibilidade em um esforço para não morrer. Ele nunca desistiu. E, contudo, apesar de
ter morrido, ter fracassado, ele morreu como um humano. Isso aparece em seu rosto.

“O empenho em persistir em seu próprio ser”, disse Spinoza, “é a essência da coisa


individual”.[6] Antes das divindades masculinas heliocêntricas que apareceram mais
tarde na história, foram as divindades ctônicas, a Mãe Terra, tanto a fonte original do
consolo religioso, como a origem do homem: o homem veio d’Ela e retorna a Ela. Em
todo o mundo antigo acreditava-se que, assim como cada homem emergiu para uma
vida individual desde uma mulher, ele acabaria voltando e encontraria, enfim, a paz. No
fim da vida, o velho homem de um dos Contos da Cantuária, de Chaucer, “discursa [goes
about] tanto sobre a manhã, quanto sobre a tarde, e bate no solo com seu cajado dizendo:
‘Mãe, mãe, deixe-me entrar… ’”. Assim como, ao final da peça Espectros, de Ibsen, o
homem de meia-idade, regredindo à infância no final de sua vida, enquanto morre de
paresia, diz à sua mãe: “Mãe, dê-me o sol.” Como apontou tão claramente Spinoza, cada
coisa finita, cada homem individual, acaba perecendo… e sua única consolação
verdadeira enquanto perece, enquanto, na verdade, cada sociedade perece, é este retorno
para a mãe, para a mulher, para a Terra.
No entanto, se a mulher é a consolação para o homem, qual é a consolação para a
mulher? Para ela?

Uma vez, assisti a uma moça passar por agonias — ela tinha dezoito anos — que, apenas
em presenciá-las, já eram demais para mim. Acho que ela sobreviveu melhor do que eu.
Eu queria consolá-la, ajuda-la, mas não pude fazer nada, exceto estar com ela. Quando a
Mãe Terra está sofrendo, há pouquíssimo que um homem individual e finito possa fazer.
O namorado da moça não queria se casar com ela porque ela estava grávida de outro
rapaz; ele não queria viver com ela nem procurar um lugar para ela ficar até que
conseguisse abortar — no que ele não ajudaria em nada; ele sequer falaria com ela até
que isso tivesse sido feito… Aí sim, ou pelo menos foi assim que ele prometeu, depois de
tudo, ele se casaria com ela. Bem, ela conseguiu abortar e nós a trouxemos até minha
casa para que descansasse e se recuperasse e é claro que o filho da puta nunca mais quis
ter nada com ela. Eu fiquei com ela durante os dias após seu aborto. Ela passou por uma
fase realmente terrível, sozinha em uma ala pobre e desolada em um hospital de outra
cidade, nunca sendo visitada exceto por mim e por um par de amigos, nunca tendo
recebido ligação de seu namorado ou mesmo de sua família. Depois disso, já na minha
casa, ela percebeu que seu namorado nunca iria conseguir o apartamento que ele
prometera e que ela tanto planejara, e que seus amigos — os amigos dele também —
tinham perdido todo o interesse nela e a olhavam com desprezo… Eu a via dia a dia
declinando, murchando, se desesperando e ficando alucinada de medo; para onde ela
iria? O que seria dela? Ela não tinha amigos, emprego, família, nem mesmo algumas
roupas… nada. E ela não poderia ficar comigo depois que se recuperasse. Ela costumava
deitar na cama, sofrendo, segurando o cachorrinho que eu e ela pegamos no canil; o
cachorrinho era tudo o que ela tinha. E um dia ela partiu – e eu nunca consegui
encontrá-la. Ela nunca mais me contatou; ela queria esquecer-se de mim, do hospital e
dos dias de cura e sangramento e aprendizado da verdade sobre sua situação. E ela
deixou pra trás o cachorrinho. Ele está comigo, agora. O que eu lembro particularmente
é que, nas duas semanas em que ela ficou comigo após o aborto, seus seios estavam
fartos de leite; seu corpo, ou ao menos porções dele, não sabia que a criança estava
morta, que não havia mais criança, que a criança estava, como dizia a moça, “em uma
garrafa”. Eu a vi, de repente, como uma súbita mulher, embora ela mesma tenha
recusado, destruído sua maternidade: com bebê ou não, ela era uma mulher, embora sua
mente não lhe dissesse isso; ela ainda usava a camisola de algodão que havia usado, eu
acho, quando morava em casa, na época do colégio — talvez até a mesma camisola de
algodão fácil de lavar que ela usara desde os cinco ou seis anos. Ela ainda gostava de ir
ao mercado e de comprar leite achocolatado e histórias em quadrinhos. Segundo a lei da
Califórnia, ela não podia comprar ou fumar cigarros. Há certos filmes, muitos, aliás, que
nossa lei recomenda que ela não veja. Filmes supostamente sobre a vida. Na viagem
para São Francisco, onde veria o médico para saber sobre o aborto — ela estava com
cinco meses e meio, perto do que a Califórnia considera ser o limite seguro — ela
comprou um bicho de pelúcia roxo por 89 centavos. Eu paguei por ele; ela tinha apenas
25 centavos. Ela levou-o consigo quando foi embora da minha casa. Ela era a mais brava,
brilhante, engraçada e doce pessoa que eu já havia conhecido. Apesar de tudo o que fiz,
a tragédia de sua vida a dobrou e praticamente a quebrou. Mas — eu acho, eu acredito
— a força, por assim dizer, que ela é – a maturidade que havia no inchaço de seus seios,
o olhar para frente em direção ao futuro que havia em seu corpo físico, até mesmo no
momento em que mentalmente e espiritualmente ela estava praticamente destruída —
eu tenho esperança de que esta força prevalecerá. Se não, então, de minha parte, não
sobra mais nada e o futuro tal como eu o concebo não existirá. Porque eu só posso
imaginá-lo povoado de pessoas modestas e discretas como ela. Eu mesmo não farei parte
dele e nem mesmo posso dar-lhe forma: tudo o que eu posso fazer é retratá-lo a partir
dos ingredientes que eu vejo agora: as gentis, pequenas, infelizes, valentes, solitárias e
apaixonantes criaturas que estão existindo em outro lugar, desconhecido para mim
agora, sem nem se lembrarem de mim, mas, rezo, vivendo, recomeçando a vida,
esquecendo — “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-
lo”[7], contam-nos, mas talvez seja melhor, talvez seja o único jeito viável, ser capaz de
esquecer. Espero que, em sua cabeça, ela tenha esquecido o que aconteceu, assim como
seu corpo ou esqueceu a perda do bebê, do bebê morto, ou nunca sequer soube dele,
como uma espécie de cegueira, talvez, uma recusa ou incapacidade de enfrentar a
realidade.

Eu, no entanto, nunca dei muita atenção ao que geralmente se chama de “realidade”.
Realidade, para mim, não é tanto algo que você percebe, mas algo que você constrói.
Você a cria mais rapidamente do que ela cria você. O homem é o Deus da realidade,
criado a partir do pó; Deus é o homem da realidade criado continuamente a partir de
suas próprias paixões, de suas próprias determinações. O “bem”, por exemplo — essa
não é uma qualidade, nem mesmo uma força no mundo ou acima do mundo, mas é o
que você faz com porções e fragmentos sem sentido, confusos, decepcionantes, até
mesmo cruéis e esmagadores, fragmentos que estão por toda parte e que parecem
pedaços que sobraram, pedaços descartados de todo um outro mundo que, talvez,
fizesse sentido.

O mundo do futuro, para mim, não é um lugar, mas um evento. Uma construção. Não
feita por um autor, na forma das palavras escritas que compõem um romance ou um
conto para que outras pessoas, sentadas em frente a ele, fora dele, o leiam. Um
construto, sim, sem autor e sem leitores, mas com muitos personagens em busca de um
roteiro. Bem, não há roteiro. Há apenas elas mesmas e o que elas fazem ou dizem umas
às outras, o que elas constroem para sustentar toda a sua individualidade e sua
coletividade, como um grande guarda-chuva que permite que a luz entre e, no mesmo
movimento, deixa do lado de fora a escuridão. Quando os personagens morrem, o
romance termina. E o livro volta ao pó, donde veio. Ou volta, como o Cristo morto, aos
braços de sua calorosa, doce, aflita, compreensiva e amorosa mãe. E um novo ciclo
começa: dela, ele renasce, e a estória, ou outra estória, talvez diferente, talvez até melhor,
se inicia. Uma estória contada pelos personagens, um para o outro. “Uma estória de som
e fúria” — significando muitas coisas. O melhor que temos. Nosso ontem, nosso
amanhã, a criança que veio antes de nós e a mulher que viverá depois de nós e
ultrapassará, por razão de sua própria existência, o que nós pensamos e fazemos.

No meu romance, Os três estigmas de Palmer Eldritch, que é um estudo sobre o mal
absoluto, o protagonista, depois de ter se encontrado com Eldritch, retorna à Terra e
baixa um decreto. Essa pequena seção aparece antes do texto do romance. Na verdade,
esse parágrafo é, ele mesmo, o romance: o resto é uma espécie de post mortem, ou melhor,
um flashback no qual tudo o que veio a produzir o livro de um só parágrafo é
apresentado. As setenta e cinco mil palavras, elaboradas ao longo de muitos meses, são
meras explicações, estão ali apenas para promover um pano de fundo para a curta e
única declaração no livro que importa. (A propósito, ela está faltando na edição alemã).
Essa declaração é, para mim, meu credo — não tanto em Deus, seja um deus bom, um
deus mau ou ambos, mas em nós mesmos. Trata-se do seguinte – e isso é, na verdade,
tudo o que eu tenho pra dizer ou o que pretendo dizer:

Quer dizer, afinal, você tem de levar em conta que somos feitos somente de pó. Há de se
reconhecer que não é muita coisa como ponto de partida, e não deveríamos esquecer
isso. Mas mesmo levando em consideração que, quer dizer, é meio que um mau começo,
não estamos nos saindo tão mal. Então, pessoalmente, tenho fé de que, mesmo nesta
péssima situação que enfrentamos, vamos conseguir chegar lá. Me entenderam?[8]

Isso traz à minha mente um pensamento bizarro: talvez, um dia, uma gigantesca
máquina automatizada vai rugir e tinir: “Da ferrugem viemos.”[9] E outra máquina,
doente e agonizante, embalada nos braços de sua mulher, pode suspirar de volta: “E à
ferrugem voltaremos.” E a paz cairá sobre a paisagem estéril e assolada de angústia.

Nosso campo, ficção científica, trata daquela porção do ciclo da vida de nossa espécie
que se estende para além de nós. Mas se esse é um ciclo real, aquela porção futura dele
de alguma forma já aconteceu. Ou, ao menos, podemos mapear, com uma base quase
matematicamente precisa, as próximas integrais perdidas, de cuja sequência nós somos o
passado. A primeira integral é a cultura da Mãe Terra. A próxima, as divindades solares
masculinas, com suas sociedades autoritárias e sérias, de Esparta a Roma, ao Fascismo
italiano, ao Japão, à Alemanha e à URSS. E, talvez, agora, o que as pietás medievais tanto
esperavam: nos braços da Mãe Terra, que ainda vive, a divindade solar morta, seu filho,
deita-se novamente em um retorno silencioso ao ventre donde ele veio. Acho que
estamos entrando nessa terceira e talvez última sequência de nossa história e essa é uma
sociedade que nosso campo [a ficção científica] enxerga à nossa frente e que será bem
diferente daquelas duas civilizações mundiais familiares do passado. Esse não é um ciclo
de duas partes; nós não chegamos ao final do período da divindade solar masculina
apenas para retornarmos ao culto da Mãe Terra primordial, por mais cheios de leite que
estejam seus seios. O que se desdobra à nossa frente é novo. E possivelmente, além dele,
esteja algo ainda mais singular e obscuro neste momento para o nosso olhar. Por mim
mesmo, eu não consigo enxergar tão longe: a realização, o cumprimento da pietá
medieval como uma realidade viva e todo o nosso ambiente, um ambiente externo e
vivo, tão animado quanto nós mesmos — isso é o que eu posso ver e nada mais. Não
ainda, pelo menos. Eu ficaria contente com isso; ficaria feliz em deitar adormecido e
ainda vivo — “invisível, porém escuro”[10], como diz [Henry] Vaughn — em seus
braços.

Se uma pietá de mil anos atrás, confeccionada por um artesão medieval, antecipasse em
suas, digamos, mãos psiônicas nosso mundo futuro, qual seria, hoje, o análogo desse
artefato inspirado e pré-cognitivo? O que temos conosco hoje, tão caseiro e familiar para
nós no nosso mundo do século XX como eram aquelas pietás cotidianas dos cidadãos da
cristandade do século XIII, e que poderia nos servir como um microcosmos de um futuro
muito distante? Vamos, primeiro, imaginar um devoto camponês da França no século
XIII fixando o olhar na rústica pietá e prevendo nela a sociedade do século XXI que
especulamos nós, escritores de ficção científica. Então, como em um filme de Bergman,
segue para [we segue to]… e agora? Teríamos um de nós fixando o olhar sobre… o quê?
Ciclo — e reciclo [recycle]. A pietá de nosso mundo moderno: feia, trivial, ubíqua. Não o
Cristo morto nos braços de sua enlutada mãe eterna, mas uma pilha de 25 metros de
altura de latas de Budweiser, com milhares delas sendo colhidas de forma barulhenta,
chacoalhando, derramando-se, debatendo-se e respingando, enquanto uma fábrica da
cerveja Budweiser gigante, automatizada, controlada por computadores e homeostática
— uma autofab, como a denominei em um conto[11]— abraça e engole as latas vazias e
descartadas, reciclando-as novamente para uma nova vida, com novos e vivos
conteúdos. Exatamente como antes… ou, se os químicos do laboratório da Budweiser
estiverem cumprindo o plano divino do eterno progresso, com uma cerveja melhor do
que antes.

“Agora vemos apenas como por espelhos, confusamente” disse Paulo na Primeira
Epístola aos Coríntios. Será isso reescrito algum dia como: “Agora vemos apenas como
por um sensor de infravermelho passivo, confusamente”? Um sensor que, como em 1984
de Orwell, nos vê o tempo todo? Nosso tubo de TV nos assistindo de volta enquanto o
assistimos, tão distraídos, entediados ou pelo menos entretidos com o que fazemos
enquanto somos levados pelo que vemos em sua face implacável?

Para mim, essa é uma perspectiva muito pessimista, muito paranoica. Acredito que o
trecho da Primeira Epístola aos Coríntios será reescrito da seguinte forma: “O sensor de
infravermelho passivo vê apenas confusamente o nosso interior”, isto é, ele não nos vê
bem o suficiente para nos identificar. Não que nós mesmos possamos identificar uns aos
outros, ou mesmo a nós próprios. O que, talvez, também seja bom: quer dizer que nós
ainda podemos nos surpreender e, diferentemente das autoridades, que não curtem esse
tipo de coisa, podemos nos deparar com esses acontecimentos fortuitos agindo em nossa
causa, em nosso favor.

Surpresas repentinas, a propósito, e esse pensamento pode ser, ele mesmo, uma surpresa
repentina para vocês, são um tipo de antídoto para a paranoia… ou, para ser mais
preciso, viver de forma a encontrar surpresas repentinas frequentemente, ou mesmo de
vez em quando, é um indicativo de que você não é um paranoico, porque para o
paranoico nada é uma surpresa: tudo acontece exatamente como ele esperava e, às
vezes, ainda pior. Tudo se enquadra em seu sistema. Para nós outros, porém, não pode
haver sistema. Talvez, todos os sistemas — isto é, toda formulação teórica, verbal,
simbólica, semântica etc. que se comporta como uma hipótese que abrange e explica
tudo sobre o universo — são manifestações de paranoia. Deveríamos estar contentes
com o misterioso, o sem sentido, o contraditório, o hostil e, acima de tudo, com o
inexplicavelmente caloroso e generoso assim chamado ambiente inanimado — que, em
outras palavras, é muito parecido com uma pessoa, com o comportamento que um
intrincado, sutil, semi-velado, profundo, perplexo e muito amável ser humano dispensa
a outro. Um pouco temível também, às vezes. E perpetuamente incompreendido. Sobre
o qual não podemos nem saber, nem ter certeza; devemos apenas confiar e fazer
algumas suposições. Não sendo do jeito que você pensou, não fazendo o certo para você,
não sendo justo, mas te sustentando por capricho momentâneo e depois abandonando
você, ou ao menos parecendo abandoná-lo. O que realmente acontece, talvez nunca
saibamos. Ao menos, contudo, isso é melhor do que possuir a espúria e derrotista
certeza de si e da vida que o paranoico tem; certeza expressa por um amigo meu, de
forma engraçada, acho: “Doutor, alguém está colocando algo na minha comida para me
deixar paranoico.” O doutor deveria ter perguntado se essa pessoa colocava essa coisa
na comida de graça ou se cobrava por isso.

Para voltar a me referir uma última vez a um trabalho de ficção científica com o qual
todos nós estamos familiarizados, a Bíblia: são muitos os contos do nosso campo nos
quais computadores imprimem porções desse augusto livro. Aqui e agora eu sugiro a
seguinte ideia para um conto futuro: que um computador imprima um homem.

Ou, se o conto não puder sustentar essa estória[12], como uma segunda opção, uma
muito pobre em comparação com a primeira, sugiro imprimir uma versão condensada
da Bíblia: “No início era o fim.” Ou deveria ser o contrário? “No fim era o início.”
Qualquer que seja. O aleatório, no tempo, resolverá qual dessas deve ser. Felizmente,
não sou eu que preciso fazer essa escolha.

Talvez quando um computador estiver pronto para produzir uma ou outra dessas duas
declarações, um androide, operando-o, tomará essa decisão. Muito embora, se eu estiver
correto acerca da mentalidade androide, ele será incapaz de decidir e imprimirá ambas
ao mesmo tempo, criando um nada que cancela a si mesmo que não vai servir nem para
o caos primordial. Um androide pode, contudo, ser capaz de lidar com isso: tendo algum
poder decisório, ele deverá, dentro do possível, escolher uma ou outra das declarações
como a citação “correta”. Mas androide nenhum — e vocês devem se recordar que, neste
termo, estou resumindo aquilo que não é humano — androide nenhum pensaria em
fazer o que uma garota de olhos claros que eu conheço faria, algo um pouco bizarro, de
certo eticamente questionável sob vários aspectos, ao menos no sentido tradicional, mas,
para mim, realmente humano, no sentido em que demonstra um espírito de alegre
rebeldia, de espirituosas, embora não espirituais, bravura e singularidade:

Um dia, enquanto dirigia em seu carro, ela percebeu que estava seguindo um caminhão
que carregava engradados de Coca-Cola, um atrás do outro, um monte deles. E quando
o caminhão estacionou, ela estacionou atrás e encheu a mala do carro com engradados,
tantos quantos ela pôde colocar lá. Então, durante semanas, ela e seus amigos tinham
toda a Coca-Cola que eles podiam beber e de graça — daí, quando eles esvaziaram as
garrafas, ela as levou até o depósito em troca de algum reembolso.

A isso, eu digo o seguinte: Deus a abençoe. E que ela viva para sempre. E que a
Companhia da Coca-Cola, a companhia de telefone e todo o resto delas, com seus
sensores de infravermelho passivo, suas lentes de sniper e coisas do tipo — que eles
tenham, há muito, sumido. Metal, pedra, fio e cabo nunca foram vivos. Mas ela e seus
amigos… eles, nosso futuro humano, são nossa breve canção. “Quem pode afirmar que o
espírito humano sobe às alturas e que o fôlego das bestas desce à Terra?”[13], pergunta a
Bíblia. Algum dia, em uma revisão tardia, ela pode vir a questionar: “Quem pode
afirmar que o espírito dos homens sobe às alturas e que o fôlego dos androides desce?”
Para onde as almas dos androides vão depois de morrer? Mas – se eles não vivem, eles
não podem morrer. E se eles não podem morrer, eles estarão sempre conosco. Eles têm
alma, afinal? Ou, em todo caso, temos alma nós?

Penso que, como diz a Bíblia, todos nós vamos para o mesmo lugar. Mas não é para a
sepultura; é para a vida que está além. Para o mundo do futuro.
Obrigado.

Notas

[1] Norbert Wiener foi um matemático norte-americano, considerado um dos


fundadores da Cibernética e articulador do conceito de “retroalimentação negativa” que
descreve o sistema de autocontrole característico tanto de aparelhos simples, como um
termostato, quanto da habilidade humana (orgânica e cognitiva) de manejar suas
próprias atividades. Wiener falecera em 1964.

[2] Trata-se dos primeiros robôs autônomos, idealizados e construídos pelo


neurofisiologista norte-americano Grey Walter no final da década de 1940. Eram
chamados de “tartarugas” devido a seu formato e à lentidão de seus movimentos.
Realizando tropismos negativos baseados em foto-sensibilidade, Walter descreve uma
espécie de “atordoamento” das máquinas quando se lhes punha uma lâmpada acesa em
seu “nariz” com um espelho à frente, o que o cientista considerava uma semente de
autoconsciência.

[3] No original, donkey steam engine, nome de uma máquina de desmatamento,


precursora dos atuais tratores, de cuja descrição a tradução tentou dar conta.

[4] No original: Marching to the sound of other drummers. Trata-se de uma referência
inexata, não a Whitman, mas a uma passagem muito conhecida do cap. 6 do Walden, de
H. D. Thoreau: “Se um homem não acerta o passo com seus companheiros é porque
talvez ouça um tambor diferente” [If a man does not keep pace with his companions, perhaps
it is because he hears a different drummer] (Trad. Astrid Cabral, Walden, ou a vida nos bosques,
Global Editora, 2001).

[5] Muito provavelmente, Dick se refere aqui ao conhecido evento de 1971, quando a
sessão de julgamento de três militantes do movimento Black Panthers foi invadida por
um grupo liderado pelo jovem de 17 anos, Jonathan P. Jackson, que sequestrou o juiz, o
promotor e alguns dos jurados do Condado de Marin, em troca da liberdade dos réus.
No intenso tiroteio que se seguiu, três integrantes do Black Panthers e o juiz refém
morreram e outras duas pessoas ficaram gravemente feridas. Este evento levou à
perseguição e prisão arbitrária de Angela Davis, acusada de ter fornecido as armas para
a invasão do tribunal – acusação da qual foi inocentada no célebre julgamento que se
arrastou por dezoito meses.

[6] Adaptação da proposição 7 do livro III da Ética, onde aparece o famoso conceito de
conatus: “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é
do que a sua essência atual”, logo após uma proposição famosa, que diz: “Cada coisa
esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser” (Baruch de Spinoza. Ética.
Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009. p. 105).

[7] Famosa (e não menos problemática) afirmação do escritor hispano-americano George


Santayana, que consta em seu A vida da Razão (vol. I, cap. XII), publicado em 1905. “O
progresso, longe de consistir em mudança, depende da capacidade de retenção. Quando
a mudança é absoluta, não permanece coisa alguma a ser melhorada e nenhuma direção
é estabelecida para um possível aperfeiçoamento; e quando a experiência não é retida,
como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua. Aqueles que não conseguem
lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.

[8] Conforme a tradução de Ludimila Hashimoto (Os três estigmas de Palmer Eldritch, ed.
Aleph, 2014).

[9] Jogo de palavras aparentemente intraduzível que articula rust e dust (das versões
populares da exortação divina de Gênesis, 3, 19: “From dust you came…”).

[10] A citação de Dick está levemente alterada. Trata-se de parte do último verso de The
night, do poeta metafísico galês do século XVII, Henry Vaughan, que originalmente diz
“invisible and dim”.

[11] O conto Autofab se encontra traduzido por Daniel Lühmann no volume Sonhos
elétricos, da editora Aleph.

[12] No original: “If it can’t put that together”.

[13] Citação de Eclesiastes 3, 21.

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