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VOLUME I
Tradutor e digitador:
Carlos Biagini
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 2
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
SOBRE O MÉTODO
CAPÍTULO III
RACIONALISMO
CAPÍTULO IV
MISTICISMO
CAPÍTULO V
A DOUTRINA CATÓLICA ROMANA A RESPEITO
DA REGRA DA FÉ
CAPÍTULO VI
A REGRA PROTESTANTE DA FÉ
CAPÍTULO II
TEÍSMO
CAPÍTULO III
TEORIAS ANTITEÍSTAS
CAPÍTULO IV
O CONHECIMENTO DE DEUS
CAPÍTULO V
A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE DEUS
CAPÍTULO VI
A TRINDADE
CAPÍTULO VII
A DIVINDADE DE CRISTO
CAPÍTULO VIII
O ESPÍRITO SANTO
CAPÍTULO IX
OS DECRETOS DE DEUS
CAPÍTULO X
A CRIAÇÃO
CAPÍTULO XI
A PROVIDÊNCIA
§1. Preservação
A natureza da preservação
A preservação não é uma criação contínua
Objeções à doutrina de uma criação contínua
A doutrina escriturística a respeito desta questão
§2. Governo
Enunciado da doutrina
A. Prova da doutrina
1. Prova com base na evidência da operação da
Mente em todos lugares
2. Argumento com base em nossa natureza religiosa
3. Argumento com base nas predições e promessas
4. Argumento com base na experiência
B. As Escrituras ensinam a providência de Deus sobre a
natureza
A providência se estende sobre o mundo animal
Sobre as nações
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 22
Sobre os indivíduos
A providência de Deus com relação às ações livres
A relação da providência de Deus com o pecado
§3. Teorias diferentes a respeito do governo divino
A. A teoria deísta da relação de Deus com o mundo
B. A teoria da completa dependência
Objeções a esta doutrina da dependência
C. A doutrina de que não há eficiência exceto na mente
D. Teoria da harmonia preestabelecida
E. A doutrina de Concursus
Observações a respeito da doutrina de Concursus
§4. Os princípios envoltos na doutrina escriturística da
Providência
A. A Providência de Deus sobre o universo material
A matéria é ativa
As leis da Natureza
A uniformidade das leis da Natureza, congruente com
a doutrina da Providência
A Providência de Deus com relação aos processos vitais
B. A Providência de Deus sobre as criaturas racionais
Distinção entre a eficiência providencial de Deus e as
influências do Espírito Santo
Conclusão
CAPÍTULO XII
OS MILAGRES
CAPÍTULO XIII
OS ANJOS
Introdução
§1. Sua natureza
Erros a respeito desta questão
§2. Seu estado
§3. Suas missões
§4. Os anjos maus
O poder e a atividade dos maus espíritos
Possessões demoníacas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 24
INTRODUÇÃO
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 25
CAPÍTULO I
SOBRE O MÉTODO
§ 2. O método teológico
§ 3. O método especulativo
Forma dogmática
2. A segunda forma é o método adotado por aqueles que, admitindo
uma revelação divina sobrenatural e concedendo que tal revelação está
contida nas Escrituras cristãs, reduzem entretanto todas as doutrinas
assim reveladas às formas de algum sistema filosófico. Isto o fizeram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 30
muitos dos pais [da Igreja] que tentaram exaltar a πίστις [pistis] a γνῶσις
[gnosis], isto é, a fé das pessoas simples em filosofia para os acadêmicos.
Este, em maior ou menor grau, foi também o método dos escolásticos, e
acha uma ilustração incluso no «Cur Deus Homo» de Anselmo, o pai da
teologia escolástica. Em tempos posteriores Wolf aplicou a filosofia de
Leibnitz para a explicação e demonstração das doutrinas do Apocalipse.
Ele diz: “A Escritura serve de ajuda à teologia natural. Abastece a
teologia natural com proposições que deveriam ser demonstradas;
consequentemente o filósofo está destinado a não inventar, mas sim
demonstrar.” 1 Este método segue ainda em voga. Estabelecem-se certos
princípios, chamados axiomas, ou primeiras verdades da razão, e deles se
deduzem as doutrinas da religião mediante um curso argumentativo tão
rígido e implacável como o de Euclides. Isto se faz em ocasiões para a
total demolição das doutrinas da Bíblia e das mais profundas convicções
morais não só dos cristãos mas também das massas da humanidade. Não
se permite murmurar a consciência na presença do dominador
entendimento. Está no espírito do mesmo método que a velha doutrina
escolástica de realismo é feita na base das doutrinas bíblicas do pecado e
redenção original. A este método se aplicou o termo, melhor dito,
ambíguo de dogmatismo, porque tenta conciliar as doutrinas da Escritura
com a razão, e levar sua autoridade a repousar sobre evidências
racionais. O resultado deste método foi sempre, até onde teve êxito, o de
transmutar a fé em conhecimento, e para chegar a este fim se
modificaram de maneira indefinida os ensinos da Bíblia. Espera-se dos
homens que creiam não com base na autoridade de Deus, mas sim na
autoridade da razão.
Os transcendentalistas
3. Em terceiro lugar, os modernos transcendentalistas estão aderidos
ao método especulativo. São racionalistas no sentido amplo do termo, e
1
Theol. Nat. Prolegg. § 22; Frankf. and Leipz. 1736, vol. i. p. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 31
não admitem uma fonte mais elevada de verdade que a razão. Mas
devido ao fato de que eles consideram a razão como algo muito diferente
do que pensam os racionalistas comuns, as duas classes estão, na prática,
muito distanciadas. Os transcendentalistas diferem também
essencialmente dos dogmatistas. Os últimos admitem uma revelação
externa, sobrenatural e autoritativa. Reconhecem que por ela se dão a
conhecer verdades que a razão humana não pode descobrir. Mas mantêm
que estas doutrinas, quando são conhecidas, podem ser demonstradas
como certas com base nos princípios da razão. Buscam dar uma
demonstração independente das Escrituras a respeito das doutrinas da
Trindade, da Encarnação, da Redenção, assim como da imortalidade da
alma e de um futuro estado de retribuição. Os transcendentalistas não
admitem nenhuma revelação autoritativa à parte da que se encontra no
homem e no desenvolvimento histórico da raça. Toda verdade deve ser
descoberta e estabelecida pelo processo do pensamento. Se se conceder
que a Bíblia contém a verdade, só é assim enquanto coincide com os
ensinamentos da filosofia. Esta mesma concessão faz-se livremente a
respeito dos escritos dos sábios pagãos
A teologia de Daub, por exemplo, é nada além da filosofia do
Schelling. Isto é, ensina sozinho o que aquela filosofia ensina relativo a
Deus, homem, pecado, redenção, e o estado futuro. Marheinecke e
Strauss acham hegelianismo na Bíblia, e eles então admitem que até
agora a Bíblia ensina a verdade. Rosenkranz, um filósofo da mesma
escola, diz que o cristianismo é a religião absoluta, porque seu princípio
fundamental, isto é, a unidade de Deus e homem, é o princípio
fundamental de sua filosofia. Em sua “Encyklopädie” (pág. 3) ele diz:
“A única religião que se ajusta à razão é o cristianismo, porque ele
concede ao homem como a forma na qual Deus Se revelou a Si mesmo.
Sua teologia é então antropologia, e sua antropologia é teologia. A ideia
de (Gottmenschheit) a divindade do homem, é a chave do cristianismo,
em que como diz Lessing, descansa sua racionalidade.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 32
Estas são as principais formas do método especulativo em sua
aplicação à teologia. Estes temas serão apresentados em uma
consideração mais plena num capítulo posterior.
§ 4. O método místico
§ 5. O método indutivo
O Ensino do Espírito
Embora o ensino interno do Espírito, ou experiência religiosa, não
constitui um substituto da revelação externa, é entretanto uma guia
inestimável para determinar o que é que nos ensina a regra da fé. A
característica distintiva do agustinianismo, tal como o ensinou o próprio
Agostinho e tal como foi ensinada pelos mais puros teólogos da Igreja
Latina durante a Idade Média, e que foi exposta pelos Reformadores, e
especialmente por Calvino e os teólogos de Genebra, é que o ensino
interior do Espírito recebe seu posto apropriado na determinação de
nossa teologia. A questão não é em primeiro lugar e de maneira
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 45
principal: O que é verdadeiro para o entendimento?, mas sim: O que é
verdadeiro para o coração renovado? Não se trata de esforçar-se em que
as declarações da Bíblia harmonizem com a razão especulativa, mas em
submeter nossa fraca razão à mente de Deus tanto quanto se revela em
Sua palavra, e por Seu Espírito em nossa vida interior. Pode ser fácil
conduzir os homens à conclusão de que eles são responsáveis apenas por
seus atos voluntários, quando o apelo é feito exclusivamente para o
entendimento. Mas se o apelo se faz a todos os homens e, especialmente,
à experiência interior de cada cristão, se chega a conclusão oposta.
Estamos convencidos da pecaminosidade de estados de espírito, bem
como de atos voluntários, mesmo quando os estados não são o efeito de
nossa própria agência, e não estão sujeitos ao poder da vontade. Estamos
conscientes de estar vendidos sob o pecado; de ser seus escravos; de
estar possuídos por ele como um poder ou direito, imanente, inato, e
além do nosso controle. Essa é a doutrina da Bíblia, e tal é o
ensinamento da nossa consciência religiosa, quando sob a influência do
Espírito de Deus. O verdadeiro método em teologia demanda que os
fatos da experiência religiosa sejam aceitos como fatos, e que quando
forem devidamente autenticados pela Escritura, permita-se que
interpretem as declarações doutrinais da Palavra de Deus. Tão legítimo e
poderoso é este ensino interior do Espírito que não é coisa incomum
encontrar homens sustentando duas teologias: una do intelecto, e outra
do coração. A primeira pode encontrar expressão em credos e sistemas
de Teologia, e a outra em suas orações e hinos. Seria seguro que um
homem resolvesse não admitir em sua teologia nada que não seja
sustentado pela escrita devota de cristãos verdadeiros de qualquer
denominação. Seria fácil construir de tais escritos, recebidos e
sancionados por romanistas, luteranos, reformadores, e remonstrantes,
um sistema de teologia paulina ou agostiniana, como satisfaria qualquer
inteligente e devoto calvinista no mundo.
O verdadeiro método da teologia, então, é o indutivo, que dá por
sentado que a Bíblia contém todos os fatos ou verdades que constituem o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 46
conteúdo da teologia, assim como os fatos da natureza são o conteúdo
das ciências naturais. Também dá-se por sentado que a relação destes
fatos bíblicos entre si, os princípios envoltos nos mesmos, as leis que os
determinam, estão nos próprios fatos, e que deles devem deduzir-se,
assim como as leis da natureza são deduzidas dos fatos da natureza. Em
nenhum de ambos os casos se derivam os princípios da mente nem se
impõem sobre os fatos, mas em ambos os departamentos, e da mesma
maneira, os princípios ou leis são deduzidos com base nos fatos e são
reconhecidos pela mente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 47
CAPÍTULO II
TEOLOGIA
§ 1. Sua natureza
Definições de Teologia
Dão-se frequentemente outras definições de Teologia:
1. Às vezes a palavra se restringe a seu sentido etimológico: «um
discurso a respeito de Deus». Orfeu e Homero eram considerados
teólogos entre os gregos porque seus poemas tratavam da natureza dos
deuses. Aristóteles classificou as ciências sob os cabeçalhos de física,
matemática, e teologia, isto é, aqueles que concernem à natureza,
número e quantidade, e que concerne a Deus. Os Pais falaram do
Apóstolo João como o teólogo, porque em seu evangelho e epístolas a
divindade de Cristo é reproduzida tão proeminente. A palavra segue
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 49
empregando-se neste sentido restringido quando usada em contraste à
antropologia, soteriologia e eclesiologia, como departamentos da
teologia em seu sentido mais amplo.
2. A teologia se considera às vezes como a ciência do sobrenatural.
Mas o que é o sobrenatural? A resposta a esta pergunta depende do
sentido que se dê à palavra natureza. Se por natureza se significa o
mundo externo governado por leis fixas, então as almas dos homens e
outros seres espirituais não ficam incluídas sob este termo. Neste uso da
palavra natureza, o sobrenatural é sinônimo com o espiritual, e a
teologia, como a ciência do sobrenatural, é sinônimo com a
pneumatologia. Se se adotar esta postura, a psicologia sucede um ramo
da teologia, e o teólogo deve, como tal, ensinar filosofia da mente.
Mas a palavra natureza é com frequência tomada num sentido mais
amplo, para incluir o homem. Então temos um mundo natural e um
mundo espiritual. E o sobrenatural é o que neste sentido transcende à
natureza, de modo que o que é sobrenatural também é necessariamente
sobre-humano. Mas não é necessariamente sobre-angélico. Também a
natureza pode denotar tudo o que está fora de Deus; então o sobrenatural
é o divino, e Deus é o único objeto legítimo da teologia. Por isso, em
nenhum sentido da palavra é a teologia a ciência do sobrenatural.
Hooker 2 diz, “Teologia é a ciência das coisas divinas.” Se por coisas
divinas, ou “as coisas de Deus,” quis dizer as coisas que se referem a
Deus, então teologia é restringida a um “discurso relativo a Deus;” se ele
queria dizer as coisas reveladas por Deus, de acordo com a analogia da
expressão “as coisas do Espírito,” como usado cabelo Apóstolo em 1Cor.
2.14, então se soma às definições dadas acima.
3. Uma definição mais comum de Teologia, especialmente em
nossos dias, é que se trata da ciência da religião. Mas a palavra religião é
ambígua. Sua etimologia é duvidosa. Cícero a deriva de relegere, 3 ir
2
Eccles. Pol. iii. 8.
3
Nat. Deor. II.28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 50
diante de, considerar. Então «Religio» é consideração, observância
devota, especialmente no que pertence à adoração e ao serviço de Deus.
«Religens» é devoto, consciente. “Religiosus,” num bom sentido, é o
mesmo que nossa palavra religioso; em sentido mau, quer dizer
escrupuloso, supersticioso. “Religentem esse oportet, religiosum nefas.” 4
Agostinho e Lactâncio derivam a palavra de religare: voltar a atar.
Agostinho 5 diz: “Ipse Deus enim fons nostræ beatudinis, ipse omnis
appetitionis est finis. Hunc eligentes vel potius religentes amiseramus
enim negligentes: hunc ergo religentes, unde et religio dicta perhibetur,
ad eum dilectione tendimus ut perveniendo quiescamus.” E Lactâncio,
“Vinculo pietatis obstricti, Deo religati sumus, unde ipsa religio nomen
accepit, non, ut Cicero interpretatus est, a religendo.” 6 Com base a isto,
religio é a base da obrigação. É aquilo que nos liga a Deus.
Subjetivamente, é a necessidade interior de união com Deus. Usualmente
a palavra religião, em seu sentido objetivo, quer dizer “Modus Deum
colendi,” como quando falamos do pagão, dos maometanos, ou da
religião cristã. Subjetivamente, expressa um estado mental. Há várias
formas em que se descreve este estado quanto ao que é de uma maneira
característica. Da maneira mais simples, é descrito como o estado da
mente induzido pela fé em Deus, e um sentido devido de nossa relação
com ele.
Ou como Wegscheider o expressa, “Æqualis et constans animi
affectio, qua homo, necessitudinem suam eandemque æternam, quæ ei
cum summo omnium rerum auctore ac moderatore sanctissimo
intercedit, intimo sensu complexus, cogitationes, voluntates et actiones
suas ad eum referre studet.” Ou, como mais concisamente expressado
por Bretschneider: «Fé na realidade de Deus, com um estado mental e
forma de viver concordante com esta fé». Ou, mais vagamente:
«Reconhecimento da relação mútua entre Deus e o mundo» (Fischer),
4
Poet. ap. Gell. iv. 9.
5
De Civitate Dei, x. 3. Edit. of Benedictines, Paris, 1838.
6
Instit. Div. iv. 28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 51
ou, «O reconhecimento de uma causalidade sobre-humana na alma e
vida do homem» (Theile). «Fé fundamentada no sentimento da realidade
do ideal» (Jacobi). «A sensação de uma total dependência»
(Schleiermacher). «A observância da lei moral como instituição divina»
(Kant). «Fé na ordem moral do universo» (Fichte). «A união do finito
com o infinito, ou Deus vindo à própria consciência no mundo»
(Schelling). 7
Esta diversidade de posturas quanto ao que é a religião é suficiente
para demonstrar quão totalmente vaga e insatisfatória deve ser a
definição de teologia como «a ciência da religião». Além disso, esta
definição torna a teologia totalmente independente da Bíblia. Porque,
como filosofia moral é a análise de nossa natureza moral, e as conclusões
para a qual aquela análise leva, então teologia torna-se a análise de nossa
consciência religiosa, junto com as verdades que aquela análise envolve.
E até a teologia cristã é apenas a análise da consciência religiosa do
cristão; e a consciência cristã não é a consciência religiosa natural de
homens como modificados e determinados pelas verdades das Escrituras
cristãs, mas isto é algo diferente. Alguns dizem que é o que se refere a
uma nova vida transmitida de Cristo. Outros se referem a tudo o que é
distintivo no estado religioso de cristãos para a Igreja, e realmente
amalgama a teologia na eclesiologia.
Por isso, temos que limitar a teologia a sua verdadeira esfera, como
a ciência dos fatos da revelação divina enquanto que esses fatos tratam
da natureza de Deus e de nossa relação com ele, como suas criaturas,
como pecadores, e como sujeitos da redenção. Todos estes fatos, como já
observamos, encontram-se na Bíblia. Mas como alguns deles estão
revelados nas obras de Deus, e pela natura1eza do homem, existe nisso
uma distinção entre a teologia natural, e a teologia considerada
distintivamente como uma ciência cristã.
7
Véase Hutterus Redivivus, I.§2., de Hase.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 52
Teologia natural
Com relação à teologia natural, existem duas opiniões extremas.
Uma é que as obras da natura1eza não dão uma revelação confiável do
ser e das perfeições de Deus; a outra, que tal revelação é tão clara e
inclusiva que torna desnecessária qualquer revelação sobrenatural.
8
Comm. on Psalms, in loco.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 56
semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e
imaginação do homem.» (At 17:24-29).
O Apóstolo declara não só o fato desta revelação, mas também sua
clareza: «Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de
Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade,
claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por
isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças» (Rm 1:19- 21).
Por isso, não se podem ter dúvidas razoáveis a respeito de que não
só o ser de Deus, mas também o Seu eterno poder e deidade ficam
revelados em suas obras, estabelecendo um firme fundamento para a
teologia natural. Para a ilustração deste assunto muitas obras importantes
foram dedicadas, algumas das quais são as seguintes: “Wolf de
Theologia Naturali,” “The Bridgewater Treatises,” Butler’s “Analogy,”
Paley’s “Natural Theology.”
3. Mas a Bíblia nos diz que se fossem julgados segundo suas obras
e segundo a luz recebida, todos os homens seriam condenados. Não há
justo, nem um sequer. Todo mundo é culpado diante de Deus. O
veredicto fica confirmado pela consciência de cada homem. A
consciência da culpa e da poluição moral é absolutamente universal.
É aqui que falha totalmente a teologia natural. Não pode dar
resposta à pergunta: Como se justificará o homem diante de Deus?, ou
Como pode Deus ser justo e justificar o ímpio? A humanidade ponderou
ansiosamente esta pergunta durante séculos, e não obteve satisfação.
Aplicou-se o ouvido no seio da humanidade para captar o som suave e
baixo da consciência, e não recebeu resposta. A razão, a consciência, a
tradição e a história se unem em proclamar que o pecado é morte; e por
isso que no que concerne à sabedoria e recursos humanos, a salvação dos
pecadores é tão impossível como a ressurreição dos mortos. Provou-se
todo meio concebível de expiação e purificação, sem mérito algum.
4. As Escrituras, portanto, nos ensinam que os pagãos estão «sem
Cristo, excluídos da cidadania de Israel e estrangeiros quanto às alianças
da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo» (Ef 2:12). São
declarados sem desculpa, «Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não
o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram
nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração
insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus
entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio
coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a
verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do
Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1:21-25). O
Apóstolo diz dos gentios que «andam os gentios, na vaidade dos seus
próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 61
Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração,
os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à dissolução para,
com avidez, cometerem toda sorte de impureza.» (Ef 4:17-19).
5. Sendo todos os homens pecadores, e podendo ser com justiça
acusados de uma impiedade e imoralidade indesculpáveis, não podem
ser salvos por nenhum esforço nem recurso de sua própria parte. Porque
nos é dito: «Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus?
Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem
efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados,
nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus.» (1Co 6:9,
10). «Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento,
que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.» (Ef 5:5). Mais
ainda, a Bíblia nos ensina que alguém pode ser externamente justo diante
dos homens, e ser entretanto um sepulcro branqueado, sendo seu coração
a morada da soberba, da inveja ou da malícia. Em outras palavras, pode
ser moral em sua conduta, e por causa de paixões do mal interior, ser aos
olhos de Deus o chefe de pecadores, como era o caso do próprio Paulo. E
mais ainda que isto, embora um homem estivesse livre de pecados
externos, e, se fosse possível, e fora de pecados do coração, esta bondade
negativa não seria suficiente. Sem santidade «ninguém verá ao Senhor»
(Hb 12:14). «Aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus» (Jo 3:3). «Aquele que não ama, não conhece a Deus» (1Jo 4:8).
«Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele» (1Jo 2:15).
«Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe mais que a mim, não é digno de
mim» (Mt 10:37). Quem, pois, pode ser salvo? Se a Bíblia excluir do
reino dos céus a todos os imorais, a todos aqueles cujos corações estão
corrompidos com soberba, inveja, malícia ou cobiça; a todos os que
amam o mundo; a todos os que não são santos; a todos aqueles nos quais
o amor de Deus não é o princípio supremo e controlador de todas suas
ações, é evidente então que no que se refere aos adultos, a salvação deve
encerrar-se a limites muito estreitos. Também é evidente que a mera
religião natural, o mero poder objetivo da verdade religiosa geral, será
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 62
tão incapaz de preparar os homens para a presença de Deus como as
águas da Síria para curar a lepra.
E. Objeções
§ 4. A teologia cristã
Assim como a ciência, que trata dos fatos da natureza, tem seus
vários departamentos, como matemática, química, astronomia, etc.,
também a Teologia, que tem como matéria de estudo os fatos das
Escrituras, tem alguns departamentos nos quais se divide. Primeiro:
Teologia Própria,
A qual inclui tudo o que a Bíblia ensina a respeito do ser e dos
atributos de Deus; da tríplice personalidade da Deidade, ou, que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são pessoas distintas, as mesmas em substância e
iguais em poder e glória; a relação de Deus com o mundo, ou, Seus
decretos e Suas obras de Criação e Providência. Segundo:
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 65
Antropologia,
A qual inclui a origem e a natureza do homem; seu estado original e
sua prova; sua queda; a natureza do pecado; o efeito do primeiro pecado
de Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade. Terceiro:
Soteriologia,
Que inclui o propósito ou plano de Deus em referência à salvação
dos homens; a pessoa e obra do Redentor; a aplicação da redenção de
Cristo ao povo de Deus, em sua regeneração, justificação e santificação;
e os meios da graça. Quarto:
Escatologia,
Isto é, a doutrina que tem que ver com o estado da alma depois da
morte; a ressurreição; a segunda vinda de Cristo; o juízo geral e o fim do
mundo; céu e inferno. E quinto:
Eclesiologia,
A ideia, ou natureza da Igreja; seus atributos; seus prerrogativas;
sua organização.
É a observação sugestiva de Kliefoth em sua “Dogmengeschichte,”
que foi atribuído à mente de gregos e à Igreja grega, a tarefa de elaborar
a doutrina da Bíblia a respeito de Deus, isto é, as doutrinas da Trindade e
Pessoa de Cristo; à Igreja latina as doutrinas a respeito do homem; isto é,
de pecado e graça; à Igreja alemã, Soteriologia, ou a doutrina da
justificação. Eclesiologia, ele diz, é reservada ao futuro, como a doutrina
relativa à Igreja não foi estabelecida por autoridade ecumênica como
foram as doutrinas de Teologia e Antropologia, e aquela de justificação
pelo menos para o mundo protestante.
A classificação anterior, embora conveniente e em geral recebida,
está longe de ser exaustiva. Omite a postura da lei (ou pelo menos
subordina isto indevidamente), ou regra de dever moral. Isto é um
departamento em si mesmo; e sob o título de Teologia Moral, é às vezes,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 66
como na Igreja latina, considerada como a mais importante. No meio
protestante é frequentemente considerado como um mero departamento
de Filosofia.
As Escrituras do Antigo e do Novo Testamento são a única norma
infalível de fé e prática. Mas este não é um ponto aceito por todos.
Alguns reclamam para a Razão uma autoridade suprema, ou ao menos
coordenada, em questões de religião. Outros pressupõem uma luz
interior sobrenatural a que atribuem uma autoridade suprema ou
coordenada. Outros descansam na autoridade de uma igreja infalível.
Para os protestantes, a Bíblia é a única fonte infalível de conhecimento
das coisas divinas. Por isso, faz-se necessário, antes de entrar em nossa
obra examinar concisamente estes vários sistemas: o Racionalismo, o
Misticismo e o Romanismo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 67
CAPÍTULO III
O RACIONALISMO
§ 2. Racionalismo deísta
9
Pág. 47, edição Boston, 1859.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 69
imperfeita, tem que dever-se a que Deus é deficiente quer em sabedoria,
quer em poder.
Está claro que esta é uma teoria errônea da relação de Deus com o
mundo. (1.) Porque contradiz o testemunho de nossa natureza moral. A
relação que temos com Deus, tal como se revela esta relação a nossa
consciência, implica que estamos constantemente na presença de um
Deus que toma nota de nossas ações, que ordena nossas circunstâncias e
que interfere constantemente para nossa correção e proteção. Ele não é a
nós um Deus longínquo, com quem não temos nenhuma preocupação
imediata; mas um Deus que não está longe de qualquer de nós, em quem
vivemos, nos movemos, e temos nosso ser, que conta os cabelos de nossa
cabeça, e não cai um pardal por terra sem que Ele o perceba. (2.) A
própria razão nos ensina que o conceito de Deus como governante do
mundo, que tem as Suas criaturas em Suas mãos, capaz de as controlar
segundo Sua vontade e de ter comunicação com elas, é um conceito
muito mais elevado e coerente com a ideia da perfeição infinita que
aquela concepção em que se baseia este sistema de Racionalismo. (3.) A
consciência comum do homem opõe-se a esta doutrina, como fica
patente de que todas as nações, das mais cultivadas até as mais bárbaras,
viram-se forçadas a conceber de Deus como um ser que toma
conhecimento dos assuntos humanos, e que Se revela a Si mesmo a Suas
criaturas. (4.) O argumento da Escritura, que embora não seja admitido
pelos racionalistas, é concludente para os cristãos. A Bíblia nos revela
um Deus que está constantemente presente em todo lugar com Suas
obras, e que age sobre elas, não só de maneira mediata, mas também
imediata, quando, onde e como melhor Lhe agrada.
O argumento da profecia
5. Deus dá testemunho da autoridade divina das Escrituras mediante
sinais e maravilhas, e milagres diversos e distribuições do Espírito Santo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 73
Os acontecimentos condutores registrados no Novo Testamento foram
preditos no Antigo. Disto qualquer um se poderá satisfazer mediante
uma comparação de ambos. As coincidências entre as profecias e o
cumprimento não admitem solução racional, exceto que a Bíblia é a obra
de Deus; ou, que homens santos da antiguidade falaram inspirados pelo
Espírito Santo. Os milagres registrados nas Escrituras são
acontecimentos históricos, que não só têm direito a ser recebidos com
base no mesmo testemunho que autentica outros fatos da história, mas
também estão tão imbricados na inteira estrutura do Novo Testamento
que não podem ser negados sem rejeitar todo o evangelho, rejeição que
envolve a negação dos fatos melhor autenticados na história do mundo.
A. Sua natureza
B. Refutação
C. História
10
First Principles of a New Philosophy, p. 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 78
todos os homens. Isto pode ser considerado como a confissão de Fé de
todos os Deístas, e até daqueles racionalistas que admitem uma revelação
sobrenatural; para tal revelação, eles mantêm, só se pode autenticar o que
a razão propriamente ensina.
Outros escritores às pressas seguiram o curso aberto por Sir
Herbert; como, Toland em seu “Christianity without Mystery,” 1696,
uma obra que desperta grande atenção, e obteve refutações numerosas.
Toland terminou declarando-se a si mesmo um panteísta. Hobbes era
materialista. Sir Shaftesbury, que morreu em 1773, em suas
“Characteristics,” “Miscellaneous Treatises,” e “Moralist,” tornou
ridícula a prova de verdade. Declarou que a revelação e a inspiração
eram fanatismo. Collins (morto em 1729) foi um escritor mais sério.
Suas obras principais foram, “An Essay on Free-thinking,” e “The
Grounds and Reasons of Christianity.” Sir Bolingbroke, Secretário de
estado sob a rainha Anne, “Letters on the Study and Utility of History.”
Mateus Tindal, “Christianity as Old as the Creation.” Tindal, em vez de
atacar o cristianismo em detalhe, tentou construir um sistema regular de
deísmo. Manteve que Deus não pretendia que os homens deviam estar
sem uma religião adequada para todas as suas necessidades, e portanto
que uma revelação pode só fazer o que todo homem tem em sua própria
razão. Esta revelação interna e universal contém duas verdades: 1. A
existência de Deus. 2. Que o homem é criado por Deus não por causa de
si mesmo, mas sim por causa do homem. Sem dúvida o mais capaz e
influente dos escritores desta classe foi Davi Hume. Suas
“Compositions” em quatro volumes contêm suas posturas teológicas. Os
mais importantes desta são aqueles sobre História Natural da Religião, e
sobre Milagres. Seus “Dialogues on Natural Religion” é considerado
como o trabalho mais capaz sempre escrito em defesa do deísmo, ou
melhor, do sistema ateu.
No geral, o mais capaz e influente dos escritores desta classe foi
Davi Hume. Seus Essays, em quatro volumes, contêm seus posturas
teológicas. Os mais importantes destes são os da História Natural da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 79
Religião, e sobre os Milagres. Sua obra «Diálogos a respeito da Religião
Natural» é considerada como a obra mais capaz jamais escrita em apoio
do sistema deísta, ou, melhor, ateu.
Da Inglaterra, o espírito de incredulidade se estendeu à França.
Voltaire, Rousseau, La Mettrie, Holbach, D'Alembert, Diderot, e outros,
conseguiram por um tempo derrubar toda fé religiosa nas classes
condutoras da sociedade.
Racionalismo na Alemanha
Na Alemanha a defecção racionalista começou com tais homens
como Baumgarten, Ernesti, e John David Michaelis, que não negaram a
autoridade divina das Escrituras, mas sim explicaram muito bem suas
doutrinas. Estes eram seguidos por homens tais como Semler, Morus, e
Eichhorn, que era completamente novo. Durante a última parte do século
passado e a primeira parte do presente, * a maior parte dos principais
historiadores da igreja, exegetas e teólogos da Alemanha, eram
racionalistas. O primeiro golpe sério contra seu sistema o deu Kant. Os
racionalistas davam como sentado que podiam demonstrar as verdades
da religião natural com base nos princípios da razão. Kant, em sua crítica
da Razão Pura, empreendeu demonstrar que a razão não é competente
para demonstrar nenhuma verdade religiosa. O único fundamento para a
religião, mantinha ele, era nossa consciência moral. Esta consciência
envolvia ou implicava as três grandes doutrinas de Deus, da liberdade e
da imortalidade. Seus sucessores, Fichte e Schelling, executaram os
princípios que Kant adotou para provar que o mundo externo é algo
desconhecido, para mostrar que não existia tal mundo; não existia
nenhuma distinção real entre o ego e não ego, o subjetivo e o objetivo;
que ambos são modos da manifestação do absoluto. Deste modo todas as
coisas eram fundidas numa. Este panteísmo idealista tendo deslocado o
*
Naturalmente, refere-se ao século XIX. em que Hodge viveu e escreveu sua obra.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 80
racionalismo, já rendeu o trono filosófico para uma forma sutil de
materialismo.
Bretschneiders “Entwickelung aller in der Dogmatik
vorkommenden Begriffe,” deu uma lista de cinquenta e dois trabalhos na
controvérsia racionalista na Alemanha. Os livros ingleses escritos contra
os racionalistas ou deístas da Grã-Bretanha, e no papel adequado da
razão em assuntos da religião, são escassamente menos numerosos.
Algumas das mais importantes dessas obras são as seguintes: “Boyle on
Things above Reason,” Butler’s “Analogy of Religion and Nature,”
Conybeare’s “Defense of Religion,” “Hulsean Lectures,” Jackson’s
“Examination,” “Jew’s Letters to Voltaire,” Lardner’s “Credibility of the
Gospel History,” Leland’s “Advantage and Necessity of Revelation,”
Leslie’s “Short and Easy Method with Deists.” Warburton’s “View of
Bolingbroke’s Philosophy,” e sua “Divine Legation of Moses,” John
Wilson’s “Dissertation on Christianity,” etc., etc. Veja-se Stäudlin’s
“Geschichte des Rationalismus,” e uma história concisa e instrutiva de
teologia durante o décimo oitavo século, por Dr. Tholuck no “Biblical
Repertory and Princeton Review” em 1828. Leibnitz’s “Discours da
Conformité da Foi avec a Raison,” no prefácio para sua “Théodicée,” e
Mansel’s “Limits of Religious Thought,” merece a cuidadosa leitura do
aluno teológico. Os trabalhos mais recentes neste assunto geral são
Lecky’s “History of Rationalism in Europe, e “History of Rationalism,
abraçando uma pesquisa do estado presente de Teologia protestante,”
pelo Rev. John F. Hurst, A. M. O posterior é a publicação mais instrutiva
na língua inglesa a respeito do cepticismo moderno.
A. Significado do termo
Wolfianismo
Este método foi avivado e extensamente propagado por Wolf
(1679-1754, Professor de Halle e Marburg). Suas obras principais foram
“Theologia Naturalis,” 1736, “Filos. Practicalis Universalis,” 1738,
“Filos. Moralis S. Ethica,” 1750, “Vernünftige Gedanken von Gott, der
Orla und der Seele dê Menschen, auch Allen Dingen überhaupt,” 1720.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 82
Wolf exaltou de maneira indevida a importância da religião natural.
Embora admitia que as Escrituras revelavam doutrinas não descobertas
pela razão não assistida do homem, insistia entretanto em que suas
doutrinas, para poder ser recebidas como certas, deviam ser capazes de
demonstração com base nos princípios da razão. “Ele manteve,” diz o Sr.
Rose (em seu “State of Protestantism in Germany,” pág. 39), “aquela
filosofia era indispensável para a religião, e isto, junto com provas
bíblicas, um sistema matemático ou estritamente demonstrativo
dogmático, de acordo com os princípios de razão, era absolutamente
necessário. Suas próprias obras levaram esta teoria à prática, e depois
que os primeiros clamores baixaram, suas opiniões ganharam mais
atenção, e não demorou muito para ele ter uma escola de admiradores
veementes, que logo o ultrapassaram no uso de seus próprios princípios.
Achamos alguns deles não satisfeitos em aplicar a demonstração da
verdade do sistema, mas sim se empenharam em estabelecer cada dogma
em separado, a Trindade, a natureza do Redentor, a Encarnação, a
eternidade do castigo, em bases filosóficas, e por estranho que pareça,
algumas destas verdades em bases matemáticas.” A linguagem do
próprio Wolf neste assunto já foi citada. Estabeleceu expressamente o
papel da revelação a respeito do suplemento da religião natural, e
proposições para presentes que o filósofo está destinado a demonstrar.
Por demonstração não se significa a contribuição de prova de que a
proposição é sustentada pelas Escrituras, mas sim a doutrina deve ser
admitida como verdadeira com base nos princípios da razão. É uma
demonstração filosófica o que se propõe. O “Dogmatismo teológico,” diz
Mansel, 11 “é um aplicativo de razão suportá-lo e defesa de declarações
preexistentes da Escritura. … Seu fim é produzir uma coincidência entre
o que cremos e o que pensamos; remover o limite que separa o
compreensível do incompreensível.” 12 Tenta, por exemplo, demonstrar a
11
Limits of Religious Thought, p. 47.
12
Ibid. p. 50.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 83
doutrina da Trindade da natureza de um ser infinito; a doutrina da
Encarnação da natureza do homem e de sua relação com Deus, etc. Seu
grande desígnio é transmutar a fé em conhecimento, e elevar o
cristianismo como sistema de verdade revelada até um sistema de
filosofia.
B. Refutação
*
Alguns exemplos mais modernos da realidade de que até o cepticismo vê-se exposto a crer conceitos
absolutamente incompreensíveis é a questão da origem do universo. O crente crê que Deus criou o
universo pelo poder de Seu mandato. O incrédulo afirma que houve um «Grande Estalo» (Big Bang)
no princípio, em que um átomo primordial incrivelmente pequeno, que continha a grande massa do
universo em seu seio, estalou e se expandiu dando origem ao universo. Aí se detêm os proponentes
desta teoria ateia. Desde onde veio este «ovo cósmico»? Aí eles devem deter seu raciocínio e aceitar o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 89
O impossível não pode ser crido
Enquanto que o anterior é verdade e está claro, não é menos certo
que o impossível é incrível, e que portanto não pode ser objeto da fé. Os
cristãos concedem à razão o juízo da contradição, isto é, a prerrogativa
de decidir se algo é possível ou impossível. Se se vê como impossível,
nenhuma autoridade nem quantidade de evidência podem impor a
obrigação de recebê-lo como verdade. Mas que uma coisa seja possível
ou não, não se pode decidir de uma maneira arbitrária. Os homens são
propensos a pronunciar impossível tudo aquilo que contradiga suas
convicções assentadas, suas precogitações ou preconceitos, ou aquilo
que repugna a seus sentimentos. Em tempos passados não se hesitava em
dizer que é impossível que a terra deve girar em torno do seu eixo e se
mover através do espaço com rapidez incrível, e ainda não percebemos.
Dizia-se que era absolutamente impossível que a informação pudesse ser
transmitida a milhares de quilômetros em uma fração de segundo.
Naturalmente, seria uma insensatez rejeitar toda evidência de tal
realidade sobre a base de sua impossibilidade. Não é menos irrazoável da
parte dos homens rejeitar as verdades da revelação com a hipótese de
que envolvem o impossível, quando contradizem nossas anteriores
convicções, ou quando não podemos ver como podem ser. Diz-se que é
impossível que uma mesma pessoa possa ser ao mesmo tempo Deus e
homem, e entretanto, admite-se que o homem é ao mesmo tempo
material e imaterial, mortal e imortal, anjo e animal. O impossível não
pode ser certo, mas ao pronunciar uma coisa como impossível, a razão
deve agir racionalmente e não de uma maneira caprichosa. Seus juízos
devem ser conduzidos por princípios que são válidos para a consciência
comum dos homens. Estes princípios são os seguintes:
incompreensível. E os proponentes das modernas teorias que descartam o «Grande Estalo» também
repousam na aceitação de conceitos que para eles mesmos são incompreensíveis. (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 90
O que é impossível
(1.) Impossível é aquilo que envolve uma contradição; como que
algo é e não é; que o bem é mal e o mal bem. (2.) É impossível que Deus
faça, aprove ou ordene algo moralmente mau. (3.) É impossível que Ele
demande de nós que creiamos o que contradiga as leis da crença que Ele
impôs à nossa natureza. (4.) É impossível que uma verdade contradiga a
outra. É impossível, então, que Deus revele algo como verdade que
contradiga qualquer verdade bem autenticada, seja da intuição, da
experiência ou de uma revelação anterior.
Os homens podem abusar desta prerrogativa da razão, como
também abusam de sua liberdade. Mas a prerrogativa não pode, em si
mesma, ser negada. Temos direito a negar como falso tudo o que é
impossível que Deus queira nos fazer crer. Ele não pode demandar de
nós que creiamos o absurdo, como tampouco que façamos o mal.
16
Cours de l' llist. de ia Phil. Mod. Prem. Sér. París, 1846, vol. ii leç. 9, 10, págs. 95, 120.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 104
convidado, que traz inteligência de um mundo desconhecido, de que ele
ao mesmo tempo apresenta a ideia e desperta o querer. Se a razão fosse
pessoal, não teria nenhum valor, nenhuma autoridade além dos limites
do assunto individual. . . . . A razão é uma revelação, uma revelação
necessária e universal que não se origina em nenhum homem, e que
ilumina a todo homem em sua entrada no mundo. A razão é o mediador
necessário entre Deus e homem, o Λόγος de Pitágoras e Platão, a Palavra
Fez-se Carne, que serve como o intérprete de Deus, e mestre do homem,
divino e humano ao mesmo tempo. Não é realmente o Deus absoluto em
Sua individualidade majestosa, mas sim Sua manifestação em espírito e
em verdade. Não é o ser de seres, mas sim Ele é o Deus revelado da raça
humana.” 17
Embora os teólogos alexandrinos tivessem estes pontos de
concordância com os místicos, como eram entretanto especulativos em
toda sua tendência e trataram de transmutar o cristianismo numa
filosofia, não devem ser considerados como místicos no sentido
teológico do termo geralmente aceito.
17
Specimens of Foreign Standard Literature, edited by George Ripley, vol. i.; Philosophical
Miscellanies from Cousin, et al., pp. 125, 149.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 105
18
modo Wegscheider dice, “Mysticismus est persuasio de singulari
animæ facultate ad immediatum ipsoque sensu percipiendum cum
numine aut naturis coelestibus commercium jam in hac vita perveniendi,
quo mens immediate cognitione rerum divinarum ac beatitate
perfruatur.” Y Bretschneider 19 define Misticismo como uma “Convicção
em uma operação contínua de Deus na alma, assegurado por exercício
religioso especial, produzindo iluminação, santidade, e beatitude.” Os
teólogos evangélicos até agora consentem nesta postura, que eles dizem,
como Lange, 20 e Nitsch, 21 “que todo crente verdadeiro é um místico.” O
escritor posterior acrescenta, “Que as ideias cristãs de iluminação,
revelação, encarnação, regeneração, os sacramentos e a ressurreição, são
elementos essencialmente místicos. Tão frequentemente como a vida
religiosa e eclesiástica se recupera propriamente do formalismo e
esterilidade escolástica, e está verdadeiramente reavivada, sempre
aparece como mística, e causa o clamor que o misticismo está ganhando
a ascendência.” Alguns escritores, realmente, fazem uma distinção entre
místico e misticismo. “ “Die innerliche Lebendigkeit dé Religión ist
allezeit místico” (A vitalidade dentro da religião é sempre mística), diz
Nitsch, mas “Misticismus ist eine einseitige Herrschaft und eine
Ausartung der mystischen Richtung.” Isto é, o misticismo é um
desenvolvimento impróprio e pervertido do elemento místico que
pertence à religião verdadeira. Esta distinção, entre místico e misticismo,
não é em geral reconhecido, e não pode ser bem expressado em inglês.
Lange, em vez de usar palavras diferentes, fala de um misticismo
verdadeiro e falso. Mas as coisas distintas deveriam ser designadas por
palavras distintas. Deu-se uma teoria religiosa, que prevaleceu com
maior ou menor extensão na Igreja, que se distingue da doutrina
escriturística por umas características inequívocas, e que se conhece na
18
Inst. § 5.
19
Systematische Entwickelung, fourth edit. p. 19.
20
In Herzog’s Encyklopädie, art. “Mystik.”
21
System der Christlichen Lehre, fifth edit. p. 35.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 106
história da igreja como misticismo, e esta palavra deveria limitar-se a
esta teoria. É a teoria, diversamente modificada, de que o conhecimento,
a pureza e a bem-aventurança que se derivam da comunhão com Deus
não se derivam das Escrituras nem do uso dos meios ordinários da graça,
mas sim mediante uma influência divina sobrenatural e imediata, cuja
influência (ou comunicação de Deus na alma) deve ser conseguida
mediante a passividade, um simples ceder da alma sem pensamento nem
esforço ao influxo divino.
22
Ver Cousin, Cours de l'Hlistoire de la Philosophie. y Morell, History of Modern Philosophy. págs.
556 ss.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 107
razão já não é considerada mais como o grande órgão da verdade; suas
decisões ficam apontadas como incertas, faltas e praticamente carentes
de valor, enquanto que os impulsos interiores de nossa sensibilidade, que
se desenvolvem em forma de fé ou de inspiração, são apresentadas como
a verdadeira e infalível fonte do conhecimento humano. Por isso, o
processo fundamental de todo misticismo é inverter a verdadeira ordem
da natureza, e dar a precedência às emoções em lugar do elemento
intelectual da mente humana». 23 Esta, declara-se, é «a base comum de
todo misticismo».
A teoria de Schleiermacher
Se esta for uma postura correta da natureza do misticismo; se ele
consistir em dar autoridade predominante aos sentimentos em assuntos
da religião; e se seus impulsos, desenvolvendo-se a si mesmos na forma
de fé, são a origem verdadeira e infalível de conhecimento, então o
sistema de Schleiermacher, adotado e exposto por Morell mesmo em sua
“Philosophy of Religion,” é o mais elaborado sistema de teologia sempre
apresentado para a Igreja. É o princípio fundamental da teoria de
Schleiermacher, que a religião não reside na inteligência, ou na vontade
ou poderes ativos, mas na sensibilidade. É uma forma de sentimento,
uma sensação de dependência absoluta. Em vez de ser, como nos parece,
agentes livres individuais e separados, originando nossos próprios atos,
reconhecemos a nós mesmos como uma parte de um grande todo,
determinados em todas as coisas corto grande todo, dos quais nós somos
uma parte. Achamo-nos a nós mesmos como criaturas finitas de um Ser
infinito, com relação a quem nós somos como nada. O Infinito é tudo; e
tudo é apenas uma manifestação do Infinito. “Embora homem,” diz até
Morell, “enquanto no meio de objetos finitos, sempre ele sente mesmo
até certo ponto livre e independente; ainda na presença de que é existente
próprio, infinito, e eterno, pode sentir a sensação da liberdade falece
23
Morell, op. cit., pág. 560.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 108
24
totalmente, e fica absorvido no sentido de dependência absoluta.” Isto
parece ser o princípio essencial da religião em todas suas formas do
fetichismo até o cristianismo. Depende principalmente do grau de cultura
do indivíduo ou da comunidade, de que maneira esta sensação de
dependência deve revelar-se: porque quanto mais iluminado e puro é o
indivíduo, tanto mais ele poderá apreender corretamente o que está
envolto nesta sensação de dependência de Deus. A revelação não é a
comunicação de nova verdade para a compreensão, mas sim as
influências providenciais pela qual a vida religiosa é despertada na alma.
A inspiração não é a influência divina que controla as operações mentais
e elocuções de seu tema, quanto a lhe retribuir a influência infalível na
comunicação da verdade revelada, mas sim simplesmente a intuição de
verdades eternas devido ao estado excitado dos sentimentos religiosos. O
cristianismo, subjetivamente considerado, são as intuições de homens
bons, como ocasionados e determinados pela aparição de Cristo.
Objetivamente considerado, ou, em outras palavras, a teologia cristã, é a
análise lógica, e acertos científicos e elucidação das verdades envoltas
naquelas intuições. As Escrituras, como uma regra de fé, não tem
nenhuma autoridade. São de valor só como meio de despertar em nós a
vida religiosa experimentada pelos apóstolos, e deste modo nos
capacitando a alcançar o gosto pelas intuições das coisas divinas. A
origem de nossa vida religiosa, de acordo com este sistema, são os
sentimentos, e se isto é a facção característica do misticismo, a doutrina
da Schleiermacher é puramente mística.
24
Philosophy of Religion, p. 75.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 109
da graça. «Desespera-se», diz Fleming, «do processo regular da Ciência;
crê que podemos alcançar diretamente, sem a ajuda dos sentidos ou da
razão, e por meio de uma intuição imediata, o princípio real e absoluto
de toda verdade: Deus». 25
Os místicos são de duas classes; os teósofos, cujo objeto é
conhecimento, e com quem o órgão de comunicação com Deus, é a
razão; e os místicos adaptados, cujo objeto é, vida, pureza, e beatitude; e
com quem o órgão de comunicação, ou receptividade, são os
sentimentos. Eles concordam, primeiro, em que contam com a revelação
ou comunicação imediata de Deus à alma; e secundariamente, que estas
comunicações devem ser alcançadas, no descuidar o exterior, quer dizer,
pela contemplação quieta ou passiva. “O Teósofo é alguém que dá uma
teoria de Deus, ou das obras de Deus, que não tem razão, mas sim uma
inspiração de si mesmo como sua base.” 26 “Os Teósofos, não satisfeitos
com a luz natural da razão, nem com as doutrinas singelas da Escritura
entendida em seu sentido literal, têm recurso para uma luz sobrenatural
interna para todas as outras iluminações, de que eles professam para
derivar uma filosofia misteriosa e divina manifestada somente para os
favoritos escolhidos do céu.” 27
A. Montanismo
28
De Virgg. Veland c. 1 — Edit. Basle, 1562, p. 490.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 114
cristianismo pela filosofia; e na outra para a autoridade dominante dos
bispos. Seu espírito denunciatório e exclusivo levou a sua condenação
como herético. Como os montanistas excomungaram a Igreja, a Igreja os
excomungou. 29
29
See Neander’s Dogmengeschichte, vol. i. Schwegler, F. C. (disciple of Baur) Der Montanismus und
die Christliche Kirche des Zweiten Jahrhunderts, Tub. 1841-1848. A concise and clear account of
Montanism is given in Mosheim’s Commentary on the Affairs of Christians before the Time of
Constantine. vol. i. § 66, pp. 497 ff. of Murdock’s edition.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 115
terminologia da Igreja. As ideias cristãs estavam completamente
excluídas, enquanto a língua da Bíblia era mantida. Deste modo em
nosso tempo nós tivemos a filosofia da Schelling e Hegel a partir das
fórmulas de teologia cristã.
C. O Neoplatonismo
30
See Rixner’s Geschichte der Philosophie, vol. i. §§ 168-172. Ritter’s Geschichte der Christlichen
Philosophie, vol. ii. pp. 115-135. Herzog’s Encyklopädie.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 118
§ 3. O misticismo durante a Idade Média
31
Cur Deus Homo, lib. i. cap. 25.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 119
credere præcipit.” Richard à St. Victore ainda mais fortemente afirma
que nós somos destinados, “quod tenemus ex fide, ratione apprehendere
et demonstrativæ certitudinis attestatione firmare.”
A primeira classe de teólogos medievais
Destes teólogos, entretanto, existiam três classes. Primeiro, aqueles
que declaradamente exaltaram a razão acima da autoridade, e recusaram
receber qualquer coisa sobre autoridade que eles não pudessem por eles
mesmos, em bases racionais, provar ser verdade. João Escoto Erígena
(Eringeborne, irlandês de nascimento) pode ser tomado como um
representante desta classe. Ele não apenas manteve que a razão e a
revelação, a filosofia e a religião, são perfeitamente consistentes, mas
que a religião e a filosofia são idênticas. “Conficitur,” diz ele, “inde
veram philosophiam esse veram religionem conversimque veram
religionem esse veram philosophiam.” 32 E na pergunta crucial, Se a fé
precede a ciência, ou fé da ciência, decidiu pela última. A Razão,
segundo ele, era superior à autoridade, a posterior não tendo nenhuma
força exceto quando sustentada pela anterior. “Auctoritas siquidem ex
vera ratione processit, ratio vero nequaquam ex auctoritate. Omnis autem
auctoritas, quæ vera ratione non approbatur, infirma videtur esse. Vera
autem ratio, quum virtutibus suis rata atque immutabilis munitur, nullius
auctoritatis adstipulatione roborari indiget.” 33 Sua filosofia como
desenvolvida em sua obra “De Divisione Naturæ,” é puramente
panteísta. existe com ele, exceto um ser, e tudo o que é real está pensado.
Seu sistema, portanto, é quase idêntico ao panteísmo idealista de Hegel;
ainda ele teve seu trinitarianismo, sua soteriologia, e sua escatologia,
como um teólogo.
32
De Prædest. cap. i. 1, Migne, Patr. vol. cxxii. p. 358, a.
33
De Div. Nat., i. 69 f., Migne, ut supra, p. 513, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 120
A segunda classe
A segunda e mais numerosa classe de teólogos medievais tomou a
base de que a fé em assuntos da religião precede a ciência; que as
verdades são reveladas a nós de modo sobrenatural pelo Espírito de
Deus, que verdades são para ser recebidas pela autoridade das Escrituras
e o testemunho da Igreja. Mas sendo crido, então devíamos nos
empenhar em compreendê-los e prová-los; de forma que nossa
condenação de sua verdade devia apoiar-se em bases racionais. É muito
evidente que tudo depende do espírito com que este princípio é aplicado,
e até que ponto é levado. Nas mãos de muitos escolásticos, dos Pais, era
meramente uma forma de racionalismo. Muitos ensinaram que enquanto
o cristianismo devia ser recebido pelas pessoas por autoridade como um
assunto de fé, devia ser recebido pelo letrado como um assunto de
conhecimento. O humano era substituído pelo divino, a autoridade da
razão pelo testemunho de Deus. Com a melhor classe dos escolásticos o
princípio em questão foi mantido com muitas limitações. Anselmo, por
exemplo ensinou: (1.) Que santidade de coração é a condição essencial
do conhecimento verdadeiro. É só na medida em que as verdades da
religião entram em nossa experiência pessoal, que podemos corretamente
temê-las. Fé, portanto, como inclusive discernimento espiritual, deve
preceder todo conhecimento verdadeiro. “Qui secundum carnem vivit,
carnalis sive animalis est, de quo dicitur: animalis homo non percipit ea,
quæ sunt Spiritus Dei. . . . . Qui non crediderit, non intelliget, nam qui
non crediderit, non experietur, et qui expertus non fuerit, non
intelliget.” 34 “Neque enim quæro intelligere, ut credam, sed credo, ut
intelligam. Nam et hoc credo, quia, nisi credidero, non intelligam.” 35 (2.)
Ele manteve que uma prova racional não era necessária como um ajuda à
fé. Era tão absurdo, disse ele, que presumamos acrescentar autoridade ao
testemunho de Deus por nosso raciocínio, como um homem sustentar o
34
De Fide Trinitatis, 2; Opera, Paris, 1721, p. 42, B. b. c.
35
Proslogium, i.; Ibid. p. 30, B. a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 121
Olimpo. (3.) Ensinou que existem doutrinas de revelação que
transcendem nossa razão, que nós racionalmente não podemos fingir
compreender ou provar, e que devemos ser recebidos no testemunho
simples de Deus. “Nam Christianus per fidem debet ad intellectum
proficere, non per intellectum ad fidem accedere, aut si intelligere non
valet, a fide recedere. Sed cum ad intellectum valet pertingere,
delectatur, cum vero nequit, quod capere non potest, veneratur.” 36
B. Místicos medievais
36
Epistolæ, lib. ii. epis. 41; Opera, Paris, 1721, p. 357, B, a.
37
History of Christian Doctrine, vol. I. p. 79.
38
Lexicon, art. “Mystik.”
39
Reformers before the Reformation.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 122
cristãos devotos. Desde sua natureza essencial, entretanto, a inclinação
do misticismo era para o panteísmo. E o panteísmo consequentemente
sem disfarce não era apenas ensinado por alguns dos místicos mais
proeminentes, mas prevaleceram extensivamente entre as pessoas.
40
Ullmann, vol. II. cap. 2.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 123
Estrasburgo como um pastor. Suas doutrinas foram condenadas como
heréticas, embora ele negou que teve em qualquer respeito abandonado
as doutrinas da Igreja. Da decisão de seu arcebispo e seu conselho
provincianos, Eckart apelou ao Papa, por quem a sentença de
desapropriação foi confirmada. Esta decisão, entretanto, não foi
publicada até 1329, quando Eckart já estava morto. Não é necessário
aqui dar os detalhes de seu sistema. Basta dizer que ele manteve que
Deus é o único ser; que o universo é a própria manifestação de Deus; que
o destino mais elevado do homem é vir à consciência de sua identidade
com Deus; que o fim deve ser realizado em parte por abstração filosófica
e em parte por autorrenúncia ascética.
“Embora a união com Deus é principalmente efetuada pelo
pensamento e consciência, ainda também exige um ato correspondente
da vontade, algo prático, como abnegação e privação, pelo qual o
homem sabe, acima de tudo, que é finito. Não apenas deve ele pôr de
lado todas as coisas criadas, o mundo e os bens terrestres, e mortificar os
desejos, mas mais que tudo ele precisa renunciar seu ‘Ego,’ reduzi-lo a
nada, e voltar ao que ele era antes dele vir a este estado temporário. Não,
o homem deve subir acima do bem principal, acima da virtude, da
devoção, da bem-aventurança, e o próprio Deus, como coisas exteriores
e superiores a seu espírito, e é só quando ele, deste modo, se tenha auto-
aniquilado, e tudo que não é Deus dentro dele, que nada permanece
exceto a divina essência pura e simples, em que toda divisão é trazida em
unidade absoluta.” 41
Outro escritor distinto e influente da mesma classe foi João
Ruysbroek, nascido em 1293, numa aldeia não longe de Bruxelas. Tendo
entrado para o serviço da Igreja, ele se dedicou às obrigações de um
sacerdote secular até seu sexagésimo ano, quando ele se tornou pároco
de um monastério instituído recentemente. Era ativo e fiel, gentil e
devoto. Se ele era um teísta ou um panteísta é um assunto de disputa.
41
Ullmann, Translation in Clark’s Library, vol. ii. p. 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 124
Suas posturas especulativas eram formadas mais ou menos sob a
influência da escrita do Pseudo-Dionísio e de Eckart. Gerson, ele mesmo
um místico, objetou suas doutrinas como panteístas; e todos reconhecem
que não existem apenas formas de expressão mas também princípios
para ser declarados em seus escritos que implicam a teoria panteísta.
Fala de Deus como o Ser superessencial incluindo todos os seres. Todas
as criaturas, ele ensinou, estava em Deus, como os pensamentos antes de
sua criação. “Deus viu e os reconheceu em Si mesmo, de alguma
maneira, mas não completamente, diferente dEle mesmo, porque o que
está em Deus, é Deus.” “No ato da depleção própria, o espírito perde-se
a si mesmo no prazer do amor, e absorve diretamente o brilho de Deus,
sim, torna-se o próprio brilho que absorve. Todos os que são erguidos
para o sublimidade desta vida contemplativa são um com o brilho divino
(deifica), e torna-se uma e a mesma luz da qual eles vêm. A esta altura é
o espírito elevado acima de si mesmo, e feito um com Deus, com relação
à unidade daquela vida original em que, de acordo com seu ser não
criado, possui a si mesmo, aprecia e contempla tesouros ilimitados da
mesma maneira como Deus a si mesmo.” Ullmann, que cita estas
passagens e semelhantes, ainda mantém que Ruysbroek era um teísta,
porque, como ele diz, Ruysbroek “não reconhece claramente só a
imanência de Deus, mas que nenhum panteísta pode fazer, sua
transcendência.” Além disso, ele “muito frequentemente e muito
solicitamente o declara, na unidade do homem contemplativo com Deus,
ele ainda reconhece uma diferença entre os dois, para nos permitir
atribuir para ele a doutrina de uma solução absoluta do indivíduo na
substância Divina.” 42 Um homem pode declarar uma diferença entre as
ondas e o oceano, entre as folhas e a árvore, e ainda em ambos os casos
afirmar uma unidade significativa. É verdade que ninguém
inteligentemente pode declarar a transcendência de Deus, e ainda manter
a forma extrema do panteísmo que faz do mundo a existência-forma de
42
Ibid. p. 47.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 125
Deus, sua inteligência inteira, energia, e vida. Mas ele pode ser um
monista. Pode crer que não existe senão um Ser no universo, que tudo é
uma forma de Deus, e toda vida é a vida de Deus. O panteísmo é
multiforme. Alguns modernos falam de um panteísmo cristão. Mas
qualquer sistema que dificulta nossa declaração “Tu,” para com Deus, é
fatal para a religião.
Os místicos evangélicos
Bernardo de Claraval, Hugo e Ricardo de São Victor, Gerson,
Tomás Kempis e outros, são usualmente atribuídos à classe de místicos
evangélicos. Estes eminentes e influentes homens diferem entre si, mas
todos eles mantinham a união com Deus, não no sentido escriturístico,
mas no sentido místico do termo, como o grande objeto do desejo. Não
era que sustentassem que «a visão beatifica de Deus», a intuição de Sua
glória, que pertence ao céu, é acessível neste mundo e acessível mediante
abstração, por apreensão enlevada, ou recepção passiva, mas sim a alma
torna-se uma com Deus, se não em substância sim em vida. Estes
homens, entretanto, foram grandes bênçãos para a igreja. Sua influência
ia dirigida à preservação da vida religiosa interior em oposição à
formalidade e ritualismo que então prevaleciam na igreja; e assim
libertar a consciência de sujeição à autoridade humana.
Os escritos de Bernardo seguem desfrutando de grande estima, e a
Imitação de Cristo, de Tomás Kempis, difundiu-se como incenso por
todos os corredores e câmaras da igreja universal. 43
43
Veja-se Tholuck, Sufismus seu Theosophia Persarum Pantheistica. C. Schmidt, Essai sur les
Mystiques du 14me Siècle. This writer is the author of most of the excellent articles in Herzog’s
Encyklopädie on the Mediæval Mystics. Ullmann’s Reformers before the Reformation.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 126
§ 4. O misticismo durante e depois da Reforma
Os místicos posteriores
A sucessão de escritores místicos foi continuada por tais homens
como Paracelso, Weigel, Jacó Boehmne, e outros. Os primeiros
chamados eram um médico e um químico, que combinaram filosofia e
alquimia natural com sua teosofia. Nasceu em 1493 e morreu em 1541.
Weigel, um pastor, nasceu na Saxônia em 1533, e morreu em 1588. Suas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 131
posturas eram formadas sob a influência de Tauler, Schwenkfeld, e
Paracelso. Ele ensinou, como seus predecessores fizeram, que a palavra
interior, e não as Escrituras, era a origem do conhecimento verdadeiro,
que tudo que Deus criava é o próprio Deus, e que tudo que é bom no
homem é da substância de Deus. O escritor mais notável desta classe foi
Jacó Boehme, que nasceu próximo de Gorlitz na Silésia, em 1575. Seus
pais eram camponeses, e ele mesmo um sapateiro. Que tal homem
escrevesse livros que provaram uma mina de pensamentos para
Schelling, Hegel, e Coleridge, como também para um classe inteira de
teólogos, é evidência decisiva de seus dons extraordinários. Em caráter
ele era aprazível, gentil, e devoto; e embora denunciado como um
herege, ele constantemente professou sua submissão à fé da Igreja. Ele se
considerou como tendo recebido em resposta à oração, em três ocasiões
diferentes, as comunicações de luz e conhecimento divinos que ele foi
impelido a revelar a outros. Ele não representou o ser primordial como
sem atributos ou qualidades dos quais nada podia ser predito, mas como
a base de todos os tipos de forças buscando revelação. O que a Bíblia
ensina sobre a Trindade, entendeu como um relato sobre a revelação do
universo fora de Deus e sua relação para com Ele.
Era um teósofo numa sentido, em que Vaughan 44 define o termo,
“Aquele que dá a você uma teoria de Deus ou das obras de Deus, que
não tem razão, mas sim uma inspiração de si mesmo para sua base.” “Os
teósofos,” diz Fleming, 45 “são uma escola de filósofos que mesclam
entusiasmo com observação, alquimia com teologia, metafísica com
medicina, e viu o tudo com uma forma de mistério e inspiração.” 46
44
Hours with Mystics, vol. i. p. 45.
45
Vocabulary of Philosophy.
46
Veja-se Baur’s Christliche Gnosis; Dorner’s History of the Doctrine of the Person of Christ and his
History of Protestant Theology; Hamberger, Die Lehre des Deutschen Philosophen u Boehme, 1844.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 132
§ 5. O Quietismo
47
Herzog’s Encyklopädie, art. “Moinhos.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 133
atividade era suspensa; um estado de perfeita quietude em que a alma é
perdida em Deus, — um “écoulement et liquefaction de l’âme en Dieu,”
como é expresso por St. Francis de Sales. Este estado é alcançado por
poucos. Não tem que ser alcançado pelo uso de meios da graça ou
ordenanças da Igreja. A alma devia ser erguida acima da necessidade de
todas ajudas. Sobe até Cristo acima, de tal maneira que não é Ele a quem
a alma busca, nem Deus nele; mas sim Deus como Deus; o Deus
absoluto, infinito. A importância das Escrituras, da oração, dos
sacramentos, e da verdade relativa a Cristo, não era negada; mas todos
estes eram considerados como pertencendo às fases mais baixas da vida
divina. Nem era esta pausa e união com Deus para ser alcançado por
meditação; porque a meditação é discursiva. Implica um esforço para
trazer a verdade perante a mente, e pondo a atenção nisto. Toda atividade
própria consciente deve ser suspensa em pedido para esta pausa perfeita
em Deus. É um estado em que a alma está fora de si mesma; um estado
de êxtase, de acordo com o significado etimológico da palavra.
Este estado tem que ser alcançado no modo prescrito pelos místicos
mais velhos; primeiro, pela negação ou abstração; isto é, a abstração da
alma de tudo fora de Deus, da criatura, de todo interesse, preocupação,
ou impressão de objetos sensíveis. Consequentemente, a conexão entre o
misticismo e ascetismo. Não apenas deve a alma se voltar deste modo
separada da criatura, mas ela deve estar morta para o ego. Toda
consideração para com o ego deve ser perdida. Não pode haver nenhuma
oração, porque a oração está pedindo algo para o ego; nenhuma ação de
graças, porque a ação de graças implica gratidão pelo eu ao ego. O ego
deve ser perdido. Não deve haver nenhuma preferência pelo céu sobre o
inferno. Um dos pontos mais ativamente insistidos era uma disposição
para ser malditos, se tal fosse a vontade de Deus. Na controvérsia entre
Fénélon e Bossuet, a questão principal tinha relação com o amor
desinteressado, se amando a Deus a alma deve ser erguida sobretudo
quanto à consideração para com sua própria santidade e felicidade. Este
amor puro ou desinteressado justifica, ou presta justiça aos olhos de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 134
Deus. Embora os místicos deste período eram eminentemente puros
como também devotos, eles, não obstante, às vezes anunciaram
princípios ou, pelo menos, usaram expressões que deram a seus inimigos
um pretexto para acusá-los de antinomianismo. Diziam que uma alma
cheia com este amor, ou reduzido a esta negação inteira do ego, não pode
pecar; “o pecado não está nele, mas sim fora dele:” que era feito para
querer dizer, que nada era pecado para o perfeito. É um fato psicológico
instrutivo que quando homens tentam ou tratam de subir acima da lei de
Deus, afundam abaixo desta; aquele perfeccionismo levou em geral ao
antinomianismo.
Madame Guyon
A pessoa mais proeminente e influente dos quietistas, como eles
eram chamados, foi Madame Guyon, nascida em 1648 e morreu em
1717. Pertenceu a uma família rica e nobre; foi formada num convento,
casada aos dezesseis anos com um homem de grau e riqueza e três vezes
sua idade; fiel e dedicada, mas infelizes em suas relações domésticas;
aderindo zelosamente à sua Igreja, passou por uma vida de trabalho
incessante, e também, amargurada por perseguição. Quando ainda no
convento ela caiu sob a influência dos escritos de St. Francis de Sales,
que determinou seu curso subsequente. Entusiástica no temperamento,
dotada com dons extraordinários, ela logo veio a considerar-se como
recipiente de visões, revelações, e inspirações e por isso ela foi impelida
a escrever e, em primeiro lugar, dedicar-se à conversão de protestantes.
Falhando nisto, considerou sua vocação tornar-se a mãe de meninos
espirituais, levando-os a adotar suas visões da vida interna. Para este
objeto ela se dedicou com energia incansável e grande êxito, seus
aderentes, secretos e declarados, sendo contados aos milhares, ou, como
ela supôs, por milhões. Ela então atraiu sobre si mesma, embora
dedicada à Igreja, o desgosto das autoridades, e foi encarcerada por sete
anos na Bastilha e outras prisões na França. Os anos posteriores de sua
vida ela gastou em retiro na casa de sua filha, carregada com fraquezas
físicas, ouvindo a multidão todos dias em sua capela particular e
comunicando dia sim dia não. Seus trabalhos principais foram, “La Bible
avec des Explications et Réflexions, qui regardent la Vie Intérieure,”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 136
“Moyen court et très-facile de faire Oraison.” Este pequeno trabalho
atraiu grande atenção e grande oposição. foi obrigada a defender isto
numa “Apologie du Moyen Court,” em 1690, e “Justifications” em 1694,
e em 1695 ela foi forçada a retratar trinta e cinco proposições
selecionadas disso. Publicou um poema alegórico sob o título “Les
Torrens.” Suas partes poéticas secundárias chamadas “Poésies
Spirituelles,” em quatro volumes, são muito admirados para o gênio que
manifestam.
Arcebispo Fénélon
O arcebispo Fénélon, umas das maiores luz da Gallican Church
(Igreja Católica na França), aderiram à causa de Madame Guyon, e
publicaram em 1697 “Explication des Maximes des Saints sur la Vie
Intérieure.” Como o título anuncia, os princípios deste livro são
derivados dos místicos antigos, e especialmente do mais recente dos
santos, St. Francis de Sales, que foi canonizado em 1665, só trinta e três
anos depois de sua morte. Embora Fénélon cuidadosamente tenha
evitado as extravagâncias dos místicos de seu próprio tempo, e embora
ele não ensinasse nada que homens veneraram na Igreja não ensinaram
antes dele, seu livro perdeu para ele o favor da corte, e foi finalmente
condenado pelas autoridades em Roma. Por esta desapropriação ele se
submeteu com a maior docilidade. Ele não apenas não fez nenhuma
defesa, mas sim leu o resumo dos atos de desapropriação em seu próprio
púlpito, e proibiu seu livro de ser lido dentro de sua diocese. Embora esta
sua consciência o constrangeu, ele provavelmente não mudou suas
posturas. Como o papa decidiu contra ele, ele esteve disposto a admitir
que o que ele havia dito era errado, e ainda o que ele tentou dizer ele
ainda manteve como sendo certo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 137
§ 6. Os Quakeres ou Amigos
48
One of the most important works of William Penn bears the title Primitive Christianity revived in
the Faith and Practice of the People called Quakers.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 138
solicitar àqueles a quem eles tremeram com medo do juízo de Deus. A
designação há muito deixou de ser apropriada, como eles estão
caracteristicamente quietos em sua adoração, e gentil em relação àqueles
que não estão. Chamam-se a si mesmos Amigos porque se opõem à
violência, contenda, e especialmente à guerra. A princípio, entretanto,
eram acusados de muitas irregularidades, que, em ligação com sua
recusa em pagar dízimos, não fazer juramentos, e não cumprir serviço
militar, deu pretexto a frequentes e grandes perseguições.
Os quakeres foram a princípio, como um classe, analfabetos,
entretanto homens das classes educadas logo se juntaram a eles, e por
sua influência as irregularidades ligadas ao movimento foram corrigidas,
e a sociedade reduzida a uma forma regularmente organizada. Os mais
proeminentes destes homens foram George Keith, Samuel Fisher, e
William Penn. O último nomeado, o filho de um almirante britânico,
provou sua sinceridade pelos sacrifícios e sofrimentos a que sua
aderência a uma seita, então menosprezada e perseguida, ele se
submeteu. Quanto à influência que ele possuía, como amigo e favorito de
James II, podia fazer muito para seus irmãos, e tendo recebido uma
subvenção da coroa, pelo que é agora Pensilvânia, transportou uma
colônia deles para este país e fundou um dos Estados mais importantes
da União Americana. O homem, entretanto, que fez mais que reduzir os
princípios de George Fox a uma ordem, e recomendá-los ao público
religioso e literário, foi Robert Barclay. Barclay era um membro de uma
família escocesa proeminente, e recebeu o benefício de uma educação
estendida e variada. Nasceu em 1648, e morreu em 1690. Sua obra
principal, “Theologiæ Christianæ Apologia,” é uma exposição de quinze
teses que ele previamente escreveu e imprimiu sob o título, “Theses
Theologicæ onnnibus Clericis et præsertim universis Doctoribus,
Professoribus et Studiosis Theologiæ in Academiis Europæ versantibus
sive Pontificis sive Protestantibus oblatæ.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 139
B. Suas doutrinas.
É impossível dar uma postura satisfatória das doutrinas dos
quakeres. Eles não têm nenhum credo ou exposição autoritativa de
doutrina que todos reconhecem como aqueles que chamam a si mesmos
quakeres. Seus escritores mais proeminentes diferem em suas posturas
em muitos pontos importantes. As opiniões de ninguém, nem de vários
autores, podem ser tomados como representando as posturas da
Sociedade. Existem de fato três classes de quakeres.
Primeiro. Aqueles que se chamam a si mesmos ortodoxos, e que
diferem muito pouco do grande corpo de cristãos evangélicos. A este
pertence a grande maioria da Sociedade ambos neste país e na Grã-
Bretanha. Este aparece dos testemunhos repetidamente emitidos pelas
“Reuniões Anuais,” os corpos representativos da Sociedade. Isto é uma
testemunha muito mais satisfatória da fé geral do corpo que as
declarações de escritores individuais, entretanto eminente, pelo que a
Sociedade não é responsável. Um resumo muito claro e completo da
doutrina dos Amigos pode-se achar na “History of Religious
Denominations in the United States,” compilada por I. Daniel Rupp. Os
parágrafos neste trabalho foram escritos por homens eminentes que
pertencem às várias denominações cujas posturas são representadas. O
que se relaciona aos quakeres foram escritos por Tomé Evans, um
ministro proeminente da Sociedade, e um homem verdadeiramente
representativo. Sem referir-se às doutrinas peculiares da Sociedade, os
extratos seguintes mostram o próximo que os quakeres ortodoxos (isto é,
a Sociedade propriamente, como representadas em suas reuniões anuais)
chegam à fé comum de igrejas protestantes.
Amigos Heterodoxos.
Segundo, existe um classe chamando a si mesmos Amigos, e
retendo a organização da Sociedade, e seus usos sobre vestimenta,
língua, e modo de adoração, que são realmente deístas. Não admitem
nenhuma autoridade mais alta, em assuntos da religião, que a razão e
consciência naturais de homem, e mantêm poucas coisas como
verdadeiras além das verdades da religião natural. Este classe foi
desconhecida pela Sociedade em sua capacidade representativa.
Terceiro: existe uma terceira classe que não constitui um corpo
organizado ou separado, mas inclui homens de posturas muito diferentes.
Como já se observou, havia grande diversidade de opinião entre os
quakeres, especialmente durante o primeiro período de sua história. Esta
diversidade relacionada às doutrinas comuns do cristianismo, a respeito
da natureza da luz interior guiando a todos os professos a crer, e a
autoridade devida às Escrituras sagradas. Alguns negaram a doutrina da
Trindade e a satisfação de Cristo; alguns pareceram ignorar o Cristo
histórico completamente, e referir-se tudo ao Cristo interior. Outros,
enquanto admitindo a verdade histórica da vida de Cristo, e de Sua obra
na Terra, consideraram Sua redenção como completamente subjetiva.
Ele nos salva não pelo que Ele fez por nós, mas exclusivamente pelo que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 143
Ele faz em nós. Esta, como nós vemos, é a propensão característica do
misticismo em todas as suas modificações.
As Posturas de Barclay.
Enquanto tais são as posturas dos Amigos ortodoxos, deve-se
admitir que muitos mantêm uma doutrina diferente. Isto é verdade não
apenas daqueles a quem a Sociedade desconheceu, mas sim de muitos
homens mais proeminentes em sua história. Esta diferença relaciona
tanto para o que esta luz é como para sua autoridade. Sobre os anteriores
destes pontos a linguagem empregada é tão distinta, e tão figurativa, que
é difícil determinar seu significado real. Alguns dos primeiros quakeres
falaram como se eles adotaram a doutrina dos místicos antigos, que este
princípio interior era o próprio Deus, a substância divina. Outros falam
disso como Cristo, ou até o corpo de Cristo, ou Sua vida. Outros como
“uma semente,” que se declara não ser nenhuma parte da natureza do
homem; não permanece da imagem de Deus em que Adão foi criado;
49
Evans.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 145
nem é a substância de Deus. Não obstante, declara-se que é “uma
substância espiritual,” em que o Pai, Filho, e Espírito Santo estão
presentes. Esta semente vem de Cristo, e é comunicado a todo homem.
Em alguns é como uma semente sobre uma rocha, que nunca mostra
qualquer sinal de vida. Mas quando a alma recebe uma visitação do
Espírito, se sua influência não é resistida, aquela semente é avivada, e se
desenvolve em santidade de coração e vida, pela qual a alma é purificada
e justificada. Nós não somos justificados por nossas obras. Tudo é
devido a Cristo. Ele é ao mesmo tempo “o doador e o dom.” Não
obstante, nossa justificação consiste nesta mudança subjetiva. 50
Uma distinção é feita entre uma dupla redenção; uma é
“apresentada e realizada por Cristo para nós em Seu corpo crucificado
sem nós; a outra é a redenção operada por Cristo em nós. A primeira é
aquela por meio da qual um homem, como ele está na queda, é colocada
em seu interior uma capacidade de salvação, e transferiu até ele uma
medida daquele poder, virtude, espírito, vida, e graça que estava em
Cristo Jesus, que, como o dom gratuito de Deus, é capaz de
contrabalançar, vencer e exterminar a semente do mal, com a qual somos
naturalmente fermentados, como na Queda. A segunda é aquela por meio
da qual testificamos e conhecemos esta redenção pura e perfeita em nós
mesmos, purificando, limpando e nos resgatando do poder da corrupção,
e nos trazendo em unidade, favor e amizade com Deus.” 51
No que se relaciona à autoridade desta luz interior, enquanto os
ortodoxos a fazem subordinada às Escrituras, muitos dos primeiros
Amigos fizeram os escritos, subordinados à palavra interna; e outros,
como o próprio Barclay, faz os dois coordenarem. Embora neste assunto
ele é dificilmente consistente consigo mesmo, ele expressamente nega
que as Escrituras sejam para nós “a fonte” de fato; que elas sejam “a
base principal de toda verdade e conhecimento, ou ainda a regra primária
50
See Barclay’s Apology, Philadelphia edition, pp. 152, 153.
51
Ibid., p. 218.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 146
adequada de fé e prática.” Elas, entretanto, devem “ser estimadas a um
papel subordinado secundário ao Espírito.” Não obstante, ensina com
simplicidade igual: o que “não pode ser provado pela Escritura, não é
nenhum artigo de fé necessário.” 52 Novamente, ele diz: Estamos
“dispostos a admitir isto como uma máxima positiva e certa, que
qualquer coisa que alguém faz, fingindo o Espírito, o que é contrário às
Escrituras, ser contado e considerado uma ilusão do diabo.” 53 Ele
“livremente subscreve aquela declaração: Deixá-lo pregar qualquer outro
evangelho que aquele pregado pelos apóstolos, e de acordo com as
Escrituras, ser maldito.” 54 Nós consideramos as Escrituras, ele diz,
“como o único juiz externo digno de controvérsias no meio de cristãos, e
que qualquer doutrina que seja contrária ao seu testemunho, pode
portanto ser justamente rejeitada como falsa.” 55 Seu livro inteiro,
portanto, é um esforço para provar, com base na Escritura, todas as
doutrinas peculiares do quaquerismo.
Sua teoria é: (1.) Que todos os homens desde a Queda estão num
estado de morte espiritual de que são totalmente incapazes de entregar a
si mesmos. É severo em sua denúncia de toda doutrina pelagiana e
semipelagiana. (2.) Que Deus determinou, por seu Filho nosso Senhor
Jesus Cristo, fazer provisão para a salvação de todos os homens. (3.) A
obra de Cristo assegura a oportunidade e significa salvação para todo
homem (4.) Por meio dEle e por causa dEle “uma semente” é dada para
todo homem que, sob a influência do Espírito, pode ser desenvolvida em
retidão e santidade, restaurando a alma na imagem e companheirismo
com Deus. (5.) Concede-se a todo homem “um dia de visitação” quando
vem a Ele o Espírito e mostra uma influência que, se não for resistida,
capacita esta semente divina, e assim dá a oportunidade de ser salva (6.)
A medida desta influência divina não é a mesma em todos os casos. Em
52
Barclay’s Apology, p. 106.
53
Ibid., p. 100.
54
Ibid., p. 105.
55
Ibid., p. 100.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 147
alguns é irresistível, em outros, não. Em alguns é tão abundante como
nos profetas e apóstolos, tornando seus assuntos tão autorizados como
mestres quanto os apóstolos originais. (7.) O papel do Espírito é ensinar
e guiar. Não é meramente com intenção de iluminar a mente no
conhecimento de verdades contidas nas Escrituras. Ele apresenta a
verdade de maneira à mente. Não revela novas doutrinas, muito menos
doutrinas opostas àquelas reveladas nas Escrituras; mas Ele faz uma
revelação nova e independente de doutrinas velhas.
Neste ponto Barclay é muito explícito. 56 Sua discussão de sua
segunda e terceira proposição, — uma relativa à “revelação imediata,” e
a outra, “as Escrituras,” — parte esta doutrina extensivamente. “Nós
distinguimos,” ele diz, “entre uma revelação de um novo evangelho e
novas doutrinas, e uma nova revelação do evangelho e doutrinas velhas
boas; a última nós defendemos, mas a primeira negamos totalmente.” A
razão natural revela certas doutrinas, mas isto não é incompatível com
uma nova revelação das mesmas doutrinas nas Escrituras. Então o fato
de que o evangelho é revelado nas Escrituras não é incompatível com
sua revelação objetiva imediata à alma pelo Espírito.
Além das grandes doutrinas da salvação, existem muitas coisas que
o cristão tem que conhecer que não estão contidas nas Escrituras. Nestes
assuntos ele não é deixado à sua própria direção. O Espírito “guia a toda
verdade.” “Portanto,” diz Barclay, “o Espírito de Deus instrui e ensina
todo verdadeiro cristão o que é necessário para ele conhecer.” Por
exemplo, se Ele tem que pregar; e, chamado-se para pregar, quando,
onde, e o que deve pregar; onde ele deve ir, e em qualquer emergência o
que tem que cumprir. Então o Espírito nos ensina quando e onde nós
temos que orar, e o que temos para orar. Como a direção do Espírito se
estende a tudo, devia ser buscada e obedecida em todas as coisas.
O quaquerismo ignora a distinção entre homens inspirados e não
inspirados, exceto sobre a medida da influência do Espírito. Ele habita
56
See pp. 62-64, 105.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 148
em todos os crentes, e apresenta o mesmo papel em tudo. Como os
santos do passado, antes de ser dada a lei, estava sob Sua instrução e
direção, então eles continuaram a apreciar Seu ensino depois que a lei foi
dada. Por toda a dispensação do Antigo Testamento o povo de Deus
recebeu revelações e direções imediatas. Quando Cristo veio houve uma
comunicação mais copiosa desta influência. Estas comunicações não
eram limitadas a um ou outro sexo, ou a qualquer classe na Igreja. Elas
não eram peculiares para os apóstolos, ou para os ministros, senão para
todos que recebiam uma manifestação do Espírito para benefício
também. O estado da Igreja, como colocado no Novo Testamento sobre
este assunto, continua no tempo presente, a não ser que os dons dados
não são do caráter milagroso agora assim como eram então. Mas quanto
à Sua revelação, iluminação, ensino, operações de guia, Ele está tão
presente com os crentes agora como durante a era apostólica.
Então todos falaram como o Espírito lhes concedeu que falassem.
Quando os cristãos se reuniram todos tiveram seu dom: um tinha salmo;
outro, doutrina; outro, revelação; outro, interpretação. Todos puderam
falar; mas devia ser feito decentemente e com ordem. Se qualquer coisa
fosse revelada a um que estava situado, era para manter sua paz até que
chegasse seu tempo; porque Deus não é autor de confusão. Em 1 Cor. 14
temos o ideal ou modelo quaker de uma assembleia cristã. E como os
apóstolos foram a todas as partes, não de acordo com seu próprio juízo,
mas de modo sobrenatural guiados pelo Espírito, então o Espírito guia a
todos nos negócios comuns da vida, eles esperam pelas insinuações de
Sua vontade.
Como esta doutrina da direção do Espírito é o princípio
fundamental do quaquerismo, é a origem de todas as peculiaridades pela
qual a Sociedade de Amigos já foi distinguida. Se todo homem tem
dentro de si mesmo um guia infalível sobre a verdade e o dever, ele não
necessita de ensino externo. Se o papel do Espírito é revelar a verdade
objetivamente à mente, e indicar em toda ocasião o caminho do dever; e
se Sua influência reveladora e guia é universal e imediata, auto-
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 149
comprovando propriamente como divino, deve necessariamente
substituir todos os outros; da mesma maneira que as Escrituras
substituem a razão em assuntos de religião. Os quakeres, portanto,
embora, como foi mostrado, reconhecendo a autoridade divina das
Escrituras, dão-lhe menos importância que outras denominações de
cristãos evangélicos. Dão muito pouca importância à Igreja e suas
ordenanças; do sábado sagrado; de um ministério declarado; e nada dos
sacramentos como ordenanças exteriores e meios da graça. Em tudo isto
sua influência foi nociva para a causa de Cristo, enquanto é admitido
alegremente que alguns dos melhores cristãos de nossa era pertencem à
Sociedade de Amigos.
57
Barclay’s Apology, p. 67.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 156
garantia quanto à certeza de condenação pode ser tão forte num caso
como no outro. Em um está bem fundamentado; no outro, é uma ilusão.
Uma convicção irresistível não é suficiente. Pode ser que dê
satisfação ao sujeito da mesma. Mas não pode nem satisfazer a outros
nem ser critério da verdade. Milhares estiveram e seguem estando
convencidos de que o falso é verdadeiro, e de que o errôneo é correto.
Portanto, dizer aos homens que busquem em seu interior para achar uma
guia autoritativa, e que confiem em suas convicções irresistíveis, é dar-
lhes uma guia que os conduzirá à destruição. Quando Deus realmente faz
revelações à alma, não só dá uma certeza infalível de que a revelação é
divina, mas também a acompanha de evidência satisfatória para outros
assim como para seu receptor de que é de Deus. Todas as suas
revelações tiveram o selo tanto da evidência interna como da externa. E
quando o crente é assegurado, pelo testemunho do Espírito, das verdades
da Escritura, tem só uma nova classe de evidência do que já está
autenticado além de toda contradição racional. Nosso mesmo bendito
Senhor disse aos judeus: «Se não faço as obras de meu Pai, não me
acrediteis; mas, se faço, e não me credes, crede nas obras» (Jo 10:37,38).
Inclusive chega a tão longe para dizer: «Se eu não tivesse feito entre eles
tais obras, quais nenhum outro fez, pecado não teriam» (Jo 15:24). O
ensino interior e testemunho do Espírito são verdades escriturísticas, e de
um valor inestimável. Mas é ruinoso pô-las em lugar da Palavra escrita
divinamente autenticada.
58
Barclay’s, Second Proposition.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 158
CAPÍTULO V
A DOUTRINA CATÓLICA ROMANA A RESPEITO DA
REGRA DA FÉ
§ 1. Declaração da doutrina
59
Veja-se B. Lamy, Apparatus Bibl., lib. ii c. 5. Jahn, Einleitung, Th. L §29; 2a. ed., Viena 1802, pág.
132. Möhler, Symbolik.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 160
sobrenaturais existentes dadas por Deus, que constituem a regra de fé
para sua Igreja, estão contidas em Sua palavra escrita. Os romanistas,
pelo contrário, mantêm que algumas doutrinas que todos os cristãos
estão obrigados a crer só estão reveladas de maneira imperfeita nas
Escrituras; que outras estão só insinuadas, e que algumas não aparecem
nelas absolutamente.
O prelúdio para o Catecismo Romano (Pergunta 12) diz: “Omnis
doctrinæ ratio, quæ fidelibus tradenda sit, verbo Dei continetur, quod in
scripturam traditionesque distributum est.” Belarmino 60 diz
expressamente: “Nos asserimus, in Scripturis non contineri expressè
totam doctrinam necessariam, sive de fide sive de moribus; et proinde
praeter verbum Dei scriptum requiri etiam verbum Dei non-scriptum,
i.e., divinas et apostolicas traditiones.” Neste ponto todos os teólogos
romanistas são unânimes; mas nunca foi decidido de maneira autorizada
pela Igreja de Roma quais são as doutrinas assim imperfeitamente
contidas nas Escrituras, ou só implicadas, ou totalmente omitidas. Os
teólogos desta Igreja atribuem a uma ou outra das seguintes classes, com
maior ou menor unanimidade, as seguintes doutrinas: (1.) O cânon da
Escritura. (2.) A inspiração dos escritores sagrados. (3.) A plena doutrina
da Trindade. (4.) A personalidade e divindade do Espírito Santo. (5.) O
batismo de crianças. (6.) A observância do domingo como o Sabbath
cristão. (7.) A tríplice ordem ministerial. (8.) O governo episcopal da
Igreja. (9.) A perpetuidade do apostolado. (10.) A graça das ordens. (11.)
A natureza sacrifical da Eucaristia. (12.) Os sete sacramentos. (13.) O
purgatório. Está no interesse dos que defendem a tradição desvalorizar as
Escrituras, e mostrar quanto perderia a Igreja se não tivesse outra fonte
de conhecimento divino exceto a palavra escrita. Neste assunto o autor
do N.º 85 dos Tratados de Oxford, quando fala até de doutrinas
essenciais, diz, 61 “Isto é uma coisa direta que elas estão nas próprias
60
De Verbo Dei, iv. 3, tom. i. p. 163, e. edit, Paris, 1608.
61
Págs. 34 e 35.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 161
Escrituras. A maravilha é que elas estão todas lá. Humanamente
julgando que eles não estariam lá senão por interposição de Deus; e,
portanto, visto que elas estão lá por uma classificação de acidente, não é
estranho que elas devem estar senão latente lá, e só indiretamente
produtível ali.” “A doutrina de evangelho,” diz o mesmo escritor, “não é
mais que indireta e secretamente registrado nas Escritura sob a
superfície.”
A tradição é sempre representada pelos romanistas como não só o
intérprete, mas também o complemento das Escrituras. A Bíblia,
portanto, segundo a Igreja de Roma, é incompleta. Não contém tudo o
que a igreja deve crer, nem as doutrinas que contém estão ali dadas a
conhecer de uma maneira plena ou clara.
A Vulgata Latina
4. O quarto ponto de diferença trata da autoridade devida à a
Vulgata Latina. Neste assunto o Concílio do Trento (Sessão 4), diz:
“Synodus considerans non parum utilitatis accedere posse Ecclesiæ Dei,
si ex omnibus Latinis editionibus quæ circumferentur, sacrorum
librorum, quænam pro authentica habenda sit, innotescat: statuit et
declarat, ut hæc ipsa vetus et vulgata editio, quæ longo tot seculorum usu
in ipsa Ecclesia probata est, in publicis lectionibus, disputationibus,
prædicationibus et expositionibus pro authentica habeatur et nemo illam
rejicere quovis prætextu audeat vel præsumat.” O significado deste
62
De Verbo Dei, iii. 9, tom. i. p. 151, d. ut sup.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 163
decreto é um assunto de contenda no meio dos próprios romanistas.
Alguns de seus teólogos mais modernos e liberais dizem que o Concílio
simplesmente tem a intenção de determinar qual no meio de várias
versões latinas deve-se usar no serviço da Igreja. Combatem que não se
desejava proibir a apelação às Escrituras originais, ou colocar a Vulgata
no meio deles em autoridade. Os mais antigos e estritos romanistas
afirmam que o Sínodo [o concílio do Trento] tinha a intenção de proibir
apelar às Escrituras hebraicas e gregas, e de fazer da Vulgata a
autoridade definitiva. A linguagem do Concílio parece favorecer esta
interpretação. A Vulgata devia ser usada não só para todos os propósitos
ordinários da instrução pública, mas em todas as discussões teológicas, e
em todas as obras de exegese.
§ 3. A tradição
A Doutrina Tridentina
O Concílio do Trento, e a Igreja Latina como um corpo, ensinam a
respeito disto: (1.) Que Cristo e Seus Apóstolos ensinaram muitas coisas
que não foram consignadas por escrito, isto é, não registradas nas
Sagradas Escrituras. (2.) Que estas instruções foram fielmente
transmitidas e preservadas na Igreja. (3.) Que constituem uma parte da
regra da fé para todos os crentes.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 165
Estes pormenores são incluídos nos extratos seguintes dos atos do
Concílio: “Synodus — perspiciens hanc veritatem et disciplinam
contineri in libris scriptis et sine scripto traditionibus, quæ ex ipsius
Christi ore ab apostolis acceptæ, aut ab ipsis apostolis, Spiritu Sancto
dictante, quasi per manus traditæ, ad nos usque pervenerunt;
orthodoxorum patrum exempla secuta, omnes libros tam Veteris quam
Novi Testamenti, cum utriusque unus Deus sit auctor, nec non
traditiones ipsas, tum ad fidem tum ad mores pertinentes, tanquam vel
ore tenus a Christo, vel a Spiritu Sancto dictatas, et continua successione
in Ecclesia Catholica conservatas, pari pietatis affectu et reverentia
suscipit et veneratur.” 63
Belarmino 64 divide as tradições em três classes: divinas, apostólicas
e eclesiásticas. “Divinæ dicuntur quæ acceptæ sunt ab ipso Christo
apostolos docente, et nusquam in divinis literis in veniuntur. . . . .
Apostolicæ traditiones proprie dicuntur illæ, quæ ab apostolis institutæ
sunt, non tamen sine assistentia Spiritus Sancti et nihilominus non extant
scriptæ in eorum epistolis. . . . . Ecclesiasticæ traditiones proprie
dicuntur consuetudines quædam antiquæ vel a prælatis vel a populis
inchoatæ, quæ paulatim tacito consensu populorum vim legis
obtinuerunt. Et quidem traditiones divinæ eandem vim habent, quam
divinae præcepta sive divina doctrina scripta in Evangeliis. Et similiter
apostolicæ traditiones non scriptæ eandem vim habent, quam apostolica,
traditiones scriptæ. . . . . Ecclesiasticæ autem traditiones eandem vim
habent, quam decreta et constitutiones ecclesiasticæ, scriptæ.”
Petrus à Soto, citado por Chemnitz 65 diz: “Infallibilis est regula et
catholica. Quacunque credit, tenet, et servat Romana Ecclesia, et in
Scripturis non habentur, illa ab apostolis esse tradita; item quarum
observationum initium, author et origo ignoretur, vel inveniri non potest,
illas extra omnem dubitationem ab apostolis tradita esse.”
63
Trent. Sess. IV.
64
De Verbo Dei, IV, 1.
65
Examen Concilii Tridentini, p. 85, edit. Frankfort, 1574.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 166
De tudo isto se depreende:
1. Que estas tradições se chamam não escritas porque não estão
contidas nas Escrituras. Em sua maior parte encontram-se agora escritas
nas obras dos Pais, decisões de Concílios, constituições eclesiásticas e
decretos dos Papas.
2. O ofício da tradição é comunicar um conhecimento das doutrinas,
preceitos e instituições que não se contêm nas Escrituras, e também para
servir como guia para compreender de maneira apropriada o que nelas
está escrito. Por isso, a tradição, na Igreja de Roma, é ao mesmo tempo
um suplemento e a interpretação da palavra escrita.
3. A autoridade da tradição é a mesma que a que pertence às
Escrituras. Ambas devem receber “pari pietatis affectu et reverentia.”
Ambas se derivam da mesma fonte, ambas são recebidas pelo mesmo
canal, e ambas são autenticadas pelos mesmas testemunhas. Esta
autoridade, não obstante, pertence só às tradições consideradas como
divinas ou apostólicas. As chamada eclesiásticas têm menor importância,
relacionadas com ritos e usos. Entretanto, também para estas últimas
afirma-se uma autoridade virtualmente divina, porquanto são mandadas
por uma igreja que afirma ter sido dotada por Cristo com plenos poderes
para ordenar ritos e cerimônias.
4. O critério mediante o qual distinguir entre as tradições
verdadeiras e as falsas é ou a antiguidade e a universalidade, ou o
testemunho da Igreja existente. Às vezes se apressa um, às vezes o outro.
O Concílio de Trento afirma o primeiro, e o próprio Belarmino e a maior
parte dos teólogos romanistas. Esta é a famosa regra estabelecida por
Vicente de Lerino no quinto século: «quod semper, quod ubique, quod
ab omnibus» [O que (foi crido) sempre, em todas partes, por todos].
Entretanto, em todas ocasiões o juízo último é a decisão da Igreja. Tudo
aquilo que a Igreja declare como parte da revelação que lhe foi
encomendada deve ser recebido como de autoridade divina, sob pena de
perdição.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 167
§ 4. O ofício da Igreja como Mestra
66
Catecismo Romano, parte I., cap. X, pergunta 15.
67
De Ecclesia Maitante, c. 14.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 168
necessário tudo aquilo que a Igreja pronuncia como parte da revelação de
Deus. Belarmino — para quem não existe nenhuma autoridade maior no
meio de teólogos Romanos — diz que a Igreja pode errar “Nec em rebus
absoluto necessariis Nec em aliis,” isto é, nem em coisas em sua própria
natureza necessária, nem naquelas que são necessárias quando
determinado e ordenado. Foi disputado no meio de romanistas, se a
Igreja for infalível em assuntos de fato como também em assuntos de
doutrina. Por fatos, nesta discussão, não são fatos significados de história
ou ciência, mas sim fatos envoltos em decisões doutrinais. Quando o
papa condenou certas proposições tomadas dos trabalhos de Jansenius,
seus discípulos tiveram que admitir que aquelas proposições eram
errôneas; mas eles negaram que eles eram contidos, no sentido
condenados, na escrita de seu mestre. A isto os jesuítas responderam,
que a infalibilidade da Igreja se estendia em tais casos tanto para os fatos
como sobre a doutrina. Isto os jansenitas negaram.
A teoria Ultramontana
Segundo a teoria papal ou ultramontana, o papa é o órgão por meio
do que se pronuncia o juízo infalível da Igreja. Ele é o vigário de Cristo.
Não está sujeito a um concílio geral. Não lhe é demandado que consulte
com outros bispos antes de dar sua decisão. Esta infalibilidade não é
pessoal, mas sim oficial. Como homem, o papa pode ser imoral, herege
ou incrédulo; como Papa, quando fala ex-cátedra, é o órgão do Espírito
Santo. O sumo sacerdote entre os judeus podia estar errado quanto à fé,
ou ser de conduta imoral, mas quando consultava a Deus em sua
capacidade oficial, era o mero órgão da comunicação divina. Esta é, em
poucas palavras, a doutrina dos romanistas a respeito da Regra da Fé.
No recente Concílio Ecumênico, celebrado no Vaticano, a doutrina
Ultramontana foi aprovada depois de uma prolongada luta. Por isso, é
agora obrigatório para todos os romanistas crer que o papa é infalível
quando fala ex-cátedra.
68
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 356.
69
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 357.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 172
diz que «A Tradição é a fé comum da Igreja tal como está apresentada
em testemunhos externos e históricos ao longo de todos os séculos».
«Neste último sentido», diz-nos, «é como se considera usualmente a
tradição quando se fala dela como guia à interpretação da regra da fé». 70
Ele admite que neste sentido «a Tradição não contém nada para além do
que é ensinado na Escritura; as duas são, em seu conteúdo, uma e a
mesma coisa». 71
70
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 358.
71
Ibid., pág. 373.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 173
eclesiásticas que não têm nada que ver com a vida da Igreja, e que estão
totalmente fora da esfera da condução prometida do Espírito. Nosso
Senhor, ao prometer o Espírito para conduzir o Seu povo ao
conhecimento das verdades necessárias à sua salvação, não prometeu
preservá-los de erro em questões subordinadas, nem lhes dar
conhecimento sobrenatural a respeito da organização da igreja, do
número dos sacramentos nem do poder dos bispos. Por isso, as duas
teorias diferem não só quanto à classe de pessoas que são guiadas pelo
Espírito, mas também quanto à classe de questões a respeito das quais se
promete a guia.
Terceiro. Uma diferença ainda mais importante é que a fé comum
da Igreja pela qual disputam os protestantes, é a fé em doutrinas
claramente reveladas na Escritura. Não vai para além destas doutrinas.
Deve toda sua autoridade ao fato de que é uma compreensão comum da
palavra escrita, que alcança e na qual persevera sob aquele ensino do
Espírito que assegura aos crentes um conhecimento competente do plano
da salvação que nela se revela. Pelo contrário, para os romanistas a
tradição é algo totalmente independente das Escrituras. Pretendem um
consentimento comum em doutrinas não contidas na Palavra de Deus, ou
que não podem ser sustentadas com base na mesma.
Quarto. Os protestantes não consideram o «consentimento comum»
nem como informador nem como base da fé. Para eles a palavra escrita é
a única fonte de conhecimento do que Deus revelou para nossa salvação,
e seu testemunho na mesma é a única base de nossa fé. Pelo contrário,
para os romanistas a tradição é não só um informante que tem que ser
crido, mas também uma testemunha com base em cujo testemunho deve-
se exercer a fé. É uma coisa dizer que o fato de que todo o verdadeiro
povo de Deus, sob a condução do Espírito, cria que certas doutrinas se
ensinam na Escritura, constitui um argumento irrebatível de que
realmente estão nela ensinadas, e outra coisa muito diferente é dizer que
devido ao fato de que uma sociedade externa, composta de todo tipo de
pessoas e às quais não se deu promessa de condução divina, concorde em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 174
manter certas doutrinas, que por isso estamos obrigados a receber estas
doutrinas como parte da revelação de Deus.
C. Tradição e Desenvolvimento
72
What is Church History? p. 75.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 177
73
história.” Em sua obra sobre os “Principles of Protestantism,” o Dr.
Schaff diz que Schelling e Hegel ensinaram o mundo a reconhecer na
história “o sentido de abertura de pensamentos eternos, um avançar
sempre da revelação racional da ideia de humanidade, e suas relações
com Deus.” Esta teoria de revelação histórica foi adotada, e parcialmente
cristianizada por Schleiermacher, de quem passou ao Dr. Schaff, como
demonstrado em seu trabalho acima citado, como também para muitos
outros homens igualmente devotos e excelentes. A base desta teoria
modificada é realismo. A humanidade é uma vida genérica, uma
substância inteligente. Aquela vida ficou culpada e contaminada em
Adão. Dele passou por um processo de revelação natural, orgânica (a
vida e as próprias substância numéricas) para toda sua posteridade que,
portanto, são culpadas e contaminadas. O Filho de Deus assumiu esta
vida genérica em união com Sua natureza divina, e assim isto o curou e
levantou um poder ou ordem mais alta. Ele se torna um novo ponto de
partida. A origem desta nova forma de vida nEle é sobrenatural. A
constituição de Sua pessoa era um milagre. Mas dEle esta vida é
comunicada por um processo natural de revelação para a Igreja. Seus
membros são portadores desta nova vida genérica. É, entretanto, um
germe. Tudo o que vive cresce. “Qualquer coisa feita está morta.” Esta
nova vida é cristianismo. O cristianismo não é uma forma de doutrina
objetivamente revelada nas Escrituras.
A teologia cristã não é o conhecimento, ou exibição sistemática do
que a Bíblia ensina. É a interpretação desta vida interior. A vida
intelectual de um filho expressa propriamente de uma maneira, de um
menino de outro modo, e de um homem de outra maneira. Em cada fase
de seu progresso o homem tem posturas, sentimentos, e modos de
pensar, apropriados para aquela fase. Não quadraria para um homem ter
as mesmas posturas e pensamentos que o filho. Mas os posteriores são da
mesma maneira verdade, como direito, e tão adequado para o filho,
73
Página 150.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 178
como aqueles do homem para o homem. É deste modo com a Igreja.
Passa por estas fases de infância, juventude, e humanidade, por um
processo regular. Durante os primeiros séculos a Igreja teve a falta de
distinção, incerteza, e exagero de posturas e doutrinas, pertencendo a um
período de infância. Na Idade Média teve uma forma mais alta. Na
Reforma adiantou para a entrada em outra fase. A forma assumida pelo
cristianismo durante o período medieval, era para aquele período o
verdadeiro e adequado, mas não a forma permanente. Nós ainda não
alcançamos aquela forma a respeito da doutrina. Isso será alcançado na
Igreja do futuro.
A verdadeira questão
O verdadeiro estado da questão, a respeito deste tema, na
controvérsia entre romanistas e protestantes, não é (1) Se o Espírito de
Deus leva os verdadeiros crentes ao conhecimento da verdade; nem (2)
se verdadeiros cristãos concordam em todas as questões essenciais
quanto à verdade e ao dever; nem (3) se ninguém pode dissentir com
segurança ou inocentemente desta fé comum do povo de Deus; mas sim
(4) se à parte da revelação contida na Bíblia há outra revelação
suplementar e adicional que foi transmitida fora das Escrituras, pela
tradição. Em outras palavras, se há doutrinas, instituições e ordenanças
que não estejam justificadas nas Escrituras, e que os cristãos devamos
receber e obedecer com base na autoridade do que se chama
consentimento comum. Isto é o que os romanistas afirmam e os
protestantes negam.
Não há critério
3. Mais uma vez os romanistas admitem que muitas falsas tradições
prevaleceram em diferentes épocas e partes da Igreja. Os que as recebem
estão confiantes em sua genuinidade, e são zelosos de sustentá-las.
Como se pode traçar a divisória entre o verdadeiro e o falso? Por meio
de que critério pode alguém distinguir entre um e outro? Os protestantes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 182
dizem que não há tal critério, e por isso que, se se admite a autoridade da
tradição, a Igreja fica exposta a uma inundação de superstição e erro.
Este é o terceiro argumento contra a doutrina romanista a respeito
desta questão. Mas os romanistas dizem que têm um seguro critério na
antiguidade e na universalidade. Formularam sua regra de juízo com o
famoso dito de Vicente de Lerino: « quod semper, quod ubique, quod ab
omnibus» [O que (foi crido) sempre, em todas partes, por todos].
74
Lectures on Prophetic Office of the Church, Londres, 1837, págs. 394,395.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 184
*
determinada e definida necessária para a salvação». Este é o testemunho
da história. Em nenhuma Igreja externa e visível se deu nenhum
consentimento a nenhuma forma de fé semper et ab omnibus [sempre e
da parte de todos].
A Igreja Latina não é uma exceção a esta observação. É um fato
inegável da história que o arianismo prevaleceu durante anos tanto no
Oriente como no Ocidente; que recebeu a sanção da vasta maioria de
bispos, de concílios provinciais e ecumênicos, e do Bispo de Roma. Não
é menos certo que na Igreja Latina, o agostinismo, incluindo todas as
doutrinas características do que agora se chama calvinismo, foi
declarado como a verdadeira fé por concílio após concílio, provincial e
geral, e por bispos e papas. Logo, entretanto, o agostinismo perdeu sua
influência. Durante sete ou oito séculos não prevaleceu nenhuma forma
de doutrina a respeito do pecado, da graça nem da predestinação na
Igreja Latina. O agostinismo, o semipelagianismo e o misticismo
estavam em constante conflito; e isso, ademais, a respeito de questões
sobre as quais a Igreja já tinha pronunciado seu juízo. Não foi até
começos do século dezesseis que o Concílio de Trento, depois de longos
conflitos, dá sua sanção a uma forma modificada de semipelagianismo.
Por isso, a pretensão de um consentimento comum, tal como o
entendem os romanistas, é contrária à história. Choca-se contra alguns
fatos inegáveis. Isto é praticamente admitido pelos próprios romanistas.
Para eles é comum dizer: Cremos porque o quinto século crê. Mas isto é
uma confissão virtual que sua fé peculiar não é historicamente provável
além do quinto século. Esta confissão de um querer de toda evidência
histórica de “consentimento comum” também é envolta, como se
observa adiante, em sua apelação permanente à autoridade da Igreja. O
que a Igreja diz é um assunto de fé, nós, os tradicionalistas declaram,
estamos destinados a crer, sempre foi um assunto de fé. A passagem de
“Petrus a Soto,” citado acima, coloca o caso muito concisamente:
*
Lembre-se que esta obra foi publicada originalmente em 1871 (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 185
“Quæcunque credit, tenet et servat Romana ecclesia, et in Scripturis non
habentur illa ab Apostolis esse tradita.”
O argumento se reduz a isto: A Igreja crê sobre a base do
consentimento comum. A prova de que algo seja questão de
consentimento comum, e que sempre o foi, é que a Igreja agora o crê.
75
Lectures, ut supra, pp. 225, 226.
76
Oxford Tracts, No. 85, p. 102.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 188
outra, mas sim tudo, — até eu ter prova clara que ela está enganada. É
que eu sinto Deus é legar que eu devia fazer isso; e além disso, amo estas
suas posses — porque eu amo sua Bíblia, suas doutrinas, e seus ritos; e
portanto, eu creio.” 77 O romanista, então, crê porque a Igreja crê. Esta é a
última razão. A Igreja crê, não porque ela historicamente pode provar
que suas doutrinas foram recebidas dos apóstolos, mas sim porque ela é
de modo sobrenatural guia para se conhecer a verdade. O “Consenso
comum,” portanto, é praticamente abandonado, e a própria tradição
soluciona dentro da fé presente da Igreja.
77
Ibid. p. 115.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 189
tradições? O seguro é que se necessitará muito mais de uma guia para a
interpretação destas tradições que para as Escrituras.
78
De Ecclesia Militante, II. Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. ii. p. 108 d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 199
credimus in Ecclesia inveniri omnes virtutes, — tamen ut aliquis aliquo
modo dici possit pars veræ Ecclesiæ, — non putamus requiri ullam
internam virtutem, sed tantum externam professionem fidei, et
sacramentorum communionem, quæ sensu ipso percipitur. Ecclesia enim
est coetus hominum ita visibilis et palpabilis, ut est coetus Populi
Romani, vel regnum Galliæ aut respublica Venetorum.” Os Símbolos
luteranos definem a Igreja como, “Congregatio sanctorum.” 79
“Congregatio sanctorum et vere credentium.” 80 “Societas fidei et Spiritus
Sancti in cordibus.” 81 “Congregatio sanctorum, qui habent inter se
societatem ejusdem evangelii seu doctrinæ, et ejusdem Spiritus Sancti,
qui corda eorum renovat, sanctificat et gubernat;” y 82 “Populus
spiritualis, non civilibus ritibus distinctus a gentibus, sed verus populus
Dei renatus per Spiritum Sanctum.” 83
Os Símbolos das Igrejas Reformadas apresentam a mesma
doutrina. 84 A Confissão Helvética diz: “Oportet semper fuisse, nunc esse
et ad finem usque seculi futuram esse Ecclesiam, i.e., e mundo evocatum
vel collectum coetum fidelium, sanctorum inquam omnium
communionem, eorum videlicet, qui Deum verum in Christo servatore
per verbum et Spiritum Sanctum vere cognoscunt et rite colunt, denique
omnibus bonis per Christum gratuito oblatis fide participant.” 85
Confessio Gallicana: “Affirmamus ex Dei verbo, Ecclesiam esse
fidelium coetum, qui in verbo Dei sequendo et pura religione colenda
consentiunt, in qua etiam quotidie proficiunt.” 86 Confessio Belgica:
“Credimus et confitemur unicam Ecclesiam catholicam seu universalem,
quæ est sancta congregatio seu coetus omnium fidelium Christianorum,
79
Augsburg Confession, art. 7.
80
Ibid. art. 8.
81
Apol. A. C., art. 4, pp. 144, 145, Hase.
82
Ibid. p. 146.
83
See Hase, Libri Symbolici.
84
See Niemeyer, Coll. Confess.
85
II. cap. 17, p. 499, Niem.
86
Art. 27, p. 336, ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 200
qui totam suam salutem ab uno Jesu Christo exspectant, abluti ipsius
sanguine et per Spiritum ejus sanctificati atque obsignati. Hæc Ecclesia
sancta nullo est aut certo loco sita et circumscripta, aut ullis certis
personis astricta aut alligata: sed per omnem orbem terrarum sparsa
atque diffusa est.” 87 A mesma doutrina é declarada na resposta à
pergunta cinquenta e quatro no Catecismo de Heidelberg. No Catecismo
de Genebra à pergunta, “Quid est Ecclesia?” a resposta é: “Corpus ac
societas fidelium, quos Deus ad vitam æternam prædestinavit.” 88
Winer em seu “Comparative Darstellung,” 89 deste modo
brevemente declara as duas teorias relativo à Igreja. Os romanistas, ele
diz, “definem a Igreja na Terra, como a comunidade daqueles batizados
no nome de Cristo, unidos sob seu Vigário, o Papa, sua cabeça visível.
Os protestantes, por outro lado, como a comunhão de santos, isto é,
daqueles que verdadeiramente creem em Cristo, em que o evangelho é
puramente pregado e os sacramentos corretamente administrados.”
90
Locus XVIII. ii. 12.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 203
D. A doutrina da infalibilidade se baseia na falsa
pressuposição da perpetuidade do apostolado.
A apostasia ariana
O primeiro grande fato histórico inconsequente com esta teoria é
que a grande maioria dos bispos, tanto da Igreja Oriental como da
Ocidental, incluindo o Papa de Roma, ensinaram arianismo, que toda a
Igreja, tanto antes como depois, tinha condenado e condenou. A decisão
de trezentos e dezoito bispos no Concílio de Niceia, ratificada pelo
assentimento da grande maioria dos que não foram ao Concílio, é
tomada com justiça como prova de que a Igreja visível daquele tempo
ensinava, como agora o ensina Roma, que o Filho é consubstancial com
o Pai. O fato de que alguns dissentissem naquele tempo, ou que mais se
unissem logo na dissidência; ou que, ao cabo de poucos anos no Oriente
os que dissentiam fossem maioria, não se considera como invalidação da
decisão daquele Concilio como a decisão da Igreja, porque uma maioria
dos bispos, como corpo, estavam em favor da doutrina Nicena.
Então, por paridade de raciocínio, as decisões de dois concílios
coetâneos, um em Selêucia no Oriente, e outro em Ariminum no
Ocidente, incluindo a quase oitocentos bispos, e cujas decisões foram
ratificadas pela grande maioria dos bispos da igreja inteira (incluindo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 210
Libério, Bispo de Roma), devem ser aceitas como o ensino da Igreja
visível naquele período. Mas aquelas decisões, com base nos juízos
anteriores e posteriores da Igreja, foram heréticas. Tem-se insistido que a
linguagem adotada pelo Concílio do Ariminum admite uma interpretação
ortodoxa. Em resposta a isso é suficiente dizer: (1.) Que foi redigido,
proposto e defendido pelos confessos oponentes do Credo de Niceia. (2.)
Que foi resistido com firmeza da parte dos defensores daquele credo, e
que se renunciou a isso logo que estes últimos obtiveram o controle. (3.)
Que o próprio Sr. Palmer admite que o Concílio repudiou a palavra
«consubstancial» como expressão da relação do Filho com o Pai. Mas
este era precisamente o ponto sob discussão entre os ortodoxos e os
semi-arianos.
Os antigos e modernos se unem em testificar a respeito da
superioridade geral do arianismo naquele tempo. Gregório Nazianzeno
diz, 91 “Nam si perpaucos exceperis, . . . . omnes (pastores) tempori
obsecuti sunt: hoc tantum inter eos discriminis fuit, quod alii citius, alii
seriùs in eam fraudem inciderunt, atque, alii impietatis duces
antistitesque se præbuerunt.” Jerónimo dice, “Ingemuit totus orbis
terrarum, et Arianum se esse miratus est.” 92 Ele também diz: 93 “Ecclesia
non parietibus consistit, sed in dogmatum veritate, Ecclesia ibi est ubi
fides vera est. Ceterum ante annos quindecim aut viginti parietes omnes
hic ecclesiarum hæretici (Ariani) possidebant, Ecclesia autem vera illic
erat, ubi vera fides erat.” Afirmavam-se que todo mundo se tinha tornado
ariano, e que todas as igrejas estavam em possessão de hereges. Estas
declarações devem tomar-se com prudência, mas demonstram que a
grande maioria de bispos tinham adotado o Credo Ariano ou semi-
Ariano. Atanásio se manifesta nos mesmos termos. “Quæ nunc ecclesia
libere Christum adorat? Si quidem ea, si pia est, periculo subjacet? . . . .
Nam si alicubi pii et Christi studiosi (sunt autem ubique tales permulti)
91
Orat. xvi. t. i. p. 387, edition Paris, 1609.
92
Dialogues contra Luciferanos, 19 vol. ii. p. 172 c., edit. Migue, Paris, 1845.
93
Comment. on Ps. cxxxiii., vol. vii. p. 1223 a, edit. Migne.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 211
illi itidem, ut Prophetæ et magnus ille Elias, absconduntur, . . . . et in
speluncas et cavernas terræ sese abstrudunt, aut in solitudine aberrantes
commorantur.” 94 Vicente de Lerino 95 diz: “Arianorum venenum non jam
portiunculam quamdam, sed pene orbem totum contaminaverat, adeo ut
prope cunctis Latini sermonis episcopis partim vi partim fraude deceptis
caligo quædam mentibus effunderetur.”
A estes antigos testemunhos poder-se-ia acrescentar uma boa
quantidade de modernas autoridades. Damos só o testemunho do doutor
Jackson, um dos mais distinguidos teólogos da Igreja da Inglaterra:
«Depois desta defecção da Igreja de Roma no bispo Libério, todo o
império romano ficou coberto de arianismo». 96 Qualquer que seja a
dúvida a respeito dos detalhes, não pode duvidar do fato geral desta
apostasia. Por afastamento da verdade, pelas artes do partido dominante,
pela influência do imperador, a grande maioria dos bispos uniram-se na
condenação de Atanásio e em assinar uma fórmula de doutrina redigida
em oposição ao Credo de Niceia; fórmula que foi depois rejeitada e
condenada; uma fórmula por causa da qual o Bispo de Roma foi banido
durante dois anos por não querer assiná-la, sendo restaurado à sua sede
quando consentiu em assiná-la. Então, se aplicarmos a este caso as
mesmas normas que se aplicam às decisões do Concílio de Niceia, temos
que admitir que a Igreja externa apostatou tão verdadeiramente sob
Constâncio como tinha professado a verdadeira fé sob Constantino. Se
muitos assinaram a fórmula Eusebiana ou Ariana de maneira insincera,
da mesma maneira muitos assentiram hipocritamente aos decretos de
Niceia. Se muitos se viram afligidos pela autoridade e o temor num caso,
assim sucedeu no outro. Se muitos revogaram seu assentimento ao
arianismo, outros tantos praticamente retiraram seu consentimento à
doutrina Atanasiana.
94
Comm. I. iv. p. 642, vol. 1. Migne, Patrol., Paris, 1846.
95
Comm. I. iv. p. 642, vol. 1. Migne, Patrol., Paris, 1846.
96
On the Church, p. 160. Edited by W. Goode. Philadelphia, 1844.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 212
A evasão romanista deste argumento
Ao tratar deste fato inegável, os romanistas e romanizadores se
veem obrigados a abandonar seu princípio. Sua doutrina é que a Igreja
externa não pode errar, que a maioria de bispos que vivem em qualquer
época não podem deixar de ensinar a verdade. Mas é inegável que sob o
reinado do imperador Constâncio a imensa maioria, incluindo o Bispo de
Roma, renunciaram à verdade. Mas diz Belarmino 97 que a Igreja
prosseguiu e que foi conspícua em Atanásio, Hilário, Eusébio e outros. E
diz Palmer, de Oxford: 98 «A verdade foi preservada inclusive sob bispos
arianos». Mas a questão não é se a verdade será preservada e confessada
pelos verdadeiros filhos de Deus, mas sim se um corpo externo,
organizado, e especialmente a Igreja de Roma, pode errar em seus
ensinos. Não se pode admitir que os romanistas, só para confrontar uma
emergência, lancem mão da doutrina protestante de que a igreja pode
consistir de crentes espalhados. É verdade que, como o afirma Jerônimo,
«Ubi fides vera est, ibi Ecclesia est» [Onde está a verdadeira fé, ali está a
Igreja]; mas esta é nossa doutrina, não a de Roma. «Ecclesia manet et
manebit» [A Igreja permanece e permanecerá]. Mas seja isso em glória
manifesta, como nos tempos de Davi, ou como crentes espalhados, como
nos dias de Elias, não é essencial.
97
De Ecclesia, lib. III. c. 16.
98
On the Church, vol. II, p. 187.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 213
que envolve a total incapacidade de parte do pecador de converter-se a si
mesmo ou de cooperar em sua própria regeneração; a necessidade da
operação certamente eficaz da graça divina; a soberania de Deus em
eleição e reprovação, e a certa perseverança dos santos. O capítulo
dezoito da obra do Wiggers, Agustinianismo e Pelagianismo, titula-se:
«A final adoção do sistema agostiniano para toda a cristandade por parte
do terceiro concílio ecumênico de Éfeso, 431 d.C.» Não se nega que
muitos dos bispos orientais, talvez a maioria dos mesmos, estavam
secretamente opostos a este sistema em seus rasgos essenciais. Na única
coisa que se insiste é que toda a Igreja, através do que os romanistas
reconhecem como seus órgãos oficiais, deram sua sanção às peculiares
doutrinas de Agostinho; e que pelo que à Igreja Latina respeita, este
assentimento não foi só naquele então geral, mas sim cordial. Não é
menos certo que o Concílio de Trento, enquanto que condenou o
Pelagianismo, e inclusive a peculiar doutrina dos semipelagianos, que
dizem que o homem começou a obra da conversão, negando com isso a
necessidade da graça preveniente (gratia preveniens), repudiou
entretanto as doutrinas distintivas de Agostinho, e anatematizou a todos
os que as sustentaram.
Uma igreja que pretenda ser infalível declara-se, por isso mesmo, a
proprietária do mundo; e os que admitem sua infalibilidade admitem
com isso sua total submissão à sua autoridade. De nada lhes serve dizer
que esta infalibilidade está limitada a questões de fé e moral, porque sob
estes cabeçalhos se inclui toda a vida do homem: o religioso, o moral, o
doméstico, o social e o político.
Uma igreja que reivindica o direito de decidir o que é verdade em
doutrina e obrigatória a respeito de moralidade, e afirma o poder para
fazer cumprir submissão a suas decisões sob a penalidade de perdição
eterna, não deixa nenhum espaço para qualquer outra autoridade na
Terra. Na presença da autoridade de Deus, tudo o mais desaparece.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 217
Com a reivindicação à infalibilidade está inseparavelmente
conectada à reivindicação de perdoar pecado. A Igreja não assume
meramente o direito de declarar as condições em que o pecado será
perdoado perante o tribunal de Deus, mas sim afirma ter a prerrogativa
de conceder, ou reter aquele perdão. “Ego te absolvo,” é a fórmula que a
Igreja põe na boca de seu sacerdócio. Aqueles que recebem aquela
absolvição são perdoados; aqueles a quem a Igreja recusa absolver
devem suportar a penalidade de suas ofensas.
Uma igreja infalível é, deste modo, o único instituto de salvação.
Tudo dentro de seu interior são perdoados; todos fora perecem. Só estão
na Igreja aqueles que creem no que ela ensina, que fazem o que ela
ordena, e são sujeitos aos seus ofícios, e especialmente à sua cabeça, o
pontífice romano. Qualquer homem, portanto, a quem a Igreja
excomunga está assim fechado do reino do céu; qualquer nação colocada
sob seus proclamas não é apenas destituída das consolações de serviços
religiosos, mas também do meio necessário de salvação.
Se a Igreja é infalível, sua autoridade não é menos absoluta na
esfera da vida social e política. É imoral contrair ou persistir num
casamento ilegítimo, manter um juramento ilegítimo, promulgar leis
injustas, obedecer um soberano hostil à Igreja. Por isso, a Igreja tem o
direito a dissolver casamentos, a libertar os homens da obrigação a seus
juramentos, e aos cidadãos de suas lealdades, a ab-rogar leis civis, e a
depor soberanos. Estas prerrogativas não foram só reivindicadas, mas
sim exercidas vez após vez pela Igreja de Roma. E, se fosse infalível,
pertencer-lhe-iam de direito. Como estas pretensões são sob pena da
perda da alma, não podem ser resistidas pelas que admitem que a Igreja é
infalível. É evidente, portanto, que onde esta doutrina é sustentada não
pode haver liberdade de opinião, nem liberdade de consciência, nem
liberdade civil nem política. Porquanto o recente Concílio Vaticano
decidiu que esta infalibilidade está investida no papa, é a partir de agora
um artigo de fé para os romanistas que o romano pontífice é o absoluto
soberano do mundo. Todos os homens estão obrigados a crer, sob pena
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 218
de morte eterna, a crer o que ele declara certo, e a fazer tudo aquilo que
ele decida que é obrigatório.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 219
CAPÍTULO VI
A REGRA PROTESTANTE DA FÉ
§ 1. Enunciado da doutrina
99
Part ii. 2, 15; Hase Lib. Sym. p. 308.
100
Page 570, ibid.
101
C, u, o, 467, ibid.
102
C. ii. p. 479, ibid.
103
Art. v. p. 330, ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 220
«A Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias para a
salvação: de maneira que tudo o que não se diz nela, nem pode ser
demonstrado por ela, não deve ser requerido por nenhum homem, que
deva ser crido como artigo de fé, nem ser considerado preciso nem
necessário para a salvação». 104 A Confissão de Westminster 105 ensina:
«Sob o nome da Sagrada Escritura, ou a Palavra de Deus escrita,
contêm-se agora todos os livros do Antigo e Novo Testamento, que são
estes: etc. .... todos os quais são dados por inspiração de Deus, para ser a
regra da fé e da vida. 106 Todo o conselho de Deus a respeito de todas as
coisas necessárias para sua própria glória, a salvação do homem, a fé e a
vida, são ou expostas de maneira expressa na Escritura, ou por
consequência boa e necessária podem-se deduzir da Escritura; à qual
nada em nenhum momento pode ser acrescentado por novas revelações
do Espírito ou tradições dos homens. 107 Todas as coisas na Escritura não
são igualmente claras, nem igualmente claras para todos; entretanto,
aquelas coisas que são necessárias saber, crer e observar, para a
salvação, estão propostas com tanta clareza e abertas em algum lugar ou
outro da Escritura, que não só os entendidos, mas também os não
entendidos podem, com o devido uso dos meios comuns, chegar a uma
suficiente compreensão dos mesmos».
Destas declarações faz-se evidente que os protestantes mantêm:
(1.) Que as Escrituras do Antigo e Novo Testamento são a Palavra
de Deus, escrita sob inspiração do Espírito Santo, e que portanto são
infalíveis e de autoridade divina em todas as coisas que respeitam à fé e
à prática e, por conseguinte, livres de todo erro, seja de doutrina, de fato
ou de preceito. (2.) Que contêm todas as revelações sobrenaturais
existentes de Deus designadas para ser regra de fé e prática de sua Igreja.
(3.) Que são suficientemente perspícuas para ser compreendidas pelo
104
Artigo 6.
105
Cap. I. §2.
106
Ibid. § 6.
107
Ibid. § 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 221
povo, com o uso dos meios comuns e mediante a ajuda do Espírito
Santo, em todas as coisas necessárias para a fé e a prática, sem a
necessidade de nenhum intérprete infalível.
O Cânon
Antes de entrar na consideração destes pontos, é necessário
responder à pergunta: Que livros têm direito a um lugar no cânon, ou
regra de fé e prática? Os romanistas respondem a pergunta, dizendo que
todos aqueles que a Igreja decidiu que são divinos em sua origem, e
nenhum outro, devem ser recebidos como tais. Os protestantes replicam,
dizendo que pelo que respeita ao Novo Testamento, só aqueles livros que
Cristo e Seus Apóstolos reconheceram como a Palavra Escrita de Deus
têm direito a ser considerados canônicos. Este reconhecimento foi dado
da seguinte maneira: Primeiro, muitos dos livros do Antigo Testamento
são citados como a Palavra de Deus, como dados pelo Espírito; ou diz-se
que o Espírito pronunciou o que neles se registra. Segundo, Cristo e seus
Apóstolos se referem aos escritos sagrados dos judeus – o volume que
eles consideravam como divino – como sendo de fato o que afirmava ser,
a Palavra de Deus. Quando nos referimos à Bíblia como possuidora de
autoridade divina, referimo-nos a ela como um volume, e reconhecemos
todos os escritos que contém como dados por inspiração do Espírito. Da
mesma maneira, quando Cristo ou Seus Apóstolos citam as «Escrituras»,
ou «a lei e os profetas», e falam do volume que então se chamava assim,
davam sua sanção à autoridade divina de todos os livros que continha
aquele volume. Assim, tudo o que é necessário determinar aos cristãos a
respeito do cânon do Antigo Testamento é quais eram os livros incluídos
nas «Escrituras» reconhecidas pelos judeus daquele período. Esta é uma
questão a respeito da qual não cabe nenhuma dúvida razoável. O cânon
judaico do Antigo Testamento incluía todos os livros e nenhum senão os
que agora reconhecem os protestantes como constituindo as Escrituras
do Antigo Testamento. É sobre esta base que os protestantes rejeitam os
chamados livros apócrifos. Não foram escritos no hebraico nem foram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 222
incluídos no cânon dos judeus. Por isso, não foram reconhecidos por
Cristo como a Palavra de Deus. Esta razão é suficiente por si mesma.
Entretanto, fica confirmada por considerações derivadas do próprio
caráter dos livros. Abundam em erros, e em declarações contrárias às que
se encontram nos livros indubitavelmente canônicos.
O princípio com base no qual se determina o cânon do Novo
Testamento é igualmente singelo. Aqueles livros, e só aqueles que
podem ser demonstrados como escritos pelos Apóstolos, ou que
receberam sua sanção, devem ser reconhecidos como de autoridade
divina. A razão desta regra é evidente. Os Apóstolos foram os
mensageiros devidamente autorizados de Cristo, dos quais Ele disse:
«Aquele que a vós ouve, me ouve».
B. A Inspiração é sobrenatural.
108
Theologia, I. IV. ii. qu. iii. ἔχθεσις, 3; edit. Wittenberg, 1685, pp. 68, a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 226
erro sério. Quando nenhuma revelação foi necessária, nenhuma
inspiração foi admitida. Assim Grócio diz: “Vere dixi non omnes libros
qui sunt in Hebræo Canone dictatos a Spiritu Sancto. Scriptos esse cum
pio animi motu, non nego; et hoc est quod judicavit Synagoga Magna,
cujus judicio in hac re stant Hebræi. Sed a Spiritu Sancto dictari historias
nihil fuit opus: satis fuit scriptorem memoria valere circa res spectatas,
aut diligentia in describendis veterum commentariis.” 109
Entretanto, é uma conclusão ilógica inferir que, porquanto um
historiador não tivesse necessidade de que lhe ditassem os fatos, não
necessitava de controle para ser preservado do erro.
109
“Votum pro Pace Ecclesiastica.” Opera, Londini, 1679, t. iii. p. 672.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 227
articuladas ou registradas por homens inspirados fossem as palavras de
Deus. A Igreja nunca manteve o que foi estigmatizado como a teoria
mecânica da inspiração. Os escritores sagrados não eram máquinas. Sua
autoconsciência não era suspensa; nem eram seus poderes intelectuais
substituídos. Os homens santos falaram como eles eram movidos pelo
Espírito Santo. Eram homens, não máquinas; instrumentos não
inconscientes, mas vivendo, pensando, mente dispostas, aos quais o
Espírito usou como Seus órgãos. Além disso, assim como a inspiração
não envolveu a suspensão nem a supressão das faculdades humanas,
tampouco interferiu com o livre exercício das faculdades mentais
características do indivíduo. Se o inspirado era um hebreu, falava em
hebraico. Se era grego, falava em grego; se era um homem instruído,
falava como homem de cultura; se era rude, falava como tal homem é
propenso a falar. Se sua mente era lógica, raciocinava, como o fazia
Paulo. Se era emocional e contemplativo, escrevia como João. Tudo isto
está envolto no fato de que Deus emprega Seus instrumentos conforme a
sua natureza. Os escritores sagrados deixaram a estampagem de seu
caráter em suas várias produções de uma maneira tão clara como se não
tivessem estado submetidos a nenhuma influência extraordinária. Este é
um dos fenômenos da Bíblia que destacam perante o leitor mais
desatento.
Apoia-se na verdadeira natureza da inspiração que Deus falou na
língua dos homens; que Ele usa homens como Seus órgãos, cada um de
acordo com seus dons e dons peculiares. Quando Ele tira louvor da boca
de bebês, devem falar como bebês, ou o poder e beleza inteiras do tributo
serão perdidos. Não há nenhuma razão para crer que a operação do
Espírito na inspiração revelou propriamente mais na consciência dos
escritores sagrados, que suas operações em santificação revelam eles
mesmos na consciência do cristão. Como o crente parece ele mesmo lei,
e de fato age fora de sua própria natureza; assim os escritores sagrados
escreveram da plenitude de seus próprios pensamentos e sentimentos,
empregando a linguagem e modo de expressão que lhes era mais natural
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 228
e apropriado. Entretanto, e nem por isso em menor grau, falaram tal
como foram impulsionados pelo Espírito Santo, e suas palavras eram as
palavras dEle.
E. Prova da doutrina
110
Antigüedades , IV. 6,5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 229
111
Gregório de Nissa, tendo citado as palavras de nosso Senhor em
Mt. 22.43, “Como, pois, Davi, no Espírito o chama Senhor,” agrega,
οὐκοῦν τῇ δυνάμει τοῦ Πνεύματος οἱ θεοφορούμενοι τῶν ἀγίων
ἐμπνέονταὶ, καὶ διὰ τοῦτο πᾶσα γραφὴ θεόπνευστος λέγεται, διὰ τὸ τῆς
θείας ἐπνεύσεως εἰναι διδασκαλίαν, isto é, “Consequentemente aqueles
dos santos que pelo poder do Espírito estão cheios de Deus são
inspirados e, portanto, toda Escritura é chamada θεόπνευστος
(theopneustos), porque a instrução é por inspiração divina.” A ideia de
inspiração está fixada. Não deve ser determinada arbitrariamente. Não
devemos interpretar a palavra ou o fato com base em nossas teorias da
relação de Deus com o mundo, mas com base no uso da antiguidade,
sagrada e profana, e conforme a doutrina que se conhece que os
escritores sagrados e os homens de sua geração mantiveram a respeito
desta questão. Segundo toda a antiguidade, um homem inspirado era
alguém que era o órgão de Deus no que dizia, de maneira que suas
palavras eram as palavras de Deus de quem ele era o órgão. Quando,
portanto, os escritores sagrados usam as mesmas palavras e formas de
expressão que usavam os antigos para comunicar esta ideia, deve supor-
se, com toda honradez, que significavam o mesmo conceito.
111
Contra Eunomium Orat. vi. t. ii. p. 187, Paris, 1615.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 230
autoridade; de modo que não é o porta-voz, senão aquela pessoa em cujo
nome age, a qual é responsável da veracidade do dito. Em Êxodo 7:1 diz-
se: “Vê que te constituí como Deus sobre o Faraó, e Arão, teu irmão,
será teu profeta,” isto é, o teu porta-voz. Isto se explica pelo que se diz
em Êxodo 4:14-16: “Não É Arão, ou levita, teu irmão? Eu sei que ele
fala fluentemente. . . . Tu, pois, lhe falarás e lhe porás na boca as
palavras; eu serei com a tua boca e com a dele e vos ensinarei o que
deveis fazer. Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás
por Deus.” (Veja-se Jr. 36:17,18). Isto determina de uma maneira
decisiva, o que é que é um profeta. É a boca de Deus; alguém por meio
de quem Deus fala com o povo, de modo que o que diz o profeta o diz
Deus. Assim, quando um profeta era consagrado, dizia-se: «Eis que
ponho na tua boca as minhas palavras» (Jr 1:9; Is 51:16). Que isto é a
ideia escriturística de um profeta é, ademais, evidente com base nas
fórmulas, constantemente repetidas, que se relacionam a suas obrigações
e missão. Era um mensageiro de Deus; falava em nome de Deus; as
palavras «Assim diz o Senhor» estavam constantemente em sua boca.
Diz-se deste e daquele profeta que «a palavra do Senhor» veio sobre ele;
todos implicando que o profeta era o órgão de Deus, que o que ele disse,
disse em nome do Deus e por Sua autoridade. É verdade, portanto, como
diz Filo 112, προφήτης γάρ ἴδιον οὐδὲν ἀποφθέγγεται ἀλλότρια δὲ πάντα
ὑπηχοῦντος ἑτέπου.
Isto é precisamente o que ensina o apóstolo Pedro quando diz (2Pe
1:20, 21): «Nenhuma profecia da Escritura provém de particular
elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos
(pheromenoi, impulsionados como um navio pelo vento) pelo Espírito
Santo». A profecia, isto é, o dito por um profeta, não era humano, mas
sim divina. Não era a própria interpretação do profeta, mas da mente e
vontade de Deus. Falava como órgão do Espírito Santo.
112
Opera, t. iv. p. 116, ed. Pfeiff.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 231
O que os profetas disseram, Deus o disse
3. Outra prova decisiva de que os escritores sagrados foram órgãos
de Deus no sentido que se acaba de enunciar é que se afirma que o que
eles disseram o havia dito Deus. O próprio Cristo disse que foi pelo
Espírito que Davi chamou Senhor ao Messias (Mt 22:43). No Salmo
95:7 Davi diz: «Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração»;
mas o Apóstolo diz (em Hb 3:7) que estas foram palavras do Espírito
Santo.
Novamente, em Hb 10:15, o mesmo Apóstolo diz: “E disto nos dá
testemunho também o Espírito Santo; porquanto, após ter dito: Esta é a
aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor.” Assim
citando a linguagem de Jeremias 31:33, como a língua do Espírito Santo.
Em Atos 4.24-25, os apóstolos reunidos disseram, “unânimes,” “Tu,
Soberano Senhor. . . . . que disseste por intermédio do Espírito Santo, por
boca de Davi, nosso pai, teu servo: Por que se enfureceram os gentios, e
os povos imaginaram coisas vãs?” Em Atos 28:25, Paulo disse aos
judeus: «Bem falou o Espírito Santo a vossos pais, por intermédio do
profeta Isaías». E é desta maneira que Cristo e Seus Apóstolos se
referem constantemente às Escrituras, mostrando além de toda dúvida
que criam e ensinavam que o que os sagrados escritores haviam dito o
havia dito o Espírito Santo.
O testemunho de Paulo
Os coríntios objetavam à pregação de Paulo que ele não tentava dar
nenhuma prova racional ou filosófica das doutrinas que propunha; que
sua linguagem e maneira de discorrer não se ajustava às normas da
retórica. Ele responde a estas objeções dizendo, primeiro, que as
doutrinas que ele ensinava não eram as verdades da razão, não se
derivavam da sabedoria dos homens, mas que eram assunto de revelação
divina; que ensinava simplesmente o que Deus tinha declarado certo; e,
em segundo lugar, que quanto à maneira de apresentar estas verdades,
ele era meramente o órgão do Espírito de Deus. Em 1 Coríntios 2:7-13
expõe toda esta questão da maneira mais clara e concisa. As coisas que
ele ensinava, e que ele chama «a sabedoria de Deus», «as coisas do
Espírito», isto é, o evangelho, o sistema de doutrina ensinado na Bíblia,
diz ele, nunca entrou nas mentes dos homens. Deus tinha revelado estas
verdades por Seu Espírito, porque o Espírito é a única fonte competente
de tal conhecimento: «Porque qual dos homens sabe as coisas do
homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as
coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus».Tanto a
origem de conhecimento, e a base em que as doutrinas que ele ensinou
deviam ser recebidos.
Sobre a segunda objeção, que se relaciona com a sua língua e modo
de apresentação, ele diz: Estas coisas do Espírito, deste modo revelado,
nós não ensinamos “as palavras ensinadas pela sabedoria humana; mas
sim as que o Espírito Santo ensina,” πνευματικοῖς πνευματικὰ
συγκρίνοντες, combinando o espiritual com o espiritual, isto é, viu as
verdades do Espírito com as palavras do Espírito. Não existe nem na
Bíblia nem nos escritos de homens, uma mais simples ou mais clara
declaração das doutrinas de revelação e inspiração. A revelação é o ato
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 234
de comunicar conhecimento divino pelo Espírito à mente. A inspiração é
o ato do mesmo Espírito, controlar aqueles que tornam conhecida a
verdade a outros. Os pensamentos, as verdades feitas conhecidas, e as
palavras nas quais são registrados, são declarados ser igualmente do
Espírito. Isto foi, do principio até o fim, a doutrina da Igreja, apesar da
diversidade infinita de especulações nas quais os teólogos concederam
sobre o assunto. Isto então é a base na qual os escritores sagrados
basearam suas reivindicações. Eram os meros órgãos de Deus. Eram
Seus mensageiros. Aqueles que os ouviram, ouviram a Deus; e aqueles
que recusaram ouvi-los, recusou ouvir a Deus. (Mt. 10:40; Jo 13:20).
4. Esta declaração de infalibilidade da parte dos apóstolos era
devidamente autenticada não só pela natureza das verdades que
comunicavam, e pelo poder que estas verdades sempre exerceram sobre
as mentes e os corações dos homens, mas também pelo testemunho
interior do Espírito de que fala João ao dizer: «Aquele que crê no Filho
de Deus tem, em si, o testemunho» (1Jo 5:10): uma «unção que vem do
Santo» (1Jo 2:20). Foi confirmada com sinais miraculosos. Tão logo os
apóstolos receberam poder do alto, falaram em «outras línguas»;
curaram aos doentes, restauraram os aleijados e os cegos. «Testificando
Deus juntamente com eles, tanto com sinais como com prodígios e
diversos milagres e dons distribuídos pelo Espírito Santo segundo sua
vontade». E Paulo lembra aos coríntios que se tinham dado entre eles os
sinais de um Apóstolo «com toda a persistência, por sinais, prodígios e
poderes miraculosos» (2Co 12:12). O mero fato de operar milagres não
era evidência de uma comissão divina como mestre. Mas quando um
homem afirma ser órgão de Deus, quando diz que Deus fala por meio
dele, então sua obra de milagres é o testemunho de Deus da validez de
suas declarações. E este é o testemunho que Deus deu da infalibilidade
dos Apóstolos.
As considerações anteriores são suficientes para mostrar que,
segundo as Escrituras, homens inspirados foram os órgãos ou boca de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 235
Deus, no sentido de que o que disseram e ensinaram tem a sanção e
autoridade de Deus.
I. Objeções
Uma numerosa classe das objeções à doutrina da inspiração, que
para muitas mentes são da mais eficaz, surge da rejeição de alguma ou
outras das pressuposições especificadas em páginas anteriores. Se
alguém nega a existência de um Deus pessoal e extramundano, tem que
negar a doutrina da inspiração, mas não é necessário para demonstrar
esta doutrina que tenhamos que provar primeiro o ser de Deus. Se a
pessoa nega que Deus exercita uma ação eficaz no governo do mundo, e
mantém que tudo é produto de leis fixas, não pode crer no que dizem as
Escrituras a respeito da inspiração. Se o sobrenatural é impossível, é
impossível a inspiração. Descobrir-se-á que a maior parte das objeções,
especialmente as de data recente, estão baseadas em pontos de vista não
escriturísticas acerca das relações de Deus com o mundo, ou nas
particulares perspectivas filosóficas dos impedimentos quanto à natureza
do homem ou de sua livre atividade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 242
Uma classe mais numerosa de objeções se baseia em concepções
errôneas a respeito do que é que a Igreja crê a respeito desta questão.
Inclusive um homem tão distinto por seu conhecimento e capacidade
como Coleridge fala com menosprezo do que ele considera como a
comum teoria da inspiração, quando na realidade está totalmente errado
a respeito de qual é a verdadeira doutrina a que se opõe. Diz ele: «Todos
os milagres que as lendas de monges ou rabinos contêm, dificilmente se
podem ter competência, a nível de complicação, inexplicabilidade,
ausência de todo uso ou propósito inteligível, e de frustração cíclica, com
as que devem ser supostos da parte dos partidários desta doutrina, a fim
de dar passagem a uma série de milagres mediante os quais todos os
redatores individuais da nação hebraica antes de Esdras, dos quais ficam
alguns restos, foram sucessivamente transformados em redatores
autômatos [automaton]», 113 etc. Mas se a doutrina da inspiração que a
Igreja sustenta não supõe que os escritores sagrados foram transformados
em redatores autômatos, como tampouco é transformado num autômato
todo aquele crente em quem Deus «opera tanto o querer como o
realizar», então todas estas objeções não valem nada. Se Deus, sem
interferir com a livre atividade humana, pode pôr infalivelmente claro
que ele se arrependerá e crerá, pode dar certeza de que não errará no
ensino. É em vão professar manter a comum doutrina do Teísmo e,
entretanto, afirmar que Deus não pode controlar criaturas racionais sem
as transformar em máquinas.
Discrepâncias e erros
Mas embora o teólogo possa descartar com direito todas as objeções
baseadas na negação dos princípios comuns da religião natural e da
revelada, há outras que não se podem descartar desta maneira sumária.
As mais evidentes destas objeções são que os escritores sagrados se
contradizem entre si, e que ensinam erro. Naturalmente, seria inútil
113
“Confessions of an Inquiring Spirit”. em Works. Harpers. N.Y., 1853. vol. v.. p. 612.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 243
pretender que os escritores sagrados eram infalíveis, se de fato erraram.
Nossa postura a respeito da inspiração tem que ficar determinada pelo
fenômeno da Bíblia além de por suas declarações didáticas. Se de fato os
escritores sagrados retiverem cada um deles seu próprio estilo e modo de
pensamento, temos então que renunciar a toda teoria que pressuponha
que a inspiração anula ou suprime todas as peculiaridades individuais. Se
as Escrituras abundassem em contradições e erros, então seria em vão
pretender que foram escritas sob uma influência que impedia todo erro.
Aqui, pois, trata-se de uma questão factual: contradizem-se entre si os
escritores sagrados? Ensinam as Escrituras o que se pode demonstrar
como falso mediante outras fontes de conhecimento? A pergunta não é
se as visões dos escritores sagrados eram incorretas, mas: ensinaram eles
erro? Por exemplo, não é a pergunta se eles pensaram que a Terra é o
centro de nosso sistema, mas sim: Ensinaram eles o que é?
A objeção sob consideração, isto é, que a Bíblia contém erros,
subdivide-se em duas. A primeira, que os escritores sagrados se
contradizem a si mesmos, ou uns aos outros. A segunda, que a Bíblia
ensina coisas que não concordam com os fatos da história ou da ciência.
Quanto à primeira destas objeções, precisar-se-ia não de um
volume, mas de vários, para considerar todos os casos de discrepâncias
que se alegaram. Tudo o que podemos esperar fazer aqui são umas
poucas observações gerais: (1.) Estas aparentes discrepâncias, embora
numerosas, são em sua maioria corriqueiras, e estão principalmente
relacionadas com números ou datas. (2.) A maior parte delas são só
aparentes, e harmonizam sob um cuidadoso exame. (3.) Muitas delas
podem ser adscritas com justiça a erros de transcritores. (4.) A maravilha
e o milagre é que haja tão poucas de nenhuma importância real.
Considerando que os diferentes livros da Bíblia não só foram escritos por
diferentes autores, mas também eram homens de todos os níveis de
cultura, vivendo ao longo de mil e quinhentos ou dois mil anos, é
completamente inexplicável que concordassem perfeitamente com base
em qualquer outra hipótese de que os escritores estavam sob a condução
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 244
do Espírito de Deus. A este respeito, como em todos outros, a Bíblia
sobressai sozinha. É suficiente para encher qualquer mente de assombro
quando se contemplam as Sagradas Escrituras repletas das mais elevadas
verdades, falando com autoridade em nome de Deus, e tão
milagrosamente livres do contaminador toque dos dedos humanos. Os
erros em questões factuais que os céticos buscam com esforço não têm
proporção com o todo. Nenhum homem em seu são juízo negá-la que o
Partenon foi construído de mármore incluso se se encontrasse um granito
de arenisca em sua estrutura. Não menos irrazoável é negar a inspiração
de um livro como a Bíblia porque um escritor sagrado diga que numa
ocasião determinada foram mortos vinte e três mil homens, e outro que
foram vinte e quatro mil. Certamente, um cristão pode permitir-se
pisotear tais objeções.
Admitindo que as Escrituras contêm, em uns poucos casos,
discrepâncias que não podemos explicar satisfatoriamente com base em
nosso atual conhecimento, não nos dão base racional para negar sua
infalibilidade.
«A Escritura não pode falhar» (Jo 10:35). Esta é a doutrina inteira
da inspiração plenária, ensinada pela boca do próprio Cristo. O universo
está repleto de evidências de desígnio, tão múltiplas, tão diversas e tão
maravilhosas para afligir a mente com a convicção de que tem um
Criador inteligente. Mas aqui e lá aparecem exemplos isolados de
monstruosidades. É irracional que, por não poder dar conta de tais casos,
neguemos que o universo é produto da inteligência. Tampouco o cristão
tem que renunciar a sua fé na inspiração plenária da Bíblia, embora
possa haver algumas coisas em seu estado atual às quais não se possa dar
explicação.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 245
Objeções históricas e científicas
A segunda grande objeção à inspiração plenária das Escrituras é que
ensina coisas inconsequentes com verdades históricas e científicas.
Mais uma vez deve observar-se: (1.) Que nós devemos distinguir
entre aquilo que os escritores sagrados mesmos pensaram ou creram, e o
que eles ensinam. Podem ter crido que o sol gira ao redor da Terra, mas
eles não ensinam isso. (2.) A linguagem da Bíblia é a linguagem da vida
diária, e a linguagem da vida diária se baseia na verdade evidente aos
sentidos, e não em formulações científicas. Seria ridículo recusar-se a
falar do sol nascendo e se pondo, porque nós sabemos que não é um
satélite de nosso planeta. (3.) Há uma grande distinção que se deve fazer
entre as teorias e os fatos. As teorias são dos homens. Os fatos são de
Deus. A Bíblia contradiz com frequência as teorias, mas nunca os fatos.
(4.) Há também uma distinção a ser feita entre a Bíblia e nossa
interpretação. A última pode entrar em competição com fatos dados; e
então deve aceder. A ciência em muitas coisas ensinou a Igreja como
entender as Escrituras. A Bíblia estava por muito tempo entendida e
explicava de acordo com o sistema ptolemaico do universo; está agora
explicada sem fazer a menor violência à sua língua, de acordo com o
sistema copernicano. Os cristãos usualmente creram que a Terra existiu
apenas há alguns milhares de anos. Se geólogos finalmente provarem
que existiu faz miríades de idades, será declarado que o primeiro
capítulo de Gênesis está completamente de acordo com os fatos, e que os
últimos resultados da ciência são encarnados na primeira página da
Bíblia. Pode custar à Igreja uma luta severa para desistir de uma
interpretação e adotar outra, como fez no décimo sétimo século, mas
nenhuma necessidade do mal real deve temer-se. A Bíblia permaneceu, e
ainda permanece na presença do mundo científico inteiro com suas
reivindicações inamovíveis. Os homens hostis ou indiferentes a suas
verdades podem rejeitar sua autoridade, sobre uma base insuficiente, ou
devido a suas opiniões pessoais; mas inclusive a juízo das maiores
autoridades da ciência, não pode objetar-se com justiça a seus ensinos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 246
É impossível apreciar devidamente a importância desta questão. Se
a Bíblia é a palavra de Deus, todas as grandes questões que durante
séculos agitaram as mentes dos homens ficam assentadas com uma
certeza infalível. A razão humana nunca pôde responder para satisfação
própria, nem para dar certeza a outros, estas perguntas vitais: O que é
Deus? O que é o homem? O que há além do sepulcro? Se há algum
estado futuro do ser, qual é? E, quantas bênçãos futuras estão
asseguradas? Sem a Bíblia todos estamos, nestas questões, numa total
escuridão. Quão inacabáveis e insatisfatórias foram as respostas à mais
magna de todas as perguntas: O que é Deus? Todo mundo oriental
replica dizendo: «Ele é o modo inconsciente do ser». Os gregos deram a
mesma resposta aos filósofos, e fizeram de toda a natureza um Deus para
o povo. Os modernos não chegaram a nenhuma doutrina superior. Fichte
diz que o Ego subjetivo é Deus. Segundo Schelling, Deus é o movimento
eterno do universo, em que o sujeito se transforma em objeto, o objeto
em sujeito, o infinito em finito, e o finito em infinito. Regel diz: O
Pensamento é Deus. Cousin combina todas as respostas germânicas para
dar a sua. Coleridge remete a Schelling para uma resposta à pergunta do
que é Deus. Carlyle faz da força Deus. Um menino cristão diz: «Deus é
Espírito, infinito, eterno, e imutável em seu ser, sabedoria, poder,
santidade, justiça, bondade e verdade». Os homens e os anjos cobrem
seus rostos na presença desta resposta. É a mais elevada, grande e
frutífera verdade jamais expressa em linguagem humana. Sem a Bíblia,
estamos sem Deus e sem esperança. O presente é uma carga, e o futuro
um terror.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 247
§ 3. Teorias adversas
A. Doutrinas naturalistas
A teoria de Schleiermacher
Terceiro: Há uma teoria muito mais pretensiosa e filosófica, que
prevaleceu nos últimos anos, e que na realidade difere muito pouco da
anterior. Concorda com ela no ponto principal de que nega todo o
sobrenatural na origem e redação da Bíblia. Schleiermacher, o autor
desta teoria, estava entregue a uma filosofia que impedia toda
intervenção da atividade imediata de Deus no mundo. Entretanto, admite
duas exceções: a criação do homem e a constituição da pessoa de Cristo.
Houve uma intervenção sobrenatural na origem de nossa raça, e na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 249
manifestação de Cristo. Tudo o mais na história do mundo é natural. Não
há nada sobrenatural na Bíblia; nada no Antigo Testamento que o
homem adâmico não pudesse produzir; e nada no Novo Testamento que
não fosse suficiente para dar conta disso o cristianismo, a vida da Igreja,
uma vida comum a todos os crentes.
A religião consiste de sentimentos, e especialmente de um
sentimento de total dependência (ou um sentimento absoluto de
dependência), isto é, a consciência de que o finito não é nada na presença
do Infinito, – a individual na presença do universal. Esta consciência
envolve a unidade do um e totalmente, de Deus e do homem. «Este
sistema», diz o doutor Ullmann, um de seus mais moderados e eficazes
proponentes, «não é absolutamente novo. Encontramo-lo em outra forma
na antiga mística, especialmente nos místicos alemães da Idade Média.
Com eles, também, a base e o ponto central do cristianismo é a unidade
da Deidade e da humanidade alcançadas por meio da encarnação de
Deus, e a deificação do homem». 114
O cristianismo, portanto, não é um sistema de doutrina; não é,
subjetivamente considerado, uma forma de conhecimento. É uma vida. É
a vida de Cristo. Ullmann novamente diz explicitamente: “A vida de
Cristo é cristianismo.” 115 Deus ao Se fazer homem não tomou em Si
mesmo, “um corpo verdadeiro e uma alma razoável,” mas sim
humanidade genérica; isto é, humanidade como uma vida genérica. O
efeito da encarnação devia unir o humano e divino numa vida. E esta
vida ignora a Igreja justamente como a vida de Adão ignorou seus
descendentes, por um processo de desenvolvimento natural. E esta vida é
cristianismo. A participação desta vida divino-humana faz de um homem
um cristão.
A revelação cristã consiste nas dispensações providenciais
conectadas dentro do comparecimento a juízo de Cristo na Terra. O
114
Studien und Kritiken, 1845, pág. 59.
115
Studien und Kritiken, January 1845; translated in The Mystical Presence, by Dr. J.W. Nevin.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 250
efeito destas dispensações e eventos eram a elevação da consciência
religiosa dos homens daquela geração, e especialmente daqueles que
vieram mais diretamente sob a influência de Cristo. Este estado
subjetivo, esta excitação e elevação de sua vida religiosa, deram a eles
intuições de verdades religiosas, “verdades eternas.”
Estas intuições eram pela compreensão lógica vestida na forma de
doutrinas. Este, entretanto, era um processo gradual como era efetuado
somente pela vida de Igreja, isto é, pelo funcionamento da nova vida
divino-humana no corpo dos crentes. 116 O Sr. Morell ao expor esta
teoria, diz: 117 “O germe essencial da vida religiosa é concentrado no
sentimento absoluto de dependência, — um sentimento que não implica
nada miserável, mas pelo contrário, um sentido elevado e sagrado de
nosso ser inseparavelmente relacionado à Deidade.” Na página
precedente ele disse: “Deixe o assunto tornar-se como nada — não,
realmente, de sua insignificância ou incapacidade intrínsecas de ação
judicial moral, mas em virtude da infinidade do objeto a que está
conscientemente oposto; e o sentimento de dependência deve ficar
absoluto; porque todo poder finito é como nada com relação ao Infinito.”
O cristianismo, como já declarado, é a vida de Cristo, sua vida
humana, que também é divina, e é comunicada a nós como a vida de
Adão era comunicada a seus descendentes. Morell, bem mais conforme
aos modos ingleses de pensamento, diz: 118 “O cristianismo, como
qualquer outra religião, consiste essencialmente num estado de
consciência interna do homem, que se desenvolve propriamente num
sistema de pensamento e atividade só numa comunidade de mentes
despertas; e era inevitável, portanto, que tal estado de consciência devia
116
The English reader may find this theory set forth, in Morell’s Philosophy of Religion, in
Archdeacon Wilberforce’s work on the Incarnation; in Maurice’s Theological Essays; in the Mystical
Presence, by Dr. John W. Nevin, and in the pages of the Mercersburg Quarterly Review, a journal
specially devoted to the defense of Schleiermacher’s doctrines and of those of the same general
character.
117
Philosophy of Religion, p. 77.
118
Philosophy of Religion, page 104.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 251
exigir tempo, e intercurso, e concordância mútua, antes dele poder
tornar-se moldado numa forma decidida e distintiva.” Representa os
apóstolos como frequentemente reunindo e deliberando em pontos
essenciais, corrigindo as posturas um do outro; e, depois de anos de tal
companheirismo, o cristianismo estava no final produzido na forma.
Declara-se que a Revelação é uma comunicação de fato à nossa
consciência intuitiva. O mundo exterior é uma revelação a nossas
intuições sensoriais; a beleza é uma revelação a nossas intuições
estéticas; e as «verdades eternas», quando são percebidas intuitivamente,
dizem-se reveladas; e esta intuição tem lugar mediante tudo o que
purifica e exalta nossos sentimentos religiosos. «A revelação», diz
Morell, «é um processo da consciência intuitiva, contemplando verdades
eternas; enquanto que a teologia é a reflexão do entendimento a respeito
destas intuições vitais, para reduzi-las a uma expressão lógica e
científica». 119
A inspiração é o estado interno da mente que nos capacita a
alcançar a verdade. Diz Morell: «A revelação e a inspiração indicam um
processo unido, cujo resultado sobre a mente humana é a produção de
um estado de intuição espiritual, cujos fenômenos são tão extraordinários
que no ato separamos as agências por meio das quais são produzidas de
quaisquer dos princípios comuns do desenvolvimento humano. E,
entretanto, esta agência aplica-se em perfeita congruência com as leis e
as operações naturais de nossa natureza espiritual. A inspiração não
implica nada genericamente novo nos processos reais da mente humana;
não envolve nenhuma forma de inteligência essencialmente diferente da
que já possuímos. Indica, antes, a elevação da consciência religiosa, e
com ela, naturalmente, o poder da visão espiritual, até um grau de
intensidade peculiar aos indivíduos assim favorecidos por Deus». 120 Por
119
Philosophy of Religion, p. 141.
120
Op. cit., p. 151.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 252
isso, a única diferença que haveria entre os Apóstolos e os cristãos
comuns residiria em sua santidade relativa.
Segundo esta teoria, não há nenhuma diferença específica entre
gênio e inspiração. A diferença encontra-se simplesmente nos objetos
alcançados e nas causas do estímulo interior a que se deve alcançar este
conhecimento. “Gênio,” diz Morell, “consiste na posse de uma energia
notável de intuição com referência a algum objeto particular, uma
energia que surge da natureza dentro de um homem sendo trazido em
harmonia incomum com aquele objeto em sua realidade e suas
operações.” 121 Isto é justamente sua ideia de inspiração. “Deixe haver,”
ele diz, “uma devida purificação da natureza moral, — uma harmonia
perfeita do ser espiritual com a mente de Deus, — uma remoção de todas
as perturbações dentro do coração, e o que tem que precaver ou perturbar
esta intuição imediata de coisas divinos.” 122
Esta teoria da inspiração, enquanto que retém seus elementos
essenciais, recebe várias modificações. Com aqueles que creem com o
Schleiermacher, que o homem “é a forma em que Deus vem à existência
consciente em nossa Terra,” tem uma forma. Com os Realistas que
definem o homem como sendo “a manifestação da humanidade genérica
com relação a uma dada organização corpórea;” e que crê que era a
humanidade genérica que Cristo tomou como Seu corpo e uniu numa
vida com Sua natureza divina, cuja vida é comunicada à Igreja como Seu
corpo, e assim a todos os seus membros; leva uma forma um pouco
diferente.
Com aqueles novamente que não adotam qualquer uma destas
teorias antropológicas, mas tomam a visão comum sobre a constituição
do homem; leva uma forma ainda diferente e, em alguns aspectos, mais
baixa. Mas em todas elas a inspiração seria a intuição das verdades
121
Philosophy of Religion, page 184.
122
Page 186.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 253
divinas devido à motivação da natureza religiosa, seja qual for esta
natureza.
123
Dogmatik, vol. I. p. 2. “Das Verhältniss des Erkennen zur Religion.” Hase’s Dogmatik. “Jede
Religion als Ergebniss einer Volksbildung ist angemesen oder subj. wahr; wahr an sich ist die, welche
der vollendeten Ausbildung der Menschheit entspricht.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 254
todas as partes é atribuído ao conhecimento, à verdade, à sã doutrina, na
Palavra de Deus.
2. Esta teoria é inconsequente com a doutrina escriturística da
revelação. Segundo a Bíblia, Deus apresenta a verdade objetivamente à
mente, seja mediante palavras audíveis, seja mediante visões, seja
mediante as operações imediatas do Espírito. Segundo esta teoria, a
revelação é meramente a ordenação providencial das circunstâncias que
despertam e exaltam os sentimentos religiosas, e que assim capacitam a
mente a alcançar por intuição as coisas de Deus.
3. Confessadamente confina estas intuições, e naturalmente a
verdade revelada, ao que chama «as verdades eternas». Mas a maior
parte das verdades reveladas na Escritura não são «verdades eternas». A
queda do homem; que todos os homens sejam pecadores; que o Redentor
que nos salvaria do pecado devia ser da linhagem de Abraão, e da
família de Davi; que ia nascer de uma virgem, para ser varão de dores;
que foi crucificado e sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia; que subiu
ao céu; que tem que voltar de novo sem relação com o pecado para
salvação, são verdades que não são intuitivas, embora delas depende
nossa salvação: não são verdades que nenhum homem pudesse descobrir
por si mesmo mediante nenhuma exaltação da consciência religiosa.
4. Segundo esta teoria, a Bíblia não tem nenhuma autoridade
normativa como regra de fé. Não conteria doutrinas reveladas por Deus,
nem que deveriam ser recebidas como verdade com base em Seu
testemunho. Conteria só os pensamentos de homens santos; as formas
nas quais seus entendimentos, sem ajuda sobrenatural, revestiram suas
«intuições» devido a seus sentimentos religiosos. “A Bíblia,” diz
Morell, 124 “não pode em exatidão rígida de língua ser chamada uma
revelação, desde que uma revelação sempre implica um processo atual
de inteligência numa mente viva; mas ela contém os recordes nos quais
aquelas mentes que apreciaram o treinamento preliminar ou a primeira
124
Philosophy of Religion, chap. 8, p. 143, London ed. 1849.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 255
revelação mais brilhante do cristianismo, descreveu as cenas que
despertaram sua própria natureza religiosa para nova vida, e as ideias e
aspirações elevadas para que aquela nova vida deu origem.” O Antigo
Testamento é o produto da consciência religiosa de homens que viveram
debaixo de um estado rude de cultura; e é de nenhuma autoridade para
nós. O Novo Testamento é o produto da consciência religiosa de homens
que experimentaram a influência santificadora da presença de Cristo
entre eles. Mas aqueles homens eram judeus, tiveram modos judaicos de
pensar. Estavam familiarizados com os serviços da velha dispensação,
estavam acostumados a pensar sobre Deus como acessível apenas por
um sacerdócio; como expiação exigente para o pecado, e regeneração de
coração; e recompensas promissoras certas e formas de bem-aventurança
num estado futuro de existência. Era natural para eles, portanto, vestir
seus “intuições” nestes modos judaicos de pensamento. Nós, neste
décimo nono século, podemos vestir nossos modos de formas muito
diferentes, isto é, em doutrinas muito diferentes, e ainda “as verdades
eternas” serão as mesmas.
Diferentes homens levam esta teoria a extremos muito diferentes.
Alguns têm uma experiência interior tal que não podem encontrar uma
forma de expressar seus sentimentos tão apropriada como a que se dá na
Bíblia, e por isso creem em todas suas grandes doutrinas. Mas a base de
sua fé é puramente subjetiva. Não é o testemunho de Deus dado em Sua
palavra, mas sim sua própria experiência. Tomam o que é mais
apropriado, e deixam o resto. Outros com menos experiência cristã, ou
sem uma experiência distintivamente cristã, rejeitam todas as doutrinas
distintivas do cristianismo, e adotam uma forma de filosofia religiosa
que estão dispostos a chamar cristianismo.
5. Que esta teoria é antiescriturística já se tem dito. A Bíblia faz das
revelações nela contidas a comunicação de doutrinas ao entendimento
por meio do Espírito de Deus. Faz daquelas verdades ou doutrinas a
fonte imediata de todo sentimento reto. Os sentimentos procedem de
uma compreensão espiritual da verdade, e não o conhecimento da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 256
verdade destes sentimentos. O conhecimento é necessário para todos os
exercícios conscientes de santidade. Por isso a Bíblia dá à verdade a
maior importância. Pronuncia bem-aventurados os que recebem as
doutrinas que ensina, e malditos os que as rejeitam. Faz com que a
salvação dos homens dependa de sua fé. Esta teoria, pelo contrário, faz
com que o credo de um homem ou de um povo seja coisa de pouca
importância.
Na Igreja, portanto, o cristianismo sempre foi considerado como um
sistema de doutrina. Aqueles que creem nestas doutrinas são cristãos;
aqueles que as rechaçam são, no juízo da Igreja, infiéis ou hereges. Se
nossa fé é formal ou especulativa, então é nosso cristianismo; se é
espiritual e vivente, então é nossa religião. Mas nenhum erro pode ser
maior que divorciar a religião da verdade, e fazer do cristianismo um
espírito ou vida distintos das doutrinas que as Escrituras apresentam
como objeto da fé.
B. Inspiração graciosa
Esta teoria pertence à categoria de natural ou sobrenatural,
conforme seja o sentido que se dê a estes termos. Por efeitos naturais se
entendem geralmente aqueles produzidos por causas naturais sob o
controle providencial de Deus. Logo os efeitos produzidos pelas
operações do Espírito Santo em graça, como o arrependimento, fé, amor
e todo o resto do fruto do Espírito, são sobrenaturais. E,
consequentemente, a teoria que atribui a inspiração à influência em graça
do Espírito pertence à categoria do sobrenatural. Mas esta palavra é, com
frequência, empregada num sentido mais limitado, para designar
acontecimentos produzidos pela atividade imediata ou vontade de Deus
sem intervenção de quaisquer segundas causas. Neste sentido limitado, a
criação, os milagres, a revelação imediata, a regeneração (no sentido
limitado desta palavra), são sobrenaturais. Assim, a santificação dos
homens que é efetuada pelo Espírito mediante o uso dos meios da graça,
não é uma obra sobrenatural, no sentido restrito do termo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 257
Há muitos teólogos que não adotam nenhuma das teorias filosóficas
a respeito da natureza do homem e de sua relação com Deus
anteriormente mencionadas, e que recebem a doutrina bíblica mantida
pela Igreja universal de que o Espírito Santo renova, santifica, ilumina,
conduz e ensina a todo o povo de Deus, mas que consideram a inspiração
como uma das atividades comuns do Espírito. Os homens inspirados e os
não inspirados não ficam distinguidos por nenhuma diferença específica.
Os escritores sagrados foram meramente homens santos sob a condução
da influência comum do Espírito. Alguns dos que adotam esta teoria
estendem-na também à revelação, mas negam que os escritores sagrados
estivessem sob uma influência não comum aos crentes comuns ao
comunicar as verdades reveladas. E quanto àquelas seções da Bíblia
(como os Hagiógrafos e os Evangelhos) que não contêm revelações
especiais, deveriam ser consideradas como os escritos devocionais ou
narrações históricas de homens devotos mas falíveis.
Desta maneira Coleridge, que se refere à inspiração como aquela
“graça e comunhão com o Espírito com a qual a Igreja, sob todas as
circunstâncias, e regenera todo membro da Igreja, em permitir esperar e
instruir a orar;” faz uma exceção a favor “da lei e os profetas, nem jota
ou til passará sem que tudo seja cumprido.” 125 O resto da Bíblia, ele
garante, era escrito sob o impulso e direção da influência graciosa do
dom do Espírito para todos os homens cristãos. E seus amigos e
seguidores, o Dr. Arnold, Archdeacon Hare, e especialmente Maurice,
ignora esta distinção e se refere à Bíblia inteira como “a uma inspiração
o mesmo que todo crente aprecia.” 126 Assim Maurice diz, 127 “Devemos
anteceder a demanda que nós fazemos na consciência de homens jovens,
quando os obrigamos a declarar que consideram a inspiração da Bíblia
como genericamente diferente da que Deus dá a respeito de Seus filhos
neste tempo.”
125
“Confessions of an Inquiring Spirit,” Letter 7. Works, N.Y., 1853, vol. v. p. 619.
126
Veja-se Bannerman, Inspiration of the Scriptures. Edimburgo, 1865; pp. 145, 232.
127
Theological Essays, p. 339, Cambridge, 1853.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 258
Objeções à doutrina de que a inspiração é comum a todos os
crentes
É evidente que esta doutrina é antiescriturística.
1. Devido ao fato de que a Bíblia estabelece uma marcada distinção
entre aqueles a quem Deus escolheu para que fossem Seus mensageiros,
Seus profetas, Seus porta-vozes, e outros homens. Esta teoria ignora esta
distinção, pelo que respeita ao povo de Deus.
2. É inconsistente com a autoridade afirmada por estes especiais
mensageiros de Deus. Eles falaram em Seu nome. Deus falou por meio
deles. Eles disseram: «Assim diz o Senhor» num sentido e de uma
maneira em que não ousaria fazê-lo nenhum crente comum. É
inconsistente com a autoridade não só declarada pelos escritores
sagrados, mas também atribuída a eles por nosso próprio Senhor. Ele
declarou que a Escritura não pode ser quebrantada, que era infalível em
todos os seus ensinos. Os Apóstolos declaram anátema aos que não
recebam suas doutrinas. Sua reivindicação de uma autoridade divina no
ensino foi confirmada pelo próprio Deus em sinais, prodígios e milagres
diversos e dons do Espírito Santo.
3. É inconsistente com toda a natureza da Bíblia, que é e professa
ser uma revelação de verdades não só impossíveis de descobrir pela
razão humana, mas também não poderiam ser recebidas pela mente do
homem por muito que fosse sua santidade. Isto é certo não apenas das
revelações estritamente proféticas relacionadas com o futuro, mas
também de todas as coisas referentes à mente e à vontade de Deus. As
doutrinas da Bíblia recebem o nome de μυστήρια [musteria], coisas
ocultas, desconhecidas e incognoscíveis, exceto por sua revelação aos
santos apóstolos e profetas pelo Espírito (Ef 3:5).
4. É inconsistente com a fé da Igreja universal, que sempre
estabeleceu a maior distinção entre os escritos dos homens inspirados e
os dos crentes comuns. Inclusive os romanistas, com toda a reverência
que têm para com os pais [da Igreja], nunca pretenderam pôr seus
escritos a par das Escrituras. Não lhes atribuem nenhuma autoridade
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 259
mais que como testemunhas do que os Apóstolos ensinaram. Se a Bíblia
não tivesse mais autoridade que o próprio dos escritos de homens
piedosos, nossa fé é vã, e estamos ainda em nossos pecados. Não temos
um fundamento seguro para nossas esperanças de salvação.
C. Inspiração parcial.
Sob este cabeçalho se incluem várias doutrinas diferentes.
1. Muitos mantêm que só umas partes das Escrituras são inspiradas,
isto é, que os escritores de alguns livros foram conduzidos
sobrenaturalmente pelo Espírito, e que os escritores de outros não o
foram. Esta, como mencionado acima, era a doutrina de Coleridge, que
admitia a inspiração da Lei e dos Profetas, mas que negava a do resto da
Bíblia. Outros admitem a inspiração do Novo Testamento num grau que
não admitem para o Antigo. Outros, por sua vez, sustentam que os
discursos de Cristo são infalíveis, mas não as outras seções do sagrado
volume.
2. Outros limitam a inspiração dos escritores sagrados a seu ensino
doutrinal. O grande objeto de sua comissão era dar um registro fiel da
vontade e propósito revelados de Deus, para que fossem a norma e
prática da Igreja. Nisto se encontravam sob uma influência que os fazia
infalíveis como mestres religiosos e morais. Mas para além destes limites
eram suscetíveis de erros como outros homens. Que haja erros
científicos, históricos ou geográficos, erros nas citações de passagens, ou
em outras questões não essenciais, ou discrepâncias quanto a questões
factuais entre escritores sagrados, deixa incólume a questão de sua
inspiração como mestres religiosos.
3. Outra forma da doutrina de inspiração parcial, em oposição à
plenária, limita-a aos pensamentos em contraste às palavras da Escritura.
Nega-se a inspiração verbal, supondo-se que os escritores sagrados
escolheram as palavras que empregavam sem nenhuma condução do
Espírito que impedisse que adotassem termos impróprios ou inadequados
com os quais expressar seus pensamentos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 260
4. Uma quarta forma da doutrina da inspiração parcial foi
introduzida em tempos anteriores e foi adotada em amplos setores.
Maimonides, o maior dos doutores judeus dos tempos de Cristo,
ensinava já em tempo tão cedo como o décimo segundo século que os
escritores sagrados do Antigo Testamento desfrutavam de diferentes
níveis de condução divina. Pôs a inspiração da Lei muito acima da dos
Profetas, e a dos Profetas muito acima da dos Hagiógrafos. Esta ideia de
diferentes graus de inspiração foi adaptada por muitos teólogos, e na
Inglaterra foi durante muito tempo o modo comum de ensino. A ideia era
que os escritores de Reis e de Crônicas necessitaram e receberam menos
ajuda divina que Isaías ou João. 128
Ao tentar provar a doutrina da inspiração plenária, enunciaram-se
ou sugeriram os argumentos que militam contra todas estas formas de
inspiração parcial. Não se trata de uma questão aberta. Não se trata de
qual seja em si a teoria mais razoável ou plausível, mas antes,
simplesmente: O que é que ensina a Bíblia a respeito desta questão? Se
nosso Senhor e Seus Apóstolos declaram que o Antigo Testamento é a
Palavra de Deus; que seus autores falaram conforme foram inspirados
pelo Espírito Santo; que o que eles disseram o havia dito o Espírito; se se
referem aos fatos e às próprias palavras da Escritura como com
autoridade divina; e se foi prometida a mesma condução aos escritores
do Novo Testamento, e proclamada por eles; e se sua reivindicação foi
autenticada pelo próprio Deus: então não há lugar para as teorias de
inspiração parcial, nem necessidade delas. Toda a Bíblia foi escrita sob
uma tal influência que preservou os seus autores humanos de todo erro, e
faz dela a norma infalível de fé e prática para a Igreja.
128
Esta postura de diferentes graus de inspiração foi adotado por Lowth: Vindication of the Divine
Authority and Inspiration of the Old and New Testament. Whitby, em seu Prefácio a seu Comentário.
Doddridge, Dissertations on the Inspiration of the New Testament. Hill, Lectures on Divinity. Dick,
Essay on the Inspiration of the holy Scriptures. Wilson, Evidences of Christianity. Henderson, Divine
Inspiration.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 261
§ 4. A integridade das Escrituras.
129
Works, p. 105.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 266
que confere a esta tirania como a mais intolerável, é isto, na medida em
que a massa das pessoas está preocupada, soluciona propriamente a
autoridade do sacerdote de comarca. É o árbitro da fé e moralidade de
seu povo. Nenhum homem pode crer a menos que a base de fé esteja
presente em sua mente. Se as pessoas devem crer que as Escrituras
ensinam certas doutrinas, então eles devem ter a evidência de que tais
doutrinas são realmente ensinadas na Bíblia.
Se aquela evidência é que a Igreja assim interpreta a escrita sagrada,
então o povo tem que saber o que é a Igreja, isto é, qual dos corpos
reivindicam ser a Igreja é designado ser assim considerado. Como
podem as pessoas, as massas áridas, determinar aquela pergunta? O
sacerdote diz a eles. Se eles receberem seu testemunho naquele ponto,
então como eles podem dizer como a Igreja interpreta as Escrituras?
Aqui novamente eles devem tomar a palavra do sacerdote. Deste modo a
autoridade da Igreja como um interpretador, que parece tão imponente,
soluciona propriamente o testemunho do sacerdote, que é
frequentemente mau, e ainda mais frequentemente ignorante. Esta não
pode ser a base da fé dos eleitos de Deus. Aquela base é o testemunho do
próprio Deus falando em Sua palavra, e autenticando como divino pelo
testemunho do Espírito e pela verdade no coração do crente.
§ 6. Regras de Interpretação
PARTE I
TEOLOGIA PRÓPRIA
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 270
CAPÍTULO I
A ORIGEM DA IDEIA DE DEUS
133
Vorlesungen.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 285
Embora todos os homens tenham sentimentos e convicções que
demandam a hipótese de que Deus existe é, entretanto, perfeitamente
legítimo mostrar que há outros fatores que necessariamente conduzem à
mesma conclusão.
Além disso, deve-se lembrar que os argumentos teístas estão dados
para demonstrar não só que existe uma necessidade para a hipótese de
um Ser extramundano e eterno, mas sim, principalmente, para mostrar o
que é este Ser: que é um Ser pessoal, com consciência própria,
inteligente e moral. Tudo isto pode subjazer na intuição primária, mas
tem que ser exposto e estabelecido.
Segundo. Outra classe de objeções contra todos os argumentos
teístas se relaciona com os próprios argumentos. São declarados
falaciosos, como envolvendo uma petição de princípio; ou inválidos
como derivados de falsas premissas; ou conduzindo a conclusões
distintas das quais se queriam estabelecer. A respeito disto cada um tem
que julgar por si mesmo. Foram considerados como sãos e concludentes
pelos homens mais sábios, desde Sócrates até nossos dias. Naturalmente,
o argumento com base no principio da causação tem que ser inválido
para os que negam a existência de uma causa eficaz; e o argumento do
desígnio não pode ter força para os que negam a possibilidade das causas
finais.
A maioria das objeções à conclusividade dos argumentos aqui
tratados surge de um mal entendido a respeito do que é que se quer
demonstrar com eles. Com frequência supõe-se que cada argumento tem
que demonstrar a totalidade da doutrina do Teísmo, enquanto que um
argumento pode ser que demonstre um elemento desta doutrina, e outro
argumento outros elementos diferentes. O argumento cosmológico pode
demonstrar a existência de um Ser necessário e eterno; o argumento,
teleológico, que este Ser é inteligente; o argumento moral, que Ele é uma
pessoa possuindo atributos morais. Os argumentos não são dados tanto
para demonstrar a existência de um ser desconhecido para demonstrar
que o Ser que Se revela ao homem na própria constituição de sua
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 286
natureza tem que ser tudo o que o Teísmo declara que é. Escritores como
Hume, Kant, Coleridge e toda a escola de filósofos transcendentalistas
negaram de maneira mais ou menos aberta a validez dos argumentos
habituais demonstrativos da existência de um Deus pessoal.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 287
CAPÍTULO II
TEÍSMO
§ 1. O argumento ontológico.
134
Proslogium ii. Opera, Paris, 1721, p. 30 b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 288
acrescenta nada à ideia. A ideia em si pode ser completa, embora não
haja existência objetiva que corresponda a ela. Anselmo considerava
impossível a negação da existência de Deus, porque Deus é a mais
elevada verdade, o mais alto bem, de quem toda outra verdade e bem são
as manifestações. A necessidade da existência está incluída, segundo esta
doutrina, na ideia da perfeição absoluta. Em outras palavras, está
incluída na ideia de Deus. E como todo homem tem a ideia de Deus, tem
que admitir Sua existência real; porque o que é necessário é por si só
real. Não se segue de nossa ideia do homem que ele exista realmente,
porque o homem não é necessariamente existente. Mas é absurdo dizer
que um Ser necessariamente existente não existe. Se este argumento tem
alguma validez, não é importante. Só diz que o que deve ser realmente é.
Se a ideia de Deus como existe na mente de cada homem inclui a da
existência real, então, até onde vai a ideia, aquele que tem um tem o
outro. Mas o argumento não mostra como a ideal implica a real. 135
O argumento de Descartes.
2. O argumento de Descartes assumia esta forma: Temos uma ideia
de um Ser imensamente perfeito. Como somos finitos, esta ideia não
pôde originar-se em nós. Como estamos familiarizados só com o finito,
não poderia haver-se originado em nada do que temos ao nosso redor.
Por isso, tem que proceder de Deus, cuja existência é assim uma hipótese
necessária. “Habemus ideam Dei, hujusque ideæ realitas objectiva nec
formaliter nec eminenter in nobis continetur, nec in ullo alio præterquam
in ipso Deo potest contineri; ergo hæc idea Dei, quæ in nobis est, requirit
Deum pro causa; Deusque proinde existit.” 136 É verdade que temos
muitas ideias ou concepções com as quais não se corresponde uma
existência. Mas em tais casos as ideias são arbitrárias, ou criações
voluntárias de nossas próprias mentes. Mas a ideia de Deus é necessária;
135
Acerca de este argumento, véase Ritter, Geschichle der Christlichen Philosophie, I; págs. 229-237.
Baur, Dreieinigkeilslehre, II, 374.
136
Meditationes de Prima Philosophia prop. ii. p 89, edit. Amsterdam, 1685.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 289
não podemos evitar tê-la. E tendo-a, tem que haver um Ser que
corresponda com ela. Descartes ilustra este argumento, dizendo que da
mesma maneira que vai incluído em nossa ideia de triângulo que seus
ângulos somam dois ângulos retos, assim é na realidade. Mas ambos os
casos não são paralelos. Com esta só se diz que um triângulo é o que é,
isto é, uma figura de três lados, cujos ângulos somam dois ângulos retos.
Mas a existência de Deus como fato não fica incluída na definição dele.
Kant expressa isto em termos filosóficos, dizendo que se for tirado o
predicado, desaparece o sujeito; porque um juízo analítico é uma mera
análise, ou uma declaração plena do que está no sujeito. O juízo de que a
soma das ângulos de um triângulo são iguais à soma de dois ângulos
retos é só uma análise do sujeito. É uma simples declaração do que é um
triângulo; por isso, se for tirada a igualdade dos ângulos, tira-se o
triângulo. Mas num juízo sintético há uma síntese, uma acumulação.
Algo se acrescenta no juízo que não está no sujeito. Neste caso este algo
é a existência real. Podemos inferir da ideia de um ser perfeito que é
sábia e boa; mas não que realmente exista; porque a realidade é algo que
se acrescenta à mera ideia.
A única diferença entre o argumento de Descartes e o de Anselmo
parece ser meramente de forma. Um infere a existência de Deus, a fim de
dar-se conta da existência da ideia; o outro argumenta que a existência
real está incluída na ideia. Por isso, os defensores de ambos apelam à
mesma ilustração. O argumento de Anselmo é o mesmo que aquele que
se deriva da definição de um triângulo. Não se pode pensar num
triângulo sem pensar nele como possuindo três ângulos; tampouco pode-
se pensar em Deus sem pensar nEle como verdadeiramente existente;
porque a existência real entra tão essencialmente dentro da ideia de Deus
como a «triangularidade» na de um triângulo. Naturalmente, há os que
são afetados por este tipo de raciocínio; mas não tem poder sobre a
generalidade dos homens.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 290
O argumento do doutor Samuel Clarke
3. O doutor Samuel Clarke, igualmente distinto como matemático,
linguista e metafísico, publicou em 1705 sua célebre «Demonstração do
Ser e dos Atributos de Deus». Pelo que respeita ao Ser de Deus, seu
argumento é a priori. Diz ele que não há nada necessariamente existente
cuja não existência seja concebível. Podemos conceber da não existência
do mundo; por isso, o mundo não é necessariamente existente e eterno.
Não podemos, entretanto, conceber a não existência do espaço e da
duração; por isso, o espaço e a duração são necessários e infinitos.
Entretanto, o espaço e a duração não são substâncias; por isso, deve
haver uma substância eterna e necessária (isto é, Deus) da qual eles
sejam os acidentes. Este argumento, no melhor dos casos, dá-nos só a
ideia de alguma coisa necessária e infinita; e nenhuma classe de
antiteístas está disposto a negar esta. A determinação do que seja esta
substância eterna, que atributos pertencem à mesma, demanda que se
faça referência ao mundo dos fenômenos, e o argumento se transforma
em a posteriori. Objetou-se contra o argumento do doutor Clarke que
não é propriamente a priori. Da existência do tempo e do espaço infere a
existência de um Ser substancial.
O argumento de Cousin
4. Cousin, em seu «Elementos de psicologia», repete continuamente
o mesmo argumento de uma maneira um pouco diferente. A ideia do
infinito, diz ele, dá-se na do finito. Não podemos ter um sem ter o outro.
«Estas duas ideias são correlativos lógicos; e na ordem de sua aquisição,
o do finito e imperfeito precede o outro; mas o precede muito de perto.
Não é possível à razão, logo que a consciência dá à mente a ideia do
finito e imperfeito, deixar de conceber a ideia do infinito e do perfeito.
Agora, o infinito e perfeito é Deus». 137 Mais uma vez o argumento que
temos aqui é que aquilo do que temos uma ideia é real. A verdade é que
137
Elements of Psychology, p. 375, New York, 1856.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 291
não se supõe como uma proposição geral. Podemos imaginar, diz
Cousin, uma górgona, um centauro, e podemos imaginar sua não
existência; mas não está dentro de nossa capacidade, quando nos dá o
imperfeito e finito, não conceber o infinito e perfeito. E isto, diz ele, não
é uma quimera, e sim o necessário produto da razão; e, por isso, é um
produto legítimo. 138 A ideia do finito e imperfeito é uma ideia primitiva,
dada na consciência; e, por isso, a ideia correlativa do infinito e perfeito
dada por necessidade e pela razão, tem que ser também primitiva. Em
outras ocasiões apresenta este tema sob uma luz distinta. Ensina que
como a mente na percepção reconhece o objeto como uma existência
real, distinta dela mesma, assim a razão tem uma percepção, ou
conhecimento imediato, do Infinito, com uma convicção necessária de
sua realidade como distinguida (num sentido) dela mesma. O eu, a
natureza e Deus são de maneira semelhante e igualmente envoltos na
percepção intuitiva da mente; e são inseparáveis. Isto é muito diferente
da doutrina comum do conhecimento de Deus como inato ou intuitivo.
Esta última doutrina só supõe que a natureza da alma humana é tal que
está intuitivamente convencida de sua dependência ou responsabilidade
para com um Ser diferente de e mais exaltado que ele mesmo. A
primeira supõe, com os filósofos alemães, especialmente Schelling, a
cognição imediata do Infinito pela razão.
Admitindo com Cousin que as ideias do finito e infinito são
correlativas, que não podemos ter uma sem ter a outra, e que a mente,
por necessidade racional, fica convencida de que se há um finito tem que
haver um infinito, resta perguntar: O que é este Infinito? Para Cousin, o
Infinito é Tudo. Por isso, o Teísmo não ganha nada com estes
argumentos metafísicos.
138
Ibid., p. 376.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 292
§ 2. O argumento cosmológico
A. A causalidade
139
Logic, p. 203, New York, 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 293
doutor Brown de Edimburgo antes dele. O primeiro diz: «É necessário
para nosso emprego da palavra causa que creiamos não só que o
antecedente sempre foi seguido pelo consequente, mas também,
enquanto permaneça a presente constituição das coisas, sempre será
assim». E o doutor Brown 140 diz: «Uma causa, na definição mais plena
que admite filosoficamente, pode ser definida como aquilo que precede
imediatamente a qualquer mudança, e que, existindo em qualquer tempo
sob circunstâncias similares, sempre foi e sempre será seguido de uma
mudança similar». É evidente que esta definição não só é arbitrária, mas
também é inconsequente com o princípio fundamental da filosofia de
Hume e de seus seguidores, isto é, que todo nosso conhecimento se
baseia na experiência. A experiência se relaciona com o passado. Não
pode ser garantia do futuro. Se cremos que um consequente determinado
sempre seguirá a um antecedente determinado, tem que haver outra base
para esta convicção de que sempre tenha sido assim. A não ser que haja
algo na natureza do antecedente que assegure a sequência do efeito, não
há nenhuma base racional para a crença de que o futuro tem que ser
como o passado.
140
Inquiry, p. 17. Edimburgo, 1818.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 294
uma causa: (1) Por nossa própria consciência. Nós somos causas.
Podemos produzir efeitos. E os três pontos particulares recém-
mencionados se incluem em nossa consciência de nós como causa. Nós
somos verdadeiras existências; temos poder; temos um poder adequado
para os efeitos que produzimos. (2) Podemos apelar à consciência
universal dos homens. Todos os homens atribuem este significado à
palavra causa em sua linguagem comum. Todos os homens dão por
sentado que cada efeito tem um antecedente ao qual deve sua eficiência.
Nunca consideram uma mera antecedência, por uniforme que seja no
passado, ou por certa que seja no futuro, como constitutiva de uma
relação causal. A sucessão das estações foi uniforme no passado, e
estamos confiantes de que seguirá sendo uniforme no futuro; mas
ninguém diz que o inverno seja a causa do verão. Todos estão
conscientes de que a causa expressa uma relação inteiramente diferente
da relação da mera antecedência. (3) Esta postura a respeito da natureza
da causalidade está incluída na crença universal e necessária de que todo
efeito deve ter uma causa. Esta crença não é de que uma coisa tenha que
ir sempre antes de outra, mas sim não pode ocorrer nada, que não se
pode provocar mudança alguma, sem a aplicação de poder ou eficiência
em alguma parte; de outro modo algo poderia vir do nada.
Este tema o tratam todos os metafísicos de Aristóteles em diante, e
especialmente desde a promulgação da nova doutrina adotada por
Hume 141. Foi um dos grandes serviços à causa da verdade o que rendeu o
doutor McCosh ao defender a autoridade destas crenças primárias que
subjazem como fundamento de todo conhecimento.
141
Veja-se Reid’s Intellectual Powers; Stewart’s Philosophical Essays; Brown’s Inquiry, y Essay on
Cause and Effect; Sir William Hamilton’s Works; Dr. McCosh’s, Intuitions of the Mind.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 295
A convicção intuitiva da necessidade de uma Causa.
Mas admitindo que uma causa não seja simplesmente um
antecedente invariável, mas sim aquilo ao poder do qual se deve o efeito,
“Ens quod in se continet rationem, cur aliud existat,” 142 como é definido
por Wolf, resta perguntar, qual é o fundamento da crença universal de
que cada efeito deve ter uma causa? Hume diz que está fundado na
experiência e, portanto, é limitada por esta. Vemos que tudo o que se
efetua dentro da esfera de nossa observação é precedida por uma causa, e
podemos razoavelmente esperar que o mesmo seja verdade além da
esfera de nossa observação. Mas disto não sabemos nada. Seria
presunçoso determinar pelo que sucede em nosso pequeno globo, o que
deve ser a lei do universo. O fato que, até onde vemos, todo efeito tem
uma causa, não nos dá nenhum direito a assumir que o universo deve ter
tido uma causa. Kant diz que a lei de causa e efeito está só em nossas
mentes. Os homens visualizam coisas nessa relação; mas eles não têm
nenhuma garantia que essa relação se mantém no mundo fora de si
mesmos.
A doutrina comum das escolas é que se trata de uma verdade
intuitiva, um princípio primordial ou evidente por si mesmo. Isto é, que
se trata de algo que todos os homens creem, e que todos os homens
devem crer. Não haveria verdades evidentes por si mesmas, intuitivas se
o fato de que tenham sido negadas por um ou mais filósofos
especulativos se considerasse como prova de que não são assunto de
crença universal e necessária. A identidade pessoal, a existência real do
mundo externo, a distinção essencial entre o bem e o mal, são coisas que
foram negadas. Entretanto, todos os homens creem e devem crer nestas
verdades. A negação das mesmas é forçada e temporal. Sempre que a
mente transborda ao seu estado normal, a crença volta. Também negou-
se o princípio da causação; mas todo homem vê-se forçado pela
constituição de sua natureza a admiti-lo, e a agir constantemente com
142
Veja-se sua Ontologia, II. iii. 2. § 881.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 296
base no mesmo. Um homem pode crer que o universo é eterno, mas que
começou a existir sem uma causa – que surgiu do nada – é impossível de
crer.
Por isso, ficamos reduzidos a esta alternativa. O universo é. Por
isso, ou foi desde toda a eternidade, ou deve sua existência a uma causa
fora de si mesmo, adequada para dar conta de que seja o que é. O
argumento teísta é que o mundo é um efeito; que não tem em si mesmo a
causa de sua existência; que não é eterno, e por isso temos a necessidade
de aceitar a existência de uma grande Primeira Causa a cuja eficiência
deve-se atribuir a existência do universo.
O mundo é um efeito
1. O primeiro argumento para demonstrar que o mundo como um
todo não é existente por si mesmo e eterno, é que todas as suas partes,
tudo o que entra em sua composição, é dependente e cambiante. Um
todo não pode ser essencialmente diferente de suas partes constitutivas.
Um número infinito de efeitos não pode ser existente por si mesmo. Se
uma cadeia de três elos não se pode sustentar por si mesma, muito menos
uma cadeia de milhões de elos. Nada multiplicado por uma infinitude
continua sendo nada. Se não encontramos a causa de nossa existência em
nós mesmos, nem nossos pais em si mesmos, ir atrás ad infinitum é só
acrescentar nada a nada. O que a mente demanda é uma causa suficiente,
e não se obtém nenhuma solução indo atrás indefinidamente de um efeito
a outro. Por isso, vemo-nos obrigados, pelas leis de nossa natureza
racional, a aceitar a existência de uma causa existente em si mesma, isto
é, de um Ser dotado de um poder adequado para produzir este mundo de
fenômenos sempre cambiante. Em todas as eiras, as pessoas reflexivas
foram forçadas a esta conclusão. Platão e Aristóteles arguiram com base
na existência do movimento que deve existir um ἀεικὶνητον ἑαυτὸ
κινοῦν [aeikinëton heauto kinoun], um eterno poder dotado de
movimento próprio, ou primum movens, como o chamavam os
Escolásticos. A validez deste argumento é reconhecida por quase todas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 297
as classes de filósofos, ao menos no sentido de admitir que estamos
obrigados a aceitar a existência de um Ser eterno e necessário. O
argumento Teísta é que se tudo no mundo é contingente, este Ser eterno
e necessário tem que ser uma Primeira Causa extramundana.
B. O argumento histórico.
2. O segundo argumento é o histórico. Isto é, temos evidência
histórica de que a raça humana, por exemplo, existiu só uns poucos
milhares de anos. Que a raça humana tenha existido desde a eternidade é
absolutamente inacreditável. Inclusive se adotássemos a teoria da
evolução, não nos dá alívio algum. Só nos dá milhões em lugar de
milhares de anos. Ambos os lapsos de tempo são igualmente
insignificantes quando os comparamos com a eternidade. A célula
germinal de Darwin demanda tão necessariamente uma causa fora dela e
existente por si mesma como a demanda um homem totalmente
desenvolvido, ou toda a raça do homem, ou o próprio universo. Vemo-
nos de boca fechada diante da conclusão de que este universo saiu do
nada, ou a de que existe um Ser autoexistente, eterno e extramundano.
O argumento geológico
3. O argumento geológico deve dizer o mesmo. Os geólogos, como
classe, concordam quanto aos seguintes fatos: (1) Que os gêneros
existentes de plantas e animais que habitam nossa terra começaram a
existir num período relativamente recente na história de nosso globo.
(2) Que nem a experiência nem a ciência, nem os fatos nem a razão,
justificam a hipótese de uma geração espontânea. Isto é, não há
evidência de que algum organismo vivo seja jamais produzido por umas
causas meramente físicas. Cada um destes organismos é ou criado
imediatamente, ou é derivado de algum outro organismo já tendo vida,
previamente existente. (3) Os gêneros e as espécies são permanentes.
Um nunca se transmuta em outro. Um peixe nunca se transforma em ave,
nem uma ave num quadrúpede. Os modernos teorizadores, certamente,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 298
puseram estes fatos em tela de juízo; mas seguem sendo admitidos pelo
grande conjunto de cientistas, e a evidência em favor deles é esmagadora
para a mente normal. Se se concederem estes princípios, segue-se disso
que todas as plantas e animais existentes sobre a terra tiveram um
princípio. E se tiveram um princípio, foram criados, e por isso deve
haver um Criador. Estas considerações são meramente colaterais. O
principal argumento é aquele que mencionamos primeiro, isto é, a total
impossibilidade de conceber ou uma sucessão infinita de acontecimentos
contingentes, ou a origem do universo do nada.
143
Treatise of Human Nature, Part i. § 1; Works, vol. i. Edinburgh, 1826.
144
Em Parte III, § 14.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 299
antecedente de outro. Isto é tudo o que percebemos; de tudo isso
podemos ter uma «impressão». Não temos impressões de poder,
eficiência, energia, força, ou outro termo equivalente que possamos
escolher empregar. Por isso, tal coisa não existe. Não existe nada como
eficiência ou poder nem na mente nem na matéria. Quando empregamos
estas palavras, diz ele, não comunicamos «realmente nenhum significado
concreto». 145 Quando vemos acontecimentos ou mudanças em sequência
uniforme, adquirimos o hábito, ou, como ele diz, «sentimos a
determinação» 146 de esperar o consequente quando vemos seu habitual
antecedente. A necessidade, a força, o poder, a eficácia, portanto, não
são nada mais que «uma decisão de levar nossos pensamentos de um a
outro objeto». 147 «A necessidade de poder, que une causas e efeitos,
reside na determinação da mente de passar de um ao outro. A eficácia ou
energia das causas não está posta nem nas próprias causas, nem na
Deidade, nem na concorrência destes dois princípios, mas sim pertence
inteiramente à alma, que considera a união de dois ou mais objetos em
todos os casos anteriores». 148 Hume estava plenamente consciente do
caráter paradoxal de sua posição a respeito da causalidade e de suas
enormes consequências, embora insistia em que seu argumento para
sustentá-la era irrefutável. Em relação imediata com a citação recém-
mencionada, diz: «Estou consciente que de todos os paradoxos que tive
ou que terei ocasião de apresentar no curso deste tratado, o presente é o
mais violento, e é só com golpes de sólidas provas e raciocínios que
posso ter a esperança de que seja admitido e vencer os inveterados
preconceitos da humanidade». 149 O que ele chama inveterados
preconceitos são realmente leis da crença que Deus imprimiu sobre
145
Treatise of Human Nature, vol. I, p. 216.
146
Ibid., pág. 219.
147
Ibid., pág. 219.
148
Ibid., pág. 220.
149
Ibid., pág. 220.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 300
nossa natureza, e que todos os sofismas dos filósofos jamais poderão
subverter.
As conclusões que Hume tira de sua doutrina mostram a apreciação
de sua importância. (1) Segue-se de seu princípio, diz ele, que não há
diferença entre causas como eficientes, formais, materiais, exemplares
ou finais; nem entre causa e ocasião. (2) «Que a distinção comum entre
necessidade moral e física carece de todo fundamento na natureza». «A
distinção que fazemos com frequência entre o poder e o exercício do
mesmo também carece de fundamento». (3) «Que a necessidade de uma
causa para todo começo de existência não está baseado em argumentos,
nem demonstrativos nem intuitivos». (4) «Nunca podemos crer com
razão que exista algum objeto de que não nos possamos formar uma
ideia». 150 Por este quarto corolário, faz referência a coisas como as
substâncias, das quais não recebemos impressões, e, por conseguinte, das
que não podemos ter ideia, e que por isso não podemos crer
racionalmente que existam. O mesmo pode-se dizer de Deus.
No começo da seguinte seção, 151 Hume, com uma ousadia quase
sem comparação, diz: «Segundo a doutrina recém-exposta, não há
objetos que possamos determinar, por mera observação, sem consultar a
experiência, como as causas de qualquer outro; nem objetos que
possamos determinar com certeza da mesma maneira como não sendo as
causas. Qualquer coisa pode produzir a qualquer outra. Criação,
aniquilação, movimento, razão, volição, todas essas coisas podem surgir
de quaisquer delas, ou de quaisquer outros objetos que possamos
imaginar. E isto não parecerá estranho se compararmos dois princípios
explicados anteriormente, que a conjunção constante dos objetos
determina sua causa, e que, falando corretamente, não há objetos
contrários entre si, exceto a existência e a não existência. Quando os
150
Treatise of Human Nature, vol. I. pp. 226-228.
151
§ 15.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 301
objetos não são contrários, nada impede que tenham aquela constante
conjunção da qual depende totalmente a relação de causa e efeito».
Se existe um argumento como a reductio ad absurdum, es cosa
cierta que esta teoría de Hume se refuta a sí misma. (1) Ele admite a
fiabilidad da consciência pelo que respeita às «impressões»; como pode
então rejeitar as intuições dos sentidos, da razão e da consciência? (2) Se
não termos nenhum conhecimento que não se derive das impressões,
então não podemos crer na substância, nem na alma, nem em Deus. (3)
Pela mesma razão não podemos crer que haja uma coisa como o poder
ou a eficiência, nem nenhuma diferença entre causas eficientes e finais,
isto é, entre a força expansiva do vapor e a intenção do engenheiro que
desenha uma máquina de vapor. (4) Da mesma maneira, temos que crer
que algo vem do nada, que não há razão de que o que começa tenha que
ter uma causa, nem sequer um antecedente; e, por isso, que «qualquer
coisa pode produzir qualquer outra coisa», isto é, uma volição humana, o
universo. (5) Não pode nem enunciar sua teoria sem contradizer-se a si
mesmo. Fala de algo «produzindo» um pouco diferente. Mas segundo
sua doutrina não existe a produção de nada, porquanto nega que exista
nada como o poder ou a eficiência.
Está universalmente admitido que não temos fundamento para o
conhecimento nem a fé exceto na veracidade da consciência. Este
princípio tem que ser tido constantemente em conta, e deve ser reiterado
com frequência. Por isso, qualquer doutrina que contradiga os atos da
consciência, ou as leis da crença que Deus imprimiu em nossa natureza,
tem que ser falsa. Então, se pode-se demonstrar que há certas verdades
que os homens se veem forçados a crer pela mesma constituição de seus
naturezas, estas verdades devem ser retidas apesar de todas as artes da
sofisma. Por isso, se constituir um fato da consciência que nós mesmos
somos algo, um ente, uma substância, e que temos poder, que podemos
produzir efeitos, então é coisa certa que existe o poder, e as causas
eficientes. Se além disso é uma verdade intuitiva e necessária que cada
efeito tem que ter uma causa, que ex nihilo nihil fit [do nada, nada sai],
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 302
então é absolutamente certo que se o mundo começou a ser, teve uma
causa adequada de sua existência fora dele mesmo. E, por isso, se o
argumento para demonstrar que o mundo não é autoexistente e eterno é
sadio, o argumento cosmológico é válido e concludente.
A segunda objeção
A outra forma de objeção dirige-se não contra as premissas sobre as
quais se baseia o argumento cosmológico, mas sim contra a conclusão
que os teístas tiram do mesmo. Admite-se que algo existe agora; que
uma não entidade não pode ser a causa da existência real; por isso, que
algo deve ter existido eternamente. Admite-se também que é impossível
uma regressus ad infinitud [regressão infinita], ou série eterna de
efeitos. Por isso, tem que haver um Ser eterno, existente em si mesmo.
Isto é tudo o que demonstra justamente o argumento cosmológico. Não
demonstra que este Ser necessário é extramundano, e muito menos que
seja um Deus pessoal. Pode ser que seja uma substância eterna da qual as
coisas cambiantes são os fenômenos. 152
O argumento cosmológico não tem a intenção de demonstrar tudo o
que os Teístas sustentam a respeito de Deus. É suficiente de maneira que
demonstre que devemos admitir a existência de um Ser eterno e
necessário. Outros argumentos demonstram que este Ser é consciente de
Si mesmo e inteligente. Além disso, o argumento demonstra de maneira
apropriada que este Ser é extramundano; porque o princípio da causação
é que todo o contingente tem que ter a causa de sua existência fora de si
mesmo.
152
Veja-se Strauss, Dogmatik, vol. I, p. 382.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 303
§ 3. O argumento teleológico
A. Sua natureza
1
Log. Untersuchungen, 2 ed., Leipzig, 1862, vol. n, pág. 28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 305
B. Evidências de desígnio no mundo
2
It may be well to give the titles of the valuable series of the Bridgewater Treatise devoted to this
subject, besides the work of Dr. Bell mentioned in the text. The volumes are, The Adaptation of
External Nature to the Moral and Intellectual Constitution of Man, by Dr. Thomas Chalmers; On the
Adaptation of External Nature to the Physical Constitution of Man, by John Kidd; Astronomy and
General Physics treated in Reference to Natural Theology, by William Whewell; Animal and
Vegetable Physiology considered in Reference to Natural Theology, by Peter Mark Roget; Geology
and Mineralogy considered in Reference to Natural Theology, by William Buckland; The Power,
Wisdom, and Goodness of God as manifested in the Creation of Animals, by William Kirby;
Chemistry, Meteorology, and the Function of Digestion considered in Reference to Natural Theology,
by William Prout. The Ninth Bridgewater Treatise, by C. Babbage; Footprints of the Creator, by
Hugh Miller; Théologie de la Nature, by H. Durkheim (1852, 3 vols. 8vo.); Butler's Analogy of
Religion and Nature; Paley's Natural Theology; Dr. McCosh's Typical Forms and Special Ends in
Creation; Dr. James Buchanan's Faith in God and Modern Atheism compared, 2 vols. 3vo; and Dr.
John Tulloch's (Principal of St. Mary's College, St. Andrew's) Theism; The Witness of Reason and
Nature to an All-Wise and Beneficent Creator, may also be mentioned.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 306
fechadura que não dependem da vontade, mas sim do próprio estímulo
da luz. Mas o mero passar da luz através de um orifício não produziria
uma imagem do objeto da qual foi refletida. Por isso, faz-se passar por
uma lente de forma perfeita para provocar a refração dos raios e enfocá-
los de maneira apropriada sobre a retina. Se a câmara interior do olho
fosse branca, refletiria os raios que entram para todos os ângulos,
impossibilitando a visão. Esta câmara, e só esta, está forrada de um
pigmento negro. Por meio de um delicado mecanismo muscular, o olho
pode adaptar-se à distância dos objetos exteriores para poder preservar o
foco apropriado. Esta é uma pequena parte das maravilhas que exibe por
si só este órgão do corpo. Este órgão se formou na escuridão do ventre,
com uma referência evidente à natureza e às propriedades da luz, das
quais a criatura para cujo uso estava disposto não tinha nem
conhecimento nem experiência. Assim, se o olho não indica a adaptação
inteligente dos meios para um fim, não pode achar-se tal adaptação em
nenhuma obra do engenho humano.
As mesmas observações se aplicam à orelha. Em sua cavidade
descansa o nervo auditivo. Uma passagem tortuosa é formada na
estrutura óssea do crânio. O orifício daquela passagem é coberta por uma
membrana para receber a vibração do ar; no centro daquela membrana
descansa o termo de um osso pequeno assim conectado para transferir
aquelas vibrações para o único nervo qualificado a receber ou interpretá-
los, ou para transmiti-los ao cérebro. É por este órgão, construído de
acordo com os princípios recônditos de acústica, que nosso intercurso
com nossos membros da raça humana está principalmente adaptado; por
eles as maravilhas da fala, todos os encantos da música e eloquência
ficam possível ao homem.
Não podemos viver sem uma provisão permanente de oxigênio, que
a cada momento deve ser trazido a agir no sangue, vivificá-lo, e
combinando com o carvão se adapta para um uso renovado. A criança,
portanto, entra no mundo com um aparelho preparado para esse
propósito. Em seu estado formativo, não respirava, embora ela tivesse
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 307
pulmões. Foram-lhe dados para uma necessidade prevista. Nada pode
exceder a complexidade, complicação, ou beleza do órgão ou sistema de
órgãos assim preparados, para a purificação absolutamente necessária e
contínua do sangue, e para sua distribuição num ininterrupto fluxo e
vazante a cada parte do corpo. Este processo continua sem nossa
supervisão. É regular durante nosso sonho como durante nossa hora de
despertar.
O alimento é necessário para nosso sustento como o ar. Os infantes
não nascidos não necessitam nenhuma comida, porque está incluído na
circulação de sua mãe. No estado em que está logo a entrada de comida
será uma necessidade. A provisão completa é antecipadamente feita para
sua recepção e uso. Os dentes são embutidos na mandíbula para sua
mastigação; as glândulas salivares para subministrar o fluido para sua
preparação química para o estômago; um esôfago para transportá-lo ao
estômago, onde ele se encontra com um fluido não encontrado em
nenhuma outra parte, capaz de dissolvê-lo e digeri-lo. Ele então entra em
contato com um conjunto de veias absorventes que selecionam dele os
elementos necessários para as necessidades do corpo e rejeitam todo o
resto. A porção valiosa é vertida no sangue pelo qual é distribuída, cada
componente indo ao seu próprio lugar e respondendo ao seu propósito
predestinado; o carbono tem que ser consumido para continuar a carreira
vital, óxido de cálcio para os ossos, fibrina para os músculos, fósforo
para o cérebro e nervos.
A criança antes do nascimento não tem nenhuma necessidade de
órgãos para locomoção ou para agarrar objetos externos. Mas era
previsto que precisaria deles, e portanto eles são antecipadamente
preparados. Os ossos são sulcados para a recepção de músculos, e têm
projeções para pontos de suporte; articulações de todos os tipos, junta,
rótula e soquete para a flexão dos membros; os instrumentos para
movimento, as fibras contráteis, organizadas e atribuídas, de acordo com
as leis rígidas da mecânica, para melhor assegurar os dois fins de
simetria e energia. Desta maneira o corpo é uma maravilha perfeita de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 308
ideias mecânicas. Os vários órgãos, portanto, do esqueleto animal,
visualizados separadamente, apresentam a mais incontestável evidência
de previsão, inteligência, e sabedoria. Esta, entretanto, é apenas uma
pequena parte da evidência de projeto suprida até pelo corpo.
Organismos vegetais.
5. O reino vegetal é tão cheio das indicações de desígnio
benevolente como o animal. As plantas têm seu organismo e sua
fisiologia. Sua estrutura, em seus órgãos de crescimento e reprodução, é
tão maravilhosa como a da maioria da espécie do reino animal.
Constituem uma parte essencial no grande sistema da natureza, sem a
qual não pode existir nenhuma vida sensível em nosso globo. Os animais
não podem viver de matéria inorgânica. É a divisão da planta que reduz
esta matéria a tal estado de adaptação para suportar a vida animal. Se não
fosse, portanto, pelas funções da folha que transmuda o inorgânico no
orgânico, não haveria nenhuma vida sensível em nossa Terra. Não existe
nenhum desígnio aqui? Não há nenhuma adaptação inteligente de uma
parte do grande sistema da natureza para outro?
Disposições Cósmicas.
9. O argumento do desígnio fundado em arranjos cósmicos é um
assunto tão vasto que parece absurdo até referir-se a isto, num único
parágrafo. Os fatos simples são que nosso globo é um de oito planetas
primários que giram ao redor do sol. O mais distante destes planetas é
uns três bilhões de milhas do centro de qualquer corpo luminoso. Estes
planetas todos giram na mesma direção, em órbitas quase circulares, em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 314
quase o mesmo plano, e com um movimento tão uniforme que cada um
apresenta suas revoluções no tempo adequado. A estabilidade do sistema
depende destas circunstâncias. Para assegurar estes resultados matéria
tem que atrair matéria de acordo com sua quantidade e o quadrado de sua
distância. O corpo central deve ser de tal massa para sustentar os
planetas em seu curso. As forças centrífugas e centrípetas devem estar
exatamente equilibradas, para precaver os planetas de desprender-se no
espaço, ou cair no sol. Cada planeta deve ter sido projetado com uma
velocidade definida necessária para assegurar sua órbita sendo quase
uma circunferência, em lugar de qualquer outra curva. O corpo central
apenas, segundo o plano evidente, é luminoso e produtor de calor. Todos
os outros são opacos e frios. Estes são fatos, que Sir Isaque Newton diz
que ele é “forçado a atribuir à causa e ideia de agente voluntário.” 3
Desde o tempo do Newton, realmente, a teoria usualmente recebida foi
que os planetas eram uma vez fluido, altamente esquentado, e luminoso;
e que eles ficaram opacos no processo de resfriamento. Mas isto só põe o
argumento um passo para trás. O fato é que um resultado mais
maravilhoso e benfeitor foi realizado. A pergunta: Como?, é de
importância secundária. É a beneficência do resultado que indica mente,
e esta indicação de mente implica um “agente voluntário.”
Nosso sistema solar propriamente, portanto, é vasto, variado, e bem
ordenado. Nosso sistema, entretanto, é provavelmente um dos centenas
de milhões. Pelo menos os astrônomos afirmam seu conhecimento de
cem milhões de sóis, alguns dos quais são incalculavelmente maiores
que o nosso. Sírio é calculado para brilhar com uma luz equipada para
duzentos e cinquenta de nossos sóis; Alcíone com o equipamento de
doze mil sóis. As mais próximas destas estrelas são separadas do planeta
exterior de nosso sistema vinte e um trilhões de milhas. Estes milhões de
estrelas não são igualmente dispersas pelo espaço, mas sim são juntados
3
Newton's First Letter to Bentley, quoted by Tulloch, Theism, edit. N.Y. 1855, p. 109.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 315
em grupos, os membros dos quais suportam uma relação óbvia um ao
outro.
Além destes sistemas nos quais os planetas são designados para
revolver ao redor de sóis, existem outros em que os sóis revolvem ao
redor de sóis, em proporção de distâncias segundo sua magnitude. A luz
que emana destes grandes luzeiros é de cor diferente, branco, vermelho,
azul.
Então mais distante no espaço flutua as não resolvidas nebulosas.
Se estas nebulosas forem vastos continentes de estrelas muito distantes
para ser distinguível, ou matéria cósmica num estado formativo, é ainda
uma pergunta aberta entre os astrônomos. Duas mil incluíram o
hemisfério do norte, e mil no meridional. Assumem toda variedade de
formas; algumas são esféricas, poucas em forma de leque, algumas
espirais, algumas em argolas circulares. Estima-se que a luz de algumas
das estrelas levou muitos milhares de anos em alcançar nossa Terra,
embora viajando na taxa de mais de dez milhões de milhas por minuto.
Através deste vasto universo impera a ordem. Em meio de uma
variedade sem fim há unidade. As mesmas leis da gravidade, da óptica e
da termodinâmica prevalecem em todas as partes. A confusão e a
desordem são o resultado uniforme do acaso ou de forças operando às
cegas. A ordem é a segura indicação de uma mente. E que mente, que
sabedoria, o que poder e que beneficência são as que se exibem em
nosso vasto universo!
«O resultado de toda nossa experiência», disse Sir Gilbert Eliot,
escrevendo ao próprio Hume, «parece consistir nisto. Há só duas formas
nas quais observamos as diferentes quantidades de matéria lançadas
juntamente: Quer por acaso, quer com desígnio e propósito. Da primeira
forma nunca vimos a produção de um efeito complicado regular
correspondendo-se com um fim determinado; da segunda forma, vemo-
lo de maneira constante. Assim, se as obras da natureza e as produções
dos homens se parecem nesta grande característica geral, não nos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 316
justificará inclusive a mesma experiência em atribuir a ambas uma causa
similar, embora proporcional?» 4
Este argumento com base no desígnio é constantemente alegado no
Antigo Testamento, que apela aos céus e à terra como revelando o ser e
as perfeições de Deus. O Apóstolo Paulo diz que o Deus vivo, que fez o
céu e a terra, o mar, e tudo o que neles há, não se deixou a si mesmo sem
testemunho (At 17:23-31). Aos Romanos se disse que o eterno poder e
deidade do Ser Supremo são claramente vistos, sendo entendidos pelas
coisas criadas (Rm 1:20). Os antigos filósofos tiraram as mesmas
conclusões com base nas mesmas premissas. Anaxágoras arguia que se
tem que admitir que a nous, a mente, controla tudo no mundo, porque
tudo no mundo indica desígnio. Sócrates insiste constantemente nesta
como a grande prova do ser de Deus. Cícero 5 diz que é tão impossível
que um mundo ordenado possa ser constituído por uma ocorrência
fortuita de átomos quanto um livro fique redigido lançando letras por
acaso. Trendelenburg, 6 depois de citar esta passagem, diz: «Talvez seja
mais difícil supor que por uma cega combinação dos elementos e das
forças químicas, que se formasse sequer um dos órgãos do corpo – por
exemplo, o olho, tão claro, agudo e arrecadador, – e muito menos a
harmônica união de órgãos que constituem o corpo, que aquele que um
livro fosse feito por acaso, lançando tipos soltos por acaso».
Filo apresenta o argumento em sua forma silogística mais singela:
«Não há nenhuma obra de arte feita por si mesma. O mundo é a mais
perfeita obra de arte. Por isso, o mundo foi feito por um Autor bom e
totalmente perfeito. Assim temos o conhecimento da existência de
Deus». 7 Todos os pais cristãos e teólogos posteriores raciocinaram da
mesma maneira. Inclusive Kant, embora negue que seja concludente, diz
4
Dr. Buchanan, Analogy a Guide to Truth and an Aid to Faith, edição de Edimburgo, 1864, p. 414.
5
De Natura Deorum, II. 37.
6
Logische Unlersuchungen, Vol. II, pág. 64.
7
De Monarchia, I. § 4, edição de Leipzig, 1828, vol. IV, pág. 290.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 317
que o argumento teleológico deveria ser sempre tratado com respeito. É,
diz ele, o mais antigo, o mais claro, e o mais adaptado à mente humana.
8
Isto está de acordo com a definição teológica aceita de uma pessoa como um «suprositum
inteligens».
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 318
Naturalmente, o fósforo tem que vir antes que o pensamento, e por isso
não pode haver nenhuma causa final para a produção do fósforo nem de
nada mais. (3) As causas finais são negadas pelas que consideram o
universo como o desenvolvimento do Ser infinito sob a operação de uma
lei necessária. Deste Ser não se pode pregar nem inteligência, nem
consciência, nem vontade. Por conseguinte, não pode haver nenhum
desígnio preconcebido para ser levado a cabo, nem pelo universo como
um todo, nem por nenhuma de suas partes. Assim, segundo Espinoza, as
causas finais são «humana figmenta et deliria».
Se alguém perguntar a um camponês de onde provém uma árvore
ou o corpo de um animal, provavelmente responderá: «Ora, ora,
cresceu!» Para ele, este é o fato final. E assim é com todos os advogados
das teorias acabadas de mencionar. Assim é que se encontram os
extremos (o pensamento do camponês e a teoria do sábio). Que
pensamento mais elaborado, mais profundo, encontra-se nas palavras de
Stuart Mill que no da resposta do camponês, quando o lógico diz: «As
sequências totalmente físicas e materiais, logo que chegam a fazer-se
suficientemente familiares para a mente humana, vieram naturalmente ao
pensamento, e se considerou não só que não precisavam elas mesmas de
explicação alguma, mas também podiam dar explicação para outras, e
inclusive de servir como a explicação final das coisas em geral» 9
9
Logic, edição de Londres, 1851. Vol. I, pág. 366.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 319
diferente; nunca vimos fazer um mundo, e por isso não temos nenhuma
base racional para supor que este mundo teve um criador. «Quando duas
espécies de objetos,» diz Hume, 10 «foram sempre observados em
conjunção, posso inferir, por costume, a existência do um quando vejo a
existência do outro, e isso se chama o argumento da experiência. Mas
que este argumento se possa apresentar quando os objetos, como no caso
atual, são singulares, individuais, sem paralelo nem semelhanças
específicas, pode ser difícil de explicar. E me dirá alguém com seriedade
que um universo ordenado tem que surgir de algum pensamento e arte,
como o humano, porque temos experiência deste? Para determinar este
raciocínio, seria necessário que tivéssemos experiência da origem de
mundos; e certamente não é suficiente que tenhamos visto surgir navios
e cidades graças à arte ao engenho humano», ou que a experiência ensina
é que o desígnio implica inteligência; isto é, que nunca vemos a
adaptação de meios a um fim sem evidência de que tal adaptação é a
obra de um agente inteligente. E, por isso, inclusive sob a condução da
experiência inferimos que sempre que vemos desígnio, seja na natureza
ou na arte, tem que haver um agente inteligente. Mas a experiência não é
nem a base nem o limite desta convicção. É uma verdade intuitiva,
evidente por si mesma com base em sua natureza, que não se pode dar
conta do desígnio com base em acaso ou necessidade. Que alguém trate
de persuadir-se de que um relógio é produto do acaso, e verá quão inútil
é sua intenção.
Kant apresenta substancialmente a mesma objeção de Hume quando
diz que a concatenação de causa e efeito fica confinada ao mundo
externo, e por isso que é ilógico aplicar o princípio da causalidade para
dar conta da existência do próprio mundo externo. Além disso, objeta
que as evidências de desígnio na natureza seriam só demonstração de um
demiurgo, ou construtor do mundo, e não de um Deus extramundano.
Além disso, apressa-se contra a suficiência do argumento teleológico que
10
«Dialogues on Natural Religion», Works, edição de Edimburgo, 1826, Vol. II, pág. 449.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 320
inclusive se demonstrasse que o autor do mundo é distinto do mundo,
isso não o demonstraria infinito, porque o mundo é finito, e não podemos
inferir uma causa infinita de um efeito finito.
Resposta às objeções.
Como resposta a estas objeções pode-se observar que o que o
argumento com base no desígnio tem a intenção de demonstrar, e
demonstra, é: (1) Que o Autor do universo é um agente inteligente e
voluntário. (2) Que Ele é extramundano e não meramente a vida ou alma
do mundo, porque o desígnio se mostra não simples nem principalmente
pela conformação de corpos organizados mediante um princípio que age
de dentro para fora, mas pela adaptação de coisas externas a tais
organismos, a suas várias necessidades, e pela disposição e ordem
estruturada de enormes corpos de matéria, separados por milhões e
inclusive por milhares de milhões de milhas. (3) A imensidão do
universo através do qual se faz manifesto o desígnio demonstra que sua
causa tem que ser adequada para a produção de tal efeito; e se o efeito é,
como o é para nós, incompreensivelmente grande, a causa deve sê-lo
também. E incompreensivelmente grande e imensamente grande são
termos praticamente equivalentes. Mas além disso, o argumento
cosmológico demonstra que Deus é não apenas construtor, mas sim
criador. E a criação implica a possessão de um poder infinito. Não só
devido ao fato de que a diferença entre a não existência e a existência é
infinita, mas sim devido ao fato de que na Escritura a criação é sempre
descrita como a peculiar obra do Deus infinito. Até onde sabemos, todo
poder das criaturas está limitado à ação própria, ou ao controle mais ou
menos limitado do que já existe.
O que já se disse pode ser uma resposta suficiente à objeção de que
enquanto que o desígnio demonstra inteligência, que entretanto esta
inteligência pode estar na própria matéria, ou na natureza (uma vis
insita), como na alma de mundo. Estes pontos, tal como geralmente se
apresentam, concernem mais propriamente à relação de Deus com o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 321
mundo que a Sua existência. Envolvem a admissão da existência de uma
inteligência em algum lugar, adequada para explicar todos os fenômenos
do universo. Envolvem, portanto, a negação de que estes fenômenos
tenham que ser atribuídos quer ao acaso, ou à ação das meras leis físicas.
Não se trata de onde esteja situada esta inteligência. Seja onde for que
esteja, deve ser uma pessoa, e não meramente uma força carente de
inteligência, agindo segundo uma lei necessária. Porque as evidências de
ação voluntária e benevolente são tão claras como as da inteligência. E
as considerações já apresentadas demonstram que este Ser voluntário e
inteligente tem que ser extramundano; conclusão que é feita ainda mais
evidente por nossa relação com Ele como responsáveis e dependentes.
C. Objeções miscelâneas.
Órgãos inúteis.
2. Uma segunda objeção de um tipo muito similar é a que se baseia
no fato de que encontramos membros em corpos organizados para os que
não têm uso. Por exemplo, os homens têm mamas; a baleia tem dentes
que nunca se desenvolvem e que o animal não necessita; os animais têm
ossos que nunca empregam; as aves e os crocodilos têm seus crânios
constituídos por ossos separados, como os animais vivíparos, embora em
seu caso não parece haver utilidade em tal disposição. Até o Mestre
Owen insiste nesta objeção. Em sua obra “Limbs,” 11 ele diz, “penso que
será óbvio que o princípio de adaptação final falha em satisfazer todas as
condições do problema. Que todo segmento e quase todo osso que está
presente na mão e braço humano devia existir na barbatana da baleia,”
onde eles não são necessitados, não parece consistentes com o princípio.
Novamente, em outro lugar, ele diz, 12 “O crânio do pássaro, que é
composto no adulto de um osso único, é ossificado do mesmo número de
pontos como no embrião humano, sem a possibilidade de um propósito
semelhante sendo auxiliado assim, no desembaraço do pintinho da
concha do ovo fraturado . . . . Estes, e centenas de tais fatos forçam o
anatomista pensativo a insuficiência da hipótese teleológica.”
A respeito disto se pode observar: (1) Que esta objeção só aparece
nos organismos individuais de plantas ou animais, enquanto que as
11
Página 39.
12
Homologies, p. 73.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 323
evidências de desígnio encontram-se espalhadas por todo o universo. (2)
Esta objeção se funda também em nossa ignorância. O argumento é que
porquanto não podemos ver a razão de alguma disposição, não existe tal
razão. (3) Adota a postura mais baixa da utilidade, isto é, a que
contempla as necessidades imediatas do organismo individual. Coisas
que não se precisam para suas necessidades podem ter um fim muito
mais elevado. Num grande edifício a funcionalidade não é o único fim
que se contempla; estão a simetria e a unidade, fins estéticos de tanto
valor como o mero conforto ou conveniência. Os cientistas
demonstraram que todos os animais são, em sua estrutura, só
modificações de quatro formas típicas. Estas formas se preservam em
todos os gêneros e espécies incluídos sob estas classes gerais. Por isso, a
presença destes rasgos característicos do tipo, inclusive quando o
indivíduo não os necessite, serve para indicar a unidade do plano sobre o
qual está edificado todo o reino animal. Temos que lembrar que o que
não vemos não pode refutar a realidade do que vemos.
O instinto.
3. Uma terceira objeção é a derivada em algumas ocasiões com base
nas operações do instinto. O instinto, segundo o doutor Reid, é «um
impulso natural e cego a executar certas ações, sem nenhum fim à vista,
sem deliberação, e com muita frequência sem concepção alguma do que
fazemos». 13 O doutor Whately diz também: «Um instinto é uma
tendência cega num modo de ação independente de nenhuma
consideração por parte do agente a respeito do fim ao que leva a ação».
Paley o define como «uma propensão anterior à experiência e
independente de instrução alguma». 14 O argumento é que como «um
impulso cego» que não contempla fim algum efetua todas as
maravilhosas funções que vemos nas obras dos animais irracionais,
13
Active Powers; III, I. 2 vol. IV, pág. 48; edição do Charlestown, 1815.
14
Teologia Natural, cap. XVIII.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 324
algumas similares funções na natureza não podem demonstrar
inteligência no autor da natureza. A resposta a este argumento é:
1. Que se baseia numa errônea definição de instinto. Não se trata de
um impulso cego. É aquela medida de inteligência dada aos animais e
que os capacita para o sustento de suas vidas, para continuar sua raça, e
para responder às necessidades de seu ser. Dentro de certos limites, esta
forma de inteligência, tanto no homem como nos animais irracionais, age
cegamente. O impulso que leva os jovens de todos os animais para
buscar seu alimento de uma maneira apropriada e no lugar apropriado, é
indubitavelmente cego. O mesmo é provavelmente o caso do impulso
que leva a muitos animais a buscar provisão durante o verão para as
necessidades do inverno. Tampouco se pode supor que a abelha
construiu sempre e em todo lugar suas celas seguindo os mais ajustados
princípios matemáticos conduzida por uma compreensão inteligente
destes princípios. Estas operações, que são executadas sem instruções, e
sempre de idade em idade da mesma maneira, indicam uma condução
que pode ser chamada cega no sentido de que os que se encontram baixo
sua influência não traçam o plano com base no que agem, embora
possam conhecer o fim proposto. Mas a inteligência dos animais vai
além destes estreitos limites. O castor não só constrói seus diques
segundo a natureza da localidade e a força da corrente em que convoca
sua moradia, mas o vemos constantemente, assim como a outros animais,
variando seu modo de operação para confrontar emergências especiais.
Por isso, o instinto, como designam o princípio que controla a ação dos
animais irracionais, não é cego, mas sim inteligente. Admite a
contemplação de um fim, e a seleção e aplicação dos meios apropriados
para seu cumprimento. Assim, inclusive admitindo que a inteligência
manifestada na natureza é da mesma ordem que a manifestada pelos
animais, entretanto a diferença em grau é infinita.
2. Entretanto, nenhuma medida de intelecto do grau ou do caráter
do instinto é suficiente para dar conta dos fenômenos do universo. O
instinto tem que ver com as necessidades de um organismo individual.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 325
Mas, quem adapta os órgãos de um animal a seus instintos? Quem adapta
a natureza exterior, o ar, a luz, o calor, a água, os alimentos, etc., etc., a
suas necessidades? Que relação tem o instinto com o universo estelar?
3. Além disso, estes mesmos instintos estão entre os fenômenos que
devem ser explicados. Se se trata de impulsos cegos, podem ser
explicados, em toda sua variedade e em toda sua acomodação à natureza,
às necessidades dos animais, por um impulso cego impregnando todas as
coisas? O fato é que a adaptação da natureza externa aos instintos das
diferentes classes de animais, e de seus instintos à natureza externa,
oferece uma das mais convincentes provas de um intelecto exterior a
ambas, e ordenando um com relação ao outro.
4. Deve-se lembrar, embora este tema pertença a um argumento
separado, que a alma do homem, com todos os seus maravilhosos
poderes e capacidades, intelectuais, morais e religiosas, é um dos fatos
que devem ser explicados. Remontar a existência da alma do homem a
«um impulso cego» é supor que o efeito transcende à causa para além de
toda medida, o que é o mesmo que supor um efeito sem causa.
5. Todas estas objeções dão por suposta a existência eterna da
matéria, e a eternidade das forças físicas. Porquanto existem, devem ter
existido desde a eternidade, ou ter tido um princípio. Se tiveram um
princípio, devem ter tido uma causa externa a elas mesmas. Esta causa
não pode ser uma não entidade. Tem que ser uma substância existente
em si mesma, eterna, possuindo a inteligência, o poder, a vontade e a
benevolência adequada para dar conta do universo e de tudo o que nele
se contém. Esta é, a causa do universo tem que ser um Deus pessoal.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 326
§ 5. O argumento moral ou antropológico
A. Natureza do argumento.
Ateísmo
O ateísmo não pede qualquer discussão separada. É em si mesmo
puramente negativo. Não declara nada. Simplesmente nega o que o
Teísmo afirma. A prova do Teísmo é, portanto, a refutação do Ateísmo.
O ateu é, entretanto, um termo de repreensão. Poucos homens estão
dispostos a chamar-se a si mesmos, ou permitir que outros os chamem
por esse nome. Hume, sabemo-lo, ressentiu-se disto. Consequentemente,
aqueles que são realmente ateus, de acordo com o significado
etimológico e comum que a palavra recebeu, repudiam o termo.
Reivindicam ser partidários de Deus, embora atribuam àquela palavra
um significado que é completamente sem autorização para uso.
Assim Helvetius 15 diz: “Não existe nenhum homem de
entendimento que não admita um princípio ativo na natureza; portanto
não existe nenhum ateu. Ele não é um ateu que diz que o movimento é
Deus; porque de fato o movimento é incompreensível, como não temos
nenhuma ideia clara disto, porque ele só se manifesta propriamente por
seus efeitos, e por isso todas as coisas são apresentadas no universo.
Cousin 16 diz: “O Ateísmo é impossível, porque a existência de Deus é
15
“De l’Homme.” Works, edit. Paris, 1793, vol. iii. p.221, note.
16
Introduction to the General History of Philosophy, vol. i. p. 169.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 336
implicada em toda afirmação. Se um homem crê que ele existe, deve crer
no poder do pensamento, e isto é Deus.” De certa forma Herbert Spencer
reivindica ser religioso. Ele não se opõe à religião, mas sim aos dogmas.
Ele reconhece o poder inescrutável. Reduz todo nosso conhecimento aos
dois fatos, “Aquela força é,” e “A Força é persistente.” A Força,
entretanto, é perfeitamente inescrutável e incompreensível. Neste
principio ele tenta reconciliar a religião e a ciência. O último princípio da
religião, aquele em que todas as religiões concordam, é que existe um
poder inescrutável que é a causa de todas as coisas. Isto também é o
último princípio da ciência. Portanto, têm uma área de concordância.
Nada pode ser predito desta causa; nem consciência; nem inteligência;
nem vontade; só que é uma Força. Isto é todo o Deus que a nova
filosofia nos deixa. 17
A linguagem, entretanto, tem seu direitos. O significado das
palavras não pode ser mudado ao bel-prazer de indivíduos. A palavra
Deus, e seus equivalentes em outras línguas, tem um significado
definido, de que nenhum homem está em liberdade de partir. Se a pessoa
diz que crê em Deus, diz que crê na existência de um ser pessoal,
autoconsciente. Ele não crê em Deus, ele só crê no “movimento,” na
“força,” no “pensamento,” na “ordem moral,” no “incompreensível,” ou
em qualquer outra abstração.
Os teístas também têm seu direitos. O teísmo é uma forma definida
de crença. Pela expressão dessa crença, a palavra Teísmo é um termo
estabelecido e universalmente reconhecido. Temos o direito de reter isto;
e nós temos o direito de designar como Ateísmo, todas as formas de
doutrina que envolvem a negação do que é universalmente entendido
como Teísmo.
17
See First Principles of a New System of Philosophy, by Herbert Spencer.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 337
É possível o Ateísmo?
§ 3. Hilozoísmo
18
De Natura Deorum, ii. 22, p. 1116, edit. Leipzig, 1850.
19
Véase Rixner, Geschichte der Philosophie, vol. I, sec. 120.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 342
§ 4. Materialismo.
A. A doutrina de Epicuro.
Epicuro ensinava: (1) Que como ex nihilo nihil fit (do nada, nada
produz-se), o universo sempre existiu, e tem que seguir existindo para
sempre. (2) Que o espaço e o número de corpos que contém, são
infinitos. (3) Estes corpos são de duas classes, simples e compostos. Os
corpos simples são átomos, possuindo forma, magnitude e peso. São
indivisíveis, inalteráveis e indestrutíveis. Esta é também a doutrina da
ciência moderna. * Diz Faraday: 20 «Uma partícula de oxigênio é sempre
uma partícula de oxigênio — nada pode desgastá-la. Se ela entra em
combinação, e desaparece como oxigênio; se passa através de mil
combinações, animais, vegetais e minerais — se jaz oculta durante mil
anos, e logo se desprende, continua sendo oxigênio com suas primeiras
qualidades, nem mais nem menos. Tem toda sua força original, e só esta.
A quantidade de força que desprendeu ao ocultar deve ser empregada
outra vez em direção inversa quando é libertada». (4) Estes átomos têm
suas forças peculiares, distintas de sua mera gravidade. Esta é também a
doutrina da ciência moderna. Inclui-se no que diz Faraday na citação
recém-mencionada. «As moléculas», dizem os cientistas atuais, «foram
*
Isto é, da «ciência moderna» do século passado. Assim se creu, até que se descobriu que os
chamados átomos, as unidades menores das espécies químicas, são solucionáveis em partículas
pequenas componentes das mesmas, como prótons, elétrons, nêutrons, as quais estão compostas de
partículas ainda menores, as quais estão constituídas de «energia empacotada», existindo uma relação
de equivalência entre a matéria e a energia expressa na equação do Einstein: Energia = massa x o
quadrado da velocidade da luz (E = mc2). Entretanto, os raciocínios dados por Faraday no parágrafo
que segue são corretos em tudo o que se refere a forças químicas. (N. do T.)
20
Veja-se Youngman: Conservation and Correlation of Forces, p. 372.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 343
dotadas com forças que dão origem às várias qualidades químicas, e
estas nunca mudam nem em sua natureza nem em sua quantidade». 21 (5)
Epicuro ensinava que a quantidade de matéria, e naturalmente a
quantidade de força no mundo, é sempre a mesma. Não pode nem
aumentar nem diminuir. (6) Os átomos, cujo número é infinito, movem-
se pelo espaço com uma incrível velocidade submetidos às leis físicas
necessárias. (7) Foi pela combinação destas átomos sob a influência da
gravidade e de outras forças físicas que se formou o universo, e que se
veio a ser um cosmos. Isto se parece muito à hipótese nebular. (8) A
alma é material; ou, em outras palavras, todos os fenômenos mentais
devem-se às propriedades da matéria. Isto também se proclama como os
últimos resultados da ciência moderna. (9) A alma, naturalmente, deixa
de existir quando o corpo morre; isto é, assim como a morte é a cessação
das funções vitais do indivíduo, também o é de suas funções intelectivas.
Os átomos dos quais está constituído o homem, com as forças que lhes
pertencem, seguem existindo, e podem entrar na composição de outros
homens. Mas o homem, como indivíduo, deixa de existir. Esta, quase
palavra por palavra, é a doutrina confessa de muitos físicos da
atualidade. (10) A sensação é para nós a única fonte de conhecimento.
Ao lembrar sensações anteriores, formamos ideias, e pela combinação
das ideias formamos juízos. Quase as mesmas palavras de Hume, e a
doutrina da totalidade da escola que ele representa. (11) Como Epicuro
mantinha que nada é imaterial, exceto o vazio, necessariamente inclui
todas as formas de existência sob o cabeçalho da matéria. Como não há
mente nem espírito, não há Deus nem lei moral. A virtude é só uma
prudente consideração pela felicidade. Em certo sentido, admitia a
existência de deuses, mas eram seres corpóreos que não se misturavam
nos assuntos dos homens. 22
21
Croonian Lectures on Matter and Force. Dadas no Real Colégio de Médicos em 1868. Por Henry
Bruce Jones, A.M., M.D., F.R.S., Londres 1868, pág. 17.
22
Rixner’s Geschichte der Philosophie, I. 303-318. Ritter’s History of Philosophy, tradução de A. J.
W. Morrison, III. 399-447.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 344
23
Um recente escritor alemão dizia, na Encyklopadie de Herzog, no
artigo «Materialismus», que apesar do grande progresso da ciência
moderna, os Materialistas de nossos dias não avançaram um só passo
com relação ao sistema de Epicuro. Aquele sistema, provavelmente por
causa da influência dominante da mais elevada filosofia de Platão e do
Aristóteles, não exerceu muita influência sobre as mentes dos antigos,
nem no progresso e pensamento humano. Não foi até os tempos
modernos que o Materialismo obteve nenhum grande poder como teoria
filosófica.
23
F. Fabri.
24
Leviathan, chap. I.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 345
O grande e fundamental feito da mente é a sensação, que não é nada
mais ou menos que o efeito de objetos materiais ao redor de nós,
mostrada por meio de pressão ou me choque naquela organização
material que nós designamos como a mente.” 25 De maneira que parece
que Hobbes antecipou o grande resultado da ciência moderna, que toda
força pode ser resolvida em movimento.
Locke (1632-1704)
A introdução do Materialismo na Inglaterra durante o século
passado * é atribuída geralmente à influência da filosofia de Locke. O
próprio Locke estava longe de ser um Materialista, e os defensores de
seu sistema insistem denodadamente em que seus princípios não têm
uma tendência legítima para apagar a distinção entre mente e matéria.
Mas Locke, ao combater a doutrina das «ideias inatas» no sentido de
verdades abstratas, pareceu negar que a mente estava constituída de tal
maneira para captar a verdade intuitivamente, e para além do campo da
experiência. Ele comparava a mente com uma tábula rasa. Esta figura
sugere que todo nosso conhecimento procede de fora, assim como o
tablete para escrever não contribui em nada ao que se escreve sobre ele.
Ele definiu as ideias como «tudo aquilo com que a mente está
imediatamente ocupada quando pensamos».
El origem destas ideias, disse ele, era a sensação e a reflexão. Se
por reflexão significava a observação dos fenômenos da mente, sua
teoria é uma coisa. Se significava o processo de lembrar, combinar e
analisar, e de elaborar de outras maneiras as Impressões obtidas desde
fora, é outra teoria distinta. É provável que o mesmo Locke, e certamente
muitos de seus seguidores, adotassem esta segunda postura; e assim, as
duas fontes de ideias, ou de conhecimento, ficam reduzidas a uma, e esta
uma é a sensação. Mas como a sensação nos pode dar conhecimento só
25
Morell’s History of Modern Philosophy, New York, 1848, pp. 71, 72.
*
Isto é, o Século XVIII, porquanto esta obra se escreveu no Dezenove. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 346
do exterior e material, esta teoria parecia não deixar lugar para as ideias
mais elevadas das verdades eternas e necessárias. Locke tenta dar conta
de nossas ideias de tempo, espaço, infinitude, causa, e inclusive de bem e
mal, com base na observação, isto é, de observação do exterior, ou de
impressões feitas sobre os sentidos. Uma crítica que se faz usualmente à
grande obra de Locke é que nela não distingue entre a ocasião e a fonte
de nossas ideias. Nossa experiência nos dá a ocasião, e pode ser que a
condição necessária, para despertar a mente à percepção não só do fato
experimentado, mas também da apreensão intuitiva da verdade universal
e necessária que este fato envolve. Se não víssemos efeitos produzidos
ao redor de nós, e não exercêssemos eficiência, poderíamos nunca ter a
ideia de causalidade; mas a convicção que todo efeito deve ter uma causa
é um juízo intuitivo, que a experiência não pode produzir nem limitar.
Mas não é pela tendência observada de alguns fatos a produzir felicidade
e de outros a produzir miséria que obtemos a ideia da distinção essencial
entre o bem e o mal, mas sim da própria constituição da mente. Embora
Locke e muitos de seus discípulos ficaram satisfeitos com seu método de
explicar nossas ideias de Deus, de espírito, e das verdades morais e
religiosas, entretanto é coisa certa que muitos de seus seguidores se
sentiram justificados para descartá-las com base nos princípios por ele
enunciados.
Hartley (1705-1757)
Hartley era médico e fisiologista. A fisiologia e a psicologia têm
relações íntimas. É possivelmente natural que aqueles que se dedicam
especialmente aos antigos, deviam fazer pouco dos posteriores. É a
característica marcante de nossa época, na medida em que os físicos
estão preocupados, que ele tenta fundir completamente a psicologia na
fisiologia. Hartley adotou os princípios de Locke, tentando mostrar como
é que as coisas externas produzem sensações e pensamento. Fez isto com
sua teoria de vibrações. «Os objetos do mundo externo afetam de algum
modo os extremos dos nervos, que se estendem do cérebro, como centro,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 347
a cada parte do corpo. Esta impressão produz uma vibração, que é
continuada ao longo do nervo mediante a atividade de um éter elástico,
até que alcança o cérebro, onde constitui o fenômeno que denominamos
sensação. Quando uma sensação foi experimentada várias vezes, o
movimento vibratório do qual surge adquire a tendência a repetir-se
espontaneamente, inclusive quando o objeto externo não está presente.
Estas repetições ou relíquias de sensações são ideias, que por sua vez
possuem a propriedade de lembrar umas a outras mediante a associação
mútua entre elas». 26
Esta doutrina de associação de ideias é a parte mais importante de
seu sistema. Insiste principalmente na lei seguinte: “Às vezes uma ideia
está associada com outra por meio de uma terceira; mas no processo de
tempo esta ideia intermediária pode ser desconsiderada, e ainda a
conexão entre a primeira e a terceira pode, contudo, permanecer. Desta
maneira a ideia de prazer, que é tão indissoluvelmente conectada com
dinheiro, surge das conveniências que pode obter, enquanto na mente do
avarento as conveniências são perdidas de vista, e a própria posse do
dinheiro propriamente é considerada como contendo o prazer inteiro.
Deste modo Hartley responde por quase todas as emoções e paixões da
matéria humana. Os afetos domésticos, por exemplo, surgem da
transferência do prazer derivado desde generosidade maternal até o pai
propriamente; os afetos sociais e patrióticos de transferir os prazeres da
sociedade para o país que dispõe deles; de certa forma, também, os
afetos morais e religiosos, o amor da virtude e o amor de Deus, surgem
dos prazeres conectados à conduta virtuosa e piedosa, sendo transferida
para a lei de ação judicial, ou para o Legislador supremo, de quem estes
prazeres emanaram.” 27 A conexão desta teoria com o materialismo é
óbvia. Se as vibrações do cérebro constituírem sensação, e se as
lembranças, ou repetições espontâneas destas vibrações constituem
26
Observations on Man, cap. I, sec. 2, y Morell, History of Modern Philosophy, New York, 1848,
pág. 98.
27
Observations on Man, chap. i. sect. 2, and Morell, p. 98.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 348
pensamento e sentimento, então todas as leis mentais e morais são meros
afetos de nosso organismo material. É óbvio que, de acordo com esta
teoria, não existe mais liberdade em volição que em sensação. A antiga é
um modo, ou lembrança da posterior. Embora esta propensão de seu
sistema fosse inegável, e embora seus sucessores tirassem estas
conclusões de seus princípios, o próprio Hartley não era um materialista.
Era um homem muito religioso. Não é de todo incomum que um homem
mantenha uma teoria especulativa incompatível com sua fé.
Morell 28 cita a crítica seguinte da doutrina de Hartley no
“Edinburgh Review”: “podendo haver,” diz o revisor, “poucas agitações
no cérebro, por qualquer coisa que conhecemos, e lá podemos até ser
sacudidos de um tipo diferente acompanhando todo ato de pensamento
ou percepção; — mas que as próprias agitações são o pensamento ou
percepção, temos que admitir que declaramos absolutamente impossível
compreender o que significa a afirmação. As agitações são certos
batimentos, vibrações, ou estimulantes, numa substância branca, meio
fluida como pudim, que nós poderíamos ver possivelmente, ou sintamos,
se tivéssemos olhos e dedos suficientemente pequenos ou delgados para
o ofício. Mas o que devíamos ver ou sentir, na hipótese que nós
pudéssemos descobrir, por nossos sentidos, tudo que sucedeu realmente
no cérebro?
Devíamos ver as partículas desta modulação de substância mudar
seu lugar um pouco, reposicionar um pouco acima ou fora do ar, à direita
ou à esquerda, ir ao redor em ziguezague, ou em algum outro curso ou
direção. Isto é tudo que nós podíamos ver, se a conjetura do Dr. Hartley
fosse provada por observação atual; porque isto é tudo que existe em
movimento, de acordo com nossa concepção disto, e tudo que queremos
dizer quando dizemos que há movimento em qualquer substância. É
inteligível, então, dizer, que este movimento, o conjunto do que vemos e
compreendemos, é pensamento e sentimento, e aquele pensamento e
28
Morell, p. 97.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 349
sentimento existirão, onde quer que podemos fazer um movimento
semelhante numa substância semelhante? — Em nossa apreensão
humilde a proposição não é tanta falsa, como totalmente sem sentido e
incompreensível.” 29
Se a história repetir a si mesma, então faz filosofia. O que disse a
revista «Edinburgh Review» de Hartley faz quase setenta anos, * di-lo o
Professor Tyndall dos materialistas de nossos dias: «A passagem da
física do cérebro aos correspondentes atos da consciência é impensável.
Concedendo que um pensamento determinado e uma determinada ação
molecular no cérebro ocorrem simultaneamente, não possuímos o órgão
intelectual, nem aparentemente nenhum rudimento de órgão, que nos
capacite a passar mediante um processo de raciocínio, de um fenômeno
ao outro. Aparecem juntos, mas não sabemos por quê. Se nossas mentes
e sentidos fossem tão expandidos, fortalecidos e iluminados que
fôssemos capacitados para ver e sentir as próprias moléculas do cérebro;
se fôssemos capazes de seguir todos os seus movimentos, grupamentos e
descargas elétricas, se as houver; e se estivéssemos intimamente
familiarizados com os correspondentes estados de pensamento e
sentimento, provavelmente seguiríamos estando igualmente longe da
solução do problema. Como se relacionam estes processos físicos com os
atos da consciência? O abismo entre as duas classes de fenômenos
seguiria ainda igualmente infranqueável intelectualmente. Associemos,
por exemplo, a consciência do amor com um movimento em espiral à
direita das moléculas do cérebro, e a consciência do ódio com um
movimento em espiral à esquerda. Saberíamos, então, que quando
amamos o movimento vai numa direção, e que quando odiamos o
movimento vai na outra, mas o «por quê» seguiria sem resposta. Ao
afirmar que o crescimento do corpo é mecânico, e que o pensamento, tal
29
Edinburgh Review, Oct. 1806, p. 157.
*
Refere-se a uma crítica da mencionada revista, aparecida no número da Edinburgh Review de
outubro de 1806, pág. 157, à teoria de Hartley a respeito da consciência como epifenômeno do
cérebro. Lembre-se que esta Teologia Sistemática foi publicada pela primeira vez em 1871. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 350
como nós o exercemos, tem sua correlação nos processos físicos do
cérebro, parece-me que a posição do «Materialista» chega até onde a
posição é sustentável. Creio que o Materialista poderá finalmente manter
esta posição contra todos os ataques; mas não creio, tal como está
atualmente constituída a mente humana, que possa ir para além disto.
Não creio que tenha direito a dizer que seu grupamento molecular e que
seus movimentos moleculares expliquem tudo. Na realidade, não
explicam nada». 30
Priestley (1733-1804).
Priestley deve sua reputação permanente a seus achados
importantes no departamento de ciência física. Ele era, entretanto,
proeminente durante sua vida para a parte que ele tomou em
controvérsias filosóficas e teológicas. Dedicadas à ciência, os sentidos
foram para ele as grandes origens de conhecimento; todos os outros,
exceto a revelação sobrenatural que ele admitiu, ele duvidou. Adotou
com entusiasmo a teoria de Hartley que decompõe pensamento e
sentimento em vibrações do cérebro. Hartley, ele disse, fez mais para a
doutrina da mente que Newton realizou para a teoria do universo
material. Ele não hesitou em declarar-se a si mesmo materialista.
“Priestley,” diz Morell, 31 “descansou a verdade de materialismo em duas
deduções. A primeiras foi, que pensamento e sensação são
essencialmente a mesma coisa — que toda variedade de nossas ideias,
embora possam tornar-se abstratas e refinadas, são, não obstante, não
mais que modificações da faculdade sensorial. . . . . A segunda dedução
foi, que toda sensação, e, consequentemente, todo pensamento, surge dos
afetos de nossa organização material e, portanto, consiste completamente
no movimento das partículas materiais dos quais os nervos e o cérebro
são compostos.” Era um determinista, e em moralidade um utilitário.
30
«Conferencia perante a Associação Britânica», Athenaeum, 26 de Agosto de 1868, Citado em
Hulsean Lectures de Perowne, 1868 - Apêndice, nota A.
31
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Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 351
Crendo, entretanto, em Deus e na revelação divina, admitiu um estado
futuro de existência. Como a Bíblia ensina a doutrina da ressurreição do
corpo, Priestley creu que aquele homem seria restaurado à existência
consciente quando aquele evento sucedesse. Suas obras principais a
respeito deste assunto são: “Examination of Reid, Beattie, and Oswald,”
“Doctrine of Philosophical Necessity Explained,” “Disquisitions relating
to Matter and Spirit,” e “Hartley's Theory of the Human Mind, with
Essays relating to the subject of it.”
Hume é considerado como seu mestre pelos físicos mais adiantados
da escola científica moderna, na medida em que seus princípios e
método gerais de filosofar são pertinentes. Não era nem um Materialista
nem um Idealista, mas bastante Niilista, como seu grande objetivo era
mostrar que nenhuma segurança podia ser alcançada em qualquer
departamento do conhecimento. Ele não declarou nada e negou tudo. Tal
conhecimento como nós vimos vem da sensação, portanto, manteve que
como não temos nenhuma sensação de eficiência, podemos não ter
nenhuma ideia disto, e nenhuma evidência de sua realidade. Não é que
alguém produz um efeito, mas sim simplesmente que uniformemente
precede isto. Consequentemente, qualquer coisa pode ser a causa de
qualquer coisa. Novamente, como não temos nenhuma percepção pelos
sentidos de substância, não pode haver nenhuma assim. Isto se aplica à
mente como também à matéria. Nada existe para nós, senão nossos
pensamentos e sentimentos. Somos “nada além de um pacote ou coleção
de percepções diferentes, que se sucedem uma à outra com uma rapidez
inconcebível, e estão em fluxo e movimento eternos.”
32
F. Fabri, na Real-Encyclopädíe de Herzog, art. «Materialismus».
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 353
moralidade, nem existência futura, nem Deus. Quando estes princípios
chegaram a penetrar na mente popular, então veio o fim.
D. O positivismo.
33
New York, 1855.
34
Vol. I. p. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 355
semelhança ou sucessão sendo tudo que nós podemos fingir conhecer; e
tudo que nós precisamos conhecer; para esta percepção compreende todo
conhecimento que consiste em elucidar algo por qualquer outra coisa, —
em agora explicar, e agora prevendo certos fenômenos, por meio da
semelhança ou sequência de outros fenômenos.” 35 “Se nós
considerarmos estas funções [da mente] sob seu aspecto estático,— isto
é, se nós consideramos as condições sob as quais eles existem, —
devemos determinar as circunstâncias orgânicas do caso, que a
investigação envolve com anatomia e fisiologia. Se nós olhamos para o
aspecto dinâmico, temos que estudar simplesmente o exercício e
resultados dos poderes intelectuais da raça humana, que é nem mais nem
menos que o objeto geral da “Filosofia Positiva.” Vol. I. p. 11. 36
Comte é obrigado a usar a palavra “poder,” e falar de seu exercício,
embora toda sua filosofia nega a existência de qualquer coisa como
eficiência. As leis que determinam eventos são nada além de fatos de
sequência uniforme. De acordo com a passagem antes citada, um
departamento de psicologia (a estática) pertence à anatomia e à
fisiologia; o outro (o dinâmico) à sequência observada de certos fatos
chamado intelectual. A sequência é invariável. A intervenção da vontade
fica necessariamente excluída, porque a filosofia, ao menos o
Positivismo, não é nada a não ser que assegure a capacidade da previsão.
Mas os atos livres não podem ser previstos pelo homem. Por isso diz
Comte: «O arbitrário nunca pode ser excluído se os fenômenos políticos
se atribuem à vontade, divina ou humana, em lugar de ficar conectados
com leis naturais invariáveis». 37 «Se os acontecimentos sociais ficassem
sempre expostos a ser perturbados pela intervenção acidental do
legislador, humano ou divino, não seria possível nenhuma previsão
científica dos mesmos». 38
35
Philosophie Positive, vol. II. p. 515.
36
Vol. I. p. 11.
37
Philosophie Positive, vol. II, p. 47.
38
Ibid., pág. 73.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 356
Os exercícios intelectuais sendo considerados como uma função do
cérebro, Comte diz: “A teoria positiva das funções intelectuais e afetivas
é, portanto, daí em diante invariavelmente considerada como consistindo
no estudo, tanto racionais como experimentais, dos vários fenômenos de
sensibilidade interna, que são adaptados para os gânglios cerebrais,
separadamente de seus aparelhos externos. É, portanto, simplesmente
uma prolongação da fisiologia animal, corretamente chamados, quando é
estendido para incluir os fundamentais e últimos atributos.” 39
Comte, que era um ardente frenólogo, baseou um dos argumentos
de seu sistema na organização do cérebro; mas no que dependia
principalmente era na lei do desenvolvimento humano. Não admitia
nenhuma diferença essencial entre o homem e os animais irracionais. A
superioridade do homem reside só no grau de sua inteligência, que se
deve à sua melhor organização física. Segundo Comte, toda a raça
humana, e toda pessoa individual, passa através de três etapas distintas,
as quais denomina a teológica, a metafísica, e a positiva. Durante a
primeira etapa, todos os acontecimentos são atribuídos a causas
sobrenaturais. Na primeira parte desta etapa de seu progresso, os homens
eram fetichistas; logo gradualmente se tornaram politeístas, e
monoteístas. Isto tenta demonstrá-lo historicamente com relação aos
gregos, aos romanos e aos moradores da Europa Ocidental. Assim como
os homens saíram do fetichismo, também se desprenderam das formas de
crença politeísta e monoteísta. Isto é, deixaram de atribuir os fenômenos
à atividade de seres sobrenaturais.
Durante a etapa metafísica, os fenômenos são atribuídos a causas
invisíveis, a forças ou poderes ocultos, isto é, a algo que os sentidos não
podem detectar. Isto também se desvaneceu, e os homens chegaram a
reconhecer a grande realidade de que não há agentes espirituais no
universo, nem causas eficientes, nada senão acontecimentos que devem
ser ordenados de acordo com as leis de sequência e de semelhança. A
39
See Prof. Porter’s Human Intellect, p. 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 357
ordem dos acontecimentos é invariável e necessária. O que foi no
passado, será no futuro. Assim como esta é a lei do desenvolvimento da
raça no coletivo, assim o é do homem individual. Cada um, em seu
progresso da infância à idade adulta, passa através destas várias etapas, a
teológica, a metafísica e a positiva. Primeiro cremos em agentes
sobrenaturais (bruxas, fantasmas, almas, anjos, etc.); logo, em causas
ocultas; e logo só em fatos discernidos pelos sentidos. A história da raça
e a experiência do homem individual são assim apresentados como a
ampla e segura base da Filosofia Positiva.
Observações.
1. Considerando que os proponentes desta filosofia são um mero
punhado; considerando que novecentos e noventa e nove milhões do um
bilhão de nossa raça seguem crendo em Deus, é uma hipótese, antes,
violenta a de que a humanidade tenha chegado à etapa do Positivismo.
Pode-se admitir sem discussão que o progresso da ciência e do
cristianismo eliminaram a alquimia, a astrologia, a feitiçaria e a
necromancia de seções ilustradas de nossa raça, mas dificilmente se tiver
tido um efeito detectável em eliminar a crença na mente como distinta da
matéria, ou em causas eficientes, ou em Deus. Admitindo, por isso, que o
princípio do argumento seja correto, a conclusão a que se chega fica
refutada pelos fatos.
2. Entretanto, o mesmo princípio é uma hipótese carente de base.
Não houve um tal desenvolvimento da raça, nem há um tal
desenvolvimento do homem individual como supõe o argumento. E é
ainda muito menos certo o que mantém Comte, que estes vários métodos
de tratar com os fenômenos são antagonistas e mutuamente exclusivos;
que se cremos em agentes espirituais, não podemos crer em causas
invisíveis, metafísicas; e que se cremos no último não podemos crer no
primeiro. O fato é que a maior parte da humanidade, educada ou não
educada, crê em ambas as coisas. Creem em Deus e na mente, assim
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 358
como em causas invisíveis, como a eletricidade, o magnetismo e outras
forças físicas, que, no sentido que lhe dá Comte no fim, são metafísicas.
Com relação a esta pretendida lei de progresso, o Professor Huxley,
que está tão completamente emancipado das ligaduras da autoridade
como o pode estar qualquer cientista vivo hoje, diz, em primeiro lugar,
que Comte se contradiz quanto a este princípio fundamental. Como
prova cita uma longa passagem da Philosophie Positive, em que Comte
ensina: «(a) De fato, o intelecto humano não esteve invariavelmente
submetido à lei dos três estados, e, por isso, a necessidade da lei não
pode ser demonstrável a priori. (b) Muito de nosso conhecimento de
todos os tipos não passou pelos três estados, e, mais particularmente,
como Comte toma cuidado em observar, não através do primeiro. (c) O
estado positivo coexistiu mais ou menos com o teológico desde o
princípio da consciência humana. E, para completar a série de
contradições, a asserção de que os três estados são "essencialmente
diferentes e inclusive opostos entre si de forma radical" é contradita na
mesma página, um pouco mais abaixo, pela declaração de que "o estado
metafísico não é, no fundo, mais que uma simples modificação geral do
primeiro"». «Os homens de ciência», acrescenta ele, «não têm o hábito
de prestar muita atenção a "leis" enunciadas desta maneira». 40
Depois de mostrar que o homem individual não passa através destes
vários estados, o Professor Huxley prossegue: «O que é certo do
indivíduo é certo também, mutatis mutandis, do desenvolvimento
intelectual da espécie. É absurdo dizer dos homens num estado de
selvageria primitiva que todos os seus conceitos estão num estado
teológico. As nove décimas partes deles são eminentemente realistas, e
tão “positivos” quanto a ignorância e a estreiteza possa levá-los a ser». 41
Além disso, não é verdade que a raça de homens existentes agora na
terra fossem fetichistas em seu estado primitivo, ou que gradualmente
40
Huxley, Lay Sermons, Addresses, etc., Londres, 1870, N.º VIII. «The Scientific Aspects of
Positivism», p. 174, 175.
41
Ibid., pág. 178.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 359
subissem ao politeísmo e ao monoteísmo. O certo é o contrário. Não só a
revelação, mas também toda a história e a tradição se unem em mostrar
que o estado primitivo de nossa raça foi seu estado superior, ao menos
pelo que respeita à religião. O monoteísmo foi a forma mais antiga da
religião entre os homens. Isto foi sucedido pelo culto à natureza e o
panteísmo, e disto ao politeísmo. É um fato histórico que não se chegou
ao monoteísmo por meio de um processo de desenvolvimento. O
monoteísmo foi o primeiro; pereceu gradualmente dentre os homens,
exceto em que foi milagrosamente preservado entre os hebreus, e deles
se difundiu através, ou, antes, na forma, do cristianismo. Não se estende
a nenhum lugar fora da influência, direta ou indireta, da revelação
sobrenatural contida na Bíblia. Este é um fato que os homens científicos
não deveriam passar por alto em suas deduções.
3. Comte fez-se culpado da injustiça de confinar seu estudo a uma
pequena porção das nações da terra, e ademais àquela porção levada sob
a influência do cristianismo. Se a lei que ele queria estabelecer é
universal e necessária, tem que ter agido desde o começo na Índia e na
China assim como na Europa. Os milhões destas regiões não chegaram
ao estado monoteísta, muito menos ao metafísico, e ainda menos ao
estado positivo de desenvolvimento. A Índia em especial dá uma
destacável refutação a esta teoria. Os hindus são uma raça extremamente
intelectual. Sua linguagem e literatura podem comparar-se com os da
Grécia e Roma. Seus filósofos, quase três mil anos atrás, anteciparam os
mais altos resultados dos Schellings e Hegels de nossos dias. Mas de
todas as nações da terra os hindus são os menos materialistas ou
positivos quanto à sua visão da natureza. Para eles, só o sobrenatural ou
espiritual é real. Por isso, os hindus não podem ser sujeitos a esta lei
universal e necessária de desenvolvimento que se supõe como base da
Filosofia Positiva.
4. Naturalmente, é presunçoso e vão tentar por meio de raciocínios
refutar os sentidos dos homens, ou convencê-los de que o que sua
própria natureza lhes ensina que é certo, seja totalmente falso e indigno
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 360
de confiança. Entretanto, Comte não apenas tenta isto, mas sim todo o
seu sistema está baseado na hipótese de que nossa natureza é um engano
e uma mentira. Isto é, baseia-se na hipótese de que as verdades intuitivas
são falsas: É intuitivamente verdadeiro que somos agentes livres. Comte
nega isso. É intuitivamente verdadeiro que há uma diferença específica e
essencial entre o bem e o mal. Isto é negado. É intuitivamente verdadeiro
que todo efeito tem uma causa eficiente. Isto também é negado. É
intuitivamente verdadeiro que há um Deus perante quem os homens são
responsáveis por seu caráter e conduta. Isto também é negado. Se todo o
intelecto e todo o conhecimento jamais possuído por homens e anjos se
concentrou na pessoa de Comte, entretanto teria seguido sendo uma
insensatez da sua parte fundar um sistema implicando a negação de
verdades como estas. O cristão não tem medo de acrescentar algo mais
aqui: É intuitivamente certo, para todos os que têm olhos para ver, que
Jesus Cristo é o Filho de Deus, e que Seu evangelho é sabedoria de Deus
e poder de Deus para salvação, e que é absolutamente impossível que
qualquer teoria oposta a estas intuições divinas seja verdade.
Outra ilustração do caráter presunçoso desta filosofia encontra-se
em seus ensinos a respeito da Sociologia. Cientistas de todos os países
estiveram durante longo tempo laboriosamente dedicados a fazer
observações meteorológicas, e no entanto é tão grande o número e a
complexidade das causas que determinam o estado do tempo, que
ninguém é capaz de predizer como o vento soprará daqui a quarenta e
oito horas, e muito menos daqui a um ano. As causas que determinam a
atividade humana no indivíduo e na sociedade são muito mais complexas
que as que determinam o estado do clima. Entretanto, Comte assume ter
reduzido a Sociologia a uma ciência, com uma certeza matemática.
«Aventurar-me-ei a dizer», é sua confiante declaração, «que a ciência da
Sociologia, embora só estabelecida por este livro, já avança com a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 361
ciência matemática, não em precisão e fecundidade, mas sim em
positividade e racionalidade». 42
42
Philosophie Positive, vol. II, pág. 516.
43
Philosophie Positive, vol. II, págs. 14, 15.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 362
governem a sociedade. Comte confessa sua admiração não pela doutrina
papal, mas sim pela organização papal, que na nova ordem de coisas se
propõe continuar. «A infalibilidade papal», diz ele, 44 «foi um grande
avanço intelectual e social». O Professor Huxley caracteriza
expressivamente o positivismo, a este respeito, como «Catolicismo sem
cristianismo».
A religião não fica excetuada deste submissão absoluta. A Filosofia
Positiva, ao negar a existência da alma e do ser de Deus, não pareceria
deixar lugar à religião. Comte pôs na capa de seu Discours sur
l'Ensamble du Positivisme o anúncio de que seu propósito era
reorganizar a sociedade sans Dieu ni Roi [sem Deus nem Rei]. Não
obstante, como os homens devem ter, como sempre a tiveram, alguma
religião, uma filosofia que aspire a um domínio absoluto sobre todos os
departamentos da vida humana, tem que fazer alguma provisão para esta
necessidade universal de nossa natureza, embora seja imaginária. Comte,
portanto, publicou um catecismo de crenças religiosas e um ritual de
culto religioso. O objeto do culto era o agregado da humanidade
constituído pela absorção das sucessivas gerações humanas. Todo grande
homem tem duas formas de existência: uma consciente antes da morte; a
outra depois da morte, inconsciente, nos corações e intelectos de outros
homens. O deus da Filosofia Positiva, portanto, é o agregado das
memórias de grandes homens. Diz Huxley: «É indubitável que "Dieu"
desapareceu, mas o "Nouveau Grande-Etre Suprême", um gigantesco
fetiche, saiu recém-feito de mãos do próprio Comte, reinando em seu
lugar. Tampouco se ouve já mais de "Roi", mas em seu lugar encontrei
uma organização social minuciosamente estabelecida, que, se jamais
ficasse em prática, exerceria uma autoridade despótica como a que
jamais conheceu sultão algum, nem presbitério Puritano em seus
melhores dias pôde esperar ultrapassar. Enquanto que, pelo que respeita
ao "culte systématique de 1'humanité", eu, em minha cegueira, não podia
44
Ibid., vol. II, pág. 268.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 363
distingui-lo do mais crasso Papismo, com o Sr. Comte na cadeira de São
Pedro, e com os nomes da maior parte dos santos mudados». 45
Entretanto, deve haver duas formas de adoração: uma particular; a
outra, pública. O objeto especial da primeira é a mulher, porquanto ela é
a mais perfeita representante da humanidade. Como «Mãe, estimula
veneração; como esposa, afeto; e como filha, bondade». E a mulher deve
ser adorada para estimular estes sentimentos. A humanidade, ou a
memória dos grandes homens, é o objeto da adoração pública, a respeito
da qual se dão minuciosos detalhes. A nova religião deve ter dez
sacramentos, uma arquitetura própria e uma extensa hierarquia, sob o
controle de um Sumo sacerdote absoluto. Este é o sistema que Comte
chegou a crer que substituiria o evangelho de Jesus Cristo. E já quase se
desvaneceu. Entre os cientistas avançados da Inglaterra dificilmente se
encontra alguém tão mesquinho que lhe renda sua homenagem. 46
45
Lay Sermons, etc., pág. 164.
46
Diz o Professor Huxley: «Durante estes últimos dezesseis anos, foi para mim um periódico motivo
de irritação encontrar o Sr. Comte apresentado como um representante do pensamento científico, e
observar que os escritores cuja filosofia teve sua legítima origem em Hume, ou neles mesmos, eram
etiquetados como "Comtistas" ou "Positivistas" por escritores públicos, inclusive apesar de veementes
protesta em contra. Tem custado muito ao Sr. Mill [John Stuart Mill] desprender-se desta etiqueta; e
contemplo o Sr. Spencer como se contempla a uma boa pessoa batalhando contra a adversidade, ainda
esforçando-se em evitar sua aderência, e disposto a perder a pele e tudo antes que deixar que se lhe
pegue. E meu turno poderia ser logo; é por isso que quando um eminente prelado, o outro dia, deu sua
sanção e autoridade a atual confusão, que aproveitei a oportunidade de reivindicar de passagem a
propriedade de Hume da chamada "Nova Filosofia", e ao mesmo tempo de repudiar o Comtismo pelo
que aqui respeita», Lay Sermons, etc., pág. 165. O equívoco de que se queixa é muito natural, porque
Comte e Hume têm muito em comum aqui: “Ungefähr sagt das der Pfarrer auch Nur mit ein bischen
andern Worten.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 364
E. O materialismo científico
Princípios condutores
Os princípios principais da forma científica moderna do
materialismo são abraçados, ao menos por alguns, que não se
consideram a si mesmos materialistas. Eles, entretanto, adotam a
linguagem do sistema, e declaram princípios que, em seus significados
geralmente aceitos, constituem o que na história de pensamento humano
é conhecido como materialismo.
Os mais importantes destes princípios são os seguintes, muitos dos
quais, entretanto, não são exclusivos deste sistema.
1. A matéria e a força são inseparáveis. Onde haja matéria há força,
e onde há força há matéria. Esta proposição, ao menos de início, deve ser
entendida só como força física.
2. Todas as forças físicas, como a luz, o calor, as afinidades
químicas, a eletricidade, o magnetismo, etc., etc., são conversíveis. A luz
pode converter-se em calor, e o calor em luz. Ambas as formas podem
converter-se em eletricidade, e a eletricidade em ambas; e assim por toda
a gama. Isto é o que se chama correlação de forças. O Conde Rumford,
numa comunicação a Royal Society de Londres, em 1798, satisfeito de
que o calor gerado ao furar um canhão não podia ser explicado de outro
modo, expôs a doutrina de que o calor é uma forma especial de
movimento. Desde então esta doutrina se generalizou, e é hoje em dia a
opinião usualmente recebida que todas as forças físicas podem resolver
em movimento. Mas esta generalização não é aceita por todos os
cientistas. Encontram impossível conceber como a gravidade, que age
instantaneamente à distância, pode ser movimento. Trata-se,
simplesmente, de uma força que tende a produzir movimento.
3. Mas este movimento não é o de um fluido ou éter, ou qualquer
substância imponderável peculiar a cada classe peculiar de força. Assim
como o som consiste em, ou antes, é produzido por, as vibrações da
atmosfera, foi natural supor que a luz era a ondulação de um meio, o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 365
calor de outro, a eletricidade de outro. Esta teoria foi descartada. O
movimento se atribui ao movimento nas moléculas da matéria afetada.
Quando se esquenta o ferro, não se lhe acrescenta nada. Não há uma
substância imponderável chamada caloria. Tudo o que ocorre é que as
moléculas do ferro são agitadas de uma maneira determinada. Se o ferro
é magnetizado, trata-se apenas de uma classe diferente de movimento
que se comunica a seus átomos constitutivos. E assim com todas as
outras classes de força. Entretanto, quando a luz ou o calor são irradiados
de objetos distantes, o movimento que constitui estas forças deve ser
irradiado através de algum meio. Porque onde há movimento deve haver
algo que se mova. E, por isso, se o calor é movimento nas moléculas do
sol, o calor não nos poderia chegar, a não ser que houvesse algum meio
material entre nós e o sol.
4. As forças físicas não só são conversíveis a qualquer das outras,
mas também são quantitativamente equivalentes; isto é, uma quantidade
determinada de calor produzirá uma quantidade equivalente de luz ou de
eletricidade, ou de qualquer outra força que, se pudesse ser utilizada,
reproduziria precisamente aquela quantidade de calor. Uma bala de
canhão, quando atinge o alvo, produz suficiente calor para produzir a
velocidade que teve no momento de contato. Uma certa quantidade de
luz e calor derivados do sol é gasta na formação de uma certa quantidade
de madeira ou carvão; aquela quantidade de madeira ou carvão
subministrarão justamente a quantidade de luz e calor que foi gasta em
sua produção. O Conde Rumford fez uma experiência para determinar a
relação quantitativa entre o movimento e o calor, e chegou de maneira
muito aproximada da mesma conclusão a que tinha chegado o doutor
Joule de Manchester, Inglaterra, que descobriu que uma libra de matéria,
caindo setecentos e setenta e dois pés, produzirá suficiente calor para
elevar a temperatura de uma libra de água em um grau Fahrenheit. Esta é
agora a unidade aceita de força.
5. A força é indestrutível. Nunca aumenta nem diminui. O que se
perde de uma forma é retomado em outra. Assim, as forças são agentes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 366
indestrutíveis, conversíveis e imponderáveis. Esta correlação e
conservação de forças é declarada pelo doutor Carpenter, o eminente
fisiologista, como «estando agora entre as generalizações melhor
estabelecidas da ciência» e o grande triunfo científico de nossa era,
«graças», diz ele, «aos trabalhos de Faraday, Grave, Joule, Thompson,
por não dizer nada de Helmholtz e de outros distinguidos sábios
continentais». 47
52
Youmans, p. 407.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 369
vitalícia e física, portanto, não são idênticas. Elas não são correlatas. A
anterior não é uma mera forma da posterior.
Um dos mais eminentes fisiologistas vivos é o Dr. João Marshall, e
ele, embora longe de pertencer à escola velha, claramente toma a postura
que existe uma força vital que não pode ser resolvida em qualquer
operação de forças físicas no mundo externo, inorgânico. Ele diz: 53
“Todos os processos estritamente físicos dentro do corpo, se químicos,
mecânicos, térmicos, elétricos, ou fóticos, são apresentados por
modificações da força comum que produz fenômenos semelhantes no
mundo inorgânico ao redor de nós. Lá existe, entretanto, no animal vivo,
como no organismo vegetal vivo, um poder especial formativo ou
organizado, evoluindo o animal ou planta perfeita do ovo primitivo ou
óvulo, desenvolvendo seus vários tecidos e órgãos, e conservando-os do
começo até o término de sua existência individual. A influência desta
força, além disso, estende-se do pai até o filho, geração após geração.”
Esta é a doutrina usualmente recebida, que os fenômenos físicos devem
referir-se a forças físicas; fenômenos vitais à força vital; e fenômenos
mentais à mente. A nova doutrina, entretanto, é que todos os fenômenos
devem relacionar-se a forças físicas, nenhuma outra força sendo nem
conhecida ou conhecível.
53
Outlines of Physiology, Smith’s Philadelphia edition, 1868, p. 932.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 370
importante. Até o Dr. Carpenter usa uma linguagem como esta: “Outra
classe de arrazoadores cortou o laço que não puderam desatar, atribuindo
todas as ações de corpos vivos que a física e a química não podem
calcular, a um ‘princípio vital hipotético;’ uma agência obscura que faz
tudo à sua própria maneira, mas recusa ser feito o sujeito de exame
científico; como o ‘od-force,’ ou o ‘poder espiritual’ para que os amantes
do maravilhoso são tão afeiçoados a atribuir os movimentos misteriosos
de girar e balançar tábuas.” 54 “Se um homem me perguntar,” diz o Prof.
Huxley, “o que é a política dos habitantes da lua, e eu respondo que eu
não sei; que nem eu, nem ninguém mais, tem qualquer meio de
conhecer; e isto, sob estas circunstâncias, recuso aborrecer-me a mim
mesmo sobre o assunto, eu não penso que ele tem qualquer direito de me
chamar um cético.” 55 É assim que ele desterra a vitalidade da esfera da
ciência, porque tudo, exceto a matéria e suas funções, pertence à região
do desconhecido e do incompreensível. O Prof. Tyndall e Herbert
Spencer tomam, às vezes, a mesma postura.
Mas, embora tais escritores como o Dr. Carpenter, em contradição
aparente com suas próprias confissões, reconhece a existência da
“agência diretora” no germe vivo, a maioria dos escritores desta escola
recusa reconhecer qualquer agência ou força como uma verdade
científica. A única diferença entre a segunda e a terceira postura a
respeito deste tema geral é que, segundo uma, considera-se que a
hipótese da vital como distinto do físico é algo gratuito e desnecessário;
segundo a outro, tal hipótese se declara antifilosófica, e deve ser
totalmente descartada. O mesmo autor adapta às vezes uma atitude, e às
vezes a outra.
54
Youmans, p. 402.
55
“Physical Basis of Life” em seus Lay Sermons, p. 158.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 371
O argumento para a correlação das Forças Físicas e Vitais.
Assim o Professor Huxley, que embora há alguns anos era um firme
proponente da força vital como distinta da força física, em seu discurso a
respeito «da Base Física da Vida» adapta o terreno oposto. O argumento
é como segue: os elementos proporcionados pelo reino mineral são
tomados pela planta, que sob a influência da luz e do calor os transforma
em matéria organizada. Os produtos da vegetação, amidos, açúcar,
fibrina, etc., são puramente materiais. Isto é certo inclusive do
protoplasma, ou matéria viva, ou a base física da vida, como é chamada,
que é elaborado pela planta a partir dos materiais carentes de vida
providos pelo solo e pela atmosfera. Há, na verdade, uma grande
diferença entre os produtos da vegetação e os elementos inertes com base
nos quais são formados. Mas também há entre os elementos da água e a
própria água. Se se descarregar uma faísca elétrica dentro de um volume
de oxigênio e hidrogênio, transforma-se em água, que pesa precisamente
tanto como o volume dos dois gases dos quais está composta. É oxigênio
e hidrogênio combinados, e nada mais. Mas as propriedades da água são
totalmente diferentes das do oxigênio e do hidrogênio. Da mesma
maneira, há uma enorme referência entre as propriedades do ácido
carbônico, da água e da amônia, dos quais se compõe a planta, e as da
própria planta viva. Mas assim como seria antifilosófico supor a
existência de alguma coisa desconhecida chamado aquosidade para dar
conta da diferença entre a água e seus elementos, não é menos
antifilosófico pressupor a existência de alguma coisa desconhecida
chamada vitalidade para explicar a diferença entre a matéria viva e os
materiais inertes dos quais se compõe.
Vida animal
Da mesma maneira, todos os fenômenos da vida animal são
atribuídos às forças físicas inseparáveis da matéria que compõe a
estrutura animal. É verdade que as funções da matéria nos tecidos
animais são mais elevadas que nos da planta. Mas os proponentes da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 372
teoria sob consideração tratam de reduzir ao mínimo a diferença entre a
vida animal e a vegetal. É só a superfície superior da folha a que é
suscetível dos peculiares efeitos da luz. E também é só o nervo óptico o
afetado de uma maneira necessária para a visão. A planta chamada
sensitiva se contrai quando é tocada; e o mesmo sucede com o músculo
animal quando se lhe aplica o apropriado estímulo, nervoso ou elétrico.
Em suma, assim como todas as operações da vida vegetal devem-se a
forças físicas, da mesma maneira todos os fenômenos da vida animal
devem-se às mesmas causas.
Neste assunto o Prof. Huxley diz: “A matéria da vida é composta de
matéria comum, diferindo dela só na maneira em que seus átomos são
acrescentados. É construída de matéria comum, e novamente volta para a
matéria comum quando seu trabalho é feito.” 56 Por protoplasma, a
matéria da vida, ele às vezes significa matéria que exibe os fenômenos
da vida; e às vezes, a matéria que tendo sido elaborada pela planta ou
animal, é capaz de suportar a vida. Consequentemente, ele chama de
protoplasma de carne de carneiro cozido.
A única diferença entre plantas de matéria inorgânica, inanimada, e
viva ou animais, está na maneira em que seus átomos são acrescentados.
“Carvão, hidrogênio, oxigênio, e nitrogênio são todos corpos
inanimados. Destes, o carvão e o oxigênio se unem, em certas
proporções e sob certas condições, para produzir ácido carbônico; o
hidrogênio e o oxigênio produzem água; o nitrogênio e o hidrogênio
produzem amônia. Estas novas combinações, como os corpos
elementares de que eles são compostos, são inanimados. Mas quando são
trazidos juntos, sob certas condições eles produzem o corpo ainda mais
complexo, o protoplasma, e este protoplasma exibe os fenômenos da
vida. Eu não vejo nenhuma quebra nesta série de passos na complicação
molecular, e eu sou incapaz de entender por que a linguagem que é
aplicável a qualquer termo da série não pode ser aplicado a qualquer dos
56
Lay Sermons, p. 144.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 373
outros. . . . . Quando o hidrogênio e o oxigênio são mesclados numa certa
proporção, e uma faísca elétrica é passada por eles, desaparecem, e uma
quantidade da água, igual em peso à soma de seus pesos, aparece em seu
lugar. Não há a mais leve paridade entre os poderes da matéria passivos
e ativos da água e aqueles do oxigênio e hidrogênio que a originaram.” 57
“Que justificação existe, então, para a hipótese que a existência na
matéria viva de algo que não tem nenhum representante, ou correlato, na
matéria não viva que a originou? Que melhor status filosófico tem
‘vitalidade’ que ‘aquosidade’? E por que devia ‘vitalidade’ aguardar um
destino melhor que o outro ‘ad’ que desapareceu desde que Martinus
Scriblerus respondeu pela operação da carne por sua qualidade ‘carne
asada,’ e desprezou o materialismo daqueles que explicaram o voltear do
espeto por um certo mecanismo operado pelo carregamento da chaminé?
. . . . Se as propriedades da água podem ser corretamente ditas para
resultar da natureza e disposição de seus moléculas de componente,
posso não declarar nenhum solo inteligível para recusar dizer que as
propriedades do protoplasma resultam da natureza e disposição de suas
moléculas.” 58
Assim, a doutrina é que o ácido carbônico, a água e a amônia,
corpos inertes, sob certas condições, transformam-se em matéria viva,
não em virtude de nenhuma nova força ou princípio que lhes seja
comunicado, mas só em virtude de uma disposição diferente de suas
moléculas. Todas as plantas e animais estão compostos desta matéria
viva, e é às propriedades ou forças físicas inerentes na matéria da que
estão compostos que se devem atribuir todos os fenômenos da vida
vegetal e animal. «O protoplasma», diz o Professor Huxley, «é a argila
do oleiro, a qual, por muito cozida e pintada que seja, permanece sendo
argila, separada por artifício e não por natureza, do mais comum tijolo
ou barro secado pelo sol». 59 Assim como o tijolo, não importa qual seja
57
Ibid. p. 149.
58
Lay Sermons, p. 151.
59
Ibid. p. 142.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 374
sua forma ou cor, não pode ter propriedades que não sejam inerentes na
argila, da mesma maneira os organismos vegetais ou animais não podem
ter propriedades que não pertençam ao protoplasma, que, em última
análise, não é nada mais que ácido carbônico, água e amônia.
O Prof. Huxley não é só um naturalista distinto, mas sim um
conferencista e pregador do “Lay Sermons,” e deste modo se tornou um
homem representativo entre os advogados desta nova forma de
materialismo. Ele está, entretanto, muito longe de estar sozinho. “Alguns
dos físicos vivos mais distintos, químicos, e naturalistas, diz o Dr. Beale,
“têm aceito esta teoria física da vida. Ensinaram que a vida não é mais
que um modo de força comum, e que a coisa viva difere da coisa não
viva, não em qualidade, ou essência, ou tipo, mas sim meramente em
grau.” 60 “Tão extenso,” diz o mesmo escritor, “como os advogados da
doutrina física da vida disputaram entre si mesmos para ridicularizar a
‘vitalidade’ como uma ficção e um mito, porque não podia ser feito
evidente aos sentidos, medidos ou pesados, ou cientificamente provados
em sua existência, sua posição não foi facilmente atacada; mas agora
quando eles afirmam dogmaticamente que a força vital é só uma forma
ou modo de movimento comum, eles estão destinados a mostrar que a
afirmação se apoia em evidência, ou ele será considerado pelos homens
pensativos como um de um grande número de hipóteses fantásticas,
defendidas só por aqueles que desejam expandir os graus dos mestres e
intérpretes da ciência dogmática, que, embora pretensiosa e autorizada,
deve já ser intolerante e não progressiva.” 61
Os fenômenos mentais.
Segundo a nova doutrina, não só as operações da vida vegetal e
animal devem-se a forças físicas, mas o mesmo é certo de todas as
operações mentais. Se é válido o argumento da analogia no primeiro
60
Protoplasm; or Life, Matter, and Mind, by Lionel S. Beale, M.B., F.B.S. Second edition, London,
1870, p. 3.
61
Protoplasm, p. 4.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 375
caso, é válido no segundo. Se temos que crer que as propriedades do
protoplasma, ou da matéria viva, devem ser atribuídas ao modo em que
suas moléculas são acrescentadas devido ao fato de que as propriedades
da água devem-se a peculiar agregação dos átomos de seus elementos,
oxigênio e hidrogênio, então temos que crer que todo pensamento e
sentimento deve-se à composição molecular e aos movimentos dos
átomos do cérebro. De acordo com isso, o Professor Huxley, depois de
dizer que a «vitalidade» não tem uma melhor posição filosófica que a
«aquosidade», adverte a seus leitores que não podem deter-se nesta
admissão. «Gostaria que estivessem conscientes», diz ele, «que ao
aceitar estas conclusões, estão pondo seus pés na primeira travessa de
uma escada que, na estimativa da maioria das pessoas é a oposta à de
Jacó, e que conduz às antípodas do céu. Pode parecer uma coisa pequena
admitir que as lentas ações vitais de um cogumelo ou de um foraminífero
são as propriedades de seu protoplasma, e que são o resultado direto da
matéria da que se compõem. Mas se seu protoplasma, tal como tratei de
lhes demonstrar, é essencialmente idêntico ao de qualquer animal, e
muito diretamente conversível no deles, não posso descobrir nenhuma
interrupção lógica entre a admissão de que esta seja a realidade, e a
adicional concessão de que toda ação vital pode ser com a mesma
propriedade considerada como resultado das forças moleculares do
protoplasma que a exibe. E se assim é, deve ser certo, no mesmo sentido
e no mesmo grau, que os pensamentos que estou agora expondo, e os
pensamentos dos leitores são com relação a eles, são a expressão de
mudanças moleculares naquela matéria da vida que é a fonte de nossos
outros fenômenos vitais». 62 «Além disso», prossegue ele, «considero
demonstrável que é totalmente impossível provar que nada, seja o que
for, não possa ser o efeito de uma causa material e necessária, e que a
lógica humana é igualmente incompetente para demonstrar que qualquer
ação seja realmente espontânea. Uma ação verdadeiramente espontânea é
62
Lay Sermons, pp. 151, 152.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 376
uma que supostamente carece de causa [isto é, nenhuma causa material,
porque Huxley não admite nenhuma outra classe de causa]; e o intento
de demonstrar uma proposição negativa como esta é evidentemente
absurdo. E assim, enquanto que é deste modo uma impossibilidade
filosófica demonstrar que qualquer fenômeno dado não é o efeito de uma
causa material, qualquer um que esteja familiarizado com a história da
ciência admitirá que seu progresso em todas as idades significou, e agora
mais que nunca, a extensão do domínio do que chamamos matéria e
causalidade, e a correspondente eliminação do que chamamos espírito e
espontaneidade de todos os âmbitos do pensamento humano». 63 «Afinal
de contas, o que conhecemos desta terrível «matéria», exceto que é um
homem pela desconhecida e hipotética causa ou condição de estados de
consciência? Em outras palavras, a matéria e o espírito são só nomes
para os substratos imaginários de grupos de fenômenos naturais». 64
«Com tanta certeza como que o futuro brota do passado e do presente,
assim a fisiologia do futuro estenderá gradualmente o reino da matéria e
da lei até que seja coextensiva com o conhecimento, com os sentimentos
e com as ações». 65 Cita a exortação tão citada de Hume, e recomenda
energicamente «o muito sábio conselho» que contém. «Se tomamos em
nossas mãos», diz Hume, «qualquer volume a respeito de teologia ou de
metafísica escolástica, por exemplo, nos perguntemos: Contém algum
raciocínio abstrato a respeito de quantidades e de números? Não. Contém
algum raciocínio experimental a respeito de questões de fato ou de
existência? Não. Lancem, pois, ao fogo; porque não pode conter nada
senão sofismas e ilusões». 66
A história da especulação humana não dá uma confissão mais
explícita de materialismo que a que se contém nas citações anteriores.
Todos os efeitos conhecidos são atribuídos a causas materiais. Declara-
63
Ibid., págs. 155, 156.
64
Ibid., pág. 157.
65
Ibid., pág. 156.
66
Hume, Works, edição de Edimburgo. 1826, IV, p. 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 377
se que o espírito possui uma existência só imaginária. A espontaneidade
é declarada algo absurdo. Mas Huxley diz que ele não é um Materialista.
E em certo sentido é verdade. Não é Materialista porque não crê nem na
matéria nem no espírito. Confessa-se discípulo de Hume, que ensinava
que não conhecemos nada mais que impressões e ideias. A substância,
seja material ou espiritual, a eficiência, e Deus, são eliminados da esfera
do conhecimento a dos «sofismas e a ilusão». Confessa sua comunhão
com o Herbert Spencer, sendo que o princípio fundamental da «Nova
Filosofia» deste é que tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é
que a força é, e que é persistente, enquanto que a própria força é
absolutamente inescrutável. Isto elimina da existência a alma e Deus,
exceto assim que estas palavras indiquem uma força desconhecida. Mas
como ele também sustenta que todas as forças são conversíveis, a
distinção entre forças materiais e mentais, sejam humanas ou divinas,
fica apagada. Ele se vale da hipótese comum de que sua teoria não
degrada o espírito, mas exalta a matéria. Mas o veredicto da história é,
tal como o diz com verdade Julius Müller, «Que cada intento de
espiritualizar a matéria acaba materializando o espírito». A respeito deste
tema diz Spencer: «Aqueles que não ascenderam acima do conceito
vulgar que une com a matéria os depreciativos epítetos de "áspera" e
"bruta", podem naturalmente sentir repulsão perante a proposta de
reduzir os fenômenos da vida, da mente e da sociedade, a um nível que
eles consideram tão degradado. ... O curso que se propõe não implica
uma degradação do considerado mais elevado, mas sim de uma exaltação
do considerado inferior».67 Pelo menos, isto constitui uma confissão de
que os fenômenos da vida, da mente e da sociedade devem ser atribuídos
a causas materiais ou físicas. E isto é o que certamente declara em
repetidas ocasiões.
Depois de insistir na transformação de forças físicas em substância
química, e estes em vitais, ele acrescenta: “Muitos serão alarmados pela
67
First Principles, New York, 1869, p. 556.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 378
afirmação que as forças que distinguimos como mental, vem dentro da
mesma generalização. Entretanto, não existe nenhuma alternativa senão
fazer esta concessão. 68 . . . . Qualquer vacilação para admitir que entre as
forças físicas e as sensações há uma correlação assim entre as próprias
forças físicas, devem desaparecer ao lembrar como uma correlação como
a outra, não é somente qualitativa, mas sim quantitativa.” 69 “Várias
classes de fatos se unem para provar que a lei da metamorfose, que se
mantém entre as forças físicas, mantém-se igualmente entre eles e as
forças mentais. . . . . Como esta metamorfose sucede — como uma força
existindo como movimento, luz, ou calor, pode tornar-se um modo de
consciência,” é misterioso; mas ele acrescenta, não é um mistério maior
“que as transformações de forças físicas mutuamente.” 70
O doutor Maudsley, um distinto escritor da mesma escola, 71 diz:
«Poucos se encontrarão hoje em dia que neguem que com cada exibição
de poder mental há mudanças correlativas no substrato material; que
cada fenômeno da mente é o resultado, como energia manifesta, de
alguma mudança, seja molecular, seja química, seja vital, nos elementos
nervosos do cérebro». Logo prossegue dizendo: 72 «Com relação aos
múltiplos fenômenos da mente, por observação dos mesmos, e abstração
do particular, chegamos à concepção geral, ou à ideia essencial de
mente, uma ideia que não tem mais existência fora da mente que
qualquer outra ideia abstrata ou termo geral. Entretanto, em virtude
daquela poderosa tendência da mente humana a tornar a realidade
conformável à ideia, uma tendência que está no fundo de tanta confusão
em filosofia, esta concepção geral foi convertida numa entidade objetiva,
e se permitiu que exerça sua tirania sobre o entendimento. Uma
abstração metafísica foi convertida numa entidade espiritual, e com isso
68
Ibid. p. 211.
69
Ibid. p. 212.
70
Ibid. p. 217.
71
Physiology and Pathology of Mind, Londres, 1868, pág. 42.
72
Ibid. p. 43.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 379
se interpôs uma barreira infranqueável no caminho da investigação
positiva».
As passagens acabadas de citar são um exemplo do tipo de
raciocínio que, com frequência, se permitem os cientistas. Na primeira
destas duas últimas citações se apresentam duas cláusulas como
equivalentes, as quais são de fato essencialmente diferentes; e a
substituição da uma pela outra é só uma sutil e calada petição de
princípio. A primeira diz que cada ato mental vai acompanhado de uma
mudança molecular no cérebro. A outra deve dizer que a mudança
molecular é o ato mental. Estas duas proposições são tão diferentes como
o dia e a noite. A teoria é que um certo tipo de movimento molecular no
ferro é calor; e que um certo tipo de movimento molecular no cérebro é
pensamento. E toda a prova, pelo que se refere ao último, é que um
acompanha o outro. Mas a formação da imagem na retina acompanha a
visão, e entretanto isso não demonstra que aquela imagem é nossa
consciência quando vemos.
Logo, na segunda passagem, o doutor Maudsley diz que «a mente é
uma ideia abstrata» que não tem existência fora «da mente», isto é, fora
de si mesma. Uma ideia abstrata tem uma ideia abstrata, que transforma
numa entidade objetiva. Os que negam a existência objetiva da mente
não podem deixar de pensar, falar ou escrever sem reconhecer sua
existência, como tampouco um idealista pode agir sem reconhecer a
existência do mundo exterior. Qualquer teoria que envolva uma negação
das leis de nossa natureza é necessariamente absurda.
Os físicos alemães.
Como se poderia esperar, os homens científicos do continente são
mais francos em seu materialismo que aqueles da Inglaterra. Um escritor
alemão posterior, Th. Otto Berger, Oberlehrer fur Mathematik e
Physik, 73 diz: O materialismo é a filosofia dos cinco sentidos, não admite
73
Evangelischer Glaube, römischer Irrglaube, und weltlicher Unglaube. Gotha, 1870.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 380
nada senão o testemunho de sensação, e portanto nega a existência da
alma, de Deus, e de tudo supersensório. Em sua forma moderna, ensina
que como o material é só verdadeiro e real, é incriado e eterno. Sempre
foi e sempre será. É indestrutível, e, em seus elementos, inalteráveis. A
força é inseparável da mente. De acordo com a teoria nenhuma mente
está sem força, e nenhuma força está sem mente. Nenhuma força existe
de si mesma; e, portanto, não há nada para que a criação da matéria deve
ser referida. O universo como agora é, deve-se à evolução gradual dos
dois elementos, matéria e força; que a evolução continua sob a operação
de leis fixas. Os organismos mais baixos são primeiro formados; então o
mais alto, até que o homem apareça. Toda vida, se animal, vegetal, ou
espiritual, deve-se ao funcionamento de forças físicas e químicas na
matéria. Como nenhuma energia existe senão na matéria, não pode haver
nenhum Ser divino com energia criativa nem qualquer alma humana
criada.
Berger cita Virchow como dizendo que, “O cientista naturalista
conhece só os corpos e as propriedades dos corpos.” Tudo o que está
além deles ele pronuncia como “transcendental, e o transcendental é o
quimérico.” Ele também cita B. C. Vogt, como dizendo que, “Não
admitimos nenhum criador, tanto no princípio como no curso da história
do mundo; e consideramos a ideia de um criador autoconsciente,
extramundano como ridícula.” O homem, de acordo com estes escritores,
consiste somente de um corpo material; todos os atos e estados mentais
são do cérebro. Quando o corpo morre, o homem cessa de existir. “A
única imortalidade,” diz Moleschott, “é, que quando o corpo seja
desintegrado, sua amônia, ácido carbônico, e cal, serve para enriquecer à
Terra, e nutrir plantas, que alimentarão outras gerações de homens.” 74
74
Veja-se Berger, I. III. 5; part I. pp. 264 to 271.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 381
F. Refutação.
75
As regards Protoplasm in relation to Professor Huxley's Essay on the Physical Basis of Life, por
James Hutchison Stirling, F.R.C.S., LL.D. Edição de New Haven, p. 15.
76
Veja-se Life, Matter, and Mind, por Lionel S. Beale, M.B., F.R.S., Londres 1870, pág. 17. O doutor
Beale cita de um artigo do Professor Huxley no primeiro número da Academy, pág.13.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 389
nenhuma explicação racional da origem do universo, nem das maravilhas
que contém. Viola a verdade intuitiva fundamental de que cada efeito
deve ter uma causa adequada, porquanto atribui efeitos inteligentes a
causas não inteligentes; todas as bibliotecas do mundo, por exemplo, são
atribuídas às «propriedades das moléculas» do ácido carbônico, da água
e da amônia.
2. Uma segunda verdade da Razão que contradiz o Materialismo é
que uma sucessão infinita de efeitos é tão impensável como a cadeia
autosustentada com uma quantidade infinita de elos. A doutrina moderna
é que a matéria inerte nunca se torna viva, exceto quando entra em
contato com matéria viva anterior. É a função da planta viva tomar os
elementos inertes do mundo inorgânico dotando-os de vida. Por isso, a
planta deve ou preceder ao protoplasma, o que é impossível, porquanto
está composta de protoplasma; ou o protoplasma deve preceder à planta,
o que é também impossível, porquanto só a planta, em primeira
instância, pode produzir protoplasma; ou deve haver uma sucessão
infinita. Isto é, um número infinito de efeitos carentes de causa, o que
não é menos impossível. A doutrina da geração espontânea, ou da vida
originando-se de matéria inerte, é repudiada pelos proponentes mais
avançados da forma moderna do Materialismo. O Professor Huxley fez
um bom serviço à causa da verdade com sua competente refutação da tal
doutrina. 77 Qualquer que possa ser a última decisão quanto à pergunta
sobre a origem de vida, é suficiente por agora que os advogados
modernos do Materialismo admitem que a matéria viva só pode vir de
matéria já viva. Esta admissão, é agora enfatizada, é fatal a sua teoria,
como se necessita a hipótese de um efeito eterno. Se matéria morta só
pode ser feita viva por matéria viva prévia, deve haver uma origem de
vida fora da matéria, ou a vida nunca podia ter começado.
77
Veja-se seu discurso como Presidente da Associação Britânica, publicada na revista London
Athenaeum, 17 de Setembro, 1870. O pouco que é necessário dizer a respeito do tema da geração
espontânea numa obra como esta se reserva para a seção que trata da origem do homem.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 390
O Materialismo é inconsequente com os fatos da experiência
Admite-se usualmente que na natureza, isto é, no mundo externo,
há quatro âmbitos distintos, ou, como se chama em algumas ocasiões
planos de existência. Primeiro, os compostos químicos comuns que
constituem o reino mineral; segundo, o reino vegetal; terceiro, o mundo
animal irracional; e quarto, o Homem. Admite-se que todos os recursos
da ciência são incompetentes para elevar a matéria de um destes planos a
outro. A planta contém ingredientes derivados do reino mineral, com
algo especificamente diferente. O animal contém tudo o que está na
planta, com algo especificamente diferente. O homem contém tudo o que
entra na constituição da planta e do animal, com algo especificamente
diferente. Os elementos inertes do reino mineral, sob «a influência de
matéria viva preexistente», e não de outra maneira, convertem-se em
matéria viva e sustentadora da vida na planta. Os produtos da vida
vegetal, de maneira semelhante, transformam a matéria de tecidos e
órgãos animais, mas isso só sob a influência de tecidos animais vivos
preexistentes. Da mesma maneira, os produtos dos reinos vegetal e
animal são recebidos no sistema humano, e devem ficar conectados com
as funções e os fenômenos da vida intelectual e moral do homem, mas
nunca fora da pessoa do homem. Este fato notável, testificado por toda a
história de nosso globo, demonstra que há algo na planta que não está na
matéria inerte; algo no animal que não está na planta, e algo no homem
que não está no animal. Aceitar como o Materialista aceita que a vida
organizadora da planta provém da matéria inerte; que a vida sensível e
voluntária do animal provém da vida insensível e involuntária da planta;
ou que a vida racional, moral e espiritual do Homem provém dos
constituintes do animal, é supor como um fato algo que toda a
experiência contradiz. Não nos esquecemos com isso das teorias que
atribuem estes diferentes graus ou ordens de existência a algum processo
da evolução natural. Entretanto, aqui só nos referimos ao fato destacável
na história de que, na esfera da experiência humana, a matéria inerte não
vem a ser organizadora e viva em virtude de suas próprias forças físicas;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 391
nem a planta em num animal; nem o animal em um homem derivando de
nada na planta ou do animal, mas só em virtude de uma influência ab
extra vital. Certamente, diz-se que assim como os mesmos elementos
químicos combinados de uma maneira têm certas propriedades, e que
misturas de outras maneiras, têm outras propriedades, que igualmente os
mesmos elementos combinados de uma forma na vida inerte e em outras
formas em plantas e animais e no homem podem dar conta de todas suas
características distintivas. Mas deve-se lembrar que todas as
propriedades dos compostos químicos, por variadas que sejam, são
químicas e nada mais; enquanto que nos organismos vivos as
propriedades ou os fenômenos são especificamente diferentes dos meros
efeitos químicos. Não têm relação entre si, como tampouco a têm a
gravitação e a beleza; e por isso um não pode explicar o outro.
O Materialismo é Ateu.
O ateísmo é a negação de um Deus pessoal extramundano. Ao dizer
que o Materialismo é Ateísmo não se significa com isso que todos os
Materialistas sejam ateus. Alguns, por exemplo o doutor Priestley,
confinam a aplicação de seus princípios à ordem existente de coisas.
Admitem o ser de Deus a quem atribuem a criação do mundo.
Entretanto, a quantidade destes materialistas ilógicos é pequeno.
Deixando de lado estes casos excepcionais, os filósofos desta escola
podem classificar-se em três classes:
(1) Ateus confessos. A esta classe pertencem os Epicureus; os
céticos franceses do século passado; e uma grande proporção dos físicos
da geração atual, especialmente na Europa. (2) Aqueles que repudiam a
acusação de ateísmo, porque admitem a existência necessária de uma
força inescrutável. Mas a força inescrutável não é Deus. Ao rejeitar a
doutrina de um Espírito extramundano, consciente de Si mesmo,
inteligente e voluntário, a Primeira Causa de todas as coisas, rejeitam o
Teísmo; e a negação do Teísmo é Ateísmo. (3) Aqueles cujos princípios
envolvem a negação de um Deus extramundano. A esta classe pertencem
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 392
todos aqueles que negam a distinção entre a matéria e a mente; que
negam o supersensório» e o «sobrenatural», que afirmam que a força
física é a única classe de força da qual não temos conhecimento algum; e
que mantêm que o pensamento é, em tal sentido, o produto do cérebro
que se não houver cérebro não pode haver pensamento. Büchner, que
embora seja um ateu confesso é, quanto a este ponto, um bom
representante de toda a escola; diz que o princípio fundamental (der
oberste Grundsatz) de nossa filosofia é: «Não há matéria sem força; e
não há força sem matéria». «Um espírito sem um corpo», acrescenta ele,
«é tão impensável como a eletricidade ou o magnetismo sem a matéria
da qual são fenômenos». 78 E isto o converte na base de seu argumento
para demonstrar a impossibilidade da existência da alma depois da
morte. O princípio, se for admitido, é igualmente concludente contra a
existência de Deus. Porquanto o Materialismo não nos deixa um Deus a
quem reverenciar e em quem confiar, um Ser perante quem somos
responsáveis, e porquanto nega toda existência consciente depois da
morte pode ser adotado só com o sacrifício dos mais elevados atributos
de nossa natureza; e toda sua tendência deve ser desmoralizadora e
degradante.
78
Kraft und Stoff, Zehnte Auflage, Leipzig, 1869, p. 209.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 393
para ser ouvidos em perguntas de ciência. A regra deve valer para ambos
os modos. Se os metafísicos e os teólogos devem ser mudos em assuntos
de ciência, então os homens científicos dedicados ao estudo do sensorial,
não são intitulados para ser ditatoriais em que considerar o
supersensório. Um homem pode estar tão habituado a tratar com
quantidade e número, ao ponto de ficar incapaz de apreciar beleza ou
verdade moral. De certa forma um homem pode ser tão dedicado ao
exame do que seus sentidos revelam, prestes a chegar a crer que só o que
é sensível é verdade e real. Os sentidos têm suas reivindicações, e assim
têm razão e consciência; e os partidários dos sentidos não são
autorizados a reivindicar o domínio inteiro de conhecimento como
exclusivamente seu próprio.
Enquanto, portanto, perde-se o que pertence especialmente a
homens científicos para tratar com assuntos científicos, ainda outras
classes têm um pouco de reivindicações que não devem ser negadas.
Têm o direito de julgar por si mesmos a respeito da validez dos
argumentos de homens científicos; e eles têm direito a apelar a um
homem científico até outro, e da minoria à maioria. Na medida no que
concerne à correlação de forças físicas e vitais, não é só uma nova
doutrina, mas sim ainda é adotada só por “pensadores adiantados,” como
eles são chamados, e se chamam a si mesmos. O Dr. H. B. Jones, F. R.
S., um dos advogados mais modestos da doutrina, 79 diz: “Estamos
apenas entrando na investigação a que distância nossas ideias de
conservação e correlação de energia podem ser estendidas às ciências
biológicas.” E é verdade que os atores principais da ciência, tanto na
Europa como na América, são firmes partidários de forças vitais e
mentais, como distintas em tipo, de toda a operação das forças física no
mundo inorgânico.
79
Croonian Lectures, p. 66.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 394
Os argumentos em favor de tal correlação não são válidos.
O argumento da analogia.
Já foi declarado a respeito da autoridade dos advogados da teoria,
que seu primeiro e mais importante argumento em seu suporte é o da
analogia. As forças físicas são todas correlatas; um é conversível em
qualquer dos outros; todos podem ser dissolvidos em movimento. Isto
cria, como dizem, uma forte presunção, que toda força, quaisquer que
sejam os seus fenômenos, é essencialmente a mesma coisa. Se um tipo
de movimento é calor, outro eletricidade, outro luz, é justo deduzir que a
vitalidade é só outro tipo de movimento, e pensamento e sentimento.
Como não existe nenhuma razão para assumir uma força específica para
a luz, e outra para o calor, portanto é desnecessário, e antifilosófico,
assumir um tipo específico vigente para responder por fenômenos vitais
ou mentais. O Prof. Barker da Faculdade do Yale, diz: 80 “Hoje, tão
verdadeiramente como setenta e cinco anos atrás quando Humboldt
escreveu, os fenômenos misteriosos e terríveis da vida, são usualmente
atribuídos a algum agente controlador residindo no organismo — para
alguns a deidade independente presidindo-o, mantendo-o em sujeição
absoluta.” Este agente que preside é chamado “fluido vital,” “materia
vitæ diffusa,” “força vital.” “Todos estes nomes,” ele acrescenta,
“assumem a existência de algo material ou imaterial, mais ou menos
separável do corpo material, e mais ou menos idêntico à mente ou alma,
que é a causa dos fenômenos dos seres vivos. Mas como a ciência se
moveu irresistivelmente para frente, e se fez evidente que as forças da
natureza inorgânica não eram nem deidades nem fluidos imponderáveis,
separáveis da matéria, mas sim eram afetos simples disto, a analogia
exigiu semelhante concessão no interesse da força vital. Da noção que
os efeitos do calor eram devido a um fluido imponderável chamado
calórico, o achado passou à convicção que o calor não era senão um
80
Correlation of Vital and Physical Forces, p. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 395
movimento de partículas materiais, e consequentemente inseparáveis da
matéria; a uma hipótese semelhante com relação à vitalidade [isto é, que
também não é mais que um movimento de partículas materiais], não era
agora senão um passo.
Os pensadores mais adiantados em ciência de hoje, portanto,
consideram a vida da forma viva como inseparável de sua substância, e
creem que o anterior é puramente fenomenal, e só uma manifestação do
posterior. Negando a existência de uma força vital especial como tal,
retêm o termo só para expressar a soma dos fenômenos dos seres vivos.”
O argumento da analogia é apresentado, como nós vemos, em outra
forma, por Huxley e outros. As propriedades da água são muito
diferentes daqueles do hidrogênio e do oxigênio de que é composta. Mas
ninguém supõe que aquelas propriedades são devido a qualquer outra
coisa que a composição material da água propriamente. Então também os
fenômenos de matéria viva, e do cérebro humano, são muito diferentes
daqueles dos elementos que entram em sua constituição; mas isto não
dispõe nenhuma presunção que existe alguma “força vital” ou “mente”
que responde por esta diferença mais que as propriedades peculiares da
água justificam a hipótese da existência de qualquer coisa distinta de seu
elemento material. Vitalidade e mente, somos inteirados, não têm
nenhum status filosófico melhor que a aquosidade.
O doutor Stirling 81 enuncia assim [o argumento materialista]: «Se é
por sua mera estrutura química e física que a água exibe certas
propriedades chamadas aquosas, é também por sua mera estrutura
química e física que o protoplasma exibe certas propriedades chamadas
vitais. Tudo o que é necessário em ambos os casos é que “sob certas
condições” se acrescentem os componentes químicos. Se a água é uma
complicação molecular; o protoplasma é igualmente uma complicação
81
As Regards Protoplasm in Relation to Professor Huxley's Essay on the Physical Basic of Life, por
James Hutchison Stirling, F.R.C.S., LL.D. Edinburgh, Blackwood & Sons. Republica como uma, das
séries da Universidade do Yale, pág. 39. Esta é considerada como a melhor refutação da teoria da
correlação de forças físicas e vitais.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 396
molecular, e para a descrição de uma ou de outra não se precisa de uma
mudança de linguagem. Uma nova substância com novas qualidades
aparece aqui precisamente da mesma forma em que uma nova substância
com novas qualidades aparece ali; e as qualidades derivadas não são
mais diferentes das primitivas no primeiro caso que o são no segundo.
Finalmente, o modus operandi do protoplasma preexistente não é mais
ininteligível que o da faísca elétrica. A conclusão é então irresistível que
sendo que todo o protoplasma reciprocamente conversível, e
consequentemente idêntico, as propriedades que exibe, incluindo a
vitalidade e o intelecto, são tanto o resultado da constituição molecular
como o são as da própria água». Esta analogia é dupla: por um lado faz
referência à composição química; e por outro, ao estímulo antecedente
que a determina. «No que respeita à composição química, pede, em
virtude da analogia citada, que identifiquemos, como exemplos
igualmente singelos da mesma, protoplasma aqui e água ali; e, no que
respeita ao estímulo em questão, pede que admitamos que a ação da
faísca elétrica é, no primeiro caso, totalmente análoga à ação do
preexistente protoplasma no segundo».
Como resposta a este argumento, o doutor Stirling passa a mostrar
que a analogia só se sustenta com relação às propriedades químicas e
físicas. «Um passo adiante, e vemos que o protoplasma tem não só,
como a água, uma estrutura física e química, mas, diferente do água, tem
também uma estrutura organizada ou orgânica. Agora, isto, por parte do
protoplasma, é uma posse em excesso; e com relação a este excesso não
pode haver bases para uma analogia». «O protoplasma vivo, por
exemplo, é idêntico ao protoplasma morto», diz o doutor Stirling, «só no
que respeita à sua composição química (se é que chega a isso); e é bem
evidente, portanto, que a diferença entre ambos não pode depender
daquilo no que são evidentes não pode depender da química. Assim, a
vida não é assunto da estrutura química e física, e tem que buscar sua
explicação em alguma outra coisa. É assim que, quando se contempla
com atenção, a luz da analogia entre a água e o protoplasma se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 397
82
desvanece». A água e seus elementos, o hidrogênio e o oxigênio, estão
num mesmo nível quanto ao tipo de características que exibem. «Mas
não assim o protoplasma, onde, com a preservação da semelhança
química e física há a adição da dessemelhança da vida, da organização e
das ideias. Mas a adição é um mundo novo – um mundo novo e mais
elevado, o mundo de um pensamento autorrealizante, o mundo de uma
enteléquia.» 83 «Há certamente diferentes estados de água, como gelo e
vapor; mas a relação de sólido a líquido, ou de ambos com o vapor, não
oferece certamente nenhuma analogia com a relação do protoplasma
vivo com o protoplasma morto. Esta relação não é uma analogia, e sim
uma antítese, a antítese da antítese. De fato, encontramo-nos perante o
abismo infranqueável – o abismo de todos os abismos – aquele abismo
que o protoplasma do Sr. Huxley é impotente para apagar como qualquer
outro material conveniente que jamais tenha sido sugerido desde que os
olhos humanos o contemplaram pela primeira vez: o imenso abismo
infranqueável entre a morte e a vida». 84
«Deve-se observar que as diferenças às quais se faz alusão (são, por
ordem, a organização e a vida, a ideia objetiva – desenho, e a ideia
subjetiva – pensamento) são admitidas por aqueles mesmos alemães aos
que se lhes deve o conceito e nome de protoplasma. Eles, os mais
avançados e inovadores deles, admitem abertamente que existe na célula
“um princípio arquitetônico que não foi ainda detectado”. * Ao
82
As Regards Protoplasm, etc., pp. 41, 42.
83
Ibid., pág. 42.
84
Ibid., pág. 42.
*
Este «princípio arquitetônico» que não tinha sido ainda detectado é a informação codificada no seio
de cada célula. O suporte material desta informação é o Ácido Desoxirribonucleico (DNA) no núcleo
das células, e que é transcrito por uma complicada maquinaria envolvendo outras classes de ácidos
nucléicos, o Ácido Ribonucleico Mensageiro (ARNm) e o Ácido Ribonucléico de Transferência
(ARNt). Tudo isso funciona de maneira concatenada no seio de uma maravilhosa maquinaria fisico-
química programada e controlada por uma série de mecanismos cibernéticos de alta complexidade.
Mas observe-se que o código não é o DNA; antes, o DNA é só o suporte material do código, da
mesma maneira que a tinta e o papel não constituem uma mensagem, mas sim são suportes materiais
do mesmo, o qual pode ser suportado indiferentemente por meios mecânicos, magnéticos (como um
disco ou cinta de ordenador) ou de outros tipos. Mas a mensagem em si é imaterial, não estando
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 398
pronunciar o protoplasma como capaz de movimentos ativos ou vitais,
referem-se com isso, e admitem também, uma força imaterial, e atribuem
o processo exibido pelo protoplasma – e isso de maneira expressa – não,
às moléculas, mas sim à organização e à vida». 85
«Foram acaso os poderes moleculares os que inventaram uma
respiração, e os que perfuraram o ouvido posterior para dar um equilíbrio
de pressão de ar; os que compensaram a janela oval mediante uma janela
redonda; os que puseram nas cavidades auriculares aqueles otólitos,
aqueles ossos expressos para o ouvido? Uma maquinaria assim! As
cordas tendinosas são para as válvulas do coração uns cais de fechadura
exatamente ajustadas; e as contráteis colunas carneia estão dispostas para
durante a contração e a expansão equalizar sua longitude com sua
função. ... Temos que conceber que tal maquinaria, tais aparelhos, tais
inventos, são meramente moleculares? São as moléculas adequadas para
tais coisas – moléculas em sua passividade cega, e em sua inerte e hirta
insensibilidade? ... A verdade é que na presença destas ideias manifestas
é impossível atribuir unicamente à característica peculiar do
protoplasma, isto é, sua vitalidade, à mera química molecular. É verdade
que o protoplasma se desagrega em carbono, hidrogênio, oxigênio e
nitrogênio, como a água em hidrogênio e oxigênio; mas um relógio se
desagrega em bronze, aço e vidro. Os materiais soltos do relógio –
incluso seus materiais químicos, se se quiser equivalem a seu peso com
tanta exatidão como os constituintes do protoplasma, o carbono, etc.,
equivalem ao dele. Mas nem estes nem aqueles tomam o lugar da ideia
desaparecida, que era o único elemento importante». 86 Por isso, há algo
no protoplasma que não pode ser pesado nem medido de nenhuma outra
maneira, e ao qual se devem atribuir os fenômenos vitais.
constituída pelas propriedades inerentes da matéria, mas antes, imposto sobre a matéria por um agente
inteligente. (Nota do Tradutor).
85
Ibid, pág. 43.
86
As regards Protoplasm, etc., pp. 47, 48.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 399
Assim, se o argumento da analogia fracassa em sua aplicação aos
fenômenos vitais, não se pode pretender que seja válido em sua
aplicação ao fenômeno da mente. Se recusamos a dar o primeiro passo,
nem o Professor Huxley pode demandar-nos que demos os seguintes.
Argumentos adicionais dos Materialistas.
Além do argumento analógico, os Materialistas insistem em que há
evidência direta da correlação das forças físicas com as forças vital e
mental. Lembremos o que é que isto significa. As forças correlacionadas
são aquelas que podem ser convertidas uma na outra, e que, por
conseguinte, são de natureza idêntica. Assim, o que se tem que
demonstrar neste caso é que a luz, o calor, etc., podem ser transformados
em vida e pensamento, e que o último é idêntico ao primeiro, sendo
ambas as classes solucionáveis no movimento das moléculas de matéria.
A prova é essencialmente a seguinte: O corpo animal gera calor
pela combustão do carbono do alimento que recebe, precisamente como
se produz calor com a combustão do carbono fora do corpo. E
demonstrou-se experimentalmente que a quantidade de calor produzido
pelo corpo é precisamente a mesma, com certa margem de erro, ao que
produziria a mesma quantidade de carvão se fosse queimado fora do
corpo. Por isso, o calor vital é idêntico ao calor físico.
Também, a força muscular é produzida precisamente da mesma
maneira que uma força física. A energia potencial do combustível move
a máquina de vapor. Seu trabalho ou energia se mede e determina pela
quantidade de energia armazenada na madeira ou no carvão consumidos
em sua produção. A fonte e medida da energia muscular encontram-se,
similarmente, nos alimentos que consumimos. Sua energia potencial,
derivada do sol, como sucede com a energia potencial da madeira e do
carvão, produz, ao ser liberada, sua quantidade devida, nem mais nem
menos, de poder muscular. Por isso, a energia muscular é tão puramente
física, produzida da mesma maneira, e medida pela mesma norma, como
a energia da máquina de vapor.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 400
De maneira similar, «a energia nervosa, ou aquela forma de força
que, por um lado, estimula um músculo a contrair-se, e por outro aparece
em formas chamadas mentais» é meramente física. Provém da comida
que tomamos. Move-se. A velocidade de seu movimento foi determinada
como de noventa e sete pés por segundo. Seus efeitos são análogos aos
da eletricidade. Por esta e outras razões similares, assim, infere-se que «a
força nervosa é uma energia potencial transmutada». E isto não é menos
certo da força nervosa quando se manifesta em forma de pensamento e
emoção. Cada manifestação externa do força do pensamento, argumenta
o Professor Huxley, é de caráter muscular, e por isso análoga a outras
forças que produzem efeitos similares. Além disso, demonstrou-se que
cada exercício de pensamento ou de sentimento vai acompanhado de
uma transferência de calor, o que mostra que o pensamento se
transforma em calor. «Podemos, então, duvidar de que também o cérebro
seja uma máquina de conversão de energia? Podemos seguir recusando
crer que inclusive o pensamento está, embora de uma maneira
misteriosa, correlacionado com outras forças naturais? E isso inclusive
diante do fato de que nunca foi ainda medido?87
Para os homens, não cientistas de inteligência normal, para os
homens não dedicados ao estudo do sensível, é assombroso que tais
argumentos sigam sendo considerados válidos. Admitindo todos os atos
anteriores, o que é que demonstram? Admitindo que o calor animal seja
o mesmo em fonte e natureza com o calor fora do corpo; admitindo que
o poder muscular é físico em sua natureza e modo de produção,
admitindo que a energia nervosa seja também física; que diremos então?
Acaso estes fatos não nos dão nenhuma solução aos mistérios da vida, da
organização, da alimentação ou da reprodução? Acaso explicam em
alguma medida a formação do olho ou do ouvido, das relações mútuas e
interdependência dos órgãos do corpo? Admitindo que estas forças sejam
físicas, quem ou o que as emprega? O que é que conduz a operação das
87
Prof. Barker, Correlation of Vital and Physical Forces, p. 24.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 401
mesmas para corresponder a um desígnio preconcebido? Admitindo que
o poder muscular seja físico, o que é que o põe em marcha em algumas
ocasiões e não em outras; começando-o, prosseguindo-o ou
suspendendo-o à vontade? Está claro que os fatos que se aduzem não dão
solução nem aos fenômenos vitais nem aos voluntários. E quando
chegamos ao pensamento, admitindo que a ação mental vá acompanhada
de um desprendimento de calor, demonstra isso que o pensamento e o
calor sejam o mesmo? Quando nos envergonhamos nos ruborizamos,
quando nos atemorizamos empalidecemos; acaso estas fatos demonstram
que a vergonha e o temor e seus efeitos somáticos são uma e a mesma
coisa? Acaso a concomitância demonstra identidade? Ao demonstrar o
primeiro, estabelece-se o último? Acaso os fatos aduzidos demonstram
que a vergonha é calor e o calor vergonha, e que um se possa transformar
no outro? Todo mundo sabe que a dor produz lágrimas; mas ninguém
infere desta coincidência que a dor e a água salgada sejam idênticos.
Inclusive o Professor Tyndall, um «dos pensadores avançados», diz aos
materialistas que quando demonstraram tudo o que afirmam demonstrar,
não demonstraram nada. Deixam a conexão entre mente e corpo
precisamente onde estava antes. 88
88
Athenaeum de 29 de agosto de 1868, citado em Hussein Lectures for 1868; Apêndice, Nota A.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 402
a planta ou animal apodrece. Não se podem medir. As forças que não
admitem medição não admitem correlação, porque a correlação envolve
igualdade em quantidade.
«O pensamento», diz o Presidente Barnard, «não pode ser uma
força física, porque o pensamento não admite medição. Creio que se
concederá sem discussão que não há forma de substância material nem
força conhecida de natureza física (e não há outras forças) das quais não
possamos expressar de algum modo determinado sua quantidade,
mediante referência a alguma unidade convencional de medida. ... Não
se sugeriu tal meio para medir a ação mental. Não se podem conceber
tais meios. ... Agora, eu mantenho que uma coisa que não é mensurável
não pode ser uma quantidade; e que algo que não é nem sequer uma
quantidade não pode ser uma força» 89
Assim, a força vital e mental age com inteligência, previsão,
liberdade e desígnio. Seja onde for que resida a inteligência, é
perfeitamente evidente que todas as operações vitais se levam a cabo no
prosseguimento de um propósito. O calor e a eletricidade não podem
conformar um olho da mesma maneira que o bronze e o aço não podem
fazer um relógio, nem uma pena e um papel escrever um livro. Por isso,
a força inteligente difere em tipo da força ininteligente. Não apenas são
diferentes, mas também ademais contraditórias; a afirmação de uma é a
negação da outra.
90
Paper in the Agricultural Report, 1854-1855, p. 448.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 404
comuns. Entre a vitalidade posterior não há espaço, e não conhece
nenhuma sujeição às leis pelas quais são governados.” 91
Dr. Beale.
92
O Dr. Beale é igualmente explícito. Ele constantemente insiste
que os atos voluntariamente, com escolha para realizar um fim, não
podem ser físicos; e que operações vitais e mentais são a evidência
indisputável de tal ação voluntária. Ele diz, “eu considero ‘vitalidade’
como uma energia de um tipo peculiar, não exibindo nenhuma analogia,
quaisquer forças conhecidas. Não pode ser uma propriedade da matéria,
porque é, em todos os sentidos, essencialmente diferente em suas ações
de todas propriedades conhecidas da matéria. A propriedade vital
pertence a uma categoria completamente diferente.” 93 Ele argumenta
também para provar que a organização não pode remeter a força física.
“Não se pode sustentar que os átomos se organizam a si mesmos, e que
cada um determina as posições, — e seria ainda mais extravagante
atribuir à força ou energia comum, regra atômica e agência diretiva.
Pode ser que também tratam de nos fazer crer que o fogo de laboratório
realizado é incendiado por si mesmo, que os compostos químicos que se
põem no crisol, e as soluções se dirigiram aos copos na ordem adequada,
e nas proporções exatas necessárias para formar certos compostos
definidos. Mas embora todos coincidimos em que é absurdo ignorar o
químico no laboratório, muitos insistem em ignorar a presença de
qualquer coisa que representa o químico na matéria viva que eles
chamam a “célula-laboratório”. Num caso o químico trabalha e guia,
mas no outro, sustenta-se, as moléculas sem vida da matéria são próprias
dos agentes ativos no desenvolvimento dos fenômenos vitais… Ninguém
91
Página 441.
92
Protoplasm; or Life, Matter, and Mind. By Lionel S. Beale, M. B., F. R. S. Second Edition.
London, J. Churchill & Sons, 1870. O Dr. Beale é uma autoridade no departamento de Fisiologia.
Seu livro, How to work with the Microscope, has reached a fourth edition.
93
Página 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 405
demonstrou, e ninguém pode demonstrar, que a mente e a vida são de
algum modo relacionadas com a química e a mecânica. . . . Tampouco
pode dizer-se que a vida funciona com as forças físicas e químicas, visto
que não há provas de que isto é assim. Por outro lado, é bem verdade que
a vida vence, de algum modo muito notável e desconhecido, a influência
de forças físicas e as afinidades químicas.” 94 Numa página anterior ele
havia dito: “Com o fim de convencer as pessoas que as ações dos seres
vivos não se devem a nenhuma misteriosa vitalidade ou força vital ou
poder, mas são na realidade física e química em sua natureza, o professor
Huxley dá à matéria que está viva, à matéria que está morta, e à matéria
que é mudada totalmente por assar ou ferver, o verdadeiro nome. O
assunto das ovelhas e cordeiro e o homem e o gafanhoto e o ovo é o
mesmo, e, segundo Huxley, a gente pode ser transubstanciado no outro.
Mas, como? Mediante ‘influências sutis,’ e ‘sob circunstâncias diversas,’
responde a esta autoridade. E todas estas coisas vivas, ou mortas, ou ao
forno, ele nos diz são atos de protoplasma, e este protoplasma é a base
física da vida, ou a base da vida física. Mas pode este descobridor de
‘influências sutis’ zombar da ficção da vitalidade?
Ao chamar as coisas que diferem entre si em muitas qualidades com
o mesmo nome, Huxley parece pensar que pode aniquilar as distinções,
fazer cumprir a identidade, e varrer as dificuldades que impediram o
progresso dos filósofos precedentes em sua busca da unidade. As
plantas, e os vermes, e os homens são todos protoplasma, e o
protoplasma é matéria albuminosa, e matéria albuminosa consiste em
quatro elementos, e estes quatro elementos possuem certas propriedades,
por cujas propriedades todas as diferenças entre plantas, e os vermes, e
os homens, têm que ser justificados. Embora Huxley provavelmente
admita que um verme não foi um homem, ele nos diria que por
“influências sutis” uma coisa possivelmente seja convertida facilmente
94
Protoplasm, etc., pp. 116, 117.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 406
na outra, e não por tais ficções absurdas como ‘a vitalidade,’ que nem
pode ser pesada, medida, nem concebida”. 95
Na porção posterior de seu livro o Dr. Beale mostra que o cérebro
não é uma glândula que secreta pensamento como o fígado secreta bílis;
nem é o pensamento uma função do cérebro, nem resultado de uma ação
mecânica ou química; nem é o cérebro uma pilha voltaica que dá
choques de pensamento, como conjetura Stuart Mill: é o órgão da mente,
não para gerar, senão para expressar o pensamento.
97
Barnard’s Address, p. 45.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 408
uma força física, e entretanto é ao significado que se deve o efeito. Diz o
doutor Barnard: «Quando somos demandados que como físicos nos
pronunciemos dizendo que a existência espiritual é um absurdo e que a
religião é um sonho, parece-me que não resta outra alternativa que a de
proclamar nosso desacordo, ou que se entenda com nosso silêncio que
aceitamos tal doutrina como própria. Quando se apresenta a alternativa
deste modo, sinto-me obrigado a falar, e a declarar minha convicção de
que como físicos não temos nada que ver quanto à filosofia mental; e que
ao tratar de reduzir os fenômenos da mente sob as leis da matéria,
afastamo-nos de nossa medida, não estabelecemos nada com certeza.
Atraem o ridículo sobre o nome da ciência positiva, e só alcançamos um
resultado inegável, o de fazer cambalear nas mentes de multidões umas
convicções que constituem a base de sua principal felicidade». 98
4. Os físicos não podem seguir sua própria teoria. Inclusive os
menos suscetíveis à força do supersensível se veem levados a admitir
que há mais na ação mental e vital que o que pode ser explicado pela
cega força física. O Dr. Carpenter, como já vimos, aceita a presença de
«uma agência diretiva»; os alemães, um «princípio arquitetônico»
desconhecido e não correlacionado, na matéria viva, para dar conta de
atos inegáveis para os quais a força física não oferece solução alguma.
Outros, cuja natureza espiritual não está tão totalmente submetida ao
sensível, desmoronam-se totalmente. Assim, o Professor Barker, do
Colégio Yale, depois de dedicar toda sua conferência para demonstrar
que a força vital e inclusive o pensamento «estão correlacionados com
outras forças naturais» (isto é, têm identidade com elas), chega no fim a
perguntar: «E é só isto? Não há atrás desta substância material um poder
mais elevado que o molecular nos pensamentos imortalizados na poesia
de um Milton ou de um Shakespeare, nas criações artísticas de um
Miguel Ângelo ou um Ticiano, nas harmonias de um Mozart ou de um
Beethoven? Não há realmente uma porção imortal separável deste tecido
98
Ibid, pág. 49.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 409
cerebral, embora misteriosamente unida ao mesmo? Numa palavra, não
encerra este corpo tão minuciosamente elaborado uma alma dada por
Deus, e que volta para Deus? Aqui a ciência vigia seu rosto, e se prostra
em reverência perante o Onipotente. Passamos os limites nos quais está
encerrada a ciência física. Nenhum crisol, nenhuma sutil agulha
magnética, poderão nos dar a resposta agora a nossas perguntas.
Nenhuma palavra mais que a dAquele que nos formou poderá romper o
terrível silêncio. Na presença de tal revelação a ciência está muda, e a fé
entra prazerosa para aceitar aquela verdade maior que nunca pode ser
objeto de uma demonstração física». 99
Assim, faz-se evidente, afinal de contas, que no homem há uma
alma; que a alma não é o corpo, nem uma função do mesmo; que é o
sujeito e agente de nossos pensamentos, sentimentos e volições. Mas isto
é precisamente o que esta conferência queria refutar. Assim, a ciência do
Professor Barker expira aos pés de sua religião. Apaga sua tocha na fonte
de uma ordem de verdades mais elevadas que as que admitem
«demonstração física». O πρῶτον ψεῦδος [próton pseudos] de toda a
teoria é que nada é verdade que não possa ser demonstrado fisicamente;
isto é, o que não possa ser sentido, pesado ou medido de alguma outra
maneira.
Wallace, o naturalista
Uma ilustração ainda mais notável da insuficiência dos princípios
materialistas nos dá o distinto naturalista Alfred Russel Wallace, citado
anteriormente. Depois de dedicar todo seu livro para defender a doutrina
de seleção natural, que atribui a origem de todas as espécies e gêneros de
plantas e animais à operação cega das forças físicas, chega à conclusão
de que não existem tais forças. Que tudo é «Mente». A Matéria não
existe. A matéria é força, e a força é mente; de maneira que «todo o
universo não só depende de, mas também na realidade é a VONTADE
99
Barker’s Lecture, pp. 26, 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 410
100
de inteligências superiores, ou de uma Inteligência Suprema». Ele
mantém que em lugar de admitir a existência de alguma coisa
desconhecida chamado matéria, e que a mente é «outra coisa, seja
produto desta matéria e de seus supostas forças inerentes, ou distinta de e
coexistente com ela», que é uma «crença muito mais simples e coerente
que a matéria, como entidade distinta da força, não existe; e que a força é
um produto da MENTE. A filosofia,», acrescenta ele, «já tinha
demonstrado há muito nossa incapacidade para demonstrar a existência
da matéria, tal como se concebe geralmente, enquanto que admitia a
demonstração para cada um de nós de nossa existência consciente de si
mesma, ideal. A ciência chegou agora trabalhosamente ao mesmo
resultado, e esta concordância entre ambas deveria dar-nos alguma
confiança em seu ensino conjunto».101 Assim, com um só passo, cobre-
se o abismo entre o Materialismo e o panteísmo idealista. Isto, ao menos,
constitui uma concessão de que as forças físicas não podem explicar os
fenômenos da vida e da mente; e isto é conceder que o Materialismo,
como teoria, é falso.
O grande erro dos Materialistas é que começam no extremo errado.
Começam com a matéria cega e inerte, e tratam de deduzir dela e de suas
mudanças moleculares todas as infinitas maravilhas da organização, da
vida e da inteligência que o universo exibe. Trata-se de um intento de
tirar tudo do nada. A mente humana, em seu estado natural, sempre
começa com Deus. Ele, como a Bíblia nos ensina, é um Espírito Infinito,
e por isso consciente de Si mesmo, inteligente e voluntário; criador de
todas as coisas; da matéria com suas propriedades, e das mentes finitas
com seus poderes; e que controla todas as coisas com Sua sabedoria e
poder sempre presentes; de modo que toda a inteligência indicada em
forças não inteligentes é só uma forma da infinita inteligência de Deus.
Esta é a solução do problema do universo que se dá nas Escrituras;
100
Wallace, Contributions to the Theory of Natural Selection, p. 368.
101
Ibid., p. 369.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 411
solução que dá satisfação a toda nossa natureza, racional, moral e
religiosa.
Todos os trabalhos na Psicologia, e na história da Filosofia, contêm
discussões sobre os princípios do Materialismo. O capítulo IV da
qualificada obra do Dr. Buchanan, “Faith in God and Modern Atheism
Compared,” é dedicado à história e ao exame dessa teoria. Veja-se
também o capítulo II da introdução a obra elaborada do Professor Porter,
“The Human Intellect.” O Professor Porter dá, na página 40, uma conta
copiosa da literatura da matéria. Na “Real-Encyklopädie,” de Herzog, o
artigo Materialismo, uma conta é dada dos principais trabalhos alemães
recentes contra a forma moderna da doutrina.
Entre as obras mais importantes neste assunto, além da escrita de
Comte e seus discípulos ingleses, J. Stuart Mill, e H. G. Lewes, estão
Herbert Spencer's “First Principles of a New System of Philosophy,” e
seu “Biology” em dois volumes: Maudsley's “Physiology and Pathology
of Mind;” Laycock (Professor na Universidade de Edimburgo), “Mind
and Brain;" Huxley's “Discourse on the Physical Basis of Life;” seu
“Evidence of Man's Place in Nature” e “Introduction to the Classification
of Animals:” and his “Lay Sermons and Essays;” Professor Tyndall's
“Essay on Heat;” “The Correlation and Conservation of Force: A Series
of Expositions, by Professor Grove, Professor Helmholtz, Dr. Mayer, Dr.
Faraday, Professor Liebig, and Dr. Carpenter; with an Introduction by
Edward L. Youmans, M. D.; “Alexander Bain (Professor of Logic in the
University of Aberdeen), “The Senses and the Intellect;" “The Emotions
and the Will;” “Mental and Moral Science;” “Kraft und Stoff, von
Ludwig Büchner. Zehnte Auflage. Leipzig, 1869.” Pelo mesmo autor:
“Die Stellung dê Menschen in der Natur in Vergangenheit, Gegenwart
und Zukunft. Oder Woher kommen wir? Wer sind wir? Wohin gehen
wir? Leipzig, 1869.” Também: “Sechs Vorlesungen uber die
Darwin’sche Theorie von der Verwandlung der Arten und die erste
Entstehung der Organismenwelt. Leipzig, 1868.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 412
§ 5. Panteísmo.
A. O que é o Panteísmo.
102
Institutiones Theologiæ, fifth edit., Halle, 1826, p. 215.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 413
Princípios gerais do sistema.
Para o propósito da instrução teológica, é suficiente expor os vários
sistemas em que se unem em negar, e o que concordam substancialmente
em afirmar.
1. Negam todo dualismo no universo. As distinções essenciais entre
matéria e mente, entre alma e corpo, entre Deus e o mundo, entre o
Infinito e o Finito, ficam repudiadas. Há só uma substância, só um Ser
real. Por isso a doutrina é chamada Monismo, ou a doutrina totalmente
Um. «A ideia», diz Cousin, 103 «do finito, do infinito, e de sua relação
necessária como causa e efeito, encontram-se em cada ato da
inteligência, e não é possível distinguir um do outro; embora distintos,
estão ligados juntos, e constituem a una uma triplicidade e unidade». «O
primeiro termo (o infinito), embora absoluto, não existe de maneira
absoluta em si mesmo, mas sim como causa absoluta que tem que
suceder a ação, e manifestar-se no segundo (o finito). O finito não pode
existir sem o infinito, e o infinito só pode vir a ser real desenvolvendo-se
no finito».
Toda a filosofia está baseada, diz ele, nas ideias de «unidade e
multiplicidade», «de substância e fenômeno». «Observem-se», diz ele,
«todas as proposições que enumeramos reduzidas a uma só, tão vasta
como a razão e o possível, à oposição da unidade e da pluralidade, da
substância e do fenômeno, do ser e da aparência, da identidade e da
diferença». 104 Todos os homens, diz ele, creem «como numa combinação
de fenômenos que deixariam de ser no momento em que a substância
eterna deixasse de sustentá-las; creem, por assim dizer, na manifestação
visível de um princípio oculto que lhes fala sob esta coberta, e que eles
adoram na natureza e na consciência». 105 «Porquanto Deus é dado a
conhecer só enquanto Ele é causa absoluta, por isso mesmo, em minha
opinião, Ele não pode deixar de produzir, pelo que a criação deixa de ser
103
Psychology, por Henry, primeira edição, pág. XVIII.
104
History of Philosophy, traduzida por Wight, N.Y., 1852, pág. 78.
105
Ibid., pág. 121.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 414
ininteligível, e Deus não está mais sem mundo como o mundo não está
sem Deus». 106 É um dos mais familiares aforismos dos filósofos
alemães: «Ohne Welt kein Gott; und ohne Gott keine Welt».
Renan, em seu livro Vida de Jesus, entende por Panteísmo o
materialismo, ou a negação de um Deus vivo. Esta excluiria todas as
formas das doutrinas mantidas por panteístas idealistas de todas as
épocas. O doutor Calderwood declara panteísta a doutrina da criação
exposta pelo Sir William Hamilton, porque nega que a soma da
existência possa ser aumentada ou diminuída. Sir William Hamilton
ensina que quando dizemos que Deus criou o mundo do nada, que só
podemos significar que «Ele evolui a existência proveniente dele
mesmo». Embora todas as formas de Panteísmo são monistas, exceto o
Hilozoísmo, que é propriamente um dualismo, entretanto a mera doutrina
da unidade de substância não constitui Panteísmo. Por objetável que seja
a doutrina de que tudo o que existe, inclusive a matéria sem organizar, é
da substância de Deus, esta foi sustentada por muitos Teístas cristãos.
Não envolve necessariamente a negação da distinção essencial entre
matéria e mente.
2. Entretanto, diferem quanto à natureza do Infinito como tal, seja
que se trate de matéria ou de espírito, ou daquilo do que se possa pregar
tanto pensamento como extensão (potencial); ou se se trata do próprio
pensamento, ou de força, ou de causa, ou de nada; isto é, daquilo do que
nada se possa afirmar nem negar; uma quantidade simples e
desconhecida; todos concordam em que não tem existência nem antes
nem fora do mundo. Por isso, o mundo não só é consubstancial a Deus,
mas também coeterno com Ele.
3. Isto, naturalmente, descarta a ideia de criação, exceto como um
processo eterno e necessário.
4. Negam que o Ser Infinito e Absoluto tenha em Si mesmo nem
inteligência, nem consciência nem vontade. O Infinito vem à existência
106
Psychology, quarta edição, N.Y., 1856, pág. 447.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 415
no Finito. A totalidade da vida, e a consciência, da inteligência, e o
conhecimento do último, isto é, do mundo. «Omnes (mentes)», diz
Espinoza, «simul Dei reternum et infinitum intellectum constituunt».107
«Só Deus é, e fora dEle nada há». 108 “Seine Existenz als Wesen ist unser
Denken von ihm; aber seine reale Existenz ist die Natur, zu welcher das
einzelne Denkende als moment gehört.” 109
5. O Panteísmo nega a personalidade de Deus. A personalidade,
assim como a consciência, implica uma distinção entre o Eu e o Não Eu;
e tal distinção é uma limitação inconsequente com a natureza do Infinito.
Portanto, Deus não é uma pessoa que possa dizer Eu, e a que possamos
dirigimos como Tu. Ao vir Ele à existência, à inteligência e à
consciência só no mundo, Ele é os uma pessoa só até onde compreende
em Si mesmo todas as personalidades, e a consciência da soma das
criaturas finitas constitui a consciência de Deus. «A verdadeira doutrina
de Hegel a respeito disto», diz Michelet, 110 «não é que Deus seja uma
pessoa em distinção a outras pessoas; nem que Ele seja simplesmente a
substância universal e absoluta. Ele é o movimento do Absoluto fazendo-
se sempre a si mesmo subjetivo; e no subjetivo primeiro vem à
objetividade ou à verdadeira existência». «Segundo Hegel», acrescenta
ele, «Deus é o único verdadeiro Ser pessoal». «Porquanto Deus é
personalidade eterna, assim produz eternamente seu outro eu, isto é, a
Natureza, a fim de alcançar a consciência de si mesmo».
Desta doutrina se desprende necessariamente que Deus é a
substância da que o universo é o fenômeno; que Deus não tem existência
senão no mundo; que a consciência acrescentada e a vida do Finito é, por
agora, toda a consciência e vida do Infinito; que o Infinito não pode ser
uma pessoa distinta do mundo, a que possamos dizer: Tu. A respeito
disto, Cousin diz: «Privem-me de minhas faculdades, e a consciência que
107
Ethics, V. XL. Schol., Edição de Jena, 1803, pág. 297.
108
Von seligen Leben, p. 143, edit. Berlin, 1806.
109
Strauss, Dogmatik I. p. 517.
110
Geschichte der letzen Systeme der Philosophie in Deurschland, vol. II. pág. 647.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 416
me dá testemunho das mesmas, e eu não sou para mim mesmo. O mesmo
é com Deus; tirem a natureza, e a alma, e todo sinal de Deus
desaparece». 111 O que seria a alma sem faculdades e sem consciência,
isto é Deus sem o universo. Um Deus inconsciente, sem vida, de quem
nada se pode pregar mais que o simples ser, não só não é uma pessoa,
mas também Ele é, para nós, nada.
6. O homem não é uma subsistência individual. Ele é tão somente
um momento na vida de Deus; uma onda sobre a superfície da mar; uma
folha que cai e que é renovada ano após ano.
7. Quando o corpo, que estabelece a distinção de pessoas entre os
homens, perece, a personalidade cessa com isso. Não há existência
consciente para o homem depois da morte. Schleiermacher, em seus
Discourses, diz: A piedade em que foi criado em sua juventude
«permaneceu comigo quando o Deus e a imortalidade de minha infância
desapareceram de meu olhar cheio de dúvidas». 112 A respeito desta
confissão comenta o Sr. Hunt, pároco do St. Ives, Hunts: «O ‘Deus e
imortalidade’ de sua infância desapareceram. O Deus pessoal a quem
adoravam os morávios foi mudado pela Divindade impessoal da
filosofia. E sua teologia não parecia ímpia. Não, era a própria essência da
verdadeira religião». Há boas razões para crer que, com relação à
existência pessoal da alma depois da morte, Schleiermacher sacrificou
sua filosofia à sua religião, como certamente o fez em outros pontos.
Isto, entretanto, só mostra com maior clareza quão inconsequente é a
postura panteísta da natureza de Deus com a doutrina da existência
consciente depois da morte. A absorção da alma em Deus, do Finito no
Infinito, é o destino mais elevado que o Panteísmo pode lembrar ao
homem.
8. Como o homem é só um modo da existência de Deus, seus atos
são os atos de Deus, e como os atos de Deus são necessários, segue-se
111
Lectures on the True, the Beautiful, and the Good, tradução de Wight, N.Y., 1854, pág. 365.
112
Hunt’s Essay on Pantheism, Londres, 1866, pág. 312.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 417
disso que não pode haver livre-arbítrio no homem. Diz Espinoza, 113
“Hinc sequitur mentem humanam partem esse infiniti intellectus Dei: ac
proinde cum dicimus, mentem humanam hoc vel illud percipere, nihil
aliud dicimus, quam quod Deus, non quatenus infinitus est, sed quatenus
per naturam humanæ mentis explicatur, sive quatenus humanæ mentis
essentiam constituit, hanc vel illam habeat ideam.” “In mente nulla est
absoluta sive libera voluntas. Mens certus et determinatus modus
cogitandi est adeoque suarum actionum non potest esse causa libera.” 114
“Eodem hoc modo demonstratur, in mente nullam dari facultatem
absolutam intelligendi, cupiendi, amandi, etc.” 115
Diz Cousin: «Deste modo chegamos, na análise do mim, ainda por
via da psicologia, a um novo aspecto da ontologia, a uma atividade
substancial, anterior e superior a todas as atividades fenomênicas, a qual
produz todos os fenômenos da atividade, sobrevive a todos eles, imortal
e inesgotável, na destruição de suas manifestações temporais». 116 Assim,
nossa atividade é só uma manifestação temporal da atividade de Deus.
Todos nossos atos são Seus atos. 117
Hunt, analisando o sistema de Espinoza, e empregando
principalmente sua linguagem neste ponto, diz: «Espinoza atribuía a
Deus uma espécie de liberdade: uma livre necessidade. Mas às
existências criadas inclusive esta classe de liberdade é negada. “Não há
nada contingente na natureza dos seres; ao contrário, todas as coisas
estão determinadas pela necessidade da natureza divina para que existam
e ajam segundo uma maneira determinada”.
A “Natureza produzida” fica determinada pela “natureza
produtora”. Não age, antes, se age sobre ela. A alma do homem é um
113
Ethices, part ii. prop. xi. coroll., vol. ii. p. 87, edit. Jena, 1803.
114
Ibid. prop. xlviii. Demon. vol. ii. p. 121.
115
Ibid. Scholium.
116
Elements of Psychology, traduzido por Henry, N. Y., 1856, pág. 429.
117
Princeton Review, 1856, p. 368.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 418
autômato espiritual. ... Não pode haver nada arbitrário nos necessários
desenvolvimentos da essência divina». 118
Ao fazer o Panteísmo a criação de um desenvolvimento eterno,
necessário e continuado do Ser Infinito, toda a liberdade das segundas
causas fica necessariamente excluída. Pode-se fazer uma distinção entre
a necessidade pela que uma pedra cai ao solo e a necessidade pela qual
uma mente pensa; mas a necessidade é tão absoluta num caso como no
outro. A liberdade no homem é autodeterminação racional, isto é,
espontaneidade determinada pela razão. Mas a razão no homem, segundo
o Panteísmo, é impessoal. É Deus explicado em nós. Todos os atos da
mente humana são os atos de Deus determinados pela necessidade de sua
natureza. A mesma doutrina do fatalismo está implicada na ideia de que
a história é meramente o autodesenvolvimento de Deus. Uma ideia, do
Ser do Ser Infinito, exibe-se numa época ou nação, e outra diferente por
outra. Mas o todo é um processo tão necessário de desenvolvimento
como o crescimento de uma planta.
Assim, Sir William Hamilton diz que Cousin destrói a liberdade
divorciando-a da inteligência, e que sua doutrina é inconsequente não só
com o Teísmo, mas também com a moralidade, que não pode ser
fundamentada «numa liberdade que, no melhor dos casos, só escapa à
necessidade refugiando-se no acaso». 119 E Morell, um elogiador de
Cousin, diz que, segundo Cousin, «Deus é o oceano, nós só as ondas; o
oceano pode ser uma individualidade, e cada onda outra; mas contudo
são essencialmente uma e a mesma coisa. Não vemos como o Teísmo de
Cousin possa ser consistente com nenhuma ideia de mal moral; e
tampouco vemos como, partindo de tal dogma, pode jamais ele vindicar
e manter sua própria teoria da liberdade humana. Sobre tais princípios
Teístas, todo pecado deve ser simplesmente defeito, e todo defeito tem
que ser absolutamente fátuo». 120
118
Essay on Pantheism, p. 231.
119
Hamilton’s Discussions, p. 43.
120
History of Modern Philosophy, N.Y. 1848, p. 660.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 419
9. O Panteísmo, ao fazer do homem um modo da existência de
Deus, e ao negar toda liberdade da vontade, e ao ensinar que toda
«atividade fenomênica» é «uma manifestação fugaz» da atividade de
Deus, descarta toda possibilidade de pecado. Isto não significa que não
haja no homem sentimentos de aprovação e de desaprovação, nem uma
diferença subjetiva entre o bem e o mal. Isto seria tão absurdo como
dizer que não há diferença entre o prazer e a dor. Mas se Deus é ao
mesmo tempo Deus, natureza e humanidade, se a razão em nós é a razão
de Deus, se sua inteligência é nossa inteligência, sua atividade nossa
atividade; se Deus é a substância da qual o mundo é o fenômeno, se nós
somos só momentos na vida de Deus, então não pode haver nada em nós
que não esteja em Deus. O mal é só uma limitação, ou um bem não
desenvolvido. Uma árvore é maior e melhor que outro; uma mente é
mais vigorosa que outra; um modo de ação é mais prazenteiro que outro;
mas todos ao mesmo tempo são modos da atividade de Deus. A água é
água, seja que se encontre num atoleiro ou no oceano; e Deus é Deus, em
Nero ou em São João. Hegel diz que o pecado é algo imensuravelmente
maior que o movimento dos planetas, sempre obediente a uma lei, ou
que a inocência das plantas. Esta é, trata-se de uma mais alta
manifestação da vida de Deus.
Espinoza ensina que «o pecado não é nada positivo. Existe para nós
mas não para Deus. As mesmas coisas que aparecem como odiosas nos
homens são consideradas com admiração nos animais. ... Disso se segue
que o pecado, que só expressa uma imperfeição, não pode consistir em
nada que expresse uma realidade. Falamos com impropriedade,
aplicando linguagem humana a que está além da linguagem humana,
quando dizemos que pecamos contra Deus, ou que os homens ofendem a
Deus». 121
É consequência necessária da doutrina de que Deus é o Ser
Universal, que quanto mais de ser tanto mais de Deus, e
121
Hunt’s Essay on Pantheism, pág. 231.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 420
consequentemente tanto mais de bem. Correspondentemente, quanto
menos de ser, menos de Deus. Assim, toda limitação é má, e o mal é
simplesmente limitação do ser. Diz Espinoza: 122 “Quo magis
unusquisque — suum esse conservare conatur et potest, eo magis virtute
præditus est; contra quatenus unusquisque — suum esse conservare
negligit, eatenus est impotens.” Na demonstração desta proposição, ele
diz: “Virtus est ipsa humana potentia,” 123 fazendo energia e bondade
idênticos. Diz o professor Baur, de Tubinga: 124 «O mal é o que é finito;
porque o finito é negativo: é a negação do infinito».
É só outra forma desta doutrina que o poder ou a força é no homem
o único bem. Esta não significa a força de submeter-se às injúrias, da
força do sacrifício abnegado, da força para ser humildes e para resistir às
más paixões, mas a força para levar a cabo nossos próprios propósitos
em oposição à vontade, aos interesses ou à felicidade de outros. Isto é: a
razão da força. O vencedor sempre tem razão, os vencidos sempre estão
errados. Esta é só uma manifestação de Deus, suprimindo ou
transbordando uma manifestação menos perfeita. A doutrina de Espinoza
é: «O homem vê-se obrigado por sua natureza ao prosseguimento do que
é apropriado, e o ódio ao contrário, porque «cada um deseja ou rechaça
por necessidade, segundo as leis de sua natureza, aquilo que ele
considera bom ou mau». Seguir este impulso não é só necessário, mas
sim é o direito e dever de cada homem, e deveria considerar-se como
inimigo todo aquele que deseja estorvar a outro da satisfação dos
impulsos de sua natureza. A medida do direito de cada um é seu poder.
O melhor direito é o dos mais fortes, e assim como o homem sábio tem
um direito absoluto a fazer tudo o que dita a razão, ou o direito de viver
conforme as leis da razão, assim o homem ignorante e insensato tem
direito a viver conforme as leis de seus apetites». 125 Jamais a linguagem
122
Ethices, IV. prop. XX., vol. II. p. 217, edit. Jena, 1803.
123
Ibid.
124
Zeitschrift, de Tubinga, 1834, Drittes Heft, pág. 233.
125
Hunt., op. cit., p. 233.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 421
humana expressou um princípio mais imoral e desmoralizador. Dizer que
o dever de todo homem é buscar sua própria satisfação, gratificar os
impulsos de sua natureza; afirmando que é inimigo de alguém aquele que
tenta estorvar esta gratificação; que o único limite a tal gratificação é
nosso poder; que os homens têm o direito, se a isso se sentem inclinados,
a viver conforme as leis de seus apetites, é o mesmo que dizer que não
existe nenhuma obrigação moral, nem nada como o bem e o mal.
Cousin repete até a náusea a doutrina de que a força dá a razão; que
os mais fortes são sempre os melhores. «Geralmente, no êxito vemos»,
diz ele, «só um triunfo da força. ... espero ter mostrado que, porquanto
sempre tem que haver uma parte vencida, e que porquanto a parte
vencida é sempre a que deveria ser vencida, acusar o vencedor e tomar
partido contra da vitória é tomar partido contra a humanidade, e se
queixar do progresso da civilização. É necessário ir além: é necessário
demonstrar que a parte vencida merece ser vencida; que o partido
vencedor não só serve à causa da civilização, mas também é melhor e
mais moral que a parte vencida». «A virtude e a prosperidade, a desgraça
e o vício, estão em necessária harmonia». «A fraqueza é um vício, e por
isso é sempre castigada e batida». «Já é hora», diz ele, «que a filosofia da
história ponha sob seus pés as declamações da filantropia».126
Naturalmente, se Deus é a vida do mundo, se todo poder é seu poder, se
cada ato é seu ato, tem que ser verdade não só que não pode ter pecado,
mas também que os mais poderosos são sempre moralmente (se é que
esta palavra tem algum significado) os melhores, e que a força dá a
razão. Esta é a teoria sobre a qual se baseia o culto aos heróis, não só
entre os pagãos, mas também entre pretendidos cristãos de nosso tempo.
10. O Panteísmo é a própria deificação. Se Deus vem à existência
só no mundo, e se tudo o que é é uma manifestação de Deus, disso se
segue que (pelo que a esta terra concerne, e até onde os panteístas o
admitem ou reconhecem) a alma do homem é a forma mais elevada da
126
History of Modern Philosophy, traduzido por Wight, New York, 1852, vol. I, págs. 186, 187, 189.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 422
existência de Deus. Como as almas dos homens diferem muito entre si,
sendo umas muito superiores a outras, quanto maior é o homem tanto
mais divino ele é, isto é, tanto mais representa a Deus; tanto mais revela
da essência divina. O ponto mais alto do desenvolvimento é alcançado só
por aqueles que chegam à consciência de sua identidade com Deus. Esta
é precisamente a doutrina dos hindus, que ensinam que quando um
homem pode dizer: «Eu sou Brahma», chegou o momento de sua
absorção no Ser infinito. Esta é a base sobre a qual os filósofos
panteístas erigem sua pretensão de preeminência, e a base sobre a qual
concedem a preeminência de Cristo. Ele, mais que nenhum outro
homem, sondou as profundidades de Sua própria natureza. Ele pôde
dizer como nenhum outro: «Eu e o Pai somos um». Mas a diferença
entre Cristo e outros homens, segundo estes filósofos, é só de grau. A
raça humana é a encarnação de Deus, o que é um processo de eternidade
a eternidade. «A humanidade», diz Strauss, «é o Deus-homem; a chave
de uma verdadeira cristologia é que os pregados que a Igreja dá a Cristo
como indivíduo pertencem a uma ideia, um todo genérico». 127
11. Só há outro passo a dar, e é a deificação do mal. E os Panteístas
não vacilam em dar este passo; até onde o mal existe, é uma
manifestação tão verdadeira de Deus como o bem. Os ímpios são só uma
forma da automanifestação de Deus. O pecado é só uma forma da
atividade de Deus. Esta terrível doutrina é admitida abertamente.
Diz Rosenkranz: 128 «Die dritte Consequenz endlich ist die, dass
Gott der Sohn auch als identisch gesetzt ist mit dem Subject, in welchem
die religiose Vorstellung den Ursprung des Bösen anschaut, mit dem
Satan, Phosphorous. Lucifer. Diese Verschmelzung begründet sich darin.
dass der Sohn innerhalb Gottes das Moment der Unterscheidung ist, in
dem Unterschied aber die Möglichkeit der Entgegensetzung und
Entzeweiung angelegt ist. Der Sohn ist der selbstbewusste Gott». Uma
127
Dogmatik, II, p. 215.
128
Encyklopädie, p. 51.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 423
oração como a anterior nunca foi escrita em inglês, e esperamos que
nunca o seja. A conclusão que mantém, entretanto, é inevitável. Se Deus
é tudo, e se há um Satã, Deus tem que ser Satã. Rosenkranz diz que a
mente se horroriza perante tal linguagem só porque não reconhece a
íntima relação entre o bem e o mal, que há mal no bem, e bem no mal.
Sem mal não pode haver bem.
É devido a esta deificação do mal que um recente escritor alemão 129
disse que este sistema deveria ser chamado Pandiabolismo em lugar de
Panteísmo. Se não erramos, é o autor do artigo em Kirchen-Zeitung, 130
editado por Hengstenberg, onde se diz: «esta é a verdadeira blasfêmia
positiva contra Deus – esta blasfêmia velada – este diabolismo do
enganoso anjo de luz – este prorromper em palavras temerárias, com as
quais o homem de pecado se senta no templo de Deus, dizendo que ele é
Deus. O Ateu não pode blasfemar com tanta energia como esta; sua
blasfêmia é meramente negativa. Simplesmente diz: “Não há Deus”. É
só do Panteísmo que pode proceder uma blasfêmia tão desenfreada, de
zombaria tão inspirada, tão devotamente ímpia, tão desesperada em seu
amor pelo mundo – uma blasfêmia tão sedutora e tão ofensiva que bem
pode atrair a destruição do mundo».
Entretanto, o panteísmo torna-se todas as coisas a todos os homens.
Aos puros lhes é dado lugar para um sentimento religioso sentimental
que vê a Deus em tudo e a tudo em Deus. Para os orgulhosos lhes é uma
fonte de uma arrogância e uma vaidade intoleráveis. Aos sensuais lhes é
dada autoridade para toda forma de indulgência. Sendo o corpo, segundo
a teoria de Espinoza, um modo da extensão de Deus, como a mente é um
modo da inteligência divina, o corpo tem seus direitos divinos, o mesmo
que a alma. Inclusive alguns dos mais respeitados da escola Panteísta
não vacilam em dizer, com referência aos freios da moralidade: «Está
certo que os direitos de nossa natureza sensual se afirmem, de vez em
129
O historiador Leo, cremos.
130
1836, pág. 575.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 424
131
quando, de maneira clara e firme». Por isso, este sistema, como
inclusive o diz o moderado Tholuck, «chega ao mesmo resultado que o
materialismo dos enciclopedistas franceses, que se lamentavam de que a
humanidade tivesse sacrificado os verdadeiros prazeres temporais pelos
imaginários prazeres da eternidade, e as prolongadas alegrias da vida
pela momentânea felicidade de uma morte em paz».
Assim, o Panteísmo submerge tudo em Deus. O universo é a forma
existencial de Deus; isto é, o universo é sua existência. Toda razão é sua
razão; toda atividade é sua atividade; a consciência das criaturas é toda a
consciência que Deus tem de Si mesmo; o bem e o mal, a dor e o prazer,
são fenômenos de Deus; modos nos quais Deus se revela, a maneira em
que Ele passa do Ser à Existência. Não é Ele, portanto, uma pessoa a
quem possamos adorar e em quem podemos confiar. É só a substância da
que o universo e tudo o que este contém são a manifestação sempre
cambiante. O Panteísmo não admite nenhuma liberdade, nenhuma
responsabilidade, nenhuma vida consciente após a morte. Cousin
recapitula a doutrina neste parágrafo inclusivo: «O Deus da consciência
não é um Deus abstrato, um monarca solitário exilado além dos limites
da criação, sobre o deserto trono de uma eternidade silenciosa, e de uma
existência absoluta que parece inclusive a negação da existência. Ele é
um Deus ao mesmo tempo verdadeiro e real, a uma substância e causa,
sempre substância e sempre causa, sendo substância só até onde Ele é
causa, e causa só até onde Ele é substância, quer dizer, sendo causa
absoluta, um e muitos, eternidade e tempo, espaço e número, essência e
vida, indivisibilidade e totalidade, princípio, fim e centro, no topo do Ser
e em seu menor grau, infinito e finito ao mesmo tempo, tríplice, numa
palavra, isto é, ao mesmo tempo Deus, natureza e humanidade. De fato,
se Deus não é tudo, é nada». 132
131
Evangelische Kirchen-Zeitung, 1839, pág. 31.
132
Bischer, citado em Philosophical Fragments, Prefácio à Primeira Edição. Veja-se History of
Modern Philosophy, traduzida por Wight, N.Y., 1852, Vol. I, págs. 112, 113.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 425
História do panteísmo
O Panteísmo demonstrou ser a forma de pensamento humano mais
persistente, assim como a mais estendida, a respeito da origem e da
natureza do universo, e sua relação com o Ser Infinito, cuja existência
em alguma forma parece ser uma assunção universal e necessária. As
ideias panteístas subjazem a quase todas as formas de religião que
existiram no mundo. O Politeísmo, que foi quase universal, tem sua
origem na adoração da natureza; e a adoração da natureza repousa sobre
a hipótese de que a Natureza é Deus, ou a manifestação, ou forma de
existência do infinito desconhecido. Naturalmente, é só um muito breve
esboço das diferentes formas deste prodigioso sistema de erro o que se
pode dar nestas páginas.
B. Panteísmo Brahmânico
*
Lembre-se que esta obra foi publicada em 1871. (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 427
circular de cento e setenta milhões de milhas de diâmetro. Falam de
montanhas de sessenta milhas de altura, e de períodos de quatro mil
milhões de milhões de anos.
Era Panteísta
O fato de a religião dos hindus ser fundamentalmente panteísta é
evidente:
1. Pelo que seus escritos sagrados ensinam a respeito do Ser
Supremo. designa-se por uma palavra em gênero neutro, Brahma. Nunca
é invocado como uma pessoa. Nunca é adorado. Não tem atributos,
senão os que se possam pregar do espaço. Diz-se que é eterno, infinito e
imutável. Diz-se que continuou por eras sem fim em estado de ser
ininteligente e inconsciente. Vem à existência, à consciência e à vida no
mundo. Desenvolve-se a si mesmo ao longo de incontáveis eras em todas
as formas da existência finita; logo, por meio de um processo gradual
semelhante; todas as coisas ficam submersas no ser inconsciente. As
ilustrações da origem do mundo usualmente empregadas são faíscas
surgindo de uma massa ardendo, ou melhor ainda, vapor surgindo do
oceano, condensando-se, e voltando a cair à fonte da qual proveio. O Ser
como tal, ou o Infinito, é, portanto, contemplado em três aspectos: como
vindo à existência, como desenvolvendo-se a si mesmo no mundo, como
recebendo de novo todas as coisas no abismo do simples ser. Estes
diferentes aspectos são expressos pelas palavras Brahma, Vishnu e
Shiva, com os que se correspondem muito imperfeitamente nossos
termos de Criador, Preservador e Destruidor.
Temos aqui a fórmula panteísta constantemente recorrente: Tese,
Análise, Síntese; Ser, Desenvolvimento, Restauração; o Infinito, o Finito,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 429
e sua Identidade. A principal diferença entre o sistema Brahmânico e as
teorias dos panteístas posteriores é que estes últimos fazem o universo
coeterno com Deus. De eternidade a eternidade, o Infinito se desenvolve
no Finito. Enquanto que, segundo o sistema Brahmânico, houve um
período inconcebivelmente longo de repouso anterior ao processo de
desenvolvimento, e que este processo, depois de milhões de milhões de
eras, deve ser seguido por um processo semelhante de inconsciência e
repouso.
133
Essays and Lectures chiefly on the Religion of the Hindus, Vol. ii., p. 75; ed. de Londres, 1862.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 431
monstro de iniquidade, mas tem a certeza do céu». «A certeza do ciclo»
é uma forma cristã de expressão, e comunica uma ideia alheia à mente
hindu. O que um adorador assim espera é que quando voltar a nascer no
mundo possa ser num estado superior e muito mais próximo à sua final
absorção. Como o Professor Wilson é não só moderado, mas também
quase um apologista na exposição que faz da religião hindu, a declaração
recém-citada não pode ser suspeita de distorção nem de exagero.
134
A History of Ancient Sanskrit Literature, so far as it illustrates the Primitive Religion of the
Brahmans, pp. 18, 19.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 435
mundo, os deuses, todos os seres, este universo, fora do Espírito Divino,
deveria ser abandonado por todos eles. Este Bramanismo, este poder
kshatra, este mundo, estes deuses, estes seres, este universo, tudo é o
Espírito Divino». 135
As ilustrações empregadas pelo orador para mostrar as relações do
universo fenomênico com Deus se derivam dos sons surtos de um
tambor ou de um alaúde, de fumaça surgindo de um fogo, de vapor do
mar. Acrescenta ele: «Sucede conosco, quando entramos no Espírito
Divino, como se fosse lançado ao mar um punhado de sal; dissolve-se na
água (da qual foi produzida), e não deve voltar a ser tirado dela. Mas
onde se tire água e se prove, é sal. Assim é este grande, infinito e
ilimitado Ser uma só massa de conhecimento. Assim como a água se
torna sal, e o sal volta a converter-se em água, assim o Espírito Divino
apareceu dos elementos, e volta de novo para eles. Quando nos
desvanecemos, já não há mais nenhum nome». 136
Por isso, não pode haver nenhuma dúvida razoável de que o
Panteísmo está na base da religião na Índia. Há, certamente, a mesma
diferença entre o atual complexo e corrompido politeísmo das hindus e
os ensinos dos Vedas que a que há entre o Catolicismo Romano de
nossos dias e a cristandade primitiva. Entretanto, há esta importante
distinção entre os dois casos: O Papado é uma perversão do cristianismo
mediante a introdução de elementos incongruentes derivados de fontes
judaicas e pagãs, enquanto que a religião da Índia moderna é o resultado
legítimo e lógico dos princípios dos mais antigos e mais puros escritos
sagrados hindus.
As fontes mais acessíveis de informação sobre a literatura e a
religião da Índia, são os escritos do Sir William Jones, os escritos de
Colebrooke, o Diário da Sociedade Asiática, as obras do Prof. Wilson, de
Oxford, em especial seus “Essays and Lectures om the Religion of the
135
History of Ancient Sanskrit Literature, pág. 23.
136
Ibid, p. 24.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 436
Hindus”; a obra do Max Müller que acabamos de citar. A “India and
Indian Missions,” do Dr. Duff, e as histórias da Índia, por Macaulay,
Elphinstone, etc.
C. O panteísmo grego.
A escola jônica.
A mais antiga escola entre os gregos foi a jônica, representada por
Tais de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes também de Mileto, e
Heráclito de Éfeso. Estes filósofos floresceram por volta de 600 a 500
a.C. Todos eram materialistas em suas teorias. Para Tales, a substância
primária universal era a água; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 437
era o fogo «Foi o intento desta mais antiga das filosofias jônicas, deduzir
a origem de todas as coisas de uma causa radical simples, uma
substância cósmica, em si mesma imutável, mas entrando na mudança
dos fenômenos; e é por isso que estes filósofos não tinham lugar em sua
doutrina para deuses, ou seres transmundanos, fazendo e regendo as
coisas segundo sua vontade; e, de fato, Aristóteles observou também a
respeito dos antigos fisiológicos, que não tinham distinto a causa do
movimento da própria matéria ». Döllinger diz de Heráclito, em sua
erudita obra The Gentile and the Jew in the Courts of the Temple of
Christ, 137 que «por seu "fogo" significava uma substância etérea como
matéria primordial, a alma que impregnava o Universo, e que era sua
alma animadora, uma matéria que ele concebia não como um mero fogo
presente, mas sim calórico, e este ser, ao mesmo tempo o único poder
operando no mundo, omnicriativo e destruidor de maneira alternativa,
era, por falar de maneira geral, a única existência real e verdadeira entre
todas as coisas. Porque tudo tinha sua origem só na constante
modificação deste fogo eterno e primordial: todo mundo era um fogo
morrendo e voltando-se para acender numa sucessão fixa, enquanto que
os outros elementos são só fogo convertido por condensação e rarefação
numa variedade de formas. Assim, a ideia de um ser permanente é um
engano; tudo está em estado de perpétuo fluxo, um eterno indo ser
(Werden), e nesta corrente o espírito é arrastado assim como o corpo,
sorvido, e voltado a nascer renovadamente.... Heráclito, como qualquer
outro Panteísta consistente o faria, chamou Zeus à alma comum do
mundo, ao fogo todo inclusivo; e o fluir da mudança perpétua e a
tendência a ser, na qual isso entra, denominou-o poeticamente como
Zeus brincando consigo mesmo». 138
Cousin diz: “Porque a escola jônica, tanto em seus etapas, não havia
outro Deus que a natureza. O panteísmo é inerente a seu sistema. O que é
137
Döllinger. The Gentile and the Jew, traduzido por Darnell, Londres, 1862 Vol. I pág. 250.
138
Ibid. Vol. I. pág. 252.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 438
o panteísmo? É a concepção do universo, como a única existente, como
autossuficiente, e que tem sua explicação em si mesmo. Toda a filosofia
nascente é uma filosofia da natureza, e portanto se inclina ao panteísmo.
O sensacionalismo dos jônios por necessidade teve essa forma, e, para
falar francamente, o panteísmo não é mais que ateísmo.” 139
Cousin adapta a definição de panteísmo a fim de excluir de seu
sistema. Com ele, o universo material por si só não é Deus. Ele crê em
“Deus, a natureza e a humanidade.” Mas estes três são um. “Se Deus,”
ele diz, “não é tudo, Ele não é nada.” Isto, entretanto, é verdadeiro
panteísmo (embora numa forma mais filosófica), como o materialismo
dos jônicos.
A escola eleática.
A escola eleática ou italiana da que os principais expoentes são
Xenofonte, Parmênides e Zenão, estava inclinada para o outro extremo,
ao de negar a mesma existência da matéria. Destes filósofos diz Cousin,
«Deduziram-no tudo a uma existência absoluta, que se aproximava quase
ao Niilismo, ou a negação de toda existência». 140 De Xenofonte, nascido
em Cólofon em 617 a.C., diz Döllinger: 141 «Com todas as suas asserções
de tipo monoteísta, seguia sendo um Panteísta, além disso, um Panteísta
materialista e os antigos assim o entenderam universalmente. Certamente
que tinha presente em sua mente a ideia de um ser, um e espiritual,
abrangendo todo o complemento da existência e pensamento dentro de si
mesmo; mas este ser era em seu ponto de vista só o poder geral da
natureza; a unidade de Deus era para ele idêntica com a unidade do
mundo, e esta, novamente, só a manifestação do ser invisível, chamado
Deus, e por isso ele o explicava como incriado, eterno e imperecível». É
difícil ver nenhuma distinção entre esta e a moderna doutrina panteísta
de que Deus é a substância da qual o mundo é o fenômeno; ou por que
139
Histoire Generale de la Philosophie, Paris, 1863, vol. I. p. 107.
140
Historie Generale de la Philosophie, Paris, 1867, vol. I. p. 116; edit. 1863, p. 111.
141
The Gentile and the Jew, vol. I. p. 260.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 439
Xenófanes deve ser considerado como mais materialista que Schelling
ou Cousin.
Parmênides de Eleia, em cerca de 500 a.C., era mais idealista. Ele
alcançou a ideia de um ser puro e simples em oposição ao princípio
material da escola jônica. Mas este «ser» não era uma «ideia metafísica
pura, porque». diz Döllinger, «expressou-se de tal maneira que parecia
representá-la num momento como corpórea, e estendida no espaço, e em
outro momento como pensante. Um de seus ditos era: "Pensar, e o objeto
do qual é o pensamento são uma e a mesma coisa".... Para Parmênides
não havia nenhuma ponte que levasse deste puro e simples "ser" ao
mundo dos fenômenos, do múltiplo e do movimento; e por isso negou a
realidade de tudo o que vemos; todo mundo dos sentidos devia sua
existência só às ilusões do sentido e aos vácuos conceitos que os mortais
erigiam em torno a isso». 142 Assim, Parmênides antecipou Schelling ao
ensinar a identidade de sujeito e objeto.
Os Estoicos.
Os Estoicos se originam com Zenão de Cítio, no Chipre (340-260
a.C.). A doutrina dos mesmos já foi tratada sob o cabeçalho do
Hilozoísmo. Döllinger diz deles: «O sistema Estoico está erigido sobre
um absoluto Materialismo, edificado sobre doutrina heraclítica. Adotou
só causa corporais, e só reconhece dois princípios – a matéria e uma
atividade residente na matéria, desde a eternidade, como é a energia, e
lhe dando forma. Todo o real é corpo; não há coisas imateriais,
porquanto nossas abstrações, espaço, tempo, etc., só têm existência em
nossos pensamentos; pelo que tudo o que realmente existe só pode ser
conhecido através dos sentidos».143 Entretanto, esta avaliação fica
modificada pelo que diz em outros lugares. Está muito claro que os
Estoicos posteriores, especialmente entre os latinos, como Sêneca e
142
Ibid. vol. i. p. 261.
143
The Gentile and the Jew, Vol. I., pág. 349.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 440
Marco Aurélio, consideravam o princípio geral que animava a matéria
como possuidor de todos os atributos da mente. A respeito disto diz
Döllinger: «Os dois princípios, matéria e energia, são para os Estoicos só
uma e a mesma coisa considerada em diferentes relações. A matéria
demandava para sua existência um princípio de unidade para lhe dar
forma e mantê-la junta. E este, o elemento ativo, é inconcebível sem
matéria, como sujeito em que e sobre que existe e habita, e em que opera
e se move. Assim, o elemento positivo é matéria; mas concebida sem
propriedades; o elemento ativo, impregnando-o e vivificando o todo, é
Deus na matéria. Mas a verdade é que Deus e a matéria são idênticos; em
outras palavras, a doutrina Estoica é Panteísmo hilozoico». «Assim,
Deus é a alma e mundo, e o próprio mundo, não agregado de elementos
independentes, mas sim um ser organizado, vivente, cujo complemento e
vida é uma só alma, ou fogo primordial, exibindo diferentes graus de
expansão e de calor. ... Deus, assim, em seu aspecto físico, é o fogo
mundano, ou calor vital, que tudo penetra, a só e única causa de toda
vida e movimento, e, ao mesmo tempo, a necessidade que rege o mundo;
mas, por outro lado, como a causa universal só pode ser uma alma cheia
de inteligência e sabedoria, ele é a inteligência do mundo, um ser bem-
aventurado, e o autor da lei moral, que está constantemente ocupado no
governo do mundo, embora seja precisamente este próprio mundo». 144
“A única substância é Deus e a natureza em conjunto, dos quais tudo o
que deve ser, e deixa de ser, toda a geração e a dissolução, são meras
modificações. Sêneca explica Zeus ou o ser de Deus ao mesmo tempo o
mundo e a alma do mundo, apontando o homem, que se sente ser um só
e mais uma vez como um composto por duas substâncias, o corpo e a
alma.” 145
Os Estoicos adotaram a doutrina hindu da dissolução de todas as
coisas e do redesenvolvimento de Deus no mundo após longos períodos
144
Ibid. pp. 349-350.
145
Ibid. p. 350.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 441
sucessivos. «Na grande conflagração que toma lugar quando expira o
período mundano ou ano grande», todos os seres organizados serão
destruídos, toda multiplicidade e diferença será perdida na unidade de
Deus, o que significa que tudo se transformará de novo em éter. Mas ato
seguido, como o fênix surgindo à vida de suas próprias cinzas, começa
de novo a formação do mundo. Deus se transforma mais uma vez por
uma renovação geral num mundo em que os mesmos acontecimentos,
sob circunstâncias similares, devem voltar a ser repetidos sob os mais
estritos detalhes. Muitas destas grandes catástrofes já tiveram lugar, e o
processo de consumição por fogo seguirá de novo após esta regeneração,
e assim ad infinitum. 146
Este sistema, assim como qualquer outra forma de Panteísmo,
exclui toda liberdade moral; tudo fica sob a lei da absoluta necessidade.
Por isso, despreza a ideia de pecado. «Os atos de vício, disse Crisipo, são
movimentos da natureza universal, e são de acordo com a inteligência
divina. Na economia do grande mundo, o mal é como a palha que cai,
igualmente inevitável e tão carente de valor. Também esta escola disse
que o mal fazia o serviço de dar a conhecer o bem, e entretanto que tudo
tem que resolver-se em Deus». 147
Assim, as formas jônica, eleática e estoica de filosofia grega eram
panteístas em seus princípios fundamentais. Mas as duas grandes mentes
filosóficas da Grécia, e do mundo, foram Platão e Aristóteles, um o
filósofo do mundo ideal, o outro, do natural. O último foi discípulo do
primeiro, embora fosse na maioria dos pontos de doutrina, ou ao menos
quanto ao método, seu antagonista. É só com os pontos destes dois
homens, que tanta influência exerceram nas mentes dos homens com
relação à natureza do Ser Supremo e com relação à sua relação com o
mundo fenomênico, que o teólogo como tal tem algo que ver. E este,
146
The Gentile and the Jew, vol. I. p. 351.
147
Ibid., p. 351.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 442
infelizmente, e com relação a ambos, é o ponto com relação ao qual os
ensinos deles são mais escuros.
Platão.
Platão uniu em seu intelecto sintético os elementos das diferentes
doutrinas de seus predecessores no campo da especulação, e tentou
harmonizá-los. «A doutrina socrática do bem e da beleza absolutas, e da
Deidade revelando-se ao homem como uma bondosa Providência,
constituíram a base da qual ele começou. Como canais para a doutrina
heraclítica do perpétuo transformar e do fluir de todas as coisas, junto
com a eleática da eterna imutabilidade do um e único Ser, o dogma de
Anaxágoras de um espírito governante do mundo foi de utilidade, e teve
a destreza de combinar com ele a perspectiva pitagórica do universo
como um todo inteligente animado, numa forma espiritualizada». 148
Estes já são materiais bem incongruentes. Uma deidade inteligente
exercitando um controle providencial sobre o mundo; a doutrina
heraclítica que envolvia a negação de toda a realidade e que resolvia
tudo num perpétuo fluir dos fenômenos; a doutrina eleática de um único
Ser; e a ideia pitagórica do universo como um todo animado e
inteligente. Não era possível impedir que primeiro um elemento, e logo
outro deles, fosse feito mais proeminente, e por conseguinte que o
grande filósofo falasse às vezes como um Teísta e às vezes como um
Panteísta. Tampouco era possível que estes elementos incongruentes
pudessem ser constituídos num sistema coerente. Por isso, não é de
surpreender que Döllinger, um dos maiores admiradores de Platão e um
dos mais capazes expoentes de seus escritos, acrescente imediatamente à
passagem que acabamos de citar: «Platão nunca chegou a um sistema
acabado, arredondado e perfeito em si mesmo; entretanto, há uma
evidência inconfundível em suas obras de um contínuo progresso, um
esforço após uma crescente profundidade dos fundamentos, e uma
148
Ibid. p. 307.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 443
articulação interna mais forte, junto com uma maravilhosa exuberância
de ideias, com frequência excessivamente atrevidas». 149
Platão não era um Teísta, no sentido comum e cristão da palavra.
Ele não reconhecia a existência de um Deus extramundano, o criador,
preservador e governador do mundo, de quem dependemos e perante
quem somos responsáveis. Para ele, Deus não é uma pessoa. Como
Anselmo e os Realistas admitiam geralmente a existência da
«racionalidade» como distinta dos seres racionais, um princípio geral
que se individualizava e personalizava em anjos e homens, assim Platão
admitia a existência de uma inteligência universal, ou νοῦς [nous], que se
torna individualizada nas diferentes ordens de seres inteligentes, deuses,
demônios e homens. Deus, para ele, era uma Ideia; a Ideia do bem, a
qual compreendia e dava unidade a todas as outras ideias.
As Ideias.
O que eram então as ideias no sentido que Platão lhe dá no fim?
Não eram meros pensamentos, mas sim as únicas verdadeiras entidades,
das quais o fenomênico e o sensível são suas representações ou sombras.
Ele ilustrou a natureza das mesmas, supondo um homem numa cova
escura totalmente ignorante do mundo exterior, com uma luz brilhante
resplandecendo atrás dele, enquanto que entre ele e a luz passam
continuamente uma procissão de homens, animais, árvores, etc. As
sombras móveis destas coisas se projetariam sobre a parede da cova, e o
homem suporia necessariamente que as sombras eram as realidades.
Estas ideias são imutáveis e eternas, constituindo a essência ou ser real
de toda a existência fenomênica. «Platão ensina que para todos aqueles
sinais gerais dos conceitos que temos existem outras tantas coisas
verdadeiramente existentes, ou Ideias, que se correspondem no mundo
inteligível: para estes homem são os únicos objetos sólidos e dignos de
reflexão e conhecimento; porque são eternas e imutáveis, existindo só
149
The Gentile and the Jew, p. 307.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 444
em si mesmas, mas separadas de todas as coisas e individuais, enquanto
que suas múltiplas cópias, as coisas percebidas pelos sentidos, são
sempre flutuantes e transitórias. Independentes do tempo e do espaço,
assim como de nosso intelecto e de seus conceitos, as Ideias pertencem a
um mundo próprio, de outra esfera, transcendendo os sentidos. Elas não
são os pensamentos de Deus, mas sim os objetos de seu pensamento; e
Ele criou o mundo na matéria em seguimento delas. Só elas e Deus são
seres realmente existentes; e por isso as coisas terrestres são só a sombra
de uma existência, e isso só em derivação de uma certa participação nas
Ideias, seus tipos». 150
150
The Gentile and the Jew, Vol. I, pp. 308 y 309.
151
Ibid., p. 309.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 445
abrangendo todos os arquétipos parciais numa unidade», então Deus é o
único realmente existente; e temos então um puro Panteísmo. Segundo
Cousin, Platão não só deu às ideias uma existência real e própria, mas
sim, «en derniere analyse il les place dans ia raison divine: c'est la
qu'elles existen substantiellement» [em último termo, situa-as dentro da
razão divina: é ali que existem substancialmente]. 152 Döllinger,
comentando a respeito de uma passagem em Timeu, em que «Deus é
designado como o Pai, que gerou o mundo como um filho, como uma
imagem dos deuses eternos, isto é, das ideias», diz: «Se Platão tivesse
querido realmente explicar aqui a ideia de procriação como uma
comunicação de essência, teria sido um puro Panteísta». 153 Mas Platão,
diz 154 ele, «não é Panteísta; a matéria é, para ele, totalmente distinta de
Deus; contudo, tem uma carga panteísta em seu sistema; porque tudo o
que há de inteligência no mundo, inclusive até o homem, pertence, para
ele, à substância divina». Por isso, Platão escapa ao Panteísmo só
admitindo a eternidade da matéria; mas esta matéria eterna está tão perto
de ser nada como é possível. Não é corpórea. É «algo, mas não
entidade».
Como Platão fez as ideias eternas e imutáveis; como estavam todas
elas incluídas na ideia de Deus, isto é, em Deus, e porquanto constituem
os únicos seres realmente existentes, sendo todo o fenomênico ou que
afete os sentidos meras sombras do real, dificilmente pode negar-se que
seu sistema, em seu caráter essencial, seja realmente panteísta.
Entretanto, trata-se de um Panteísmo ideal. Não admite que a matéria ou
que o mal sejam uma manifestação de Deus nem um modo de Sua
existência. Só o que é bom é Deus; mas tudo o que realmente é, é bom.
152
Historie Generale de la Philosophie, Paris, 1863, p. 122.
153
The Gentile and the Jew, Vol. I, p. 329.
154
Ibid. p. 312.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 446
A cosmogonia de Platão
A cosmogonia e a antropologia de Platão confirmam esta
perspectiva de sua teologia. Nada foi nunca criado. Tudo o que é, é
eterno; não certamente quanto à forma, mas sim quanto à substância. A
matéria, algo maternal, sempre existiu. E a matéria é em si mesma
carente de vida, mas tem «uma alma», uma força ininteligente mediante
a que se produz uma agitação caótica ou desordenada. Esta força
ininteligente a dotou Deus com uma porção de sua própria inteligência
ou νοῦς [nous], e transforma a alma do mundo, isto é, o Demiurgo, o
princípio formador do mundo. Assim, Deus não é, Ele mesmo, o
formador do mundo. Isto é obra do Demiurgo. Esta alma do mundo
impregna o universo visível, e constitui um todo vivente, animado. Esta
«alma do mundo» fica individualizada nos deuses estelares, nos
demônios, e nas almas humanas. Assim, o sistema de Platão dá lugar ao
politeísmo.
A natureza da alma.
A alma, segundo esta teoria, consiste de inteligência que é da
substância de Deus, e de elementos derivados da alma do mundo em
distinção à νοῦς [nous] que não pertencia originalmente a Ele. Todo mal
surge da conexão do elemento divino no homem com a matéria. O objeto
da vida é rebater esta má influência pela contemplação e comunhão com
o mundo ideal. Platão ensinava a preexistência da alma assim como sua
imortalidade. Seu estado na atual etapa de existência presente fica
determinado por seu curso em suas formas prévias de ser. É, entretanto,
com base em seu modo comum de descrição, estritamente imortal. «A
concepção monoteísta que Platão tem de Deus», diz Döllinger», 155 «é
uma das mais refinadas às quais chegou a especulação anticristã; mas
não contribuiu em nada ao conhecimento da perfeita e viva
personalidade de Deus, e a sua liberdade absoluta e incondicional». Seu
155
The Gentile and the Jew, p. 329.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 447
monoteísmo, parece, consistia no reconhecimento de uma inteligência
universal que se manifestava como razão em todos os seres racionais.
Aristóteles.
Aristóteles, embora discípulo de Platão, foi o grande oponente do
mesmo e de sua filosofia. Rejeitou a doutrina de Platão das ideias como
quimérica, como uma hipótese desnecessária e sem evidência. Da mesma
maneira, negou a existência de matéria preexistente da qual o mundo
teria sido plasmado. Cria que o mundo era eterno tanto quanto a matéria
como quanto a forma. É, e não há razão para duvidar de que sempre
tenha sido e sempre vá ser. Admitiu a existência da mente no homem; e
por isso deu por sentado que há uma inteligência infinita, da qual a razão
humana é uma manifestação. Mas esta inteligência infinita, que ele
chamou de Deus, era inteligência pura, carente de poder e de vontade;
não era nem criadora nem conformadora do mundo; mais ainda, é
inconsciente da existência do mundo, porquanto está ocupada
exclusivamente no pensamento do que ela mesma é o objeto. O mundo e
Deus são coeternos; e, entretanto, em certo sentido Deus é a causa do
mundo. Da maneira em que um ímã age sobre a matéria, ou assim como
a mera presença de um amigo põe a mente em atividade, assim Deus
opera inconscientemente sobre a matéria, e desperta seus poderes
adormecidos. Como o universo é um cosmos, um sistema ordenado; e
como existem no mundo inumeráveis seres organizados, vegetais e
animais, Aristóteles supôs que há «formas» inerentes na matéria, que
determinam a natureza de tais organizações. Isto é o mesmo que em
linguagem moderna chama-se “força vital”, “vitalidade”, “vis
formativa”, “Bildungstrieb”, ou “princípio imaterial” de Agassiz, que é
diferente em cada espécie distinta, e que constitui a diferença entre uma
espécie e outra. A alma é a «forma» do homem. «É o princípio que dá
forma, movimento, e desenvolvimento ao corpo, a enteléquia do mesmo;
isto é, aquela substância que só se manifesta no corpo que é formado e
penetrado pela mesma, e que continua energizando-o como princípio de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 448
vida, determinando a matéria e dominando-a. Assim, o corpo nada é por
si mesmo; é o que é só pela alma, cuja natureza e ser expressa, com a
qual sustenta a relação de um meio em que o objeto, a alma, é realizada;
por isso, não pode ser imaginada sem o corpo, nem o corpo sem ela; um
tem que ser produzido contemporaneamente com o outro» 156
Naturalmente, não pode haver imortalidade da alma. Assim como
nenhuma planta é imortal, porquanto o princípio vital não existe de
maneira separada da planta, assim a alma não tem existência além do
corpo. Os dois começam e terminam juntos. «O realmente humano na
alma, aquilo que veio a ser, tem também que desvanecer-se, inclusive o
entendimento; só a razão divina é imortal; mas como a memória pertence
à alma sensível, e o pensamento individual depende só do entendimento
ou νοῦς [nous] passivo, toda consciência do eu tem que cessar com a
morte» 157 «Desta maneira, a doutrina do Aristóteles da alma mostra que
seu defeito, assim como o de Platão e certamente de toda a antiguidade,
era sua imperfeita familiaridade com a ideia de personalidade e, por isso
mesmo, não pode ser absolvido de uma tendência panteísta». 158 «Seu
Deus não é verdadeiramente pessoal, ou é só uma personalidade
imperfeita». 159 A νοῦς [nous], ou razão, permite às almas, com seus
corpos, que se submirjam de volta ao nada, da que cada um saiu.
Ela só segue existindo, sempre a mesma e inalterável, porque não é
outra senão a νοῦς [nous] divina em existência individual, a inteligência
divina iluminando a noite do entendimento humano, e tem que ser
concebida tanto como o primeiro móvel do pensamento discursivo e do
conhecimento humano como de sua vontade». 160
Este breve exame da filosofia grega com relação à teologia mostra
que em todas suas formas era mais ou menos panteísta. Esta observação
156
The Gentile and the Jew, p. 338.
157
Ibid. p. 339.
158
Ibid., p. 340.
159
Ibid., p. 336.
160
Ibid., p. 339.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 449
não será reconhecida como correta da parte de aqueles que, como
Cousin, limitam o uso da palavra Panteísmo para designar a doutrina que
faz com que o universo material seja Deus, ou aquela que nega a
existência de nada fora da matéria e da força física, o que é ateísmo; nem
tampouco da parte daqueles que tomam o termo como denotando a teoria
que admite só uma substância, que é a substância de Deus, e que por
conseguinte faz da matéria tanto um modo da existência de Deus como a
mente. Entretanto, admitirão sua justeza aqueles que por Panteísmo
designam aquela doutrina que faz de toda a inteligência no mundo a
inteligência de Deus, e de toda a atividade intelectual modos da atividade
de Deus, o que necessariamente impede a possibilidade da liberdade e
responsabilidade humanas.
As autoridades neste assunto são, a respeito de Platão e Aristóteles,
é óbvio suas próprias obras; com relação a esses filósofos cujas obras
não são preservadas, nem das quais só existem fragmentos, seus sistemas
são mais ou menos detalhados completamente pelos antigos escritores,
como Plutarco e Cícero. O leitor geral encontrará a informação que
necessita em um ou em mais das numerosas histórias da filosofia; como
de Brucker, Ritter, Tenneman, e Cousin; entre o último e melhor de
Döllinger é “The Gentile and the Jew in the Courts of the Temple of
Christ,” Londres, 1862
D. O Panteísmo medieval.
Os Neoplatonistas.
O panteísmo, tal como apareceu na Idade Média, tomou sua forma e
o caráter do neoplatonismo. Tratava-se de um sistema eclético em que a
doutrina eleática da unidade de todo o ser se combinou com a doutrina
platônica sobre o universo dos fenômenos. Os filósofos reconhecidos
como os representantes desta escola são Plotino (205-270 d.C), Porfírio
(nascido o ano 233 d.C.), Jâmblico no século IV, e Proclo no quinto. O
Neoplatonismo foi monismo. Admitió sólo un Ser universal. Este ser
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 450
considerado en sí mismo era inconcebible e indescriptible. Foi revelado,
ou automanifestado na alma do mundo, e a razão do mundo, o que
constitui uma trindade; uma substância em diferentes aspectos ou modos
de manifestação. O mundo é portanto “a afluência de Deus”, como o
fogo emite calor. A alma do homem é um modo de existência de Deus,
uma parte de sua substância. Seu destino é a absorção no Ser infinito.
Isto de não devia ser alcançado pelo pensamento, nem por meditação,
mas pelo êxtase. Isto constituiu a característica peculiar da escola
Neoplatônica. “A união com Deus” devia ser alcançado por “uma
autodestruição mística da pessoa individual (Ichheit)” em Deus. 161
Schwegler 162 diz: “Da introdução do monismo da cristandade foi o
caráter e a tendência fundamental da filosofia moderna inteira”. Esta
observação, vindo de um partidário dessa teoria, deve ser tomada com
não pequena quantidade de concessão. Entretanto, é verdade que quase
todas as grandes saídas da simplicidade da verdade como está revelado
nas Escrituras Sagradas, assumiram claramente mais ou menos uma
tendência panteísta.
161
History of Philosophy. Translated from the German by Julius H. Seelye, p. 157.
162
Ibid. p. 158.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 451
criado. (4). Aquele que nem cria nem é criado. “Esta divisão da
natureza,” diz Ritter, 163 “é feito para mostrar simplesmente que tudo é
Deus, desde que as quatro naturezas são só revelações de Deus”.
Escoto esteve de acordo com a maioria dos filósofos em fazer
idênticas a filosofia e a religião, e na admissão de nenhuma fonte de
conhecimento superior que a razão humana. “Conficitur”, ele diz,
“veram esse philosophiam veram religionem, conversimque veram
religionem esse veram philosophiam.” 164
Os princípios fundamentais de sua filosofia são os seguintes: (1.) A
distinção com ele entre o ser e não ser, não é entre algo e nada, entre a
existência substancial e não-existência, mas sim entre a afirmação e a
negação. O que pode afirmar-se é, tudo o que se negou não é. (2.) Todo
ser consiste no pensamento. Não há nada, senão como existe na mente e
na consciência. (3.) Com Deus, que é, o pensamento e a criação são
idênticas. O ser de Deus consiste em pensar, e Seus pensamentos são
coisas. Em outras palavras, o pensamento de Deus é o ser verdadeiro de
tudo o que é. (4). Consequentemente o mundo é eterno. Deus e o mundo
são idênticos. É o “totum omnium.”
Seu sistema é, portanto, uma forma do Panteísmo idealista. Ritter
dedica o nono livro de sua “Geschichte der Christlichen Philosophie,” 165
à exposição da filosofia de Escoto. As poucas passagens seguintes de seu
“De Divisione Naturae,” são suficientes para mostrar a exatidão da
declaração anterior de seus princípios.
“Intellectus enim omnium in Deo essentia omnium est. Siquidem id
ipsum est Deo cognoscere, priusquam fiunt, quæ facit, et facere, quæ
cognoscit. Cognoscere ergo et facere Dei unum est.” 166 “Maximus ait:
Quodcunque intellectus comprehendere potuerit, id ipsum fit.” 167
163
Geshichte der Christlichen Philosophie, vol. III. p. 224.
164
De Prædest. cap. i. 1, Migne, Patr. vol. cxxii. p. 358, a.
165
Vol. III. pp. 206-296.
166
De Divisione Naturæ, II. 20; edit. Westphalia, 1838, p. 118.
167
Ibid. I. 9, p. 9.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 452
“Intellectus enim rerum veraciter ipsæ res sunt, dicente Sancto Dionysio,
‘Cognitio eorum, quæ sunt, ea, quæ sunt, est.’” 168 “Homo est notio
quædam intellectualis in mente divina æternaliter facta. Verissima et
probatissima definitio hominis est ista: et non solum hominis, verum
etiam omnium quæ in divina sapientia facta sunt.”169 Omnis visibilis et
invisibilis creatura Theophania, i.e., divina apparitio potest appelari. 170
“Num negabis creatorem et creaturam unum esse?” 171
“A Criação [como Erígena vê] não é outra coisa que o Senhor da
criação; Deus de algum modo inefável criado na criação.” 172 Decoto
traduziu as obras do assim chamado São Dionísio, o Areopagita, e ao
fazê-lo, preparou o caminho para essa forma de panteísmo místico que
prevaleceu através da Igreja até a época da Reforma. O pseudo-Dionísio
foi um neoplatônico. Seu objetivo era dar à doutrina de Plotino um
aspecto cristão. Adotou o princípio da unidade de todo ser. Todas as
criaturas são da essência de Deus. Mas em lugar de colocar a
automanifestação de Deus na natureza, na alma do mundo, colocou-a
sobretudo na hierarquia de ser racional, — querubins, serafins, tronos,
principados e potestades, e as almas dos homens. O destino de todas as
criaturas racionais, é a reunião com Deus; e esta reunião, como os
Neoplatonistas ensinaram, devia ser alcançado pelo êxtase e a negação
de si mesmo. Foi este sistema que, em comum com todas as outras
formas do Panteísmo, impediu a ideia de pecado, que foi reproduzido
pelos líderes místicos da Idade Média, e de que, quando se encontrou seu
caminho entre o povo como o fez com os Begardos e dos Irmãos do
Espírito Livre, produzido, como substancialmente o mesmo sistema tem
feito na Índia, seus frutos legítimos do mal. Do panteísmo místico da
168
Ibid. II. 8, p. 95.
169
Ibid. IV. 7, p. 330.
170
Ibid. III. 19, p. 240.
171
Ibid. II. 2, p. 88.
172
Ritter, vol. III, p. 234.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 453
Idade Média, entretanto, já se tem dito o suficiente na Introdução, no
capítulo sobre o Misticismo.
E. O Panteísmo moderno.
Espinoza.
O renascimento do Panteísmo da Reforma deve-se principalmente a
Espinoza; nasceu no Amsterdã em 1634, e morreu em Haia, à idade de
quarenta e quatro anos. Era descendente de uma abastada família judia
portuguesa, e desfrutou da vantagem de uma educação extremamente
terminada. Ele primeiro dedicou-se ao estudo da filosofia, e foi a
princípio um discípulo de Descartes. Leibnitz caracteriza o sistema de
Espinoza como cartesianismo de tendência selvagem. Descartes
desconfiava do testemunho dos sentidos. Seu ponto de partida era a
consciência da existência, “Eu creio.” Nessa proposição a existência de
uma substância pensadora é incluída necessariamente. O mundo exterior
produz impressões nesta substância pensante. Mas, afinal de contas,
estas sensações assim produzidas, são só estados da autoconsciência. O
Eu, portanto, e seus estados diferentes, são todos de que temos
conhecimento direto. Não é tudo, entretanto, que Descarte cria que
realmente existiu. Foi um católico sincero, e morreu em comunhão com
a Igreja. Reconheceu não só a existência da mente, mas também de Deus
e da matéria. Entretanto, nosso conhecimento de Deus e da matéria como
substâncias distintas de nossas mentes chegamos por um processo de
raciocínio. Espinoza negou a validez desse processo. Admitiu a
existência de uma única substância, e deu uma definição da palavra
como excluída a possibilidade de que haja mais substâncias que uma.
Com ele a substância é a que existe de si, forçosamente, e é
absolutamente independente.
Existe, portanto, só uma substância possível. Chegamos, entretanto,
em todas partes em contato com duas classes de fenômenos: os de
pensamento e os de extensão. O pensamento e a extensão, portanto, são
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 454
os dois atributos da única substância infinita. As coisas individuais são
os modos em que a substância infinita é constantemente manifestada. No
sistema de Espinoza não são as três ideias radicais da substância,
atributo, e modo. Destes essa substância tem só qualquer realidade. As
outros duas são meras aparências. Se nos fixamos em algo através de um
vidro de cor vermelha o objeto aparecerá de cor vermelha, se o vidro for
azul, aparecerá o objeto azul, mas a cor não é realmente um atributo do
objeto. Assim a substância (o todo) é-nos apresentado sob um aspecto
como o pensamento e em outros como extensão. A diferença é aparente e
não real. O finito, portanto, não tem existência real. O universo está
afundado no Infinito e o Infinito é uma matéria da qual nada pode
afirmar-se. Do Infinito nada se pode negar, e portanto não pode ser
afirmado por “omnis determinatio est negatio.” O Infinito, portanto, é
praticamente nada.
Uma relato suficiente do panteísmo moderno em suas
características gerais, representado por Fichte, Schelling e Hegel, e seus
sucessores e discípulos, deu-se já no começo deste capítulo. Informação
mais detalhada pode-se encontrar nas numerosas histórias recentes da
filosofia, como as de Morell, Schwegler, Michelet, e Rosenkranz, e na
“History of Pantheism,” de Hunt.
F. Conclusão.
A. Estado da questão.
Deus é inconcebível.
2. Não se sustenta que, falando corretamente, possamos ter
concepção de Deus; isto é, não podemos formar senão uma imagem
173
Ethices, ii. prop. xlvi. edit. Jena, 1803, vol. II. p. 119.
174
See Mansel’s Limits of Religious Thought, Boston, 1859, p. 301.
175
Sir William Hamilton’s Discussions, p. 16. Princeton Review on Cousin’s Philosophy, 1856.
176
Werke, xii. p. 496, edit. Berlin, 1840.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 460
177
mental de Deus. “Toda concepção”, diz o Sr. Mansel, “implica
imaginação.” Para ter um conceito válido de um cavalo, ele acrescenta,
temos que poder “combinar” os atributos que formam “a definição do
animal” em “uma imagem representativa”. A concepção é definida por
Taylor da mesma maneira, como «formar ou trazer uma imagem à ideia
na mente por um esforço da vontade». Neste sentido do termo, deve-se
admitir que o Infinito não é um objeto de conhecimento. Não podemos
formar senão uma imagem do espaço infinito nem de uma duração
infinita, nem de um todo infinito. Mas o infinito é o que é incapaz de
limitação. Admite-se, portanto, que o Deus infinito é inconcebível. Não
podemos formar mais uma imagem representativa dEle em nossas
mentes. Entretanto, com frequência o termo é empregado, talvez
usualmente, num sentido menos restringido. Conceber é pensar. Por isso,
uma concepção é um pensamento, não necessariamente uma imagem.
Por isso, dizer que Deus é concebível, em linguagem comum, significa
simplesmente que Ele é pensável. Isto é, que o pensamento (ou ideia) de
Deus não envolve nenhuma contradição nem impossibilidade. Não
podemos pensar num quadrado redondo, ou que uma parte seja igual ao
todo. Mas podemos pensar que Deus é infinito e eterno.
Deus é incompreensível.
3. Quando se diz que Deus pode ser conhecido, não se significa que
possa ser compreendido. Compreender é ter um conhecimento completo
e exaustivo de um objeto. É entender Sua natureza e relações. Não
podemos compreender a força, e especialmente ela é certo da força vital.
Vemos seu efeito, mas não podemos entender sua natureza nem o modo
em que age. Seria estranho que conhecêssemos mais de Deus que de nós
mesmos, ou dos objetos mais familiares aos nossos sentidos. Deus é
inescrutável. Não podemos entender a perfeição do Onipotente.
Compreender é (1) Conhecer a essência assim como os atributos de um
177
Prolegomena Logica, edit. Boston, 1860, p. 34.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 461
objeto. (2) É conhecer não só algumas, mas também todos seus atributos.
(3) Conhecer a relação que estes atributos têm entre si e com a
substância a que pertencem. (4) Conhecer a relação que o objeto tem
com relação a todos os outros objetos. Tanto conhecimento é claramente
impossível numa criatura, tanto a respeito de si mesmo como de
qualquer coisa fora dele mesmo. Entretanto, é substancialmente assim
que os transcendentalistas pretendem conhecer a Deus.
178
Epistolæ, I., cx., edit. Amsterdam, 1682.
179
Epistola, lx., vol. I. p. 659, edit. Jena, 1802.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 463
«Deus é Espírito, infinito, eterno e imutável», comunica à mente uma
ideia tão distintiva e tão verdadeira (isto é, confiável), como a proposição
«A alma humana é um espírito finito». Neste sentido, Deus é um objeto
do conhecimento. Ele não é o Deus desconhecido, porque Ele é infinito.
O conhecimento nEle não deixa de ser conhecimento, porque é a
onisciência; o poder não deixa de ser poder, porque é a onipotência; mais
do que o espaço deixa de ser espaço porque é infinito.
180
“Von den göttlichen Dingen,” Werke, III, págs. 422-423, edição do Leipzig, 1816.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 465
que pensamos que é. Este fundamento é a veracidade da consciência, ou
a fiabilidade das leis da crença que Deus imprimiu sobre nossa natureza.
“Invencibilidade da crença”, segundo Sir William Hamilton, “é
conversível com a verdade da fé”, 181 embora, por desgraça, neste tema,
ele não se aderia a seu próprio princípio, “Que o que é, por natureza
necessariamente que se crê ser, realmente é.” 182 Nenhum homem tem
mais nobremente ou mais sinceramente reivindicado esta doutrina, que é
o fundamento de toda ciência e de toda fé. “A consciência”, diz ele,
“uma vez declarada culpada de falsidade, um cepticismo absoluto, no
que respeita ao caráter de nosso ser intelectual, é a melancolia mais que
só o resultado racional. Qualquer conclusão pode agora com a
impunidade ser elaborada contra as esperanças e a dignidade da natureza
humana. Nossa personalidade, nossa imaterialidade, nossa liberdade
moral, deixaram que ser um argumento para sua defesa. ‘O homem é o
sonho de uma sombra.’ Deus é o sonho desse sonho.” 183 A única
questão, portanto, é: Estamos invencivelmente levados a pensar em Deus
como possuindo os atributos de nossa natureza racional? Isto não se pode
negar, porque a universalidade demonstra a fé invencível. E é um fato
histórico que os homens têm universalmente pensado assim de Deus.
Ainda o Sr. Mansel 184 exclama contra os transcendentalistas: “Loucos, a
sonhar que o homem pode escapar de si mesmo, que a razão humana
pode desenhar outra coisa mais que um retrato humano de Deus.” É
verdade que nega a exatidão deste retrato, ou, ao menos, afirma que não
podemos saber se é correto ou não. Mas a questão agora não é isto.
Admite que estamos obrigados pela constituição de nossa natureza,
portanto, a pensar em Deus. E por princípio fundamental de toda
filosofia verdadeira, o que nos vemos forçados a crer deve ser verdade. É
certo, portanto, que Deus realmente é o que tomamos dEle, quando Lhe
181
Philosophy, edit. Wight, New York, 1854, p. 233.
182
Ibid. p. 226.
183
Ibid. p. 234.
184
Limits of Religious Thought, edit. Boston, 1859, pp. 56, 57.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 466
atribuímos as perfeições de nossa própria natureza, sem limitação, e até a
um grau infinito.
185
Limits of Religious Thought, etc., p. 120.
186
Ibid. p. 121.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 467
uma Deidade moral [e, por isso, naturalmente pessoal], e a considerar a
norma absoluta do bem e do mal como constituída pela natureza daquela
Deidade». 187 Nosso argumento com base nestes fatos é que se nossa
natureza moral nos leva a crer que Deus é uma pessoa, tem que ser uma
pessoa, e consequentemente que chegamos a um verdadeiro
conhecimento de Deus atribuindo a Ele as perfeições de nossa própria
natureza.
187
Ibid. p. 122.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 468
188
sua operação limitando a gama de possíveis ações». De maneira
semelhante, diz: «A única concepção humana de personalidade é a de
limitação». Por isso, se Deus for infinito, não pode ser uma pessoa, nem
possuir atributos morais. Este é o argumento do Strauss e de todos outros
panteístas contra a doutrina de um Deus pessoal. Mansel admite a força
deste argumento, e diz que temos que renunciar a toda esperança de
conhecer o que Deus é, e que devemos nos contentar com o
«conhecimento regulador», que nos ensina não o que Deus é, mas sim o
que Ele quer que pensemos que é. Assim, nos proíbe confiar em nossas
crenças necessárias. Não deveríamos considerar como verdadeiro o que
Deus, pela constituição de nossa natureza, força-nos a crer. Isto é
subverter toda filosofia e religião, e destruir a diferença entre a
racionalidade e a irracionalidade. Por que supõe-se esta contradição entre
razão e consciência, entre nossa natureza racional e a moral?
Simplesmente porque os filósofos decidem dar uma tal definição de
moralidade e de personalidade que não se podem pregar nem uma nem a
outra de um Ser infinito. Mas não é verdade que a moralidade ou a
personalidade impliquem uma limitação qualquer com a perfeição
absoluta. Não limitamos a Deus quando dizemos que Ele não pode ser
irracional além de racional, inconsciente além de consciente, mau assim
como bom, A única limitação que admite é a negação de toda
imperfeição. A razão não é limitada quando dizemos que não pode ser
sem razão; nem o espírito, quando dizemos que não é matéria; nem a luz,
quando dizemos que não é trevas; nem o espaço, quando dizemos que
não é tempo. Por isso, não limitamos ao Infinito, quando o exaltamos a
ele em nossas concepções do inconsciente ao consciente, do ininteligente
ao inteligente, de alguma coisa impessoal ao absolutamente perfeito e
pessoal Jeová. Todas estas dificuldades surgem de confundir as ideias de
infinitude e de totalidade.
188
Limits of Religious Thought, etc., p. 127.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 469
4. O quarto argumento a respeito desta questão é que se não
estamos justificados ao referir a Deus os atributos de nossa própria
natureza, então não temos Deus. A única alternativa é antropomorfismo
(neste sentido) ou Ateísmo. Um Deus desconhecido, um Deus de cuja
natureza e de cujas relações conosco nada saibamos carece de
significado. É um fato histórico que os que rejeitam este método de nos
formar nossa Ideia de Deus que negam que devemos lhe atribuir a Elas
perfeições de nossa própria natureza, têm-se voltado ateus. Tomam a
palavra «espírito» e a privam da consciência da inteligência da vontade e
da moralidade; e ao resíduo, que é uma absoluta nada, chamam-no Deus.
Hamilton e Mansel buscam na fé sua refugio diante desta terrível
conclusão. Dizem que a razão proíbe a adscrição destes ou outros
atributos quaisquer ao Infinito e Absoluto, mas que a fé protesta contra
esta conclusão da razão. Entretanto estas protestos de nada servem
exceto quando são racionais. Quando Kant demonstrou que não havia
evidência racional da existência de Deus, e abandonando as razões
especulativas se apoiou na razão prática (isto é abandonando a razão pela
fé), seus seguidores, universalmente. abandonaram toda fé num Deus
pessoal. Ninguém pode crer no impossível. e se a razão pronuncia que é
impossível que o Infinito seja uma pessoa, a fé em Sua personalidade é
uma impossibilidade. Mas isto não o admite Mansel. Porque enquanto
que diz que é uma contradição afirmar que o Infinito é uma pessoa, ou
lhe atribuir a possessão de atributos morais, diz entretanto que «o
antropomorfismo é a condição indispensável de toda teologia
humana»; 189 e cita esta passagem de Kant: 190 «Podemos desafiar de
maneira confiante a teologia natural para que nos dê um só atributo
distintivo da Deidade, que denote inteligência ou vontade, que, além do
antropomorfismo, seja algo mais que uma mera palavra, a que não se
possa atribuir nem o mais ligeiro conceito, que possa servir para estender
189
Limits of Religious Thought, etc., p. 261.
190
“Kritik der Praktischen Vernunft.” Works, edit. Rosenkranz, vol. viii. p. 282.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 470
nosso conhecimento teórico». Deve-se lamentar profundamente que haja
os que ensinem que a única maneira em que podemos formar uma ideia
de Deus não leva a nenhum verdadeiro conhecimento. Não nos ensina o
que Deus é senão o que nos vemos forçados contra a razão a pensar que
Ele é.
191
Discussions, p. 23.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 474
entendimento, e que compreende o absoluto ao converter-se no absoluto,
e portanto, conhece a Deus por ser Deus.” 192 Esta premissa de que o
homem é Deus, choca a razão e o senso comum dos homens, assim como
ultraja a suas convicções religiosas e morais.
3. Em terceiro lugar, Hamilton e Mansel demonstram que, supondo
que as definições do Absoluto e do Infinito dada pelos
transcendentalistas, as conclusões mais contraditórias logicamente se
pode deduzir deles. “Há três termos familiares como as palavras do lar
no vocabulário da filosofia, que deve ser tido em conta em cada sistema
da teologia metafísica. Para conceber a Divindade como Ele é, devemos
concebê-lo como Causa primeira, como absoluto e como infinito. Por
Causa primeira, entende-se que o que produz todas as coisas, e ela
mesma não é produzida por ninguém. Por Absoluto, entende-se que é em
e por si mesmo, não tendo relação necessária com qualquer outro ser.
Por Infinito, entende-se o que está livre de toda possível limitação,
aquele de quem um maior é inconcebível, e que, em consequência, não
pode receber nenhum atributo adicional ou modo de existência que não
tinha desde toda a eternidade.” 193
De acordo com estas definições, no sentido em que se tem previsto
tomar, deduz-se: —
1. Que o Infinito e o Absoluto deve incluir a soma de todo ser. Pelo
que se concebe como absoluto e infinito deve ser concebido como
contendo em si a soma, não só de todo o presente, mas também de todos
os modos possíveis de ser. Porque se qualquer modo real pode-se negar,
relaciona-se com o modo e limitado por ele, e se qualquer modo
possível, pode-se negar disso, é capaz de chegar a ser mais do que agora
é, e essa capacidade é uma limitação”. 194
2. Se o Absoluto e o Infinito é como definido anteriormente, não
pode ser objeto de conhecimento. Conhecer é limitar. É preciso
192
Progress of Philosophy, by S. Taylor. LL.D., p. 200.
193
Mansel, p. 75.
194
Mansel, p. 76.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 475
distinguir o objeto de conhecimento de outros objetos. Não podemos
conceber, diz Hamilton, de uma absoluta totalidade, quer dizer, de um
todo tão grande que não podemos concebê-lo como uma parte de um
todo maior. Não podemos conceber uma linha infinita, ou do espaço
infinito, ou de uma duração infinita. Também podemos pensar sem o
pensamento, como atribuir um limite para além do qual não pode haver
nenhuma extensão, nenhum espaço, nenhuma duração. “A imaginação
de Deus ao máximo, afunda-se paralisada dentro dos limites de
tempo.” 195 Disso se deduz, portanto, pela própria natureza do
conhecimento, segundo Hamilton, que o Infinito e o Absoluto não pode
ser conhecido.
195
Hamilton’s Discussions, p. 35.
196
Mansel, pp. 78, 79.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 476
O Absoluto não pode ser a Causa.
5. É igualmente claro que o Absoluto e o Infinito não pode ser a
Causa. A causalidade implica relação, a relação de eficiência para com o
efeito. Também implica uma mudança, a mudança da inação à atividade.
Por outro lado implica a sucessão, e a sucessão implica a existência no
tempo. “Uma coisa que existe absolutamente (quer dizer, não em virtude
de relação)”, diz Hamilton, “e uma coisa que existe absolutamente, como
uma causa, são contraditórios.” Ele cita Schelling 197 como dizendo, “Ele
se apartaria mais amplamente como os polos da ideia do Absoluto, quem
pensaria na definição de sua natureza pela noção de atividade.” “Mas
aquele que definiria o Absoluto pela noção de uma causa,” acrescenta
ele, “apartar-se-ia ainda mais amplamente de sua natureza, visto que a
noção de uma causa implica não só a noção de uma determinação à
atividade, mas também de uma determinação a um tipo de atividade
particular, não dependente.” 198 “Os três conceitos, a Causa, o Absoluto,
o Infinito, todos igualmente indispensáveis, não o fazem,” pergunta-se o
senhor Mansel, 199 “implicam contradição entre si, se se considerar em
conjunto, como atributos de um só e mesmo ser? Uma causa não pode,
como tal, absoluto: o absoluto não pode, como tal, ser a causa.”
6. De acordo com as leis de nossa razão e consciência, não pode
haver vigência sem sucessão, mas a sucessão no sentido de mudança não
pode ser predicado do Absoluto e o Infinito, e entretanto sem sucessão
não pode haver pensamento ou consciência, e, portanto, dizer que Deus é
eterno é negar que Ele tem quer seja o pensamento ou a consciência.
7. Mais uma vez, “A benevolência, a santidade, a justiça, a
sabedoria,” diz Mansel, “podem ser concebidas por nós só como
existente num benévolo e santo e justo e sábio Ser, quem não é idêntico a
qualquer de Seus atributos, mas o tema comum de todos eles, numa
palavra, numa pessoa. Mas a personalidade, tal como a concebemos, é
197
Bruno, p. 171.
198
Discussions, p. 40.
199
Mansel, p. 77.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 477
essencialmente uma limitação e uma relação. — Falar de uma pessoa
absoluta e infinita é simplesmente usar a linguagem para a qual,
entretanto, pode ser certo num sentido sobrenatural, a forma de
pensamento humano, possivelmente, pode unir-se.” 200
200
Mansel, pp. 102, 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 478
§ 3. A Doutrina de Hamilton.
201
Strauss, Dogmatik, i. p. 527.
202
Pensées, partie II. art. III. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 479
que negamos de Deus o conhecemos em certa medida mas não
conhecemos o que afirmamos; só que declaramos o que cremos e
adoramos». 203 O professor Tyler acrescenta, que embora a filosofia de
Hamilton “limita nosso conhecimento ao condicionado [o finito], deixa
livre a fé a respeito do incondicionado [o infinito], de fato nos obriga a
crer nela pela lei suprema de nossa inteligência.”
Embora Hamilton com frequência usa a mesma linguagem quando
se fala de Deus como incognoscível, como o empregado por outros, seu
significado é muito diferente. Ele ensina realmente a ignorância de Deus
como destrutiva de toda religião racional, porque é incompatível com a
possibilidade da fé.
203
Tyler’s Progress of Philosophy, second edit. p. 147.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 480
Prova de que Hamilton nega que podemos conhecer a Deus.
Que esse ponto de vista de sua doutrina é correto prova-se (1.)
Porque ele afirma em termos tão amplos que Deus não pode ser
conhecido, que Ele não só é inconcebível, mas incogitável. (2.) Porque,
diz, que sabemos que Deus não é, e não pode ser, o que pensamos que é.
Não se trata simplesmente de que não podemos determinar com certeza
que nossa ideia de Deus é correta, mas sabemos que não é correta.
“Pensar que Deus é, como podemos pensar que Ele seja”, diz, “é uma
blasfêmia. A última e mais alta consagração de toda religião verdadeira,
deve ser um altar Ἀγνῶστῳ Θεῷ, ‘Para o desconhecido e incognoscível
Deus’.” 204 (3.) Devido ao fato de que tanto ele como Mansel
continuamente afirmam que o Infinito não pode ser uma pessoa, não
pode conhecer, não pode ser causa, não pode ser consciente, não pode
ser objeto de nenhum atributo moral. Pensar em Deus como infinito, e
pensar nEle como pessoa é uma impossibilidade. (4.) As ilustrações, que
estes autores empregam determinam claramente seu significado. Nossa
ignorância de Deus se compara à nossa incapacidade para conceber de
duas linhas retas encerrando uma porção de espaço, ou para pensar “um
paralelogramo circular”. Não se trata simplesmente de que não podemos
entender como uma figura, mas vemos que, na natureza das coisas,
qualquer cifra é impossível. Assim que não só não podemos entender
como Deus pode ser absoluto e, entretanto, uma pessoa, mas vemos que
uma pessoa absoluta é tanto uma contradição como um círculo quadrado.
(5.) De acordo com Herbert Spencer e outros, no cumprimento dos
princípios de Hamilton, chegamos à conclusão de que não só não
podemos conhecer a Deus, mas também é impossível que um Deus
pessoal possa existir. Não pode haver tal ser.
204
Discussions, p. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 481
A Doutrina de Hamilton sobre Deus como um objeto de Fé
Hamilton e Mansel, entretanto, não são teístas, mas sim cristãos.
Eles creem em Deus, e eles creem nas Escrituras como uma revelação
divina. Eles tratam de evitar o que parece ser a consequência inevitável
de sua doutrina, mediante a adoção de dois princípios: primeiro, que o
impensável é possível, e, portanto, pode ser crido. Pela palavra
impensável se entende que as leis da razão nos obriga a considerar como
contraditório em si mesmo. Sobre este tema Mansel diz: “É nosso dever
pensar em Deus como pessoal, e é nosso dever crer que Ele é infinito. É
verdade que não podemos conciliar estas duas representações entre si,
visto que nosso conceito da personalidade implica atributos
aparentemente contraditórios à noção de infinito. Mas não se segue que
esta contradição existe mais que em nossa própria mente: não se segue
que implica uma impossibilidade absoluta na natureza de Deus. . . . . Isto
demonstra que há limites ao poder de pensamento do homem; e isso o
demonstra não mais.” 205 A conclusão é que, como tudo o que seja
possível, é acreditável, pois, como é possível que Deus, embora infinito
pode ser uma pessoa, sua personalidade pode ser racionalmente crida.
205
Limits of Religious Thought, p. 106.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 482
para um anjo como para um menino. O que é contraditório em si mesmo
não pode possivelmente ser verdade. Agora, de acordo com Hamilton e
Mansel, o infinito e a personalidade não só são irreconciliáveis, mas
também contraditórios. Um afirma o que o outro nega. De acordo com
sua doutrina do Infinito não pode ser uma pessoa, e uma pessoa não pode
ser infinita, não mais que o Infinito pode ser finito ou infinito ao finito.
A necessidade de uma exclui a outra. Se você afirmar uma, você nega a
outra. Há uma grande diferença entre não ver como uma coisa é, e ver
claramente que não pode ser. Hamilton e Mansel asseguram
constantemente que uma pessoa absoluta é uma contradição de termos. E
assim é, se sua definição do absoluto é correta, e se uma contradição, é
impossível.
2. Se para a nossa razão a personalidade de um Deus infinito é uma
contradição, então é impossível racionalmente crer que Ele é uma
pessoa. É em vão dizer que a contradição está só em nossa mente. Assim
é a fé em nossa mente. É impossível que uma e a mesma mente veja uma
coisa que é falsa, e creia que é certo. Porque a razão para ver que uma
coisa é uma contradição, é ver que é falsa, e para ver que é falsa, e crer
que é verdadeira, é uma contradição de termos. Inclusive se a outras e
mais altas mentes a contradição não exista, sempre e quando existe na
opinião vista de qualquer mente particular, para essa fé em sua mente a
verdade é impossível.
Pode-se dizer que a razão de um homem pode convencê-lo que o
mundo exterior não existe realmente, enquanto seus sentidos o forçam a
crer em sua realidade. Assim que a razão pode pronunciar a
personalidade de Deus como uma contradição, e a consciência nos
obriga a crer que Ele é uma pessoa. Isto é confundir consecutivos com
estados de mente contemporâneos. É possível que um homem seja um
idealista em seu estudo, e um realista ao ar livre. Mas não pode ser um
idealista e realista ao mesmo tempo. A mente é uma unidade. A razão de
um homem é o próprio homem, de modo que é sua consciência, assim
como todas as suas outras faculdades. O eu é o único substantivo que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 483
pensa e crê. Assumir, portanto, que por necessidade tem que pensar de
uma maneira e crer em outra; que as leis de sua razão o obrigam a
considerar como falso o que sua consciência ou os sentidos o obrigam a
considerar como verdade, é destruir sua racionalidade. É também
impugnar a sabedoria e a bondade de nosso Criador, porque supõe que
Ele pôs uma parte de nossa constituição em conflito com a outra, que nos
pôs sob os guias que, alternativamente, obrigam-nos a mover-se em
direções opostas. Inclusive coloca esta contradição no próprio Deus. Por
que razão, em seu legítimo exercício, diz, Deus diz, e o que a
consciência, em seu legítimo exercício, diz, Deus diz. Se, por
conseguinte, a razão diz que Deus não é uma pessoa, e a consciência diz
que Ele é, pois — com reverência seja dito — Deus Se contradiz a Si
mesmo.
206
Limits of Religious Thought, p. 132.
207
Bampton Lectures, 1832, p. 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 485
Objeções à Doutrina do Conhecimento Regulador.
1. A primeira observação sobre esta doutrina do conhecimento
regulador é que é contraditório em si mesmo. A verdade reguladora é a
verdade designada para obter um fim determinado. Desígnio, entretanto,
é a adaptação inteligente e voluntária dos meios para um fim, e a
adaptação inteligente dos meios a seu fim, é um ato pessoal. Portanto, a
menos que Deus seja realmente uma pessoa, não pode haver tal coisa
como o conhecimento regulador. O Sr. Mansel, diz, não podemos saber o
que Deus é em si mesmo, “mas sim só como Lhe apraz que devemos
pensar nEle.” Aqui a “vontade” se atribui a Deus, e os pronomes
pessoais são usados, e devem utilizar-se na própria declaração da
doutrina. Quer dizer, devemos assumir que Deus é na realidade (não só
em nosso temor subjetivo) uma pessoa, com o fim de crer no
conhecimento regulador, cuja forma de conhecimento supõe que Ele não
é, ou pode não ser uma pessoa. Esta é uma contradição.
2. O conhecimento regulador é, pela natureza do caso, impotente, a
menos que seus sujeitos o consideram como bem fundado. Alguns pais
educam a seus filhos no uso de ficções e contos de fadas, mas a crença
na verdade destes é fundamental para seu efeito. Sempre que o mundo
creu em fantasmas e bruxas, a crença teve poder. Logo que os homens se
mostraram satisfeitos de que não havia tais existências reais, seu poder
desapareceu. Se os filósofos tivessem convencido os gregos que seus
deuses não eram pessoas reais, teria sido o fim de sua mitologia. E se
Hamilton e seus discípulos pudessem convencer o mundo que o Infinito
não pode ser uma pessoa, a influência reguladora do teísmo
desapareceria. Os homens não podem ser influídos por representações
que sabem que não são conformadas à verdade.
3. Esta teoria é muito depreciativa quanto a Deus. Supõe-se que Ele
proponha influir em Suas criaturas por representações falsas, revelando-
se como Pai, Governador e Juiz, quando não há verdade objetiva de
responder a estas representações. E pior que isto, como se destacou
anteriormente, supõe que Ele tenha constituída de tal modo nossa
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 486
natureza para nos obrigar a crer o que não é verdade. Estamos limitados
pelas leis de nosso ser moral e racional a pensar que Deus tem uma
natureza como a nossa, e entretanto nos é dito que é blasfêmia tal
consideração sobre Ele.
A teoria supõe um conflito entre a razão e de consciência, — entre
nossa natureza racional e moral. Esta última nos obriga a crer que Deus é
uma pessoa, e a personalidade e a deidade antiga que se declara ser as
ideias contraditórias. Não nos esquecemos de que o Sr. Mansel diz que o
incogitável pode ser real, que a contradição está em nossas próprias
mentes, e não necessariamente na natureza das coisas. Mas isto equivale
a nada, porque ele diz continuamente que o Absoluto não pode ser uma
pessoa, não pode ser uma causa, não pode ser consciente, nem pode
conhecer ou ser conhecido. Ele diz: “Uma coisa — um objeto — um
atributo — uma pessoa — ou qualquer outro termo que significa um dos
muitos possíveis objetos da consciência, é por essa mesma relação
necessariamente declarado ser finito.”208 Quer dizer, se Deus é uma
pessoa, Ele é de necessidade finita. Aqui a personalidade de Deus diz-se
não só que é incogitável, ou inconcebível, mas sim impossível. E esta é a
verdadeira doutrina de seu livro. Tem que ser assim. É intuitivamente
verdade que o todo não pode ser uma parte de si mesmo, e se o Infinito é
“o Tudo”, então não pode ser um fora de muitos. Se os homens adotarem
os princípios dos panteístas, não podem evitar coerentemente suas
conclusões. Hamilton não só ensina que Deus não pode ser o que
pensamos dEle, mas em que Ele não pode ser; porque somos ignorantes
do que Ele é, porque Ele é para nós um Deus desconhecido. Se Deus,
pelas leis de nossa razão, assim nos obriga a negar Sua personalidade, e
pelas leis de nossa natureza moral faz com que seja não só um dever,
mas também uma necessidade crer em Sua personalidade, nossa natureza
é caótica. O homem, nesse caso, não é a nobre criatura que foi formada à
imagem de Deus.
208
Limits of Religious Thought, p. 107.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 487
4. Esta doutrina do conhecimento regulador destrói a autoridade das
Escrituras. Se tudo o que a Bíblia ensina a respeito da natureza de Deus e
sobre Sua relação com o mundo, revela que não há verdade objetiva, não
nos dá conhecimento do que Deus realmente é, então o que ensina sobre
a pessoa, ofícios, e a obra de Cristo, pode ser tudo irreal, e não pode
haver nenhuma destas pessoas e não haver tal Salvador.
209
Página 110.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 490
do ser. Entretanto, o único sentido em que estas coisas são impensáveis é
que não podemos formar uma imagem mental das mesmas. Um distinto
professor alemão, quando se dizia algo ao que ele não podia assentir,
tinha o costume de estender as mãos e fechar os olhos, e dizer: «Ich kann
gar keine Anschauung davon machen», Não posso vê-lo com o olho de
minha mente, não posso fazer uma imagem disso. Esta parece ser uma
maneira materialista de considerar as coisas. O mesmo pode dizer de
causa, substância e alma, de nada do qual nos podemos formar uma
imagem mental; entretanto, não são impensáveis. Uma coisa impensável
só quando se vê impossível, ou quando não podemos atribuir significado
algum às palavras ou proposições com as quais se enuncia. Esta
impossibilidade de pensamento inteligente pode surgir de nossa
fraqueza. Os problemas das altas matemática são impensáveis para um
menino, ou a impossibilidade pode surgir da própria natureza da questão.
Que um triângulo tenha quatro lados ou que um círculo seja quadrado
(absolutamente impensável). Mas não é em nenhum destes sentidos que
o Infinito é impensável. Não é impossível, porque tanto Hamilton como
Mansel admitem que Deus é de fato infinito; e não se trata de uma
proposição ininteligível. Quando a mente diz a si mesma que o espaço é
infinito, isto é, que não pode ser limitado, sabe tão bem o que afirma
como quando diz que dois mais dois somam quatro. E tampouco é
impensável um começo absoluto. Se, na verdade, por começo absoluto se
significa um começo processado, a vinda à existência de algo
proveniente do nada, então é impossível e, por isso, impensável. Mas
esta sentença aplica-se à criação ex-nihilo, que é declarada impensável.
Entretanto, isto deve negar-se. Nós queremos mover um membro, e o
movemos. Deus disse: Haja luz, e houve luz. O primeiro acontecimento
é igualmente inteligível como o segundo. Em nenhum destes casos
conhecemos o elo entre o antecedente e o consequente, entre a volição e
o efeito; mas como atos, são igualmente pensáveis e cognoscíveis.
Não é possível dar as provas dispersas nos escritos de Hamilton e
Mansel, que utilizam a palavra "conhecer" no sentido de compreender,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 491
210
ou, formar uma imagem mental do objeto conhecido. Mansel cita a
seguinte frase da obra do Dr. McCosh no método “do Governo Divino”,
ou seja, “A mente busca em vão abraçar o infinito numa imagem
positiva, mas vê-se obrigado a crer, quando seus esforços fracassam, que
há alguma coisa ao que não se podem pôr limites.” Esta frase diz Mansel
pode ser aceita “pelo mais intransigente partidário” da doutrina do Sir
W. Hamilton, que o infinito é impensável e incognoscível. Portanto, de
acordo com Hamilton e Mansel conhecer é formar uma imagem mental,
e como não podemos formar tal imagem de Deus, Deus não pode ser
conhecido. Mansel está disposto a pensar que isto reduz a controvérsia a
uma questão de palavras. E o doutor Tyler, em sua hábil exposição da
filosofia de Hamilton, diz: 211 “Portanto, se se admitir, como deve ser,
que toda nossa inteligência de Deus é, por analogia, importa muito
pouco, praticamente, que a convicção chama-se conhecimento, crença ou
fé. Está, entretanto, muito longe de ser uma disputa a respeito de
palavras. Porque Hamilton afirma constantemente que Deus não é, e não
pode ser, o que cremos que Ele é. Então não temos a Deus. Pelo que é
Deus como infinito, como se Mansel diz: “O Infinito, se tem que ser
concebido em tudo, deve ser concebido como potencialmente tudo e
nada na realidade.” 212
213
Logic, Introduction, p. 4, edit. N.Y. 1846.
214
Limits of Religious Thought, p. 105.
215
Ibid. p. 288.
216
Ibid. p. 291.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 494
da consciência é o fundamento de todo conhecimento, e que a negação
dessa veracidade leva inevitavelmente ao cepticismo absoluto. Não
obstante, ensinam que nossos sentidos nos enganam, que a razão nos
engana; que a consciência nos engana, quer dizer, que nossa consciência
sensível, racional e moral são da mesma maneira enganosas e pouco
confiáveis.
Nossos sentidos nos dão o conhecimento do mundo exterior. Eles
nos ensinam que as coisas são e o que são. Admite-se que a crença
universal e irresistível dos homens, visto que essa crença está
determinada por seu sentido e consciência, é que as coisas são realmente
o que aos nossos sentidos parecem ser. Os filósofos nos dizem que isto é
uma ilusão. Kant diz que eles certamente não são o que nós tomamos
como são. Mansel, diz que isto vai longe demais. Não podemos saber,
com efeito, o que são, mas é possível que na realidade são o que parecem
ser. Em qualquer caso são para todos nós incógnita, e os sentidos nos
enganam. Assumem ensinar mais do que têm direito a ensinar, e estamos
obrigados a crer neles.
Kant nos ensina que nossa razão, que as leis necessárias do
pensamento que regem nossas operações mentais, conduzem a
contradições absolutas. Nisto Hamilton e Mansel concordam totalmente
com ele. Dizem-nos que a razão ensina que o Absoluto deve ser todas as
coisas reais e possíveis, que não pode haver uma pessoa absoluta ou
infinita, ou causa, que o ser e o não ser são idênticos; que o infinito é
“potencialmente todas as coisas e na realidade nada.” Estas e outras
contradições diz-se que são resultados inevitáveis de todos os intentos de
conhecer a Deus como um Ser Absoluto e o Infinito. “A concepção do
Absoluto e Infinito, de qualquer lado que a vejamos, aparece rodeada de
contradições. Há uma contradição em supor que tal objeto existe, quer
seja só ou em combinação com outros, e existe uma contradição ao supor
que não existe. Há uma contradição em concebê-lo como um, e há uma
contradição em concebê-lo como muitos. Há uma contradição em
concebê-lo como pessoal; e há uma contradição em concebê-lo como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 495
impessoal. Não pode, sem contradição ser representado como ativo, nem
tampouco, sem contradição de igualdade, ser representado como inativo.
Não se pode conceber como a soma de toda a existência, nem mesmo
pode conceber-se como uma única parte dessa soma.” 217 Mas tudo isto
somos instados a crer, porque é nosso dever, ele diz, a crer que Deus é
infinito e absoluto. Quer dizer, estamos obrigados a crer o que nossa
consciência racional pronuncia ser contraditória e impossível.
A consciência, ou nossa consciência moral, não é menos enganosa.
O Sr. Mansel admite que somos conscientes da dependência e da
obrigação moral, que se trata do que ele chama “a consciência de Deus,”
quer dizer, que estamos na relação com Deus de um espírito a outro
espírito, de uma pessoa a outra pessoa; uma pessoa tão superior a nós
quanto a ter autoridade legitimamente sobre nós, e que tem todo o poder
e todas as perfeições morais que entrem em nossa ideia de Deus. Mas
tudo isto é uma ilusão. É um engano, porque o que nossa consciência
moral assim ensina envolve todas as contradições e absurdos
mencionados, porque diz-se que ensinam não o que é Deus, mas sim só o
que é desejável que devemos pensar que Ele é; e porque nos é dito que é
uma blasfêmia pensar que é o que nós O tomamos para ser. Portanto, a
teoria de Hamilton e Mansel quanto ao conhecimento de Deus é suicida.
É incompatível com a veracidade da consciência, que é o princípio
fundamental de sua filosofia. A teoria é uma combinação incongruente
de princípios céticos com a fé ortodoxa, os princípios antiteístas de Kant
com o teísmo. Um ou outro pode-se renunciar. Não podemos crer num
Deus pessoal, se uma pessoa infinita é uma contradição e absurdo.
Deus não constituiu nossa natureza para fazê-la necessariamente
enganosa. Os sentidos, a razão e a consciência, dentro de suas esferas
apropriadas, e em seu exercício normal, são guias dignos de confiança.
Ensinam-nos verdades reais, não meramente aparentes ou reguladoras.
Suas esferas combinadas compreendem todas as relações que mantemos
217
Limits of Religious Thought, p. 85.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 496
nós, como criaturas racionais, com o mundo externo, com nossos
semelhantes, e com Deus. Se não fosse pelo perturbador elemento do
pecado, não é de pensar que o homem, em plena comunhão com seu
Criador, não teria tido necessidade de nenhuma outra guia. Mas o
homem não está em seu estado normal. Ao apostatar de Deus, o homem
caiu num estado de trevas e confusão. A razão e a consciência já não são
guias adaptados quanto «às coisas de Deus». Diz o apóstolo, com relação
aos homens caídos. «Tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram
como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus
próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.
Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do
Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível,
bem como de aves, quadrúpedes e répteis» (Rm 1:21-23); ou, pior ainda,
num ser absoluto e infinito sem consciência, nem inteligência nem
caráter moral, um ser que é potencialmente todas as coisas, e realmente
nada. É certo, portanto, como nos diz isso o mesmo Apóstolo, que o
mundo pela sabedoria não conhece a Deus. É certo ainda num sentido
mais elevado, como diz o próprio Senhor, que ninguém conhece o Pai,
«senão o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revelar» (Mt 11:27).
218
Lectures on Logic, Conferência 32.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 497
do conhecimento em duas classes: os que se derivam do interior da
inteligência, e os que se derivam da experiência. Estes últimos se
dividem em duas classes: o que sabemos por nossa própria experiência, o
que sabemos pela experiência dos outros, que nos é autenticada mediante
um testemunho adequado. No sentido geralmente recebido da palavra,
este é um verdadeiro conhecimento. Ninguém duvida em dizer que
conhece que houve um homem chamado Washington, ou um
acontecimento como a Revolução Americana. Se o testemunho dos
homens nos pode dar um conhecimento claro e certo de alguns fatos fora
de nossa experiência, com toda segurança que o testemunho de Deus é
maior. O que Ele revela é dado a conhecer. Recebemo-lo tal como na
verdade é. A convicção de que o que Deus revela é dado a conhecer em
sua verdadeira natureza, é a própria essência da fé no testemunho divino.
Por isso, temos a segurança de que nossas ideias de Deus,
fundamentadas no testemunho de Sua palavra se correspondem com o
que Ele realmente é, e constituem um verdadeiro conhecimento.
Também deve-se lembrar que enquanto que o testemunho dos homens é
à mente, que o testemunho de Deus não só é à mente mas também dentro
da mente. Ilumina e informa, de maneira que o testemunho de Deus é
chamado a demonstração do Espírito.
A segunda observação a respeito da revelação contida nas Escrituras
é que, enquanto que dá a conhecer verdades muito acima do alcance dos
sentidos ou da razão, não revela nada que contradiga a ambos.
Harmoniza com toda nossa natureza. Suplementa todo nosso
conhecimento, e se autentica a si mesma harmonizando o testemunho da
consciência iluminada com o testemunho de Deus em Sua palavra.
Assim, a conclusão de toda esta questão é que conhecemos a Deus
no mesmo sentido em que nos conhecemos a nós mesmos às coisas fora
de nós mesmos. Temos a mesma convicção de que Deus é, e de que Ele
é, em Si mesmo, e independentemente de nosso pensamento dEle, o que
pensamos que Ele é. Nossa ideia subjetiva se corresponde com a
qualidade objetiva. Este conhecimento de Deus é a base de toda religião,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 498
e, por isso, negar que Deus possa ser conhecido é realmente negar que
seja possível a religião racional. Em outras palavras, é fazer da religião
um mero sentimento, ou um sentimento cego, em lugar de ser o que o
Apóstolo declara que é, um λογικὴ λατρεία [logike latreia] um serviço
racional; a homenagem de nossa razão assim como de nosso coração e
vida. «Nosso conhecimento de Deus», diz Hase, «desenvolvido e
iluminado pelas Escrituras, corresponde-se com o que Deus realmente é,
porque Ele não pode nos enganar quanto à Sua própria natureza». 219
219
Veja sobre este assunto, Sir William Hamilton’s Discussions on Philosophy and Literature,
Hamilton’s Lectures on Metaphysics and Logic.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 499
CAPÍTULO V
A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE DEUS
§ 1. Definições de Deus
220
De Oratore, I. 42, 189, edit. Leipzig, 1850, p. 84.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 500
221
est essentia spiritualis infinita;” e de Reinhard “Deus est, Natura
necessaria, a mundo diversa, summas complexa perfectiones et ipsius
mundi causa;” ou de Baumgarten “Spiritus perfectissimus, rationem qui
ipsius rerumque contingentium omnium seu mundi continens;” ou, essa
de Morus, “Spiritus perfectissimus, conditor, conservator, et gubernator
mundi.”
Provavelmente a melhor definição de Deus jamais escrita pelo
homem seja a que aparece no «Catecismo de Westminster»: «Deus é um
Espírito, Infinito, eterno e imutável, em seu ser, sabedoria, poder,
santidade, justiça, bondade e verdade.» Esta é uma definição verdadeira,
porque declara a classe de seres a que Deus deve ser atribuído. Ele é um
Espírito. E é distinto de todos os outros espíritos quanto a que Ele é
infinito, eterno e imutável em Seu Ser e perfeições. É também uma
definição completa, até onde é uma declaração exaustiva do conteúdo de
nossa ideia de Deus.
Entretanto, em que sentido se empregam estes termos? Que se quer
dizer pelas palavras «ser» e «perfeições» ou «atributos» de Deus? Que
relação têm Seus atributos com Sua essência, e uns com os outros? Estas
são questões às quais os teólogos, especialmente durante o período
escolástico, dedicaram muito tempo e trabalho.
O ser de Deus
Pela palavra ser se significa aqui aquilo que tem uma existência
real, substantiva. É equivalente a substância, ou essência. Opõe-se ao
que é meramente pensamento, ou a uma mera força ou poder. Tomamos
esta ideia, em primeiro lugar, da consciência. Estamos conscientes do eu
como o sujeito dos pensamentos, sentimentos e volições, que são seus
vários estados e atividades. Esta consciência de substância está envolta
na da identidade pessoal. Em segundo lugar, uma lei de nossa razão nos
força a crer que há algo que subjaz aos fenômenos da matéria e da
221
Dogmatik, p. 92.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 501
mente, dos quais estes fenômenos são a manifestação. É-nos impossível
pensar a respeito do pensamento e dos sentimentos, a não ser que haja
algo que aja; ou de movimento, a não ser que haja algo que se mova. Por
isso, supor que a mente é só uma série de ações e de estados, e que a
matéria não é nada senão força, é supor que nada (uma não entidade)
possa produzir efeitos.
Por isso, Deus é em Sua natureza uma substância, ou essência, que
é infinita, eterna e imutável; o sujeito comum de todas as perfeições
divinas, e o agente comum de todos os atos divinos. Isto é a tudo o que
podemos chegar, ou precisamos chegar. Não temos uma ideia definida
de substância, seja da matéria ou da mente, em distinção a seus atributos.
Ambas as coisas são inseparáveis. Ao conhecer um conhecemos o outro.
Não podemos conhecer a dureza exceto se conhecemos algo duro. Por
isso, temos o mesmo conhecimento da essência de Deus que aquele que
temos da substância da alma. Tudo o que temos que fazer com referência
à essência divina como Espírito, é negar-lhe a ela, como o fazemos com
nossa própria essência espiritual, o que pertence às substâncias materiais,
e afirmar dela que em si mesma e em seus atributos é infinita, eterna e
imutável. Assim, quando dizemos que há um Deus, não afirmamos
meramente que existe em nossas mentes a ideia de um Espírito infinito,
mas sim este Ser realmente existe com independência total de nossa ideia
dele. Agostinho 222 diz: “Deus est quædam substantia; nam quod nulla
substantia est, nihil omnino est. Substantia ergo aliquid esse est.”
Assim, se existe uma essência divina, infinita, eterna e imutável,
esta essência existia antes e com independência do mundo. Segue disso
também que a essência de Deus é distinta do mundo. A doutrina
Escriturística de Deus opõe-se consequentemente às várias formas de
erro já mencionadas: ao Hilozoísmo, que supõe que Deus, como o
homem, é um ser composto, sendo o mundo para Ele o que o corpo é
para nós; ao Materialismo, que nega a existência de qualquer substância
222
Enarratio in Psalmum, lxvii. I. 5, edit. Benedictines, vol. iv. p. 988 c.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 502
espiritual, e que afirma que todo o material é real; ao Idealismo extremo,
que nega não só a realidade do mundo interno, mas também toda
existência objetiva real, afirmando que só o subjetivo é real; ao
Panteísmo, que ou faz do mundo a forma existencial de Deus, ou que,
negando totalmente a realidade do mundo, faz de Deus a única
verdadeira existência. Isto é, ou faz da natureza Deus, ou, negando a
natureza, faz de Deus o todo.
§ 2. Os Atributos divinos
223
Theologia, part I. cap. viii. § 2, edit. Leipzig, 1715, p. 426.
224
Ibid. II. cap. viii. § 2, p. 426.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 505
Os Atributos divinos.
Uma terceira forma e menos objetável de representar o assunto foi
adotada por aqueles que dizem com Hollazius: “Attributa divina ab
essentia divina et a se invicem, distinguuntur non nominaliter neque
realiter sed formaliter, secundum nostrum concipiendi modum, non sine
certo distinctionis fundamento.” 225 Isto é muito diferente a dizer que se
diferenciam ratione tantum. Turrettin diz que os atributos se distinguem
não realiter, sino virtualiter; quer dizer, existe uma base real na natureza
divina dos vários atributos que se atribuem a Ele.
É evidente que esta questão da relação dos atributos divinos com a
essência divina tem que ver diretamente com a questão geral entre os
atributos e a substância. É também evidente que este é um tema a
respeito do que um conhece tanto como outro, porque tudo o que pode
ser conhecido a respeito disso dá-se de maneira imediata na consciência.
Este tema já foi abordado. Estamos conscientes de nós mesmos
como substância pensante. Isto é, estamos conscientes de que aquilo que
é tem identidade, continuação e poder. Ademais, estamos conscientes de
que a substância do eu pensa, quer e sente. A inteligência, a vontade e a
sensibilidade são suas funções ou atributos, e são consequentemente os
atributos de um espírito. Estas são as formas nas quais age um espírito.
Tudo aquilo que não aja assim, que não tenha estas funções ou atributos,
não é um espírito. Se de um espírito for tirado sua inteligência, vontade e
sensibilidade, não resta nada; sua substância desapareceu; ao menos
cessa de ser um espírito. A substância e os atributos são inseparáveis.
Um é conhecido no outro. Uma substância sem atributos não é nada, isto
é, não tem existência real. O que é certo das substâncias espirituais é
certo da matéria. A matéria, sem as propriedades essenciais da matéria,
seria uma contradição.
Assim, com base na consciência conhecemos, até onde possa ser
conhecida, a relação entre a substância e seus atributos. E tudo o que se
225
Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, p. 235.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 506
pode fazer, ou que é necessário fazer, é negar ou corrigir os falsos
enunciados que se fazem com tanta frequência a respeito desta questão.
226
Confessiones, XIII. 38.53, edit. Benedictines, vol. i. p. 410 b.
227
De Divisione Naturæ, III. 29, edit. Westphalia, 1838, p. 264.
228
Summa, I. xiv. 8, edit. Cologne, 1640, p. 30.
229
Limits, p. 195.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 507
o pensamento em nós. Do contrário a criação é eterna, e Deus o cria tudo
— todos os pensamentos, sentimentos e vontades de Suas criaturas, o
bem e o mal; e Deus é o único agente real, e o único ser real no universo.
Segundo esta doutrina, também, não pode haver nenhuma diferença entre
o real e o possível, porque um como o outro está sempre presente na
mente divina. Seguir-se-ia também que a criação deve ser infinita, ou
Deus finito. Porque se o conhecimento é causal, Deus cria tudo o que Ele
conhece, e se se limita Seu conhecimento se limita Sua criação. Quase
não deve ser observado que esta doutrina é depreciativa a Deus. Não só é
uma ideia muito mais elevada, mas uma ideia essencial à personalidade,
que deveria haver uma distinção real entre os atributos divinos. Aquele
que por sua natureza e por necessidade faz tudo o que pode fazer, é uma
força, e não uma pessoa. Não pode ter vontade. A doutrina em questão,
portanto, é em essência panteísta. “Por muito que”, diz Martensen,
“devemos proteger nossa ideia de Deus de ser degradada por algo que é
somente humano, de todo Antropomorfismo falso, mas podemos
encontrar no Nominalismo só a negação de Deus como Ele Se revela nas
Escrituras. É a negação da própria essência da fé, se for só em nosso
pensamento de que Deus é santo e justo, e não em Sua própria natureza,
se somos nós os que se dirigem a Ele, e não que Ele se revela a Si
mesmo. Ensinamos, portanto, com os Realistas (de uma classe), que os
atributos de Deus são objetivamente verdade como revelado, e portanto
têm seu fundamento na essência divina.” Há uma classe de Realismo,
como Martensen admite, que é tão destrutivo da verdadeira ideia de
Deus como o Nominalismo que faz com que Seus atributos se
diferenciam só no nome. Outorga, de fato, a realidade objetiva a nossas
ideias; mas estas ideias, segundo isso, não têm nenhum sujeito real. “A
ideia de onipotência, justiça, e santidade”, diz ele, “é um pensamento
cego simples, se não há um onipotente, justo e santo”. 230
230
Dogmatik, p. 113.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 508
Os Atributos Divinos não são resolvidos na Causalidade.
Isto equivale a mais da mesma doutrina, para resolver todos os
atributos de Deus na causalidade. Era um princípio com alguns dos
escolásticos, “Affectus in Deo denotat effectum.” Isto se aplicou a fim de
limitar nosso conhecimento de Deus ao fato de que Deus é a causa de
certos efeitos. Assim, quando dizemos que Deus é justo, nós não
significamos nada mais que Ele causa a miséria após o pecado, e quando
dizemos que Ele é santo, só significa que Ele é a causa da consciência
em nós. Como uma árvore não é doce, porque sua fruta é deliciosa,
assim que Deus não é santo, Ele é só a causa da santidade.
Contra esta aplicação do princípio, Tomás de Aquino mesmo
protestou, declarando: “Cum igitur dicitur, Deus est bonus; non est
sensus, Deus est causa bonitatis; vel Deus non est malus. Sed est sensus:
Id, quod bonitatem dicimus in creaturis, præexistit in Deo; et hoc quidem
secundum modum altiorem. Unde ex hoc non sequitur, quod Deo
competat esse bonum, in quantum causat bonitatem; sed potius e
converso, quia est bonus, bonitatem rebus diffundit.” 231 E o teólogo
luterano, Quenstedt, diz: “Dicunt nonnulli, ideo Deum dici justum,
sanctum, misericordem, veracem, etc., non quod revera sit talis, sed quod
duntaxat sanctitatis, justitiæ, misericordiæ, veritatis, etc., causa sit et
auctor in aliis. Sed si Deus non est vere misericors, neque vere perfectus,
vere sanctus, etc., sed causa tantum misericordiæ et sanctitatis in aliis, ita
etiam et nos pariter juberemur esse non vere misericordes, non vere
perfecti, etc., sed sanctitatis saltem et misericordiæ in aliis auctores.” 232
231
Summa, I. xiii. 2, edit. Cologne, 1640, p. 28.
232
Theologia, I. viii. § II. 2, p. 481.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 509
nossas concepções, ou como a expressão dos diversos efeitos da
atividade de Deus, fez uma distinção entre a ratio rationantis e a ratio
rationatæ. Quer dizer, a razão como a determinação, e a razão como
determinada. Os atributos, dizem, não diferem re, mas sim ratione; não
só nossa razão subjetiva, mas não há em Deus uma razão pela qual
pensamos nEle como possuidor destas perfeições diversas. Esta ideia,
como se tem dito, se expressa com frequência dizendo que os atributos
divinos não diferem realiter, nem nominaliter, e sim virtualiter. Se isto
se entende para significar que as perfeições divinas são realmente o que
a Bíblia as declara ser, que Deus na verdade pensa, sente e age; que Ele é
verdadeiramente sábio, justo, e bom, que Ele é verdadeiramente
onipotente, e voluntário, agindo ou não agindo, como Lhe parece
adequado, que Ele pode ouvir e responder a oração, pode ser admitido.
Não devemos abandonar a convicção de que Deus é realmente em
Si mesmo o que Ele revela ser para satisfazer nenhuma especulação
metafísica a respeito da diferença entre essência e atributo num Ser
infinito. Por isso, os atributos de Deus não são simplesmente diferentes
concepções em nossas mentes, mas diferentes modos nos quais Deus Se
comunica a Si mesmo com Suas criaturas (ou Consigo mesmo), da
mesma maneira em que nossas faculdades são diferentes modos nos
quais a inescrutável substância do eu se manifesta em nossa consciência
e em nossas atividades. É um velho dito: “Qualis homo, talis Deus”. E
Clemente de Alexandria 233 diz: “Se alguém se conhece, conhecerá a
Deus.” Leibnitz expressa a mesma grande verdade quando diz: «As
perfeições de Deus são as de nossas próprias almas, mas Ele as possui
sem limites. Ele é um oceano do que nós só recebemos umas poucas
gotas. Há em nós algo de poder, algo de conhecimento, algo de bondade;
mas estes atributos encontram-se em sua integridade nEle». 234 Há
verdadeiramente perigo em ambos os extremos: o de degradar a Deus em
233
Pædagogus, III. i. edit. Cologne, 1688, p. 214 a.
234
“Théodicée” Preface, Works, p. 469, edit. Berlin, 1840.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 510
nossos pensamentos, reduzindo-O à norma de nossa natureza, e perigo
de negá-Lo tal como Ele Se revela. Em nossos dias, e entre as pessoas
instruídas, especialmente entre estudantes de filosofia, o segundo perigo
é muito maior. Deveríamos lembrar que perdemos a Deus quando
perdemos nossa confiança em dizer Tu a Ele, com a certeza de ser
ouvidos e auxiliados.
*
Advirta-se que nas transcrições emprega-se o negrito para o hebraico, e o itálico para o grego [N. do
T.].
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 514
permanência e poder. Inclusive Kant diz: “Wo Handlung, mithin
Thätigkeit und Kraft ist, da ist auch Substanz,” «Onde há operação, e por
conseguinte, atividade e força, há substância». 235 Isto não é só a
convicção comum dos homens, mas sim é admitido pela imensa maioria
dos filósofos. Como já se observou anteriormente, é igualmente
impensável que haja movimento sem algo que se mova.
2. A consciência ensina que a alma é uma subsistência individual.
Isto fica incluído na consciência da unidade, identidade e permanência
da alma. Não se trata só de estarmos conscientes de certos estados da
alma, dos quais infiramos sua substância e subsistência, e sim estes são
os conteúdos do conhecimento que nos são dados na consciência do eu.
O famoso aforismo de Descartes, Cogito, ergo sum [Penso, logo
existo], não é um silogismo. Não significa que a existência se infira com
base na consciência do pensamento; antes, que a consciência do
pensamento envolve a consciência da existência. O próprio Descartes
entendia isto desta maneira, porque diz: “Cum advertimus nos esse res
cogitantes, prima quædam notio est quæ ex nullo syllogismo concluditur;
neque etiam cum quis dicit ‘Ego cogito, ergo sum, sive existo,’
existentiam ex cogitatione per syllogismum deducit, sed tanquam rem
per se notam simplici mentis intuitu agnoscit.” 236 Mansel, diz: “Qualquer
que seja a variedade dos fenômenos da consciência, as sensações por
este ou aquele órgão, vontades, pensamentos, imaginações, de todos
somos imediatamente conscientes como os afetos de um e o mesmo eu.
Não é por qualquer pós-esforço de reflexão que eu combino visão e
audição, pensamento e vontade, numa unidade fictícia ou composta total,
em cada caso sou consciente imediatamente de mim mesmo vendo e
ouvindo, a vontade e o pensamento. Esta autopersonalidade, como todas
as outras apresentações simples e imediatas, é indefinível, mas é assim
235
Werke, edit. Leipzig, 1838, vol. ii. p. 173.
236
Meditationes de Prima Philosophia, Responsio ad Secundas Objectiones, III., edit. Amsterdam,
1685, p. 74.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 515
237
porque é superior à definição”. Esta subsistência individual está assim
envolta na consciência do eu, porque na consciência do eu nos
distinguimos a nós mesmos de tudo aquilo que não é nós mesmos.
3. Como a cada substância pertence um poder de alguma classe, o
poder que pertence ao espírito, à substância do eu, é a do pensamento,
sentimento e vontade. Tudo isto se dá na forma mais simples de
consciência. Não estamos mais certos de que existimos que de que
pensamos, sentimos e queremos. Conhecemo-nos a nós mesmos só como
pensando, sentindo e querendo, e por isso estamos seguros de que estes
poderes ou faculdades são os atributos essenciais de um espírito, e que
devem pertencer a cada espírito.
4. A consciência nos informa deste modo da unidade ou
simplicidade da alma. Não está composta de diferentes elementos. Está
composta de substância e forma. É uma substância simples que possui
certos atributos. É incapaz de separação ou divisão.
5. Ao ser conscientes de nossa subsistência individual, estamos
conscientes da personalidade. Não cada subsistência individual é uma
pessoa. Mas cada subsistência individual que pensa e sente e tem a
capacidade da autodeterminação é uma pessoa; e, portanto, a consciência
de nossa subsistência e dos poderes do pensamento e volição é a
consciência da personalidade.
6. Somos também conscientes de ser agentes morais, suscetíveis de
caráter moral, e sujeitos de obrigação moral.
7. Não será necessário acrescentar que cada espírito deve possuir
consciência do eu. Isto está envolto em todo o anterior. Sem consciência
do eu, seríamos um mero poder da natureza. Esta é a própria base de
nosso ser, e está necessariamente envolta na ideia do eu como uma
existência real. É impossível, portanto, sobrevalorizar a importância da
verdade contida na proposição simples: Deus é um Espírito. Está
comprometido nesta proposição de que Deus é imaterial. Nenhuma das
237
Prolegomena Logica, Boston, 1860, p. 123. See also McCosh’s Intuitions of the Mind, p. 143.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 516
propriedades da matéria pode pregar-se dEle. Ele não é estendido nem
divisível, nem composto, nem visível, nem palpável. Ele não tem nem
volume nem forma. A Bíblia reconhece em todas partes como
verdadeiras as convicções intuitivas dos homens. Uma destas convicções
é que o espírito não é matéria, nem a matéria espírito; que alguns
atributos diferentes e incompatíveis não podem pertencer à mesma
substância. Assim, ao nos revelar que Deus é Espírito, revela-nos que
não se pode pregar nenhum atributo material da essência divina. O
realista dualismo que subjaz no fundo de todas as convicções humanas
subjaz também em todas as revelações da Bíblia.
§ 5. Infinitude
238
Limits, p. 148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 519
que é que significa a palavra «espaço», embora não possa defini-lo de
maneira satisfatória. Algo muito semelhante sucede com a ideia de
infinitude. Se os homens se contentassem, deixando a ideia em sua
integridade, como simplesmente expressando aquilo que não admite
limitações, não haveria perigo em especular a respeito de sua natureza.
Mas em todas as idades as ideias errôneas a respeito do que é o infinito
levaram a erros fatais em filosofia e religião. Sem tratar de detalhar as
especulações dos filósofos a respeito desta questão, tentaremos
simplesmente enunciar o que se significa quando se diz que Deus é
infinito em Seu ser e perfeições.
239
Prolegomena Logica, Boston, 1860, p. 52.
240
“Living Temple,” Works, London, 1724, vol. i. p. 70.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 521
ser no universo; que o finito não é mais que o modus existendi, ou
manifestação do Infinito. Assim, Cousin diz, Deus deve ser “infinito e o
finito juntos,. . . . no cimo de ser e em seu humilde grau. . . . ; ao mesmo
tempo Deus, a natureza e a humanidade.” 241 Inclusive alguns dos
remonstrantes consideram isto como a consequência necessária da
doutrina da infinitude da essência divina. Episcopius 242 diz: “Si essentia
Dei sic immensa est, tum intelligi non potest quomodo et ubi aliqua
creata essentia esse possit. Essentia enim creata non est essentia divina;
ergo aut est extra essentiam divinam, aut, si non est extra eam, est ipsa
essentia illa, et sic omnia sunt Deus et divina essentia.” “Deus é
infinito”, diz Jacó Boehme, “porque Deus é tudo.” Isto, diz Strauss, 243 é
exatamente a doutrina da filosofia moderna.
Já se observou num capítulo anterior, em referência a este modo de
raciocinar, que provém de uma ideia errônea do infinito. Uma coisa pode
ser infinita em sua própria natureza, sem impedir a possibilidade da
existência de coisas de uma natureza diferente. Um espírito infinito não
impede a hipótese da existência da matéria. Pode ser que haja inclusive
muitos infinitos da mesma classe, como podemos imaginar um número
de linhas infinitas. Por isso, o infinito não é o todo. Um espírito infinito é
um espírito a cujos atributos como espírito não se lhe podem pôr limites.
Não impede a existência de outros espíritos, como tampouco a infinita
bondade impede a existência de bondade finita, ou o poder infinito a
existência do poder finito. Deus é infinito em Seu ser porque não se pode
atribuir limite algum a Suas perfeições, e porque está presente em todas
as porções do espaço. Diz-se que um ser está presente onde percebe e
age. Como Deus percebe e age em todas partes, está presente em todas
partes. Entretanto, isso não impede a presença de outros seres. Uma
multidão de homens inclusive pode perceber e agir no mesmo tempo e
lugar. Além disso, temos muito pouco conhecimento da relação que o
241
History of Modern Philosophy, translated by Wight. New York, 1852, vol. I. p. 113.
242
Institutiones Theologicæ, IV. II. 13, edit. Amsterdam, 1550, vol. I. p. 294.
243
Dogmatik, vol. i. p. 556.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 522
espírito tem com o espaço. Sabemos que os corpos ocupam porções do
espaço com exclusão de outros corpos; mas não sabemos que os espíritos
não possam coexistir na mesma porção de espaço. Uma legião de
demônios habitava num homem.
A. A doutrina escriturística
247
Confessiones, IX. x. 24, edit. Benedictines, vol. i. p. 283, c.
248
Ibid. XI. xiii. 16, p. 338, a.
249
Summa, I. x. 4, edit. Cologne, 1640, p. 16.
250
Theologia, I. VIII. § I. XVII. p. 413.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 527
nossa consciência nem por experiência, de nenhum tipo de duração que
não seja sucessivo. Em lugar de dizer, como se diz usualmente, que o
tempo é duração medida por sucessão, o que supõe que a duração é
antecedente àquilo por meio do qual é medida e independente dela,
alguns sustentam que é inconcebível e impossível a duração sem
sucessão. Assim como o espaço é definido como «negação entre as
linhas de limite das formas», assim diz-se de tempo que é «a negação
entre os pontos de limite do movimento». Ou, em outras palavras, que o
tempo é «o intervalo que um corpo em movimento marca em seu trânsito
de um ponto do espaço a outro».251 Por isso, se não houvesse corpos com
forma, não há espaço; e se não houver movimento, não há tempo. «Se
todas as coisas fossem aniquiladas, o tempo, assim como o espaço, seria
aniquilado, porque o tempo depende do espaço. Se todas as coisas
fossem aniquiladas, não poderia haver transições, nem sucessões de um
objeto com relação a outro, porque não haveria objeto em ser: tudo seria
perfeita vacuidade, nada, ausência de ser. Numa total aniquilação, não
poderia haver nem espaço nem tempo». 252 O mesmo escritor diz em
outra parte: 253 “A terra, assim como os outros globos do espaço, foram
aniquilados, muito mais tempo de ser aniquilados da mesma maneira.” 254
Tudo isto, entretanto, deve-se entender, segundo se diz, de “tempo
objetivo, quer dizer, de tempo, como depende das condições materiais
criadas.” 255 Como a intemporalidade objetiva segue a aniquilação de
existências materiais, assim que a intemporalidade como se referem a
personalidades o pensamento é concebível só na destruição do
pensamento. “Vimos que não pode haver um estado de intemporalidade
da criação material, só mediante a destruição de seu funcionamento, quer
251
Jamieson, p. 199.
252
Ibid. p. 163.
253
Rev. George Jamieson, M.A., one of the ministers of the parish of Old Machar, Aberdeen, The
Essentials of Philosophy, wherein its constituent Principles are traced throughout the various
Departments of Science with analytical Strictures on the Views of some of our leading Philosophers.
254
Ibid., p. 200.
255
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 528
dizer, seu atributo de movimento: precisamente em virtude desta
analogia, não pode haver um estado de intemporalidade para a criação
intelectual, só mediante a destruição das leis do intelecto, quer dizer, sua
operação de pensar.”256 Se, pois, Deus é uma pessoa ou um Ser pensante,
não poderia ser atemporal: deveria haver uma sucessão; um pensamento
ou estado tem que seguir a outro. Diz-se que negar isto é negar a
personalidade de Deus. Por isso, a sentença dos escolásticos – de que é
um agora persistente e imóvel – fica com isto repudiado.
Entretanto, há dois sentidos nos quais se nega a sucessão em Deus.
O primeiro refere-se a acontecimentos externos. Estes estão sempre
presentes na mente de Deus. Ele os contempla em todas suas relações.
sejam causais ou cronológicas. Ele vê como se sucedem um ao outro no
tempo, como nós vemos uma parada militar, podendo vela toda de uma
só olhada. Nisto talvez não há nada que transcenda de uma maneira
absoluta a nossa compreensão. O segundo aspecto da questão tem que
ver com a relação de sucessão dos pensamentos e atos de Deus. Quando
ignoramos, é sábio calar. Não temos direito a afirmar ou a negar, quando
não podemos saber o que nossa afirmação ou negação possa envolver ou
implicar. Sabemos que Deus está constantemente produzindo novos
efeitos, efeitos que se vão sucedendo uns aos outros no tempo. Mas não
sabemos que estes efeitos se devam a exercícios sucessivos da eficiência
divina. Certamente, é incompreensível para nós como pode ser de outra
maneira. Os milagres de Cristo foram devidos ao exercício imediato da
eficiência divina. Dizemos palavras às quais não podemos atribuir
significado quando dizemos que estes efeitos foram devidos não a um
ato ou volição contemporânea da mente divina, mas sim a um ato eterno,
se é que tal frase não é um solecismo. Da mesma maneira ficamos
confundidos quando nos é dito que nossas orações não são ouvidas e
respondidas no tempo – que Deus é atemporal – que o que Ele faz ao
escutar e responder a nossas orações, e em Sua providência diária, o faz
256
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 529
desde a eternidade. É verdade que Deus está sujeito a todas as limitações
da personalidade, se é que as há. Mas porquanto tais limitações são as
condições de que seja uma pessoa e não uma mera força involuntária,
são as condições de Sua perfeição infinita. Como o constante pensar e
atividade está implicada na própria natureza de um espírito, isto deve
pertencer a Deus; e até onde o pensar e agir envolva sucessão, a sucessão
deve pertencer a Deus. Há mistérios relacionados com a sucessão
cronológica, na natureza, que não podemos explicar. Sabemos que em
sonhos podem-se comprimir meses em alguns momentos, e alguns
momentos podem-se expandir a meses, pelo que respeita a nossa
consciência. Sabemos que com frequência sucede aos que se aproximam
da morte, que todo o passado faz-se instantaneamente presente. Se Deus
nos tivesse constituído de tal maneira que a memória fosse tão vívida
como a atual consciência, não haveria para nós passado, pelo que
concerne à nossa existência pessoal. Não é impossível que no além a
memória se converta na consciência do passado; que tudo o que jamais
pensamos, sentimos ou fizemos, esteja sempre presente na mente; que
todo o escrito nesta tábua seja indelével. As pessoas que, por longa
residência em países estrangeiros, perderam por completo todo o
conhecimento de sua língua nativa, soube-se que o falam com fluidez, e
o entendem perfeitamente, quando chegaram a morrer. Ainda mais
maravilhoso é o fato de que pessoas incultas, ao ouvir ler passagens num
idioma desconhecido (em grego ou hebraico, por exemplo), têm, anos
depois, quando num estado anormal, nervoso, repetido os passos
corretamente, sem entender seu significado. Se somos incapazes de nos
compreender a nós mesmos, não deveríamos pretender poder
compreender a Deus. Tanto se podemos compreender como pode haver
sucessão nos pensamentos dAquele que habita na eternidade ou não, não
devemos negar, para vencer a dificuldade, que Ele Deus é um Ser
inteligente, que Ele realmente pensa e sente. Deus é uma pessoa, e tudo o
que implica a personalidade tem que ser certo dEle.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 530
Posturas filosóficas modernas.
A filosofia moderna ensina que “Die Ewigkeit ist die Einheit in
dem Unterschiede der Zeitmomente — Ewigkeit und Zeit verhalten sich
wie die Substanz und deren Accidentien.” 257 Quer dizer, a eternidade é a
unidade que subjaz nos momentos sucessivos de tempo, como a
substância é a unidade que subjaz nos acidentes que são suas
manifestações. A ilustração de Schleiermacher é tirada de nossa
consciência. Somos conscientes de um permanente e imutável eu, que é
objeto de nossos pensamentos e sentimentos em constante mudança. Pela
eternidade de Deus, portanto, significa-se nada mais que Ele é o
fundamento do bem-estar da qual o universo é o fenômeno em constante
mudança. A eternidade de Deus é só uma fase de sua causalidade
universal. “Unter der Ewigkeit Gottes verstehen wir die mit allem
Zeitlichen auch die Zeit selbst bedingende schlechthin zeitlose
Ursachlichkeit Gottes.” 258 Para alcançar esta visão filosófica da
eternidade, devemos aceitar a postura filosófica da natureza de Deus
sobre a qual se baseia, ou seja, que Deus não é mais que a designação
desse algo desconhecido e incognoscível do qual todas as outras coisas
são as manifestações. Renunciar à vida, do Deus pessoal da Bíblia e do
coração, é um sacrifício terrível à coerência enganosa e lógica. Cremos
no que não podemos entender. Cremos que no que a Bíblia ensina como
fatos, que Deus sempre é, foi e sempre será, imutavelmente o mesmo;
que todas as coisas estão sempre presentes à Sua vista, que para Ele não
passou nem futuro, mas não obstante, que Ele não é um oceano
estagnado, mas a vida eterna, pensando sempre, sempre em qualidade, e
sempre unindo Sua ação às exigências de Suas criaturas, e para a
realização de Seus desígnios imensamente sábios. Quer seja que se pode
harmonizar estes fatos ou não, é um assunto de menor importância.
257
Strauss, Dogmatik, i. p. 561.
258
Christliche Glaube, I. § 52, Werke, edit. Berlin, 1842, Vol. III. p. 268.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 531
Estamos constantemente chamados a crer que as coisas são, sem ser
capazes de dizer como são, ou inclusive a forma em que podem ser.
§ 7. Imutabilidade.
Declarações Filosóficas.
Teólogos há que em sua intenção de enunciar em linguagem
filosófica a doutrina da Bíblia a respeito da imutabilidade de Deus, são
propensos a confundir a imutabilidade com a imobilidade. Ao negar que
Deus pode mudar, parecem negar que possa agir. Agostinho diz, sobre
este tema: “Non invenies in Deo aliquid mutabilitatis; non aliquid, quod
aliter nunc sit, aliter paulo ante fuerit. Nam ubi invenis aliter et aliter,
facta est ibi quædam mors: mors enim est, non esse quod fuit.” 259
Quenstedt utiliza uma linguagem ainda mais aberta à objeção, quando
diz que a imutabilidade de Deus é “Perpetua essentiæ divinæ et omnium
ejus perfectionum identitas, negans omnem omnino motum cum
physicum, tum ethicum.” 260 Turrettin é mais cauteloso, mas talvez vai
longe demais. Ele diz: “Potestas variandi actus suos, non est principium
mutabilitatis in se, sed tantum in objectis suis; nisi intelligatur de
variatione internorum suorum actuum, quos voluntas perfecta non variat,
sed imperfecta tantum.” 261 A cláusula em itálico na citação anterior
assume um conhecimento da natureza de Deus ao qual o homem não tem
direito legítimo. É em vão que pretendamos compreender a perfeição do
259
In Joannis Evangelium Tractatus, xxiii. 9, edit. Benedictines, vol. iii. p. 1952, b, c.
260
Theologia, I. VIII. § I. XX. p. 414.
261
Locus III. xi. 9, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 186.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 533
Onipotente. Sabemos que Deus é imutável em Seu ser, em Suas
perfeições e em Seus propósitos; e sabemos que Ele é perpetuamente
ativo. E que, por isso, a atividade e a imutabilidade devem ser
compatíveis; e não se deveria admitir nenhuma explicação desta última
que seja inconsequente com a primeira.
A. Sua natureza
262
Dogmatik, i. p. 575.
263
Ethices, I. xvii. Scholium, edit. Jena, 1803, vol. ii. p. 53.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 537
deixaram-se ser controlados por especulações a priori quanto à natureza
do infinito e absoluto. Ainda Agostinho, como antes se indicou, diz:
“Nos ista, quæ fecisti videmus, quia sunt: tu autem quia vides ea,
sunt.” 264 E Escoto Erígena diz: 265 “Voluntas illius et visio et essentia
anum est.” 266 . . . . “Visio Dei totius universitatis est conditio. Non enim
aliud est ei videre, aliud facere; sed visio illius voluntas ejus est, et
voluntas operatio.” Tomás de Aquino também diz: 267 “Deus per
intellectum suum causat res, cum suum esse sit suum intelligere. Unde
necesse est, quod sua scientia sit causa rerum.”
Os teólogos luteranos e reformados representam a Deus como
simplicissima simplicitas, que não admite nenhuma distinção entre a
faculdade e o ato, ou entre um e outro atributo. Assim, Gerhard diz:
“Deus est ipsum esse subsistens, omnibus modis indeterminatum.” 268
“Solus Deus summe simplex est, ut nec actus et potentiæ, nec esse et
essentiæ compositio ipsi competat.” 269 “Essentia, bonitas, potentia,
sapientia, justitia, et reliqua attributa omnia sunt in Deo realiter
unum.” 270 Ele também diz: “In Deo idem est esse et intelligere et velle.”
De la misma manera el teólogo reformado Heidegger dice 271 : “Voluntas
ab intellectu non differt, quia intelligendo vult et volendo intelligit.
Intelligere et velle ejus idemque perpetuus indivisus actus.” Isto não
significa simplesmente que num ser inteligente, cada ato da vontade é
um ato inteligente. Ele sabe que enquanto que ele quer, e sabe o que
quer. O significado é que conhecimento e poder em Deus são idênticos.
Conhecer uma coisa, e fazê-la, são o mesmo ato indivisível e perpétuo.
Disto poderia parecer lógico que, como Deus conhece desde a eternidade
264
Confessiones, XIII. xxxviii. 53, edit. Benedictines, vol. I, p. 410, b.
265
De Divisione Naturæ, III, 17, p. 235.
266
Ibid. 29, p. 264.
267
Summa, I. xiv. i, edit. Cologne, 1640, p. 36.
268
Tom. I. loc. III. cap. VI. § 43, p. 106, edit. Tübingen, 1762.
269
Ibid. cap. x. § 80, p. 119.
270
Ibid. chap. vii. § 47, p. 108.
271
Corpus Theologiæ Christiane Tiguri, 1732.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 538
Ele cria desde a eternidade, e que “tudo o que Ele conhece, é.”
Chegamos assim, por estas especulações, na postura panteísta da
natureza de Deus e de Sua relação com o mundo.
Este modo de representação se desenvolve ainda mais pelos
modernos teólogos filosóficos. Com Schleiermacher, todos os atributos
de Deus são praticamente fundidos na ideia de causalidade. Para ele
Deus é ens summum prima causa. 272 Ele diz que pensamento e vontade
de Deus são o mesmo, e que sua onipotência e onisciência são idênticas.
Quando dizemos que Ele é onipotente, só significa que Ele é a causa de
tudo o que é. E quando dizemos que Ele é onisciente, só significa que
Ele é uma causa inteligente. Seu poder e conhecimento se limitam ao
verdadeiro. Ele não é nada, antes, não é o objeto nem de conhecimento
nem de poder. “Gott,” diz Schleiermacher, “weiss Alles was ist; und
Alles ist, was Gott weiss und dieses beides ist nicht zweierlei sondern
einerlei, weil sein Wissen und sein allmächtiges Wollen eines und
dasselbe ist,” quer dizer, Deus conhece tudo o que é, e tudo é o que Deus
conhece. Deus, portanto, limita-se ao mundo, que é o fenômeno do qual
Ele é a substância.
Outro ponto de vista filosófico deste assunto, aprovado inclusive
por aqueles que repudiam o sistema panteísta e sustentam que Deus e o
mundo são distintos, é que como Deus é imanente no mundo, não há nEle
nenhuma diferença entre a autoconsciência e o mundo – consciência,
como eles dizem, quer dizer, entre o conhecimento de Deus de Si mesmo
e Seu conhecimento do mundo. Portanto, definem a onisciência dizendo:
“Insofern Gott gedacht wird als die Welt mit seinem Bewusstseyn
umfassend, nennen wir ihn den Allwissenden.” 273 Quer dizer, “Até onde
imaginamos a Deus como abraçando o mundo em sua consciência,
chamamo-lo onisciente.” Seja qual for o idioma poderia significar para
272
Christliche Glabue, I. § 55. Werke, edit. Berlin, 1842, vol. III. p. 295.
273
Bruch, Die Lehre von den göttlichen Eigenschaften, p. 162.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 539
os que o utilizam, para a mente comum que transmite a ideia repugnante
que todos os pecados dos homens entram na consciência de Deus.
C. Scientia Media. *
E. A Sabedoria de Deus.
274
De Diversis Quæstionibus ad Simplicianum, II. ii. 2, edit. Benedictines, vol. vi. p. 195, a. Compare
também que disse ele a respeito deste tema, De Civitate Dei, XI. xxi.: Ibid. vol. vii. p. 461.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 547
necessita ou deseja o que não possui. Não é assim que falam as
Escrituras. Somos chamados a adorar «ao único sábio Deus». «Que
variedade, SENHOR, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste», é
a exclamação do salmista (Sl 104:24). E contemplando a obra da
redenção, o Apóstolo exclama: «Ó profundidade da riqueza, tanto da
sabedoria como do conhecimento de Deus!» (Rm 11:33).
§ 9. A vontade de Deus
A. Significado do termo.
275
Systema Locurum Theologicorum, tom. ii. cap. 9; Wittenburg, 1655, p. 439.
276
Theologia, I. viii. § 1, xxvii. p. 418.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 548
necessariamente, e todas as coisas fora de Si mesmo em liberdade.
Embora a palavra parece ser tomada em sentidos diferentes na mesma
frase, a mesma vontade de Deus significa que toma suficiência em sua
própria excelência infinita: suas disposições fora de Si mesmo, significa
Seu propósito que deveria existir. Embora os teólogos começam com a
definição ampla do termo, contudo, no prosseguimento do assunto, eles
consideram a vontade simplesmente como a faculdade da
autodeterminação, e as próprias determinações. Quer dizer, o poder de
vontade, e volições ou propósitos. É muito melhor confinar a palavra a
seu sentido estrito, e não fazer com que inclua todas as formas de
sentimento envolvendo aprovação ou deleite.
Assim, Deus, como espírito, é um agente voluntário. Estamos
autorizados a atribuir a Ele capacidade de autodeterminação. Isto a
Bíblia o faz a em todas as partes. Do começo ao fim, fala da vontade de
Deus, de Seus decretos, propósitos, conselhos e mandamentos. A
vontade é não só um atributo essencial de nosso ser espiritual, mas
também é uma condição necessária de nossa personalidade. Sem o poder
de autodeterminação racional seríamos tanto uma mera força como a
eletricidade, o magnetismo, ou o princípio da vida vegetal. Por isso, seria
degradar a Deus por debaixo da esfera do ser que nós mesmos
ocupamos, como criaturas racionais, se Lhe negássemos a capacidade de
autodeterminação; de agir ou de não agir, segundo o Seu beneplácito.
D. Poder absoluto
277
Meditationes. Responsiones Sextæ, vi. edit. Amsterdam, 1685, p. 160.
278
Ibid. p. 181.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 557
vontade fica determinada por Sua natureza. Certamente, não é uma
limitação da perfeição dizer que não pode ser imperfeito.
Com esta perspectiva da onipotência de Deus concorda o grande
corpo de teólogos, especialmente entre os Reformados. Assim diz
Zuínglio 279 : “Summa potentia non est nisi omnia possit, quantum ad
legitimum posse attinet: nam malum facere aut se ipsum deponere aut in
se converti hostiliter aut sibi ipsi contrarium esse posse impotentia est,
non potentia.” Musculus:280 “Deus omnipotens, quia potest quæ vult,
quæque ejus veritati, justitiæ conveniunt.” Keckermann, 281 “Absolute
possibilia sunt, quæ nec Dei naturæ, nec aliarum rerum extra Deum
essentiæ contradicunt.” Esta doutrina escolástica de poder absoluto
Calvino 282 estigmatiza como profana, “quod . . . . merito detestabile
nobis esse debet.”
279
De Providentia Dei, Epilogus. Opera, edit. Turici, 1841, vol. iv. p. 138.
280
See Loci Communes Theologici, edit. Basle, 1573, pp. 402-408.
281
Systema Theologiæ, lib. I. cap. v. 4; edit. Hanoviæ, 1603, p. 107.
282
Institutio, III. xxiii. 2, edit. Berlin, 1834, part II. p. 148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 558
negada pela moderna filosofia. [Segundo ela] Deus, ao criar e sustentar o
mundo, Ele o faz como um todo. Nada está isolado. Não há nenhum ato
individual, mas antes, só uma eficiência geral da parte de Deus; e
consequentemente não se pode atribuir nenhum acontecimento particular
a Seu poder absoluto ou ação imediata. Tudo é natural. Não pode haver
milagres nem providência especial. 283
283
Strauss, I, pág. 592. Schleiermacher, I. § 54, Werke, edición de Berlín, 1842, vol. III, pág. 285.
284
Bruch, p. 155.
285
Dogmatik, vol. i. p. 587.
286
Glaubenslehre, I. § 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 559
que tudo o que é tem sua causalidade em Deus, mas também tudo é e
sucede pelo que qualquer causalidade em Deus existe.” Bruch 287 diz,
que pela onipotência de Deus não se significava nada mais que Ele é a
base natural e a causa de todas as coisas. Ele cita Nitsch 288 como
dizendo que “A ideia da onipotência é a repetição e a aplicação da ideia
de Deus como criador do céu e a terra.” Nitsch, entretanto, não entende o
passo no sentido de pôr sobre ela, porque acrescenta, em sua nota
comentando sobre a declaração do Abelardo, “Deus non potest facere
aliquid præter ea quæ facit,” que, se isto significa que o presente esvazia
os recursos de Deus, tem que ser rejeitado. As palavras do Abelardo,
entretanto, expressam corretamente a doutrina da moderna escola alemã
dos teólogos sobre este tema.
A linguagem de Schleiermacher sobre este ponto é explícita e
completa. “Alles ist ganz durch die göttliche Allmacht und ganz durch
den Naturzusammenhang, nicht aber darf die erstere als Ergänzung der
letztern angesehen werden. Die Gesammtheit des endlichen Seins ist als
vollkommene Darstellung der Allmacht zu denken, so dass alles wirklich
ist und geschieht, wozu eine Productivität in Gott ist. Damit fällt weg die
Differenz des Wirklichen und Möglichen, des absoluten und
hypothetischen Wollens oder Könnens Gottes; denn dies führt auf einen
wirksamen und unwirksamen Willen und letzterer kann bei Gott
unmöglich statt finden; so wenig als Können und Wollen getrennt sein
können.” Quer dizer: “Tudo é completamente através da onipotência
divina, e tudo é através do curso da natureza. O primeiro, entretanto, não
se deve considerar como um complemento do último. O conjunto das
coisas finitas é a revelação completa da onipotência de Deus, de modo
que tudo é e sucede para os quais há uma produtividade em Deus. Assim,
a diferença entre o real e o possível, entre a vontade absoluta e hipotética
e o poder de Deus desaparece, porque isto implica uma vontade
287
Die Lehre von den göttlichen Eigenschaften, p. 154.
288
Christlichen Lehre, p. 160.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 560
operativa e inoperante, mas o último é impossível em Deus, tampouco
como a vontade e o poder podem ser separados.” 289 Esta passagem é
citado por Schweizer, 290 que adota o ponto de vista que apresenta.
289
Gess, Uebersicht über das System Schleiermacher’s, p. 88.
290
Glaubenslehre, I. p. 263.
291
Dogmatik, vol. I. p. 587.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 561
292 293
ratione.” E outra vez: “Deum nullo modo fato subjicio, sed omnia
inevitabili necessitate ex Dei natura sequi concipio.” Neste sentido, o sol
está livre para brilhar. Brilha pela necessidade de sua natureza. Cremos
de uma necessidade similar, mas podemos pensar em uma coisa ou outra,
a mudança da corrente de nossos pensamentos à vontade. E assim somos
livres no exercício do poder de pensamento. Esta liberdade nega a Deus.
Ele só pode pensar de uma maneira. E todos os Seus pensamentos são
criativos. Ele faz, portanto, o que faz, com base em uma necessidade de
Sua natureza, e Ele faz tudo o que Ele é capaz de fazer. Deus, segundo
esta doutrina, não é um Ser pessoal.
3. As Escrituras representam a Deus constantemente, como capaz
de fazer o que Ele quer. Eles reconhecem a distinção entre o real e o
possível; entre a habilidade e ato, entre o que Deus faz e o que é capaz de
fazer. Com Ele tudo é possível. Ele é capaz de das pedras levantar filhos
a Abraão. Ele me pode enviar, diz nosso Senhor, doze legiões de anjos.
4. Como esta é a doutrina da Bíblia, é o juízo instintivo da mente
humana. Esta é uma perfeição em nós, que podemos fazer muito mais do
que realmente obtemos. Entre nós, o real não é a medida do possível.
5. É, portanto, uma limitação de Deus, uma negação de Sua
onipotência, dizer que Ele pode fazer só o que realmente causa. Há
muito mais em Deus que a causalidade simples do real. Em
consequência, é uma definição errônea da onipotência chamá-lo Todo-
poder, entendendo com isto que toda a eficiência no universo é a
eficiência de Deus; que não é só uma doutrina panteísta, mas torna o
finito a medida do infinito.
292
Ethices, I. def. vii. edit. Jena, 1803, Vol. II. p. 36.
293
Epistola xxiii. Ibid. Vol. I. 513.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 562
§ 11. A santidade de Deus.
295
Institutiones, p. 273.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 565
É certamente o mais irrazoável sacrificar a religião a tais
especulações, junto com toda confiança aos juízos intuitivos da mente
humana, assim como toda fé em Deus e na Bíblia.
É só menos destrutivo da verdadeira doutrina definir a santidade em
Deus como a causalidade da consciência em nós. Que somos seres
morais não se admite ser uma prova de que Deus tem atributos morais.
Que o sol produz em nós a alegria não é prova de que o sol é alegre. Mas
se não sabemos nada de Deus, senão que Ele é a causa de todas as coisas,
Ele é para nós só uma força inescrutável, e não um Pai, e não um Deus.
§ 12. Justiça
A. Sentido do termo.
296
De Finibus, v. 23, 65, edit. Leipzig, 1850, p. 1042.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 566
moderatione animadvertendi lenitas, amicitia in benevolentia
nominatur.” 297
Quando contemplamos a Deus como o autor de nossa natureza
moral o concebemos como santo; quando o consideramos em Seus
procedimentos com Suas criaturas racionais, concebemo-Lo como justo.
Ele é um governante reto; todas as Suas leis são santas, justas e boas. Em
Seu governo moral, Ele se adere fielmente a estas leis. Ele é imparcial e
uniforme na execução das mesmas. Como juiz, Ele recompensa a cada
um segundo as suas obras. Não condena o inocente, nem absolve ao
culpado; tampouco castiga com uma severidade indevida. Daí que a
justiça de Deus distingue-se como reitora, ou aquela que se ocupa da
imposição de leis retas e de sua execução imparcial; e distributiva, ou a
que se manifesta na reta distribuição de recompensas e castigos. A Bíblia
apresenta constantemente a Deus como governante justo e como juiz
justo. Estas dois aspectos de Seu caráter, ou de nossa relação com Ele,
não são distinguidos de maneira cuidadosa. Temos a certeza que
encontramos por toda a Escritura: «Não fará justiça o Juiz de toda a
terra?» (Gn 18:25). «Deus é justo juiz» (Sl 7:11). «Julgará o mundo com
justiça» (Sl 96:13). «Nuvens e escuridão o rodeiam, justiça e juízo são a
base do seu trono» (Sl 97:2). Apesar de todas as aparentes desigualdades
na distribuição de seus favores, apesar da prosperidade dos ímpios e das
aflições dos justos, em todo lugar expressa-se a convicção de que Deus é
justo; de que de algum modo e em algum lugar Ele vindicará os Seus
procedimentos para com os homens, e mostrará que é pronto para agir
em todos os Seus caminhos, e santo em todas as Suas obras.
297
Partitiones Oratoriæ, 22, 78, edit. ut sup. p. 194.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 567
B. A justiça em sua relação com o pecado.
298
Christlichen Glaube, § 84, Works, Berlin, 1843, vol. iv. p. 465.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 568
1. Porque o castigo dos ímpios é sempre, nas Escrituras, atribuído à
ira de Deus, e a disciplina de Seu povo a Seu amor. Por isso, não se trata
de casos análogos. Esta diferença de descrição está designada para nos
ensinar que os maus e os bons não têm a mesma relação para com Deus
como objetos de benevolência, mas os primeiros são castigados para dar
testemunho de sua desaprovação E para satisfazer Sua justiça, e aos
segundos os disciplina para atraí-los mais perto de Si.
2. Em muitos casos, a natureza do castigo impede a possibilidade de
que o bem do delinquente seja a base de sua aplicação. O dilúvio, a
destruição das cidades da planície, e a destruição de Jerusalém não foram
certamente castigos infligidos para benefício dos que sofreram estas
desolações. E muito menos pode supor-se que o castigo dos anjos caídos
e dos não arrependidos tenha a intenção de ser reabilitador.
3. A Escritura e a experiência nos ensinam que o sofrimento,
quando tem a natureza de castigo, não tem tendência a reabilitar. Quando
o sofrimento é visto como proveniente da mão de um pai, e como
manifestação de amor, tem um poder santificador. Mas quando vem de
mão de Deus, como juiz vingador, e é a expressão de desagrado e prova
de nossa alienação de Deus, sua tendência é endurecer e exasperar. Por
isso, o Apóstolo diz que enquanto que os homens estão sob condenação,
produzem fruto para pecado; e que só quando são reconciliados a Deus e
têm a segurança de Seu amor, que produzem fruto para Deus. O grande
profeta do Novo Testamento, em sua visão do mundo de dor, representa
os como roendo a língua com a dor e blasfemando a Deus. A denúncia
da pena dirige-se ao medo, mas medo não é o princípio da obediência
genuína.
4. A respeito desta questão pode-se apelar com justiça à consciência
comum dos homens. Tal é nossa letargia moral que são só as grandes
ofensas, que despertam nossa sensibilidade moral, revelando sua
verdadeira natureza. Quando se comete um grande crime, há uma
demanda instintiva e universal de castigo para o criminoso. Ninguém
pode pretender que o motivo desta demanda é o desejo da reabilitação do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 569
criminoso. Nem se pensa nisso. O juízo instintivo da mente é que o tal
deveria sofrer. Não é a benevolência para com ele o que clama por
inflição do castigo.
299
Pædagogus, I. viii; edit. Cologne, 1688, p. 114, c. and p. 115.
300
Adversus Marcionem, II. 10; edit. Basel, 1562, p. 179, seu II. 13; edit. Leipzig, 1841, III. p. 90.
Bibliotheca, Gersdorf, Vol. VI.
301
De Principiis, II. v. 3; edit. Paris, 1733, vol. I. p. 88, a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 570
modificou o sistema de toda a teologia de acordo com a filosofia do
Leibnitz, adotou a mesma opinião. O mesmo fez Stapfer, 302 que diz:
“Quando Deus ejusmodi malum triste ex peccato necessario se quens
creaturæ accidere sinit, . . . . dicitur peccatorem punire, et hoc sensu ipsi
tribuitur justitia vindicativa. In justitia punitiva bonitas cum sapientia
administratur. 303 Notio justititæ resolvitur in notionem sapientiæ et
bonitatis.” Grócio, o jurista, faz desta ideia da justiça o princípio
fundamental de sua grande obra, “De Satisfactione Christi.”
A Teoria Otimista.
Neste país o mesmo ponto de vista foi amplamente adotado e feito,
como deve ser necessariamente, o princípio de controle dos sistemas de
teologia em que se incorpora. Supõe-se que a felicidade é o bem maior, e
portanto, que o propósito e o desejo de promover a felicidade é a soma
de todas as virtudes. Disto se deduz, que este mundo, a obra de um Deus
de infinita benevolência, sabedoria e poder, deve ser o melhor mundo
possível para a produção da felicidade, e, portanto, a permissão de
pecado, e seu castigo, deve ser referido à benevolência de Deus. São os
meios necessários para garantir a maior quantidade de felicidade. Se a
felicidade não é o maior bem, se a santidade é um fim mais alto que a
felicidade, se a conveniência não é o fundamento e a medida da
obrigação moral, é óbvio que esta estrutura inteira desaba.
302
Institutiones, I. 153; edit. Tiguri, 1743, p. 154.
303
Ibid. I. p. 154.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 571
E. Prova da doutrina escriturística.
O argumento de Paulo.
Todo o argumento do Apóstolo Paulo em sua Epístola aos Romanos
está baseado no princípio de que a justiça é um atributo divino distinto
da benevolência. Seu argumento é: Deus é justo. Todos os homens são
pecadores. Todos, portanto, são culpados, isto é, estão sob condenação.
Por isso, ninguém pode ser justificado, ou seja, pronunciado não
culpado, sobre a base de seu caráter ou conduta. Os pecadores não
podem dar satisfação à justiça. Mas o que eles não poderiam fazer,
Cristo, o Filho Eterno de Deus, revestido de nossa natureza, tem-no feito
por eles. Ele trouxe a justiça eterna, que cumpre todas as demandas da
lei. Deus justifica e salva todos os que renunciam a sua própria justiça, e
confiam na justiça de Cristo. Este é o evangelho pregado por Paulo.
Todo ele repousa sobre a assunção de que Deus é Justo.
A doutrina da justiça vindicatória, que tem esta clara evidência de
sua veracidade, tanto na natureza moral do homem como na experiência
religiosa dos crentes e no ensino e doutrina das Escrituras, foi sempre
considerada como um ponto pivotal da teologia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 577
F. Concepções filosóficas da natureza da justiça.
304
Veja a seção sobre a “Gerechtigkeit Gottes” [Justiça de Deus] em Bruch’s Lehre von den
Göttlichen Eigenschaften, pp. 275-296.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 579
há tal coisa como o perdão. A única forma possível de eliminar o
sofrimento é remover o pecado. Mas, como é o pecado de roubo ou do
assassinato para ser eliminados? Podemos compreender como o orgulho
ou a inveja podem ser submetidos e o sofrimento que se escapou em
oferta: mas como pode um ato passado ser eliminado? Um homem
endurecido no pecado sofre pouco ou nada por um delito especial, os
moralmente refinados sofrem indescritivelmente. Assim, segundo esta
teoria, quanto melhor o homem é, mais severamente é castigado por seu
pecado. Strauss é suficientemente compatível ao levar a cabo o princípio,
e descartar por completo as ideias de prêmio e castigo, como
pertencentes a uma forma baixa de pensamento. Cita e adota a
declaração de Espinoza: “Praemium beatitudo virtutis no est, sed ipsa
virtus”.
4. Quase não distinto da doutrina citada anteriormente, é a
apresentado pelo Dr. John Young. 305 sua doutrina é que há certas leis
eternas e imutáveis que surgem da natureza das coisas, independente da
vontade ou da natureza de Deus, a que Ele é tanto sujeito como Suas
criaturas. Uma destas leis é, que a virtude produz felicidade, e o vício a
miséria. Portanto, um é recompensado, e o outro castigado, pela
operação necessária e imutável desta lei, e não pela vontade de Deus.
Portanto, Deus deixa de ser o governante do mundo. Ele mesmo está
subordinado às leis eternas e necessárias. Que esta doutrina é contrária a
todo o teor da Bíblia não se pode pôr em dúvida. Isso não é menos
oposição aos ditados de nossa própria natureza moral e religiosa. Revela-
se nessa natureza a que estamos sujeitos, não às leis necessárias e
automáticas, e sim a Deus inteligente e pessoal, a quem somos
responsáveis para nosso caráter e conduta, e que recompensa e castiga a
Suas criaturas segundo as suas obras. Como teoria filosófica, esta
doutrina é muito inferior à norma dos teólogos alemães. Porque, na
medida em que são teístas, admitem que estas leis imutáveis são
305
Light and Life of Men.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 580
determinadas pela natureza de Deus, e são os modos uniformes de Sua
operação. De fato, como Deus e Suas criaturas esgotam toda a categoria
de ser, a “natureza das coisas”, à parte da natureza de Deus e de Suas
criaturas, parece ser uma frase sem sentido. É equivalente à “natureza da
não-existência.”
A. A doutrina escriturística.
Amor
Em nós, o amor inclui complacência e deleite em seu objeto, com o
desejo de possessão e de comunhão. Os escolásticos, e com frequência
os teólogos filosóficos, dizem-nos que em Deus não há sentimentos. Isto,
dizem, implicaria a passividade, ou a suscetibilidade da impressão de
fora, que se supõe é incompatível com a natureza de Deus. “É preciso
excluir”, diz Bruch, 306 “passividade da ideia do amor, tal como existe em
Deus. Porque Deus não pode ser objeto da passividade em qualquer
forma. Além disso, se Deus experimentou complacência de seres
inteligentes, Ele seria dependente deles, o que é incompatível com Sua
natureza como um Ser Absoluto.” O amor, portanto, ele define como
atributo de Deus que assegura o desenvolvimento do universo racional,
ou, como Schleiermacher expressa: “É esse atributo em virtude do qual
306
Eigenschaften, page 240.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 582
307
Deus se comunica.” De acordo com os filósofos, o Infinito se
desenvolve no finito; este fato, em linguagem teológica, deve-se ao
amor. O único ponto da analogia entre o amor em nós e o amor no
Absoluto e Infinito, é autocomunicação. O amor em nós conduz à auto-
revelação e à comunhão; na realidade o infinito Se revela e Se
desenvolve no universo, e especialmente na humanidade. Bruch admite
que esta doutrina está em contradição real com as representações de
Deus no Antigo Testamento, e em aparente contradição com as do Novo
Testamento. Se o amor de Deus é só um nome para o que representa o
universo racional, e se Deus é amor, simplesmente porque Ele mesmo Se
desenvolve em pensar e ser consciente, então a palavra não tem para nós
nenhum significado definido, mas que nos revela nada a respeito da
verdadeira natureza de Deus.
Aqui outra vez temos que escolher entre uma mera especulação
filosófica e o claro testemunho da Bíblia, e de nossa própria natureza
moral e religiosa. O amor necessariamente implica sentimento, e se não
há sentimento em Deus, não pode haver amor. Que Ele produza
felicidade não constitui prova de amor. A terra o faz inconscientemente e
sem desígnio. Os homens com frequência fazem felizes uns aos outros
por vaidade, por temor ou por capricho. A não ser que a produção de
felicidade seja atribuída não só a uma intenção consciente, mas também
a um propósito ditado por um sentimento de bondade, não é prova de
benevolência. E a não ser que os filhos de Deus sejam os objetos de Sua
complacência e deleite, não são objetos de Seu amor. Ele pode ser frio,
insensível, indiferente ou inclusive inconsciente; Ele deixa de ser Deus
no sentido da Bíblia, e, no sentido em que necessitamos um Deus, a
menos que Ele possa amar assim como conhecer e agir. A objeção
filosófica contra a sensação de atribuir a Deus, suporta, como vimos,
dentro da mesma força contra a atribuição a Ele de conhecimento ou
vontade. Se isso é uma objeção válida, Ele chega a ser para nós mais que
307
Christlichen Glaube, § 166; Works, Berlin, 1843, vol. iv. p. 513.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 583
uma causa desconhecida, o que os homens de ciência chamam força,
essa a que se refere todos os fenômenos, mas da qual nada sabemos.
Temos que aderir à verdade em sua forma escriturística, ou a perdemos
totalmente. Temos que crer que Deus é amor no sentido em que esta
palavra é compreendida por cada coração humano. As Escrituras não
zombam de nós quando dizem: «Como um pai se compadece de seus
filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem» (Sl 103:13).
Ele significava o que dizia quando se proclamou a Si mesmo como
«SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande
em misericórdia e fidelidade» (Êx 34:6). «Amados, amemo-nos uns aos
outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido
de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus,
pois Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver
Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio
dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus,
mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos
nossos pecados. Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós
também amar uns aos outros» (1Jo 4:7-11). A palavra amor tem o
mesmo sentido através de toda esta passagem. Deus é amor; e o amor
nEle é, em tudo o que é essencial em Sua natureza, o que o amor é em
nós. Nisso nos regozijamos, sim, e nos alegraremos.
B. A existência do mal.
308
Eigenschaften, p. 266.
309
Eigenschaften, p. 269, 270.
310
Von der Sünde und Erlösung, p. 21, Stud. der Ev. Geistl. Würtembergs. vol. II. part 2, Stuttgart,
1835.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 587
como dizendo: “A revelação divina dá a única resposta possível e
satisfatória à pergunta de como a existência do pecado pode-se conciliar
com a santidade de Deus, uma resposta que satisfaça não só nossos
sentimentos piedosos, mas nossas especulações antropológicas e
teológicas, em que se dá a conhecer a verdade de que Deus determinou
na criação dos seres, que, como agentes livres, estavam sujeitos à
possibilidade do pecado, e que foram por sua própria culpa afundado no
mal, com relação à redenção, de modo que o pecado é só um transeunte,
o fenômeno de fuga no desenvolvimento dos seres finitos. Esta é a
grande ideia que impregna a totalidade da revelação, sim, que é sua
essência e seu objetivo”.
É evidente que todas as teorias que fazem do pecado um mal
necessário destroem sua natureza segundo se revelou nas Escrituras, e
em nossa própria consciência.
311
Dogmatik. II, p. 121.
312
Ibid. p. 130.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 589
oportuno chamar à existência; mas que seja o melhor que Ele pudesse
fazer é uma hipótese gratuita e depreciativa.
2. É antiescriturístico, e contrário à razão moral, fazer da felicidade
o fim da criação. A Bíblia declara que a glória de Deus, um fim
imensamente mais elevado, é a causa final para a qual existem todas as
coisas. O juízo instintivo de todos os homens é que a santidade ou
excelência moral é um bem maior que a felicidade. Mas, com base nesta
teoria, a santidade não tem valor a não ser como meio para a produção de
santidade. Isto não pode ser crido, exceto sob o protesto de nossa
natureza moral. Portanto, a teoria em questão soluciona o problema do
mal negando sua existência. Nada é um mal se tender a maior felicidade.
O pecado é o meio necessário para o maior bem, e por isso não é mal.
A doutrina escriturística.
O terceiro método de tratar com esta questão é repousar satisfeitos
nas simples declarações da Bíblia. As Escrituras ensinam: (1) que a
glória de Deus é o fim ao que estão subordinados a promoção da
santidade a produção da felicidade e todos os outros fins. (2) Que sendo,
313
Dogmatik, ii. p. 137.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 591
portanto, a própria manifestação de Deus, a revelação de Sua infinita
perfeição, o maior bem concebível ou possível, é ela o fim último de
todas as Suas obras na criação, providência e redenção. (3) Como as
criaturas sensíveis são necessárias para a manifestação da benevolência
de Deus, tampouco poderia haver manifestação de Sua misericórdia sem
miséria, nem de Sua graça e justiça se não houvesse pecado. Assim
como os céus declaram a glória de Deus, assim Ele traçou o plano da
redenção: «Para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se
torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares
celestiais» (Ef 3:10). O conhecimento de Deus é vida eterna. É para as
criaturas o mais alto bem. E a promoção deste conhecimento, a
manifestação das multiformes perfeições do Deus infinito, é o maior fim
de todas as Suas obras. Este, declara o Apóstolo, é o fim contemplado,
tanto no castigo dos pecadores como na salvação dos crentes. É um fim
perante o qual, diz ele, ninguém pode objetar racionalmente. «Que
diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados
para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da
sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de
antemão ...? (Rm 9:22,23). Assim, segundo as Escrituras, o pecado é
permitido para que a justiça de Deus possa ser conhecida em seu castigo,
e Sua graça em Seu perdão. E o universo, sem o conhecimento destes
atributos, seria como a terra sem a luz do sol.
Sendo a glória de Deus o grande fim de todas as coisas, não
estamos obrigados a supor que este seja o melhor dos mundos possíveis
para a produção da felicidade, ou sequer para assegurar o maior grau de
santidade entre as criaturas racionais. Está sabiamente adaptado para o
fim para o qual foi disposto, isto é, a manifestação das multiformes
perfeições de Deus. Que Deus, ao Se revelar a Si mesmo, promove o
maior bem de Suas criaturas consistente com a promoção de Sua própria
glória é coisa que se pode admitir. Mas inverter esta ordem, e fazer do
bem da criatura o maior fim, é perverter e subverter todo o esquema; é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 592
pôr os meios em lugar do fim, subordinar a Deus ao universo, o Infinito
ao finito. Este ato de pôr a criatura em lugar do Criador perturba nossos
sentimentos e convicções tanto no âmbito moral como no religioso,
assim como nossa compreensão intelectual de Deus e sua relação com o
universo.
Os teólogos mais antigos quase em unanimidade fazem a glória de
Deus o último, e o bem da criatura a final subordinação de todas as
coisas. Twesten, de fato, diz que 314 não faz nenhuma diferença se
dissermos que Deus propõe sua própria glória como o fim último, e, para
esse propósito, determinou a produzir o máximo grau de bem, ou que se
tinha proposto o maior bem de Suas criaturas, de onde a manifestação
dos fluxos de Sua glória como consequência. Entretanto, faz toda a
diferença no mundo, se o Criador está subordinado à criatura, ou a
criatura ao Criador; se o fim são os meios ou os meios o fim. Há uma
grande diferença se a terra ou o sol se assume como o centro de nosso
sistema solar. Se fizermos a terra o centro, nossa astronomia estará em
confusão. E se fizermos a criatura, e não Deus, o fim de todas as coisas,
nossa teologia e a religião da mesma maneira se perverte. Em último
termo, pode-se afirmar com certeza que um universo feito com o
propósito de dar a conhecer a Deus é um universo muito melhor que um
designado para a produção de felicidade.
314
Dogmatik, vol. II. p. 89.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 593
§ 14. A verdade de Deus.
315
Hollaz, Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, pp. 243, 244.
316
Compendium Theologicum, I. § 33; edit. Hanoviæ, 1777, pp. 97, 99.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 595
Os teólogos filosóficos negam virtualmente que haja em Deus
algum atributo como o da verdade. Dizem que o que se designa com este
termo é só a uniformidade da lei. A eficiência de Deus é exercida de tal
maneira que podemos confiar numa sequência regular de eventos. Neste
sentido pode-se dizer que Deus é verdadeiro. Bruch 317 admite: “Que esta
ideia surge necessariamente fora de nossa consciência religiosa, na
medida em que abraçamos com toda confiança o que consideramos
como uma revelação divina, e somos persuadidos de que Deus em Seu
devido tempo cumprirá tudo o que Se propôs, prometeu, ou ameaçou.
Esta confiança é expressa com frequência, nos termos mais enérgicos,
nos escritos sagrados, e é a fonte da fé firme pela qual o cristão recebe a
revelação feita em Cristo, e da confiança inquebrantável com a qual
antecipa o cumprimento das promessas divinas.”
Entretanto, embora esta ideia da verdade de Deus tem seu
fundamento em nossa própria natureza, e é tão reconhecido claramente
nas Escrituras, e embora entre tão profundamente na experiência
religiosa e as esperanças do crente, é um engano. Não há tal atributo em
Deus. É antifilosófico, e portanto impossível que devia haver a distinção,
que logo deve ser assumido, entre o propósito e ação na mente divina. A
adscrição da verdade ou veracidade de Deus descansa, diz Bruch, “no
suposto de uma distinção nEle entre o pensamento e sua manifestação,
entre Suas promessas e ameaças, e sua realização, que não só destrói a
unidade da essência divina, mas também Ele reduz às limitações e às
mudanças de tempo. . . . . Como a adscrição da veracidade de Deus surge
do que observamos em nós mesmos, suporta a impressão do
antropomorfismo, e não tem direito ao reconhecimento científico.”318
Ademais, ele se opõe à atribuição de fato a Deus, no sentido comum do
termo, porque Deus trabalha de maneira uniforme segundo a lei, e
317
Eigenschaften, p. 250.
318
Eigenschaften, p. 250.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 596
portanto, “propriamente falando, não pode haver com Ele tal coisa como
promessas ou ameaças.” 319
A ideia é que assim como Deus estabeleceu certas leis físicas, e que
se os homens as observam eles estão bem, e se as violam, sofrem por
isso, do mesmo modo há leis que determinam o bem-estar das criaturas
racionais; se observamos estas leis, somos felizes; se as menosprezamos,
somos desgraçados. Deus não tem nada que ver com isso, exceto que
estabeleceu estas leis e as executa. Por isso, a ideia filosófica da verdade
de Deus é a imutabilidade da lei, física e moral. Este ponto de vista é
ainda mais definitivamente apresentado por Schweizer. 320 Deus desde o
princípio até o fim do mundo é uma e a mesma causalidade; isto, em
referência ao mundo moral, é sua verdade, veracitas, fidelitas, na medida
em que ás revelações posteriores, ou ás manifestações desta causalidade,
correspondem ao que as manifestações anteriores nos levam a esperar.
Deus, segundo este ponto de vista, não é tanto uma pessoa, como
um nome para a ordem moral do universo. Naturalmente, há, algo de fato
nesta concepção. As leis de Deus, mediante as que Ele governa a Suas
criaturas, racionais e irracionais, são uniformes. É verdade que um
homem colhe o que semeia; que recebe aqui e no além as consequências
de sua conduta. Se semeia para a carne, recebe corrupção; se semeia para
o espírito, colhe vida eterna. Mas estas leis são administradas por um
Deus pessoal, que, assim como controla as leis físicas para produzir
abundância ou fome, saúde ou pestilência, conforme Lhe parece
apropriado, também controla todas as leis que determinam o bem-estar
das almas dos homens, para levar a cabo os Seus desígnios e obter o
cumprimento de Suas promessas e ameaças. As leis de um governo
humano bem constituído são uniformes e imparciais, mas isso não é
incongruente com Sua administração pessoal.
319
Ibid. p. 252.
320
Glaubenslehre, vol. i. p. 443.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 597
É uma grande misericórdia que, ao menos em alguns casos, aqueles
cuja filosofia proíbe sua crença na personalidade de Deus, creem na
personalidade de Cristo, a quem consideram como um homem investido
de todos os atributos da Divindade, e a quem amam e adoram em
consequência.
§ 1. Observações preliminares.
321
Lehre von der Trinität, vol. I. p. 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 602
doutrina tal como se apresenta na Bíblia a que compromete a fé e a
consciência do povo de Deus.
A bênção apostólica.
Na bênção apostólica dirige-se uma oração a Cristo por Sua graça,
ao Pai por Seu amor, e ao Espírito por Sua comunhão. Assim, cada vez
que esta bênção é pronunciada e recebida, a personalidade e divindade
de cada um ficam solenemente reconhecidas.
5. No registro do batismo de nosso Senhor, o Pai Se dirige ao Filho,
e o Espírito desce em forma de pomba. No discurso de Cristo, registrado
nos capítulos 14, 15 e 16 do Evangelho de João, nosso Senhor fala com e
do Pai, e promete enviar o Espírito para ensinar, guiar e confortar a Seus
discípulos. Neste discurso, a personalidade e divindade do Pai, Filho e
Espírito Santo são reconhecidas com idêntica claridade. Em 1Co 12:4-6,
o Apóstolo fala de diversidade de dons, mas o mesmo Espírito; de
diversidade de administrações, mas o próprio Senhor; e de diversidades
de operações, mas o próprio Deus.
Não se deve esquecer, entretanto, que a fé da Igreja na doutrina da
Trindade não repousa exclusiva nem principalmente nos argumentos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 608
recém-expostos. O grande fundamento desta fé é o que se ensina em
todos os lugares na Bíblia a respeito da unidade do Divino Ser; da
personalidade e divindade do Pai, Filho e Espírito; e de suas mútuas
relações.
§ 3. O período de transição.
A forma bíblica da doutrina da Trindade, tal como foi dada até aqui,
inclui tudo o que é essencial para a integridade da doutrina, e tudo o que
é abraçado na fé dos cristãos comuns. Mas não é tudo incluído nos
credos da Igreja. É característico das Escrituras que as verdades
apresentadas nela se exibem numa forma nas que se dirigem à nossa
consciência religiosa. É a esta característica da Palavra de Deus que se
deve atribuir sua adaptação ao uso geral. Uma verdade com frequência
se encontra na mente da Igreja como objeto de fé muito antes de que seja
formulada doutrinalmente; isto é, antes que seja analisada, seu conteúdo
claramente determinado, e seus elementos expostos em suas mútuas
relações. Quando uma doutrina tão complexa como a da Trindade é
apresentada como objeto de fé, a mente vê-se obrigada a refletir sobre
ela, a empreender a determinação do que inclui, e como se devem
anunciar suas várias partes de maneira que se evite a confusão e a
contradição. Além desta necessidade interna de uma declaração definida
da doutrina, esta declaração foi forçada sobre a igreja desde fora.
Inclusive entre aqueles que honestamente tinham a intenção de receber o
que as Escrituras ensinassem a respeito da questão era inevitável que
surgisse diversidade no modo de enunciá-lo, e confusão e contradição no
uso dos termos. Como a Igreja é uma, não meramente na parte exterior,
mas de maneira real e interna, esta diversidade e confusão são tanto um
mal, uma dor e um embaraço, perturbando sua paz interna, como o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 609
seriam uma semelhante consequência e confusão numa mente individual.
Por isso, havia uma necessidade interna e externa, na mesma Igreja, de
uma declaração clara, inclusiva e consistente dos vários elementos desta
complexa doutrina da fé cristã.
Os gnósticos.
Os gnósticos sustentavam que havia uma série de emanações do Ser
primordial, de diferentes ordens ou posições. Era natural que os
afeiçoados a este sistema, e que professassem ser cristãos, apresentassem
a Cristo como uma das mais altas destas emanações, ou éons. Esta visão
de Sua pessoa admitia que fosse considerado como consubstancial com
Deus, como divino, como o criador do mundo, como uma pessoa
distinta, e que tivesse ao menos uma união aparente ou docética com a
humanidade. Por isso, cumpria algumas das condições do complicado
problema a resolver. Entretanto, representava a Cristo como um de uma
série de emanações, e O reduzia à categoria dos seres dependentes,
exaltado acima dos outros da mesma classe e posição, mas não de
natureza. Além disso, envolvia a negação de Sua verdadeira
humanidade, que era essencial para a fé da Igreja, e tão íntimo para o
Seu povo como Sua divindade. Por isso, todas as explicações da
Trindade baseadas na filosofia gnóstica foram rejeitadas como
insatisfatórias e heréticas.
Os platonistas.
O sistema platônico, tal como foi modificado por Filo e aplicado
por ele à explicação filosófica da teologia do Antigo Testamento, teve
muito mais influência nas especulações dos primeiros Pais que o
gnosticismo. Segundo Platão, Deus formou, ou tinha na razão divina, as
ideias, tipos ou modelos de todas as coisas, ideias que deveram ser os
princípios viventes, formativos, de todas as existências reais. A razão
divina, com seus conteúdos, era o Logos. Por isso, Filo, ao explicar a
criação, apresenta o Logos como a soma de todos estes tipos ou ideias,
que constituem o κόσμος νοητός (kósmos noetos), o mundo ideal. Com
base nesta perspectiva, o Logos era designado como ἐνδιάθετος
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 611
(endiathetos [mente conceptus]). Na criação, ou automanifestação de
Deus na natureza, esta razão divina, ou λόγος (Logos), é nascida,
enviada ou projetada, vindo a ser o λόγος προφορικός (logos
prophorikos), dando vida a todas as coisas. Filo chamou a Deus, como
assim manifestado no mundo, não só logos mas também υἰός, εἰκών,
υἱὸς μονογενής, προτόγονος, σκία, παράδειγμα, δόξα, ἐπιστὴμη, θεοῦ, y
δεύτερος Θεός (huiós, éikon, huiós monogenés, protogonos, skia,
paradeigma, doxa, episteme, theou y deuteros Theos). Na aplicação
desta filosofia à doutrina de Cristo, era fácil fazer dele o λόγος
προφορικός (logos prophorichos), assumindo e afirmando sua
personalidade, e apresentando-o como especialmente manifestado ou
encarnado em Jesus de Nazaré. Este intento o fizeram Justino Mártir,
Taciano e Teófilo. Tiveram êxito quanto a que exaltaram a Cristo acima
de todas as criaturas; fazia dele o criador e preservador de todas as
coisas, a luz e a vida do mundo. Mas não satisfez a consciência da Igreja,
porque apresentava a divindade de Cristo como essencialmente
subordinada; fazia sua geração antemundana, mas não eterna; e
especialmente devido ao fato de que a filosofia, da qual tinha sido
tomada esta teoria do Logos, estava totalmente oposta ao sistema cristão.
O logos de Platão e Filo era só um termo coletivo para denotar o mundo
ideal, a ἰδέα τῶν ἰδεῶν (idea tön ideeön); por isso, a verdadeira distinção
entre Deus e o Logos era a que existia entre Deus como oculto e Deus
como revelado. Deus em si mesmo era ὁ θεός (ho theos); Deus na
natureza era o Logos. Esta, afinal de contas, é a velha doutrina pagã
panteísta, que faz do universo a manifestação ou forma existencial de
Deus.
A doutrina de Orígenes.
Orígenes apresentou a doutrina platônica da geração e natureza do
Logos de uma forma mais elevada que aquela em que tinha sido exibida
nas especulações de outros entre os pais. Não apenas insistiu, em
oposição aos Monarquianos ou Unitários, na personalidade distinta do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 612
Filho, mas também em Sua geração eterna, como oposta a antemundana.
Entretanto, atribuiu sua geração à vontade do Pai. EI Filho ficou assim
reduzido à categoria das criaturas, porque segundo Origens a criação é
da eternidade. Outra característica insatisfatória de todas estas
especulações a respeito da teoria do Logos era que não deixava lugar ao
Espírito Santo. O Logos era a Palavra, ou Filho de Deus, gerado antes da
criação a fim de que criasse, ou, segundo Origens, criado da eternidade;
mas, o que do Espírito Santo? Aparece como pessoa distinta no serviço
batismal e na bênção apostólica, mas a teoria do Logos só dava lugar a
uma Díada, não a uma Tríade. Por isso, aparece a maior confusão nas
declarações desta classe de escritores a respeito do Espírito Santo. Às
vezes é identificado com o Logos; às vezes, é representado como a
substância comum ao Pai e ao Filho; às vezes, como o mero poder e
eficiência de Deus; às vezes, como uma pessoa distinta subordinada ao
Logos, e uma criatura.
A teoria sabeliana.
Outro método para resolver este grande problema e para satisfazer
as convicções religiosas da Igreja foi adotada pelos Monarquianos,
Patripassianos, ou Unitários, como eram chamados indistintamente. Eles
admitiam uma trindade modal. Reconheciam a verdadeira divindade de
Cristo, mas negavam toda distinção pessoal na Deidade. A mesma
pessoa seria ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito Santo, expressando
estes termos as diferentes relações nas quais Deus Se revela a Si mesmo
no mundo e na Igreja. Práxeas, da Ásia Menor, que ensinou esta doutrina
em Roma em 200 d.C.; Noetus, de Esmirna, em 230 d.C.; Berilo, bispo
da Bostra, na Arábia, o 250 d.C., e especialmente Sabélio, presbítero de
Ptolemaida, o 250 d.C., por quem esta doutrina recebeu o nome do
Sabelianismo, foram os principais proponentes desta teoria. O único
ponto em que esta doutrina dava satisfação às convicções religiosas dos
cristãos era quanto à verdadeira divindade de nosso Senhor. Mas ao
negar a distintiva personalidade do Pai e do Espírito, com os quais cada
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 613
crente sentia-se ligado por uma relação pessoal, e aos quais lhes dirigiam
adoração e orações, não podia ser recebida pelo povo de Deus. Sua
oposição à Escritura era patente. Na Bíblia, o Pai é constantemente
apresentado dirigindo-Se ao Filho como «Tu», amando-O, enviando-O,
recompensando-O e O exaltando; e o Filho dirige-se constantemente ao
Pai e tudo atribui à Sua vontade, de maneira que a distintiva
personalidade deles é uma das doutrinas mais claramente reveladas da
Palavra de Deus. Portanto, o Sabelianismo foi logo quase universalmente
rejeitado.
Arianismo.
Embora Orígenes tenha insistido na distinta personalidade do Filho,
e em sua geração eterna, e embora o chamava abertamente Deus,
entretanto não queria admitir Sua igualdade com Deus. Só o Pai,
segundo ele, era ὁ θεός (ho theos), e o Filho era simplesmente θεός
(theos). O Filho era θεὸς ἐκ θεοῦ (theos ek theoun) e não ἀυτο-θεός
(auto-theos). E esta subordinação não era meramente quanto ao modo de
subsistência e operação, mas em quanto a natureza; porque Origens
ensinava que o Filho era de diferente essência do Pai, ἕτερος κατ᾽ οὐσίαν
(héteros kat' ousian), e que devia sua existência à vontade do Pai. Seus
discípulos levaram esta doutrina a seu fim lógico, e fizeram abertamente
de Cristo uma criatura. Isto foi feito por Dionísio de Alexandria, um
aluno de Orígenes, que se referia ao Filho como ποίημα y κτίσμα (piema
y ktisma), um modo de descrição, se bem que posteriormente retirou ou
desvirtuou. Mas fica claro que os princípios de Orígenes eram
inconsequentes com a verdadeira divindade de Cristo. Não passou muito
tempo, portanto, antes que Ário, outro presbítero de Alexandria,
mantivera abertamente que o Filho não era eterno, mas sim posterior ao
Pai; que Ele tinha sido criado não da substância de Deus, mas sim ἐκ οὐκ
ὀντῶν (ek ouk onton), e que por isso não era ὁμοούσιος (homoousios)
com o Pai. Admitia ele que o Filho tinha existido antes de qualquer outra
criatura, e que era por Ele que Deus tinha criado o mundo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 614
Deve-se lembrar constantemente que estas especulações eram
questões dos teólogos. Nem expressavam nem pretendiam expressar a
mente da Igreja. Nem grande massa do povo recolhia sua fé, então como
agora, de maneira imediata das Escrituras e dos serviços eclesiásticos.
Eram batizados em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
Dirigiam-se ao Pai como criador dos céus e da terra, e como o Deus e
Pai com o qual tinham sido reconciliados, e a Jesus Cristo como seu
Redentor, e ao Espírito Santo como um santificador e consolador. Eles
amavam, adoravam e confiavam em um como nos outros. Esta era a
crença religiosa da Igreja, que permaneceu sem perturbações devidas às
especulações e controvérsias dos teólogos, em seus intentos de vindicar e
explicar a fé comum. Mas este estado de confusão era um grande mal, e
a fim de levar a Igreja a um acordo quanto à forma em que se devia
enunciar esta doutrina fundamental do cristianismo, o Imperador
Constantino convocou o Primeiro Concílio ecumênico, que devia reunir-
se em Niceia, em Nicomédia, em 325 d.C.
Os Semi-Arianos.
O segundo partido incluía os Semi-Arianos e aos discípulos de
Origens. Estes sustentavam junto com os Arianos, (1) Que o Filho devia
sua existência à vontade do Pai. (2) Que Ele não era da mesma essência,
senão ἕτερος κατ᾽ οὐσίαν (heteros kat' ousian) [de uma essência de
distinta espécie]. Pareciam sustentar que havia uma essência
intermediária entre a substância divina e as substâncias criadas. Foi em
referência a esta opinião que Agostinho disse posteriormente: 322 «Unde
322
De Trinitate, I. vi. 9, edit. Benedictines, vol. viii. p. 1161, c.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 618
liquido apparet ipsum factum non esse per quem facta sunt omnia. Et si
factus non est, creatura non est: si autem creatura non est, ejusdem cum
Patre substantiæ est. Omnis enim substantia quae Deus non est, creatura
est; et quae creatura non est, Deus est». [Toda aquela substância que
não é Deus, é criatura; e a que não é criatura, é Deus.]
(3) Por isso, o Filho era subordinado ao Pai, não meramente em
posição ou modo de subsistência, mas em natureza. Pertencia a uma
ordem diferente de seres. Não era αὐτόθεος, ὁ Θεός (autotheos, ho theos
[o próprio Deus, o Deus]), nem ὁ ἀληθινὸς θεός (ho alethinos theos [o
verdadeiro Deus]), mas simplesmente θεός (theos), termo este que,
segundo Origens, só podia aplicar-se às ordens mais elevadas de
criaturas inteligentes.
(4) O Filho, embora assim inferior ao Pai, tendo vida em Si mesmo,
era a fonte de vida, isto é, o Criador.
(5) O Espírito Santo, segundo a maioria dos Arianos e segundo
Orígenes, foi criado pelo Filho – A primeira e mais alta das criaturas
chamadas a ser por Seu poder.
Os Ortodoxos.
O terceiro partido no Concílio era o dos Ortodoxos, que constituía a
grande maioria. Todos os cristãos eram adoradores de Cristo. Ele era
para eles o objeto de supremo amor e a base de sua confiança; a Ele
estavam sujeitos em coração e vida. NEle esperavam para tudo. Ele era
seu Deus no mais estrito sentido da palavra. Além disso, eles O
entendiam como uma pessoa diferente, e não meramente um nome
distinto para o Pai. Mas como não estava menos arraigada nas mentes
dos cristãos a convicção de que só há um Deus ou Ser Divino, o
problema que o Concílio devia resolver era o de harmonizar estas
convicções aparentemente incompatíveis, isto é, que há um só Deus, e
entretanto que o Pai é Deus, e o Filho, como pessoa distinta, é Deus, o
mesmo em substância e igual em poder e glória. A única coisa que se
devia fazer era preservar os elementos essenciais da doutrina, e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 619
entretanto não fazer com que a declaração da mesma incorresse em
contradições internas. Para cumprir estas condições, o Concílio redigiu o
seguinte Credo:
«Cremos num Deus, o Pai todo-poderoso, o criador de todas as
coisas visíveis e invisíveis; e num Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus,
unigênito, gerado do Pai, isto é, da essência do Pai, Deus de Deus, Luz
de Luz, o próprio Deus do próprio Deus, gerado e não feito,
consubstancial com o Pai, por quem foram feitas todas as coisas, seja no
céu ou na terra; quem por nós os homens e para nossa salvação desceu
do céu; e se encarnou e veio a ser homem, padeceu e ressuscitou ao
terceiro dia; subiu ao céu, e virá para julgar os vivos e os mortos. E
cremos no Espírito Santo. Mas aqueles que dizem que houve um tempo
em que Ele (o Filho) não era, que não era antes de ser feito, ou que foi
feito do nada, ou de outra ou diferente essência ou substância, que era
uma criatura, ou mutável, ou suscetível de mudar, a Santa Igreja Católica
os anatematiza»
B. O Concílio de Constantinopla.
O Credo Atanasiano.
Depois do Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., as
controvérsias que agitaram a Igreja tiveram referência à constituição da
pessoa de Cristo. Antes que as questões envoltas nestas controvérsias
fossem decididas de maneira autoritativa, foi adotado geralmente o
chamado Credo Atanasiano, uma amplificação dos de Niceia e
Constantinopla, ao menos entre as Igrejas do Ocidente. Este Credo
estava expresso assim: «Quem quer ser salvo tem acima de tudo que
manter a fé católica, visto que, se não a preservar íntegra e inviolada,
sem dúvida perecerá eternamente. Mas esta é a fé católica, que adoramos
a um Deus em trindade, e trindade em unidade. Nem confundindo as
pessoas nem dividindo a substância. Porque a pessoa do Pai é uma; a do
Filho, outra; a do Espírito Santo, outra. Mas a divindade do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo, é uma, igual a glória, igual a majestade.
Assim como é o Pai, assim é o Filho, e assim o Espírito Santo. O Pai é
incriado, o Filho é incriado, e o Espírito Santo é incriado. O Pai é
infinito, o Filho é infinito, o Espírito Santo é infinito. O Pai é eterno, o
Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. Mas não há três Seres eternos,
mas sim um Ser eterno. E entretanto, não há três Seres incriados, nem
três Seres infinitos, mas sim um Ser criado e infinito. Da mesma
maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, e o Espírito Santo é
onipotente. E entretanto, não há três Seres onipotentes, mas sim um Ser
onipotente. Assim o Pai é Deus, o Filho, Deus, e o Espírito Santo, Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 621
E entretanto não há três Deuses, mas sim um só Deus. O Pai é Senhor, o
Filho é Senhor, e o Espírito Santo é Senhor. Entretanto, não há três
Senhores, mas sim um só Senhor. Porque como somos impulsionados
pela verdade cristã a confessar a cada pessoa de maneira distintiva como
sendo Deus e Senhor, temos proibido pela religião Católica dizer que
haja três Deuses, ou três Senhores. O Pai não é feito por ninguém, nem
criado, nem gerado. O Filho é só do Pai, não feito, não criado, mas sim
gerado. O Espírito Santo é não criado pelo Pai e o Filho, nem gerado,
mas sim procede. Por isso, há um Pai, não três Pais; um Filho, não três
Filhos; um Espírito Santo, não três Espíritos Santos. E nesta Trindade
nada é anterior nem posterior, nada maior ou menor, antes, todas as três
são coeternas e coiguais a elas mesmas. De maneira que em tudo, como
se disse antes, deve-se adorar a unidade em trindade e a trindade em
unidade. Todo aquele que quiser ser salvo, que assim pense a respeito da
Trindade».
Está universalmente aceito que Atanásio não foi o autor deste
credo. Aparece só em latim em sua forma original, e tem modos de
expressão tomados dos escritos de Agostinho e de Vicente de Lerino, em
434 d.C. Como também contém alusões a controvérsias posteriores a
respeito da pessoa de Cristo, é atribuído a algum período em mediados
do quinto séculos e mediados do sexto. Embora não fosse o emitido com
a autoridade de algum Concílio, foi logo universalmente admitido no
Ocidente, e posteriormente no Oriente, e foi em todas as partes
considerado como um símbolo ecumênico.
A Doutrina da Trindade estabelecida nestes três antigos credos – o
Niceno, o Constantinopolitano e o (chamado) Atanasiano – é a Forma
Eclesiástica deste fundamental artigo da fé cristã. Não há diferença,
exceto em amplificação, entre estas várias fórmulas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 622
§ 5. Pontos decididos pelos Concílios de Niceia e de
Constantinopla
A. Contra o Sabelianismo.
A. Subordinação.
326
Epistola, CCXXXVIII. iii. 18, vol. ii. p. 1304, a.
327
Epistola, VIII. edit. Migne, vol. iii. p. 115, e.
328
Pearson, On Creed, seventh edition, 1701, p. 135.
329
Pearson, p. 133.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 629
subordinação quanto ao modo de subsistência e funcionamento. Isto é
claramente reconhecido na Escritura, e foi completamente ensinado por
Agostinho como por qualquer dos Pais gregos, e é ainda mais claramente
afirmado no chamado Credo de Atanásio, representando a escola de
Agostinho, que no Credo do Concílio de Nisa. Não há, portanto, nenhum
motivo de oposição ao Credo de Niceia do que ensina sobre o tema. Não
vai além dos fatos da Escritura. Mas os pais que forjaram esse credo, e
aqueles por quem foi defendido, fizeram além dos fatos. Buscaram
explicar qual era a natureza dessa subordinação. Enquanto nega ao Pai
qualquer prioridade ou superioridade sobre as demais pessoas da
Trindade, quanto a ser ou perfeição, ainda falavam do Pai, como o
Monos, como tendo na ordem de pensamento toda a divindade em Si
mesmo, de modo que só Ele era Deus por Si mesmo (αὐτόθεος, nesse
sentido da palavra), que Ele era a fonte, a causa, a raiz, fons, origo
principium, da divindade como subsistindo no Filho e no Espírito; que
Ele era maior que as outras pessoas divinas. Eles entenderam muitas
passagens que falam da inferioridade do Filho ao Pai, do Logos como
tal, e não do histórico Filho de Deus revestido de nossa natureza. Assim
Waterland 330 diz destes pais, “O título de ὁ Θεὸς, sendo entendido no
mesmo sentido com αὐτόθεος, era, como deve ser, geralmente reservado
ao Pai, como o caráter pessoal distintivo da primeira pessoa da Santa
Trindade. E isto equivale a não mais que o reconhecimento da
prerrogativa do Pai como Pai. Mas também poderia significar qualquer
pessoa que é verdadeira e essencialmente Deus, que poderia aplicar-se
adequadamente ao Filho também: e é aplicada às vezes, embora não com
tanta frequência como o é ao Pai.” Hilário do Poitiers expressa a ideia
geral dos Pais de Niceia neste ponto, quando diz: “Et quis non Patrem
potiorem confitebitur, ut ingenitum a genito, ut patrem a filio, ut eum qui
miserit ab eo qui missus est, ut volentem ab ipso qui obediat? Et ipse
nobis erit testis: Pater major me est. Hæc ita ut sunt, intelligenda sunt,
330
Works, vol. I. p. 315.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 630
sed cavendum est, ne apud imperitos gloriam Filii honor Patris
infirmet.” 331
O Bispo Pearson 332 diz que a preeminência do pai “sem lugar a
dúvida consiste nisto: que Ele não é Deus dos demais, mas sim de Si
mesmo, e que não há outra pessoa que é Deus, se não é Deus de Si
mesmo. Não é uma diminuição ao Filho, ao dizer que Ele é de outro,
porque seu próprio nome importa outro tanto, mas sim foi uma
diminuição ao Pai falar assim dEle, e deve haver alguma preeminência,
onde há lugar para a derrogação. O que o Pai é, Ele é de ninguém, o que
é o Filho, Ele é dEle; o que o primeiro é, Ele dá, o que o segundo é, Ele
recebe. O primeiro é o Pai de fato, em razão de seu Filho, mas Ele não é
Deus por causa dEle, e enquanto que o Filho não é tão somente com
relação ao Pai, mas também a Deus com motivo do mesmo.” Entre as
autoridades patrísticas citadas por Pearson, são as seguintes de
Agostinho: 333 “Pater de nullo patre, Filius de Deo Patre. Pater quod est, a
nullo est: quod autem Pater est, propter Filium est. Filius vero et quod
Filius est, propter Patrem est, et quod est, a Patre est.” “Filius non hoc
tantum habet nascendo, ut Filius sit, sed omnino ut sit. . . . . Filius non
tantum ut sit Filius, quod relative dicitur, sed omnino ut sit, ipsam
substantiam nascendo habet.” 334
Os próprios reformadores foram pouco inclinados a entrar nessas
especulações. Foram especialmente repugnantes a uma mente como a de
Lutero. Insistiram na consideração dos fatos das Escrituras como
estavam, sem nenhum intento de explicação.
Ele diz: “Devemos, como as criancinhas, balbuciar o que as
Escrituras ensinam: que Cristo é verdadeiramente Deus, que o Espírito
Santo é verdadeiramente Deus, e que, entretanto, não há três Deuses, ou
331
De Trinitate, III., Works, Paris, 1631, p. 23, a. See on this point Schaff’s History of the Christian
Church, Vol. III. § 130. Gieseler’s Kirchengeschichte, Vol. VI. § 60. Pearson, On the Creed, and
especially, Bull’s Defence of the Nicene Creed, fourth edition.
332
Page 35.
333
In Joannis Evangelium Tractatus, xix. 13, edit. Benedictines, vol. iii. p. 1903, a.
334
De Trinitate, v. xv. 16, vol. viii. p. 1286, c, d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 631
três seres, visto que há três Homens, três Anjos, três Sóis, ou três
Windows. Não, Deus não é assim dividido em Sua essência, e sim há um
só Ser divino ou substância. Portanto, embora haja três pessoas, Deus
Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, entretanto, o Ser não está dividido
ou distinto, visto que não há senão um só Deus numa só substância
indivisa, divina”. 335
Calvino também se opôs a ir além da simples declaração das
Escrituras. 336 Depois de dizer que Agostinho dedica o quinto livro sobre
a Trindade à explicação da relação entre o Pai e o Filho, acrescenta:
“Longe vero tutius est in ea quam tradit relatione subsistere, quam
subtilius penetrando ad sublime mysterium, per multas evanidas
speculationes evagari. Ergo quibus cordi erit sobrietas et qui fidei
mensura contenti erunt, breviter quod utile est cognitu accipiant: nempe
quum profitemur nos credere in unum Deum, sub Dei nomine intelligi
unicam et simplicem essentiam, in qua comprehendimus tres personas
vel hypostaseis: ideoque quoties Dei nomen indefinite ponitur, non
minus Filium et Spiritum, quam Patrem designari: ubi autem adjungitur
Filius Patri, tunc in medium venit relatio: atque ita distinguimus inter
personas. Quia vero proprietates in personis ordinem secum ferunt, ut in
Patre sit principium et origo: quoties mentio sit Patris et Filii simul, vel
Spiritus, nomen Dei peculiariter Patri tribuitur. Hoc modo retinetur
unitas essentiæ et habetur ratio ordinis, quæ tamen ex Filii et Spiritus
deitate nihil minuit: et certe quum ante visum fuerit Apostolos asserere
Filium Dei illum esse, quem Moses et Prophetæ testati sunt esse
Jehovam, semper ad unitatem essentiæ, venire necesse est.” Temos aqui
os três fatos essenciais implicadas na doutrina da Trindade, ou seja, a
unidade da essência, a distinção de pessoas, e a subordinação sem
qualquer intento de explicação.
335
Die Dritte Predigt a. Tage d. heil. Dreifaltigk, 5; Works, ed. Walch, vol. xiii. p. 1510.
336
Institutio, I. XIII. 19, 20, edit. Berlin, 1834, part I. pp. 100, 101.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 632
Calvino foi acusado por alguns de seus contemporâneos do ensino
das doutrinas incompatíveis de sabelianismo e arianismo. Numa carta a
seu amigo Simon Grynée, reitor da Academia de Basileia, com data de
maio de 1537, diz que o solo sobre o qual a acusação de sabelianismo
descansava, foi o haver dito que Cristo foi “que Jeová, que de Si mesmo
somente era sempre autoexistente, que comanda”, diz ele, “Eu estava
disposto a lembrar.” Sua resposta é: “Se for considerado com atenção a
distinção entre o Pai e o Verbo, vamos dizer que um é do outro. Se,
entretanto, a qualidade essencial da Palavra é considerada, na medida em
que Ele é um Deus com o Pai, tudo o que se possa dizer aproxima-se de
Deus também se pode aplicar a Ele, a Segunda Pessoa da Trindade
gloriosa. Agora, qual é o significado do nome de Jeová? O que é que
essa resposta implica ao que foi dito a Moisés? EU SOU AQUELE QUE
SOU. Paulo faz de Cristo o autor desta frase.” 337 Este argumento é
concludente. Se Cristo é Jeová, e se o nome de Jeová implica
autoexistência, então Cristo é autoexistente. Em outras palavras, a
autoexistência e a existência necessária, assim como a onipotência e
todos os outros atributos divinos, pertencem à essência divina comum a
todas as pessoas da Trindade, e portanto é o Deus Triúno, que é
autoexistente, e não uma pessoa diferente das outras pessoas. Quer dizer,
a autoexistência não se prega da essência divina única, nem do Pai, mas
sim da Trindade, ou da Divindade como subsistindo em três pessoas. E,
portanto, como diz Calvino, quando a palavra Deus é usada por tempo
indefinido, significa o Deus Triúno, e não o Pai em distinção do Filho e
do Espírito.
337
Calvin’s Letters, vol. i. pp. 55, 56, edit. Presbyterian Board, Philadelphia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 633
B. Geração eterna.
338
Locus III. XXVIII. 40, edit. Edinburgh, 1847, vol. I. p. 260.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 634
minus tamen αὐτόθεος dicitur, non ratione Personæ, sed ratione
Essentiæ; non relate qua Filius, sic enim est a Patre, sed absolute qua
Deus, quatenus habet Essentiam divinam a se existentem, et non divisam
vel productam ab alia essentia, non vero qua habens essentiam illam a
seipso. Sic Filius est Deus a seipso, licet non sit a seipso Filius.”
De novo: 339 “Persona bene dicitur generare Personam, quia actiones
sunt suppositorum; sed non Essentia Essentiam, quia quod gignit et
gignitur necessario multiplicatur, et sic via sterneretur ad Tritheismum.
Essentia quidem generando communicatur; sed generatio, ut a Persona
fit originaliter, ita ad Personam terminatur.” Este é o modo comum de
representação.
2. Esta geração diz-se que é eterna. "É um eterno movimento na
essência divina."
3. É pela necessidade da natureza, e não pela vontade do Pai.
4. Não implica nenhuma separação ou divisão, visto que não é
parte, mas sim a essência total e completa do Pai que se comunica do Pai
ao Filho.
5. É sem mudança.
Os principais motivos realçados em apoio desta representação, são a
natureza da filiação entre os homens e a passagem de João 5.26, onde se
diz: “Como o Pai tem vida em si mesmo, assim também deu ao Filho o
ter vida em si mesmo.”
Admite-se que a relação entre a Primeira e Segunda pessoas na
Trindade se expressa pelas palavras Pai e Filho, e portanto enquanto que
tudo nesta relação que existe entre os homens, implicando imperfeição
ou mudança, deve ser eliminado, não obstante, a ideia essencial da
paternidade deve conservar-se.
Esta ideia fundamental supõe-se que é a comunicação da essência
do pai a seu filho, e, portanto, mantém-se que deve haver uma
comunicação da essência da Divindade do Pai ao Filho na Santíssima
339
Ibid. xxix. 6, p. 262.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 635
Trindade. Mas, em primeiro lugar, trata-se de uma hipótese gratuita que,
com relação à alma, há inclusive entre os homens, toda comunicação da
essência do pai ao menino.
O traducianismo nunca foi a doutrina geral da Igreja cristã. Como,
portanto, é, no mínimo, dizer que é duvidosa, se existe alguma
comunicação da essência da alma na paternidade humana, não é razoável
assumir que tal comunicação é essencial para a relação de Pai e Filho na
Trindade.
Em segundo lugar, embora se admita que os termos Pai e Filho se
utilizam para nos dar uma ideia da relação mútua da Primeira e Segunda
pessoas da Trindade, entretanto, não são definitivamente determinados o
que a relação é. Pode ser igualdade e semelhança. Entre os homens Pai e
Filho pertencem à mesma ordem de seres. Um não é inferior na natureza,
apesar de que pode ser de posição, a outros. E o filho é como seu pai. Da
mesma maneira na Santíssima Trindade é a Segunda Pessoa diz que é o
ἀπαύγασμα, o χαρακτήρ, o λόγος, a Palavra ou Revelador do Pai, de
modo que aquele que ouve o Filho ouve o Pai, aquele que tem visto um
tem visto o outro. Ou a relação pode ser a de afeto. O amor recíproco de
pai e filho é peculiar. É, por assim dizer, necessário; é imutável, é
insondável, guia, ou é guiado a cada tipo e grau de auto-sacrifício. Não é
necessário assumir com referência à Trindade que estas relações são tudo
o que os termos relativos Pai e Filho quer revelar. Estes podem incluir,
mas muito mais pode implicar o que não somos capazes de compreender.
Tudo o que se disputava é dizer, que não se fecham à admissão de que a
derivação da essência é essencial para a filiação.
Quanto à passagem de João 5:26, onde se diz que o Pai deu ao Filho
o ter vida em Si mesmo, tudo depende do sentido em que se toma a
palavra Filho. Essa palavra utiliza-se às vezes como uma designação do
λόγος, a Segunda Pessoa da Trindade, para indicar Sua relação eterna à
Primeira Pessoa como o Pai. É, entretanto, com muita frequência usado
como uma designação do λόγος encarnado, o Verbo feito carne. Muitas
coisas estão preditas na Escritura do Deus-homem, que não pode pregar-
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 636
se da Segunda Pessoa da Trindade como tal. Se nesta passagem do Filho
significa o Logos, então ensina que a Primeira Pessoa da Trindade
comunica vida, e portanto a essência que é inerente a essa vida, à
Segunda Pessoa. Mas se Filho aqui designa ao Theanthropos, então a
passagem não ensina tal doutrina. Que é a pessoa histórica, Jesus de
Nazaré de quem aqui se fala, pode afirmar-se não só pelo fato de que Ele
está em outra parte com tanta frequência chamado o Filho de Deus,
como na confissão completa requeria de todo cristão na era apostólica,
“Eu creio que Jesus é o Filho de Deus”; mas também pelo contexto.
Nosso Senhor tinha curado a um homem impotente em no sábado.
Por isso os judeus lhe acusaram da violação do sábado. O mesmo
reivindicou dizendo que Ele tinha o mesmo direito que Deus tinha a
trabalhar em no sábado, porque era o Filho de Deus, e portanto igual a
Deus. Que Ele tinha poder não só para curar senão para dar vida, assim
que o Pai tinha vida em Si mesmo, pelo que tinha dado ao Filho o ter
vida em Si mesmo. Havia também lhe dado autoridade para fazer juízo.
Ele ia ser o juiz dos vivos e os mortos, porque Ele é o Filho do homem,
quer dizer, porque Ele se converteu em homem por nós e por nossa
salvação. Seus acusadores não têm por que surpreender-se do que Ele
disse, porque a hora se aproximava quando todos os que estão no
sepulcro ouvirão sua voz e sairão, os que fizeram o bem, sairão a
ressurreição de vida, e os que fizeram o mal, a ressurreição de
condenação. O tema do discurso, portanto, no contexto, é o personagem
histórico quem tinha curado um homem doente, e quem com igual
propriedade se poderia chamar Deus ou homem, porque Ele era Deus e
homem. O que a passagem ensina, portanto, refere-se à constituição da
pessoa de Cristo como Ele apareceu na terra, e não a natureza da relação
entre o Pai e o Filho na Deidade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 637
C. Filiação eterna.
Objeções à doutrina.
As objeções especulativas a esta doutrina da filiação eterna já foram
examinadas. Se Cristo é o Filho, se Ele é Deus de Deus, diz-se que Ele
não é autoexistente e independente. Mas a autoexistência, a
independência, etc., são atributos da essência divina, e não de uma
pessoa diferente de outros. É o Deus Triúno, que é autoexistente e
independente.
A subordinação quanto ao modo de subsistência e funcionamento, é
um fato das Escrituras, e também o é a divindade perfeita e a igualdade
do Pai e do Filho, e portanto estes fatos devem ser coerentes. Na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 641
identidade consubstancial da alma humana há uma subordinação de uma
faculdade a outra, e assim, entretanto incompreensível para nós, pode
haver uma subordinação na Trindade consistente com a identidade de
essência da Divindade.
Salmo 2:7.
As mais plausíveis objeções se baseiam em certas passagens das
Escrituras. No Sl. 2:7, diz-se: “Tu és meu filho; eu hoje te gerei.” Disto
se afirma que Cristo ou o Messias se constituiu ou foi feito o Filho de
Deus no tempo, e portanto não era o Filho de Deus da eternidade. A isto
se pode responder:
1. Que o termo Filho, tal como usado nas Escrituras, expressa as
relações diferentes, e portanto pode-se aplicar à mesma pessoa por
distintos motivos, ou têm um significado, ou seja, expressa uma relação
num só lugar, e outra distinta em outro. Pode fazer referência, ou ser
aplicado ao Logos, ou ao Theanthropos. Uma base para a utilização da
denominação não exclui todas as demais. Deus ordenou a Moisés dizer a
Faraó: “Israel é meu filho, meu primogênito.” (Ex. 4:22). E disse de
Salomão, “Eu serei para ele pai e ele será meu filho.” (2Sm. 7:14). A
palavra filho aqui expressa a ideia da adoção, a seleção de um povo ou
de um homem de muitos diante de Deus numa peculiar relação de
intimidade, afeto, honra e dignidade. Se por estas razões o povo
teocrático, ou um rei teocrático, pode ser chamado Filho de Deus, pelas
mesmas razões, e por excelência, o Messias pode ser designado como
tal. Mas isto não é argumento para provar que o Logos não pode, num
sentido muito mais elevado ser chamado Filho de Deus.
2. A passagem em questão, entretanto, não deve ser entendida de
um evento que teve lugar no tempo. Seu sentido essencial é: “Tu és meu
Filho, agora és meu Filho.” A ocasião referida às palavras “este dia” foi
o momento em que o Filho do rei de Sião devia ser plenamente
manifestado. Naquele tempo, como aprendemos de Rom. 1:4, que foi o
dia de Sua ressurreição. Por Sua ressurreição dentre os mortos, Ele Se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 642
manifestou claramente ser tudo o que pretendia ser — o Filho de Deus e
o Salvador do mundo.
3. Há outra interpretação da passagem que é essencialmente a
mesma que a dada por muitos dos pais, e que assim é apresentada pelo
Dr. Addison Alexander em seu comentário sobre Atos 13.33: “A
expressão do Salmo:«Eu te gerei”, significa, Eu sou aquele que te gerou,
quer dizer, eu sou Teu pai. ‘Hoje’ refere-se à data do próprio decreto
(Jeová disse: Hoje em dia, etc.), mas isto, como um ato divino, era
eterno, e assim deve ser a filiação que afirma”.
Lucas 1:35.
A mesma observação é aplicável a Lucas 1:35: “Descerá sobre ti o
Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra;
por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de
Deus.” O Bispo Pearson, um dos defensores mais enérgicos da “geração
eterna”, e de todas as características da doutrina de Niceia sobre a
Trindade, dá quatro razões pelas quais Theanthropos ou Deus-homem é
chamado o Filho de Deus. (1.) Sua concepção milagrosa. (2.) O alto
cargo para o qual foi designado. (Jo 10:34, 35, 36). (3.) Sua ressurreição,
de acordo com uma interpretação de Atos 13:33. “A tumba,” diz, “é
como o ventre da terra, Cristo, que ressuscitou dali, é como se fosse
gerado a outra vida, e Deus, quem o ressuscitou, é Seu Pai.” 340 (4.)
Porque depois de Sua ressurreição foi feito herdeiro de todas as coisas.
(Hb 1:2-5). Tendo atribuído estes motivos pelos quais o Deus-homem é
chamado Filho, vai mostrar por que o Logos é chamado Filho. Não há
nada, portanto, nas passagens citadas inconsistente com a doutrina da
Igreja da Filiação eterna de nosso Senhor.
340
Pearson on Creed, p. 106.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 644
A linguagem do anjo dirigido à Virgem Maria, pode, entretanto,
significar nada mais que isto, ou seja, que a assunção da humanidade
pelo Filho eterno de Deus foi a razão pela qual deve ser reconhecido
como uma pessoa divina. Não era um menino comum que devia nascer
de Maria, mas sim um que devia, na linguagem dos profetas, ser
Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, o Filho do Altíssimo.
Foi porque o Filho Eterno feito de uma mulher, que essa Coisa Santa
nasceu da virgem ia ser chamado Filho de Deus.
Quase não deve ser observado que nenhuma objeção válida à
doutrina da filiação eterna de Cristo, ou, que Ele é Filho quanto à Sua
natureza divina, pode extrair-se de tais passagens quando falam do Filho
como inferior ao Pai, ou sujeito a Ele estão, ou inclusive ignorante. Se
Cristo pode ser chamado o Senhor da glória, ou Deus, quando se fala de
Sua morte, Ele pode ser chamado Filho, quando as limitações de outros
se atribuem a Ele. Como Ele é Deus e homem, tudo o que é verdade quer
seja de Sua humanidade ou de Sua divindade, pode pregar-se dEle como
pessoa, e Sua pessoa pode ser denominada de uma natureza, quando o
predicado pertence à outra natureza. Ele é chamado o Filho do homem
quando se diz que é onipresente, e Ele é chamado Deus quando se diz
que comprou a Igreja com Seu sangue.
341
De Trinitate, IX. xii. 18, edit. Benedictines, Paris, 1837, vol. viii. p. 1352, b.
342
Ibid. X. xi. 18, p. 1366, a.
343
Ibid. XIV. vi. 8, pp. 1443. d. 1444, a.
344
Monologium, xxxiii., edit. Migne, p. 188, b. See also Thomas Aquinas, I. xxvii. 3, edit. Cologne,
1640, p. 56.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 648
345
Melâncton adota e leva a cabo a mesma ideia: “Filius dicitur imago et
λόγος: est igitur imago cogitatione Patris genita; quod ut aliquo modo
considerari possit, a nostra mente exempla capiamus. Voluit enim Deus
in homine conspici vestigia sua. . . . . Mens humana cogitando mox
pingit imaginem rei cogitatæ, sed nos non transfundimus nostram
essentiam in illas imagines, suntque cogitationes illæ subitæ et
evanescentes actiones. At Pater æternus sese intuens gignit cogitatonem
sui, quæ est imago ipsius, non evanescens, sed subsistens, communicata
ipsi essentia. Hæc igitur imago est secunda persona. . . . . Ut autem Filius
nascitur cogitatione, ita Spiritus Sanctus procedit a voluntate Patris et
Filii; voluntatis enim est agitare, diligere, sicut et cor humanam non
imagines, sed spiritus seu halitus gignit.” Leibnitz, 346 diz: “Je ne trouve
rien dans les créatures de plus propre à illustrer ce sujet, que la réflexion
des espirits, lorsqu’un même esprit est son propre objet immediat, et agit
sur soi-même en pensant à soi-même et à ce qu’il fait. Car le
redoublement donne une image ou ombre de deux substances respectives
dans une même substance absolue, savoir de celle qui entend, et de celle
qui est entendue; l’un et l’autre de ces êtres est substantiel, l’un et l’autre
est un concret individu, et ils différent par des rélations mutuelles, mais
ils ne sont qu’une seule et même substance individuelle absolue.”
Dos teólogos do século XVII pertencentes à Igreja Reformada,
Keckermann era o mais disposto a apresentar as doutrinas da Bíblia
numa forma filosófica. Encontramos, portanto, com ele um intento
similar para fazer o mistério da Trindade inteligível. Ele se refere à
existência de Deus como consistindo em pensamento autoconsciente.
Como o pensamento é eterno, deve ter um objeto eterno, absoluto e
perfeito. Esse objeto deve, portanto, por si mesmo ser Deus. A unidade
345
Loci Communes, De Filio, edit. Erlangen, 1828, vol. i, pp.19, 21.
346
Remarque sur le Livre d’un Antitrinitaire Anglois, edit. Geneva, 1768, Vol. I. p. 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 649
da essência divina exige que este objeto deve estar no próprio Deus, e
portanto, volve-se eternamente a ele. 347
Os modernos teólogos da Alemanha, que seguem as instruções das
Escrituras, tomaram, em muitos casos, a base de que a unidade absoluta
na essência divina é inconsistente com a autoconsciência. Chegamos a
ser autoconscientes, distinguindo a nós mesmos do que não somos nós
mesmos, e sobretudo de outras pessoas da mesma natureza conosco
mesmos. Se, por conseguinte, não houvesse nenhuma pessoa objetiva a
Deus, a quem Ele podia dizer Tu, Ele não podia dizer Eu. Assim
Martensen 348 diz: Embora a criatura não pode ter a compreensão
adequada da natureza divina, temos uma biografia da Trindade em nós
mesmos; como somos formados a imagem de Deus, temos o direito a
conceber a Deus de acordo com a analogia de nossa própria natureza.
Como distinção de pessoas é necessário a autoconsciência em nós, assim
também em Deus. Portanto, se Deus não é uma Trindade, não pode ser
uma pessoa. Como, pergunta-se, pode Deus desde a eternidade ser
consciente de Si mesmo como Pai, sem distinguir a Ele mesmo dEle
mesmo como Filho? Em outras palavras, como pode Deus ser
eternamente autoconsciente, sem ser eternamente objetivo a Si mesmo?
Que conosco o objetivo do Ego não é meramente ideal e não uma pessoa
distinta do Eu subjetivo, surge de nossa natureza como criaturas. Com
Deus, pensar e ser são o mesmo. Ao pensar Ele mesmo seu próprio
pensamento é numa hipóstase distinta. O Dr. Shedd 349 deu uma
exposição similar, “na prova de que as condições necessárias da
autoconsciência no espírito finito, provê um sistema análogo à doutrina
da Trindade, e vai demonstrar que a trindade na unidade é necessária
para a autoconsciência na Divindade.”
347
Opera, edit. Cologne, 1614, Vol. II. Systema Theologiæ (tract at end of vol.), p. 72, the last of three
pages marked 72.
348
Dogmatik, pp. 129, 130.
349
History of Christian Doctrine, Vol. I. p. 366.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 650
Trinitarianismo panteísta.
Em tudo o que precede, fez-se referência aos que tiveram por objeto
reivindicar a doutrina da Trindade, demonstrando que não está fora da
analogia com outros objetos do pensamento humano. Há, entretanto,
muitos sistemas modernos que professam ser trinitários, que na realidade
são meras substituições das fórmulas de especulação para a doutrina da
Bíblia. Os homens falam da Trindade, do Pai, Filho e Espírito, quando
querem dizer com esses termos algo que não tem a menor analogia com
a doutrina da Igreja cristã. Muitos pela Trindade não significam uma
Trindade de pessoas na Divindade, mas por três forças radicais, por
assim dizer, na natureza divina, que se manifestam de diferentes
maneiras, ou de três relações diferentes do mesmo tema, ou três estados
diferentes ou etapas da existência. Assim, para alguns, o poder absoluto
ou a eficiência do Ser Supremo considerado como criando, mantendo, e
governando o mundo, é o Pai; como iluminando às criaturas racionais, é
o Filho; e, como moralmente os educando, é o Espírito.
Segundo Kant, Deus como criador é o Pai; como preservador e
governador dos homens, Ele é o Filho; e como o administrador da lei,
como juiz e remunerador, Ele é o Espírito. Segundo DeWette, Deus em
si mesmo é o Pai, tal como se manifesta no mundo, o Filho; e como
operando na natureza, o Espírito. Schleiermacher diz: Deus em Si
mesmo é o Pai; Deus em Cristo é o Filho; Deus na Igreja, é o Espírito
Santo. Os reconhecidos panteístas também usam a linguagem do
Trinitarianismo. Deus como Ser infinito e absoluto é o Pai; como
chegando à consciência e a existência no mundo, Ele é o Filho; como
voltando a Ele, o Espírito. Weisse tenta unir o teísmo e o panteísmo. Ele
pronuncia a doutrina da Trindade de Niceia como a forma superior de
pensamento filosófico. Ele professa a adoção dessa doutrina ex animo
em seu sentido usualmente admitido. Há uma tríplice personalidade
(Ichheit) em Deus necessárias à constituição de Sua natureza. Quando o
mundo foi criado a segunda destas pessoas fez-se sua vida, fundindo sua
personalidade no mundo e se fez impessoal, com o fim de elevar o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 651
mundo na união e na identidade com Deus. Quando o plano de estudos
do mundo se obtém, o Filho reassume Sua personalidade. 350
350
C. H. Weisse, Idee der Gottheit; Dresden, 1833, pp. 257 ff., 273. A literatura da doutrina da
Trindade iria encher um volume. De Bull Defence of the Nicene Creed, de Pearson On the Creed, de
Waterland On the Trinity, de Meier Geschichte der Lehre von der Trinität, de Baur Geschichte der
Lehre Von der Trinität, de Dorner History of the Person of Christ, em cinco volumes, um da série de
Clark Foreign Theological Library, uma coleção muito valiosa de importantes obras modernas, de
Shedd History of Christian Doctrine, e as outras obras históricas sobre as doutrinas da Igreja, abriu
todo o campo para o estudante de teologia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 652
CAPÍTULO VII
A DIVINDADE DE CRISTO
O Proto-Evangelho.
Imediatamente depois da apostasia de nossos primeiros pais,
anunciou-se que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. O
significado desta promessa e predição deve ser determinado por
revelações posteriores. Quando se interpreta à luz das próprias
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 653
Escrituras, fica patente que a semente da mulher significa o Redentor, e
que o esmagamento da cabeça da serpente significa o triunfo final do
Redentor sobre os poderes das trevas. Neste proto-Evangelho, como foi
chamado, temos o começo da revelação da humanidade e divindade do
grande libertador. Como semente da mulher, fica claramente afirmada
sua humanidade, e a natureza do triunfo que ia obter, subjugando a
Satanás, demonstra que devia ser uma pessoa divina. No grande conflito
entre o bem e o mal, entre o reino da luz e o reino das trevas, entre Cristo
e Belial, entre Deus e Satanás, aquele que triunfa sobre Satanás é, não
pode ser menos que, divino. Nos primeiros livros da Escritura, inclusive
em Gênesis, temos por isso uma clara intimação de duas grandes
verdades: primeiro, que há uma pluralidade de pessoas na Deidade; e
segundo, que uma destas pessoas está especialmente envolta na salvação
dos homens, – em sua condução, governo, instrução e final libertação de
todos os males de sua apostasia. A linguagem empregada no registro da
criação do homem, «Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança», não admite outra explicação satisfatória mais que a
que oferece a doutrina da Trindade.
A. O livro de Gênesis.
D. Os Salmos.
E. Os Livros Proféticos.
Está claro, inclusive com base neste rápido exame da questão, que o
Antigo Testamento prediz com clareza a vinda de uma pessoa divina
revestida de nossa natureza, que ia ser o Salvador do mundo. Ia ser da
semente da mulher, a semente de Abraão, da tribo de Judá, da casa de
Davi; nascido de uma virgem; varão de dores; e que faria de «sua alma
oferta pelo pecado». Mas é declarado com não menos clareza como
sendo o Anjo de Jeová, Jeová, Elohim, Adonai, o Deus Forte, exercendo
todas as prerrogativas divinas, e com direito à adoração divina de
homens e de anjos. Esta é a doutrina do Antigo Testamento quanto ao
que o Messias ia ser; e esta é a doutrina do Novo Testamento quanto ao
que de fato é Jesus de Nazaré.
351
A respeito desta questão. veja-se Hengstenberg. Christology.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 667
§ 2. As características gerais do ensino do Novo Testamento
a respeito de Cristo.
*
Com efeito, se esta fosse a frase usada com o artigo grego em ambos Deus e o Verbo, haveria uma
frase recíproca, em que o sujeito e o predicado seriam intercambiáveis: Literalmente, «o Verbo era o
Deus», ou «o Deus era o Verbo». Esta é uma estrutura conhecida, em que o sujeito é o que se prega de
maneira exclusiva. Se assim fora, não haveria Deus exceto o Verbo; declarar-se-ia a exclusividade da
Deidade do Verbo, e a unipersonalidade de Deus. Pelo contrário, a ausência de artigo nesta oração faz
(1) que o que se pregue do Verbo é que o que Deus é o é o Verbo; o Verbo possui a natureza de Deus.
É Deus em sua substância e natureza. Mas fica aberta a porta a pluripersonalidade no seio da Deidade,
ao não pregar-se exclusivamente do Verbo, mas sim como da mesma essência de seu Ser. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 681
quando refere-se ao Deus supremo. (4) O λόγος (Logos) é o Criador de
todas as coisas. Todas as coisas foram feitas por Ele, δι᾽ αὐτοῦ (di’
autou). O termo διὰ (diá) aqui não expressa necessariamente uma
instrumentalidade subordinada. Todas as coisas dizem-se que são διὰ
θεοῦ (diá theou) além de ἐκ θεοῦ (ek theou). O Pai opera por meio do
Filho, e o Filho por meio do Espírito. Tudo o que indica a preposição é
subordinação quanto ao modo de operação, que é em outros lugares
ensinada quanto às pessoas da Trindade. O fato de que todas as criaturas
devem sua existência ao Verbo é feito mais proeminente dizendo: «E
sem ele nada do que foi feito se fez»; πᾶν ὁ γέγονεν (pan ho gegonen) é
por meio dele. Portanto. Ele não pode ser uma criatura. Não só Ele foi
antes de todas as criaturas, mas também tudo o que criado foi levado a
existência por Ele. (5) O Logos é existente por si mesmo. É inderivado.
«Nele estava a vida». Isto é certo só de Deus. Só a Deidade subsistindo
no Pai, no Verbo e no Espírito é existente em si mesma, possuindo vida
em si mesma. (6) A vida do Verbo «é a luz dos homens». Tendo vida em
Si mesmo, o Verbo é a fonte de vida em tudo o que vive, e especialmente
da vida intelectual e espiritual do homem; e por isso diz-se dEle que é a
luz dos homens: isto é, a fonte da vida intelectual e do conhecimento em
todas suas formas. (7) O λόγος (Logos), como a luz verdadeira ou real,
resplandece nas trevas ἐν τῇ σκοτίᾳ = ἐν τοῖς ἐσκοτισμένοις (en te skotia
= en tois eskotismenois) em meio de um mundo alienado de Deus. Os
homens do mundo, os filhos das trevas, não compreendem a luz; não
reconhecem ao Verbo como Deus, o Criador de todas as coisas, e a fonte
de vida e conhecimento. Aos que assim O reconhecem dá-lhes poder
para serem feitos filhos de Deus, isto é, eleva-os à dignidade e bem-
aventurança de ser filhos de Deus. (8) Este Verbo se fez carne, isto é,
transformou-se homem. Este uso da palavra carne é explicado em
passagens como 1Tm 3:16; Rm 2:14; Rm 8:3, o relação com Lc 1:35; Gl
4:4; Fp 2:7. Quanto à glória do λόγος [Logos] encarnado, o Apóstolo diz
de si mesmo e de seus companheiros de discipulado: «E vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai»; uma glória como só podia
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 682
pertencer Àquele que é o eterno Filho de Deus, consubstancial com o
Pai.
O Apocalipse.
O Livro de Apocalipse é um hino contínuo de louvor a Cristo,
expondo a glória de Sua pessoa e o triunfo de Seu reino; apresentando-O
como a base da confiança de Seu povo e o objeto da adoração de todos
os moradores do céu. É declarado ser o governante dos reis da terra. Ele
nos tem feito para Deus reis e sacerdotes. Ele é o Primeiro e o Último,
uma linguagem que jamais se emprega exceto de Deus, e que só é certo
dEle. Compare-se Is 44:6. Nas epístolas às sete igrejas, Cristo assume os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 687
títulos e as prerrogativas de Deus. Ele Se designa a Si mesmo como
Aquele que sustenta as sete estrelas em Sua mão direita; o Primeiro e o
Último; Aquele que tem a espada de dois gumes e olhos de fogo, a quem
nada se pode ocultar. Ele tem os sete espíritos. Ele é o Santo e o
Verdadeiro. Ele tem as chaves de Davi; Ele abre e ninguém fecha, e
fecha e ninguém abre; Sua decisão a respeito do destino dos homens é
inapelável. Ele é o árbitro supremo; a testemunha fiel e verdadeira; o
ἀρχὴ τῆς κτίσεως τοῦ θεοῦ [arche tes ktiseos tou theou], o princípio, isto
é, ao mesmo tempo a cabeça e fonte, de toda a criação. Ele repreende as
igrejas por seus pecados, ou as louva por sua fidelidade, como seu
governante moral contra quem se comete o pecado, e a quem se presta
obediência. Ele ameaça com castigos e promete bênçãos que só Deus
pode infligir ou outorgar. No capítulo 5 o Apóstolo exibe a todos os
moradores do céu prostrar-se aos pés de Cristo, atribuindo bênçãos e
honra e glória e poder Àquele que se assenta no trono e ao Cordeiro para
sempre jamais. A Nova Jerusalém é a capital de Seu reino. Ele é a luz
dela, e sua glória e bem-aventurança. Ele Se declara vez após vez o Alfa
e o Ômega, o Primeiro e o Último (isto é, o imutável e eterno), o
Princípio e o Fim, Aquele cuja segunda vinda a Igreja espera ofegante.
Gálatas
(1) Paulo diz que ele era Apóstolo não por vontade de homem, mas
por Jesus Cristo (Gl 1:1). (2) A conversão da alma é levada a cabo pelo
conhecimento de Cristo como o Filho de Deus (Gl 2:16). (3) A vida
espiritual é mantida pela fé da qual Cristo é o objeto (Gl 2:20,21). (4)
Cristo vive em nós, como de, Deus é dito que habita em Seu povo (Gl
2:20). (5) Ele era o objeto da fé de Abraão (Gl 3:16). (7) Pela fé nEle
viemos a ser filhos de Deus (Gl 3:26). (8) O Espírito Santo é o Espírito
de Cristo (Gl 4:6). (9) Sua vontade é nossa lei (Gl 6:2). (10) Sua graça ou
favor é a fonte de todo bem (Gl 6:18).
Efésios.
(1) Em Cristo e sob Ele têm que convergir todos os objetos do amor
redentor de Deus num todo harmônico (Ef 1:10). (2) NEle temos vida
eterna, sendo feitos herdeiros de Deus. (Ef 1:11-14). (3) Ele está
exaltado acima de todo principado e potestade, e poderio, e domínio, isto
é, acima de todas as criaturas racionais (Ef 1:21). (4) NEle somos
vivificados, ou ressuscitados da morte do pecado, feitos partícipes da
vida espiritual, e exaltados ao céu (Ef 2:1-16). (5) Em Ef 3:9 diz-se de
Deus que criou todas as coisas por Jesus Cristo. (entretanto, o texto nesta
passagem é algo duvidoso.) (6) Ele enche o universo (Ef 1:23, e Ef
4:10). (7) Ele é a cabeça da Igreja, da qual deriva sua vida (Ef 4:16). (8)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 691
Ele santifica a Igreja (Ef 5:26). (9) O cumprimento de todos os deveres
sociais fica fortalecido pela consideração da autoridade de Cristo.
Devemos servir aos homens como servindo a Ele (Ef 6:1-9).
Filipenses.
Em Filipenses, além do reconhecimento usual de Cristo como a
fonte e doador de graça e paz, que abrange todas as bênçãos espirituais, e
o conhecimento dEle como o fim de nosso ser (Fp 1:21,22), temos em
Fp 2:6-11 a mais clara declaração da divindade de Cristo. Diz-se: (1) que
Ele sendo Deus, (ou existindo, ὑπάρχων [huparchon]) em forma de
Deus», isto é, sendo Deus tanto em natureza como em manifestação. Não
podia ser um sem ser o outro. A palavra μορφή (morfê) pode bem
significar o modo de manifestação, aquilo que aparece, como quando se
diz «o rei do céu apareceu sobre a terra ἐν μορφῇ ἀνθρώπου (en morphe
anthropou)»; ou a própria natureza ou essência (φύσις [phusis] ou οὐσία
[ousia]). Esta última postura é a que adotam a maioria dos pais. Mas a
primeira concorda mais com o uso comum da palavra, e com o contexto
imediato. Aquele que existia em forma de Deus tomou sobre Si mesmo
forma de servo (μορφήν δούλου [morphen doulou]), isto é, a verdadeira
condição de servo. (2) Ele é declarado igual a Deus. Ele não considerou
ἶσα εἶναι θεῷ - isa einai theo [ser igual a Deus] como um ἁρπαγμόν
(harpagmon), isto é, como um latrocínio, ou uma assunção injusta. Ele
tinha todo direito a reclamar a igualdade com Deus. (3) Esta pessoa
verdadeiramente divina assumiu a forma dos homens, a qual se explica
dizendo que foi «feito semelhante aos homens». Apareceu em forma,
aparência, linguagem, modo de pensar, falar, sentir e agir, como outros
homens. Não foi um mero homem, mas sim «Deus encarnado», Deus
manifestado em carne. (4) Esta pessoa divina, revestida de natureza
humana, humilhou-se até a morte, e morte de cruz. (5) Por isso Ele (não
Deus, nem a natureza divina em Cristo, mas sim o Teantropo), é exaltado
acima de todo nomeie que se nomeia, «para que ao nome de Jesus (isto
é, o nome do Teantropo [ou Theanthropos], porquanto é Ele como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 692
pessoa divina revestida da natureza do homem que é objeto de adoração)
se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da
terra» (Fp 2:10, TB). Esta é uma amplificação exaustiva. Inclui a toda a
criação racional, desde o mais exaltado arcanjo até o mais fraco dos
santos; todos, todos aqueles que têm vida reconhecem a Cristo como
sendo o que só Deus pode ser, seu Senhor absoluto e supremo. É pelo
que Cristo é e por ter feito o descrito, que o Apóstolo diz, no seguinte
capítulo, que Ele contava como nada todas as coisas pelo conhecimento
de Cristo, e que seu único desejo era ser achado nEle e revestido de Sua
justiça. Este Redentor divino há de voltar, e «transformará o nosso corpo
de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia
do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas» (Fp 3:21).
Colossenses
Colossenses 1:15-20 tem o propósito expresso de expor a
verdadeira Deidade de Cristo em oposição aos erros que surgiam da
teoria da emanação, que já tinha começado a estender-se pelas igrejas da
Ásia Menor. Esta passagem estabelece a relação de Cristo primeiro com
Deus, em segundo lugar com o universo, e em terceiro com a Igreja.
Aqui, como em tantas outras passagens da Escritura, os predicados do
Λόγος ἀσαρκος (Logos asarkos) e do Λόγος ἔνσαρκος (Logos ensarkos)
misturam-se. Como em Hb 1:2,3, diz-se que o Filho criou todas as
coisas, e que é o resplendor da glória do Pai, e também que efetuou a
purificação de nossos pecados; assim que aqui parte do que se diz
pertence ao Logos como existente desde toda a eternidade, e parte Lhe
pertence como revestido de nossa natureza. É do Λόγος ἀσαρκος (Logos
asarkos) que se declara que é a imagem do Deus invisível e o Criador de
todas as coisas; e é o Λόγος ἔνσαρκος (Logos ensarkos) que é declarado
ser a cabeça da Igreja. A relação de Cristo com Deus é expresso nesta
passagem: (1) Pelas palavras recém-citadas, Ele «é a imagem do Deus
invisível». Ele está relacionado com Deus de tal maneira que revela o
que Deus é, de maneira que os que O veem, veem a Deus, os que O
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 693
conhecem, conhecem a Deus, e os que O ouvem, ouvem a Deus. Ele é o
resplendor da glória de Deus e Sua expressa imagem. (2) Sua relação
com Deus é também expressa dizendo que Ele é gerado desde a
eternidade, ou que é o Filho unigênito. As palavras πρωτότοκος πάσης
κτίσεως (protótokos pases ktiseos) recebem, certamente, várias
explicações. Os Socinianos as explicam no sentido de que Ele foi a
cabeça de uma nova dispensação; os Arianos, que Ele foi o primeiro em
ser criado de todas as criaturas racionais; muitos intérpretes ortodoxos
tomam πρωτότοκος (protótokos) em seu sentido secundário, como
cabeça ou chefe. Por isso, entendem o Apóstolo como dizendo que
Cristo é o governador ou cabeça sobre toda a criação. Mas todas estas
interpretações são inconsistentes com o sentido próprio das palavras,
com o contexto, e com a analogia das Escrituras. Πρωτότοκος
(Protótokos) significa nascido antes. Aquilo do que se diz que Cristo
nasceu antes é expresso com πάσης κτίσεως (pases ktiseos). Ele nasceu
(ou foi gerado) antes de nenhuma ou quaisquer criaturas, isto é, antes da
criação, ou desde a eternidade. Todos os argumentos aduzidos num
capitulo anterior em prova da eterna geração do Filho são argumentos
em favor desta interpretação. Além disso, a interpretação Ariana é
inconsequente com o sentido das palavras. Esta interpretação dá por
sentado que o genitivo πάσης κτίσεως (pases ktiseos) deve ser tomado
em sentido partitivo, de modo que se diz de Cristo que faz parte da
criação, como o primeiro das criaturas, do mesmo modo que se diz que é
o primeiro dos que ressuscitaram dos mortos, quando é chamado
προτότοκος τῶν νεκρῶν (protótokos ton nekron). Mas πᾶσα κτίσις (pasa
ktísis) não significa toda a criação, como indicativa da classe ou
categoria a que pertence Cristo, mas sim toda criatura, indicando uma
filiação ou comparação; Cristo é o primogênito quanto a toda criatura,
isto é, gerado antes de nenhuma criatura (isto é, eternamente, com base
no constante uso das Escrituras, porque o que é antes da criação é
eterno). Além disso, a conexão demanda esta interpretação. O Apóstolo
demonstra que Cristo é a imagem do Deus invisível, e o προτότοκος
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 694
πάσης κτίσεως (protótokos pases ktiseos) por meio de um argumento que
demonstra que não pode ser uma criatura; e por isso o nascimento
mencionado tem que ser anterior ao tempo. Em segundo lugar, a relação
de Cristo com o universo é expressa nesta passagem dizendo: (1) Que
Ele é o Criador de todas as coisas. Isto é ampliado, porquanto se declara
que todas as coisas incluem todas as que estão nos céus e na terra,
visíveis e invisíveis, racionais e irracionais, por exaltadas que sejam,
incluindo tronos, domínios, principados e potestades, isto é, toda a
hierarquia do mundo espiritual. (2) Ele não é só o autor, mas também o
fim da criação porque todas as coisas foram não só criadas por Ele, mas
também para Ele. (3) Ele sustenta todas as coisas; todas as coisas por Ele
consistem, isto é, são preservadas em ser, vida e ordem. Em terceiro
lugar, Cristo é a cabeça da Igreja, a fonte da vida e graça para todos os
seus membros. Porque nele habita «toda a plenitude» da bênção divina.
Em Colossenses 2:3 diz-se que em Cristo habitam todos os tesouros
de sabedoria e conhecimento (isto é, todo conhecimento, ou onisciência);
e em Cl 2:9 que «nele habita corporalmente toda a plenitude da
Deidade». Isto é muito diferente do πλήρωμα (pleroma) mencionado em
Col 1:19, onde o Apóstolo está falando do que Beza chama
“cumulatissima omnium divinarum rerum copia, ex qua, tanquam
inexhausto fonte, omnes gratiæ in corpus pro cujusque membri modulo
deriventur;” 352 Aqui a referência é ao ser divino, à natureza, ou à mesma
essência, τὸ πλήρωμα τῆς θεότητος (to pleroma tes theotetos). A palavra
θεότης (theotes) é o abstrato de θεός (theos) como θειότης (theiotes) é-o
de θεῖος (theios). O primeiro significa Deidade, aquilo que faz com que
Deus seja Deus; o segundo denota divindade, aquilo que se traduz
divino. A íntegra plenitude da essência divina (e não uma mera
emanação daquela essência, como ensinava a incipiente seita gnóstica)
habita (κατοικεῖ [katoikei], habita permanentemente, não é uma
manifestação temporal) nEle, corporalmente, σωματικῶς (somátikos),
352
In loc. edit. Geneva, 1565, p. 423.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 695
investida com um corpo. A Deidade em Sua plenitude está encarnada em
Cristo. Portanto, Ele não é meramente θεός (theos), sino ὁ θεός (ho
theos) no mais alto sentido. Não se pode dizer mais que o que Paulo diz.
As Epístolas Pastorais
Nas epístolas pastorais de Paulo a Timóteo e Tito, além do
reconhecimento normal da divindade de Cristo que se encontra em quase
cada página do Novo Testamento, há quatro passagens nas quais, ao
menos com base no texto comum e da interpretação mais natural, é
chamado Deus de maneira direta. Inclusive 1Tm 1:1, κατ᾽ ἐπιταγὴν
Θεοῦ σωτῆρος ἡμῶν και Κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ (kat' epitagen Theou
soteros hemon kai Kuriou Iesou Christou), pode-se traduzir com toda
naturalidade como «segundo o mandamento de Deus nosso Salvador,
isto é, nosso Senhor Jesus Cristo». Isto está de acordo com as passagens
paralelas de Tt 1:3, «Por mandato de Deus nosso Salvador»; e Tt 2:13,
«do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo». Nesta última passagem
não há razão alguma, como o reconhecem Winer e De Wette, para pôr
em dúvida que Cristo seja chamado o grande Deus, exceto pelo que eles
consideram que é a Cristologia do Novo Testamento. Eles não admitem
que com base na doutrina de Paulo que Cristo seja chamado o grande
Deus, e por isso não estão dispostos a admitir que esta passagem
contenha tal declaração. Mas se, como já vimos, e como o crê toda a
Igreja, não só Paulo, mas também todos os Apóstolos e os profetas
ensinam abundantemente que o Messias é verdadeiramente Deus assim
como verdadeiramente homem, não há então força alguma em tal
objeção. Devem-se violentar as normas comuns da linguagem se a frase
τοῦ μεγάλου θεοῦ καὶ σωτῆρος (tou megalou theou kai soteros) não é
referida ao mesmo sujeito; porquanto θεοῦ (theou) tem o artigo, e
σωτῆρος (soteros) carece dele. O sentido justo das palavras é «o Grande
Deus, que é nosso Salvador Jesus Cristo». Esta interpretação é deste
modo exigida: (1) Pelo contexto. Jesus Cristo é o tema do discurso. DEle
é dito que Ele é o grande Deus nosso Salvador, que Se entregou a Si
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 696
mesmo por nós. (2) Porquanto a ἐπιφανεία (epiphaneia), manifestação
(que aqui tem referência à segunda vinda), emprega-se repetidas vezes
de Cristo no Novo Testamento, mas nunca de Deus como tal, ou de Deus
Pai. Veja-se 2Tm 1:10; 2Ts 2:8; 1Tm 6:14; 2Tm 4:1,8. (3) A posição das
palavras σωτῆρος ἡμῶν (soteros hemon) diante de Ἰησοῦ Χριστοῦ (Iesou
Christou). Se «Deus» e «Salvador» se referissem a pessoas diferentes, a
ordem natural das palavras seria, «a manifestação do grande Deus e
Jesus Cristo nosso Salvador», e não como aparece: «A manifestação do
grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo». Grande Deus e Salvador
pertencem evidentemente à mesma pessoa em 1Tm 1:1, «o mandamento
de Deus, nosso Salvador», e em Tt 1:3, «Deus, nosso Salvador»; e neste
lugar (Tt 2: 13) declara-se que aquele Deus e Salvador é Jesus Cristo.
Mas a passagem mais importante nestas epístolas pastorais é 1Tm
3:16. Com relação a esta passagem pode-se observar: (1) Que admite
duas interpretações. Segundo a primeira, a Igreja é declarada como a
coluna e o baluarte da verdade, e segundo a outra a coluna e o baluarte
da verdade é o grande mistério da piedade. Esta última deve ser preferida
como igualmente coerente com a estrutura gramatical da linguagem, e
como mais em harmonia com a analogia da Escritura. A coluna e o
baluarte da verdade, a grande doutrina fundamental do Evangelho, é com
frequência declarada em outras passagens como a doutrina da
manifestação de Deus na carne. Sobre esta doutrina repousam todas as
nossas esperanças de salvação. (2) Seja qual for a leitura que se adote,
seja θεός (theos), ὁς (hos), ou ὁ (ho), todas as quais aparecem em
diversos manuscritos, a passagem tem que fazer referência a Cristo. Foi
Ele quem foi manifestado em carne, justificado no Espírito, e recebido
acima na glória. (3) Seja qual for a leitura que se adote, a passagem
assume ou declara a divindade de nosso Senhor. Nos escritores
apostólicos, a doutrina da encarnação se expressa dizendo que o λόγος
(logos) «fez-se carne» (Jo 1:14), ou que «Jesus Cristo veio em carne»
(1Jo 4:2); ou que «Aquele que é o resplendor da glória de Deus»
«participou da carne e do sangue» (Hb 2:14); ou que Aquele que era
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 697
«igual a Deus» foi «achado em forma de homem» (Fp 2:8). Por isso,
expressa a mesma verdade, tanto se dissermos que «Deus foi
manifestado em carne» ou «Aquele que foi manifestado em carne»; ou
que «O mistério da piedade foi manifestado em carne». (4) As
autoridades externas estão tão divididas que os editores e críticos mais
competentes diferem quanto a qual seja o texto original. Em favor de
θεός (theos) temos o grande corpo dos manuscritos cursivos gregos e
quase todos os Pais gregos. A autoridade do Códice Alexandrino é
reivindicada por ambos os lados. A questão ali é se a letra é um Θ
(Theta) ou um Ο (Omicrón); alguns dizem que se podem ver traçados
duros da linha no Theta, outras dizem que não as veem. Para ὁς (hos)
citam-se C, F e G dos manuscritos unciais, só dois dos manuscritos
cursivos, e as versões Copta e Sahídica. A esta deve-se acrescentar o
testemunho do antiquíssimo manuscrito recentemente descoberto por
Tischendorf, * cujo texto foi publicado baixo seus auspícios em São
Petersburgo. Em favor de ὁ (ho) estão o manuscrito uncial D, a Vulgata
Latina, e os Pais latinos. À vista do estado da questão, Wetstein,
Griesbach, Lachman, Tischendorf e Tregelles, entre os editores,
decidem-se por ὁς (hos). Mill, Matthies, assim como os editores mais
antigos, como Erasmo, Beza, a Complutense, e os posteriores como
Knapp e Hahn, retêm θεός (theos). 353 (5) A evidência interna, pelo que
respeita à perspicuidade da passagem e à analogia da Escritura, estão
decididamente em favor do texto comum. Há algo notável na passagem;
é introduzido aparentemente como uma citação de um hino, como alguns
pensam, ou de uma confissão de fé, como outros supõem, ou ao menos
como uma fórmula familiar com a qual se enunciam de maneira concisa
as principais verdades a respeito da manifestação de Cristo. (1) Ele é
Deus. (2) Ele foi manifestado em carne, ou, fez-se homem. (3) Ele foi
justificado, isto é, Suas afirmações de que devia ser considerado como
*
O autor refere-se aqui ao Códice conhecido como Sinaítico. (N. do T.)
353
O doutor Henderson vindicou habilmente a leitura θεός - theos em seu Critical Examination of the
Various Readings in 1 Tim. 3.16.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 698
Deus manifestado em carne foram demonstradas verdadeiras, pelo
Espírito (isto é, ou pelo Espírito Santo, ou pelo πνεῦμα - pneuma ou
natureza divina que se revelou nEle. Cf. Jo 1:14). (4) Foi visto dos anjos.
Eles O reconheceram e serviram. (5) Foi pregado aos gentios, porquanto
veio para ser o Salvador de todos os homens, e não só dos judeus. (6) Foi
crido como Deus e Salvador; e (7) Foi recebido acima em glória, onde
agora vive, reina e intercede.
§ 1. Sua natureza.
A. Sua personalidade.
A. Em a Natureza
354
Works, edit. Bremæ, 1690, on p. 61 of the second set in the Opuscula.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 712
sobre eles» (Nm 11:17). Josué foi designado para suceder a Moisés,
porque o Espírito estava nele (Nm 27:18). De maneira semelhante, os
Juízes que eram suscitados ocasionalmente, quando surgia uma
emergência, eram dotados pelo Espírito para sua peculiar obra, quer
como governantes, quer como guerreiros. De Otniel é dito que «Veio
sobre ele o Espírito do SENHOR, e ele julgou a Israel; saiu à peleja» (Jz
3:10). Do mesmo modo diz-se que o Espírito de Deus veio sobre Gideão,
e sobre Jefté e Sansão. Quando Saul ofendeu a Deus, diz-se que o
Espírito de Deus Se apartou dele (1Sm 16:14). Quando Samuel ungiu a
Davi, «daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de
Davi» (1Sm 16:13). Da mesma maneira, sob a nova dispensação o
Espírito é apresentado não só como o autor de dons milagrosos, mas
também como o doador das qualificações para ensinar e reger na Igreja.
Todas estas operações são independentes das influências santificadoras
do Espírito. Quando o Espírito veio sobre Sansão ou sobre Saul, não foi
para fazê-los santos, senão para dotá-los com um poder físico e
intelectual extraordinário; e quando se diz que Ele Se apartou deles,
significa que aqueles extraordinários dons lhes foram retirados.
355
Adversus Praxean, 15, Works, edit. Basle, 1562, p. 426.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 716
adorado e glorificado com o Pai e o Filho, e que falou por meio dos
profetas». No chamado Credo Atanasiano diz-se que o Espírito é
consubstancial com o Pai e o Filho; que é incriado, eterno e onipotente,
igual em majestade e glória, e que procede do Pai e do Filho. Estes
credos são católicos, adotados por toda a Igreja. Desde que foram
adotados não houve diversidade de fé nesta questão entre os
reconhecidos como cristãos.
Desde o Concílio de Constantinopla os que negaram a comum
doutrina da Igreja, sejam Socinianos, Arianos ou Sabelianos, consideram
o Espírito Santo não como uma criatura, mas sim como o poder de Deus:
isto é, a eficiência divina manifestada. Os modernos teólogos filosóficos
da Alemanha não diferem essencialmente deste ponto de vista. De
Wette, por exemplo, diz que o Espírito é Deus como revelado e operando
na Natureza; Schleiermacher diz que o termo designa a Deus como
operando na Igreja, isto é, «Der Gemeingeist der Kirche». Mas isto é só
um nome. Para Schleiermacher, Deus é só a unidade da causalidade
manifestada no mundo. Esta causalidade contemplada em Cristo
podemos chamá-la Filho, e vista na Igreja podemos chamá-la Espírito.
Deus é meramente causa, e o homem um efeito fugaz. Felizmente, a
teologia de Schleiermacher e a religião de Schleiermacher eram tão
diferentes como o são as especulações e a fé diária do idealista.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 717
CAPÍTULO IX
OS DECRETOS DE DEUS
356
Westminster Shorter Catechism, 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 718
apenas de e por meio de Deus, mas também para Ele. Ele é o princípio e
o fim. Os céus declaram Sua glória; este é o propósito pelo qual foram
feitos. Deus anuncia com frequência Sua determinação de dar a conhecer
Sua glória. «Porém, tão certo como eu vivo, e como toda a terra se
encherá da glória do SENHOR» (Nm 14:21). Isto é mencionado como o
objetivo último de todas as dispensações de Sua providência, seja
benfeitora, seja punitiva. «Por amor de mim, por amor de mim, é que
faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória,
não a dou a outrem» (Is 48:11). «Por amor do meu nome, para que não
fosse profanado diante das nações» (Ez 20:9). De maneira semelhante,
afirma-se que todo o plano de redenção e a dispensação de sua graça é
designado para revelar a glória de Deus (1Co 1:26-31; Ef 2:8-10). Este é
o fim que nosso Senhor Se propôs a Si mesmo. Ele fez tudo para a glória
de Deus; e é para este fim que se pede a Seus seguidores que vivam e
ajam. Como Deus é infinito, e todas as criaturas são nada em
comparação com Ele, está claro que a revelação de Sua natureza e
perfeições tem que ser o fim supremo concebível de todas as coisas, e a
mais condizente a alcançar todos os outros bons fins subordinados. Mas
a ordem e a verdade dependem de pôr todas as coisas em suas corretas
relações. Se fizermos do bem da criatura o fim supremo de todas as
obras de Deus, então subordinamos Deus à criatura, e a consequência é
uma confusão sem fim e um errar inevitável. É característico da Bíblia
pôr a Deus em primeiro lugar, e o bem da criação em segundo. Este é
também o rasgo característico do Agostinismo em distinção de todas as
outras formas de doutrina. E quando os Protestantes se dividiram na
época da Reforma, foi principalmente neste ponto. As igrejas Luteranas
e Reformadas se distinguem em tudo o que caracteriza os seus sistemas
teológicos pelo fato de que as últimas admitem a supremacia e soberania
de Deus nas operações de Sua providência e graça para determinar tudo
para Sua própria glória, enquanto que as primeiras tendem mais ou
menos ao errar em restringir a liberdade de ação de Deus pelos presuntos
poderes e prerrogativas do homem. A Bíblia, Agostinho e os Reformados
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 719
dão uma resposta a todas as perguntas como a que segue: Por que criou
Deus o mundo? Por que permitiu Deus que tivesse lugar o pecado? Por
que se proveu salvação para os homens, mas não para os anjos? Por que
o conhecimento desta salvação esteve durante tanto tempo limitado a um
só povo? Por que entre os que ouvem o evangelho, alguns o recebem e
outros o rejeitam? A estas e outras perguntas similares a resposta é: Não
devido ao fato de que a felicidade das criaturas pudesse ser assegurada
em maior grau mediante a admissão do pecado e da miséria que por sua
total exclusão. Alguns homens são salvos e outros perecem, não devido
ao fato de que alguns por sua própria vontade creem, e outros não creem,
mas simplesmente devido ao fato de que: Assim pareceu bem diante de
Deus. Seja o que for que Ele faça ou permita que se faça, é feito ou
permitido para a mais perfeita revelação de Sua natureza e perfeições.
Como o conhecimento de Deus é a base e soma de todo bem, segue-se
como natural que quanto mais perfeitamente seja Deus conhecido, tanto
mais plenamente se promove o mais alto bem (não meramente nem
necessariamente a maior felicidade) do universo inteligente. Mas este é
um efeito subordinado, não o fim principal. Por isso, está de acordo com
todo o espírito e os ensinos da Bíblia, e com o caráter essencial do
Agostinismo, que nossas normas façam da glória de Deus o fim de todos
os Seus decretos.
D. É fatalismo.
357
Loomis, Treatise on Astronomy, New York, 1865, p. 314.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 740
planta morre, sua vitalidade se extingue. Deixa de existir no mesmo
sentido em que a luz se extingue quando a escuridão toma seu lugar.
O que é certo dos vegetais, não é menos certo no mundo animal.
Cada animal inicia-se num germe quase imperceptível. Mas esse germe
tem algo nele que determina com certeza o gênero, espécie e variedade
do animal. Forma todos os seus órgãos; prepara o olho pela luz ainda não
vista; o ouvido para os sons ainda por ser ouvidos e os pulmões para o ar
ainda para ser respirado. Nada mais maravilhoso que isto foi
proporcionado pelo universo em qualquer de seus fenômenos.
Se, por conseguinte, a vida vegetal e animal operam todas estas
maravilhas, que necessidade temos de assumir uma atitude
extramundana para perceber qualquer dos fenômenos do universo? Tudo
o que é preciso é que a natureza, natura naturans, a vis in rebus insita,
deva agir do mesmo modo que vemos que o princípio vital age nas
plantas e nos animais. Isto é hilozoísmo; a doutrina de que a matéria está
impregnada de um princípio de vida.
Outra forma desta teoria é mais dualista. Admite a existência da
mente e da matéria como substâncias distintas, mas sempre em
combinação existente, como a alma e o corpo no homem em nossa fase
atual do ser. Os defensores desta doutrina, pois, em vez de falar da
natureza como a força organizadora, falam da alma do mundo, a anima
mundi, etc.
Será suficiente observar a respeito destas teorias: (1) Que deixam a
origem das coisas sem explicação. De onde proveio a matéria, que dá por
sentada a teoria numa de suas formas? De onde provêm suas
propriedades físicas, a que se atribui toda organização? E quanto à
segunda doutrina, pode-se perguntar: De onde provieram os germes
vivos de plantas e animais? A hipótese de que a matéria em estado de
caos é eterna, ou de que houve uma sucessão sem fim de germes de vida,
ou de que houve uma eterna sucessão de ciclos na história do universo,
desenvolvendo o caos a cosmos, durante idades sem fim, são todas elas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 741
hipóteses que se chocam contra a razão, e que necessariamente carecem
de prova.
(2) Estas teorias são ateias. Negam a existência de um Ser pessoal
com quem temos a relação de criaturas e filhos. A existência de tal Ser é
uma verdade inata, intuitiva. Não pode ser permanentemente rejeitada. E
por isso toda teoria que negue a existência de Deus deve ser não só falsa,
mas também efêmera.
A doutrina escriturística.
A doutrina escriturística a respeito deste tema se expressa nas
primeiras palavras da Bíblia: «No princípio criou Deus os céus e a terra».
Os céus e a terra incluem todas as coisas, exceto Deus. E as Escrituras
ensinam que estas coisas devem sua existência à vontade e ao poder de
Deus. Por isso, a doutrina escriturística é: (1) Que o universo não é
eterno. Começou a ser. (2) Não foi formado de nenhuma substância
preexistente, mas sim foi criado ex-nihilo [do nada]. (3) Que a criação
não era necessária. Deus tinha a liberdade para criar ou para não criar,
para criar o universo tal qual é ou qualquer outra ordem e sistema de
coisas, segundo o Seu beneplácito.
A doutrina de uma criação eterna foi sustentada em diversas
formas. Orígenes, embora se referisse à existência do universo pela
vontade de Deus, ainda sustentou que era eterno. Falamos dos decretos
divinos como livres e não obstante, como desde a eternidade. Assim
Orígenes sustentou que este não foi o primeiro mundo que Deus fez; que
nunca houve um primeiro, e nunca haverá um último. “Quid ante
faciebat Deus,” ele pergunta, “quam mundus inciperet? Otiosam enim et
immobilem dicere naturam Dei, impium est simul et absurdum, vel
putare, quod bonitas aliquando bene non fecerit, et omnipotentia
aliquando non egerit potentatum. Hoc nobis objicere solent dicentibus
mundum hunc ex certo tempore coepisse, et secundum scripturæ fidem
annos quoque ætatis ipsius numerantibus. . . . . Nos vero consequenter
respondimus observantes regulam pietatis, quoniam non tunc primum
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 742
cum visibilem istum mundum fecit Deus, coepit operari, sed sicut post
corruptionem hujus erit alius mundus, ita et antequam hic esset, fuisse
alios credimus.” 358
É óbvio, os escolásticos que fizeram os pensamentos de Deus
criador, ou identificaram o propósito com ato, ou os que disseram com
Escoto Erígena, “Non aliud Deo esse et velle et facere,” devem
considerar o universo como coeterno com Deus. Isto foi feito por Decoto
num sentido panteísta, mas outros que consideravam o universo como
algo distinto de Deus e dependente dele, ainda sustentavam que o mundo
é eterno. A influência da filosofia monista moderna, inclusive sobre
teólogos que creem num Deus extramundano pessoal, foi tal que leva
muitos deles a assumir que a relação entre Deus e o mundo é tal que
deve ter existido sempre. A doutrina comum da Igreja foi sempre de
conformidade com o simples ensino da Bíblia, que o mundo começou a
ser.
O segundo ponto incluído na doutrina bíblica da criação é, que o
universo não se formou a partir de qualquer matéria preexistente, nem da
substância de Deus. A hipótese de que algo existe fora de Deus e
independente de Sua vontade, foi rejeitada por ser incompatível com a
perfeição e a supremacia absoluta de Deus. A outra ideia, entretanto, ou
seja, que Deus formou o mundo a partir de Sua própria substância,
encontrou partidários, mais ou menos numerosos, em cada época da
Igreja. Agostinho, referindo-se a esta opinião, diz: “Fecisti coelum et
terram; non de te: nam esset æquale unigenito tuo, ac per hoc et tibi, . . . .
et aliud præter te non erat, unde faceres ea; . . . . et ideo de nihilo fecisti
coelum et terram.” 359
Não só aqueles dos escolásticos e dos teólogos modernos que se
inclinam pela teoria monista, fizeram todas as coisas ser modificações da
substância de Deus, mas sim muitos teístas e inclusive escritores
358
De Principiis, III. 3. Works, edit. Paris, 1733, vol. i. p. 149, c, d.
359
Confessiones, XII. 7. Works, edit. Benedictines, Paris, 1836, Vol. I. p. 356, c, d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 743
360
evangélicos de nossos dias têm a mesma doutrina. Sir William
Hamilton também afirmou que é impossível conceber o complemento da
existência sendo aumentado ou diminuído. Quando algo novo aparece,
vemo-nos obrigados a considerá-lo como algo que tinha existido
anteriormente em outra forma. “Não podemos, por um lado, conceber
nada convertendo-se em algo, ou, por outro lado, algo convertendo-se
em nada. Quando se diz que Deus cria do nada, construímos este
pensamento mediante a hipótese de que Ele desenvolve a existência de
Si mesmo; vemos o Criador como a causa do Universo. ‘Ex nihilo nihil,
in nihilum nil posse reverti,’ expressa, em sua forma mais pura, todo o
fenômeno intelectual da causalidade.” 361 Para isto, em outra parte
acrescenta ele: “Da mesma maneira, concebemos a aniquilação, só por
conceber o Criador retrair-se de Sua criação a partir da realidade no
poder. . . . A mente é, pois, obrigada a reconhecer uma identidade
absoluta da existência no efeito e no complemento de suas causas —
entre o causatum e a causa,” 362 e portanto, “uma identidade absoluta da
existência” entre Deus e o mundo. Esta doutrina os pais, e a Igreja em
geral, resistiram energicamente por considerá-la inconsistente com a
natureza de Deus. Supõe que a substância de Deus admite partição ou
divisão; que os atributos de Deus podem ser separados de sua substância,
e que a substância divina pode chegar a ser degradada e contaminada.
O terceiro ponto incluído na doutrina bíblica da criação é, que foi
um ato de livre vontade de Deus. Ele era livre para criar ou não criar.
Isto se opõe à doutrina da criação necessária, que se expôs em diferentes
formas. Alguns consideram o universo dos fenômenos como uma
simples evolução do Ser absoluto por um processo necessário, como uma
planta se desenvolveu a partir de uma semente. Outros, com relação a
360
O escritor estava jantando um dia com Tholuck e cinco ou seis de seus alunos, quando tomou uma
faca da mesa e lhe perguntou: “É esta faca da substância de Deus?” E todos responderam: “Sim.”
361
Lectures on Metaphysics. Boston, edit. 1859, lecture xxxix. p. 533.
362
Discussions on Philosophy and Literature, etc. By Sir William Hamilton. New York, edit. 1853, p.
575.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 744
Deus como um espírito, fazem a vida e o pensamento essencial como
coeternos com Ele, e esta vida e o poder são de necessidade criativa. “A
essência de Deus”, diz Cousin, “consiste precisamente em Seu poder
criador.” 363 Mais uma vez, diz: 364 “Ele não pode senão produzir, de
modo que a criação deixa de ser ininteligível, e Deus não é mais sem um
mundo que um mundo sem Deus.” Como, entretanto, o pensamento é
espontâneo, Cousin, quando chamado à dar conta por estas declarações,
sustentou que ele não negou que a criação fosse livre.
Alguns dos que não admitem que Deus está submetido a qualquer
necessidade física ou metafísica para dar existência ao universo, ainda
afirma uma necessidade moral para a criação de criaturas sensíveis e
racionais. Deus, diz-se, é amor, mas é a natureza do amor a tempo para
comunicar-se, e para manter comunhão com outros que a Si mesmo.
Portanto, a natureza de Deus O impulsiona a pôr nas criaturas a
existência na qual e sobre a qual Ele pode alegrar-se. Outros dizem que
Deus é a benevolência, e portanto está numa necessidade moral de criar
os seres que Ele pode fazer feliz. Assim, Leibnitz diz: “Dieu n’est point
nécessité, métaphysiquement parlant, à la création de ce monde. . . . .
Cependant Dieu est obligé, par une nécessité morale, à faire les choses
en sorte qu’il ne se puisse rien de mieux.” 365
Segundo as Escrituras, Deus é autossuficiente. Ele não necessita
nada fora de Si mesmo para Seu bem-estar ou felicidade. Ele é em todos
os respeitos independente de Suas criaturas; e a criação do universo foi o
ato da livre vontade daquele Deus de quem o Apóstolo diz em Rm 11:36:
«Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas».
A fé comum da Igreja sobre este tema é claro e belamente expressos
por Melâncton: 366 “Quod autem res ex nihilo conditæ sint, docet hæc
sententia: ipse dixit et facta sunt; ipse mandavit, et creata sunt, id est
363
Cousin’s Psychology, New York, edit. 1856, p. 443.
364
Ibid. p. 447.
365
Théodicée, II. 201; Works, Berlin, 1840, p. 566.
366
Loci Communes de Creatione, edit. Erlanger, 1828, p. 48.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 745
dicente seu jubente Deo, res exortæ sunt: non igitur ex materia priore
exstructæ sunt, sed Deo dicente, cum res non essent, esse coeperunt; et
cum Joannes in quit: Omnia per ipsum facta esse, refutat Stoicam
imaginationem, quæ fingit materiam non esse factam.”
Mas enquanto que foi sempre a doutrina da Igreja que Deus criou o
universo do nada pela palavra do Seu poder, criação que foi instantânea e
imediata, isto é, sem a intervenção de segundas causas, entretanto se
admitiu geralmente que isto se deve entender somente da original
chamada da matéria à existência. Os teólogos, portanto, distinguiram
entre uma criação primeira e uma segunda criação; a primeira imediata, e
a segunda mediata. A primeira foi instantânea; a segunda gradual; a
primeira impede a ideia de qualquer matéria preexistente e qualquer
cooperação; a segunda admite e implica ambas as coisas. Há uma
evidente base para esta distinção no relato mosaico da criação. É-nos que
«No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem
forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas» [Gn 1:1-2]. Aqui se indica com clareza que o
universo, ao ser primeiro criado, estava em estado de caos, e que foi
gradualmente moldado pelo poder doador de vida e organizador do
Espírito de Deus, até chegar a ser o maravilhoso cosmos que hoje
contemplamos. A totalidade do primeiro capítulo de Gênesis, depois do
primeiro versículo, é um relato do progresso da criação; a produção da
luz; a formação da atmosfera; a separação da terra e da água, os produtos
vegetais da terra; os animais do mar e do ar; logo, os seres viventes da
terra; e, no final de tudo, o homem. Em Gn 1:27 diz-se que Deus criou o
homem – homem e mulher; em Gn 2:7 diz-se que «formou o SENHOR
Deus ao homem do pó da terra». Assim é evidente que a formação com
base em materiais preexistentes entra dentro da ideia escriturística de
criar. Todos reconhecemos a Deus como o autor de nosso ser, como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 746
nosso Criador, assim como nosso Preservador. Ele é nosso Criador, não
meramente porque Ele é o Criador dos céus e da terra, e porque tudo o
que eles contenham deva sua origem a Sua vontade e poder, mas também
porque, como ensina o Salmista, Ele conforma nosso corpo em segredo.
«Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram
escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando
nem um deles havia ainda» (Sl 139:16). E a Bíblia fala constantemente
de Deus como fazendo crescer a erva, e como sendo o verdadeiro autor
ou criador de tudo o que produz a terra, o ar ou a água. Por isso, segundo
as Escrituras há não apenas uma criação imediata, instantânea, ex-nihilo
pela simples palavra de Deus, mas também uma criação mediata,
progressiva; o poder de Deus operando em união com segundas causas.
Agostinho reconhece claramente esta ideia. “Sicut in ipso grano
invisibiliter erant omnia simul quæ per tempora in arborem surgerent; ita
ipse mundus cogitandus est, cum Deus simul omnia creavit, habuisse
simul omnia quæ in illo et cum illo facta sunt quando factus est dies: non
solum coelum cum sole et luna et sideribus, quorum species manet motu
rotabili, et terram et abyssos, quæ velut inconstantes motus patiuntur,
atque inferius adjuncta partem alteram mundo conferunt; sed etiam illa
quæ aqua et terra produxit potentialiter atque causaliter, priusquam per
temporum moras ita exorirentur, quomodo nobis jam nota sunt in eis
operibus, quæ Deus usque nunc operatur.” 367
Até o momento há pouco espaço para a diversidade de opinião. Mas
quando se faz a pergunta: Até quando esteve o universo na passagem de
seu estado caótico a seu estado organizado? Tal diversidade é
manifestada imediatamente. Segundo a interpretação mais óbvia do
primeiro capítulo do Gênesis, esta obra foi realizada em seis dias. Esta,
portanto, foi a crença comum dos cristãos. É uma crença baseada numa
interpretação do registro mosaico, que a interpretação, entretanto, deve-
se controlar não só pelas leis da linguagem, mas por fatos. Na atualidade
367
De Genesi ad Literam, v. 45; Works, edit. Benedictines, Paris, 1836, vol. iii. p. 321, d. 422 a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 747
isto é uma questão aberta. Os fatos necessários para sua decisão ainda
não foram devidamente autenticados. O crente pode esperar com calma o
resultado.
Os defensores teístas da hipótese nebular assumem que o universo
era um período indefinidamente longo ao chegar a seu estado atual.
Deus, com a intenção de produzir tal universo como o vemos ao nosso
redor, em lugar de uma superfície chamando o sol, a lua e as estrelas,
com todos os seus exércitos mobilizados, à existência, criou a matéria
nebulosa difusa, simplesmente através do espaço; investido com certas
propriedades ou forças, mas sim deu um movimento de rotação, e logo
permitiu que estas leis físicas sob sua guia elaborar o sistema harmônico
dos céus. Como Ele é o verdadeiro criador do carvalho desenvolvido da
bolota, de acordo com as leis da vida vegetal, como se Ele tinha
chamado à existência em sua maturidade por uma palavra, de modo que,
sustenta-se, Ele é o verdadeiro criador dos céus e a terra, na hipótese
nebular, como no suposto de criação instantânea. Entretanto, isto não é
mais que uma hipótese que nunca demandou assentimento geral entre os
cientistas. É, portanto, de nenhuma autoridade como uma norma para a
interpretação da Escritura.
A mesma teoria de criação gradual ou mediata, aplicou-se para
explicar todos os fenômenos dos reinos vegetal e animal. Isto se tem
feito de diferentes formas. Segundo todas estas teorias deve haver algo
para começar. Deve existir a matéria e suas forças. Deve ainda haver a
vida, e os organismos vivos. Para justificá-los somos obrigados a aceitar
a doutrina bíblica de uma criação imediata ex-nihilo pelo poder de Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 748
§ 3. Prova da doutrina.
368
Genesis, 1.5; Works, Wittenberg edit. 1555 (Latin), vol. vi. leaf 5, p. 2.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 749
potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas
as coisas. Nele, tudo subsiste » (Col 1:16, 17). «todas as coisas tu criaste,
sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas» (Ap
4:11). Todas as coisas de que se fala nesta passagem incluem todas as
coisas fora de Deus. Por isso, não pode haver matéria preexistente,
existindo independentemente de Sua vontade. Tudo o que está fora de
Deus é descrito como devendo sua existência à Sua vontade.
4. A mesma doutrina está incluída na doutrina da Escritura de que o
universo (τὰ πάντα) é de Deus (ἐκ θεοῦ), que Ele é sua fonte, não no
sentido gnóstico, mas no sentido consistente com outras representações
da Bíblia, que se referem à existência de todas as coisas ao mandato de
Deus. O universo, portanto, é “dEle” como sua causa eficiente.
5. O Apóstolo em Hb. 11:3, começa sua ilustração da natureza e o
poder da fé fazendo referência à criação como a grande verdade
fundamental de toda religião. se não houver criação, não há Deus. Se o
universo foi chamado à existência do nada, então deve haver um Ser
extramundano a quem deve sua existência. A criação é um fato que
conhecemos só pela revelação. O que o escritor sagrado afirma aqui é,
primeiro, que os mundos (αἰῶνες, tudo contido em tempo e espaço)
foram criados, posto ordem, e estabelecido, pela simples palavra ou
mandamento de Deus. Compare Sl 74.(73).16, na Septuaginta, σὺ
κατηρτίσω ἥλιον καὶ σελήνην. Em segundo lugar, sendo este o caso,
deduz-se que o universo não se formou a partir de qualquer substância
preexistente. Em terceiro lugar, Deus não é um mero anterior, mas sim o
Criador do universo organizado. A diferença entre os comentaristas na
interpretação desta passagem não afeta seu sentido geral. As palavras são
εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὰ βλεπόμενα γεγονέναι. A primeira pergunta é
se εἰς τὸ expressa o desenho, ou simplesmente a consequência. No
primeiro caso, o significado é que Deus criou o mundo com uma palavra
com o fim de que, quer dizer, com o fim de que os homens saibam que as
coisas que veem não foi feito do que já existia. Neste último caso,
limitaram-se a indicar como um fato, que à medida que a criação foi por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 750
uma palavra, não estava fora de qualquer substância preexistente. O
outro ponto duvidoso na passagem é a construção da partícula negativa
μή. Puede ser conectado con φαινομένων. Esta passagem é paralelo com
2Mac. 7.28, ἐξ οὐκ ὄντων ἐποίησεν αὐτὰ ὁ θεός; em latim: “Peto, nate,
ut aspicias ad coelum, et terram, et ad omnia, quæ in eis sunt; et
intelligas, quia ex nihilo fecit illa Deus, et hominum genus.”
Delitzsch, em seu comentário sobre esta epístola, mostra que nem a
posição da negativa antes da preposição, nem o uso de μή, em lugar de
οὐ é alguma objeção válida a esta interpretação. Outros, entretanto,
preferem conectar μή com γεγονέναι, quer dizer, “o mundo não foi feito
fora do extraordinário.” A sensação em ambos os casos é
substancialmente a mesma. Mas surge a pergunta: Qual é a antítese
implícita ao extraordinário? Alguns dizem o pensamento de Deus real,
ideal. Delitzsch diz devemos suprir a μὴ ἐκ φαινομένων, ἀλλ᾽ ἐκ νοητῶν,
“y estos νοητά son los tipos invisibles eternos, de los cuales, como su
base y fuente ideal, las cosas visibles por el fiat de Dios han procedido.”
Esto es platonismo, y extraño al modo escriturístico de pensar y enseñar.
O que é real é fenomenal, quer dizer, todas as substâncias, tudo o que
realmente existe se manifesta em alguma parte e de algum modo. A
antítese adequada, portanto, é a φαινομένων is οὐκ ὄντων. “Los mundos
no fueran hechos de cualquier cosa que se revela como existentes aún a
los ojos de Dios, sino de la nada.”
Em Rom. 4.17, descreve-se a Deus como Ele “chama as coisas que
não são como se fossem.” Chamar neste caso pode aqui ser tomado no
sentido de mandar, de controlar por uma palavra. A passagem então
expressa a mais alta ideia da onipotência. O real e o possível são
igualmente sujeitos a sua vontade; o não-existente, o meramente
possível, é tão obediente a Ele como a atual realidade. Ou Chamar como
em outros lugares pode significar, como o explica Wette, chamar à
existência. “Der das Nichtseiende als Seiendes hervorruft.” “Quem
chama as coisas que não existem à existência;” o ὡς ὄντα para ὡς
ἐσόμενα ou para εἰς τὸ εἶναι ὡς ὄντα. Neste texto Bengel diz: “Cogita
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 751
frequens illud ייהGên. 1. exprimitur transitus a non esse ad esse, qui sit
vocante Deo. Conf. Ez. 36.29.” 369
6. A doutrina da Escritura sobre este tema vê-se confirmada por
todas as passagens que atribuem um começo para o mundo. Por mundo
não se entende o κόσμος como diferente do caos, a forma como diferente
de substância, mas ambos juntos. Segundo a Bíblia não há nada eterno,
senão Deus. Ele e só Ele é o eterno. Este é seu título distintivo, —
Aquele que é, que era e sempre será. Quando o mundo, portanto,
começou a ser, e como o mundo inclui todas as coisas criadas por Deus,
não havia nada do que o mundo poderia ser feito. Foi, portanto, criado ex
nihilo. Isto se ensina no primeiro capítulo do Gênesis, “No princípio
(antes de haver alguma coisa) Deus criou o céu e a terra.” Em muitas
outras partes da Escritura um princípio se atribui ao mundo, como no Sl.
90:2, “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o
mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus.” Sl. 102:25 [TB], “Desde
o princípio lançaste os fundamentos da terra.” Em João 17:5, nosso
Senhor fala da glória que tinha com o Pai antes que o mundo existisse. A
criação do mundo é uma época. Então começou o tempo. O que foi antes
da fundação do mundo é eterno. O mundo, portanto, não é eterno, e se
não é eterno deve ter tido um princípio, e se todas as coisas tinham um
princípio, então deve ter havido uma criação ex-nihilo.
7. A doutrina da criação flui da infinita perfeição de Deus. Não
pode haver senão um Ser infinito. Se algo existe independentemente de
sua vontade, Deus é assim limitado. A ideia da dependência absoluta de
todas as coisas a partir de Deus impregna a Escritura e participa de nossa
consciência religiosa. O Deus da Bíblia é um Deus extramundano,
existindo fora de e antes do mundo, absolutamente independente dele,
sendo seu Criador, Preservador e Governador. Pelo que a doutrina da
criação é uma consequência necessária do Teísmo. Se negarmos que o
mundo deva sua existência à vontade de Deus, então a consequência
369
Gnomon, edit. Tübingen, 1759, p. 614.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 752
lógica pareceria ser o ateísmo, o hilozoísmo ou o panteísmo. Por isso,
por um lado, a Escritura faz esta doutrina tão proeminente, apresentando-
a na primeira página da Bíblia como o fundamento de todas as
posteriores revelações a respeito da natureza de Deus e Sua relação com
o mundo, e designando um dia de cada sete para que seja uma
comemoração perpétua do fato de que Deus criou os céus e a terra. E,
por outro lado, os defensores do Ateísmo ou do Panteísmo enfrentam a
doutrina da criação como o erro fundamental de toda falsa filosofia e
religião. “Die Annahme einer Schöpfung ist der Grund-Irrthum aller
falschen Metaphysik und Religionslehre, und insbesondere das Ur-
Princip des Juden- und Heidenthums.” 370
§ 4. Objeções à doutrina.
370
Fichte, v. sel. Leben, p. 160.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 753
temos que admitir ou que começou a ser, ou que é eterno. Mas as
dificuldades envoltas com esta última hipótese são, como vimos quando
argumentávamos a existência de Deus, muito maiores que as implicadas
na admissão de uma criação ex-nihilo. Foi em parte a dificuldade de
conceber a não-existente passagem à existência, e em parte a necessidade
de uma solução da questão sobre a origem do mal, que levou a Platão e
outros filósofos gregos a adotar a teoria da eternidade da matéria, que
eles consideravam como a fonte do mal; uma teoria que passou a Filo e
aos pais platonistas. A teoria das Escrituras, ou antes, a doutrina da
origem do mal, refere-se à agência livre das criaturas racionais, e
prescinde da preexistência de algo independente de Deus.
2. Uma objeção mais temível, pelo menos uma que teve muito mais
poder, é que a doutrina de uma criação no tempo é inconsistente com a
verdadeira ideia de Deus. Esta objeção apresenta-se em duas formas. Em
primeiro lugar, diz-se, que a doutrina da criação supõe uma distinção
entre vontade e poder, ou eficiência e propósito na mente divina. Escoto
Erígena 371 diz: “Non aliud est Deo esse et facere, sed ei esse id ipsum
est et facere. Coæternum igitur est Deo suum facere et coessentiale.”
Esta era a doutrina comum da teologia escolástica, que definiu Deus
como sendo actus purus, e negou qualquer distinção nEle entre essência
e atributos, poder e ação. Se esta postura da natureza de Deus é correta,
então a doutrina que supõe que o propósito eterno de Deus não entrou
em vigência desde a eternidade, deve ser falsa. Se Deus cria pelo
pensamento, formou o mundo, quando Ele o propôs. Em segundo lugar,
diz-se que a doutrina da criação é inconsistente com a natureza de Deus,
assim que assume uma mudança nEle da inação à atividade. O que
estava fazendo Deus, pergunta-se, desde a eternidade antes de criar o
mundo? Se Ele é o Criador e Senhor, Ele sempre deve ter sido tal, e
portanto, sempre deve ter sido um universo sobre o qual Ele governou.
Estas dificuldades levaram a diferentes teorias designadas a evitá-las.
371
De Divisione Naturæ, I. 74.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 754
Orígenes, como antes se mencionou, ensina que houve uma
sucessão eterna de mundos. Outros dizem que a criação é eterna, embora
devido à vontade de Deus. Ele a fez desde o princípio o que as Escrituras
dizem que o fez no princípio. Uma base desde a eternidade se situa no
pó, ou um selo da eternidade impresso em cera, seria a causa da
impressão, embora a impressão que seria coeterna com a base ou o selo.
Os panteístas fazem com que o mundo seja essencial para Deus. Ele
existe só no mundo. “Das gottgleiche All ist nicht allein das
ausgesprochene Wort Gottes (natura naturata) sondern selbst das
sprechende (natura naturans): nicht das erschaffene, sondern das selbst
schaffende und sich selbst offenbarende auf unendliche Weise.” 372 Quer
dizer: “O universo não é somente a aberta palavra de Deus, mas também
isso que fala, não o criado, mas sim a autocriação e a revelação de si
mesmo em formas sem fim.”
372
Schelling, by Strauss, Dogmatik, Vol. I. p. 658.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 755
seja uma causa absolutamente desconhecida, ou negar a Ele todos os
atributos de uma pessoa. O outro método é começar com a revelação que
Deus tem feito de Si mesmo na constituição de nossa própria natureza e
em Sua palavra santa. Este método conduz à conclusão de que Deus
pode pensar e agir, que nEle essência e atributos não são idênticos, que
poder e sabedoria, vontade e obra nEle, não são um e o mesmo, e que a
distinção entre potentia (poder inerente ) e o ato aplica-se a Ele como a
nós. Em outras palavras, que Deus é imensamente mais que a pura
atividade, e portanto que não é inconsistente com Sua natureza que Ele
deve fazer num momento o que não faz em outro.
2. Uma segunda observação que se fez nestas objeções é que
demonstram muito. Se válidos contra uma criação no tempo, são válidos
contra todo o exercício do poder de Deus no tempo. Então não há tal
coisa como o governo providencial, ou graciosas operações do Espírito,
ou resposta à oração. Se o que Deus faz Ele o faz desde a eternidade,
então, no que concerne a nós, Ele não faz nada. Se exaltamos as ideias
especulativas da compreensão acima de nossa natureza moral e religiosa,
e acima da autoridade das Escrituras, nós abandonamos toda base de fé e
conhecimento, e não temos diante de nós nada senão o cepticismo
absoluto ou o ateísmo. Estas objeções, portanto, são simplesmente de
nossa própria invenção. Formamos uma ideia do Ser Absoluto de nossa
própria cabeça, e logo rejeitamos tudo o que não está de acordo com ela.
Não têm, portanto, nenhuma força, salvo para o homem que as faz.
3. Os teólogos escolásticos, que se encontravam nas travas de tais
especulações filosóficas, estavam acostumados a responder a estas
reflexões por sutilezas contrárias. Inclusive Agostinho diz que Deus não
criou o mundo no tempo, porque antes da criação não havia o tempo. “Si
literæ sacræ maximeque veraces ita dicunt, in principio fecisse Deum
coelum et terram, ut nihil antea fecisse intelligatur, quia hoc potius in
principio fecisse diceretur, si quid fecisset ante coetera cuncta quæ fecit;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 756
procul dubio non est mundus factus in tempore, sed cum tempore.” 373
Isto é muito certo. Se o tempo se mede pela duração do movimento ou
sucessão, é evidente que antes da sucessão não pode haver tempo. É
difícil, entretanto, ver como isso alivia o assunto. O fato permanece que
o mundo não é eterno, e portanto, em nosso modo de concepção, há
infinitas idades durante as quais o mundo não era. Ainda a dificuldade é
puramente subjetiva, derivadas das limitações de nossa natureza, que
proíbem nossa compreensão de Deus, ou nossa compreensão da relação
de Sua atividade aos efeitos produzidos no tempo. Tudo o que sabemos é
que Deus opera e age, e que os efeitos de Sua atividade têm lugar
sucessivamente no tempo.
4. Quanto à objeção de que a doutrina da criação supõe uma
mudança em Deus, os teólogos respondem que não supõe mudança em
Sua vontade ou propósito, porque Ele Se propôs criar desde a eternidade.
A respeito disso Agostinho diz: 374 “Una eademque sempiterna et
immutabili voluntate res quas condidit et ut prius non essent egit,
quamdiu non fuerunt, et ut posterius essent, quando esse coeperunt.” Em
outras palavras, Deus não Se propôs criar desde a eternidade, antes,
desde a eternidade Ele tinha o propósito de criar. Como não há mudança
de propósito envolto na criação, assim não há mudança da inação à
atividade envolta na doutrina. Deus é essencialmente ativo. Mas não se
deduz que Sua atividade é sempre a mesma, quer dizer, que sempre deve
produzir os mesmos efeitos. O propósito eterno entra em vigor tal como
estava previsto desde o princípio. Estas objeções, entretanto, são meras
teias de aranha, mas são teias de aranha no olho, o olho de nosso
entendimento fraco. São melhor desfeitos que fechando os olhos, e a
abertura do que as Escrituras chamam “os olhos do coração.” Quer dizer,
em lugar de nos submeter à guia da inteligência especulativa, deveríamos
373
De Civitate Dei, XI. 6, edit. Benedictines, vol. vii. p. 444, c, d.
374
De Civitate Dei, XII. 17, edit. Benedictines, vol. v"ii. p. 508, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 757
consentir em a ser guiados pelo Espírito como Ele revela as coisas de
Deus em Sua palavra, e em nossa própria natureza moral e religiosa.
§ 5. O propósito da Criação.
A sucessão é a seguinte: —
“1. Luz.
“2. A divisão das águas debaixo das águas sobre a terra (a palavra
traduzida águas pode significar fluido).
“3. A divisão da terra e a água na terra.
“4. Vegetação; que Moisés, apreciando as características filosóficas
da nova criação diferenciando-a de anteriores substâncias inorgânicas,
que define como “a semente que havia em si mesmo.”
“5. O sol, a lua e as estrelas.
“6. Os animais inferiores, os que pululam nas águas, e os que se
arrastam e espécies voadoras da terra.
“7. Animais de rapina (“réptil” aqui significa rondar).
“8. O homem.
376
Manual of Geology. By James D. Dana, M. A., LL. D., Silliman Professor of Geology and Natural
History in Yale College, p. 743.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 765
“O relato reconhece na criação duas grandes épocas de três dias
cada uma, — uma Inorgânica e uma Orgânica. Cada uma destas épocas
abertas com a aparição da luz; a primeira, a luz cósmica, a segunda, luz
do sol para os usos especiais da terra.
“Cada época termina em ‘um dia’ de duas grandes obras — as duas
que se mostram distintas por ser solidariamente pronunciado ‘bom’. No
terceiro dia, esse fechar da Era Inorgânica, houve primeiro a divisão da
terra das águas, e depois a criação da vegetação, ou a instituição de um
reino da vida — uma obra muito diferente de todas as que a precedeu na
época. Assim que no sexto dia, terminando a era Orgânica, houve
primeiro, a criação dos mamíferos e, então uma segunda obra muito
maior, totalmente nova em seu elemento maior, a criação do Homem.
2. Criação da vegetação.
377
Página 745.
378
Página 746.
379
Bibliotheca Sacra for January, 1856, p. 110.
380
Os pontos de vista do professor Guyot são apresentados com certo detalhe pelo Rev. Rev. J.O.
Means, nos números da Bibliotheca Sacra de janeiro e abril de 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 767
Como a Bíblia é de Deus, a verdade é que não pode haver conflito
entre os ensinos das Escrituras e os fatos da ciência. Não é com os fatos,
mas com as teorias, que os crentes devem lutar. Muitas teorias de vez em
quando foram apresentadas, aparentemente ou realmente inconsistentes
com a Bíblia. Mas, estas teorias ou provaram ser falsas, ou se
harmonizaram com a Palavra de Deus, adequadamente interpretada. A
Igreja se viu obrigada mais de uma vez a modificar sua interpretação da
Bíblia para acomodar-se às descobertas da ciência. Mas isto se tem feito
sem fazer qualquer violência às Escrituras ou em qualquer grau
menosprezar sua autoridade. Esta mudança, entretanto, não pode efetuar-
se sem uma luta. É impossível que nosso modo de entender a Bíblia não
deva ser determinada por nossos pontos de vista dos temas de que trata.
Enquanto os homens criam que a Terra era o centro de nosso sistema, o
sol seu satélite, e as estrelas sua ornamentação, eles entenderam
necessariamente a Bíblia de acordo com essa hipótese. Mas quando se
descobriu que a Terra era só um dos satélites menores do sol, e que as
estrelas eram mundos, então a fé, embora a princípio cambaleou, logo
cresceu suficientemente forte para aceitar tudo, e se alegra ao ver que a
Bíblia e a Bíblia só de todos os livros antigos, estava em completo
acordo com estas revelações estupendas da ciência. E então devia
provar-se que a criação é um processo continuado através de incontáveis
anos, e que só a Bíblia de todos os livros da antiguidade reconheceram
esse fato, pois, como diz o professor Dana, a ideia de ela ser de origem
humana chegaria a ser “totalmente incompreensível.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 768
CAPÍTULO XI
PROVIDÊNCIA
§ 1. Preservação.
A natureza da preservação.
Esta doutrina, ensinada assim claramente nas Escrituras, é tão
consoante com a razão e com a natureza religiosa do homem, que não é
negada entre os cristãos. A única questão reside na natureza da eficiência
divina a que se tem que atribuir a existência continuada de todas as
coisas. A respeito desta questão há três opiniões gerais.
Primeiro, a dos que pressupõem que tudo deve atribuir-se ao
propósito original de Deus. Ele criou todas as coisas e determinou que
deveriam seguir sendo conforme as leis que Ele impôs sobre elas no
princípio. Não há necessidade, diz-se, de supor Sua contínua intervenção
para a preservação das mesmas. É suficiente que Ele não queira que
deixem de ser. Esta é a teoria adotada pelos Remonstrantes e geralmente
pelos Deístas dos tempos modernos. Segundo esta postura, Deus está
sentado em Seu trono nos céus, como mero espectador do mundo e de
suas operações, sem exercer uma influência direta na sustentação das
coisas que tem feito. Assim Limborch 381 descreve a preservação, como
sustentam muitos, que se limita a um “actus negativus . . . . [quo Deus]
essentias, vires ac facultates rerum creatarum non vult destruere; sed eas
vigori suo per creationem indito, quoad usque ille perdurare potest
relinquere.”
A este punto de vista se ha objetado, —
1. Que é, obviamente, oposto às representações da Bíblia. De
acordo com o ensino uniforme e que impregna as Escrituras, Deus não é
mais que um Deus de longe. Ele não é um mero espectador do universo
que Ele tem feito, mas sim está presente em qualquer parte em Sua
essência, conhecimento e poder. Para sustentar Sua mão a continuidade
de todas as coisas se referem continuamente, e se Ele retira Sua presença
381
Theologia Christiana, II. xxv. 7, edit. Amsterdam, 1700, p. 134.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 770
deixam de ser. Isto é tão claramente a doutrina da Bíblia que assim é
reconhecida por muitas posturas filosóficas que os obrigam a rejeitar a
doutrina por si mesmos.
2. É inconsistente com a dependência absoluta de todas as coisas de
Deus. Supõe-se que as criaturas têm em si mesmos um princípio de vida,
procedentes originariamente, com efeito, de Deus, mas capaz de seguir
sendo e o poder sem Sua ajuda. O Deus da Bíblia está em todas as partes
declarado ser a base todo-mantenedora de tudo o que é, de maneira que
se não se restabelecessem pela palavra de Seu poder, deixariam de ser.
As Escrituras expressamente distinguem o poder pelo qual as coisas
foram criadas a partir daquilo pelo que continuam. Todas as coisas não
só foram criados por ele, diz o Apóstolo, mas por Ele todas as coisas
subsistem. (Col. 1:17). Esta linguagem claramente ensina que o poder
onipotente de Deus preocupa-se tanto pela existência continuada, como
na criação original de todas as coisas.
3. Esta doutrina faz violência às convicções religiosas instintivas de
todos os homens. Inclusive os menos ilustrados vivem e agem sob a
convicção de dependência absoluta. Eles reconhecem a Deus como
presente e ativo em todas as partes. Se não o amam e confiam nEle, pelo
menos O temem e por instinto desprezam Sua ira. Não podem, sem
violentar a constituição de sua natureza, buscar a Deus como um Ser que
é um mero espectador das criaturas que devem sua existência à Sua
vontade.
385
Dogmengeschichle, II. Zweite Hälfte, pág. 288. edic. Leipzig, 1841.
386
Théodicée, II. 386; Opera, edit. Berlin, 1840, p. 615.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 775
premièrement, et qu’ étant crée, il produise avec moi mes mouvemens et
mes déterminations. Cela est insoutenable pour deux raisons: la première
est, que quand Dieu me crée on me conserve à cet instant, il ne me
conserve pas comme un être sans forme, comme une espèce ou quelque
autre des universaux de logique. Je suis un individu; il me crée et
conserve comme tel, étant tout ce que je suis dans cet instant avec toutes
mes dépendances.”
Fazer preservação, portanto, uma criação contínua, leva a
conclusões diante das verdades essenciais da religião, e em contradição
com nossas crenças necessárias. Estamos obrigados pela constituição de
nossa natureza a crer no mundo externo e na realidade das segundas
causas. Sabemos pela consciência de que somos os autores responsáveis
por nossos próprios atos, e que seguimos de forma idêntica à mesma
substância, pelo que não se criam do nada de momento a momento. Este
tema vai se expor mais uma vez ao tratar-se da teoria do Presidente
Edwards, e sua aplicação à relação entre Adão e sua raça.
§ 2. Governo.
Enunciado da doutrina.
A providência inclui não só a preservação, mas também o governo.
Este último inclui as ideias de desígnio e de controle. Supõe um fim a
alcançar, e a disposição e direção dos meios para sua realização. Se Deus
governa o universo, Ele tem algum grande fim, incluindo um número
infinito de fins subordinados, para com os quais é dirigido, e Ele tem que
controlar a sequência de todos os acontecimentos de maneira que
assegure o logro de todos os Seus propósitos. A respeito deste governo
providencial a Escritura ensina: (1) Que é universal, incluindo todas as
criaturas de Deus, e todas suas ações. O mundo externo, as criaturas
racionais e as irracionais, grandes e pequenas, comuns e extraordinárias,
estão igualmente e sempre sob o controle de Deus. A doutrina da
providência exclui do universo tanto a necessidade como o acaso, pondo
387
Hollaz, Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, p. 441.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 777
em seu lugar o controle universal e inteligente de um Deus infinito e
onipresente. (2) As escrituras ensinam deste modo que este governo de
Deus é poderoso. É o domínio universal da Onipotência que assegura o
cumprimento de Seus desígnios, que abrangem em sua esfera a tudo o
que ocorre. (3) Que é sábio; o que significa não só que os fins que Deus
tem em vista são consequentes com Sua infinita sabedoria, e que os
meios empregados estão sabiamente adaptados a seus respectivos
objetos, mas também que Seu controle é ajustado à natureza das criaturas
sobre as quais é exercido. Ele governa o mundo material de acordo com
leis fixas que Ele mesmo estabeleceu, os animais irracionais por seus
instintos, e as criaturas racionais segundo sua natureza. (3) A
providência de Deus é santa. Isto é, nada nos fins propostos, nem nos
meios adotados nem na agência empregada é inconsequente com Sua
infinita santidade, ou que não seja demandado pela mais sublime
excelência moral. Isto é tudo o que as Escrituras revelam a respeito deste
tema assaz importante e difícil. E aqui se poderia muito bem o tema ser
permitido descansar.
É suficiente para nós saber que Deus governa todas as Suas
criaturas e todas as suas ações, e que seu governo enquanto
absolutamente eficaz, é imensamente sábio e bom, dirigido a assegurar o
mais alto fim, e perfeitamente consistente com Sua própria perfeição e
com a natureza de Suas criaturas. Mas os homens insistiram em
responder as perguntas: Como Deus governa o mundo? Qual é a relação
entre Sua agência e a eficiência das segundas causas? E sobre tudo:
Como pode o controle absoluto de Deus ser reconciliado com a liberdade
dos agentes racionais? Estas são perguntas que nunca se pode resolver.
Mas como os filósofos insistem em responder a elas, faz-se necessário
que os teólogos examinem essas respostas, e mostrem sua falácia quando
entram em conflito com os fatos provados da revelação e da experiência.
Antes de considerar a mais importante das teorias que se têm proposto
para explicar a natureza do governo providencial de Deus, e sua relação
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 778
com o mundo, será adequado apresentar um breve esboço do argumento,
em apoio da verdade da doutrina como se assinalou anteriormente.
A. Prova da doutrina.
Sobre as nações.
A Bíblia ensina que o governo providencial de Deus se estende
sobre as nações e comunidades humanas. Sl 66:7, «Ele, em seu poder,
governa eternamente; os seus olhos vigiam as nações; não se exaltem os
rebeldes». Dn 4:35: «Todos os moradores da terra são por ele reputados
em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra». Dn 2:21: «É ele quem muda o tempo e as estações,
remove reis e estabelece reis». Dn 4:25: «O Altíssimo tem domínio sobre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 785
o reino dos homens e o dá a quem quer». Is 10:5, 6. «Ai da Assíria, cetro
da minha ira! A vara em sua mão é o instrumento do meu furor. Envio-a
contra uma nação ímpia ». Versículo 7: «Ela, porém, assim não pensa, o
seu coração não entende assim». Versículo 15: «Porventura, gloriar-se-á
o machado contra o que corta com ele? Ou presumirá a serra contra o
que a maneja? Seria isso como se a vara brandisse os que a levantam ou
o bastão levantasse a quem não é pau!» As Escrituras estão repletas desta
doutrina. Deus usa às nações com o controle absoluto com que um
homem emprega uma vara ou um cajado. Estão em suas mãos, e as
emprega para cumprir seus propósitos. As quebra a partes como a
vasilha de um oleiro ou as exalta à grandeza, segundo sua boa vontade.
Sobre os indivíduos.
A providência de Deus se estende não só sobre as nações mas
também sobre os indivíduos. As circunstâncias do nascimento de cada
homem, de sua vida e morte, estão ordenadas por Deus. Quer nasçamos
numa terra pagã ou cristã, na Igreja ou fora dela; quer sejamos fracos ou
fortes; com poucos ou muitos talentos; quer sejamos prósperos ou que
estejamos afligidos; quer vivamos mais ou menos tempo, isto não são
questões determinadas pelo acaso, nem por uma sequência cega de
acontecimentos, mas pela vontade de Deus. 1Sm 2:6, 7: «O SENHOR é
o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir. O SENHOR
empobrece e enriquece; abaixa e também exalta». Is 45:5: «Eu sou o
SENHOR [o soberano absoluto], e não há outro; além de mim não há
Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até
ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou
o SENHOR, e não há outro». Pv 16:9: «O coração do homem traça o seu
caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos». Sl 75:6, 7: «Porque não
é do Oriente, não é do Ocidente, nem do deserto que vem o auxílio. Deus
é o juiz [governante]; a um abate, a outro exalta». Sl. 31:15: «Nas tuas
mãos, estão os meus dias [as vicissitudes de minha vida]». At 17:26:
Deus «de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 786
terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos [isto é, os
pontos de inflexão da história] e os limites da sua habitação».
388
De Divisione Naturæ, lib. iii. 19, edit. Monast. Guestphal. 1838, p. 240.
389
See Rixner’s Geschichte der Philosophie, vol. ii. § 40, p. 72.
390
Summa Theologiæ, part I., quest. cv., art. 5, edit. Cologne, 1640, pp. 192, 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 791
391
criatura de Deus. “Omnis virtus,” ele diz, “numinis virtus est, nec
enim quicquam est quod non ex illo, in illo et per illud sit, imo illud
ipsum sit — creata inquam virtus dicitur, eo quod in novo subiecto et
nova specie, universalis aut generalis ista virtus exhibetur. Deus est
causa rerum universarum, reliqua omnia non sunt vere causæ. 392 Constat
causas secundas non rite causas vocari. . . . . Essentiam, virtutem, et
operationem habent non suam sed numinis. Instrumenta igitur sunt. 393
Viciniora ista, quibus causarum nomen damus, non jure causas esse sed
manus et organa, quibus æterna mens operatur.” 394 Calvino não foi tão
longe, embora utilize uma linguagem como a seguinte, ao falar das
coisas inanimadas: “Sunt nihil aliud quam instrumuenta, quibus Deus
assidue instillat quantum vult efficaciæ et pro suo arbitrio ad hanc vel
illam actionem flectit et convertit.” 395 Admite, entretanto, que a matéria
tem suas próprias propriedades, e segundo causa uma eficácia real. A
tendência geral da filosofia cartesiana, que entrou em voga no século
XVII, ia fundir as segundas causas na primeira causa, e portanto dirigiu-
se rumo ao idealismo e ao panteísmo. Malebranche admitiu, no
testemunho da Escritura, que declara que Deus criou o céu e a terra, que
o mundo exterior tem uma existência real. Mas negou que se poderia
produzir algum efeito, ou que a alma pode de algum modo operar sobre a
matéria. Vemos todas as coisas em Deus. Quer dizer, quando
percebemos algo fora de nós mesmos, a percepção não se deve à
impressão causada pelo objeto externo, mas sim à agência imediata de
Deus. E a atividade de nossa mente é só uma forma da atividade de
Deus. O primeiro fruto deste sistema foi declarado idealismo, como
todas as provas da existência de um mundo exterior foi destruído, e o
391
De Providentia Dei; Works, edit. Turici, 1832, vol. iv. p. 85.
392
Ibid. Page 95.
393
Ibid. Page 96.
394
Zwingle, IV. 97.
395
Institutio, I. xvi. 2, edit. Berlin, 1834, vol. i. p. 135.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 792
segundo é o panteísmo de Espinoza, que Leibnitz chama cartesianismo
en outre.
É preciso reconhecer que o desejo dos devotos dos teólogos
reformados para vindicar a soberania e a supremacia de Deus, em
oposição a todas as formas da doutrina pelagiana e semipelagiana, levou
a muitos deles a ir a um extremo em depreciar a eficiência das segundas
causas, e na exaltação indevida da onipresença de Deus. Schweizer 396
representa a grande massa dos teólogos reformados como ensinando que
a dependência das criaturas do Criador substitui toda a eficácia das
segundas causas. “Die schlechthinige Abhängigkeit des Bestehens und
Verlaufes der Welt gestattet keinerlei andere Ursächlichkeiten als nur die
göttliche, so dass Zwischenursachen nur seine Instrumente und Organe
sind, er die durch ihre Gesammtheit wie durch alle einzelnen
Zwischenursachen allein hindurchwirkende Causalität. Dieses ist er
vermöge der præsentia essentialis numinis oder doch divinæ virtutis,
welche das Sein alles Seins, die Bewegung aller Bewegungen ist.” Esta é
a doutrina do próprio Schweizer, como é a de toda a escola de
Schleiermacher, a que pertence; mas que não é a doutrina dos teólogos
reformados se desprende de todas seus ensino da doutrina de concursus,
que Schweizer reconhece ser incompatível com a hipótese de que Deus é
a única causa de todas as coisas. Foi esta falsa hipótese de que nenhuma
criatura pode agir; que a dependência de Deus é absoluta; e que todo o
poder por mais que se manifeste é o poder de Deus, o que levou a
doutrina de uma criação contínua, como se falou ao falar da eficácia de
Deus na preservação do mundo. Isso levou também à doutrina das causas
ocasionais, quer dizer, a teoria de que o que chamamos segundas causas
não têm nenhuma eficácia real, mas sim só são as ocasiões em que Deus
manifesta o Seu poder numa maneira particular. O mundo da matéria e a
mente existe na verdade, mas é perfeitamente inerte. É só o instrumento
ou meio pelo qual o coletor e a eficiência presente em todas as partes de
396
Glaubenslehre der Reformirten Kirche, p. 318.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 793
Deus se manifesta. “Consideremus,” diz Leibnitz, “eorum sententiam,
qui rebus creatis veram, et propriam actionem adimunt, . . . . qui putant
non res agere, sed Deum ad rerum præsentiam, et secundum rerum
aptitudem; adeoque res occasiones esse, non causas, et recipere, non
efficere aut elicere.” 397
Os mesmos pontos de vista da dependência das criaturas de Deus é
o fundamento de todo o sistema do Dr. Emmons. Ele sustentou que se
qualquer criatura fosse dotada com a atividade ou poder de agir, seria
independente de Deus. “Não podemos conceber”, diz, “que até a própria
onipotência é capaz de formar agentes independentes, porque isto seria
dotá-los da divindade. E visto que todos os homens são agentes
dependentes, todos os seus movimentos, exercícios ou ações devem ser
originários de uma eficácia divina.” Isto não deve entender-se como uma
simples afirmação da necessidade de um concursus divino para a
operação das segundas causas, porque Emmons expressamente ensina
que Deus cria todas as vontades da alma, e efetua por Seu poder
onipotente todas as mudanças no mundo material.
Objeções a esta doutrina da dependência.
A toda esta doutrina, que assim nega a existência de segundas
causas, e se refere a toda ação tanto no mundo material e espiritual a
Deus, é que foi objetada: (1.) Que se baseia numa hipótese arbitrária.
Inicia-se com a ideia a priori de um absoluto e infinito, e rechaça tudo o
que é inconsistente com esta ideia. Não se pode provar que é
inconsistente com a natureza de Deus que Ele deve pôr em existência
criaturas capazes de efetuar a ação. É suficiente que tais criaturas devem
derivar todos os seus poderes de Deus, e ser sujeita ao Seu controle em
todas as suas tarefas. (2.) Esta doutrina contradiz a consciência de cada
homem. Sabemos, tão certo como sabemos de qualquer maneira, que
somos agentes livres, e que a agência livre é o poder de
autodeterminação, ou de originar nossos próprios atos. Contradiz não só
397
De ipsa Natura, 10; Works, edit. Berlin, 1840, p. 157.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 794
nossa autoconsciência do eu, mas também as leis da crença que Deus
imprimiu em nossa natureza. É uma dessas leis que devemos crer na
realidade dos objetos de nossos sentidos, e que a crença consiste na
convicção de que não só são na realidade, mas também são as causas das
impressões que fazem a nossa sensibilidade. É pôr a filosofia em conflito
com o senso comum, e com a convicção universal dos homens, ensinar
que tudo isto é um engano, para que quando vemos uma árvore estamos
errados, que Deus cria imediatamente essa impressão em nossa mente;
ou que quando vamos mover o poder não está em nós, que não somos
nós os que se movem, mas sim Deus que nos move, ou quando
pensamos, que é Deus que cria o pensamento. (3.) Como se assinalou
antes, este sistema leva naturalmente, e deu lugar ao idealismo e ao
panteísmo, e portanto é totalmente inconsistente com toda liberdade e
responsabilidade, e destrói a possibilidade das distinções morais.
De acordo com este ponto de vista, não existem coisas tais como as
forças físicas. A mente do homem está dotada da faculdade de produzir
efeitos, mas à parte da mente, divina ou criada, não há eficiência no
universo. Esta doutrina encontra seu caminho em muitas investigações
teológicas como filosóficas. Assim o Reitor Tulloch diz, uma causa é
“coincidente com um agente.” Isso “portanto implica a mente. Mais
definitivamente, e, em sua concepção completa, implica uma vontade
racional.” 398 As causas físicas, portanto, referem a sempre operante
vontade de Deus. “A ideia da causalidade”, diz ele, “achamos que se
resolvem na operação de uma mente racional ou vontade na natureza.” 399
398
Theism; The Witness of Reason and Nature to an All-Wise and Beneficent Creator, by the Rev.
John Tulloch, D. D., Principal and Primarius Professor Theology, St. Mary’s College, St. Andrews,
edit. New York, 1855, p. 43.
399
Ibid. p. 47.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 795
A providência não é nada mais que uma “continuação adiantada dessa
[originalmente criativa] eficiência.”400
O Dr. Tulloch muito corretamente assume que uma causa é a que
tem o poder de produzir efeitos; e que temos nossa ideia de poder, e
portanto da natureza da causalidade, de nossa própria consciência de
eficiência. Portanto, ele infere que como a mente é a única causa da qual
temos conhecimento imediato, pelo que é a única existe. Mas isto é um
non-sequitur. Essa mente é uma causa, há provas de que a eletricidade
não pode ser uma causa. Os atos, tal como os entende a massa dos
homens são, em primeiro lugar, de que somos conscientes da eficiência,
ou do poder de produzir efeitos. Em segundo lugar, o exercício deste
poder desperta, ou dá ocasião à intuição da verdade universal e
necessária que todo efeito deve ter uma causa adequada. Em terceiro
lugar, como vemos ao nosso redor os efeitos de diferentes tipos, é uma
lei da razão que devem ser remetidos às causas de diferentes tipos. A
evidência de que esta é uma lei da razão, é o fato de que todos os homens
assumem causas físicas para dar conta dos efeitos físicos, o mais
uniformemente quanto assumem a mente dos efeitos inteligentes. A
teoria, entretanto, que resolve todas as forças em todas as partes a
vontade dispositiva de Deus tem grandes atrativos. Tem uma forma de
escapar de muitas das dificuldades que afetam a questão da relação de
Deus com o mundo. Inclusive os homens dedicados ao estudo da
natureza se sentem tão desconcertado por tais questões, como: O que é a
matéria? ou O que é a força? que se dispõem, em muitos casos, de fundir
todas as coisas em Deus. O duque do Argyle diz: “A ciência, na doutrina
moderna da Conservação da Energia e a Convertibilidade das Forças, já
se está tornando algo como um firme controle da ideia de que todas as
forças não são senão formas ou manifestações de uma Central da Força
de alguma uma Fonte principal de Poder. Sir John Herschel não hesitou
em dizer que “não é mais que razoável considerar a Força da Gravidade
400
Ibid. p. 93.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 796
como consequência direta ou indireta, de uma consciência ou uma
vontade existente em alguma parte.” E certamente, embora não
possamos identificar a força em todas as suas formas com as energias
diretas de uma vontade onipresente e onipresente, é pelo menos no mais
alto grau antifilosófico assumir o contrário, — de falar ou de pensar que
se as Forças da Natureza eram independentes de ou até separadas de do
Poder do Criador.” 401
Observou-se numa página anterior que Wallace ainda mais
decididamente adota a mesma opinião. Em seu livro sobre “Seleção
Natural”, depois de ter defendido a teoria de Darwin sobre a origem das
espécies (exceto em sua aplicação ao homem), vem no final a iniciar a
pergunta: O que é a matéria? Esta pergunta ele responde dizendo: “A
matéria é essencialmente a força, e nada mais que força. A matéria,
como popularmente se entende, não existe, e é, de fato, filosoficamente
inconcebível.” 402 A pergunta seguinte é, O que é a força? A resposta
definitiva a isto é, que é a vontade de Deus. “Se”, diz Wallace, “traçamos
uma força, por minuto, a uma origem em nossa própria vontade,
enquanto que não temos conhecimento de nenhuma outra causa primária
da força, não parece uma improvável conclusão que de toda força pode
ser a força de vontade, e assim todo o universo não é só dependente de,
mas em realidade, a VONTADE de inteligências superiores ou de uma
Inteligência Suprema.” 403
Esta teoria é substancialmente a mesma que se mencionou
anteriormente. Só diferem quanto ao alcance de sua aplicação. De acordo
com a doutrina da “Dependência Absoluta”, Deus é o único agente no
universo, de acordo com a doutrina que se expôs, Ele é o único agente,
ou Sua vontade é a única energia no mundo material. A matéria não é
nada. “Não existe.” não é mais que a força, e força é Deus; por isso o
mundo externo é Deus. Em outras palavras, todas as impressões e
401
Reign of Law, 5th ed. London, 1867, p. 123.
402
Natural Selection, pp. 365, 366.
403
Contribution to the Theory of Natural Selection, by Alfred Russel Wallace. London, 1870, p. 368.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 797
sensações feitas sobre nós, como supomos, pelas coisas fora de nós, são
de fato realizados pelo poder imediato de Deus: não há terra, não há
estrelas, não há homens ou mulheres, não há pais ou mães. Os homens
não podem crer nisso. Mediante a constituição de nossa natureza, que
ninguém pode alterar, vemo-nos forçados a crer na realidade do mundo
externo; que a matéria é, e essa é a causa imediata dos efeitos que
atribuímos à sua agência.
Outra hipótese feita pelos filósofos, é que uma substância não pode
agir sobre outra substância de natureza distinta; o que se estende não
pode agir sobre o que não se estende; a matéria não pode agir na mente,
nem a mente sobre a matéria. É, entretanto, um fato de consciência e da
observação diária, que, ao menos aparentemente, os objetos materiais
pelos quais estamos rodeados são as causas de certas sensações e
percepções, quer dizer, agem em nossas mentes, e não é menos uma
questão de consciência de que nossas mentes agem, ao menos isso
parece, sobre nossos corpos. Podemos nos mover, podemos controlar a
ação de todos os nossos músculos voluntários. Isto, entretanto, deve ser
uma ilusão se a matéria não pode agir na mente nem a mente sobre a
matéria. Para dar conta da relação em que a mente e a matéria estão entre
si neste mundo, e pela aparente ação do um sobre o outro, Leibnitz
adotou a teoria de uma harmonia preestabelecida. Deus criou dois
mundos independentes, um da matéria, o outro da mente, cada um tem
sua própria natureza e seu próprio princípio de atividade. Todas as
mudanças na matéria, todas as ações de nossos corpos, determina-se a
partir de uma fonte dentro da matéria e dentro de nossos corpos, e se
produziria na mesma ordem em que efetivamente se levam a cabo se a
mente não criada veio à existência. Da mesma maneira, todos os estados
diferentes da mente humana, todas as suas sensações, as percepções e
volições são determinados do interior, e seriam o que são quando o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 798
mundo exterior não existia. Deveríamos ver as mesmas cenas, escutar os
mesmos sons, ter as mesmas vontades para mover tal ou qual músculo,
se não houvesse nada que ver, ouvir ou mover. Estes dois mundos, assim
automaticamente movidos, coexistem e estão feitos para agir em
harmonia por um arranjo prévio divinamente ordenado. Daí a sensação
de queimação surge na mente, não porque o fogo age no corpo e o corpo
sobre a mente, mas sim porque, por esta harmonia preestabelecida, estes
eventos fazem-se coincidir no tempo e no espaço. Desde a eternidade,
determinou-se que eu deveria ter uma vontade para mover o braço num
momento determinado, e desde a eternidade, determinou-se que o braço
deveria mover-se nesse momento. Os dois eventos, portanto, concorrem
como antecedente imediato e consequente, mas a vontade não se situa
em relação causal com a moção. A vontade não se teria formado se não
tivesse existido braço para mover-se, e o braço se moveu, apesar da
vontade nunca se ter formado. A mão de Leibnitz teria escrito todos os
seus livros maravilhosos de matemática e de filosofia, e realizado todas
as suas controvérsias com Bayle, Clarke e Newton, apesar de que sua
alma nunca teria sido criada. 404
E. A doutrina de Concursus.
404
See his Systeme Nouveau de la Nature; Works, edit. Berlin, 1840, p. 124.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 799
conservat, sed et easdem movet et applicat ad agendum. Præcursus etiam
dicitur, nam causæ secundm non movent nisi motæ.” 405 “Prima causa,”
diz Turrettin, “est primum movens in omni actione, ideo causa secunda
non potest movere, nisi moveatur, nec agere, nisi acta a prima; alioqui
erit principium sui motus, et sic non amplius esset causa secunda, sed
prima.” 406 Na produção de cada efeito, portanto, não é a eficiência de
duas causas, a primeira e segunda. Mas isto não deve ser considerado
como envolvendo duas operações, como quando dois cavalos são unidos
a um mesmo veículo, que se puxou em parte por um e em parte pelo
outro. A eficiência da primeira causa está na segunda, e não só com ela.
Deus “immediate influit in actionem et effectum creaturæ, ita ut idem
effectus non a solo Deo, nec a sola creatura, nec partim a Deo, partim a
creatura, sed una eademque efficientia totali simul a Deo et creatura
producatur, a Deo videlicet ut causa universali et prima, a creatura ut
particulari et secunda.” 407 “Non est re ipsa alia actio influxus Dei, alia
operatio creaturæ, sed uma et indivsibilis actio, utrumque respiciens et
ab utroque pendens, a Deo ut causa universali, a creatura ut
particulari.” 408
Este concursus está representado, em primeiro lugar, como geral;
uma influência do poder onipresente de Deus, não só mantendo as
criaturas e suas propriedades e poderes, mas emocionando cada um para
agir de acordo com sua natureza. É análogo à influência geral do sol que
afeta a diferentes objetos de diferentes maneiras. O mesmo raio solar
abranda a cera e endurece a argila. Chama a força germinativa de todas
as sementes em ação, mas não determina a natureza dessa ação. Todas as
sementes são assim estimuladas, mas uma se desenvolve como trigo, a
outra como cevada, não pela força solar, mas devido ao seu caráter
peculiar. Isto é tudo o que os franciscanos e os jesuítas entre os
405
Mares, Collegium Theologicum, loc. iv. 29; Gröningen, 1659, p. 42, b.
406
Locus VI. quæstio, v. 7, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 455.
407
Quenstedt, Theologia, cap. XIII. 1.15, edit. Leipzig, 1715, Vol. I. p. 760.
408
Ibid. cap. XIII. ii. 3, vol. i. p. 782.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 800
romanistas e os remonstrantes entre os protestantes permitem. Os
tomistas e os dominicanos no primeiro caso, e os teólogos agostinianos
em geral, insistem em que, além deste concursus geral, também há uma
anterior, simultânea, e a determinação de concurso da primeira, e em
todas as causas em segundo lugar, tanto na causa como no efeito, quer
dizer, não só estimulando à ação, mas também mantendo, guiando e
determinando o ato, de modo que seu ser como é, e não de outra, refere-
se à primeira, e não à segunda causa em cada caso. Neste ponto,
entretanto, os teólogos Reformados não estão de acordo, como Turrettin
admite. Ele diz: “Ex nostris quidam concursum tantum prævium volunt
quoad bona opera gratiæ, sed in aliis omnibus simultaneum sufficere
existimant.” 409
Por concursus anterior entende-se, diz ele: “Actio Dei, qua in
causas earumque principia influendo, creaturas excitat, et agendum
præmovet, et ad hoc potius quam ad illud agendum applicat. Simultaneus
vero est per quam Deus actionem creaturæ, quoad suam entitatem, vel
substantiam producit; quo una cum creaturis in earum actiones et
effectus influere ponitur, non vero in creaturas ipsas.” 410 Admite-se que
estes não diferem realmente, “quia concursus simultaneus, nihil aliud est,
quam concursus prævius continuatus.” Este concursus anterior também
se chama predeterminação. “Id ipsum etiam nomine Prædeterminationis,
seu Præmotionis solet designari, qua Deus ciet et applicat causam
secundam ad agendum, adeoque antecedenter ad omnem operationem
creaturæ, seu prius natura et ratione quam creatura operetur, eam realiter
et efficaciter movet ad agendum in singulis actionibus, adeo ut sine hac
præmotione causa secunda operari non possit, ea vero posita impossibile
sit in sensu composito causam secundam non illud idem agere ad quod a
prima causa præmovetur.” 411
409
Locus VI. quæst. v. 6.
410
Locus VI. quæst. v. 5.
411
Turrettin, locus VI. quæst. v. 6.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 801
Concursus, portanto, assume, (1.) Que Deus dá à segunda potência
o poder de agir. (2.) Que Ele lhes mantém no ser e no vigor. (3.) Que Ele
estimula e determina as segundas causas para que aja. (4.) Que Ele lhes
dirige e governa até o fim predeterminado. Tudo isto, entretanto,
entendeu-se de maneira que:
1. O efeito produzido ou o ato realizado refere-se à segunda, e não à
primeira causa. Quando o fogo queima, que é o fogo, e não a Deus que
se deve atribuir o efeito. Quando um homem fala, é o homem e não
Deus, quem pronuncia as palavras. Quando a lua levanta a onda da maré,
e a onda se precipita um casco de navio na costa, o efeito deve-se
atribuir, não à lua, mas sim ao impulso da onda. A força da gravidade
age de maneira uniforme sobre toda a matéria ponderável, e ainda, que a
força pode ser indefinidamente variada nos efeitos que se produzem por
causas que intervêm, quer sejam necessárias ou livres.
2. A doutrina do concursus não nega a eficiência das segundas
causas. Elas são as verdadeiras causas, com uma principium agendi em
si mesmos.
3. A agência de Deus nem substitui, nem interfere de maneira
nenhuma com a eficácia das segundas causas. “Ad providentiam divinam
non pertinet, naturam rerum corrumpere, sed servare: unde omnia movet
secundum eorum conditionem: ita quod ex causis necessariis per
motionem divinam consequuntur effectus ex necessitate; ex causis autem
contingentibus sequuntur effectus contingentes. Quia igitur voluntas est
activum principium non determinatum ad unum, sed indifferenter se
habens ad multa, sic Deus ipsam movet, quod non ex necessitate ad
unum determinat, sed remanet motus ejus contingens et non necessarius,
nisi in his ad quæ naturaliter movetur.” 412 “Concurrit Deus cum
naturalibus ad modum causæ naturalis, cum causis liberis per modum
causæ liberæ.” 413 “Duo sunt causarum genera, aliæ definitæ et generales,
412
Aquinas, Summa, part II. i. quæst. x. art. 4, edit. Cologne, 1640, p. 22 of second set.
413
Quenstedt, cap. XIII. i. 15, vol. I. p. 761.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 802
quæ eodem modo semper agunt, ut ignis qui urit, sol qui lucet; aliæ
indefinitæ et liberæ, quæ possunt agere vel non agere, hoc vel illo modo
agere: ita Deus naturam earum conservat, et cum illis juxta eam in
agendo concurrit; cum definitis, ut ipse eas determinet sine
determinatione propria; cum indefinitis vero et liberis, ut ipsæ quoque se
determinent proprio rationis judicio, et libera voluntatis dispositione,
quam Deus non aufert homini, quia sic opus suum destrueret, sed
relinquit et confirmat.” 414 No mesmo sentido a “Confissão de
Westminster,” 415 diz: Deus dispõe eventos “para cair, segundo a natureza
das segundas causas, tão necessária, livre ou contingentemente.”
4. Disto se deduz que a eficiência ou agência de Deus não é a
mesma com relação a todo tipo de eventos. Uma coisa é cooperar com as
causas materiais, outra cooperar com os agentes livres. É uma coisa com
relação aos atos bons, e outra com relação às más ações; uma coisa na
natureza, e outra na graça.
5. O concursus divino não é inconsistente com a liberdade dos
agentes livres. “Moveri voluntarie est moveri ex se, id est, a principio
intrinseco. Sed illud principium intrinsecum potest esse ab alio principio
extrinseco. Et sic moveri ex se, non repugnat ei, quod movetur ab alio.
— Illud quod movetur ab altero, dicitur cogi, si moveatur contra
inclinationem propriam: sed si moveatur ab alio quod sibi dat propriam
inclinationem, non dicitur cogi. Sic igitur Deus movendo voluntatem,
non cogit ipsam: quia dat ei ejus propriam inclinationem.” 416
Isto é indubitavelmente verdade. Nada é mais certo segundo as
Escrituras que Deus é o autor da fé e do arrependimento. Eles são Seus
dons. Eles são bênçãos pelos quais oramos, e que Ele promete.
Entretanto, nada é mais certo segundo a consciência, de que a fé e o
arrependimento são nossos atos por própria vontade. Portanto moveri ab
414
Turrettin, locus VI. quæst. vi. 6, edit. Edinburgh, 1847, vol. I. p. 460.
415
Cap. V. sect. 2.
416
Aquino, Summa, part I. quæst. CV, art. 4. edit. Cologne, 1640, p. 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 803
417
alio não é incompatível com moveri ex se. Neste ponto Turrettin diz:
“Cum providentia non concurrat cum voluntate humana, vel per
coactionem, cogendo voluntatem invitam, vel determinando physice, ut
rem brutan et cæcam absque ullo judicio, sed rationaliter, flectendo
voluntatem modo ipsi convenienti, ut seipsam determinet, ut causa
proxima actionum suarum proprio rationis judicio, et spontanea
voluntatis electione; eam libertati nostræ nullam vim inferre, sed illam
potius amice fovere.”
6. Todos os defensores da doutrina do concursus admitem que a
grande dificuldade que está presente é em referência ao pecado. A
dificuldade não está tanto com relação à responsabilidade do pecador. Se
o pecado for seu próprio ato, e se o concursus divino não interfere com
sua liberdade, não interfere com sua responsabilidade. Quando Deus por
Sua graça determina a vontade de Seu povo aos atos santos, a santidade é
deles. Isso constitui o seu caráter. Quando Deus dá beleza a um homem,
ele é belo. E se Sua cooperação nos pecados dos homens deixa sua
liberdade no pecado irreprochável, são tão pecaminosos como se
realmente não existisse essa cooperação. Esta não é a dificuldade. A
verdadeira pergunta é, como pode a cooperação de Deus no pecado
reconciliar-se com sua própria santidade? Podemos ver facilmente como
Deus pode cooperar nas boas ações, e alegrar-se na bondade que é Seu
dom; mas como pode Ele assim concorrer em atos pecaminosos como
não só para preservar o pecador no exercício de sua capacidade de agir,
mas também para estimular à ação, e determinar seu ato de ser o que é, e
não de outra maneira? Esta dificuldade foi, como se assinalou,
reconhecida livremente. Conheceu-se mediante a definição de pecado
como mero defeito. É uma falta de conformidade com a lei moral. Como
tal, não requer uma causa eficiente, mas sim, só uma causa deficiente.
Deus é a fonte imediata ou remotamente a eficiência de todos, mas não é
a origem da simples deficiência.
417
Locus VI. quæstio v. 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 804
Em cada ato pecaminoso, portanto, distinguia-se o ato como um ato
que requer uma causa eficiente, e a qualidade moral desse ato, ou sua
falta de conformidade com a lei, uma mera relação, que não é uma ens, e
portanto não está de maneira nenhuma maneira com referência a Deus.
Esta é a resposta a esta objeção dada por Agostinho e repetidas desde seu
tempo a hoje. Aquino 418 diz: “Quicquid est entitatis et actionis in actione
mala, reducitur in Deum sicut in causam: sed quod est ibi defectus non
causatur a Deo, sed ex causa secunda deficiente.” Quenstedt 419 diz:
“Distinguendum inter effectum et defectum, inter actionem et actionis
ἀταξίαν. Effectus et actio est a Deo, non vero defectus et ἀταξία sive
inordinatio et exorbitatio actionis. Ad effectum Deus concurrit, vitium
non causat, non enim in agendo deficit aut errat, sed causa secunda.”
Bucan 420 diz: “Malorum opera quoque decernit et regit. Tamen non est
autor mali, quia mali sic aguntur a Deo, ut sponte, libere et sine
coactione et impulsu violento agant. Deinde non infundit malitiam sicut
bonitatem, nec impellit aut allicit ad peccandum.” Para o mesmo efeito
que Turrettin 421 diz: “Cum actus qua talis semper bonus sit quoad
entitatem suam, Deus ad illum concurrit effective, et physice. . . . .
(quoad malitiam) Deus nec causa physica potest ejus dici, quia nec illam
inspirat aut infundit, nec facit; nec ethica, qui nec imperat, aut approbat
et suadet, sed severissime prohibet et punit.”
Como a mesma influência solar acelera na vida todo tipo de plantas,
quer seja nutritivo ou venenoso; como a mesma correnteza pode ser
guiada a um canal ou outro; como a mesma força vital anima as
extremidades do homem são e do aleijado; como a mesma mão pode
varrer as teclas de um instrumento quando em sintonia e quando fora de
tom: pelo que se insistiu a que a mesma eficácia divina sustenta e anima
a todos os agentes livres. Que eles ajam em tudo deve-se à eficiência
418
Summa, part I. quest. xlix. art. 2, edit. Cologne, 1640, p. 95.
419
Theologia, cap. XIII. i. 15, Vol. I. p. 761.
420
Bucan, Institutiones Theologici, edit. Geneva, 1625, p. 142.
421
Locus VI. quæstio vii. 3, 4, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 462.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 805
divina, mas a natureza particular de seus atos (pelo menos quando maus)
refere-se, não a essa eficiência onipresente de Deus, mas sim à natureza
ou o caráter particular de cada agente. Que Deus controla e governa os
ímpios, determina sua maldade a tomar uma forma, e não outra, e a
conduz às manifestações que fomentarão o bem do mal, não é
inconsistente com a santidade de Deus. Ele não infundiu inveja e ódio
nos corações dos irmãos de José, mas guiou o exercício de tais paixões,
de modo que se garanta a preservação de Jacó e a semente escolhida da
destruição.
422
De Amissione Gratiæ et Statu Peccati, II. xiii. edit. Paris, 1608, p. 132.
423
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 807
inclinações, ou pela graça de Deus, mas sim significa que temos o poder
de agir. O poder da ação espontânea é essencial à natureza de um espírito
e Deus, ao nos criar à Sua própria natureza como espíritos, dotou-nos da
faculdade de promover nossos próprios atos.
(2.) Uma segunda objeção à doutrina é que é um intento de explicar
o inexplicável. Não contente com a simples e certa declaração da Bíblia,
que Deus rege todas as Suas criaturas e todas as suas ações,
compromete-se a explicar como isso é feito. Pela natureza do caso isto é
impossível. Vemos que as causas materiais agem, mas não podemos
dizer como agem. Somos conscientes da faculdade de guiar nossos
próprios pensamentos, e determinar nossa própria vontade; mas como
exercitamos esta eficiência, ultrapassa a nossa compreensão. Sabemos
que a vontade tem poder sobre certos músculos do corpo, mas o ponto de
conexão, o elo entre a vontade e a ação muscular, é totalmente
inescrutável. Por que então devemos tentar explicar como é que a
eficiência de Deus controla a eficiência das segundas causas? O fato é
simples, e o feito em si é importante; mas o modo de ação da ação de
Deus nós não podemos entender.
(3.) Uma terceira objeção é que esta doutrina multiplica as
dificuldades. Ao tratar de ensinar como Deus governa os agentes livres,
que Ele primeiro os estimula a agir, sustenta-os na ação, determina-os a
agir assim, e não de outra maneira; que Ele efetivamente concorre na
entidade, mas não necessariamente na qualidade moral do ato, levantam-
se cada passo as questões metafísicas mais sutis e desconcertantes, que
nenhum homem é capaz de resolver. E até admitindo a teoria do
concursus, tal como exposta pelos escolásticos e pelos teólogos
escolásticos, para ser verdade, qual o valor? Que conhecimento
verdadeiro comunica? Tudo o que sabemos, e tudo o que precisamos
saber, é (1.) que Deus governa todas as Suas criaturas, e (2.) que Seu
controle sobre eles é coerente com Sua natureza, e com Sua própria
pureza infinita e excelência.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 808
Como esta doutrina da Providência consiste na questão da relação
de Deus com o mundo, é reconhecidamente o mais completo e difícil na
bússola quer da teologia ou da filosofia. Como o mundo, o que significa
o universo dos seres criados, inclui o mundo da matéria e o mundo da
mente, a doutrina da Providência refere-se, em primeiro lugar, à relação
de Deus com o universo externo ou material, e em segundo lugar, Sua
relação com o mundo da mente, ou com Suas criaturas racionais.
A matéria é ativa.
2. O segundo fato ou princípio reconhecido pelas Escrituras é que a
matéria é ativa. Tem propriedades ou força que são as causas próximas
das mudanças físicas que constantemente vemos e experimentamos. Isto
é considerado pelos homens de ciência quase uma verdade axiomática.
“Não há força sem matéria, e não há matéria sem força.” Esta é também
a convicção geral dos homens. Quando tomam um corpo pesado na mão,
atribuem seu peso à natureza do corpo e sua relação com a terra. Quando
uma substância produz a sensação de doçura, e a outra sensação de
acidez, de modo instintivo, a diferença refere-se às próprias substâncias.
Assim que de todos os outros efeitos físicos, eles são sempre e em todas
as partes devidos a causas físicas. A teoria que nega a existência de
causas físicas, e que atribui todos os efeitos naturais ou mudanças à
operação imediata da vontade divina, contradiz nossa natureza, e não
pode ser certa. Além disso, como já vimos, esta teoria conduz
logicamente ao idealismo e ao panteísmo. Confunde o universo com
Deus.
Estas forças físicas agem por necessidade, cega e uniformemente.
Estão em todas as partes e sempre são iguais. A lei da gravidade é nas
mais remotas regiões do espaço o que é aqui em nossa terra. Age sempre,
e sempre da mesma maneira. O mesmo sucede com todas as outras
forças físicas. A luz, o calor, a eletricidade e as afinidades químicas são
em todas as partes idênticas em seu modo de operar.
As leis da Natureza.
A ambiguidade das palavras lei e natureza já foi observada.
Entretanto, a frase «Leis da Natureza» emprega-se geralmente em um ou
outro de dois sentidos. Ou significa uma sequência regular observada de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 810
acontecimentos, sem referência à causa que determina esta regularidade
de sequência; ou significa uma força natural de ação uniforme. Neste
último sentido falamos das leis da gravidade, da luz, do calor, da
eletricidade, etc. O fato da existência de tais leis, ou de tais forças físicas,
que agem uniformemente, e que não devem ser resolvidas em «modos
uniformes de operação divina» é, como vimos, uma importante verdade
escriturística.
A principal questão é: Que relação tem Deus com estas leis? A
resposta a esta pergunta, tomada da Bíblia, é primeiro, que Ele é o autor
das mesmas. Ele dotou, à matéria destas forças, e ordenou que fossem
uniformes. Segundo, Ele é independente delas. Ele pode mudá-las,
aniquilá-las ou suspendê-las conforme quiser. Ele pode operar com ou
sem elas. Não se pode fazer com que o «Reino da Lei» domine sobre
Aquele que fez as leis. Em terceiro lugar, como a estabilidade do
universo e o bem-estar e inclusive a existência das criaturas organizadas
depende da uniformidade das leis da natureza, Deus nunca as descuida
exceto para o cumprimento de algum alto propósito. Ele, nas operações
comuns da Providência, opera com e por meio das leis que Ele ordenou.
Ele governa o mundo material, assim como o moral, mediante lei.
Por isso, a relação que Deus tem com as leis da natureza é, num
aspecto importante, análoga à que nós temos com elas. Empregamo-las.
O homem não pode fazer nada fora dele mesmo sem elas; e entretanto,
que maravilhas de engenho, de beleza e de utilidade que pôde fazer! O
doutor Beale, como vimos, ilustra a relação de Deus com as forças
físicas com uma analogia de um químico em seu laboratório. Os
componentes químicos não se põem a si mesmos nas retortas nas devidas
proporções, nem se submetem a si mesmos primeiro a uma operação e
logo a outra. Como meras forças físicas, cegas, não podem fazer nada; ao
menos nada que implique propósito ou desígnio. As propriedades
químicas dos materiais empregados têm suas funções, e o químico tem
as suas, evidentemente não só diferentes, mas também diversas, isto é, de
uma ordem diferente. A ilustração do professor Henry foi tomada da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 811
relação do engenheiro com a máquina. A complicada estrutura da
máquina, a composição e a combustão do combustível; a evaporação da
água; tudo isso é externo ao engenheiro, e ele a isso. A locomotiva,
embora dotada de potência, encontra-se perfeitamente quieta.
Respondendo à ação do engenheiro desperta à vida, e entretanto com
toda sua tremenda energia é perfeitamente obediente à sua vontade.
Estas ilustrações, e outras possíveis, são necessariamente muito
adequadas. Os poderes da natureza dos quais o homem se vale não
dependem dele, e estão sob o seu controle só de uma maneira muito
limitada. Ele é totalmente externo a suas obras. Entretanto Deus enche os
céus e a terra. Ele é imanente no mundo; intimamente e sempre presente
com cada partícula de matéria. E esta presença não o é só quanto ao ser,
mas também quanto ao conhecimento e ao poder. É manifestamente
inconsequente com a ideia de um Deus infinito que qualquer parte de
Suas obras esteja ausente dEle, fora de Sua vista, ou independente de
Seu controle. Embora estando assim em todas as partes eficientemente
presente, Sua eficiência não anula a de Suas criaturas. É por uma lei
natural, ou força física, que o vapor levanta da superfície dos oceanos,
que se acumula em nuvens, e que se condensa e cai em forma de chuva
sobre a terra, mas Deus controla de tal maneira a operação das leis que
produzem estes efeitos que Ele envia a chuva quando e onde Lhe agrada.
O mesmo sucede com todas as operações da natureza e com todos os
acontecimentos do mundo externo. Devem-se à eficiência das forças
físicas; mas estas forças, que estão combinadas, ajustadas, e obrigadas a
cooperar ou para opor-se entre si, na maior complexidade, estão todas
sob a constante guia de Deus, e são levadas ao cumprimento de seu
propósito. Por isso, é perfeitamente racional, num mundo onde as forças
cegas e naturais são a causa próxima de tudo o que acontece, orar por
saúde, por proteção, por êxito, por estações produtivas, e pela paz e a
prosperidade das nações, porquanto todos estes acontecimentos estão
determinados pela agência inteligente de Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 812
Assim, vê-se que a providência de Deus é universal e que se
estende a todas as Suas criaturas e a todas as suas ações. A distinção
usual e apropriadamente feita entre a providência geral, especial e
extraordinária de Deus refere-se aos efeitos produzidos, e não à sua
agência na produção dos mesmos; porquanto é a mesma em todos os
casos. Mas se o objeto a cumprir-se é geral, como o movimento
ordenado dos corpos celestes ou a sustentação e operação regular das leis
da natureza, então a providência de Deus é designada como geral. Muitas
pessoas estão dispostas a admitir esta superintendência geral do mundo
da parte de Deus, mas negam Sua intervenção na produção de efeitos
concretos. Mas a Bíblia ensina com clareza uma providência especial, e
todos os homens creem de maneira instintiva. Isto é, Deus emprega Seu
controle sobre as leis da natureza para obter efeitos especiais. Pessoas
doentes, em perigo, ou em qualquer angústia oram a Deus pedindo ajuda.
Isto não é irracional. Supõe que a relação de Deus com o mundo é
precisamente a que se declara na Bíblia. Não supõe que Deus deixe de
lado nem Se oponha às leis da natureza, mas simplesmente que Ele as
controla e faz com que produzam qualquer efeito que Lhe agrade. As
Escrituras e a história do mundo, e a experiência de quase todas as
pessoas, dão abundante evidência de tais interposições divinas. Seríamos
como órfãos sem ajuda se não fosse por esta constante supervisão e
proteção de nosso Pai celestial. Algumas vezes, as circunstâncias que
acompanham estas intervenções divinas são tão insólitas, e as evidências
que dão do controle divino são tão claras, que os homens não podem
recusar ver a mão de Deus. Entretanto, nada tem de extraordinário na
ação de Deus. Trata-se só de que em tais ocasiões somos testemunhas de
manifestações mais impressionantes do controle absoluto que Ele exerce
constantemente sobre as leis que Ele ordenou.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 813
A uniformidade das leis da Natureza, congruente com a
doutrina da Providência.
É evidente que a doutrina escriturística da providência não é
inconsequente com o «Reino da Lei» em nenhum sentido próprio das
palavras. As Escrituras reconhecem o fato de que as leis da natureza são
imutáveis; que são ordens de Deus; que são uniformes em sua operação;
e que não podem ser passadas por alto impunemente. Mas assim como o
homem dentro de sua esfera pode empregar estas leis fixas para cumprir
os mais diversos propósitos, assim Deus em Sua esfera ilimitada as tem
sempre e em todas as partes sob Seu absoluto controle, de maneira que,
sem as suspender nem as violar, estão sempre sujeitas à Sua vontade.
Alguns filósofos não admitem isto. Para eles, o controle da mente e o
reino da lei são incompatíveis; um ou o outro deve ser negado.
“O caráter fundamental de toda filosofia teológica,” diz Lewes, “é a
concepção dos fenômenos como submetidos à vontade sobrenatural, e
portanto como eminente e irregularmente variável. Agora, estas
concepções teológicas só podem ser subvertidas, finalmente, por meio
destes dois processos gerais, cujo êxito popular é infalível a longo prazo.
(1.) A previsão exata e racional dos fenômenos, e (2.) A possibilidade de
modificá-los, a fim de promover nossos próprios fins e vantagens. O
anterior dissipa imediatamente toda a ideia de qualquer ‘direção volitiva’
e o segundo conduz ao mesmo resultado, sob outro ponto de vista, nos
fazendo-nos no que se refere a este poder como subordinado a nós.” 424
Se o fato de que os homens possam empregar as leis da natureza
para «seus próprios fins e vantagens» é compatível com a uniformidade
destas leis, o controle de Deus sobre as mesmas para o cumprimento de
Seus propósitos não pode ser inconsequente com sua estabilidade como
leis. Deus governa a criação de acordo com as leis que Ele mesmo
ordenou.
424
Comte’s Philosophy of the Sciences, Lewes, London, 1853, pp. 102, 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 814
A providência de Deus com relação aos processos vitais.
A vida foi sempre considerada como um dos mais inescrutáveis
mistérios. Por mais difícil que seja responder a pergunta: O que é a vida?
ou a maneira diversa e insatisfatória que possa ser a resposta dada a esta
questão, ou as explicações propostas de seus fenômenos, há pouca
diferença quanto aos fatos do caso. (1.) Admite-se que há uma grande
diferença entre a vida e a morte — entre os vivos e os mortos. Ninguém
que tenha olhado alguma vez um cadáver não tenha podido ser
impressionado com a mudança temerosa comprometida na passagem da
vida à morte. (2.) É muito evidente que a diferença não consiste em tudo
aquilo que se pode pesar ou medir, ou detectar pelo microscópio ou por
análise química. (3.) Certos processos saem onde a vida está presente, e
nunca são vistos quando está ausente. Estes processos são a organização,
o crescimento e a reprodução. (4.) Estes processos implicam a percepção
de um fim, um propósito ou vontade de realizar esse fim, e a opção
inteligente e aplicação de meios para sua consecução.
Esta é a obra da mente. Se a força física cega pode adaptar o olho
ou o ouvido, e edificar o corpo animal inteiro, com todas as suas
maravilhosas interdependências e relações das partes e órgãos, e suas
adaptações desenhadas para o que é externo e futuro, então não há
evidência da mente no céu ou a terra; logo todas as obras de arte e do
gênio de que está cheio o mundo, pode ser as produções de matéria
morta, ou das forças físicas.
Mas se a vida é mente, ou, melhor dizendo, se a força vital é a força
mental, como o indica o modo em que age, onde reside a mente? No
germe infinitesimal da planta ou animal? ou em algo exterior a esse
germe? Estas são perguntas que sempre estiveram exigindo uma
resposta, visto que as respostas foram diferentes. Em primeiro lugar,
alguns dizem que a própria natureza é inteligente. Por natureza não me
refiro ao mundo material, mas no vis in rebus insita. As forças que agem
no mundo, concebem-se como pertencentes a uma substância ou
princípio animador ou anima mundi. Alguns que creem num Deus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 815
extramundano pessoal, creem que Ele criou e transmitiu imanente no
mundo esta natura naturans, que mantêm ser a sede de toda a
inteligência que se manifesta nas obras da natureza. Este é o único Deus
que alguns homens de ciência estão dispostos a admitir. A natureza
material, diz-se, não dá evidência da existência de um Ser pessoal.
Vemos na natureza uma mente, uma mente universal, mas uma mente
que só opera e se expressa pela lei. “A natureza só faz e só nos pode
informar a respeito da mente em a natureza, o parceiro e correlativo da
matéria organizada.” 425 Baden Powell, em sua “Order of Nature,” diz,
que as opiniões elevadas de uma Deidade como um Deus pessoal e
Criador Onipotente, etc., são conceitos que “podem originar-se só de
alguma outra fonte que a filosofia física”. 426
Em segundo lugar, alguns assumem que há no germe de cada planta
ou animal o que Agassiz chama “um princípio imaterial”, quanto se
refere ao seu poder de organização. Alguns conectam isto com a doutrina
platônica das ideias, como entidades espirituais, que são a vida e a
realidade de todos os organismos materiais.
Em terceiro lugar, outros referem que a inteligência se manifesta
nos processos vitais a Deus, não imediatamente, mas sim de forma
remota. Os homens podem construir máquinas para fazer o trabalho
intelectual, sem ser eles mesmos as máquinas inteligentes. Temos
planetários, e cálculos e composições tipográficas de máquinas, que,
aparentemente pelo menos, fazem o trabalho da mente. Se o homem
pode fazer um relógio ou um motor de locomotiva, por que não pode
Deus fazer relógios e motores com a capacidade de reprodução? A
analogia, entretanto, entre os produtos do engenho humano e o
organismo vivo é imperfeita. Nenhum produto da arte humana pode
pensar ou escolher. Uma máquina de programação, quando a chave
apropriada é acionada, pode fazer mover um braço na direção correta e
425
Veja esta doutrina discutida no Bampton Lectures for 1865, by Rev. J. B. Moxley, p. 96.
426
Edit. London, 1859, p. 249.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 816
com a distância adequada para chegar à letra que quer; mas não se pode
por si mesma selecionar de uma massa confusa de tipos as cartas uma
após outra, e ordená-las para formar palavras e orações. Em outras
palavras, a matéria não pode ser feita para fazer o trabalho da mente.
Admite-se que tudo é possível com Deus, mas o contraditório não é um
objeto de poder. É uma contradição que o ampliado deva ser não
ampliado, que o irracional deva ser racional. Portanto, é inconcebível
que a matéria com suas forças físicas cegas deveriam realizar o trabalho
mental exibidos nos processos de organização e crescimento.
Em quarto lugar, a inteligência necessária para dar conta dos
processos de vida vegetal e animal supõe-se que está presente em todas
as partes e em todas as partes ativa a mente do próprio Deus. Isto não
implica que as causas físicas ou segundas não têm a eficiência, ou que
essas causas se combinam na eficiência de Deus. Significa simplesmente
que Deus usa a química, elétrica, fótica, e outras forças da natureza, para
o exercício de organização e outros processos vitais no mundo vegetal e
animal. Nestes processos há uma combinação de duas forças
especialmente diferentes, físicas e mentais. As físicas estão na matéria,
as mentais em Deus, que utiliza a matéria e suas forças. Exemplos desta
combinação de força física e mental são familiares. Todos os
movimentos voluntários, da parte dos animais, todas as obras dos
homens, devem-se a tal combinação. Caminhar, falar, e escrever só são
possíveis na medida em que a mente controla nossa organização
material. Na escritura, por exemplo, as funções vitais estão trabalhando
na mão, em que sua mobilidade e sensibilidade de impressão dependem
dos nervos voluntários, e os numerosos músculos voluntários são
chamados à ação, mas o poder dirigente está na mente. É a mente a que
determina que palavras e frases os dedos formarão, e que ideias
expressarão. Da mesma maneira, é a mente sempre presente de Deus que
guia a ação das causas físicas nos processos da vida animal e vegetal. E
como não seria razoável fazer referência às forças físicas postas em
atividade, quando falamos ou escrevemos, a inteligência indicada no que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 817
é pronunciado ou escrito, pelo que é razoável referir-se às forças da
matéria que a inteligência indicou nos processos de vida.
É porque não podemos levantar nossas mentes a qualquer
compreensão correta da infinitude de Deus, que nos é tão difícil pensar
nEle como presente em todas as partes e em todas as partes ativas de
forma inteligente.
Isto, entretanto, deixa de ser inacreditável, quando pensamos na
cooperação maravilhosa da mente e o corpo que tem lugar em falar
rápido, ou, ainda mais maravilhosamente, num menino diante de um
piano, tendo numa só olhada toda a partitura, percebendo o recurso e
posição de cada nota, tocando as oito teclas do instrumento ao mesmo
tempo, e movendo os cinquenta ou sessenta músculos voluntários com a
rapidez do raio, e cada um no momento adequado, e com a força correta.
Se a simples faísca da inteligência no menino pode fazer tais maravilhas,
por que se pensaria incrível que a Mente Infinita deveria impregnar e
governar o universo?
Em apoio da ideia exposta aqui, que a inteligência representada em
todos os processos vitais é a inteligência de mente de Deus presente em
todas as partes e ativa em todas as partes, pode-se responder, em
primeiro lugar, que o princípio envolto nesta doutrina é assumido em
tempo mais simples que verdades da religião natural. Se Deus, portanto,
não está presente em todas as partes e ativo em todas as partes no
controle das segundas causas, não há nenhuma propriedade ou uso na
oração, e não é base de confiança na proteção divina. Em segundo lugar,
parece ser a única maneira de explicar os fatos do caso. Que os processos
da vida nos vegetais e nos animais manifestam inteligência não se pode
negar. Manifestam a previsão, propósito, eleição e poder controlador.
Esta inteligência não se pode fazer referência à matéria, ou às forças
físicas. O materialismo científico mais avançado não faz da mente um
atributo, ou função, ou o produto de toda a matéria, mas apenas da
matéria altamente organizada do cérebro. Mas não há cérebro no vegetal
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 818
ou no germe dos animais. O cérebro é tanto um produto da vida (e
portanto da mente) como tendões ou ossos.
Em terceiro lugar, pode-se apelar à autoridade da Escritura para
sustentar a doutrina em questão. A Bíblia ensina a onipresença de Deus;
isto é, a onipresença da mente. A frase «Deus enche os céus e a terra»
significa que a mente impregna os céus e a terra, e que não há porção do
espaço em que não esteja a mente presente e ativa. As Escrituras
ensinam deste modo que todas as coisas, inclusive as mais diminutas,
como o número dos cabelos de nossa cabeça, a queda de um pardal, o
voo de uma flecha, tudo isso está sob o controle de Deus. Também se diz
que é Ele quem faz crescer a erva, o que significa não só que Ele ordena
de tal forma as causas físicas de maneira que o resultado é a vegetação,
mas também, como aparece em outras descrições, que a organização e o
crescimento da planta são determinados por sua ação. Isto parece estar
claramente ensinado com respeito aos corpos dos homens no Sl
119:15,16: «Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto
fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos
me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos
os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um
deles havia ainda». Por duvidosa que seja a interpretação do versículo 16
no original, não pode haver dúvida a respeito do sentido geral da
passagem. Ensina com clareza que o corpo humano é conformado no
ventre pela inteligência de Deus, e não por causas físicas não dirigidas,
agindo cegamente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 819
B. A providência de Deus sobre as criaturas racionais
Conclusão.
Assim são os princípios gerais envoltos nesta dificilíssima doutrina
da Providência Divina. Deveríamos estar igualmente em guarda contra o
extremo que confunde toda eficiência em Deus, e que, ao negar todas as
segundas causas, destrói a liberdade e responsabilidade humana, e que
faz de Deus não só o autor do pecado, mas em realidade o único Ser do
universo; e o extremo oposto que exclui a Deus do mundo que Ele tem
feito, e que, ao negar que Ele governa todas as Suas criaturas e todas as
suas ações, destrói o fundamento de toda religião, e seca as fontes da
piedade. Se esta última perspectiva fosse certa, não haveria Deus a quem
olhar para a subministração de nossas necessidades, ou para ser
protegidos do mal, cujo favor buscar, ou cujo desagrado temer. Nós, e
todas as outras coisas, estaríamos nas mãos de causas operando
cegamente. Entre estes dois extremos igualmente fatais, encontra-se a
doutrina escriturística de que Deus governa todas as Suas criaturas e
todas as suas ações. Esta doutrina admite a realidade e eficiência das
segundas causas, tanto materiais como mentais, mas nega que sejam
independentes do Criador e Preservador do universo. Ensina que um
Deus imensamente sábio, bom e poderoso está presente em todas as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 822
partes, controlando todos os acontecimentos, grandes e pequenos,
necessários e livres, de uma maneira perfeitamente consequente com a
natureza de Suas criaturas e com Sua própria infinita excelência, de
maneira que tudo está ordenado por Seus sábios e benevolentes
desígnios.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 823
CAPÍTULO XII
MILAGRES
Definição de Milagre.
Segundo a «Confissão de Westminster»: «Deus, fazendo uso de
meios na providência comum, entretanto é livre para operar à vontade
sem, acima de, ou contra eles». Em primeiro lugar, há acontecimentos
portanto, devidos às operações comuns de segundas causas, sustentados
e guiados por Deus. A esta classe pertencem os processos comuns da
natureza; o crescimento de plantas e animais, os movimentos ordenados
dos corpos celestes, e os acontecimentos menos usuais, como terremotos,
erupções vulcânicas e convulsões e revoluções violentas nas sociedades
humanas. Em segundo lugar, há acontecimentos devidos às influências
do Espírito Santo sobre os corações dos homens, como a regeneração,
santificação, iluminação espiritual, etc. Terceiro, há acontecimentos que
não pertencem a nenhuma destas classes, e cujas características
distintivas são: primeiro, que têm lugar no mundo externo, isto é, na
esfera da observação dos sentidos; e segundo, que são produzidos ou
causados pela simples vontade de Deus, sem intervenção de nenhuma
causa subordinada. A esta classe pertence o ato original da criação, em
que era impossível toda cooperação de segundas causas. À mesma classe
pertencem todos os acontecimentos verdadeiramente milagrosos. Por
isso, um milagre pode ser definido como um acontecimento no mundo
exterior produzido pela eficiência imediata ou simples volição de Deus.
Um exame de algum dos grandes milagres registrado nas Escrituras
estabelecerá o rigor desta definição. Pode-se tomar como exemplo a
ressurreição de Lázaro dentre os mortos. Este foi um acontecimento que
teve lugar no mundo exterior; um que podia ser visto e verificado pelo
testemunho dos sentidos. Não foi produzido nem no todo nem em parte
pela eficiência das causas naturais. Foi devido à simples palavra, ou
volição, ou agência imediata de Deus. O mesmo se pode dizer da
restauração à vida da filha do principal da sinagoga, ao pronunciar Cristo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 825
as palavras Talita cumi; e de sua cura dos leprosos mediante uma
palavra. O mesmo quando Cristo andou sobre o mar, quando multiplicou
os pães e os peixes, quando acalmou os ventos e as ondas com uma
ordem; não só se ignora qualquer cooperação de causas físicas, mas
também que se nega pela mais clara implicação.
427
De Civitate Dei, xxi. 8, edit. Benedictines, vol. vii. p. 1006, a.
428
Recent Enquiries in Theology, or Essays and Reviews. Por eminentes clérigos. Boston, 1860, p.
124.
429
Ibid., pág. 150.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 826
concepções da ordem da natureza, aqueles inclusivos elementos
primitivos de todo o conhecimento físico, aquelas ideias últimas de
causação universal, que podem ser familiares só para os versados em
filosofia cósmica em seu sentido mais amplo». «É principalmente
arriscado para qualquer arrazoador moral geral que discuta questões de
evidência que essencialmente envolvem aquela mais elevada apreciação
da verdade física que pode ser obtida só mediante uma exata e ampla
familiaridade com a série conectada das ciências física e matemática.
Assim, por exemplo, a simples mas magna verdade da lei da
conservação, e a estabilidade dos movimentos celestiais, agora
compreendido por todos os sãos filósofos cósmicos, é só um tipo dos
poderes universais, auto-sustentáveis e auto-evolutivos que impregnam
toda a natureza». 430 A conclusão do professor Powell é: «Se os milagres
estiveram, na estimativa de uma era anterior, entre os principais apoios
do cristianismo, estão na atualidade entre as principais dificuldades e
estorvos para sua aceitação». 431 Todo o seu argumento é este: Os
milagres, tal como são usualmente definidos, envolvem uma suspensão,
ou alteração, ou violação das leis da natureza; mas estas leis são
absolutamente imutáveis, e por isso esta definição tem que ser incorreta,
ou, em outras palavras, os milagres, neste sentido, devem ser
impossíveis.
430
Ibid., pág. 151.
431
Ibid, pág. 153.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 827
lhe estão sujeitas, e por isso são suscetíveis em qualquer momento de ser
suspensas ou contrariadas, segundo o Seu querer.
Quanto à outra forma da objeção, que supõe que as leis da natureza
são em si mesmas imutáveis, e por isso que não podem ser suspensas, é
suficiente dizer: (1) Que esta absoluta imutabilidade das leis naturais é
uma hipótese gratuita. Que uma coisa tenha sido não é prova de que
tenha que ser sempre. não há certeza absoluta, porque não é necessário,
que o sol saia amanhã. Supomos confiantes que assim o fará, mas, sobre
que base? Que impossibilidade há para que este noite a voz do anjo se
ouça dizendo: «O tempo não será mais»? Se o tempo começou, o tempo
pode acabar. Se a natureza começou a ser, pode deixar de ser, e tudo nela
tem que ser suscetível de mudança. Os cientistas não têm direito a dar
por sentado que porquanto as leis físicas são e sempre foram, dentro dos
limites de nossa experiência, regulares em sua operação, que sejam,
como diz o professor Powell, «auto-sustentáveis e autoevolutivas». É um
grande erro supor que a uniformidade é inconsequente com o controle
voluntário; que, devido ao fato de que a lei reina, Deus não reine. As leis
da natureza são uniformes só porque Ele assim o quer, e sua
uniformidade continua só até onde Ele quer.
(2) É totalmente depreciativo do caráter de Deus supor que Ele
esteja sujeito à lei, e especialmente às leis da matéria. Se tão somente se
admite o Teísmo, então se deve admitir também que todo o Universo,
incluindo tudo o que contém e as leis pelas quais está controlado, deve
estar sujeito à vontade de Deus. O professor Powell diz, certamente, que
muitos teístas negam a possibilidade da suspensão ou violação das leis
da natureza, mas também diz que há muitos graus do Teísmo, e sob este
termo inclui ele teorias que outros consideram inconsistentes com a
doutrina de um Deus pessoal. A verdade é que a validez da objeção à
definição de milagre que foi dada no princípio, e que agora
consideramos, depende da hipótese de que Deus esteja sujeito à natureza,
e que não pode controlar as leis da mesma. J. Müller diz assim: “Etiamsi
nullus alius miraculorum esset usus, nisi ut absolutam illam divinæ
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 828
voluntatis libertatem demonstrent, humanamque arrogantiam, immodicæ
legis naturalis admirationi junctam, compescant, miracula haud temere
essent edita.” 432
(3) Para esta questão, a autoridade da Escritura é decisiva para os
cristãos. A Bíblia, em todo lugar, não só afirma a absoluta independência
de Deus de todas as Suas obras, e Seu controle absoluto sobre as
mesmas, mas também está repleta de exemplos do efetivo exercício deste
controle. Cada milagre registrado nas Escrituras é um exemplo assim.
Quando Cristo chamou Lázaro da tumba, as forças químicas que estavam
operando a dissolução de seu corpo deixaram de fazê-lo. Quando disse à
tempestade: «Cala, emudece!», as forças físicas que produziam a
tormenta foram detidas; quando andou sobre o mar, a lei da gravidade
ficou rebatida por uma força superior, a da vontade divina. É-nos dito em
2Rs 6:5, 6 que «o machado caiu na água», e que o homem de Deus
lançou na água um pau, «e fez flutuar o ferro». Aqui se produziu um
efeito que todas as leis conhecidas da física tenderiam a impedir. Por
isso, as Escrituras ensinam, por palavra e fato, que Deus pode agir, não
só com causas físicas, mas também sem e contra elas.
(4) Afinal de contas, a suspensão ou violação das leis da natureza
que se envolve nos milagres não é mais que o que está tendo lugar de
maneira constante ao nosso redor. Uma força neutraliza outra; a força
vital mantém em suspensão as leis químicas da matéria; e a força
muscular pode controlar a ação da força física. Quando alguém levanta
um peso do solo, nem se suspende nem se viola a lei da gravidade, mas
sim é oposta por uma força mais poderosa. O mesmo sucede com relação
ao andar de Cristo sobre a água ou à flutuação do ferro do machado por
mandato do profeta. A simples e grande verdade é que o universo não
está sob o controle exclusivo das forças físicas, mas em todo lugar e
tempo sempre há, acima e à parte de tudo, uma vontade pessoal infinita,
não anulando, mas sim dirigindo e controlando todas as causas físicas,
432
De Miracul. J. C. Nat. et Necess. Marburg, 1839, par. 1. pp. 41, 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 829
agindo com ou sem elas. A verdade desta questão é belamente expressa
por Sir Isaque Newton, quando disse: “Deum esse ens summe perfectum
concedunt omnes. Entis autem summe perfecti Idea est ut sit substantia
una, simplex, indivisibilis, viva et vivifica, ubique semper necessario
existens, summe intelligens omnia, libere volens bona, voluntate
efficiens possibilia, effectibus nobilioribus similitudinem propriam
quantum fieri potest, communicans, omnia in se continens, tanquam
eorum principium et locus, omnia per præsentiam substantialem cernens
et regens, et cum rebus omnibus, secundum leges accuratas ut naturæ
totius fundamentum et causa constanter coöperans, nisi ubi aliter agere
bonum est.” 433 Deus é o autor da natureza: Ele ordenou as suas leis; Ele
está em todo lugar presente em Suas obras; Ele governa todas as coisas
cooperando com e empregando as leis que Ele ordenou, NISI UBI
ALITER AGERE BONUM EST. Ele Se reservou Sua própria liberdade.
433
Sir David Brewster’s Life of Newton, vol. ii, p. 154, edit. Edimburgo, 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 830
proveu para sua aparição ao construir a máquina no princípio. Esta
última explicação dá uma ideia muito mais elevada da destreza e
sabedoria do engenheiro; e por isso, argui Babbage, é mais consequente
com os atributos da Deidade considerar os milagres não como
separações das leis atribuídas pelo Onipotente para o governo da matéria
e da mente, e sim como o exato cumprimento de umas leis muito mais
inclusivas que as que nós supomos que existem». 434 De maneira
semelhante, o professor Baden Powell mantém que cada efeito físico
deve ter uma causa física, e por isso que os milagres, considerados como
eventos físicos, devem ser «atribuídos a causas físicas, possivelmente a
causas conhecidas, mas, em todo caso, a alguma causa ou lei mais
elevada, se é que atualmente se desconhece». 435
Em segundo lugar, esta mesma postura é tomada por muitos que
não excluem assim a Deus de suas obras. Admitem que Ele está presente
em todas as partes, e agindo em todo lugar, controlando as leis físicas
para levar a cabo Seus propósitos. Mas eles insistem que Ele nunca opera
de maneira imediata, mas sempre por meio das leis estabelecidas da
natureza. Assim, o Duque de Argyle, cuja excelente obra a respeito do
«Reinado da Lei» é totalmente religiosa, diz: 436 «Nada há em religião
incompatível com a crença de que todos os exercícios do poder de Deus,
sejam comuns ou extraordinários, tenham lugar pela instrumentalidade
de alguns meios – isto é, pela instrumentalidade de leis naturais
dispostas, por assim dizer, e empregadas para um propósito divino».
Começa seu livro com citações da obra de M. Guizot, L' Eglise et la
Société Chrétienne en 1861, no sentido de que a crença no sobrenatural é
especialmente difícil para nossos tempos; de que a negação disso é a
forma que assumem todos os assaltos modernos contra a fé cristã; e que
seu aceitação encontra-se na raiz não apenas do cristianismo, mas sim de
toda religião positiva, seja qual for. Por sobrenatural, ele entendeu que
434
The Ninth Bridgewater Treatise. By Charles Babbage, Esq. London, 1838, p. 92.
435
Essays and Reviews; or Recent Inquiries in Theology, p. 160. Boston, 1860.
436
Reign of Law. Pelo Duque de Argyle. Quinta edição, Londres, pág. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 831
Guizot significava o que a palavra quer dizer própria e usualmente, isto
é, aquilo que transcende à natureza; e por natureza se significam todas as
coisas fora de Deus. Assim, um acontecimento natural neste sentido, que
é aquele que Guizot lhe dá no fim, é um acontecimento que transcende
ao poder da natureza, e que se deve à ação imediata de Deus. M. Guizot
tem indubitavelmente razão ao dizer que a crença no sobrenatural, assim
explicada, é a grande dificuldade de nosso tempo. A tendência, não
apenas da ciência, mas também da especulação em todos os campos, é,
ao menos hoje em dia, a confundir tudo na natureza e a não admitir
nenhum outro tipo de causas.
Embora o Duque de Argyle seja teísta e admite a constante
operação da vontade de Deus na natureza, contudo é premente em sua
insistência de que o poder de Deus na natureza é sempre exercido
conforme a lei, e com relação a causas físicas. Por isso, os milagres
diferem dos acontecimentos comuns só até onde se desconhecem a lei
segundo a qual chegam a acontecer, ou as forças físicas que agem em
sua produção. Cita com aprovação a muito insatisfatória definição de
Locke: «Assim, considero um milagre a operação sensível que, estando
além da compreensão do espectador, e, em sua opinião, contrária ao
curso estabelecido na natureza, é considerada por ele como divina». 437
Esta é precisamente a postura que mantém Baden Powell, que no ensaio
ao que fizemos repetidas referências considera que um milagre é uma
mera questão de opinião. Não se trataria de um assunto factual que possa
ser determinado por testemunho, mas sim um assunto de opinião a
respeito da causa do fato. O fato pode ser admitido, e se pode pensar que
é devido a uma causa natural, conhecida ou desconhecida; então não se
trata de um milagre. Outro homem diz que se deve ao poder imediato de
Deus. Em tal caso trata-se de um milagre. E não é por nenhum
testemunho que se pode decidir qual das duas posturas seja a correta. É
preciso decidir pelas concepções gerais da natureza e da relação de Deus
437
Reign of Law, pp. 24, 25.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 832
com o mundo que os homens mantêm. A doutrina de que Deus opera no
mundo externo só por meio de uma força física, e inclusive que somente
pode agir desta maneira, conduz necessariamente à conclusão de que os
milagres são acontecimentos no mundo exterior produzidos por causas
físicas desconhecidas. Só demonstram «a presença de um conhecimento
sobre-humano e a operação de um poder sobre-humano».438
438
Reign of Law, p. 16, note.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 833
lei mais elevada da natureza», é evidente que devem ser atribuídos ao
poder imediato de Deus, e não a alguma força física desconhecida.
Todos os teístas estão obrigados a reconhecer esta ação imediata de Deus
no ato original da criação. Então não havia leis nem forças por meio dos
que se possa exercer esta eficiência. Por isso, deve-se admitir o fato
sobre o qual descansa a doutrina da Igreja a respeito desta questão.
(3) As Escrituras não só estão caladas a respeito de qualquer lei
superior como causa de acontecimentos milagrosos, antes, sempre os
atribuem ao poder imediato de Deus. Cristo disse que Ele expulsava
demônios pelo dedo de Deus. Nunca se referiu a nada senão à Sua
própria vontade como o antecedente eficiente do efeito produzido:
«Quero, sê limpo». Ele curava com um toque, com uma palavra. Quando
deu poderes milagrosos aos Apóstolos, não fez deles alquimistas. Eles
não pretenderam o conhecimento de leis ocultas. Pedro, quando foi
chamado a dar conta da cura do aleijado no templo, disse que era em
nome de Cristo, que a fé em Seu nome tinha curado integralmente aquele
homem. Ademais, está claro que, com base nesta teoria, os milagres
devem perder seu valor como prova de uma comissão divina. Se os
Apóstolos faziam as maravilhas que faziam por meio do conhecimento
da natureza, ou por meio de sua eficiência, então estão no mesmo nível
que o experimentador que faz com que a água se congele numa colher ao
vermelho vivo. Se Deus não é o autor do milagre, isso não prova uma
mensagem divina.
(4) Também é válido o que diz o Rev. J. B. Mozley: «Dizer que o
fato material que tem lugar num milagre admite sua atribuição a uma
causa natural desconhecida não quer dizer que o próprio milagre possa
ser atribuído a ela. Um milagre é o fato material como coincidente com o
anúncio expresso ou com as pretensões sobrenaturais no agente. É esta
correspondência de dois fatos que constitui um milagre. Se uma pessoa
diz a um cego: “Vê”, e ele vê, não é só a repentina restauração da vista o
que temos que explicar, mas sim sua restauração naquele momento
particular. Porque é moralmente impossível que este exato acordo de um
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 834
acontecimento com um mandamento ou notificação possa dever-se à
mera casualidade, ou, como nós diríamos, que se trate de uma
coincidência extraordinária, especialmente se se repete em outros
casos». 439 É coisa bem certa que ninguém que via a Lázaro sair do
sepulcro, quando Jesus disse: «Lázaro, vem para fora!», pensou jamais
em alguma lei física como a causa daquele acontecimento.
439
Eight Lectures on Miracles; by J. B. Mozley, B. D. Bampton Lectures for 1865, London, 1865, p.
148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 835
que expresse sua verdadeira natureza. Eles seguem sendo uma clara
evidência da intervenção divina. Como diz Mozley, o valor da evidência
não depende exclusivamente da natureza do acontecimento, mas sim das
circunstâncias que o acompanham. O enxame de gafanhotos, ou o bando
de codornas, não teriam sido, por si mesmos, prova de alguma
intervenção divina especial; mas tomadas com relação à ameaça de
Moisés no primeiro caso, e com a promessa no outro, aqueles
acontecimentos provavam de maneira tão concludente como o teria
podido fazer o milagre mais absoluto que ele era o mensageiro dAquele
que podia controlar as leis da natureza e obrigá-las a cumprir a Sua
vontade.
440
De Miraculis, Tractatus Theologico-politicus, cap. iv.; Opera, edit. Jena, 1802, Vol. I. p. 233.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 836
441
contra suam naturam agere, quo nihil absurdius. . . . . Ex his —
sequitur, nomen miraculi non nisi respective ad hominum opiniones
posse intelligi, et nihil aliud significare quam opus, cujus causam
naturalem exemplo alterius rei solitæ explicare non possumus. 442 . . . .
Per Dei directionem intelligo fixum illum et immutabilem naturæ
ordinem, sive rerum naturalium concatenationem. — Sive igitur
dicamus, omnia secundum leges naturæ fieri, sive ex Dei decreto et
directione ordinari, idem dicimus.” 443 A teoria Panteísta, que ensina «que
o governo do mundo não é a determinação de acontecimentos da parte de
uma inteligência extramundana, mas pela razão como imanente nas
forças próprias cósmicas e em suas relações», 444 impede a possibilidade
de um milagre.
É uma mera modificação da mesma perspectiva geral a que diz que
embora os mundos material e mental têm uma existência real, não há
causalidade fora de Deus. As segundas causas são só as ocasiões ou os
modos em que se exerce a eficiência divina. Esta doutrina exclui
efetivamente qualquer distinção entre o natural e o sobrenatural, entre o
que se deve ao poder imediato de Deus e ao que se deve à eficiência das
segundas causas. As operações de Deus, quando são uniformes, diz
Bretschneider, nós as chamamos leis; quando são raras ou isoladas nós
as milagres. A única diferença é nossa maneira das contemplar. Uma
terceira objeção do mesmo caráter geral é que os milagres supõem ações
separadas e individuais da vontade divina, o que é inconsequente com a
natureza de um Ser absoluto. «Está bem claro que um Deus que leva a
cabo atos individuais pode ser uma pessoa, mas não pode ser absoluto.
Ao Ele passar de um a outro ato, ou ao exercer uma certa classe de
eficiência (a extraordinária) e logo repousar outra vez, Ele faz e é num
momento o que Ele não faz e não é em outro, e assim passa à categoria
441
Ibid. p. 235.
442
Ibid. p. 236.
443
Tractatus Theologico-politicus, cap. iii. ut supra, p. 192.
444
Strauss, Dogmatik, vol. II, pág. 384.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 837
do mutável, o temporal e o finito. Se continuamos considerando-O como
absoluto, sua obra deve ser considerada como um ato eterno, singelo e
uniforme em sua natureza porquanto procede de Deus, e só no mundo do
fenomênico revelando sua plenitude numa série de várias e cambiantes
operações divinas». 445
Esta é uma objeção que foi já considerada em várias ocasiões. Tudo
o que se tem que dizer em resposta a ela por agora é que demonstra
muito. Se é válida contra os milagres é também válida contra a doutrina
de uma criação ex-nihilo, contra a providência, contra a revelação, contra
as profecias, contra escutar a oração, e contra todas as operações da
graça. Em todos estes casos, tanto como nos milagres, Deus empreende
uma ação direta. E se tal ação direta supõe atos separados da vontade
divina em um dos casos, deve supô-lo nos restantes. De maneira que se é
válida a objeção contra os milagres, é válida contra a doutrina de um
Deus pessoal e contra todo o sistema de religião natural e revelada. Por
isso, seja qual for a evidência que tenhamos do Ser de Deus e da
realidade da religião, temos também que demonstrar que esta objeção é
um sofisma, baseada em nossa ignorância sobre o modo em que o Ser
infinito Se revela e Se manifesta no finito. Nada é mais certo que Deus
age em todas as partes e sempre, e nada é mais inescrutável que o modo
de Sua atividade.
Uma quarta objeção aos milagres se baseia na teoria deísta de que a
relação de Deus com o mundo é análoga à de um engenheiro com uma
máquina. Um engenheiro não tem razões para interferir no
funcionamento de uma máquina que tenha feito, exceto para corrigir suas
irregularidades; de modo que se Deus interfere na ordem natural de
acontecimentos produzidos pelas segundas causas que Ele ordenou, só
pode dever-se à imperfeição de Sua obra. Como isto não se pode admitir
racionalmente, tampouco se pode admitir a doutrina dos milagres, que
supõe tal interferência especial. Esta objeção recebe sua resposta
445
Strauss, Dogmatik, Vol. I, pág. 59.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 838
mostrando que a relação de Deus com o mundo não é a de um
engenheiro com uma máquina, não a de uma vontade onipresente,
constantemente controladora e inteligente. Por isso, a doutrina dos
milagres está baseada na doutrina do teísmo, isto é, de um Deus
extramundano e pessoal, que, sendo distinto do mundo, sustenta-o e
governa segundo Sua própria vontade. Além disso, esta doutrina dá por
sentado que as segundas causas têm uma eficiência real às quais se
devem imediatamente os acontecimentos comuns; que a ação divina não
passa por alto estas causas, mas que as sustenta e conduz em suas
operações. Mas ao mesmo tempo este Ser onipotente e onipresente é
livre para agir com ou sem ou contra estas causas, conforme Lhe pareça
conveniente; de modo que é igualmente consistente com Sua natureza e
com Sua relação com o mundo que os efeitos de Seu poder sejam
imediatos, isto é, sem a intervenção de causas naturais, como por meio
de sua instrumentalidade. Não se pode discutir que esta é a verdadeira
doutrina escriturística a respeito de Deus e de sua relação com o mundo.
Isto o admitem inclusive os que negam a veracidade desta doutrina. “Die
ganze christliche Anschauung von dem Verhältniss Gottes zur Welt, von
Schöpfung, Vorseh ung und Wunder bezeugt diess (namely, that the
Absolute is a person). Der Persönlichkeit ist freier Wille wesentlich; die
Freiheit verwirklicht sich in einzelnen beliebigen Willensacten: durch
einen solchen hat Gott die Welt geschaffen, durch eine Reihe von
solchen regiert er sie, durch solche Acte greift er auch ausser der
Ordnung seiner continuirlichen weltlenkenden Thätigkeit in die
Weltordnung ein.” 446
446
Strauss, Dogmatik, vol. I. p. 58.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 839
§ 3. Pode um milagre ser conhecido como tal?
Prodígios mentirosos.
2. Esta observação aplica-se igualmente à outra base sobre a qual se
nega que podemos determinar que qualquer evento seja milagroso.
Qualquer efeito pode transcender a todas as capacidades de todas as
causas materiais e ao poder do homem, e entretanto pode estar dentro do
âmbito da capacidade de inteligências sobre-humanas. Há criaturas
racionais superiores ao homem, dotadas de capacidades extremamente
mais elevadas. Estas exaltadas inteligências têm acesso ao nosso mundo;
exercem seus poderes na produção de efeitos no reino da natureza; e,
portanto, diz-se, não podemos dizer se um acontecimento, admitido
como sobrenatural (no sentido limitado deste termo), deve ser atribuído a
Deus ou a estes seres espirituais. Tal é a latitude com a que as palavras
«sinais e milagres» se empregam nas Escrituras que se aplicam não só às
obras devidas à ação imediata de Deus, mas também às levadas a cabo
pelo poder de maus espíritos. Por isso, muitos teólogos consideram estas
últimas como verdadeiros milagres. São chamados «prodígios
mentirosos», diz Gerhard, 447 não quanto à sua forma (ou natureza), mas
quanto ao seu fim, isto é, porquanto sua intenção é impulsionar o erro.
Trench adota a mesma postura; diz ele que não põe em dúvida que as
Escrituras atribuem verdadeiras maravilhas a Satanás. A questão não é se
as obras dos magos egípcios e as profetizadas maravilhas do Anticristo
447
Loci Theologici, loc. xxiii. cap. II. § 274, edit. Tübingen, 1774, vol. xii. p. 102.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 841
devem ser consideradas como truques e prestidigitações. Pode-se admitir
que fossem, ou que sejam as obras de Satanás ou de seus anjos. Mas a
pergunta é: Devem ser considerados como verdadeiros milagres? A
resposta a esta pergunta depende do significado da palavra. Se por
milagre entendemos qualquer evento que transcenda a eficiência das
causas físicas e o poder do homem, são milagres. Mas se nos aderimos à
definição dada com interioridade, que demanda que o acontecimento seja
produzido pelo poder imediato de Deus, naturalmente que não são
milagres. São «prodígios mentirosos», não só porque tenham a intenção
de sustentar o reino das mentiras, mas sim porque professam falsamente
ser o que não são. Assim Tomás de Aquino diz: 448 “Demones possunt
facere miracula: quæ scilicet homines mirantur, in quantum eorum
facultatem et cognitionem excedunt.” Sólo son maravillas ante los ojos
de los hombres.
A dificuldade para discriminar entre os milagres e estes prodígios
mentirosos, isto é, entre as obras de Deus e as obras de Satanás, foi
antecipada e prevista pelos próprios escritores sagrados. Em Dt 13:1-3
Moisés diz: «Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te
anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te
houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste
... não ouvirás as palavras desse profeta». Em Mt 7:22, 23 nosso Senhor
diz: «Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura,
não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos
demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi
explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais
a iniquidade». Mt 24:24: «Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas
operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os
próprios eleitos». Em 2Ts 2:9 o Apóstolo nos ensina que a vinda do
homem de pecado é «com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira».
Estas passagens ensinam que pode haver acontecimentos sobrenaturais,
448
Summa, part 1, quest. cxlv. art. 4. edit. Cologne, 1640, p. 208.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 842
isto é, acontecimentos que transcendem o poder das causas materiais e a
capacidade do homem, pela ação de inteligências superiores; e que não
se lhes deve outorgar autoridade alguma a nenhum desses
acontecimentos sobrenaturais se são produzidos por agentes ímpios ou
para propósitos ímpios. Foi sobre esta base que nosso Senhor replicou
aos fariseus que O acusavam de expulsar demônios por Belzebu, o
príncipe dos demônios. Ele apelou ao desígnio que tinham os Seus
milagres para demonstrar que não podiam ser atribuídos a uma
influência satânica. Satanás não cooperará para confirmar a verdade nem
para promover o bem. Deus não pode cooperar para confirmar o que é
falso nem para promover o mal. De maneira que o caráter do agente e o
desígnio para o qual é produzido o evento sobrenatural determinam se é
verdadeiramente um milagre, ou se é um dos prodígios mentirosos do
diabo. A igreja adotou este critério a respeito dos milagres com base nas
Escrituras. Diz Lutero: «Não devem admitir-se destaque nem
maravilhas, por grandes e numerosas que sejam, contra doutrinas
autenticadas; porque temos o mandamento de Deus, que disse do céu: “A
ele ouvi”, que ouçamos só a Cristo». Chemnitz 449 diz: “Miracula non
debent præferri doctrinæ. . . . neque enim contra doctrinam a Deo
revelatam ulla miracula valere debent.” Gerhard 450 diz: “Miracula, si non
habeant doctrinæ veritatem conjunctam nihil probant.” Brochmann
também diz: 451 “Ut opus aliquod sit verum miraculum duo requiruntur.
Unum, est veritas rei; alterum, veritas finis.”
A isto se pode objetar que é raciocinar em círculos querer
demonstrar a verdade da doutrina com base no milagre, e logo a verdade
do milagre com base na doutrina. Mas nós respondemos: (1) Que este
critério moral é necessário só na classe duvidosa de milagres. Há certos
acontecimentos que por sua natureza não podem ter outro autor senão
Deus. Transcendem não só aos poderes da matéria e do homem, mas
449
Loci Theologici, III. edit. Frankfort and Wittenburg, 1653, p. 121.
450
Ibid. loc. xxiii. cap. 11. § 276, edit. Tübingen, 1774, vol. ii. p. 107.
451
Theol. System. de Eccles. II. vii. dub. 12, Ulm and Frankf., 1658, vol. ii. p. 276, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 843
também a todo poder criado. A eficiência das criaturas tem limites
conhecidos, determinados, se não pela razão, ao menos pela Palavra de
Deus. (2) Não é insólito nem irrazoável que dois tipos de evidência
sejam dependentes e entretanto mutuamente confirmativas. No caso de
um historiador, podemos crer que suas autoridades sejam o que diz que
são, com base no caráter do mesmo; e podemos crer em suas declarações
com base em suas autoridades. Assim que podemos crer em um homem
bom quando nos diz que as maravilhas que leva a cabo não são truques,
nem efeitos produzidos pela cooperação de maus espíritos, mas pelo
poder de Deus, e podemos crer que seus ensinos são divinos devido aos
prodígios. A Bíblia dá por sentado que os homens têm uma percepção
intuitiva do bem; e dá por sentado que Deus está do lado da bondade, e
Satanás do lado do mal. Por isso, se é realizado um prodígio em apoio do
que é bom, é de Deus; se é em apoio do que é mau, é de Satanás. Esta é
uma das bases pela quais os Protestantes se preocupam tão pouco dos
pretendidos milagres da Igreja de Roma. Não sentem a necessidade de
refutá-los mediante um exame crítico de sua natureza, nem das
circunstâncias sob as quais foram levados a cabo, nem da evidência que
os sustenta. Nenhum num milhar deles poderia resistir a prova de tal
exame; a maioria deles, certamente, são imposturas descaradas
abertamente justificadas pelas autoridades sobre a base da fraude
piedosa. É já razão suficiente para repudiar todos estes pretendidos
milagres, antes de qualquer exame, o fato de que sejam operados em
apoio de um sistema anticristão, que formem parte de um complicado
matagal de engano e maldade.
452
Babbage, Ninth Bridgewater Treatise, pág. 121.
453
Ibid., pág. 132.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 845
pressuposição de que o testemunho humano não é adequado para
produzir uma certeza absoluta. Os homens não duvidam em sentenciar à
morte a um semelhante, embora seja só com base no testemunho de dois
homens. A fim de que o testemunho humano leve a assentimento, deve
(1) Ser dado como prova de um acontecimento possível. O impossível
não pode ser demonstrado mediante nenhum tipo de evidência. O
professor Powell pergunta: Quanto testemunho seria necessário para
demonstrar que numa ocasião determinada dois mais dois tinham
somado cinco? Como nenhuma quantidade de testemunho pode
demonstrar tal impossibilidade, o argumento conclui no sentido de que
nenhuma quantidade de evidência pode demonstrar um milagre. Se os
milagres são impossíveis, este é o fim da questão. Ninguém é tão
insensato para pretender que se possa demonstrar o impossível. (2) A
segunda condição da credibilidade do testemunho é que o acontecimento
admita uma fácil verificação. Se alguém testifica de que viu um
fantasma, pode ser certo que via algo que ele considerou um fantasma;
mas o fato não pode ser verificado. A ressurreição de Cristo, por
exemplo, o milagre de cuja veracidade depende nossa salvação, foi um
acontecimento que podia ser autenticado. A identidade entre o Jesus
morto e vivo pôde ser estabelecido para além de toda dúvida razoável.
(3) As testemunhas devem ter um conhecimento ou evidência
satisfatórios da verdade dos fatos a respeito dos quais testificam. Se os
Apóstolos tivessem visto Cristo depois de Sua ressurreição só numa
ocasião, à grande distância, numa luz incerta, e só por um momento, o
valor de seu testemunho teria ficado grandemente prejudicado. Mas
porquanto o viram repetidamente durante quarenta dias, conversando
com Ele, comendo com Ele, e havendo-o tocado, está fora de questão
que pudessem estar errados. (4) As próprias testemunhas devem ser
homens sóbrios e inteligentes: (5) Devem ser homens bons. O
testemunho de outros homens, sob estas condições, pode ser tão
convincente como o de nossos próprios sentidos. E pode ficar
confirmado de tal maneira por evidência colateral, natural e sobrenatural,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 846
pela natureza dos efeitos produzidos, e por sinais e prodígios e dons do
Espírito Santo, para fazer com que a incredulidade seja um milagre de
insensatez e de maldade.
A falácia do argumento de Hume foi frequentemente assinalada.
Em primeiro lugar, descansa sobre a falsa pressuposição de que a
confiança no testemunho humano está baseada na experiência, enquanto
que está baseada numa lei de nossa natureza. Não podemos evitar confiar
em homens bons. Sabemos que o engano é inconsistente com a bondade;
e por isso sabemos e nos vemos forçados a crer, que homens bons não
enganarão de maneira intencionada; e por isso, por uma lei de nossa
natureza nos vemos forçados a receber seu testemunho quanto aos fatos
na esfera do conhecimento pessoal deles. A experiência, em lugar de ser
a base da crença no testemunho, corrige nossa credulidade nos ensinando
as condições únicas sob as quais podemos confiar no testemunho
humano. Em segundo lugar, Hume dá por sentado que há uma violenta
improbabilidade antecedente contra o acontecimento de um milagre, que
só uma quantidade «milagrosa» de evidência poderia contrapesar.
Certamente, não é só incrível, mas sim inconcebível, que se operasse um
milagre sem uma razão adequada. Mas pode-se esperar de maneira
confiante que Deus, em grandes ocasiões e para os mais altos fins,
intervenha com o exercício imediato de Seu poder no curso dos
acontecimentos. Sendo aceito o teísmo, desaparece a dificuldade a
respeito dos milagres, mas por teísmo não se significa a mera admissão
de que algo seja Deus, quer a natureza, a força, o movimento ou a ordem
moral; mas sim a doutrina de um Ser extramundano pessoal, o Criador e
Governador de todas as coisas, que opera segundo a Sua própria vontade
na hoste dos céus e entre os moradores da terra; um Deus que não está
limitado por influências nem leis cósmicas.
Em terceiro lugar, o argumento de Hume dá por sentado que nossa
fé nos milagres descansa exclusivamente no testemunho humano. Não é
assim. Os milagres registrados na Escritura são uma parte competente do
grande sistema de fato nela revelado. O todo se mantém ou cai junto. Por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 847
isso, nossa fé nos milagres fica sustentada por toda a evidência que
autentica o evangelho de Cristo. E esta evidência não pode ser nem
sequer tocada por um balanço de probabilidades.
Introdução
§ 3. Suas missões.
454
Veja-se Hävenick a respeito de Daniel 10:13.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 855
agem sobre nossos corpos, e que nossas mentes recebem a ação de
causas materiais. Por isso, nada há contra, inclusive além do ensino da
experiência, na doutrina de que os espíritos possam agir sobre o mundo
material. A extensão de sua ação fica limitada pelos princípios
anteriormente enunciados; e entretanto, com base em sua natureza
exaltada os efeitos que podem produzir podem exceder muito nossa
compreensão. Um anjo deu morte a todos os primogênitos dos egípcios
numa só noite; os trovões e raios que acompanharam à promulgação da
lei no Monte Sinai foram produzidos por ação angélica. Os antigos
teólogos, em numerosas ocasiões, chegaram, pelo fato admitido de que
os anjos agem desta maneira no mundo externo, à conclusão de que
todos os efeitos naturais são produzidos por ação deles, e que as estrelas
eram levadas em seus órbitas pelo poder dos anjos. Mas isto viola dois
evidentes e importantes princípios: Primeiro, que não se deveria assumir
uma causa por um efeito sem uma evidência; e segundo, que não se
deveriam supor mais causas que as necessárias para dar explicação aos
efeitos. Por isso, não estamos autorizados para atribuir nenhum
acontecimento à interferência angélica exceto sob a autoridade das
Escrituras, nem quando outras causas sejam adequadas para explicá-lo.
2. Os anjos não só executam a vontade de Deus no mundo natural,
mas também agem sobre as mentes dos homens. Têm acesso a nossas
mentes, e podem influenciá-las ao bem conforme as leis de nossa
natureza e no emprego de meios apropriados. Não agem mediante aquela
operação direta que é a peculiar prerrogativa de Deus e Seu Espírito, mas
pela sugestão da verdade e a guia do pensamento e do sentimento, de
uma maneira muito similar a como um homem pode agir sobre outro. Se
os anjos podem comunicar-se entre si, não há razão alguma pela qual não
possam, de maneira similar, comunicar-se com nossos espíritos. Assim,
nas Escrituras se apresentam os anjos não só como provendo uma guia e
proteção gerais, mas também como dando força e consolação interiores.
Se um anjo fortaleceu a nosso próprio Senhor após Sua agonia no jardim,
Seu povo pode também experimentar o apoio de anjos; e se anjos maus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 856
tentam ao pecado, bons anjos podem atrair à santidade. É coisa certa que
lhes é atribuído nas Escrituras uma ampla influência e operação em
promover o bem-estar dos filhos de Deus, e na proteção dos mesmos do
mal e na defesa deles de seus inimigos. O uso que nosso Senhor faz da
promessa: «Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te
guardem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos,
para não tropeçares nalguma pedra» (Sl 91:11,12), mostra que não se
deve tomar como uma mera forma poética de promessa de proteção
divina. Eles vigiam sobre os pequenos (Mt 18:10); ajudam os de idade
amadurecida (Sl 34:7), e estão presentes junto aos moribundos (Lc
16:22).
3. Também lhes é atribuída uma ação especial como servos de
Cristo no avanço de Sua Igreja. Como a lei foi dada por meio do
ministério deles, como estiveram encarregados do povo sob a antiga
economia, também são tratados como presentes na assembleia dos santos
(1Co 11:10), e como constantemente guerreando contra o dragão e seus
anjos.
Esta doutrina escriturística do ministério dos anjos está cheia de
consolação para o povo de Deus. Os membros deste povo podem
alegrar-se na certeza de que estes santos seres acampam junto a eles;
defendendo-os de dia e de noite de inimigos invisíveis e de perigos
inopinados. Ao mesmo tempo não devem interpor-se entre nós e Deus.
Não devemos esperar neles nem invocar a ajuda deles. Eles estão nas
mãos de Deus e cumprem Sua vontade. Ele os usa como usa os ventos e
os raios (Hb 1:7), e não devemos olhar aos instrumentos no primeiro
caso mais que no outro.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 857
§ 4. Os anjos maus.
1
Werke. edit. Walch, vol. xiii. p. 2850. (?)
2
Edit. Walch, vol. x. p. 1234, edit. Erlangen, 1823, vol. xvii. p. 178.
3
Institutio, I. xii. 13.
4
Ibid. 16.