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TEOLOGIA SISTEMÁTICA

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VOLUME I

CHARLES HODGE, D.D.

Tradutor e digitador:

Carlos Biagini
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 2
ÍNDICE

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I
SOBRE O MÉTODO

§1. A teologia, uma ciência


A necessidade de sistema em teologia
§2. O método teológico
§3. O método especulativo
Forma deísta e racionalista
Forma dogmática
Os transcendentalistas
§4. O método místico
O misticismo em sua aplicação à teologia
Consequências do método místico
§5. O método indutivo
O método indutivo em sua aplicação à Teologia
A coleta dos fatos
O teólogo deve ser conduzido pelas mesmas regras
que o homem de ciência.
Necessidade de uma indução completa
Os princípios devem ser deduzidos com base nos fatos
§6. As Escrituras contêm todos os fatos da Teologia.
O Ensino do Espírito
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 3
CAPÍTULO II
TEOLOGIA

§1. Sua natureza


Definições de teologia
Teologia natural
§2. Os fatos da natureza revelam a Deus
A. Resposta aos argumentos anteriores
B. Argumento escriturístico para a Teologia Natural
§3. A insuficiência da Teologia Natural
A. O que dizem as Escrituras a respeito da salvação
dos homens. A salvação das crianças.
B. A regra do juízo para os adultos
C. Todos os homens sob condenação.
D. As condições necessárias para a salvação
E. Objeções
§4. A teologia cristã
Teologia Própria
Antropologia
Soteriologia
Escatologia
Eclesiologia

CAPÍTULO III
RACIONALISMO

§1. Significado e uso do termo


§2. Racionalismo deísta
A. Possibilidade de uma revelação sobrenatural
B. Necessidade de uma revelação sobrenatural
C. As Escrituras contêm uma revelação assim
O argumento da profecia
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 4
Argumento com base nos efeitos do Evangelho
§3. A segunda forma do racionalismo.
A. Sua natureza
B. Refutação
C. História
Racionalismo na Alemanha
§4. Dogmatismo, a terceira forma do racionalismo
A. Significado do termo
Wolfianismo
B. Refutação
O testemunho das Escrituras contra o dogmatismo
§5. O papel próprio da razão em matéria de religião
A. A razão é necessária para a recepção de uma Revelação
Diferença entre Conhecimento e Entendimento.
B. A razão deve julgar a respeito da credibilidade de uma
Revelação
O impossível não pode ser crido
O que é impossível
Prova desta prerrogativa da razão
C. A razão deve julgar quanto às Evidências de uma Revelação
§6. Relação entre a filosofia e a Revelação
A filosofia e a teologia ocupam um terreno comum
Os filósofos e os teólogos deveriam esforçar-se pela unidade
A autoridade dos fatos
A autoridade da Bíblia, mais elevada que a da Filosofia
§7. O papel dos sentidos nos assuntos da fé

CAPÍTULO IV
MISTICISMO

§1. Significado das palavras entusiasmo e misticismo.


A. Uso filosófico do termo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 5
B. O sentido em que os cristãos evangélicos são chamados
místicos.
C. O sistema que faz dos sentimentos a fonte do conhecimento
A teoria de Schleiermacher
D. O misticismo conhecido na História da Igreja
O misticismo não é idêntico à doutrina da “iluminação
do Espírito”
Difere da doutrina da “guia do Espírito”
Difere da doutrina da “graça comum”
§2. O misticismo na Igreja Primitiva
A. O montanismo
B. O assim chamado Dionísio, o areopagita
C. O neoplatonismo
Causas da influência dos escritos do pseudo-Dionísio
§3. O misticismo durante a Idade Média
A. Características gerais daquele período.
A primeira classe de teólogos medievais
A segunda classe
B. Místicos medievais
Tendências panteístas do misticismo
Os místicos evangélicos
§4. O misticismo durante e depois da Reforma.
A. O efeito da Reforma na mente popular.
As desordens populares não foram um efeito da Reforma
B. Místicos entre os Reformadores
Sckwenkfeld
Os místicos posteriores
§5. O Quietismo
A. Seu caráter geral
B. Líderes deste movimento
Madame Guyon
Arcebispo Fénélon
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 6
§6. Os Quakeres ou Amigos
A. Sua origem e primeira história
B. Suas doutrinas.
As doutrinas dos Amigos Ortodoxos
Amigos Heterodoxos
C. A doutrina dos Amigos quanto à luz interior dada a todos os
homens
As posturas de Barclay
§7. Objeções à Teoria Mística
O misticismo não se baseia nas Escrituras
O misticismo é contrário às Escrituras
O misticismo é contrário aos fatos da experiência
Não há critério para julgar da fonte de sugestões interiores
A doutrina é produtora de males

CAPÍTULO V
A DOUTRINA CATÓLICA ROMANA A RESPEITO
DA REGRA DA FÉ

§1. Declaração da doutrina


§2. A doutrina Católica Romana a respeito das Escrituras
As Escrituras são incompletas
A obscuridade das Escrituras
A Vulgata Latina
§3. A Tradição
A Doutrina Tridentina
§4. O ofício da Igreja como Mestra
Os órgãos da infalibilidade da Igreja
A teoria Ultramontana
§5. Exame das doutrinas romanistas
§6. Exame da doutrina da Igreja de Roma a respeito da Tradição
A. Diferença entre Tradição e a Analogia da Fé
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 7
B. Pontos de diferença entre a doutrina romanista e a dos
protestantes a respeito do consentimento comum.
C. Tradição e Desenvolvimento
A moderna teoria do desenvolvimento
O desenvolvimento conforme sustentam alguns romanistas
A verdadeira questão
D. Argumentos contra a doutrina da Tradição
Não há promessa de intervenção divina
Não há critério
O consentimento comum não é critério
O inadequado das evidências do consentimento
A tradição não está à disposição do povo
A tradição destrói a autoridade das Escrituras
As Escrituras não são recebidas sobre a base da tradição
§7. O ofício da Igreja como Mestra
A. A doutrina romanista a respeito desta questão
B. A definição romanista da Igreja se deriva do que é agora a
Igreja de Roma
C. A definição romanista da Infalibilidade baseada sobre uma
teoria errônea da Igreja.
A doutrina protestante da natureza da Igreja
As teorias conflitivas a respeito da Igreja
Prova da doutrina protestante da Igreja
D. A doutrina da Infalibilidade se baseia na falsa pressuposição
da perpetuidade do apostolado
Os modernos prelados não são apóstolos
E. A Infalibilidade se baseia numa falsa interpretação da
promessa de Cristo
F. A doutrina é contrariada pelos fatos
A apostasia ariana
A evasão romanista deste argumento
A Igreja de Roma rejeita a doutrina de Agostinho
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 8
G. A Igreja de Roma ensina agora o erro
H. O reconhecimento de uma Igreja Infalível é incompatível
com a liberdade religiosa ou civil

CAPÍTULO VI
A REGRA PROTESTANTE DA FÉ

§1. Enunciado da doutrina


O Cânon
§2. As Escrituras são infalíveis, isto é, são dadas por Inspiração
Divina
A. A natureza da Inspiração. Definição
B. A Inspiração é sobrenatural
C. Distinção entre Revelação e Inspiração
D. Homens inspirados foram órgãos de Deus
E. Prova da doutrina
Argumento baseado no significado da palavra profeta
O que os profetas disseram, Deus o disse
A inspiração dos escritores do Novo Testamento
O Testemunho de Paulo
F. A Inspiração estende-se igualmente a todas as partes da
Escritura
G. A Inspiração das Escrituras estende-se às Palavras.
Inspiração plenária
H. Considerações gerais em apoio da doutrina
I. Objeções
Discrepâncias e erros
Objeções históricas e científicas
§3. Teorias adversas
A. Doutrinas naturalistas
A teoria de Schleiermacher
Objeções à teoria de Schleiermacher
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 9
B. Inspiração graciosa
Objeções à doutrina de que a inspiração é comum a todos os
crentes
C. Inspiração parcial
§4. A Integridade das Escrituras
§5. A perspicuidade das Escrituras. O direito ao juízo privado
O povo tem ordem de esquadrinhar as Escrituras
§6. Regras de interpretação

PARTE I: TEOLOGIA PRÓPRIA


CAPÍTULO I
A ORIGEM DA IDEIA DE DEUS

§1. O conhecimento de Deus como coisa inata


A. O que se entende por conhecimento inato
B. Prova de que o conhecimento de Deus é inato
O conhecimento de Deus é universal
Objeções à pressuposição de que o conhecimento de Deus é
universal
A crença em Deus é necessária
§2. O conhecimento de Deus não se deve a um processo de
raciocínio
§3. O conhecimento de Deus não se deve exclusivamente à
Tradição
§4. Pode-se demonstrar a existência de Deus?

CAPÍTULO II
TEÍSMO

§1. O argumento ontológico


O argumento de Descartes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 10
O argumento do doutor Samuel Clarke
O argumento de Cousin
§2. O argumento cosmológico
A. A causalidade
A doutrina comum sobre esta questão
A convicção intuitiva da necessidade de uma Causa
O mundo é um efeito
B. O argumento histórico
O argumento geológico
C. Objeções. A doutrina de Hume
A segunda objeção
§3. O argumento teleológico
A. Sua natureza.
B. Evidências de desígnio no mundo
Desígnio em órgãos singelos
Desígnio na relação de um órgão ao outro
A adaptação dos órgãos ao instinto dos animais
Argumento com base na previsão
Organismos vegetais
Quanto às adaptações da natureza
Todas criaturas vivas sobre a terra têm relações orgânicas
Evidência de que a terra foi designada para o homem
Disposições cósmicas
§4. Objeções ao argumento com base no desígnio
A. A negação das causas finais
B. Objeções de Hume e Kant
Resposta às objeções
C. Objeções miscelâneas
Órgãos inúteis
O instinto
§5. O argumento moral ou antropológico
A. Natureza do argumento
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 11
B. Argumento baseado na existência da mente
C. Baseado na natureza da alma
D. Baseado na natureza moral do homem
Nossos sentimentos morais não se devem à educação

CAPÍTULO III
TEORIAS ANTITEÍSTAS

§1. Que se entende pelo Antiteísmo


Ateísmo
É possível o Ateísmo?
§2. Politeísmo
§3. Hilozoísmo
§4. Materialismo
A. A doutrina de Epicuro
B. O materialismo na Inglaterra durante o século dezoito
Locke
Hartley
Priestley
C. O materialismo na França durante o século dezoito
D. O positivismo
Observações
Aplicações práticas do Positivismo
E. O materialismo científico.
Princípios condutores
Correlação das Forças Físicas e Vitais
Teoria do Dr. Carpenter
As opiniões mais avançadas
O argumento para as correlação das Forças Físicas e Vitais
Vida animal
Os fenômenos mentais
Os físicos alemães.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 12
F. Refutação
O materialismo contradiz os atos da consciência
O materialismo contradiz as Verdades da Razão
O materialismo é inconsequente com os fatos da experiência
O materialismo é Ateu
A correlação das forças físicas, vitais e mentais
Os argumentos a favor de tal correlação não são válidos
O argumento da analogia
Argumentos adicionais dos Materialistas
Argumentos diretos contra a teoria da correlação das forças
físicas, vitais e mentais
Prof. Joseph Henry
Dr. Beale
Alfred Russel Wallace
As forças vitais e as físicas não são conversíveis
Wallace, o naturalista
§5. Panteísmo
A. O que é o Panteísmo
Princípios gerais do sistema
História do panteísmo
B. Panteísmo Brahmânico
A religião dos hindus, não originalmente monoteísta
Era panteísta
Relação do Ser infinito com o mundo
Relação do Panteísmo com o Politeísmo
O efeito do Panteísmo sobre a religião
O caráter do culto hindu
A antropologia dos hindus
O efeito do panteísmo sobre a vida social dos hindus
C. O panteísmo grego
A escola jônica
A escola eleática
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 13
Os Estoicos
Platão
As Ideias
A relação das Ideias com Deus na filosofia de Platão
A cosmogonia de Platão
A natureza da alma
Aristóteles
D. O panteísmo medieval.
Os Neoplatonistas
João Escoto Erígena
E. O panteísmo moderno.
Espinoza
F. Conclusão

CAPÍTULO IV
O CONHECIMENTO DE DEUS

§1. Deus pode ser conhecido.


A. Estado da questão
Deus é inconcebível
Deus é incompreensível
Nosso conhecimento de Deus é parcial
B. Como conhecemos a Deus?
C. Prova de que este método é fidedigno
Nossa natureza moral demanda esta ideia de Deus
Nossa natureza religiosa faz a mesma demanda
Argumento com base na Revelação de Deus na Natureza
Argumento com base na Escritura
Argumento com base na manifestação de Deus em Cristo
§2. Deus não pode ser conhecido plenamente.
O argumento de Sir William Hamilton
Só o Infinito pode conhecer o Infinito
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 14
O Infinito não pode Conhecer
O Absoluto não pode ser a Causa
A Conclusão a que conduz o argumento de Hamilton
§3. A doutrina de Hamilton
A. Deus é um objeto da fé, mas não do Conhecimento
Diferentes classes de ignorância
Prova de que Hamilton nega que podemos conhecer a Deus
A doutrina de Hamilton sobre Deus como um objeto de Fé
O Impensável, ou Impossível, não pode ser um objeto de fé
O Conhecimento é essencial à fé
B. Conhecimento regulador
Objeções à doutrina do conhecimento regulador
C. Objeções à teoria inteira
Definição errada de conhecimento
Que se quer dizer por conhecimento
A doutrina de Hamilton conduz ao cepticismo
A necessidade de uma Revelação sobrenatural

CAPÍTULO V
A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE DEUS

§1. Definições de Deus


O ser de Deus
§2. Os Atributos divinos
A relação dos atributos com a essência de Deus
Os Atributos divinos
Os atributos divinos não diferem só em nossas concepções
Os atributos divinos não são resolvidos na Causalidade
Os atributos divinos diferem virtualmente
§3. A classificação dos atributos divinos
§4. A espiritualidade de Deus
A. O significado da palavra “Espírito”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 15
B. Consequências da Espiritualidade de Deus
As Escrituras confirmam estas posturas
§5. Infinitude
A ideia de Infinitude não é uma meramente negativa
A. Infinito não é o Todo
B. Infinitude de Deus com relação ao espaço
§6. Eternidade
A. A doutrina escriturística
B. A postura filosófica
Posturas filosóficas modernas
§7. Imutabilidade
Declarações Filosóficas
Os atributos absolutos de Deus não são inconsistentes com a
Personalidade
§8. Conhecimento
A. Sua natureza
A teoria panteísta impede a possibilidade de conhecimento de
Deus
Conhecimento e Poder não se devem confundir
A doutrina da Escritura a respeito deste extremo
B. Os objetos do conhecimento divino
O atual e o possível
C. A Scientia Media
A origem desta distinção
D. Presciência
E. A Sabedoria de Deus
§9. A vontade de Deus
A. Significado do termo
B. A liberdade da Vontade Divina
C. A Vontade decretiva e preceptiva de Deus
D. A Vontade antecedente e consequente
E. A Vontade absoluta e condicional
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 16
F. A vontade de Deus como base da obrigação moral
§10. O poder de Deus
A. A natureza do poder, ou, A origem da ideia
B. Onipotência
C. A negação do poder
D. Poder absoluto
“Potentia absoluta” e “Potentia Ordinata”
E. Não se devem confundir Vontade e Poder
Esta doutrina destrói nosso conhecimento de Deus
§11. A santidade de Deus
Razões alegadas para negar os atributos morais de Deus
§12. Justiça
A. Sentido do termo
B. A justiça em sua relação com o pecado
C. A reforma do ofensor não é o objeto primário do castigo
D. A prevenção do crime não é o objeto primário do castigo
A Teoria Otimista
E. Prova da doutrina escriturística
O argumento da experiência religiosa dos crentes
O sentido da justiça não se deve à cultura cristã
Argumento com base na santidade de Deus
Argumento da conexão entre pecado e miséria
Argumento com base nas doutrinas bíblicas da
satisfação e da justificação
O argumento de Paulo
F. Concepções filosóficas da natureza da justiça
§13. A bondade de Deus
A. A doutrina escriturística
Benevolência
Amor
B. A existência do mal
Teorias que envolvem a negação do pecado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 17
O pecado considerado como o meio necessário para o
maior bem
Objeções a esta teoria
A doutrina de que Deus não pode impedir o pecado
num sistema moral
A doutrina escriturística
§14. A verdade de Deus
§15. A soberania de Deus

CAPÍTULO VI
A TRINDADE

§1. Observações preliminares


§2. Forma bíblica da doutrina
A. Qual é a forma que adota
B. Prova escriturística da doutrina
Caráter progressivo da Revelação divina
A fórmula batismal
A bênção apostólica
§3. O período de transição
A. A Necessidade de uma declaração mais definida da doutrina
B. Conflito com o erro
Os gnósticos
Os platonistas
A doutrina de Orígenes
A teoria sabeliana
Arianismo
§4. A doutrina da Igreja apresentada no Concílio de Niceia
A. Os Motivos pelos quais se convocou o Concílio
Diferença de opinião entre os membros do Concílio
Os Semi-Arianos
Os Ortodoxos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 18
B. O Concílio de Constantinopla
O Credo chamado Atanasiano
O Credo Atanasiano
§5. Pontos decididos pelos Concílios de Niceia e de Constantinopla
A. Contra o Sabelianismo
B. Contra os arianos e os semi-arianos
C. A relação mútua das Pessoas da Trindade
§6. Exame da Doutrina Nicena
A. Subordinação
B. Geração eterna
C. Filiação eterna
Objeções à doutrina
Salmo 2:7
Atos 13:32,38
Lucas 1:35
D. Relação do Espírito com as outras Pessoas da Trindade
§7. Concepções filosóficas da doutrina da Trindade
Trinitarianismo panteísta

CAPÍTULO VII
A DIVINDADE DE CRISTO

§1. O testemunho do Antigo Testamento


O Proto-Evangelho
Jeová e o Anjo de Jeová
A. O Livro de Gênesis
B. Os outros livros históricos do Antigo Testamento
C. Diferentes modos de explicar estas passagens
D. Os Salmos
E. Os Livros Proféticos
§2. As características gerais do ensino do Novo Testamento a
respeito de Cristo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 19
A. O sentido em que Cristo é chamado Senhor
B. Cristo é apresentado como o Objeto de nossos afetos
religiosos
C. As relações que Cristo tem com Seu povo e com o mundo
Sua autoridade como Mestre
Seu controle sobre todas as criaturas
D. A natureza de Suas promessas
E. Seu controle sobre a natureza
§3. Passagens particulares do Novo Testamento que ensinam a
Divindade de Cristo
A. Os Escritos de São João
Outras passagens no Evangelho de São João
O último discurso de nosso Senhor
As Epístolas de São João
O Apocalipse
B. As Epístolas de São Paulo
As Epístolas aos Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
As Epístolas Pastorais
A Epístola aos Hebreus
C. Os outros Escritores Sagrados do Novo Testamento

CAPÍTULO VIII
O ESPÍRITO SANTO

§1. Sua natureza


A. Sua Personalidade
Prova de Sua personalidade
B. A Divindade do Espírito Santo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 20
A relação do Espírito com o Pai e o Filho
§2. O ofício do Espírito Santo
A. Em a Natureza
O Espírito, a fonte de toda vida intelectual
B. O ofício do Espírito na obra da Redenção
§3. História da doutrina a respeito do Espírito Santo

CAPÍTULO IX
OS DECRETOS DE DEUS

§1. A natureza dos Decretos divinos


A. A Glória de Deus é a causa final de Seus Decretos
B. Os Decretos são reduzíveis a um propósito
C. Os Decretos de Deus são eternos
D. Os Decretos de Deus são imutáveis
E. Os Decretos de Deus são livres
F. Os Decretos de Deus são certamente eficazes
G. Os Decretos de Deus se relacionam com todos os
acontecimentos
As ações livres estão predeterminadas
§2. Objeções à doutrina dos decretos divinos
A. A preordenação, inconsequente com o livre-arbítrio
B. A preordenação do pecado, inconsequente com a santidade
C. A doutrina dos decretos destrói todo motivo para o
esforço
D. É fatalismo

CAPÍTULO X
A CRIAÇÃO

§ 1. Diferentes teorias sobre a origem do universo


A teoria puramente física
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 21
As teorias que assumem Inteligência na própria natureza
A doutrina escriturística
§2. Criação mediata e imediata
§3. Prova da doutrina
§4. Objeções à doutrina
Resposta às objeções anteriores
§5. O propósito da Criação
Doutrina escriturística quanto ao propósito da Criação
§6. O relato mosaico da Criação
Objeções ao relato mosaico da Criação
A Geologia e a Bíblia

CAPÍTULO XI
A PROVIDÊNCIA

§1. Preservação
A natureza da preservação
A preservação não é uma criação contínua
Objeções à doutrina de uma criação contínua
A doutrina escriturística a respeito desta questão
§2. Governo
Enunciado da doutrina
A. Prova da doutrina
1. Prova com base na evidência da operação da
Mente em todos lugares
2. Argumento com base em nossa natureza religiosa
3. Argumento com base nas predições e promessas
4. Argumento com base na experiência
B. As Escrituras ensinam a providência de Deus sobre a
natureza
A providência se estende sobre o mundo animal
Sobre as nações
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 22
Sobre os indivíduos
A providência de Deus com relação às ações livres
A relação da providência de Deus com o pecado
§3. Teorias diferentes a respeito do governo divino
A. A teoria deísta da relação de Deus com o mundo
B. A teoria da completa dependência
Objeções a esta doutrina da dependência
C. A doutrina de que não há eficiência exceto na mente
D. Teoria da harmonia preestabelecida
E. A doutrina de Concursus
Observações a respeito da doutrina de Concursus
§4. Os princípios envoltos na doutrina escriturística da
Providência
A. A Providência de Deus sobre o universo material
A matéria é ativa
As leis da Natureza
A uniformidade das leis da Natureza, congruente com
a doutrina da Providência
A Providência de Deus com relação aos processos vitais
B. A Providência de Deus sobre as criaturas racionais
Distinção entre a eficiência providencial de Deus e as
influências do Espírito Santo
Conclusão

CAPÍTULO XII
OS MILAGRES

§1. Sua natureza. Significado e uso da palavra


Definição de Milagre
Objeções a esta definição de Milagre
Resposta à objeção anterior
Leis mais elevadas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 23
Objeções à doutrina de uma lei superior
Os milagres e as providências extraordinárias
§2. A possibilidade dos milagres
§3. Pode um milagre ser conhecido como tal?
Prodígios mentirosos
A insuficiência do testemunho humano
§4. O valor dos milagres como prova da Revelação divina

CAPÍTULO XIII
OS ANJOS

Introdução
§1. Sua natureza
Erros a respeito desta questão
§2. Seu estado
§3. Suas missões
§4. Os anjos maus
O poder e a atividade dos maus espíritos
Possessões demoníacas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 24

INTRODUÇÃO
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 25
CAPÍTULO I
SOBRE O MÉTODO

§ 1. A teologia, uma ciência

EM todas as ciências há dois fatores: fatos e ideias; ou, fatos e a


mente. A ciência é mais que conhecimento. O conhecimento é a
persuasão a respeito do que é certo com base numa evidência adequada.
Mas os dados da astronomia, da química ou da história não constituem a
ciência destes departamentos do conhecimento. Tampouco a mera
disposição ordenada dos fatos constitui ciência. Os fatos históricos
narrados por sua ordem cronológica são meros anais. A filosofia da
história supõe que estes fatos devem ser compreendidos com base em
suas relações causais. Em cada departamento supõe-se que o homem de
ciência deve compreender as leis por meio das que se determinam os
fatos da experiência; de modo que não só conheça o passado, mas
também possa predizer o futuro. O astrônomo pode predizer a posição
relativa dos corpos celestes para os séculos futuros. O químico pode
dizer com certeza qual será o efeito de certas combinações químicas.
Então, se a teologia é uma ciência, deve incluir algo mais que um mero
conhecimento dos fatos. Deve incluir uma exibição da relação interna
destes fatos, uns com os outros, e de cada um deles com todos os outros.
Deve poder mostrar que se se admitir um, não se podem negar os outros.
A Bíblia não é um sistema de teologia do mesmo modo que a
natureza não é um sistema de química ou de mecânica. É na natureza que
encontramos os fatos que o químico ou o físico devem examinar, e deles
determinar as leis que os regem. Da mesma maneira, a Bíblia contém as
verdades que o teólogo tem que recolher, dispor e exibir em sua mútua
relação interna. Esta é a diferença entre a teologia bíblica e a sistemática.
A função da primeira é determinar e enunciar os fatos da Escritura. A
função da última é tomar estes fatos, determinar sua relação entre si e
com outras verdades relacionadas, assim como vindicá-las e mostrar sua
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 26
harmonia e consistência. E esta não é uma tarefa fácil, nem de pouca
importância.

A necessidade de sistema em teologia


É natural perguntar-se: Por que não tomar as verdades tal como
Deus viu adequado revelar, e nos poupar assim a fadiga de mostrar sua
relação e harmonia?
A resposta a esta pergunta é, em primeiro lugar, que não se pode
fazer assim. É tal a constituição da mente humana que não pode deixar
de tentar sistematizar e conciliar os fatos que admite como certos. Em
nenhum departamento do conhecimento os homens ficaram satisfeitos
com a posse de uma massa de fatos não assimilados. E tampouco se pode
esperar que os estudantes da Bíblia fiquem satisfeitos com isso. Existe,
portanto, a necessidade de construir sistemas de teologia. Sobre isto a
história da Igreja dispõe de prova abundante. Tais sistemas foram
produzidos em todas as idades e entre todas as denominações.
Segundo: obtém-se desta maneira uma classe muito superior de
conhecimento ao que se consegue pela mera acumulação de fatos
isolados. Uma coisa é saber, por exemplo, que existem oceanos,
continentes, ilhas, montes e rios por toda a superfície da terra; e outra
coisa mais elevada é saber as causas que determinaram a distribuição da
terra e da água sobre a superfície de nosso globo; a configuração da
terra; os efeitos desta configuração sobre o clima, sobre as raças de
plantas e animais, sobre o comércio, a civilização e o destino das nações.
É pelo fato de determinar estas causas que a geografia foi elevada de
uma coleção de fatos para uma ciência altamente importante e elevada.
De certa forma, sem o conhecimento das leis de atração e movimento, a
astronomia seria uma coleção confusa e ininteligível de atos. O que é
certo de outras ciências é certo da teologia. Não podemos saber o que é
que Deus nos revelou em Sua palavra a não ser que compreendamos, ao
menos em certa medida, a relação que têm entre si as verdades separadas
que esta Palavra contém. Custou à Igreja séculos de estudo e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 27
controvérsia resolver o problema a respeito da pessoa de Cristo; isto é,
ajustar e levar a uma disposição harmônica todos os fatos que a Bíblia
ensina a respeito deste tema.
Terceiro: Não temos escolha nesta questão. Se queremos cumprir
nosso dever como mestres e defensores da verdade temos que tratar de
trazer todos os fatos da revelação a uma ordem sistemática e uma mútua
relação. Só assim poderemos exibir de uma maneira satisfatória sua
veracidade, vindicá-los diante de objeções, ou fazer com que exerçam
todo seu peso sobre as mentes dos homens.
Quarto: Esta é evidentemente a vontade de Deus. Ele não ensina aos
homens astronomia nem química, mas lhes dá os fatos com base nos
quais se erguem estas ciências. Tampouco nos ensina teologia
sistemática, mas nos dá na Bíblia as verdades que, apropriadamente
entendidas e ordenadas, constituem a ciência da teologia. Assim como os
fatos da natureza em todos relacionados e determinados pelas leis físicas,
assim os fatos da Bíblia estão todos relacionados e determinados pela
natureza de Deus e de Suas criaturas. E assim como Ele quer que os
homens estudem Suas obras e descubram sua maravilhosa relação
orgânica e harmônicas combinações, assim é Sua vontade que estudemos
Sua palavra, e aprendamos que, como as estrelas, Suas verdades não são
pontos isolados, mas sim sistemas, ciclos e epiciclos numa harmonia e
grandeza sem fim. Além disto, embora as Escrituras não contêm um
sistema de teologia como um todo, temos partes elaboradas deste sistema
nas Epístolas do Novo Testamento. E estas são nossa autoridade e guia.

§ 2. O método teológico

Cada ciência tem seu próprio método, determinado pela peculiar


natureza da mesma. Esta é uma questão de tal importância que foi
constituída como um departamento próprio. A literatura moderna abunda
em obras sobre Metodologia, isto é, sobre a ciência do método, e estas
obras têm o propósito de decidir os princípios que deveriam reger as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 28
investigações científicas. Se se adotar um método falso, é como quem
toma um caminho errôneo que nunca o levará a seu destino. Os dois
grandes métodos inclusivos são o a priori e a posteriori. O primeiro
argumenta da Causa ao efeito, o segundo do efeito à causa. O primeiro se
aplicou durante séculos inclusive à investigação da natureza. Tentava-se
determinar quais devem ser os atos da natureza com base das leis da
mente ou das supostas leis necessárias. Até em nosso próprio tempo
tivemos Cosmogonias Racionais, que levam a construir uma teoria do
universo da natureza de ser absoluto e seus modos necessários de
desenvolvimento. Todos sabem o que custou estabelecer o método da
indução sobre uma base firme e obter um reconhecimento geral de sua
autoridade. Segundo este método, começamos recolhendo fatos bem
estabelecidos, e deles inferimos as leis gerais que os regem. Com base no
fato de que os corpos caem rumo ao centro da Terra se inferiu a lei geral
da gravitação, que estamos autorizados a aplicar muito além dos limites
da experiência real. Este método indutivo se baseia em dois princípios:
Primeiro: Que há leis da natureza (forças) que são as causas próximas
dos fenomenais naturais. Segundo: Que estas leis são uniformes. Por isso
temos a segurança de que as mesmas causas, sob as mesmas
circunstâncias, produzirão os mesmos efeitos. Pode dar-se uma
diversidade de opinião a respeito da natureza destas leis. Pode supor-se
que sejam forças inerentes na matéria; ou podem ser consideradas como
modos uniformes da operação divina; mas em todo caso deve haver
alguma causa para os fenômenos que recebemos ao nosso redor, e esta
causa deve ser uniforme e permanente. É sobre estes princípios que se
fundamentam todas as ciências indutivas, e é por eles que são
conduzidas as investigações dos filósofos naturais.
O mesmo princípio aplica-se à metafísica que à física; à psicologia
que à ciência natural. A mente tem suas leis, o mesmo que a matéria, e
estas leis, embora de natureza distinta, são tão permanentes como as do
mundo externo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 29
Os métodos que se aplicaram ao estudo da teologia são muito
numerosos para podê-los considerar separadamente. Talvez possam
reduzir-se a três classes gerais: Primeiro, o especulativo; segundo, o
místico; terceiro, o indutivo. Estes termos, certamente, estão bem longe
de ser precisos. São usados por falta de algo melhor para designar os três
métodos gerais de investigação teológica que prevaleceram na Igreja.

§ 3. O método especulativo

A especulação pressupõe certos princípios de uma maneira


apriorística, e com base neles empreende a determinação do que é e do
que deve ser. Decide a respeito de todas as verdades, ou determina a
respeito do que é certo com base nas leis da mente, ou com base nos
axiomas implicados na constituição do princípio pensante em nosso
interior. É sob este cabeçalho que se devem pôr todos aqueles sistemas
que se baseiam em qualquer tipo de pressuposições filosóficas a priori.
Há três formas gerais nas quais se aplicou este método especulativo à
teologia.

Forma deísta e racionalista


1. A primeira forma é aquela que rechaça qualquer forma de
conhecimento a respeito das coisas divinas à parte da que se desprende
da natureza e constituição da mente humana. Pressupõe certos axiomas
metafísicos e morais, e com base neles desenvolve todas as verdades que
está disposta a admitir. A esta classe pertencem os escritores deístas e
estritamente racionalistas das gerações passadas e presentes.

Forma dogmática
2. A segunda forma é o método adotado por aqueles que, admitindo
uma revelação divina sobrenatural e concedendo que tal revelação está
contida nas Escrituras cristãs, reduzem entretanto todas as doutrinas
assim reveladas às formas de algum sistema filosófico. Isto o fizeram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 30
muitos dos pais [da Igreja] que tentaram exaltar a πίστις [pistis] a γνῶσις
[gnosis], isto é, a fé das pessoas simples em filosofia para os acadêmicos.
Este, em maior ou menor grau, foi também o método dos escolásticos, e
acha uma ilustração incluso no «Cur Deus Homo» de Anselmo, o pai da
teologia escolástica. Em tempos posteriores Wolf aplicou a filosofia de
Leibnitz para a explicação e demonstração das doutrinas do Apocalipse.
Ele diz: “A Escritura serve de ajuda à teologia natural. Abastece a
teologia natural com proposições que deveriam ser demonstradas;
consequentemente o filósofo está destinado a não inventar, mas sim
demonstrar.” 1 Este método segue ainda em voga. Estabelecem-se certos
princípios, chamados axiomas, ou primeiras verdades da razão, e deles se
deduzem as doutrinas da religião mediante um curso argumentativo tão
rígido e implacável como o de Euclides. Isto se faz em ocasiões para a
total demolição das doutrinas da Bíblia e das mais profundas convicções
morais não só dos cristãos mas também das massas da humanidade. Não
se permite murmurar a consciência na presença do dominador
entendimento. Está no espírito do mesmo método que a velha doutrina
escolástica de realismo é feita na base das doutrinas bíblicas do pecado e
redenção original. A este método se aplicou o termo, melhor dito,
ambíguo de dogmatismo, porque tenta conciliar as doutrinas da Escritura
com a razão, e levar sua autoridade a repousar sobre evidências
racionais. O resultado deste método foi sempre, até onde teve êxito, o de
transmutar a fé em conhecimento, e para chegar a este fim se
modificaram de maneira indefinida os ensinos da Bíblia. Espera-se dos
homens que creiam não com base na autoridade de Deus, mas sim na
autoridade da razão.

Os transcendentalistas
3. Em terceiro lugar, os modernos transcendentalistas estão aderidos
ao método especulativo. São racionalistas no sentido amplo do termo, e

1
Theol. Nat. Prolegg. § 22; Frankf. and Leipz. 1736, vol. i. p. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 31
não admitem uma fonte mais elevada de verdade que a razão. Mas
devido ao fato de que eles consideram a razão como algo muito diferente
do que pensam os racionalistas comuns, as duas classes estão, na prática,
muito distanciadas. Os transcendentalistas diferem também
essencialmente dos dogmatistas. Os últimos admitem uma revelação
externa, sobrenatural e autoritativa. Reconhecem que por ela se dão a
conhecer verdades que a razão humana não pode descobrir. Mas mantêm
que estas doutrinas, quando são conhecidas, podem ser demonstradas
como certas com base nos princípios da razão. Buscam dar uma
demonstração independente das Escrituras a respeito das doutrinas da
Trindade, da Encarnação, da Redenção, assim como da imortalidade da
alma e de um futuro estado de retribuição. Os transcendentalistas não
admitem nenhuma revelação autoritativa à parte da que se encontra no
homem e no desenvolvimento histórico da raça. Toda verdade deve ser
descoberta e estabelecida pelo processo do pensamento. Se se conceder
que a Bíblia contém a verdade, só é assim enquanto coincide com os
ensinamentos da filosofia. Esta mesma concessão faz-se livremente a
respeito dos escritos dos sábios pagãos
A teologia de Daub, por exemplo, é nada além da filosofia do
Schelling. Isto é, ensina sozinho o que aquela filosofia ensina relativo a
Deus, homem, pecado, redenção, e o estado futuro. Marheinecke e
Strauss acham hegelianismo na Bíblia, e eles então admitem que até
agora a Bíblia ensina a verdade. Rosenkranz, um filósofo da mesma
escola, diz que o cristianismo é a religião absoluta, porque seu princípio
fundamental, isto é, a unidade de Deus e homem, é o princípio
fundamental de sua filosofia. Em sua “Encyklopädie” (pág. 3) ele diz:
“A única religião que se ajusta à razão é o cristianismo, porque ele
concede ao homem como a forma na qual Deus Se revelou a Si mesmo.
Sua teologia é então antropologia, e sua antropologia é teologia. A ideia
de (Gottmenschheit) a divindade do homem, é a chave do cristianismo,
em que como diz Lessing, descansa sua racionalidade.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 32
Estas são as principais formas do método especulativo em sua
aplicação à teologia. Estes temas serão apresentados em uma
consideração mais plena num capítulo posterior.

§ 4. O método místico

Poucas palavras foram tomadas com maior latitude de significado


que o termo misticismo. Aquí se debe tomar en un sentido antitético a la
especulación. A especulação é um processo do pensamento; o
misticismo é assunto dos sentimentos. O primeiro pressupõe que é a
faculdade do pensamento aquela mediante a qual chegamos ai
conhecimento da verdade. O segundo, desconfiando da razão, ensina que
só se deve confiar nos sentimentos, ao menos na esfera religiosa. Embora
este método foi apressado de uma maneira indevida, e se erigiram sob
sua guia sistemas teológicos que são ou totalmente independentes das
Escrituras, ou nos que as doutrinas da Bíblia foram modificadas e
pervertidas, não se deve negar que devemos uma grande autoridade a
nossa natureza moral em questões de religião. Foi um grande mal na
igreja que se permitiu que a compreensão lógica, ou o que os homens
chamam sua razão, conduza a conclusões que são não só contrárias à
Escritura, mas também fazem violência à nossa natureza moral.
Concede-se que nada contrário à razão pode ser certo. Mas não é menos
importante observar que nada contrário à nossa natureza moral pode ser
verdade. Também se deve admitir que a consciência é muito menos
suscetível a errar que a razão, e que quando entram em conflito, real ou
aparente, nossa natureza moral é a parte mais forte, e afirmará sua
autoridade apesar de tudo o que possamos fazer. Tem corretamente o
posto supremo na alma, embora, com a razão e a vontade, está em total
submissão a Deus, que é razão infinita e excelência moral infinita.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 33
O misticismo em sua aplicação à teologia
Em sua aplicação à teologia, o misticismo adotou duas formas
principais, a sobrenatural e a natural. Segundo a primeira, Deus, ou o
Espírito de Deus, mantém relação direta com a alma; e pela estimulação
de seus sentimentos religiosos lhe dá intuições de verdade, e o ativa para
alcançar um tipo, um grau, e uma extensão de conhecimento, inacessível
de qualquer outra maneira. Isto foi a teoria comum de místicos cristãos
em tempos antigos e modernos. Se por isso foi meramente significado
que o Espírito de Deus, por Sua influência iluminadora, dá aos crentes
um conhecimento das verdades objetivamente revelado nas Escrituras,
que é peculiar, certo, e salvador, seria admitido por todos os cristãos
evangélicos. E é porque tais cristãos se agarram a este ensino do
Espírito, que eles são frequentemente chamados místicos por seus
oponentes. Este, entretanto, não é o que se quer dizer aqui. O método
místico, em sua forma sobrenatural, assume que Deus por Seu intercurso
imediato com a alma, revela através dos sentimentos e por meio de
intuições verdades divinas com independência do ensino externo de Sua
palavra; e que o que devemos seguir é esta luz interior, e não as
Escrituras.
De acordo com a segunda, a forma natural do método místico, não é
Deus, mas sim a consciência religiosa natural do homem, estimulada e
influenciada pelas circunstâncias do indivíduo, o que sucede a fonte do
conhecimento religioso. Quanto mais profundos e mais puros
sentimentos religiosos, tanto mais limpa a compreensão da verdade. Esta
iluminação ou intuição espirituais é um assunto de grau. Mas como todos
os homens têm uma natureza religiosa, eles todos têm mais ou menos
claramente a apreensão de verdade religiosa. A consciência religiosa dos
homens em diferentes idades e nações se desenvolveu historicamente sob
diversas influências, e por isso temos diversas formas de religião: a pagã,
o islã, e o cristianismo. Estas não se contrapõem como verdadeiras e
falsas mas sim como mais ou menos puras. A aparição de Cristo, Sua
vida, Sua obra, Suas palavras e Sua morte tiveram um efeito maravilhoso
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 34
sobre as mentes dos homens. Seus sentimentos religiosos foram mais
profundamente agitados, mais purificados e elevados que nunca antes.
Estes não estão relacionado como verdadeiro e falso, mas sim como mais
ou menos puro. A aparição de Cristo, Sua vida, Seu trabalho, Suas
palavras, Sua morte, tiveram um efeito maravilhoso nas mentes dos
homens. Seus sentimentos religiosos eram mais profundamente
sacudidos, estavam mais purificados e elevados que nunca.
Consequentemente os homens de Sua geração, que se entregaram à Sua
influência, tiveram intuições da verdade religiosa de uma ordem mais
alta que humanidade jamais alcançou. Esta influência continua no tempo
presente. Todos os cristãos são Seus assuntos. Todos, portanto, em
proporção à pureza e elevação de seus sentimentos religiosos, têm
intuições de coisas divinas, como as que tiveram os apóstolos e outros
cristãos. A santidade perfeita levaria a um conhecimento perfeito.

Consequências do método místico


Desta teoria se desprende o seguinte: (1) Que não existem coisas
como uma revelação nem uma inspiração, no sentido teológico
estabelecido destes termos. A Revelação é a apresentação ou
comunicação objetiva sobrenatural da verdade à mente, pelo Espírito de
Deus. Mas segundo esta teoria, não há nem pode haver tal comunicação
de verdade. Os sentimentos religiosos são providencialmente
estimulados, e por causa daquela estimulação a mente percebe a verdade
mais ou menos claramente, ou mais ou menos imperfeitamente. A
inspiração, no sentido escriturístico, é a condução sobrenatural do
Espírito, que torna infalível a quem é sujeito dela para comunicar
verdade aos outros. Mas segundo esta teoria ninguém é infalível como
mestre. A revelação e a inspiração são de graus diferentes comum a
todos os homens. E não existe nenhuma razão por que elas não deveriam
ser perfeitas em alguns crentes agora como nos dias dos Apóstolos. (2) A
Bíblia não tem autoridade infalível em assuntos de doutrina. As
proposições doutrinais que contém não são revelações do Espírito, mas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 35
sim só forma sob as quais homens de cultura judaica deram expressão a
seus sentimentos e intuições. Homens de outra cultura e sob outras
circunstâncias teriam empregado outras formas ou adotado outras
declarações doutrinais. (3) O cristianismo, portanto, não consiste num
sistema de doutrinas, nem contém tal sistema. É uma vida, uma
influência, um estado subjetivo; ou é um poder dentro de cada cristão
individual, seja como for que se descreva ou explique, que determina os
sentimentos e suas perspectivas a respeito das coisas divinas. (4)
Consequentemente, o dever de um teólogo não é interpretar a Escritura,
mas sim interpretar sua própria consciência cristã; determinar e exibir
que verdades a respeito de Deus se implicam em seus sentimentos para
com Deus; que verdades a respeito de Cristo se implicam em seus
sentimentos para com Cristo; o que ensinam os sentimentos a respeito do
pecado, da redenção, da vida eterna, etc.
Este método encontrou a seu mais distinto e influente defensor em
Schleiermacher, cujo “Glaubenslehre” está edificado sobre este
princípio. Por Twesten — seu sucessor na cadeira de Teologia na
Universidade de Berlim — é mantido em sujeição maior à autoridade
normal de Escritura. Por outros, novamente, da mesma escola, foi tirado
seu último extremo. Estamos no momento, entretanto, preocupados
apenas com seu princípio, e não com os detalhes de seu aplicativo, nem
com sua refutação.

§ 5. O método indutivo

Recebe este nome porque concorda em todo o essencial com o


método indutivo aplicado às ciências naturais.
Primeiro: O homem de ciência vai ao estudo da natura1eza com
certas pressuposições. (1) Pressupõe a confiabilidade de seus percepções
sensoriais. A menos que ele possa confiar no testemunho bem
autenticado de seus sentidos, é destituído de todos os meios de processar
suas investigações. Os fatos da natureza revelam eles mesmos a nossas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 36
faculdades de sentido, e não podem ser conhecidos de nenhuma outra
maneira. (2) Tem também que pressupor a confiabilidade de suas
funções mentais. Que todo efeito deve ter uma causa; que a mesma causa
sob certas circunstâncias, produzirá semelhantes efeitos; que uma causa
não é um mero antecedente uniforme, mas sim contém dentro de si
mesmo a razão pela qual o efeito sucede. (3) Tem que confiar também na
certeza daquelas verdades que não se aprendem da experiência, mas sim
se dão na constituição de nossa natureza: Que a cada efeito corresponde
uma causa; que aquela mesma causa, em iguais circunstâncias, produzirá
os mesmos efeitos; que uma causa não é um mero antecedente uniforme,
mas sim contém dentro de si mesma a razão de que ocorra o efeito.
Segundo: O estudante da natureza, ao ter esta base sobre que
sustentar-se, e estas ferramentas com as quais trabalhar, passa a perceber,
recolher e combinar seus fatos. Não tem a pretensão de inventá-los nem
modificá-los. Tem que tomá-los como são. Só se cuida de que sejam
reais, de tê-los todos, ou ao menos todos os necessários para justificar
qualquer inferência que possa deduzir deles, ou qualquer teoria que
possa erigir sobre eles.
Terceiro: Com base nos fatos assim determinados e classificados
ele deduz as leis que os regem. Que um corpo pesado cai por terra é um
fato familiar. A observação mostra que não é um fato separado; mas que
todo assunto tende em direção a qualquer outro assunto, que esta
propensão ou atração está em proporção à quantidade de matéria; e suas
diminuições de intensidade em proporção ao quadrado da distância dos
corpos de atração. Como tudo isso é declarado ser universal e
constantemente o caso dentro do campo de observação, é forçado a
concluir que existe um pouco de razão para isto; em outras palavras, que
esta é uma lei da natureza em que se pode confiar além dos limites da
observação atual. Como esta lei sempre operou no passado, o homem de
ciência está certo de que operará no futuro. É desta maneira que se foi
edificando o vasto corpo da ciência moderna, e as leis que determinam
os movimentos dos corpos celestes; as modulações químicas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 37
continuando constantemente ao redor de nós; a estrutura, crescimento, e
propagação de plantas e animais, tem, para uma maior ou menor
extensão, sido averiguada e estabelecida. Observa-se que estas leis ou
princípios generais não são derivados da mente e atribuídos a objetos
externos, mas derivaram ou deduziram dos objetos e impressionados na
mente.

A. O método indutivo em sua aplicação à Teologia

A Bíblia é para o teólogo o que a natureza é para o homem de


ciência. É seu arsenal de fatos; e seu método de determinar que o que a
Bíblia ensina é o mesmo que o adotado pelo filósofo natural para
determinar o que ensina a natureza. Em primeiro lugar, vai à tarefa com
todas as pressuposições anteriormente mencionadas. Deve dar por
suposta a validez das leis da fé que Deus impôs em nossa natureza.
Nestas leis se incluem algumas que não têm aplicação direta às ciências
naturais. Por exemplo, a da distinção essencial entre o bem e o mal; que
Deus não pode ordenar nada contrário à virtude; que não se pode fazer o
mal para que venha o bem; que o pecado merece castigo, e outras
verdades básicas similares, que Deus implantou na constituição de todos
os seres morais, e que não podem ser contraditas por nenhuma revelação
objetiva. Mas estes primeiros princípios não devem ser aceitos de uma
maneira arbitrária. Ninguém tem direito a assentar suas próprias
opiniões, por muito firmemente que as mantenha, e as chamar «verdades
primárias da razão», fazendo delas a fonte ou prova das doutrinas cristãs.
Não se pode introduzir nada com direito sob a categoria de verdades
primárias, ou leis da crença; que não possam suportar as provas de
universalidade e necessidade, ao que muitos acrescentam a evidência
inerente. Mas a evidência inerente está incluída na universalidade e a
necessidade quanto a que nada que não é inerentemente evidente pode
ser crido universalmente, e que o que é inerentemente evidente abre
caminho na mente de toda criatura inteligente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 38
A coleta dos fatos
Em segundo lugar, o dever do teólogo cristão é determinar, recolher
e combinar todos os fatos que Deus lhe revelou a respeito dEle mesmo e
de nossa relação com Ele. Estes fatos estão na Bíblia. Isto é verdade,
porque tudo o que é revelado na natureza, e na constituição de homem
relativo a Deus e em nossa relação com Ele, é contido e autenticado na
Escritura. É neste sentido que “a Bíblia, e a Bíblia só, é a religião de
protestantes.” Pode-se admitir que as verdades que o teólogo tem que
reduzir a ciência, ou, para falar mais humildemente, que tem que dispor e
harmonizar, estão reveladas em parte nas obras externas de Deus, em
parte na constituição de nossa natureza, e em parte na experiência
religiosa dos crentes; entretanto, para que não erremos em nossas
inferências das obras de Deus, temos em Sua palavra uma mais clara
revelação do que a natureza nos revela; e para que não interpretemos
erroneamente nossa própria consciência e as leis de nossa natureza, tudo
o que se pode aprender legitimamente desta fonte se encontrará
reconhecido e autenticado nas Escrituras; e para que não atribuamos ao
ensino do Espírito as operações de nossos próprios afetos naturais,
encontramos na Bíblia a norma e a pauta de toda genuína experiência
religiosa. As Escrituras ensinam não só a verdade, mas também quais
são os efeitos da verdade sobre o coração e a consciência, quando é
aplicada com poder salvador pelo Espírito Santo.

O teólogo deve ser conduzido pelas mesmas normas que o


homem de ciência.
Em terceiro lugar, o teólogo deve ser regido pelas mesmas normas
na coleta dos fatos que os que guiam o homem de ciência.
1. Esta coleta de fatos deve ser feita com diligência e cuidado. Não
é uma tarefa fácil. Há em cada departamento de investigação uma grande
capacidade de erro. Quase todas as teorias falsas da ciência e as
doutrinas falsas em teologia devem-se em grande medida a erros quanto
a questões factuais. Uma naturalista distinto disse que repetiu uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 39
experiência mil vezes antes dele sentir-se autorizado a anunciar o
resultado para o mundo científico como um fato estabelecido.
2. Esta coleta de fatos deve levar-se a cabo não só de maneira
cuidadosa, mas também deve ser inclusiva, e, se for possível, exaustiva.
Uma indução defeituosa dos fatos conduziu homens por muito tempo a
crer que o sol gira ao redor da Terra, e que a Terra era uma planície
estendida. Em teologia, uma indução parcial de particulares conduziu a
erros sérios. É um fato que as Escrituras atribuem onisciência a Cristo.
Disto se inferiu que Ele não podia ter uma inteligência finita, mas sim o
Logos também revestido nEle com um corpo humano com sua vida
animal. Mas é também um fato escriturístico que atribuem a nosso
Senhor desconhecimento e crescimento intelectual, assim como a
onisciência. Ambos os fatos, portanto, devem ficar incluídos em nossa
doutrina de sua Pessoa. Temos que admitir que tinha uma inteligência
humana, assim como uma inteligência divina. É um fato que tudo o que
se possa pregar de um homem isento de pecado se prega de Cristo na
Bíblia; e também é verdade que tudo o que se prega de Deus se prega
também de nosso Senhor; daí fez-se a inferência de que houve dois
Cristos, – duas pessoas – uma humana e o outra divina, e que habitavam
juntos de uma maneira muito semelhante a como o Espírito habita no
crente; ou, como espíritos do mal habitam nos endemoninhados. Mas
esta teoria passava por alto muitos fatos que demonstram a personalidade
individual de Cristo. A pessoa que disse «tenho sede» é a mesma que
disse: «Antes que Abraão existisse, EU SOU». As Escrituras ensinam
que a morte de Cristo teve o desígnio de revelar o amor do homem e de
obter a reforma dos homens. Daí Socínio negou que Sua morte fosse
uma expiação pelo pecado, ou satisfação da justiça. Mas este último fato
está tão claramente revelado como o primeiro; e por isso ambos devem
ser tomados em conta em nosso enunciado da doutrina referente ao
desígnio da morte de Cristo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 40
Necessidade de uma indução completa
Poder-se-ia dar inúmeras ilustrações a respeito da necessidade de
uma indução inclusiva dos fatos para justificar nossas conclusões
doutrinais. Estes fatos não devem ser negados teimosamente nem
passados por alto com descuido, nem ponderados com parcialidade.
Devemos ser honrados aqui, como o verdadeiro estudioso da natureza é
honrado em sua indução. Inclusive os cientistas se sentem às vezes
impelidos a suprimir ou perverter fatos que militam contra suas teorias
favoritas; mas a tentação a esta forma de falta de honestidade é menos
intensa em seu caso que no do teólogo. As verdades da religião são
muito mais importantes que as da ciência natural. Apresentam-se ao
coração e à consciência. Podem suscitar os temores ou ameaçar as
esperanças dos homens, pelo que estão sob uma forte tentação de passá-
las por alto ou de pervertê-las. Não obstante, se verdadeiramente
desejamos saber o que é que Deus revelou, temos que ser
conscientemente diligentes e fiéis em nossa coleta dos fatos que Ele nos
deu a conhecer, e em lhes dar seu devido peso. Se um geólogo achasse
em data primitiva um depósito de implementos de artesanato humano,
ele não tem permissão para dizer que elas são produções naturais. Deve
ou revisar sua conclusão sobre a idade do depósito, ou voltar para um
período antigo da existência do homem. Não há nenhuma ajuda para isto.
A ciência não pode fazer fatos; deve tomá-los como eles são. De certa
forma, se a Bíblia afirmar que a morte de Cristo foi uma satisfação da
justiça, não é permitido ao teólogo incluir a justiça na benevolência para
que concorde com sua teoria da expiação. Se a Escritura nos ensinar que
os homens nascem em pecado, não podemos mudar a natureza do
pecado, e transformá-la numa tendência ao pecado e não realmente
pecado, a fim de nos livrar da dificuldade. Se for um fato escriturístico
que a alma existe num estado de atividade consciente entre a morte e a
ressurreição, não devemos negar este fato ou reduzir esta atividade
consciente para zero, porque nossa antropologia ensina que a alma não
tem nenhuma individualidade e nenhuma atividade sem um corpo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 41
Temos que confrontar os fatos da Bíblia como são, e erigir nosso sistema
de modo que os abranja em toda sua integridade.

Os princípios devem ser deduzidos com base nos fatos


Em quarto lugar, em teologia como na ciência natural, os princípios
se derivam dos fatos, e não se forçam sobre eles. As propriedades da
matéria, as leis do movimento, do magnetismo, da luz, etc., não são
decididas pela mente. Não são leis do pensamento. São deduções com
base nos fatos. O pesquisador vê ou determina mediante observação
quais são as leis que determinam os fenômenos materiais; não inventa
estas leis. Suas especulações a respeito das questões científicas não
valem nada, a não ser que estejam sustentadas pelos fatos. Não é menos
acientífico para o teólogo assumir uma teoria quanto à natureza da
virtude, do pecado, da liberdade, da obrigação moral, e logo explicar os
fatos da Escritura conforme a estas teorias. Seu único curso adequado é
derivar sua teoria da virtude, do pecado, da liberdade, da obrigação, com
base nos fatos da Bíblia. Ele devia lembrar que seu interesse não é partir
seu sistema de verdade (isto é sem importância), mas averiguar e
testificar qual é o sistema do Deus, o qual é um maior assunto do
momento. Se ele não pode crer no que os fatos da Bíblia assumem ser
verdade, que ele o faça. Deixe os escritores sagrados ter sua doutrina,
enquanto ele tem a sua própria. Para esta base um grande classe de
exegetas e teólogos modernos, depois de uma longa luta, realmente
vieram. Dão o que eles consideram como as doutrinas do Antigo
Testamento; então aqueles Evangelistas; então aqueles dos Apóstolos; e
então suas próprias. Isto é justo. Mas entretanto, como a autoridade
unificadora da Escritura é reconhecida, a tentação é muito forte para
apertar os fatos da Bíblia de acordo com nossas teorias preconcebidas.
Se um homem é persuadido que a certeza em agir é incompatível com a
liberdade de ação judicial; que um livre reativo pode sempre agir
contrário a qualquer quantidade de influência (não destrutiva de sua
liberdade) aplicada nele, ele inevitavelmente negará que as Escrituras
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 42
ensinem o contrário, e deste modo é forçado a explicar muito bem todos
os fatos que provam o controle absoluto de Deus acima do testamento e
volições dos homens. Se ele mantiver que a pecaminosidade pode ser
predita só pela ação judicial inteligente, voluntária como transgressão da
lei, deve negar que os homens nascem em pecado, deixe a Bíblia ensinar
o que pode. Se ele crê que a habilidade limita o dever, deve crer
independentemente das Escrituras, ou em oposição a elas, não importa
que esses homens podem arrepender-se, crer, amar a Deus perfeitamente,
viver sem pecado, em algum tempo, e em todo tempo, sem a ajuda do
Espírito de Deus. Se ele negar que o inocente justamente pode sofrer
pena do mal para o culpado, deve negar que Cristo levou nossos
pecados. Se ele negar que o mérito de um homem possa ser a base
judicial do perdão e salvação de outros homens, deve rejeitar a doutrina
escriturística da justificação. É evidente que se perturbará
completamente todo o sistema da verdade revelada, a não ser que
consintamos em derivar nossa filosofia da Bíblia, em lugar de explicar a
Bíblia por meio de nossa filosofia. Se as Escrituras ensinarem que o
pecado é hereditário, temos que adotar uma teoria do pecado que
concorde com este fato. Se ensinarem que os homens não podem
arrepender-se, crer ou fazer nada espiritualmente bom sem a ajuda
sobrenatural do Espírito Santo, temos que fazer com que nossa teoria da
obrigação concorde com este fato. Se a Bíblia ensinar que levamos a
culpa do primeiro pecado de Adão, que Cristo levou nossa culpa, e que
padeceu a pena da lei em nosso lugar, estes são fatos com os quais temos
que fazer com que concordem nossos princípios. Seria fácil mostrar que
em todo departamento de teologia, — com respeito à natureza de Deus,
sua relação para com o mundo, o plano de salvação, a pessoa e obra de
Cristo, a natureza do pecado, as operações da graça divina, os homens,
em vez de que tomar os fatos da Bíblia, e vendo que princípios eles
implicam, que filosofia está por baixo deles, adotaram sua filosofia
independentemente da Bíblia, para os quais tais fatos da Bíblia foram
feitos para aplicar. Isto é totalmente antifilosófico. É o princípio
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 43
fundamental de todas as ciências, e o da teologia entre o resto, que a
teoria deve ser determinada pelos fatos, e não os fatos pela teoria. Assim
como as ciências naturais eram um caos até que se admitiu o princípio de
indução e se aplicou com fidelidade, assim a teologia é uma massa de
especulações humanas carente de todo valor, quando os homens recusam
aplicar o mesmo princípio ao estudo da Palavra de Deus.

§ 6. As Escrituras contêm todos os fatos da Teologia.

Isto é perfeitamente consistente, por um lado, com a admissão de


verdades intuitivas, tanto intelectuais como morais, devido à nossa
constituição como seres racionais e morais; e, por outro lado, com o
poder controlador sobre nossas crenças que é exercido pelos ensinos
interiores do Espírito, ou, em outras palavras, por nossa experiência
religiosa. E isto por duas razões. Primeira: Toda verdade tem que ser
consistente. Deus não Se pode contradizer a Si mesmo. Ele não pode
forçar-nos mediante a constituição da natureza que nos deu para crer
uma coisa, e mandar-nos em Sua palavra crer o oposto. E segunda:
Todas as verdades que nos ensina a constituição de nossa natureza ou a
experiência religiosa são reconhecidas e autenticadas na Escritura. Isto é
uma salvaguarda e um limite. Não podemos assumir este ou aquele
princípio como intuitivamente verdadeiro, ou esta ou aquela conclusão
como demonstravelmente certa, e fazer de tudo isso uma norma a que a
Bíblia tem que se amoldar. O que é certo com evidência inerente tem que
ser demonstrado assim, e é sempre reconhecido na Bíblia como certo.
Erigiram-se sistemas inteiros de teologia sobre chamadas intuições, e se
cada homem tem a liberdade de exaltar suas próprias intuições, como os
homens estão acostumados a chamar suas intensas convicções, teremos
tantas teologias quanto pensadores. A mesma observação pode aplicar-se
à experiência religiosa. Não há forma de convicção mais íntima e
irresistível que a que surge do ensino interior do Espírito. Toda fé
salvadora repousa sobre seu testemunho ou demonstrações (1Co 2:4). Os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 44
crentes têm uma unção do Santo, e conhecem a verdade, e nenhuma
mentira (falsa doutrina) é da verdade. Este ensino interior produz uma
convicção que nenhum sofisma pode obscurecer, e que nenhum
argumento pode sacudir. Está baseada na consciência, e o mesmo se
poderia tentar convencer a um homem de que não cria em sua existência
que convencê-lo de que não confie na certeza do que assim foi ensinado
por Deus. Mas se devem manter duas coisas em mente. Primeiro: Que
este ensino interior ou demonstração do Espírito se limita a coisas
ensinadas objetivamente na Escritura. Nos é dado, diz o Apóstolo, para
que possamos conhecer coisas que nos foram dadas gratuitamente, isto é,
que foram nos reveladas por Deus em Sua palavra (1Co 2:10-16). Não se
trata, então, de uma revelação de novas verdades, mas sim de uma
iluminação da mente, de modo que apreende a verdade, a excelência e a
glória de coisas já reveladas. E segundo: Esta experiência está descrita
na Palavra de Deus. A Bíblia nos dá não só as fatos concernentes a Deus
e a Cristo, a nós mesmos, e a nossas relações com nosso Criador e
Redentor, mas sim registra também os legítimos efeitos destas verdades
nas mentes dos crentes. Assim que não podemos apelar a nossos próprios
sentimentos ou experiência interior como base ou guia, a não ser que
possamos mostrar que concorda com a experiência de homens santos tal
como se registra nas Escrituras.

O Ensino do Espírito
Embora o ensino interno do Espírito, ou experiência religiosa, não
constitui um substituto da revelação externa, é entretanto uma guia
inestimável para determinar o que é que nos ensina a regra da fé. A
característica distintiva do agustinianismo, tal como o ensinou o próprio
Agostinho e tal como foi ensinada pelos mais puros teólogos da Igreja
Latina durante a Idade Média, e que foi exposta pelos Reformadores, e
especialmente por Calvino e os teólogos de Genebra, é que o ensino
interior do Espírito recebe seu posto apropriado na determinação de
nossa teologia. A questão não é em primeiro lugar e de maneira
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 45
principal: O que é verdadeiro para o entendimento?, mas sim: O que é
verdadeiro para o coração renovado? Não se trata de esforçar-se em que
as declarações da Bíblia harmonizem com a razão especulativa, mas em
submeter nossa fraca razão à mente de Deus tanto quanto se revela em
Sua palavra, e por Seu Espírito em nossa vida interior. Pode ser fácil
conduzir os homens à conclusão de que eles são responsáveis apenas por
seus atos voluntários, quando o apelo é feito exclusivamente para o
entendimento. Mas se o apelo se faz a todos os homens e, especialmente,
à experiência interior de cada cristão, se chega a conclusão oposta.
Estamos convencidos da pecaminosidade de estados de espírito, bem
como de atos voluntários, mesmo quando os estados não são o efeito de
nossa própria agência, e não estão sujeitos ao poder da vontade. Estamos
conscientes de estar vendidos sob o pecado; de ser seus escravos; de
estar possuídos por ele como um poder ou direito, imanente, inato, e
além do nosso controle. Essa é a doutrina da Bíblia, e tal é o
ensinamento da nossa consciência religiosa, quando sob a influência do
Espírito de Deus. O verdadeiro método em teologia demanda que os
fatos da experiência religiosa sejam aceitos como fatos, e que quando
forem devidamente autenticados pela Escritura, permita-se que
interpretem as declarações doutrinais da Palavra de Deus. Tão legítimo e
poderoso é este ensino interior do Espírito que não é coisa incomum
encontrar homens sustentando duas teologias: una do intelecto, e outra
do coração. A primeira pode encontrar expressão em credos e sistemas
de Teologia, e a outra em suas orações e hinos. Seria seguro que um
homem resolvesse não admitir em sua teologia nada que não seja
sustentado pela escrita devota de cristãos verdadeiros de qualquer
denominação. Seria fácil construir de tais escritos, recebidos e
sancionados por romanistas, luteranos, reformadores, e remonstrantes,
um sistema de teologia paulina ou agostiniana, como satisfaria qualquer
inteligente e devoto calvinista no mundo.
O verdadeiro método da teologia, então, é o indutivo, que dá por
sentado que a Bíblia contém todos os fatos ou verdades que constituem o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 46
conteúdo da teologia, assim como os fatos da natureza são o conteúdo
das ciências naturais. Também dá-se por sentado que a relação destes
fatos bíblicos entre si, os princípios envoltos nos mesmos, as leis que os
determinam, estão nos próprios fatos, e que deles devem deduzir-se,
assim como as leis da natureza são deduzidas dos fatos da natureza. Em
nenhum de ambos os casos se derivam os princípios da mente nem se
impõem sobre os fatos, mas em ambos os departamentos, e da mesma
maneira, os princípios ou leis são deduzidos com base nos fatos e são
reconhecidos pela mente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 47
CAPÍTULO II
TEOLOGIA

§ 1. Sua natureza

Se as perspectivas apresentadas no capítulo anterior são corretas, a


pergunta Que é a teologia? já recebeu resposta. Se ciência natural está
preocupada com fatos e leis de natureza, a teologia está preocupada com
os fatos e os princípios da Bíblia. Se o objeto de um é organizar e
sistematizar os fatos do mundo externo, e averiguar as leis pelas quais
eles são determinados; o objeto do outro é sistematizar os fatos da Bíblia,
e averiguar os princípios ou verdades gerais que esses fatos envolvem. E
como a ordem em que os fatos da natureza são organizados não podem
ser arbitrariamente determinados, senão pela natureza dos próprios fatos,
assim é com fatos da Bíblia. As partes de qualquer todo orgânico têm
uma relação natural que não se pode ignorar nem mudar com
impunidade. As partes de um relógio, ou de qualquer outro mecanismo,
devem estar dispostas em sua maneira normal, ou tudo estará confuso e
carente de valor. Todas as partes de uma planta ou animal estão dispostas
para responder a um fim determinado, e são mutuamente dependentes.
Não podemos pôr as raízes de uma árvore em lugar de seus ramos, nem
os dentes de um animal em lugar de seus pés. Assim é como os fatos da
ciência se dispõem. Não os dispõe o naturalista. Sua atividade é só
determinar qual é a disposição dada pela natureza dos fatos. Se ele errar,
seu sistema é falso, e inválido em maior ou menor grau. O mesmo é
evidentemente certo com relação aos fatos ou verdades da Bíblia. Não se
podem sustentar isolados, nem admitirão nenhuma outra disposição que
o teólogo possa decidir atribuir-lhes. Têm entre si uma relação natural,
que não se pode passar por alto nem perverter sem que os próprios fatos
fiquem pervertidos. Se os fatos de Escritura são o que os agostinianos
creem que são, então o sistema agostiniano é o único sistema possível de
teologia. Se aqueles fatos são o que romanistas ou remonstrantes os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 48
levam a ser, então seu sistema é o único verdadeiro. É importante que o
teólogo saiba seu lugar. Ele não é o dono da situação. Não pode construir
um sistema de teologia para dar satisfação à sua imaginação como
tampouco o astrônomo pode ajustar os mecanismos do céu tal como
melhor lhe pareça. Assim como os fatos da astronomia se dispõem numa
certa ordem, e não admitirão outra, assim sucede com os fatos da
teologia. Por isso, a teologia é a exibição dos fatos da Escritura em sua
ordem e relação apropriadas, com os princípios ou verdades gerais
envoltos nos mesmos atos, e que impregnam e harmonizam o todo.
Segue-se, também, desta visão do assunto, que como a Bíblia
contém um classe de fatos ou verdades que não são reveladas em outro
lugar, e outra classe que, embora mais claramente feitas nas Escrituras
que em qualquer outro lugar, são, não obstante, até agora reveladas na
natureza sobre ser deduzíveis disso, a teologia é corretamente distinta
como natural e revelada. A antiga está preocupada com os fatos da
natureza na medida em que revelam a Deus e nossa relação para com
Ele, e a moderna com os fatos de Escritura. Esta distinção, que, numa
postura é importante, em outra, é de pequena consequência,
considerando como toda aquela natureza ensina a respeito de Deus e
nossas obrigações, é mais completamente e mais autoritariamente
revelado em Sua palavra.

Definições de Teologia
Dão-se frequentemente outras definições de Teologia:
1. Às vezes a palavra se restringe a seu sentido etimológico: «um
discurso a respeito de Deus». Orfeu e Homero eram considerados
teólogos entre os gregos porque seus poemas tratavam da natureza dos
deuses. Aristóteles classificou as ciências sob os cabeçalhos de física,
matemática, e teologia, isto é, aqueles que concernem à natureza,
número e quantidade, e que concerne a Deus. Os Pais falaram do
Apóstolo João como o teólogo, porque em seu evangelho e epístolas a
divindade de Cristo é reproduzida tão proeminente. A palavra segue
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 49
empregando-se neste sentido restringido quando usada em contraste à
antropologia, soteriologia e eclesiologia, como departamentos da
teologia em seu sentido mais amplo.
2. A teologia se considera às vezes como a ciência do sobrenatural.
Mas o que é o sobrenatural? A resposta a esta pergunta depende do
sentido que se dê à palavra natureza. Se por natureza se significa o
mundo externo governado por leis fixas, então as almas dos homens e
outros seres espirituais não ficam incluídas sob este termo. Neste uso da
palavra natureza, o sobrenatural é sinônimo com o espiritual, e a
teologia, como a ciência do sobrenatural, é sinônimo com a
pneumatologia. Se se adotar esta postura, a psicologia sucede um ramo
da teologia, e o teólogo deve, como tal, ensinar filosofia da mente.
Mas a palavra natureza é com frequência tomada num sentido mais
amplo, para incluir o homem. Então temos um mundo natural e um
mundo espiritual. E o sobrenatural é o que neste sentido transcende à
natureza, de modo que o que é sobrenatural também é necessariamente
sobre-humano. Mas não é necessariamente sobre-angélico. Também a
natureza pode denotar tudo o que está fora de Deus; então o sobrenatural
é o divino, e Deus é o único objeto legítimo da teologia. Por isso, em
nenhum sentido da palavra é a teologia a ciência do sobrenatural.
Hooker 2 diz, “Teologia é a ciência das coisas divinas.” Se por coisas
divinas, ou “as coisas de Deus,” quis dizer as coisas que se referem a
Deus, então teologia é restringida a um “discurso relativo a Deus;” se ele
queria dizer as coisas reveladas por Deus, de acordo com a analogia da
expressão “as coisas do Espírito,” como usado cabelo Apóstolo em 1Cor.
2.14, então se soma às definições dadas acima.
3. Uma definição mais comum de Teologia, especialmente em
nossos dias, é que se trata da ciência da religião. Mas a palavra religião é
ambígua. Sua etimologia é duvidosa. Cícero a deriva de relegere, 3 ir

2
Eccles. Pol. iii. 8.
3
Nat. Deor. II.28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 50
diante de, considerar. Então «Religio» é consideração, observância
devota, especialmente no que pertence à adoração e ao serviço de Deus.
«Religens» é devoto, consciente. “Religiosus,” num bom sentido, é o
mesmo que nossa palavra religioso; em sentido mau, quer dizer
escrupuloso, supersticioso. “Religentem esse oportet, religiosum nefas.” 4
Agostinho e Lactâncio derivam a palavra de religare: voltar a atar.
Agostinho 5 diz: “Ipse Deus enim fons nostræ beatudinis, ipse omnis
appetitionis est finis. Hunc eligentes vel potius religentes amiseramus
enim negligentes: hunc ergo religentes, unde et religio dicta perhibetur,
ad eum dilectione tendimus ut perveniendo quiescamus.” E Lactâncio,
“Vinculo pietatis obstricti, Deo religati sumus, unde ipsa religio nomen
accepit, non, ut Cicero interpretatus est, a religendo.” 6 Com base a isto,
religio é a base da obrigação. É aquilo que nos liga a Deus.
Subjetivamente, é a necessidade interior de união com Deus. Usualmente
a palavra religião, em seu sentido objetivo, quer dizer “Modus Deum
colendi,” como quando falamos do pagão, dos maometanos, ou da
religião cristã. Subjetivamente, expressa um estado mental. Há várias
formas em que se descreve este estado quanto ao que é de uma maneira
característica. Da maneira mais simples, é descrito como o estado da
mente induzido pela fé em Deus, e um sentido devido de nossa relação
com ele.
Ou como Wegscheider o expressa, “Æqualis et constans animi
affectio, qua homo, necessitudinem suam eandemque æternam, quæ ei
cum summo omnium rerum auctore ac moderatore sanctissimo
intercedit, intimo sensu complexus, cogitationes, voluntates et actiones
suas ad eum referre studet.” Ou, como mais concisamente expressado
por Bretschneider: «Fé na realidade de Deus, com um estado mental e
forma de viver concordante com esta fé». Ou, mais vagamente:
«Reconhecimento da relação mútua entre Deus e o mundo» (Fischer),
4
Poet. ap. Gell. iv. 9.
5
De Civitate Dei, x. 3. Edit. of Benedictines, Paris, 1838.
6
Instit. Div. iv. 28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 51
ou, «O reconhecimento de uma causalidade sobre-humana na alma e
vida do homem» (Theile). «Fé fundamentada no sentimento da realidade
do ideal» (Jacobi). «A sensação de uma total dependência»
(Schleiermacher). «A observância da lei moral como instituição divina»
(Kant). «Fé na ordem moral do universo» (Fichte). «A união do finito
com o infinito, ou Deus vindo à própria consciência no mundo»
(Schelling). 7
Esta diversidade de posturas quanto ao que é a religião é suficiente
para demonstrar quão totalmente vaga e insatisfatória deve ser a
definição de teologia como «a ciência da religião». Além disso, esta
definição torna a teologia totalmente independente da Bíblia. Porque,
como filosofia moral é a análise de nossa natureza moral, e as conclusões
para a qual aquela análise leva, então teologia torna-se a análise de nossa
consciência religiosa, junto com as verdades que aquela análise envolve.
E até a teologia cristã é apenas a análise da consciência religiosa do
cristão; e a consciência cristã não é a consciência religiosa natural de
homens como modificados e determinados pelas verdades das Escrituras
cristãs, mas isto é algo diferente. Alguns dizem que é o que se refere a
uma nova vida transmitida de Cristo. Outros se referem a tudo o que é
distintivo no estado religioso de cristãos para a Igreja, e realmente
amalgama a teologia na eclesiologia.
Por isso, temos que limitar a teologia a sua verdadeira esfera, como
a ciência dos fatos da revelação divina enquanto que esses fatos tratam
da natureza de Deus e de nossa relação com ele, como suas criaturas,
como pecadores, e como sujeitos da redenção. Todos estes fatos, como já
observamos, encontram-se na Bíblia. Mas como alguns deles estão
revelados nas obras de Deus, e pela natura1eza do homem, existe nisso
uma distinção entre a teologia natural, e a teologia considerada
distintivamente como uma ciência cristã.

7
Véase Hutterus Redivivus, I.§2., de Hase.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 52
Teologia natural
Com relação à teologia natural, existem duas opiniões extremas.
Uma é que as obras da natura1eza não dão uma revelação confiável do
ser e das perfeições de Deus; a outra, que tal revelação é tão clara e
inclusiva que torna desnecessária qualquer revelação sobrenatural.

§ 2. Os fatos da natureza revelam a Deus

Os que negam que a teologia natural ensina algo confiável a


respeito de Deus entendem usualmente por natureza o universo externo e
material. Pronunciam insatisfatórios os argumentos ontológico e
teleológico derivados da existência do mundo e das evidências de
desígnio que contém. O fato é que o mundo é uma prova de que sempre
foi, na ausência de toda evidência contrária. E o argumento do desígnio.
diz-se, passa por alto a diferença entre mecanismos mortos e um
organismo vivo, entre a manufatura e o crescimento. O fato de que uma
locomotiva não se possa fazer a si mesma não é prova de que uma árvore
não possa crescer. A primeira se forma ab extra [desde fora], pondo
juntas suas partes inertes; o segundo é desenvolvido por um princípio
vital interior. A primeira necessita da pressuposição de um criador
externo e anterior, o segundo exclui, diz-se, tal assunção. Além disso,
apressa-se que as verdades religiosas não admitem prova. Pertencem à
mesma categoria que as verdades estéticas e morais. São objetos da
intuição. Para ser percebidas, devem sê-lo à sua própria luz. Não se pode
demonstrar uma coisa como bela ou boa a alguém que não percebe sua
beleza ou excelência. Por isso, impõe-se também, é desnecessária a
prova da verdade religiosa. Os bons não precisam de provas; e os ímpios
não podem apreciá-las. Tudo o que se pode fazer é afirmar a verdade e
deixar que desperte, se for possível, o adormecido poder de percepção.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 53
A. Resposta aos argumentos anteriores

Tudo isto são sofismas. Porque os argumentos que sustentam as


verdades da religião natural não saem exclusivamente das obras externas
de Deus. Os mais evidentes e eficazes surgem da constituição de nossa
própria natureza. O homem foi feito à imagem de Deus, e revela sua
linhagem de uma maneira tão inequívoca como qualquer classe de
animais inferiores revela a origem da qual surgiram. Se um cavalo sair
de um cavalo, o espírito imortal do homem, com seu instinto de
convicções morais e religiosas tem que ser linhagem do Pai dos
Espíritos. Este foi o argumento com aquele que Paulo dirigiu-se na
Colina de Marte aos caviladores filósofos de Atenas. O fato de que a
esfera da teologia natural não se limita meramente aos fatos do universo
material faz-se patente com o sentido da palavra natureza, que, como já
vimos, tem muitos sentidos legítimos. Não apenas se está acostumado a
designar o mundo externo, mas também às forças ativas no universo
material, como quando falamos das operações e leis da natureza, às
vezes para tudo que cai dentro da cadeia de causa e efeito como distintos
dos fatos de agentes livres; e, como natura é derivado de nascor,
natureza significa o que é produzido, e portanto inclui tudo à parte de
Deus, de forma que Deus e natureza incluem tudo o que há.
2. A segunda objeção à teologia natural é que seus argumentos são
inconclusivos. Este é um ponto que ninguém pode decidir por outros.
Cada um tem que julgar por si mesmo. Um argumento que para uma
mente é concludente pode ser ineficaz para outras mentes. O fato de que
o universo começou, que não tem a causa de sua existência em si
mesmo, e que por isso tem que ter tido uma causa extramundana, e as
imensamente numerosas manifestações de desígnio que exibem devem
ser inteligentes, são argumentos para o ser de Deus, que deram satisfação
às mentes da grande maioria de pessoas inteligentes em todos as épocas
no mundo. Por isso, não deveriam ser lançados a um lado como
insatisfatórios porque nem todos sintam seu peso. Além disso, como se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 54
acaba de observar, estes argumentos são só confirmatórios de outros
mais diretos e poderosos, derivados de nossa natureza moral e religiosa.
3. Quanto à objeção de que as verdades religiosas são objetos da
intuição, e que as verdades intuitivas nem necessitam prova nem a
permitem, pode-se responder que em certo sentido é verdade. Mas as
verdades inerentemente verdadeiras podem ser ilustradas; e pode-se
mostrar que sua negação envolve contradições e absurdos. Toda a
geometria é uma ilustração dos axiomas de Euclides; e se alguém nega
algum destes axiomas, pode-se mostrar que deve crer impossibilidades.
Da mesma maneira, pode-se admitir que a existência de um ser de quem
dependemos, e perante quem somos responsáveis, é assunto de intuição;
e pode-se reconhecer que é coisa inerentemente evidente que só somos
responsáveis perante um ser pessoal, e entretanto a existência de um
Deus pessoal pode-se apresentar como uma hipótese necessária para dar
conta dos fatos da observação e da existência, e que a negação de sua
existência deixa o problema do universo sem solução e irresolúvel. Em
outras palavras: pode-se mostrar que o ateísmo, o politeísmo e o
panteísmo envolvem impossibilidades absolutas. Este é um modo válido
de demonstrar que Deus é, embora se admita que sua existência é, afinal
de contas, uma verdade inerentemente evidente. O teísmo não é a única
verdade evidente por si mesma que os homens são propensos a negar.

B. Argumento escriturístico para a Teologia Natural

As Escrituras reconhecem claramente que as obras de Deus revelam


Seu ser e atributos. E isto o fazem não só mediante frequente referência
às obras da natureza como manifestações das perfeições de Deus, mas
sim mediante uma declaração direta. «Os céus proclamam a glória de
Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a
outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há
linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no
entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 55
confins do mundo.» (Sl 19:1-4). «A ideia de um testemunho perpétuo»,
diz o doutor Addison Alexander, 8 «é comunicada mediante a figura de
um dia e uma noite seguindo-se uns aos outros como testemunhas em
sucessão ininterrupta. ... A ausência da linguagem articulada, longe de
debilitar o testemunho, potencializa-o. Inclusive sem fala ou palavras, os
céus dão testemunho de Deus a todos os homens».
Os escritores sagrados, ao disputar com os pagãos, apelam à
evidência de que as obras de Deus dão a respeito de suas perfeições:
«Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós, insensatos, quando sereis
prudentes? O que fez o ouvido, acaso, não ouvirá? E o que formou os
olhos será que não enxerga? Porventura, quem repreende as nações não
há de punir? Aquele que aos homens dá conhecimento não tem
sabedoria?» (Sl 94:8-10). Paulo disse aos homens de Listra: «[o] Deus
vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles; o qual, nas
gerações passadas, permitiu que todos os povos andassem nos seus
próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si
mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas,
enchendo o vosso coração de fartura e de alegria.» (At 14:15-17). Paulo
disse aos homens de Atenas: «O Deus que fez o mundo e tudo o que nele
existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários
feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de
alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida,
respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar
sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente
estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se,
porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada
um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns
dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo,
pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é

8
Comm. on Psalms, in loco.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 56
semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e
imaginação do homem.» (At 17:24-29).
O Apóstolo declara não só o fato desta revelação, mas também sua
clareza: «Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de
Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade,
claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por
isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças» (Rm 1:19- 21).
Por isso, não se podem ter dúvidas razoáveis a respeito de que não
só o ser de Deus, mas também o Seu eterno poder e deidade ficam
revelados em suas obras, estabelecendo um firme fundamento para a
teologia natural. Para a ilustração deste assunto muitas obras importantes
foram dedicadas, algumas das quais são as seguintes: “Wolf de
Theologia Naturali,” “The Bridgewater Treatises,” Butler’s “Analogy,”
Paley’s “Natural Theology.”

§ 3. A insuficiência da Teologia Natural

A segunda opinião extrema a respeito da Teologia Natural é que faz


desnecessária uma revelação sobrenatural. A questão de se o
conhecimento de Deus que se deriva de suas obras é suficiente para levar
os caídos à salvação é respondida de maneira afirmativa pelos
racionalistas, mas de maneira negativa por todos os ramos históricos da
Igreja Cristã. A respeito deste ponto são unânimes as Igrejas grega,
latina, luterana e reformada.
Neste ponto os gregos, os latinos, os luteranos, e as Igrejas
Reformadas são unânimes. As duas antigas são mais exclusivas que as
duas posteriores. Os gregos e latinos, ao fazerem os sacramentos os
únicos canais de graça salvadora, negam a possibilidade da salvação do
não batizado, em terras pagãs ou cristãs. Este princípio é tão essencial
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 57
para o sistema romano sobre ser incluído na própria definição da Igreja,
como dado pelos escritores autorizados da Igreja Papal. Aquela definição
está tão emoldurada sobre excluir da esperança de salvação não só todas
as crianças e adultos não batizados, mas todos, não importa quão
iluminado no conhecimento das Escrituras, e contudo santo no coração e
na vida, que não reconheçam a supremacia do bispo de Roma.
A questão quanto à suficiência da teologia natural, ou das verdades
da razão, deve ser respondida com base na autoridade das Escrituras.
Ninguém pode dizer a priori o que é o necessário para a salvação. A
verdade é que é só por revelação sobrenatural que sabemos que há
salvação para os pecadores. É só por esta mesma fonte que podemos
saber quais são as condições da salvação, ou quem são os sujeitos da
salvação.

A. O que dizem as Escrituras a respeito da salvação dos


homens. A salvação das crianças.

O que ensinam as Escrituras a respeito de este tema, conforme à


doutrina comum entre os protestantes evangélicos, é primeiro:
1. Que todos os que morrem na infância são salvos. Isto se infere do
que a Bíblia ensina da analogia entre Adão e Cristo. «Pois assim como,
por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação,
assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os
homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela
desobediência de um só homem, os muitos (οἱ πολλοί = πάντες [hoi
polloi = pantes]) foram constituídos pecadores, assim também pela
obediência de um, os muitos (οἱ πολλοί = πάντες [hoi polloi = pantes])
serão constituídos justos» (Ro 5:18, 19». Não temos direito a pôr limite
algum a estes termos gerais, exceto os que a própria Bíblia lhes imponha.
As Escrituras não excluem em nenhum lugar a nenhuma classe de
infantes, batizados ou não, nascidos em terras cristãs ou pagãs, de pais
crentes ou incrédulos, dos benefícios da redenção de Cristo. Todos os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 58
descendentes de Adão, exceto Cristo, estão sob a condenação; todos os
descendentes de Adão, exceto aqueles dos quais se revela expressamente
que não podem herdar o reino de Deus, são salvos. Este parece ser o
claro sentido das palavras do Apóstolo, e por isso não duvida em dizer
que onde abundou o pecado muito mais superabundou a graça, que os
benefícios da redenção excedem em muito os males da queda; que o
número dos salvos excede em muito ao dos perdidos.
Isto não é inconsistente com a declaração de nosso Senhor, em
Mateus 7:14, de que só uns poucos entram pela porta que conduz à vida.
Isto deve entender-se dos adultos. O que a Bíblia diz dirige-se àqueles
em todas as idades aos quais corresponde. Mas dirige-se àqueles que
podem bem ler, bem ouvir. Diz-lhes o que devem crer e fazer. Seria uma
total perversão de seu significado aplicá-la àqueles aos quais e dos quais
não fala. Quando diz-se: «Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que,
todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus.» (Jo 3:36), ninguém compreende isto como
impedindo a possibilidade da salvação das crianças.
Não só, entretanto, a comparação que faz o Apóstolo entre Adão e
Cristo, leva a conclusão de que visto que todos estão condenados pelo
pecado de um, assim todos são salvos pela justiça de outro, aqueles só
excetuados aos quais as Escrituras excetuam, mas o princípio assumido
através de toda a discussão ensina a mesma doutrina. Este princípio é
que é mais adequado com a natureza de Deus abençoar que amaldiçoar,
salvar que destruir. Se a raça caiu em Adão, quanto mais será restaurada
em Cristo. Se a morte reinou por um, quanto mais a graça reinará por
um.
Este “muito mais” é repetido diversas vezes. A Bíblia em todos os
lugares ensina que Deus não tem prazer na morte do ímpio; aquele juízo
é Seu estranho ato. É, portanto, contrário não apenas ao argumento do
Apóstolo, mas sim ao espírito inteiro da passagem (Rm 5:12-21), excluir
meninos do “todos” que são feitos vivos em Cristo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 59
A conduta e a linguagem de nosso Senhor em referência aos
meninos não devem ser considerados como uma questão de sentimentos,
nem como uma mera expressão de uma atitude bondosa. É evidente que
as considerava como ovelhas do rebanho pelo qual, como o Bom Pastor,
punha Sua vida, e das quais Ele disse que jamais pereceriam, nem
ninguém as arrebataria de Suas mãos. Deles diz Ele que é o reino dos
céus, como se o céu estivesse, em grande medida, composto das almas
das crianças redimidas. Por isso, é a crença geral dos protestantes, contra
a doutrina dos romanistas e dos romanizadores, que todos os que morrem
na infância se salvam.

B. A regra do juízo para os adultos

2. Outro fato geral claramente revelado na Escritura é que os


homens serão julgados por suas obras, e com base na luz que cada um
teve. Deus «retribuirá a cada um segundo o seu procedimento: a vida
eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e
incorruptibilidade; mas ira e indignação aos facciosos, que desobedecem
à verdade e obedecem à injustiça. Tribulação e angústia virão sobre a
alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao
grego; glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao
judeu primeiro e também ao grego. Porque para com Deus não há
acepção de pessoas. Assim, pois, todos os que pecaram sem lei também
sem lei perecerão; e todos os que com lei pecaram mediante lei serão
julgados.» (Rm 2:6-12). Nosso Senhor ensina que aqueles que pecaram
com conhecimento da vontade de Deus serão açoitados com muitos
açoites; e que os que pecaram sem tal conhecimento serão açoitados com
poucos açoites; e que o dia do juízo será mais passível para os pagãos,
inclusive para Sodoma e Gomorra, que para os que perecem sob a luz do
evangelho (Mt 10:15; 11:20-24). O Juiz de toda a terra fará o que é justo.
Nenhum ser humano sofrerá mais do que o que merecerá, nem mais que
o que sua própria consciência reconhecerá como justo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 60
C. Todos os homens sob condenação

3. Mas a Bíblia nos diz que se fossem julgados segundo suas obras
e segundo a luz recebida, todos os homens seriam condenados. Não há
justo, nem um sequer. Todo mundo é culpado diante de Deus. O
veredicto fica confirmado pela consciência de cada homem. A
consciência da culpa e da poluição moral é absolutamente universal.
É aqui que falha totalmente a teologia natural. Não pode dar
resposta à pergunta: Como se justificará o homem diante de Deus?, ou
Como pode Deus ser justo e justificar o ímpio? A humanidade ponderou
ansiosamente esta pergunta durante séculos, e não obteve satisfação.
Aplicou-se o ouvido no seio da humanidade para captar o som suave e
baixo da consciência, e não recebeu resposta. A razão, a consciência, a
tradição e a história se unem em proclamar que o pecado é morte; e por
isso que no que concerne à sabedoria e recursos humanos, a salvação dos
pecadores é tão impossível como a ressurreição dos mortos. Provou-se
todo meio concebível de expiação e purificação, sem mérito algum.
4. As Escrituras, portanto, nos ensinam que os pagãos estão «sem
Cristo, excluídos da cidadania de Israel e estrangeiros quanto às alianças
da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo» (Ef 2:12). São
declarados sem desculpa, «Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não
o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram
nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração
insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus
entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio
coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a
verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do
Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1:21-25). O
Apóstolo diz dos gentios que «andam os gentios, na vaidade dos seus
próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 61
Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração,
os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à dissolução para,
com avidez, cometerem toda sorte de impureza.» (Ef 4:17-19).
5. Sendo todos os homens pecadores, e podendo ser com justiça
acusados de uma impiedade e imoralidade indesculpáveis, não podem
ser salvos por nenhum esforço nem recurso de sua própria parte. Porque
nos é dito: «Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus?
Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem
efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados,
nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus.» (1Co 6:9,
10). «Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento,
que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.» (Ef 5:5). Mais
ainda, a Bíblia nos ensina que alguém pode ser externamente justo diante
dos homens, e ser entretanto um sepulcro branqueado, sendo seu coração
a morada da soberba, da inveja ou da malícia. Em outras palavras, pode
ser moral em sua conduta, e por causa de paixões do mal interior, ser aos
olhos de Deus o chefe de pecadores, como era o caso do próprio Paulo. E
mais ainda que isto, embora um homem estivesse livre de pecados
externos, e, se fosse possível, e fora de pecados do coração, esta bondade
negativa não seria suficiente. Sem santidade «ninguém verá ao Senhor»
(Hb 12:14). «Aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus» (Jo 3:3). «Aquele que não ama, não conhece a Deus» (1Jo 4:8).
«Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele» (1Jo 2:15).
«Aquele que ama a seu pai ou a sua mãe mais que a mim, não é digno de
mim» (Mt 10:37). Quem, pois, pode ser salvo? Se a Bíblia excluir do
reino dos céus a todos os imorais, a todos aqueles cujos corações estão
corrompidos com soberba, inveja, malícia ou cobiça; a todos os que
amam o mundo; a todos os que não são santos; a todos aqueles nos quais
o amor de Deus não é o princípio supremo e controlador de todas suas
ações, é evidente então que no que se refere aos adultos, a salvação deve
encerrar-se a limites muito estreitos. Também é evidente que a mera
religião natural, o mero poder objetivo da verdade religiosa geral, será
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 62
tão incapaz de preparar os homens para a presença de Deus como as
águas da Síria para curar a lepra.

D. As condições necessárias para a salvação

6. Vendo porque o mundo não conhece a Deus mediante a


sabedoria; vendo que os homens, deixados a si mesmos, inevitavelmente
morrem em seus pecados, «aprouve a Deus salvar os que crêem pela
loucura da pregação.» (1Co 1:21). Deus enviou o Seu Filho ao mundo
para salvar os pecadores. Se tivesse sido possível qualquer outro método
de salvação, Cristo morreu em vão (Gl 2:21; 3:21). Por isso, não há
nenhum outro nome pelo qual os homens possam ser salvos (At 4:12). O
conhecimento de Cristo e a fé nEle são declarados como essenciais para
a salvação. Isto se demonstra: (1.) Porque os homens são pronunciados
culpados diante de Deus. (2.) Porque ninguém pode expiar sua própria
culpa e restaurar-se a si mesmo à imagem de Deus. (3.) Porque se
declara de maneira expressa que Cristo é o único Salvador dos homens.
(4.) Porque Cristo encomendou à Sua Igreja a missão de pregar o
evangelho a toda criatura debaixo do céu, como meio designado de
salvação. (5.) Porque os Apóstolos, no cumprimento desta missão, foram
por toda parte pregando a Palavra, dando testemunho a todos os homens,
judeus e gentios, aos sábios e aos ignorantes, que deviam crer em Cristo
como o Filho de Deus para ser salvos. Nosso mesmo Senhor ensinou isto
por meio de seu precursor: «Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que,
todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus.» (Jo 3:36). (6.) Porque a fé sem conhecimento
é pronunciada como algo impossível. «Porque: Todo aquele que invocar
o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem
não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como
ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem
enviados?» (Rm 10:13-15).
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 63
Por isso, e como já se tem dito, é a fé comum do mundo cristão que
pelo que se refere aos adultos, não há salvação sem o conhecimento de
Cristo e a fé nEle. Esta foi sempre considerada como a base da obrigação
que tem a Igreja de pregar o evangelho a toda criatura.

E. Objeções

À objeção de que esta doutrina não é consequente com a bondade e


a justiça de Deus, pode-se responder: (1.) Que a doutrina só dá por
sentado o que o objetor, se for Teísta, deve admitir: isto é, que Deus
tratará os homens com base no caráter e conduta dos mesmos, e que os
julgará em correspondência à luz que cada um deles tenha tido. É devido
ao fato de que o Juiz de toda a terra há de fazer o justo que todos os
pecadores recebem o pagamento do pecado, por uma lei inexorável, a
não ser que sejam salvos pelo milagre da redenção. Por isso, ao ensinar
que não há salvação para os que ignoram o evangelho, a Bíblia só ensina
que um Deus justo castigará o pecado. (2.) A doutrina da Igreja a
respeito desta questão não vai além dos fatos do caso. Só ensina que
Deus fará o que vemos que realmente faz. Ele, em grande medida, deixa
à humanidade a si mesma. Permite que se façam pecaminosos e
desgraçados. Não é mais difícil conciliar a doutrina que o fato inegável
com a bondade de Deus. (3.) No dom de Seu Filho, a revelação de Sua
palavra, a missão do Espírito e a instituição da Igreja, Deus deu
abundante provisão para a salvação do mundo. Que a Igreja tenha sido
tão remissa em dar a conhecer eI evangelho é a culpa da própria Igreja.
Não devemos atribuir a ignorância e conseguinte perdição dos pagãos a
Deus. A culpa é nossa. Nós guardamos para nós mesmos o pão da vida, e
permitimos que as nações pereçam.
Alguns dos teólogos luteranos mais antigos estavam dispostos a
encontrar a objeção em questão dizendo que o plano de salvação era
revelado a toda humanidade às três épocas distintas. Primeiro, após a
queda, para Adão; segundo, nos dias de Noé; e terceiro, durante a era dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 64
apóstolos. Se aquele conhecimento foi perdido foi pela ignorância
culpada dos próprios pagãos. Isto está levando a doutrina da imputação a
seu extremo final. Está fazendo a geração presente responsável pela
apostasia de seus antepassados. Deixa a dificuldade só onde estava.
Os Arminianos Wesleyanos e os Amigos, que admitem a
insuficiência da luz da natureza, mantêm que Deus dá graça suficiente,
ou uma luz interior sobrenatural que, se é abrigada e seguida de maneira
apropriada, conduzirá os homens à salvação. Mas esta é simplesmente
uma hipótese amável. Não há evidência de tal graça universal e
suficiente nas Escrituras, nem evidência de sua experiência. Além disso,
se se admitir não ajuda nisto. Se esta graça suficiente não salvar
realmente, se não livra os pagãos daqueles pecados sobre os quais se
proclama o juízo de Deus, só serve para agravar sua condenação. Tudo o
que podemos fazer é nos aderir estreitamente aos ensinos da Bíblia,
seguros de que o Juiz de toda a terra fará o que é reto; que embora haja
nuvens e escuridão ao redor dEle, e que Seus caminhos sejam
inescrutáveis, a justiça e o juízo são a morada de Seu trono.

§ 4. A teologia cristã

Assim como a ciência, que trata dos fatos da natureza, tem seus
vários departamentos, como matemática, química, astronomia, etc.,
também a Teologia, que tem como matéria de estudo os fatos das
Escrituras, tem alguns departamentos nos quais se divide. Primeiro:

Teologia Própria,
A qual inclui tudo o que a Bíblia ensina a respeito do ser e dos
atributos de Deus; da tríplice personalidade da Deidade, ou, que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são pessoas distintas, as mesmas em substância e
iguais em poder e glória; a relação de Deus com o mundo, ou, Seus
decretos e Suas obras de Criação e Providência. Segundo:
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 65
Antropologia,
A qual inclui a origem e a natureza do homem; seu estado original e
sua prova; sua queda; a natureza do pecado; o efeito do primeiro pecado
de Adão sobre si mesmo e sobre sua posteridade. Terceiro:

Soteriologia,
Que inclui o propósito ou plano de Deus em referência à salvação
dos homens; a pessoa e obra do Redentor; a aplicação da redenção de
Cristo ao povo de Deus, em sua regeneração, justificação e santificação;
e os meios da graça. Quarto:

Escatologia,
Isto é, a doutrina que tem que ver com o estado da alma depois da
morte; a ressurreição; a segunda vinda de Cristo; o juízo geral e o fim do
mundo; céu e inferno. E quinto:

Eclesiologia,
A ideia, ou natureza da Igreja; seus atributos; seus prerrogativas;
sua organização.
É a observação sugestiva de Kliefoth em sua “Dogmengeschichte,”
que foi atribuído à mente de gregos e à Igreja grega, a tarefa de elaborar
a doutrina da Bíblia a respeito de Deus, isto é, as doutrinas da Trindade e
Pessoa de Cristo; à Igreja latina as doutrinas a respeito do homem; isto é,
de pecado e graça; à Igreja alemã, Soteriologia, ou a doutrina da
justificação. Eclesiologia, ele diz, é reservada ao futuro, como a doutrina
relativa à Igreja não foi estabelecida por autoridade ecumênica como
foram as doutrinas de Teologia e Antropologia, e aquela de justificação
pelo menos para o mundo protestante.
A classificação anterior, embora conveniente e em geral recebida,
está longe de ser exaustiva. Omite a postura da lei (ou pelo menos
subordina isto indevidamente), ou regra de dever moral. Isto é um
departamento em si mesmo; e sob o título de Teologia Moral, é às vezes,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 66
como na Igreja latina, considerada como a mais importante. No meio
protestante é frequentemente considerado como um mero departamento
de Filosofia.
As Escrituras do Antigo e do Novo Testamento são a única norma
infalível de fé e prática. Mas este não é um ponto aceito por todos.
Alguns reclamam para a Razão uma autoridade suprema, ou ao menos
coordenada, em questões de religião. Outros pressupõem uma luz
interior sobrenatural a que atribuem uma autoridade suprema ou
coordenada. Outros descansam na autoridade de uma igreja infalível.
Para os protestantes, a Bíblia é a única fonte infalível de conhecimento
das coisas divinas. Por isso, faz-se necessário, antes de entrar em nossa
obra examinar concisamente estes vários sistemas: o Racionalismo, o
Misticismo e o Romanismo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 67
CAPÍTULO III
O RACIONALISMO

§ 1. Significado e uso do termo

POR racionalismo se entende o sistema ou teoria que atribui uma


indevida autoridade à razão em questões de religião. Pela razão não se
deve entender o Logos como revelado no homem, como seguros por
alguns dos Pais, e por Cousin e outros filósofos modernos, nem a
faculdade intuitiva como distinta da compreensão ou a faculdade
discursiva. A palavra é tomada em seu sentido ordinário denotando a
capacidade cognitiva, que percebe, compara, julga e infere.
O racionalismo apareceu sob formas diferentes. (1.) A deísta, que
nega a possibilidade ou o fato de qualquer revelação sobrenatural, e que
mantém que a razão é ao mesmo tempo a fonte e a base de todo
conhecimento e convicção religiosa. (2.) Aquela forma que enquanto que
admite a possibilidade e o fato da revelação sobrenatural, e que a tal
revelação está contida nas Escrituras Cristãs, mantém entretanto que as
verdades reveladas são verdades da razão; isto é, verdades que a razão
pode compreender e demonstrar. (3.) A terceira forma de Racionalismo
recebeu o nome de Dogmatismo, que admite que muitas das verdades da
revelação são inescrutáveis para a razão humana, e que devem ser
recebidas com base na autoridade. Entretanto, mantém que aquelas
verdades, quando são reveladas, admitem uma explicação e
estabelecimentos filosóficos e passam da esfera da fé à do conhecimento.
O Racionalismo em todas as suas formas procede da base do
Teísmo, isto é, a convicção de um Deus pessoal extramundano. Quando,
portanto, o Monismo, que nega todo dualismo e declara a identidade de
Deus e o mundo, tomou pose da mente de alemães, o Racionalismo, em
sua forma antiga, desapareceu. Não havia mais espaço para a distinção
entre razão e Deus, entre o natural e o sobrenatural. Nenhuma classe de
homens, portanto, são mais desprezíveis em sua oposição para os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 68
Racionalistas, que os advogados do moderno, ou, como ele
possivelmente pode ser mais corretamente designado, a filosofia
panteísta moderna da Alemanha.
Embora numa medida desterrada de sua pátria recente, continua
prevalecendo em todas suas formas, e com várias modificações, tanto na
Europa como na América. Mansel, em sua obra Limits of Religious
Though, 9 inclui sob o cabeçalho de Racionalismo a todos os sistemas que
fazem com que a prova final da verdade única «o assentimento direto da
consciência humana, seja em forma de dedução lógica, ou juízo moral,
ou intuição religiosa, por qualquer processo em que estas faculdades
possam ter sido elevadas à sua pretendida dignidade como árbitros».
Isto, entretanto, incluiria sistemas de natureza radicalmente diferente.

§ 2. Racionalismo deísta

A. Possibilidade de uma revelação sobrenatural

O primeiro ponto a determinar na controvérsia com os racionalistas


deístas trata da possibilidade de uma revelação sobrenatural. Eles a
negam usualmente, sobre bases filosóficas ou morais. Dizem que não é
consequente com a natureza de Deus e com sua relação com o mundo
supor que Ele interfere com uma ação direta no curso dos
acontecimentos. Segundo esta doutrina, a verdadeira teoria do universo é
que, tendo Deus criado o mundo e dotado a suas criaturas com seus
atributos e propriedades, fez tudo o que era consequente com Sua
natureza. Ele não interfere com sua atividade imediata na produção de
efeitos. Isso pertence à eficácia das segundas causas. Ou, se a
possibilidade metafísica de tal intervenção é admitida, é entretanto
moralmente impossível, porque implicaria imperfeição em Deus. Se sua
obra necessitar Sua constante interferência, deve ser imperfeita, e se for

9
Pág. 47, edição Boston, 1859.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 69
imperfeita, tem que dever-se a que Deus é deficiente quer em sabedoria,
quer em poder.
Está claro que esta é uma teoria errônea da relação de Deus com o
mundo. (1.) Porque contradiz o testemunho de nossa natureza moral. A
relação que temos com Deus, tal como se revela esta relação a nossa
consciência, implica que estamos constantemente na presença de um
Deus que toma nota de nossas ações, que ordena nossas circunstâncias e
que interfere constantemente para nossa correção e proteção. Ele não é a
nós um Deus longínquo, com quem não temos nenhuma preocupação
imediata; mas um Deus que não está longe de qualquer de nós, em quem
vivemos, nos movemos, e temos nosso ser, que conta os cabelos de nossa
cabeça, e não cai um pardal por terra sem que Ele o perceba. (2.) A
própria razão nos ensina que o conceito de Deus como governante do
mundo, que tem as Suas criaturas em Suas mãos, capaz de as controlar
segundo Sua vontade e de ter comunicação com elas, é um conceito
muito mais elevado e coerente com a ideia da perfeição infinita que
aquela concepção em que se baseia este sistema de Racionalismo. (3.) A
consciência comum do homem opõe-se a esta doutrina, como fica
patente de que todas as nações, das mais cultivadas até as mais bárbaras,
viram-se forçadas a conceber de Deus como um ser que toma
conhecimento dos assuntos humanos, e que Se revela a Si mesmo a Suas
criaturas. (4.) O argumento da Escritura, que embora não seja admitido
pelos racionalistas, é concludente para os cristãos. A Bíblia nos revela
um Deus que está constantemente presente em todo lugar com Suas
obras, e que age sobre elas, não só de maneira mediata, mas também
imediata, quando, onde e como melhor Lhe agrada.

B. Necessidade de uma Revelação sobrenatural

Entretanto, admitindo a possibilidade metafísica de uma revelação


sobrenatural, suscita-se a seguir a questão de se tal revelação é
necessária. Esta pergunta deve ser respondida afirmativamente. (1.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 70
Porque todo homem sente que tem necessidade dela. Sabe que há
questões a respeito do origem, natureza e destino do homem; a respeito
do pecado, e do método mediante o qual pode ser perdoado e vencido, às
quais ele não pode dar resposta. São questões, entretanto, que devem
receber resposta. Enquanto que estes problemas não recebam solução
ninguém pode ser nem bom nem feliz. (2.) Está igualmente seguro de
que ninguém dá respostas a estas perguntas a seus semelhantes. Todos
vocês percebem intuitivamente de que se relacionam com assuntos além
do alcance da razão humana. O que pode decidir a razão quanto ao
destino da alma depois da morte? Pode alguém que não pôde fazer-se
santo ou feliz aqui assegurar seu próprio bem-estar no futuro eterno?
Cada homem, sem uma revelação sobrenatural, não importa quão
filósofo seja, sabe que a morte é a entrada no desconhecido. É o portal às
trevas. Os homens devem entrar por este portal conscientes de que têm
neles uma vida imperecível combinada com todos os elementos da
perdição. Não é evidente de uma maneira patente então que os pecadores
imortais necessitam a alguém que lhes responda com autoridade a
pergunta: «O que devo fazer para ser salvo»? Convencer o homem de
que não pecou, e que o pecado não envolve desgraça é tão impossível
como convencer a um desgraçado de que não o é. Por isso, a necessidade
de uma revelação divina é uma questão simples de fato, da qual todo
homem está convencido em seu coração. (3.) Admitindo que os filósofos
pudessem resolver estes grandes problemas para sua própria satisfação, o
que deve suceder com a massa da humanidade? Devem ser deixados em
trevas e desespero? (4.) A experiência dos séculos demonstra que o
mundo, pela sabedoria, não conheceu a Deus. As nações pagãs, antigas e
modernas, civilizadas e selvagens, sem exceção alguma, fracassaram em
resolver pela luz da natureza nenhum dos grandes problemas da
humanidade. Este é o testemunho da história além do da Escritura. (5.)
Inclusive onde se desfruta da luz da revelação, encontra-se que aqueles
que recusam sua condução chegaram não só às conclusões mais
contraditórias, mas também à adoção de princípios na maior parte dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 71
casos destruidores da virtude doméstica, da ordem social, e da valia e da
felicidade do indivíduo. A razão do homem levou a grande parte dos que
não conhecem outro guia ao qual se chamou «o inferno do Panteísmo».

C. As Escrituras contêm uma Revelação assim

Admitindo a possibilidade e inclusive a necessidade de uma


revelação sobrenatural, foi dada uma revelação assim? Isto o racionalista
deísta nega, e o cristão afirma. O cristão afirma confiantemente que a
Bíblia contém tal revelação, e mantém que suas declarações estão
autenticadas por uma quantidade de evidência que faz com que a
incredulidade seja irrazoável e criminal.
1. Em primeiro lugar, seus autores afirmam ser os mensageiros de
Deus, falando por Sua autoridade e em Seu nome, de maneira que o que
eles ensinam deve ser recebido não pela autoridade dos próprios
escritores, nem na base da evidência inerente na natureza das verdades
comunicadas, mas na autoridade de Deus. É Ele quem afirma o que
ensinam os escritores sagrados. Esta declaração deve ser admitida, ou se
deve considerar como fanáticos ou impostores os escritores sagrados. É
totalmente certo que não eram nem uma coisa nem outra. Não seria mais
irracional pronunciar como idiotas a Homero e Newton, que apontar
Isaías e Paulo como impostores ou fanáticos. É coisa tão certa como
qualquer verdade evidente por si mesma que foram homens sábios, bons
e de mente sóbria. Que homens assim usurpassem falsamente ser os
mensageiros autorizados de Deus, e que estivessem dotados de poderes
sobrenaturais em confirmação de sua missão, seria uma contradição.
Seria afirmar que homens sábios e bons eram insensatos e ímpios.
2. A Bíblia não contém nada inconsistente com a reivindicação da
parte de seus autores da autoridade divina como mestres. Não contém
nada impossível, nada absurdo, nada imoral, nada inconsistente com
nenhuma verdade bem autenticada. Isto é já por si mesmo algo quase
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 72
milagroso, considerando as circunstâncias sob as quais foram escritas
seções diferentes das Escrituras.
3. Mais ainda, a Bíblia revela verdades da mais elevada ordem, que
não se dão a conhecer em outras partes. Verdades que confrontam as
mais urgentes necessidades de nossa natureza; que dão soluções aos
problemas que a razão jamais pôde resolver. Reconhece e autentica todos
os atos da consciência, todas as verdades que envolve nossa natureza
moral e religiosa, e que nós reconhecemos como verdadeiro assim que
eles são apresentados. Tem a mesma adaptação à alma que a atmosfera
aos pulmões, ou que as influências do sol sobre a terra em que vivemos.
E o que seria a terra sem estas influências é, de fato, o que é a alma sem
o conhecimento das verdades que chegamos a conhecer exclusivamente
por meio da Bíblia.
4. Os vários livros dos quais a Bíblia se compõe foram escritos por
uns cinquenta autores diferentes vivendo ao longo de mil e quinhentos
anos; e, entretanto, resultam ser um todo orgânico, o produto de uma
mente. São um desenvolvimento de uma maneira tão clara como o é o
carvalho de uma bolota. Os evangelhos e as epístolas são simplesmente a
expansão, cumprimento e culminação do proto-Evangelho, «a semente
da mulher esmagará a cabeça da serpente» (Gn 3:15). Tudo que intervém
está para o Novo Testamento o que as raízes, caule, galhos, e folhagem
da árvore estão para a fruta. Não se pode compreender nenhum livro das
Escrituras por si mesmo, como tampouco se pode compreender uma
parte de uma árvore ou membro do corpo sem referência ao todo do qual
forma uma parte. Aqueles que por falta de atenção não captam esta
relação das diferentes partes da Bíblia não podem apreciar o argumento
que disso se deriva em favor de sua origem divina. Os que o percebem,
não podem resistir a ele.

O argumento da profecia
5. Deus dá testemunho da autoridade divina das Escrituras mediante
sinais e maravilhas, e milagres diversos e distribuições do Espírito Santo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 73
Os acontecimentos condutores registrados no Novo Testamento foram
preditos no Antigo. Disto qualquer um se poderá satisfazer mediante
uma comparação de ambos. As coincidências entre as profecias e o
cumprimento não admitem solução racional, exceto que a Bíblia é a obra
de Deus; ou, que homens santos da antiguidade falaram inspirados pelo
Espírito Santo. Os milagres registrados nas Escrituras são
acontecimentos históricos, que não só têm direito a ser recebidos com
base no mesmo testemunho que autentica outros fatos da história, mas
também estão tão imbricados na inteira estrutura do Novo Testamento
que não podem ser negados sem rejeitar todo o evangelho, rejeição que
envolve a negação dos fatos melhor autenticados na história do mundo.

Argumento com base nos efeitos do Evangelho


Além deste testemunho sobrenatural externo, a Bíblia está em todas
as partes acompanhada pela «demonstração do Espírito», que dá a suas
doutrinas a clareza de verdades evidentes por si mesmas, e a autoridade
da voz de Deus; análogo à autoridade da lei moral para a consciência
natural.
6. A Bíblia sempre foi, e continua sendo, um poder no mundo. Ela
determinou o curso da história. Ela abateu a falsa religião ali onde é
conhecida. é Ela é a mãe da civilização moderna. Ela é a única garantia
da ordem social, da virtude, e dos direitos e da liberdade dos homens.
Seus efeitos não podem ser explicados racionalmente por outra hipótese
que a de que é o que afirma ser: «A Palavra de Deus».
7. Ela dá a conhecer a pessoa, obra, os atos e as palavras de Cristo,
que a mais clara revelação de Deus jamais dada ao homem. Ele é o Deus
manifestado. Suas palavras foram as palavras de Deus. Seus atos foram
os atos de Deus. Sua voz é a voz de Deus, e Ele disse: «A Escritura não
pode falhar» (Jo 10:35). Se alguém recusa reconhecê-Lo como o Filho
de Deus, como o Mestre infalível, e o único Salvador dos homens, nada
se pode dizer mais que o que diz o Apóstolo: «Se o nosso evangelho
ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 74
quais o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que
lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a
imagem de Deus. ... Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a
luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do
conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo.» (2Co 4:3, 4, 6).
O racionalismo deísta na Alemanha é às vezes chamado
Naturalismo, como distinto do Supernaturalismo; como o antigo nega, e
o posterior declara, uma agência ou natureza de operação acima na
conduta de eventos neste mundo. Mas mais usualmente se significa por
Naturalismo a teoria que nega a existência de qualquer energia mais alta
que a natureza, e portanto é só outro nome para ateísmo. Não é,
consequentemente, uma designação adequada de um sistema que assume
a existência de um Deus pessoal.

§ 3. A segunda forma do Racionalismo

A. Sua natureza

A forma mais comum de racionalismo admite que as Escrituras


contêm uma revelação sobrenatural. Entretanto, ensina que o objeto
desta revelação é dar a conhecer de uma maneira mais geral, e autenticar
perante as massas, as verdades da razão, ou doutrinas da religião natural.
Estas doutrinas são recebidas por mentes cultivadas não sobre a base da
autoridade, mas sim da evidência racional. O princípio fundamental
desta classe de racionalistas é que não se pode crer nada racionalmente
que não seja compreendido. “Nil credi posse, quod a ratione capi et
intelligi nequeat.” Se se pergunta a um deles por que crê na imortalidade
da alma, o racionalista responderá: Porque esta doutrina é razoável. Para
sua mente, os argumentos a favor são de maior peso que os argumentos
contrários. Se se pergunta por que não crê na doutrina da Trindade,
responde: Porque é irrazoável. Os argumentos filosóficos contra ela são
de maior peso que os argumentos da razão a seu favor.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 75
Não é decisivo que os escritores sagrados ensinem esta doutrina. O
racionalista não se sente compelido a crer tudo o que ensinam os
escritores sagrados. A Bíblia, admite ele, contém uma revelação divina.
Mas esta revelação foi dada a homens falíveis, homens que não
estiveram sob uma condução sobrenatural em sua comunicação das
verdades reveladas. Eram homens cujos modos de pensar, maneira de
argumentar e de apresentar a verdade foram modificados por sua cultura
e pelas formas de pensar prevalecentes durante a época em que viveram.
Por isso, as Escrituras abundam em conceitos errôneos, argumentos
inconclusivos e acomodações a erros; superstições e crenças populares
dos judeus. É o papel da razão abater estes materiais incongruentes, e
separar o trigo do joio. Isto é trigo que razão teme em sua própria luz
para ser verdade; isto é, para ser rejeitado como joio o que a razão não
pode entender, e não pode provar ser verdade. Isto é, nada é verdade para
nós que nós não vemos por nós mesmos como verdade.

B. Refutação

É suficiente observar a respeito desta forma de Racionalismo:


1. Que se baseia em um princípio falso. Não é necessário para o
exercício racional da fé que tenhamos que compreender a verdade crida.
O desconhecido e o impossível não podem ser cridos; mas todos creem e
devem crer o incompreensível. O assentimento à verdade se baseia na
evidência. Esta evidência pode ser externa ou intrínseca. Algumas coisas
cremos com base no testemunho de nossos sentidos. Outras coisas
cremos com base no testemunho dos homens. Por que não vamos, pois,
crer com base no testemunho de Deus? Um homem pode crer que o
papel lançado no fogo arderá, embora não compreenda o processo da
combustão. Todos os homens creem que as plantas crescem, e que
semelhante gerou semelhante; mas ninguém compreende o mistério da
reprodução. Inclusive o positivista, que quereria reduzir toda crença a
zero, vê-se obrigado a admitir que o compreensível é verdade. E os que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 76
não creem nem em Deus nem em espírito porque são invisíveis e
intangíveis, dizem que tudo o que conhecemos é o incognoscível, – só
conhecemos a força, – mas da força não conhecemos nada mais o que
existe, e que persiste. Por isso, se devemos crer no Incompreensível em
todos outros departamentos do conhecimento, não se pode dar nenhuma
base racional para eliminá-lo da religião.
2. O racionalismo dá por sentado que a inteligência humana é a
medida de toda verdade. Esta é uma insensata presunção da parte de uma
criatura como o homem. Se um menino crer com confiança implícita
naquilo que não pode compreender, com base no testemunho de um pai,
certamente que o homem pode crer o que não pode compreender, com
base no testemunho de Deus.
3. O racionalismo destrói a distinção entre fé e conhecimento, que
todos os homens e todas as idades admitem. A fé é assentimento à
Verdade baseada no testemunho. O conhecimento é assentimento
baseado na apreensão direta ou indireta, intuitiva ou discursiva, de seu
objeto. Se não poder há nenhuma fé racional, se nós formos receber
como verdadeiro só o que nós sabemos e entendemos, o mundo inteiro é
empobrecido. Perde tudo o que sustenta, embeleza, e enobrece a vida.
4. Os pobres não podem ser racionalistas. Se tivermos que
compreender o que cremos, inclusive com base nos princípios dos
racionalistas, só os filósofos podem ser religiosos. Só eles podem
compreender as bases racionais sobre as quais devem ser recebidas as
grandes verdades sequer da religião natural. Difundido, portanto, como
tenha sido a influência de um espírito racionalista, nunca se conectou às
pessoas; nunca controlou o credo de qualquer igreja; porque toda religião
é fundada no incompreensível e no infinito.
5. Por isso, a protesta que nossa natureza religiosa levanta contra o
estreito, frio e estéril sistema do racionalismo é já uma prova suficiente
de que não pode ser certo, porque não pode suprir nossas mais urgentes
necessidades. O objeto da adoração deve ser infinito, e necessariamente
incompreensível.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 77
6. A fé implica conhecimento. E se devemos compreender para
poder conhecer, a fé e o conhecimento se tornam ao mesmo tempo
impossíveis. Por isso, o princípio sobre o qual se baseia o racionalismo
conduz ao Niilismo, ou negação universal. Até a forma mais recente de
filosofia, tomando a base possível mais baixa sobre fé religiosa, admite
que nós somos cercados por todo lado pelo incompreensível.
Herbert Spencer, em seus “First Principles of a New Philosophy,”
afirma, pág. 45: “a onipresença de algo que passa pela compreensão.”
Declara que a última verdade em que todas as formas da religião
concordam, e em que religião e ciência estão em harmonia, : “Que o
poder que o universo nos manifesta é totalmente inescrutável.” 10 O
inescrutável, o incompreensível, que nós não podemos entender, deve
portanto por necessidade ser racionalmente o objeto da fé. E,
consequentemente, razão, demonstração racional, ou prova filosófica não
é a base da fé. Podemos crer no que não podemos entender. Podemos
estar seguros de verdades que são cercadas com objeções que nós não
podemos satisfatoriamente responder.

C. História

O surgimento do racionalismo deísta em sua forma moderna teve


lugar na Inglaterra durante a última parte do século dezessete e a
primeira metade do dezoito. Sir Herbert, que morreu em 1648, em sua
obra, “De Veritate, prout distinguitur um Revelatione,” etc., ensinou que
toda religião consiste no reconhecimento das verdades seguintes: 1. A
existência de Deus. 2. A dependência do homem em Deus, e seu dever
de reverenciá-lo. 3. A devoção consiste na harmonia das faculdades
humanas. 4. A diferença essencial entre o bem e o mal. 5. Um estado
futuro de recompensas e castigo. Ele manteve estas como verdades
intuitivas, não necessitando de nenhuma prova, e praticamente cridas por

10
First Principles of a New Philosophy, p. 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 78
todos os homens. Isto pode ser considerado como a confissão de Fé de
todos os Deístas, e até daqueles racionalistas que admitem uma revelação
sobrenatural; para tal revelação, eles mantêm, só se pode autenticar o que
a razão propriamente ensina.
Outros escritores às pressas seguiram o curso aberto por Sir
Herbert; como, Toland em seu “Christianity without Mystery,” 1696,
uma obra que desperta grande atenção, e obteve refutações numerosas.
Toland terminou declarando-se a si mesmo um panteísta. Hobbes era
materialista. Sir Shaftesbury, que morreu em 1773, em suas
“Characteristics,” “Miscellaneous Treatises,” e “Moralist,” tornou
ridícula a prova de verdade. Declarou que a revelação e a inspiração
eram fanatismo. Collins (morto em 1729) foi um escritor mais sério.
Suas obras principais foram, “An Essay on Free-thinking,” e “The
Grounds and Reasons of Christianity.” Sir Bolingbroke, Secretário de
estado sob a rainha Anne, “Letters on the Study and Utility of History.”
Mateus Tindal, “Christianity as Old as the Creation.” Tindal, em vez de
atacar o cristianismo em detalhe, tentou construir um sistema regular de
deísmo. Manteve que Deus não pretendia que os homens deviam estar
sem uma religião adequada para todas as suas necessidades, e portanto
que uma revelação pode só fazer o que todo homem tem em sua própria
razão. Esta revelação interna e universal contém duas verdades: 1. A
existência de Deus. 2. Que o homem é criado por Deus não por causa de
si mesmo, mas sim por causa do homem. Sem dúvida o mais capaz e
influente dos escritores desta classe foi Davi Hume. Suas
“Compositions” em quatro volumes contêm suas posturas teológicas. Os
mais importantes desta são aqueles sobre História Natural da Religião, e
sobre Milagres. Seus “Dialogues on Natural Religion” é considerado
como o trabalho mais capaz sempre escrito em defesa do deísmo, ou
melhor, do sistema ateu.
No geral, o mais capaz e influente dos escritores desta classe foi
Davi Hume. Seus Essays, em quatro volumes, contêm seus posturas
teológicas. Os mais importantes destes são os da História Natural da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 79
Religião, e sobre os Milagres. Sua obra «Diálogos a respeito da Religião
Natural» é considerada como a obra mais capaz jamais escrita em apoio
do sistema deísta, ou, melhor, ateu.
Da Inglaterra, o espírito de incredulidade se estendeu à França.
Voltaire, Rousseau, La Mettrie, Holbach, D'Alembert, Diderot, e outros,
conseguiram por um tempo derrubar toda fé religiosa nas classes
condutoras da sociedade.

Racionalismo na Alemanha
Na Alemanha a defecção racionalista começou com tais homens
como Baumgarten, Ernesti, e John David Michaelis, que não negaram a
autoridade divina das Escrituras, mas sim explicaram muito bem suas
doutrinas. Estes eram seguidos por homens tais como Semler, Morus, e
Eichhorn, que era completamente novo. Durante a última parte do século
passado e a primeira parte do presente, * a maior parte dos principais
historiadores da igreja, exegetas e teólogos da Alemanha, eram
racionalistas. O primeiro golpe sério contra seu sistema o deu Kant. Os
racionalistas davam como sentado que podiam demonstrar as verdades
da religião natural com base nos princípios da razão. Kant, em sua crítica
da Razão Pura, empreendeu demonstrar que a razão não é competente
para demonstrar nenhuma verdade religiosa. O único fundamento para a
religião, mantinha ele, era nossa consciência moral. Esta consciência
envolvia ou implicava as três grandes doutrinas de Deus, da liberdade e
da imortalidade. Seus sucessores, Fichte e Schelling, executaram os
princípios que Kant adotou para provar que o mundo externo é algo
desconhecido, para mostrar que não existia tal mundo; não existia
nenhuma distinção real entre o ego e não ego, o subjetivo e o objetivo;
que ambos são modos da manifestação do absoluto. Deste modo todas as
coisas eram fundidas numa. Este panteísmo idealista tendo deslocado o

*
Naturalmente, refere-se ao século XIX. em que Hodge viveu e escreveu sua obra.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 80
racionalismo, já rendeu o trono filosófico para uma forma sutil de
materialismo.
Bretschneiders “Entwickelung aller in der Dogmatik
vorkommenden Begriffe,” deu uma lista de cinquenta e dois trabalhos na
controvérsia racionalista na Alemanha. Os livros ingleses escritos contra
os racionalistas ou deístas da Grã-Bretanha, e no papel adequado da
razão em assuntos da religião, são escassamente menos numerosos.
Algumas das mais importantes dessas obras são as seguintes: “Boyle on
Things above Reason,” Butler’s “Analogy of Religion and Nature,”
Conybeare’s “Defense of Religion,” “Hulsean Lectures,” Jackson’s
“Examination,” “Jew’s Letters to Voltaire,” Lardner’s “Credibility of the
Gospel History,” Leland’s “Advantage and Necessity of Revelation,”
Leslie’s “Short and Easy Method with Deists.” Warburton’s “View of
Bolingbroke’s Philosophy,” e sua “Divine Legation of Moses,” John
Wilson’s “Dissertation on Christianity,” etc., etc. Veja-se Stäudlin’s
“Geschichte des Rationalismus,” e uma história concisa e instrutiva de
teologia durante o décimo oitavo século, por Dr. Tholuck no “Biblical
Repertory and Princeton Review” em 1828. Leibnitz’s “Discours da
Conformité da Foi avec a Raison,” no prefácio para sua “Théodicée,” e
Mansel’s “Limits of Religious Thought,” merece a cuidadosa leitura do
aluno teológico. Os trabalhos mais recentes neste assunto geral são
Lecky’s “History of Rationalism in Europe, e “History of Rationalism,
abraçando uma pesquisa do estado presente de Teologia protestante,”
pelo Rev. John F. Hurst, A. M. O posterior é a publicação mais instrutiva
na língua inglesa a respeito do cepticismo moderno.

§ 4. Dogmatismo, a terceira forma do racionalismo

A. Significado do termo

Era uma objeção comum apresentada pelos filósofos gregos contra


o cristianismo nos primeiros tempos da Igreja que suas doutrinas eram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 81
recebidas com base de autoridade, e não por evidências racionais. Muitos
dos pais [da Igreja], especialmente os da escola de Alexandria,
responderam que isto era certo só do comum do povo. Não se podia
esperar deles que compreendessem filosofia. Podiam receber as altas
verdades da religião só sobre a base da autoridade. Mas as classes
educadas podiam e deviam investigar a evidência filosófica ou racional
das doutrinas ensinadas na Bíblia, e receber estas doutrinas sobre a base
desta evidência. Por isso, faziam uma distinção entre pistis e gnosis,
entre fé e conhecimento. O primeiro era para o comum do povo, o último
para os cultos.
Os objetos de fé eram as declarações doutrinais da Bíblia na forma
em que eles estão lá apresentados. A base da fé é simplesmente o
testemunho das Escrituras como a Palavra de Deus. Os objetos de
conhecimento eram as ideias especulativas ou filosóficas que estão por
baixo das doutrinas da Bíblia, e a base na qual aquelas ideias ou
verdades são recebidas e incorporadas em nosso sistema de
conhecimento, é sua própria evidência inerente. São vistos como sendo a
verdade à luz da razão. A fé é deste modo elevada ao conhecimento, e o
cristianismo exaltado a uma filosofia. Este método era executado pelos
pais platonistas, e continuaram a prevalecer em grande parte entre os
escolásticos. Durante a Idade Média a autoridade da Igreja era suprema,
e os pensadores mais livres não se aventuraram abertamente a impugnar
as doutrinas que a Igreja sancionou. A maior parte deles se contentaram
a si mesmos filosofando sobre aquelas doutrinas, e empenhando-se para
mostrar o que eles admitiram de uma explicação e prova filosófica.

Wolfianismo
Este método foi avivado e extensamente propagado por Wolf
(1679-1754, Professor de Halle e Marburg). Suas obras principais foram
“Theologia Naturalis,” 1736, “Filos. Practicalis Universalis,” 1738,
“Filos. Moralis S. Ethica,” 1750, “Vernünftige Gedanken von Gott, der
Orla und der Seele dê Menschen, auch Allen Dingen überhaupt,” 1720.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 82
Wolf exaltou de maneira indevida a importância da religião natural.
Embora admitia que as Escrituras revelavam doutrinas não descobertas
pela razão não assistida do homem, insistia entretanto em que suas
doutrinas, para poder ser recebidas como certas, deviam ser capazes de
demonstração com base nos princípios da razão. “Ele manteve,” diz o Sr.
Rose (em seu “State of Protestantism in Germany,” pág. 39), “aquela
filosofia era indispensável para a religião, e isto, junto com provas
bíblicas, um sistema matemático ou estritamente demonstrativo
dogmático, de acordo com os princípios de razão, era absolutamente
necessário. Suas próprias obras levaram esta teoria à prática, e depois
que os primeiros clamores baixaram, suas opiniões ganharam mais
atenção, e não demorou muito para ele ter uma escola de admiradores
veementes, que logo o ultrapassaram no uso de seus próprios princípios.
Achamos alguns deles não satisfeitos em aplicar a demonstração da
verdade do sistema, mas sim se empenharam em estabelecer cada dogma
em separado, a Trindade, a natureza do Redentor, a Encarnação, a
eternidade do castigo, em bases filosóficas, e por estranho que pareça,
algumas destas verdades em bases matemáticas.” A linguagem do
próprio Wolf neste assunto já foi citada. Estabeleceu expressamente o
papel da revelação a respeito do suplemento da religião natural, e
proposições para presentes que o filósofo está destinado a demonstrar.
Por demonstração não se significa a contribuição de prova de que a
proposição é sustentada pelas Escrituras, mas sim a doutrina deve ser
admitida como verdadeira com base nos princípios da razão. É uma
demonstração filosófica o que se propõe. O “Dogmatismo teológico,” diz
Mansel, 11 “é um aplicativo de razão suportá-lo e defesa de declarações
preexistentes da Escritura. … Seu fim é produzir uma coincidência entre
o que cremos e o que pensamos; remover o limite que separa o
compreensível do incompreensível.” 12 Tenta, por exemplo, demonstrar a

11
Limits of Religious Thought, p. 47.
12
Ibid. p. 50.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 83
doutrina da Trindade da natureza de um ser infinito; a doutrina da
Encarnação da natureza do homem e de sua relação com Deus, etc. Seu
grande desígnio é transmutar a fé em conhecimento, e elevar o
cristianismo como sistema de verdade revelada até um sistema de
filosofia.

B. Refutação

As objeções ao dogmatismo assim entendido são:


1. Que é essencialmente racionalista. O racionalista exige prova
filosófica das doutrinas que recebe. Não está disposto a crer com base na
simples autoridade da Escritura. Exige que sua razão fique satisfeita
mediante uma demonstração da verdade independente da Bíblia. Esta
demanda o dogmatista admite como razoável, e empreende a tarefa de
prover a prova necessária. Por isso, neste ponto essencial de fazer
descansar a recepção da doutrina cristã sobre a razão e não sobre a
autoridade, o dogmatista e o racionalista estão sobre um terreno comum.
Porque embora o primeiro admite uma revelação sobrenatural e
reconhece que para o comum do povo a fé deve descansar sobre a
autoridade, entretanto ele mantém que as mistérios da religião admitem
uma demonstração racional ou filosófica, e que tal demonstração as
mentes cultivadas têm direito a demandá-la.
2. Ao tirar assim a fé de seu fundamento de testemunho divino e
levá-la a repousar sobre uma demonstração racional, é tirada da Rocha
dos Séculos e posta sobre areias movediças. Existe aquela mesma
diferença essencial entre uma convicção baseada num testemunho bem
autenticado de Deus e a que se baseia na pretendida demonstração
filosófica que a existente entre Deus e o homem, o divino e o humano.
Que qualquer um leia as pretendidas demonstrações filosóficas da
Trindade, da Encarnação, da ressurreição do corpo ou de qualquer das
grandes verdades da Bíblia, e se sentirá livre de receber ou rejeitar
vontade. Carecem de autoridade ou certeza. São o produto de uma mente
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 84
como a sua, e por isso não podem ter mais poder que aquele que pertence
a um intelecto humano falível.
3. Por isso, o dogmatismo é, em seu efeito prático, destruidor da fé.
Ao transmutar o cristianismo numa filosofia, toda sua natureza fica
mudada, e seu poder, perdido. Ocupa seu lugar como uma das
inumeráveis fases da especulação humana, que na história do
pensamento humano teve êxito mútuo como as ondas do mar, —
ninguém já aguenta.
4. Procede com base de um princípio essencialmente falso. Supõe a
competência da razão para julgar a respeito de coisas totalmente para
além de sua esfera. Deus constituiu nossa natureza de maneira que
estamos autorizados para e precisamos confiar no testemunho bem
autenticado de nossos sentidos, dentro da esfera que lhes é própria. E da
mesma maneira somos constrangidos a confiar na operação de nossa
mente e nas conclusões às quais nos conduz, dentro da esfera que Deus
atribuiu à razão humana. Mas os sentidos não podem pôr-se a julgar as
verdades racionais. Não podemos estudar lógica com o microscópio ou o
bisturi. E não é menos irracional depender da razão, ou exigir
demonstrações racionais ou filosóficas de verdades que chegam a ser
conhecidas só enquanto que são reveladas. Pela mesma natureza do caso,
as verdades a respeito da criação, da prova, e da apostasia do homem, o
propósito e plano da redenção, a pessoa de Cristo, o estado da alma no
mundo vindouro, a relação de Deus com suas criaturas, etc., não
dependem dos princípios gerais da razão, mas em grande medida dos
propósitos de um Ser inteligente e pessoal, e podem ser conhecidas só
enquanto que Ele queira revelá-las, e devem ser recebidas simplesmente
com base em sua autoridade.

O testemunho das Escrituras contra o dogmatismo


O testemunho das Escrituras é decisivo a respeito disto. Do começo
ao fim da Bíblia, os escritores sagrados se apresentam como
testemunhas. Demandam fé em seus ensinos e obediência a seus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 85
mandamentos não com base em sua própria superioridade em sabedoria
e excelência; não sobre a base da demonstração racional da verdade da
qual ensinavam, mas sim simplesmente como órgãos de Deus, como
homens indicados por Ele para revelar Sua vontade. Sua primeira, última
e suficiente razão para a fé é: «Assim diz o Senhor». Os escritores do
Novo Testamento, de maneira especial, repudiam toda pretensão ao
caráter de filósofos. Ensinavam que o Evangelho não era um sistema de
verdade derivado da razão nem sustentado por sua autoridade, mas pelo
testemunho de Deus. Afirmam de maneira expressa que suas doutrinas
eram reveladas, que devem ser recebidas com base no testemunho
divino. «Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou
em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o
amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas
as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos
homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele
está?» (1Co 2:9-11). Sendo como é a natureza do Evangelho, se é
recebido absolutamente tem que sê-lo sobre a base da autoridade. Devia
ser crido ou aceito confiantemente, não demonstrado como um sistema
filosófico. E a Bíblia vai ainda além. Ensina que o homem tem que
tornar-se néscio para poder ser sábio; tem que renunciar a depender de
sua própria razão ou sabedoria a fim de receber a sabedoria de Deus.
Nosso Senhor disse a Seus discípulos que a não ser que se convertessem
e se tornassem como meninos pequenos, não poderiam entrar no reino de
Deus. E o apóstolo Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, e naqueles
tratados aos Efésios e Colossenses, isto é, quando escreviam para
aqueles cheios da filosofia grega oriental, fizeram disto a condição
indispensável de seus cristãos adaptados, que eles deviam renunciar à
filosofia como um guia em assuntos da religião, e receber o Evangelho
no testemunho de Deus. Nada, pois, pode estar mais oposto a todo o
ensino e ao espírito da Bíblia que esta disposição de insistir nas provas
filosóficas dos artigos de nossa fé. Nosso dever, nosso privilégio, e nossa
segurança estão em crer, não em conhecer; em confiar em Deus, e não
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 86
em nosso entendimento. São dignos de compaixão os que não têm um
mestre mais digno de confiança que eles mesmos.
6. As instruções da Bíblia neste assunto são abundantemente
confirmadas pelas lições de experiência. Dos tempos dos gnósticos e dos
pais platonistas fez em cada idade o intento de exaltar a fé a
conhecimento, e de transmutar o cristianismo a filosofia, demonstrando
suas doutrinas com base nos princípios da razão. Estes intentos sempre
fracassaram. Eles provaram a postura toda efêmera e desprezível, —
cada sucessivo teorizador que visualiza com mais ou menos desprezo as
especulações de seus predecessores, ainda cada ideia que ele tem os dons
para compreender o Todo-poderoso.
Estes intentos não só fracassaram, mas também são sempre ímpios
em seus efeitos sobre seus autores e sobre todos os que ficam
influenciados por eles. Até onde triunfam para satisfação de seus autores,
mudam a relação da alma com a verdade, e, naturalmente, com Deus. A
recepção da verdade não é um ato de fé, nem de confiança em Deus, mas
sim de confiança nas próprias especulações. O eu toma o lugar de Deus
como a base da confiança. Com isso muda todo o estado interior do
homem. A História, além disso, prova que o Dogmatismo é o
predecessor do Racionalismo. A propensão natural e as consequências
atuais da indulgência de uma disposição para exigir demonstração
filosófica para artigos de fé, é um estado de espírito que rebelião em
autoridade, e recusa admitir como verdadeiro o que não pode
compreender e provar. E este estado de espírito, como é incompatível
com a fé, é o pai de incredulidade e de todas as suas consequências.
Assim, não temos outra segurança que a de permanecer dentro dos
limites que Deus nos atribuiu. Confiemos em nossos sentidos dentro da
esfera de nossas percepções sensoriais; na razão, dentro da esfera das
verdades racionais; e em Deus, e só em Deus, em tudo o que tem que ver
com as coisas de Deus. Só conhece de verdade aquele que consente com
a docilidade de um menino a ser ensinado por Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 87
§ 5. O papel próprio da razão em matéria de religião

A. A razão é necessária para a recepção de uma Revelação

Ao repudiar o racionalismo em todas as suas formas, os cristãos não


rejeitam o serviço da razão em questões de religião. Reconhecem suas
altas prerrogativas, e a responsabilidade envolta em seu exercício.
Em primeiro lugar, a razão é dada como suposta em cada revelação.
A revelação é comunicação da verdade à mente. Mas a comunicação da
verdade supõe capacidade para recebê-la. Não se podem dar revelações a
brutos nem a idiotas. As verdades, para ser recebidas como objetos de fé,
devem ser apreendidas intelectualmente. Uma proposição a que não
atribuímos significado não pode ser um objeto de fé, por importante que
seja a verdade que contém. Se se afirma que a alma é imortal, ou Deus é
um espírito, a menos que nós conheçamos o significado das palavras,
nada é comunicado à mente, e a mente não pode afirmar ou negar nada
sobre o assunto. Em outras palavras, o conhecimento é essencial para a
fé. Ao crer, afirmamos a verdade da proposição crida. Mas nada
podemos afirmar do que nada conhecemos. Por isso, o primeiro e
indispensável papel da razão em assuntos de fé é o conhecimento, ou
apreensão inteligente das verdades propostas à nossa recepção. É isto
que os teólogos estão acostumados a chamar o uso orgânico, ou seja,
instrumental, da razão. E a respeito disto não há discussão possível.

Diferença entre Conhecimento e Entendimento


Mas é importante ter em mente a diferença entre conhecimento e
entendimento, ou compreensão. Um menino sabe o que significam as
palavras «Deus é espírito». Nenhum ser criado pode compreender o
Onipotente de uma maneira perfeita. Devemos conhecer o plano da
salvação; mas ninguém pode compreender seus mistérios. Esta distinção
se reconhece em todos os departamentos do conhecimento. Os homens
sabem muitíssimo mais que o que compreendem. Sabemos que as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 88
plantas crescem; que a vontade controla nossos músculos voluntários;
que Jesus Cristo é Deus e homem em duas naturezas distintas, e uma
pessoa eternamente; mas aqui, como em tudo o mais, vemo-nos rodeados
pelo incompreensível.

B. A razão deve julgar a respeito da credibilidade de uma


Revelação

Em segundo lugar, é a prerrogativa da razão julgar a respeito da


credibilidade de uma revelação. A palavra acreditável é às vezes
empregada popularmente para denotar fácil de crer, isto é, provável. Em
seu sentido próprio, é antitético ao incrível. O incrível é o que não pode
ser crido. Nada é incrível mas sim o impossível. O que pode ser pode-se
crer racionalmente (isto é, sobre uma base suficiente).
Uma coisa pode ser estranha, inexplicável, ininteligível, e
entretanto perfeitamente acreditável. O que é estranho ou inexplicável
para uma mente pode ser perfeitamente familiar e claro para outra. Para
o intelecto mais limitado ou experiência em fazer-se o padrão do
possível e verdadeiro, seria tão absurdo quanto um homem fazer de seu
horizonte visível o limite do espaço. A menos que um homem esteja
disposto a crer no incompreensível, ele não pode crer em nada, e deve
habitar para sempre na mais densa escuridão. A forma mais cética da
filosofia moderna, que reduz a fé e o conhecimento a um mínimo, ensina
que tudo o que conhecemos é o incompreensível, isto é, que a força
existe, e que é persistente. Por isso, é bem irrazoável insistir como
objeção ao cristianismo o fato de que demande fé no incompreensível. *

*
Alguns exemplos mais modernos da realidade de que até o cepticismo vê-se exposto a crer conceitos
absolutamente incompreensíveis é a questão da origem do universo. O crente crê que Deus criou o
universo pelo poder de Seu mandato. O incrédulo afirma que houve um «Grande Estalo» (Big Bang)
no princípio, em que um átomo primordial incrivelmente pequeno, que continha a grande massa do
universo em seu seio, estalou e se expandiu dando origem ao universo. Aí se detêm os proponentes
desta teoria ateia. Desde onde veio este «ovo cósmico»? Aí eles devem deter seu raciocínio e aceitar o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 89
O impossível não pode ser crido
Enquanto que o anterior é verdade e está claro, não é menos certo
que o impossível é incrível, e que portanto não pode ser objeto da fé. Os
cristãos concedem à razão o juízo da contradição, isto é, a prerrogativa
de decidir se algo é possível ou impossível. Se se vê como impossível,
nenhuma autoridade nem quantidade de evidência podem impor a
obrigação de recebê-lo como verdade. Mas que uma coisa seja possível
ou não, não se pode decidir de uma maneira arbitrária. Os homens são
propensos a pronunciar impossível tudo aquilo que contradiga suas
convicções assentadas, suas precogitações ou preconceitos, ou aquilo
que repugna a seus sentimentos. Em tempos passados não se hesitava em
dizer que é impossível que a terra deve girar em torno do seu eixo e se
mover através do espaço com rapidez incrível, e ainda não percebemos.
Dizia-se que era absolutamente impossível que a informação pudesse ser
transmitida a milhares de quilômetros em uma fração de segundo.
Naturalmente, seria uma insensatez rejeitar toda evidência de tal
realidade sobre a base de sua impossibilidade. Não é menos irrazoável da
parte dos homens rejeitar as verdades da revelação com a hipótese de
que envolvem o impossível, quando contradizem nossas anteriores
convicções, ou quando não podemos ver como podem ser. Diz-se que é
impossível que uma mesma pessoa possa ser ao mesmo tempo Deus e
homem, e entretanto, admite-se que o homem é ao mesmo tempo
material e imaterial, mortal e imortal, anjo e animal. O impossível não
pode ser certo, mas ao pronunciar uma coisa como impossível, a razão
deve agir racionalmente e não de uma maneira caprichosa. Seus juízos
devem ser conduzidos por princípios que são válidos para a consciência
comum dos homens. Estes princípios são os seguintes:

incompreensível. E os proponentes das modernas teorias que descartam o «Grande Estalo» também
repousam na aceitação de conceitos que para eles mesmos são incompreensíveis. (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 90
O que é impossível
(1.) Impossível é aquilo que envolve uma contradição; como que
algo é e não é; que o bem é mal e o mal bem. (2.) É impossível que Deus
faça, aprove ou ordene algo moralmente mau. (3.) É impossível que Ele
demande de nós que creiamos o que contradiga as leis da crença que Ele
impôs à nossa natureza. (4.) É impossível que uma verdade contradiga a
outra. É impossível, então, que Deus revele algo como verdade que
contradiga qualquer verdade bem autenticada, seja da intuição, da
experiência ou de uma revelação anterior.
Os homens podem abusar desta prerrogativa da razão, como
também abusam de sua liberdade. Mas a prerrogativa não pode, em si
mesma, ser negada. Temos direito a negar como falso tudo o que é
impossível que Deus queira nos fazer crer. Ele não pode demandar de
nós que creiamos o absurdo, como tampouco que façamos o mal.

Prova desta prerrogativa da razão


1. Está claro que a razão tem a prerrogativa do juízo da
contradição, em primeiro lugar, pela própria natureza do caso. A fé
inclui uma afirmação da mente de que uma coisa é certa. Mas é uma
contradição dizer que a mente pode afirmar que é certo aquilo que não vê
que seja possível que seja certo. Isto seria afirmar e negar, crer e descrer
ao mesmo tempo. Pela própria constituição de nossa natureza estamos
não só autorizados mas também constrangidos a pronunciar anátema a
um apóstolo ou um anjo do céu, que nos queira fazer receber como
revelação de Deus qualquer coisa absurda, má ou incongruente com a
natureza intelectual ou moral de que nos dotou. A submissão da
inteligência humana a Deus é certamente absoluta: mas é uma sujeição a
uma sabedoria e bondade infinitas. Como é impossível que Deus Se
contradissesse a Si mesmo, então é impossível que Ele devia, por uma
revelação externa, declarar ser verdade que pelas leis de nossa natureza
Ele fez o impossível para que nós crêssemos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 91
2. Esta prerrogativa da razão é constantemente reconhecida nas
Escrituras. Os profetas chamavam o povo a rejeitar as doutrinas dos
pagãos porque não podiam ser certas. Não podiam ser certas porque
incorriam em contradições e absurdos; porque entravam em contradição
com nossa natureza moral, e porque eram inconsistentes com verdades
conhecidas. Moisés ensina que não se devia crer em nada, por muita
evidência externa que pudesse aduzir-se em apoio disso, que
contradissesse uma revelação anterior e devidamente autenticada da
parte de Deus. Paulo faz o mesmo quando nos chama a pronunciar
anátema a um anjo que queria nos ensinar outro evangelho. Reconheceu
a autoridade suprema dos juízos intuitivos da mente. Ele diz que a
condenação de qualquer homem é justa porque nos chama a crer que o
certo é errado, ou que os homens devem fazer o mal para que venha o
bem.
3. A base última da fé e do conhecimento é a confiança em Deus.
Não podemos nem crer nem conhecer nada a não ser que confiemos
naquelas leis da crença que Deus implantou em nossa natureza. Se nos
fosse pedido para crer o que contradiz estas leis, os fundamentos se
destroem. Desapareceria toda distinção entre a verdade e a falsidade,
entre o bem e o mal. Todas as nossas ideias de Deus e da virtude
ficariam confundidas, e seríamos fáceis presas de qualquer hábil
enganador, ou ministro de Satanás, que, mediante milagres mentirosos,
poderiam nos induzir a crer uma mentira. Temos que provar os espíritos,
mas como os provaremos sem uma norma? E não há outra norma exceto
as leis de nossa natureza e as revelações autenticadas de Deus.

C. A razão deve julgar quanto às Evidências de uma


Revelação

Em terceiro lugar, a razão tem que julgar a respeito da evidência


mediante a qual se sustenta uma revelação.
A respeito deste ponto deve-se fazer notar:
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 92
1. Que porquanto a fé envolve assentimento, e que o assentimento
é convicção produzida pela evidência, segue-se que a fé sem evidência é
ou irracional, ou impossível.
2. Esta evidência deve ser apropriada à natureza da verdade
recebida. A verdade histórica demanda evidência histórica; as verdades
empíricas, o testemunho da experiência; a verdade matemática,
evidência matemática; a verdade moral, evidência moral; e «as coisas do
Espírito», a demonstração do espírito. Em muitos casos, diferentes linhas
de evidência concorrem para sustentar a mesma verdade. Por exemplo,
que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, é sustentado por evidências
históricas, morais e espirituais tão abundantes que nosso Senhor diz que
a ira de Deus permanece sobre aqueles que as rejeitam.
3. A evidência não deve ser só apropriada, mas sim adequada. Isto
é, que leve a assentimento em qualquer mente bem constituída ao que lhe
é apresentado.
Como não podemos crer sem evidência, e como esta evidência deve
ser apropriada e adequada, é evidentemente uma prerrogativa da razão
julgar a respeito destes diversos pontos. Isto está claro:
1. Com base da natureza da fé, que não é um assentimento cego e
irracional, mas sim uma inteligente recepção da verdade sobre uma base
adequada.
2. As Escrituras nunca demandam fé mais que sobre a base de uma
evidência adequada. O Senhor disse: «Se eu não tivesse feito entre eles
tais obras, quais nenhum outro fez, pecado não teriam» (Jo 15:24),
reconhecendo claramente o princípio de que a fé não pode ser
demandada sem evidência. O Apóstolo Paulo demonstra que os pagãos
são justamente merecedores da condenação por sua idolatria e
imoralidade, porque tinham uma tal revelação do Deus verdadeiro e da
lei moral que os deixava sem desculpa.
3. A Bíblia considera a incredulidade como pecado, e como o
grande pecado pelo qual os homens serão condenados perante o tribunal
de Deus. Isto pressupõe que a incredulidade não pode surgir por falta de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 93
uma evidência apropriada e adequada, mas sim se atribui ao rechaço
perverso da verdade apesar da prova de que vai acompanhada. A
concepção popular errada de que os homens não são responsáveis por
sua fé surge de uma confusão de ideias. É verdade que os homens não
são censuráveis por não crer na verdades especulativas, quando a causa
de sua incredulidade é ignorância do fato ou de seu evidencia. Não é
nenhum pecado não crer que a Terra gira ao redor do sol, se se for
ignorante do fato ou da evidência de sua verdade. Mas onde quer que a
incredulidade surge de um coração mau, então ela envolve toda a
culpabilidade que pertence à causa de onde surge. Se os ímpios odiarem
aos bons e creem neles como tão ímpios como eles mesmos, isto é solo
uma prova de sua maldade. Se um homem não criar na lei moral; se ele
mantiver que poderia ser certo, que o forte pode roubar, assassinar, ou
oprimir o fraco, como alguns filósofos ensinam, ou se ele descrer da
existência de Deus, então é evidente para homens e anjos que ele desistiu
de uma mente censurável. Existe uma evidência de beleza para a qual
nada além do querer do gosto pode submeter alguém insensível; há
evidência de excelência moral para a qual nada para além de um coração
mau pode nos cegar. Por que rejeitaram os Judeus a Cristo, apesar de
toda a evidência apresentada em seu caráter, em suas palavras e em suas
obras, de que era o Filho de Deus? «Aquele que crê nele, não é
condenado; mas aquele que não crê, já foi condenado, porque não creu
no nome do unigênito Filho de Deus» (Jo 3:18). O fato, não obstante, de
que a incredulidade é um grande pecado, e a base especial da
condenação dos homens, dá por sentado necessariamente que é
indesculpável, que não surge da ignorância nem da falta de evidência. «E
como crerão», pergunta o Apóstolo, «naquele de quem não ouviram?»
(Rm 10:14). «O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os
homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram
más.» (Jo 3:19).
4. Outra evidência de que as Escrituras reconhecem a necessidade
de evidência para a fé e o direito daqueles aos quais se dirige a revelação
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 94
a julgar daquela evidência encontra-se no frequente mandato a
considerar, a examinar, a provar os espíritos, isto é, àqueles que afirmam
ser os órgãos do Espírito de Deus. Ordena-se o dever de julgar, e dá-se a
norma de juízo. E logo os homens são considerados responsáveis por
suas decisões.
Os cristãos, portanto, concedam à razão todas as prerrogativas que
podem legalmente reivindicar. Deus não exige nada irracional de Suas
criaturas racionais. Ele não exige fé sem conhecimento, ou fé no
impossível, ou fé sem evidencia. O cristianismo está igualmente oposto à
superstição e ao racionalismo. A primeira é fé sem uma evidência
adequada, e o segundo recusa crer o que não compreende, apesar de
evidências que deveriam levar a crer. O cristão, consciente de sua
estupidez como criatura, e de sua ignorância e cegueira como pecador,
apresenta-se perante Deus com a atitude de um menino, e recebe como
certo tudo o que um Deus de inteligência e bondade infinitas declara ser
digno de confiança. E ao submeter-se assim a ser ensinado age com base
dos mais elevados princípios da razão.

§ 6. Relação entre a filosofia e a Revelação

Cícero 13 define filosofia como “Rerum divinarum et humanarum,


causarumque quibus hæ res continentur, scientia.” Peemans 14 diz:
“Philosophia est scientia rerum per causas primas, recto rationis usu
comparata.” Ou, como Ferrier 15 mais concisamente o expressa, “A
filosofia é a realização de verdade a propósito da razão.” Estas e outras
definições são para ser achadas em “Vocabulary of Philosophy” de
Fleming.
Há, entretanto, uma philosophia prima, ou primeira filosofia, que
concerne tanto com o que é para ser conhecido, como com a faculdade
13
De Officiis, lib. ii. c. 2.
14
Introd. ad Philosophiam, sect. 107.
15
Inst. of Metaphys. p. 2.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 95
de conhecimento, que examina a faculdade cognitiva, determina suas leis
e seus limites. É a filosofia da filosofia.
Tanto se tomarmos o termo [filosofia] como denotando o
conhecimento de Deus e da natureza alcançados pela razão, ou como o
princípio que deveria guiar todos os esforços para alcançar o
conhecimento, este termo é empregado para significar todo o domínio da
inteligência humana. Popularmente, distinguimos entre filosofia e
ciência, sendo o âmbito da primeira o espiritual, e o da última o material.
Usualmente, a filosofia é compreendida como incluindo ambos os
departamentos, daí que falamos de filosofia natural assim como da
filosofia da mente. Sendo este o âmbito que os filósofos reclamam como
próprio, a relação apropriada entre a filosofia e a teologia sucede uma
questão de vital importância. Esta é na realidade a grande questão em
debate na controvérsia racionalista; e, por isso, ao concluir este capítulo
tudo o que fica por fazer é dar uma concisa declaração de princípios
conhecidos.

A filosofia e a teologia ocupam um terreno comum


1. A filosofia e a teologia ocupam um terreno comum. Ambas
pretendem ensinar a verdade a respeito de Deus, do homem, do mundo e
da relação que Deus tem com suas criaturas.
2. Enquanto que seus objetivos são até aí idênticos, ambas buscando
chegar ao conhecimento das mesmas verdades, seus métodos são
essencialmente diferentes. A filosofia busca alcançar o conhecimento por
especulação e indução, ou por um exercício de nossas próprias
faculdades intelectuais. A teologia se apoia na autoridade, recebendo
como certo tudo o que Deus revelou em Sua palavra.
3. Estes dois métodos são legítimos. Os cristãos não negam que
nossos sentidos e a razão são informadores confiáveis, e que nos
capacitam para chegar a uma certeza a respeito do que encontra-se em
sua esfera.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 96
4. Deus é o autor de nossa natureza e o criador dos céus e da terra, e
por isso nada do que demonstrem certo as leis de nossa natureza ou dos
atos do mundo externo pode contradizer os ensinos da Palavra de Deus.
Nem tampouco podem as Escrituras contradizer as verdades da filosofia
ou da ciência.

Os filósofos e os teólogos deveriam esforçar-se pela unidade


5. Como estas duas grandes fontes de conhecimento devem ser
congruentes em seus ensinos válidos, é o dever de ambas as partes
esforçar-se em exibir sua consistência. Os filósofos não deveriam ignorar
os ensinos da Bíblia, e os teólogos não deveriam ignorar os ensinos da
ciência. E muito menos deveriam ambas as classes entrar em
desnecessário conflito. É irrazoável e irreligioso da parte dos filósofos
adotar e promulgar teorias inconsistentes com os fatos da Bíblia, quando
tais teorias são sustentadas só por evidências plausíveis que não
impulsionam ao sentimento sequer de todo o corpo de homens de
ciência. A Bíblia, por exemplo, ensina claramente a unidade das
existentes raças humanas, tanto quanto à sua origem como em espécie.
Mas muitos naturalistas insistem em que são diversas, dizem alguns,
tanto em origem como em natureza, e outros em origem se não em
natureza. Isto se faz não só com base em uma evidência meramente
plausível, sendo uma de várias maneiras possíveis de dar conta de
diversidades reconhecidas, mas em oposição à prova mais decisiva
contrária. Esta prova, até onde é histórica e filológica, não cai dentro do
âmbito das ciências naturais, e por isso o mero naturalista a desdenha. Os
filólogos comparativos se assombram perante a credibilidade daqueles
homens de ciência que mantêm que as raças tiveram origens diversas,
sendo que suas linguagens dão uma clara prova de que se derivaram de
um tronco comum. Considerando o peso esmagador de evidência da
autoridade divina das Escrituras, e a importância imensa de que esta
autoridade seja mantida sobre as mentes e os corações dos homens, dá-se
evidência de uma terrível temeridade da parte dos que teimosamente
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 97
impugnam seus ensinos. Por outro lado, é insensatez de teólogos batalhar
eles mesmos desnecessariamente contra os ensinos de ciência. Os
romanistas e protestantes vaidosamente resistiram à adoção da teoria
copernicana de nosso sistema solar. Interpretaram a Bíblia em sentido
contraditório àquela teoria. Até onde eles se basearam, apostaram na
autoridade da Bíblia na justeza de sua interpretação. A teoria provou ser
verdade, e a interpretação recebida deve ter sido dada do alto. A Bíblia,
entretanto, não recebeu nenhum dano, embora os teólogos receberam
uma lição importante; isto é, deixar a ciência tomar seu curso, seguros
que as Escrituras acomodarão a si mesmas todos os fatos científicos bem
autenticados no futuro, como o foram no tempo passado.

A autoridade dos fatos


6. A relação entre Revelação e Filosofia (tomando a palavra em sua
sensação restringida) é diferente daquela entre Revelação e Ciência. Ou,
a mesma ideia expressa em palavras diferentes, a relação entre revelação
e fatos é uma coisa; e a relação entre revelação e teorias, outra coisa. Os
fatos não admitem negação. São determinados pela sabedoria e a vontade
de Deus. Negar fatos é negar o que Deus afirma verdadeiro. Isto a Bíblia
não pode fazer. Não pode contradizer a Deus. Por isso, o teólogo
reconhece que as Escrituras devem ser interpretadas conforme os fatos
estabelecidos. Entretanto, tem direito a demandar que tais fatos sejam
verificados para além de toda dúvida. Os cientistas de uma época ou país
afirmam a verdade de uns fatos que outros negam ou refutam. Seria um
espetáculo lamentável ver a Igreja mudar suas doutrinas ou sua
interpretação das Escrituras para acomodar-se às descrições
constantemente cambiantes de cientistas em questões factuais.
Reconhecendo sua obrigação em admitir fatos inegáveis, os
teólogos estão em liberdade de receber ou rejeitar as teorias deduzidas
destas fatos. Tais teorias são especulações humanas, e não podem ter
mais autoridade que sua própria e inerente probabilidade. Os fatos da
luz, da eletricidade, do magnetismo, são permanentes. As teorias a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 98
respeito deles estão constantemente mudando. Os fatos da geologia
devem ser admitidos; as teorias dos geólogos não têm uma autoridade
coercitiva. Os fatos da fisiologia e da anatomia comparada podem ser
recebidos; mas ninguém está obrigado a receber nenhuma das variadas
teorias de desenvolvimento. Evidente como é esta distinção entre fatos e
teorias, é entretanto descuidada com frequência. Os homens de ciência
são propensos a exigir para seus teorias a autoridade devida só a fatos
estabelecidos. E teólogos, porque têm liberdade para rejeitar teorias, são
às vezes conduzidos a afirmar sua independência dos fatos.

A autoridade da Bíblia, mais elevada que a da Filosofia


7. Sendo a filosofia, em seu sentido mais amplo, as conclusões da
inteligência humana quanto ao que é verdadeiro, e sendo a Bíblia a
declaração de Deus quanto ao que é verdadeiro, está claro que onde as
duas se contradizem a filosofia tem que ceder diante da revelação; o
homem tem que ceder ante Deus. Admitiu-se que a revelação não pode
contradizer os atos; que a Bíblia tem que ser interpretada com o que
Deus deu a conhecer claramente na constituição de nossa natureza e no
mundo externo. Mas a grande parte do que passa por filosofia ou ciência
é meramente especulação humana. O que é a filosofia dos orientais, dos
brâmanes e budistas, dos antigos gnósticos, dos platônicos, dos escotistas
na Idade Média, do Leibnitz com suas mônadas e harmonia
preestabelecida; de Descartes e seus vórtices; de Kant e suas categorias;
do Fichte, Schelling e Hegel, com suas diferentes teorias de panteísmo
idealista? A resposta a esta pergunta é que estes sistemas filosóficos são
outras tantas formas de especulação humana; e que por conseguinte
enquanto estas especulações concordarem com a Bíblia, são verdadeiras;
enquanto diferirem dela, são falsas e carentes de todo valor. Este é o
terreno que todo crente, erudito ou iletrado, está autorizado e obrigado a
tomar. Se a Bíblia ensina que Deus é uma pessoa e a filosofia ensina que
um infinito não pode ser uma pessoa, é falso. Se a Bíblia ensina que
Deus criava, controla, regenera, a filosofia que proíbe a hipótese que Ele
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 99
age no tempo, deve ser rejeitada. Se a Bíblia ensina que a alma existe
depois da dissolução do corpo e a filosofia ensina que o homem é só a
manifestação efêmera de uma vida genérica com relação a uma
organização corpórea dada, deve ser desprezada sem exame adicional.
Em resumo, a Bíblia ensina certas doutrinas a respeito da natureza
de Deus e sua relação com o mundo; a respeito da origem, natureza e
destino do homem; a respeito da natureza da virtude, da base da
obrigação moral, da liberdade e responsabilidade humanas; qual é a
norma do dever, o que é reto e o que está errado em nossas relações com
Deus e com nossos semelhantes. Estes são temas a respeito dos quais a
filosofia empreende a atividade de especular e de dogmatizar; se em
qualquer caso estas especulações entram em conflito com o que se ensina
ou implica na Bíblia de maneira necessária, ficam por isso refutadas,
como por reductio ad absurdum. E a atitude que recusa abandonar estas
especulações em obediência ao ensino da Bíblia é inconsequente com o
cristianismo. É a condição indispensável para a salvação por meio do
Evangelho que recebamos como verdadeiro tudo o que Deus revelou em
Sua palavra. Temos que fazer nossa escolha entre a sabedoria dos
homens e a sabedoria de Deus. A sabedoria dos homens é estultícia para
com Deus; e a sabedoria de Deus é estultícia para os sábios deste mundo.
A relação, portanto, entre filosofia e revelação, como determinadas
pelas próprias Escrituras, é o que todo homem que pensa corretamente
deve aprovar. Tudo é concedido à filosofia e à ciência, que eles
legalmente podem exigir. Admite-se que eles têm uma grande e
importante esfera da investigação. Admite-se que dentro daquela esfera
que eles são intitulados a mais grande deferência. Concede-se
alegremente que eles realizaram muito, não apenas como meio de
disciplina mental, mas na amplificação da esfera de conhecimento
humano, e em promover o refinamento e bem-estar dos homens. Admite-
se que os teólogos não são infalíveis na interpretação da Escritura. Pode,
portanto, suceder no futuro, como no passado, que as interpretações da
Bíblia, muito confiantemente recebidas, devam ser modificadas ou
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 100
abandonadas, para trazer revelação em harmonia com o que Deus ensina
em suas obras. Esta mudança de postura sobre o significado verdadeiro
da Bíblia pode ser uma prova dolorosa para a Igreja, mas isso não
prejudica no mínimo a autoridade das Escrituras. Permanecem infalíveis;
estamos meramente condenados a ter errado seu significado.

§ 7. O papel dos sentidos nos assuntos da fé

A pergunta, Que autoridade deve-se aos sentidos em assuntos de


fé?, surgiu fora da controvérsia entre romanistas e protestantes. A
doutrina da transubstanciação, como ensinada pela Igreja Romana,
contradiz o testemunho de nossos sentidos de visão, paladar, e tato. Era
natural para os protestantes apelar a esta contradição como evidência
decisiva contra a doutrina. Os romanistas replicam em negar a habilidade
dos sentidos para suportar o testemunho em tais casos.
Os protestantes mantêm a validez daquele testemunho com base no
seguinte: (1.) Confiança no testemunho bem autenticado de nossos
sentidos, é uma daquelas leis de convicção que Deus imprimiu em nossa
natureza; a respeito da autoridade daquelas leis é impossível que nós
devíamos emancipar a nós mesmos. (2.) A confiança em nossos sentidos
é, portanto, uma forma de confiança em Deus. Supõe ele nos haver
colocado debaixo da necessidade de erro, assumir que certamente não
podemos confiar nos guias que, por uma lei de nossa natureza,
constrange-nos a confiar. (3.) Toda base de segurança em assuntos ou de
fé ou conhecimento, é destruído, se a confiança nas leis de nossa
natureza é abandonada. Nada é então possível senão cepticismo absoluto.
Nós, nesse caso, não podemos saber que nós mesmos existimos, ou que o
mundo existe, ou que existe um Deus, ou uma lei moral, ou qualquer
responsabilidade para caráter ou conduta. (4.) Toda revelação
sobrenatural exterior é dirigida aos sentidos. Aqueles que ouviram Cristo
tiveram que confiar para seu sentido de audição; aqueles que leem a
Bíblia devem confiar em seu sentido de visão; aqueles que recebem o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 101
testemunho da Igreja, recebe isto por seus sentidos. É, portanto, suicida
nos romanistas dizer que os sentidos não são confiáveis em assuntos de
fé.
Todos os argumentos derivados dos juízos falsos de homens quando
enganados pelos sentidos, são respondidos pela declaração simples da
proposição, que se devem confiar nos sentidos apenas dentro de sua
esfera legítima. O olho realmente pode nos enganar quando as condições
de vista correta não estão presentes; mas isto não prova que não se deve
nele confiar dentro de seus limites apropriados.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 102
CAPÍTULO IV
MISTICISMO

§ 1. Significado das palavras entusiasmo e misticismo

No sentido popular da palavra, entusiasmo significa um estado


elevado de incitação mental. Neste estado todos os poderes estão
exaltados, os pensamentos se tornam mais inclusivos e vívidos, os
sentimentos mais fervorosos, e a vontade mais decidida. É nestes
períodos de estímulo que se levaram a cabo as maiores obras dos gênios,
seja que se trate de poetas, de pintores, ou de guerreiros. Os antigos
atribuíam esta exaltação do homem interior a uma influência divina.
Consideravam as pessoas assim estimuladas como possessas, ou tendo a
um deus dentro deles. Por isso eram chamados entusiastas (ἔνθεος,
entheos). Em teologia, portanto, os que ignoram ou rejeitam a guia das
Escrituras e presumem ser guiados por uma influência divina interior ao
conhecimento e obediência da verdade são chamados Entusiastas em
sentido próprio. Este termo entretanto, foi suplantado em grande medida
pela palavra Místicos.
Poucos termos tiveram, certamente, um sentido tão vago e
indefinido como Misticismo. Sua etimologia não decide seu significado.
Um μύστης [mustës] era alguém iniciado no conhecimento dos mistérios
gregos, um a quem lhe tinham sido reveladas coisas secretas. Daí que no
amplo sentido da palavra um místico é alguém que afirma ver ou
conhecer o que está oculto a outros homens, quer este conhecimento seja
alcançado por intuição direta ou por revelação interior. Na maioria dos
casos se supôs que estes métodos eram idênticos, porquanto se
considerava a intuição como a visão imediata de Deus e das coisas
divinas. Por isso, no sentido mais amplo da palavra, os místicos são
aqueles que afirmam estar sob a guia imediata de Deus ou de Seu
Espírito.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 103
A. Uso filosófico do termo

Daí que o misticismo, neste sentido, inclui todos aqueles sistemas


de filosofia que ensinam ou a identidade de Deus e da alma, ou a
intuição imediata do infinito. O panteísmo dos brâmanes e dos budistas,
a teosofia dos sofistas, o egípcio, e as muitas formas da filosofia grega,
são místicos nesta acepção do termo. Tal como o mesmo tema foi
reproduzido em tempos modernos, atribui-se a mesma designação à
filosofia de Espinoza e a seus várias modificações. Segundo Cousin, «o
misticismo em filosofia é a crença de que Deus pode ser conhecido face
a face sem nada que se interponha. É uma cessão ao sentimento
despertado pela ideia do infinito, e um deslocamento de todo
conhecimento e dever à contemplação e amor dele». 16
Por la misma razón toda la escuela de teología de Alejandría de la
Iglesia primitiva ha sido llamada mística. Una característica era su
depreciación de la autoridad externa de las Escrituras y la exaltación que
hacían de la luz interior. Es cierto que ellos llamaron aquella razón de
luz, pero ellos consideraron esto tan divino. de acuerdo a la nueva
doctrina platónica, el Λóγος [Logos], ou razão impessoal de Deus, é
Razão no homem; ou como Clemente de Alexandria disse, O Logos era
uma luz comum a todos os homens. Isto, portanto, para que a autoridade
suprema fora atribuída na perseguição da verdade, era “Deus em nós.”
Esta é a doutrina do Ecletismo moderno como apresentado por Cousin.
Aquele filósofo diz, “A Razão é impessoal em sua natureza. Não somos
nós que fazemos isto. Até onde o ser individual, cujas características
peculiares são o oposto da individualidade, isto é, universalidade e
necessidade, visto que é à Razão que devemos o conhecimento de
verdades universais e necessárias, de princípios que todos nós
obedecemos, e não podemos senão obedecer. . . . . Desce de Deus, e
aproxima-se ao homem. Faz sua aparição na consciência como um

16
Cours de l' llist. de ia Phil. Mod. Prem. Sér. París, 1846, vol. ii leç. 9, 10, págs. 95, 120.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 104
convidado, que traz inteligência de um mundo desconhecido, de que ele
ao mesmo tempo apresenta a ideia e desperta o querer. Se a razão fosse
pessoal, não teria nenhum valor, nenhuma autoridade além dos limites
do assunto individual. . . . . A razão é uma revelação, uma revelação
necessária e universal que não se origina em nenhum homem, e que
ilumina a todo homem em sua entrada no mundo. A razão é o mediador
necessário entre Deus e homem, o Λόγος de Pitágoras e Platão, a Palavra
Fez-se Carne, que serve como o intérprete de Deus, e mestre do homem,
divino e humano ao mesmo tempo. Não é realmente o Deus absoluto em
Sua individualidade majestosa, mas sim Sua manifestação em espírito e
em verdade. Não é o ser de seres, mas sim Ele é o Deus revelado da raça
humana.” 17
Embora os teólogos alexandrinos tivessem estes pontos de
concordância com os místicos, como eram entretanto especulativos em
toda sua tendência e trataram de transmutar o cristianismo numa
filosofia, não devem ser considerados como místicos no sentido
teológico do termo geralmente aceito.

B. O sentido em que os cristãos evangélicos são chamados


místicos

Como todos os cristãos evangélicos admitem uma influência


sobrenatural do Espírito de Deus sobre a alma, e reconhecem uma forma
mais elevada de conhecimento, santidade e comunhão com Deus como
efeitos desta influência, são estigmatizados como místicos da parte dos
que descartam todo elemento sobrenatural no cristianismo. As definições
do misticismo dadas pelos racionalistas são enunciadas de maneira que
incluam tudo o que os cristãos evangélicos mantêm como verdadeiro a
respeito da iluminação, ensino e guia do Espírito Santo. Do mesmo

17
Specimens of Foreign Standard Literature, edited by George Ripley, vol. i.; Philosophical
Miscellanies from Cousin, et al., pp. 125, 149.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 105
18
modo Wegscheider dice, “Mysticismus est persuasio de singulari
animæ facultate ad immediatum ipsoque sensu percipiendum cum
numine aut naturis coelestibus commercium jam in hac vita perveniendi,
quo mens immediate cognitione rerum divinarum ac beatitate
perfruatur.” Y Bretschneider 19 define Misticismo como uma “Convicção
em uma operação contínua de Deus na alma, assegurado por exercício
religioso especial, produzindo iluminação, santidade, e beatitude.” Os
teólogos evangélicos até agora consentem nesta postura, que eles dizem,
como Lange, 20 e Nitsch, 21 “que todo crente verdadeiro é um místico.” O
escritor posterior acrescenta, “Que as ideias cristãs de iluminação,
revelação, encarnação, regeneração, os sacramentos e a ressurreição, são
elementos essencialmente místicos. Tão frequentemente como a vida
religiosa e eclesiástica se recupera propriamente do formalismo e
esterilidade escolástica, e está verdadeiramente reavivada, sempre
aparece como mística, e causa o clamor que o misticismo está ganhando
a ascendência.” Alguns escritores, realmente, fazem uma distinção entre
místico e misticismo. “ “Die innerliche Lebendigkeit dé Religión ist
allezeit místico” (A vitalidade dentro da religião é sempre mística), diz
Nitsch, mas “Misticismus ist eine einseitige Herrschaft und eine
Ausartung der mystischen Richtung.” Isto é, o misticismo é um
desenvolvimento impróprio e pervertido do elemento místico que
pertence à religião verdadeira. Esta distinção, entre místico e misticismo,
não é em geral reconhecido, e não pode ser bem expressado em inglês.
Lange, em vez de usar palavras diferentes, fala de um misticismo
verdadeiro e falso. Mas as coisas distintas deveriam ser designadas por
palavras distintas. Deu-se uma teoria religiosa, que prevaleceu com
maior ou menor extensão na Igreja, que se distingue da doutrina
escriturística por umas características inequívocas, e que se conhece na

18
Inst. § 5.
19
Systematische Entwickelung, fourth edit. p. 19.
20
In Herzog’s Encyklopädie, art. “Mystik.”
21
System der Christlichen Lehre, fifth edit. p. 35.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 106
história da igreja como misticismo, e esta palavra deveria limitar-se a
esta teoria. É a teoria, diversamente modificada, de que o conhecimento,
a pureza e a bem-aventurança que se derivam da comunhão com Deus
não se derivam das Escrituras nem do uso dos meios ordinários da graça,
mas sim mediante uma influência divina sobrenatural e imediata, cuja
influência (ou comunicação de Deus na alma) deve ser conseguida
mediante a passividade, um simples ceder da alma sem pensamento nem
esforço ao influxo divino.

C. O sistema que faz dos sentimentos a fonte do


conhecimento

Um uso ainda mais amplo da palavra misticismo foi adotado até


certo ponto. Qualquer sistema, seja em filosofia ou religião, que atribui
mais importância aos sentimentos que ao intelecto, é chamado místico.
Cousin, e depois dele, Morell, organizou os sistemas de filosofia sob as
cabeceiras de Sensacionalismo, Idealismo, Cepticismo, e Misticismo. O
primeiro faz dos sentidos a origem exclusiva ou predominante de nosso
conhecimento; o segundo, o eu próprio, em sua constituição e leis, como
entendido e apreendido pelo intelecto; e misticismo, os sentimentos. O
místico dá por sentado que os sentidos e a razão são ao mesmo tempo
indignos de confiança e inadequados, como fontes de conhecimento; que
nada pode ser recebido com confiança como verdade, ao menos nos mais
altos departamentos do conhecimento, em tudo o que tenha, que ver com
nossa própria natureza, com Deus e com nossa relação com Ele, exceto o
que é revelado seja natural seja sobrenaturalmente nos sentimentos.
Assim, há duas formas de misticismo: aquele que supõe que os próprios
sentimentos são a fonte deste conhecimento; o outro que diz que é por
meio dos sentimentos que Deus dá a conhecer a verdade à alma. 22 «A

22
Ver Cousin, Cours de l'Hlistoire de la Philosophie. y Morell, History of Modern Philosophy. págs.
556 ss.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 107
razão já não é considerada mais como o grande órgão da verdade; suas
decisões ficam apontadas como incertas, faltas e praticamente carentes
de valor, enquanto que os impulsos interiores de nossa sensibilidade, que
se desenvolvem em forma de fé ou de inspiração, são apresentadas como
a verdadeira e infalível fonte do conhecimento humano. Por isso, o
processo fundamental de todo misticismo é inverter a verdadeira ordem
da natureza, e dar a precedência às emoções em lugar do elemento
intelectual da mente humana». 23 Esta, declara-se, é «a base comum de
todo misticismo».

A teoria de Schleiermacher
Se esta for uma postura correta da natureza do misticismo; se ele
consistir em dar autoridade predominante aos sentimentos em assuntos
da religião; e se seus impulsos, desenvolvendo-se a si mesmos na forma
de fé, são a origem verdadeira e infalível de conhecimento, então o
sistema de Schleiermacher, adotado e exposto por Morell mesmo em sua
“Philosophy of Religion,” é o mais elaborado sistema de teologia sempre
apresentado para a Igreja. É o princípio fundamental da teoria de
Schleiermacher, que a religião não reside na inteligência, ou na vontade
ou poderes ativos, mas na sensibilidade. É uma forma de sentimento,
uma sensação de dependência absoluta. Em vez de ser, como nos parece,
agentes livres individuais e separados, originando nossos próprios atos,
reconhecemos a nós mesmos como uma parte de um grande todo,
determinados em todas as coisas corto grande todo, dos quais nós somos
uma parte. Achamo-nos a nós mesmos como criaturas finitas de um Ser
infinito, com relação a quem nós somos como nada. O Infinito é tudo; e
tudo é apenas uma manifestação do Infinito. “Embora homem,” diz até
Morell, “enquanto no meio de objetos finitos, sempre ele sente mesmo
até certo ponto livre e independente; ainda na presença de que é existente
próprio, infinito, e eterno, pode sentir a sensação da liberdade falece

23
Morell, op. cit., pág. 560.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 108
24
totalmente, e fica absorvido no sentido de dependência absoluta.” Isto
parece ser o princípio essencial da religião em todas suas formas do
fetichismo até o cristianismo. Depende principalmente do grau de cultura
do indivíduo ou da comunidade, de que maneira esta sensação de
dependência deve revelar-se: porque quanto mais iluminado e puro é o
indivíduo, tanto mais ele poderá apreender corretamente o que está
envolto nesta sensação de dependência de Deus. A revelação não é a
comunicação de nova verdade para a compreensão, mas sim as
influências providenciais pela qual a vida religiosa é despertada na alma.
A inspiração não é a influência divina que controla as operações mentais
e elocuções de seu tema, quanto a lhe retribuir a influência infalível na
comunicação da verdade revelada, mas sim simplesmente a intuição de
verdades eternas devido ao estado excitado dos sentimentos religiosos. O
cristianismo, subjetivamente considerado, são as intuições de homens
bons, como ocasionados e determinados pela aparição de Cristo.
Objetivamente considerado, ou, em outras palavras, a teologia cristã, é a
análise lógica, e acertos científicos e elucidação das verdades envoltas
naquelas intuições. As Escrituras, como uma regra de fé, não tem
nenhuma autoridade. São de valor só como meio de despertar em nós a
vida religiosa experimentada pelos apóstolos, e deste modo nos
capacitando a alcançar o gosto pelas intuições das coisas divinas. A
origem de nossa vida religiosa, de acordo com este sistema, são os
sentimentos, e se isto é a facção característica do misticismo, a doutrina
da Schleiermacher é puramente mística.

D. O misticismo conhecido na História da Igreja

Os místicos, como já se afirmou, são os que afirmam uma


comunicação imediata de conhecimento divino e de vida divina de Deus
à alma, com independência das Escrituras e do uso dos meios ordinários

24
Philosophy of Religion, p. 75.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 109
da graça. «Desespera-se», diz Fleming, «do processo regular da Ciência;
crê que podemos alcançar diretamente, sem a ajuda dos sentidos ou da
razão, e por meio de uma intuição imediata, o princípio real e absoluto
de toda verdade: Deus». 25
Os místicos são de duas classes; os teósofos, cujo objeto é
conhecimento, e com quem o órgão de comunicação com Deus, é a
razão; e os místicos adaptados, cujo objeto é, vida, pureza, e beatitude; e
com quem o órgão de comunicação, ou receptividade, são os
sentimentos. Eles concordam, primeiro, em que contam com a revelação
ou comunicação imediata de Deus à alma; e secundariamente, que estas
comunicações devem ser alcançadas, no descuidar o exterior, quer dizer,
pela contemplação quieta ou passiva. “O Teósofo é alguém que dá uma
teoria de Deus, ou das obras de Deus, que não tem razão, mas sim uma
inspiração de si mesmo como sua base.” 26 “Os Teósofos, não satisfeitos
com a luz natural da razão, nem com as doutrinas singelas da Escritura
entendida em seu sentido literal, têm recurso para uma luz sobrenatural
interna para todas as outras iluminações, de que eles professam para
derivar uma filosofia misteriosa e divina manifestada somente para os
favoritos escolhidos do céu.” 27

O misticismo não é idêntico à doutrina da “iluminação do


Espírito”.
Assim o misticismo não deve ser confundido com a doutrina da
iluminação espiritual mantida pelos cristãos evangélicos. As Escrituras
ensinam claramente que a mera apresentação externa da verdade na
Palavra não é suficiente para a conversão ou santificação dos homens;
que o homem natural, irregenerado, não recebe as coisas do Espírito de
Deus, porque lhe são insensatez; nem pode conhecê-las; porque a fim de
ter um conhecimento salvador da verdade, isto é, aquele conhecimento
25
Artigo «Misticismo».
26
Word “Mysticism.”
27
Taylor, Elements of Thought. See Fleming, word “Theosophism.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 110
que produz santos afeiçoados e que conduz a uma vida santa, há
necessidade de um ensino interior sobrenatural do Espírito, produzindo o
que as Escrituras chamam «discernimento espiritual». Este ensino
sobrenatural nosso Senhor prometeu a Seus discípulos quando lhes disse
que lhes enviaria o Espírito da verdade para que habitasse neles, e para
guiá-los ao conhecimento da verdade. Porque os escritores sagrados
oram por que este ensino lhes seja dado, não apenas a eles, mas também
a todos os que ouvissem suas palavras ou lessem seus escritos. Só nisto
dependiam eles para seu êxito na pregação ou no ensino. Por isso, os
crentes eram designados como pneumatikoi, a Spiritu Dei illuminati, qui
reguntur a Spiritu. E os homens deste mundo, os irregenerados, são
descritos como os que não têm o Espírito. Deus, por isso, tem uma
relação imediata com as almas dos homens. Ele Se revela a si mesmo a
seu povo, como não o faz ao mundo. Ele é dá o Espírito de revelação no
conhecimento dEle (cf. Ef 1:17). Dá-lhes a conhecer Sua glória, e os
enche de uma alegria que ultrapassa todo entendimento. Tudo isto se
admite, mas é muito diferente do misticismo. As duas coisas, isto é, a
iluminação espiritual e o misticismo, diferem, primeiro quanto a seu
objeto. O objeto do ensino interior do Espírito é nos capacitar para
discernir a verdade e a excelência do que já está objetivamente revelado
na Bíblia. A iluminação pretendida pelo místico comunica verdade
independentemente da revelação objetiva. Não é planejado nos capacitar
a apreciar o que já conhecemos, mas sim comunicar novo conhecimento.
Seria uma coisa habilitar o homem a discernir e apreciar a beleza de uma
obra de arte colocada à sua vista, e totalmente outra coisa dar a ele a
intuição de todas as formas possíveis da verdade e beleza, independente
de tudo externo. Assim que há uma grande diferença entre aquela
influência que capacita a alma a discernir as coisas «para que saibam o
que Deus nos outorgou gratuitamente» (1Co 2:12) em Sua palavra, e a
revelação imediata à mente de todo o conteúdo daquela palavra, ou de
seus equivalentes.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 111
Não é só em seu objeto que diferem as doutrinas da iluminação
espiritual e do misticismo, mas também na maneira de alcançar este
objeto. O ensino interior do Espírito tem que ser buscada pela oração, e
pelo uso diligente dos meios assinalados; as intuições do místico se
buscam mediante o descuido de todos os meios, na supressão de toda
atividade interior e exterior, e numa espera passiva do influxo de Deus
na alma. Diferem, em terceiro lugar, em seus efeitos. O efeito da
iluminação espiritual é que a Palavra habita em nós «em toda sabedoria e
entendimento espiritual» (Col 1:9). O que habita na mente do místico são
suas próprias imaginações, cujo caráter depende de seu próprio estado
subjetivo; e sejam o que forem, são do homem e não de Deus.

Difere da doutrina da “guia do Espírito”


Tampouco se deve confundir o misticismo com a doutrina da
condução espiritual. Os cristãos evangélicos admitem que os filhos de
Deus são guiados pelo Espírito de Deus; que suas convicções quanto à
verdade e o dever, seu caráter interior e conduta exterior, ficam
moldados por sua influência. São meninos incapazes de guiar-se a si
mesmos, conduzidos por um Pai sempre presente de sabedoria e amor
infinitos. Esta guia é em parte providencial, ordenando suas
circunstâncias externas; em parte por meio da Palavra, que é uma
lâmpada para seus pés; e em parte pela influência interior do Espírito na
mente. Este último, entretanto, é também por meio da Palavra, fazendo-a
inteligível e efetiva, trazendo-a de maneira adequada à lembrança. Deus
conduz a Seu povo com cordas de homem, isto é, conforme às leis de sua
natureza. Isto é muito diferente da doutrina de que a alma, ao dar-se
passivamente a Deus, fica cheia de toda verdade e bondade; ou de que
em emergências especiais fica controlada por impulsos cegos,
irracionais.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 112
Difere da doutrina da “graça comum”
Finalmente, o misticismo difere da doutrina da graça comum
mantida por todos os agostinianos, e da graça suficiente mantida pelos
arminianos. Todos os cristãos creem que assim como Deus está presente
em todas as partes no mundo material, guiando a operação das segundas
causas de maneira que asseguram os resultados que Ele se propõe, assim
Seu Espírito está em todas as partes presente com as mentes dos homens,
estimulando ao bem e reprimindo o mal, e controlando de uma maneira
eficaz o caráter e a conduta dos homens, de uma maneira consequente
com as leis dos seres racionais. De acordo com a teoria Arminiana esta
“graça comum” é suficiente, se corretamente propagados artificialmente
e obedecidos, homens principais para salvação, se pagãos, maometanos,
ou cristãos. Há pouca analogia, entretanto, entre esta doutrina de graça
comum ou suficiente e o misticismo tal como manifestou-se na história
da Igreja. O primeiro supõe uma influência do Espírito em todos os
homens de uma maneira análoga à eficiência providencial de Deus na
natureza; o segundo, uma influência análoga à concedida aos profetas e
apóstolos, envolvendo ao mesmo tempo a revelação e a inspiração.

§ 2. O misticismo na Igreja Primitiva

A. Montanismo

Os montanistas que surgiram para o término do segundo século


tiveram, num aspecto, alguma afinidade com o misticismo. Montano
ensinou que como os profetas antigos predisseram a vinda do Messias
por quem novas revelações deviam ser feitas; então Cristo predisse a
vinda do Paracleto por quem as comunicações adicionais da mente de
Deus deviam ser feitas para Seu povo. Tertuliano, por quem este sistema
foi reduzido para ordenar e recomendar à classe mais alta de mentes,
realmente manteve que a regra de fé era fixa e imutável; mas não
obstante que existia necessidade de uma revelação sobrenatural
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 113
continuada de verdade, pelo menos sobre assuntos de dever e disciplina.
Esta revelação sobrenatural era feita pelo Paracleto; se, como era
possivelmente a ideia geral entre os montanistas, por comunicações
concedidas, de vez em quando, para indivíduos especiais, que assim se
tornaram profetas cristãos; ou por uma influência comum a todos os
crentes, que entretanto experimentaram e melhoraram um pouco mais
que outros. A passagem seguinte de Tertuliano 28 dá claramente o
princípio fundamental do sistema, até onde este ponto se relaciona:
“Regula quidem fidei una omnino est, sola immobilis et irreformabilis. . .
. . Hac lege fidei manente, cetera jam disciplinæ et conversationis
admittunt novitatem correctionis; operante scilicet et proficiente usque in
finem gratia Dei. . . . . Propterea Paracletum misit Dominus, ut, quoniam
humana mediocritas omnia semel capere non poterat, paulatim
dirigeretur et ordinaretur et ad perfectum perduceretur disciplina ab illo
vicario Domini Spiritu Sancto. Quæ est ergo Paracleti administratio nisi
hæc, quod disciplina dirigitur, quod Scripturæ revelantur, quod
intellectus reformatur, quod ad meliora proficitur? . . . . Justitia primo
fuit in rudimentis, natura Deum metuens; dehinc per legem et prophetas
promovit in infantiam; dehinc per evangelium efferbuit in juventutem;
nunc per Paracletum componitur in maturitatem.”
Os pontos de analogia entre o montanismo e o misticismo são que
ambos assumem a insuficiência das Escrituras e as ordenanças da Igreja
para o desenvolvimento completo da vida cristã; e ambos afirmam a
necessidade de uma revelação continuada e sobrenatural do Espírito de
Deus. Em outro respeito as duas propensões eram divergentes. O
misticismo era dirigido para a vida interior; o montanismo para a
exterior. Isto tem relação propriamente com a reforma de modos e
exatidão de disciplina. Ordenou jejuns, e outras práticas ascéticas. Como
ele dependeu da direção sobrenatural e continuada do Espírito, era por
um lado oposto à especulação, ou à tentativa para desenvolver o

28
De Virgg. Veland c. 1 — Edit. Basle, 1562, p. 490.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 114
cristianismo pela filosofia; e na outra para a autoridade dominante dos
bispos. Seu espírito denunciatório e exclusivo levou a sua condenação
como herético. Como os montanistas excomungaram a Igreja, a Igreja os
excomungou. 29

B. O assim chamado Dionísio, o areopagita

Misticismo, na acepção comum do termo, é antagônico à


especulação. E ainda eles são frequentemente unidos. Existem místicos
especulativos ou filosóficos. O pai realmente do misticismo na Igreja
cristã, era um filósofo. Em torno de 523 d.C., durante a controvérsia
monotelita certos escritos eram citados da autoridade como sendo as
produções de Dionísio, o areopagita. O silêncio total com respeito a eles
durante os séculos precedentes; as posturas filosóficas que eles
expressam; as insinuações para o estado da Igreja com que eles
abundam, produziu a condenação, universalmente correspondente, que
eles eram a obra de um autor que viveu na parte posterior do quinto
século. Os investigadores mais cultos, entretanto, confessem sua
inabilidade para fixar com segurança ou até com probabilidade sobre
qualquer escritor a quem eles podem referir-se. Entretanto, sua autoria é
desconhecida, sua influência foi evidentemente grande. As obras que
suportam o pseudônimo de Dionísio são, “The Celestial Hierarchy,”
“The Terrestrial Hierarchy,” “Mystical Theology,” e “Twelve Epistles.”
Seu conteúdo mostra que seu autor pertenceu à escola dos Novos
Platonistas, e que seu objeto era propagar as posturas peculiares daquela
escola na Igreja cristã. O escritor tenta mostrar que as doutrinas reais,
esotéricas do cristianismo são idênticas àquela de sua própria escola de
filosofia. Em outras palavras, ensinou o Novo Platonismo, na

29
See Neander’s Dogmengeschichte, vol. i. Schwegler, F. C. (disciple of Baur) Der Montanismus und
die Christliche Kirche des Zweiten Jahrhunderts, Tub. 1841-1848. A concise and clear account of
Montanism is given in Mosheim’s Commentary on the Affairs of Christians before the Time of
Constantine. vol. i. § 66, pp. 497 ff. of Murdock’s edition.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 115
terminologia da Igreja. As ideias cristãs estavam completamente
excluídas, enquanto a língua da Bíblia era mantida. Deste modo em
nosso tempo nós tivemos a filosofia da Schelling e Hegel a partir das
fórmulas de teologia cristã.

C. O Neoplatonismo

Os Novos Platonistas ensinaram que a base e fonte originais de


todas as coisas era ser simples, sem vida ou consciência; do que
absolutamente nada podia ser conhecido, além do que é. Assumiram uma
quantidade desconhecida, da qual nada pode ser predito. O Pseudo-
Dionísio chamou esta base original de Deus de todas as coisas, e ensinou
que Deus era mero ser estando sem atributos de qualquer tipo, não
apenas incompreensível ao homem, mas sim de quem não existia nada
para ser conhecido, como absoluto ser estar na língua da filosofia
moderna, — Nada; nada em si mesmo, ainda não obstante o δύναμις τῶν
πύντων.
O universo procede de um ser primitivo, não por qualquer exercício
de poder ou vontade conscientes, mas por um processo ou emanação. A
ilustração familiar é derivada do fluxo de luz do sol. Com esta diferença,
entretanto. Que o sol emita luz, é uma prova que é propriamente
luminoso, mas o fato que seres inteligentes emanam do “ser
fundamental,” não é admitido como prova que é inteligente. O fato de o
ar produzir alegria, dizem estes filósofos, não prova que a atmosfera
experimenta alegria. Podemos não deduzir nada sobre a natureza da
causa pela natureza dos efeitos.
Estas emanações são de ordens diferentes; decrescente em
dignidade e excelência porque eles estão distantes da origem primitiva.
As primeiras destas emanações é a mente, νοῦς [nous], inteligência
individualizada em graus diferentes de seres espirituais. Os seguintes,
procedendo do primeiro, é a alma, que fica individualizada por conexão
orgânica ou vital com a matéria. Há, portanto, uma inteligência de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 116
inteligências, e também uma alma de almas; consequentemente, sua
unidade genérica. O mal surge da conexão do espiritual com o corpóreo,
e ainda esta conexão até onde como as almas dizem respeito, é
necessária para sua individualidade. Toda alma, portanto, é uma
emanação da alma do mundo, como esta é de Deus, pela Inteligência.
Como não existe nenhuma alma individual sem um corpo, e como o
mal é a consequência necessária da união com um corpo, o mal não é
apenas necessário ou inevitável, é um bem.
O fim da filosofia é a visão imediata de Deus, que dá à alma a bem-
aventurança e descanso supremo. Esta união com Deus é alcançada pelo
aprofundamento em nós mesmos; por passividade. Como nós somos uma
forma, ou modo de existência de Deus, achamos Deus em nós mesmos, e
somos conscientemente um com Ele, quando apreendemos isto
realmente; ou, quando nós sofremos, Deus, por assim dizer, absorve
nossa individualidade.
As emanações primárias da base de todos os seres, que o pagão
chamou deuses (como eles tiveram muitos deuses e muitos senhores) os
Novos Platonistas, espíritos ou inteligências; e os gnósticos, æons; o
pseudo-Dionísio chamou anjos. Estes ele dividiu em três tríades: (1.)
tronos, querubins, e serafins; (2.) poderes, senhorios, autoridades; (3.)
anjos, arcanjos, principados. Classificou as ordenanças e oficiais e
membros da Igreja em tríades correspondentes: (1.) Os sacramentos, —
batismo, comunhão, unção, — estes eram os meios de iniciação ou
consagração; (2.) Os iniciadores, — bispos, sacerdotes, diáconos; (3.) Os
iniciados, — monges, os batizado, catecúmenos.
Os termos Deus, pecado, redenção, são retidos neste sistema, mas o
significado preso a eles eram completamente incompatíveis com o
sentido sensação que eles suportam na Bíblia e na Igreja cristã. O
Pseudo-Dionísio era um filósofo pagão nas vestes de um ministro
cristão. A filosofia que ele ensinou, que ele reivindicou ser o sentido
verdadeiro das doutrinas da Igreja, como aquele sentido tinha sido
declarado por uma tradição secreta. Apesar de sua origem e caráter
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 117
pagãos, sua influência na Igreja era grande e longamente continuada. A
escrita de seu autor era traduzida, anotados e parafraseados, séculos
depois de sua morte. Como não existe nenhum efeito sem uma causa
adequada, deve ter havido poder neste sistema e uma adaptação para os
desejos ardentes de um grande classe de mentes.

Causas da influência dos escritos do pseudo-Dionísio


Para calcular sua influência extensa pode ser observado: (1.) Que
ele não chocou abertamente a fé ou preconceitos da Igreja. Não
denunciou qualquer doutrina recebida nem repudiou qualquer instituição
ou ordenança estabelecida. Fingiu ser cristão. Empreendeu dar uma
perspicácia mais profunda e mais correta nos mistérios da religião. (2.)
Subordinou o exterior ao interior.
Alguns homens se satisfazem com ritos, formalidades, símbolos,
que podem significar qualquer coisa ou nada; outros, com conhecimento
ou posturas claras de fato. Para outros, a vida interna da alma, a
comunicação com Deus, é a grande coisa. Este sistema dirigiu-se a estes
propriamente. Propôs-se satisfazer este desejo por Deus, não realmente
num modo legítimo, ou por meio de encontro de Deus. Não obstante, ele
era o fim elevado de união com aquele que propôs, e que professou
assegurar. (3.) Este sistema era apenas uma forma da doutrina que tem
tal fascinação para a mente humana, e que está por debaixo de tantas
formas da religião em todas idades do mundo; a doutrina, isto é, que o
universo é um eflúvio da vida de Deus, — todas as coisas que fluem
dEle, e voltam novamente para Ele de eternidade a eternidade. Esta
doutrina acalma a consciência, como impede a ideia de pecado; dá a paz
que flui do fatalismo; e ele promete o mais absoluto de inconsciência
quando o indivíduo está absorvido no seio do Infinito. 30

30
See Rixner’s Geschichte der Philosophie, vol. i. §§ 168-172. Ritter’s Geschichte der Christlichen
Philosophie, vol. ii. pp. 115-135. Herzog’s Encyklopädie.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 118
§ 3. O misticismo durante a Idade Média

A. Características gerais daquele período.

A Idade Média abrange o período do fechar do sexto século para a


Reforma. Este período é distinto por três características marcantes.
Primeira, a grande revelação da Igreja latina em sua hierarquia, sua
adoração, e suas doutrinas formuladas, como também em seus
superstições, danos, e energia. Em segundo lugar, a atividade intelectual
extraordinária despertada na região da especulação, como manifestada na
multiplicação de cadeiras de saber, no número e celebridade de seus
mestres, e na grande multidão de alunos pelos quais eles eram
acompanhados, e no interesse tomado por todos as classes nos assuntos
de discussão aprendida. Em terceiro lugar, por um difundido e variável
movimento manifesto, por dizer assim, a vida interna da Igreja,
protestando contra o formalismo, a corrupção, e a tirania da Igreja
exterior. Este protesto era feito, em parte, abertamente por aqueles a
quem os protestantes deviam chamar “Witnesses for the Truth;” e, em
parte, dentro da Igreja propriamente. A oposição dentro da Igreja
manifestou-se propriamente em parte entre as pessoas, na formação de
companheirismos ou sociedades para esforço benevolente e cultura
espiritual, como os Beguines, os Beghards, os Lolardos, e depois, “The
Brethren of the Common Lot;” e em parte nas escolas, ou pelos ensinos
dos teólogos.
Tem sido o alvo confesso dos teólogos deste período justificar as
doutrinas da Igreja no tribunal da razão; provar que o que era recebido
em autoridade como um assunto de fé, era verdade como um assunto de
filosofia. Era mantido ser a obrigação do teólogo exaltar a fé sobre o
conhecimento. Ou, como Anselmo 31 o expressa: “rationabili necessitate
intelligere, esse oportere omnia illa, quæ nobis fides catholica de Christo

31
Cur Deus Homo, lib. i. cap. 25.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 119
credere præcipit.” Richard à St. Victore ainda mais fortemente afirma
que nós somos destinados, “quod tenemus ex fide, ratione apprehendere
et demonstrativæ certitudinis attestatione firmare.”
A primeira classe de teólogos medievais
Destes teólogos, entretanto, existiam três classes. Primeiro, aqueles
que declaradamente exaltaram a razão acima da autoridade, e recusaram
receber qualquer coisa sobre autoridade que eles não pudessem por eles
mesmos, em bases racionais, provar ser verdade. João Escoto Erígena
(Eringeborne, irlandês de nascimento) pode ser tomado como um
representante desta classe. Ele não apenas manteve que a razão e a
revelação, a filosofia e a religião, são perfeitamente consistentes, mas
que a religião e a filosofia são idênticas. “Conficitur,” diz ele, “inde
veram philosophiam esse veram religionem conversimque veram
religionem esse veram philosophiam.” 32 E na pergunta crucial, Se a fé
precede a ciência, ou fé da ciência, decidiu pela última. A Razão,
segundo ele, era superior à autoridade, a posterior não tendo nenhuma
força exceto quando sustentada pela anterior. “Auctoritas siquidem ex
vera ratione processit, ratio vero nequaquam ex auctoritate. Omnis autem
auctoritas, quæ vera ratione non approbatur, infirma videtur esse. Vera
autem ratio, quum virtutibus suis rata atque immutabilis munitur, nullius
auctoritatis adstipulatione roborari indiget.” 33 Sua filosofia como
desenvolvida em sua obra “De Divisione Naturæ,” é puramente
panteísta. existe com ele, exceto um ser, e tudo o que é real está pensado.
Seu sistema, portanto, é quase idêntico ao panteísmo idealista de Hegel;
ainda ele teve seu trinitarianismo, sua soteriologia, e sua escatologia,
como um teólogo.

32
De Prædest. cap. i. 1, Migne, Patr. vol. cxxii. p. 358, a.
33
De Div. Nat., i. 69 f., Migne, ut supra, p. 513, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 120
A segunda classe
A segunda e mais numerosa classe de teólogos medievais tomou a
base de que a fé em assuntos da religião precede a ciência; que as
verdades são reveladas a nós de modo sobrenatural pelo Espírito de
Deus, que verdades são para ser recebidas pela autoridade das Escrituras
e o testemunho da Igreja. Mas sendo crido, então devíamos nos
empenhar em compreendê-los e prová-los; de forma que nossa
condenação de sua verdade devia apoiar-se em bases racionais. É muito
evidente que tudo depende do espírito com que este princípio é aplicado,
e até que ponto é levado. Nas mãos de muitos escolásticos, dos Pais, era
meramente uma forma de racionalismo. Muitos ensinaram que enquanto
o cristianismo devia ser recebido pelas pessoas por autoridade como um
assunto de fé, devia ser recebido pelo letrado como um assunto de
conhecimento. O humano era substituído pelo divino, a autoridade da
razão pelo testemunho de Deus. Com a melhor classe dos escolásticos o
princípio em questão foi mantido com muitas limitações. Anselmo, por
exemplo ensinou: (1.) Que santidade de coração é a condição essencial
do conhecimento verdadeiro. É só na medida em que as verdades da
religião entram em nossa experiência pessoal, que podemos corretamente
temê-las. Fé, portanto, como inclusive discernimento espiritual, deve
preceder todo conhecimento verdadeiro. “Qui secundum carnem vivit,
carnalis sive animalis est, de quo dicitur: animalis homo non percipit ea,
quæ sunt Spiritus Dei. . . . . Qui non crediderit, non intelliget, nam qui
non crediderit, non experietur, et qui expertus non fuerit, non
intelliget.” 34 “Neque enim quæro intelligere, ut credam, sed credo, ut
intelligam. Nam et hoc credo, quia, nisi credidero, non intelligam.” 35 (2.)
Ele manteve que uma prova racional não era necessária como um ajuda à
fé. Era tão absurdo, disse ele, que presumamos acrescentar autoridade ao
testemunho de Deus por nosso raciocínio, como um homem sustentar o

34
De Fide Trinitatis, 2; Opera, Paris, 1721, p. 42, B. b. c.
35
Proslogium, i.; Ibid. p. 30, B. a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 121
Olimpo. (3.) Ensinou que existem doutrinas de revelação que
transcendem nossa razão, que nós racionalmente não podemos fingir
compreender ou provar, e que devemos ser recebidos no testemunho
simples de Deus. “Nam Christianus per fidem debet ad intellectum
proficere, non per intellectum ad fidem accedere, aut si intelligere non
valet, a fide recedere. Sed cum ad intellectum valet pertingere,
delectatur, cum vero nequit, quod capere non potest, veneratur.” 36

B. Místicos medievais

Os místicos deviam ser declarados em todas estas classes e,


portanto, eles foram divididos, como pelo Dr. Shedd, 37 no herético, o
ortodoxo, e um classe intermediária, que ele designa como latitudinária.
Neste mesmo sentido, Neudecker, 38 classifica-os como Teósofo,
Evangélico, e Separatista. Ullmann 39 faz uma classificação um pouco
diferente. O comum característico entre estas classes, que diferiu tanto
uma da outra, não era que em todas havia um protesto do coração contra
a cabeça, dos sentimentos contra o intelecto, uma reação contra as
sutilezas dos teólogos escolásticos, alguns dos Místicos principais
estavam entre os mais sutis dialéticos. Nem era isto uma aderência
comum à Platônica em vez da filosofia Aristotélica, ou realismo em vez
de nominalismo. Mas esta era a convicção, aquela unidade com Deus era
o grande fim a ser desejado e buscado, e que tal união devia ser buscada,
nem tanto pela verdade, ou pela Igreja, ou pelas ordenanças, ou pelo
companheirismo cristão; mas por introspecção, meditação, intuição.
Como posturas muito diferentes eram entretidas da natureza da “unidade
com Deus,” que devia ser buscada, então os místicos diferiam muito um
do outro. Alguns eram panteístas ao extremo; outros eram teístas e

36
Epistolæ, lib. ii. epis. 41; Opera, Paris, 1721, p. 357, B, a.
37
History of Christian Doctrine, vol. I. p. 79.
38
Lexicon, art. “Mystik.”
39
Reformers before the Reformation.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 122
cristãos devotos. Desde sua natureza essencial, entretanto, a inclinação
do misticismo era para o panteísmo. E o panteísmo consequentemente
sem disfarce não era apenas ensinado por alguns dos místicos mais
proeminentes, mas prevaleceram extensivamente entre as pessoas.

Tendências panteístas do misticismo


Já foi observado, que o sistema do Pseudo-Dionísio, como
apresentado em seu “Mystical Theology” e outros escritos, era
essencialmente panteísta. Aqueles escritos foram traduzidos por Escoto
Erígena, ele mesmo o mais pronunciado panteísta da Idade Média. Pela
influência de articulação destes dois homens, foi desenvolvida uma
propensão forte rumo ao panteísmo em maior ou menor grau entre o
místicos medievais. Até as associações entre as pessoas, como os
Begardos e Lolardos, embora a princípio exemplar e útil, adotando um
sistema de panteísmo místico se voltou completamente corrupto. 40
Crendo eles mesmos ser modos da existência divina, tudo que eles
fizeram Deus fez, e tudo que eles se sentiram inclinados a fazer era um
impulso de Deus e, portanto, nada podia estar errado. Em nosso próprio
tempo os mesmos princípios conduziram às mesmas consequências num
facção da escola alemã de filosofia.
Não foi só entre as pessoas e nestes companheirismos secretos que
este sistema foi adotado. Homens do grau mais alto nas escolas, e
pessoalmente exemplares em seu comportamento, tornaram-se os
advogados da teoria que se apoia na fundação destes males práticos.
Destes escolásticos místicos panteístas, o mais distinto e influente era
Henry Eckart, quem alguns escritores modernos consideram “como o
pensador mais sério de sua época, se não de qualquer época.” Não se
conhece nem o tempo nem o lugar de seu nascimento. Primeiro ele
aparece em Paris como um monge e mestre dominicano. Em 1304 ele era
provinciano dos dominicanos na Saxônia. Em seguida ele era ativo em

40
Ullmann, vol. II. cap. 2.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 123
Estrasburgo como um pastor. Suas doutrinas foram condenadas como
heréticas, embora ele negou que teve em qualquer respeito abandonado
as doutrinas da Igreja. Da decisão de seu arcebispo e seu conselho
provincianos, Eckart apelou ao Papa, por quem a sentença de
desapropriação foi confirmada. Esta decisão, entretanto, não foi
publicada até 1329, quando Eckart já estava morto. Não é necessário
aqui dar os detalhes de seu sistema. Basta dizer que ele manteve que
Deus é o único ser; que o universo é a própria manifestação de Deus; que
o destino mais elevado do homem é vir à consciência de sua identidade
com Deus; que o fim deve ser realizado em parte por abstração filosófica
e em parte por autorrenúncia ascética.
“Embora a união com Deus é principalmente efetuada pelo
pensamento e consciência, ainda também exige um ato correspondente
da vontade, algo prático, como abnegação e privação, pelo qual o
homem sabe, acima de tudo, que é finito. Não apenas deve ele pôr de
lado todas as coisas criadas, o mundo e os bens terrestres, e mortificar os
desejos, mas mais que tudo ele precisa renunciar seu ‘Ego,’ reduzi-lo a
nada, e voltar ao que ele era antes dele vir a este estado temporário. Não,
o homem deve subir acima do bem principal, acima da virtude, da
devoção, da bem-aventurança, e o próprio Deus, como coisas exteriores
e superiores a seu espírito, e é só quando ele, deste modo, se tenha auto-
aniquilado, e tudo que não é Deus dentro dele, que nada permanece
exceto a divina essência pura e simples, em que toda divisão é trazida em
unidade absoluta.” 41
Outro escritor distinto e influente da mesma classe foi João
Ruysbroek, nascido em 1293, numa aldeia não longe de Bruxelas. Tendo
entrado para o serviço da Igreja, ele se dedicou às obrigações de um
sacerdote secular até seu sexagésimo ano, quando ele se tornou pároco
de um monastério instituído recentemente. Era ativo e fiel, gentil e
devoto. Se ele era um teísta ou um panteísta é um assunto de disputa.

41
Ullmann, Translation in Clark’s Library, vol. ii. p. 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 124
Suas posturas especulativas eram formadas mais ou menos sob a
influência da escrita do Pseudo-Dionísio e de Eckart. Gerson, ele mesmo
um místico, objetou suas doutrinas como panteístas; e todos reconhecem
que não existem apenas formas de expressão mas também princípios
para ser declarados em seus escritos que implicam a teoria panteísta.
Fala de Deus como o Ser superessencial incluindo todos os seres. Todas
as criaturas, ele ensinou, estava em Deus, como os pensamentos antes de
sua criação. “Deus viu e os reconheceu em Si mesmo, de alguma
maneira, mas não completamente, diferente dEle mesmo, porque o que
está em Deus, é Deus.” “No ato da depleção própria, o espírito perde-se
a si mesmo no prazer do amor, e absorve diretamente o brilho de Deus,
sim, torna-se o próprio brilho que absorve. Todos os que são erguidos
para o sublimidade desta vida contemplativa são um com o brilho divino
(deifica), e torna-se uma e a mesma luz da qual eles vêm. A esta altura é
o espírito elevado acima de si mesmo, e feito um com Deus, com relação
à unidade daquela vida original em que, de acordo com seu ser não
criado, possui a si mesmo, aprecia e contempla tesouros ilimitados da
mesma maneira como Deus a si mesmo.” Ullmann, que cita estas
passagens e semelhantes, ainda mantém que Ruysbroek era um teísta,
porque, como ele diz, Ruysbroek “não reconhece claramente só a
imanência de Deus, mas que nenhum panteísta pode fazer, sua
transcendência.” Além disso, ele “muito frequentemente e muito
solicitamente o declara, na unidade do homem contemplativo com Deus,
ele ainda reconhece uma diferença entre os dois, para nos permitir
atribuir para ele a doutrina de uma solução absoluta do indivíduo na
substância Divina.” 42 Um homem pode declarar uma diferença entre as
ondas e o oceano, entre as folhas e a árvore, e ainda em ambos os casos
afirmar uma unidade significativa. É verdade que ninguém
inteligentemente pode declarar a transcendência de Deus, e ainda manter
a forma extrema do panteísmo que faz do mundo a existência-forma de

42
Ibid. p. 47.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 125
Deus, sua inteligência inteira, energia, e vida. Mas ele pode ser um
monista. Pode crer que não existe senão um Ser no universo, que tudo é
uma forma de Deus, e toda vida é a vida de Deus. O panteísmo é
multiforme. Alguns modernos falam de um panteísmo cristão. Mas
qualquer sistema que dificulta nossa declaração “Tu,” para com Deus, é
fatal para a religião.

Os místicos evangélicos
Bernardo de Claraval, Hugo e Ricardo de São Victor, Gerson,
Tomás Kempis e outros, são usualmente atribuídos à classe de místicos
evangélicos. Estes eminentes e influentes homens diferem entre si, mas
todos eles mantinham a união com Deus, não no sentido escriturístico,
mas no sentido místico do termo, como o grande objeto do desejo. Não
era que sustentassem que «a visão beatifica de Deus», a intuição de Sua
glória, que pertence ao céu, é acessível neste mundo e acessível mediante
abstração, por apreensão enlevada, ou recepção passiva, mas sim a alma
torna-se uma com Deus, se não em substância sim em vida. Estes
homens, entretanto, foram grandes bênçãos para a igreja. Sua influência
ia dirigida à preservação da vida religiosa interior em oposição à
formalidade e ritualismo que então prevaleciam na igreja; e assim
libertar a consciência de sujeição à autoridade humana.
Os escritos de Bernardo seguem desfrutando de grande estima, e a
Imitação de Cristo, de Tomás Kempis, difundiu-se como incenso por
todos os corredores e câmaras da igreja universal. 43

43
Veja-se Tholuck, Sufismus seu Theosophia Persarum Pantheistica. C. Schmidt, Essai sur les
Mystiques du 14me Siècle. This writer is the author of most of the excellent articles in Herzog’s
Encyklopädie on the Mediæval Mystics. Ullmann’s Reformers before the Reformation.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 126
§ 4. O misticismo durante e depois da Reforma

A. Efeito da Reforma na Mente Popular.

Um movimento tão grande e geral da mente pública como aquele


que teve lugar durante o século dezesseis, quando foram transtornados os
velhos fundamentos da doutrina e da ordem na igreja, dificilmente
poderá evitar ir acompanhado de irregularidades e extravagâncias na
vida interior e exterior do povo. Há dois princípios expostos, ambos
escriturísticos e ambos da maior importância, que são especialmente
suscetíveis de abuso numa época de excitação popular.
O primeiro é o direito ao juízo privado. Este, tal como o
compreendiam os Reformadores, é direito de cada homem decidir o que
é que uma revelação que Deus deu a ele lhe ordena crer. Era um protesto
contra a autoridade usurpada pela Igreja (isto é, os Bispos), de decidir
pelo povo o que era o que deviam crer. Era coisa muito natural que os
fanáticos, ao rejeitar a autoridade da Igreja, rejeitassem também toda
autoridade externa em assuntos de religião. Estes entenderam por direito
ao juízo privado o direito de cada homem a decidir o que era o que devia
crer com base nas operações de sua própria mente e de sua própria
experiência, com independência das Escrituras. Mas como é
palpavelmente absurdo esperar, em tal assunto como religião, uma
certeza ou satisfatório para nós mesmos ou autoritativo para outros, de
nossa própria razão ou sentimentos, era inevitável que estas condenações
subjetivas deviam ser referidas a uma origem sobrenatural. Revelações
particulares, uma luz interior, o testemunho do Espírito, foram exaltados
acima da autoridade da Bíblia.
Segundo, os Reformadores ensinavam que a religião é assunto do
coração, que a aceitação de alguém da parte de Deus não depende de sua
membresia numa sociedade externa, da obediência a seus funcionários,
nem de uma observância escrupulosa de seus ritos e ordenanças; mas sim
da regeneração de seu coração, e de sua fé pessoal no Filho de Deus,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 127
manifestando-se numa vida santa. Isto era um protesto contra o princípio
fundamental do romanismo, de que todos os que se encontram dentro da
organização externa que os romanistas chamam a Igreja são salvos, e que
fora dela todos estão perdidos. Não é de surpreender-se de que homens
maus torcessem este princípio, como o fazem com todas as outras
verdades, para sua própria destruição. Porquanto a religião não consiste
de coisas externas, muitos se precipitaram à conclusão de que as coisas
externas, – a Igreja, suas ordenanças, seus oficiais, seu culto, – careciam
de importância. Estes princípios foram logo aplicados fora da esfera da
religião. Os que se consideravam como órgãos de Deus, emancipados da
autoridade da Bíblia e exaltados acima da Igreja, passaram a demandar
isenção da autoridade do estado. Também contribuiu a este estalo a dura
e prolongada opressão a que tinha estado submetido o grupo de
camponeses, pelo que este espírito de fanatismo e revolta se estendeu
rapidamente por toda a Alemanha, penetrando também na Suíça e
Holanda.

As desordens populares não foram um efeito da Reforma


A extensão em que se difundiram estas desordens, e a rapidez com
que o fizeram, demonstram que não foram um mero resultado da
Reforma. Os princípios expostos pelos Reformadores, e a relaxação da
autoridade papal ocasionada pela Reforma, serviram só para inflamar
elementos que tinham estado por anos sepultados nas mentes do povo.
As numerosas associações e coletividades [então existentes] tinham
levedado a mente do público com os princípios do misticismo panteísta,
que foram uma prolífica fonte de males. Alguns homens que se
imaginavam ser formas nas quais Deus existia e agia não era provável
que se submetessem a nenhuma autoridade, humana ou divina, nem eram
propensos a considerar nada do que se sentissem inclinados a fazer como
pecaminoso.
Estes homens, além disso, tinham crescido sob o Papado. Segundo
a teoria papal, especialmente tal como prevalecia ao longo da Idade
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 128
Média, a Igreja era uma teocracia, cujos representantes eram sujeitos de
uma inspiração constante que os fazia infalíveis como mestres e
absolutos como governantes. Todos os que se opusessem à Igreja eram
rebeldes contra Deus, e destruir aos tais era um dever tanto para com
Deus como para com os homens. Estas ideias foram aplicadas por
Münzer e seus seguidores. Eles eram a verdadeira igreja. Eles estavam
inspirados. Eles tinham direito a decidir qual era a verdade em questões
de doutrina. Eles tinham direito a reger com uma autoridade absoluta na
igreja e no estado. Todos os que se lhes opusessem, opunham-se a Deus,
e deviam ser exterminados. Münzer morreu no cadafalso; assim se
cumpriu outra vez a palavra do Senhor: «Todos os que empunhem a
espada, à espada perecerão».

B. Místicos entre os Reformadores.

Poucos teólogos contemporâneos com Lutero tomaram qualquer


parte neste movimento fanático. Até certo ponto este, entretanto, era
feito por Carlstadt (Bodenstein), arquidiácono e depois mestre de
teologia em Wittenberg. A principio ele cooperou zelosamente com o
grande Reformador, mas quando Storch e Stübener reivindicaram ser
profetas, vieram para o Wittenberg durante a prisão de Lutero em
Wartburgo, e denunciaram a erudição e as instituições de Igreja, e
ensinaram que toda confiança devia ser colocada na luz interior, ou
direções sobrenaturais do Espírito. Carlstadt deu a eles seu suporte e
exortou os alunos a abandonar seus estudos e recorrer ao trabalho
manual. Depois de grandes desordens destes movimentos, Lutero deixou
seu lugar de exclusão, apareceu em cena, e teve êxito em acalmar o
tumulto. Carlstadt então se retirou de Wittenberg, e em última instância
se uniu com Schwenkfeld, um mais influente adversário de Lutero e que
era igualmente cheio do espírito do misticismo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 129
Schwenkfeld.
Schwenkfeld, um nobre nascido em 1490, no principado de Lignitz,
na Baixa Silésia, era um homem de grande energia e força de caráter,
exemplar em sua conduta, de saber extenso e diligência infatigável. A
princípio tomou uma parte ativa em promover a Reforma, e estava em
condições amigáveis com Lutero, Melâncton, e os outros Reformadores
principais. Sendo um homem não apenas de um modo independente de
pensar, mas confiante e zeloso em manter suas opiniões peculiares, ele
logo se separou de outros protestantes e passou sua vida inteira em
controvérsia; condenados por sínodo e proscrito pelas autoridades civis,
era dirigido da cidade até a cidade, até sua morte, que sucedeu em 1561.
Que Schwenkfeld não apenas diferiu dos romanistas, mas também
dos luteranos e reformados em todas as grandes doutrinas então em
controvérsia, é para ser referida ao fato que ele manteve, em comum com
o grande corpo dos místicos da Idade Média, aquela união ou unidade
com Deus, não em natureza ou caráter somente, mas também em ser ou
substância, era a grande aspiração e condição essencial de santidade e
felicidade. Para evitar as doutrinas panteístas nos quais a maioria dos
místicos eram conduzidos, manteve uma forma de dualismo. As criaturas
existem fora de Deus, e são devido ao exercício de sua energia. Neles
não existe nada da substância de Deus e, portanto, nada realmente bom.
No que se relaciona aos homens, são feitos bons e benditos por
receber a substância de Deus. Esta comunicação é feita por Cristo. Cristo
não é, mesmo em Sua natureza humana, uma criatura. Seu corpo e alma
eram formados fora da substância de Deus. Enquanto na Terra, em Seu
estado de humilhação, esta unidade significativa de Sua humanidade
com Deus, era pouco desenvolvida e não revelada. Desde Sua exaltação
está completamente divinizado, ou perdido na essência divina. Isto foi
seguido destes princípios: Primeiro, que a igreja exterior, com suas
ordenanças e meios de graça, eram de pouca importância. Especialmente
que as Escrituras não são, até como instrumento, a origem da vida
divina. A fé não vem pelo ouvir, mas do Cristo interior; isto é, da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 130
substância viva de Deus comunicada à alma. Esta comunicação tem que
ser buscada pela renúncia, renúncia da criatura, pela contemplação e
oração.
Segundo, sobre o sacramento da ceia, que então era o grande
assunto de controvérsia, Schwenkfeld se manteve por si mesmo. Não
admitindo que Cristo teve qualquer corpo de matéria ou sangue, Ele não
podia admitir que o pão e vinho foram transubstanciados em Seu corpo e
Seu sangue, como os romanistas ensinam; nem que Seu corpo e Seu
sangue estavam de modo focal presente no sacramento, em, com, e sob o
pão e vinho, como Lutero mantinha; nem podia ele admitir a presença
dinâmica do corpo da Cristo, como ensinado por Calvino; nem que a
Ceia do Senhor era meramente uma ordenança significante e
comemorativa, como Zwínglio ensinou. Ele manteve sua própria
doutrina. Transpôs as palavras de Cristo. Em vez de “Este (pão) é meu
corpo,” ele disse, o significado e intento verdadeiro de Cristo foi, “Meu
corpo é pão;” isto é, como o pão é o sustento e fonte de vida para o
corpo, então Meu corpo, formada da essência de Deus, é a vida da alma.
Uma terceira inferência do princípio fundamental de Schwenkfeld
era que o resgate da alma é puramente subjetivo; algo forjado na própria
alma. Negou a justificação pela fé como Lutero ensinou aquela doutrina,
e que Lutero considerou como a vida da Igreja. Disse que nós somos não
justificados pelo que Cristo fez por nós, mas pelo que Ele faz dentro de
nós. Tudo o que nós precisamos é a comunicação da vida ou substância
de Cristo para a alma. Para ele, como para os místicos em geral, as ideias
de culpabilidade e expiação eram ignoradas.

Os místicos posteriores
A sucessão de escritores místicos foi continuada por tais homens
como Paracelso, Weigel, Jacó Boehmne, e outros. Os primeiros
chamados eram um médico e um químico, que combinaram filosofia e
alquimia natural com sua teosofia. Nasceu em 1493 e morreu em 1541.
Weigel, um pastor, nasceu na Saxônia em 1533, e morreu em 1588. Suas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 131
posturas eram formadas sob a influência de Tauler, Schwenkfeld, e
Paracelso. Ele ensinou, como seus predecessores fizeram, que a palavra
interior, e não as Escrituras, era a origem do conhecimento verdadeiro,
que tudo que Deus criava é o próprio Deus, e que tudo que é bom no
homem é da substância de Deus. O escritor mais notável desta classe foi
Jacó Boehme, que nasceu próximo de Gorlitz na Silésia, em 1575. Seus
pais eram camponeses, e ele mesmo um sapateiro. Que tal homem
escrevesse livros que provaram uma mina de pensamentos para
Schelling, Hegel, e Coleridge, como também para um classe inteira de
teólogos, é evidência decisiva de seus dons extraordinários. Em caráter
ele era aprazível, gentil, e devoto; e embora denunciado como um
herege, ele constantemente professou sua submissão à fé da Igreja. Ele se
considerou como tendo recebido em resposta à oração, em três ocasiões
diferentes, as comunicações de luz e conhecimento divinos que ele foi
impelido a revelar a outros. Ele não representou o ser primordial como
sem atributos ou qualidades dos quais nada podia ser predito, mas como
a base de todos os tipos de forças buscando revelação. O que a Bíblia
ensina sobre a Trindade, entendeu como um relato sobre a revelação do
universo fora de Deus e sua relação para com Ele.
Era um teósofo numa sentido, em que Vaughan 44 define o termo,
“Aquele que dá a você uma teoria de Deus ou das obras de Deus, que
não tem razão, mas sim uma inspiração de si mesmo para sua base.” “Os
teósofos,” diz Fleming, 45 “são uma escola de filósofos que mesclam
entusiasmo com observação, alquimia com teologia, metafísica com
medicina, e viu o tudo com uma forma de mistério e inspiração.” 46

44
Hours with Mystics, vol. i. p. 45.
45
Vocabulary of Philosophy.
46
Veja-se Baur’s Christliche Gnosis; Dorner’s History of the Doctrine of the Person of Christ and his
History of Protestant Theology; Hamberger, Die Lehre des Deutschen Philosophen u Boehme, 1844.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 132
§ 5. O Quietismo

A. Seu caráter geral.

Tholuck 47 diz “existe uma lei de épocas no mundo espiritual, como


também no mundo físico, em virtude da qual quando o tempo veio, sem
conexão aparente, fenômenos semelhantes se revelam em lugares
diferentes. Para o fim do décimo quinto século um movimento
reformatório doutrinal eclesiástico cobriu a maior parte da Europa, em
parte sem conexão aparente; então para o fim da décima sétima uma
propensão mística e espiritual era quase extensivamente manifestada. Na
Alemanha, tomou a forma de Misticismo e Pietismo; na Inglaterra, a
forma de Quaquerismo; na França, a forma de Jansenismo e Misticismo;
e na Espanha e na Itália, a forma de Quietismo.” Este movimento era de
fato o que em nosso tempo seria chamado uma revivificação da religião.
Não realmente numa forma livre de erros lastimosos, não obstante era
um retorno à religião do coração, em vez da religião de formas. Os
místicos deste período, embora eles constantemente apelassem para os
místicos medievais, até para o Areopagita, e embora eles frequentemente
usassem as mesmas formas de expressão, deste modo eles aderiram
muito mais fielmente às doutrinas escriturísticas e à fé da Igreja. Eles
não caíram no Panteísmo, ou crer na absorção da alma na substância de
Deus.
Eles mantiveram, entretanto, que o fim a ser alcançado era a união
com Deus. Por isso não se significava o que os cristãos em geral
entendem por aquele termo; congenialidade com Deus, encantar-se em
Suas perfeições, garantia de Seu amor, submissão à Sua vontade,
satisfação perfeita no deleite de Seu favor. Era algo mais que tudo isso,
algo místico e, portanto, inexplicável; um assunto de não sentir algo para
ser entendido ou explicado; um estado em que todo pensamento, toda

47
Herzog’s Encyklopädie, art. “Moinhos.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 133
atividade era suspensa; um estado de perfeita quietude em que a alma é
perdida em Deus, — um “écoulement et liquefaction de l’âme en Dieu,”
como é expresso por St. Francis de Sales. Este estado é alcançado por
poucos. Não tem que ser alcançado pelo uso de meios da graça ou
ordenanças da Igreja. A alma devia ser erguida acima da necessidade de
todas ajudas. Sobe até Cristo acima, de tal maneira que não é Ele a quem
a alma busca, nem Deus nele; mas sim Deus como Deus; o Deus
absoluto, infinito. A importância das Escrituras, da oração, dos
sacramentos, e da verdade relativa a Cristo, não era negada; mas todos
estes eram considerados como pertencendo às fases mais baixas da vida
divina. Nem era esta pausa e união com Deus para ser alcançado por
meditação; porque a meditação é discursiva. Implica um esforço para
trazer a verdade perante a mente, e pondo a atenção nisto. Toda atividade
própria consciente deve ser suspensa em pedido para esta pausa perfeita
em Deus. É um estado em que a alma está fora de si mesma; um estado
de êxtase, de acordo com o significado etimológico da palavra.
Este estado tem que ser alcançado no modo prescrito pelos místicos
mais velhos; primeiro, pela negação ou abstração; isto é, a abstração da
alma de tudo fora de Deus, da criatura, de todo interesse, preocupação,
ou impressão de objetos sensíveis. Consequentemente, a conexão entre o
misticismo e ascetismo. Não apenas deve a alma se voltar deste modo
separada da criatura, mas ela deve estar morta para o ego. Toda
consideração para com o ego deve ser perdida. Não pode haver nenhuma
oração, porque a oração está pedindo algo para o ego; nenhuma ação de
graças, porque a ação de graças implica gratidão pelo eu ao ego. O ego
deve ser perdido. Não deve haver nenhuma preferência pelo céu sobre o
inferno. Um dos pontos mais ativamente insistidos era uma disposição
para ser malditos, se tal fosse a vontade de Deus. Na controvérsia entre
Fénélon e Bossuet, a questão principal tinha relação com o amor
desinteressado, se amando a Deus a alma deve ser erguida sobretudo
quanto à consideração para com sua própria santidade e felicidade. Este
amor puro ou desinteressado justifica, ou presta justiça aos olhos de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 134
Deus. Embora os místicos deste período eram eminentemente puros
como também devotos, eles, não obstante, às vezes anunciaram
princípios ou, pelo menos, usaram expressões que deram a seus inimigos
um pretexto para acusá-los de antinomianismo. Diziam que uma alma
cheia com este amor, ou reduzido a esta negação inteira do ego, não pode
pecar; “o pecado não está nele, mas sim fora dele:” que era feito para
querer dizer, que nada era pecado para o perfeito. É um fato psicológico
instrutivo que quando homens tentam ou tratam de subir acima da lei de
Deus, afundam abaixo desta; aquele perfeccionismo levou em geral ao
antinomianismo.

B. Líderes deste movimento.

As pessoas principais enganchadas em promover este movimento


religioso notável foram Moinhos, Madame Guyon, e o Arcebispo
Fénélon. Michael Molinos, nascido em 1640, era um sacerdote espanhol.
Mais ou menos em 1670 ele se tornou um residente de Roma, onde
ganhou uma grande reputação pela devoção e mansidão, e grande
influência de sua posição como confessor para muitas famílias de
distinção. Apreciou a amizade das autoridades mais altas na Igreja,
inclusive vários cardeais, e o próprio Papa INOCENTE XI. Em 1675 ele
publicou seu “Guia Espiritual,” em que os princípios acima declarados
foram apresentados. Molinos não reivindicou originalidade, mas
professou confiar nos místicos da Idade Média, e vários deles já tinham
sido canonizados pela Igreja. Este, entretanto, não o salvou de
perseguição. Sua primeira prova realmente foi antes de que a Inquisição
resultasse em sua absolvição. Mas subsequentemente, pela influência dos
jesuítas e do juízo de Luís XIV, ele era, depois de encarceramento de um
ano, condenado. Agradavelmente para seu princípio de completa
sujeição à Igreja, retratou-se de seus erros, mas falharam em assegurar a
confiança de seus juízes. Morreu em 1697. Sua obra principal,
“Manuductio Spiritualis,” ou Guia Espiritual, foi traduzida para línguas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 135
diferentes, e ganhou para ele muitos aderentes em toda parte do mundo
católico. Quando ele foi encarcerado, dizem, que vinte mil cartas de
todas as partes, e muitas delas de pessoas de distinção, declaram-se entre
seus documentos, lhe assegurando a condolência de seus autores para
com ele em seu espírito e visões. Isto é prova que existiam naquele
tempo na Igreja Romana milhares que não curvaram o joelho perante o
Baal do formalismo.

Madame Guyon
A pessoa mais proeminente e influente dos quietistas, como eles
eram chamados, foi Madame Guyon, nascida em 1648 e morreu em
1717. Pertenceu a uma família rica e nobre; foi formada num convento,
casada aos dezesseis anos com um homem de grau e riqueza e três vezes
sua idade; fiel e dedicada, mas infelizes em suas relações domésticas;
aderindo zelosamente à sua Igreja, passou por uma vida de trabalho
incessante, e também, amargurada por perseguição. Quando ainda no
convento ela caiu sob a influência dos escritos de St. Francis de Sales,
que determinou seu curso subsequente. Entusiástica no temperamento,
dotada com dons extraordinários, ela logo veio a considerar-se como
recipiente de visões, revelações, e inspirações e por isso ela foi impelida
a escrever e, em primeiro lugar, dedicar-se à conversão de protestantes.
Falhando nisto, considerou sua vocação tornar-se a mãe de meninos
espirituais, levando-os a adotar suas visões da vida interna. Para este
objeto ela se dedicou com energia incansável e grande êxito, seus
aderentes, secretos e declarados, sendo contados aos milhares, ou, como
ela supôs, por milhões. Ela então atraiu sobre si mesma, embora
dedicada à Igreja, o desgosto das autoridades, e foi encarcerada por sete
anos na Bastilha e outras prisões na França. Os anos posteriores de sua
vida ela gastou em retiro na casa de sua filha, carregada com fraquezas
físicas, ouvindo a multidão todos dias em sua capela particular e
comunicando dia sim dia não. Seus trabalhos principais foram, “La Bible
avec des Explications et Réflexions, qui regardent la Vie Intérieure,”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 136
“Moyen court et très-facile de faire Oraison.” Este pequeno trabalho
atraiu grande atenção e grande oposição. foi obrigada a defender isto
numa “Apologie du Moyen Court,” em 1690, e “Justifications” em 1694,
e em 1695 ela foi forçada a retratar trinta e cinco proposições
selecionadas disso. Publicou um poema alegórico sob o título “Les
Torrens.” Suas partes poéticas secundárias chamadas “Poésies
Spirituelles,” em quatro volumes, são muito admirados para o gênio que
manifestam.

Arcebispo Fénélon
O arcebispo Fénélon, umas das maiores luz da Gallican Church
(Igreja Católica na França), aderiram à causa de Madame Guyon, e
publicaram em 1697 “Explication des Maximes des Saints sur la Vie
Intérieure.” Como o título anuncia, os princípios deste livro são
derivados dos místicos antigos, e especialmente do mais recente dos
santos, St. Francis de Sales, que foi canonizado em 1665, só trinta e três
anos depois de sua morte. Embora Fénélon cuidadosamente tenha
evitado as extravagâncias dos místicos de seu próprio tempo, e embora
ele não ensinasse nada que homens veneraram na Igreja não ensinaram
antes dele, seu livro perdeu para ele o favor da corte, e foi finalmente
condenado pelas autoridades em Roma. Por esta desapropriação ele se
submeteu com a maior docilidade. Ele não apenas não fez nenhuma
defesa, mas sim leu o resumo dos atos de desapropriação em seu próprio
púlpito, e proibiu seu livro de ser lido dentro de sua diocese. Embora esta
sua consciência o constrangeu, ele provavelmente não mudou suas
posturas. Como o papa decidiu contra ele, ele esteve disposto a admitir
que o que ele havia dito era errado, e ainda o que ele tentou dizer ele
ainda manteve como sendo certo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 137
§ 6. Os Quakeres ou Amigos

Este corpo de professos cristãos extensamente estendido e


altamente respeitados constituem os mais permanentes e melhor
organizados representantes dos princípios do misticismo que apareceu na
Igreja. Existiram como uma sociedade organizada quase dois séculos e
meio, e se contam na Europa e América várias centenas de milhares.

A. Sua origem e Primeira História.

Eles tomaram sua origem e nome do George Fox, que nasceu em


Drayton, Leicestershire, Inglaterra, em 1624. Recebeu só os rudimentos
de uma educação inglesa, e tinha como profissão sapateiro. Na juventude
ele foi notável para seus hábitos quietos, retirados. Dedicou seu tempo
livre para a leitura das Escrituras e a meditação. A época em que ele
viveu era de corrupção na Igreja e agitação no Estado. Estava tão
impressionado pelos ímpios que ele viu ao seu redor que perdeu a
confiança nos mestres da religião e nas ordenanças da igreja. No final ele
sentiu em si mesmo o chamado de Deus, por revelação e inspiração
direta, para denunciar a Igreja existente, sua organização e oficiais, e
proclamar uma dispensação nova e espiritual. Esta dispensação devia ser
nova só com relação ao que havia longamente existido. Tinha sido
projetada como uma restauração da idade apostólica, quando a igreja era
guiada e ampliada pelo Espírito, sem a intervenção da Palavra escrita,
ou, como Fox e seus seguidores mantinham, de um pedido especial de
ministros, mas sim todo homem e toda mulher falaram como o Espírito
lhes concedeu que falassem. 48
Foram chamados quakeres quer seja porque eles mesmos tremeram
quando sob a influência do Espírito, ou porque eles estavam no hábito de

48
One of the most important works of William Penn bears the title Primitive Christianity revived in
the Faith and Practice of the People called Quakers.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 138
solicitar àqueles a quem eles tremeram com medo do juízo de Deus. A
designação há muito deixou de ser apropriada, como eles estão
caracteristicamente quietos em sua adoração, e gentil em relação àqueles
que não estão. Chamam-se a si mesmos Amigos porque se opõem à
violência, contenda, e especialmente à guerra. A princípio, entretanto,
eram acusados de muitas irregularidades, que, em ligação com sua
recusa em pagar dízimos, não fazer juramentos, e não cumprir serviço
militar, deu pretexto a frequentes e grandes perseguições.
Os quakeres foram a princípio, como um classe, analfabetos,
entretanto homens das classes educadas logo se juntaram a eles, e por
sua influência as irregularidades ligadas ao movimento foram corrigidas,
e a sociedade reduzida a uma forma regularmente organizada. Os mais
proeminentes destes homens foram George Keith, Samuel Fisher, e
William Penn. O último nomeado, o filho de um almirante britânico,
provou sua sinceridade pelos sacrifícios e sofrimentos a que sua
aderência a uma seita, então menosprezada e perseguida, ele se
submeteu. Quanto à influência que ele possuía, como amigo e favorito de
James II, podia fazer muito para seus irmãos, e tendo recebido uma
subvenção da coroa, pelo que é agora Pensilvânia, transportou uma
colônia deles para este país e fundou um dos Estados mais importantes
da União Americana. O homem, entretanto, que fez mais que reduzir os
princípios de George Fox a uma ordem, e recomendá-los ao público
religioso e literário, foi Robert Barclay. Barclay era um membro de uma
família escocesa proeminente, e recebeu o benefício de uma educação
estendida e variada. Nasceu em 1648, e morreu em 1690. Sua obra
principal, “Theologiæ Christianæ Apologia,” é uma exposição de quinze
teses que ele previamente escreveu e imprimiu sob o título, “Theses
Theologicæ onnnibus Clericis et præsertim universis Doctoribus,
Professoribus et Studiosis Theologiæ in Academiis Europæ versantibus
sive Pontificis sive Protestantibus oblatæ.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 139
B. Suas doutrinas.
É impossível dar uma postura satisfatória das doutrinas dos
quakeres. Eles não têm nenhum credo ou exposição autoritativa de
doutrina que todos reconhecem como aqueles que chamam a si mesmos
quakeres. Seus escritores mais proeminentes diferem em suas posturas
em muitos pontos importantes. As opiniões de ninguém, nem de vários
autores, podem ser tomados como representando as posturas da
Sociedade. Existem de fato três classes de quakeres.
Primeiro. Aqueles que se chamam a si mesmos ortodoxos, e que
diferem muito pouco do grande corpo de cristãos evangélicos. A este
pertence a grande maioria da Sociedade ambos neste país e na Grã-
Bretanha. Este aparece dos testemunhos repetidamente emitidos pelas
“Reuniões Anuais,” os corpos representativos da Sociedade. Isto é uma
testemunha muito mais satisfatória da fé geral do corpo que as
declarações de escritores individuais, entretanto eminente, pelo que a
Sociedade não é responsável. Um resumo muito claro e completo da
doutrina dos Amigos pode-se achar na “History of Religious
Denominations in the United States,” compilada por I. Daniel Rupp. Os
parágrafos neste trabalho foram escritos por homens eminentes que
pertencem às várias denominações cujas posturas são representadas. O
que se relaciona aos quakeres foram escritos por Tomé Evans, um
ministro proeminente da Sociedade, e um homem verdadeiramente
representativo. Sem referir-se às doutrinas peculiares da Sociedade, os
extratos seguintes mostram o próximo que os quakeres ortodoxos (isto é,
a Sociedade propriamente, como representadas em suas reuniões anuais)
chegam à fé comum de igrejas protestantes.

Doutrinas dos Amigos Ortodoxos.


1. Sobre Deus, dizem, quakeres “Creem num só Deus sábio,
onipotente, e eterno, o criador e mantenedor de todas as coisas visíveis e
invisíveis; e num Senhor Jesus Cristo, por quem são todas as coisas, o
mediador entre Deus e o homem; e no Espírito Santo que procede do Pai
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 140
e do Filho; um Deus bendito para sempre. Ao expressar suas posturas da
doutrina terrível e misteriosa dos Três que levam registro em céu,” eles
cuidadosamente evitaram o uso de termos anti-escriturísticos, inventados
para definir o que é indefinível, e escrupulosamente aderiu à língua
segura e singela de Escritura Santa, como contido em Mateus 28:18, 19.”
2. Quanto à pessoa e obra de Cristo, “Possuem e creem em Jesus
Cristo, o Filho amado e único procriado de Deus, que era concebido do
Espírito Santo, e nascido da Virgem Maria. . . . . Eles creem que somente
Ele é o Redentor e Salvador de homem, o capitão da salvação, que salva
do pecado como também do inferno e da ira vindoura, e destrói as obras
do diabo. É a semente da mulher que pisa a cabeça da serpente; mesmo
Cristo Jesus, o Alfa e Ômega, o Primeiro e o Último. Ele é, como as
Escrituras de fato dizem dEle, nossa sabedoria, justiça, santificação, e
redenção, nem há salvação em nenhum outro, e não existe nenhum outro
nome debaixo do céu no meio de homens por meio de quem nós
podemos ser perdoados.”
“A Sociedade de Amigos uniformemente declarou sua convicção na
divindade e humanidade do Senhor Jesus: que Ele era Deus verdadeiro e
homem perfeito, e que Seu sacrifício de Si mesmo na cruz era uma
propiciação e expiação para os pecados do mundo inteiro, e que a
remissão de pecados da qual qualquer um participa, está somente nEle, e
em virtude dEle, que o mais satisfatório sacrifício.”
3. Quanto ao Espírito Santo, “Os Amigos creem no Espírito Santo,
ou Consolador, a promessa do Pai, quem Cristo declarou que Ele
enviaria em Seu nome, conduz e guia a Seus seguidores, em toda
verdade, ensina-lhes todas as coisas, e traz todas as coisas para sua
mente. . . . . Eles creem que o conhecimento salvador de Deus e Cristo
não pode ser alcançado de qualquer outro modo que pela revelação deste
Espírito; — para o Apóstolo diz, ‘Que homem conhece as coisas do
homem, senão o espírito o que está nele? Assim também nenhum
homem conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus. Agora nós
não recebemos o espírito do mundo, mas sim o Espírito que é de Deus,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 141
que nós poderíamos saber as coisas que são livremente dadas a nós de
Deus.’ Se, portanto, as coisas que corretamente pertencem ao homem
não podem ser discernidas por qualquer princípio mais baixo que o
espírito do homem; aquelas coisas que corretamente se relacionam com
Deus e Cristo, não podem ser conhecidas por nenhuma energia inferior
que aquela do Espírito Santo.”
4. Quanto ao homem, “Eles creem que o homem foi criado à
imagem de Deus, capaz de compreender a lei divina, e de manter
comunhão com seu Criador. Pela transgressão ele caiu deste estado
bendito, e perdeu a imagem celeste. Sua posteridade entra no mundo na
imagem do homem terrestre; e, até renovado pelo poder vivificador
regenerador do homem celeste, Cristo Jesus, manifestado a tempo à
alma, eles são caídos, degenerados, e mortos para a vida divina em que
Adão originalmente permaneceu, e são submissos ao poder, natureza, e
semente da serpente; e não apenas suas palavras e ações, mas sim suas
imaginações, são do mal perpetuamente aos olhos de Deus. O homem,
portanto, neste estado pode não conhecer nada satisfatoriamente com
relação a Deus; seus pensamentos e concepções das coisas espirituais,
até que ele seja desligado desta semente do mal e unido à luz divina,
Cristo Jesus, são improdutivos para si mesmos e para outros.”
5. Quanto ao estado futuro, “A Sociedade de Amigos crê que
haverá uma ressurreição assim de justos como de injustos; uma para vida
e bem-aventurança eterna, e a outra para miséria e tormento eterno, de
acordo com Mateus 24.31-46; João 5.25-30; 1 Coríntios 15.12-58. Que
Deus julgará o mundo por aquele homem a quem Ele ordenou, Cristo
Jesus o Senhor, quem há de julgar a todos os homens de acordo com suas
obras.”
6. Quanto às Escrituras, “A Sociedade religiosa de Amigos sempre
creu que as Escrituras Santas foram escritas por inspiração divina, e
contém uma declaração de todas as doutrinas e princípios fundamentais
relativos à vida e salvação eterna, e que qualquer doutrina ou prática
contrária a esses, devem ser rejeitada como falsa e errônea; que são uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 142
declaração da mente e legam de Deus, em e para as várias idades nas que
eles foram escritos e são obrigatórios para nós, e devem ser lidos, cridos,
e cumpridos por meio do ajuda da graça divina. . . . . Parece-lhes como a
única prova para julgar e provar as controvérsias no meio de cristãos, e
se dispõe que todas as suas doutrinas e práticas deviam ser investigadas
por eles, admitindo livremente que qualquer que o faz, fingindo o
Espírito, que é ao contrário às Escrituras, ser condenado como uma
ilusão do diabo.”
De maneira que parece que os Amigos ortodoxos estão em
simpatia, em todas as doutrinas fundamentais, com o grande corpo de
seus companheiros cristãos.

Amigos Heterodoxos.
Segundo, existe um classe chamando a si mesmos Amigos, e
retendo a organização da Sociedade, e seus usos sobre vestimenta,
língua, e modo de adoração, que são realmente deístas. Não admitem
nenhuma autoridade mais alta, em assuntos da religião, que a razão e
consciência naturais de homem, e mantêm poucas coisas como
verdadeiras além das verdades da religião natural. Este classe foi
desconhecida pela Sociedade em sua capacidade representativa.
Terceiro: existe uma terceira classe que não constitui um corpo
organizado ou separado, mas inclui homens de posturas muito diferentes.
Como já se observou, havia grande diversidade de opinião entre os
quakeres, especialmente durante o primeiro período de sua história. Esta
diversidade relacionada às doutrinas comuns do cristianismo, a respeito
da natureza da luz interior guiando a todos os professos a crer, e a
autoridade devida às Escrituras sagradas. Alguns negaram a doutrina da
Trindade e a satisfação de Cristo; alguns pareceram ignorar o Cristo
histórico completamente, e referir-se tudo ao Cristo interior. Outros,
enquanto admitindo a verdade histórica da vida de Cristo, e de Sua obra
na Terra, consideraram Sua redenção como completamente subjetiva.
Ele nos salva não pelo que Ele fez por nós, mas exclusivamente pelo que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 143
Ele faz em nós. Esta, como nós vemos, é a propensão característica do
misticismo em todas as suas modificações.

C. A Doutrina dos Amigos quanto à luz interior dada a todos


os homens.

A diversidade ainda maior de posturas prevalecentes sobre a


natureza da luz interior que constitui a doutrina distintiva da Sociedade.
Os quakeres ortodoxos neste assunto, em primeiro lugar,
cuidadosamente distinguem esta “luz” da razão e consciência natural dos
homens; e também de discernimento espiritual, ou aquela obra interior
do Espírito, que todos os cristãos reconhecem, pela qual a alma é
habilitada a conhecer “as coisas do Espírito” como são reveladas nas
Escrituras, e sem as quais não podem haver a fé salvadora e nenhuma
santidade de coração ou vida. Esta iluminação espiritual é peculiar às
pessoas de Deus; a luz interior, em que os quakeres creem, é comum a
todos os homens. O desígnio e efeito da “luz interior” são a comunicação
da nova verdade ou da verdade não objetivamente revelada, como
também o discernimento espiritual das verdades de Escritura. O desígnio
e efeito da iluminação espiritual são a apreensão adequada da verdade já
especulativamente conhecida.
Segundo: Pela luz interior os quakeres ortodoxos entendem a
influência sobrenatural do Espírito Santo, relativo ao que eles
ensinam,— (1.) Que ele foi dado a todos os homens. (2.) Que Ele não
apenas convence de pecado, e capacita a alma a temer corretamente as
verdades de Escritura, mas também comunica um conhecimento dos
mistérios da salvação.” “Eles creem que uma manifestação deste Espírito
é dada a todo homem para beneficiá-los também; que Ele convence de
pecado e, como se observa, dá poder à alma para vencer o pecado e
abandoná-lo; abre a mente para os mistérios da salvação, habilita-a para
entender as verdades registradas nas Santas Escrituras, e lhe dá a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 144
experiência viva, prática, e sincera daquelas coisas que pertencem a seu
bem-estar eterno.”

“Ele comunicou uma medida da luz de Seu próprio Filho, uma


medida da graça do Espírito Santo — pela qual Ele convida, chama,
exorta, e luta com todo homem, a fim de salvá-lo; que luz ou graça,
como é recebido e não resistido, opera a salvação de todos, até daqueles
que são ignorantes da Queda do Adão, e da morte e sofrimentos de
Cristo; tanto trazendo-os para um sentido de sua própria miséria, e ser
participantes dos sofrimentos de Cristo, interiormente; e fazendo deles
participantes de Sua ressurreição, em permanecer santo, puro, e justo, e
recuperado de seus pecados.” 49
Terceiro: Os Amigos ortodoxos ensinam relativo a esta luz interior,
como já foi mostrada, que ele é subordinado às Santas Escrituras,
considerando como as Escrituras são a regra infalível de fé e prática, e
contrário a isso tem que ser rejeitado como falso e destrutivo.

As Posturas de Barclay.
Enquanto tais são as posturas dos Amigos ortodoxos, deve-se
admitir que muitos mantêm uma doutrina diferente. Isto é verdade não
apenas daqueles a quem a Sociedade desconheceu, mas sim de muitos
homens mais proeminentes em sua história. Esta diferença relaciona
tanto para o que esta luz é como para sua autoridade. Sobre os anteriores
destes pontos a linguagem empregada é tão distinta, e tão figurativa, que
é difícil determinar seu significado real. Alguns dos primeiros quakeres
falaram como se eles adotaram a doutrina dos místicos antigos, que este
princípio interior era o próprio Deus, a substância divina. Outros falam
disso como Cristo, ou até o corpo de Cristo, ou Sua vida. Outros como
“uma semente,” que se declara não ser nenhuma parte da natureza do
homem; não permanece da imagem de Deus em que Adão foi criado;

49
Evans.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 145
nem é a substância de Deus. Não obstante, declara-se que é “uma
substância espiritual,” em que o Pai, Filho, e Espírito Santo estão
presentes. Esta semente vem de Cristo, e é comunicado a todo homem.
Em alguns é como uma semente sobre uma rocha, que nunca mostra
qualquer sinal de vida. Mas quando a alma recebe uma visitação do
Espírito, se sua influência não é resistida, aquela semente é avivada, e se
desenvolve em santidade de coração e vida, pela qual a alma é purificada
e justificada. Nós não somos justificados por nossas obras. Tudo é
devido a Cristo. Ele é ao mesmo tempo “o doador e o dom.” Não
obstante, nossa justificação consiste nesta mudança subjetiva. 50
Uma distinção é feita entre uma dupla redenção; uma é
“apresentada e realizada por Cristo para nós em Seu corpo crucificado
sem nós; a outra é a redenção operada por Cristo em nós. A primeira é
aquela por meio da qual um homem, como ele está na queda, é colocada
em seu interior uma capacidade de salvação, e transferiu até ele uma
medida daquele poder, virtude, espírito, vida, e graça que estava em
Cristo Jesus, que, como o dom gratuito de Deus, é capaz de
contrabalançar, vencer e exterminar a semente do mal, com a qual somos
naturalmente fermentados, como na Queda. A segunda é aquela por meio
da qual testificamos e conhecemos esta redenção pura e perfeita em nós
mesmos, purificando, limpando e nos resgatando do poder da corrupção,
e nos trazendo em unidade, favor e amizade com Deus.” 51
No que se relaciona à autoridade desta luz interior, enquanto os
ortodoxos a fazem subordinada às Escrituras, muitos dos primeiros
Amigos fizeram os escritos, subordinados à palavra interna; e outros,
como o próprio Barclay, faz os dois coordenarem. Embora neste assunto
ele é dificilmente consistente consigo mesmo, ele expressamente nega
que as Escrituras sejam para nós “a fonte” de fato; que elas sejam “a
base principal de toda verdade e conhecimento, ou ainda a regra primária

50
See Barclay’s Apology, Philadelphia edition, pp. 152, 153.
51
Ibid., p. 218.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 146
adequada de fé e prática.” Elas, entretanto, devem “ser estimadas a um
papel subordinado secundário ao Espírito.” Não obstante, ensina com
simplicidade igual: o que “não pode ser provado pela Escritura, não é
nenhum artigo de fé necessário.” 52 Novamente, ele diz: Estamos
“dispostos a admitir isto como uma máxima positiva e certa, que
qualquer coisa que alguém faz, fingindo o Espírito, o que é contrário às
Escrituras, ser contado e considerado uma ilusão do diabo.” 53 Ele
“livremente subscreve aquela declaração: Deixá-lo pregar qualquer outro
evangelho que aquele pregado pelos apóstolos, e de acordo com as
Escrituras, ser maldito.” 54 Nós consideramos as Escrituras, ele diz,
“como o único juiz externo digno de controvérsias no meio de cristãos, e
que qualquer doutrina que seja contrária ao seu testemunho, pode
portanto ser justamente rejeitada como falsa.” 55 Seu livro inteiro,
portanto, é um esforço para provar, com base na Escritura, todas as
doutrinas peculiares do quaquerismo.
Sua teoria é: (1.) Que todos os homens desde a Queda estão num
estado de morte espiritual de que são totalmente incapazes de entregar a
si mesmos. É severo em sua denúncia de toda doutrina pelagiana e
semipelagiana. (2.) Que Deus determinou, por seu Filho nosso Senhor
Jesus Cristo, fazer provisão para a salvação de todos os homens. (3.) A
obra de Cristo assegura a oportunidade e significa salvação para todo
homem (4.) Por meio dEle e por causa dEle “uma semente” é dada para
todo homem que, sob a influência do Espírito, pode ser desenvolvida em
retidão e santidade, restaurando a alma na imagem e companheirismo
com Deus. (5.) Concede-se a todo homem “um dia de visitação” quando
vem a Ele o Espírito e mostra uma influência que, se não for resistida,
capacita esta semente divina, e assim dá a oportunidade de ser salva (6.)
A medida desta influência divina não é a mesma em todos os casos. Em

52
Barclay’s Apology, p. 106.
53
Ibid., p. 100.
54
Ibid., p. 105.
55
Ibid., p. 100.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 147
alguns é irresistível, em outros, não. Em alguns é tão abundante como
nos profetas e apóstolos, tornando seus assuntos tão autorizados como
mestres quanto os apóstolos originais. (7.) O papel do Espírito é ensinar
e guiar. Não é meramente com intenção de iluminar a mente no
conhecimento de verdades contidas nas Escrituras. Ele apresenta a
verdade de maneira à mente. Não revela novas doutrinas, muito menos
doutrinas opostas àquelas reveladas nas Escrituras; mas Ele faz uma
revelação nova e independente de doutrinas velhas.
Neste ponto Barclay é muito explícito. 56 Sua discussão de sua
segunda e terceira proposição, — uma relativa à “revelação imediata,” e
a outra, “as Escrituras,” — parte esta doutrina extensivamente. “Nós
distinguimos,” ele diz, “entre uma revelação de um novo evangelho e
novas doutrinas, e uma nova revelação do evangelho e doutrinas velhas
boas; a última nós defendemos, mas a primeira negamos totalmente.” A
razão natural revela certas doutrinas, mas isto não é incompatível com
uma nova revelação das mesmas doutrinas nas Escrituras. Então o fato
de que o evangelho é revelado nas Escrituras não é incompatível com
sua revelação objetiva imediata à alma pelo Espírito.
Além das grandes doutrinas da salvação, existem muitas coisas que
o cristão tem que conhecer que não estão contidas nas Escrituras. Nestes
assuntos ele não é deixado à sua própria direção. O Espírito “guia a toda
verdade.” “Portanto,” diz Barclay, “o Espírito de Deus instrui e ensina
todo verdadeiro cristão o que é necessário para ele conhecer.” Por
exemplo, se Ele tem que pregar; e, chamado-se para pregar, quando,
onde, e o que deve pregar; onde ele deve ir, e em qualquer emergência o
que tem que cumprir. Então o Espírito nos ensina quando e onde nós
temos que orar, e o que temos para orar. Como a direção do Espírito se
estende a tudo, devia ser buscada e obedecida em todas as coisas.
O quaquerismo ignora a distinção entre homens inspirados e não
inspirados, exceto sobre a medida da influência do Espírito. Ele habita

56
See pp. 62-64, 105.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 148
em todos os crentes, e apresenta o mesmo papel em tudo. Como os
santos do passado, antes de ser dada a lei, estava sob Sua instrução e
direção, então eles continuaram a apreciar Seu ensino depois que a lei foi
dada. Por toda a dispensação do Antigo Testamento o povo de Deus
recebeu revelações e direções imediatas. Quando Cristo veio houve uma
comunicação mais copiosa desta influência. Estas comunicações não
eram limitadas a um ou outro sexo, ou a qualquer classe na Igreja. Elas
não eram peculiares para os apóstolos, ou para os ministros, senão para
todos que recebiam uma manifestação do Espírito para benefício
também. O estado da Igreja, como colocado no Novo Testamento sobre
este assunto, continua no tempo presente, a não ser que os dons dados
não são do caráter milagroso agora assim como eram então. Mas quanto
à Sua revelação, iluminação, ensino, operações de guia, Ele está tão
presente com os crentes agora como durante a era apostólica.
Então todos falaram como o Espírito lhes concedeu que falassem.
Quando os cristãos se reuniram todos tiveram seu dom: um tinha salmo;
outro, doutrina; outro, revelação; outro, interpretação. Todos puderam
falar; mas devia ser feito decentemente e com ordem. Se qualquer coisa
fosse revelada a um que estava situado, era para manter sua paz até que
chegasse seu tempo; porque Deus não é autor de confusão. Em 1 Cor. 14
temos o ideal ou modelo quaker de uma assembleia cristã. E como os
apóstolos foram a todas as partes, não de acordo com seu próprio juízo,
mas de modo sobrenatural guiados pelo Espírito, então o Espírito guia a
todos nos negócios comuns da vida, eles esperam pelas insinuações de
Sua vontade.
Como esta doutrina da direção do Espírito é o princípio
fundamental do quaquerismo, é a origem de todas as peculiaridades pela
qual a Sociedade de Amigos já foi distinguida. Se todo homem tem
dentro de si mesmo um guia infalível sobre a verdade e o dever, ele não
necessita de ensino externo. Se o papel do Espírito é revelar a verdade
objetivamente à mente, e indicar em toda ocasião o caminho do dever; e
se Sua influência reveladora e guia é universal e imediata, auto-
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 149
comprovando propriamente como divino, deve necessariamente
substituir todos os outros; da mesma maneira que as Escrituras
substituem a razão em assuntos de religião. Os quakeres, portanto,
embora, como foi mostrado, reconhecendo a autoridade divina das
Escrituras, dão-lhe menos importância que outras denominações de
cristãos evangélicos. Dão muito pouca importância à Igreja e suas
ordenanças; do sábado sagrado; de um ministério declarado; e nada dos
sacramentos como ordenanças exteriores e meios da graça. Em tudo isto
sua influência foi nociva para a causa de Cristo, enquanto é admitido
alegremente que alguns dos melhores cristãos de nossa era pertencem à
Sociedade de Amigos.

§ 7. Objeções à Teoria Mística

A ideia sobre a qual se baseia o misticismo é escriturística e


verdadeira. É verdade que Deus tem acesso à alma humana. É verdade
que Ele pode, em consistência com Sua própria natureza e com as leis de
nosso ser, revelar de maneira sobrenatural e imediata a verdade
objetivamente à mente, e acompanhar esta revelação com uma evidência
que produz uma certeza infalível de sua verdade e de sua origem divina.
É também certo que tais revelações foram muitas vezes dadas aos filhos
dos homens. Mas estes casos de revelação sobrenatural imediata
pertencem à categoria do milagroso. São raros, e devem ser devidamente
autenticados.
A doutrina comum da Igreja Cristã é que Deus falou em muitas
ocasiões e de maneiras diversas aos filhos dos homens. Que o que nem
olho viu nem ouvido percebeu, o que nunca pôde ter entrado no coração
do homem, Deus o revelou por Seu Espírito àqueles a quem Ele escolheu
para serem Seus porta-vozes perante seus semelhantes; que estas
revelações foram autenticadas como divinas, por seu caráter, seus
efeitos, e por sinais e maravilhas, e por diversos milagres e dons do
Espírito Santo; que estes homens santos da antiguidade que falaram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 150
conforme foram movidos pelo Espírito Santo comunicaram as revelações
que tinham recebido, não só verbalmente, mas também por escrito,
empregando não as palavras que ensina a sabedoria humana, mas
também as que ensina o Espírito Santo; de modo que nas Sagradas
Escrituras temos as coisas do Espírito registradas nas palavras do
Espírito; as quais Escrituras são, portanto, a Palavra de Deus, isto é, o
que Deus diz ao homem; o que Ele declara como verdadeiro e
obrigatório, e constituem para sua Igreja a única norma infalível de fé e
prática.
Os romanistas, enquanto admitindo a infalibilidade da Palavra
escrita, ainda argumentam que não basta; e mantêm que Deus continua
de uma maneira sobrenatural a guiar a Igreja, dando a ela seus mestres
bispos infalíveis em todos os assuntos pertencentes à verdade e ao dever.
Os místicos, que fazem a mesma admissão quanto à infalibilidade
da Escritura, pretendem que o Espírito é dado a todo homem como um
mestre e guia interno, cujas instruções e influências são a mais elevada
norma de fé, e suficientes, inclusive sem as Escrituras, para assegurar a
salvação da alma.

O misticismo não se baseia nas Escrituras


As objeções ao sistema romanista e ao misticismo são
essencialmente as mesmas.
1. Não há fundamento para nenhum de ambos os sistemas na
Escritura.
Assim como a Escritura não contém nenhuma promessa de
condução infalível para os bispos, tampouco contêm nenhuma promessa
do Espírito como revelador imediato da verdade a cada homem. Sob a
dispensação do Antigo Testamento o Espírito revelou certamente a
mente e o propósito de Deus: mas isso foi a umas pessoas selecionadas
escolhidas para ser profetas, autenticados como mensageiros divinos,
cujas instruções o povo estava obrigado a receber como provenientes de
Deus. De uma maneira semelhante, sob a nova dispensação, nosso
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 151
Senhor selecionou doze homens, dotando-os de um conhecimento pleno
do Evangelho, fazendo-os infalíveis como mestres, e demandando de
todos os homens que recebessem suas instruções como as palavras de
Deus. É verdade que durante a era apostólica houve comunicações
ocasionais dadas a uma classe de pessoas chamadas profetas. Mas este
«dom da profecia», isto é, o dom de falar sob a inspiração do Espírito,
era análogo ao dom do milagroso. Um cessou tão evidentemente como o
outro.
É certo, também, que nosso Senhor prometeu enviar o Espírito, que
permaneceria com a Igreja, para habitar em Seu povo, para ser Seu
mestre e guiá-los ao conhecimento de toda a verdade. Mas, que verdade?
Não a verdade histórica e científica, mas sim uma verdade sinceramente
revelada: a verdade que Ele mesmo tinha ensinado, ou dado a conhecer
mediante seus mensageiros autorizados. O Espírito é certamente um
mestre; e sem Suas instruções não há conhecimento salvador das coisas
divinas, porque o apóstolo nos diz: «O homem natural não entende as
coisas que são do Espírito de Deus, porque para ele são loucura, e não as
pode conhecer, porque se têm que discernir espiritualmente» (1Co 2:14).
Por isso, o discernimento espiritual é o desígnio e o efeito do ensino do
Espírito. E as coisas discernidas são «o que Deus nos outorgou
gratuitamente», isto é, e tal como nos mostra o contexto, as coisas
reveladas aos Apóstolos e claramente dadas a conhecer nas Escrituras.
O apóstolo João diz a seus leitores: «Mas vós tendes unção do
Santo, e sabeis todas as coisas» (1Jo 2:20), e outra vez, v. 27 [NVI]: «A
unção que receberam dele permanece em vocês, e não precisam que
alguém os ensine; mas, como a unção dele recebida, que é verdadeira e
não falsa, os ensina acerca de todas as coisas, permaneçam nele como ele
os ensinou.» Estas passagens ensinam o que admitem todos os cristãos
evangélicos. Primeiro, que o verdadeiro conhecimento, ou discernimento
espiritual das coisas divinas, deve-se ao ensino interior do Espírito
Santo; e segundo, que a verdadeira fé, ou a certeza infalível das verdades
reveladas, deve-se da mesma maneira à «demonstração do Espírito»
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 152
(1Co 2:4). O Apóstolo João diz também: «Aquele que crê no Filho de
Deus, tem o testemunho em si mesmo» (1Jo 5:10). A fé que salva não
repousa no testemunho da Igreja, nem na evidência externa dos milagres
e da profecia, mas no testemunho interior do Espírito com e pela verdade
em nossos corações. Aquele que tem este testemunho interior não
necessita de outro. Não necessita que outros homens lhe digam qual é a
verdade.
Esta mesma unção lhe ensina qual é a verdade, e que nenhuma
mentira é da verdade. Os cristãos não deviam crer em todo espírito.
Deviam provar os espíritos, se eram de Deus. E a prova ou critério da
prova era a revelação externa e autenticada de Deus, discernida
espiritualmente e demonstrada pelas operações interiores do Espírito.
Assim que quando vêm agora os difusores do erro, ensinando às pessoas
que não há Deus, nem pecado, nem retribuição, nem necessidade de
Salvador, nem de expiação, nem de fé; que Jesus de Nazaré não é o Filho
de Deus, Deus manifestado na carne, o verdadeiro cristão não tem
necessidade que lhe digam que isto é o que o apóstolo chama mentiras.
Tem um testemunho interior da verdade do registro que Deus nos deu de
seu Filho.
Se a Bíblia não dá sustento à doutrina mística de uma revelação
interior, sobrenatural, objetiva da verdade dada pelo Espírito, esta
doutrina fica destituída de todo fundamento, porque é só mediante o
testemunho de Deus que se pode estabelecer qualquer doutrina.

O misticismo é contrário às Escrituras


2. A doutrina em questão não só carece totalmente de apoio das
Escrituras, mas também as contradiz. Não só está em oposição a
declarações isoladas da Palavra de Deus, mas também a todo o plano
revelado dos procedimentos de Deus com Seu povo. Em todas partes e
sob todas as dispensações, a regra de fé e do dever foi o ensino de
mensageiros autenticados de Deus. A chamada foi sempre «à lei e ao
testemunho». Os profetas vieram dizendo: «Assim disse Jeová». Se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 153
demandava dos homens que cressem e obedecessem o que lhes era
comunicado, e não o que o Espírito revelava a cada indivíduo. Era a
palavra externa e não a interna a que deviam escutar. E sob o evangelho
o mandamento de Cristo a Seus discípulos foi: «Ide por todo o mundo e
pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo»
(Mc 16:15,16), – crer, naturalmente, no evangelho que eles
proclamavam. A fé vem pelo ouvir. «Como crerão naquele de quem não
ouviram? E como ouvirão se não há quem pregue?» (Rm 10:14). Deus,
diz-nos, decidiu salvar os homens «mediante a loucura da pregação»
(1Co 1:21). É a pregação da cruz que declara o poder de Deus (vv. 18). É
o evangelho, a revelação externa do plano de salvação por meio de Jesus
Cristo, diz em Rm 1:16, que «é o poder de Deus para a salvação de todo
aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça
de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo
viverá por fé». Esta ideia passa através de todo o Novo Testamento.
Cristo comissionou os Seus discípulos para a pregação do Evangelho.
Afirmou que esta era a maneira em que os homens deviam ser salvos.
Por isso, eles saíram pregando por toda parte. Esta pregação tenta
continuar até o fim do mundo. E por isso, deu-se provisão para a
continuação do ministério. Deviam ser escolhidos homens chamados e
qualificados pelo Espírito, e separados para esta obra por chamada
divina. E foi desta maneira, até agora, que o mundo foi convertido. Em
nenhum caso encontramos os apóstolos chamando o povo, nem a judeus
nem a gentios, a que olhassem dentro deles para ouvir a Palavra interior.
Deviam escutar a Palavra exterior; crer no que ouviam, e orar que o
Espírito Santo os capacitasse para compreender, receber e obedecer o
que se lhes dava assim a conhecer de maneira externa.

O misticismo é contrário aos fatos da experiência


3. A doutrina em questão não é menos contrária aos fatos que a
Escritura. A doutrina ensina que mediante a revelação interior do
Espírito dá-se a todo homem conhecimento salvador da verdade e do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 154
dever. Mas toda a experiência demonstra que sem a Palavra escrita, os
homens em todas partes e em qualquer época são ignorantes das coisas
divinas, – sem Deus, sem Cristo e sem esperança no mundo. O sol não é
mais obviamente a origem da luz, que a Bíblia é a origem do
conhecimento divino. A ausência de um é claramente indicativa da
ausência do outro. É incrível que o Espírito Santo dê a todo homem uma
revelação interior da verdade salvadora se não se manifestam por
nenhum lugar os efeitos apropriados de tal revelação. Deve-se lembrar
que sem o conhecimento de Deus não pode haver religião. Sem um
conhecimento correto do Ser Supremo não pode haver afetos retos para
com Ele. Sem o conhecimento de Cristo, não pode haver fé nEle. Sem
verdade não pode haver santidade, como tampouco pode haver visão sem
luz. E como não se encontra um conhecimento verdadeiro de Deus, nem
santidade de coração e de vida, onde não se conhecem as Escrituras, está
claro que são as Escrituras, por ordenança de Deus, a única fonte que
temos de conhecimento salvador e santificador, e não uma luz interior
comum a todos os homens.
Há um sentido em que, como creem todos os cristãos evangélicos, o
Espírito é dado a todo homem. Ele está presente com cada mente
humana, impulsionando ao bem e reprimindo o mal. É a isso que se deve
a ordem no mundo e o que tenha de moralidade. Sem esta «graça
comum», ou influência geral do Espírito, não haveria diferença entre
nosso mundo e o inferno; porque o inferno é um lugar ou estado em que
os homens são finalmente abandonados por Deus. De uma maneira
similar, há uma eficiência providencial geral de Deus pela qual Ele
coopera com segundas causas, nas produções dos maravilhosos
fenômenos do mundo externo. Sem esta cooperação – a contínua
condução da mente – o cosmos se transformaria em caos. Mas o fato de
que esta eficiência providencial de Deus é universal não constitui prova
de que Ele opere milagres em todas as partes, de que constantemente
opere sem a intervenção de segundas causas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 155
Assim também o fato de que o Espírito esteja presente com cada
mente humana, e que constantemente ponha em vigor a verdade presente
àquela mente, não constitui prova de que Ele dê revelações imediatas,
sobrenaturais, a cada ser humano. O fato é que não podemos ver sem luz.
Temos o sol para nos dar luz. É vão dizer que todo homem tem uma luz
interior suficiente para guiá-lo sem o sol. Os fatos são contra a teoria.

Não há critério para julgar da fonte das sugestões interiores


4. Uma quarta objeção à doutrina mística é que não há critério pelo
qual ninguém possa julgar estes impulsos interiores ou revelações, e
determinar quais sejam do Espírito de Deus, e quais de seu próprio
coração ou de Satanás, que com frequência aparece e age como anjo de
luz. Esta objeção, Barclay diz, “indica muita ignorância nos opositores. .
. . . Porque uma coisa é declarar que a revelação verdadeira e indubitável
do Espírito do Deus é certa e infalível; e outra coisa declarar que esta ou
aquela pessoa ou as pessoas particulares são conduzidas infalivelmente
por esta revelação em que eles falam ou escrevem, porque eles declaram
a si mesmos estar tão conduzidos pela revelação interior e imediata do
Espírito.” 57 Admite-se que existe um testemunho interior e infalível do
Espírito nos corações de crentes para as verdades objetivamente revelado
nas Escrituras. Admite-se, também, que existem revelações imediatas de
fato à mente, como no caso dos profetas e apóstolos, e que estas
revelações autenticam a si mesmas, ou são acompanhadas por uma
garantia infalível que vem de Deus. Mas estas confissões não invalidam
a objeção como acima declarada. Dá-se por sentado que um homem que
recebe uma revelação verdadeira sabe que é de Deus; como pode o
homem que recebe uma revelação falsa saber que não é de Deus? Muitos
homens creem honestamente em si mesmos que são inspirados, que estão
sob a influência de algum espírito do mal, — de si mesmos pode ser. A

57
Barclay’s Apology, p. 67.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 156
garantia quanto à certeza de condenação pode ser tão forte num caso
como no outro. Em um está bem fundamentado; no outro, é uma ilusão.
Uma convicção irresistível não é suficiente. Pode ser que dê
satisfação ao sujeito da mesma. Mas não pode nem satisfazer a outros
nem ser critério da verdade. Milhares estiveram e seguem estando
convencidos de que o falso é verdadeiro, e de que o errôneo é correto.
Portanto, dizer aos homens que busquem em seu interior para achar uma
guia autoritativa, e que confiem em suas convicções irresistíveis, é dar-
lhes uma guia que os conduzirá à destruição. Quando Deus realmente faz
revelações à alma, não só dá uma certeza infalível de que a revelação é
divina, mas também a acompanha de evidência satisfatória para outros
assim como para seu receptor de que é de Deus. Todas as suas
revelações tiveram o selo tanto da evidência interna como da externa. E
quando o crente é assegurado, pelo testemunho do Espírito, das verdades
da Escritura, tem só uma nova classe de evidência do que já está
autenticado além de toda contradição racional. Nosso mesmo bendito
Senhor disse aos judeus: «Se não faço as obras de meu Pai, não me
acrediteis; mas, se faço, e não me credes, crede nas obras» (Jo 10:37,38).
Inclusive chega a tão longe para dizer: «Se eu não tivesse feito entre eles
tais obras, quais nenhum outro fez, pecado não teriam» (Jo 15:24). O
ensino interior e testemunho do Espírito são verdades escriturísticas, e de
um valor inestimável. Mas é ruinoso pô-las em lugar da Palavra escrita
divinamente autenticada.

A doutrina é produtora de males


5. Nosso Senhor diz dos homens: «Por seus frutos os conhecereis».
O misticismo sempre foi produtor de males. Conduziu ao descuido ou
minou as instituições divinas – da Igreja, do ministério, dos sacramentos,
do Dia do Senhor, e das Escrituras. A história demonstra também que
levou aos maiores excessos e males sociais. A Sociedade dos Amigos
escapou em boa medida destes males, mas isso se deveu a uma feliz
inconsistência. Porque embora ensinem que as revelações interiores do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 157
Espírito apresentam o «objeto formal» da fé; que são claras e certas,
forçando «o entendimento bem disposto a assentir, impulsionando-o a
isso de uma maneira irresistível»; que são a fonte primária, imediata e
principal do conhecimento divino; que não devem «ficar submetidas ao
exame nem do testemunho externo das Escrituras nem da razão natural
do homem, como se fossem uma regra mais nobre, ou pedra de toque», 58
entretanto ensinam também que nada que não esteja contido nas
Escrituras pode ser um artigo de fé; que estamos obrigados a crer tudo o
que a Bíblia ensina; que justamente contrário a seus ensinos deve ser
rejeitado como «um engano do diabo», sem importar de que fonte venha,
e, que as Escrituras são o juiz das controvérsias entre os cristãos; e
assim, como sociedade, foram preservados dos excessos nos quais
geralmente têm caído os místicos. Entretanto, o princípio místico de
revelação imediata e objetiva da verdade a cada homem, como sua regra
principal e primária de fé e de prática, operou nos Amigos seu fruto
legítimo, quanto a conduzi-lo a um descuido relativo das Escrituras e das
ordenanças da Igreja.

58
Barclay’s, Second Proposition.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 158
CAPÍTULO V
A DOUTRINA CATÓLICA ROMANA A RESPEITO DA
REGRA DA FÉ

§ 1. Declaração da doutrina

1. OS ROMANISTAS rejeitam a doutrina dos racionalistas que


fazem da razão humana quer a fonte, quer a norma da verdade religiosa.
É um de seus princípios que a fé é meramente humana quando seu objeto
ou base são humanos. Para que a fé seja divina, tem que ter uma verdade
revelada sobrenaturalmente como seu objeto, e a evidência sobre a qual
descansa deve ser o testemunho sobrenatural de Deus.
2. Rejeitam a doutrina mística de que a verdade divina é revelada a
cada homem pelo Espírito. Admitem uma revelação objetiva,
sobrenatural.
3. Mantêm, entretanto, que esta revelação está em parte escrita e em
parte não está escrita; isto é: a regra de fé inclui ao mesmo tempo a
Escritura e a tradição. Além disso, como o povo não pode conhecer com
certeza que livros são de origem divina e, por isso, com direito a um
lugar no cânon; e, como o povo é incompetente para decidir a respeito do
sentido das Escrituras, ou quais entre a multidão de doutrinas e usos
tradicionais são os divinos e quais são humanos, Deus fez da Igreja uma
mestra infalível mediante a qual todos estes pontos ficam decididos,
sendo que o seu testemunho é a base próxima e suficiente de fé para o
povo.
Assim que a doutrina romanista a respeito da Regra da Fé difere da
dos protestantes, apresenta os seguintes pontos a considerar: Primeiro: A
doutrina dos romanistas a respeito das Escrituras. Segundo: A doutrina
dos mesmos a respeito da tradição. Terceiro: A doutrina dos mesmos a
respeito do ofício e autoridade da Igreja como mestra.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 159
§ 2. A doutrina Católica Romana a respeito das Escrituras

A respeito desta questão os romanistas concordam com os


protestantes (1.) no ensino da inspiração plenária e conseguinte
autoridade infalível das Sagradas Escrituras. Acerca destes escritos diz o
Concílio do Trento que Deus é seu autor, e que foram escritos por ditado
do Espírito Santo («Spiritu sancto dictante»). (2.) Concordam conosco
em receber no cânon sagrado todos os livros que consideramos como de
autoridade divina.
Os romanistas diferem dos protestantes a respeito das Escrituras:
1. No fato de que recebem no cânon certos livros que os
protestantes não admitem como inspirados: Tobias, Judite, Siraque,
partes de Ester, Sabedoria de Salomão, Primeiro, Segundo e Terceiro
livro dos Macabeus (o Terceiro Livro dos Macabeus, entretanto, não está
incluído na Vulgata), Baruque, o Hino dos Três Meninos, Susana, e Bel
e o Dragão. Estes livros não são todos incluídos por seu nome na lista
dada pelo Concílio do Trento.
Vários deles entram a fazer parte dos livros ali enumerados. Assim,
o Hino dos Três Meninos, Susana, e Bel e o Dragão aparecem como
partes do livro de Daniel. Alguns teólogos modernos da Igreja de Roma
se referem a todos os livros apócrifos como «o Segundo Cânon», e
admitem que não têm a mesma autoridade que os pertencentes ao
denominado Primeiro Cânon. 59 Entretanto, o Concílio do Trento não faz
tal distinção.

As Escrituras são incompletas


2. Um segundo ponto de diferença é que os romanistas negam que
as Sagradas Escrituras sejam completas, diferente dos protestantes, que
afirmam que são. Isto é, os protestantes mantêm que todas as revelações

59
Veja-se B. Lamy, Apparatus Bibl., lib. ii c. 5. Jahn, Einleitung, Th. L §29; 2a. ed., Viena 1802, pág.
132. Möhler, Symbolik.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 160
sobrenaturais existentes dadas por Deus, que constituem a regra de fé
para sua Igreja, estão contidas em Sua palavra escrita. Os romanistas,
pelo contrário, mantêm que algumas doutrinas que todos os cristãos
estão obrigados a crer só estão reveladas de maneira imperfeita nas
Escrituras; que outras estão só insinuadas, e que algumas não aparecem
nelas absolutamente.
O prelúdio para o Catecismo Romano (Pergunta 12) diz: “Omnis
doctrinæ ratio, quæ fidelibus tradenda sit, verbo Dei continetur, quod in
scripturam traditionesque distributum est.” Belarmino 60 diz
expressamente: “Nos asserimus, in Scripturis non contineri expressè
totam doctrinam necessariam, sive de fide sive de moribus; et proinde
praeter verbum Dei scriptum requiri etiam verbum Dei non-scriptum,
i.e., divinas et apostolicas traditiones.” Neste ponto todos os teólogos
romanistas são unânimes; mas nunca foi decidido de maneira autorizada
pela Igreja de Roma quais são as doutrinas assim imperfeitamente
contidas nas Escrituras, ou só implicadas, ou totalmente omitidas. Os
teólogos desta Igreja atribuem a uma ou outra das seguintes classes, com
maior ou menor unanimidade, as seguintes doutrinas: (1.) O cânon da
Escritura. (2.) A inspiração dos escritores sagrados. (3.) A plena doutrina
da Trindade. (4.) A personalidade e divindade do Espírito Santo. (5.) O
batismo de crianças. (6.) A observância do domingo como o Sabbath
cristão. (7.) A tríplice ordem ministerial. (8.) O governo episcopal da
Igreja. (9.) A perpetuidade do apostolado. (10.) A graça das ordens. (11.)
A natureza sacrifical da Eucaristia. (12.) Os sete sacramentos. (13.) O
purgatório. Está no interesse dos que defendem a tradição desvalorizar as
Escrituras, e mostrar quanto perderia a Igreja se não tivesse outra fonte
de conhecimento divino exceto a palavra escrita. Neste assunto o autor
do N.º 85 dos Tratados de Oxford, quando fala até de doutrinas
essenciais, diz, 61 “Isto é uma coisa direta que elas estão nas próprias

60
De Verbo Dei, iv. 3, tom. i. p. 163, e. edit, Paris, 1608.
61
Págs. 34 e 35.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 161
Escrituras. A maravilha é que elas estão todas lá. Humanamente
julgando que eles não estariam lá senão por interposição de Deus; e,
portanto, visto que elas estão lá por uma classificação de acidente, não é
estranho que elas devem estar senão latente lá, e só indiretamente
produtível ali.” “A doutrina de evangelho,” diz o mesmo escritor, “não é
mais que indireta e secretamente registrado nas Escritura sob a
superfície.”
A tradição é sempre representada pelos romanistas como não só o
intérprete, mas também o complemento das Escrituras. A Bíblia,
portanto, segundo a Igreja de Roma, é incompleta. Não contém tudo o
que a igreja deve crer, nem as doutrinas que contém estão ali dadas a
conhecer de uma maneira plena ou clara.

A obscuridade das Escrituras


3. O terceiro ponto de diferença entre os romanistas e os
protestantes se relaciona com a perspicuidade das Escrituras, e com o
direito do juízo privado: Os protestantes mantêm que a Bíblia, ao estar
dirigida ao povo, é suficientemente perspícua para ser compreendida
pelo comum do povo, sob a condução do Espírito Santo; e que têm o
direito e o dever de esquadrinhar as Escrituras e a ver por si mesmos
qual seja seu verdadeiro sentido. Por sua vez, os romanistas ensinam que
as Escrituras são tão obscuras que precisam de um intérprete visível,
presente e infalível; e que o povo, sendo incompetente para compreendê-
las, está obrigada a crer em todas aquelas doutrinas que a Igreja, por
meio de seus órgãos oficiais, declare certas e divinas.
Neste assunto o Concílio do Trento (Sessão 4), diz: “Ad coërcenda
petulantia ingenia decernit (Synodus), ut nemo, suæ prudentiæ innixus in
rebus fidei et morum ad ædificationem doctrinæ Christiana pertinentium,
Sacram Scripturam ad suas sensus contorquens contra eum sensum,
quem tenuit et tenet sancta mater Ecclesia, cujus est judicare de vero
sensu et interpretatione Scripturarum Sanctarum, aut etiam contra
unanimem consensum patrum ipsam scripturam sacram interpretari
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 162
audeat, etiamsi hujus modi interpretationes nullo unquam tempore in
lucem edendæ forent. Qui contravenerint, per ordinarios declarentur et
poenis a jure statutis puniantur.” Belarmino 62 diz: “Non ignorabat Deus
multas in Ecclesia exorituras difficultates circa fidem, debuit igitur
judicem aliquem Ecclesiæ providere. At iste judex non potest esse
Scriptura, neque Spiritus revelans privatus, neque princeps secularis,
igitur princeps ecclesiasticus vel solus vel certe cum consilio et consensu
coepiscoporum.”
Desta postura da obcuridade das Escrituras segue que o uso do
volume sagrado pelas pessoas, é desalentado pela Igreja de Roma,
embora seu uso nunca fosse proibido por qualquer Conselho Geral. Tais
proibições, entretanto, foram repetidamente emitidas pelos Papas, como
Gregório VII, Inocêncio III, Clemente XI, e Pio IV, que fez a liberdade
para ler qualquer versão vernácula das Escrituras, dependente da
permissão do sacerdote. Existe, entretanto, muitos prelados e teólogos
Romanos que alentaram a leitura geral da Bíblia. O espírito da Igreja
latina e os efeitos de seu ensino, estão dolorosamente manifestados pelo
fato de que as Escrituras são praticamente inacessíveis para a missa das
pessoas em países estritamente católicos romanos.

A Vulgata Latina
4. O quarto ponto de diferença trata da autoridade devida à a
Vulgata Latina. Neste assunto o Concílio do Trento (Sessão 4), diz:
“Synodus considerans non parum utilitatis accedere posse Ecclesiæ Dei,
si ex omnibus Latinis editionibus quæ circumferentur, sacrorum
librorum, quænam pro authentica habenda sit, innotescat: statuit et
declarat, ut hæc ipsa vetus et vulgata editio, quæ longo tot seculorum usu
in ipsa Ecclesia probata est, in publicis lectionibus, disputationibus,
prædicationibus et expositionibus pro authentica habeatur et nemo illam
rejicere quovis prætextu audeat vel præsumat.” O significado deste

62
De Verbo Dei, iii. 9, tom. i. p. 151, d. ut sup.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 163
decreto é um assunto de contenda no meio dos próprios romanistas.
Alguns de seus teólogos mais modernos e liberais dizem que o Concílio
simplesmente tem a intenção de determinar qual no meio de várias
versões latinas deve-se usar no serviço da Igreja. Combatem que não se
desejava proibir a apelação às Escrituras originais, ou colocar a Vulgata
no meio deles em autoridade. Os mais antigos e estritos romanistas
afirmam que o Sínodo [o concílio do Trento] tinha a intenção de proibir
apelar às Escrituras hebraicas e gregas, e de fazer da Vulgata a
autoridade definitiva. A linguagem do Concílio parece favorecer esta
interpretação. A Vulgata devia ser usada não só para todos os propósitos
ordinários da instrução pública, mas em todas as discussões teológicas, e
em todas as obras de exegese.

§ 3. A tradição

A palavra tradição παράδοσις (parádosis) significa: (1.) A arte de


transmitir de um ao outro. (2.) A coisa entregue ou comunicada. No
Novo Testamento emprega-se (a.) De instruções entregues de uns aos
outros, sem referência ao modo de entrega, seja verbalmente ou por
escrito; como em 2Ts 2:15: «Guardai as tradições [parádosis] que vos
foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa»; e 2Ts 3:6:
«Que vos aparteis de todo irmão que ande desordenadamente e não
segundo a tradição que de nós recebestes». (b.) De instruções orais dos
pais transmitidas de geração em geração, mas não contidas nas
Escrituras, e entretanto consideradas como autoritativas. Neste sentido é
que nosso Senhor fala tão frequentemente das «tradições dos fariseus».
(c.) Em Gl 1:14, onde Paulo fala de seu zelo pelas tradições de seus pais,
pode ser que se incluam tanto as instruções escritas como as orais que
tinha recebido. Aquilo de que estava tão zelosos era todo o sistema do
judaísmo tal qual lhe tinham ensinado.
Na Igreja primitiva empregava-se a palavra neste sentido amplo.
Faziam-se constantes chamadas às «tradições», isto é, às instruções que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 164
tinham recebido as igrejas. Eram só algumas igrejas no princípio que
possuíam algumas das instruções escritas dos Apóstolos. Não foi senão
até o final do primeiro século que os escritos dos Evangelistas e dos
Apóstolos foram recolhidos e constituídos num cânon, ou regra de fé. E
quando os livros do Novo Testamento estiveram recolhidos, os pais
falavam deles como contendo as tradições, isto é, as instruções derivadas
de Cristo e de Seus apóstolos. Chamavam os Evangelhos «as tradições
evangélicas», e às Epístolas «as tradições apostólicas». Naquela era da
Igreja não se tinha chegado ainda a uma clara distinção entre a palavra
escrita e a não escrita. Mas ao ir surgindo controvérsias, e os lutadores de
ambos os lados de todas as controvérsias apelavam à «tradição», isto é,
ao que lhes foi ensinado, e ver-se que estas tradições diferiam, dizendo
uma igreja que seus mestres sempre tinham ensinado uma coisa, e outros
que os seus lhes tinham ensinado o contrário, sentiu-se que se devia
possuir uma regra comum e autoritativa. Por isso, os mais prudentes e
melhores dentre os pais insistiram em limitar-se à palavra escrita, sem
receber nada como de autoridade divina que não estivesse nela contida.
Mas nisto se deve admitir que não foram sempre consistentes. Sempre
que se tinha à disposição contra algum adversário a prescrição, o uso ou
a convicção baseados em evidências não escritas, não duvidavam em
aproveitá-lo ao máximo. Assim, durante aqueles primeiros séculos não
se estabeleceu de uma maneira tão clara a distinção entre Escritura e
tradição como foi o caso das controvérsias entre os romanistas e os
protestantes, e especialmente das decisões do Concílio de Trento.

A Doutrina Tridentina
O Concílio do Trento, e a Igreja Latina como um corpo, ensinam a
respeito disto: (1.) Que Cristo e Seus Apóstolos ensinaram muitas coisas
que não foram consignadas por escrito, isto é, não registradas nas
Sagradas Escrituras. (2.) Que estas instruções foram fielmente
transmitidas e preservadas na Igreja. (3.) Que constituem uma parte da
regra da fé para todos os crentes.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 165
Estes pormenores são incluídos nos extratos seguintes dos atos do
Concílio: “Synodus — perspiciens hanc veritatem et disciplinam
contineri in libris scriptis et sine scripto traditionibus, quæ ex ipsius
Christi ore ab apostolis acceptæ, aut ab ipsis apostolis, Spiritu Sancto
dictante, quasi per manus traditæ, ad nos usque pervenerunt;
orthodoxorum patrum exempla secuta, omnes libros tam Veteris quam
Novi Testamenti, cum utriusque unus Deus sit auctor, nec non
traditiones ipsas, tum ad fidem tum ad mores pertinentes, tanquam vel
ore tenus a Christo, vel a Spiritu Sancto dictatas, et continua successione
in Ecclesia Catholica conservatas, pari pietatis affectu et reverentia
suscipit et veneratur.” 63
Belarmino 64 divide as tradições em três classes: divinas, apostólicas
e eclesiásticas. “Divinæ dicuntur quæ acceptæ sunt ab ipso Christo
apostolos docente, et nusquam in divinis literis in veniuntur. . . . .
Apostolicæ traditiones proprie dicuntur illæ, quæ ab apostolis institutæ
sunt, non tamen sine assistentia Spiritus Sancti et nihilominus non extant
scriptæ in eorum epistolis. . . . . Ecclesiasticæ traditiones proprie
dicuntur consuetudines quædam antiquæ vel a prælatis vel a populis
inchoatæ, quæ paulatim tacito consensu populorum vim legis
obtinuerunt. Et quidem traditiones divinæ eandem vim habent, quam
divinae præcepta sive divina doctrina scripta in Evangeliis. Et similiter
apostolicæ traditiones non scriptæ eandem vim habent, quam apostolica,
traditiones scriptæ. . . . . Ecclesiasticæ autem traditiones eandem vim
habent, quam decreta et constitutiones ecclesiasticæ, scriptæ.”
Petrus à Soto, citado por Chemnitz 65 diz: “Infallibilis est regula et
catholica. Quacunque credit, tenet, et servat Romana Ecclesia, et in
Scripturis non habentur, illa ab apostolis esse tradita; item quarum
observationum initium, author et origo ignoretur, vel inveniri non potest,
illas extra omnem dubitationem ab apostolis tradita esse.”
63
Trent. Sess. IV.
64
De Verbo Dei, IV, 1.
65
Examen Concilii Tridentini, p. 85, edit. Frankfort, 1574.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 166
De tudo isto se depreende:
1. Que estas tradições se chamam não escritas porque não estão
contidas nas Escrituras. Em sua maior parte encontram-se agora escritas
nas obras dos Pais, decisões de Concílios, constituições eclesiásticas e
decretos dos Papas.
2. O ofício da tradição é comunicar um conhecimento das doutrinas,
preceitos e instituições que não se contêm nas Escrituras, e também para
servir como guia para compreender de maneira apropriada o que nelas
está escrito. Por isso, a tradição, na Igreja de Roma, é ao mesmo tempo
um suplemento e a interpretação da palavra escrita.
3. A autoridade da tradição é a mesma que a que pertence às
Escrituras. Ambas devem receber “pari pietatis affectu et reverentia.”
Ambas se derivam da mesma fonte, ambas são recebidas pelo mesmo
canal, e ambas são autenticadas pelos mesmas testemunhas. Esta
autoridade, não obstante, pertence só às tradições consideradas como
divinas ou apostólicas. As chamada eclesiásticas têm menor importância,
relacionadas com ritos e usos. Entretanto, também para estas últimas
afirma-se uma autoridade virtualmente divina, porquanto são mandadas
por uma igreja que afirma ter sido dotada por Cristo com plenos poderes
para ordenar ritos e cerimônias.
4. O critério mediante o qual distinguir entre as tradições
verdadeiras e as falsas é ou a antiguidade e a universalidade, ou o
testemunho da Igreja existente. Às vezes se apressa um, às vezes o outro.
O Concílio de Trento afirma o primeiro, e o próprio Belarmino e a maior
parte dos teólogos romanistas. Esta é a famosa regra estabelecida por
Vicente de Lerino no quinto século: «quod semper, quod ubique, quod
ab omnibus» [O que (foi crido) sempre, em todas partes, por todos].
Entretanto, em todas ocasiões o juízo último é a decisão da Igreja. Tudo
aquilo que a Igreja declare como parte da revelação que lhe foi
encomendada deve ser recebido como de autoridade divina, sob pena de
perdição.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 167
§ 4. O ofício da Igreja como Mestra

1. Os romanistas definem a Igreja como a companhia de pessoas


que professam a mesma fé, unidos na comunhão dos mesmos
sacramentos, sujeitos a pastores legítimos e especialmente ao Papa. Pela
primeira cláusula excluem da Igreja a todos os incrédulos e hereges; pela
segunda a todos os não batizados; pela terceira, a todos os não
submetidos a bispos que possuem sucessão canônica; e pela quarta a
todos os que não reconhecem o Bispo de Roma como a cabeça da Igreja
na terra. É esta sociedade externa, visível, assim constituída, que Deus
tem feito uma mestra autorizada e infalível.
2. A Igreja está qualificada para esta tarefa: primeiro, pela
comunicação de todas as revelações de Deus, escritas e não escritas; e
em segundo lugar, pela constante presença e guia do Espírito Santo,
preservando-a de todo erro em suas instruções. Neste ponto o “Roman
Catechism,” 66 diz: “Quemadmodum hæc una Ecclesia errare non potest
in fidei ac morum disciplina tradenda, cum a Spiritu Sancto gubernetur;
ita ceteras omnes, quæ sibi ecclesiæ nomen arrogant, ut quæ Diaboli
spiritu ducantur, in doctrinæ et morum perniciosissimis erroribus versari
necesse est.” E Belarmino, 67 “Nostra sententia est Ecclesiam absolute
non posse errare nec in rebus absolute necessariis nec in aliis, quæ
credenda vel facienda nobis proponit, sive habeantur expresse in
Scripturis, sive non.”
3. A Igreja, segundo estas declarações, é infalível só em questões de
fé e moralidade. Sua infalibilidade não se estende às questões da história,
da filosofia nem da ciência. Alguns teólogos quereriam inclusive limitar
a infalibilidade da Igreja a doutrinas essenciais. Mas a Igreja de Roma
não faz esta distinção, reconhecida por todos os protestantes, entre
doutrinas essenciais e não essenciais. Para os romanistas, é essencial ou

66
Catecismo Romano, parte I., cap. X, pergunta 15.
67
De Ecclesia Maitante, c. 14.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 168
necessário tudo aquilo que a Igreja pronuncia como parte da revelação de
Deus. Belarmino — para quem não existe nenhuma autoridade maior no
meio de teólogos Romanos — diz que a Igreja pode errar “Nec em rebus
absoluto necessariis Nec em aliis,” isto é, nem em coisas em sua própria
natureza necessária, nem naquelas que são necessárias quando
determinado e ordenado. Foi disputado no meio de romanistas, se a
Igreja for infalível em assuntos de fato como também em assuntos de
doutrina. Por fatos, nesta discussão, não são fatos significados de história
ou ciência, mas sim fatos envoltos em decisões doutrinais. Quando o
papa condenou certas proposições tomadas dos trabalhos de Jansenius,
seus discípulos tiveram que admitir que aquelas proposições eram
errôneas; mas eles negaram que eles eram contidos, no sentido
condenados, na escrita de seu mestre. A isto os jesuítas responderam,
que a infalibilidade da Igreja se estendia em tais casos tanto para os fatos
como sobre a doutrina. Isto os jansenitas negaram.

Os órgãos da infalibilidade da Igreja


4. Quanto aos órgãos da Igreja para seu ensino infalível, há duas
teorias, a Episcopal e a Papal, ou, como são designadas da parte de seus
principais defensores, a galicana e a ultramontana. Segundo os
primeiros, são os bispos em sua capacidade coletiva, como sucessores
oficiais dos Apóstolos, os que são infalíveis como mestres. Os bispos
individuais podem errar, o corpo ou colégio de bispos não pode errar.
Seja o que for que os bispos de qualquer época se unam em ensinar,
é, para aquela época, a regra da fé. Esta concorrência de juízo não tem
necessariamente que ser uma unanimidade plena. Tudo o que se precisa
é a maior parte, o juízo comum do episcopado. E a esta decisão os que
dissentem devem submeter-se. Este juízo geral pode ser pronunciado
num concílio que represente a toda a Igreja, ou de qualquer outra
maneira em que se indique satisfatoriamente o acordo. A aquiescência
nas decisões de um concílio embora seja provincial, ou do Papa, ou dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 169
vários bispos, cada um em sua própria diocese, ensinando a mesma
doutrina, é prova suficiente de consentimento.

A teoria Ultramontana
Segundo a teoria papal ou ultramontana, o papa é o órgão por meio
do que se pronuncia o juízo infalível da Igreja. Ele é o vigário de Cristo.
Não está sujeito a um concílio geral. Não lhe é demandado que consulte
com outros bispos antes de dar sua decisão. Esta infalibilidade não é
pessoal, mas sim oficial. Como homem, o papa pode ser imoral, herege
ou incrédulo; como Papa, quando fala ex-cátedra, é o órgão do Espírito
Santo. O sumo sacerdote entre os judeus podia estar errado quanto à fé,
ou ser de conduta imoral, mas quando consultava a Deus em sua
capacidade oficial, era o mero órgão da comunicação divina. Esta é, em
poucas palavras, a doutrina dos romanistas a respeito da Regra da Fé.
No recente Concílio Ecumênico, celebrado no Vaticano, a doutrina
Ultramontana foi aprovada depois de uma prolongada luta. Por isso, é
agora obrigatório para todos os romanistas crer que o papa é infalível
quando fala ex-cátedra.

§ 5. Exame das doutrinas romanistas

Têm sido escritos centenas de volumes na discussão dos vários


pontos incluídos na teoria antes enunciada. Só se pode dar uma visão
muito de passagem da controvérsia numa obra como esta. Naquilo em
que os romanistas diferem de nós a respeito do cânon das Escrituras, o
exame de suas opiniões pertence ao departamento da literatura bíblica. O
que trata de sua doutrina do incompleto e obscuro da palavra escrita, e a
conseguinte necessidade de um intérprete infalível e visível pode tratar-
se melhor sob o cabeçalho da doutrina protestante da Regra da Fé.
Os dois pontos a considerar agora são a Tradição e o papel da Igreja
como mestra. Estes temas estão tão inter-relacionados que é difícil
mantê-los separados. A tradição é o ensino da Igreja, e o ensino da igreja
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 170
é a tradição. Assim que estes temas não só estão intimamente ligados,
mas também estão geralmente incluídos sob o mesmo cabeçalho nos
Símbolos Católicos. Entretanto, são coisas distintas, e envolvem
princípios muito diferentes. Por isso, deveriam ser considerados
separadamente.

§ 6. Exame da doutrina da Igreja de Roma a respeito da


Tradição

A. Diferença entre Tradição e a Analogia da Fé.


1. A doutrina romanista dá tradição difere essencialmente dá
doutrina protestante dá analogia dá fé. Vos protestantes admitem que há
uma classe de tradição dentro dois próprios limite dá Sagrada Escritura.
Uma geração de escritores sagrados recebeu todo o corpo de fato
ensinado pelos que os precederam. Havia uma tradição de doutrina, um
usus loquendi [fraseologia], figuras tradicionais, tipos e símbolos. A
revelação de Deus em Sua palavra começa como uma fonte, e emana
como uma corrente contínua sempre aumentando de caudal. Somos
governados por esta tradição de fato que acontece de todo o sagrado
volume. Tudo é consistente. Uma parte não pode contradizer a outra.
Cada parte deve ser interpretada de maneira que dê a harmonia com o
todo. Isto só equivale a dizer que a Escritura tem que explicar a
Escritura.
2. Além disso, os protestantes admitem que assim como houve uma
tradição ininterrupta do proto-Evangelho até o final do Apocalipse, da
mesma maneira houve uma fonte de ensino tradicional emanando através
da Igreja Cristã desde o dia do Pentecostes até a atualidade.
Esta tradição é uma regra de fé no sentido de que nada contrário a
ela pode ser verdade. Os cristãos não se encontram isolados, cada um
deles sustentando seu próprio credo. Constituem um corpo, possuindo
um credo comum. A rejeição deste credo, ou de qualquer de suas partes,
é a rejeição da comunhão dos cristãos, incompatível com a comunhão
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 171
dos santos ou com a membresia no corpo de Cristo. Em outras palavras,
os protestantes admitem que há uma fé comum da Igreja, que ninguém
tem a liberdade de rejeitar, e que ninguém pode rejeitar ser cristão.
Reconhecem a autoridade desta fé comum por duas razões. Primeiro,
porque o fato que todos os leitores competentes de um livro plano vejam
que é seu significado deve ser o significado do mesmo. Segundo, porque
o Espírito Santo foi prometido para conduzir o povo de Deus ao
conhecimento da verdade, e por isso que aquilo em que eles, sob os
ensinos do Espírito, concordem em crer, deve ser a verdade. Há certas
doutrinas fixas entre os cristãos, como sucede com os judeus e os
maometanos, que já não são questões abertas. As doutrinas da Trindade,
da deidade e encarnação do Filho eterno de Deus; da personalidade e
deidade do Espírito Santo; da apostasia e pecaminosidade da raça
humana; as doutrinas da expiação do pecado por meio da morte de Cristo
e a salvação por meio de Seus méritos; da regeneração e santificação por
meio do Espírito Santo; do perdão dos pecados, da ressurreição do corpo,
e a vida eterna, sempre constituíram parte da fé de toda igreja
reconhecida, histórica, na terra, e não podem ser postas legitimamente
em dúvida por ninguém que pretenda ser cristão.
Alguns dos mais filosóficos dos teólogos romanistas quereriam
levar-nos a crer que isto é tudo o que significam por tradição. Insistem,
dizem eles, só na autoridade do consentimento comum. Assim Moehler,
Professor de Teologia em Munique, em seu “Symbolik, oder Darstellung
der Dogmatischen Gegensätze,” diz “ A Tradição, no sentido subjetivo
da palavra, é a fé comum, ou consciência da Igreja.” 68 “La palabra
siempre viva en los corazones de los creyentes.” 69 É, ele diz, o que
Eusébio quer dizer por ἐκκλησιαστικὸν φρόνημα; o que Vincent de
Lerins pretende por ecclesiastica intelligentia, e o Concílio de Trento por
universus ecelesicæ sensus. “No sentido objetivo da palavra,” Moehler

68
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 356.
69
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 357.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 172
diz que «A Tradição é a fé comum da Igreja tal como está apresentada
em testemunhos externos e históricos ao longo de todos os séculos».
«Neste último sentido», diz-nos, «é como se considera usualmente a
tradição quando se fala dela como guia à interpretação da regra da fé». 70
Ele admite que neste sentido «a Tradição não contém nada para além do
que é ensinado na Escritura; as duas são, em seu conteúdo, uma e a
mesma coisa». 71

B. Pontos de diferença entre a doutrina romanista e a dos


protestantes sobre o consentimento comum.

Os pontos de diferença entre a doutrina protestante a respeito da fé


comum da Igreja com relação à doutrina católico romana da tradição são:
Primeiro. Quando os protestantes falam do consentimento comum
dos cristãos, entendem como cristãos o verdadeiro povo de Deus. Os
romanistas, por sua vez, significam a companhia dos que professam a
verdadeira fé, e que estão sujeitos ao Papa de Roma. Há a maior das
diferenças possíveis entre a autoridade devida à fé comum de homens
santos, verdadeiramente regenerados, os templos do Espírito Santo, e a
devida ao que professa crer uma sociedade de cristãos com o nome de,
cuja grande maioria podem ser mundanos, imorais e irreligiosos.
Segundo. O consentimento comum pelos que defendem os
protestantes concerne só às doutrinas essenciais; isto é, às doutrinas que
concernem à própria natureza do cristianismo como religião, e que são
necessárias para sua existência subjetiva no coração, ou que se não
entram de maneira essencial na experiência religiosa dos crentes, estão
tão ligadas com doutrinas vitais que não admitem separação das mesmas.
Pelo contrário, os romanistas pretendem a autoridade da tradição para
todo tipo de doutrinas e preceitos, para ritos e cerimônias e instituições

70
Symbolik, oder Darstellung der Dogmatischen Gegensätze, pág. 358.
71
Ibid., pág. 373.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 173
eclesiásticas que não têm nada que ver com a vida da Igreja, e que estão
totalmente fora da esfera da condução prometida do Espírito. Nosso
Senhor, ao prometer o Espírito para conduzir o Seu povo ao
conhecimento das verdades necessárias à sua salvação, não prometeu
preservá-los de erro em questões subordinadas, nem lhes dar
conhecimento sobrenatural a respeito da organização da igreja, do
número dos sacramentos nem do poder dos bispos. Por isso, as duas
teorias diferem não só quanto à classe de pessoas que são guiadas pelo
Espírito, mas também quanto à classe de questões a respeito das quais se
promete a guia.
Terceiro. Uma diferença ainda mais importante é que a fé comum
da Igreja pela qual disputam os protestantes, é a fé em doutrinas
claramente reveladas na Escritura. Não vai para além destas doutrinas.
Deve toda sua autoridade ao fato de que é uma compreensão comum da
palavra escrita, que alcança e na qual persevera sob aquele ensino do
Espírito que assegura aos crentes um conhecimento competente do plano
da salvação que nela se revela. Pelo contrário, para os romanistas a
tradição é algo totalmente independente das Escrituras. Pretendem um
consentimento comum em doutrinas não contidas na Palavra de Deus, ou
que não podem ser sustentadas com base na mesma.
Quarto. Os protestantes não consideram o «consentimento comum»
nem como informador nem como base da fé. Para eles a palavra escrita é
a única fonte de conhecimento do que Deus revelou para nossa salvação,
e seu testemunho na mesma é a única base de nossa fé. Pelo contrário,
para os romanistas a tradição é não só um informante que tem que ser
crido, mas também uma testemunha com base em cujo testemunho deve-
se exercer a fé. É uma coisa dizer que o fato de que todo o verdadeiro
povo de Deus, sob a condução do Espírito, cria que certas doutrinas se
ensinam na Escritura, constitui um argumento irrebatível de que
realmente estão nela ensinadas, e outra coisa muito diferente é dizer que
devido ao fato de que uma sociedade externa, composta de todo tipo de
pessoas e às quais não se deu promessa de condução divina, concorde em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 174
manter certas doutrinas, que por isso estamos obrigados a receber estas
doutrinas como parte da revelação de Deus.

C. Tradição e Desenvolvimento

A doutrina romanista da tradição não deve confundir-se com a


moderna doutrina do desenvolvimento. Todos os protestantes admitem
que houve, num sentido, um desenvolvimento ininterrupto da teologia na
Igreja, desde a era apostólica até o presente. Todos os fatos, verdades,
doutrinas e princípios que entram na teologia cristã encontram-se na
Bíblia. Estão ali de uma maneira tão plena e clara numa época como em
outra: no princípio como agora. Não se tem feito adição alguma a seu
número, e não se deu explicação nova alguma de sua natureza ou
relações. O mesmo é verdade dos fatos da natureza. São agora o que eles
foram desde o início. Eles são, entretanto, muito melhor conhecidos, e
mais claramente entendidos agora que eles eram mil anos atrás. O
mecanismo dos céus eram os mesmos nos dias do Pitágoras como o eram
naqueles de La Place; e ainda a astronomia posterior era imensamente
adiantada que a antiga. A modulação era efetuada por um progresso
ininterrupto e gradual. O mesmo progresso sucedeu em conhecimento
teológico. Cada crente está consciente de tal desenvolvimento em sua
própria experiência. Quando era menino, pensava como menino. Ao
crescer em anos, cresceu no conhecimento da Bíblia. Aumentou não só
na extensão, mas também em clareza, ordem e harmonia de seu
conhecimento. Isto é igual em verdade da Igreja de maneira coletiva que
do cristão individual. E em primeiro lugar é natural, se não inevitável,
que assim seja. A Bíblia, embora tão clara e singela em seu ensino, de
maneira que aquele que corre pode ler e aprender o suficiente para obter
sua salvação, está cheia dos tesouros da sabedoria e do conhecimento de
Deus; cheia de τὰ βάθη τοῦ θεοῦ [ta bathe tou theou, o profundo de
Deus], das mais profundas verdades a respeito de todos os grandes
problemas que deixaram perplexo o intelecto humano desde o começo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 175
Estas verdades não são enunciadas de maneira sistemática, mas sim
espalhadas, por assim dizer, pelas páginas sagradas, assim como os fatos
da ciência estão espalhados pela face da natureza, ou ocultos em suas
profundidades. Cada homem sabe que há indizivelmente mais na Bíblia
que o que pôde aprender, assim como todo homem de ciência sabe que
há na natureza muitíssimo mais que o que se tem descoberto ou
compreende.
Permanece a razão que tal livro, sendo o assunto de estudo devoto e
laborioso, século após século, por homens capazes e fiéis, deveria ser
cada vez mais entendido. E, como em assuntos de ciência, embora uma
teoria falsa após outra, fundados em princípios errados ou numa indução
defeituosa de fatos, tenha passado, não obstante algum progresso real é
feito, e o solo que uma vez ganhou nunca está perdido, então nós
devíamos esperar que seja com o estudo da Bíblia. Falsas posturas,
inferências falsas, equívocos, ignorando alguns fatos, e interpretações
errôneas, poderiam ser esperadas, em sucessão infinita, mas não obstante
um progresso fixo é realizado no conhecimento do que a Bíblia ensina. E
nós poderíamos também esperar isto aqui, também, o solo que uma vez
certamente ganhou novamente não seria perdido.
Mas, em segundo lugar, o que é assim natural e razoável em si
mesmo é um fato historicamente patente. A Igreja avançou assim em
conhecimento teológico. A diferença entre as descrições confusas e
discordantes dos primeiros pais a respeito de todos os temas relacionados
com as doutrinas da Trindade e da Pessoa de Cristo, e a clareza, precisão
e consistência das posturas apresentadas após séculos de discussão, e a
declaração destas doutrinas pelos Concílios de Calcedônia e de
Constantinopla, é tão grande quase como a que há entre o caos e o
cosmos. E este terreno nunca se perdeu. O mesmo sucede com as
doutrinas do pecado e da graça. Antes da prolongada discussão destes
temas no período agostiniano, prevalecia a maior confusão e contradição
nos ensinamentos da guia da Igreja; durante estas discussões, as posturas
da Igreja se esclareceriam e estabilizariam. Quase não há um princípio
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 176
de doutrina a respeito da queda do homem, da natureza do pecado e da
culpa, da incapacidade, da necessidade da influência do Espírito, etc.,
etc., que entra atualmente na fé dos cristãos evangélicos, que não fosse
então claramente formulada e sancionada de maneira autoritativa pela
Igreja. Da mesma forma, antes da Reforma existia uma confusão similar
a respeito da grande doutrina da justificação. Não havia nenhuma linha
clara de discriminação entre ela e a santificação. Na realidade, durante a
Idade Média, e entre os mais devotos dos Escolásticos, a ideia da culpa
ficava submersa na ideia geral de pecado, e o pecado era considerado
como uma mera contaminação moral. O grande objetivo era alcançar a
santidade. Então, o perdão seguiria como questão normal. A doutrina
apostólica, paulina, profundamente escriturística, de que não pode haver
santidade até que o pecado tenha sido expiado, que o perdão, a
justificação e a reconciliação devem preceder à santificação, nunca foi
claramente vista. Esta foi a grande ação que a Igreja aprendeu na época
da Reforma, e que nunca esqueceu desde então. É verdade então, como
um fato histórico, que a Igreja avançou. Compreende as grandes
doutrinas da teologia, da antropologia e da soteriologia muito melhor
agora que o que se compreendiam na era pós-apostólica anterior da
Igreja.

A moderna teoria do desenvolvimento


Muito diferente da postura anterior apresentada é a teoria moderna
da revelação orgânica da Igreja. Esta teoria moderna está declaradamente
fundada nos princípios panteístas de Schelling e Hegel. Com eles o
universo é manifestação do próprio eu e evolução do Espírito absoluto.
O Dr. Schaff 72 diz, que esta teoria “deixou uma impressão na ciência
alemã que nunca pode ser apagada; e contribuiu mais que qualquer outra
influência para difundir uma concepção clara do organismo interior da

72
What is Church History? p. 75.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 177
73
história.” Em sua obra sobre os “Principles of Protestantism,” o Dr.
Schaff diz que Schelling e Hegel ensinaram o mundo a reconhecer na
história “o sentido de abertura de pensamentos eternos, um avançar
sempre da revelação racional da ideia de humanidade, e suas relações
com Deus.” Esta teoria de revelação histórica foi adotada, e parcialmente
cristianizada por Schleiermacher, de quem passou ao Dr. Schaff, como
demonstrado em seu trabalho acima citado, como também para muitos
outros homens igualmente devotos e excelentes. A base desta teoria
modificada é realismo. A humanidade é uma vida genérica, uma
substância inteligente. Aquela vida ficou culpada e contaminada em
Adão. Dele passou por um processo de revelação natural, orgânica (a
vida e as próprias substância numéricas) para toda sua posteridade que,
portanto, são culpadas e contaminadas. O Filho de Deus assumiu esta
vida genérica em união com Sua natureza divina, e assim isto o curou e
levantou um poder ou ordem mais alta. Ele se torna um novo ponto de
partida. A origem desta nova forma de vida nEle é sobrenatural. A
constituição de Sua pessoa era um milagre. Mas dEle esta vida é
comunicada por um processo natural de revelação para a Igreja. Seus
membros são portadores desta nova vida genérica. É, entretanto, um
germe. Tudo o que vive cresce. “Qualquer coisa feita está morta.” Esta
nova vida é cristianismo. O cristianismo não é uma forma de doutrina
objetivamente revelada nas Escrituras.
A teologia cristã não é o conhecimento, ou exibição sistemática do
que a Bíblia ensina. É a interpretação desta vida interior. A vida
intelectual de um filho expressa propriamente de uma maneira, de um
menino de outro modo, e de um homem de outra maneira. Em cada fase
de seu progresso o homem tem posturas, sentimentos, e modos de
pensar, apropriados para aquela fase. Não quadraria para um homem ter
as mesmas posturas e pensamentos que o filho. Mas os posteriores são da
mesma maneira verdade, como direito, e tão adequado para o filho,

73
Página 150.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 178
como aqueles do homem para o homem. É deste modo com a Igreja.
Passa por estas fases de infância, juventude, e humanidade, por um
processo regular. Durante os primeiros séculos a Igreja teve a falta de
distinção, incerteza, e exagero de posturas e doutrinas, pertencendo a um
período de infância. Na Idade Média teve uma forma mais alta. Na
Reforma adiantou para a entrada em outra fase. A forma assumida pelo
cristianismo durante o período medieval, era para aquele período o
verdadeiro e adequado, mas não a forma permanente. Nós ainda não
alcançamos aquela forma a respeito da doutrina. Isso será alcançado na
Igreja do futuro.

O desenvolvimento conforme sustentam alguns romanistas.


Há ainda outra forma da doutrina do desenvolvimento. Não assume
a doutrina mística da presença da substância de Cristo, na alma, a
revelação da qual descobre sua iluminação no conhecimento da verdade,
e finalmente sua redenção completa. Admite que o cristianismo é ou
inclui um sistema de doutrina, e que estas doutrinas estão nas Escrituras;
mas mantém que muitas delas estão ali só em seus rudimentos. Sob a
constante guia e ensino do Espírito, a Igreja chega a compreender tudo o
que estes rudimentos contêm, e os expande em sua plenitude. Assim, a
Ceia do Senhor foi expandida na doutrina da transubstanciação e do
sacrifício da missa; a unção dos doentes, no sacramento da extrema-
unção; as normas de disciplina nos sacramentos da penitência, de
satisfações, de indulgências, do purgatório, e missas e orações pelos
mortos; a proeminência de Pedro, na supremacia do Papa. O Antigo
Testamento contém o germe de todas as doutrinas desenvolvidas no
Novo; e assim o Novo Testamento contém os germes de todas as
doutrinas desenvolvidas, sob a guia do Espírito, na teologia da Igreja
Medieval.
Embora foram feitas tentativas por alguns romanistas e anglicanos
para solucionar a doutrina da tradição numa ou noutras destas teorias de
desenvolvimento, são essencialmente diferentes. O único ponto de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 179
analogia entre elas é que, em ambos os casos, o pouco torna-se muito. A
tradição fez contribuições à fé e instituições da Igreja cristã; e
desenvolvimento (nas duas formas posteriores da doutrina acima
mencionado) subministra uma expansão semelhante.

A verdadeira questão
O verdadeiro estado da questão, a respeito deste tema, na
controvérsia entre romanistas e protestantes, não é (1) Se o Espírito de
Deus leva os verdadeiros crentes ao conhecimento da verdade; nem (2)
se verdadeiros cristãos concordam em todas as questões essenciais
quanto à verdade e ao dever; nem (3) se ninguém pode dissentir com
segurança ou inocentemente desta fé comum do povo de Deus; mas sim
(4) se à parte da revelação contida na Bíblia há outra revelação
suplementar e adicional que foi transmitida fora das Escrituras, pela
tradição. Em outras palavras, se há doutrinas, instituições e ordenanças
que não estejam justificadas nas Escrituras, e que os cristãos devamos
receber e obedecer com base na autoridade do que se chama
consentimento comum. Isto é o que os romanistas afirmam e os
protestantes negam.

D. Argumentos contra a doutrina da Tradição

Os principais argumentos contra a doutrina romanista a respeito


desta questão são:
1. Envolve uma impossibilidade natural. Naturalmente, é verdade
que Cristo e Seus Apóstolos disseram e fizeram muito que não está
registrado nas Escrituras; e é mais adiante admitido que se nós
tivéssemos qualquer conhecimento certo de tais instruções não
registradas, seriam de autoridade igual com o que está escrito nas
Escrituras. Mas os protestantes mantêm que isso não estava designado
para constituir uma parte da regra de fé permanente para a Igreja.
Dirigiam-se aos homens daquela geração.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 180
As chuvas que caíram mil anos atrás, regou a Terra e produziram
frutos para os homens que então viviam. Elas não podem agora ser
reunidas e estar disponíveis para nós. Elas não constituíram um lago para
a provisão de gerações futuras. De certa forma os ensinos não registrados
de Cristo e Seus apóstolos fizeram seu trabalho. Não estavam destinadas
para nossa instrução. É tão impossível aprender o que eram como
recolher as folhas que adornavam e enriqueciam a terra quando Cristo
andava pelo jardim do Getsêmani. Esta impossibilidade surge das
limitações de nossa natureza, assim como de sua corrupção inerente
devido à queda. O homem não tem a clareza de percepção, a retenção de
cor nem o poder de descrição que lhe permita (sem ajuda sobrenatural)
dar um relato fidedigno de um discurso ouvido uma vez, ao cabo de uns
anos ou inclusive meses depois de tê-lo ouvido. E que isto tenha tido
lugar de mês em mês durante milhares de anos é uma impossibilidade.
Se a isto se acrescenta a dificuldade na via desta transmissão oral que
surge da cegueira dos homens às coisas do Espírito, impedindo que
compreendam a que ouvem, e da disposição a perverter e deformar a
verdade para adaptar o a seus próprios preconceitos e propósitos, tem-se
que reconhecer que a tradição não pode ser uma fonte fidedigna de
conhecimento da verdade religiosa. Isto é universalmente reconhecido e
com base nisso se age, exceto da parte dos romanistas. Ninguém
pretende determinar o que é que ensinaram Lutero e Calvino, Latimer e
Cranmer, exceto por registros de escritos contemporâneos. E muito
menos pretenderá qualquer pessoa em seu são juízo saber o que é que
ensinaram Moisés e os profetas, exceto por seus próprios escritos.
Os romanistas admitem a força desta objeção. Admitem que a
tradição não seria uma informadora fidedigna do que ensinaram Cristo e
os apóstolos, sem a intervenção sobrenatural de Deus. A tradição é digna
de confiança não porque venha através das mãos de homens infalíveis,
mas porque vem através de uma Igreja guiada infalivelmente. Mas isto é
uma petição de princípio. É mesclar a autoridade da tradição com a
autoridade da Igreja. E não há necessidade da primeira se se admitir a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 181
segunda. Os romanistas, entretanto, mantêm estas duas coisas distintas.
Dizem que se os Evangelhos nunca tinha sido escrito, conheceriam por
tradição histórica os fatos da vida do Cristo; e que se Seus discursos e as
epístolas dos apóstolos nunca tinham sido juntados e sido registrados,
iriam conhecer pela mesma maneira as verdades que eles contêm. Eles
admitem, entretanto, que isto não podia ser sem uma intervenção divina
especial.

Não há promessa de intervenção divina


2. A segunda objeção dos protestantes a esta teoria é que é
antifilosófico e irreligioso supor uma intervenção sobrenatural da parte
de Deus sem promessa e sem prova disso, meramente para ganhar um
argumento.
Nosso Senhor prometeu preservar a Sua Igreja de uma apostasia
fatal; prometeu enviar a Seu Espírito para que permanecesse com Seu
povo, para lhes ensinar; prometeu que Ele estaria com eles até o fim do
mundo. Mas estas promessas não foram dadas a uma organização
externa, visível de cristãos professantes, fora grega ou latina; nem
implicavam que tal Igreja seria preservada de todo erro em fé ou prática;
e muito menos implica que as instruções não registradas pelo ditado do
Espírito iriam ficar preservadas e transmitidas de geração em geração.
Não há tais promessas na Palavra de Deus, e como seria impossível tal
preservação e transmissão sem uma interposição divina, sobrenatural, a
tradição não pode ser uma informante fidedigna do que Cristo ensina.

Não há critério
3. Mais uma vez os romanistas admitem que muitas falsas tradições
prevaleceram em diferentes épocas e partes da Igreja. Os que as recebem
estão confiantes em sua genuinidade, e são zelosos de sustentá-las.
Como se pode traçar a divisória entre o verdadeiro e o falso? Por meio
de que critério pode alguém distinguir entre um e outro? Os protestantes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 182
dizem que não há tal critério, e por isso que, se se admite a autoridade da
tradição, a Igreja fica exposta a uma inundação de superstição e erro.
Este é o terceiro argumento contra a doutrina romanista a respeito
desta questão. Mas os romanistas dizem que têm um seguro critério na
antiguidade e na universalidade. Formularam sua regra de juízo com o
famoso dito de Vicente de Lerino: « quod semper, quod ubique, quod ab
omnibus» [O que (foi crido) sempre, em todas partes, por todos].

O consentimento comum não é critério


A isto os protestantes replicam: Primeiro, admitem a autoridade do
consentimento comum entre os verdadeiros cristãos quanto ao que se
ensina nas Escrituras. Quanto ao que todo o verdadeiro povo de Deus
concorda em sua interpretação da Bíblia, reconhecemo-nos obrigados a
nos submeter. Mas este consentimento tem autoridade só (a) Até onde
seja o consentimento de verdadeiros crentes; (b) Só até onde se refira ao
sentido da palavra escrita; (c) Só até onde tenha que ver com as doutrinas
práticas, experimentais ou essenciais do cristianismo. O consentimento a
respeito de questões estranhas à Bíblia, se não tratarem do fundamento
de nossa fé, não é de peso decisivo. O mundo cristão inteiro, sem uma
voz discordante, tem crido por muito tempo que a Bíblia ensinou que o
sol gira ao redor da Terra. Ninguém agora crê nisto.
Segundo: Não se pode alegar o consentimento comum quanto à
doutrina cristã exceto dentro de alguns estreitos limites. É só com base
na gratuita e monstruosa hipótese de que os romanistas são os únicos
cristãos a quem se pode dar a mais mínima plausibilidade à pretensão do
consentimento comum. O argumento, na realidade, reduz-se a isto: A
Igreja de Roma recebe certas doutrinas com base na autoridade da
tradição. A Igreja de Roma inclui a todos os verdadeiros cristãos. Por
isso, pode-se afirmar o consentimento de todos os cristãos em favor
destas doutrinas.
Mas, em terceiro lugar, ainda supondo que a Igreja de Roma seja
toda a Igreja, e admitindo que a Igreja seja unânime em manter certas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 183
doutrinas, isto não é prova de que a Igreja sempre as tenha sustentado. A
regra requer que uma doutrina seja sustentada não só ab omnibus [por
todos], mas também semper [sempre]. Entretanto, é um fato histórico
que todas as doutrinas peculiares do romanismo não tinham sido
recebidas na Igreja primitiva como objetos de fé. Doutrinas como a
supremacia do Bispo de Roma; a perpetuidade do apostolado; a graça
das ordens; a transubstanciação; o sacrifício propiciatório da missa; o
poder dos sacerdotes para perdoar pecados; os sete sacramentos, o
purgatório; a imaculada conceição da Virgem Maria, etc. etc., podem
todas elas ser seguidas historicamente até sua origem, e em seu
desenvolvimento gradual, e adoção final. Assim como seria injusto
determinar a teologia de Calvino e de Beza com base do socinianismo da
moderna Genebra; ou a de Lutero com base na teologia alemã de nossos
dias, assim é absolutamente irrazoável inferir que porque a Igreja Latina
cria tudo o que o Concílio de Trento pronunciou certo, que isso fora a fé
nos primeiros séculos de sua história. Não se deve negar que durante os
primeiros cem anos depois da Reforma a Igreja da Inglaterra era
calvinista; logo, sob o arcebispo Laud e os Estuards ficou romanizada
quase totalmente; logo se tornou racionalista em grande medida, de
modo que o Bispo Burnet disse dos homens de seu tempo que o
cristianismo parecia ser considerado como uma fábula «da parte de todas
as pessoas com discernimento». A isto se seguiu um avivamento geral da
doutrina e piedade evangélicas, o que foi sido seguido por um
avivamento semelhante de romanismo e ritualismo. Diz Newman 74 do
tempo presente: «Na Igreja da Inglaterra dificilmente encontraremos a
dez ou vinte clérigos vizinhos que estejam de acordo entre si; e isto não
em questões não essenciais da religião, mas pelo que respeita a suas
doutrinas elementares e necessárias; ou assim que ao fato de que não
haja nenhuma doutrina necessária absolutamente, nenhuma fé

74
Lectures on Prophetic Office of the Church, Londres, 1837, págs. 394,395.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 184
*
determinada e definida necessária para a salvação». Este é o testemunho
da história. Em nenhuma Igreja externa e visível se deu nenhum
consentimento a nenhuma forma de fé semper et ab omnibus [sempre e
da parte de todos].
A Igreja Latina não é uma exceção a esta observação. É um fato
inegável da história que o arianismo prevaleceu durante anos tanto no
Oriente como no Ocidente; que recebeu a sanção da vasta maioria de
bispos, de concílios provinciais e ecumênicos, e do Bispo de Roma. Não
é menos certo que na Igreja Latina, o agostinismo, incluindo todas as
doutrinas características do que agora se chama calvinismo, foi
declarado como a verdadeira fé por concílio após concílio, provincial e
geral, e por bispos e papas. Logo, entretanto, o agostinismo perdeu sua
influência. Durante sete ou oito séculos não prevaleceu nenhuma forma
de doutrina a respeito do pecado, da graça nem da predestinação na
Igreja Latina. O agostinismo, o semipelagianismo e o misticismo
estavam em constante conflito; e isso, ademais, a respeito de questões
sobre as quais a Igreja já tinha pronunciado seu juízo. Não foi até
começos do século dezesseis que o Concílio de Trento, depois de longos
conflitos, dá sua sanção a uma forma modificada de semipelagianismo.
Por isso, a pretensão de um consentimento comum, tal como o
entendem os romanistas, é contrária à história. Choca-se contra alguns
fatos inegáveis. Isto é praticamente admitido pelos próprios romanistas.
Para eles é comum dizer: Cremos porque o quinto século crê. Mas isto é
uma confissão virtual que sua fé peculiar não é historicamente provável
além do quinto século. Esta confissão de um querer de toda evidência
histórica de “consentimento comum” também é envolta, como se
observa adiante, em sua apelação permanente à autoridade da Igreja. O
que a Igreja diz é um assunto de fé, nós, os tradicionalistas declaram,
estamos destinados a crer, sempre foi um assunto de fé. A passagem de
“Petrus a Soto,” citado acima, coloca o caso muito concisamente:

*
Lembre-se que esta obra foi publicada originalmente em 1871 (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 185
“Quæcunque credit, tenet et servat Romana ecclesia, et in Scripturis non
habentur illa ab Apostolis esse tradita.”
O argumento se reduz a isto: A Igreja crê sobre a base do
consentimento comum. A prova de que algo seja questão de
consentimento comum, e que sempre o foi, é que a Igreja agora o crê.

O inadequado das evidências do consentimento


A segunda objeção ao argumento dos romanistas a respeito do
consentimento comum em apoio de suas tradições é que a evidência que
aduzem em favor de tal consentimento é totalmente inadequada. Apelam
aos antigos credos. Mas não houve nenhum credo geralmente adotado
antes do quarto século. Nenhum credo adotado antes do oitavo século
contém nenhuma das doutrinas peculiares da Igreja de Roma. Os
protestantes recebem todos as declarações doutrinais contidas no que se
conhece como o Credo dos Apóstolos, e nos de Calcedônia e de
Constantinopla, adotado em 681 d.C.
Apelam eles às decisões dos concílios. Isto recebe a mesma
resposta. Não houve concílios gerais antes do quarto século. Os
primeiros seis concílios ecumênicos não deram nenhuma decisão
doutrinal da qual dessintam os protestantes. Por isso, não apresentam
nenhuma evidência de consentimento naquelas doutrinas que são agora
peculiares da Igreja de Roma.
Apelam de novo aos escritos dos pais. Mas a isto os protestantes
objetam:
Primeiro. Que os escritos dos pais apostólicos são muito pouco
numerosos para poder ser tomados como representantes fidedignos do
estado de opinião na Igreja durante os primeiros trezentos anos. Dez ou
vinte escritores espalhados ao longo de tal período não podem ser
tomados como porta-vozes da mente de toda a Igreja.
Segundo. Não se pode apresentar o consentimento destes pais, nem
da metade deles, em favor de nenhuma doutrina na controvérsia entre
protestantes e romanistas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 186
Terceiro. O consentimento quase unânime pode ser citado em
defesa de doutrinas que romanistas e protestantes se unem em rejeitar. A
doutrina judaica do milênio ignorado em sua forma mais bruta pela
primeira Igreja cristã. Mas aquela doutrina a Igreja de Roma é
especialmente zelosa em denunciar.
Quarto. O consentimento dos pais não pode ser provado em defesa
de doutrinas que os protestantes e os romanistas concordam em aceitar.
Não que estas doutrinas então não entraram na fé da Igreja, mas
simplesmente que eles não eram apresentados.
Quinto. Tal é a diversidade de opinião entre os mesmos pais, e tal é
a incerteza de suas declarações doutrinais, e tão pouco estabelecido o
usus loquendi quanto a importantes palavras, que se pode citar a
autoridade dos pais a ambos os lados de qualquer doutrina sob discussão.
Por exemplo, não há postura a respeito da natureza da ceia do Senhor
que jamais se sustentou na Igreja para a qual não se possa aduzir a
autoridade de algum pai primitivo. E, com frequência, o mesmo pai
apresenta uma opinião numa ocasião, e outra em outra ocasião diferente.
Sexto. Os escritos dos pais foram notoriamente corrompidos. Era
tema de grande queixa na Igreja primitiva que se circulavam obras
falsas, e que as obras genuínas eram interpoladas sem consciência.
Algumas das obras mais importantes dos pais gregos só existem em
tradução latina. Este é o caso com grande parte das obras de Irineu,
traduzidas por Rufino, a quem Jerônimo acusa da mais desavergonhada
adulteração.
Outra objeção ao argumento derivado do consentimento é que é
uma cama de Procusto [mito grego] que pode ser alargada ou encurtada
à vontade. Em cada Catena Patrum [cadeia de citações patrísticas]
preparada para demonstrar o consentimento a certas doutrinas se verá
que se cita a dois ou mais escritores de um século como evidência da
opinião unânime daquele século, enquanto que o dobro ou quádruplo de
escritores igualmente importantes deste mesmo período são passados por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 187
alto em silêncio. Não há nenhuma norma que nos possa guiar para a
aplicação deste critério, nem uniformidade na maneira de seu emprego.
Assim, embora se admita que houve uma corrente doutrinal fluindo
ininterruptamente desde os tempos dos Apóstolos, nega-se, como coisa
de fato, que tenha havido algum consentimento ininterrupto ou geral em
alguma doutrina não claramente revelada nas Sagradas Escrituras; e isso
nem sequer em referência a estas doutrinas tão claramente reveladas,
para além dos estreitos limites das verdades essenciais. Deve-se negar,
além disso, que se possa aplicar em alguma Igreja externa, visível e
organizada a regra quod semper, quod ab omnibus [O que (foi crido)
sempre, por todos] sequer em referência a doutrinas essenciais. Por isso,
o argumento dos romanistas em favor de suas doutrinas peculiares, como
derivadas do consentimento comum, é absolutamente insustentável e
falacioso.
Isto é praticamente admitido pelos advogados mais zelosos da
tradição. “Não apenas,” diz o Mestre Newman, 75 “é a Igreja católica com
vistas a ensinar a verdade, mas sim ela é divinamente guiada a ensinar
isto; sua testemunha da fé cristã é um assunto de promessa como
também de dever; seu discernimento é assegurado por uma regra celeste
como também por uma regra humana. É indefectível nisto; e portanto
não tem apenas autoridade para fazê-lo cumprir, mas também é de
autoridade declará-lo. A Igreja não apenas transmite a fé por meios
humanos, mas sim tem um dom sobrenatural para aquele propósito;
aquela doutrina que é verdade, considerada como um fato histórico, é
verdade também porque ela ensina isto.” O autor da área de Oxford, Nº.
85, depois de dizer, “Cremos principalmente porque a Igreja do quarto e
quinto séculos unanimemente creu,” 76 acrescenta, “Por que a Igreja não
devia ser divina? O fardo de prova certamente está ao outro lado.
Aceitarei suas doutrinas, e seus ritos, e sua Bíblia — não uma, e nem

75
Lectures, ut supra, pp. 225, 226.
76
Oxford Tracts, No. 85, p. 102.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 188
outra, mas sim tudo, — até eu ter prova clara que ela está enganada. É
que eu sinto Deus é legar que eu devia fazer isso; e além disso, amo estas
suas posses — porque eu amo sua Bíblia, suas doutrinas, e seus ritos; e
portanto, eu creio.” 77 O romanista, então, crê porque a Igreja crê. Esta é a
última razão. A Igreja crê, não porque ela historicamente pode provar
que suas doutrinas foram recebidas dos apóstolos, mas sim porque ela é
de modo sobrenatural guia para se conhecer a verdade. O “Consenso
comum,” portanto, é praticamente abandonado, e a própria tradição
soluciona dentro da fé presente da Igreja.

A tradição não está à disposição do povo


4. Os protestantes objetam à tradição como parte da regra da fé,
porque não está adaptada a este propósito. Uma regra de fé para as
pessoas deve ser algo que eles possam aplicar; uma norma mediante a
qual possam decidir. Mas esta revelação não escrita não está contida em
nenhum volume acessível ao povo, e inteligível para eles. Está espalhada
pelos registros eclesiásticos de dezessete séculos. É totalmente
impossível para o povo aprender o que ela ensina. Como podem em tal
caso decidir se a Igreja tem ensinado ao longo de todos os séculos a
doutrina da transubstanciação, o sacrifício da missa, ou qualquer outra
doutrina papista? Devem aceitar todas estas doutrinas com um exercício
de confiança, isto é, devem depositar sua fé na Igreja existente. É-lhes
exigido que creiam, e isso sob pena de perdição, doutrinas cuja
pretendida evidência lhes é impossível determinar ou apreciar.
5. Os romanistas argumentam que tal é a obscuridade das Escrituras
que não só o povo mas também a própria Igreja necessita a ajuda da
tradição para poder ser compreendidas de uma maneira adequada. Mas
se a Bíblia, que é um livro relativamente plano, num volume que se pode
carregar, tem que ser explicada desta maneira, que não se necessitará
para explicar as centenas de fólios nos quais estão registradas estas

77
Ibid. p. 115.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 189
tradições? O seguro é que se necessitará muito mais de uma guia para a
interpretação destas tradições que para as Escrituras.

A tradição destrói a autoridade das Escrituras


6. Fazer da tradição parte da regra da fé subverte a autoridade das
Escrituras. Isto se segue como uma consequência natural e inevitável. Se
há duas regras de doutrina da mesma autoridade, e uma delas explicativa
e infalível intérprete da outra, é necessariamente a interpretação a que
determina a fé do povo. Então, em lugar de nossa fé repousar no
testemunho de Deus como está registrado em Sua palavra, repousa sobre
o que uns pobres homens, falíveis, frequentemente fantasiosos e cheios
de preconceitos nos dizem que é o significado desta palavra. O homem e
sua autoridade usurpam o lugar de Deus. E como esta é a consequência
lógica de fazer da tradição uma regra de fé, assim é um fato histórico que
as Escrituras foram anuladas onde se admitiu a autoridade da tradição.
Nosso Senhor disse que os escribas e fariseus tinham anulado a palavra
de Deus por meio de suas tradições; e que ensinavam como doutrinas
mandamentos de homens. E isto não é menos certo, historicamente, da
Igreja de Roma. Uma grande massa de doutrinas, ritos, ordenanças e
instituições, de tudo o que as Escrituras desconhecem, foi imposta sobre
a razão, a consciência e a vida do povo. A religião Católica Romana de
nossos dias, com sua hierarquia, ritual, culto às imagens e aos santos;
com suas absolvições, indulgências e seu poder despótico sobre a
consciência e a vida do indivíduo, é tão pouco parecida com a religião do
Novo Testamento como a presente religião dos hindus, com sua mina de
deidades, suas crueldades e abominações parece-se à simples religião de
seus antigos Vedas. Em ambos os casos causas similares produziram
efeitos similares. Em ambos se deu uma provisão para revestir de
autoridade divina os erros e corrupções rapidamente acumulados com o
passo dos séculos.
7. A tradição ensina erro e, por isso, não pode ser controlada
divinamente para que seja uma regra de fé. O enfrentamento é entre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 190
Escritura e tradição. Ambas as coisas não podem ser certas. Uma
contradiz a outra. Uma ou a outra deve ser abandonada. A respeito disto
ao menos nenhum verdadeiro protestante tem nenhuma dúvida. Todas as
doutrinas peculiares do romanismo, e em defesa das quais o romanismo
alega a autoridade da Escritura, são consideradas pelos protestantes
como antiescriturísticas; e por isso não necessitam de mais evidência
para demonstrar que não se pode confiar na tradição nem em assuntos de
fé nem de prática.

As Escrituras não são recebidas com base na tradição.


8. Os romanistas arguem que os protestantes admitem a autoridade
da tradição porque é com base em tal autoridade que recebem o Novo
Testamento como a palavra de Deus. Isto não é correto. Não cremos que
o Novo Testamento seja divino sobre a base do testemunho da Igreja.
Recebemos os livros incluídos nas Escrituras canônicas sobre a dupla
base da evidência interna e externa. Pode-se demonstrar historicamente
que estes livros foram escritos pelos homens cujos nomes levam; e
também se pode demonstrar que aqueles homens foram os órgãos
devidamente autenticados do Espírito Santo. A evidência histórica que
determina a paternidade do Novo Testamento não é exclusivamente a
dos pais cristãos. O testemunho dos escritores pagãos é, em alguns
respeitos, de maior peso que o dos próprios pais. Podemos crer com base
no testemunho da história inglesa, eclesiástica e secular, que os Trinta e
Nove Artigos foram redigidos pelos Reformadores Ingleses, sem por isso
serem tradicionalistas. Da mesma maneira podemos crer que os livros do
Novo Testamento foram escritos pelos homens cujos nomes exibem sem
admitir que a tradição forme parte da regra da fé.
Além disso, a evidência externa de qualquer tipo que seja é uma
parte muito subordinada da base para a fé de um protestante nas
Escrituras. Esta base é principalmente a natureza das doutrinas nelas
reveladas, e o testemunho do Espírito, com e mediante a verdade, no
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 191
coração e na consciência. Cremos nas Escrituras por uma razão muito
semelhante à que cremos no Decálogo.
A Igreja deve manter-se firme na liberdade com que Cristo a tem
feito livre, e não voltar-se de novo a ficar sob o jugo da escravidão, –
uma escravidão não só às doutrinas e instituições humanas, mas a erros e
superstições destruidores da alma.

§ 7. O ofício da Igreja como Mestra

A. A doutrina romanista a respeito desta questão

Os romanistas ensinam que a Igreja, como sociedade externa e


visível, composta pelos que professam a religião cristã, unida na
comunhão dos próprios sacramentos e em sujeição a pastores legítimos,
e especialmente ao Papa de Roma, está divinamente designada para ser a
mestra infalível dos homens em todas as coisas que correspondem à fé e
à prática. Está qualificada para este oficio pela revelação plenária da
verdade na palavra escrita e não escrita de Deus, e pela condução
sobrenatural do Espírito Santo outorgada aos bispos como sucessores
oficiais dos Apóstolos, ou ao Papa como sucessor de Pedro em sua
supremacia sobre toda a Igreja, e como Vigário de Cristo sobre a terra.
Há algo singelo e magno nesta teoria. Está maravilhosamente
adaptada aos gostos e desejos dos homens. Liberta-os de sua
responsabilidade pessoal. Tudo se decide por eles. Sua salvação fica
assegurada meramente submetendo-se a ser salvos por uma Igreja
infalível, perdoadora de pecados e repartidora da graça. Muitos podem
sentir-se inclinados a pensar que teria sido uma grande bênção se Cristo
tivesse deixado na terra um representante visível dEle revestido de Sua
autoridade para ensinar e governar, e uma ordem de homens dispersados
por todo mundo dotados dos dons dos Apóstolos originais – homens
sempre acessíveis, a quem se pudesse recorrer em tempos de
dificuldades e de dúvidas, e cujas decisões pudessem ser recebidas com
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 192
certeza como as decisões do próprio Cristo. Mas os pensamentos de
Deus não são nossos pensamentos. Sabemos que quando Cristo estava na
terra havia muitos homens que não criam nEle nem Lhe obedeciam:
Sabemos que quando os Apóstolos ainda estavam vivendo, e sua
autoridade seguia sendo confirmada com sinais e maravilhas e milagres
diversos e dons do Espírito Santo, a Igreja estava entretanto perturbada
por heresias e cismas. Se qualquer em sua preguiça está disposto a crer
que um corpo perpétuo de mestres infalíveis seria uma bênção, todos
devem admitir que a presunção de infalibilidade da parte dos ignorantes,
dos errados e dos ímpios tem que ser um mal inconcebivelmente grande.
A teoria romanista, se fosse certa, poderia ser uma bênção; se fosse falsa,
tem que ser uma terrível maldição. Que é falsa pode ser demonstrado
para satisfação de todos aqueles que não desejam que seja certa, e que,
diferente dos Tratadistas de Oxford, não estão decididos a crer nela
porque a amam.

B. A definição romanista da Igreja se deriva do que é agora a


Igreja de Roma

Antes de apresentar um breve esboço do argumento contra esta


teoria, será bom observar que a definição romanista da Igreja é
puramente empírica. Não se deriva do significado ou uso da palavra
ekklesia no Novo Testamento, nem do que ali se ensina a respeito da
Igreja. É meramente uma declaração do que é agora a Igreja de Roma. É
um corpo que professa a mesma fé, unido na comunhão dos mesmos
sacramentos, sujeitos a pastores (isto é, bispos) supostamente legítimos,
e ao Papa como Vigário de Cristo. Agora, nesta definição supõe-se
gratuitamente:
1. Que a Igreja a que se dá a promessa de condução divina é uma
organização externa e visível; e não o povo de Deus como tal na relação
pessoal e individual deles com Cristo. Em outras palavras, dá-se por
sentado que a Igreja é uma sociedade visível, e não um termo coletivo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 193
para o povo de Deus; como quando se diz que Paulo perseguia à Igreja; e
de Cristo que amou à Igreja e Se entregou a Si mesmo por ela. Cristo
certamente não morreu por nenhuma Sociedade externa, visível e
organizada.
2. A teoria romanista supõe não só que a Igreja é uma organização
externa, mas também tem que estar organizada de uma maneira definida
e prescrita. Mas esta assunção não apenas é irrazoável, mas também não
é escriturística, porque não se prescreve uma forma nas Escrituras como
essencial para o ser da Igreja; e porque é contrário a todo o espírito e
caráter do evangelho que formas de governo devam ser necessárias para
a vida espiritual e salvação dos homens. Além disso, esta hipótese não é
coerente com os fatos históricos. A Igreja em todas as suas partes nunca
esteve organizada com base em um plano
3. Mas concedendo que a Igreja fosse uma sociedade externa, e que
devesse estar organizada conforme um plano, é uma hipótese gratuita e
insustentável que este plano deva ser o episcopal. É um fato notório que
o episcopado diocesano não existiu durante a era apostólica. É
igualmente notório que este plano de governo foi introduzido
gradualmente. E não é menos notório que uma grande parte da Igreja em
que Cristo habita por Sua presença, e que reconhece e honra de qualquer
maneira, não tem bispos até o dia de hoje. O governo da Igreja mediante
bispos é reconhecido pelos romanistas como uma das instituições que
não repousam sobre as Escrituras para sua autoridade, mas sobre a
tradição.
4. Mas se se concedesse todo o anterior, a hipótese de que é
necessária a sujeição ao Papa como Vigário de Cristo para a existência
da Igreja é totalmente irrazoável. Este é o ponto culminante. Não há nem
a mais ínfima evidência no Novo Testamento ou na era apostólica de que
Pedro tivesse tal primado entre os Apóstolos, como o pretendem os
romanistas. Não só há uma total ausência de toda evidência de que
exercesse alguma jurisdição sobre eles, mas também há abundantes
evidências em sentido contrário. Isto fica claro pelo fato de que Pedro,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 194
Tiago e João são mencionados juntos como os que pareciam ser colunas
(Gl 2:9), e esta distinção devia-se não ao ofício, mas sim ao caráter.
Além disso, fica claro pela plena igualdade em dons e autoridade que
Paulo afirmou a si mesmo, e demonstrou possuir para satisfação de toda
a Igreja. Está claro pela posição subordinada que ocupou Pedro no
Concílio de Jerusalém (At 15), e pela severa repreensão que recebeu da
parte de Paulo em Antioquia (Gl 2:11-21). É um fato histórico claro que
Paulo e João foram os espíritos reitores da Igreja Apostólica. Mas se for
admitida a primazia de Pedro no colégio das Apóstolos, não há evidência
de que houvesse desígnio de que tal sobressaída fosse perpétua. Não há
mandamento para escolher um sucessor naquele oficio; não se dão regras
a respeito do método da eleição, nem das pessoas que deviam fazer a
eleição, nem registro de que tal coisa sucedesse. Tudo sai do ar. Mas,
admitindo que Pedro tivesse sido constituído cabeça de toda a Igreja na
terra, e que tal autoridade tivesse que ser continuada, qual é a evidência
de que fora o Bispo de Roma que em todo tempo tivesse o título a tal
ofício? É duvidoso que Pedro tenha estado jamais em Roma. A esfera de
seus trabalhos foi Palestina e Oriente. Certamente nunca foi Bispo da
Igreja naquela cidade. E inclusive se esteve nela, era Primado não como
Bispo de Roma, mas por designação de Cristo. Segundo a teoria, era
Primado antes de ir a Roma, e não devido ao fato de que foi ali. O
simples fato histórico é que como Roma era a capital do Império
Romano, o Bispo de Roma aspirava ser a cabeça da igreja, pretensão que
depois de uma longa luta chegou a ser aceita, ao menos no Ocidente.
Assim, é sobre as quatro hipóteses gratuitas e irrazoáveis acabadas
de mencionar que repousa todo o imponente sistema do romanismo: [1]
Que a Igreja que recebeu a promessa do Espírito é uma organização
externa e visível; [2] que é essencial para sua existência um modo
particular de organização; [3] que este modo é o episcopal; [4] E que tem
que ser papal, isto é, todo o episcopado deve estar submetido ao Bispo de
Roma. Se uma delas falhar, todo o sistema cai por terra. Estas hipóteses
estão tão totalmente carentes de qualquer prova histórica adequada que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 195
nenhum homem razoável pode aceitá-las com base em sua própria
evidência. Os únicos que podem crer em tal coisa são aqueles a quem se
ensinou ou induziu a crer que a Igreja existente é infalível. E creem não
porque estes pontos possam ser demonstrados, mas com base na
declaração da Igreja. A Igreja de Roma diz que Cristo constituiu a Igreja
sobre o sistema papal, e que por isso deve ser crida. O que devesse ser
demonstrado é dado por sentado. É uma petitio principii [petição de
princípio] de começo a fim.

C. A doutrina romanista da Infalibilidade baseada sobre uma


teoria errônea da Igreja

O primeiro grande argumento dos protestantes contra o romanismo


tem que ver com a teoria da Igreja.
Deus entrou numa aliança com Abraão. Naquela aliança havia
certas promessas que se referiam a seus descendentes naturais através de
Isaque, promessas que dependiam da obediência nacional do povo. Mas
aquela aliança continha a promessa da redenção por meio de Cristo. Ele
era a semente em quem todas as nações da terra seriam benditas. Os
judeus chegaram a crer que esta promessa de redenção, isto é, das
bênçãos do reinado do Messias, fora-lhes dada como nação, e que estava
condicionada a sua membresia a esta nação. Todos os que eram judeus
bem por descendência ou por proselitismo, e que estivessem
circuncidados e se aderissem à lei, eram salvos. Todos os outros
pereceriam certamente para sempre. Esta é a doutrina que nosso Senhor
condenou tão expressamente, e contra a qual Paulo argumentou tão
intensamente. Quando os judeus pretenderam ser filhos de Deus,
porquanto eram filhos de Abraão, Cristo lhes disse que podiam ser filhos
de Abraão e, entretanto, filhos do diabo (Jo 8:33-44); como seu precursor
João havia dito com antecedência, não digam «Temos por pai a Abraão;
porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a
Abraão» (Mt 3:9). É contra esta doutrina que se dirigem principalmente
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 196
as epístolas aos Romanos e aos Gálatas. O Apóstolo mostra: (1.) Que a
promessa de salvação não se limitava aos judeus, nem aos membros de
qualquer organização externa. (2.) E por isso que não estava
condicionada à descendência de Abraão, nem à circuncisão, nem à
adesão à teocracia do Antigo Testamento. (3.) Que todos os crentes (οἱ
ἐκ πίστεως [hoi ek pisteos]) son hijos, y, por ello, herederos de Abraham
(Os 3:7). (4.) Que um homem pode ser judeu, hebreu de hebreus,
circuncidado ao oitavo dia, e irrepreensível no referente à justiça que é
pela lei, e entretanto que isto não lhe serve de nada (Fp 3:4-6). (5.)
Porquanto não é judeu aquele que o é exteriormente, e a circuncisão o é a
do coração (Rm 2:28-29). (6.) E consequentemente, que Deus podia
abandonar aos judeus como às nações sem agir de forma incôngrua com
sua aliança com Abraão, porque a promessa não era feita para o Israel
κατὰ σάρκα, senão para o Israel κατὰ πνεῦμα. (Rom. 9.6-8.)
Os romanistas transferiram toda a teoria judaica à igreja cristã,
enquanto que os protestantes se aderem à doutrina de Cristo e de Seus
Apóstolos. Os romanistas ensinam, (1.) Que a igreja é essencialmente
uma comunidade externa, organizada, como a comunidade de Israel. (2.).
Que a esta sociedade externa pertencem todos os atributos, prerrogativas
e promessas da verdadeira Igreja. (3.) Que a membresia nesta sociedade
é a condição indispensável para a salvação; e que é só mediante a união
com a Igreja que os homens são unidos a Cristo, e por meio de suas
ministrações tornam-se partícipes desta redenção. (4.) Que todos os que
morrem em comunhão com esta sociedade externa serão finalmente
salvos, embora possam, se não forem perfeitos no momento da morte,
sofrer durante um período de tempo mais ou menos longo no purgatório.
(5.) Todos os que estejam fora desta organização externa perecem
eternamente. Assim, não há um só elemento da teoria judaica que não
esteja reproduzido na teoria romanista.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 197
A doutrina protestante da natureza da Igreja
Os protestantes, pelo contrário, ensinam a respeito deste tema em
preciso acordo com a doutrina de Cristo e dos Apóstolos: (1.) Que a
Igreja como tal, ou em sua natureza essencial, não é uma organização
externa. (2.) Todos os verdadeiros crentes, nos quais habita o Espírito de
Deus, são membros daquela Igreja que é o corpo de Cristo, sem importar
qual seja a organização eclesiástica com que possam estar conectados, e
inclusive embora não tenham tal conexão. O ladrão na cruz foi salvo,
embora não fosse membro de nenhuma Igreja externa. (3.) Por isso, que
os atributos, prerrogativas e promessas da Igreja não pertencem a
nenhuma sociedade externa como tal, mas sim ao verdadeiro povo de
Deus considerado coletivamente; e a sociedades externas só até onde
consistem de verdadeiros crentes e estejam controladas por eles. Com
isto só se diz o que toda pessoa admitirá como certo: que os atributos,
prerrogativas e promessas que pertencem aos cristãos pertencem
exclusivamente aos verdadeiros cristãos, e não a homens ímpios ou
mundanos que se chamem a si mesmos cristãos. (4.) Que a condição de
membresia na verdadeira Igreja não é união com nenhuma sociedade
organizada, mas sim a fé em Jesus Cristo. Eles são filhos de Deus pela
fé; são os filhos de Abraão, herdeiros da promessa da redenção que foi
dada pela fé; quer se trate de judeus ou gentios, escravos ou livres; quer
se trate de protestantes ou romanistas, presbiterianos ou episcopalianos;
ou seja que estejam amplamente espalhados, que nem dois ou três deles
possam reunir-se para adorar.
Os protestantes não negam que há uma igreja católica visível na
terra, consistindo de todos os que professam a verdadeira religião, junto
com seus filhos. Mas não estão incluídos em nenhuma sociedade
externa. Também admitem que é o dever dos cristãos unir-se com o
propósito de oferecer adoração e da mútua vigilância e cuidado.
Admitem que a tais associações e sociedades pertencem certas
prerrogativas; que têm ou deveriam ter os oficiais cujas qualificações e
deveres ficam prescritos nas Escrituras; que sempre houve, e que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 198
provavelmente sempre haverá, tais organizações cristãs, ou igrejas
visíveis. Mas eles negam que qualquer destas sociedades, ou todas elas
coletivamente, constituam a Igreja pela qual Cristo morreu; em que
habita por Seu Espírito; à qual Ele prometeu perpetuidade,
universalidade, unidade e condução divina rumo ao conhecimento da
verdade. Qualquer delas, ou todas elas, uma após outra, pode apostatar
da fé, e todas as promessas de Deus a sua Igreja, entretanto, ficar
cumpridas. A Igreja não fracassou quando Deus reservou a Si mesmo a
só sete mil em todo Israel que não tinham dobrado o joelho perante Baal.
Quase todos os pontos de diferença entre os protestantes e os
romanistas dependem da decisão que se tome perante esta questão: «O
que é a Igreja?» Se sua teoria for correta; se a Igreja for a sociedade
externa de cristãos professantes, sujeita aos apóstolos-bispos (isto é, a
bispos que são apóstolos), e ao Papa como Vigário de Cristo sobre a
terra; então estamos obrigados a nos submeter a ela; e então também não
há salvação fora de sua comunhão. Mas se cada verdadeiro crente é, em
virtude de sua fé, membro da Igreja à qual Cristo promete condução e
salvação, então o romanismo cai por sua base.

As teorias conflitivas a respeito da Igreja


O fato de que as duas teorias opostas da Igreja, a romanista e a
protestante, são as que se têm exposto anteriormente é coisa tão
geralmente conhecida e tão fora de questão, que é desnecessário citar
autoridades para ambos os lados. É suficiente, quanto ao que se relaciona
à doutrina dos romanistas, citar a linguagem de Belarmino, 78 que os
marcos da Igreja são três: “Professio veræ fidei, sacramentorum
communio, et subjectio ad legitimum pastorem, Romanum Pontificem.
— Atque hoc interest inter sententiam nostram et alias omnes, quod
omnes aliæ requirunt internas virtutes ad constituendum aliquem in
Ecclesia, et propterea Ecclesiam veram invisibilem faciunt; nos autem

78
De Ecclesia Militante, II. Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. ii. p. 108 d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 199
credimus in Ecclesia inveniri omnes virtutes, — tamen ut aliquis aliquo
modo dici possit pars veræ Ecclesiæ, — non putamus requiri ullam
internam virtutem, sed tantum externam professionem fidei, et
sacramentorum communionem, quæ sensu ipso percipitur. Ecclesia enim
est coetus hominum ita visibilis et palpabilis, ut est coetus Populi
Romani, vel regnum Galliæ aut respublica Venetorum.” Os Símbolos
luteranos definem a Igreja como, “Congregatio sanctorum.” 79
“Congregatio sanctorum et vere credentium.” 80 “Societas fidei et Spiritus
Sancti in cordibus.” 81 “Congregatio sanctorum, qui habent inter se
societatem ejusdem evangelii seu doctrinæ, et ejusdem Spiritus Sancti,
qui corda eorum renovat, sanctificat et gubernat;” y 82 “Populus
spiritualis, non civilibus ritibus distinctus a gentibus, sed verus populus
Dei renatus per Spiritum Sanctum.” 83
Os Símbolos das Igrejas Reformadas apresentam a mesma
doutrina. 84 A Confissão Helvética diz: “Oportet semper fuisse, nunc esse
et ad finem usque seculi futuram esse Ecclesiam, i.e., e mundo evocatum
vel collectum coetum fidelium, sanctorum inquam omnium
communionem, eorum videlicet, qui Deum verum in Christo servatore
per verbum et Spiritum Sanctum vere cognoscunt et rite colunt, denique
omnibus bonis per Christum gratuito oblatis fide participant.” 85
Confessio Gallicana: “Affirmamus ex Dei verbo, Ecclesiam esse
fidelium coetum, qui in verbo Dei sequendo et pura religione colenda
consentiunt, in qua etiam quotidie proficiunt.” 86 Confessio Belgica:
“Credimus et confitemur unicam Ecclesiam catholicam seu universalem,
quæ est sancta congregatio seu coetus omnium fidelium Christianorum,

79
Augsburg Confession, art. 7.
80
Ibid. art. 8.
81
Apol. A. C., art. 4, pp. 144, 145, Hase.
82
Ibid. p. 146.
83
See Hase, Libri Symbolici.
84
See Niemeyer, Coll. Confess.
85
II. cap. 17, p. 499, Niem.
86
Art. 27, p. 336, ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 200
qui totam suam salutem ab uno Jesu Christo exspectant, abluti ipsius
sanguine et per Spiritum ejus sanctificati atque obsignati. Hæc Ecclesia
sancta nullo est aut certo loco sita et circumscripta, aut ullis certis
personis astricta aut alligata: sed per omnem orbem terrarum sparsa
atque diffusa est.” 87 A mesma doutrina é declarada na resposta à
pergunta cinquenta e quatro no Catecismo de Heidelberg. No Catecismo
de Genebra à pergunta, “Quid est Ecclesia?” a resposta é: “Corpus ac
societas fidelium, quos Deus ad vitam æternam prædestinavit.” 88
Winer em seu “Comparative Darstellung,” 89 deste modo
brevemente declara as duas teorias relativo à Igreja. Os romanistas, ele
diz, “definem a Igreja na Terra, como a comunidade daqueles batizados
no nome de Cristo, unidos sob seu Vigário, o Papa, sua cabeça visível.
Os protestantes, por outro lado, como a comunhão de santos, isto é,
daqueles que verdadeiramente creem em Cristo, em que o evangelho é
puramente pregado e os sacramentos corretamente administrados.”

Prova da doutrina protestante da igreja


Este não é o lugar em que entrar numa vindicação formal da
doutrina protestante da natureza da Igreja. Isto pertence ao departamento
de eclesiologia. O que segue pode ser suficiente para o propósito que nos
ocupa.
A questão não é se a palavra Igreja não se emprega de maneira
apropriada e conforme as Escrituras para denotar uns corpos visíveis,
organizados, de cristãos professantes, ou de todos estes cristãos
considerados coletivamente. Tampouco se trata de se devemos
considerar como cristãos aqueles que, livres de escândalos, professam
sua fé em Cristo, ou como verdadeiras igrejas aquelas sociedades de tais
professantes organizados para o culto de Cristo e a administração de Sua
disciplina. A questão é se a Igreja a que pertencem os atributos, as
87
Art. 27, p. 379, ibid.
88
Page 135, ibid.
89
Page 165.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 201
prerrogativas e as promessas que pertencem ao corpo de Cristo é em sua
natureza uma comunidade visível e organizada; e, especialmente, se for
uma comunidade organizada de algum modo exclusiva, e mais
especialmente na forma papal; ou, se for um corpo espiritual consistindo
de verdadeiros crentes. Se quando a Bíblia dirige-se a um corpo de
pessoas como «os chamados de Jesus Cristo», «amados de Deus»,
«participantes da chamada divina»; como «filhos de Deus, co-herdeiros
de Cristo de uma herança eterna»; como «escolhidos segundo a
presciência de Deus Pai em santificação e aspersão do sangue de Cristo»;
como «partícipes da mesma preciosa fé com os Apóstolos»; como «os
que estão lavados, e santificados, e justificados em nome do Senhor
Jesus e pelo Espírito de nosso Deus»; como aqueles que tendo estado
mortos em delitos e pecados, foram «vivificados e ressuscitados e feitos
sentar nos lugares celestiais com Cristo Jesus»: "Significa-se com isso os
membros de uma sociedade externa como tal, e devido ao fato de que o
são, ou se refere ao verdadeiro povo de Deus? A pergunta é se quando os
homens deste modo designados e descritos, Cristo prometeu estar com
eles até o fim do mundo, dar a eles seu Espírito, guiá-los até o
conhecimento da verdade, mantê-los pelo poder do Espírito, de forma
que as portas do inferno não prevaleceriam contra eles — o que quer Ele
dizer Seus discípulos sinceros ou nominais, — crentes ou incrédulos?
Esta pergunta admite só uma resposta. Os atributos adscritos à Igreja na
Escritura pertencem só aos verdadeiros crentes. As promessas dadas à
Igreja se cumprem só nos crentes. A relação em que a Igreja encontra-se
com Deus e com Cristo é sustentada só pelos verdadeiros crentes. Só eles
são os filhos e herdeiros de Deus; só eles são o corpo de Cristo em que
Ele habita por Seu Espírito; eles só são o templo de Deus, a esposa de
Cristo, os participantes de Sua glória. A doutrina de que um homem
torne-se filho de Deus e herdeiro da vida eterna por meio da membresia
numa sociedade externa transtorna os próprios fundamentos do
evangelho, e introduz um novo método de salvação. Mas esta é a
doutrina sobre a qual descansa todo o sistema do romanismo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 202
Como, portanto, o apóstolo mostra que as promessas feitas para
Israel sob o Antigo Testamento, a promessa de perpetuidade, de
expansão acima da Terra inteira, do favor e companheirismo de Deus, e
todas as bênçãos do reinado do Messias, não foram feitas para o Israel
externo como tal, senão para o verdadeiro povo de Deus; então os
protestantes mantêm que as promessas feitas à Igreja como o corpo e
esposa de Cristo não foram feitas ao corpo externo de professos cristãos,
mas sim àqueles que realmente creem nEle e obedecem Seu evangelho.
Os absurdos que fluem da substituição da Igreja visível a invisível,
de que transfiram os atributos, prerrogativas, e promessas que pertencem
aos crentes verdadeiros, para um corpo organizado de nominal ou
professos crentes, são tão grandes que os romanistas não podem ser
consistentes. Eles não podem aderir a sua própria teoria. São forçados a
admitir que os ímpios não são realmente membros da Igreja. Estão
“nele” mas não são “dele.” Sua conexão com isso é meramente exterior,
como aquela do joio com o trigo. Esta, entretanto, é a doutrina
protestante. A doutrina Romana é justamente o contrário.
Os romanistas ensinam que o joio é o trigo; que o joio torna-se trigo
por conexão exterior com o grão precioso. O certo, portanto, é que o joio
não é trigo; que cristãos nominais, como tal, não são cristãos de fato; isso
é tão certo que nenhuma sociedade exterior consistindo em bom e mau, é
aquela Igreja para a qual é feita a promessa da presença e salvação de
Cristo. É como Turrettin diz, 90 “πρῶτον ψεῦδος pontificiorum in tota
controversia est, ecclesiam metiri velle ex societatis civilis modulo, ut
ejus essentia in externis tantum et in sensus incurrentibus consistat, et
sola professio fidei sufficiat ad membrum ecclesiæ constituendum, nec
ipsa fides et pietas interna ad id necessario requirantur.”

90
Locus XVIII. ii. 12.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 203
D. A doutrina da infalibilidade se baseia na falsa
pressuposição da perpetuidade do apostolado.

Assim como o primeiro argumento contra a doutrina dos romanistas


quanto à infalibilidade da Igreja é que faz com que a Igreja de Roma é o
corpo ao qual pertencem os atributos, prerrogativas e promessas de
Cristo aos verdadeiros crentes; o segundo é que limita a promessa do
ensino do Espírito aos bispos como sucessores dos Apóstolos. Em outras
palavras, os romanistas assumem falsamente a perpetuidade do
Apostolado. Se é verdade que os prelados da Igreja de Roma, ou de
qualquer outra igreja, são apóstolos, investidos com a mesma autoridade
para ensinar e reger como os mensageiros originais de Cristo, então
devemos ficar obrigados a dar a mesma fé a seus ensinos, e a mesma
obediência a seus mandamentos, que as devidas aos escritos inspirados
do Novo Testamento. E esta é a doutrina da Igreja de Roma.

Os modernos prelados não são apóstolos


Para decidir se os modernos bispos são apóstolos, é necessário em
primeiro lugar determinar a natureza do Apostolado, e determinar se os
modernos prelados têm os dons, as qualificações e as credenciais de tal
ofício. Quais foram os Apóstolos? Foram um número concreto de
homens selecionados por Cristo para que fossem Suas testemunhas, para
que testificassem de Suas doutrinas, dos fatos de Sua vida, de Sua morte,
e especialmente de Sua ressurreição. Para capacitá-las para este ofício de
testemunhas autorizadas era necessário: (1.) Que tivessem um
conhecimento independente e plenário do evangelho. (2.) Que tivessem
visto Cristo depois de Sua ressurreição. (3.) Que fossem inspirados, isto
é, que fossem guiados individual e particularmente pelo Espírito Santo
para ser infalíveis em todas as Suas instruções. (4.) Que fossem
autenticados como mensageiros de Cristo, aderindo-se ao verdadeiro
evangelho, pelo êxito na pregação (Paulo disse aos coríntios que eles
eram o selo de seu apostolado, 1Co 9:2); e mediante sinais e maravilhas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 204
e diversos milagres e distribuições do Espírito Santo. Tais eram os dons
e qualificações e credenciais dos Apóstolos originais; e aqueles que
pretendiam o ofício sem possuir estes dons e credenciais eram
pronunciados falsos apóstolos e mensageiros de Satanás.
Quando Paulo afirmou ser apóstolo, sentiu que era necessário
demonstrar: (1.) Que tinha sido designado, não por homem nem por
meio de homens, mas imediatamente por Jesus Cristo (Gl 1:1). (2.) Que
não tinha recebido o ensino do evangelho da parte de outros, mas sim
tinha recebido este conhecimento por revelação direta (Gl 1 :12). (3.)
Que tinha visto Cristo depois de Sua ressurreição (1Co 9:1 e 15:8). (4.)
Que estava inspirado, sendo infalível como mestre, pelo que os homens
estavam obrigados a reconhecer seus ensinos como o ensino de Cristo
(1Co 14:37). (5.) Que o Senhor tinha autenticado sua missão apostólica
de uma maneira tão plena como o fez com a de Pedro (Gl 2:8). (6.) «Os
sinais de apóstolo», disse aos coríntios, «foram efetuadas entre vós em
toda paciência, por sinais, prodígios e milagres» (2Co 12:12).
Os modernos prelados não pretendem possuir nenhum destes dons.
Não pretendem tampouco possuir as credenciais que autenticavam a
missão dos Apóstolos de Cristo. Não pretendem possuir uma comissão
imediata; nenhum conhecimento independente derivado de uma
revelação imediata; nenhuma infalibilidade pessoal; nenhuma visão de
Cristo; e nenhum dom milagroso.
Isto é, pretendem a autoridade do ofício, mas não sua realidade. Por
isso, fica muito claro que não são apóstolos. Não podem ter a autoridade
do ofício sem possuir os dons em que se baseava esta autoridade, e da
qual emanava. Se um homem não pode ser um profeta sem o dom de
profecia, nem um praticante de milagres sem o dom de milagres, ou ter o
dom de línguas sem a habilidade de falar outras línguas por si mesmo;
ninguém pode pretender ser um apóstolo sem possuir os dons que faziam
com que os Apóstolos fossem. Igual seria de razoável que surdos-mudos
pretendessem possuir o dom de línguas. O mundo nunca viu ou sofreu
uma impostura maior que homens tão fracos, ignorantes, e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 205
frequentemente imorais, deviam reivindicar a mesma autoridade e regra
para ensinar que pertenceram a homens para quem a verdade é revelada
de modo sobrenatural, que era evidentemente infalível em sua
comunicação, e para quem a divina missão do próprio Deus dá
testemunho em sinais e maravilhas, e milagres e dons do Espírito Santo.
O ofício dos apóstolos como descrito no Novo Testamento, era, portanto,
de sua natureza incapaz de ser irradiado, e não tem de fato sido
perpetuado.
Não há mandamento algum no Novo Testamento de manter a
sucessão apostólica. Quando Judas apostatou, Pedro disse que seu lugar
devia ser preenchido, mas a seleção devia limitar-se àqueles, disse, «dos
homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou
entre nós, começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós
foi levado às alturas» (At 1:21, 22). A razão dada para esta designação
foi não para que pudesse continuar o apostolado, senão para que o
homem assim selecionado fosse «testemunha conosco da sua
ressurreição». «E os lançaram em sortes, vindo a sorte recair sobre
Matias, sendo-lhe, então, votado lugar com os onze apóstolos». E este foi
o fim. Nunca mais voltamos a ouvir de Matias. É muito duvidoso que
esta designação de Matias fosse válida. O que aqui se registra (At 1:15-
26) teve lugar antes que os Apóstolos tivessem sido dotados de poder do
alto (At 1:8) e, portanto, antes que tivessem autoridade alguma para agir.
Cristo, a seu próprio tempo e maneira, completou o número de suas
testemunhas chamando Paulo para ser Apóstolo. Mas, seja como for,
aqui temos exceptió probat regulam [a exceção que demonstra a regra].
Demonstra que as filas dos Apóstolos podiam ser preenchidas, e que a
sucessão prosseguiu só com base no número daqueles que podiam dar
testemunho independente da ressurreição e das doutrinas de Cristo.
Além do fato de que não existe nenhuma ordem para autorizar
apóstolos, existe clara evidência que o ofício não era projetado para ser
perpetuado. No que se relaciona a todos os oficiais permanentes da
Igreja, existe: (1.) Não apenas uma promessa para continuar os dons que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 206
pertenceram ao ofício, e a ordem para autorizar pessoas apropriadas para
ocupá-lo, mas também uma especificação das qualificações a serem
buscadas e exigidas; e (2.) um recorde da nomeação atual de titulares; e
(3.) evidência histórica de sua prorrogação na Igreja daquele tempo para
este. No que se relaciona ao apostolado, tudo isso é requerido. Como nós
vemos, os dons do ofício não foram continuados, não existe nenhuma
ordem para perpetuar o ofício, nenhuma direção para guiar a Igreja na
seleção de pessoas adequadas para ser apóstolos, nenhum registro de sua
nomeação, e nenhuma evidência histórica de sua prorrogação; pelo
contrário, desaparecem completamente depois da morte dos doze
originais. Também se poderia afirmar que os Faraós do Egito, ou os
Doze Césares de Roma foram continuados, tanto quanto a estirpe de
apóstolos foi perpetuada.
É verdade que há alguns poucas passagens nas quais outras pessoas,
além dos doze originais, parecem ser designados como apóstolos. Mas
do início da Igreja aos tempos modernos ninguém se aventurou com base
em tal registro a considerar Barnabé, Silas, Timóteo e Tito como
apóstolos, no sentido oficial do termo. Todas as designações dadas aos
oficiais da Igreja no Novo Testamento se empregam em sentidos
diferentes. Assim, «presbítero» ou «ancião» significa um homem idoso,
um oficial judeu, um oficial da igreja. A palavra «diácono» significa, às
vezes um criado, às vezes um oficial secular, às vezes qualquer ministro
da Igreja, e às vezes a posição inferior dos oficiais da igreja. O fato de
que Paulo e Pedro se designem a si mesmos como «diáconos» não
demonstra que seu ofício fosse servir às mesas. Da mesma maneira, a
palavra «apóstolo» às vezes se emprega em seu sentido etimológico
como «mensageiro», às vezes num sentido religioso, tal como nós
empregamos a palavra «missionário»; e às vezes em seu sentido oficial
estrito, em que fica limitado aos mensageiros imediatos de Cristo. Nada
pode estar mais claro no Novo Testamento que nem Silas nem Timóteo,
nem alguma outra pessoa, é jamais designada como o igual oficial dos
doze Apóstolos. Estes constituem uma classe por si mesmos. Destacam
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 207
no Novo Testamento como em toda a história da Igreja como os
autorizados fundadores da Igreja Cristã, sem comparação nem colegas.
Então, se o apostolado, por sua natureza e desígnio, era
intransmissível; se há esta evidência decisiva da Escritura e da história
de que não foi perpetuado, então toda a teoria romanista a respeito da
Igreja se desmorona. Esta teoria se baseia na hipótese de que os prelados
são apóstolos, investidos com a mesma autoridade para ensinar e
governar que os originais mensageiros de Cristo. Se esta hipótese resulta
infundada, então se deve abandonar toda pretensão da infalibilidade da
Igreja. Porque não se pretende que é a massa do povo a que é infalível,
nem o sacerdócio, mas sim só o episcopado. E os bispos só são infalíveis
sobre a hipótese de que são apóstolos, no sentido oficial do termo. E isto
eles não são com toda certeza. A Igreja pode fazer sacerdotes, bispos e
até papas. Mas só Cristo pode fazer um Apóstolo. Porque um Apóstolo
era um homem dotado de conhecimento sobrenatural, e com um poder
sobrenatural.

E. A infalibilidade se baseia numa falsa interpretação da


promessa de Cristo.

O terceiro argumento contra a infalibilidade da Igreja é que Cristo


nunca prometeu preservá-la de todo erro. O que aqui se significa é que
Cristo nunca prometeu à verdadeira Igreja, isto é, à «companhia de
verdadeiros crentes», que não errariam em doutrina. Prometeu que não
apostatariam fatalmente da verdade. Prometeu que concederia a Seus
verdadeiros discípulos tal medida de condução divina por Seu Espírito
que conheceriam o suficiente para ser salvos. Além disso, prometeu que
Ele chamaria homens ao ministério, dando-lhes a capacidade necessária
de mestres fiéis, como o eram os presbíteros que os Apóstolos
ordenavam em cada cidade. Mas não há promessa de infalibilidade nem
para a Igreja como um todo, nem para nenhuma classe de homens na
Igreja. Cristo prometeu santificar a Seu povo; mas não se tratava de uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 208
promessa de fazê-los perfeitamente santos nesta vida. Prometeu dar-lhes
alegria e paz em crer; mas não era uma promessa de fazê-los
perfeitamente felizes nesta vida, que não fossem padecer provas e dores.
Então, por que ia ser a promessa do ensino uma promessa de
infalibilidade? Assim como a Igreja passou através do mundo banhada
em lágrimas e sangue, assim passou maculada de pecado e erro. É assim
um manifesto que não foi nunca infalível que nunca foi perfeitamente
santa. Cristo não prometeu nem um nem outro.

F. A doutrina é contrariada pelos fatos

O quarto argumento é que a doutrina romanista da infalibilidade da


Igreja fica contradita por fatos históricos inegáveis. Portanto, não pode
ser certa. A Igreja errou frequentemente e, por isso, não é infalível.
Os protestantes creem que a Igreja, sob todas as dispensações, foi a
mesma. Sempre teve o mesmo Deus; o mesmo Redentor; a mesma regra
de fé e prática (a Palavra escrita de Deus, pelo menos desde o tempo de
Moisés), a mesma promessa da presença e direção do Espírito, a mesma
garantia de perpetuidade e triunfo. Para eles, portanto, o fato de que toda
a Igreja visível apostatasse repetidas vezes durante a antiga dispensação
e que não só o povo, mas também todos os representantes da Igreja, os
sacerdotes, os levitas e os anciãos – constitui uma prova decisiva de que
a Igreja externa, visível, pode errar fatalmente em assuntos de fé. E não
menos decisivo é tal fato de que toda a Igreja e povo judeus, como igreja
e nação, rejeitaram a Cristo. Ele veio para os Seus, e os seus não O
receberam. A vasta maioria do povo, os principais sacerdotes, os escribas
e os anciãos, recusaram reconhecê-Lo como Messias. O Sinédrio, o
grande corpo representativo da Igreja naquele tempo, declarou-O réu de
morte, e exigiu Sua crucificação. Isto, para os protestantes, é uma prova
esmagadora de que a Igreja pode errar.
Mas os romanistas fazem uma diferença entre a Igreja antes e
depois da vinda de Cristo, e não admitem o peso deste argumento.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 209
Dizem eles que o fato de que a Igreja judaica errasse não constitui prova
de que a Igreja Cristã possa errar. Por isso, será necessário mostrar, com
base nos princípios e admissões dos próprios romanistas, que a Igreja
errou. Ensinou numa época o que condenou em outra, e o que a Igreja de
Roma condena agora. Para demonstrar isto, será suficiente referir-nos a
dois exemplos inegáveis.
Deve-se ter presente em mente que pela Igreja, neste sentido, os
romanistas não se referem ao verdadeiro povo de Deus, nem ao corpo
dos cristãos professantes, nem à maioria dos sacerdotes ou doutores em
teologia, mas sim ao episcopado. Todos os cristãos estão obrigados a
crer o que ensina o corpo episcopal de cada época, porque estes bispos
estão conduzidos de tal modo pelo Espírito que são infalíveis em seu
ensino.

A apostasia ariana
O primeiro grande fato histórico inconsequente com esta teoria é
que a grande maioria dos bispos, tanto da Igreja Oriental como da
Ocidental, incluindo o Papa de Roma, ensinaram arianismo, que toda a
Igreja, tanto antes como depois, tinha condenado e condenou. A decisão
de trezentos e dezoito bispos no Concílio de Niceia, ratificada pelo
assentimento da grande maioria dos que não foram ao Concílio, é
tomada com justiça como prova de que a Igreja visível daquele tempo
ensinava, como agora o ensina Roma, que o Filho é consubstancial com
o Pai. O fato de que alguns dissentissem naquele tempo, ou que mais se
unissem logo na dissidência; ou que, ao cabo de poucos anos no Oriente
os que dissentiam fossem maioria, não se considera como invalidação da
decisão daquele Concilio como a decisão da Igreja, porque uma maioria
dos bispos, como corpo, estavam em favor da doutrina Nicena.
Então, por paridade de raciocínio, as decisões de dois concílios
coetâneos, um em Selêucia no Oriente, e outro em Ariminum no
Ocidente, incluindo a quase oitocentos bispos, e cujas decisões foram
ratificadas pela grande maioria dos bispos da igreja inteira (incluindo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 210
Libério, Bispo de Roma), devem ser aceitas como o ensino da Igreja
visível naquele período. Mas aquelas decisões, com base nos juízos
anteriores e posteriores da Igreja, foram heréticas. Tem-se insistido que a
linguagem adotada pelo Concílio do Ariminum admite uma interpretação
ortodoxa. Em resposta a isso é suficiente dizer: (1.) Que foi redigido,
proposto e defendido pelos confessos oponentes do Credo de Niceia. (2.)
Que foi resistido com firmeza da parte dos defensores daquele credo, e
que se renunciou a isso logo que estes últimos obtiveram o controle. (3.)
Que o próprio Sr. Palmer admite que o Concílio repudiou a palavra
«consubstancial» como expressão da relação do Filho com o Pai. Mas
este era precisamente o ponto sob discussão entre os ortodoxos e os
semi-arianos.
Os antigos e modernos se unem em testificar a respeito da
superioridade geral do arianismo naquele tempo. Gregório Nazianzeno
diz, 91 “Nam si perpaucos exceperis, . . . . omnes (pastores) tempori
obsecuti sunt: hoc tantum inter eos discriminis fuit, quod alii citius, alii
seriùs in eam fraudem inciderunt, atque, alii impietatis duces
antistitesque se præbuerunt.” Jerónimo dice, “Ingemuit totus orbis
terrarum, et Arianum se esse miratus est.” 92 Ele também diz: 93 “Ecclesia
non parietibus consistit, sed in dogmatum veritate, Ecclesia ibi est ubi
fides vera est. Ceterum ante annos quindecim aut viginti parietes omnes
hic ecclesiarum hæretici (Ariani) possidebant, Ecclesia autem vera illic
erat, ubi vera fides erat.” Afirmavam-se que todo mundo se tinha tornado
ariano, e que todas as igrejas estavam em possessão de hereges. Estas
declarações devem tomar-se com prudência, mas demonstram que a
grande maioria de bispos tinham adotado o Credo Ariano ou semi-
Ariano. Atanásio se manifesta nos mesmos termos. “Quæ nunc ecclesia
libere Christum adorat? Si quidem ea, si pia est, periculo subjacet? . . . .
Nam si alicubi pii et Christi studiosi (sunt autem ubique tales permulti)
91
Orat. xvi. t. i. p. 387, edition Paris, 1609.
92
Dialogues contra Luciferanos, 19 vol. ii. p. 172 c., edit. Migue, Paris, 1845.
93
Comment. on Ps. cxxxiii., vol. vii. p. 1223 a, edit. Migne.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 211
illi itidem, ut Prophetæ et magnus ille Elias, absconduntur, . . . . et in
speluncas et cavernas terræ sese abstrudunt, aut in solitudine aberrantes
commorantur.” 94 Vicente de Lerino 95 diz: “Arianorum venenum non jam
portiunculam quamdam, sed pene orbem totum contaminaverat, adeo ut
prope cunctis Latini sermonis episcopis partim vi partim fraude deceptis
caligo quædam mentibus effunderetur.”
A estes antigos testemunhos poder-se-ia acrescentar uma boa
quantidade de modernas autoridades. Damos só o testemunho do doutor
Jackson, um dos mais distinguidos teólogos da Igreja da Inglaterra:
«Depois desta defecção da Igreja de Roma no bispo Libério, todo o
império romano ficou coberto de arianismo». 96 Qualquer que seja a
dúvida a respeito dos detalhes, não pode duvidar do fato geral desta
apostasia. Por afastamento da verdade, pelas artes do partido dominante,
pela influência do imperador, a grande maioria dos bispos uniram-se na
condenação de Atanásio e em assinar uma fórmula de doutrina redigida
em oposição ao Credo de Niceia; fórmula que foi depois rejeitada e
condenada; uma fórmula por causa da qual o Bispo de Roma foi banido
durante dois anos por não querer assiná-la, sendo restaurado à sua sede
quando consentiu em assiná-la. Então, se aplicarmos a este caso as
mesmas normas que se aplicam às decisões do Concílio de Niceia, temos
que admitir que a Igreja externa apostatou tão verdadeiramente sob
Constâncio como tinha professado a verdadeira fé sob Constantino. Se
muitos assinaram a fórmula Eusebiana ou Ariana de maneira insincera,
da mesma maneira muitos assentiram hipocritamente aos decretos de
Niceia. Se muitos se viram afligidos pela autoridade e o temor num caso,
assim sucedeu no outro. Se muitos revogaram seu assentimento ao
arianismo, outros tantos praticamente retiraram seu consentimento à
doutrina Atanasiana.

94
Comm. I. iv. p. 642, vol. 1. Migne, Patrol., Paris, 1846.
95
Comm. I. iv. p. 642, vol. 1. Migne, Patrol., Paris, 1846.
96
On the Church, p. 160. Edited by W. Goode. Philadelphia, 1844.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 212
A evasão romanista deste argumento
Ao tratar deste fato inegável, os romanistas e romanizadores se
veem obrigados a abandonar seu princípio. Sua doutrina é que a Igreja
externa não pode errar, que a maioria de bispos que vivem em qualquer
época não podem deixar de ensinar a verdade. Mas é inegável que sob o
reinado do imperador Constâncio a imensa maioria, incluindo o Bispo de
Roma, renunciaram à verdade. Mas diz Belarmino 97 que a Igreja
prosseguiu e que foi conspícua em Atanásio, Hilário, Eusébio e outros. E
diz Palmer, de Oxford: 98 «A verdade foi preservada inclusive sob bispos
arianos». Mas a questão não é se a verdade será preservada e confessada
pelos verdadeiros filhos de Deus, mas sim se um corpo externo,
organizado, e especialmente a Igreja de Roma, pode errar em seus
ensinos. Não se pode admitir que os romanistas, só para confrontar uma
emergência, lancem mão da doutrina protestante de que a igreja pode
consistir de crentes espalhados. É verdade que, como o afirma Jerônimo,
«Ubi fides vera est, ibi Ecclesia est» [Onde está a verdadeira fé, ali está a
Igreja]; mas esta é nossa doutrina, não a de Roma. «Ecclesia manet et
manebit» [A Igreja permanece e permanecerá]. Mas seja isso em glória
manifesta, como nos tempos de Davi, ou como crentes espalhados, como
nos dias de Elias, não é essencial.

A Igreja de Roma rejeita a doutrina de Agostinho


Um segundo caso em que a igreja externa (e especialmente a Igreja
de Roma) apartou-se do que havia ela mesma declarado verdadeiro é no
rechaço das doutrinas conhecidas historicamente como agostinianas. O
fato de que as peculiares doutrinas de Agostinho tinham sido
reconhecidas por toda a Igreja, e especialmente pela Igreja de Roma, é
algo inegável. Estas doutrinas incluem a doutrina da corrupção
pecaminosa da natureza que se deriva de Adão, que é morte espiritual, e

97
De Ecclesia, lib. III. c. 16.
98
On the Church, vol. II, p. 187.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 213
que envolve a total incapacidade de parte do pecador de converter-se a si
mesmo ou de cooperar em sua própria regeneração; a necessidade da
operação certamente eficaz da graça divina; a soberania de Deus em
eleição e reprovação, e a certa perseverança dos santos. O capítulo
dezoito da obra do Wiggers, Agustinianismo e Pelagianismo, titula-se:
«A final adoção do sistema agostiniano para toda a cristandade por parte
do terceiro concílio ecumênico de Éfeso, 431 d.C.» Não se nega que
muitos dos bispos orientais, talvez a maioria dos mesmos, estavam
secretamente opostos a este sistema em seus rasgos essenciais. Na única
coisa que se insiste é que toda a Igreja, através do que os romanistas
reconhecem como seus órgãos oficiais, deram sua sanção às peculiares
doutrinas de Agostinho; e que pelo que à Igreja Latina respeita, este
assentimento não foi só naquele então geral, mas sim cordial. Não é
menos certo que o Concílio de Trento, enquanto que condenou o
Pelagianismo, e inclusive a peculiar doutrina dos semipelagianos, que
dizem que o homem começou a obra da conversão, negando com isso a
necessidade da graça preveniente (gratia preveniens), repudiou
entretanto as doutrinas distintivas de Agostinho, e anatematizou a todos
os que as sustentaram.

G. A Igreja de Roma ensina agora o erro.

Um quinto argumento contra a infalibilidade da Igreja de Roma é


que esta Igreja ensina agora o erro. Disto não pode haver nenhuma
dúvida razoável, se as Escrituras são admitidas como a regra mediante a
qual julgar.
1. É um monstruoso erro, contrário à Bíblia, à sua letra e espírito, e
chocante para o senso comum da humanidade, que a salvação dos
homens dependa de seu reconhecimento de que o Papa é o cabeça da
Igreja no mundo, ou Vigário de Cristo. Isto faz com que a salvação seja
independente da fé e do caráter. Um homem pode ser sincero e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 214
inteligente em sua fé em Deus e Cristo, e perfeitamente exemplar em sua
vida cristã, mas se não reconhece o Papa, tem que perecer eternamente.
2. É um erro grave, contrário aos expressos ensinos da Bíblia, que
os sacramentos sejam os únicos canais para comunicar aos homens os
benefícios da redenção. Como consequência desta falsa hipótese, os
romanistas ensinam que todos os que morrem sem ser batizados,
inclusive as crianças, perdem-se.
3. É um grande erro ensinar, como o ensina a Igreja de Roma, que
os ministros do evangelho sejam sacerdotes; que as pessoas não tenham
acesso a Deus ou Cristo, e que não podem obter a remissão dos pecados
nem nenhuma outra graça salvadora, exceto por meio de sua intervenção
e por suas ministrações; que os sacerdotes tenham o poder não só de uma
absolvição declarativa, mas também judicial e efetiva, de maneira que
são aqueles e só aqueles que são por eles absolvidos os que ficam livres
perante o tribunal de Deus. Esta foi a grande razão da Reforma, que foi
uma rebelião contra este domínio sacerdotal: uma demanda por parte do
povo daquela liberdade com que Cristo os tinha libertado, – a liberdade
de ir diretamente a ele com seus pecados e dores, e encontrar alívio sem
a intervenção nem a permissão de ninguém que não tivesse mais direito a
este acesso que eles.
4. A doutrina do mérito das boas obras como a ensinam os
romanistas é outro erro do mais prolífico. Eles mantêm que as obras
feitas depois da regeneração têm um verdadeiro mérito (meritum
condigni), e que são a base da justificação do pecador diante de Deus.
Mantêm que um homem pode fazer mais do que a lei demanda, e levar a
cabo obras de supererrogação, e obter assim mais mérito que o
necessário para sua própria salvação e beatificação. E que este mérito
restante passa à tesouraria da Igreja, e que pode ser dispensado para
benefício de outros. É sobre esta base que se concedem ou vendem
indulgências, com efeitos não só para esta vida, mas também para a
vindoura.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 215
5. Com isto se conecta o adicional erro do Purgatório. A Igreja de
Roma ensina que os que morrem no seio da Igreja, mas que não deram
nesta vida uma plena satisfação por seus pecados, nem adquirido
suficientes méritos para ter direito a entrar no céu, passam na morte a um
estado de sofrimento, para ficar ali até que se deu uma satisfação plena e
se obteve uma purificação adequada. Não há nenhum fim necessário a
este estado de purgatório senão até o dia do juízo ou o fim do mundo.
Pode durar mil ou muitos milhares de anos. Mas o Purgatório está sob o
poder das chaves. Os sofrimentos destas almas neste estado podem ser
aliviados ou encurtados pelos ministros autorizados da Igreja. Não há
limite para o poder daqueles homens que, crê-se, têm as chaves do céu
em suas mãos, para fechar, e que ninguém possa abrir, ou para abrir, e
que ninguém possa fechar. De todas as coisas incríveis, a mais incrível é
que Deus fosse dar um poder assim a homens fracos, ignorantes e muitas
vezes ímpios.
6. A Igreja de Roma ensina um grave erro a respeito da Ceia do
Senhor. Ensina: (1.) Que quando é consagrada pelo sacerdote, toda a
substância do pão e toda a substância do vinho são transmutadas na
substância do corpo e do sangue de Cristo. (2.) Que como seu corpo é
inseparável de sua alma e divindade, onde este o um tem que estar o
outro. O Cristo inteiro pois, corpo, alma e divindade, está presente na
hóstia consagrada, que deve ser adorada como o próprio Cristo é
adorado. Esta é a razão de que a Igreja da Inglaterra em suas Homilias
denuncia o serviço da Missa na Igreja de Roma como idolátrico. (3.)
Ademais, a Igreja de Roma ensina que o corpo e o sangue de Cristo
assim presente local e substancialmente na Eucaristia são oferecidos
como um verdadeiro sacrifício de propiciação para perdão dos pecados, e
cuja aplicação é determinada pela intenção dos sacerdotes oficiantes.
7. A idolatria consiste não só na adoração de falsos deuses, mas na
adoração do verdadeiro Deus mediante imagens. O segundo
Mandamento do Decálogo proíbe de maneira expressa inclinar-se
perante ou servir alguma semelhança de algo acima no céu ou abaixo na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 216
terra. No hebraico as palavras usadas são, ֲ‫ הוָהִתְַּׁשח‬e ָ‫דבַצ‬. Na
Septuaginta as palavras são, ου προσκυνήσεις αὐτοῖς, οὐδὲ μὴ
λατρεύσεις αὐτοῖς. Na Vulgata se lê: “Non adorabis ea neque coles.”
[não as adorareis nem as servireis]. E é precisamente aquilo que está
proibido o que a Igreja de Roma permite e manda: o uso de imagens no
culto religioso, prostrar-se perante elas, e lhes fazer reverência.
8. Outro grande erro da Igreja de Roma é o culto aos santos e anjos,
e especialmente à Virgem Maria. Não se trata meramente de que sejam
considerados objetos de reverência, mas sim o serviço que lhes é rendido
envolve a adscrição de atributos divinos. Supõe-se que estão presentes
em todas partes, capazes de ouvir e responder à oração, de ajudar e
salvar. Devem ser a base da confiança do povo, e objetos de seus afetos
religiosos. São para eles precisamente o que eram os deuses pagãos para
os gregos e romanos.
Estes são alguns dos erros da Igreja de Roma, e demonstram que
esta Igreja, longe de ser infalível, está tão corrompida que é o dever do
povo de Deus sair dela e renunciar à sua comunhão.

H. O reconhecimento de uma Igreja Infalível é incompatível


com a liberdade religiosa ou civil.

Uma igreja que pretenda ser infalível declara-se, por isso mesmo, a
proprietária do mundo; e os que admitem sua infalibilidade admitem
com isso sua total submissão à sua autoridade. De nada lhes serve dizer
que esta infalibilidade está limitada a questões de fé e moral, porque sob
estes cabeçalhos se inclui toda a vida do homem: o religioso, o moral, o
doméstico, o social e o político.
Uma igreja que reivindica o direito de decidir o que é verdade em
doutrina e obrigatória a respeito de moralidade, e afirma o poder para
fazer cumprir submissão a suas decisões sob a penalidade de perdição
eterna, não deixa nenhum espaço para qualquer outra autoridade na
Terra. Na presença da autoridade de Deus, tudo o mais desaparece.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 217
Com a reivindicação à infalibilidade está inseparavelmente
conectada à reivindicação de perdoar pecado. A Igreja não assume
meramente o direito de declarar as condições em que o pecado será
perdoado perante o tribunal de Deus, mas sim afirma ter a prerrogativa
de conceder, ou reter aquele perdão. “Ego te absolvo,” é a fórmula que a
Igreja põe na boca de seu sacerdócio. Aqueles que recebem aquela
absolvição são perdoados; aqueles a quem a Igreja recusa absolver
devem suportar a penalidade de suas ofensas.
Uma igreja infalível é, deste modo, o único instituto de salvação.
Tudo dentro de seu interior são perdoados; todos fora perecem. Só estão
na Igreja aqueles que creem no que ela ensina, que fazem o que ela
ordena, e são sujeitos aos seus ofícios, e especialmente à sua cabeça, o
pontífice romano. Qualquer homem, portanto, a quem a Igreja
excomunga está assim fechado do reino do céu; qualquer nação colocada
sob seus proclamas não é apenas destituída das consolações de serviços
religiosos, mas também do meio necessário de salvação.
Se a Igreja é infalível, sua autoridade não é menos absoluta na
esfera da vida social e política. É imoral contrair ou persistir num
casamento ilegítimo, manter um juramento ilegítimo, promulgar leis
injustas, obedecer um soberano hostil à Igreja. Por isso, a Igreja tem o
direito a dissolver casamentos, a libertar os homens da obrigação a seus
juramentos, e aos cidadãos de suas lealdades, a ab-rogar leis civis, e a
depor soberanos. Estas prerrogativas não foram só reivindicadas, mas
sim exercidas vez após vez pela Igreja de Roma. E, se fosse infalível,
pertencer-lhe-iam de direito. Como estas pretensões são sob pena da
perda da alma, não podem ser resistidas pelas que admitem que a Igreja é
infalível. É evidente, portanto, que onde esta doutrina é sustentada não
pode haver liberdade de opinião, nem liberdade de consciência, nem
liberdade civil nem política. Porquanto o recente Concílio Vaticano
decidiu que esta infalibilidade está investida no papa, é a partir de agora
um artigo de fé para os romanistas que o romano pontífice é o absoluto
soberano do mundo. Todos os homens estão obrigados a crer, sob pena
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 218
de morte eterna, a crer o que ele declara certo, e a fazer tudo aquilo que
ele decida que é obrigatório.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 219
CAPÍTULO VI
A REGRA PROTESTANTE DA FÉ

§ 1. Enunciado da doutrina

TODOS os protestantes concordam em ensinar que «a Palavra de


Deus, tal como se contém nas Escrituras do Antigo e do Novo
Testamento, é a única norma infalível de fé e prática».
No Smalcald Articles, 99 a Igreja luterana diz: “Ex patrum — verbis
et factis non sunt exstrueudi articuli fidei — Regulam autem aliam
habemus, ut videlicet verbum Dei condat articulos fidei et præterea
nemo, ne angelus quidem.” Na “Form of Concord,” 100 it is said:
“Credimus, confitemur et docemus, unicam regulam et normam
secundum quam omnia dogmata omnesque doctores æstimari et judicari
oporteat, nullam omnino aliam esse, quam prophetica et apostólica
scripta cum V. tum N. Testamenti.”
Os símbolos das igrejas Reformadas ensinam a mesma doutrina. A
Segunda Confissão Helvética 101 diz: “In scriptura sancta habet unversalis
Christi Ecclesia plenissime exposita, quæcunque pertinent cum ad
salvificam fidem, tum ad vitam Deo placentem. 102 Non alium in causa
fidei judicem, quam ipsum Deum per Scripturas sacras pronuntiantem,
quid verum sit, quid falsum, quid sequendum sit quidne fugiendum.
Confessio Gallicana: 103 Quum hæc (SS.) sit omnis veritatis summa,
complectens quidquid ad cultum Dei et salutem nostram requiritur,
neque hominibus neque ipsis etiam angelis fas esse dicimus quicquam ei
verbo adjicere vel detrahere vel quicquam prorsus in eo immutare.”
Nos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra diz-se:

99
Part ii. 2, 15; Hase Lib. Sym. p. 308.
100
Page 570, ibid.
101
C, u, o, 467, ibid.
102
C. ii. p. 479, ibid.
103
Art. v. p. 330, ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 220
«A Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias para a
salvação: de maneira que tudo o que não se diz nela, nem pode ser
demonstrado por ela, não deve ser requerido por nenhum homem, que
deva ser crido como artigo de fé, nem ser considerado preciso nem
necessário para a salvação». 104 A Confissão de Westminster 105 ensina:
«Sob o nome da Sagrada Escritura, ou a Palavra de Deus escrita,
contêm-se agora todos os livros do Antigo e Novo Testamento, que são
estes: etc. .... todos os quais são dados por inspiração de Deus, para ser a
regra da fé e da vida. 106 Todo o conselho de Deus a respeito de todas as
coisas necessárias para sua própria glória, a salvação do homem, a fé e a
vida, são ou expostas de maneira expressa na Escritura, ou por
consequência boa e necessária podem-se deduzir da Escritura; à qual
nada em nenhum momento pode ser acrescentado por novas revelações
do Espírito ou tradições dos homens. 107 Todas as coisas na Escritura não
são igualmente claras, nem igualmente claras para todos; entretanto,
aquelas coisas que são necessárias saber, crer e observar, para a
salvação, estão propostas com tanta clareza e abertas em algum lugar ou
outro da Escritura, que não só os entendidos, mas também os não
entendidos podem, com o devido uso dos meios comuns, chegar a uma
suficiente compreensão dos mesmos».
Destas declarações faz-se evidente que os protestantes mantêm:
(1.) Que as Escrituras do Antigo e Novo Testamento são a Palavra
de Deus, escrita sob inspiração do Espírito Santo, e que portanto são
infalíveis e de autoridade divina em todas as coisas que respeitam à fé e
à prática e, por conseguinte, livres de todo erro, seja de doutrina, de fato
ou de preceito. (2.) Que contêm todas as revelações sobrenaturais
existentes de Deus designadas para ser regra de fé e prática de sua Igreja.
(3.) Que são suficientemente perspícuas para ser compreendidas pelo

104
Artigo 6.
105
Cap. I. §2.
106
Ibid. § 6.
107
Ibid. § 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 221
povo, com o uso dos meios comuns e mediante a ajuda do Espírito
Santo, em todas as coisas necessárias para a fé e a prática, sem a
necessidade de nenhum intérprete infalível.

O Cânon
Antes de entrar na consideração destes pontos, é necessário
responder à pergunta: Que livros têm direito a um lugar no cânon, ou
regra de fé e prática? Os romanistas respondem a pergunta, dizendo que
todos aqueles que a Igreja decidiu que são divinos em sua origem, e
nenhum outro, devem ser recebidos como tais. Os protestantes replicam,
dizendo que pelo que respeita ao Novo Testamento, só aqueles livros que
Cristo e Seus Apóstolos reconheceram como a Palavra Escrita de Deus
têm direito a ser considerados canônicos. Este reconhecimento foi dado
da seguinte maneira: Primeiro, muitos dos livros do Antigo Testamento
são citados como a Palavra de Deus, como dados pelo Espírito; ou diz-se
que o Espírito pronunciou o que neles se registra. Segundo, Cristo e seus
Apóstolos se referem aos escritos sagrados dos judeus – o volume que
eles consideravam como divino – como sendo de fato o que afirmava ser,
a Palavra de Deus. Quando nos referimos à Bíblia como possuidora de
autoridade divina, referimo-nos a ela como um volume, e reconhecemos
todos os escritos que contém como dados por inspiração do Espírito. Da
mesma maneira, quando Cristo ou Seus Apóstolos citam as «Escrituras»,
ou «a lei e os profetas», e falam do volume que então se chamava assim,
davam sua sanção à autoridade divina de todos os livros que continha
aquele volume. Assim, tudo o que é necessário determinar aos cristãos a
respeito do cânon do Antigo Testamento é quais eram os livros incluídos
nas «Escrituras» reconhecidas pelos judeus daquele período. Esta é uma
questão a respeito da qual não cabe nenhuma dúvida razoável. O cânon
judaico do Antigo Testamento incluía todos os livros e nenhum senão os
que agora reconhecem os protestantes como constituindo as Escrituras
do Antigo Testamento. É sobre esta base que os protestantes rejeitam os
chamados livros apócrifos. Não foram escritos no hebraico nem foram
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 222
incluídos no cânon dos judeus. Por isso, não foram reconhecidos por
Cristo como a Palavra de Deus. Esta razão é suficiente por si mesma.
Entretanto, fica confirmada por considerações derivadas do próprio
caráter dos livros. Abundam em erros, e em declarações contrárias às que
se encontram nos livros indubitavelmente canônicos.
O princípio com base no qual se determina o cânon do Novo
Testamento é igualmente singelo. Aqueles livros, e só aqueles que
podem ser demonstrados como escritos pelos Apóstolos, ou que
receberam sua sanção, devem ser reconhecidos como de autoridade
divina. A razão desta regra é evidente. Os Apóstolos foram os
mensageiros devidamente autorizados de Cristo, dos quais Ele disse:
«Aquele que a vós ouve, me ouve».

§ 2. As Escrituras são infalíveis, isto é, são dadas por


Inspiração Divina

A infalibilidade e divina autoridade das Escrituras devem-se ao fato


de que são a palavra de Deus; e são a palavra de Deus porque foram
dadas pela inspiração do Espírito Santo.

A. A natureza da Inspiração. Definição.

A natureza da inspiração deve-se aprender com base nas Escrituras;


com base em suas declarações didáticas e de seus próprios fenômenos.
Há certos fatos gerais ou princípios que subjazem na Bíblia, que se
supõem em todo seu ensino e que, por isso, se devem supor em sua
interpretação. Temos, por exemplo, que dar por sentado: (1.) Que Deus
não é a base inconsciente de todas as coisas; nem uma força
ininteligente; nem um nome para a ordem moral do universo; nem mera
causalidade; mas sim um Espírito, – um agente consciente, inteligente e
com vontade, possuindo todos os atributos de nossos espíritos sem
limitação, e até um grau infinito. (2.) Que Ele é o Criador do mundo e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 223
que é extramundano, existindo antes e independentemente do mesmo;
não sua alma, vida ou princípio animador, mas sim seu Criador,
Preservador e Governante. (3.) Que como Espírito está presente em todas
partes e em todas partes ativo, preservando e governando a todas as Suas
criaturas e todas as suas ações. (4.) Que enquanto que tanto no mundo
exterior como no da mente age geralmente segundo leis fixas e por meio
de causas secundárias, Ele é livre para agir, e com frequência o faz de
maneira imediata, ou sem a intervenção de tais causas, como na criação,
na regeneração, e nos milagres (5.) Que a Bíblia contém uma revelação
sobrenatural, divina. A questão presente não é se a Bíblia é o que afirma
ser, mas sim, o que ensina quanto à natureza e efeitos da influência sob a
qual foi escrita?
A respeito deste tema a doutrina comum da Igreja é e foi sempre
que a inspiração foi uma influência do Espírito Santo sobre as mentes de
certos homens selecionados, que os fez órgãos de Deus para a
comunicação infalível de sua mente e vontade. Eles foram órgãos de
Deus no sentido de que o que eles disseram o disse Deus.

B. A Inspiração é sobrenatural.

A inspiração é uma influência sobrenatural. Assim, distingue-se,


por um lado, da agência providencial de Deus, que está em todas partes e
sempre em operação; e por outro lado, das operações do Espírito em
graça nos corações do povo. De acordo com as Escrituras, e as posturas
comuns de homens, uma distinção marcada tem que ser feita entre
aqueles efeitos que são devido à eficiência de Deus operando
regularmente por segundas causas, e aqueles que são produzidos por Sua
eficiência imediata sem a intervenção de tais causas. Uma classe de
efeitos é natural; a outro, sobrenatural. A inspiração pertence à classe
posterior. Não é um efeito natural devido ao estado interior de seu
sujeito, nem à influência de circunstâncias externas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 224
Não menos óbvio é a distinção que a Bíblia faz entre as graciosas
operações do Espírito e aquelas pelas quais dons extraordinários são
dados a pessoas particulares. A inspiração, por isso, não se deve
confundir com iluminação espiritual. Diferem, primeiro, quanto a seus
sujeitos. Os sujeitos da inspiração foram umas poucas pessoas
escolhidas; os sujeitos da iluminação espiritual são todos os verdadeiros
crentes. E segundo, diferem quanto ao seu desígnio. O desígnio da
primeira é tornar certos homens infalíveis como mestres; o desígnio da
segunda é tornar os homens santos. E naturalmente diferem a respeito de
seus efeitos. A inspiração não tem um efeito santificador. Balaão foi
inspirado. Saul esteve entre os profetas. Caifás pronunciou uma
predição, e aquilo «não o disse por si mesmo» (Jo 11:51). No último dia
muitos dirão a Cristo, “Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em
teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente:
nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade.”
(Mt. 7:22, 23).

C. Distinção entre Revelação e Inspiração.

Segundo, a anterior definição supõe uma diferença entre revelação e


inspiração. Diferem, em primeiro lugar, quanto ao seu objetivo. O
objetivo da revelação é comunicar conhecimento. O objetivo ou desígnio
da inspiração é assegurar a infalibilidade no ensino. Consequentemente,
diferem também em seus efeitos. O efeito da revelação era fazer mais
sábio a quem a recebia. O efeito da inspiração era preservá-lo de erro no
ensino.
Era frequente que uma mesma pessoa possuísse estes dois dons
simultaneamente. Isto é, o Espírito comunicava frequentemente
conhecimento, e controlava na comunicação do mesmo, verbalmente ou
por escrito, a outros. Este foi indubitavelmente o caso do salmista, e
frequentemente com os profetas e apóstolos. ... Em muitos casos estes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 225
dons estavam separados. Muitos dos escritores sagrados, embora
inspirados, não receberam revelações. Este foi possivelmente o caso dos
autores dos livros históricos do Antigo Testamento. O evangelista Lucas
não relaciona seu conhecimento dos acontecimentos que narra com
alguma revelação, mas diz que a deriva daqueles «os que desde o
princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra» (Lc
1:2). É irrelevante para nós de onde Moisés obteve seu conhecimento
dos acontecimentos registrados no Livro do Gênesis; se de antigos
documentos, se da tradição, ou se de uma revelação direta. Não se deve
assumir mais causas por qualquer efeito que as necessárias. Se o escritor
sagrado tinha suficientes fontes de conhecimento em si mesmos, ou nos
deles, não há necessidade de assumir uma revelação direta. É suficiente
para nós que foram apresentados infalíveis como mestres. Se os
escritores sagrados tinham suficientes fontes de conhecimento por si
mesmos ou por meio dos que os rodeavam, não há necessidade de supor
uma revelação direta. É-nos suficiente que fossem constituídos infalíveis
como mestres.
Esta distinção entre revelação e inspiração é usualmente feita por
escritores sistemáticos. Assim Quenstedt (1685) 108 diz: “Distingue inter
revelationem et inspirationem. Revelatio vi vocis est manifestatio rerum
ignotarum et occultarum, et potest fieri multis et diversis modis. . . . .
Inspiratio . . . . est interna conceptum suggestio, seu infusio, sive res
conceptæ jam ante scriptori fuerint cognitæ, sive occultæ. Illa potuit
tempore antecedere scriptionem, hæc cum scriptione semper fuit
conjuncta et in ipsam scriptionem influebat.” Frequentemente,
entretanto, a distinção em questão é omitida. Em linguagem popular, a
inspiração é feita para incluir ambas a comunicação sobrenatural de fato
para a mente, e um controle sobrenatural em fazer conhecida aquela
verdade para outros. O dois dons, entretanto, diferiam em sua natureza e
deviam, portanto, ser distintos. Confundidos, eles às vezes conduziram a

108
Theologia, I. IV. ii. qu. iii. ἔχθεσις, 3; edit. Wittenberg, 1685, pp. 68, a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 226
erro sério. Quando nenhuma revelação foi necessária, nenhuma
inspiração foi admitida. Assim Grócio diz: “Vere dixi non omnes libros
qui sunt in Hebræo Canone dictatos a Spiritu Sancto. Scriptos esse cum
pio animi motu, non nego; et hoc est quod judicavit Synagoga Magna,
cujus judicio in hac re stant Hebræi. Sed a Spiritu Sancto dictari historias
nihil fuit opus: satis fuit scriptorem memoria valere circa res spectatas,
aut diligentia in describendis veterum commentariis.” 109
Entretanto, é uma conclusão ilógica inferir que, porquanto um
historiador não tivesse necessidade de que lhe ditassem os fatos, não
necessitava de controle para ser preservado do erro.

D. Homens inspirados foram órgãos de Deus.

Um terceiro ponto incluído na doutrina da Igreja a respeito da


inspiração é que os escritores sagrados foram órgãos de Deus, pelo que o
que eles ensinavam o ensinava Deus. Não obstante, é preciso lembrar
que quando Deus emprega a qualquer das Suas criaturas como
instrumentos, emprega-os conforme a sua natureza. Emprega os anjos
como anjos, os homens como homens, e os elementos como elementos.
Os homens são agentes voluntários inteligentes; e, como tais, foram
feitos como órgãos de Deus. Os escritores sagrados não foram tornados
inconscientes nem irracionais. Os espíritos dos profetas estavam sujeitos
aos profetas (1Co 14:32).
Eles não foram como máquinas calculadas que solucionam
logaritmos com justeza infalível. Os antigos, realmente, costumavam
dizer, como alguns teólogos também têm dito, que os escritores sagrados
eram como penas na mão do Espírito; ou como harpas, das quais Ele
tirou os sons que lhe agradou. Mas estas representações só tentavam
simplesmente ilustrar um ponto, isto é, que as palavras que foram

109
“Votum pro Pace Ecclesiastica.” Opera, Londini, 1679, t. iii. p. 672.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 227
articuladas ou registradas por homens inspirados fossem as palavras de
Deus. A Igreja nunca manteve o que foi estigmatizado como a teoria
mecânica da inspiração. Os escritores sagrados não eram máquinas. Sua
autoconsciência não era suspensa; nem eram seus poderes intelectuais
substituídos. Os homens santos falaram como eles eram movidos pelo
Espírito Santo. Eram homens, não máquinas; instrumentos não
inconscientes, mas vivendo, pensando, mente dispostas, aos quais o
Espírito usou como Seus órgãos. Além disso, assim como a inspiração
não envolveu a suspensão nem a supressão das faculdades humanas,
tampouco interferiu com o livre exercício das faculdades mentais
características do indivíduo. Se o inspirado era um hebreu, falava em
hebraico. Se era grego, falava em grego; se era um homem instruído,
falava como homem de cultura; se era rude, falava como tal homem é
propenso a falar. Se sua mente era lógica, raciocinava, como o fazia
Paulo. Se era emocional e contemplativo, escrevia como João. Tudo isto
está envolto no fato de que Deus emprega Seus instrumentos conforme a
sua natureza. Os escritores sagrados deixaram a estampagem de seu
caráter em suas várias produções de uma maneira tão clara como se não
tivessem estado submetidos a nenhuma influência extraordinária. Este é
um dos fenômenos da Bíblia que destacam perante o leitor mais
desatento.
Apoia-se na verdadeira natureza da inspiração que Deus falou na
língua dos homens; que Ele usa homens como Seus órgãos, cada um de
acordo com seus dons e dons peculiares. Quando Ele tira louvor da boca
de bebês, devem falar como bebês, ou o poder e beleza inteiras do tributo
serão perdidos. Não há nenhuma razão para crer que a operação do
Espírito na inspiração revelou propriamente mais na consciência dos
escritores sagrados, que suas operações em santificação revelam eles
mesmos na consciência do cristão. Como o crente parece ele mesmo lei,
e de fato age fora de sua própria natureza; assim os escritores sagrados
escreveram da plenitude de seus próprios pensamentos e sentimentos,
empregando a linguagem e modo de expressão que lhes era mais natural
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 228
e apropriado. Entretanto, e nem por isso em menor grau, falaram tal
como foram impulsionados pelo Espírito Santo, e suas palavras eram as
palavras dEle.

E. Prova da doutrina

O fato de que esta é a doutrina escriturística da inspiração; de que


homens inspirados foram os órgãos de Deus no sentido de que suas
palavras devem ser recebidas não como palavras de homens, mas sim
como o são na verdade como as palavras de Deus (1Ts 2:13), fica
demonstrado:
1. Pelo significado e uso da palavra. Admite-se, naturalmente, que
as palavras devem ser entendidas em seu sentido histórico. Se se pode
ver qual é a ideia que os homens que viviam na era apostólica atribuíam
à palavra θεόπνευστος - theopneustos e suas equivalentes, esta é a ideia
que os apóstolos queriam expressar com as mesmas. Todas as nações
creram não só que Deus tem acesso à mente humana e que pode
controlar suas operações, mas sim em algumas ocasiões Ele tomou tal
possessão de pessoas determinadas que fez delas órgãos de Suas
comunicações. A estas pessoas os gregos chamavam θεοφόροι -
theophoroi (os que levavam um Deus dentro deles); ou, ἔνθιος - enthios
(aqueles nas que habitava um Deus). Na Septuaginta empregava-se
palavra πνευματοφόρος - pneumatophoros no mesmo sentido. Em
Josefo, 110 a ideia é expressa mediante a frase “τῷ θείῳ πνεύματι
κεκινήμενος” (to theioi pneumati kekinëmenos), com as quais se
correspondem de maneira exata as palavras de Pedro (2Pe 1:21): ὑπὸ
πνεύματος φερόμενοι (hupo pneumatos pheromenoi), e o que é escrito
pelos homens sob a influência do Espírito é chamado γραφὴ
θεόπνευστος (graphë theopneustos) (2Tm 3:16).

110
Antigüedades , IV. 6,5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 229
111
Gregório de Nissa, tendo citado as palavras de nosso Senhor em
Mt. 22.43, “Como, pois, Davi, no Espírito o chama Senhor,” agrega,
οὐκοῦν τῇ δυνάμει τοῦ Πνεύματος οἱ θεοφορούμενοι τῶν ἀγίων
ἐμπνέονταὶ, καὶ διὰ τοῦτο πᾶσα γραφὴ θεόπνευστος λέγεται, διὰ τὸ τῆς
θείας ἐπνεύσεως εἰναι διδασκαλίαν, isto é, “Consequentemente aqueles
dos santos que pelo poder do Espírito estão cheios de Deus são
inspirados e, portanto, toda Escritura é chamada θεόπνευστος
(theopneustos), porque a instrução é por inspiração divina.” A ideia de
inspiração está fixada. Não deve ser determinada arbitrariamente. Não
devemos interpretar a palavra ou o fato com base em nossas teorias da
relação de Deus com o mundo, mas com base no uso da antiguidade,
sagrada e profana, e conforme a doutrina que se conhece que os
escritores sagrados e os homens de sua geração mantiveram a respeito
desta questão. Segundo toda a antiguidade, um homem inspirado era
alguém que era o órgão de Deus no que dizia, de maneira que suas
palavras eram as palavras de Deus de quem ele era o órgão. Quando,
portanto, os escritores sagrados usam as mesmas palavras e formas de
expressão que usavam os antigos para comunicar esta ideia, deve supor-
se, com toda honradez, que significavam o mesmo conceito.

Argumento baseado no significado da palavra profeta.


2. Que este é o significado da ideia escriturística da inspiração fica
adicionalmente demonstrado pelo significado da palavra profeta. Os
escritores sagrados dividem as Escrituras em «a lei e os profetas». Como
a lei foi escrita por Moisés, e Moisés era o maior dos profetas, disso se
segue que todo o Antigo Testamento foi escrito por profetas. Se
podemos, então, determinar o sentido escriturístico do termo profeta,
determinaremos com isso o caráter de seus escritos e a autoridade que se
lhes deve atribuir. Assim, um profeta, no sentido escriturístico do termo,
é um porta-voz, alguém que fala por outro, em seu nome e com sua

111
Contra Eunomium Orat. vi. t. ii. p. 187, Paris, 1615.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 230
autoridade; de modo que não é o porta-voz, senão aquela pessoa em cujo
nome age, a qual é responsável da veracidade do dito. Em Êxodo 7:1 diz-
se: “Vê que te constituí como Deus sobre o Faraó, e Arão, teu irmão,
será teu profeta,” isto é, o teu porta-voz. Isto se explica pelo que se diz
em Êxodo 4:14-16: “Não É Arão, ou levita, teu irmão? Eu sei que ele
fala fluentemente. . . . Tu, pois, lhe falarás e lhe porás na boca as
palavras; eu serei com a tua boca e com a dele e vos ensinarei o que
deveis fazer. Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás
por Deus.” (Veja-se Jr. 36:17,18). Isto determina de uma maneira
decisiva, o que é que é um profeta. É a boca de Deus; alguém por meio
de quem Deus fala com o povo, de modo que o que diz o profeta o diz
Deus. Assim, quando um profeta era consagrado, dizia-se: «Eis que
ponho na tua boca as minhas palavras» (Jr 1:9; Is 51:16). Que isto é a
ideia escriturística de um profeta é, ademais, evidente com base nas
fórmulas, constantemente repetidas, que se relacionam a suas obrigações
e missão. Era um mensageiro de Deus; falava em nome de Deus; as
palavras «Assim diz o Senhor» estavam constantemente em sua boca.
Diz-se deste e daquele profeta que «a palavra do Senhor» veio sobre ele;
todos implicando que o profeta era o órgão de Deus, que o que ele disse,
disse em nome do Deus e por Sua autoridade. É verdade, portanto, como
diz Filo 112, προφήτης γάρ ἴδιον οὐδὲν ἀποφθέγγεται ἀλλότρια δὲ πάντα
ὑπηχοῦντος ἑτέπου.
Isto é precisamente o que ensina o apóstolo Pedro quando diz (2Pe
1:20, 21): «Nenhuma profecia da Escritura provém de particular
elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos
(pheromenoi, impulsionados como um navio pelo vento) pelo Espírito
Santo». A profecia, isto é, o dito por um profeta, não era humano, mas
sim divina. Não era a própria interpretação do profeta, mas da mente e
vontade de Deus. Falava como órgão do Espírito Santo.

112
Opera, t. iv. p. 116, ed. Pfeiff.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 231
O que os profetas disseram, Deus o disse
3. Outra prova decisiva de que os escritores sagrados foram órgãos
de Deus no sentido que se acaba de enunciar é que se afirma que o que
eles disseram o havia dito Deus. O próprio Cristo disse que foi pelo
Espírito que Davi chamou Senhor ao Messias (Mt 22:43). No Salmo
95:7 Davi diz: «Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração»;
mas o Apóstolo diz (em Hb 3:7) que estas foram palavras do Espírito
Santo.
Novamente, em Hb 10:15, o mesmo Apóstolo diz: “E disto nos dá
testemunho também o Espírito Santo; porquanto, após ter dito: Esta é a
aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor.” Assim
citando a linguagem de Jeremias 31:33, como a língua do Espírito Santo.
Em Atos 4.24-25, os apóstolos reunidos disseram, “unânimes,” “Tu,
Soberano Senhor. . . . . que disseste por intermédio do Espírito Santo, por
boca de Davi, nosso pai, teu servo: Por que se enfureceram os gentios, e
os povos imaginaram coisas vãs?” Em Atos 28:25, Paulo disse aos
judeus: «Bem falou o Espírito Santo a vossos pais, por intermédio do
profeta Isaías». E é desta maneira que Cristo e Seus Apóstolos se
referem constantemente às Escrituras, mostrando além de toda dúvida
que criam e ensinavam que o que os sagrados escritores haviam dito o
havia dito o Espírito Santo.

A inspiração dos Escritores do Novo Testamento


É verdade que esta prova tem que ver de maneira especial só com
os escritos do Antigo Testamento. Mas nenhum cristão põe a inspiração
do Antigo Testamento acima da do Novo. Se as Escrituras da antiga
dispensação foram dadas por inspiração de Deus, muito mais aqueles
escritos que foram escritos sob a dispensação do Espírito. Além disso, a
inspiração dos Apóstolos fica demonstrada: (1) Pelo fato de que Cristo
lhes prometeu o Espírito Santo, que traria à sua lembrança todas as
coisas, e as faria infalíveis no ensino. Não são vocês, disse Ele, os que
falam, mas sim o Espírito de meu Pai que fala em vós. Aquele que ouve
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 232
a vocês, a Mim me ouve. Proibiu-lhes entrar em seu ofício como mestres
até que recebessem poder do alto. (2.) Esta promessa se cumpriu no dia
do Pentecostes, quando o Espírito desceu sobre os Apóstolos como um
vento robusto e poderoso, e foram cheios do Espírito Santo, e
começaram a falar segundo o Espírito lhes dava que falassem (dabat
eloqui, como a Vulgata mais literalmente lê as palavras). Desde aquele
momento foram novos homens, com novas perspectivas, e com um novo
poder e autoridade. A mudança foi súbita. Não foi um desenvolvimento,
mas antes, algo totalmente sobrenatural; como quando Deus disse: “Haja
luz, e houve luz.” Nada pode ser mais irrazoável que atribuir esta
transformação súbita dos Apóstolos de judeus miseráveis, fanáticos, em
cristãos católicos iluminados, mente ampla, para meras causas naturais.
Seus preconceitos judaicos resistiram a todas as instruções e influência
de Cristo por três anos, mas se retiraram num momento em que o
Espírito desceu acidentalmente sobre eles do alto. (3.) Depois do dia do
Pentecostes os Apóstolos afirmaram ser os órgãos infalíveis de Deus em
todos os seus ensinos. Requeriam dos homens que recebessem o que eles
ensinavam não como palavra das homens, mas sim como Palavra de
Deus (1Ts 2:13); declararam, como Paulo (1Co 14:37) que as coisas que
escreviam eram mandamentos do Senhor. Faziam com que a salvação
dos homens dependesse da fé nas doutrinas que eles ensinavam (Gl 1:8).
João afirma que aquele que não recebesse o testemunho que ele dava a
respeito de Cristo fazia a Deus mentiroso, porque o testemunho de João
era o testemunho de Deus (1Jo 5:10). «Aquele que conhece a Deus nos
ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve» (1Jo 4:6). Esta
declaração de infalibilidade, esta demanda de autoridade divina para seus
ensinos, é característica de toda a Bíblia. Os escritores sagrados,
simultaneamente e em todas partes, negam uma autoridade pessoal;
nunca fazem descansar a obrigação de ter fé em seus ensinos nem em seu
próprio conhecimento nem em sua sabedoria; nunca a fazem descansar
sobre a verdade do que ensinavam como manifesto à razão ou como
suscetível de ser demonstrado com argumentos. Falam como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 233
mensageiros, como testemunhas, como órgãos. Declaram que o que
disseram, Deus o disse, e que é portanto com base nesta autoridade que
devia ser recebido e obedecido.

O testemunho de Paulo
Os coríntios objetavam à pregação de Paulo que ele não tentava dar
nenhuma prova racional ou filosófica das doutrinas que propunha; que
sua linguagem e maneira de discorrer não se ajustava às normas da
retórica. Ele responde a estas objeções dizendo, primeiro, que as
doutrinas que ele ensinava não eram as verdades da razão, não se
derivavam da sabedoria dos homens, mas que eram assunto de revelação
divina; que ensinava simplesmente o que Deus tinha declarado certo; e,
em segundo lugar, que quanto à maneira de apresentar estas verdades,
ele era meramente o órgão do Espírito de Deus. Em 1 Coríntios 2:7-13
expõe toda esta questão da maneira mais clara e concisa. As coisas que
ele ensinava, e que ele chama «a sabedoria de Deus», «as coisas do
Espírito», isto é, o evangelho, o sistema de doutrina ensinado na Bíblia,
diz ele, nunca entrou nas mentes dos homens. Deus tinha revelado estas
verdades por Seu Espírito, porque o Espírito é a única fonte competente
de tal conhecimento: «Porque qual dos homens sabe as coisas do
homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as
coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus».Tanto a
origem de conhecimento, e a base em que as doutrinas que ele ensinou
deviam ser recebidos.
Sobre a segunda objeção, que se relaciona com a sua língua e modo
de apresentação, ele diz: Estas coisas do Espírito, deste modo revelado,
nós não ensinamos “as palavras ensinadas pela sabedoria humana; mas
sim as que o Espírito Santo ensina,” πνευματικοῖς πνευματικὰ
συγκρίνοντες, combinando o espiritual com o espiritual, isto é, viu as
verdades do Espírito com as palavras do Espírito. Não existe nem na
Bíblia nem nos escritos de homens, uma mais simples ou mais clara
declaração das doutrinas de revelação e inspiração. A revelação é o ato
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 234
de comunicar conhecimento divino pelo Espírito à mente. A inspiração é
o ato do mesmo Espírito, controlar aqueles que tornam conhecida a
verdade a outros. Os pensamentos, as verdades feitas conhecidas, e as
palavras nas quais são registrados, são declarados ser igualmente do
Espírito. Isto foi, do principio até o fim, a doutrina da Igreja, apesar da
diversidade infinita de especulações nas quais os teólogos concederam
sobre o assunto. Isto então é a base na qual os escritores sagrados
basearam suas reivindicações. Eram os meros órgãos de Deus. Eram
Seus mensageiros. Aqueles que os ouviram, ouviram a Deus; e aqueles
que recusaram ouvi-los, recusou ouvir a Deus. (Mt. 10:40; Jo 13:20).
4. Esta declaração de infalibilidade da parte dos apóstolos era
devidamente autenticada não só pela natureza das verdades que
comunicavam, e pelo poder que estas verdades sempre exerceram sobre
as mentes e os corações dos homens, mas também pelo testemunho
interior do Espírito de que fala João ao dizer: «Aquele que crê no Filho
de Deus tem, em si, o testemunho» (1Jo 5:10): uma «unção que vem do
Santo» (1Jo 2:20). Foi confirmada com sinais miraculosos. Tão logo os
apóstolos receberam poder do alto, falaram em «outras línguas»;
curaram aos doentes, restauraram os aleijados e os cegos. «Testificando
Deus juntamente com eles, tanto com sinais como com prodígios e
diversos milagres e dons distribuídos pelo Espírito Santo segundo sua
vontade». E Paulo lembra aos coríntios que se tinham dado entre eles os
sinais de um Apóstolo «com toda a persistência, por sinais, prodígios e
poderes miraculosos» (2Co 12:12). O mero fato de operar milagres não
era evidência de uma comissão divina como mestre. Mas quando um
homem afirma ser órgão de Deus, quando diz que Deus fala por meio
dele, então sua obra de milagres é o testemunho de Deus da validez de
suas declarações. E este é o testemunho que Deus deu da infalibilidade
dos Apóstolos.
As considerações anteriores são suficientes para mostrar que,
segundo as Escrituras, homens inspirados foram os órgãos ou boca de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 235
Deus, no sentido de que o que disseram e ensinaram tem a sanção e
autoridade de Deus.

F. A inspiração estende-se igualmente a todas as partes da


Escritura

Este é o quarto elemento da doutrina da Igreja a respeito desta


questão. Significa, primeiro, que todos os livros da Escritura são
igualmente inspirados. Todos são, igualmente, infalíveis no que ensinam.
E segundo, que a inspiração se estende a todo o conteúdo destes vários
livros. Não se limita às verdades morais e religiosas, mas se estende às
declarações factuais, sejam de caráter científico, histórico ou geográfico.
Não se limita àquelas questões cuja importância é evidente, ou que se
refere a questões doutrinais. Estende-se a tudo o que qualquer escritor
sagrado declara verdadeiro.
Isto se demonstra: (1) Porque está envolto em, ou segue como
necessária consequência de, a proposição de que os escritores sagrados
eram órgãos de Deus. Se o que eles afirmarem, Deus o afirma, o que,
como se viu, é o conceito escriturístico de inspiração, suas declarações
devem estar livres de erro. (2.) Porque nosso Senhor declara de maneira
expressa: «A Escritura não pode falhar» (Jo 10:35), isto é: não pode
errar. (3.) Porque Cristo e Seus Apóstolos se referem a todas as partes da
Escritura, ou a todo o volume, como a Palavra de Deus. Não fazem
distinção entre a autoridade da Lei, dos Profetas ou dos Hagiógrafos.
Citam do Pentateuco, dos livros históricos, dos Salmos e dos Profetas,
como igualmente a Palavra de Deus. (4.) Porque Cristo e os escritores do
Novo Testamento se referem a todas as classes de fatos registrados no
Antigo Testamento como infalivelmente certos. E não só a fatos
doutrinais, como os da criação e prova do homem; sua apostasia; a
aliança com Abraão; a promulgação da lei no Monte Sinai; não só a
grandes marcos históricos, como o dilúvio, a libertação do povo
escravizado no Egito, a passagem do Mar Vermelho, mas também se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 236
referem a circunstâncias semelhantes mas incidentais, ou a fatos de uma
importância aparentemente menor, como a que Satanás tentou a nossos
primeiros pais, tendo tomado forma de serpente; que Elias curou a
Naamã o sírio, e que foi enviado à viúva de Sarepta; que Davi comeu o
pão da proposição no tabernáculo; e inclusive aquela grande pedra de
tropeço, que Jonas esteve três dias no ventre da baleia. Todas estas
coisas são mencionadas por nosso Senhor e seus Apóstolos com a
sublime simplicidade e confiança com que são recebidas pelos meninos
pequenos. (5.) Subjaz na própria ideia da Bíblia que Deus escolheu a
alguns homens para escreverem história, a outros para comporem
salmos; a outros para desvelarem o futuro; a outros para que ensinassem
doutrinas. Todos foram igualmente seus órgãos, e cada um foi infalível
em sua própria esfera. Assim como o princípio da vida vegetal impregna
a toda a planta, raiz, caule e flor, e assim como a vida do corpo pertence
tanto aos pés como à cabeça, assim o Espírito de Deus impregna toda a
Escritura, e não mais numa parte que em outra. Alguns membros do
corpo são mais importantes que outros, e alguns livros da Bíblia
deveriam ter precedência em ser preservados. Pode ser que haja tanta
diferença entre o Evangelho de João e o Livro das Crônicas como entre o
cérebro de um homem e seu cabelo; entretanto, a vida do corpo está tão
verdadeiramente no cabelo como no cérebro.

G. A inspiração das Escrituras estende-se às Palavras


1. Isto mais uma vez está incluído na infalibilidade que nosso
Senhor atribui às Escrituras. Um mero relatório ou registro humano de
uma revelação divina deveria ser necessariamente não só falível, mas
também mais ou menos errônea.
2. Os pensamentos estão nas palavras. As duas coisas são
inseparáveis. Se as palavras sacerdote, sacrifício, resgate, expiação,
propiciação, purificação mediante o sangue, e semelhantes, não têm
autoridade divina, então a doutrina que elas suportam não tem tal
autoridade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 237
3. Cristo e Seus Apóstolos arguem com base nas próprias palavras
da escritura. Nosso Senhor diz que Davi, pelo Espírito, chamou Senhor
ao Messias; isto é, que Davi empregou esta palavra. E foi no uso de uma
palavra determinada que disse Cristo (Jo 10:35) que a Escritura não pode
falhar: «Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de
Deus, e a Escritura não pode falhar», etc. Assim que o próprio uso desta
palavra, segundo a perspectiva que tinha Cristo da Escritura, foi
determinado pelo Espírito de Deus. Em Gl 3:16 Paulo põe ênfase no fato
de que na promessa dada a Abraão emprega-se uma palavra no singular,
e não no plural: «semente», «a um», e não «às sementes, como referindo-
se a muitos». Constantemente, citam-se as próprias palavras da escritura
como com autoridade divina.
4. A própria maneira em que a doutrina da inspiração é ensinada na
Bíblia pressupõe que os órgãos de Deus para comunicar sua vontade
foram controlados por Ele nas palavras que empregavam. «Eis que
ponho na tua boca as minhas palavras» (Jr 1:9). «Não sois vós os que
falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós» (Mt 10:20). «Os
santos homens de Deus falaram sendo inspirados pelo Espírito Santo»
(2Pe 1:21). Todos estes, e modos semelhantes de expressão com que as
Escrituras abundam, implicam que as palavras articuladas eram as
palavras de Deus. Esta, além disso, é a verdadeira ideia de inspiração
como entendido pelo mundo antigo. As palavras do oráculo eram
assumidas por ser as palavras da divindade, e não aquelas escolhidas
pelo órgão de comunicação. E isto, também, como foi mostrado, era a
ideia designada para o dom de profecia. As palavras do profeta eram as
palavras de Deus, ou não poderia ser um verdadeiro porta-voz de Deus.
Também se mostrou que na passagem mais formalmente didática na
Bíblia a respeito deste tema (1Co 2:10-13) o Apóstolo declara de
maneira expressa que as verdades reveladas pelo Espírito, ele as
comunicou em palavras ensinadas pelo Espírito.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 238
Inspiração plenária
O ponto de vista apresentado mais acima é conhecido como a
doutrina da inspiração plenária. Plenário é oposto a parcial. A doutrina
da Igreja nega que a inspiração esteja limitada a algumas partes da
Bíblia, e afirma que se aplica a todos os livros do cânon sagrado. Nega
que os escritores sagrados fossem só inspirados parcialmente; afirma que
foram plenamente inspirados quanto a tudo o que ensinam, sejam
doutrinas ou atos. Isto naturalmente não implica que os escritores
sagrados fossem infalíveis à parte daquele propósito especial para o qual
foram empregados. Não estavam dotados de conhecimento plenário.
Quanto a todas as questões de ciência, filosofia e história, estavam ao
mesmo nível que seus contemporâneos. Foram infalíveis só como
mestres e quando agiam como porta-vozes de Deus. Sua inspiração não
os tornou astrônomos, como tampouco agrônomos. Isaías foi infalível
em suas predições, embora compartilhasse com seus compatriotas os
pontos de vista então prevalecentes a respeito da mecânica do universo.
Paulo não podia errar em nada do que ensinasse, embora não pudesse
lembrar a quantos tinha batizado em Corinto. Além disso, é indubitável
que os próprios escritores sagrados diferiam quanto ao conhecimento
daquelas verdades que ensinavam. O Apóstolo Pedro indica que os
profetas esquadrinhavam com diligência o sentido de suas próprias
predições. Quando Davi disse que Deus pôs “todas as coisas” debaixo
dos pés do homem, ele provavelmente não pensou que “todas as coisas”
significaram o universo inteiro (Hb. 4:8). E Moisés, quando registrou a
promessa que Abraão, embora não tendo filhos, devia ser o pai “de
muitas nações,” não pensou que quis dizer o mundo inteiro (Rom. 4:13).
E a doutrina escriturística a respeito disto não implica que os escritores
sagrados estivessem livres de erros de conduta. Sua infalibilidade não
surgiu de sua santidade, nem a inspiração os tornou santos. Balaão era
inspirado, e Saulo estava entre os profetas. Davi cometeu muitos crimes,
embora inspirados para escrever salmos. Pedro errou em sua conduta em
Antioquia; mas isto não demonstra que errasse em seu ensino. A
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 239
influência que o impedia de errar em seu ensino não estava designado
para o impedir de errar em sua conduta.

H. Considerações gerais em apoio da doutrina


A respeito disto não é necessário dizer muito. Se se considerassem
como distintas as perguntas «Qual é a doutrina escriturística a respeito da
inspiração?» E «Qual é a verdadeira doutrina?», então, depois de ter
mostrado o que as Escrituras ensinam a respeito desta questão, seria
necessário demonstrar que o que ensinam é verdade. Mas não é esta a
postura do teólogo cristão. Sua ocupação é expor o que a Bíblia ensina.
Se os escritores sagrados afirmarem que eles são os órgãos de Deus; que
o que eles ensinaram Ele ensinou por meio deles; que eles falaram como
sendo movidos pelo Espírito Santo, de forma que o que eles disseram
que o Espírito Santo disse, então, se nós cremos em sua missão divina,
devemos crer no que eles ensinam sobre a natureza da influência sob a
qual falaram e escreveram. Esta é a razão pela qual no primeiro período
da Igreja não houve uma discussão separada da doutrina da inspiração.
Considerava-se envolta na origem divina das Escrituras. Se forem uma
revelação de Deus, devem ser recebidas e obedecidas; mas não podem
ser recebidas sem lhes atribuir autoridade divina, e não podem ter tal
autoridade sem ser infalíveis em tudo o que ensinam.
A unidade orgânica das Escrituras demonstra que são o produto de
uma só mente. Não só estão unidas de tal maneira que não podemos crer
uma parte sem crer na outra; que não podemos crer no Novo Testamento
sem crer no Antigo; que não podemos crer nos Profetas sem crer na Lei;
que não podemos crer em Cristo sem crer em Seus Apóstolos, mas que
além de tudo isto apresentam o desenvolvimento regular, levado através
de séculos e milênios, da grande promessa original: Que a semente da
mulher esmagaria a cabeça da serpente. Este desenvolvimento foi
seguido por uns quarenta escritores independentes, muitos dos quais
compreendiam muito pouco do plano que estavam desenvolvendo, mas
cada um contribuiu sua parte ao progresso e arredondamento totalmente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 240
Se a Bíblia é a obra de uma mente, esta mente tem que ser a mente
de Deus. Só Ele conhece o fim desde o princípio. Só Ele poderia saber o
que a Bíblia revela. Ninguém, diz o Apóstolo, conhece as coisas de
Deus, senão o Espírito de Deus. Só Ele podia revelar a natureza, os
pensamentos e os propósitos de Deus. Só Ele podia dizer se o pecado
podia ser perdoado. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai. A revelação
da pessoa e da obra de Cristo é tão claramente a obra de Deus como são
os céus em sua majestade e glória.
Além disso, temos a testemunha em nós mesmos. Declaramos que
as verdades reveladas na Bíblia têm a mesma adaptação para nossas
almas que a atmosfera tem que nossos corpos. O corpo não pode viver
sem ar, que recebe e instintivamente destina, com confiança completa
em sua adaptação para o fim projetado. De certa forma a alma recebe e
destina as verdades da Escritura como a atmosfera ma qual unicamente
pode respirar e viver. Deste modo, ao receber a Bíblia como verdade,
recebemo-la necessariamente como divina. Crendo nisto como uma
revelação sobrenatural, cremos em sua inspiração plenária.
Esta doutrina não envolve nada fora da analogia com as operações
comuns de Deus. Cremos que Ele está presente em todos os lugares no
mundo material, e controla as operações de causas naturais. Sabemos
que Ele faz a grama a crescer, e dá chuva e temporadas frutíferas.
Cremos que Ele exerce semelhante controle sobre a mente dos homens,
mudando sua direção como os rios da água mudam de direção. Toda
religião, natural e revelada, é fundada na hipótese deste governo
providencial de Deus. Além disto, cremos nas operações graciosas de
Seu Espírito, pelo qual Ele opera nos corações do Seu povo para fazer e
agir; cremos que aquela fé, arrependimento, e santo ser são devido à
influência sempre presente do Espírito Santo. Se, então, este Deus que
opera maravilhas em todos os lugares opera na natureza e na graça, por
que deviam ser julgados incríveis que homens santos deviam falar sendo
movidos pelo Espírito Santo, de forma que eles deviam dizer somente o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 241
que Ele os faria dizer, de forma que suas palavras deviam ser Suas
palavras.
Afinal de contas, Cristo é o grande objeto da fé do cristão. Cremos
nEle e cremos em tudo o mais com base em Sua autoridade. Ele nos dá o
Antigo Testamento, e nos diz que é a Palavra de Deus; que seus autores
falaram pelo Espírito; que as Escrituras não podem falhar. E cremos
sobre seu testemunho. Seu testemunho a respeito de seus Apóstolos não
é menos explícito, embora dado de maneira diferente. Prometeu lhes dar
uma boca e uma sabedoria que seus adversários não poderiam disputar
nem resistir. Disse-lhes que não pensassem de antemão o que deveriam
dizer, «porque o Espírito Santo vos ensinará, naquela mesma hora, as
coisas que deveis dizer» (Lc 12:12). «Não sois vós os que falais, mas sim
o Espírito de vosso Pai que fala por vós». Disse-lhes: «Aquele que vos
recebe, a mim me recebe», e orou pelos que iam crer pela palavra deles.
Assim, cremos nas Escrituras porque Cristo declara que são a Palavra de
Deus. O céu e a terra podem passar, mas sua palavra não pode passar.

I. Objeções
Uma numerosa classe das objeções à doutrina da inspiração, que
para muitas mentes são da mais eficaz, surge da rejeição de alguma ou
outras das pressuposições especificadas em páginas anteriores. Se
alguém nega a existência de um Deus pessoal e extramundano, tem que
negar a doutrina da inspiração, mas não é necessário para demonstrar
esta doutrina que tenhamos que provar primeiro o ser de Deus. Se a
pessoa nega que Deus exercita uma ação eficaz no governo do mundo, e
mantém que tudo é produto de leis fixas, não pode crer no que dizem as
Escrituras a respeito da inspiração. Se o sobrenatural é impossível, é
impossível a inspiração. Descobrir-se-á que a maior parte das objeções,
especialmente as de data recente, estão baseadas em pontos de vista não
escriturísticas acerca das relações de Deus com o mundo, ou nas
particulares perspectivas filosóficas dos impedimentos quanto à natureza
do homem ou de sua livre atividade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 242
Uma classe mais numerosa de objeções se baseia em concepções
errôneas a respeito do que é que a Igreja crê a respeito desta questão.
Inclusive um homem tão distinto por seu conhecimento e capacidade
como Coleridge fala com menosprezo do que ele considera como a
comum teoria da inspiração, quando na realidade está totalmente errado
a respeito de qual é a verdadeira doutrina a que se opõe. Diz ele: «Todos
os milagres que as lendas de monges ou rabinos contêm, dificilmente se
podem ter competência, a nível de complicação, inexplicabilidade,
ausência de todo uso ou propósito inteligível, e de frustração cíclica, com
as que devem ser supostos da parte dos partidários desta doutrina, a fim
de dar passagem a uma série de milagres mediante os quais todos os
redatores individuais da nação hebraica antes de Esdras, dos quais ficam
alguns restos, foram sucessivamente transformados em redatores
autômatos [automaton]», 113 etc. Mas se a doutrina da inspiração que a
Igreja sustenta não supõe que os escritores sagrados foram transformados
em redatores autômatos, como tampouco é transformado num autômato
todo aquele crente em quem Deus «opera tanto o querer como o
realizar», então todas estas objeções não valem nada. Se Deus, sem
interferir com a livre atividade humana, pode pôr infalivelmente claro
que ele se arrependerá e crerá, pode dar certeza de que não errará no
ensino. É em vão professar manter a comum doutrina do Teísmo e,
entretanto, afirmar que Deus não pode controlar criaturas racionais sem
as transformar em máquinas.

Discrepâncias e erros
Mas embora o teólogo possa descartar com direito todas as objeções
baseadas na negação dos princípios comuns da religião natural e da
revelada, há outras que não se podem descartar desta maneira sumária.
As mais evidentes destas objeções são que os escritores sagrados se
contradizem entre si, e que ensinam erro. Naturalmente, seria inútil

113
“Confessions of an Inquiring Spirit”. em Works. Harpers. N.Y., 1853. vol. v.. p. 612.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 243
pretender que os escritores sagrados eram infalíveis, se de fato erraram.
Nossa postura a respeito da inspiração tem que ficar determinada pelo
fenômeno da Bíblia além de por suas declarações didáticas. Se de fato os
escritores sagrados retiverem cada um deles seu próprio estilo e modo de
pensamento, temos então que renunciar a toda teoria que pressuponha
que a inspiração anula ou suprime todas as peculiaridades individuais. Se
as Escrituras abundassem em contradições e erros, então seria em vão
pretender que foram escritas sob uma influência que impedia todo erro.
Aqui, pois, trata-se de uma questão factual: contradizem-se entre si os
escritores sagrados? Ensinam as Escrituras o que se pode demonstrar
como falso mediante outras fontes de conhecimento? A pergunta não é
se as visões dos escritores sagrados eram incorretas, mas: ensinaram eles
erro? Por exemplo, não é a pergunta se eles pensaram que a Terra é o
centro de nosso sistema, mas sim: Ensinaram eles o que é?
A objeção sob consideração, isto é, que a Bíblia contém erros,
subdivide-se em duas. A primeira, que os escritores sagrados se
contradizem a si mesmos, ou uns aos outros. A segunda, que a Bíblia
ensina coisas que não concordam com os fatos da história ou da ciência.
Quanto à primeira destas objeções, precisar-se-ia não de um
volume, mas de vários, para considerar todos os casos de discrepâncias
que se alegaram. Tudo o que podemos esperar fazer aqui são umas
poucas observações gerais: (1.) Estas aparentes discrepâncias, embora
numerosas, são em sua maioria corriqueiras, e estão principalmente
relacionadas com números ou datas. (2.) A maior parte delas são só
aparentes, e harmonizam sob um cuidadoso exame. (3.) Muitas delas
podem ser adscritas com justiça a erros de transcritores. (4.) A maravilha
e o milagre é que haja tão poucas de nenhuma importância real.
Considerando que os diferentes livros da Bíblia não só foram escritos por
diferentes autores, mas também eram homens de todos os níveis de
cultura, vivendo ao longo de mil e quinhentos ou dois mil anos, é
completamente inexplicável que concordassem perfeitamente com base
em qualquer outra hipótese de que os escritores estavam sob a condução
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 244
do Espírito de Deus. A este respeito, como em todos outros, a Bíblia
sobressai sozinha. É suficiente para encher qualquer mente de assombro
quando se contemplam as Sagradas Escrituras repletas das mais elevadas
verdades, falando com autoridade em nome de Deus, e tão
milagrosamente livres do contaminador toque dos dedos humanos. Os
erros em questões factuais que os céticos buscam com esforço não têm
proporção com o todo. Nenhum homem em seu são juízo negá-la que o
Partenon foi construído de mármore incluso se se encontrasse um granito
de arenisca em sua estrutura. Não menos irrazoável é negar a inspiração
de um livro como a Bíblia porque um escritor sagrado diga que numa
ocasião determinada foram mortos vinte e três mil homens, e outro que
foram vinte e quatro mil. Certamente, um cristão pode permitir-se
pisotear tais objeções.
Admitindo que as Escrituras contêm, em uns poucos casos,
discrepâncias que não podemos explicar satisfatoriamente com base em
nosso atual conhecimento, não nos dão base racional para negar sua
infalibilidade.
«A Escritura não pode falhar» (Jo 10:35). Esta é a doutrina inteira
da inspiração plenária, ensinada pela boca do próprio Cristo. O universo
está repleto de evidências de desígnio, tão múltiplas, tão diversas e tão
maravilhosas para afligir a mente com a convicção de que tem um
Criador inteligente. Mas aqui e lá aparecem exemplos isolados de
monstruosidades. É irracional que, por não poder dar conta de tais casos,
neguemos que o universo é produto da inteligência. Tampouco o cristão
tem que renunciar a sua fé na inspiração plenária da Bíblia, embora
possa haver algumas coisas em seu estado atual às quais não se possa dar
explicação.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 245
Objeções históricas e científicas
A segunda grande objeção à inspiração plenária das Escrituras é que
ensina coisas inconsequentes com verdades históricas e científicas.
Mais uma vez deve observar-se: (1.) Que nós devemos distinguir
entre aquilo que os escritores sagrados mesmos pensaram ou creram, e o
que eles ensinam. Podem ter crido que o sol gira ao redor da Terra, mas
eles não ensinam isso. (2.) A linguagem da Bíblia é a linguagem da vida
diária, e a linguagem da vida diária se baseia na verdade evidente aos
sentidos, e não em formulações científicas. Seria ridículo recusar-se a
falar do sol nascendo e se pondo, porque nós sabemos que não é um
satélite de nosso planeta. (3.) Há uma grande distinção que se deve fazer
entre as teorias e os fatos. As teorias são dos homens. Os fatos são de
Deus. A Bíblia contradiz com frequência as teorias, mas nunca os fatos.
(4.) Há também uma distinção a ser feita entre a Bíblia e nossa
interpretação. A última pode entrar em competição com fatos dados; e
então deve aceder. A ciência em muitas coisas ensinou a Igreja como
entender as Escrituras. A Bíblia estava por muito tempo entendida e
explicava de acordo com o sistema ptolemaico do universo; está agora
explicada sem fazer a menor violência à sua língua, de acordo com o
sistema copernicano. Os cristãos usualmente creram que a Terra existiu
apenas há alguns milhares de anos. Se geólogos finalmente provarem
que existiu faz miríades de idades, será declarado que o primeiro
capítulo de Gênesis está completamente de acordo com os fatos, e que os
últimos resultados da ciência são encarnados na primeira página da
Bíblia. Pode custar à Igreja uma luta severa para desistir de uma
interpretação e adotar outra, como fez no décimo sétimo século, mas
nenhuma necessidade do mal real deve temer-se. A Bíblia permaneceu, e
ainda permanece na presença do mundo científico inteiro com suas
reivindicações inamovíveis. Os homens hostis ou indiferentes a suas
verdades podem rejeitar sua autoridade, sobre uma base insuficiente, ou
devido a suas opiniões pessoais; mas inclusive a juízo das maiores
autoridades da ciência, não pode objetar-se com justiça a seus ensinos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 246
É impossível apreciar devidamente a importância desta questão. Se
a Bíblia é a palavra de Deus, todas as grandes questões que durante
séculos agitaram as mentes dos homens ficam assentadas com uma
certeza infalível. A razão humana nunca pôde responder para satisfação
própria, nem para dar certeza a outros, estas perguntas vitais: O que é
Deus? O que é o homem? O que há além do sepulcro? Se há algum
estado futuro do ser, qual é? E, quantas bênçãos futuras estão
asseguradas? Sem a Bíblia todos estamos, nestas questões, numa total
escuridão. Quão inacabáveis e insatisfatórias foram as respostas à mais
magna de todas as perguntas: O que é Deus? Todo mundo oriental
replica dizendo: «Ele é o modo inconsciente do ser». Os gregos deram a
mesma resposta aos filósofos, e fizeram de toda a natureza um Deus para
o povo. Os modernos não chegaram a nenhuma doutrina superior. Fichte
diz que o Ego subjetivo é Deus. Segundo Schelling, Deus é o movimento
eterno do universo, em que o sujeito se transforma em objeto, o objeto
em sujeito, o infinito em finito, e o finito em infinito. Regel diz: O
Pensamento é Deus. Cousin combina todas as respostas germânicas para
dar a sua. Coleridge remete a Schelling para uma resposta à pergunta do
que é Deus. Carlyle faz da força Deus. Um menino cristão diz: «Deus é
Espírito, infinito, eterno, e imutável em seu ser, sabedoria, poder,
santidade, justiça, bondade e verdade». Os homens e os anjos cobrem
seus rostos na presença desta resposta. É a mais elevada, grande e
frutífera verdade jamais expressa em linguagem humana. Sem a Bíblia,
estamos sem Deus e sem esperança. O presente é uma carga, e o futuro
um terror.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 247
§ 3. Teorias adversas

Embora haja prevalecido uma unanimidade substancial quanto à


doutrina da inspiração entre as grandes igrejas históricas da cristandade,
entretanto houve não pouca diversidade de opinião entre os teólogos e os
escritores filósofos. Estas teorias são muito numerosas para as examinar
detalhadamente. Pode, talvez, ser vantajoso as classificar sob os
seguintes cabeçalhos.

A. Doutrinas naturalistas

Há uma numerosa categoria de escritores que negam toda atividade


sobrenatural nos assuntos dos homens. Esta classe geral inclui escritores
que diferem essencialmente em suas perspectivas.
Primeiro: Há os que embora Teístas mantêm uma teoria mecanicista
do universo. Isto é, creem que Deus, tendo criado o mundo, incluindo
tudo o que contém, orgânico e inorgânico, racional e irracional, e tendo
dotado a matéria com suas propriedades e as mentes com seus atributos,
deixa-o a si mesmo. Da maneira em que um navio, uma vez marcha e
equipado, é deixado aos ventos e à sua tripulação. Esta teoria descarta a
possibilidade não só de todos os milagres, profecias e revelação
sobrenatural, mas sim de todo governo providencial, tanto geral como
especial. Os que adotam este ponto de vista da relação de Deus com o
mundo devem considerar a Bíblia, de principio a fim, como um produto
inteiramente humano. Pode ser que o classifiquem como o ponto
culminante, ou como o inferior, das obras literárias dos homens; mas não
há possibilidade de que seja inspirada em nenhum sentido próprio da
palavra.
Segundo: Há os que não excluem a Deus de uma maneira tão total
de Suas obras. Admitem que está presente em todas as partes, e em todas
as partes ativo; que sua atividade providencial e controle são exercidos
na marcha de todos os acontecimentos. Mas mantêm que sempre age
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 248
segundo umas leis fixas, e sempre em relação e cooperação com
segundas causas. Segundo esta teoria, devem-se descartar também todos
as milagres e todas as profecias propriamente ditas. Admite-se uma
revelação, ou ao menos sua possibilidade. Mas é algo meramente
providencial. Consiste em tal ordem das circunstâncias e numa tal
combinação das influências que asseguram a elevação de certos homens
a um maior nível de conhecimento religioso que o alcançado por outros.
Pode-se dizer também, em certo sentido, que estão inspirados até onde
seu estado interior, subjetivo, é mais puro e mais devoto, assim como
mais inteligente que o dos homens comuns. Mas, segundo esta teoria,
não há uma diferença qualitativa entre os homens inspirados e os não
inspirados. Trata-se só de grau. Uns são mais purificados e iluminados, e
outros menos. Esta teoria faz também da Bíblia uma mera produção
humana. Limita a revelação à esfera do conhecimento humano. Nenhum
possível grau de cultura ou de desenvolvimento pode tirar nada mais que
humano de um humano. Segundo as Escrituras e a fé da Igreja, a Bíblia é
revelação das coisas de Deus; de Seus pensamentos e propósitos. Mas,
quem sabe as coisas de Deus – pergunta o Apóstolo – salvo o Espírito de
Deus? Aquelas coisas que a Bíblia afirma revelar são precisamente
aquelas coisas que se encontram para além do alcance da mente humana.
Assim, esta teoria nos dá pedras em lugar de pão; os pensamentos dos
homens em lugar dos de Deus.

A teoria de Schleiermacher
Terceiro: Há uma teoria muito mais pretensiosa e filosófica, que
prevaleceu nos últimos anos, e que na realidade difere muito pouco da
anterior. Concorda com ela no ponto principal de que nega todo o
sobrenatural na origem e redação da Bíblia. Schleiermacher, o autor
desta teoria, estava entregue a uma filosofia que impedia toda
intervenção da atividade imediata de Deus no mundo. Entretanto, admite
duas exceções: a criação do homem e a constituição da pessoa de Cristo.
Houve uma intervenção sobrenatural na origem de nossa raça, e na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 249
manifestação de Cristo. Tudo o mais na história do mundo é natural. Não
há nada sobrenatural na Bíblia; nada no Antigo Testamento que o
homem adâmico não pudesse produzir; e nada no Novo Testamento que
não fosse suficiente para dar conta disso o cristianismo, a vida da Igreja,
uma vida comum a todos os crentes.
A religião consiste de sentimentos, e especialmente de um
sentimento de total dependência (ou um sentimento absoluto de
dependência), isto é, a consciência de que o finito não é nada na presença
do Infinito, – a individual na presença do universal. Esta consciência
envolve a unidade do um e totalmente, de Deus e do homem. «Este
sistema», diz o doutor Ullmann, um de seus mais moderados e eficazes
proponentes, «não é absolutamente novo. Encontramo-lo em outra forma
na antiga mística, especialmente nos místicos alemães da Idade Média.
Com eles, também, a base e o ponto central do cristianismo é a unidade
da Deidade e da humanidade alcançadas por meio da encarnação de
Deus, e a deificação do homem». 114
O cristianismo, portanto, não é um sistema de doutrina; não é,
subjetivamente considerado, uma forma de conhecimento. É uma vida. É
a vida de Cristo. Ullmann novamente diz explicitamente: “A vida de
Cristo é cristianismo.” 115 Deus ao Se fazer homem não tomou em Si
mesmo, “um corpo verdadeiro e uma alma razoável,” mas sim
humanidade genérica; isto é, humanidade como uma vida genérica. O
efeito da encarnação devia unir o humano e divino numa vida. E esta
vida ignora a Igreja justamente como a vida de Adão ignorou seus
descendentes, por um processo de desenvolvimento natural. E esta vida é
cristianismo. A participação desta vida divino-humana faz de um homem
um cristão.
A revelação cristã consiste nas dispensações providenciais
conectadas dentro do comparecimento a juízo de Cristo na Terra. O

114
Studien und Kritiken, 1845, pág. 59.
115
Studien und Kritiken, January 1845; translated in The Mystical Presence, by Dr. J.W. Nevin.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 250
efeito destas dispensações e eventos eram a elevação da consciência
religiosa dos homens daquela geração, e especialmente daqueles que
vieram mais diretamente sob a influência de Cristo. Este estado
subjetivo, esta excitação e elevação de sua vida religiosa, deram a eles
intuições de verdades religiosas, “verdades eternas.”
Estas intuições eram pela compreensão lógica vestida na forma de
doutrinas. Este, entretanto, era um processo gradual como era efetuado
somente pela vida de Igreja, isto é, pelo funcionamento da nova vida
divino-humana no corpo dos crentes. 116 O Sr. Morell ao expor esta
teoria, diz: 117 “O germe essencial da vida religiosa é concentrado no
sentimento absoluto de dependência, — um sentimento que não implica
nada miserável, mas pelo contrário, um sentido elevado e sagrado de
nosso ser inseparavelmente relacionado à Deidade.” Na página
precedente ele disse: “Deixe o assunto tornar-se como nada — não,
realmente, de sua insignificância ou incapacidade intrínsecas de ação
judicial moral, mas em virtude da infinidade do objeto a que está
conscientemente oposto; e o sentimento de dependência deve ficar
absoluto; porque todo poder finito é como nada com relação ao Infinito.”
O cristianismo, como já declarado, é a vida de Cristo, sua vida
humana, que também é divina, e é comunicada a nós como a vida de
Adão era comunicada a seus descendentes. Morell, bem mais conforme
aos modos ingleses de pensamento, diz: 118 “O cristianismo, como
qualquer outra religião, consiste essencialmente num estado de
consciência interna do homem, que se desenvolve propriamente num
sistema de pensamento e atividade só numa comunidade de mentes
despertas; e era inevitável, portanto, que tal estado de consciência devia

116
The English reader may find this theory set forth, in Morell’s Philosophy of Religion, in
Archdeacon Wilberforce’s work on the Incarnation; in Maurice’s Theological Essays; in the Mystical
Presence, by Dr. John W. Nevin, and in the pages of the Mercersburg Quarterly Review, a journal
specially devoted to the defense of Schleiermacher’s doctrines and of those of the same general
character.
117
Philosophy of Religion, p. 77.
118
Philosophy of Religion, page 104.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 251
exigir tempo, e intercurso, e concordância mútua, antes dele poder
tornar-se moldado numa forma decidida e distintiva.” Representa os
apóstolos como frequentemente reunindo e deliberando em pontos
essenciais, corrigindo as posturas um do outro; e, depois de anos de tal
companheirismo, o cristianismo estava no final produzido na forma.
Declara-se que a Revelação é uma comunicação de fato à nossa
consciência intuitiva. O mundo exterior é uma revelação a nossas
intuições sensoriais; a beleza é uma revelação a nossas intuições
estéticas; e as «verdades eternas», quando são percebidas intuitivamente,
dizem-se reveladas; e esta intuição tem lugar mediante tudo o que
purifica e exalta nossos sentimentos religiosos. «A revelação», diz
Morell, «é um processo da consciência intuitiva, contemplando verdades
eternas; enquanto que a teologia é a reflexão do entendimento a respeito
destas intuições vitais, para reduzi-las a uma expressão lógica e
científica». 119
A inspiração é o estado interno da mente que nos capacita a
alcançar a verdade. Diz Morell: «A revelação e a inspiração indicam um
processo unido, cujo resultado sobre a mente humana é a produção de
um estado de intuição espiritual, cujos fenômenos são tão extraordinários
que no ato separamos as agências por meio das quais são produzidas de
quaisquer dos princípios comuns do desenvolvimento humano. E,
entretanto, esta agência aplica-se em perfeita congruência com as leis e
as operações naturais de nossa natureza espiritual. A inspiração não
implica nada genericamente novo nos processos reais da mente humana;
não envolve nenhuma forma de inteligência essencialmente diferente da
que já possuímos. Indica, antes, a elevação da consciência religiosa, e
com ela, naturalmente, o poder da visão espiritual, até um grau de
intensidade peculiar aos indivíduos assim favorecidos por Deus». 120 Por

119
Philosophy of Religion, p. 141.
120
Op. cit., p. 151.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 252
isso, a única diferença que haveria entre os Apóstolos e os cristãos
comuns residiria em sua santidade relativa.
Segundo esta teoria, não há nenhuma diferença específica entre
gênio e inspiração. A diferença encontra-se simplesmente nos objetos
alcançados e nas causas do estímulo interior a que se deve alcançar este
conhecimento. “Gênio,” diz Morell, “consiste na posse de uma energia
notável de intuição com referência a algum objeto particular, uma
energia que surge da natureza dentro de um homem sendo trazido em
harmonia incomum com aquele objeto em sua realidade e suas
operações.” 121 Isto é justamente sua ideia de inspiração. “Deixe haver,”
ele diz, “uma devida purificação da natureza moral, — uma harmonia
perfeita do ser espiritual com a mente de Deus, — uma remoção de todas
as perturbações dentro do coração, e o que tem que precaver ou perturbar
esta intuição imediata de coisas divinos.” 122
Esta teoria da inspiração, enquanto que retém seus elementos
essenciais, recebe várias modificações. Com aqueles que creem com o
Schleiermacher, que o homem “é a forma em que Deus vem à existência
consciente em nossa Terra,” tem uma forma. Com os Realistas que
definem o homem como sendo “a manifestação da humanidade genérica
com relação a uma dada organização corpórea;” e que crê que era a
humanidade genérica que Cristo tomou como Seu corpo e uniu numa
vida com Sua natureza divina, cuja vida é comunicada à Igreja como Seu
corpo, e assim a todos os seus membros; leva uma forma um pouco
diferente.
Com aqueles novamente que não adotam qualquer uma destas
teorias antropológicas, mas tomam a visão comum sobre a constituição
do homem; leva uma forma ainda diferente e, em alguns aspectos, mais
baixa. Mas em todas elas a inspiração seria a intuição das verdades

121
Philosophy of Religion, page 184.
122
Page 186.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 253
divinas devido à motivação da natureza religiosa, seja qual for esta
natureza.

Objeções à teoria de Schleiermacher.


A esta teoria em todas as suas formas pode-se objetar:
1. Que parte de uma perspectiva errônea da religião em geral e do
cristianismo em particular. Dá por sentado que a religião é um
sentimento, uma vida. Nega que é uma forma de conhecimento ou que
envolva a recepção de nenhum sistema particular de doutrina. No sentido
subjetivo da palavra, todas as religiões (isto é, todas as doutrinas
religiosas) seriam verdade, como diz Twesten, 123 mas nem todas
igualmente puras nem igualmente expressões adequadas do princípio
religioso interior. Mas segundo a Escritura e a comum convicção dos
cristãos, a religião (considerada subjetivamente) é a recepção de certas
doutrinas como verdadeiras, e um estado de coração e um curso de ação
conforme a estas doutrinas. Os apóstolos propuseram um certo sistema
de doutrinas; pronunciaram que para ser cristãos que receberam aquelas
doutrinas para determinar seu caráter e vida. Pronunciaram aqueles que
rejeitaram aquelas doutrinas, que recusaram a receber seu testemunho,
como anticristãos; como não tendo nenhuma parte ou sorte com o povo
de Deus. A ordem do Cristo era para ensinar; para mudar o mundo pelo
ensino. Neste principio os apóstolos agiram e a Igreja já agiu daquele dia
para este. Aqueles que negam o Teísmo como uma doutrina, são ateus.
Aqueles que rejeitam o cristianismo como um sistema de doutrina, são
incrédulos. Eles não são cristãos. A Bíblia dá por sentado em todas as
partes que sem verdade não pode haver santidade; que todos os
exercícios conscientes da vida espiritual estão em vistas da verdade
revelados objetivamente nas Escrituras. E daí a importância que em

123
Dogmatik, vol. I. p. 2. “Das Verhältniss des Erkennen zur Religion.” Hase’s Dogmatik. “Jede
Religion als Ergebniss einer Volksbildung ist angemesen oder subj. wahr; wahr an sich ist die, welche
der vollendeten Ausbildung der Menschheit entspricht.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 254
todas as partes é atribuído ao conhecimento, à verdade, à sã doutrina, na
Palavra de Deus.
2. Esta teoria é inconsequente com a doutrina escriturística da
revelação. Segundo a Bíblia, Deus apresenta a verdade objetivamente à
mente, seja mediante palavras audíveis, seja mediante visões, seja
mediante as operações imediatas do Espírito. Segundo esta teoria, a
revelação é meramente a ordenação providencial das circunstâncias que
despertam e exaltam os sentimentos religiosas, e que assim capacitam a
mente a alcançar por intuição as coisas de Deus.
3. Confessadamente confina estas intuições, e naturalmente a
verdade revelada, ao que chama «as verdades eternas». Mas a maior
parte das verdades reveladas na Escritura não são «verdades eternas». A
queda do homem; que todos os homens sejam pecadores; que o Redentor
que nos salvaria do pecado devia ser da linhagem de Abraão, e da
família de Davi; que ia nascer de uma virgem, para ser varão de dores;
que foi crucificado e sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia; que subiu
ao céu; que tem que voltar de novo sem relação com o pecado para
salvação, são verdades que não são intuitivas, embora delas depende
nossa salvação: não são verdades que nenhum homem pudesse descobrir
por si mesmo mediante nenhuma exaltação da consciência religiosa.
4. Segundo esta teoria, a Bíblia não tem nenhuma autoridade
normativa como regra de fé. Não conteria doutrinas reveladas por Deus,
nem que deveriam ser recebidas como verdade com base em Seu
testemunho. Conteria só os pensamentos de homens santos; as formas
nas quais seus entendimentos, sem ajuda sobrenatural, revestiram suas
«intuições» devido a seus sentimentos religiosos. “A Bíblia,” diz
Morell, 124 “não pode em exatidão rígida de língua ser chamada uma
revelação, desde que uma revelação sempre implica um processo atual
de inteligência numa mente viva; mas ela contém os recordes nos quais
aquelas mentes que apreciaram o treinamento preliminar ou a primeira

124
Philosophy of Religion, chap. 8, p. 143, London ed. 1849.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 255
revelação mais brilhante do cristianismo, descreveu as cenas que
despertaram sua própria natureza religiosa para nova vida, e as ideias e
aspirações elevadas para que aquela nova vida deu origem.” O Antigo
Testamento é o produto da consciência religiosa de homens que viveram
debaixo de um estado rude de cultura; e é de nenhuma autoridade para
nós. O Novo Testamento é o produto da consciência religiosa de homens
que experimentaram a influência santificadora da presença de Cristo
entre eles. Mas aqueles homens eram judeus, tiveram modos judaicos de
pensar. Estavam familiarizados com os serviços da velha dispensação,
estavam acostumados a pensar sobre Deus como acessível apenas por
um sacerdócio; como expiação exigente para o pecado, e regeneração de
coração; e recompensas promissoras certas e formas de bem-aventurança
num estado futuro de existência. Era natural para eles, portanto, vestir
seus “intuições” nestes modos judaicos de pensamento. Nós, neste
décimo nono século, podemos vestir nossos modos de formas muito
diferentes, isto é, em doutrinas muito diferentes, e ainda “as verdades
eternas” serão as mesmas.
Diferentes homens levam esta teoria a extremos muito diferentes.
Alguns têm uma experiência interior tal que não podem encontrar uma
forma de expressar seus sentimentos tão apropriada como a que se dá na
Bíblia, e por isso creem em todas suas grandes doutrinas. Mas a base de
sua fé é puramente subjetiva. Não é o testemunho de Deus dado em Sua
palavra, mas sim sua própria experiência. Tomam o que é mais
apropriado, e deixam o resto. Outros com menos experiência cristã, ou
sem uma experiência distintivamente cristã, rejeitam todas as doutrinas
distintivas do cristianismo, e adotam uma forma de filosofia religiosa
que estão dispostos a chamar cristianismo.
5. Que esta teoria é antiescriturística já se tem dito. A Bíblia faz das
revelações nela contidas a comunicação de doutrinas ao entendimento
por meio do Espírito de Deus. Faz daquelas verdades ou doutrinas a
fonte imediata de todo sentimento reto. Os sentimentos procedem de
uma compreensão espiritual da verdade, e não o conhecimento da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 256
verdade destes sentimentos. O conhecimento é necessário para todos os
exercícios conscientes de santidade. Por isso a Bíblia dá à verdade a
maior importância. Pronuncia bem-aventurados os que recebem as
doutrinas que ensina, e malditos os que as rejeitam. Faz com que a
salvação dos homens dependa de sua fé. Esta teoria, pelo contrário, faz
com que o credo de um homem ou de um povo seja coisa de pouca
importância.
Na Igreja, portanto, o cristianismo sempre foi considerado como um
sistema de doutrina. Aqueles que creem nestas doutrinas são cristãos;
aqueles que as rechaçam são, no juízo da Igreja, infiéis ou hereges. Se
nossa fé é formal ou especulativa, então é nosso cristianismo; se é
espiritual e vivente, então é nossa religião. Mas nenhum erro pode ser
maior que divorciar a religião da verdade, e fazer do cristianismo um
espírito ou vida distintos das doutrinas que as Escrituras apresentam
como objeto da fé.

B. Inspiração graciosa
Esta teoria pertence à categoria de natural ou sobrenatural,
conforme seja o sentido que se dê a estes termos. Por efeitos naturais se
entendem geralmente aqueles produzidos por causas naturais sob o
controle providencial de Deus. Logo os efeitos produzidos pelas
operações do Espírito Santo em graça, como o arrependimento, fé, amor
e todo o resto do fruto do Espírito, são sobrenaturais. E,
consequentemente, a teoria que atribui a inspiração à influência em graça
do Espírito pertence à categoria do sobrenatural. Mas esta palavra é, com
frequência, empregada num sentido mais limitado, para designar
acontecimentos produzidos pela atividade imediata ou vontade de Deus
sem intervenção de quaisquer segundas causas. Neste sentido limitado, a
criação, os milagres, a revelação imediata, a regeneração (no sentido
limitado desta palavra), são sobrenaturais. Assim, a santificação dos
homens que é efetuada pelo Espírito mediante o uso dos meios da graça,
não é uma obra sobrenatural, no sentido restrito do termo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 257
Há muitos teólogos que não adotam nenhuma das teorias filosóficas
a respeito da natureza do homem e de sua relação com Deus
anteriormente mencionadas, e que recebem a doutrina bíblica mantida
pela Igreja universal de que o Espírito Santo renova, santifica, ilumina,
conduz e ensina a todo o povo de Deus, mas que consideram a inspiração
como uma das atividades comuns do Espírito. Os homens inspirados e os
não inspirados não ficam distinguidos por nenhuma diferença específica.
Os escritores sagrados foram meramente homens santos sob a condução
da influência comum do Espírito. Alguns dos que adotam esta teoria
estendem-na também à revelação, mas negam que os escritores sagrados
estivessem sob uma influência não comum aos crentes comuns ao
comunicar as verdades reveladas. E quanto àquelas seções da Bíblia
(como os Hagiógrafos e os Evangelhos) que não contêm revelações
especiais, deveriam ser consideradas como os escritos devocionais ou
narrações históricas de homens devotos mas falíveis.
Desta maneira Coleridge, que se refere à inspiração como aquela
“graça e comunhão com o Espírito com a qual a Igreja, sob todas as
circunstâncias, e regenera todo membro da Igreja, em permitir esperar e
instruir a orar;” faz uma exceção a favor “da lei e os profetas, nem jota
ou til passará sem que tudo seja cumprido.” 125 O resto da Bíblia, ele
garante, era escrito sob o impulso e direção da influência graciosa do
dom do Espírito para todos os homens cristãos. E seus amigos e
seguidores, o Dr. Arnold, Archdeacon Hare, e especialmente Maurice,
ignora esta distinção e se refere à Bíblia inteira como “a uma inspiração
o mesmo que todo crente aprecia.” 126 Assim Maurice diz, 127 “Devemos
anteceder a demanda que nós fazemos na consciência de homens jovens,
quando os obrigamos a declarar que consideram a inspiração da Bíblia
como genericamente diferente da que Deus dá a respeito de Seus filhos
neste tempo.”
125
“Confessions of an Inquiring Spirit,” Letter 7. Works, N.Y., 1853, vol. v. p. 619.
126
Veja-se Bannerman, Inspiration of the Scriptures. Edimburgo, 1865; pp. 145, 232.
127
Theological Essays, p. 339, Cambridge, 1853.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 258
Objeções à doutrina de que a inspiração é comum a todos os
crentes
É evidente que esta doutrina é antiescriturística.
1. Devido ao fato de que a Bíblia estabelece uma marcada distinção
entre aqueles a quem Deus escolheu para que fossem Seus mensageiros,
Seus profetas, Seus porta-vozes, e outros homens. Esta teoria ignora esta
distinção, pelo que respeita ao povo de Deus.
2. É inconsistente com a autoridade afirmada por estes especiais
mensageiros de Deus. Eles falaram em Seu nome. Deus falou por meio
deles. Eles disseram: «Assim diz o Senhor» num sentido e de uma
maneira em que não ousaria fazê-lo nenhum crente comum. É
inconsistente com a autoridade não só declarada pelos escritores
sagrados, mas também atribuída a eles por nosso próprio Senhor. Ele
declarou que a Escritura não pode ser quebrantada, que era infalível em
todos os seus ensinos. Os Apóstolos declaram anátema aos que não
recebam suas doutrinas. Sua reivindicação de uma autoridade divina no
ensino foi confirmada pelo próprio Deus em sinais, prodígios e milagres
diversos e dons do Espírito Santo.
3. É inconsistente com toda a natureza da Bíblia, que é e professa
ser uma revelação de verdades não só impossíveis de descobrir pela
razão humana, mas também não poderiam ser recebidas pela mente do
homem por muito que fosse sua santidade. Isto é certo não apenas das
revelações estritamente proféticas relacionadas com o futuro, mas
também de todas as coisas referentes à mente e à vontade de Deus. As
doutrinas da Bíblia recebem o nome de μυστήρια [musteria], coisas
ocultas, desconhecidas e incognoscíveis, exceto por sua revelação aos
santos apóstolos e profetas pelo Espírito (Ef 3:5).
4. É inconsistente com a fé da Igreja universal, que sempre
estabeleceu a maior distinção entre os escritos dos homens inspirados e
os dos crentes comuns. Inclusive os romanistas, com toda a reverência
que têm para com os pais [da Igreja], nunca pretenderam pôr seus
escritos a par das Escrituras. Não lhes atribuem nenhuma autoridade
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 259
mais que como testemunhas do que os Apóstolos ensinaram. Se a Bíblia
não tivesse mais autoridade que o próprio dos escritos de homens
piedosos, nossa fé é vã, e estamos ainda em nossos pecados. Não temos
um fundamento seguro para nossas esperanças de salvação.

C. Inspiração parcial.
Sob este cabeçalho se incluem várias doutrinas diferentes.
1. Muitos mantêm que só umas partes das Escrituras são inspiradas,
isto é, que os escritores de alguns livros foram conduzidos
sobrenaturalmente pelo Espírito, e que os escritores de outros não o
foram. Esta, como mencionado acima, era a doutrina de Coleridge, que
admitia a inspiração da Lei e dos Profetas, mas que negava a do resto da
Bíblia. Outros admitem a inspiração do Novo Testamento num grau que
não admitem para o Antigo. Outros, por sua vez, sustentam que os
discursos de Cristo são infalíveis, mas não as outras seções do sagrado
volume.
2. Outros limitam a inspiração dos escritores sagrados a seu ensino
doutrinal. O grande objeto de sua comissão era dar um registro fiel da
vontade e propósito revelados de Deus, para que fossem a norma e
prática da Igreja. Nisto se encontravam sob uma influência que os fazia
infalíveis como mestres religiosos e morais. Mas para além destes limites
eram suscetíveis de erros como outros homens. Que haja erros
científicos, históricos ou geográficos, erros nas citações de passagens, ou
em outras questões não essenciais, ou discrepâncias quanto a questões
factuais entre escritores sagrados, deixa incólume a questão de sua
inspiração como mestres religiosos.
3. Outra forma da doutrina de inspiração parcial, em oposição à
plenária, limita-a aos pensamentos em contraste às palavras da Escritura.
Nega-se a inspiração verbal, supondo-se que os escritores sagrados
escolheram as palavras que empregavam sem nenhuma condução do
Espírito que impedisse que adotassem termos impróprios ou inadequados
com os quais expressar seus pensamentos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 260
4. Uma quarta forma da doutrina da inspiração parcial foi
introduzida em tempos anteriores e foi adotada em amplos setores.
Maimonides, o maior dos doutores judeus dos tempos de Cristo,
ensinava já em tempo tão cedo como o décimo segundo século que os
escritores sagrados do Antigo Testamento desfrutavam de diferentes
níveis de condução divina. Pôs a inspiração da Lei muito acima da dos
Profetas, e a dos Profetas muito acima da dos Hagiógrafos. Esta ideia de
diferentes graus de inspiração foi adaptada por muitos teólogos, e na
Inglaterra foi durante muito tempo o modo comum de ensino. A ideia era
que os escritores de Reis e de Crônicas necessitaram e receberam menos
ajuda divina que Isaías ou João. 128
Ao tentar provar a doutrina da inspiração plenária, enunciaram-se
ou sugeriram os argumentos que militam contra todas estas formas de
inspiração parcial. Não se trata de uma questão aberta. Não se trata de
qual seja em si a teoria mais razoável ou plausível, mas antes,
simplesmente: O que é que ensina a Bíblia a respeito desta questão? Se
nosso Senhor e Seus Apóstolos declaram que o Antigo Testamento é a
Palavra de Deus; que seus autores falaram conforme foram inspirados
pelo Espírito Santo; que o que eles disseram o havia dito o Espírito; se se
referem aos fatos e às próprias palavras da Escritura como com
autoridade divina; e se foi prometida a mesma condução aos escritores
do Novo Testamento, e proclamada por eles; e se sua reivindicação foi
autenticada pelo próprio Deus: então não há lugar para as teorias de
inspiração parcial, nem necessidade delas. Toda a Bíblia foi escrita sob
uma tal influência que preservou os seus autores humanos de todo erro, e
faz dela a norma infalível de fé e prática para a Igreja.

128
Esta postura de diferentes graus de inspiração foi adotado por Lowth: Vindication of the Divine
Authority and Inspiration of the Old and New Testament. Whitby, em seu Prefácio a seu Comentário.
Doddridge, Dissertations on the Inspiration of the New Testament. Hill, Lectures on Divinity. Dick,
Essay on the Inspiration of the holy Scriptures. Wilson, Evidences of Christianity. Henderson, Divine
Inspiration.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 261
§ 4. A integridade das Escrituras.

Pela integridade das Escrituras se significa que contêm todas as


revelações existentes de Deus designadas como regra de fé e prática para
a Igreja. Não se nega com isso que Deus Se revela a Si mesmo, mediante
Suas obras, em Seu eterno poder e Deidade, e que assim o tem feito
desde o princípio do mundo. Mas todas as verdades assim reveladas são
claramente dadas a conhecer em Sua palavra escrita. Tampouco se nega
que possa ter havido, e que provavelmente houve, livros escritos por
homens inspirados, e que já não existem. E muito menos se nega que
Cristo e Seus Apóstolos pronunciaram muitos discursos que não foram
registrados, e que se pudessem ser agora conhecidos e autenticados,
possuiriam a mesma autoridade que os livros agora considerados como
canônicos. No que insistem os protestantes é que a Bíblia contém todas
as revelações existentes de Deus, que Ele dispôs para ser a regra de fé e
prática para Sua Igreja, de maneira que nada pode impor-se com justiça
sobre as consciências dos homens como verdade ou dever que não esteja
ensinado diretamente ou por necessária implicação nas Escrituras
Sagradas. Isto exclui não só todas as tradições não escritas, mas também
todos os decretos da Igreja visível e todas as resoluções de convenções
ou outros organismos públicos declarando que isto ou aquilo seja reto ou
incorreto, verdadeiro ou falso. O povo de Deus não fica vinculado por
nada mais que a Palavra de Deus. Sobre esta questão não é necessário
dizer muito. A integridade da Escritura, como regra de fé, é um corolário
da doutrina protestante a respeito da tradição. Se isso é verdade, o
anterior também deve ser verdade. Isto os romanistas não negam. Fazem
a Regra de Fé consistir na palavra escrita e não escrita de Deus, isto é, da
Escritura e da tradição. Se se prova que a tradição é indigna de
confiança, humana e falível, então as Escrituras de comum acordo estão
a sós em sua autoridade. Como a autoridade da tradição já foi
examinada, fica desnecessário uma discussão adicional da totalidade das
Escrituras.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 262
Está certo, entretanto, não esquecer a importância desta doutrina.
Não é apenas por romanistas que é negado, praticamente pelo menos, se
não teoricamente. Nada é mais comum entre os protestantes,
especialmente em nossos dias, que tratar de forçar a consciência dos
homens mediante a opinião pública, que fazer das opiniões dos homens
sobre questões de moral uma regra do dever para o povo e inclusive para
a Igreja. Se queremos estar firmes na liberdade com a que Cristo nos
libertou, devemos aderir-nos ao princípio de que em questões de religião
e moral só as Escrituras têm autoridade para obrigar a consciência.

§ 5. A perspicuidade das Escrituras. O direito ao juízo


privado.

A Bíblia é um livro plano. É inteligível para todos. E todos têm o


direito e a obrigação de lê-lo e interpretá-lo por si mesmos, de modo que
sua fé repouse sobre o testemunho das Escrituras, e não sobre o da
Igreja. Esta é a doutrina protestante a respeito desta questão.
Não se nega que as Escrituras contêm muitas coisas difíceis de
compreender; que exigem um estudo diligente; que todos os homens
necessitam a condução do Espírito Santo para o correto conhecimento e
para a verdadeira fé. Mas se mantém que em todas as coisas necessárias
para a salvação são suficientemente claras para ser compreendidas
inclusive pelos iletrados.
Não se nega que as pessoas, a fim de compreender de maneira
apropriada as Escrituras, deveriam não só comparar Escritura com
Escritura, e valer-se de todos os meios a seu alcance para lhes ajudar em
sua busca da verdade, mas sim deveriam também dar o maior respeito à
fé da Igreja. Se as Escrituras são um livro claro, e o Espírito age como
mestre para todos os filhos de Deus, segue-se disso inevitavelmente que
têm todos que concordar em todas as questões essenciais em sua
interpretação da Bíblia. E deste fato segue-se que quando um cristão
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 263
individual dissente da fé da Igreja universal (isto é, do corpo de
verdadeiros crentes), isso equivale a dissentir das próprias Escrituras.
O que os protestantes negam a este respeito é que Cristo tenha
designado a algum oficial, ou classe de oficiais, em sua Igreja, a cuja
interpretação das Escrituras tenham que ater-se os demais como
autoridade final. O que afirmam é que Ele a fez obrigatório a cada
homem esquadrinhar por si mesmo as Escrituras, e decidir por si mesmo
o que é o que lhe exigem que creia e faça.
Os argumentos em sustento da primeira destas posições já foram
apresentados nas considerações a respeito da [doutrina romanista da]
infalibilidade da Igreja. As razões mais evidentes em apoio do direito ao
juízo privado são:
1. Que as obrigações de fé e obediência são pessoais. Cada homem
é responsável por sua fé religiosa e conduta moral. Não pode transferir
esta responsabilidade a outros, nem outros a podem assumir em seu
lugar. Ele tem que responder por si mesmo. De nada lhe valerá no dia do
juízo dizer que seus pais ou sua Igreja lhe ensinaram mal. Devia ter
prestado atenção a Deus, e ter obedecido a Ele antes que aos homens.
2. As Escrituras se dirigem em todo lugar ao povo, e não aos
oficiais da Igreja, nem exclusiva nem especialmente. Os profetas foram
enviados ao povo, e diziam constantemente: «Ouve, Israel», «Ouvi, vós
os povos». Também os discursos de Cristo se dirigiam ao povo, e o povo
O escutava com atenção. Todas as Epístolas do Novo Testamento se
dirigem à congregação, aos «chamados a ser de Jesus Cristo», «aos
chamados a ser santos»; aos «amados de Deus»; «aos santificados em
Cristo Jesus»; aos que em qualquer lugar invocam o nome de nosso
Senhor Jesus Cristo»; «aos santos e fiéis em Cristo Jesus que estão em
(Éfeso)»; «aos santos e fiéis irmãos em Cristo que estão em (Colossos)»,
e assim em cada caso. É ao povo a quem se dirigem. A eles se dirigem
estas profundas disquisições de doutrina cristã e estas exposições
inclusivas dos deveres cristãos. Em todo momento supõe-se que são
competentes para compreender o que lhes é escrito, e em todo momento
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 264
lhes é demandado que creiam e obedeçam o que assim vem dos
inspirados mensageiros de Cristo.
Não foram remetidos a nenhuma outra autoridade por meio da qual
deveriam aprender o verdadeiro sentido destas instruções inspiradas. Por
isso, não só se trata de que se priva ao povo de um direito divino,
impedindo-o de ler e interpretar as Escrituras por si mesmos, mas
também é interpor-se entre eles e Deus, e impedir que ouçam Sua voz,
levando-os a ouvir em seu lugar as palavras dos homens.

O povo tem ordem de esquadrinhar as Escrituras


3. As Escrituras não só se dirigem ao povo, mas também o povo é
chamado a estudá-las e ensiná-las a seus filhos. Era uma das instruções
mais frequentemente repetidas aos pais sob a antiga dispensação, que
ensinassem a Lei a seus filhos, para que eles, por sua vez, a ensinassem
aos seus. Os «sagrados oráculos» foram encomendados ao povo, para ser
ensinados ao povo; eram ensinados de maneira imediata das Escrituras,
para que a verdade fosse retida em sua pureza. Assim nosso Senhor
ordenou ao povo que esquadrinhasse as Escrituras, dizendo: «São elas
mesmas que testificam de mim» (Jo 5:39). Com isso dava por sentado o
que eles poderiam compreender o que dizia o Antigo Testamento a
respeito do Messias, embora seus ensinos tivessem sido mal
compreendidos pelos escribas e anciãos, e por todo o Sinédrio. Paulo se
alegrava de que Timóteo tivesse conhecido desde sua infância as
Sagradas Escrituras, que podiam fazê-lo sábio para a salvação. Aos
gálatas disse (Gl 1:8,9): «Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo
do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado,
seja anátema». Isto implica duas coisas: (1.) Que os cristãos da Galácia,
o povo, tinham direito a julgar o ensino de um Apóstolo ou de um anjo
do céu; e segundo, que tinham uma regra infalível por meio da qual se
devia decidir em juízo, isto é, uma revelação anterior autenticada de
Deus. Então, se a Bíblia reconhece o direito do povo de julgar o ensino
dos Apóstolos e dos anjos, não se lhe deve negar o de julgar as doutrinas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 265
dos bispos e dos sacerdotes. O princípio aqui estabelecido pelo Apóstolo
é precisamente aquele que tinha dado Moisés muito tempo antes (Dt
13:1-3), que diz que se surgisse um profeta, embora operasse maravilhas,
não deviam crer nele nem lhe obedecer, se lhes ensinava algo contrário à
Palavra de Deus. Isto novamente assume o direito de julgar, e que as
pessoas tiveram a habilidade e o direito de julgar, e que eles tiveram uma
regra infalível de juízo. Implica, além disso, que sua salvação dependida
em seu julgar corretamente. Se permitiam que estes falsos mestres,
revestidos de vestes sagradas e rodeados das insígnias da autoridade, os
desencaminhassem da verdade, pereceriam inevitavelmente.
4. Dificilmente é preciso observar que este direito de juízo privado
é a grande proteção de liberdade legal e religiosa. Se a Bíblia é admitida
como a regra infalível de fé e prática conforme a que homens estão
destinados em perigo de suas almas, expressa seu credo e conduta; e se
existe um conjunto de homens que têm o direito exclusivo de interpretar
a Escritura, e que são autoritativos para impor suas interpretações às
pessoas de autoridade divina, então eles podem impor sobre eles que
condições de salvação eles devem satisfazer. E os homens que têm a
salvação do povo em suas mãos são seus mestres absolutos. Tanto a
razão como a experiência sustenta a máxima de Chillingworth, 129 quando
ele diz: “Aquele que usurparia um domínio e tirania absoluta acima de
quaisquer pessoas, não precisa pôr-se a si mesmo como problema e
dificuldade de ab-rogar e anular as leis, feitas para manter a liberdade
comum; para ele pode fracassar sua intenção, e limitar seu próprio
projeto também, se ele pode conseguir o poder e autoridade para
interpretá-los à medida que lhe agrada, e acrescentar a eles o que lhe
agrada, e ter suas interpretações e adições às leis; se ele pode reger por
seus advogados.”
Isto é justamente o que a Igreja de Roma fez, e assim estabeleceu
uma tirania para que não exista nada paralelo na história do mundo. O

129
Works, p. 105.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 266
que confere a esta tirania como a mais intolerável, é isto, na medida em
que a massa das pessoas está preocupada, soluciona propriamente a
autoridade do sacerdote de comarca. É o árbitro da fé e moralidade de
seu povo. Nenhum homem pode crer a menos que a base de fé esteja
presente em sua mente. Se as pessoas devem crer que as Escrituras
ensinam certas doutrinas, então eles devem ter a evidência de que tais
doutrinas são realmente ensinadas na Bíblia.
Se aquela evidência é que a Igreja assim interpreta a escrita sagrada,
então o povo tem que saber o que é a Igreja, isto é, qual dos corpos
reivindicam ser a Igreja é designado ser assim considerado. Como
podem as pessoas, as massas áridas, determinar aquela pergunta? O
sacerdote diz a eles. Se eles receberem seu testemunho naquele ponto,
então como eles podem dizer como a Igreja interpreta as Escrituras?
Aqui novamente eles devem tomar a palavra do sacerdote. Deste modo a
autoridade da Igreja como um interpretador, que parece tão imponente,
soluciona propriamente o testemunho do sacerdote, que é
frequentemente mau, e ainda mais frequentemente ignorante. Esta não
pode ser a base da fé dos eleitos de Deus. Aquela base é o testemunho do
próprio Deus falando em Sua palavra, e autenticando como divino pelo
testemunho do Espírito e pela verdade no coração do crente.

§ 6. Regras de Interpretação

Se todo homem tem direito e obrigação de ler as Escrituras, e de


julgar por si mesmo o que é que ensinam, necessita de certas regras para
o conduzir no exercício deste privilégio e dever. Estas regras não são
arbitrárias. Não estão impostas por nenhuma autoridade humana. Não
têm força vinculante que não surja de sua própria verdade e propriedade
intrínsecas. São poucas e simples.
1. As palavras da Escritura devem ser tomadas em seu sentido
histórico claro. Isto é, devem tomar-se no sentido que se lhes dava na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 267
época e pelo povo a que se dirigem. Isto supõe simplesmente que os
escritores sagrados eram honrados, e que queriam fazer-se entender.
2. Se as Escrituras forem o que afirmam ser, a palavra de Deus, são
a obra de uma mente, e de uma mente divina. Disto se segue que a
Escritura não pode contradizer a Escritura. Deus não pode ensinar algo
num lugar que seja inconsistente com o que ensina em outro. Por isso, a
Escritura deve explicar a Escritura. Se uma passagem admite
interpretações distintas, só pode ser possível aquela que concorde com o
que a Bíblia ensina em outros lugares a respeito da mesma questão. Se as
Escrituras ensinam que o Filho é o mesmo em substância e igual em
poder e glória com o Pai, então quando o Filho diz: «O Pai é maior do
que eu», a superioridade deve ser compreendida de uma maneira
coerente com esta igualdade. Deve referir-se quer à subordinação quanto
ao modo de subsistência e operação, ou deve ser oficial. O filho de um
rei pode dizer: «Meu pai é maior que EU», embora pessoalmente seja
igual a seu pai. Esta regra de interpretação recebe às vezes o nome da
analogia da Escritura, e às vezes da analogia da fé. Não há diferença
material no significado das duas expressões.
3. As Escrituras devem ser interpretadas sob a condução do Espírito
Santo, guia que deve ser buscada humilde e fervorosamente. A base
desta norma é dupla. Primeiro: o Espírito é prometido como guia e
mestre. Ele devia vir para conduzir o povo de Deus ao conhecimento da
verdade. E, segundo, as Escrituras ensinam que «o homem natural não
aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente» (1Co 2:14). A
mente irregenerada está naturalmente cega à verdade espiritual. Seu
coração está em oposição às coisas de Deus. É necessário uma mente
receptiva para uma apropriada recepção das coisas divinas. Assim como
só aqueles que têm uma natureza moral podem discernir as verdades
morais, assim só aqueles que têm uma mente espiritual podem
verdadeiramente receber as coisas do Espírito.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 268
O fato de que todo o verdadeiro povo de Deus em toda época e em
cada parte da Igreja, no exercício de seu juízo particular, em
concordância com as simples normas acabadas de expressar, concordam
quanto ao sentido das Escrituras em todas as coisas necessárias quer em
fé ou em prática, é uma prova decisiva da perspicuidade da Bíblia, e do
segurança que é deixar ao povo o prazer do direito divino ao juízo
particular.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 269

PARTE I

TEOLOGIA PRÓPRIA
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 270
CAPÍTULO I
A ORIGEM DA IDEIA DE DEUS

TODOS os homens têm algum conhecimento de Deus. Isto é, têm a


convicção de que há um Ser de quem dependem, e perante quem são
responsáveis. Qual é a fonte desta convicção? Em outras palavras, qual é
a origem da ideia de Deus? Foram dadas a esta pergunta três respostas.
Primeiro, que é inata. Segundo, que é uma dedução da razão: uma
conclusão a que se chega por um processo de generalização. Terceiro,
que deve ser atribuída a uma revelação sobrenatural, preservada pela
tradição.

§ 1. O conhecimento de Deus como coisa inata

A. O que se entende por conhecimento inato.


Por conhecimento inato se entende aquele que se deve à nossa
constituição, como seres sensíveis, racionais e morais. Opõe-se ao
conhecimento baseado na experiência ao obtido por instrução ab extra
[de fora], e ao adquirido mediante um processo de investigação e
raciocínio.
Não pode haver dúvidas de que tal conhecimento existe, isto é, que
a alma está constituída de tal maneira que vê certas coisas como certas
imediatamente sob sua própria luz. Não precisam de prova. Aos homens
não se lhes tem que ensinar que as coisas assim percebidas são certas.
Estas percepções imediatas são chamadas intuições, verdades primárias,
leis da crença, conhecimento ou ideias inatos. A doutrina do
conhecimento inato, ou das verdades intuitivas, não implica que os
meninos nasçam com conhecimento exercitado conscientemente na
mente. Assim como o conhecimento é uma forma da inteligência, e
como se trata de um estado de consciência, o conhecimento, no sentido
do ato de conhecer, tem que ser assunto da consciência, e por isso, diz-
se, não pode ser inato. O recém-nascido não tem uma convicção
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 271
consciente da existência de Deus. Mas a palavra conhecimento emprega-
se às vezes num sentido passivo. Um homem conhece o que jaz dormido
em sua mente. A maior parte de nosso conhecimento está neste estado.
Todos os atos memorizados da história os temos fora do domínio da
consciência, até que a mente volve-se a eles. Assim, não é inconcebível
que a alma, quando chega ao mundo, possa ter consigo estas verdades
primárias que jazem dormidas na mente, até que sejam ativadas pela
ocasião oportuna. Entretanto, não é isto o que se significa mediante o
conhecimento inato. O termo inato indica simplesmente a fonte de nosso
conhecimento. Esta fonte é nossa natureza: aquilo que nasce conosco. E
esta doutrina de conhecimento inato não implica tampouco que a mente
nasça com ideias, no sentido de «pautas, fantasmas ou conceitos», como
as chama Locke; nem que esteja dotada pela natureza com um conjunto
de princípios abstratos ou de verdades gerais. Tudo o que se significa
com isso é que a mente está constituída de tal maneira que percebe
determinadas coisas como certas sem prova e sem instrução.
Estas intuições pertencem aos vários departamentos dos sentidos,
do entendimento e de nossa natureza moral. Em primeiro lugar, todas
nossas percepções sensoriais são intuições. Percebemos seus objetos de
uma maneira imediata, e temos uma irresistível convicção de sua
realidade e verdade. Pode ser que tiremos conclusões errôneas de nossas
sensações, mas estas, até onde cheguem, dizem-nos a verdade. Quando
um homem sente dor, pode ser que erre quanto à onde está localizada, ou
que o atribua a uma causa errada; mas sabe que é dor. Se vê um objeto,
pode ser que erre quanto à natureza do mesmo; mas sabe que vê, e que o
que vê é a causa da sensação que experimenta. São intuições porque são
percepções imediatas do que é certo. A convicção que acompanha a
nossas sensações não se deve a instrução alguma, mas sim à constituição
de nossa natureza.
Em segundo lugar, há as intuições do intelecto. Isto é, há certas
verdades que a mente percebe como certas de maneira imediata, sem
prova nem testemunho. Deste tipo são os axiomas da geometria. Não se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 272
precisa demonstrar a ninguém que a parte de uma coisa é menor que o
todo; ou que uma linha reta é a distância mais curta entre dois pontos
dados. É uma verdade intuitiva que «nada» não pode ser uma causa; que
cada efeito deve ter uma causa. Esta convicção não está baseada na
experiência, porque a experiência é necessariamente limitada. E a
convicção não é meramente que cada efeito que nós ou outras pessoas
tenham observado tenha tido uma causa, mas sim na mesma natureza das
coisas não pode haver um efeito sem uma causa adequada. Esta
convicção é designada como uma verdade inata, não porque um menino
nasça com ela de maneira que esteja incluída em sua consciência infantil,
nem porque o princípio abstrato esteja adormecido em sua mente, mas
simplesmente porque a natureza da mente é tal que não pode deixar de
ver a verdade destas coisas. Assim como nascemos com o sentido do tato
e da visão, e estes tomam conhecimento de seus objetos apropriados logo
que lhes são apresentados, assim nascemos com a faculdade intelectual
de perceber estas verdades primárias logo que nos são apresentadas.
Em terceiro lugar há verdades morais que a mente reconhece
intuitivamente como verdadeiras. A distinção essencial entre e bem e o
mal; a obrigação da virtude; a responsabilidade pelo caráter e a conduta;
que o pecado merece castigo; tudo isto são exemplos desta classe de
verdades. A ninguém se precisa ensinar. Ninguém busca evidências
adicionais de que sejam verdades à parte da que se acha em sua natureza.
Há outra observação que fazer a respeito das intuições da mente. A
capacidade de percepção intuitiva é suscetível de aumento. De fato, é
maior em uns homens que em outros. Os sentidos de algumas pessoas
são muito mais agudos que os de outros. Os sentidos do ouvido e do tato
são muito agravados no caso dos cegos. O mesmo sucede com o
intelecto. O que é clarissimamente evidente para um, deve ser
demonstrado a outro. Diz-se que todas as proposições do Primeiro Livro
de Euclides lhe foram tão evidentes à primeira vista a Newton como os
axiomas. O mesmo sucede em nossa natureza moral religiosa. Quanto
mais purificada e exaltada é a natureza, tanto mais clara é sua visão, mas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 273
amplo o campo e suas intuições. Não é fácil ver, portanto, por que Sir
William Hamilton devia fazer da simplicidade uma característica de
verdades intuitivas. Se uma proposição é qualificada de resolução em
fatores mais simples, pode ainda para um intelecto poderoso ser visto
como verdade evidente por si mesma. O que é imediatamente visto, sem
a intervenção de prova, ser verdade, é, de acordo com o modo comum de
expressão, dito ser intuitivamente visto.
É, entretanto, só dos exercícios mais baixos desta energia que nós
podemos ajudar a nós mesmos em nossos argumentos com nossos
membros da raça humana. Pelo fato de que uma verdade possa ser
evidente por si mesma para uma mente, não significa que deva sê-lo para
todas as outras mentes. Mas há uma classe de verdades tão claras que
nunca deixam de manifestar-se à mente humana, e às quais a mente
humana não pode recusar seu assentimento. Daí que o critério daquelas
verdades que são aceitas como axiomas, e que são dadas por supostas em
todo raciocínio, e cuja negação faz impossível toda fé e conhecimento,
sejam a universalidade e a necessidade. O que todos creem, e o que todos
devem crer, deve ser aceito como inegavelmente certo. Estes critérios
certamente se incluem mutuamente. Se uma verdade é universalmente
admitida, deve sê-lo porque ninguém pode pô-la em dúvida de maneira
racional. E se é assunto de uma crença necessária, deve ser aceito por
todos os que possuem a natureza de cuja constituição surge
necessariamente.

B. Prova de que o conhecimento de Deus é inato

A questão é agora se a existência de Deus é uma verdade intuitiva.


Aparece na mesma constituição de nossa natureza? Trata-se de uma
daquelas verdades que se fazem patentes a toda mente humana, e a que a
mente vê-se obrigada a assentir? Em outras palavras: tem as
características de universalidade e necessidade? Deveria observar-se que
quando a universalidade é feita um critério de verdades intuitivas, é de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 274
aplicação só àquelas verdades que têm seu fundamento ou evidência na
constituição de nossa natureza. Quanto ao mundo externo, se a
ignorância é universal, o erro pode ser universal. Por exemplo, todos os
homens creram durante longos séculos que o sol se movia ao redor da
terra; mas a universalidade desta crença não era evidência de sua
veracidade.
Quando se pergunta se a existência de Deus é uma verdade
intuitiva, isso é equivalente a perguntar se a crença em Sua existência é
universal e necessária. Se é verdade que todos os homens creem que há
um Deus e que ninguém pode deixar de crer em Sua existência, então
Sua existência é uma verdade intuitiva. Se se trata de uma daquelas
coisas existentes na constituição de nossa natureza, ou que, sendo nossa
natureza como é, ninguém pode deixar de conhecê-lo e de reconhecê-lo.
Esta foi a opinião comum em todas as idades. Cícero 130 diz: “Esse
Deos, quoniam insitas eorum, vel potius innatas cognitiones habemus.”
Diz Tertuliano 131 dos pagãos de seu tempo que o comum do povo tinha
uma ideia mais correta de Deus que os filósofos. Calvino 132 diz: “Hoc
quidem recte judicantibus semper constabit, insculptum mentibus
humanis esse divinitatis sensum, qui deleri nunquam potest.” A
tendência em nosso tempo é fazer da existência de Deus uma questão tão
puramente intuitiva para levar a menosprezar todo argumento
demonstrativo da mesma. Mas este extremo não justifica a negação de
uma verdade tão importante como a de que Deus não deixou a nenhum
ser humano sem um conhecimento de Sua existência e autoridade.
Mas a palavra Deus emprega-se num sentido muito amplo. No
sentido cristão da palavra, «Deus é um espírito, infinito, eterno e
imutável, em seu ser, sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e
verdade». Esta sublime ideia de Deus nunca foi alcançada por nenhuma
mente humana nem intuitiva nem discursivamente, exceto mediante a luz
130
De Natura Deorum, I. 17.
131
Testimonium Animae.
132
Institutio, 1. III. 3.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 275
da revelação sobrenatural. Por outro lado, alguns filósofos dignificam o
movimento, a força, ou a vaga ideia do infinito, com o nome de Deus.
Em nenhum destes sentidos da palavra diz-se que o conhecimento de
Deus é inato, ou uma questão de intuição. É no sentido geral de um Ser
de quem dependemos e perante quem somos responsáveis que se afirma
que a ideia existe universalmente, e necessariamente, em toda mente
humana. É coisa certa que se se analisar esta ideia, descobrir-se-á que
inclui a convicção de que Deus é um ser pessoal, e que Ele possui
atributos morais, e que age como governante moral. Nada se diz de até
que ponto esta análise seja feita pelos homens sem instrução nem
civilização. Tudo o que se mantém é que este senso de dependência e de
responsabilidade existe nas mentes de todos os homens perante um ser
mais alto que eles.

O conhecimento de Deus é universal


Como prova desta doutrina, pode-se fazer referência a:
1. O testemunho das Escrituras. A Bíblia declara que o
conhecimento de Deus é assim universal. E o declara tanto de maneira
direta como por implicação necessária. O Apóstolo declara de maneira
direta, com relação aos pagãos como tais sem limitação alguma, que têm
o conhecimento de Deus, e um conhecimento tal que os faz
indesculpáveis. «Pois tendo conhecido a Deus,» diz ele, «não o
glorificaram como a Deus, nem lhe deram graças» (Rm 1:19-21 ). Dos
mais depravados dos homens diz que conhecem o justo juízo de Deus,
que os que cometem pecado são dignos de morte (Rm 1:32). A Escritura
dirige-se em todo lugar aos homens como pecadores; chama-os ao
arrependimento; ameaça-os com o castigo em caso de desobediência, e
promete perdão aos que se voltam de seus pecados. Tudo isto é feito sem
nenhuma demonstração preliminar do ser de Deus. Dá-se por sentado
que os homens sabem que há um Deus, e que estão sujeitos ao Seu
governo moral. É verdade que em algumas ocasiões a Bíblia fala dos
pagãos como não conhecedores de Deus, e diz que estão sem Deus. Mas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 276
é explicado pelo contexto em que aparecem estas declarações e pelo teor
geral das Escrituras que só significa que os pagãos estão sem o
conhecimento reto, salvador, de Deus; que carecem de Seu favor, que
não pertencem ao círculo de Seu povo, e naturalmente que não são
partícipes da bem-aventurança daqueles cujo Deus é o Senhor. Ao
ensinar a pecaminosidade universal e a condenação dos homens, o
indesculpável da idolatria e da imoralidade, e ao declarar que inclusive
os mais degradados são conscientes de culpa e de sua justa exposição ao
juízo divino, a Bíblia dá por sentado que o conhecimento de Deus é
universal, que está escrito no coração de todo homem.
Isto fica ainda mais patente pelo que a Bíblia ensina da lei como
escrita no coração. O Apóstolo nos diz que os que têm uma revelação
escrita serão julgados por esta revelação; que os que não têm uma lei
revelada externamente serão julgados pela lei escrita em seus corações.
Que os pagãos têm tal lei o demonstra, em primeiro lugar, pelo fato de
que «procedem, por natureza, de conformidade com a lei», isto é, que
fazem sob o controle de sua natureza aquilo que a lei prescreve. Quando
condena, pronuncia que algo que foi feito é contrário à lei moral; e
quando aprova pronuncia aquele algo como de acordo com aquela lei
(Rm 2:12-16). Assim, o reconhecimento de Deus, isto é, de um Ser
perante quem somos responsáveis, está envolto na mesma ideia da
responsabilidade. Por isso, toda pessoa leva na própria constituição de
seu ser como agente moral a evidência da existência de Deus. E como
este sentimento de pecado e de responsabilidade é absolutamente
universal, assim também deve sê-lo, segundo a Bíblia, o conhecimento
de Deus.
2. O segundo argumento em favor da universalidade deste
conhecimento é o argumento histórico. A história mostra que o elemento
religioso de nossa natureza é tão universal como o racional ou social. A
ideia de Deus está presente em toda linguagem humana. E como a
linguagem é o produto e a revelação da consciência humana, se todos as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 277
linguagens têm algum nome para Deus, isso demonstra que a ideia de
Deus, em alguma forma, é possessão de cada ser humano.

Objeções à pressuposição de que o conhecimento de Deus é


universal.
Há duas objeções que, com frequência, persuadiram contra a
doutrina de que o conhecimento de Deus resulta da verdadeira
constituição de nossa natureza e, portanto, é universal. É-o, que viajantes
e missionários informam a existência de algumas tribos tão degradadas
que não puderam descobrir nelas nenhum rastro deste conhecimento.
Embora seja admitido o fato que tais tribos não têm nenhuma ideia de
Deus, não seria conclusivo. No caso de uma tribo de idiotas ser
descoberta, não provaria que a razão não é um atributo de nossa
natureza. Se qualquer comunidade viesse à luz em que infanticídio fosse
universal, não provaria que o amor paterno não fosse um dos instintos da
humanidade. Mas a probabilidade é que o fato não é reportado. É muito
difícil que os estrangeiros sejam familiarizados com a vida interior
daqueles que diferem deles mesmos tanto em sua condição intelectual
como na condição moral. E, além disso, os cristãos vinculam um
significado tão exaltado à palavra de Deus, que quando eles não veem
nenhuma evidência da presença daquela concepção exaltada na mente do
pagão, são hábeis para concluir que se deseja todo conhecimento de
Deus. A menos que tais pessoas mostrem que eles não têm nenhum
sentido do certo e errado, nenhuma consciência de responsabilidade
quanto a caráter e conduta, não há nenhuma evidência que eles não têm
nenhum conhecimento de tal ser como Deus.
A outra objeção é tirada do caso dos surdos-mudos, que às vezes
diz-se que prévia à instrução, a ideia de Deus nunca entrou em suas
mentes. Para isto se pode dar a mesma resposta. O conhecimento obtido
pela instrução cristã tanto ultrapassa aquele conhecimento dado por
intuição, que o posterior parece como nada. É pouco concebível que uma
alma humana poderia existir em qualquer estado de desenvolvimento,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 278
sem um sentido de responsabilidade, e este envolve a ideia de Deus.
Quanto à responsabilidade sente-se não ser para si mesmo, nem para
homens, senão para um Ser invisível, mais elevado que um, e mais
elevado que o homem.

A crença em Deus é necessária


Mas se se admite que o conhecimento de Deus é universal entre os
homens, é também uma crença necessária? Acaso é impossível à mente
desapropriar-se da convicção de que Deus existe? A necessidade, como
já se observou antes, pode ser considerada como envolta na
universalidade, ao menos num caso como este. Não há nenhuma maneira
satisfatória de dar conta da crença universal na existência de Deus,
exceto que tal crença está baseada na própria constituição de nossa
natureza. Não obstante, estes dois critérios de verdades intuitivos são
geralmente distinguidos e em certos aspectos são distintos.
Así que la pregunta es: ¿Es posible que un hombre cuerdo rechace
creer en La existencia de Dios? Esta pregunta generalmente tiene una
respuesta negativa. Pero se presenta la objeción de que los hechos
demuestran lo contrario. No se ha encontrado nunca a nadie que niegue
que dos más dos suman cuatro, mientras que en todas las épocas y por
todas las partes del mundo han abundado y abundan los ateos.
Entretanto, há diferentes classes de verdades necessárias.
1. Aquelas cuja antítese é absolutamente impensável. Que todo
efeito deve ter uma causa, que uma parte de uma coisa determinada é
menos que sua totalidade, são proposições cujas antíteses carecem de
todo significado. Quando alguém diz que algo é nada, não está
expressando nenhum pensamento. Nega o que afirma e, portanto, não
está dizendo nada.
2. Há verdades a respeito de coisas externas ou materiais que têm a
capacidade de constranger a crer de maneira diferente daquele poder que
pertence às verdades concernentes à mente. Um homem não pode negar
que possui um corpo; e não pode negar racionalmente que tem uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 279
vontade. Em ambos os casos, a impossibilidade pode ser igual, mas são
de classes diferentes, e afetam a mente de maneira diferente.
3. Também, há verdades que não se podem negar sem violentar as
leis de nossa natureza. Em tais casos, a negação é forçada, e só pode ser
temporal. As leis de nossa natureza se manifestarão mais cedo ou mais
tarde, e obrigarão a uma crença oposta. Um pêndulo, em posição de
repouso, pendura perpendicular ao horizonte. Pode fazer-se, mediante
uma força externa, que pendure com qualquer grau de inclinação. Mas
logo que se elimina esta força, com toda certeza que voltará para sua
posição normal. Sob o controle de uma teoria metafísica, um homem
pode negar a existência do mundo exterior ou a obrigação da lei moral; e
esta ausência de crença pode ser sincera e persistente durante um tempo;
mas no momento em que suas razões especulativas para a descrença
estejam ausentes de sua mente, esta passa necessariamente a suas
convicções originais e naturais. Também é possível que a mão de um
homem pode estar tão calejada ou cauterizada que perca o sentido do
tato. Mas isso não demonstra que a mão humana não seja normalmente o
grande órgão do tato. Assim que é possível que a natureza moral do
homem fique tão desorganizada pelo vício ou pela falsa filosofia que
silencie eficazmente seu testemunho da existência de Deus. Mas isto não
demonstraria nada quanto ao que verdadeiramente é aquele testemunho.
Além disso, esta insensibilidade e a conseguinte incredulidade não
podem durar. Tudo aquilo que excita a natureza moral, seja o perigo, ou
o sofrimento, ou a iminência da morte, faz com que a incredulidade se
dissipe num momento. Os homens passam do cepticismo à fé, em muitos
casos, de maneira instantânea. Não, naturalmente, devido a um processo
argumentativo, mas pela existência de um estado de consciência que é
irreconciliável com o cepticismo, e em cuja presença este não pode
existir. Este fato é ilustrado de maneira contínua, não só no caso dos não
instruídos e supersticiosos, mas sim inclusive no caso de homens da mais
refinada cultura. O simples fato da Escritura e da experiência é que a lei
moral escrita no coração é indelével; e a lei moral em sua natureza
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 280
implica um legislador, um de quem emana esta lei, e por quem será
mantida. E, por isso, enquanto que os homens são agentes morais, creem
e crerão na existência de um Ser de quem dependem, e perante quem são
responsáveis por seu caráter e conduta. É até aí e neste sentido que se
deve admitir que o conhecimento de Deus é inato e intuitivo; que os
homens não necessitam que lhes seja ensinado que há um Deus como
tampouco que existe o pecado. Mas como os homens, até os que são
instruídos pela Palavra de Deus e iluminados por Seu Espírito, estão
ignorantes da natureza e extensão do pecado, embora estejam
conscientes de sua existência, necessitam grandemente aquelas mesmas
fontes de instrução para receber um conhecimento adequado da natureza
de Deus e de suas relações com Ele.

§ 2. O conhecimento de Deus não se deve a um processo de


raciocínio

Os que não estão dispostos a admitir que a ideia de Deus é inata


pela própria constituição do homem, mantêm geralmente que é uma
dedução necessária, ou ao menos natural, da razão. Às vezes se expõe
como a última e maior generalização da ciência. Assim como se supõe
que a lei da gravidade explica uma grande classe de fenômenos do
universo, e que não só os explica, mas também tem que ser suposta para
poder compreendê-los, da mesma maneira supõe-se a existência de uma
primeira causa inteligente para dar conta da existência do próprio
universo e de todos seus fenômenos. Mas assim como tais generalizações
são possíveis só para as mentes cultivadas, esta teoria da origem da ideia
de Deus não pode dar conta de sua existência nas mentes de todos os
homens, inclusive dos menos educados.
Outros, portanto, enquanto que consideram este conhecimento o
resultado de um raciocínio, fazem o processo muito mais singelo. Há
muitas coisas que os meninos e os analfabetos aprendem, e que
dificilmente podem deixar de aprender, e que não devem ser referidas à
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 281
constituição de sua natureza. Assim, A existência de Deus se manifesta
de maneira tão evidente por tudo o que há dentro de nós e a nosso redor,
a crença nesta existência é tão natural, tão apropriada ao que vemos e ao
que necessitamos, que chega a ser adotada de uma maneira geral.
Estamos rodeados de fatos que indicam desígnio; de efeitos que
demandam uma causa. Temos um sentido do infinito que é vago e vazio,
até que se preenche com Deus. Temos um conhecimento de nós mesmos
como seres espirituais, o que sugere a ideia de Deus, que é um espírito.
Temos a consciência de qualidades morais, da distinção entre o bem e o
mal, e isto nos faz pensar em Deus como um ser de perfeições morais.
Tudo isto pode ser muito certo, mas não é um relato adequado dos fatos
do caso. Não nos dá uma razão satisfatória da universalidade e da força
da convicção da existência de Deus. Nossa própria consciência nos
ensina que esta não é a base de nossa própria fé. Não levamos a nós
mesmos desta maneira a crer que há um Deus; e é muito evidente que
não é por tal processo de raciocínio, por simples que seja, que a massa da
humanidade chega a esta conclusão.
Além disso, o processo anteriormente descrito não dá conta da
origem de nossa crença em Deus, mas sim só dá o método mediante o
qual esta crença é confirmada e desenvolvida. Em qualquer caso, é muito
pouco o que é dado pela intuição, ao menos para as mentes comuns. O
que é descoberto desta maneira tem que ser expandido, e seus
verdadeiros conteúdos têm que ser desenvolvidos. Se isto é assim com as
instruções e do sentimento e o entendimento Por que não deveria ser
assim também com nossa natureza religiosa?
A verdade é que todas as faculdades e sentimentos de nossas
mentes e corpos têm seus objetos apropriados; e a posse das faculdades
supõe a existência daqueles objetos. Os sentidos supõem a existência e
realidade dos objetos de sentido. O olho, em sua verdadeira estrutura,
supõe que existe tal elemento como a luz; o sentido da audição seria
irresponsável e inconcebível sem som; e o sentido do tato seria
inconcebível onde não há nenhum objeto palpável. O mesmo é verdade a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 282
respeito de nossos afetos sociais; necessitam a hipótese que existem
relações adequadas a seus exercícios. Nossa natureza moral supõe que a
distinção entre certo e errado não é quimérica ou imaginária. De certa
forma, nossos sentimentos religiosos, nosso sentido de dependência,
nossa consciência de responsabilidade, nossas aspirações após
companheirismo com um Ser mais elevado que nós mesmos, e mais
elevado que qualquer coisa que o mundo ou natureza contém, requer a
convicção na existência de Deus. Realmente dizem que se esta convicção
é intuitiva e necessária, não existe nenhuma virtude nisto.
Esta objeção omite o fato que o caráter moral de nossos sentimentos
depende de sua natureza e não de sua origem. Podem originar-se da
constituição de nossa natureza, e ainda é boa ou má que o caso pode ser.
O amor da mãe por seu filho é instintivo; a ausência do afeto materno
numa mãe é algo antinatural e monstruoso, o objeto de desapropriação
universal. O sentido de piedade, de justiça, os sentimentos de
benevolência, são instintivos, mas nenhum menos virtuoso. O mesmo é
verdade de nossos sentimentos religiosos, e da convicção que eles
envolvem. Não podemos evitar o sentimento que nós somos
responsáveis, e é verdade que devíamos sentir isso. O homem que trouxe
para si mesmo um estado de insensibilidade para com todo dever moral,
é o que as Escrituras chamam “perverso.” Adão creu em Deus no
momento em que fora criado, pela mesma razão que ele creu no mundo
externo. Sua natureza religiosa, sem nuvens e imaculada, compreendeu-a
com a mesma confiança que seus sentidos compreenderam o outro. É de
grande importância que os homens saibam e sintam que por sua própria
natureza estão obrigados a crer em Deus; que não se podem emancipar
desta crença sem desracionalizar e desmoralizar todo seu ser.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 283
§ 3. O conhecimento de Deus não se deve exclusivamente à
Tradição

Há alguns teólogos que são incapazes de aceitar que o


conhecimento de Deus pode ser referido à constituição de nossa natureza
ou a nenhum processo de raciocínio. Afirmam que não só a exaltada
concepção do Ser Divino apresentada na Bíblia, mas também as mais
simples e pervertidas concepções dos pagãos devem ser relacionadas
com uma revelação sobrenatural original. Esta revelação foi dada a
nossos primeiros pais, e deles passou a seus descendentes. Quando o
conhecimento assim comunicado começou a desvanecer-se dentre os
homens, Deus voltou a revelar-se a Abraão, e fez a ele e a seus
descendentes depositários da verdade. Assim que foi ou pelos restos da
revelação primitiva, ou por irradiação do povo escolhido, que se derivou
todo o conhecimento de Deus existente no mundo. Fez-se o intento de
mostrar que quanto mais afastado estava um povo dos judeus, tanto
menos conhecia a Deus; e que quanto mais relação tinha um povo com o
povo ao que Deus tinha encomendado Seus oráculos, tanto mais correto
e extenso era seu conhecimento.
Esta postura, embora surgindo de reverencia pela Palavra de Deus,
é evidentemente extrema. É verdade que quanto mais retrocedemos na
história do mundo, quanto mais nos aproximamos da revelação original,
tanto mais puro é o conhecimento a respeito dEle. Também pode ser
certo, como norma geral, que quanto mais qualquer povo era levado sob
a influência da verdade tal como a sustentava o povo escolhido de Deus,
tanta mais luz recebia. Também se pode conceder que aqueles que com a
Bíblia em suas mãos rejeitam seus ensinos e se entregam a suas próprias
especulações, transformam, como o diz o Apóstolo, «a verdade de Deus
em mentira» perdendo todo conhecimento do Deus vivo e verdadeiro.
Mas tudo isto não demonstra que o conhecimento de Deus não esteja
escrito no coração. Nossas percepções intuitivas precisam ser abrigadas,
desenvolvidas e interpretadas. Sabemos pela Escritura que a lei está
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 284
escrita sobre as almas de todos os homens com caracteres que não
podem ser apagados e, entretanto, foi pervertida, mal interpretada ou
descuidada pelos homens em todas as eras e em todas partes do mundo.

§ 4. Pode-se demonstrar a existência de Deus?

Um numeroso grupo de teólogos e de filósofos negam que a


existência de Deus seja suscetível de prova. Isto se faz sobre bases
diferentes.
Primeiro. Diz-se que ao ser intuitivo o conhecimento de Deus, não é
uma questão suscetível de prova. Esta é a posição adotada pela classe de
teólogos que resolvem toda a religião em sentimento, e pela moderna
escola de filósofos especulativos, que fazem uma ampla distinção entre
razão e entendimento; o primeiro sendo a faculdade intuitiva, e o
segundo a discursiva. As verdades eternas e necessárias pertencem à área
da razão; as verdades subordinadas à esfera do entendimento. É o
entendimento aquele que argumenta e chega a conclusões. A razão
recebe mediante a visão imediata. O que corresponde a Deus, como o
Ser eterno, infinito e necessário, pertence à área da razão, e não do
entendimento. Inclusive escritores tão teístas como Twesten, 133 dizem
que os bons não necessitam demonstração de que Deus existe, e que os
ímpios não podem ser convencidos. Não se pode demonstrar que uma
coisa seja bela ou que seja boa. E tampouco pode-se demonstrar que
Deus existe. A falácia desta afirmação é evidente. A beleza e a bondade
são qualidades que devem ser discernidas pela mente, o mesmo que os
objetos da visão são discernidos pelo olho. Assim como não se pode
demonstrar a um cego que um objeto seja vermelho, tampouco se pode
demonstrar a um camponês sem letras que o «Paraíso Perdido» é uma
obra sublime. Mas a existência de Deus é uma realidade objetiva. Pode-
se demonstrar que é um fato que não pode ser negado racionalmente.

133
Vorlesungen.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 285
Embora todos os homens tenham sentimentos e convicções que
demandam a hipótese de que Deus existe é, entretanto, perfeitamente
legítimo mostrar que há outros fatores que necessariamente conduzem à
mesma conclusão.
Além disso, deve-se lembrar que os argumentos teístas estão dados
para demonstrar não só que existe uma necessidade para a hipótese de
um Ser extramundano e eterno, mas sim, principalmente, para mostrar o
que é este Ser: que é um Ser pessoal, com consciência própria,
inteligente e moral. Tudo isto pode subjazer na intuição primária, mas
tem que ser exposto e estabelecido.
Segundo. Outra classe de objeções contra todos os argumentos
teístas se relaciona com os próprios argumentos. São declarados
falaciosos, como envolvendo uma petição de princípio; ou inválidos
como derivados de falsas premissas; ou conduzindo a conclusões
distintas das quais se queriam estabelecer. A respeito disto cada um tem
que julgar por si mesmo. Foram considerados como sãos e concludentes
pelos homens mais sábios, desde Sócrates até nossos dias. Naturalmente,
o argumento com base no principio da causação tem que ser inválido
para os que negam a existência de uma causa eficaz; e o argumento do
desígnio não pode ter força para os que negam a possibilidade das causas
finais.
A maioria das objeções à conclusividade dos argumentos aqui
tratados surge de um mal entendido a respeito do que é que se quer
demonstrar com eles. Com frequência supõe-se que cada argumento tem
que demonstrar a totalidade da doutrina do Teísmo, enquanto que um
argumento pode ser que demonstre um elemento desta doutrina, e outro
argumento outros elementos diferentes. O argumento cosmológico pode
demonstrar a existência de um Ser necessário e eterno; o argumento,
teleológico, que este Ser é inteligente; o argumento moral, que Ele é uma
pessoa possuindo atributos morais. Os argumentos não são dados tanto
para demonstrar a existência de um ser desconhecido para demonstrar
que o Ser que Se revela ao homem na própria constituição de sua
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 286
natureza tem que ser tudo o que o Teísmo declara que é. Escritores como
Hume, Kant, Coleridge e toda a escola de filósofos transcendentalistas
negaram de maneira mais ou menos aberta a validez dos argumentos
habituais demonstrativos da existência de um Deus pessoal.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 287
CAPÍTULO II
TEÍSMO

O TEÍSMO é a doutrina de um Deus extramundano e pessoal, o


criador, preservador e governador do mundo. O desígnio de todos os
argumentos a respeito disto é demonstrar que os fatos que nos rodeiam, e
os fatos da consciência, demandam aceitar a existência deste Ser. Os
argumentos que geralmente se apresentam com relação a isto são o
Ontológico, o Cosmológico, o Teleológico e o Moral.

§ 1. O argumento ontológico.

Este é um argumento metafísico a priori. Tem a intenção de fazer


patente que a existência real objetiva de Deus está envolta na própria
ideia de tal Ser. Usualmente se enuncia para que inclua todos os
argumentos que não sejam a posteriori; isto é, os que não procedem de
efeito por causa. Por isso, foi apresentado de diferentes formas. As
principais as seguintes:
1. A forma em que apresenta Anselmo em seu «Monologium», e de
maneira mais plena e definitiva em seu «Proslogium». O argumento,
substancialmente, é assim: Que aquilo que existe em re é maior que o
que só existe na mente. Nós temos uma ideia de um Ser imensamente
perfeito; mas na perfeição infinita se inclui a existência real. Porque se a
existência real é uma perfeição, e se Deus não existe na realidade, então
podemos conceber a respeito de um Ser maior que Deus. Suas
palavras 134 são : “Et certe id, quo majus cogitari nequit, non potest esse
in intellectu solo. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et
in re, quod majus est. . . . . Existit ergo procul dubio aliquid, quo majus
cogitari non valet, et in intellectu et in re.” Este argumento dá por
sentado que a existência pertence à natureza da perfeição. Mas não

134
Proslogium ii. Opera, Paris, 1721, p. 30 b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 288
acrescenta nada à ideia. A ideia em si pode ser completa, embora não
haja existência objetiva que corresponda a ela. Anselmo considerava
impossível a negação da existência de Deus, porque Deus é a mais
elevada verdade, o mais alto bem, de quem toda outra verdade e bem são
as manifestações. A necessidade da existência está incluída, segundo esta
doutrina, na ideia da perfeição absoluta. Em outras palavras, está
incluída na ideia de Deus. E como todo homem tem a ideia de Deus, tem
que admitir Sua existência real; porque o que é necessário é por si só
real. Não se segue de nossa ideia do homem que ele exista realmente,
porque o homem não é necessariamente existente. Mas é absurdo dizer
que um Ser necessariamente existente não existe. Se este argumento tem
alguma validez, não é importante. Só diz que o que deve ser realmente é.
Se a ideia de Deus como existe na mente de cada homem inclui a da
existência real, então, até onde vai a ideia, aquele que tem um tem o
outro. Mas o argumento não mostra como a ideal implica a real. 135

O argumento de Descartes.
2. O argumento de Descartes assumia esta forma: Temos uma ideia
de um Ser imensamente perfeito. Como somos finitos, esta ideia não
pôde originar-se em nós. Como estamos familiarizados só com o finito,
não poderia haver-se originado em nada do que temos ao nosso redor.
Por isso, tem que proceder de Deus, cuja existência é assim uma hipótese
necessária. “Habemus ideam Dei, hujusque ideæ realitas objectiva nec
formaliter nec eminenter in nobis continetur, nec in ullo alio præterquam
in ipso Deo potest contineri; ergo hæc idea Dei, quæ in nobis est, requirit
Deum pro causa; Deusque proinde existit.” 136 É verdade que temos
muitas ideias ou concepções com as quais não se corresponde uma
existência. Mas em tais casos as ideias são arbitrárias, ou criações
voluntárias de nossas próprias mentes. Mas a ideia de Deus é necessária;
135
Acerca de este argumento, véase Ritter, Geschichle der Christlichen Philosophie, I; págs. 229-237.
Baur, Dreieinigkeilslehre, II, 374.
136
Meditationes de Prima Philosophia prop. ii. p 89, edit. Amsterdam, 1685.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 289
não podemos evitar tê-la. E tendo-a, tem que haver um Ser que
corresponda com ela. Descartes ilustra este argumento, dizendo que da
mesma maneira que vai incluído em nossa ideia de triângulo que seus
ângulos somam dois ângulos retos, assim é na realidade. Mas ambos os
casos não são paralelos. Com esta só se diz que um triângulo é o que é,
isto é, uma figura de três lados, cujos ângulos somam dois ângulos retos.
Mas a existência de Deus como fato não fica incluída na definição dele.
Kant expressa isto em termos filosóficos, dizendo que se for tirado o
predicado, desaparece o sujeito; porque um juízo analítico é uma mera
análise, ou uma declaração plena do que está no sujeito. O juízo de que a
soma das ângulos de um triângulo são iguais à soma de dois ângulos
retos é só uma análise do sujeito. É uma simples declaração do que é um
triângulo; por isso, se for tirada a igualdade dos ângulos, tira-se o
triângulo. Mas num juízo sintético há uma síntese, uma acumulação.
Algo se acrescenta no juízo que não está no sujeito. Neste caso este algo
é a existência real. Podemos inferir da ideia de um ser perfeito que é
sábia e boa; mas não que realmente exista; porque a realidade é algo que
se acrescenta à mera ideia.
A única diferença entre o argumento de Descartes e o de Anselmo
parece ser meramente de forma. Um infere a existência de Deus, a fim de
dar-se conta da existência da ideia; o outro argumenta que a existência
real está incluída na ideia. Por isso, os defensores de ambos apelam à
mesma ilustração. O argumento de Anselmo é o mesmo que aquele que
se deriva da definição de um triângulo. Não se pode pensar num
triângulo sem pensar nele como possuindo três ângulos; tampouco pode-
se pensar em Deus sem pensar nEle como verdadeiramente existente;
porque a existência real entra tão essencialmente dentro da ideia de Deus
como a «triangularidade» na de um triângulo. Naturalmente, há os que
são afetados por este tipo de raciocínio; mas não tem poder sobre a
generalidade dos homens.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 290
O argumento do doutor Samuel Clarke
3. O doutor Samuel Clarke, igualmente distinto como matemático,
linguista e metafísico, publicou em 1705 sua célebre «Demonstração do
Ser e dos Atributos de Deus». Pelo que respeita ao Ser de Deus, seu
argumento é a priori. Diz ele que não há nada necessariamente existente
cuja não existência seja concebível. Podemos conceber da não existência
do mundo; por isso, o mundo não é necessariamente existente e eterno.
Não podemos, entretanto, conceber a não existência do espaço e da
duração; por isso, o espaço e a duração são necessários e infinitos.
Entretanto, o espaço e a duração não são substâncias; por isso, deve
haver uma substância eterna e necessária (isto é, Deus) da qual eles
sejam os acidentes. Este argumento, no melhor dos casos, dá-nos só a
ideia de alguma coisa necessária e infinita; e nenhuma classe de
antiteístas está disposto a negar esta. A determinação do que seja esta
substância eterna, que atributos pertencem à mesma, demanda que se
faça referência ao mundo dos fenômenos, e o argumento se transforma
em a posteriori. Objetou-se contra o argumento do doutor Clarke que
não é propriamente a priori. Da existência do tempo e do espaço infere a
existência de um Ser substancial.

O argumento de Cousin
4. Cousin, em seu «Elementos de psicologia», repete continuamente
o mesmo argumento de uma maneira um pouco diferente. A ideia do
infinito, diz ele, dá-se na do finito. Não podemos ter um sem ter o outro.
«Estas duas ideias são correlativos lógicos; e na ordem de sua aquisição,
o do finito e imperfeito precede o outro; mas o precede muito de perto.
Não é possível à razão, logo que a consciência dá à mente a ideia do
finito e imperfeito, deixar de conceber a ideia do infinito e do perfeito.
Agora, o infinito e perfeito é Deus». 137 Mais uma vez o argumento que
temos aqui é que aquilo do que temos uma ideia é real. A verdade é que

137
Elements of Psychology, p. 375, New York, 1856.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 291
não se supõe como uma proposição geral. Podemos imaginar, diz
Cousin, uma górgona, um centauro, e podemos imaginar sua não
existência; mas não está dentro de nossa capacidade, quando nos dá o
imperfeito e finito, não conceber o infinito e perfeito. E isto, diz ele, não
é uma quimera, e sim o necessário produto da razão; e, por isso, é um
produto legítimo. 138 A ideia do finito e imperfeito é uma ideia primitiva,
dada na consciência; e, por isso, a ideia correlativa do infinito e perfeito
dada por necessidade e pela razão, tem que ser também primitiva. Em
outras ocasiões apresenta este tema sob uma luz distinta. Ensina que
como a mente na percepção reconhece o objeto como uma existência
real, distinta dela mesma, assim a razão tem uma percepção, ou
conhecimento imediato, do Infinito, com uma convicção necessária de
sua realidade como distinguida (num sentido) dela mesma. O eu, a
natureza e Deus são de maneira semelhante e igualmente envoltos na
percepção intuitiva da mente; e são inseparáveis. Isto é muito diferente
da doutrina comum do conhecimento de Deus como inato ou intuitivo.
Esta última doutrina só supõe que a natureza da alma humana é tal que
está intuitivamente convencida de sua dependência ou responsabilidade
para com um Ser diferente de e mais exaltado que ele mesmo. A
primeira supõe, com os filósofos alemães, especialmente Schelling, a
cognição imediata do Infinito pela razão.
Admitindo com Cousin que as ideias do finito e infinito são
correlativas, que não podemos ter uma sem ter a outra, e que a mente,
por necessidade racional, fica convencida de que se há um finito tem que
haver um infinito, resta perguntar: O que é este Infinito? Para Cousin, o
Infinito é Tudo. Por isso, o Teísmo não ganha nada com estes
argumentos metafísicos.

138
Ibid., p. 376.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 292
§ 2. O argumento cosmológico

Baseia-se no princípio de uma causa suficiente. Afirmado


silogisticamente, o argumento se enuncia assim: Cada efeito deve ter
uma causa adequada. O mundo é um efeito. Por isso, o mundo deve ter
tido uma causa fora dele mesmo e adequada para dar conta de sua
existência.

A. A causalidade

A validez e o significado deste argumento dependem do sentido que


se dê às palavras causa e efeito. Se um efeito se definir corretamente
como um acontecimento, ou um produto, não devido a nada inerente nele
mesmo, mas sim produzido por algo fora dele mesmo; e se por causa se
entende um antecedente a cuja eficácia deve-se o efeito; então é
inevitável a conclusão de que a existência do mundo supõe a existência
de uma causa adequada para sua produção, sempre e quando se puder
demonstrar que o mundo é um efeito, isto é, que não é autocausado ou
eterno.
É bem sabido, entretanto, que desde que Hume propôs sua teoria,
todas as causas eficientes foram descartadas por uma grande classe de
filósofos. Os sentidos não conhecem outra coisa que uma sequência de
acontecimentos. Um segue o outro. O que precede de maneira uniforme,
chamamo-lo causa; o que segue de maneira uniforme, chamamo-lo
efeito. Como tudo o que detectam os sentidos é uma sequência, isto é
tudo o que temos direito a aceitar. A ideia de que não há nada no
antecedente que determine o efeito para ser o que é e não de outra
maneira, é totalmente arbitrária. Uma causa, por isso, não é nada mais
que um antecedente invariável, e um efeito é um consequente invariável.
Stuart Mill 139 modificou a definição de Hume de causa, como o fez o

139
Logic, p. 203, New York, 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 293
doutor Brown de Edimburgo antes dele. O primeiro diz: «É necessário
para nosso emprego da palavra causa que creiamos não só que o
antecedente sempre foi seguido pelo consequente, mas também,
enquanto permaneça a presente constituição das coisas, sempre será
assim». E o doutor Brown 140 diz: «Uma causa, na definição mais plena
que admite filosoficamente, pode ser definida como aquilo que precede
imediatamente a qualquer mudança, e que, existindo em qualquer tempo
sob circunstâncias similares, sempre foi e sempre será seguido de uma
mudança similar». É evidente que esta definição não só é arbitrária, mas
também é inconsequente com o princípio fundamental da filosofia de
Hume e de seus seguidores, isto é, que todo nosso conhecimento se
baseia na experiência. A experiência se relaciona com o passado. Não
pode ser garantia do futuro. Se cremos que um consequente determinado
sempre seguirá a um antecedente determinado, tem que haver outra base
para esta convicção de que sempre tenha sido assim. A não ser que haja
algo na natureza do antecedente que assegure a sequência do efeito, não
há nenhuma base racional para a crença de que o futuro tem que ser
como o passado.

A doutrina comum sobre esta questão.


A doutrina comum a respeito desta questão inclui os pontos
seguintes:
(1) Uma causa é algo. Não é um mero nome para uma certa relação.
É uma entidade real, uma substância. Esta está claro, porque uma não
entidade não pode agir. Se o que não existe pode ser uma causa, então
nada pode produzir algo, o qual é uma contradição. (2) Uma causa deve
ser algo não só real, mas também deve ter poder ou eficiência. Deve
haver algo em sua natureza que explique os efeitos que produz. (3) Esta
eficiência deve ser adequada; isto é, suficiente e apropriada para o efeito.
Está bem claro que esta é uma perspectiva verdadeira da natureza de

140
Inquiry, p. 17. Edimburgo, 1818.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 294
uma causa: (1) Por nossa própria consciência. Nós somos causas.
Podemos produzir efeitos. E os três pontos particulares recém-
mencionados se incluem em nossa consciência de nós como causa. Nós
somos verdadeiras existências; temos poder; temos um poder adequado
para os efeitos que produzimos. (2) Podemos apelar à consciência
universal dos homens. Todos os homens atribuem este significado à
palavra causa em sua linguagem comum. Todos os homens dão por
sentado que cada efeito tem um antecedente ao qual deve sua eficiência.
Nunca consideram uma mera antecedência, por uniforme que seja no
passado, ou por certa que seja no futuro, como constitutiva de uma
relação causal. A sucessão das estações foi uniforme no passado, e
estamos confiantes de que seguirá sendo uniforme no futuro; mas
ninguém diz que o inverno seja a causa do verão. Todos estão
conscientes de que a causa expressa uma relação inteiramente diferente
da relação da mera antecedência. (3) Esta postura a respeito da natureza
da causalidade está incluída na crença universal e necessária de que todo
efeito deve ter uma causa. Esta crença não é de que uma coisa tenha que
ir sempre antes de outra, mas sim não pode ocorrer nada, que não se
pode provocar mudança alguma, sem a aplicação de poder ou eficiência
em alguma parte; de outro modo algo poderia vir do nada.
Este tema o tratam todos os metafísicos de Aristóteles em diante, e
especialmente desde a promulgação da nova doutrina adotada por
Hume 141. Foi um dos grandes serviços à causa da verdade o que rendeu o
doutor McCosh ao defender a autoridade destas crenças primárias que
subjazem como fundamento de todo conhecimento.

141
Veja-se Reid’s Intellectual Powers; Stewart’s Philosophical Essays; Brown’s Inquiry, y Essay on
Cause and Effect; Sir William Hamilton’s Works; Dr. McCosh’s, Intuitions of the Mind.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 295
A convicção intuitiva da necessidade de uma Causa.
Mas admitindo que uma causa não seja simplesmente um
antecedente invariável, mas sim aquilo ao poder do qual se deve o efeito,
“Ens quod in se continet rationem, cur aliud existat,” 142 como é definido
por Wolf, resta perguntar, qual é o fundamento da crença universal de
que cada efeito deve ter uma causa? Hume diz que está fundado na
experiência e, portanto, é limitada por esta. Vemos que tudo o que se
efetua dentro da esfera de nossa observação é precedida por uma causa, e
podemos razoavelmente esperar que o mesmo seja verdade além da
esfera de nossa observação. Mas disto não sabemos nada. Seria
presunçoso determinar pelo que sucede em nosso pequeno globo, o que
deve ser a lei do universo. O fato que, até onde vemos, todo efeito tem
uma causa, não nos dá nenhum direito a assumir que o universo deve ter
tido uma causa. Kant diz que a lei de causa e efeito está só em nossas
mentes. Os homens visualizam coisas nessa relação; mas eles não têm
nenhuma garantia que essa relação se mantém no mundo fora de si
mesmos.
A doutrina comum das escolas é que se trata de uma verdade
intuitiva, um princípio primordial ou evidente por si mesmo. Isto é, que
se trata de algo que todos os homens creem, e que todos os homens
devem crer. Não haveria verdades evidentes por si mesmas, intuitivas se
o fato de que tenham sido negadas por um ou mais filósofos
especulativos se considerasse como prova de que não são assunto de
crença universal e necessária. A identidade pessoal, a existência real do
mundo externo, a distinção essencial entre o bem e o mal, são coisas que
foram negadas. Entretanto, todos os homens creem e devem crer nestas
verdades. A negação das mesmas é forçada e temporal. Sempre que a
mente transborda ao seu estado normal, a crença volta. Também negou-
se o princípio da causação; mas todo homem vê-se forçado pela
constituição de sua natureza a admiti-lo, e a agir constantemente com

142
Veja-se sua Ontologia, II. iii. 2. § 881.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 296
base no mesmo. Um homem pode crer que o universo é eterno, mas que
começou a existir sem uma causa – que surgiu do nada – é impossível de
crer.
Por isso, ficamos reduzidos a esta alternativa. O universo é. Por
isso, ou foi desde toda a eternidade, ou deve sua existência a uma causa
fora de si mesmo, adequada para dar conta de que seja o que é. O
argumento teísta é que o mundo é um efeito; que não tem em si mesmo a
causa de sua existência; que não é eterno, e por isso temos a necessidade
de aceitar a existência de uma grande Primeira Causa a cuja eficiência
deve-se atribuir a existência do universo.

O mundo é um efeito
1. O primeiro argumento para demonstrar que o mundo como um
todo não é existente por si mesmo e eterno, é que todas as suas partes,
tudo o que entra em sua composição, é dependente e cambiante. Um
todo não pode ser essencialmente diferente de suas partes constitutivas.
Um número infinito de efeitos não pode ser existente por si mesmo. Se
uma cadeia de três elos não se pode sustentar por si mesma, muito menos
uma cadeia de milhões de elos. Nada multiplicado por uma infinitude
continua sendo nada. Se não encontramos a causa de nossa existência em
nós mesmos, nem nossos pais em si mesmos, ir atrás ad infinitum é só
acrescentar nada a nada. O que a mente demanda é uma causa suficiente,
e não se obtém nenhuma solução indo atrás indefinidamente de um efeito
a outro. Por isso, vemo-nos obrigados, pelas leis de nossa natureza
racional, a aceitar a existência de uma causa existente em si mesma, isto
é, de um Ser dotado de um poder adequado para produzir este mundo de
fenômenos sempre cambiante. Em todas as eiras, as pessoas reflexivas
foram forçadas a esta conclusão. Platão e Aristóteles arguiram com base
na existência do movimento que deve existir um ἀεικὶνητον ἑαυτὸ
κινοῦν [aeikinëton heauto kinoun], um eterno poder dotado de
movimento próprio, ou primum movens, como o chamavam os
Escolásticos. A validez deste argumento é reconhecida por quase todas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 297
as classes de filósofos, ao menos no sentido de admitir que estamos
obrigados a aceitar a existência de um Ser eterno e necessário. O
argumento Teísta é que se tudo no mundo é contingente, este Ser eterno
e necessário tem que ser uma Primeira Causa extramundana.

B. O argumento histórico.
2. O segundo argumento é o histórico. Isto é, temos evidência
histórica de que a raça humana, por exemplo, existiu só uns poucos
milhares de anos. Que a raça humana tenha existido desde a eternidade é
absolutamente inacreditável. Inclusive se adotássemos a teoria da
evolução, não nos dá alívio algum. Só nos dá milhões em lugar de
milhares de anos. Ambos os lapsos de tempo são igualmente
insignificantes quando os comparamos com a eternidade. A célula
germinal de Darwin demanda tão necessariamente uma causa fora dela e
existente por si mesma como a demanda um homem totalmente
desenvolvido, ou toda a raça do homem, ou o próprio universo. Vemo-
nos de boca fechada diante da conclusão de que este universo saiu do
nada, ou a de que existe um Ser autoexistente, eterno e extramundano.

O argumento geológico
3. O argumento geológico deve dizer o mesmo. Os geólogos, como
classe, concordam quanto aos seguintes fatos: (1) Que os gêneros
existentes de plantas e animais que habitam nossa terra começaram a
existir num período relativamente recente na história de nosso globo.
(2) Que nem a experiência nem a ciência, nem os fatos nem a razão,
justificam a hipótese de uma geração espontânea. Isto é, não há
evidência de que algum organismo vivo seja jamais produzido por umas
causas meramente físicas. Cada um destes organismos é ou criado
imediatamente, ou é derivado de algum outro organismo já tendo vida,
previamente existente. (3) Os gêneros e as espécies são permanentes.
Um nunca se transmuta em outro. Um peixe nunca se transforma em ave,
nem uma ave num quadrúpede. Os modernos teorizadores, certamente,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 298
puseram estes fatos em tela de juízo; mas seguem sendo admitidos pelo
grande conjunto de cientistas, e a evidência em favor deles é esmagadora
para a mente normal. Se se concederem estes princípios, segue-se disso
que todas as plantas e animais existentes sobre a terra tiveram um
princípio. E se tiveram um princípio, foram criados, e por isso deve
haver um Criador. Estas considerações são meramente colaterais. O
principal argumento é aquele que mencionamos primeiro, isto é, a total
impossibilidade de conceber ou uma sucessão infinita de acontecimentos
contingentes, ou a origem do universo do nada.

C. Objeções. A doutrina de Hume

Há só duas objeções a este argumento cosmológico que se devem


mencionar. A primeira dirige-se a princípio sobre aquele que está
baseado, e o outro à conclusão que se tira dele. Hume começa seu
«Treatise on Human Nature» (Tratado sobre a natureza humana)
estabelecendo o princípio de que as percepções da mente humana se
transformam em impressões e ideias. Por impressões ele significa «todas
nossas sensações, paixões e emoções, tais como fazem sua primeira
aparição na alma». Por ideias significa «as fracas imagens delas no
pensamento e no raciocínio». 143 Por isso, não pode haver ideia alguma
que não esteja derivada de alguma impressão anterior. Este é o princípio
fundamental de todo o seu sistema, disto se segue que todo nosso
conhecimento está baseado na experiência. Temos umas certas
impressões formadas por coisas externas, e certas paixões e emoções;
estas são as únicas fontes de nossas ideias, e por isso de nosso
conhecimento. Quando passa a aplicar este princípio 144 à natureza e
origem de nossa ideia de causação, diz que tudo o que podemos conhecer
a respeito de algo é que um objeto ou acontecimento é contínuo e

143
Treatise of Human Nature, Part i. § 1; Works, vol. i. Edinburgh, 1826.
144
Em Parte III, § 14.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 299
antecedente de outro. Isto é tudo o que percebemos; de tudo isso
podemos ter uma «impressão». Não temos impressões de poder,
eficiência, energia, força, ou outro termo equivalente que possamos
escolher empregar. Por isso, tal coisa não existe. Não existe nada como
eficiência ou poder nem na mente nem na matéria. Quando empregamos
estas palavras, diz ele, não comunicamos «realmente nenhum significado
concreto». 145 Quando vemos acontecimentos ou mudanças em sequência
uniforme, adquirimos o hábito, ou, como ele diz, «sentimos a
determinação» 146 de esperar o consequente quando vemos seu habitual
antecedente. A necessidade, a força, o poder, a eficácia, portanto, não
são nada mais que «uma decisão de levar nossos pensamentos de um a
outro objeto». 147 «A necessidade de poder, que une causas e efeitos,
reside na determinação da mente de passar de um ao outro. A eficácia ou
energia das causas não está posta nem nas próprias causas, nem na
Deidade, nem na concorrência destes dois princípios, mas sim pertence
inteiramente à alma, que considera a união de dois ou mais objetos em
todos os casos anteriores». 148 Hume estava plenamente consciente do
caráter paradoxal de sua posição a respeito da causalidade e de suas
enormes consequências, embora insistia em que seu argumento para
sustentá-la era irrefutável. Em relação imediata com a citação recém-
mencionada, diz: «Estou consciente que de todos os paradoxos que tive
ou que terei ocasião de apresentar no curso deste tratado, o presente é o
mais violento, e é só com golpes de sólidas provas e raciocínios que
posso ter a esperança de que seja admitido e vencer os inveterados
preconceitos da humanidade». 149 O que ele chama inveterados
preconceitos são realmente leis da crença que Deus imprimiu sobre

145
Treatise of Human Nature, vol. I, p. 216.
146
Ibid., pág. 219.
147
Ibid., pág. 219.
148
Ibid., pág. 220.
149
Ibid., pág. 220.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 300
nossa natureza, e que todos os sofismas dos filósofos jamais poderão
subverter.
As conclusões que Hume tira de sua doutrina mostram a apreciação
de sua importância. (1) Segue-se de seu princípio, diz ele, que não há
diferença entre causas como eficientes, formais, materiais, exemplares
ou finais; nem entre causa e ocasião. (2) «Que a distinção comum entre
necessidade moral e física carece de todo fundamento na natureza». «A
distinção que fazemos com frequência entre o poder e o exercício do
mesmo também carece de fundamento». (3) «Que a necessidade de uma
causa para todo começo de existência não está baseado em argumentos,
nem demonstrativos nem intuitivos». (4) «Nunca podemos crer com
razão que exista algum objeto de que não nos possamos formar uma
ideia». 150 Por este quarto corolário, faz referência a coisas como as
substâncias, das quais não recebemos impressões, e, por conseguinte, das
que não podemos ter ideia, e que por isso não podemos crer
racionalmente que existam. O mesmo pode-se dizer de Deus.
No começo da seguinte seção, 151 Hume, com uma ousadia quase
sem comparação, diz: «Segundo a doutrina recém-exposta, não há
objetos que possamos determinar, por mera observação, sem consultar a
experiência, como as causas de qualquer outro; nem objetos que
possamos determinar com certeza da mesma maneira como não sendo as
causas. Qualquer coisa pode produzir a qualquer outra. Criação,
aniquilação, movimento, razão, volição, todas essas coisas podem surgir
de quaisquer delas, ou de quaisquer outros objetos que possamos
imaginar. E isto não parecerá estranho se compararmos dois princípios
explicados anteriormente, que a conjunção constante dos objetos
determina sua causa, e que, falando corretamente, não há objetos
contrários entre si, exceto a existência e a não existência. Quando os

150
Treatise of Human Nature, vol. I. pp. 226-228.
151
§ 15.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 301
objetos não são contrários, nada impede que tenham aquela constante
conjunção da qual depende totalmente a relação de causa e efeito».
Se existe um argumento como a reductio ad absurdum, es cosa
cierta que esta teoría de Hume se refuta a sí misma. (1) Ele admite a
fiabilidad da consciência pelo que respeita às «impressões»; como pode
então rejeitar as intuições dos sentidos, da razão e da consciência? (2) Se
não termos nenhum conhecimento que não se derive das impressões,
então não podemos crer na substância, nem na alma, nem em Deus. (3)
Pela mesma razão não podemos crer que haja uma coisa como o poder
ou a eficiência, nem nenhuma diferença entre causas eficientes e finais,
isto é, entre a força expansiva do vapor e a intenção do engenheiro que
desenha uma máquina de vapor. (4) Da mesma maneira, temos que crer
que algo vem do nada, que não há razão de que o que começa tenha que
ter uma causa, nem sequer um antecedente; e, por isso, que «qualquer
coisa pode produzir qualquer outra coisa», isto é, uma volição humana, o
universo. (5) Não pode nem enunciar sua teoria sem contradizer-se a si
mesmo. Fala de algo «produzindo» um pouco diferente. Mas segundo
sua doutrina não existe a produção de nada, porquanto nega que exista
nada como o poder ou a eficiência.
Está universalmente admitido que não temos fundamento para o
conhecimento nem a fé exceto na veracidade da consciência. Este
princípio tem que ser tido constantemente em conta, e deve ser reiterado
com frequência. Por isso, qualquer doutrina que contradiga os atos da
consciência, ou as leis da crença que Deus imprimiu em nossa natureza,
tem que ser falsa. Então, se pode-se demonstrar que há certas verdades
que os homens se veem forçados a crer pela mesma constituição de seus
naturezas, estas verdades devem ser retidas apesar de todas as artes da
sofisma. Por isso, se constituir um fato da consciência que nós mesmos
somos algo, um ente, uma substância, e que temos poder, que podemos
produzir efeitos, então é coisa certa que existe o poder, e as causas
eficientes. Se além disso é uma verdade intuitiva e necessária que cada
efeito tem que ter uma causa, que ex nihilo nihil fit [do nada, nada sai],
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 302
então é absolutamente certo que se o mundo começou a ser, teve uma
causa adequada de sua existência fora dele mesmo. E, por isso, se o
argumento para demonstrar que o mundo não é autoexistente e eterno é
sadio, o argumento cosmológico é válido e concludente.

A segunda objeção
A outra forma de objeção dirige-se não contra as premissas sobre as
quais se baseia o argumento cosmológico, mas sim contra a conclusão
que os teístas tiram do mesmo. Admite-se que algo existe agora; que
uma não entidade não pode ser a causa da existência real; por isso, que
algo deve ter existido eternamente. Admite-se também que é impossível
uma regressus ad infinitud [regressão infinita], ou série eterna de
efeitos. Por isso, tem que haver um Ser eterno, existente em si mesmo.
Isto é tudo o que demonstra justamente o argumento cosmológico. Não
demonstra que este Ser necessário é extramundano, e muito menos que
seja um Deus pessoal. Pode ser que seja uma substância eterna da qual as
coisas cambiantes são os fenômenos. 152
O argumento cosmológico não tem a intenção de demonstrar tudo o
que os Teístas sustentam a respeito de Deus. É suficiente de maneira que
demonstre que devemos admitir a existência de um Ser eterno e
necessário. Outros argumentos demonstram que este Ser é consciente de
Si mesmo e inteligente. Além disso, o argumento demonstra de maneira
apropriada que este Ser é extramundano; porque o princípio da causação
é que todo o contingente tem que ter a causa de sua existência fora de si
mesmo.

152
Veja-se Strauss, Dogmatik, vol. I, p. 382.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 303
§ 3. O argumento teleológico

A. Sua natureza

Este argumento admite também sua enunciação como silogismo. O


desenho supõe um desenhista. O mundo exibe por todos o lugares sinais
de desígnio. Por isso, o mundo deve sua existência a um autor
inteligente.
Por desígnio se significa: (1) A seleção de um fim a alcançar. (2) A
escolha dos meios apropriados para alcançá-lo. (3) A aplicação real
destes meios para chegar ao fim proposto.
Sendo assim a natureza do desígnio, é uma verdade evidente por si
mesma, ou, inclusive uma proposição idêntica, que o desígnio indica
inteligência, vontade e poder. É simplesmente dizer que a inteligência no
efeito implica inteligência na causa.
Além disso, é coisa certa que a inteligência indicada pelo desenho
não está na coisa desenhada. Tem que estar no agente externo. A mente
indicada num livro não está no próprio livro, mas no autor e no
impressor. A inteligência revelada pela máquina calculadora, ou em
qualquer obra similar, não está no material empregado, mas no inventor
e no artista. Tampouco a mente indicada na estrutura dos corpos das
plantas e dos animais está neles, mas nAquele que os fez. E da mesma
maneira, a mente indicada no mundo em geral deve estar num Ser
extramundano. Há, certamente, esta evidente diferença entre as obras de
Deus e as do homem. Em cada produto da arte humana se conformam e
unem materiais mortos para obter um fim determinado; mas as
organizadas obras da natureza estão animadas por um princípio vivo.
Estão conformadas como de dentro para fora. Em outras palavras:
crescem, não são construídas. Neste sentido há uma enorme diferença
entre uma casa e uma árvore ou o corpo humano. Entretanto, em ambos
os casos, a mente é extrínseca à coisa produzida; porque o fim, o
pensamento, é anterior ao produto. Assim como o pensamento ou a ideia
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 304
de uma máquina tem que estar na mente do engenheiro, antes de
construir a máquina, da mesma maneira a ideia ou o pensamento do olho
tem que ser anterior à sua formação. Diz Trendelenburg: 1 «É uma
conclusão singela e carregada de consequências que até onde há algum
desenho levado a cabo no mundo, foi precedido pelo pensamento como
base disso». E este pensamento, segue dizendo ele, não está morto, como
uma figura ou um modelo, mas sim está conectado com a vontade e com
o poder. Está, portanto, na mente de uma pessoa que tem a capacidade e
o propósito de levá-lo a cabo. Além disso, diz ele, «tiefsinnige
Zweckmässigkeit bewustlos und blind» é inimaginável, isto é: é
inconcebível uma adaptação cega e inconsciente, de meios para obter um
fim.
Porquanto a convicção de que o desenho implica um agente
inteligente é intuitiva e necessária, não está limitada à reduzida esfera de
nossa experiência. O argumento não é: Cada casa, navio, telescópio ou
outras instrumentos ou máquinas que jamais tenhamos visto têm um
criador inteligente, pelo que devemos dar por sentado que qualquer
similar obra de destreza não foi formada por acaso nem pela operação de
forças cegas e inconscientes. Antes, o argumento é este: É tal a natureza
do desenho que necessariamente implica um agente inteligente; e por
isso sempre ou em qualquer parte que vejamos evidência de desenho,
ficamos convencidos de que deve atribuir-se à operação da mente. Sobre
esta base, não só estamos autorizados, mas também obrigados a aplicar o
argumento do desenho muito além dos limites da experiência, e a dizer:
É igualmente evidente que este mundo teve um Criador inteligente como
um livro teve um autor. Se um homem pode crer que um livro foi escrito
por acaso, ou por uma força cega e inconsciente, então, e só então,
poderá negar racionalmente a validez do argumento com base no
desenho como prova da existência de um Deus pessoal.

1
Log. Untersuchungen, 2 ed., Leipzig, 1862, vol. n, pág. 28.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 305
B. Evidências de desígnio no mundo

Este é um tema sem limites. Um dos mais importantes e valiosos


das «Bridgewater Treatises», o volume escrito pelo Charles Bell, dedica-
se «à Mão, seu mecanismo e dotes vitais como evidência de desígnio».
Centenas de volumes não seriam suficientes para exibir a evidência da
adaptação inteligente dos meios para um fim que se encontra por todos
os lugares no mundo. Nas poucas páginas agora em ordem de tudo
quanto se pode tentar, é um sintoma da natureza desta evidência. 2

Desígnio em órgãos singelos.


1. Nenhuma obra da arte humana pode comparar-se com o
refinamento e totalidade dos órgãos separados de corpos organizados
para o propósito para o qual são projetados. No olho, por exemplo, temos
o mais perfeito instrumento óptico construído conforme as complexas
leis da luz. Encontramos nele o único nervo do corpo sensível às
impressões da luz e da cor. Este nervo está estendido sobre a retina. A
luz é admitida através de um orifício do globo ocular, cuja abertura ou
fechadura são regulados por um muito delicado acerto de músculos,
segundo a quantidade de luz que incide sobre a retina, abertura e

2
It may be well to give the titles of the valuable series of the Bridgewater Treatise devoted to this
subject, besides the work of Dr. Bell mentioned in the text. The volumes are, The Adaptation of
External Nature to the Moral and Intellectual Constitution of Man, by Dr. Thomas Chalmers; On the
Adaptation of External Nature to the Physical Constitution of Man, by John Kidd; Astronomy and
General Physics treated in Reference to Natural Theology, by William Whewell; Animal and
Vegetable Physiology considered in Reference to Natural Theology, by Peter Mark Roget; Geology
and Mineralogy considered in Reference to Natural Theology, by William Buckland; The Power,
Wisdom, and Goodness of God as manifested in the Creation of Animals, by William Kirby;
Chemistry, Meteorology, and the Function of Digestion considered in Reference to Natural Theology,
by William Prout. The Ninth Bridgewater Treatise, by C. Babbage; Footprints of the Creator, by
Hugh Miller; Théologie de la Nature, by H. Durkheim (1852, 3 vols. 8vo.); Butler's Analogy of
Religion and Nature; Paley's Natural Theology; Dr. McCosh's Typical Forms and Special Ends in
Creation; Dr. James Buchanan's Faith in God and Modern Atheism compared, 2 vols. 3vo; and Dr.
John Tulloch's (Principal of St. Mary's College, St. Andrew's) Theism; The Witness of Reason and
Nature to an All-Wise and Beneficent Creator, may also be mentioned.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 306
fechadura que não dependem da vontade, mas sim do próprio estímulo
da luz. Mas o mero passar da luz através de um orifício não produziria
uma imagem do objeto da qual foi refletida. Por isso, faz-se passar por
uma lente de forma perfeita para provocar a refração dos raios e enfocá-
los de maneira apropriada sobre a retina. Se a câmara interior do olho
fosse branca, refletiria os raios que entram para todos os ângulos,
impossibilitando a visão. Esta câmara, e só esta, está forrada de um
pigmento negro. Por meio de um delicado mecanismo muscular, o olho
pode adaptar-se à distância dos objetos exteriores para poder preservar o
foco apropriado. Esta é uma pequena parte das maravilhas que exibe por
si só este órgão do corpo. Este órgão se formou na escuridão do ventre,
com uma referência evidente à natureza e às propriedades da luz, das
quais a criatura para cujo uso estava disposto não tinha nem
conhecimento nem experiência. Assim, se o olho não indica a adaptação
inteligente dos meios para um fim, não pode achar-se tal adaptação em
nenhuma obra do engenho humano.
As mesmas observações se aplicam à orelha. Em sua cavidade
descansa o nervo auditivo. Uma passagem tortuosa é formada na
estrutura óssea do crânio. O orifício daquela passagem é coberta por uma
membrana para receber a vibração do ar; no centro daquela membrana
descansa o termo de um osso pequeno assim conectado para transferir
aquelas vibrações para o único nervo qualificado a receber ou interpretá-
los, ou para transmiti-los ao cérebro. É por este órgão, construído de
acordo com os princípios recônditos de acústica, que nosso intercurso
com nossos membros da raça humana está principalmente adaptado; por
eles as maravilhas da fala, todos os encantos da música e eloquência
ficam possível ao homem.
Não podemos viver sem uma provisão permanente de oxigênio, que
a cada momento deve ser trazido a agir no sangue, vivificá-lo, e
combinando com o carvão se adapta para um uso renovado. A criança,
portanto, entra no mundo com um aparelho preparado para esse
propósito. Em seu estado formativo, não respirava, embora ela tivesse
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 307
pulmões. Foram-lhe dados para uma necessidade prevista. Nada pode
exceder a complexidade, complicação, ou beleza do órgão ou sistema de
órgãos assim preparados, para a purificação absolutamente necessária e
contínua do sangue, e para sua distribuição num ininterrupto fluxo e
vazante a cada parte do corpo. Este processo continua sem nossa
supervisão. É regular durante nosso sonho como durante nossa hora de
despertar.
O alimento é necessário para nosso sustento como o ar. Os infantes
não nascidos não necessitam nenhuma comida, porque está incluído na
circulação de sua mãe. No estado em que está logo a entrada de comida
será uma necessidade. A provisão completa é antecipadamente feita para
sua recepção e uso. Os dentes são embutidos na mandíbula para sua
mastigação; as glândulas salivares para subministrar o fluido para sua
preparação química para o estômago; um esôfago para transportá-lo ao
estômago, onde ele se encontra com um fluido não encontrado em
nenhuma outra parte, capaz de dissolvê-lo e digeri-lo. Ele então entra em
contato com um conjunto de veias absorventes que selecionam dele os
elementos necessários para as necessidades do corpo e rejeitam todo o
resto. A porção valiosa é vertida no sangue pelo qual é distribuída, cada
componente indo ao seu próprio lugar e respondendo ao seu propósito
predestinado; o carbono tem que ser consumido para continuar a carreira
vital, óxido de cálcio para os ossos, fibrina para os músculos, fósforo
para o cérebro e nervos.
A criança antes do nascimento não tem nenhuma necessidade de
órgãos para locomoção ou para agarrar objetos externos. Mas era
previsto que precisaria deles, e portanto eles são antecipadamente
preparados. Os ossos são sulcados para a recepção de músculos, e têm
projeções para pontos de suporte; articulações de todos os tipos, junta,
rótula e soquete para a flexão dos membros; os instrumentos para
movimento, as fibras contráteis, organizadas e atribuídas, de acordo com
as leis rígidas da mecânica, para melhor assegurar os dois fins de
simetria e energia. Desta maneira o corpo é uma maravilha perfeita de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 308
ideias mecânicas. Os vários órgãos, portanto, do esqueleto animal,
visualizados separadamente, apresentam a mais incontestável evidência
de previsão, inteligência, e sabedoria. Esta, entretanto, é apenas uma
pequena parte da evidência de projeto suprida até pelo corpo.

Desígnio na relação de um órgão ao outro.


2. Cada animal é um todo completo. Cada parte tem uma referência
projetada e predeterminada a cada outro parte. Os órgãos de visão,
audição, respiração, nutrição, locomoção, etc., estão tão organizados e
ajustados para responder a um propósito comum para a melhor
vantagem. Além disso, estes órgãos, embora comuns a todos os animais
(pelo menos para todos acima dos mais baixos), são modificados em
cada gênero e espécie para encontrar suas necessidades peculiares. Se o
animal tiver que viver da terra todos os seus órgãos são adaptados para
aquela condição. Se ele tiver que viver na água ou mover-se pelo ar, tudo
é antecipadamente preparado para aquele destino. E mais do que isso, se
um órgão é projetado para algum uso especial, todo o resto é modificado
conforme aquele propósito. Se o estômago está adaptado à digestão de
carne, então os dentes, os membros, as garras, são todos adaptados para
assegurar e preparar o alimento adequado. Tão completa é a adaptação
que o anatomista pode determinar de um osso único o gênero ou espécie
ao qual o animal pertencia. Os pássaros que vadeiam na água têm pernas
longas e pescoços longos. Aqueles que flutuam na superfície, têm pés
com membrana interdigital, e penas impenetráveis pela água; duas coisas
que têm relação causal, e que são unidas por uma espécie de inteligência
exterior para o animal propriamente. Os pássaros que voam no ar são
adaptados para seu destino por ossos ocos, asas disseminadas, e grande
acumulação de músculos no seio. Aqueles que sobem árvores têm pés e
rabo adaptado para aquele propósito, e, como no caso do pica-pau, um
bico afiado para perfurar a árvore e uma língua farpada para tirar seu
alimento. Estas modificações da estrutura animal são infinitas, todos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 309
mostrando uma Inteligência exterior conhecedora das necessidades de
cada espécie distinta.

A adaptação dos órgãos ao instinto dos animais


3. Há uma correspondência entre os órgãos de cada animal e os
instintos com os quais é dotado. As bestas e aves de rapina tendo o
instinto para alimentar-se de carne têm todos os órgãos requeridos para
satisfazer as necessidades internas. Aqueles tendo um instinto pelo
alimento vegetal, têm dentes e estômagos adaptados para aquele
propósito. A abelha cujo corpo secreta cera, tem o instinto para construir
células; a aranha subministrada com a peculiar matéria viscosa, e
aparelhos para tecê-la, faz um tecido e vigia a sua presa. Então é ao
longo de toda natureza alentada. Aqui então são duas coisas muito
distintas: instinto e órgãos corpóreos; o instinto não pode responder aos
órgãos nem os órgãos ao instinto; e ainda eles nunca se encontram um
sem os outros. Eles por necessidade, portanto, implicam uma inteligência
que implanta o instinto e provê os órgãos apropriados.

Argumento com base na previsão.


4. Não pode haver uma prova mais decisiva da inteligência que a
previsão; preparação para um evento no futuro. O mundo está cheio de
evidência de tal previsão. É visto não apenas na preparação dos órgãos
da visão, audição, respiração, nutrição, etc. para necessidades ainda
futuras; mas ainda mais notavelmente na provisão feita para suportar
animais jovens assim que eles nascem. Nos mamíferos antes do
nascimento do filho, o seio ou úbere começa a inchar; começa a secreção
de leite, de forma que o momento em que os animais jovens entram no
mundo ele encontra o alimento mais nutritivo e apropriado que o mundo
contém. O ovo subministra uma ilustração ainda mais instrutiva.
Consiste em albume e a gema. Para a gema é designado um embrião ou
célula minuciosa. Quando pelo calor o embrião começa a desenvolver-
se, se não é subministrada nutrição e à mão, pereceria por carência. Mas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 310
a gema está lá para subministrar o material necessário para o qual o
animal futuro é adaptado. Se isto não indica a mente de um fornecedor e
poder de um subministrar, então as produções mais hábeis de capacidade
e generosidade humanas não provam a inteligência do homem, onde
então está esta Inteligência? Não no pai do pássaro, porque ele não
entende nada sobre isto. Não nas meras forças cegas da natureza. Lá
possivelmente haverá espaço para perguntar onde colocá-los; mas negar
que estas cláusulas indicam uma agência inteligente em algum lugar, é
completamente irracional.

Organismos vegetais.
5. O reino vegetal é tão cheio das indicações de desígnio
benevolente como o animal. As plantas têm seu organismo e sua
fisiologia. Sua estrutura, em seus órgãos de crescimento e reprodução, é
tão maravilhosa como a da maioria da espécie do reino animal.
Constituem uma parte essencial no grande sistema da natureza, sem a
qual não pode existir nenhuma vida sensível em nosso globo. Os animais
não podem viver de matéria inorgânica. É a divisão da planta que reduz
esta matéria a tal estado de adaptação para suportar a vida animal. Se não
fosse, portanto, pelas funções da folha que transmuda o inorgânico no
orgânico, não haveria nenhuma vida sensível em nossa Terra. Não existe
nenhum desígnio aqui? Não há nenhuma adaptação inteligente de uma
parte do grande sistema da natureza para outro?

Quanto às adaptações da Natureza.


6. Isto conduz a outro departamento do assunto. As evidências de
desígnio não são limitadas aos órgãos separados da planta ou animal;
nem às relações destes órgãos mutuamente, nem, no caso de animais, ao
instinto que impele ao uso adequado daqueles órgãos; deve-se declarar
da mesma maneira abundantemente na adaptação da natureza exterior às
necessidades do animal e vida vegetais. Nem plantas nem animais
existiriam sem luz, ar, calor, água, e terra, para produzir o alimento
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 311
comum de todos os seres vivos. Quem criou a luz e calor e os difunde
pela Terra inteira? Quem fez o sol do qual saem seus raios? Quem
constituiu a atmosfera com seus ajustes químicos, justamente o que é
necessário para suportar a vida, em todos os lugares e sempre a mesma, e
a verteu ao redor de nosso globo? Como é que a água a uma certa
temperatura evapora, levanta-se e é juntada em nuvens, é levada a todos
os lugares pelos ventos, e cai como chuva para fertilizar a Terra? O olho
supõe luz, como os pulmões supõem ar; o apetite de fome supõe
alimento, e a capacidade de digestão. O alimento supõe terra, luz, calor,
e água. Certamente isto é um grande sistema. Há unidade e relação
mútua em todas as suas partes. Deve ter havido um autor, e Ele deve ser
infinito em inteligência e bondade.

Todas criaturas vivas sobre a terra têm relações orgânicas.


7. O desígnio indicado na natureza é, entretanto, não limitado aos
organismos individuais e a suas relações com o mundo ao redor deles,
mas ele, com o progresso da ciência, tem sido descoberto, que o mundo
inteiro vegetal e animal foi construído num plano completo. Como há
uma relação de um órgão de uma dada planta ou animal para com outros
e para com o todo, então o movimento inteiro de plantas, e o movimento
inteiro de animais estão relacionados. Há formas típicas certas da qual
toda variedade infinita de plantas são modificações; e outros tipos dos
quais os gêneros inumeráveis, espécie, e variedades de animais são
apenas modificações; e estas modificações são justamente do tipo para
adaptar cada espécie a seu fim, e para as circunstâncias nas quais deve
viver. Então, obviamente, é este o caso que o Professor Agassiz no
“Essay on Classification,” é, para dizer o mínimo, como um forte
argumento para o ser de Deus como quaisquer dos “Bridgewater
Treatises.” E está tão considerado por seu autor ilustre. Na página 10 de
seus “Contributions to the Natural History of the United States,” ele diz,
“sei que aqueles que mantêm que não é muito científico crer que pensar
não é algo inerente à matéria, e que há uma diferença essencial entre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 312
matéria inorgânica e seres vivos e pensantes. Não poderei impedir por
quaisquer tais pretensões de uma filosofia falsa expressar minha
convicção de que sempre e quando não se puder demonstrar que a
matéria ou as forças físicas raciocinam realmente, vou considerar
qualquer manifestação de pensamento como prova da existência de um
ser pensante como o autor de tal pensamento, e levantarei os olhos a uma
conexão inteligente e inteligível entre os atos da natureza como prova
direta da existência de um pensamento de Deus, tão certamente como o
mostra ao homem o poder de pensar, quando reconhece sua relação
natural.”

Evidência de que a terra foi designada para o homem


8. Entretanto, não são só os organismos vivos que habitam nossa
terra, que mostrem indícios de um criador tão inteligente, mas também a
própria terra. Se um pai, que quando ele proporciona um lar para seus
filhos, encaixa com todas as necessidades e todos os luxos que possa
necessitar, dá prova irrefutável de inteligência e amor, então, são os
atributos que lhe são atribuídos que se ajustavam a este mundo para ser o
lar de suas criaturas. Isto se observa, como já se insinuou, na constituição
da atmosfera, na distribuição da luz e o calor, a eletricidade e o
magnetismo, no estabelecimento daquelas leis que asseguram a sucessão
regular das estações, na preparação do solo pela desintegração das
rochas, a queda da chuva, a deposição de orvalho que cai brandamente
com o poder vivificante da terra sedenta; em inumeráveis outras
provisões e disposições das forças da natureza sem as quais não se pode
sustentar nem vegetais nem animais. Há muitas disposições especiais
deste tipo que enchem a mente com gratidão e assombro. É uma lei geral
que os corpos se contraem à medida que se tornam mais frios. A água,
entretanto, quando se congela se expande e se torna mais rápida. Se não
fosse por esta exceção benevolente à lei geral, não só os habitantes de
todos os nossos rios pereceriam, mas a maior parte da zona temperada
seria inabitável. Não é uma resposta a este argumento dizer que há
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 313
algumas outras exceções a esta lei. Não podemos saber a causa final por
que o bismuto deveria ampliar o esfriamento; mas isto não impede que
saibamos por que o gelo é mais ligeiro que a água. Nosso não
entendimento de uma frase de um livro, não prova que não tem sentido,
nem que não podemos entender outra frase.
Toda a configuração da terra, sua posição com relação ao sol, e a
inclinação de seu eixo, evidentemente, pretendem convertê-lo numa
residência adequada para as criaturas em que está habitada. Seu bem-
estar depende da distribuição da terra e da água em sua superfície; na
elevação de suas cordilheiras e mesetas, e sobre as correntes oceânicas
que são determinadas pela configuração de suas costas. Se a América do
Norte e a América do Sul não estivessem conectadas pelo estreito istmo
de Darien, a Grã-Bretanha e as porções do noroeste da Europa seriam
inabitáveis. Eles têm a temperatura moderada que desfrutam da imensa
quantidade de água morna, que é impedido por tal Istmo de desembocar
no Pacífico, está exposto em direção nordeste através do Atlântico.
Quando vemos tais arranjos benevolentes entre os homens, remetemo-los
por instinto e por uma necessidade racional a um agente benevolente e
inteligente. Não existe motivo racional para negar-se a atribuir tais
arranjos na natureza a uma fonte similar. É isto mais uma evidência da
previsão prudente ou benevolente que um homem deve armazenar o
abundante combustível para si mesmo ou outros, sabendo que se
aproxima o inverno, que Deus pôs depósitos inesgotáveis de carvão nas
vísceras da terra, para o uso de seus filhos na terra?

Disposições Cósmicas.
9. O argumento do desígnio fundado em arranjos cósmicos é um
assunto tão vasto que parece absurdo até referir-se a isto, num único
parágrafo. Os fatos simples são que nosso globo é um de oito planetas
primários que giram ao redor do sol. O mais distante destes planetas é
uns três bilhões de milhas do centro de qualquer corpo luminoso. Estes
planetas todos giram na mesma direção, em órbitas quase circulares, em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 314
quase o mesmo plano, e com um movimento tão uniforme que cada um
apresenta suas revoluções no tempo adequado. A estabilidade do sistema
depende destas circunstâncias. Para assegurar estes resultados matéria
tem que atrair matéria de acordo com sua quantidade e o quadrado de sua
distância. O corpo central deve ser de tal massa para sustentar os
planetas em seu curso. As forças centrífugas e centrípetas devem estar
exatamente equilibradas, para precaver os planetas de desprender-se no
espaço, ou cair no sol. Cada planeta deve ter sido projetado com uma
velocidade definida necessária para assegurar sua órbita sendo quase
uma circunferência, em lugar de qualquer outra curva. O corpo central
apenas, segundo o plano evidente, é luminoso e produtor de calor. Todos
os outros são opacos e frios. Estes são fatos, que Sir Isaque Newton diz
que ele é “forçado a atribuir à causa e ideia de agente voluntário.” 3
Desde o tempo do Newton, realmente, a teoria usualmente recebida foi
que os planetas eram uma vez fluido, altamente esquentado, e luminoso;
e que eles ficaram opacos no processo de resfriamento. Mas isto só põe o
argumento um passo para trás. O fato é que um resultado mais
maravilhoso e benfeitor foi realizado. A pergunta: Como?, é de
importância secundária. É a beneficência do resultado que indica mente,
e esta indicação de mente implica um “agente voluntário.”
Nosso sistema solar propriamente, portanto, é vasto, variado, e bem
ordenado. Nosso sistema, entretanto, é provavelmente um dos centenas
de milhões. Pelo menos os astrônomos afirmam seu conhecimento de
cem milhões de sóis, alguns dos quais são incalculavelmente maiores
que o nosso. Sírio é calculado para brilhar com uma luz equipada para
duzentos e cinquenta de nossos sóis; Alcíone com o equipamento de
doze mil sóis. As mais próximas destas estrelas são separadas do planeta
exterior de nosso sistema vinte e um trilhões de milhas. Estes milhões de
estrelas não são igualmente dispersas pelo espaço, mas sim são juntados

3
Newton's First Letter to Bentley, quoted by Tulloch, Theism, edit. N.Y. 1855, p. 109.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 315
em grupos, os membros dos quais suportam uma relação óbvia um ao
outro.
Além destes sistemas nos quais os planetas são designados para
revolver ao redor de sóis, existem outros em que os sóis revolvem ao
redor de sóis, em proporção de distâncias segundo sua magnitude. A luz
que emana destes grandes luzeiros é de cor diferente, branco, vermelho,
azul.
Então mais distante no espaço flutua as não resolvidas nebulosas.
Se estas nebulosas forem vastos continentes de estrelas muito distantes
para ser distinguível, ou matéria cósmica num estado formativo, é ainda
uma pergunta aberta entre os astrônomos. Duas mil incluíram o
hemisfério do norte, e mil no meridional. Assumem toda variedade de
formas; algumas são esféricas, poucas em forma de leque, algumas
espirais, algumas em argolas circulares. Estima-se que a luz de algumas
das estrelas levou muitos milhares de anos em alcançar nossa Terra,
embora viajando na taxa de mais de dez milhões de milhas por minuto.
Através deste vasto universo impera a ordem. Em meio de uma
variedade sem fim há unidade. As mesmas leis da gravidade, da óptica e
da termodinâmica prevalecem em todas as partes. A confusão e a
desordem são o resultado uniforme do acaso ou de forças operando às
cegas. A ordem é a segura indicação de uma mente. E que mente, que
sabedoria, o que poder e que beneficência são as que se exibem em
nosso vasto universo!
«O resultado de toda nossa experiência», disse Sir Gilbert Eliot,
escrevendo ao próprio Hume, «parece consistir nisto. Há só duas formas
nas quais observamos as diferentes quantidades de matéria lançadas
juntamente: Quer por acaso, quer com desígnio e propósito. Da primeira
forma nunca vimos a produção de um efeito complicado regular
correspondendo-se com um fim determinado; da segunda forma, vemo-
lo de maneira constante. Assim, se as obras da natureza e as produções
dos homens se parecem nesta grande característica geral, não nos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 316
justificará inclusive a mesma experiência em atribuir a ambas uma causa
similar, embora proporcional?» 4
Este argumento com base no desígnio é constantemente alegado no
Antigo Testamento, que apela aos céus e à terra como revelando o ser e
as perfeições de Deus. O Apóstolo Paulo diz que o Deus vivo, que fez o
céu e a terra, o mar, e tudo o que neles há, não se deixou a si mesmo sem
testemunho (At 17:23-31). Aos Romanos se disse que o eterno poder e
deidade do Ser Supremo são claramente vistos, sendo entendidos pelas
coisas criadas (Rm 1:20). Os antigos filósofos tiraram as mesmas
conclusões com base nas mesmas premissas. Anaxágoras arguia que se
tem que admitir que a nous, a mente, controla tudo no mundo, porque
tudo no mundo indica desígnio. Sócrates insiste constantemente nesta
como a grande prova do ser de Deus. Cícero 5 diz que é tão impossível
que um mundo ordenado possa ser constituído por uma ocorrência
fortuita de átomos quanto um livro fique redigido lançando letras por
acaso. Trendelenburg, 6 depois de citar esta passagem, diz: «Talvez seja
mais difícil supor que por uma cega combinação dos elementos e das
forças químicas, que se formasse sequer um dos órgãos do corpo – por
exemplo, o olho, tão claro, agudo e arrecadador, – e muito menos a
harmônica união de órgãos que constituem o corpo, que aquele que um
livro fosse feito por acaso, lançando tipos soltos por acaso».
Filo apresenta o argumento em sua forma silogística mais singela:
«Não há nenhuma obra de arte feita por si mesma. O mundo é a mais
perfeita obra de arte. Por isso, o mundo foi feito por um Autor bom e
totalmente perfeito. Assim temos o conhecimento da existência de
Deus». 7 Todos os pais cristãos e teólogos posteriores raciocinaram da
mesma maneira. Inclusive Kant, embora negue que seja concludente, diz

4
Dr. Buchanan, Analogy a Guide to Truth and an Aid to Faith, edição de Edimburgo, 1864, p. 414.
5
De Natura Deorum, II. 37.
6
Logische Unlersuchungen, Vol. II, pág. 64.
7
De Monarchia, I. § 4, edição de Leipzig, 1828, vol. IV, pág. 290.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 317
que o argumento teleológico deveria ser sempre tratado com respeito. É,
diz ele, o mais antigo, o mais claro, e o mais adaptado à mente humana.

§ 4. Objeções ao argumento com base no desígnio

A. A negação das causas finais.

A doutrina das causas finais na natureza tem que manter-se ou cair


com a doutrina de um Deus pessoal. O primeiro não pode ser negado
sem negar o segundo. E a admissão do um envolve a admissão do outro.
Por causa final não se significa uma mera tendência, nem o fim ao que
têm os acontecimentos quer de maneira real, quer aparente; mas sim o
fim contemplado no uso de meios adaptados para alcançá-lo. A
contemplação de um fim é um ato mental. A seleção e o emprego de
meios adaptados a um fim são ambos atos inteligentes e voluntários. Mas
um agente voluntário inteligente é uma pessoa. 8 Em outras palavras, o
uso de meios para chegar a um fim contemplado é uma função da
personalidade, ou ao menos de um agente inteligente.
Sendo esta a natureza das causas finais, as tais são naturalmente
negadas: (1) Pelo positivista, que não crê em nada mais que naqueles
fatos que são recebidos por seus sentidos, e que não admite outra
causalidade que a regularidade da sequência. Como a eficiência, a
intenção e a mente não são percebidas pelos sentidos, não são nem
podem ser admitidos filosoficamente. (2) Por aqueles que, embora
admitam a existência da força, e por isso, neste sentido, de uma causa,
não admitem uma distinção entre causas, ou forças físicas, vitais, e
mentais, e que mantêm que esta pode ser resolvida em qualquer das
outras. Os proponentes desta teoria fazem do pensamento um produto do
cérebro, e têm como lema: «Ohne Phosphor kein Gedanke».

8
Isto está de acordo com a definição teológica aceita de uma pessoa como um «suprositum
inteligens».
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 318
Naturalmente, o fósforo tem que vir antes que o pensamento, e por isso
não pode haver nenhuma causa final para a produção do fósforo nem de
nada mais. (3) As causas finais são negadas pelas que consideram o
universo como o desenvolvimento do Ser infinito sob a operação de uma
lei necessária. Deste Ser não se pode pregar nem inteligência, nem
consciência, nem vontade. Por conseguinte, não pode haver nenhum
desígnio preconcebido para ser levado a cabo, nem pelo universo como
um todo, nem por nenhuma de suas partes. Assim, segundo Espinoza, as
causas finais são «humana figmenta et deliria».
Se alguém perguntar a um camponês de onde provém uma árvore
ou o corpo de um animal, provavelmente responderá: «Ora, ora,
cresceu!» Para ele, este é o fato final. E assim é com todos os advogados
das teorias acabadas de mencionar. Assim é que se encontram os
extremos (o pensamento do camponês e a teoria do sábio). Que
pensamento mais elaborado, mais profundo, encontra-se nas palavras de
Stuart Mill que no da resposta do camponês, quando o lógico diz: «As
sequências totalmente físicas e materiais, logo que chegam a fazer-se
suficientemente familiares para a mente humana, vieram naturalmente ao
pensamento, e se considerou não só que não precisavam elas mesmas de
explicação alguma, mas também podiam dar explicação para outras, e
inclusive de servir como a explicação final das coisas em geral» 9

B. Objeções de Hume e Kant

A resposta de Hume ao argumento do desígnio, ou das causas


finais, é que nosso conhecimento está limitado pela experiência. Com
frequência vimos fazer casas, navios, motores e outras máquinas, e, por
isso, quando vemos alguns produtos similares do engenho humano,
estamos autorizados a inferir que também estes foram produzidos por um
autor inteligente. Mas o mundo pertence a uma categoria inteiramente

9
Logic, edição de Londres, 1851. Vol. I, pág. 366.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 319
diferente; nunca vimos fazer um mundo, e por isso não temos nenhuma
base racional para supor que este mundo teve um criador. «Quando duas
espécies de objetos,» diz Hume, 10 «foram sempre observados em
conjunção, posso inferir, por costume, a existência do um quando vejo a
existência do outro, e isso se chama o argumento da experiência. Mas
que este argumento se possa apresentar quando os objetos, como no caso
atual, são singulares, individuais, sem paralelo nem semelhanças
específicas, pode ser difícil de explicar. E me dirá alguém com seriedade
que um universo ordenado tem que surgir de algum pensamento e arte,
como o humano, porque temos experiência deste? Para determinar este
raciocínio, seria necessário que tivéssemos experiência da origem de
mundos; e certamente não é suficiente que tenhamos visto surgir navios
e cidades graças à arte ao engenho humano», ou que a experiência ensina
é que o desígnio implica inteligência; isto é, que nunca vemos a
adaptação de meios a um fim sem evidência de que tal adaptação é a
obra de um agente inteligente. E, por isso, inclusive sob a condução da
experiência inferimos que sempre que vemos desígnio, seja na natureza
ou na arte, tem que haver um agente inteligente. Mas a experiência não é
nem a base nem o limite desta convicção. É uma verdade intuitiva,
evidente por si mesma com base em sua natureza, que não se pode dar
conta do desígnio com base em acaso ou necessidade. Que alguém trate
de persuadir-se de que um relógio é produto do acaso, e verá quão inútil
é sua intenção.
Kant apresenta substancialmente a mesma objeção de Hume quando
diz que a concatenação de causa e efeito fica confinada ao mundo
externo, e por isso que é ilógico aplicar o princípio da causalidade para
dar conta da existência do próprio mundo externo. Além disso, objeta
que as evidências de desígnio na natureza seriam só demonstração de um
demiurgo, ou construtor do mundo, e não de um Deus extramundano.
Além disso, apressa-se contra a suficiência do argumento teleológico que

10
«Dialogues on Natural Religion», Works, edição de Edimburgo, 1826, Vol. II, pág. 449.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 320
inclusive se demonstrasse que o autor do mundo é distinto do mundo,
isso não o demonstraria infinito, porque o mundo é finito, e não podemos
inferir uma causa infinita de um efeito finito.

Resposta às objeções.
Como resposta a estas objeções pode-se observar que o que o
argumento com base no desígnio tem a intenção de demonstrar, e
demonstra, é: (1) Que o Autor do universo é um agente inteligente e
voluntário. (2) Que Ele é extramundano e não meramente a vida ou alma
do mundo, porque o desígnio se mostra não simples nem principalmente
pela conformação de corpos organizados mediante um princípio que age
de dentro para fora, mas pela adaptação de coisas externas a tais
organismos, a suas várias necessidades, e pela disposição e ordem
estruturada de enormes corpos de matéria, separados por milhões e
inclusive por milhares de milhões de milhas. (3) A imensidão do
universo através do qual se faz manifesto o desígnio demonstra que sua
causa tem que ser adequada para a produção de tal efeito; e se o efeito é,
como o é para nós, incompreensivelmente grande, a causa deve sê-lo
também. E incompreensivelmente grande e imensamente grande são
termos praticamente equivalentes. Mas além disso, o argumento
cosmológico demonstra que Deus é não apenas construtor, mas sim
criador. E a criação implica a possessão de um poder infinito. Não só
devido ao fato de que a diferença entre a não existência e a existência é
infinita, mas sim devido ao fato de que na Escritura a criação é sempre
descrita como a peculiar obra do Deus infinito. Até onde sabemos, todo
poder das criaturas está limitado à ação própria, ou ao controle mais ou
menos limitado do que já existe.
O que já se disse pode ser uma resposta suficiente à objeção de que
enquanto que o desígnio demonstra inteligência, que entretanto esta
inteligência pode estar na própria matéria, ou na natureza (uma vis
insita), como na alma de mundo. Estes pontos, tal como geralmente se
apresentam, concernem mais propriamente à relação de Deus com o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 321
mundo que a Sua existência. Envolvem a admissão da existência de uma
inteligência em algum lugar, adequada para explicar todos os fenômenos
do universo. Envolvem, portanto, a negação de que estes fenômenos
tenham que ser atribuídos quer ao acaso, ou à ação das meras leis físicas.
Não se trata de onde esteja situada esta inteligência. Seja onde for que
esteja, deve ser uma pessoa, e não meramente uma força carente de
inteligência, agindo segundo uma lei necessária. Porque as evidências de
ação voluntária e benevolente são tão claras como as da inteligência. E
as considerações já apresentadas demonstram que este Ser voluntário e
inteligente tem que ser extramundano; conclusão que é feita ainda mais
evidente por nossa relação com Ele como responsáveis e dependentes.

C. Objeções miscelâneas.

1. Objeta-se que tanto no reino vegetal como no animal há


malformações, produtos anormais, que são inconsistentes com a ideia do
controle de uma inteligência infinita. Este é, no melhor dos casos, um
argumento de nossa ignorância. Admitindo que há na natureza algumas
coisas que não se podem explicar, isso não invalida o argumento que se
saca dos inumeráveis casos de desígnio benevolente. Se a máquina
calculadora do Babbage apresentasse um número errôneo uma vez de
cada muitos milhões, isso não demonstraria que não se manifestava
inteligência em sua construção. E não é sequer necessário atribuir tal
ação aparentemente irregular a uma imperfeição da máquina. Pelo que
saibamos, seu construtor poderia ter uma razão para esta ação, que não
podemos descobrir. Em toda extensa peça musical aparecem
discordâncias aqui e lá, que chocam ao ouvido, e que os
desconhecedores da música não podem explicar, mas que os
competentemente instruídos percebem que são tomadas e resolvidas
numa harmonia mais sublime. Se um príncipe nos desse um cofre cheio
de milhões em moedas e jóias, não poríamos em tela de juízo a bondade
e suas intenções se encontrarmos entre tudo isso alguma moedinha falsa
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 322
cuja presença não pudéssemos explicar. Seria uma loucura rejeitar a
Bíblia com todas as suas sublime e salvadoras verdades porque
possamos achar nela umas poucas passagens que não podemos
compreender, e que em si mesmas parecem inconsistentes com a
perfeição de seu autor. Ninguém recusa crer no sol e em desfrutar em sua
luz porque haja em sua superfície umas manchas escuras que não pode
explicar. A ignorância é uma condição muito sã para nosso atual estado.

Órgãos inúteis.
2. Uma segunda objeção de um tipo muito similar é a que se baseia
no fato de que encontramos membros em corpos organizados para os que
não têm uso. Por exemplo, os homens têm mamas; a baleia tem dentes
que nunca se desenvolvem e que o animal não necessita; os animais têm
ossos que nunca empregam; as aves e os crocodilos têm seus crânios
constituídos por ossos separados, como os animais vivíparos, embora em
seu caso não parece haver utilidade em tal disposição. Até o Mestre
Owen insiste nesta objeção. Em sua obra “Limbs,” 11 ele diz, “penso que
será óbvio que o princípio de adaptação final falha em satisfazer todas as
condições do problema. Que todo segmento e quase todo osso que está
presente na mão e braço humano devia existir na barbatana da baleia,”
onde eles não são necessitados, não parece consistentes com o princípio.
Novamente, em outro lugar, ele diz, 12 “O crânio do pássaro, que é
composto no adulto de um osso único, é ossificado do mesmo número de
pontos como no embrião humano, sem a possibilidade de um propósito
semelhante sendo auxiliado assim, no desembaraço do pintinho da
concha do ovo fraturado . . . . Estes, e centenas de tais fatos forçam o
anatomista pensativo a insuficiência da hipótese teleológica.”
A respeito disto se pode observar: (1) Que esta objeção só aparece
nos organismos individuais de plantas ou animais, enquanto que as

11
Página 39.
12
Homologies, p. 73.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 323
evidências de desígnio encontram-se espalhadas por todo o universo. (2)
Esta objeção se funda também em nossa ignorância. O argumento é que
porquanto não podemos ver a razão de alguma disposição, não existe tal
razão. (3) Adota a postura mais baixa da utilidade, isto é, a que
contempla as necessidades imediatas do organismo individual. Coisas
que não se precisam para suas necessidades podem ter um fim muito
mais elevado. Num grande edifício a funcionalidade não é o único fim
que se contempla; estão a simetria e a unidade, fins estéticos de tanto
valor como o mero conforto ou conveniência. Os cientistas
demonstraram que todos os animais são, em sua estrutura, só
modificações de quatro formas típicas. Estas formas se preservam em
todos os gêneros e espécies incluídos sob estas classes gerais. Por isso, a
presença destes rasgos característicos do tipo, inclusive quando o
indivíduo não os necessite, serve para indicar a unidade do plano sobre o
qual está edificado todo o reino animal. Temos que lembrar que o que
não vemos não pode refutar a realidade do que vemos.
O instinto.
3. Uma terceira objeção é a derivada em algumas ocasiões com base
nas operações do instinto. O instinto, segundo o doutor Reid, é «um
impulso natural e cego a executar certas ações, sem nenhum fim à vista,
sem deliberação, e com muita frequência sem concepção alguma do que
fazemos». 13 O doutor Whately diz também: «Um instinto é uma
tendência cega num modo de ação independente de nenhuma
consideração por parte do agente a respeito do fim ao que leva a ação».
Paley o define como «uma propensão anterior à experiência e
independente de instrução alguma». 14 O argumento é que como «um
impulso cego» que não contempla fim algum efetua todas as
maravilhosas funções que vemos nas obras dos animais irracionais,

13
Active Powers; III, I. 2 vol. IV, pág. 48; edição do Charlestown, 1815.
14
Teologia Natural, cap. XVIII.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 324
algumas similares funções na natureza não podem demonstrar
inteligência no autor da natureza. A resposta a este argumento é:
1. Que se baseia numa errônea definição de instinto. Não se trata de
um impulso cego. É aquela medida de inteligência dada aos animais e
que os capacita para o sustento de suas vidas, para continuar sua raça, e
para responder às necessidades de seu ser. Dentro de certos limites, esta
forma de inteligência, tanto no homem como nos animais irracionais, age
cegamente. O impulso que leva os jovens de todos os animais para
buscar seu alimento de uma maneira apropriada e no lugar apropriado, é
indubitavelmente cego. O mesmo é provavelmente o caso do impulso
que leva a muitos animais a buscar provisão durante o verão para as
necessidades do inverno. Tampouco se pode supor que a abelha
construiu sempre e em todo lugar suas celas seguindo os mais ajustados
princípios matemáticos conduzida por uma compreensão inteligente
destes princípios. Estas operações, que são executadas sem instruções, e
sempre de idade em idade da mesma maneira, indicam uma condução
que pode ser chamada cega no sentido de que os que se encontram baixo
sua influência não traçam o plano com base no que agem, embora
possam conhecer o fim proposto. Mas a inteligência dos animais vai
além destes estreitos limites. O castor não só constrói seus diques
segundo a natureza da localidade e a força da corrente em que convoca
sua moradia, mas o vemos constantemente, assim como a outros animais,
variando seu modo de operação para confrontar emergências especiais.
Por isso, o instinto, como designam o princípio que controla a ação dos
animais irracionais, não é cego, mas sim inteligente. Admite a
contemplação de um fim, e a seleção e aplicação dos meios apropriados
para seu cumprimento. Assim, inclusive admitindo que a inteligência
manifestada na natureza é da mesma ordem que a manifestada pelos
animais, entretanto a diferença em grau é infinita.
2. Entretanto, nenhuma medida de intelecto do grau ou do caráter
do instinto é suficiente para dar conta dos fenômenos do universo. O
instinto tem que ver com as necessidades de um organismo individual.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 325
Mas, quem adapta os órgãos de um animal a seus instintos? Quem adapta
a natureza exterior, o ar, a luz, o calor, a água, os alimentos, etc., etc., a
suas necessidades? Que relação tem o instinto com o universo estelar?
3. Além disso, estes mesmos instintos estão entre os fenômenos que
devem ser explicados. Se se trata de impulsos cegos, podem ser
explicados, em toda sua variedade e em toda sua acomodação à natureza,
às necessidades dos animais, por um impulso cego impregnando todas as
coisas? O fato é que a adaptação da natureza externa aos instintos das
diferentes classes de animais, e de seus instintos à natureza externa,
oferece uma das mais convincentes provas de um intelecto exterior a
ambas, e ordenando um com relação ao outro.
4. Deve-se lembrar, embora este tema pertença a um argumento
separado, que a alma do homem, com todos os seus maravilhosos
poderes e capacidades, intelectuais, morais e religiosas, é um dos fatos
que devem ser explicados. Remontar a existência da alma do homem a
«um impulso cego» é supor que o efeito transcende à causa para além de
toda medida, o que é o mesmo que supor um efeito sem causa.
5. Todas estas objeções dão por suposta a existência eterna da
matéria, e a eternidade das forças físicas. Porquanto existem, devem ter
existido desde a eternidade, ou ter tido um princípio. Se tiveram um
princípio, devem ter tido uma causa externa a elas mesmas. Esta causa
não pode ser uma não entidade. Tem que ser uma substância existente
em si mesma, eterna, possuindo a inteligência, o poder, a vontade e a
benevolência adequada para dar conta do universo e de tudo o que nele
se contém. Esta é, a causa do universo tem que ser um Deus pessoal.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 326
§ 5. O argumento moral ou antropológico

A. Natureza do argumento.

Assim como a imagem do sol refletida num espelho, ou na lisa


superfície de um lago, revela-nos que é o sol e o que é, assim a alma
humana, com a mesma clareza, revela-nos que Deus é e o que Ele é. O
reflexo do sol não nos ensina toda a verdade a respeito deste luzeiro; não
nos revela sua constituição interna, nem nos diz como sua luz e calor se
mantêm de idade em idade. Da mesma maneira a alma, como imagem de
Deus, não nos revela tudo o que Deus é. En ambos os casos, e
igualmente en ambos os casos, o que se revela é certo, isto é, confiável.
corresponde-se com a realidade objetiva. Assim como sabemos que o sol
é o que seu reflexo representa que é, assim sabemos que Deus é o que a
natureza da alma humana declara que Ele é. A dúvida no primeiro caso é
tão irrazoável, e podemos dizer igualmente de impossível, que no outro.
Viu-se no capítulo precedente que todo homem tem em sua própria
natureza a evidência da existência de Deus, uma evidência que não pode
ser nunca apagada, e que forçará à convicção dos mais maldispostos.
Não é menos certo que cada homem tem em si mesmo a mesma
evidência irresistível de que Deus é um Ser extramundano e pessoal; que
Ele é inteligente, voluntário e moral; que Ele conhece; que Ele tem o
direito a ordenar; e que Ele pode castigar e que Ele pode salvar.
Pode-se perguntar de maneira natural: Se é assim, se cada homem
tem em sua própria natureza um testemunho cuja competência não pode
pôr em tela de juízo, e cujo testemunho não pode ignorar, para que
argumentar a respeito da questão? Por três razões: Primeiro, porque
inclusive as verdades evidentes por si mesmas são, com frequência,
negadas; e segundo, porque os homens, em seu presente estado moral,
encontram-se sob intensas tentações de negar a existência de um Deus
santo e justo; e terceiro, porque se estão fazendo constantes esforços para
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 327
perverter ou contradizer o testemunho de nossa natureza a respeito da
existência e da natureza de Deus.

B. Argumento baseado na existência da mente.

Toda pessoa tem em sua própria consciência a evidência da


existência da mente. Sabe que ele é um ser inteligente e pessoal. Sabe
que sua personalidade não reside em seu corpo, mas em sua alma. Está
incluído nos fatos da consciência que a alma e o corpo são coisas
distintas, que são diferentes substâncias que têm atributos não só
diferentes, mas também incompatíveis. O fato de que esta seja a
convicção geral dos homens fica claro pelo fato de que todas as línguas
reconhecem esta distinção, e pelo fato de que não é negado nunca,
exceto por escritores especulativos ou teóricos. A consciência comum
dos homens, revelada em sua forma de falar, e em suas declarações, e
pela crença universal, na forma que for, de um estado de existência
consciente depois da morte, dá testemunho da verdade de que a alma é
um pouco diferente do corpo, e muito superior a ele. Como se pode
explicar a existência desta substância imaterial, pensante, imortal, a que
chamamos o eu? É inegável que não tem existido sempre. Se começou a
existir, deve ter tido a causa de sua existência fora dela mesma. Esta
causa não pode ser a alma do pai, porque é também um efeito. Começou
a ser. E está universalmente admitido que uma série infinita de efeitos é
impensável. Se a alma não pode ser explicada por derivação numa série
sem fim de passos com base no que nos precederam, tampouco pode ser
concebida como um produto do corpo, nem de forças e combinações
físicas. Parece ser uma proposição evidente por si mesma que o efeito
não pode conter mais que sua causa; que a inteligência não pode ser o
reduto do que não é inteligente. Isto está também confirmado por toda a
experiência.
Em nosso atual estado estamos familiarizados, primeiro, com a
matéria, com suas propriedades e leis, ou forças; segundo, com a vida
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 328
vegetal; terceiro, com a vida animal; e quarto, com a mente, dotada de
uma vida de uma ordem muito mais elevada. Estes diferentes elementos,
ou modos de existência, embora maravilhosamente combinados e entre
mesclados, são distintos. Como um fato da experiência, a mera matéria
com suas forças físicas nunca origina a vida vegetal; a vida vegetal por si
mesma nunca origina nem passa à vida animal; e a vida animal nunca
origina, nem se desenvolve à vida intelectual ou espiritual. Há um
abismo infranqueável entre estes vários departamentos do ser. Logo que
o princípio da vida abandona uma planta ou animal, as forças físicas que
pertencem à matéria operam sua dissolução. Estes são fatos
indelevelmente impressos nas convicções da massa da humanidade. São
conclusões às quais levou as mentes de todos os homens a experiência
universal. Certo que são negadas por certos cientistas. Mas a teoria sobre
a qual baseiam esta negação envolve a negação de tantas verdades
intuitivas e necessárias; faz tanta violência às leis da crença impostas à
nossa natureza, e sobre cuja validez depende todo conhecimento, que
nunca podem ser mais que uma crença precária e temporal da parte dos
que a adotam, e nunca pode adquirir o controle sobre as mentes dos
homens. Não é este o lugar a entrar numa discussão da teoria do
materialismo. É lícito apelar à convicção geral da humanidade de que a
mente não pode ser um produto da matéria. Se é assim, como nossas
mentes não são existentes por si mesmas nem eternas, tem que ser certo,
como também criam os pagãos, que nossos espíritos devem sua
existência àquele que é o Pai dos espíritos.

C. Baseado na natureza da alma.

Há duas leis, ou fatos gerais, que parecem caracterizar todas as


obras da natureza. Por natureza se significa aqui tudo o que é extrínseco
a Deus e procedente dEle. A primeira destas leis é que sejam quais forem
as capacidades, necessidades ou desejos que existam, há uma provisão
adequada para supri-las e as satisfazê-las. Isto é evidentemente certo com
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 329
relação ao mundo vegetal. As plantas têm órgãos para selecionar os
materiais do solo necessários para seu crescimento e maturidade; órgãos
para absorver o carbono da atmosfera; a capacidade de ser afetadas de
maneira apropriada pela luz e o calor; órgãos de reprodução designados
para a continuidade de cada uma delas segundo sua natureza. Todas estas
necessidades são supridas. A terra, a atmosfera, a luz, o calor, e a água,
tudo isso está provido. E o mesmo sucede com o mundo animal em toda
sua variedade sem fim de formas. Os alimentos, a luz, o calor, o ar e a
água são adaptados a suas variadas necessidades, a seus órgãos e a seus
instintos. Se têm o apetite da fome, têm órgãos para apropriar-se de seus
alimentos, e para sua digestão; o instinto apropriado para a seleção dos
mesmos, e os alimentos apropriados estão sempre disponíveis. E assim
com todas as outras necessidades de sua natureza.
A segunda lei, ou fato general, é que todos estes organismos vivos
alcançam a perfeição, e cumprem plenamente o fim de sua existência.
Isto é, transformam-se em tudo o que são capazes de ser. Tudo o que
pertence à sua natureza fica plenamente desenvolvido. Todas as suas
capacidades são plenamente exercitadas, e todas suas necessidades ficam
plenamente satisfeitas.
Estas duas coisas são verdadeiras de toda criatura vivente dentro do
âmbito do conhecimento humano, exceto do Homem. Pelo que a seu
corpo concerne, também são certas dele. Suas necessidades físicas são
todas supridas pelas presentes circunstâncias de seu ser. Seu corpo
transforma tudo o que é capaz de ser, nesta etapa da existência. Mas não
são certas dele pelo que respeita à sua alma. Tem capacidades que não
são plenamente desenvolvidas neste mundo, e que nunca podem sê-lo
nele. Tem desejos, aspirações e necessidades para as que o mundo não
lhe provê dos objetos apropriados. Por isso, é evidente que está
designado e adaptado para um estado de existência mais elevado e
espiritual, como seu corpo está adaptado à presente ordem de coisas. A
alma do homem tem, em primeiro lugar, alguns poderes intelectuais
capazes de uma expansão indefinida, que neste mundo nunca alcançam
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 330
seu limite máximo. Com estes se conecta um desejo de conhecimento
que nunca fica satisfeito. Em segundo lugar, a alma do homem tem uma
capacidade para a felicidade que nada neste mundo nem todo o mundo,
se pudesse ser ganho, poderia chegar a preencher. O animal fica
satisfeito. Sua capacidade para a felicidade lhe é totalmente provida aqui.
Em terceiro lugar, a alma tem aspirações para as quais não se
corresponde nada nesta vida. Deseja comunhão com o que está muito
acima dele; o que é ilimitado, eterno. Em quarto lugar, com todos estes
poderes, desejos e aspirações, está consciente de sua fraqueza,
insuficiência e de dependência. Tem que ter um objeto que adorar, amar
e em que confiar. Um Ser que possa dar satisfação a todas as suas
necessidades, e sob cuja proteção possa ficar a salvo daqueles poderes do
mal aos que sabe que está exposto por todos lados e em todo momento.
Um Ser cuja existência e cuja relação consigo mesmo pode explicar
todos os mistérios de seu próprio ser, e assegurar sua felicidade no
futuro, em que sabe que deve logo entrar. Com a mesma certeza com que
a fome num animal supõe que há um alimento adaptado a acalmar seus
anelos, assim esta fome da alma supõe que há um Ser no universo para
dar satisfação a suas necessidades. Em ambos os casos o anelo é natural,
universal e imperativo.
Não é possível que o homem seja uma exceção às leis acabadas de
enunciar; que só ele, de todas as existências, tenha capacidades, desejos,
necessidades, para as quais não se deu provisão. Deus é o correlativo do
homem, no sentido de que a existência de uma criatura como o homem
demanda aceitar a realidade de um Ser como Deus.

D. Baseado na natureza moral do homem

Os conhecidos fatos da consciência a respeito desta questão são:


1. Que pela constituição de nossa natureza temos um sentido do
bem e do mal; que percebemos ou julgamos que algumas coisas são
boas, e outras, más. Esta percepção é imediata. Assim como a razão
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 331
percebe que algumas coisas são verdadeiras, e outras falsas, e assim
como os sentidos têm uma percepção imediata de seus objetos
apropriados, da mesma maneira a alma valoriza imediatamente o caráter
moral dos sentimentos e das ações. A razão, os sentidos e a consciência
são igualmente infalíveis dentro de certos limites, e suscetíveis de errar
fora destes limites.
2. Nossas percepções morais ou juízos são sui generis. Têm seu
caráter distintivo e peculiar, que não pertence a nenhum outro de nossos
estados de consciência. O bem tem um caráter tão distinto do verdadeiro,
do apropriado ou do conveniente, como estas últimas coisas o são de
nossas sensações. O bem é aquilo que estamos obrigados a fazer e a
aprovar. O mal é aquilo que estamos obrigados a evitar e a desaprovar. A
obrigação moral, expressa pela palavra «dever», é uma ideia simples e
primária. Só pode ser compreendida pelos que a sentiram. E não pode ser
confundida com nenhuma outra coisa.
3. Estes juízos morais são independentes. Não estão sob o controle
do entendimento nem da vontade. Ninguém pode por sua vontade
considerar um axioma como falso, nem pensar que o negro é branco,
nem que o branco é negro. Nem pode nenhum sofisma levá-lo a tais
falsos juízos. Da mesma maneira, ninguém pode por seu desejo chegar a
crer que é bom aquilo que sua consciência lhe indica que é mau; nem
pode mediante raciocínios levar-se a si mesmo à convicção de que tem
feito o bem quando sua consciência lhe diz que tem feito o mal.
4. Nosso juízo moral, ou, em outras palavras, a consciência, tem
uma autoridade da qual não podemos emancipar-nos. Não podemos nem
negá-la nem ignorá-la. Tem autoridade. Manda e proíbe. E estamos
obrigados a obedecer. Tem poder também para aplicar suas decisões.
Pode premiar ou castigar. Suas recompensas estão entre as maiores
bênçãos que podemos desfrutar. Seus castigos são a mais intolerável
agonia que pode suportar a alma humana.
5. Nossos juízos morais implicam a ideia de lei, isto é, de um
governo ou norma a que estamos obrigados a nos amoldar. Quando
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 332
julgamos que uma coisa é boa, consideramo-la conforme a lei moral;
quando julgamos que é má, julgamos que não é conforme a esta lei.
6. Esta tem uma autoridade que não se deriva de nós. É
essencialmente diferente de uma sensação do que é decoroso, e aquilo
que é conveniente. É algo que nos é imposto, e ao que se nos demanda
que nos amoldemos por uma autoridade fora de nós mesmos.
7. Nossa natureza moral envolve, assim, um sentimento de
responsabilidade. Temos que responder pelo que somos e pelo que
fazemos. Esta responsabilidade não é perante nós mesmos, nem perante
a sociedade, nem perante a existência em geral. Tem que ser perante uma
pessoa; isto é, perante um Ser que sabe o que somos, o que fazemos, e o
que deveríamos ser e fazer; que aprova o bem e desaprova o mal; e que
tem o poder de nos recompensar e de nos castigar conforme a nosso
caráter e conduta. O pecado, por sua própria natureza, tal como se revela
em nossa consciência, envolve não só um sentimento de poluição, ou de
degradação moral, mas também um sentimento de culpa; isto é, uma
convicção de que merecemos castigo, de que deveríamos ser castigados,
e, por isso, de que o castigo é inevitável.
Se esta é a realidade de nossa natureza moral, está claro que nos é
necessário aceitar a existência de um Deus extramundano, pessoal, de
quem dependemos, e perante quem somos responsáveis. Esta é
indubitavelmente a base para a convicção do ser de Deus, que prevaleceu
universalmente entre os homens. Possuindo a ideia dada na constituição
de sua natureza, ou achando-se sob a necessidade interior de crer em tal
Ser, homens cultivados buscaram e encontraram evidência de sua
existência no mundo sem eles. Mas estas provas externas não foram tão
gerais nem tão operativas como as derivadas do que nós mesmos somos,
e do que sabemos que merecemos. Assim, homens como Kant e como
Sir William Hamilton, embora neguem a validez de todos os outros
argumentos para a existência de Deus, admitem que nossa natureza nos
obriga a crer que Ele existe, e que Ele é uma pessoa.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 333
Nossos sentimentos morais não se devem à educação.
Certamente, objeta-se que estes fenômenos de nossa natureza moral
devem-se à educação ou à superstição. A isto se responde, primeiro, que
as verdades morais têm uma luz de evidência própria. Não se podem
negar do mesmo modo que não se podem negar as intuições dos sentidos
e da razão. Pode inclusive dizer-se que nossos juízos morais têm uma
maior certeza que quaisquer outras convicções. Os homens creem em
coisas absurdas. Creem no que contradiz a evidência de seus sentidos.
Mas ninguém creu nem crerá que a malignidade é uma virtude. Em
segundo lugar, o que é universal não pode ser explicado mediante
peculiaridades da cultura. Todos os homens são seres morais; todos têm
este sentimento de obrigação moral, e de responsabilidade; e ninguém
pode libertar-se destas convicções. Por isso, o Apóstolo, falando da
consciência comum dos homens, assim como sob a guia do Espírito
Santo, fala dos pecadores como «conhecendo o justo juízo de Deus»
(Rm 1:32); isto é, que um sentimento de pecado envolve o conhecimento
de um Deus santo.
Logo, estamos situados em meio de um vasto universo do qual
constituímos uma parte. Vemo-nos forçados, não meramente pelo desejo
de conhecimento, mas pela necessidade de nossa natureza, a perguntar:
Como se originou este universo? Como é sustentado? Para onde se
dirige? O que somos nós? De onde procedemos? Para onde vamos? Estas
perguntas precisam de respostas. Deve-se resolver este complicado
problema.
Não é nenhuma solução atribuir tudo ao acaso. Constitui uma
frívola negação de que haja necessidade de solução alguma, de que tais
respostas demandem uma pergunta. Atribuir tudo à necessidade das
coisas quer dizer que a existência das coisas como são é a realidade
última. O universo é, sempre foi, e sempre será. É a evolução do ser
necessário pelas leis necessárias. Isto é tudo o que podemos saber e tudo
o que temos que saber. Entretanto, esta não é uma solução. É meramente
a negação de que haja alguma possível solução. Se esta teoria pudesse
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 334
ser aceita com relação ao mundo exterior, deixar-nos-ia sem explicação
todos os fenômenos relacionados com a natureza do homem, suas
dimensões intelectual, moral e religiosa. O teísmo é uma solução. Supõe
a existência de um Ser eterno e necessário; de um Espírito, e por isso
inteligente, voluntário, consciente, e possuindo perfeições morais. Esta
hipótese dá conta da origem do universo. «No princípio criou Deus os
céus e a terra» é uma resposta satisfatória à primeira pergunta. Dá conta
de tudo o que o universo é, de sua imensidão, variedade, ordem,
inumeráveis organismos, a adaptação da natureza externa às
necessidades de todas as coisas viventes. Dá conta da natureza do
homem. Dá o que demanda esta natureza: um infinito objeto de amor, de
confiança e de adoração. Revela perante quem é que nós somos
responsáveis, e de quem dependemos. Sabemos que esta solução é
verdadeira, porque é uma solução. Dá conta de todos os fatos. E dá conta
deles de tal maneira que não pode deixar de ser aceito como verdade,
tanto de maneira inteligente como cegamente. O Deus a Quem todos os
homens adoram sem O conhecer, é revelado nas Escrituras, não só na
certeza de Sua existência, mas também na plenitude de Suas perfeições.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 335
CAPÍTULO III
TEORIAS ANTITEÍSTAS

§ 1. Que se entende pelo Antiteísmo.

ASSIM como o Teísmo é a doutrina de um Deus extramundano e


pessoal, criador, preservador e governante de todas as coisas, qualquer
doutrina que negue a existência de tal Ser é antiteísta. Assim, não só o
confesso Ateísmo, mas também o Politeísmo, o Hilozoísmo, o
Materialismo e o Panteísmo pertencem à classe de teorias antiteístas.

Ateísmo
O ateísmo não pede qualquer discussão separada. É em si mesmo
puramente negativo. Não declara nada. Simplesmente nega o que o
Teísmo afirma. A prova do Teísmo é, portanto, a refutação do Ateísmo.
O ateu é, entretanto, um termo de repreensão. Poucos homens estão
dispostos a chamar-se a si mesmos, ou permitir que outros os chamem
por esse nome. Hume, sabemo-lo, ressentiu-se disto. Consequentemente,
aqueles que são realmente ateus, de acordo com o significado
etimológico e comum que a palavra recebeu, repudiam o termo.
Reivindicam ser partidários de Deus, embora atribuam àquela palavra
um significado que é completamente sem autorização para uso.
Assim Helvetius 15 diz: “Não existe nenhum homem de
entendimento que não admita um princípio ativo na natureza; portanto
não existe nenhum ateu. Ele não é um ateu que diz que o movimento é
Deus; porque de fato o movimento é incompreensível, como não temos
nenhuma ideia clara disto, porque ele só se manifesta propriamente por
seus efeitos, e por isso todas as coisas são apresentadas no universo.
Cousin 16 diz: “O Ateísmo é impossível, porque a existência de Deus é

15
“De l’Homme.” Works, edit. Paris, 1793, vol. iii. p.221, note.
16
Introduction to the General History of Philosophy, vol. i. p. 169.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 336
implicada em toda afirmação. Se um homem crê que ele existe, deve crer
no poder do pensamento, e isto é Deus.” De certa forma Herbert Spencer
reivindica ser religioso. Ele não se opõe à religião, mas sim aos dogmas.
Ele reconhece o poder inescrutável. Reduz todo nosso conhecimento aos
dois fatos, “Aquela força é,” e “A Força é persistente.” A Força,
entretanto, é perfeitamente inescrutável e incompreensível. Neste
principio ele tenta reconciliar a religião e a ciência. O último princípio da
religião, aquele em que todas as religiões concordam, é que existe um
poder inescrutável que é a causa de todas as coisas. Isto também é o
último princípio da ciência. Portanto, têm uma área de concordância.
Nada pode ser predito desta causa; nem consciência; nem inteligência;
nem vontade; só que é uma Força. Isto é todo o Deus que a nova
filosofia nos deixa. 17
A linguagem, entretanto, tem seu direitos. O significado das
palavras não pode ser mudado ao bel-prazer de indivíduos. A palavra
Deus, e seus equivalentes em outras línguas, tem um significado
definido, de que nenhum homem está em liberdade de partir. Se a pessoa
diz que crê em Deus, diz que crê na existência de um ser pessoal,
autoconsciente. Ele não crê em Deus, ele só crê no “movimento,” na
“força,” no “pensamento,” na “ordem moral,” no “incompreensível,” ou
em qualquer outra abstração.
Os teístas também têm seu direitos. O teísmo é uma forma definida
de crença. Pela expressão dessa crença, a palavra Teísmo é um termo
estabelecido e universalmente reconhecido. Temos o direito de reter isto;
e nós temos o direito de designar como Ateísmo, todas as formas de
doutrina que envolvem a negação do que é universalmente entendido
como Teísmo.

17
See First Principles of a New System of Philosophy, by Herbert Spencer.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 337
É possível o Ateísmo?

MUITAS vezes se tratou a questão quanto a se o Ateísmo é


possível. A resposta a esta pergunta depende do sentido do termo. Se
com isso se significa se um homem pode livrar-se da convicção de que
há um Ser Pessoal perante quem é responsável por seu caráter e conduta,
e que o castigará por seus pecados, deve-se responder em sentido
negativo. Porque isso seria emancipar-se da lei moral, o que é
impossível. Não obstante, se com esta pergunta se quer dizer se alguém
pode, por especulação ou outros meios, levar-se a si mesmo a um estado
em que perde a consciência da crença de Deus escrita no coração, e
libertar-se por um tempo de seu poder, deve-se responder em sentido
afirmativo. Uma pessoa pode, neste sentido, negar sua individualidade
ou identidade; negar a existência real, objetiva, da alma ou do corpo, da
mente ou da matéria; a distinção entre o bem e o mal. Mas isto é não
natural e não pode durar. É como dobrar uma lâmina à força. No
momento em que a força é retirada, a lâmina volta para sua posição
normal. Por isso, os homens passam com frequência de um estado de
total cepticismo a outro de fé sem dúvida; não, naturalmente, por um
processo de argumentação, mas por uma mudança em seu estado
interior. Esta transição de incredulidade à fé, embora seja assim
repentina, e embora não é produzida por um processo intelectual, é
perfeitamente racional. Os sentimentos que surgem na mente contêm
evidência da verdade à qual o entendimento não pode resistir. É também
um fato psicológico familiar que o cepticismo e a fé podem, em certo
sentido, coexistir na mente. Um idealista, embora se mantenha em sua
teoria tem, não obstante, uma convicção interna da realidade do mundo
externo. Assim, o ateu especulativo vive com a permanente convicção de
que há um Deus a quem terá que prestar contas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 338
§ 2. Politeísmo.

Como o implica a palavra, o Politeísmo é a teoria que supõe a


existência de muitos deuses. O monoteísmo foi a religião original de
nossa raça. Isto é evidente não só pelos ensinos das Escrituras, mas pelo
fato de que a forma histórica mais antiga de crença religiosa é a
monoteísta. Há hinos monoteístas nos Vedas, os mais antigos escritos
existentes, a não ser que o Pentateuco seja a exceção.
A primeira separação fora do monoteísmo parece ter sido o culto à
natureza. Ao perder os homens o conhecimento de Deus como criador,
foram levados a reverenciar os elementos físicos com os que estavam em
contato, de cujo poder eram testemunhas, e cujas benéficas influências
experimentavam constantemente. Por isso, não só o sol, a lua e as
estrelas, os grandes representantes da natureza, mas também o fogo, o ar
e a água, deveram ser objetos de adoração popular. E por isso
encontramos que os Veda consistem principalmente de hinos dirigidos a
estes elementos naturais.
Estes poderes foram personificados, e logo se tornou crença geral
que um ser pessoal presidia a cada um deles. E estes seres imaginárias
transformaram os objetos do culto popular.
Enquanto que a massa popular cria realmente em seres «chamados
deuses» (1Co 8:5), muitos dos mais ilustrados eram monoteístas; e mais
ainda eram panteístas. A anterior introdução e ampla disseminação do
panteísmo se demonstram pelo fato de que estão na base do bramanismo
e do budismo, as religiões da maioria da raça humana durante milhares
de anos.
Poucas dúvidas há de que quando as tribos arianas entraram na
Índia, uns mil e quinhentos ou dois mil anos antes de Cristo, o panteísmo
era já sua crença estabelecida. O infinito Ser desconhecido e
«incondicionado», segundo o sistema hindu, revela-se como Brahma,
Vishnu e Shiva – isto é, como Criador, Preservador e Restaurador. Estas
não eram pessoas, e sim modos de manifestar-se. Foi nesta forma que se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 339
expressou a ideia de um processo sem fim de desenvolvimento do
infinito ao finito, e do retorno do finito ao infinito. Foi deste principio
panteísta que se desenvolveu naturalmente o politeísmo sem fim dos
hindus, determinando o caráter de toda sua religião. Como tudo o que é,
é só uma manifestação de Deus, todo o destacável, e especialmente a
aparição de qualquer homem destacável, era considerada como um
«avatar» ou encarnação de Deus, em um ou outro de seus modos de
manifestação, como Brahma, Vishnu ou Shiva. E como o mal é tão real
como o bem, um é tanto uma manifestação, ou modus existendi, do Ser
infinito como o outro. E, por isso, há deuses maus assim como bons. Em
nenhuma parte do mundo teve o panteísmo um terreno de cultivo como
na Índia, e em nenhuma parte produziu seus efeitos naturais com uma tão
grande quantidade de males. Em nenhum lugar o politeísmo foi levado a
extremos tão repugnantes.
Entre os egípcios, gregos e romanos, o politeísmo assumiu uma
forma determinada pelo caráter de seus povos. Os gregos converteram-
na em brilhante, belo e sensual; os romanos eram mais decorosos e
serenos. Entre as nações bárbaras assumiu formas muito mais simples, e
em muitos casos mais racionais.
Na Bíblia os deuses pagãos são declarados ser “vaidade,” e “nada,”
meros seres imaginários, sem poder para ferir ou salvar. (Jr. 2:28; Is.
41:29; 42:17; Sl 106:28). Eles são também representados como δαιμόνια
(1Co. 10:20). Esta palavra pode expressar qualquer um imaginário, ou
uma existência real. Os objetos de adoração pagã são chamados deuses,
até quando declarados ser não-existências. Então eles podem ser
chamados “demônios,” sem pretender ensinar que eles são “espíritos.”
Entretanto, como em geral a palavra no Novo Testamento significa
“espíritos do mal,” é possivelmente melhor tomar isto nesse sentido
quando se refere aos objetos de adoração pagã. Isto não é incompatível
com a doutrina de que os deuses do pagão são “vaidades e mentiras.”
Eles não são o que homens levam a eles para ser. Eles não têm nenhum
poder divino. Paulo diz dos pagãos antes de sua conversão,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 340
“ἐδουλεύσατε τοῖς φύσει μὴ οὖσι θεοῖς” [edouleusate tois phusei me
ousi theois] (Gl 4:8). A prevalência e persistência do politeísmo mostra
que deve ter uma forte afinidade com a natureza humana caída. Embora,
exceto no panteísmo, não tem base filosófica, constitui um formidável
obstáculo para o progresso da verdadeira religião no mundo.

§ 3. Hilozoísmo

O Hilozoísmo, de ὕλη [hile], matéria, e ζωή [zoe], vida, é em seu


sentido próprio a doutrina de que a matéria possui vida. E esta é a forma
em que esta doutrina era sustentada por muitos de seus defensores. Toda
a matéria, e toda partícula de matéria, além de suas propriedades físicas,
tem um princípio de vida em si mesma, o que faz desnecessário supor
qualquer outra causa para os fenômenos vitais que se exibem no mundo.
Nesta forma, o Hilozoísmo não difere do Materialismo.
Entretanto, mais usualmente este termo emprega-se para designar
um sistema que admite uma distinção entre a mente e a matéria, mas
considera que estão íntima e inseparavelmente unidas, como a alma e o
corpo no homem. Segundo este sistema, Deus é a alma do mundo; um
poder inteligente presente em todas as partes, ao que se têm que atribuir
todas as manifestações de desígnio no mundo externo, e toda a atividade
da alma humana. No entanto, a relação da alma com o corpo é uma
ilustração muito imperfeita da relação de Deus com o mundo, segundo o
sistema hilozoísta.
A alma é realmente exterior ao corpo e independente dele, ao
menos para sua existência e atividade. Não é a vida do corpo. Nem lhe
dá forma nem o preserva. Nem sequer está consciente da atividade vital
pela que o corpo é desenvolvido e sustentado. Enquanto que. segundo a
teoria hilozoísta, a alma do mundo é seu princípio plástico, a fonte
interna de todas seus organizações atividades.
Os princípios básicos desta teoria tal como a desenvolveram os
estoicos são: (1) Que há dois princípios constitutivos do universo, um
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 341
ativo, o outro passivo. O princípio passivo é a matéria, sem forma e sem
propriedades, isto é, inerte. O princípio ativo é a mente, habitando na
matéria como seu poder formador e organizador, isto é, Deus. (2) Por
isso, o universo deve ser contemplado sob três aspectos: (a) Como o
poder conformador de tudo; a natura naturans, ou ἡ φύσις τεχνική [he
phusis technike] (b) O mundo como formado por este princípio vivente
interior; o κόσμος [kosmos] vivente, ou natura naturata. (c) A
identidade dos dois, ao constituir um todo. É só por um ato mental que se
distingue entre um e o outro. Por isso, o mundo, incluindo ambas as
coisas, ou como a identidade de ambas as coisas, é formado com a maior
sabedoria e por um processo necessário, porque as leis da natureza são as
leis da razão. Cícero, 18 expondo este sistema, diz: “Natura, non
artificiosa solum, sed plane artifex ab eodem Zenone dicitur; consultrix,
et provida utilitatum opportunitatumque omnium. Censet [Zeno] enim
artis maxime proprium est creare et gignere, quodque in operibus
nostrarum artium manus officiet id multo artificiosius naturam officere.”
(3) Por isso, o universo (o Todo - um), do qual Deus é a alma e a
Natureza é o corpo, é vivo, imortal, racional e perfeito (ζῶον ἀθάνατον,
λογικὸν, τέλειον [zoon athanaton, logikon. Teleion]). Deus, como o
princípio controlador e operador em todas as coisas, age segundo leis
necessárias, embora racionais. (4) As almas dos homens são da mesma
natureza que a alma do mundo, mas como existências individuais,
desvanecendo-se quando cessa a vida do corpo. (5) O fim mais elevado
da vida é a virtude; e a virtude é viver de acordo com a razão. 19 Este
sistema numa de suas formas é quase idêntico ao Materialismo, e na
outra ao Panteísmo. Não há Deus pessoal perante quem são
responsáveis, nem livre-arbítrio; por isso, não há pecado, nem existência
consciente depois da morte.

18
De Natura Deorum, ii. 22, p. 1116, edit. Leipzig, 1850.
19
Véase Rixner, Geschichte der Philosophie, vol. I, sec. 120.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 342
§ 4. Materialismo.

O materialismo é aquele sistema que ignora a distinção entre a


matéria e a mente, e atribui todos os fenômenos do mundo, sejam físicos,
vitais ou mentais, às funções da matéria.

A. A doutrina de Epicuro.

Epicuro ensinava: (1) Que como ex nihilo nihil fit (do nada, nada
produz-se), o universo sempre existiu, e tem que seguir existindo para
sempre. (2) Que o espaço e o número de corpos que contém, são
infinitos. (3) Estes corpos são de duas classes, simples e compostos. Os
corpos simples são átomos, possuindo forma, magnitude e peso. São
indivisíveis, inalteráveis e indestrutíveis. Esta é também a doutrina da
ciência moderna. * Diz Faraday: 20 «Uma partícula de oxigênio é sempre
uma partícula de oxigênio — nada pode desgastá-la. Se ela entra em
combinação, e desaparece como oxigênio; se passa através de mil
combinações, animais, vegetais e minerais — se jaz oculta durante mil
anos, e logo se desprende, continua sendo oxigênio com suas primeiras
qualidades, nem mais nem menos. Tem toda sua força original, e só esta.
A quantidade de força que desprendeu ao ocultar deve ser empregada
outra vez em direção inversa quando é libertada». (4) Estes átomos têm
suas forças peculiares, distintas de sua mera gravidade. Esta é também a
doutrina da ciência moderna. Inclui-se no que diz Faraday na citação
recém-mencionada. «As moléculas», dizem os cientistas atuais, «foram

*
Isto é, da «ciência moderna» do século passado. Assim se creu, até que se descobriu que os
chamados átomos, as unidades menores das espécies químicas, são solucionáveis em partículas
pequenas componentes das mesmas, como prótons, elétrons, nêutrons, as quais estão compostas de
partículas ainda menores, as quais estão constituídas de «energia empacotada», existindo uma relação
de equivalência entre a matéria e a energia expressa na equação do Einstein: Energia = massa x o
quadrado da velocidade da luz (E = mc2). Entretanto, os raciocínios dados por Faraday no parágrafo
que segue são corretos em tudo o que se refere a forças químicas. (N. do T.)
20
Veja-se Youngman: Conservation and Correlation of Forces, p. 372.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 343
dotadas com forças que dão origem às várias qualidades químicas, e
estas nunca mudam nem em sua natureza nem em sua quantidade». 21 (5)
Epicuro ensinava que a quantidade de matéria, e naturalmente a
quantidade de força no mundo, é sempre a mesma. Não pode nem
aumentar nem diminuir. (6) Os átomos, cujo número é infinito, movem-
se pelo espaço com uma incrível velocidade submetidos às leis físicas
necessárias. (7) Foi pela combinação destas átomos sob a influência da
gravidade e de outras forças físicas que se formou o universo, e que se
veio a ser um cosmos. Isto se parece muito à hipótese nebular. (8) A
alma é material; ou, em outras palavras, todos os fenômenos mentais
devem-se às propriedades da matéria. Isto também se proclama como os
últimos resultados da ciência moderna. (9) A alma, naturalmente, deixa
de existir quando o corpo morre; isto é, assim como a morte é a cessação
das funções vitais do indivíduo, também o é de suas funções intelectivas.
Os átomos dos quais está constituído o homem, com as forças que lhes
pertencem, seguem existindo, e podem entrar na composição de outros
homens. Mas o homem, como indivíduo, deixa de existir. Esta, quase
palavra por palavra, é a doutrina confessa de muitos físicos da
atualidade. (10) A sensação é para nós a única fonte de conhecimento.
Ao lembrar sensações anteriores, formamos ideias, e pela combinação
das ideias formamos juízos. Quase as mesmas palavras de Hume, e a
doutrina da totalidade da escola que ele representa. (11) Como Epicuro
mantinha que nada é imaterial, exceto o vazio, necessariamente inclui
todas as formas de existência sob o cabeçalho da matéria. Como não há
mente nem espírito, não há Deus nem lei moral. A virtude é só uma
prudente consideração pela felicidade. Em certo sentido, admitia a
existência de deuses, mas eram seres corpóreos que não se misturavam
nos assuntos dos homens. 22

21
Croonian Lectures on Matter and Force. Dadas no Real Colégio de Médicos em 1868. Por Henry
Bruce Jones, A.M., M.D., F.R.S., Londres 1868, pág. 17.
22
Rixner’s Geschichte der Philosophie, I. 303-318. Ritter’s History of Philosophy, tradução de A. J.
W. Morrison, III. 399-447.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 344
23
Um recente escritor alemão dizia, na Encyklopadie de Herzog, no
artigo «Materialismus», que apesar do grande progresso da ciência
moderna, os Materialistas de nossos dias não avançaram um só passo
com relação ao sistema de Epicuro. Aquele sistema, provavelmente por
causa da influência dominante da mais elevada filosofia de Platão e do
Aristóteles, não exerceu muita influência sobre as mentes dos antigos,
nem no progresso e pensamento humano. Não foi até os tempos
modernos que o Materialismo obteve nenhum grande poder como teoria
filosófica.

B. O materialismo na Inglaterra durante o século dezoito.

Hobbes (1588-1679) antecipou o movimento rumo ao materialismo


que se manifestou propriamente na Inglaterra durante o último século
“que Ele fez sentido a base real de todas operações mentais o originador
exclusivo de nossas ideias, a média e prova exclusiva de fato. 24 Como,
portanto, podemos perceber como sentido só o que é material, concluiu
que a matéria é a única realidade, e que qualquer coisa que existe para
nós consequentemente deve ser uma parte do universo material. O
processo inteiro da investigação científica era assim reduzida à doutrina
de corpos, para além da qual, ele manteve, não pode haver nenhum
conhecimento qualquer acessível à mente humana. Este conhecimento,
entretanto, não se refere simplesmente à existência de corpos, mas
também a seus mudanças, de todo que mudanças o último princípio é
movimento. A doutrina de corpos, portanto, inclui o conhecimento de
todas as fenômenos com relação a suas causas prováveis; e de todas as
causas possíveis como conhecidas por seus efeitos observados. . . . . a
mente propriamente ele visualizou como completamente material, os
fenômenos de consciência sendo o resultado direto de nossa organização.

23
F. Fabri.
24
Leviathan, chap. I.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 345
O grande e fundamental feito da mente é a sensação, que não é nada
mais ou menos que o efeito de objetos materiais ao redor de nós,
mostrada por meio de pressão ou me choque naquela organização
material que nós designamos como a mente.” 25 De maneira que parece
que Hobbes antecipou o grande resultado da ciência moderna, que toda
força pode ser resolvida em movimento.

Locke (1632-1704)
A introdução do Materialismo na Inglaterra durante o século
passado * é atribuída geralmente à influência da filosofia de Locke. O
próprio Locke estava longe de ser um Materialista, e os defensores de
seu sistema insistem denodadamente em que seus princípios não têm
uma tendência legítima para apagar a distinção entre mente e matéria.
Mas Locke, ao combater a doutrina das «ideias inatas» no sentido de
verdades abstratas, pareceu negar que a mente estava constituída de tal
maneira para captar a verdade intuitivamente, e para além do campo da
experiência. Ele comparava a mente com uma tábula rasa. Esta figura
sugere que todo nosso conhecimento procede de fora, assim como o
tablete para escrever não contribui em nada ao que se escreve sobre ele.
Ele definiu as ideias como «tudo aquilo com que a mente está
imediatamente ocupada quando pensamos».
El origem destas ideias, disse ele, era a sensação e a reflexão. Se
por reflexão significava a observação dos fenômenos da mente, sua
teoria é uma coisa. Se significava o processo de lembrar, combinar e
analisar, e de elaborar de outras maneiras as Impressões obtidas desde
fora, é outra teoria distinta. É provável que o mesmo Locke, e certamente
muitos de seus seguidores, adotassem esta segunda postura; e assim, as
duas fontes de ideias, ou de conhecimento, ficam reduzidas a uma, e esta
uma é a sensação. Mas como a sensação nos pode dar conhecimento só

25
Morell’s History of Modern Philosophy, New York, 1848, pp. 71, 72.
*
Isto é, o Século XVIII, porquanto esta obra se escreveu no Dezenove. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 346
do exterior e material, esta teoria parecia não deixar lugar para as ideias
mais elevadas das verdades eternas e necessárias. Locke tenta dar conta
de nossas ideias de tempo, espaço, infinitude, causa, e inclusive de bem e
mal, com base na observação, isto é, de observação do exterior, ou de
impressões feitas sobre os sentidos. Uma crítica que se faz usualmente à
grande obra de Locke é que nela não distingue entre a ocasião e a fonte
de nossas ideias. Nossa experiência nos dá a ocasião, e pode ser que a
condição necessária, para despertar a mente à percepção não só do fato
experimentado, mas também da apreensão intuitiva da verdade universal
e necessária que este fato envolve. Se não víssemos efeitos produzidos
ao redor de nós, e não exercêssemos eficiência, poderíamos nunca ter a
ideia de causalidade; mas a convicção que todo efeito deve ter uma causa
é um juízo intuitivo, que a experiência não pode produzir nem limitar.
Mas não é pela tendência observada de alguns fatos a produzir felicidade
e de outros a produzir miséria que obtemos a ideia da distinção essencial
entre o bem e o mal, mas sim da própria constituição da mente. Embora
Locke e muitos de seus discípulos ficaram satisfeitos com seu método de
explicar nossas ideias de Deus, de espírito, e das verdades morais e
religiosas, entretanto é coisa certa que muitos de seus seguidores se
sentiram justificados para descartá-las com base nos princípios por ele
enunciados.

Hartley (1705-1757)
Hartley era médico e fisiologista. A fisiologia e a psicologia têm
relações íntimas. É possivelmente natural que aqueles que se dedicam
especialmente aos antigos, deviam fazer pouco dos posteriores. É a
característica marcante de nossa época, na medida em que os físicos
estão preocupados, que ele tenta fundir completamente a psicologia na
fisiologia. Hartley adotou os princípios de Locke, tentando mostrar como
é que as coisas externas produzem sensações e pensamento. Fez isto com
sua teoria de vibrações. «Os objetos do mundo externo afetam de algum
modo os extremos dos nervos, que se estendem do cérebro, como centro,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 347
a cada parte do corpo. Esta impressão produz uma vibração, que é
continuada ao longo do nervo mediante a atividade de um éter elástico,
até que alcança o cérebro, onde constitui o fenômeno que denominamos
sensação. Quando uma sensação foi experimentada várias vezes, o
movimento vibratório do qual surge adquire a tendência a repetir-se
espontaneamente, inclusive quando o objeto externo não está presente.
Estas repetições ou relíquias de sensações são ideias, que por sua vez
possuem a propriedade de lembrar umas a outras mediante a associação
mútua entre elas». 26
Esta doutrina de associação de ideias é a parte mais importante de
seu sistema. Insiste principalmente na lei seguinte: “Às vezes uma ideia
está associada com outra por meio de uma terceira; mas no processo de
tempo esta ideia intermediária pode ser desconsiderada, e ainda a
conexão entre a primeira e a terceira pode, contudo, permanecer. Desta
maneira a ideia de prazer, que é tão indissoluvelmente conectada com
dinheiro, surge das conveniências que pode obter, enquanto na mente do
avarento as conveniências são perdidas de vista, e a própria posse do
dinheiro propriamente é considerada como contendo o prazer inteiro.
Deste modo Hartley responde por quase todas as emoções e paixões da
matéria humana. Os afetos domésticos, por exemplo, surgem da
transferência do prazer derivado desde generosidade maternal até o pai
propriamente; os afetos sociais e patrióticos de transferir os prazeres da
sociedade para o país que dispõe deles; de certa forma, também, os
afetos morais e religiosos, o amor da virtude e o amor de Deus, surgem
dos prazeres conectados à conduta virtuosa e piedosa, sendo transferida
para a lei de ação judicial, ou para o Legislador supremo, de quem estes
prazeres emanaram.” 27 A conexão desta teoria com o materialismo é
óbvia. Se as vibrações do cérebro constituírem sensação, e se as
lembranças, ou repetições espontâneas destas vibrações constituem
26
Observations on Man, cap. I, sec. 2, y Morell, History of Modern Philosophy, New York, 1848,
pág. 98.
27
Observations on Man, chap. i. sect. 2, and Morell, p. 98.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 348
pensamento e sentimento, então todas as leis mentais e morais são meros
afetos de nosso organismo material. É óbvio que, de acordo com esta
teoria, não existe mais liberdade em volição que em sensação. A antiga é
um modo, ou lembrança da posterior. Embora esta propensão de seu
sistema fosse inegável, e embora seus sucessores tirassem estas
conclusões de seus princípios, o próprio Hartley não era um materialista.
Era um homem muito religioso. Não é de todo incomum que um homem
mantenha uma teoria especulativa incompatível com sua fé.
Morell 28 cita a crítica seguinte da doutrina de Hartley no
“Edinburgh Review”: “podendo haver,” diz o revisor, “poucas agitações
no cérebro, por qualquer coisa que conhecemos, e lá podemos até ser
sacudidos de um tipo diferente acompanhando todo ato de pensamento
ou percepção; — mas que as próprias agitações são o pensamento ou
percepção, temos que admitir que declaramos absolutamente impossível
compreender o que significa a afirmação. As agitações são certos
batimentos, vibrações, ou estimulantes, numa substância branca, meio
fluida como pudim, que nós poderíamos ver possivelmente, ou sintamos,
se tivéssemos olhos e dedos suficientemente pequenos ou delgados para
o ofício. Mas o que devíamos ver ou sentir, na hipótese que nós
pudéssemos descobrir, por nossos sentidos, tudo que sucedeu realmente
no cérebro?
Devíamos ver as partículas desta modulação de substância mudar
seu lugar um pouco, reposicionar um pouco acima ou fora do ar, à direita
ou à esquerda, ir ao redor em ziguezague, ou em algum outro curso ou
direção. Isto é tudo que nós podíamos ver, se a conjetura do Dr. Hartley
fosse provada por observação atual; porque isto é tudo que existe em
movimento, de acordo com nossa concepção disto, e tudo que queremos
dizer quando dizemos que há movimento em qualquer substância. É
inteligível, então, dizer, que este movimento, o conjunto do que vemos e
compreendemos, é pensamento e sentimento, e aquele pensamento e

28
Morell, p. 97.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 349
sentimento existirão, onde quer que podemos fazer um movimento
semelhante numa substância semelhante? — Em nossa apreensão
humilde a proposição não é tanta falsa, como totalmente sem sentido e
incompreensível.” 29
Se a história repetir a si mesma, então faz filosofia. O que disse a
revista «Edinburgh Review» de Hartley faz quase setenta anos, * di-lo o
Professor Tyndall dos materialistas de nossos dias: «A passagem da
física do cérebro aos correspondentes atos da consciência é impensável.
Concedendo que um pensamento determinado e uma determinada ação
molecular no cérebro ocorrem simultaneamente, não possuímos o órgão
intelectual, nem aparentemente nenhum rudimento de órgão, que nos
capacite a passar mediante um processo de raciocínio, de um fenômeno
ao outro. Aparecem juntos, mas não sabemos por quê. Se nossas mentes
e sentidos fossem tão expandidos, fortalecidos e iluminados que
fôssemos capacitados para ver e sentir as próprias moléculas do cérebro;
se fôssemos capazes de seguir todos os seus movimentos, grupamentos e
descargas elétricas, se as houver; e se estivéssemos intimamente
familiarizados com os correspondentes estados de pensamento e
sentimento, provavelmente seguiríamos estando igualmente longe da
solução do problema. Como se relacionam estes processos físicos com os
atos da consciência? O abismo entre as duas classes de fenômenos
seguiria ainda igualmente infranqueável intelectualmente. Associemos,
por exemplo, a consciência do amor com um movimento em espiral à
direita das moléculas do cérebro, e a consciência do ódio com um
movimento em espiral à esquerda. Saberíamos, então, que quando
amamos o movimento vai numa direção, e que quando odiamos o
movimento vai na outra, mas o «por quê» seguiria sem resposta. Ao
afirmar que o crescimento do corpo é mecânico, e que o pensamento, tal

29
Edinburgh Review, Oct. 1806, p. 157.
*
Refere-se a uma crítica da mencionada revista, aparecida no número da Edinburgh Review de
outubro de 1806, pág. 157, à teoria de Hartley a respeito da consciência como epifenômeno do
cérebro. Lembre-se que esta Teologia Sistemática foi publicada pela primeira vez em 1871. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 350
como nós o exercemos, tem sua correlação nos processos físicos do
cérebro, parece-me que a posição do «Materialista» chega até onde a
posição é sustentável. Creio que o Materialista poderá finalmente manter
esta posição contra todos os ataques; mas não creio, tal como está
atualmente constituída a mente humana, que possa ir para além disto.
Não creio que tenha direito a dizer que seu grupamento molecular e que
seus movimentos moleculares expliquem tudo. Na realidade, não
explicam nada». 30

Priestley (1733-1804).
Priestley deve sua reputação permanente a seus achados
importantes no departamento de ciência física. Ele era, entretanto,
proeminente durante sua vida para a parte que ele tomou em
controvérsias filosóficas e teológicas. Dedicadas à ciência, os sentidos
foram para ele as grandes origens de conhecimento; todos os outros,
exceto a revelação sobrenatural que ele admitiu, ele duvidou. Adotou
com entusiasmo a teoria de Hartley que decompõe pensamento e
sentimento em vibrações do cérebro. Hartley, ele disse, fez mais para a
doutrina da mente que Newton realizou para a teoria do universo
material. Ele não hesitou em declarar-se a si mesmo materialista.
“Priestley,” diz Morell, 31 “descansou a verdade de materialismo em duas
deduções. A primeiras foi, que pensamento e sensação são
essencialmente a mesma coisa — que toda variedade de nossas ideias,
embora possam tornar-se abstratas e refinadas, são, não obstante, não
mais que modificações da faculdade sensorial. . . . . A segunda dedução
foi, que toda sensação, e, consequentemente, todo pensamento, surge dos
afetos de nossa organização material e, portanto, consiste completamente
no movimento das partículas materiais dos quais os nervos e o cérebro
são compostos.” Era um determinista, e em moralidade um utilitário.
30
«Conferencia perante a Associação Britânica», Athenaeum, 26 de Agosto de 1868, Citado em
Hulsean Lectures de Perowne, 1868 - Apêndice, nota A.
31
Página 102.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 351
Crendo, entretanto, em Deus e na revelação divina, admitiu um estado
futuro de existência. Como a Bíblia ensina a doutrina da ressurreição do
corpo, Priestley creu que aquele homem seria restaurado à existência
consciente quando aquele evento sucedesse. Suas obras principais a
respeito deste assunto são: “Examination of Reid, Beattie, and Oswald,”
“Doctrine of Philosophical Necessity Explained,” “Disquisitions relating
to Matter and Spirit,” e “Hartley's Theory of the Human Mind, with
Essays relating to the subject of it.”
Hume é considerado como seu mestre pelos físicos mais adiantados
da escola científica moderna, na medida em que seus princípios e
método gerais de filosofar são pertinentes. Não era nem um Materialista
nem um Idealista, mas bastante Niilista, como seu grande objetivo era
mostrar que nenhuma segurança podia ser alcançada em qualquer
departamento do conhecimento. Ele não declarou nada e negou tudo. Tal
conhecimento como nós vimos vem da sensação, portanto, manteve que
como não temos nenhuma sensação de eficiência, podemos não ter
nenhuma ideia disto, e nenhuma evidência de sua realidade. Não é que
alguém produz um efeito, mas sim simplesmente que uniformemente
precede isto. Consequentemente, qualquer coisa pode ser a causa de
qualquer coisa. Novamente, como não temos nenhuma percepção pelos
sentidos de substância, não pode haver nenhuma assim. Isto se aplica à
mente como também à matéria. Nada existe para nós, senão nossos
pensamentos e sentimentos. Somos “nada além de um pacote ou coleção
de percepções diferentes, que se sucedem uma à outra com uma rapidez
inconcebível, e estão em fluxo e movimento eternos.”

C. O materialismo na França durante o século dezoito

A filosofia das sensações, como se chama, encontrou um terreno


muito mais abonado na França que na Inglaterra. O “Essay” de Locke foi
traduzido para a língua daquele país e foi o tema de comentários e
conferências. Seus princípios principais foram adotados sem as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 352
limitações e qualificações com que ele os apresentou a eles, e conclusões
tiradas deles que Locke teria sido o primeiro a repudiar.
Condillac, um dos primeiros e mais influentes discípulos de Locke,
em sua primeira obra «Essai sur l'Origene des Connaissances
Humaines», diferiu relativamente pouco do filósofo inglês. Mas em seu
«Traité des Sensations», descartou virtualmente a «reflexão» como fonte
de nossas ideias, considerando todos os pensamentos, sentimentos e atos
da vontade como «sensações transformadas». «Enquanto que respondeu
à questão da relação entre a alma e o corpo, supondo sua identidade,
situou-se em terreno teísta ao explicar a origem do mundo. Este terreno
intermediário foi ocupado também, ao menos ostensivamente, por
Diderot e D'Alembert na Encyclopédie francesa, os quais, apesar de sua
teoria das sensações quanto à origem de nosso conhecimento, e de fazer
da felicidade a base da moralidade e o fim da vida, não só mantiveram
princípios teístas, mas também insistiram na necessidade de uma
revelação divina. Entretanto, isto provavelmente foi mais por prudência
que por convicção» 32
Entretanto, estes foram só os primeiros passos. Logo chegou-se ao
extremo do ateísmo materialista de uma maneira aberta. La Mettrie
publicó sua obra L'Histoire Naturelle de l'Ame en 1745, L'Homme
Machine no ano seguinte, e L' Homme Planté en 1749. Helvetius
publicou sua obra De l'Esprit em 1758. Seu livro intitulado De l'Homme
foi publicado depois de sua morte. O clímax chegou com a obra do
Barão d'Holbach em seu Systeme de la Nature, em que se defendiam
abertamente o Materialismo, o fatalismo e o ateísmo. Segundo este
sistema, a matéria e o movimento são eternos; o pensamento é uma
agitação dos nervos; a alma é o resultado de nossa organização corporal;
a vontade a sensação mais poderosa; a base da moralidade uma
consideração para com nossa própria felicidade. Não há liberdade, nem

32
F. Fabri, na Real-Encyclopädíe de Herzog, art. «Materialismus».
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 353
moralidade, nem existência futura, nem Deus. Quando estes princípios
chegaram a penetrar na mente popular, então veio o fim.

D. O positivismo.

Comte, o autor da “Filosofia Positiva,” nasceu em 1798, e morreu


em 1859. A maior parte de sua vida foi passada na pobreza e
negligência. Sua única ocupação foi o ensino. Dez anos foram dedicados
à preparação de um curso de conferências em filosofia que lhe assegurou
riqueza e fama. Ele chamou seu sistema «Filosofia Positiva», porque seu
propósito era «não supor nada fora do conteúdo dos fatos observados».
O princípio fundamental da «Filosofia Positiva» é aquele que se
menciona tão frequentemente, que os sentidos são a única fonte de nosso
conhecimento, e por isso que nada existe senão a matéria. Não há mente
à parte da matéria; não existe a eficiência, nem as causas, sejam
primeiras e finais; não há Deus; não existe futuro de existência para o
homem. Por isso, a teologia e a psicologia são varridos do campo da
ciência. A ciência se ocupa só da observação dos fatos, e de deduzir
deles as leis pelas quais os mesmos são determinados. Entretanto, estas
leis não são forças operando de uma maneira uniforme, mas apenas
declarações da ordem real na sequência de acontecimentos. Esta
sequência não é só uniforme, mas também necessária. Nossa ocupação
consiste em determinar qual é. O único método que se pode empregar
para isso é a observação. O único método pelo qual isto pode ser feito é a
observação. Esta tarefa é muito mais fácil em alguns departamentos que
em outros; para alguns os fatos a ser observados são menos numerosos e
menos complicados. Em matemática e astronomia os fatos são todos de
um tipo; enquanto que em fisiologia e sociologia eles são de tipos muito
diferentes e imensamente mais complicados. A mesma regra, entretanto,
aplica-se a todos os departamentos. Em suma, a sequência de
acontecimentos é uniforme e necessária; e se podemos, mediante uma
suficiente indução dos fatos, determinar qual é a lei da sequência,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 354
poderemos predizer o futuro com a mesma segurança num departamento
como em outro. O astrônomo pode predizer qual será a posição das
estrelas e dos planetas daqui a um século. O positivista poderia predizer
com a mesma certeza como um homem agirá em qualquer circunstância
determinada, e qual será o progresso e o estado da sociedade em tempos
vindouros.
Por isso, segue-se, com base na Filosofia Positiva: (1) Que todo
nosso conhecimento se limita aos fenômenos físicos. (2) Que tudo o que
podemos saber de tais fenômenos é o que são, e qual é sua relação entre
eles. (3) Que estas relações estão incluídas sob os cabeçalhos de
sequência e semelhança. (4) Estas relações constituem as leis da
natureza, e são invariáveis. (5) Como tudo o que existe é material, estas
leis, ou «relações invariáveis de sucessão e semelhança», controlam
todos os fenômenos da mente, como os chamamos, e da vida social e da
história, assim como os da natureza, no sentido comum daquela palavra.
(6) Como tudo está incluído no departamento da física, tudo está
controlado por leis físicas, e não há mais liberdade nas ações humanas
que nos movimentos das estrelas, por isso o segundo pode ser predito
com a mesma certeza que o primeiro.
As citações seguintes do “Philosophie Positive,” “livremente
traduzido e condensado por Harriet Martineau,” 33 incluem todos os
pontos acima mencionados.
“A primeira característica da Filosofia Positiva é que ele considera
todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis. Nossa
ocupação é, — vendo quão vã é qualquer pesquisa na qual são chamadas
causas, sejam primeiras ou finais, — buscar um achado preciso destas
leis, com o fim das reduzir ao menor número possível.”34 “Nosso método
positivo de conectar fenômenos é por uma ou outras de duas relações, —
aquele de similitude ou aquela de sucessão, — o mero fato de tal

33
New York, 1855.
34
Vol. I. p. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 355
semelhança ou sucessão sendo tudo que nós podemos fingir conhecer; e
tudo que nós precisamos conhecer; para esta percepção compreende todo
conhecimento que consiste em elucidar algo por qualquer outra coisa, —
em agora explicar, e agora prevendo certos fenômenos, por meio da
semelhança ou sequência de outros fenômenos.” 35 “Se nós
considerarmos estas funções [da mente] sob seu aspecto estático,— isto
é, se nós consideramos as condições sob as quais eles existem, —
devemos determinar as circunstâncias orgânicas do caso, que a
investigação envolve com anatomia e fisiologia. Se nós olhamos para o
aspecto dinâmico, temos que estudar simplesmente o exercício e
resultados dos poderes intelectuais da raça humana, que é nem mais nem
menos que o objeto geral da “Filosofia Positiva.” Vol. I. p. 11. 36
Comte é obrigado a usar a palavra “poder,” e falar de seu exercício,
embora toda sua filosofia nega a existência de qualquer coisa como
eficiência. As leis que determinam eventos são nada além de fatos de
sequência uniforme. De acordo com a passagem antes citada, um
departamento de psicologia (a estática) pertence à anatomia e à
fisiologia; o outro (o dinâmico) à sequência observada de certos fatos
chamado intelectual. A sequência é invariável. A intervenção da vontade
fica necessariamente excluída, porque a filosofia, ao menos o
Positivismo, não é nada a não ser que assegure a capacidade da previsão.
Mas os atos livres não podem ser previstos pelo homem. Por isso diz
Comte: «O arbitrário nunca pode ser excluído se os fenômenos políticos
se atribuem à vontade, divina ou humana, em lugar de ficar conectados
com leis naturais invariáveis». 37 «Se os acontecimentos sociais ficassem
sempre expostos a ser perturbados pela intervenção acidental do
legislador, humano ou divino, não seria possível nenhuma previsão
científica dos mesmos». 38

35
Philosophie Positive, vol. II. p. 515.
36
Vol. I. p. 11.
37
Philosophie Positive, vol. II, p. 47.
38
Ibid., pág. 73.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 356
Os exercícios intelectuais sendo considerados como uma função do
cérebro, Comte diz: “A teoria positiva das funções intelectuais e afetivas
é, portanto, daí em diante invariavelmente considerada como consistindo
no estudo, tanto racionais como experimentais, dos vários fenômenos de
sensibilidade interna, que são adaptados para os gânglios cerebrais,
separadamente de seus aparelhos externos. É, portanto, simplesmente
uma prolongação da fisiologia animal, corretamente chamados, quando é
estendido para incluir os fundamentais e últimos atributos.” 39
Comte, que era um ardente frenólogo, baseou um dos argumentos
de seu sistema na organização do cérebro; mas no que dependia
principalmente era na lei do desenvolvimento humano. Não admitia
nenhuma diferença essencial entre o homem e os animais irracionais. A
superioridade do homem reside só no grau de sua inteligência, que se
deve à sua melhor organização física. Segundo Comte, toda a raça
humana, e toda pessoa individual, passa através de três etapas distintas,
as quais denomina a teológica, a metafísica, e a positiva. Durante a
primeira etapa, todos os acontecimentos são atribuídos a causas
sobrenaturais. Na primeira parte desta etapa de seu progresso, os homens
eram fetichistas; logo gradualmente se tornaram politeístas, e
monoteístas. Isto tenta demonstrá-lo historicamente com relação aos
gregos, aos romanos e aos moradores da Europa Ocidental. Assim como
os homens saíram do fetichismo, também se desprenderam das formas de
crença politeísta e monoteísta. Isto é, deixaram de atribuir os fenômenos
à atividade de seres sobrenaturais.
Durante a etapa metafísica, os fenômenos são atribuídos a causas
invisíveis, a forças ou poderes ocultos, isto é, a algo que os sentidos não
podem detectar. Isto também se desvaneceu, e os homens chegaram a
reconhecer a grande realidade de que não há agentes espirituais no
universo, nem causas eficientes, nada senão acontecimentos que devem
ser ordenados de acordo com as leis de sequência e de semelhança. A

39
See Prof. Porter’s Human Intellect, p. 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 357
ordem dos acontecimentos é invariável e necessária. O que foi no
passado, será no futuro. Assim como esta é a lei do desenvolvimento da
raça no coletivo, assim o é do homem individual. Cada um, em seu
progresso da infância à idade adulta, passa através destas várias etapas, a
teológica, a metafísica e a positiva. Primeiro cremos em agentes
sobrenaturais (bruxas, fantasmas, almas, anjos, etc.); logo, em causas
ocultas; e logo só em fatos discernidos pelos sentidos. A história da raça
e a experiência do homem individual são assim apresentados como a
ampla e segura base da Filosofia Positiva.

Observações.
1. Considerando que os proponentes desta filosofia são um mero
punhado; considerando que novecentos e noventa e nove milhões do um
bilhão de nossa raça seguem crendo em Deus, é uma hipótese, antes,
violenta a de que a humanidade tenha chegado à etapa do Positivismo.
Pode-se admitir sem discussão que o progresso da ciência e do
cristianismo eliminaram a alquimia, a astrologia, a feitiçaria e a
necromancia de seções ilustradas de nossa raça, mas dificilmente se tiver
tido um efeito detectável em eliminar a crença na mente como distinta da
matéria, ou em causas eficientes, ou em Deus. Admitindo, por isso, que o
princípio do argumento seja correto, a conclusão a que se chega fica
refutada pelos fatos.
2. Entretanto, o mesmo princípio é uma hipótese carente de base.
Não houve um tal desenvolvimento da raça, nem há um tal
desenvolvimento do homem individual como supõe o argumento. E é
ainda muito menos certo o que mantém Comte, que estes vários métodos
de tratar com os fenômenos são antagonistas e mutuamente exclusivos;
que se cremos em agentes espirituais, não podemos crer em causas
invisíveis, metafísicas; e que se cremos no último não podemos crer no
primeiro. O fato é que a maior parte da humanidade, educada ou não
educada, crê em ambas as coisas. Creem em Deus e na mente, assim
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 358
como em causas invisíveis, como a eletricidade, o magnetismo e outras
forças físicas, que, no sentido que lhe dá Comte no fim, são metafísicas.
Com relação a esta pretendida lei de progresso, o Professor Huxley,
que está tão completamente emancipado das ligaduras da autoridade
como o pode estar qualquer cientista vivo hoje, diz, em primeiro lugar,
que Comte se contradiz quanto a este princípio fundamental. Como
prova cita uma longa passagem da Philosophie Positive, em que Comte
ensina: «(a) De fato, o intelecto humano não esteve invariavelmente
submetido à lei dos três estados, e, por isso, a necessidade da lei não
pode ser demonstrável a priori. (b) Muito de nosso conhecimento de
todos os tipos não passou pelos três estados, e, mais particularmente,
como Comte toma cuidado em observar, não através do primeiro. (c) O
estado positivo coexistiu mais ou menos com o teológico desde o
princípio da consciência humana. E, para completar a série de
contradições, a asserção de que os três estados são "essencialmente
diferentes e inclusive opostos entre si de forma radical" é contradita na
mesma página, um pouco mais abaixo, pela declaração de que "o estado
metafísico não é, no fundo, mais que uma simples modificação geral do
primeiro"». «Os homens de ciência», acrescenta ele, «não têm o hábito
de prestar muita atenção a "leis" enunciadas desta maneira». 40
Depois de mostrar que o homem individual não passa através destes
vários estados, o Professor Huxley prossegue: «O que é certo do
indivíduo é certo também, mutatis mutandis, do desenvolvimento
intelectual da espécie. É absurdo dizer dos homens num estado de
selvageria primitiva que todos os seus conceitos estão num estado
teológico. As nove décimas partes deles são eminentemente realistas, e
tão “positivos” quanto a ignorância e a estreiteza possa levá-los a ser». 41
Além disso, não é verdade que a raça de homens existentes agora na
terra fossem fetichistas em seu estado primitivo, ou que gradualmente
40
Huxley, Lay Sermons, Addresses, etc., Londres, 1870, N.º VIII. «The Scientific Aspects of
Positivism», p. 174, 175.
41
Ibid., pág. 178.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 359
subissem ao politeísmo e ao monoteísmo. O certo é o contrário. Não só a
revelação, mas também toda a história e a tradição se unem em mostrar
que o estado primitivo de nossa raça foi seu estado superior, ao menos
pelo que respeita à religião. O monoteísmo foi a forma mais antiga da
religião entre os homens. Isto foi sucedido pelo culto à natureza e o
panteísmo, e disto ao politeísmo. É um fato histórico que não se chegou
ao monoteísmo por meio de um processo de desenvolvimento. O
monoteísmo foi o primeiro; pereceu gradualmente dentre os homens,
exceto em que foi milagrosamente preservado entre os hebreus, e deles
se difundiu através, ou, antes, na forma, do cristianismo. Não se estende
a nenhum lugar fora da influência, direta ou indireta, da revelação
sobrenatural contida na Bíblia. Este é um fato que os homens científicos
não deveriam passar por alto em suas deduções.
3. Comte fez-se culpado da injustiça de confinar seu estudo a uma
pequena porção das nações da terra, e ademais àquela porção levada sob
a influência do cristianismo. Se a lei que ele queria estabelecer é
universal e necessária, tem que ter agido desde o começo na Índia e na
China assim como na Europa. Os milhões destas regiões não chegaram
ao estado monoteísta, muito menos ao metafísico, e ainda menos ao
estado positivo de desenvolvimento. A Índia em especial dá uma
destacável refutação a esta teoria. Os hindus são uma raça extremamente
intelectual. Sua linguagem e literatura podem comparar-se com os da
Grécia e Roma. Seus filósofos, quase três mil anos atrás, anteciparam os
mais altos resultados dos Schellings e Hegels de nossos dias. Mas de
todas as nações da terra os hindus são os menos materialistas ou
positivos quanto à sua visão da natureza. Para eles, só o sobrenatural ou
espiritual é real. Por isso, os hindus não podem ser sujeitos a esta lei
universal e necessária de desenvolvimento que se supõe como base da
Filosofia Positiva.
4. Naturalmente, é presunçoso e vão tentar por meio de raciocínios
refutar os sentidos dos homens, ou convencê-los de que o que sua
própria natureza lhes ensina que é certo, seja totalmente falso e indigno
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 360
de confiança. Entretanto, Comte não apenas tenta isto, mas sim todo o
seu sistema está baseado na hipótese de que nossa natureza é um engano
e uma mentira. Isto é, baseia-se na hipótese de que as verdades intuitivas
são falsas: É intuitivamente verdadeiro que somos agentes livres. Comte
nega isso. É intuitivamente verdadeiro que há uma diferença específica e
essencial entre o bem e o mal. Isto é negado. É intuitivamente verdadeiro
que todo efeito tem uma causa eficiente. Isto também é negado. É
intuitivamente verdadeiro que há um Deus perante quem os homens são
responsáveis por seu caráter e conduta. Isto também é negado. Se todo o
intelecto e todo o conhecimento jamais possuído por homens e anjos se
concentrou na pessoa de Comte, entretanto teria seguido sendo uma
insensatez da sua parte fundar um sistema implicando a negação de
verdades como estas. O cristão não tem medo de acrescentar algo mais
aqui: É intuitivamente certo, para todos os que têm olhos para ver, que
Jesus Cristo é o Filho de Deus, e que Seu evangelho é sabedoria de Deus
e poder de Deus para salvação, e que é absolutamente impossível que
qualquer teoria oposta a estas intuições divinas seja verdade.
Outra ilustração do caráter presunçoso desta filosofia encontra-se
em seus ensinos a respeito da Sociologia. Cientistas de todos os países
estiveram durante longo tempo laboriosamente dedicados a fazer
observações meteorológicas, e no entanto é tão grande o número e a
complexidade das causas que determinam o estado do tempo, que
ninguém é capaz de predizer como o vento soprará daqui a quarenta e
oito horas, e muito menos daqui a um ano. As causas que determinam a
atividade humana no indivíduo e na sociedade são muito mais complexas
que as que determinam o estado do clima. Entretanto, Comte assume ter
reduzido a Sociologia a uma ciência, com uma certeza matemática.
«Aventurar-me-ei a dizer», é sua confiante declaração, «que a ciência da
Sociologia, embora só estabelecida por este livro, já avança com a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 361
ciência matemática, não em precisão e fecundidade, mas sim em
positividade e racionalidade». 42

Aplicações práticas do Positivismo.


As aplicações práticas desta filosofia são muito sérias. O
positivismo pretende o direito de um controle absoluto e universal sobre
todos os assuntos humanos: sobre a educação, a política, a organização
social e a religião. Assim como o progresso da ciência eliminou toda
liberdade de opinião ou ação nos departamentos de matemática e
astronomia, assim tem que eliminá-la de qualquer outro departamento de
pensamento e atividade humana. Falando da liberdade de consciência,
Comte diz: «Por negativo que agora consideremos este dogma,
significando a libertação da antiga autoridade, enquanto esperamos a
necessidade da ciência positiva, o caráter absoluto que se supõe residente
nela deu energia para cumprir seu destino revolucionário. ... Este dogma
nunca pode ser um princípio orgânico; e, além disso, constitui um
obstáculo à reorganização, agora que sua atividade já não está absorvida
pela demolição da antiga ordem política. ... Acaso se pode supor»,
pergunta ele, «que os mais importantes e delicados conceitos, aqueles
que por sua complexidade são acessíveis só a um pequeno número de
entendimentos extremamente preparados, devem ser abandonados às
decisões arbitrárias e variáveis das mentes menos competentes?» 43 Este
argumento é concludente. Se a vida social, as ações humanas, estão
determinadas no mesmo grau e certeza pelas leis físicas como as
mudanças materiais, os que tenham elucidado estas mudanças têm
direito de controlar todos os outros homens. Assim como seria ridículo
permitir a homens que construíssem casas ou que pilotassem nossos
navios sem obedecer às leis da natureza, seria também absurdo, sobre a
base desta hipótese, permitir aos que ignoram as leis sociais que

42
Philosophie Positive, vol. II, pág. 516.
43
Philosophie Positive, vol. II, págs. 14, 15.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 362
governem a sociedade. Comte confessa sua admiração não pela doutrina
papal, mas sim pela organização papal, que na nova ordem de coisas se
propõe continuar. «A infalibilidade papal», diz ele, 44 «foi um grande
avanço intelectual e social». O Professor Huxley caracteriza
expressivamente o positivismo, a este respeito, como «Catolicismo sem
cristianismo».
A religião não fica excetuada deste submissão absoluta. A Filosofia
Positiva, ao negar a existência da alma e do ser de Deus, não pareceria
deixar lugar à religião. Comte pôs na capa de seu Discours sur
l'Ensamble du Positivisme o anúncio de que seu propósito era
reorganizar a sociedade sans Dieu ni Roi [sem Deus nem Rei]. Não
obstante, como os homens devem ter, como sempre a tiveram, alguma
religião, uma filosofia que aspire a um domínio absoluto sobre todos os
departamentos da vida humana, tem que fazer alguma provisão para esta
necessidade universal de nossa natureza, embora seja imaginária. Comte,
portanto, publicou um catecismo de crenças religiosas e um ritual de
culto religioso. O objeto do culto era o agregado da humanidade
constituído pela absorção das sucessivas gerações humanas. Todo grande
homem tem duas formas de existência: uma consciente antes da morte; a
outra depois da morte, inconsciente, nos corações e intelectos de outros
homens. O deus da Filosofia Positiva, portanto, é o agregado das
memórias de grandes homens. Diz Huxley: «É indubitável que "Dieu"
desapareceu, mas o "Nouveau Grande-Etre Suprême", um gigantesco
fetiche, saiu recém-feito de mãos do próprio Comte, reinando em seu
lugar. Tampouco se ouve já mais de "Roi", mas em seu lugar encontrei
uma organização social minuciosamente estabelecida, que, se jamais
ficasse em prática, exerceria uma autoridade despótica como a que
jamais conheceu sultão algum, nem presbitério Puritano em seus
melhores dias pôde esperar ultrapassar. Enquanto que, pelo que respeita
ao "culte systématique de 1'humanité", eu, em minha cegueira, não podia

44
Ibid., vol. II, pág. 268.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 363
distingui-lo do mais crasso Papismo, com o Sr. Comte na cadeira de São
Pedro, e com os nomes da maior parte dos santos mudados». 45
Entretanto, deve haver duas formas de adoração: uma particular; a
outra, pública. O objeto especial da primeira é a mulher, porquanto ela é
a mais perfeita representante da humanidade. Como «Mãe, estimula
veneração; como esposa, afeto; e como filha, bondade». E a mulher deve
ser adorada para estimular estes sentimentos. A humanidade, ou a
memória dos grandes homens, é o objeto da adoração pública, a respeito
da qual se dão minuciosos detalhes. A nova religião deve ter dez
sacramentos, uma arquitetura própria e uma extensa hierarquia, sob o
controle de um Sumo sacerdote absoluto. Este é o sistema que Comte
chegou a crer que substituiria o evangelho de Jesus Cristo. E já quase se
desvaneceu. Entre os cientistas avançados da Inglaterra dificilmente se
encontra alguém tão mesquinho que lhe renda sua homenagem. 46

45
Lay Sermons, etc., pág. 164.
46
Diz o Professor Huxley: «Durante estes últimos dezesseis anos, foi para mim um periódico motivo
de irritação encontrar o Sr. Comte apresentado como um representante do pensamento científico, e
observar que os escritores cuja filosofia teve sua legítima origem em Hume, ou neles mesmos, eram
etiquetados como "Comtistas" ou "Positivistas" por escritores públicos, inclusive apesar de veementes
protesta em contra. Tem custado muito ao Sr. Mill [John Stuart Mill] desprender-se desta etiqueta; e
contemplo o Sr. Spencer como se contempla a uma boa pessoa batalhando contra a adversidade, ainda
esforçando-se em evitar sua aderência, e disposto a perder a pele e tudo antes que deixar que se lhe
pegue. E meu turno poderia ser logo; é por isso que quando um eminente prelado, o outro dia, deu sua
sanção e autoridade a atual confusão, que aproveitei a oportunidade de reivindicar de passagem a
propriedade de Hume da chamada "Nova Filosofia", e ao mesmo tempo de repudiar o Comtismo pelo
que aqui respeita», Lay Sermons, etc., pág. 165. O equívoco de que se queixa é muito natural, porque
Comte e Hume têm muito em comum aqui: “Ungefähr sagt das der Pfarrer auch Nur mit ein bischen
andern Worten.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 364
E. O materialismo científico

Princípios condutores
Os princípios principais da forma científica moderna do
materialismo são abraçados, ao menos por alguns, que não se
consideram a si mesmos materialistas. Eles, entretanto, adotam a
linguagem do sistema, e declaram princípios que, em seus significados
geralmente aceitos, constituem o que na história de pensamento humano
é conhecido como materialismo.
Os mais importantes destes princípios são os seguintes, muitos dos
quais, entretanto, não são exclusivos deste sistema.
1. A matéria e a força são inseparáveis. Onde haja matéria há força,
e onde há força há matéria. Esta proposição, ao menos de início, deve ser
entendida só como força física.
2. Todas as forças físicas, como a luz, o calor, as afinidades
químicas, a eletricidade, o magnetismo, etc., etc., são conversíveis. A luz
pode converter-se em calor, e o calor em luz. Ambas as formas podem
converter-se em eletricidade, e a eletricidade em ambas; e assim por toda
a gama. Isto é o que se chama correlação de forças. O Conde Rumford,
numa comunicação a Royal Society de Londres, em 1798, satisfeito de
que o calor gerado ao furar um canhão não podia ser explicado de outro
modo, expôs a doutrina de que o calor é uma forma especial de
movimento. Desde então esta doutrina se generalizou, e é hoje em dia a
opinião usualmente recebida que todas as forças físicas podem resolver
em movimento. Mas esta generalização não é aceita por todos os
cientistas. Encontram impossível conceber como a gravidade, que age
instantaneamente à distância, pode ser movimento. Trata-se,
simplesmente, de uma força que tende a produzir movimento.
3. Mas este movimento não é o de um fluido ou éter, ou qualquer
substância imponderável peculiar a cada classe peculiar de força. Assim
como o som consiste em, ou antes, é produzido por, as vibrações da
atmosfera, foi natural supor que a luz era a ondulação de um meio, o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 365
calor de outro, a eletricidade de outro. Esta teoria foi descartada. O
movimento se atribui ao movimento nas moléculas da matéria afetada.
Quando se esquenta o ferro, não se lhe acrescenta nada. Não há uma
substância imponderável chamada caloria. Tudo o que ocorre é que as
moléculas do ferro são agitadas de uma maneira determinada. Se o ferro
é magnetizado, trata-se apenas de uma classe diferente de movimento
que se comunica a seus átomos constitutivos. E assim com todas as
outras classes de força. Entretanto, quando a luz ou o calor são irradiados
de objetos distantes, o movimento que constitui estas forças deve ser
irradiado através de algum meio. Porque onde há movimento deve haver
algo que se mova. E, por isso, se o calor é movimento nas moléculas do
sol, o calor não nos poderia chegar, a não ser que houvesse algum meio
material entre nós e o sol.
4. As forças físicas não só são conversíveis a qualquer das outras,
mas também são quantitativamente equivalentes; isto é, uma quantidade
determinada de calor produzirá uma quantidade equivalente de luz ou de
eletricidade, ou de qualquer outra força que, se pudesse ser utilizada,
reproduziria precisamente aquela quantidade de calor. Uma bala de
canhão, quando atinge o alvo, produz suficiente calor para produzir a
velocidade que teve no momento de contato. Uma certa quantidade de
luz e calor derivados do sol é gasta na formação de uma certa quantidade
de madeira ou carvão; aquela quantidade de madeira ou carvão
subministrarão justamente a quantidade de luz e calor que foi gasta em
sua produção. O Conde Rumford fez uma experiência para determinar a
relação quantitativa entre o movimento e o calor, e chegou de maneira
muito aproximada da mesma conclusão a que tinha chegado o doutor
Joule de Manchester, Inglaterra, que descobriu que uma libra de matéria,
caindo setecentos e setenta e dois pés, produzirá suficiente calor para
elevar a temperatura de uma libra de água em um grau Fahrenheit. Esta é
agora a unidade aceita de força.
5. A força é indestrutível. Nunca aumenta nem diminui. O que se
perde de uma forma é retomado em outra. Assim, as forças são agentes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 366
indestrutíveis, conversíveis e imponderáveis. Esta correlação e
conservação de forças é declarada pelo doutor Carpenter, o eminente
fisiologista, como «estando agora entre as generalizações melhor
estabelecidas da ciência» e o grande triunfo científico de nossa era,
«graças», diz ele, «aos trabalhos de Faraday, Grave, Joule, Thompson,
por não dizer nada de Helmholtz e de outros distinguidos sábios
continentais». 47

Correlação das Forças Físicas e Vitais.


Tanto quanto esta doutrina da correlação de forças é limitada ao
departamento de física, é uma pergunta puramente científica, em que o
teólogo não tem nenhum interesse especial. Infelizmente não foi assim
limitado. O Dr. Carpenter, no periódico antes citado, diz, “Todo
fisiologista atento tem que desejar ver o mesmo curso de investigação
completamente adotado com respeito aos fenômenos de corpos vivos.” 48
O primeiro passo naquela direção, ele acrescenta, foi tomado pelo Dr.
Mayer da Alemanha, em seu tratado notável em “Movimento Orgânico
em Sua relação para Modulações Materiais.”
Parece haver três tipos de opinião entre os cientistas da escola
«avançada» quanto à relação entre as forças vitais e as físicas. Primeiro,
há algumas, das quais o doutor Carpenter é um, que mantêm que as
forças mediante as quais se levam a cabo processos vitais são a luz, o
calor, a eletricidade, etc., mas que estas são dirigidas ou controladas por
uma força de uma classe diferente, chamada «uma agência diretora».

Teoria do Dr. Carpenter.


O Dr. Carpenter nega que existe qualquer coisa como vitalidade, ou
força vital, ou nisus formativus, ou Bildungstrieb. Dois germes podem
ser selecionados entre os quais nem o microscópio nem a análise química
47
Veja-se Correlation and Conservation of Forces. Uma coleção de artigos por distinguidos
cientistas. Por Edward I. Youmans, M.D. New York, 1865, pg. 405.
48
Ibid. p. 405.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 367
pode descobrir a diferença mais leve; mas a gente se desenvolve num
peixe, outro num pássaro. Por que é isto? O Dr. Carpenter responde por
causa de um “agente diretor” que reside no germe. Sua linguagem é: “A
opinião prevalecente tem até ultimamente sido, que este poder é inerente
no germe; que se supõe derivar de seu pai não meramente sua substância
material, mas sim um nisus formativus, Bildungstrieb, ou força de
germe, em virtude da qual constrói propriamente na semelhança de seu
pai, e mantém propriamente aquela semelhança até que a força seja
esvaziada, e ao mesmo tempo dando uma fração dele para cada de sua
descendência.” 49 Esta opinião ele rejeita; mas acrescenta, “Quando
olhamos cuidadosamente a questão, achamos que o que o germe
realmente provê, não é a força, mas sim a agência diretiva; talvez
assemelhando o controle exercido pelo construtor superintendente, que é
acusado de descobrir o projeto do arquiteto, que preenche com trabalho
sob sua direção na construção do tecido.” 50 A conclusão a que ele chega
é “que a correlação entre calor e a força organizada das plantas não é
menos íntima que existe entre calor e movimento. O atributo especial do
germe vegetal é seu poder de utilizar, depois de seu próprio modelo
peculiar, o poder que recebe, e de aplicar um poder construtivo para
construir seu tecido segundo seu tipo característico.” 51
Nesta doutrina do Carpenter pode-se observar, (1.) Que parece ser
incoerente. Nega para o germe um nisas formativus, ou, Bildungstrieb, e
atributos para ele “um poder construtivo.” Qual é a diferença? A frase
inglesa é uma tradução literal da palavra alemã. (2.) Diz aquele “calor e a
força organizada das plantas” são correlatos, isto é, são conversíveis nos
outros e são quantitativamente equivalentes; e ainda a relação entre eles
é análoga àquelas entre o construtor superintendente e a força dos
trabalhadores. De acordo com isto, a força física do auxiliar é
conversível no intelecto do construtor e é seu equivalente quantitativo.
49
See Correlation and Conservation of Forces, p. 411.
50
Ibid. p 412.
51
Ibid. p. 119. Also, New Quarterly Journal of Science for 1864.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 368
Não vemos como esta contradição deve ser evitada, a menos que ele use
as frases “força construtiva,” “força organizadora,” às vezes para
“agência diretora” no germe, e às vezes, as forças físicas que aquela
agência controla. Mas se ele distingue entre “agência diretora” e “força
organizadora,” então não há nenhuma correlação entre a força física e “a
atividade vital do germe.”
3. De acordo não apenas com a opinião comum, mas com a mais
recente opinião de fisiologistas, o germe provê algo mais que “uma
agência diretora” (que deve propriamente ser uma força). Ele não apenas
dirige, mas também efetua, ou produz mudanças. É uma força de
operação, não agindo por, mas contra as forças físicas ou parentescos
químicos; contrariando-os contanto que continue. Assim que o germe ou
planta ou tecido morre, as forças físicas obtêm ascendência e a
desintegração sucede. Isto o próprio Dr. Carpenter admite. A
característica mais marcante, ele diz, que distingue “a força vital de
qualquer classe de atividade física,” é, “o fato que um germe dotado com
vida, desenvolve propriamente num organismo de um tipo assemelhando
àquele de seu pai; que este organismo é o assunto de mudanças
incessantes, que tudo tende, em primeiro lugar, para a evolução de sua
forma típica; e subsequentemente para sua manutenção naquela forma,
apesar do antagonismo de agências químicas e físicas, que estão
tendendo continuamente a produzir sua desintegração; mas isto, como
seu prazo de existência é prolongado, sua energia comedida recusa a
tornar-se cada vez menos capaz de resistir estas forças desintegradoras,
para que finalmente sucumba, deixando o organismo para ser resolvido
por sua agência nos componentes de que seus materiais estavam
originalmente extraídos.” 52 Esta não significa que agências químicas não
têm nenhuma parte no crescimento e desenvolvimento de plantas e
animais, mas ele certamente significa que a força ou vida vitais é uma
agência ou energia diferente de qualquer tipo de força física. A força

52
Youmans, p. 407.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 369
vitalícia e física, portanto, não são idênticas. Elas não são correlatas. A
anterior não é uma mera forma da posterior.
Um dos mais eminentes fisiologistas vivos é o Dr. João Marshall, e
ele, embora longe de pertencer à escola velha, claramente toma a postura
que existe uma força vital que não pode ser resolvida em qualquer
operação de forças físicas no mundo externo, inorgânico. Ele diz: 53
“Todos os processos estritamente físicos dentro do corpo, se químicos,
mecânicos, térmicos, elétricos, ou fóticos, são apresentados por
modificações da força comum que produz fenômenos semelhantes no
mundo inorgânico ao redor de nós. Lá existe, entretanto, no animal vivo,
como no organismo vegetal vivo, um poder especial formativo ou
organizado, evoluindo o animal ou planta perfeita do ovo primitivo ou
óvulo, desenvolvendo seus vários tecidos e órgãos, e conservando-os do
começo até o término de sua existência individual. A influência desta
força, além disso, estende-se do pai até o filho, geração após geração.”
Esta é a doutrina usualmente recebida, que os fenômenos físicos devem
referir-se a forças físicas; fenômenos vitais à força vital; e fenômenos
mentais à mente. A nova doutrina, entretanto, é que todos os fenômenos
devem relacionar-se a forças físicas, nenhuma outra força sendo nem
conhecida ou conhecível.

As opiniões mais avançadas.


O segundo ponto de vista adaptado em referência à relação da força
física com a vital é que se há alguma diferença, não se pode conhecer.
As forças físicas são conhecidas. Podem ser medidas. Não só se podem
converter umas em outras, mas também que se pode demonstrar que são
quantitativamente equivalentes: Se se pressupuser qualquer outra classe
de força para dar conta dos fenômenos vitais, esta hipótese é gratuita. É
dar por sentado que existe algo do que nada sabemos nem nada podemos
saber. Por isso, encontra-se fora do domínio da ciência e não é

53
Outlines of Physiology, Smith’s Philadelphia edition, 1868, p. 932.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 370
importante. Até o Dr. Carpenter usa uma linguagem como esta: “Outra
classe de arrazoadores cortou o laço que não puderam desatar, atribuindo
todas as ações de corpos vivos que a física e a química não podem
calcular, a um ‘princípio vital hipotético;’ uma agência obscura que faz
tudo à sua própria maneira, mas recusa ser feito o sujeito de exame
científico; como o ‘od-force,’ ou o ‘poder espiritual’ para que os amantes
do maravilhoso são tão afeiçoados a atribuir os movimentos misteriosos
de girar e balançar tábuas.” 54 “Se um homem me perguntar,” diz o Prof.
Huxley, “o que é a política dos habitantes da lua, e eu respondo que eu
não sei; que nem eu, nem ninguém mais, tem qualquer meio de
conhecer; e isto, sob estas circunstâncias, recuso aborrecer-me a mim
mesmo sobre o assunto, eu não penso que ele tem qualquer direito de me
chamar um cético.” 55 É assim que ele desterra a vitalidade da esfera da
ciência, porque tudo, exceto a matéria e suas funções, pertence à região
do desconhecido e do incompreensível. O Prof. Tyndall e Herbert
Spencer tomam, às vezes, a mesma postura.
Mas, embora tais escritores como o Dr. Carpenter, em contradição
aparente com suas próprias confissões, reconhece a existência da
“agência diretora” no germe vivo, a maioria dos escritores desta escola
recusa reconhecer qualquer agência ou força como uma verdade
científica. A única diferença entre a segunda e a terceira postura a
respeito deste tema geral é que, segundo uma, considera-se que a
hipótese da vital como distinto do físico é algo gratuito e desnecessário;
segundo a outro, tal hipótese se declara antifilosófica, e deve ser
totalmente descartada. O mesmo autor adapta às vezes uma atitude, e às
vezes a outra.

54
Youmans, p. 402.
55
“Physical Basis of Life” em seus Lay Sermons, p. 158.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 371
O argumento para a correlação das Forças Físicas e Vitais.
Assim o Professor Huxley, que embora há alguns anos era um firme
proponente da força vital como distinta da força física, em seu discurso a
respeito «da Base Física da Vida» adapta o terreno oposto. O argumento
é como segue: os elementos proporcionados pelo reino mineral são
tomados pela planta, que sob a influência da luz e do calor os transforma
em matéria organizada. Os produtos da vegetação, amidos, açúcar,
fibrina, etc., são puramente materiais. Isto é certo inclusive do
protoplasma, ou matéria viva, ou a base física da vida, como é chamada,
que é elaborado pela planta a partir dos materiais carentes de vida
providos pelo solo e pela atmosfera. Há, na verdade, uma grande
diferença entre os produtos da vegetação e os elementos inertes com base
nos quais são formados. Mas também há entre os elementos da água e a
própria água. Se se descarregar uma faísca elétrica dentro de um volume
de oxigênio e hidrogênio, transforma-se em água, que pesa precisamente
tanto como o volume dos dois gases dos quais está composta. É oxigênio
e hidrogênio combinados, e nada mais. Mas as propriedades da água são
totalmente diferentes das do oxigênio e do hidrogênio. Da mesma
maneira, há uma enorme referência entre as propriedades do ácido
carbônico, da água e da amônia, dos quais se compõe a planta, e as da
própria planta viva. Mas assim como seria antifilosófico supor a
existência de alguma coisa desconhecida chamado aquosidade para dar
conta da diferença entre a água e seus elementos, não é menos
antifilosófico pressupor a existência de alguma coisa desconhecida
chamada vitalidade para explicar a diferença entre a matéria viva e os
materiais inertes dos quais se compõe.

Vida animal
Da mesma maneira, todos os fenômenos da vida animal são
atribuídos às forças físicas inseparáveis da matéria que compõe a
estrutura animal. É verdade que as funções da matéria nos tecidos
animais são mais elevadas que nos da planta. Mas os proponentes da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 372
teoria sob consideração tratam de reduzir ao mínimo a diferença entre a
vida animal e a vegetal. É só a superfície superior da folha a que é
suscetível dos peculiares efeitos da luz. E também é só o nervo óptico o
afetado de uma maneira necessária para a visão. A planta chamada
sensitiva se contrai quando é tocada; e o mesmo sucede com o músculo
animal quando se lhe aplica o apropriado estímulo, nervoso ou elétrico.
Em suma, assim como todas as operações da vida vegetal devem-se a
forças físicas, da mesma maneira todos os fenômenos da vida animal
devem-se às mesmas causas.
Neste assunto o Prof. Huxley diz: “A matéria da vida é composta de
matéria comum, diferindo dela só na maneira em que seus átomos são
acrescentados. É construída de matéria comum, e novamente volta para a
matéria comum quando seu trabalho é feito.” 56 Por protoplasma, a
matéria da vida, ele às vezes significa matéria que exibe os fenômenos
da vida; e às vezes, a matéria que tendo sido elaborada pela planta ou
animal, é capaz de suportar a vida. Consequentemente, ele chama de
protoplasma de carne de carneiro cozido.
A única diferença entre plantas de matéria inorgânica, inanimada, e
viva ou animais, está na maneira em que seus átomos são acrescentados.
“Carvão, hidrogênio, oxigênio, e nitrogênio são todos corpos
inanimados. Destes, o carvão e o oxigênio se unem, em certas
proporções e sob certas condições, para produzir ácido carbônico; o
hidrogênio e o oxigênio produzem água; o nitrogênio e o hidrogênio
produzem amônia. Estas novas combinações, como os corpos
elementares de que eles são compostos, são inanimados. Mas quando são
trazidos juntos, sob certas condições eles produzem o corpo ainda mais
complexo, o protoplasma, e este protoplasma exibe os fenômenos da
vida. Eu não vejo nenhuma quebra nesta série de passos na complicação
molecular, e eu sou incapaz de entender por que a linguagem que é
aplicável a qualquer termo da série não pode ser aplicado a qualquer dos

56
Lay Sermons, p. 144.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 373
outros. . . . . Quando o hidrogênio e o oxigênio são mesclados numa certa
proporção, e uma faísca elétrica é passada por eles, desaparecem, e uma
quantidade da água, igual em peso à soma de seus pesos, aparece em seu
lugar. Não há a mais leve paridade entre os poderes da matéria passivos
e ativos da água e aqueles do oxigênio e hidrogênio que a originaram.” 57
“Que justificação existe, então, para a hipótese que a existência na
matéria viva de algo que não tem nenhum representante, ou correlato, na
matéria não viva que a originou? Que melhor status filosófico tem
‘vitalidade’ que ‘aquosidade’? E por que devia ‘vitalidade’ aguardar um
destino melhor que o outro ‘ad’ que desapareceu desde que Martinus
Scriblerus respondeu pela operação da carne por sua qualidade ‘carne
asada,’ e desprezou o materialismo daqueles que explicaram o voltear do
espeto por um certo mecanismo operado pelo carregamento da chaminé?
. . . . Se as propriedades da água podem ser corretamente ditas para
resultar da natureza e disposição de seus moléculas de componente,
posso não declarar nenhum solo inteligível para recusar dizer que as
propriedades do protoplasma resultam da natureza e disposição de suas
moléculas.” 58
Assim, a doutrina é que o ácido carbônico, a água e a amônia,
corpos inertes, sob certas condições, transformam-se em matéria viva,
não em virtude de nenhuma nova força ou princípio que lhes seja
comunicado, mas só em virtude de uma disposição diferente de suas
moléculas. Todas as plantas e animais estão compostos desta matéria
viva, e é às propriedades ou forças físicas inerentes na matéria da que
estão compostos que se devem atribuir todos os fenômenos da vida
vegetal e animal. «O protoplasma», diz o Professor Huxley, «é a argila
do oleiro, a qual, por muito cozida e pintada que seja, permanece sendo
argila, separada por artifício e não por natureza, do mais comum tijolo
ou barro secado pelo sol». 59 Assim como o tijolo, não importa qual seja
57
Ibid. p. 149.
58
Lay Sermons, p. 151.
59
Ibid. p. 142.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 374
sua forma ou cor, não pode ter propriedades que não sejam inerentes na
argila, da mesma maneira os organismos vegetais ou animais não podem
ter propriedades que não pertençam ao protoplasma, que, em última
análise, não é nada mais que ácido carbônico, água e amônia.
O Prof. Huxley não é só um naturalista distinto, mas sim um
conferencista e pregador do “Lay Sermons,” e deste modo se tornou um
homem representativo entre os advogados desta nova forma de
materialismo. Ele está, entretanto, muito longe de estar sozinho. “Alguns
dos físicos vivos mais distintos, químicos, e naturalistas, diz o Dr. Beale,
“têm aceito esta teoria física da vida. Ensinaram que a vida não é mais
que um modo de força comum, e que a coisa viva difere da coisa não
viva, não em qualidade, ou essência, ou tipo, mas sim meramente em
grau.” 60 “Tão extenso,” diz o mesmo escritor, “como os advogados da
doutrina física da vida disputaram entre si mesmos para ridicularizar a
‘vitalidade’ como uma ficção e um mito, porque não podia ser feito
evidente aos sentidos, medidos ou pesados, ou cientificamente provados
em sua existência, sua posição não foi facilmente atacada; mas agora
quando eles afirmam dogmaticamente que a força vital é só uma forma
ou modo de movimento comum, eles estão destinados a mostrar que a
afirmação se apoia em evidência, ou ele será considerado pelos homens
pensativos como um de um grande número de hipóteses fantásticas,
defendidas só por aqueles que desejam expandir os graus dos mestres e
intérpretes da ciência dogmática, que, embora pretensiosa e autorizada,
deve já ser intolerante e não progressiva.” 61

Os fenômenos mentais.
Segundo a nova doutrina, não só as operações da vida vegetal e
animal devem-se a forças físicas, mas o mesmo é certo de todas as
operações mentais. Se é válido o argumento da analogia no primeiro
60
Protoplasm; or Life, Matter, and Mind, by Lionel S. Beale, M.B., F.B.S. Second edition, London,
1870, p. 3.
61
Protoplasm, p. 4.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 375
caso, é válido no segundo. Se temos que crer que as propriedades do
protoplasma, ou da matéria viva, devem ser atribuídas ao modo em que
suas moléculas são acrescentadas devido ao fato de que as propriedades
da água devem-se a peculiar agregação dos átomos de seus elementos,
oxigênio e hidrogênio, então temos que crer que todo pensamento e
sentimento deve-se à composição molecular e aos movimentos dos
átomos do cérebro. De acordo com isso, o Professor Huxley, depois de
dizer que a «vitalidade» não tem uma melhor posição filosófica que a
«aquosidade», adverte a seus leitores que não podem deter-se nesta
admissão. «Gostaria que estivessem conscientes», diz ele, «que ao
aceitar estas conclusões, estão pondo seus pés na primeira travessa de
uma escada que, na estimativa da maioria das pessoas é a oposta à de
Jacó, e que conduz às antípodas do céu. Pode parecer uma coisa pequena
admitir que as lentas ações vitais de um cogumelo ou de um foraminífero
são as propriedades de seu protoplasma, e que são o resultado direto da
matéria da que se compõem. Mas se seu protoplasma, tal como tratei de
lhes demonstrar, é essencialmente idêntico ao de qualquer animal, e
muito diretamente conversível no deles, não posso descobrir nenhuma
interrupção lógica entre a admissão de que esta seja a realidade, e a
adicional concessão de que toda ação vital pode ser com a mesma
propriedade considerada como resultado das forças moleculares do
protoplasma que a exibe. E se assim é, deve ser certo, no mesmo sentido
e no mesmo grau, que os pensamentos que estou agora expondo, e os
pensamentos dos leitores são com relação a eles, são a expressão de
mudanças moleculares naquela matéria da vida que é a fonte de nossos
outros fenômenos vitais». 62 «Além disso», prossegue ele, «considero
demonstrável que é totalmente impossível provar que nada, seja o que
for, não possa ser o efeito de uma causa material e necessária, e que a
lógica humana é igualmente incompetente para demonstrar que qualquer
ação seja realmente espontânea. Uma ação verdadeiramente espontânea é

62
Lay Sermons, pp. 151, 152.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 376
uma que supostamente carece de causa [isto é, nenhuma causa material,
porque Huxley não admite nenhuma outra classe de causa]; e o intento
de demonstrar uma proposição negativa como esta é evidentemente
absurdo. E assim, enquanto que é deste modo uma impossibilidade
filosófica demonstrar que qualquer fenômeno dado não é o efeito de uma
causa material, qualquer um que esteja familiarizado com a história da
ciência admitirá que seu progresso em todas as idades significou, e agora
mais que nunca, a extensão do domínio do que chamamos matéria e
causalidade, e a correspondente eliminação do que chamamos espírito e
espontaneidade de todos os âmbitos do pensamento humano». 63 «Afinal
de contas, o que conhecemos desta terrível «matéria», exceto que é um
homem pela desconhecida e hipotética causa ou condição de estados de
consciência? Em outras palavras, a matéria e o espírito são só nomes
para os substratos imaginários de grupos de fenômenos naturais». 64
«Com tanta certeza como que o futuro brota do passado e do presente,
assim a fisiologia do futuro estenderá gradualmente o reino da matéria e
da lei até que seja coextensiva com o conhecimento, com os sentimentos
e com as ações». 65 Cita a exortação tão citada de Hume, e recomenda
energicamente «o muito sábio conselho» que contém. «Se tomamos em
nossas mãos», diz Hume, «qualquer volume a respeito de teologia ou de
metafísica escolástica, por exemplo, nos perguntemos: Contém algum
raciocínio abstrato a respeito de quantidades e de números? Não. Contém
algum raciocínio experimental a respeito de questões de fato ou de
existência? Não. Lancem, pois, ao fogo; porque não pode conter nada
senão sofismas e ilusões». 66
A história da especulação humana não dá uma confissão mais
explícita de materialismo que a que se contém nas citações anteriores.
Todos os efeitos conhecidos são atribuídos a causas materiais. Declara-

63
Ibid., págs. 155, 156.
64
Ibid., pág. 157.
65
Ibid., pág. 156.
66
Hume, Works, edição de Edimburgo. 1826, IV, p. 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 377
se que o espírito possui uma existência só imaginária. A espontaneidade
é declarada algo absurdo. Mas Huxley diz que ele não é um Materialista.
E em certo sentido é verdade. Não é Materialista porque não crê nem na
matéria nem no espírito. Confessa-se discípulo de Hume, que ensinava
que não conhecemos nada mais que impressões e ideias. A substância,
seja material ou espiritual, a eficiência, e Deus, são eliminados da esfera
do conhecimento a dos «sofismas e a ilusão». Confessa sua comunhão
com o Herbert Spencer, sendo que o princípio fundamental da «Nova
Filosofia» deste é que tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é
que a força é, e que é persistente, enquanto que a própria força é
absolutamente inescrutável. Isto elimina da existência a alma e Deus,
exceto assim que estas palavras indiquem uma força desconhecida. Mas
como ele também sustenta que todas as forças são conversíveis, a
distinção entre forças materiais e mentais, sejam humanas ou divinas,
fica apagada. Ele se vale da hipótese comum de que sua teoria não
degrada o espírito, mas exalta a matéria. Mas o veredicto da história é,
tal como o diz com verdade Julius Müller, «Que cada intento de
espiritualizar a matéria acaba materializando o espírito». A respeito deste
tema diz Spencer: «Aqueles que não ascenderam acima do conceito
vulgar que une com a matéria os depreciativos epítetos de "áspera" e
"bruta", podem naturalmente sentir repulsão perante a proposta de
reduzir os fenômenos da vida, da mente e da sociedade, a um nível que
eles consideram tão degradado. ... O curso que se propõe não implica
uma degradação do considerado mais elevado, mas sim de uma exaltação
do considerado inferior».67 Pelo menos, isto constitui uma confissão de
que os fenômenos da vida, da mente e da sociedade devem ser atribuídos
a causas materiais ou físicas. E isto é o que certamente declara em
repetidas ocasiões.
Depois de insistir na transformação de forças físicas em substância
química, e estes em vitais, ele acrescenta: “Muitos serão alarmados pela

67
First Principles, New York, 1869, p. 556.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 378
afirmação que as forças que distinguimos como mental, vem dentro da
mesma generalização. Entretanto, não existe nenhuma alternativa senão
fazer esta concessão. 68 . . . . Qualquer vacilação para admitir que entre as
forças físicas e as sensações há uma correlação assim entre as próprias
forças físicas, devem desaparecer ao lembrar como uma correlação como
a outra, não é somente qualitativa, mas sim quantitativa.” 69 “Várias
classes de fatos se unem para provar que a lei da metamorfose, que se
mantém entre as forças físicas, mantém-se igualmente entre eles e as
forças mentais. . . . . Como esta metamorfose sucede — como uma força
existindo como movimento, luz, ou calor, pode tornar-se um modo de
consciência,” é misterioso; mas ele acrescenta, não é um mistério maior
“que as transformações de forças físicas mutuamente.” 70
O doutor Maudsley, um distinto escritor da mesma escola, 71 diz:
«Poucos se encontrarão hoje em dia que neguem que com cada exibição
de poder mental há mudanças correlativas no substrato material; que
cada fenômeno da mente é o resultado, como energia manifesta, de
alguma mudança, seja molecular, seja química, seja vital, nos elementos
nervosos do cérebro». Logo prossegue dizendo: 72 «Com relação aos
múltiplos fenômenos da mente, por observação dos mesmos, e abstração
do particular, chegamos à concepção geral, ou à ideia essencial de
mente, uma ideia que não tem mais existência fora da mente que
qualquer outra ideia abstrata ou termo geral. Entretanto, em virtude
daquela poderosa tendência da mente humana a tornar a realidade
conformável à ideia, uma tendência que está no fundo de tanta confusão
em filosofia, esta concepção geral foi convertida numa entidade objetiva,
e se permitiu que exerça sua tirania sobre o entendimento. Uma
abstração metafísica foi convertida numa entidade espiritual, e com isso

68
Ibid. p. 211.
69
Ibid. p. 212.
70
Ibid. p. 217.
71
Physiology and Pathology of Mind, Londres, 1868, pág. 42.
72
Ibid. p. 43.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 379
se interpôs uma barreira infranqueável no caminho da investigação
positiva».
As passagens acabadas de citar são um exemplo do tipo de
raciocínio que, com frequência, se permitem os cientistas. Na primeira
destas duas últimas citações se apresentam duas cláusulas como
equivalentes, as quais são de fato essencialmente diferentes; e a
substituição da uma pela outra é só uma sutil e calada petição de
princípio. A primeira diz que cada ato mental vai acompanhado de uma
mudança molecular no cérebro. A outra deve dizer que a mudança
molecular é o ato mental. Estas duas proposições são tão diferentes como
o dia e a noite. A teoria é que um certo tipo de movimento molecular no
ferro é calor; e que um certo tipo de movimento molecular no cérebro é
pensamento. E toda a prova, pelo que se refere ao último, é que um
acompanha o outro. Mas a formação da imagem na retina acompanha a
visão, e entretanto isso não demonstra que aquela imagem é nossa
consciência quando vemos.
Logo, na segunda passagem, o doutor Maudsley diz que «a mente é
uma ideia abstrata» que não tem existência fora «da mente», isto é, fora
de si mesma. Uma ideia abstrata tem uma ideia abstrata, que transforma
numa entidade objetiva. Os que negam a existência objetiva da mente
não podem deixar de pensar, falar ou escrever sem reconhecer sua
existência, como tampouco um idealista pode agir sem reconhecer a
existência do mundo exterior. Qualquer teoria que envolva uma negação
das leis de nossa natureza é necessariamente absurda.

Os físicos alemães.
Como se poderia esperar, os homens científicos do continente são
mais francos em seu materialismo que aqueles da Inglaterra. Um escritor
alemão posterior, Th. Otto Berger, Oberlehrer fur Mathematik e
Physik, 73 diz: O materialismo é a filosofia dos cinco sentidos, não admite

73
Evangelischer Glaube, römischer Irrglaube, und weltlicher Unglaube. Gotha, 1870.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 380
nada senão o testemunho de sensação, e portanto nega a existência da
alma, de Deus, e de tudo supersensório. Em sua forma moderna, ensina
que como o material é só verdadeiro e real, é incriado e eterno. Sempre
foi e sempre será. É indestrutível, e, em seus elementos, inalteráveis. A
força é inseparável da mente. De acordo com a teoria nenhuma mente
está sem força, e nenhuma força está sem mente. Nenhuma força existe
de si mesma; e, portanto, não há nada para que a criação da matéria deve
ser referida. O universo como agora é, deve-se à evolução gradual dos
dois elementos, matéria e força; que a evolução continua sob a operação
de leis fixas. Os organismos mais baixos são primeiro formados; então o
mais alto, até que o homem apareça. Toda vida, se animal, vegetal, ou
espiritual, deve-se ao funcionamento de forças físicas e químicas na
matéria. Como nenhuma energia existe senão na matéria, não pode haver
nenhum Ser divino com energia criativa nem qualquer alma humana
criada.
Berger cita Virchow como dizendo que, “O cientista naturalista
conhece só os corpos e as propriedades dos corpos.” Tudo o que está
além deles ele pronuncia como “transcendental, e o transcendental é o
quimérico.” Ele também cita B. C. Vogt, como dizendo que, “Não
admitimos nenhum criador, tanto no princípio como no curso da história
do mundo; e consideramos a ideia de um criador autoconsciente,
extramundano como ridícula.” O homem, de acordo com estes escritores,
consiste somente de um corpo material; todos os atos e estados mentais
são do cérebro. Quando o corpo morre, o homem cessa de existir. “A
única imortalidade,” diz Moleschott, “é, que quando o corpo seja
desintegrado, sua amônia, ácido carbônico, e cal, serve para enriquecer à
Terra, e nutrir plantas, que alimentarão outras gerações de homens.” 74

74
Veja-se Berger, I. III. 5; part I. pp. 264 to 271.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 381
F. Refutação.

Como o materialismo, em sua forma moderna, em tudo o que é


essencial à teoria, é o mesmo que era faz mil anos, os velhos argumentos
contra ele estão tão disponíveis agora como então. Sua afirmação
fundamental é que todos os fenômenos do universo, físicos, vitais e
vitais, devem ser atribuídos a forças físicas cegas; e sua negação
fundamental é que não há uma entidade objetiva como a da mente ou do
espírito. Por isso, se for possível mostrar que a força ininteligente não
pode dar conta de todos os fenômenos do universo, e que se existe uma
entidade ou substância objetiva como a da mente, a teoria fica refutada.
Há dois métodos de combater uma determinada teoria. O primeiro é o
científico, que põe em tela de juízo a exatidão ou a integridade dos dados
sobre os quais se baseia, ou a validez das inferências deduzidas deles. O
outro método, mais breve e fácil, é o da reductio ad absurdum. Este
último é tão legítimo e válido como o primeiro. Deve-se lembrar que
toda teoria inclui dois fatores: fatos e princípios; ou, fatos e inferências
tirados deles. Os fatos podem ser admitidos, enquanto que os princípios
ou inferências podem ser negados. Assim, os fatos a respeito dos quais
insistem os Materialistas podem ser aceitos, ao menos em sua maioria;
pelo contrário, as apressadas inferências que tiram deles podem não valer
nada sob o exame da razão. Todas estas inferências devem ser rejeitadas
sempre que entrem em conflito com qualquer verdade bem estabelecida,
quer da intuição, da experiência ou da revelação divina.
Tem-se proposto três teorias gerais para resolver o grande problema
do universo: a Materialista, a Panteísta e a Teísta. Segundo a primeira,
todos os fenômenos do universo devem-se à matéria e a suas forças;
conforme a segunda, em sua forma mais racional, todo poder, atividade e
vida são o poder, a atividade e a vida da uma mente universal. A terceira,
ou teoria Teísta, aceita a existência de um Deus infinito, extramundano,
que criou a matéria, dotando-a com forças, e mente finitas dotadas de
inteligência e vontade; e que todos os fenômenos comuns do universo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 382
são devidos mediatamente a estas forças físicas e mentais quanto a que
são constantemente sustentadas e controladas pela sabedoria e o poder
onipresentes de Deus. Pode-se expressar a dúvida quanto a se alguma
quantidade de argumentação pode aprofundar a convicção de que a
solução Teísta deste grande problema é a verdadeira. Vê-se como certa,
porque se vê como solução. Explica satisfatoriamente todos os atos da
consciência e da observação. Dá satisfação à razão, ao coração e à
consciência. É de fato uma verdade evidente por si mesma, no sentido de
que ninguém a quem lhe tenha sido proposta alguma vez pode nunca
escapar permanentemente à convicção da verdade da mesma. As outras
teorias não são soluções. Pode ser que expliquem algumas classes de
atos, mas não outras. Mas agora nos ocupamos do materialismo.

O Materialismo contradiz os atos da consciência.


1. O princípio primário de todo conhecimento é o conhecimento do
eu. Este tem que ser assumido. A não ser que sejamos não podemos
conhecer. Este conhecimento do eu é um conhecimento de que somos
algo; uma existência real; não meramente um estado ou modo de alguma
outra coisa; mas sim o eu é uma substância, uma entidade real, objetiva.
Além disso, é um conhecimento não só de que somos uma substância,
mas também de que somos uma subsistência individual, que pensa,
sente, e quer. Assim, aqui temos a mente, isto é, um agente individual.
inteligente, voluntário, necessariamente incluída na primeira e mais
essencial de todas as verdades. Se se nega isto, então Hume tem a razão,
e nada podemos saber. Além disso, inclui-se neste conhecimento do Eu,
que o corpo não é o Ego. Embora o corpo esteja unido de maneira
íntima, e inclusive vitalmente, à substância em que reside nossa
personalidade, é entretanto objetivo para a mesma. É o órgão empregado
pelo Eu, e mediante aquele que sustenta sua comunhão com o mundo
externo. E está claro o fato de que estas são realmente realidades da
consciência, e não meramente aforismos, ou hipóteses arbitrárias,
porquanto são reconhecidas universalmente e de maneira necessária.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 383
Estão incluídas em todos as linguagens humanas; estão envoltas em
todas as expressões do pensamento humano; são necessariamente
assumidas inclusive por aqueles que as negam em teoria. O Materialista
não pode pensar, falar ou escrever sem dar por suposta a existência da
mente como distinta da Matéria, como tampouco o Idealista pode viver e
agir sem supor a existência e mundo externo.
Por isso, nosso conhecimento da mente como substância pensante é
a primeira, mais certa e mais indestrutível de todas as formas de
conhecimento, porque está envolta no conhecimento do eu, ou na
consciência do eu, que é a condição indispensável de todo conhecimento.
Aquilo que conhece é, na ordem da natureza, anterior a aquilo que é
conhecido. É impossível, então, que o Materialista possa ter alguma
evidência superior da existência da matéria, ou da força, que a que tem
cada homem, em sua própria consciência, da existência da mente. Negá-
lo um é tão irrazoável como negar o outro. Nenhuma de ambas as coisas
pode ser negada, exceto de maneira teórica. De fato, toda pessoa crê na
matéria, e toda pessoa crê na mente. O que são nossas sensações, nas
quais tanto se confia para nos dar conhecimento de fenômenos físicos,
senão estados de consciência? Se se deve confiar na consciência ao
informar do testemunho dos sentidos, por que não se deve confiar nela
quando informa dos fatos de nossa vida interior? Se é crida quando diz
que há algo visível e tangível fora de nós, por que não deve ser crida
quando diz que há algo que pensa e quer dentro de nós? Se não é
confiável num caso, não o é no outro; e se não é confiável em nenhum,
desaparecem todas as bases do conhecimento e de toda fé. A confiança
na veracidade da consciência é nossa única segurança diante do mais
desenfreado, irracional e degradante cepticismo.
Entretanto, poderá dizer-se que o Materialista não nega que haja em
nós algo que pensa e quer. Só diz que este algo é o cérebro. Entretanto,
isto é ignorar a metade do testemunho que na realidade dá a consciência.
Testifica não só de que há tais sensações como as da vista e do tato, mas
há uma substância real e objetiva que é tangível e visível. Quer dizer,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 384
cremos em virtude da constituição de nossa natureza, e por isso de
maneira necessária, quando vemos ou tocamos, que os objetos de nossas
percepções sensoriais têm uma existência real e objetiva. Isto todo
homem crê, e não pode deixar de crê-lo. E da mesma maneira, quando
pensa, sente, ou quer, crê, em virtude da constituição de sua natureza, e
por isso por uma necessidade semelhante, que ele mesmo é uma
substância inteligente, sensível e voluntária. Isto é, ele crê que o Eu é
mente, ou espírito, para o que o corpo é objetivo, e por isso diferente do
Eu. Assim, a crença na mente está implicada na crença na existência do
eu. A consciência nos dá a certeza de que o Eu é um agente ou espírito
inteligente e voluntário.
2. Outro fato da consciência que o Materialismo nega, bem
abertamente ou por implicação necessária, é o fato do livre-arbítrio. Isto,
certamente, implica-se no que já se disse. Entretanto, há os que admitem
a existência da mente e que negam que o homem seja um agente livre.
Não se precisa de prova de que a consciência dá testemunho de que os
homens têm a capacidade da autodeterminação. Cada homem sabe que
isso é verdade com relação a si mesmo. Cada homem reconhece este fato
com relação a seus semelhantes. E esta é, de novo, uma convicção que
nenhuma ofuscação da consciência nem nenhum sofisma podem apagar
de maneira permanente da mente humana. Mas isto o Materialismo nega.
As forças físicas agem necessária e uniformemente. Ao atribuir todas as
ações mentais às forças físicas, o Materialismo não pode mais que negar
toda liberdade de ação. Não há espontaneidade na afinidade química,
nem na luz, no calor ou na eletricidade; entretanto, é a estas forças que se
atribuem todos os fenômenos vitais e mentais. Se o pensamento é um
certo tipo de movimento molecular do cérebro, este não é mais livre que
a outra classe de movimento molecular chamado calor. E isto é mais
evidentemente certo se forem correlativos, mudando um no outro. Por
isso, os Materialistas, geralmente, são confessos deterministas. E isto não
é só verdade dos Positivistas, mas sim a doutrina de que a ação humana
está determinada por leis necessárias é o fundamento de todo seu sistema
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 385
de Ciência Social. E o Professor Huxley, como vimos, declara que um
ato espontâneo é, pela própria natureza do caso, algo absurdo. Para ele se
trataria de um efeito carente de causa. Por isso, toda pessoa que sabe que
é um agente livre sabe que o Materialismo não pode ser certo.
3. O Materialismo contradiz os atos de nossa consciência moral e
religiosa. Nossas percepções morais são as mais claras, mais certas e
mais autoritativas de todas nossas cognições. Se alguém vê-se levado a
negar por um lado o testemunho de seus sentidos ou as verdades da
razão, por outro o testemunho de sua natureza moral,. toda a experiência
mostra que abandonará os sentidos e a razão, e se inclinará perante a
autoridade da consciência. Não pode evitá-lo. Ninguém pode libertar-se
do sentido do pecado, ou da responsabilidade. Estas convicções morais
envolvem em si mesmas, ou ao menos demandam, a crença num Deus
perante quem temos que prestar contas. Pôr uma mera «força
inescrutável» em lugar de um Deus inteligente, extramundano e pessoal
é uma zombaria e um insulto. Toda nossa natureza moral e religiosa
declara que toda teoria assim é falsa. Não pode ser certa a não ser que
toda nossa natureza seja uma mentira. E nossa natureza não pode ser
uma mentira a não ser que, como diz Sir William Hamilton, todo o
universo seja «um sonho de um sonho». Chamar os homens a adorar a
gravidade e a cantar aleluias ao redemoinho é chamá-los à
irracionalidade. Este intento é tão ocioso como insensato e perverso.
Este argumento com base nos atos da consciência contra o
Materialismo é confrontado com a asserção de que não se pode confiar
na consciência. O doutor Maudsley dedica a maior parte do primeiro
capítulo de sua libra sobre «a fisiologia da mente» a estabelecer este
ponto. Argui ele que a própria consciência não é confiável na informação
que dá, e incompetente para dar nenhuma comunicação de uma grande
parte de nossa atividade mental. Não dá conta dos fenômenos mentais do
bebê, do adulto sem cultura, nem dos alienados mentais; não dá conta
das condições corporais que subjazem a toda manifestação mental; nada
comunica a respeito do grande campo da ação mental inconsciente que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 386
se exibe não só na inconsciente assimilação de impressões, mas também
no registro de ideias e de suas associações, em sua existência latente e
influência quando não estão em atividade, e sua reclamação à atividade;
e nada comunica da influência exercida organicamente sobre o cérebro
por outras partes do corpo. Isto é, a consciência não nos diz todas as
coisas, e às vezes nos diz isso erroneamente. Não se pode dizer o mesmo
dos sentidos? Acaso nos podem informar de tudo o que sucede no corpo?
Não nos enganam com frequência? Não são totalmente inviáveis as
sensações dos delirantes e dos maníacos? Segue disso que jamais
devemos confiar em nossos sentidos? O que ocorre, então, com as
ciências físicas, que estão baseadas na fiabilidade dos sentidos? O fato é
que se o testemunho da consciência não deve ser recebido pelo que
respeita a nossas operações mentais, não pode ser recebido quanto a
nossas sensações. Se não temos evidência fidedigna da existência da
mente, não temos evidência válida da existência da matéria; e não há
universo, nem Deus. Tudo é nada.
Felizmente, os homens não podem emancipar-se das leis de sua
natureza. Não podem deixar de crer no testemunho firme de seus
sentidos, e não podem deixar de crer no testemunho da consciência
quanto a sua identidade pessoal, nem quanto à existência real, objetiva,
da alma como sujeito de seus pensamentos, sentimentos e volição. Como
ninguém pode recusar crer que tem corpo, tampouco ninguém pode
recusar crer que tem alma, e que ambas as coisas são distintas como o Eu
e o Não-Eu.

O Materialismo contradiz as Verdades da Razão.


1. É intuitivamente certo que cada efeito deve ter uma causa. Isto
não significa meramente que cada efeito tem que ter um antecedente;
nem, como diz Hume, que qualquer coisa pode ser a causa de qualquer
outra. Nem significa meramente que cada efeito deve ter uma causa
eficiente. Antes, significa que o antecedente ou causa de cada efeito tem
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 387
que ter aquela classe ou grau de eficiência que dê conta racional daquele
efeito.
Há duas classes gerais de efeitos com os quais estamos
familiarizados, e que são especificamente diferentes, e por isso que
devem ter causas especificamente diferentes. A primeira classe consiste
em efeitos que não indicam desígnio, e a segunda daqueles que indicam
desígnio. No último vemos a evidência de um propósito, de previsão, de
provisão para o futuro, de adaptação, de eleição, de espontaneidade,
assim como de poder. No primeiro todas estas indicações estão ausentes.
Vemos ao nossos redor inumeráveis efeitos que pertencem a cada uma
destas classes. Vemos água constantemente fluindo de um nível mais
alto a outro mais baixo; vapor constantemente ascendendo desde o mar;
o calor produzindo expansão, o frio, contração, a água apagando o fogo,
os álcalis corrigindo a acidez, etc., etc. Por outro lado, o mundo está
repleto de obras da inteligência humana: de estátuas, pinturas, casas,
navios, complicadas máquinas para diferentes propósitos, livros,
bibliotecas, hospitais dispostos para as necessidades dos doentes, com
instituições de aprendizagem, etc. etc. Ninguém pode deixar de crer que
estas classes de efeitos são especificamente diferentes, nem tampouco
pode deixar de crer que se devem a causas especificamente diferentes.
Em outras palavras: é claramente evidente que uma causa carente de
inteligência não pode produzir um efeito inteligente; não pode exercer
propósito, nem prever, organizar ou escolher. O Professor Joule pode
determinar a distância pela qual deve cair um peso para produzir uma
determinada quantidade de calor, mas será que pode nos dizer quanto
deve cair para escrever um poema, ou produzir uma Madonna? Esta
causa não tem tendência a produzir este efeito. E supor que vá operar por
toda a eternidade é só multiplicar eternamente nada por nada, o que
continua sendo nada.
Se cada pessoa reconhecer o absurdo de atribuir todas as obras do
engenho e do intelecto humano a uma força física carente de
inteligência, maior é o absurdo de atribuir a forças cegas as obras
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 388
incomensuravelmente mais admiráveis, complicadas e estruturadas de
Deus, por toda parte indicadoras de propósito, previsão e eleição. E o
Materialismo é culpado deste absurdo. Ensina, em sua forma moderna,
que a causa eficaz a que se devem atribuir todos os organismos, dos
cogumelos aos homens, e todos os fenômenos vitais e mentais, é o ácido
carbônico, a água e a amônia, com as forças moleculares inerentes aos
mesmos. Esta é a doutrina proposta e defendida de maneira elaborada
pelo Professor Huxley em seu artigo «Physical Basis of Life» (As bases
físicas da vida). O mencionado artigo dedica-se a estabelecer duas
proposições. A primeira é: «Que todos os organismos animais e vegetais
são essencialmente semelhantes em poder, forma e substância; e a
segunda: Que todas as funções vitais e intelectuais são as propriedades
das disposições moleculares e das mudanças da base material
protoplasma da qual consistem os vários animais e vegetais». 75 Inclusive
insinua, depois de referir-se a um relógio que assinala o tempo, e as fases
da lua, como ilustração dos fenômenos vitais e intelectuais do universo
como produzidos pelos movimentos e combinações das moléculas, «que
o mundo existente encontrava-se em potencial no vapor cósmico; e que
uma Inteligência suficiente poderia haver predito, com base no
conhecimento das propriedades daquele vapor, o estado da Fauna da
Grã-Bretanha, ponhamos por caso, em 1869, com tanta certeza como se
pode dizer o que sucederá ao vapor de seu alento num frio dia de
inverno». 76 A respeito disto é evidente a observação, primeiro, de que
não se adiantou nada desde que Epicuro propôs sua teoria há mais de
dois mil anos. Como a grande massa das pessoas reflexivas deram as
costas a esta teoria daquele tempo até agora, não é provável que sua
reformulação, por muito confiantemente que se faça, tenha muito efeito
sobre aqueles que tenham cabeça ou coração. Em segundo lugar, não dá

75
As regards Protoplasm in relation to Professor Huxley's Essay on the Physical Basis of Life, por
James Hutchison Stirling, F.R.C.S., LL.D. Edição de New Haven, p. 15.
76
Veja-se Life, Matter, and Mind, por Lionel S. Beale, M.B., F.R.S., Londres 1870, pág. 17. O doutor
Beale cita de um artigo do Professor Huxley no primeiro número da Academy, pág.13.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 389
nenhuma explicação racional da origem do universo, nem das maravilhas
que contém. Viola a verdade intuitiva fundamental de que cada efeito
deve ter uma causa adequada, porquanto atribui efeitos inteligentes a
causas não inteligentes; todas as bibliotecas do mundo, por exemplo, são
atribuídas às «propriedades das moléculas» do ácido carbônico, da água
e da amônia.
2. Uma segunda verdade da Razão que contradiz o Materialismo é
que uma sucessão infinita de efeitos é tão impensável como a cadeia
autosustentada com uma quantidade infinita de elos. A doutrina moderna
é que a matéria inerte nunca se torna viva, exceto quando entra em
contato com matéria viva anterior. É a função da planta viva tomar os
elementos inertes do mundo inorgânico dotando-os de vida. Por isso, a
planta deve ou preceder ao protoplasma, o que é impossível, porquanto
está composta de protoplasma; ou o protoplasma deve preceder à planta,
o que é também impossível, porquanto só a planta, em primeira
instância, pode produzir protoplasma; ou deve haver uma sucessão
infinita. Isto é, um número infinito de efeitos carentes de causa, o que
não é menos impossível. A doutrina da geração espontânea, ou da vida
originando-se de matéria inerte, é repudiada pelos proponentes mais
avançados da forma moderna do Materialismo. O Professor Huxley fez
um bom serviço à causa da verdade com sua competente refutação da tal
doutrina. 77 Qualquer que possa ser a última decisão quanto à pergunta
sobre a origem de vida, é suficiente por agora que os advogados
modernos do Materialismo admitem que a matéria viva só pode vir de
matéria já viva. Esta admissão, é agora enfatizada, é fatal a sua teoria,
como se necessita a hipótese de um efeito eterno. Se matéria morta só
pode ser feita viva por matéria viva prévia, deve haver uma origem de
vida fora da matéria, ou a vida nunca podia ter começado.

77
Veja-se seu discurso como Presidente da Associação Britânica, publicada na revista London
Athenaeum, 17 de Setembro, 1870. O pouco que é necessário dizer a respeito do tema da geração
espontânea numa obra como esta se reserva para a seção que trata da origem do homem.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 390
O Materialismo é inconsequente com os fatos da experiência
Admite-se usualmente que na natureza, isto é, no mundo externo,
há quatro âmbitos distintos, ou, como se chama em algumas ocasiões
planos de existência. Primeiro, os compostos químicos comuns que
constituem o reino mineral; segundo, o reino vegetal; terceiro, o mundo
animal irracional; e quarto, o Homem. Admite-se que todos os recursos
da ciência são incompetentes para elevar a matéria de um destes planos a
outro. A planta contém ingredientes derivados do reino mineral, com
algo especificamente diferente. O animal contém tudo o que está na
planta, com algo especificamente diferente. O homem contém tudo o que
entra na constituição da planta e do animal, com algo especificamente
diferente. Os elementos inertes do reino mineral, sob «a influência de
matéria viva preexistente», e não de outra maneira, convertem-se em
matéria viva e sustentadora da vida na planta. Os produtos da vida
vegetal, de maneira semelhante, transformam a matéria de tecidos e
órgãos animais, mas isso só sob a influência de tecidos animais vivos
preexistentes. Da mesma maneira, os produtos dos reinos vegetal e
animal são recebidos no sistema humano, e devem ficar conectados com
as funções e os fenômenos da vida intelectual e moral do homem, mas
nunca fora da pessoa do homem. Este fato notável, testificado por toda a
história de nosso globo, demonstra que há algo na planta que não está na
matéria inerte; algo no animal que não está na planta, e algo no homem
que não está no animal. Aceitar como o Materialista aceita que a vida
organizadora da planta provém da matéria inerte; que a vida sensível e
voluntária do animal provém da vida insensível e involuntária da planta;
ou que a vida racional, moral e espiritual do Homem provém dos
constituintes do animal, é supor como um fato algo que toda a
experiência contradiz. Não nos esquecemos com isso das teorias que
atribuem estes diferentes graus ou ordens de existência a algum processo
da evolução natural. Entretanto, aqui só nos referimos ao fato destacável
na história de que, na esfera da experiência humana, a matéria inerte não
vem a ser organizadora e viva em virtude de suas próprias forças físicas;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 391
nem a planta em num animal; nem o animal em um homem derivando de
nada na planta ou do animal, mas só em virtude de uma influência ab
extra vital. Certamente, diz-se que assim como os mesmos elementos
químicos combinados de uma maneira têm certas propriedades, e que
misturas de outras maneiras, têm outras propriedades, que igualmente os
mesmos elementos combinados de uma forma na vida inerte e em outras
formas em plantas e animais e no homem podem dar conta de todas suas
características distintivas. Mas deve-se lembrar que todas as
propriedades dos compostos químicos, por variadas que sejam, são
químicas e nada mais; enquanto que nos organismos vivos as
propriedades ou os fenômenos são especificamente diferentes dos meros
efeitos químicos. Não têm relação entre si, como tampouco a têm a
gravitação e a beleza; e por isso um não pode explicar o outro.

O Materialismo é Ateu.
O ateísmo é a negação de um Deus pessoal extramundano. Ao dizer
que o Materialismo é Ateísmo não se significa com isso que todos os
Materialistas sejam ateus. Alguns, por exemplo o doutor Priestley,
confinam a aplicação de seus princípios à ordem existente de coisas.
Admitem o ser de Deus a quem atribuem a criação do mundo.
Entretanto, a quantidade destes materialistas ilógicos é pequeno.
Deixando de lado estes casos excepcionais, os filósofos desta escola
podem classificar-se em três classes:
(1) Ateus confessos. A esta classe pertencem os Epicureus; os
céticos franceses do século passado; e uma grande proporção dos físicos
da geração atual, especialmente na Europa. (2) Aqueles que repudiam a
acusação de ateísmo, porque admitem a existência necessária de uma
força inescrutável. Mas a força inescrutável não é Deus. Ao rejeitar a
doutrina de um Espírito extramundano, consciente de Si mesmo,
inteligente e voluntário, a Primeira Causa de todas as coisas, rejeitam o
Teísmo; e a negação do Teísmo é Ateísmo. (3) Aqueles cujos princípios
envolvem a negação de um Deus extramundano. A esta classe pertencem
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 392
todos aqueles que negam a distinção entre a matéria e a mente; que
negam o supersensório» e o «sobrenatural», que afirmam que a força
física é a única classe de força da qual não temos conhecimento algum; e
que mantêm que o pensamento é, em tal sentido, o produto do cérebro
que se não houver cérebro não pode haver pensamento. Büchner, que
embora seja um ateu confesso é, quanto a este ponto, um bom
representante de toda a escola; diz que o princípio fundamental (der
oberste Grundsatz) de nossa filosofia é: «Não há matéria sem força; e
não há força sem matéria». «Um espírito sem um corpo», acrescenta ele,
«é tão impensável como a eletricidade ou o magnetismo sem a matéria
da qual são fenômenos». 78 E isto o converte na base de seu argumento
para demonstrar a impossibilidade da existência da alma depois da
morte. O princípio, se for admitido, é igualmente concludente contra a
existência de Deus. Porquanto o Materialismo não nos deixa um Deus a
quem reverenciar e em quem confiar, um Ser perante quem somos
responsáveis, e porquanto nega toda existência consciente depois da
morte pode ser adotado só com o sacrifício dos mais elevados atributos
de nossa natureza; e toda sua tendência deve ser desmoralizadora e
degradante.

A correlação das forças físicas, vitais e mentais


Além das considerações apresentadas acima contra o Materialismo
como uma teoria geral, pode ser adequada para dizer algumas palavras
com referência à sua forma científica moderna. Admite-se que é campo
de homens científicos o examinar perguntas científicas; e que danos à
causa da verdade seguiram as tentativas de homens não dedicados a tais
ocupações, empreendendo julgar em tais casos.
Os físicos estão habituados a tomar a sério este assunto, e advertir
como intrusos todos os metafísicos e teólogos, todos que são dedicados
ao estudo do supersensório e do sobrenatural. Eles não têm permissão

78
Kraft und Stoff, Zehnte Auflage, Leipzig, 1869, p. 209.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 393
para ser ouvidos em perguntas de ciência. A regra deve valer para ambos
os modos. Se os metafísicos e os teólogos devem ser mudos em assuntos
de ciência, então os homens científicos dedicados ao estudo do sensorial,
não são intitulados para ser ditatoriais em que considerar o
supersensório. Um homem pode estar tão habituado a tratar com
quantidade e número, ao ponto de ficar incapaz de apreciar beleza ou
verdade moral. De certa forma um homem pode ser tão dedicado ao
exame do que seus sentidos revelam, prestes a chegar a crer que só o que
é sensível é verdade e real. Os sentidos têm suas reivindicações, e assim
têm razão e consciência; e os partidários dos sentidos não são
autorizados a reivindicar o domínio inteiro de conhecimento como
exclusivamente seu próprio.
Enquanto, portanto, perde-se o que pertence especialmente a
homens científicos para tratar com assuntos científicos, ainda outras
classes têm um pouco de reivindicações que não devem ser negadas.
Têm o direito de julgar por si mesmos a respeito da validez dos
argumentos de homens científicos; e eles têm direito a apelar a um
homem científico até outro, e da minoria à maioria. Na medida no que
concerne à correlação de forças físicas e vitais, não é só uma nova
doutrina, mas sim ainda é adotada só por “pensadores adiantados,” como
eles são chamados, e se chamam a si mesmos. O Dr. H. B. Jones, F. R.
S., um dos advogados mais modestos da doutrina, 79 diz: “Estamos
apenas entrando na investigação a que distância nossas ideias de
conservação e correlação de energia podem ser estendidas às ciências
biológicas.” E é verdade que os atores principais da ciência, tanto na
Europa como na América, são firmes partidários de forças vitais e
mentais, como distintas em tipo, de toda a operação das forças física no
mundo inorgânico.

79
Croonian Lectures, p. 66.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 394
Os argumentos em favor de tal correlação não são válidos.

O argumento da analogia.
Já foi declarado a respeito da autoridade dos advogados da teoria,
que seu primeiro e mais importante argumento em seu suporte é o da
analogia. As forças físicas são todas correlatas; um é conversível em
qualquer dos outros; todos podem ser dissolvidos em movimento. Isto
cria, como dizem, uma forte presunção, que toda força, quaisquer que
sejam os seus fenômenos, é essencialmente a mesma coisa. Se um tipo
de movimento é calor, outro eletricidade, outro luz, é justo deduzir que a
vitalidade é só outro tipo de movimento, e pensamento e sentimento.
Como não existe nenhuma razão para assumir uma força específica para
a luz, e outra para o calor, portanto é desnecessário, e antifilosófico,
assumir um tipo específico vigente para responder por fenômenos vitais
ou mentais. O Prof. Barker da Faculdade do Yale, diz: 80 “Hoje, tão
verdadeiramente como setenta e cinco anos atrás quando Humboldt
escreveu, os fenômenos misteriosos e terríveis da vida, são usualmente
atribuídos a algum agente controlador residindo no organismo — para
alguns a deidade independente presidindo-o, mantendo-o em sujeição
absoluta.” Este agente que preside é chamado “fluido vital,” “materia
vitæ diffusa,” “força vital.” “Todos estes nomes,” ele acrescenta,
“assumem a existência de algo material ou imaterial, mais ou menos
separável do corpo material, e mais ou menos idêntico à mente ou alma,
que é a causa dos fenômenos dos seres vivos. Mas como a ciência se
moveu irresistivelmente para frente, e se fez evidente que as forças da
natureza inorgânica não eram nem deidades nem fluidos imponderáveis,
separáveis da matéria, mas sim eram afetos simples disto, a analogia
exigiu semelhante concessão no interesse da força vital. Da noção que
os efeitos do calor eram devido a um fluido imponderável chamado
calórico, o achado passou à convicção que o calor não era senão um

80
Correlation of Vital and Physical Forces, p. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 395
movimento de partículas materiais, e consequentemente inseparáveis da
matéria; a uma hipótese semelhante com relação à vitalidade [isto é, que
também não é mais que um movimento de partículas materiais], não era
agora senão um passo.
Os pensadores mais adiantados em ciência de hoje, portanto,
consideram a vida da forma viva como inseparável de sua substância, e
creem que o anterior é puramente fenomenal, e só uma manifestação do
posterior. Negando a existência de uma força vital especial como tal,
retêm o termo só para expressar a soma dos fenômenos dos seres vivos.”
O argumento da analogia é apresentado, como nós vemos, em outra
forma, por Huxley e outros. As propriedades da água são muito
diferentes daqueles do hidrogênio e do oxigênio de que é composta. Mas
ninguém supõe que aquelas propriedades são devido a qualquer outra
coisa que a composição material da água propriamente. Então também os
fenômenos de matéria viva, e do cérebro humano, são muito diferentes
daqueles dos elementos que entram em sua constituição; mas isto não
dispõe nenhuma presunção que existe alguma “força vital” ou “mente”
que responde por esta diferença mais que as propriedades peculiares da
água justificam a hipótese da existência de qualquer coisa distinta de seu
elemento material. Vitalidade e mente, somos inteirados, não têm
nenhum status filosófico melhor que a aquosidade.
O doutor Stirling 81 enuncia assim [o argumento materialista]: «Se é
por sua mera estrutura química e física que a água exibe certas
propriedades chamadas aquosas, é também por sua mera estrutura
química e física que o protoplasma exibe certas propriedades chamadas
vitais. Tudo o que é necessário em ambos os casos é que “sob certas
condições” se acrescentem os componentes químicos. Se a água é uma
complicação molecular; o protoplasma é igualmente uma complicação

81
As Regards Protoplasm in Relation to Professor Huxley's Essay on the Physical Basic of Life, por
James Hutchison Stirling, F.R.C.S., LL.D. Edinburgh, Blackwood & Sons. Republica como uma, das
séries da Universidade do Yale, pág. 39. Esta é considerada como a melhor refutação da teoria da
correlação de forças físicas e vitais.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 396
molecular, e para a descrição de uma ou de outra não se precisa de uma
mudança de linguagem. Uma nova substância com novas qualidades
aparece aqui precisamente da mesma forma em que uma nova substância
com novas qualidades aparece ali; e as qualidades derivadas não são
mais diferentes das primitivas no primeiro caso que o são no segundo.
Finalmente, o modus operandi do protoplasma preexistente não é mais
ininteligível que o da faísca elétrica. A conclusão é então irresistível que
sendo que todo o protoplasma reciprocamente conversível, e
consequentemente idêntico, as propriedades que exibe, incluindo a
vitalidade e o intelecto, são tanto o resultado da constituição molecular
como o são as da própria água». Esta analogia é dupla: por um lado faz
referência à composição química; e por outro, ao estímulo antecedente
que a determina. «No que respeita à composição química, pede, em
virtude da analogia citada, que identifiquemos, como exemplos
igualmente singelos da mesma, protoplasma aqui e água ali; e, no que
respeita ao estímulo em questão, pede que admitamos que a ação da
faísca elétrica é, no primeiro caso, totalmente análoga à ação do
preexistente protoplasma no segundo».
Como resposta a este argumento, o doutor Stirling passa a mostrar
que a analogia só se sustenta com relação às propriedades químicas e
físicas. «Um passo adiante, e vemos que o protoplasma tem não só,
como a água, uma estrutura física e química, mas, diferente do água, tem
também uma estrutura organizada ou orgânica. Agora, isto, por parte do
protoplasma, é uma posse em excesso; e com relação a este excesso não
pode haver bases para uma analogia». «O protoplasma vivo, por
exemplo, é idêntico ao protoplasma morto», diz o doutor Stirling, «só no
que respeita à sua composição química (se é que chega a isso); e é bem
evidente, portanto, que a diferença entre ambos não pode depender
daquilo no que são evidentes não pode depender da química. Assim, a
vida não é assunto da estrutura química e física, e tem que buscar sua
explicação em alguma outra coisa. É assim que, quando se contempla
com atenção, a luz da analogia entre a água e o protoplasma se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 397
82
desvanece». A água e seus elementos, o hidrogênio e o oxigênio, estão
num mesmo nível quanto ao tipo de características que exibem. «Mas
não assim o protoplasma, onde, com a preservação da semelhança
química e física há a adição da dessemelhança da vida, da organização e
das ideias. Mas a adição é um mundo novo – um mundo novo e mais
elevado, o mundo de um pensamento autorrealizante, o mundo de uma
enteléquia.» 83 «Há certamente diferentes estados de água, como gelo e
vapor; mas a relação de sólido a líquido, ou de ambos com o vapor, não
oferece certamente nenhuma analogia com a relação do protoplasma
vivo com o protoplasma morto. Esta relação não é uma analogia, e sim
uma antítese, a antítese da antítese. De fato, encontramo-nos perante o
abismo infranqueável – o abismo de todos os abismos – aquele abismo
que o protoplasma do Sr. Huxley é impotente para apagar como qualquer
outro material conveniente que jamais tenha sido sugerido desde que os
olhos humanos o contemplaram pela primeira vez: o imenso abismo
infranqueável entre a morte e a vida». 84
«Deve-se observar que as diferenças às quais se faz alusão (são, por
ordem, a organização e a vida, a ideia objetiva – desenho, e a ideia
subjetiva – pensamento) são admitidas por aqueles mesmos alemães aos
que se lhes deve o conceito e nome de protoplasma. Eles, os mais
avançados e inovadores deles, admitem abertamente que existe na célula
“um princípio arquitetônico que não foi ainda detectado”. * Ao
82
As Regards Protoplasm, etc., pp. 41, 42.
83
Ibid., pág. 42.
84
Ibid., pág. 42.
*
Este «princípio arquitetônico» que não tinha sido ainda detectado é a informação codificada no seio
de cada célula. O suporte material desta informação é o Ácido Desoxirribonucleico (DNA) no núcleo
das células, e que é transcrito por uma complicada maquinaria envolvendo outras classes de ácidos
nucléicos, o Ácido Ribonucleico Mensageiro (ARNm) e o Ácido Ribonucléico de Transferência
(ARNt). Tudo isso funciona de maneira concatenada no seio de uma maravilhosa maquinaria fisico-
química programada e controlada por uma série de mecanismos cibernéticos de alta complexidade.
Mas observe-se que o código não é o DNA; antes, o DNA é só o suporte material do código, da
mesma maneira que a tinta e o papel não constituem uma mensagem, mas sim são suportes materiais
do mesmo, o qual pode ser suportado indiferentemente por meios mecânicos, magnéticos (como um
disco ou cinta de ordenador) ou de outros tipos. Mas a mensagem em si é imaterial, não estando
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 398
pronunciar o protoplasma como capaz de movimentos ativos ou vitais,
referem-se com isso, e admitem também, uma força imaterial, e atribuem
o processo exibido pelo protoplasma – e isso de maneira expressa – não,
às moléculas, mas sim à organização e à vida». 85
«Foram acaso os poderes moleculares os que inventaram uma
respiração, e os que perfuraram o ouvido posterior para dar um equilíbrio
de pressão de ar; os que compensaram a janela oval mediante uma janela
redonda; os que puseram nas cavidades auriculares aqueles otólitos,
aqueles ossos expressos para o ouvido? Uma maquinaria assim! As
cordas tendinosas são para as válvulas do coração uns cais de fechadura
exatamente ajustadas; e as contráteis colunas carneia estão dispostas para
durante a contração e a expansão equalizar sua longitude com sua
função. ... Temos que conceber que tal maquinaria, tais aparelhos, tais
inventos, são meramente moleculares? São as moléculas adequadas para
tais coisas – moléculas em sua passividade cega, e em sua inerte e hirta
insensibilidade? ... A verdade é que na presença destas ideias manifestas
é impossível atribuir unicamente à característica peculiar do
protoplasma, isto é, sua vitalidade, à mera química molecular. É verdade
que o protoplasma se desagrega em carbono, hidrogênio, oxigênio e
nitrogênio, como a água em hidrogênio e oxigênio; mas um relógio se
desagrega em bronze, aço e vidro. Os materiais soltos do relógio –
incluso seus materiais químicos, se se quiser equivalem a seu peso com
tanta exatidão como os constituintes do protoplasma, o carbono, etc.,
equivalem ao dele. Mas nem estes nem aqueles tomam o lugar da ideia
desaparecida, que era o único elemento importante». 86 Por isso, há algo
no protoplasma que não pode ser pesado nem medido de nenhuma outra
maneira, e ao qual se devem atribuir os fenômenos vitais.

constituída pelas propriedades inerentes da matéria, mas antes, imposto sobre a matéria por um agente
inteligente. (Nota do Tradutor).
85
Ibid, pág. 43.
86
As regards Protoplasm, etc., pp. 47, 48.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 399
Assim, se o argumento da analogia fracassa em sua aplicação aos
fenômenos vitais, não se pode pretender que seja válido em sua
aplicação ao fenômeno da mente. Se recusamos a dar o primeiro passo,
nem o Professor Huxley pode demandar-nos que demos os seguintes.
Argumentos adicionais dos Materialistas.
Além do argumento analógico, os Materialistas insistem em que há
evidência direta da correlação das forças físicas com as forças vital e
mental. Lembremos o que é que isto significa. As forças correlacionadas
são aquelas que podem ser convertidas uma na outra, e que, por
conseguinte, são de natureza idêntica. Assim, o que se tem que
demonstrar neste caso é que a luz, o calor, etc., podem ser transformados
em vida e pensamento, e que o último é idêntico ao primeiro, sendo
ambas as classes solucionáveis no movimento das moléculas de matéria.
A prova é essencialmente a seguinte: O corpo animal gera calor
pela combustão do carbono do alimento que recebe, precisamente como
se produz calor com a combustão do carbono fora do corpo. E
demonstrou-se experimentalmente que a quantidade de calor produzido
pelo corpo é precisamente a mesma, com certa margem de erro, ao que
produziria a mesma quantidade de carvão se fosse queimado fora do
corpo. Por isso, o calor vital é idêntico ao calor físico.
Também, a força muscular é produzida precisamente da mesma
maneira que uma força física. A energia potencial do combustível move
a máquina de vapor. Seu trabalho ou energia se mede e determina pela
quantidade de energia armazenada na madeira ou no carvão consumidos
em sua produção. A fonte e medida da energia muscular encontram-se,
similarmente, nos alimentos que consumimos. Sua energia potencial,
derivada do sol, como sucede com a energia potencial da madeira e do
carvão, produz, ao ser liberada, sua quantidade devida, nem mais nem
menos, de poder muscular. Por isso, a energia muscular é tão puramente
física, produzida da mesma maneira, e medida pela mesma norma, como
a energia da máquina de vapor.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 400
De maneira similar, «a energia nervosa, ou aquela forma de força
que, por um lado, estimula um músculo a contrair-se, e por outro aparece
em formas chamadas mentais» é meramente física. Provém da comida
que tomamos. Move-se. A velocidade de seu movimento foi determinada
como de noventa e sete pés por segundo. Seus efeitos são análogos aos
da eletricidade. Por esta e outras razões similares, assim, infere-se que «a
força nervosa é uma energia potencial transmutada». E isto não é menos
certo da força nervosa quando se manifesta em forma de pensamento e
emoção. Cada manifestação externa do força do pensamento, argumenta
o Professor Huxley, é de caráter muscular, e por isso análoga a outras
forças que produzem efeitos similares. Além disso, demonstrou-se que
cada exercício de pensamento ou de sentimento vai acompanhado de
uma transferência de calor, o que mostra que o pensamento se
transforma em calor. «Podemos, então, duvidar de que também o cérebro
seja uma máquina de conversão de energia? Podemos seguir recusando
crer que inclusive o pensamento está, embora de uma maneira
misteriosa, correlacionado com outras forças naturais? E isso inclusive
diante do fato de que nunca foi ainda medido?87
Para os homens, não cientistas de inteligência normal, para os
homens não dedicados ao estudo do sensível, é assombroso que tais
argumentos sigam sendo considerados válidos. Admitindo todos os atos
anteriores, o que é que demonstram? Admitindo que o calor animal seja
o mesmo em fonte e natureza com o calor fora do corpo; admitindo que
o poder muscular é físico em sua natureza e modo de produção,
admitindo que a energia nervosa seja também física; que diremos então?
Acaso estes fatos não nos dão nenhuma solução aos mistérios da vida, da
organização, da alimentação ou da reprodução? Acaso explicam em
alguma medida a formação do olho ou do ouvido, das relações mútuas e
interdependência dos órgãos do corpo? Admitindo que estas forças sejam
físicas, quem ou o que as emprega? O que é que conduz a operação das

87
Prof. Barker, Correlation of Vital and Physical Forces, p. 24.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 401
mesmas para corresponder a um desígnio preconcebido? Admitindo que
o poder muscular seja físico, o que é que o põe em marcha em algumas
ocasiões e não em outras; começando-o, prosseguindo-o ou
suspendendo-o à vontade? Está claro que os fatos que se aduzem não dão
solução nem aos fenômenos vitais nem aos voluntários. E quando
chegamos ao pensamento, admitindo que a ação mental vá acompanhada
de um desprendimento de calor, demonstra isso que o pensamento e o
calor sejam o mesmo? Quando nos envergonhamos nos ruborizamos,
quando nos atemorizamos empalidecemos; acaso estas fatos demonstram
que a vergonha e o temor e seus efeitos somáticos são uma e a mesma
coisa? Acaso a concomitância demonstra identidade? Ao demonstrar o
primeiro, estabelece-se o último? Acaso os fatos aduzidos demonstram
que a vergonha é calor e o calor vergonha, e que um se possa transformar
no outro? Todo mundo sabe que a dor produz lágrimas; mas ninguém
infere desta coincidência que a dor e a água salgada sejam idênticos.
Inclusive o Professor Tyndall, um «dos pensadores avançados», diz aos
materialistas que quando demonstraram tudo o que afirmam demonstrar,
não demonstraram nada. Deixam a conexão entre mente e corpo
precisamente onde estava antes. 88

Argumentos diretos contra a teoria da correlação das forças


físicas, vitais e mentais.
1. São heterogêneas. Todas as forças físicas são semelhantes. Todas
tendem a produzir movimento. Todas tendem ao equilíbrio. Todas são
ponderáveis, por peso, velocidade ou por seus efeitos sensíveis. Todas
carecem de inteligência. Agem por necessidade, sem escolha, sem
referência a um fim. Com respeito a tudo isso as forças mentais são
exatamente o oposto. Não produzem movimento, antes, só o conduzem e
o controlam. Resistem um estado de equilíbrio. Rebatem a força física.
Logo que desapareceu a vitalidade, entram em jogo as forças químicas, e

88
Athenaeum de 29 de agosto de 1868, citado em Hussein Lectures for 1868; Apêndice, Nota A.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 402
a planta ou animal apodrece. Não se podem medir. As forças que não
admitem medição não admitem correlação, porque a correlação envolve
igualdade em quantidade.
«O pensamento», diz o Presidente Barnard, «não pode ser uma
força física, porque o pensamento não admite medição. Creio que se
concederá sem discussão que não há forma de substância material nem
força conhecida de natureza física (e não há outras forças) das quais não
possamos expressar de algum modo determinado sua quantidade,
mediante referência a alguma unidade convencional de medida. ... Não
se sugeriu tal meio para medir a ação mental. Não se podem conceber
tais meios. ... Agora, eu mantenho que uma coisa que não é mensurável
não pode ser uma quantidade; e que algo que não é nem sequer uma
quantidade não pode ser uma força» 89
Assim, a força vital e mental age com inteligência, previsão,
liberdade e desígnio. Seja onde for que resida a inteligência, é
perfeitamente evidente que todas as operações vitais se levam a cabo no
prosseguimento de um propósito. O calor e a eletricidade não podem
conformar um olho da mesma maneira que o bronze e o aço não podem
fazer um relógio, nem uma pena e um papel escrever um livro. Por isso,
a força inteligente difere em tipo da força ininteligente. Não apenas são
diferentes, mas também ademais contraditórias; a afirmação de uma é a
negação da outra.

Prof. Joseph Henry.


O Prof. Joseph Henry, do Smithsonian Institute, é admitido por ser
um dos mais eminentes naturalistas da época; não apenas distinto para a
eficácia de suas pesquisas, mas pela eficiência de juízo, e pelo dom raro
de poder apreciar tipos diferentes de evidência. Ele admite a correlação
de forças físicas, mas protesta contra a eliminação da distinção entre eles
89
The Recent Progress of Science, with an Examination of the asserted identity of the Mental Powers
within the Physical Forces. Un discurso ante la Asociación Americana para el Avance de la Ciencia.
Agosto, 1868. Por Frederick A. P. Barnard, S.T.D., LL.D., págs. 41, 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 403
e a vitalidade e a mente. “O corpo,” diz ele, “foi chamado a ‘casa em que
vivemos’ mas pode ser mais verdadeiramente denominado a máquina
que nós empregamos, que, subministrada com energia, e todos os
eletrodomésticos para seu uso, ativa-nos para executar as intenções de
nossa inteligência, satisfazer nossas naturezas morais, e comungar com
nossos seres semelhantes. Esta visão da natureza do corpo é o mais
distante possível do Materialismo; exige um princípio separado de
pensamento.
Para ilustrar isto, vamos supor um motor de locomotiva equipada
com vapor, água, combustível, — em resumo, com a energia potencial
necessária para a exibição de energia mecânica imensa; o todo
permanece num estado de equilíbrio dinâmico, sem movimento, ou
sinais de vida ou inteligência. Deixe o engenheiro agora abrir uma
válvula que é tão equilibrada sobre reposicionar com o toque mais leve, e
quase com uma volição para divulgar a energia para o pistão; a máquina
agora desperta, como ele era, à vida. Apressa-se para frente com energia
tremenda; imediatamente detém-se, retorna novamente, pode ser, ao
comando do maquinista do trem; em resumo, exibe sinais de vida e
inteligência. Sua energia é agora controlada pela mente — tem, por
assim dizer, uma alma dentro de si.” 90 Esta ilustração se atém só na
medida no que era planejado manter. O intelecto que controla a máquina
não está nele, nem é afetado por suas mudanças. Não obstante, no corpo,
como também na máquina, o intelecto controlador é igualmente distinto
da força física, que ambos exibem tão maravilhosamente.
Em mais direta referência à vitalidade, o Prof. Mestre Henry diz:
“A vitalidade dá evidência surpreendente da presença imediata de uma
essência direta, divina, e espiritual, operando com as forças comuns da
natureza, mas estando nele mesmo completamente distinta deles. Esta
visão do assunto é absolutamente necessária ao executar a teoria
mecânica da equivalência de calor e a correlação das forças físicas

90
Paper in the Agricultural Report, 1854-1855, p. 448.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 404
comuns. Entre a vitalidade posterior não há espaço, e não conhece
nenhuma sujeição às leis pelas quais são governados.” 91

Dr. Beale.
92
O Dr. Beale é igualmente explícito. Ele constantemente insiste
que os atos voluntariamente, com escolha para realizar um fim, não
podem ser físicos; e que operações vitais e mentais são a evidência
indisputável de tal ação voluntária. Ele diz, “eu considero ‘vitalidade’
como uma energia de um tipo peculiar, não exibindo nenhuma analogia,
quaisquer forças conhecidas. Não pode ser uma propriedade da matéria,
porque é, em todos os sentidos, essencialmente diferente em suas ações
de todas propriedades conhecidas da matéria. A propriedade vital
pertence a uma categoria completamente diferente.” 93 Ele argumenta
também para provar que a organização não pode remeter a força física.
“Não se pode sustentar que os átomos se organizam a si mesmos, e que
cada um determina as posições, — e seria ainda mais extravagante
atribuir à força ou energia comum, regra atômica e agência diretiva.
Pode ser que também tratam de nos fazer crer que o fogo de laboratório
realizado é incendiado por si mesmo, que os compostos químicos que se
põem no crisol, e as soluções se dirigiram aos copos na ordem adequada,
e nas proporções exatas necessárias para formar certos compostos
definidos. Mas embora todos coincidimos em que é absurdo ignorar o
químico no laboratório, muitos insistem em ignorar a presença de
qualquer coisa que representa o químico na matéria viva que eles
chamam a “célula-laboratório”. Num caso o químico trabalha e guia,
mas no outro, sustenta-se, as moléculas sem vida da matéria são próprias
dos agentes ativos no desenvolvimento dos fenômenos vitais… Ninguém

91
Página 441.
92
Protoplasm; or Life, Matter, and Mind. By Lionel S. Beale, M. B., F. R. S. Second Edition.
London, J. Churchill & Sons, 1870. O Dr. Beale é uma autoridade no departamento de Fisiologia.
Seu livro, How to work with the Microscope, has reached a fourth edition.
93
Página 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 405
demonstrou, e ninguém pode demonstrar, que a mente e a vida são de
algum modo relacionadas com a química e a mecânica. . . . Tampouco
pode dizer-se que a vida funciona com as forças físicas e químicas, visto
que não há provas de que isto é assim. Por outro lado, é bem verdade que
a vida vence, de algum modo muito notável e desconhecido, a influência
de forças físicas e as afinidades químicas.” 94 Numa página anterior ele
havia dito: “Com o fim de convencer as pessoas que as ações dos seres
vivos não se devem a nenhuma misteriosa vitalidade ou força vital ou
poder, mas são na realidade física e química em sua natureza, o professor
Huxley dá à matéria que está viva, à matéria que está morta, e à matéria
que é mudada totalmente por assar ou ferver, o verdadeiro nome. O
assunto das ovelhas e cordeiro e o homem e o gafanhoto e o ovo é o
mesmo, e, segundo Huxley, a gente pode ser transubstanciado no outro.
Mas, como? Mediante ‘influências sutis,’ e ‘sob circunstâncias diversas,’
responde a esta autoridade. E todas estas coisas vivas, ou mortas, ou ao
forno, ele nos diz são atos de protoplasma, e este protoplasma é a base
física da vida, ou a base da vida física. Mas pode este descobridor de
‘influências sutis’ zombar da ficção da vitalidade?
Ao chamar as coisas que diferem entre si em muitas qualidades com
o mesmo nome, Huxley parece pensar que pode aniquilar as distinções,
fazer cumprir a identidade, e varrer as dificuldades que impediram o
progresso dos filósofos precedentes em sua busca da unidade. As
plantas, e os vermes, e os homens são todos protoplasma, e o
protoplasma é matéria albuminosa, e matéria albuminosa consiste em
quatro elementos, e estes quatro elementos possuem certas propriedades,
por cujas propriedades todas as diferenças entre plantas, e os vermes, e
os homens, têm que ser justificados. Embora Huxley provavelmente
admita que um verme não foi um homem, ele nos diria que por
“influências sutis” uma coisa possivelmente seja convertida facilmente

94
Protoplasm, etc., pp. 116, 117.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 406
na outra, e não por tais ficções absurdas como ‘a vitalidade,’ que nem
pode ser pesada, medida, nem concebida”. 95
Na porção posterior de seu livro o Dr. Beale mostra que o cérebro
não é uma glândula que secreta pensamento como o fígado secreta bílis;
nem é o pensamento uma função do cérebro, nem resultado de uma ação
mecânica ou química; nem é o cérebro uma pilha voltaica que dá
choques de pensamento, como conjetura Stuart Mill: é o órgão da mente,
não para gerar, senão para expressar o pensamento.

Alfred Russel Wallace


Para citar só outra autoridade, referir-nos-emos ao eminente
naturalista Wallace, amigo e associado de Darwin, e zeloso defensor de
sua teoria. Diz ele: «Se um elemento material, ou uma combinação de
mil elementos materiais numa molécula, são igualmente inconscientes,
é-nos impossível crer que a mera adição de um, dois ou mil outros
elementos materiais para constituir uma molécula mais complexa
tenderia de modo nenhum a produzir uma existência consciente de si
mesma. Dizer que a mente é um produto ou função do protoplasma, ou
de seus mudanças moleculares, é usar palavras às quais não podemos
atribuir nenhum significado claro. Não se pode ter, no todo, o que não
existe em nenhuma das partes; ... ou toda a matéria é consciente, ou a
consciência é algo distinto da matéria; e neste último caso, sua presença
em formas materiais constitui uma prova da existência de seres
conscientes, fora de e independentes do que chamamos matéria». 96

As forças vitais e as físicas não são conversíveis.


2. Um segundo argumento contra da doutrina da correlação das
forças físicas e vitais é que de fato não são conversíveis. Diz-se do
movimento e do calor que estão correlacionados, porque um pode ser
95
Ibid. p. 16.
96
Contributions to the Theory of Natural Selection. A series of Essays. Por Alfred Russel Wallace,
autor de The Malay Archipelago, etc., etc. McMillan & Co., Londres 1870, pág. 365.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 407
mudado no outro, medida por medida. Mas ninguém jamais mudou
morte em vida, matéria morta em matéria viva. Isto o Professor Huxley
admite. Se a célula viva mais simples morrer, toda a ciência do mundo
não a pode fazer reviver. O que está morto só pode ser feito vivo ao ser
formado e assimilado pelo que está ainda vivendo. Por isso, a vida não se
deve às propriedades químicas daquilo que está morto. Pelo que à
química respeita, não há nenhuma diferença conhecida entre o
protoplasma morto e o protoplasma vivo; entretanto, existe uma
diferença absoluta entre a vida e a morte. Por isso, esta diferença não é
química. Até que os cientistas possam realmente mudar calor e
eletricidade em vida, e se dediquem a ressuscitar os mortos, os homens
serão remissos em crer que o calor e a vida sejam coisas idênticas. E até
que não possam transmutar força física em inteligência e vontade, não
poderão converter os «pensadores» em Materialistas.
3. Outro argumento contra esta teoria é a inadequação da causa para
o suposto efeito. A doutrina é que a relação entre as forças
correlacionadas é quantitativa; tanto do um produzirá tanto do outro.
Mas nós sabemos que se pode produzir uma grande agitação mental pela
mera visão de certos objetos, e que estes estados mentais podem suscitar
a ação de uma violenta força muscular. Segundo a hipótese, a impressão
sobre os nervos da vista ou do ouvido é primeiro transformada em força
mental, e esta de novo em energia muscular e molecular. Assim, o
Presidente Barnard, que apresenta este argumento, declara-o absurdo,
«porquanto faz de uma pequena força o equivalente a uma grande». 97
O Presidente Barnard argumenta adicionalmente contra esta teoria
com base no fato de que os estados mentais produzidos por impressões
sobre os sentidos são, ao menos em muitos casos, evidentemente não
devidos à impressão física, mas à ideia com ela conectada. Se a gente
insulta em inglês a um francês, não há efeito algum; se for insultado em
seu próprio idioma, faz-lhe enfurecer. O significado das palavras não é

97
Barnard’s Address, p. 45.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 408
uma força física, e entretanto é ao significado que se deve o efeito. Diz o
doutor Barnard: «Quando somos demandados que como físicos nos
pronunciemos dizendo que a existência espiritual é um absurdo e que a
religião é um sonho, parece-me que não resta outra alternativa que a de
proclamar nosso desacordo, ou que se entenda com nosso silêncio que
aceitamos tal doutrina como própria. Quando se apresenta a alternativa
deste modo, sinto-me obrigado a falar, e a declarar minha convicção de
que como físicos não temos nada que ver quanto à filosofia mental; e que
ao tratar de reduzir os fenômenos da mente sob as leis da matéria,
afastamo-nos de nossa medida, não estabelecemos nada com certeza.
Atraem o ridículo sobre o nome da ciência positiva, e só alcançamos um
resultado inegável, o de fazer cambalear nas mentes de multidões umas
convicções que constituem a base de sua principal felicidade». 98
4. Os físicos não podem seguir sua própria teoria. Inclusive os
menos suscetíveis à força do supersensível se veem levados a admitir
que há mais na ação mental e vital que o que pode ser explicado pela
cega força física. O Dr. Carpenter, como já vimos, aceita a presença de
«uma agência diretiva»; os alemães, um «princípio arquitetônico»
desconhecido e não correlacionado, na matéria viva, para dar conta de
atos inegáveis para os quais a força física não oferece solução alguma.
Outros, cuja natureza espiritual não está tão totalmente submetida ao
sensível, desmoronam-se totalmente. Assim, o Professor Barker, do
Colégio Yale, depois de dedicar toda sua conferência para demonstrar
que a força vital e inclusive o pensamento «estão correlacionados com
outras forças naturais» (isto é, têm identidade com elas), chega no fim a
perguntar: «E é só isto? Não há atrás desta substância material um poder
mais elevado que o molecular nos pensamentos imortalizados na poesia
de um Milton ou de um Shakespeare, nas criações artísticas de um
Miguel Ângelo ou um Ticiano, nas harmonias de um Mozart ou de um
Beethoven? Não há realmente uma porção imortal separável deste tecido

98
Ibid, pág. 49.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 409
cerebral, embora misteriosamente unida ao mesmo? Numa palavra, não
encerra este corpo tão minuciosamente elaborado uma alma dada por
Deus, e que volta para Deus? Aqui a ciência vigia seu rosto, e se prostra
em reverência perante o Onipotente. Passamos os limites nos quais está
encerrada a ciência física. Nenhum crisol, nenhuma sutil agulha
magnética, poderão nos dar a resposta agora a nossas perguntas.
Nenhuma palavra mais que a dAquele que nos formou poderá romper o
terrível silêncio. Na presença de tal revelação a ciência está muda, e a fé
entra prazerosa para aceitar aquela verdade maior que nunca pode ser
objeto de uma demonstração física». 99
Assim, faz-se evidente, afinal de contas, que no homem há uma
alma; que a alma não é o corpo, nem uma função do mesmo; que é o
sujeito e agente de nossos pensamentos, sentimentos e volições. Mas isto
é precisamente o que esta conferência queria refutar. Assim, a ciência do
Professor Barker expira aos pés de sua religião. Apaga sua tocha na fonte
de uma ordem de verdades mais elevadas que as que admitem
«demonstração física». O πρῶτον ψεῦδος [próton pseudos] de toda a
teoria é que nada é verdade que não possa ser demonstrado fisicamente;
isto é, o que não possa ser sentido, pesado ou medido de alguma outra
maneira.

Wallace, o naturalista
Uma ilustração ainda mais notável da insuficiência dos princípios
materialistas nos dá o distinto naturalista Alfred Russel Wallace, citado
anteriormente. Depois de dedicar todo seu livro para defender a doutrina
de seleção natural, que atribui a origem de todas as espécies e gêneros de
plantas e animais à operação cega das forças físicas, chega à conclusão
de que não existem tais forças. Que tudo é «Mente». A Matéria não
existe. A matéria é força, e a força é mente; de maneira que «todo o
universo não só depende de, mas também na realidade é a VONTADE

99
Barker’s Lecture, pp. 26, 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 410
100
de inteligências superiores, ou de uma Inteligência Suprema». Ele
mantém que em lugar de admitir a existência de alguma coisa
desconhecida chamado matéria, e que a mente é «outra coisa, seja
produto desta matéria e de seus supostas forças inerentes, ou distinta de e
coexistente com ela», que é uma «crença muito mais simples e coerente
que a matéria, como entidade distinta da força, não existe; e que a força é
um produto da MENTE. A filosofia,», acrescenta ele, «já tinha
demonstrado há muito nossa incapacidade para demonstrar a existência
da matéria, tal como se concebe geralmente, enquanto que admitia a
demonstração para cada um de nós de nossa existência consciente de si
mesma, ideal. A ciência chegou agora trabalhosamente ao mesmo
resultado, e esta concordância entre ambas deveria dar-nos alguma
confiança em seu ensino conjunto».101 Assim, com um só passo, cobre-
se o abismo entre o Materialismo e o panteísmo idealista. Isto, ao menos,
constitui uma concessão de que as forças físicas não podem explicar os
fenômenos da vida e da mente; e isto é conceder que o Materialismo,
como teoria, é falso.
O grande erro dos Materialistas é que começam no extremo errado.
Começam com a matéria cega e inerte, e tratam de deduzir dela e de suas
mudanças moleculares todas as infinitas maravilhas da organização, da
vida e da inteligência que o universo exibe. Trata-se de um intento de
tirar tudo do nada. A mente humana, em seu estado natural, sempre
começa com Deus. Ele, como a Bíblia nos ensina, é um Espírito Infinito,
e por isso consciente de Si mesmo, inteligente e voluntário; criador de
todas as coisas; da matéria com suas propriedades, e das mentes finitas
com seus poderes; e que controla todas as coisas com Sua sabedoria e
poder sempre presentes; de modo que toda a inteligência indicada em
forças não inteligentes é só uma forma da infinita inteligência de Deus.
Esta é a solução do problema do universo que se dá nas Escrituras;

100
Wallace, Contributions to the Theory of Natural Selection, p. 368.
101
Ibid., p. 369.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 411
solução que dá satisfação a toda nossa natureza, racional, moral e
religiosa.
Todos os trabalhos na Psicologia, e na história da Filosofia, contêm
discussões sobre os princípios do Materialismo. O capítulo IV da
qualificada obra do Dr. Buchanan, “Faith in God and Modern Atheism
Compared,” é dedicado à história e ao exame dessa teoria. Veja-se
também o capítulo II da introdução a obra elaborada do Professor Porter,
“The Human Intellect.” O Professor Porter dá, na página 40, uma conta
copiosa da literatura da matéria. Na “Real-Encyklopädie,” de Herzog, o
artigo Materialismo, uma conta é dada dos principais trabalhos alemães
recentes contra a forma moderna da doutrina.
Entre as obras mais importantes neste assunto, além da escrita de
Comte e seus discípulos ingleses, J. Stuart Mill, e H. G. Lewes, estão
Herbert Spencer's “First Principles of a New System of Philosophy,” e
seu “Biology” em dois volumes: Maudsley's “Physiology and Pathology
of Mind;” Laycock (Professor na Universidade de Edimburgo), “Mind
and Brain;" Huxley's “Discourse on the Physical Basis of Life;” seu
“Evidence of Man's Place in Nature” e “Introduction to the Classification
of Animals:” and his “Lay Sermons and Essays;” Professor Tyndall's
“Essay on Heat;” “The Correlation and Conservation of Force: A Series
of Expositions, by Professor Grove, Professor Helmholtz, Dr. Mayer, Dr.
Faraday, Professor Liebig, and Dr. Carpenter; with an Introduction by
Edward L. Youmans, M. D.; “Alexander Bain (Professor of Logic in the
University of Aberdeen), “The Senses and the Intellect;" “The Emotions
and the Will;” “Mental and Moral Science;” “Kraft und Stoff, von
Ludwig Büchner. Zehnte Auflage. Leipzig, 1869.” Pelo mesmo autor:
“Die Stellung dê Menschen in der Natur in Vergangenheit, Gegenwart
und Zukunft. Oder Woher kommen wir? Wer sind wir? Wohin gehen
wir? Leipzig, 1869.” Também: “Sechs Vorlesungen uber die
Darwin’sche Theorie von der Verwandlung der Arten und die erste
Entstehung der Organismenwelt. Leipzig, 1868.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 412
§ 5. Panteísmo.

A. O que é o Panteísmo.

Se se permite que a etimologia da palavra Panteísmo determine seu


significado, a resposta à pergunta o que é o Panteísmo? é fácil. O
universo é Deus, e Deus é o universo. Τὸ πᾶν Θεος ἔστι [To pan Theos
esti]. Este não é só o significado da palavra e a ideia popular que
geralmente se lhe atribui, mas sim é a definição formal frequentemente
dada a este termo. Assim Wegscheider diz: “Pantheismus [est] ea
sententia, qua mundum non secretum a numine ac disparatum, sed ad
ipsam Dei essentiam pertinere quidam opinati sunt.” 102 Entretanto, os
proponentes desta doutrina o denunciam como uma áspera distorção.
Dizem eles que a ideia de que o universo, como agregado de elementos
individuais, seja Deus, é uma forma de pensamento que a mais antiga
filosofia do Oriente tinha superado. O mesmo poderia dizer-se que o
conteúdo da consciência de um homem, em qualquer momento
determinado, é o próprio homem; ou que as ondas do oceano eram o
próprio oceano. É devido ao fato de que tantos Panteístas tomam a
palavra no sentido recém-indicado que negam que sejam Panteístas, e
afirmam sua crença no ser de Deus. Como o sistema que é propriamente
designado como Panteísmo exclui expressamente a percepção popular do
mesmo, derivado da etimologia do vocábulo, e como foi sustentado de
maneiras muito diferentes, não é fácil dar uma resposta concisa e
satisfatória à pergunta: o que é o Panteísmo. As três formas principais
em que se apresentou esta doutrina são: (1) A que atribui ao Ser Infinito
e Universal os atributos (ao menos até certo ponto) de mente e matéria
simultaneamente, isto é, pensamento e extensão. (2) A que lhe atribui só
os atributos da matéria, o Panteísmo Materialista. (3) A que lhe atribui só
os atributos do espírito, Panteísmo Idealista.

102
Institutiones Theologiæ, fifth edit., Halle, 1826, p. 215.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 413
Princípios gerais do sistema.
Para o propósito da instrução teológica, é suficiente expor os vários
sistemas em que se unem em negar, e o que concordam substancialmente
em afirmar.
1. Negam todo dualismo no universo. As distinções essenciais entre
matéria e mente, entre alma e corpo, entre Deus e o mundo, entre o
Infinito e o Finito, ficam repudiadas. Há só uma substância, só um Ser
real. Por isso a doutrina é chamada Monismo, ou a doutrina totalmente
Um. «A ideia», diz Cousin, 103 «do finito, do infinito, e de sua relação
necessária como causa e efeito, encontram-se em cada ato da
inteligência, e não é possível distinguir um do outro; embora distintos,
estão ligados juntos, e constituem a una uma triplicidade e unidade». «O
primeiro termo (o infinito), embora absoluto, não existe de maneira
absoluta em si mesmo, mas sim como causa absoluta que tem que
suceder a ação, e manifestar-se no segundo (o finito). O finito não pode
existir sem o infinito, e o infinito só pode vir a ser real desenvolvendo-se
no finito».
Toda a filosofia está baseada, diz ele, nas ideias de «unidade e
multiplicidade», «de substância e fenômeno». «Observem-se», diz ele,
«todas as proposições que enumeramos reduzidas a uma só, tão vasta
como a razão e o possível, à oposição da unidade e da pluralidade, da
substância e do fenômeno, do ser e da aparência, da identidade e da
diferença». 104 Todos os homens, diz ele, creem «como numa combinação
de fenômenos que deixariam de ser no momento em que a substância
eterna deixasse de sustentá-las; creem, por assim dizer, na manifestação
visível de um princípio oculto que lhes fala sob esta coberta, e que eles
adoram na natureza e na consciência». 105 «Porquanto Deus é dado a
conhecer só enquanto Ele é causa absoluta, por isso mesmo, em minha
opinião, Ele não pode deixar de produzir, pelo que a criação deixa de ser
103
Psychology, por Henry, primeira edição, pág. XVIII.
104
History of Philosophy, traduzida por Wight, N.Y., 1852, pág. 78.
105
Ibid., pág. 121.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 414
ininteligível, e Deus não está mais sem mundo como o mundo não está
sem Deus». 106 É um dos mais familiares aforismos dos filósofos
alemães: «Ohne Welt kein Gott; und ohne Gott keine Welt».
Renan, em seu livro Vida de Jesus, entende por Panteísmo o
materialismo, ou a negação de um Deus vivo. Esta excluiria todas as
formas das doutrinas mantidas por panteístas idealistas de todas as
épocas. O doutor Calderwood declara panteísta a doutrina da criação
exposta pelo Sir William Hamilton, porque nega que a soma da
existência possa ser aumentada ou diminuída. Sir William Hamilton
ensina que quando dizemos que Deus criou o mundo do nada, que só
podemos significar que «Ele evolui a existência proveniente dele
mesmo». Embora todas as formas de Panteísmo são monistas, exceto o
Hilozoísmo, que é propriamente um dualismo, entretanto a mera doutrina
da unidade de substância não constitui Panteísmo. Por objetável que seja
a doutrina de que tudo o que existe, inclusive a matéria sem organizar, é
da substância de Deus, esta foi sustentada por muitos Teístas cristãos.
Não envolve necessariamente a negação da distinção essencial entre
matéria e mente.
2. Entretanto, diferem quanto à natureza do Infinito como tal, seja
que se trate de matéria ou de espírito, ou daquilo do que se possa pregar
tanto pensamento como extensão (potencial); ou se se trata do próprio
pensamento, ou de força, ou de causa, ou de nada; isto é, daquilo do que
nada se possa afirmar nem negar; uma quantidade simples e
desconhecida; todos concordam em que não tem existência nem antes
nem fora do mundo. Por isso, o mundo não só é consubstancial a Deus,
mas também coeterno com Ele.
3. Isto, naturalmente, descarta a ideia de criação, exceto como um
processo eterno e necessário.
4. Negam que o Ser Infinito e Absoluto tenha em Si mesmo nem
inteligência, nem consciência nem vontade. O Infinito vem à existência

106
Psychology, quarta edição, N.Y., 1856, pág. 447.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 415
no Finito. A totalidade da vida, e a consciência, da inteligência, e o
conhecimento do último, isto é, do mundo. «Omnes (mentes)», diz
Espinoza, «simul Dei reternum et infinitum intellectum constituunt».107
«Só Deus é, e fora dEle nada há». 108 “Seine Existenz als Wesen ist unser
Denken von ihm; aber seine reale Existenz ist die Natur, zu welcher das
einzelne Denkende als moment gehört.” 109
5. O Panteísmo nega a personalidade de Deus. A personalidade,
assim como a consciência, implica uma distinção entre o Eu e o Não Eu;
e tal distinção é uma limitação inconsequente com a natureza do Infinito.
Portanto, Deus não é uma pessoa que possa dizer Eu, e a que possamos
dirigimos como Tu. Ao vir Ele à existência, à inteligência e à
consciência só no mundo, Ele é os uma pessoa só até onde compreende
em Si mesmo todas as personalidades, e a consciência da soma das
criaturas finitas constitui a consciência de Deus. «A verdadeira doutrina
de Hegel a respeito disto», diz Michelet, 110 «não é que Deus seja uma
pessoa em distinção a outras pessoas; nem que Ele seja simplesmente a
substância universal e absoluta. Ele é o movimento do Absoluto fazendo-
se sempre a si mesmo subjetivo; e no subjetivo primeiro vem à
objetividade ou à verdadeira existência». «Segundo Hegel», acrescenta
ele, «Deus é o único verdadeiro Ser pessoal». «Porquanto Deus é
personalidade eterna, assim produz eternamente seu outro eu, isto é, a
Natureza, a fim de alcançar a consciência de si mesmo».
Desta doutrina se desprende necessariamente que Deus é a
substância da que o universo é o fenômeno; que Deus não tem existência
senão no mundo; que a consciência acrescentada e a vida do Finito é, por
agora, toda a consciência e vida do Infinito; que o Infinito não pode ser
uma pessoa distinta do mundo, a que possamos dizer: Tu. A respeito
disto, Cousin diz: «Privem-me de minhas faculdades, e a consciência que

107
Ethics, V. XL. Schol., Edição de Jena, 1803, pág. 297.
108
Von seligen Leben, p. 143, edit. Berlin, 1806.
109
Strauss, Dogmatik I. p. 517.
110
Geschichte der letzen Systeme der Philosophie in Deurschland, vol. II. pág. 647.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 416
me dá testemunho das mesmas, e eu não sou para mim mesmo. O mesmo
é com Deus; tirem a natureza, e a alma, e todo sinal de Deus
desaparece». 111 O que seria a alma sem faculdades e sem consciência,
isto é Deus sem o universo. Um Deus inconsciente, sem vida, de quem
nada se pode pregar mais que o simples ser, não só não é uma pessoa,
mas também Ele é, para nós, nada.
6. O homem não é uma subsistência individual. Ele é tão somente
um momento na vida de Deus; uma onda sobre a superfície da mar; uma
folha que cai e que é renovada ano após ano.
7. Quando o corpo, que estabelece a distinção de pessoas entre os
homens, perece, a personalidade cessa com isso. Não há existência
consciente para o homem depois da morte. Schleiermacher, em seus
Discourses, diz: A piedade em que foi criado em sua juventude
«permaneceu comigo quando o Deus e a imortalidade de minha infância
desapareceram de meu olhar cheio de dúvidas». 112 A respeito desta
confissão comenta o Sr. Hunt, pároco do St. Ives, Hunts: «O ‘Deus e
imortalidade’ de sua infância desapareceram. O Deus pessoal a quem
adoravam os morávios foi mudado pela Divindade impessoal da
filosofia. E sua teologia não parecia ímpia. Não, era a própria essência da
verdadeira religião». Há boas razões para crer que, com relação à
existência pessoal da alma depois da morte, Schleiermacher sacrificou
sua filosofia à sua religião, como certamente o fez em outros pontos.
Isto, entretanto, só mostra com maior clareza quão inconsequente é a
postura panteísta da natureza de Deus com a doutrina da existência
consciente depois da morte. A absorção da alma em Deus, do Finito no
Infinito, é o destino mais elevado que o Panteísmo pode lembrar ao
homem.
8. Como o homem é só um modo da existência de Deus, seus atos
são os atos de Deus, e como os atos de Deus são necessários, segue-se

111
Lectures on the True, the Beautiful, and the Good, tradução de Wight, N.Y., 1854, pág. 365.
112
Hunt’s Essay on Pantheism, Londres, 1866, pág. 312.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 417
disso que não pode haver livre-arbítrio no homem. Diz Espinoza, 113
“Hinc sequitur mentem humanam partem esse infiniti intellectus Dei: ac
proinde cum dicimus, mentem humanam hoc vel illud percipere, nihil
aliud dicimus, quam quod Deus, non quatenus infinitus est, sed quatenus
per naturam humanæ mentis explicatur, sive quatenus humanæ mentis
essentiam constituit, hanc vel illam habeat ideam.” “In mente nulla est
absoluta sive libera voluntas. Mens certus et determinatus modus
cogitandi est adeoque suarum actionum non potest esse causa libera.” 114
“Eodem hoc modo demonstratur, in mente nullam dari facultatem
absolutam intelligendi, cupiendi, amandi, etc.” 115
Diz Cousin: «Deste modo chegamos, na análise do mim, ainda por
via da psicologia, a um novo aspecto da ontologia, a uma atividade
substancial, anterior e superior a todas as atividades fenomênicas, a qual
produz todos os fenômenos da atividade, sobrevive a todos eles, imortal
e inesgotável, na destruição de suas manifestações temporais». 116 Assim,
nossa atividade é só uma manifestação temporal da atividade de Deus.
Todos nossos atos são Seus atos. 117
Hunt, analisando o sistema de Espinoza, e empregando
principalmente sua linguagem neste ponto, diz: «Espinoza atribuía a
Deus uma espécie de liberdade: uma livre necessidade. Mas às
existências criadas inclusive esta classe de liberdade é negada. “Não há
nada contingente na natureza dos seres; ao contrário, todas as coisas
estão determinadas pela necessidade da natureza divina para que existam
e ajam segundo uma maneira determinada”.
A “Natureza produzida” fica determinada pela “natureza
produtora”. Não age, antes, se age sobre ela. A alma do homem é um

113
Ethices, part ii. prop. xi. coroll., vol. ii. p. 87, edit. Jena, 1803.
114
Ibid. prop. xlviii. Demon. vol. ii. p. 121.
115
Ibid. Scholium.
116
Elements of Psychology, traduzido por Henry, N. Y., 1856, pág. 429.
117
Princeton Review, 1856, p. 368.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 418
autômato espiritual. ... Não pode haver nada arbitrário nos necessários
desenvolvimentos da essência divina». 118
Ao fazer o Panteísmo a criação de um desenvolvimento eterno,
necessário e continuado do Ser Infinito, toda a liberdade das segundas
causas fica necessariamente excluída. Pode-se fazer uma distinção entre
a necessidade pela que uma pedra cai ao solo e a necessidade pela qual
uma mente pensa; mas a necessidade é tão absoluta num caso como no
outro. A liberdade no homem é autodeterminação racional, isto é,
espontaneidade determinada pela razão. Mas a razão no homem, segundo
o Panteísmo, é impessoal. É Deus explicado em nós. Todos os atos da
mente humana são os atos de Deus determinados pela necessidade de sua
natureza. A mesma doutrina do fatalismo está implicada na ideia de que
a história é meramente o autodesenvolvimento de Deus. Uma ideia, do
Ser do Ser Infinito, exibe-se numa época ou nação, e outra diferente por
outra. Mas o todo é um processo tão necessário de desenvolvimento
como o crescimento de uma planta.
Assim, Sir William Hamilton diz que Cousin destrói a liberdade
divorciando-a da inteligência, e que sua doutrina é inconsequente não só
com o Teísmo, mas também com a moralidade, que não pode ser
fundamentada «numa liberdade que, no melhor dos casos, só escapa à
necessidade refugiando-se no acaso». 119 E Morell, um elogiador de
Cousin, diz que, segundo Cousin, «Deus é o oceano, nós só as ondas; o
oceano pode ser uma individualidade, e cada onda outra; mas contudo
são essencialmente uma e a mesma coisa. Não vemos como o Teísmo de
Cousin possa ser consistente com nenhuma ideia de mal moral; e
tampouco vemos como, partindo de tal dogma, pode jamais ele vindicar
e manter sua própria teoria da liberdade humana. Sobre tais princípios
Teístas, todo pecado deve ser simplesmente defeito, e todo defeito tem
que ser absolutamente fátuo». 120
118
Essay on Pantheism, p. 231.
119
Hamilton’s Discussions, p. 43.
120
History of Modern Philosophy, N.Y. 1848, p. 660.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 419
9. O Panteísmo, ao fazer do homem um modo da existência de
Deus, e ao negar toda liberdade da vontade, e ao ensinar que toda
«atividade fenomênica» é «uma manifestação fugaz» da atividade de
Deus, descarta toda possibilidade de pecado. Isto não significa que não
haja no homem sentimentos de aprovação e de desaprovação, nem uma
diferença subjetiva entre o bem e o mal. Isto seria tão absurdo como
dizer que não há diferença entre o prazer e a dor. Mas se Deus é ao
mesmo tempo Deus, natureza e humanidade, se a razão em nós é a razão
de Deus, se sua inteligência é nossa inteligência, sua atividade nossa
atividade; se Deus é a substância da qual o mundo é o fenômeno, se nós
somos só momentos na vida de Deus, então não pode haver nada em nós
que não esteja em Deus. O mal é só uma limitação, ou um bem não
desenvolvido. Uma árvore é maior e melhor que outro; uma mente é
mais vigorosa que outra; um modo de ação é mais prazenteiro que outro;
mas todos ao mesmo tempo são modos da atividade de Deus. A água é
água, seja que se encontre num atoleiro ou no oceano; e Deus é Deus, em
Nero ou em São João. Hegel diz que o pecado é algo imensuravelmente
maior que o movimento dos planetas, sempre obediente a uma lei, ou
que a inocência das plantas. Esta é, trata-se de uma mais alta
manifestação da vida de Deus.
Espinoza ensina que «o pecado não é nada positivo. Existe para nós
mas não para Deus. As mesmas coisas que aparecem como odiosas nos
homens são consideradas com admiração nos animais. ... Disso se segue
que o pecado, que só expressa uma imperfeição, não pode consistir em
nada que expresse uma realidade. Falamos com impropriedade,
aplicando linguagem humana a que está além da linguagem humana,
quando dizemos que pecamos contra Deus, ou que os homens ofendem a
Deus». 121
É consequência necessária da doutrina de que Deus é o Ser
Universal, que quanto mais de ser tanto mais de Deus, e

121
Hunt’s Essay on Pantheism, pág. 231.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 420
consequentemente tanto mais de bem. Correspondentemente, quanto
menos de ser, menos de Deus. Assim, toda limitação é má, e o mal é
simplesmente limitação do ser. Diz Espinoza: 122 “Quo magis
unusquisque — suum esse conservare conatur et potest, eo magis virtute
præditus est; contra quatenus unusquisque — suum esse conservare
negligit, eatenus est impotens.” Na demonstração desta proposição, ele
diz: “Virtus est ipsa humana potentia,” 123 fazendo energia e bondade
idênticos. Diz o professor Baur, de Tubinga: 124 «O mal é o que é finito;
porque o finito é negativo: é a negação do infinito».
É só outra forma desta doutrina que o poder ou a força é no homem
o único bem. Esta não significa a força de submeter-se às injúrias, da
força do sacrifício abnegado, da força para ser humildes e para resistir às
más paixões, mas a força para levar a cabo nossos próprios propósitos
em oposição à vontade, aos interesses ou à felicidade de outros. Isto é: a
razão da força. O vencedor sempre tem razão, os vencidos sempre estão
errados. Esta é só uma manifestação de Deus, suprimindo ou
transbordando uma manifestação menos perfeita. A doutrina de Espinoza
é: «O homem vê-se obrigado por sua natureza ao prosseguimento do que
é apropriado, e o ódio ao contrário, porque «cada um deseja ou rechaça
por necessidade, segundo as leis de sua natureza, aquilo que ele
considera bom ou mau». Seguir este impulso não é só necessário, mas
sim é o direito e dever de cada homem, e deveria considerar-se como
inimigo todo aquele que deseja estorvar a outro da satisfação dos
impulsos de sua natureza. A medida do direito de cada um é seu poder.
O melhor direito é o dos mais fortes, e assim como o homem sábio tem
um direito absoluto a fazer tudo o que dita a razão, ou o direito de viver
conforme as leis da razão, assim o homem ignorante e insensato tem
direito a viver conforme as leis de seus apetites». 125 Jamais a linguagem

122
Ethices, IV. prop. XX., vol. II. p. 217, edit. Jena, 1803.
123
Ibid.
124
Zeitschrift, de Tubinga, 1834, Drittes Heft, pág. 233.
125
Hunt., op. cit., p. 233.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 421
humana expressou um princípio mais imoral e desmoralizador. Dizer que
o dever de todo homem é buscar sua própria satisfação, gratificar os
impulsos de sua natureza; afirmando que é inimigo de alguém aquele que
tenta estorvar esta gratificação; que o único limite a tal gratificação é
nosso poder; que os homens têm o direito, se a isso se sentem inclinados,
a viver conforme as leis de seus apetites, é o mesmo que dizer que não
existe nenhuma obrigação moral, nem nada como o bem e o mal.
Cousin repete até a náusea a doutrina de que a força dá a razão; que
os mais fortes são sempre os melhores. «Geralmente, no êxito vemos»,
diz ele, «só um triunfo da força. ... espero ter mostrado que, porquanto
sempre tem que haver uma parte vencida, e que porquanto a parte
vencida é sempre a que deveria ser vencida, acusar o vencedor e tomar
partido contra da vitória é tomar partido contra a humanidade, e se
queixar do progresso da civilização. É necessário ir além: é necessário
demonstrar que a parte vencida merece ser vencida; que o partido
vencedor não só serve à causa da civilização, mas também é melhor e
mais moral que a parte vencida». «A virtude e a prosperidade, a desgraça
e o vício, estão em necessária harmonia». «A fraqueza é um vício, e por
isso é sempre castigada e batida». «Já é hora», diz ele, «que a filosofia da
história ponha sob seus pés as declamações da filantropia».126
Naturalmente, se Deus é a vida do mundo, se todo poder é seu poder, se
cada ato é seu ato, tem que ser verdade não só que não pode ter pecado,
mas também que os mais poderosos são sempre moralmente (se é que
esta palavra tem algum significado) os melhores, e que a força dá a
razão. Esta é a teoria sobre a qual se baseia o culto aos heróis, não só
entre os pagãos, mas também entre pretendidos cristãos de nosso tempo.
10. O Panteísmo é a própria deificação. Se Deus vem à existência
só no mundo, e se tudo o que é é uma manifestação de Deus, disso se
segue que (pelo que a esta terra concerne, e até onde os panteístas o
admitem ou reconhecem) a alma do homem é a forma mais elevada da

126
History of Modern Philosophy, traduzido por Wight, New York, 1852, vol. I, págs. 186, 187, 189.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 422
existência de Deus. Como as almas dos homens diferem muito entre si,
sendo umas muito superiores a outras, quanto maior é o homem tanto
mais divino ele é, isto é, tanto mais representa a Deus; tanto mais revela
da essência divina. O ponto mais alto do desenvolvimento é alcançado só
por aqueles que chegam à consciência de sua identidade com Deus. Esta
é precisamente a doutrina dos hindus, que ensinam que quando um
homem pode dizer: «Eu sou Brahma», chegou o momento de sua
absorção no Ser infinito. Esta é a base sobre a qual os filósofos
panteístas erigem sua pretensão de preeminência, e a base sobre a qual
concedem a preeminência de Cristo. Ele, mais que nenhum outro
homem, sondou as profundidades de Sua própria natureza. Ele pôde
dizer como nenhum outro: «Eu e o Pai somos um». Mas a diferença
entre Cristo e outros homens, segundo estes filósofos, é só de grau. A
raça humana é a encarnação de Deus, o que é um processo de eternidade
a eternidade. «A humanidade», diz Strauss, «é o Deus-homem; a chave
de uma verdadeira cristologia é que os pregados que a Igreja dá a Cristo
como indivíduo pertencem a uma ideia, um todo genérico». 127
11. Só há outro passo a dar, e é a deificação do mal. E os Panteístas
não vacilam em dar este passo; até onde o mal existe, é uma
manifestação tão verdadeira de Deus como o bem. Os ímpios são só uma
forma da automanifestação de Deus. O pecado é só uma forma da
atividade de Deus. Esta terrível doutrina é admitida abertamente.
Diz Rosenkranz: 128 «Die dritte Consequenz endlich ist die, dass
Gott der Sohn auch als identisch gesetzt ist mit dem Subject, in welchem
die religiose Vorstellung den Ursprung des Bösen anschaut, mit dem
Satan, Phosphorous. Lucifer. Diese Verschmelzung begründet sich darin.
dass der Sohn innerhalb Gottes das Moment der Unterscheidung ist, in
dem Unterschied aber die Möglichkeit der Entgegensetzung und
Entzeweiung angelegt ist. Der Sohn ist der selbstbewusste Gott». Uma

127
Dogmatik, II, p. 215.
128
Encyklopädie, p. 51.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 423
oração como a anterior nunca foi escrita em inglês, e esperamos que
nunca o seja. A conclusão que mantém, entretanto, é inevitável. Se Deus
é tudo, e se há um Satã, Deus tem que ser Satã. Rosenkranz diz que a
mente se horroriza perante tal linguagem só porque não reconhece a
íntima relação entre o bem e o mal, que há mal no bem, e bem no mal.
Sem mal não pode haver bem.
É devido a esta deificação do mal que um recente escritor alemão 129
disse que este sistema deveria ser chamado Pandiabolismo em lugar de
Panteísmo. Se não erramos, é o autor do artigo em Kirchen-Zeitung, 130
editado por Hengstenberg, onde se diz: «esta é a verdadeira blasfêmia
positiva contra Deus – esta blasfêmia velada – este diabolismo do
enganoso anjo de luz – este prorromper em palavras temerárias, com as
quais o homem de pecado se senta no templo de Deus, dizendo que ele é
Deus. O Ateu não pode blasfemar com tanta energia como esta; sua
blasfêmia é meramente negativa. Simplesmente diz: “Não há Deus”. É
só do Panteísmo que pode proceder uma blasfêmia tão desenfreada, de
zombaria tão inspirada, tão devotamente ímpia, tão desesperada em seu
amor pelo mundo – uma blasfêmia tão sedutora e tão ofensiva que bem
pode atrair a destruição do mundo».
Entretanto, o panteísmo torna-se todas as coisas a todos os homens.
Aos puros lhes é dado lugar para um sentimento religioso sentimental
que vê a Deus em tudo e a tudo em Deus. Para os orgulhosos lhes é uma
fonte de uma arrogância e uma vaidade intoleráveis. Aos sensuais lhes é
dada autoridade para toda forma de indulgência. Sendo o corpo, segundo
a teoria de Espinoza, um modo da extensão de Deus, como a mente é um
modo da inteligência divina, o corpo tem seus direitos divinos, o mesmo
que a alma. Inclusive alguns dos mais respeitados da escola Panteísta
não vacilam em dizer, com referência aos freios da moralidade: «Está
certo que os direitos de nossa natureza sensual se afirmem, de vez em

129
O historiador Leo, cremos.
130
1836, pág. 575.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 424
131
quando, de maneira clara e firme». Por isso, este sistema, como
inclusive o diz o moderado Tholuck, «chega ao mesmo resultado que o
materialismo dos enciclopedistas franceses, que se lamentavam de que a
humanidade tivesse sacrificado os verdadeiros prazeres temporais pelos
imaginários prazeres da eternidade, e as prolongadas alegrias da vida
pela momentânea felicidade de uma morte em paz».
Assim, o Panteísmo submerge tudo em Deus. O universo é a forma
existencial de Deus; isto é, o universo é sua existência. Toda razão é sua
razão; toda atividade é sua atividade; a consciência das criaturas é toda a
consciência que Deus tem de Si mesmo; o bem e o mal, a dor e o prazer,
são fenômenos de Deus; modos nos quais Deus se revela, a maneira em
que Ele passa do Ser à Existência. Não é Ele, portanto, uma pessoa a
quem possamos adorar e em quem podemos confiar. É só a substância da
que o universo e tudo o que este contém são a manifestação sempre
cambiante. O Panteísmo não admite nenhuma liberdade, nenhuma
responsabilidade, nenhuma vida consciente após a morte. Cousin
recapitula a doutrina neste parágrafo inclusivo: «O Deus da consciência
não é um Deus abstrato, um monarca solitário exilado além dos limites
da criação, sobre o deserto trono de uma eternidade silenciosa, e de uma
existência absoluta que parece inclusive a negação da existência. Ele é
um Deus ao mesmo tempo verdadeiro e real, a uma substância e causa,
sempre substância e sempre causa, sendo substância só até onde Ele é
causa, e causa só até onde Ele é substância, quer dizer, sendo causa
absoluta, um e muitos, eternidade e tempo, espaço e número, essência e
vida, indivisibilidade e totalidade, princípio, fim e centro, no topo do Ser
e em seu menor grau, infinito e finito ao mesmo tempo, tríplice, numa
palavra, isto é, ao mesmo tempo Deus, natureza e humanidade. De fato,
se Deus não é tudo, é nada». 132

131
Evangelische Kirchen-Zeitung, 1839, pág. 31.
132
Bischer, citado em Philosophical Fragments, Prefácio à Primeira Edição. Veja-se History of
Modern Philosophy, traduzida por Wight, N.Y., 1852, Vol. I, págs. 112, 113.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 425
História do panteísmo
O Panteísmo demonstrou ser a forma de pensamento humano mais
persistente, assim como a mais estendida, a respeito da origem e da
natureza do universo, e sua relação com o Ser Infinito, cuja existência
em alguma forma parece ser uma assunção universal e necessária. As
ideias panteístas subjazem a quase todas as formas de religião que
existiram no mundo. O Politeísmo, que foi quase universal, tem sua
origem na adoração da natureza; e a adoração da natureza repousa sobre
a hipótese de que a Natureza é Deus, ou a manifestação, ou forma de
existência do infinito desconhecido. Naturalmente, é só um muito breve
esboço das diferentes formas deste prodigioso sistema de erro o que se
pode dar nestas páginas.

B. Panteísmo Brahmânico

Etnograficamente, os hindus pertencem à mesma raça que os


gregos, romanos e outras grandes nações europeias. Nos tempos pré-
históricos, uma divisão da grande família ariana se estendeu para o oeste
pelo território que agora constitui a Europa. Outra divisão se estendeu
para o sul e o este, e penetrou na Índia, deslocando quase totalmente aos
moradores originais daquela grande, diversa e fértil região.
Muito antes que a Grécia ou Roma chegassem a ser comunidades
cultivadas, e quando a Europa era só morada de bárbaros sem civilizar, a
Índia estava coberta de cidades ricas e populosas; as artes tinham
chegado a seu máximo esplendor; produziu-se uma literatura e uma
língua que, a juízo dos eruditos, rivalizam com as da Grécia e Roma, e já
se acostumavam em suas escolas alguns sistemas de filosofia tão
profundos, sutis e diversificados como quaisquer outros que tenha
podido chegar jamais a elaborar a mente humana.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 426
*
Os hindus somam quase duas centenas de milhões de almas. E são
agora, nos princípios essenciais de sua filosofia, de sua religião e de sua
organização social, o que eram mil anos antes do nascimento de Cristo.
Nunca na história do mundo se viu uma forma de filosofia religiosa
abraçada tão majoritariamente, tão persistentemente, nem que com tanta
eficácia tenha moldado o caráter e determinado o destino de um povo.
Por isso, poucas coisas têm um maior interesse que determinar qual
seja o verdadeiro caráter da religião hindu. E a elucidação desta questão
não está livre de dificuldades; por isso é que recebeu muitas respostas
diferentes. A dificuldade, neste caso, surge de várias fontes.
1. Os livros religiosos dos hindus não só estão escritos em sânscrito,
uma língua ininteligível exceto para uma pequena classe de eruditos, mas
também são extremamente volumosos. Os Vedas, os mais antigos e
autoritativos, enchem quatorze volumes em fólio. Os Institutos do Menu,
os Puranas e os poemas sagrados «Ramayana» e «Mahabarata» são
igualmente extensos. O primeiro destes poemas consiste de cem mil
versos, e o segundo de quatrocentos mil, enquanto que a Eneida tem só
doze mil, e a Ilíada vinte e quatro mil. Disse Sir William Jones que o
estudioso da literatura e religião hindus encontra-se perante a presença
de uma infinitude.
2. Entretanto, não é só o volume dos livros sagrados autoritativos,
mas sim o caráter de seu contido o que cria a dificuldade de alcançar
uma ideia clara do sistema que ensinam: Os Veda consistem
principalmente de hinos de várias idades, com intercalações de breves e
ocultas explicações ou comentários de caráter filosófico ou teológico. Os
Puranas estão repletos de lendas extravagantes; e é difícil decidir quais
devem ser interpretados histórica, e quais mitologicamente.
3. O espírito de exagero é tão característico da mente hindu que
declarações que têm a intenção de ser tomadas literalmente chocam à
mente por sua extravagância. Assim, seus livros fazem da terra um plano

*
Lembre-se que esta obra foi publicada em 1871. (N. do T.)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 427
circular de cento e setenta milhões de milhas de diâmetro. Falam de
montanhas de sessenta milhas de altura, e de períodos de quatro mil
milhões de milhões de anos.

A religião dos hindus, não originalmente monoteísta.


É opinião comum que a religião hindu foi monoteísta originalmente
e durante séculos; que do monoteísmo foi surgindo o atual complicado e
monstruoso politeísmo, e que contemporaneamente entre a classe
filosófica se desenvolveram diferentes formas de Panteísmo. Mas isto é
contrário a alguns fatos bem estabelecidos, e é totalmente insatisfatório
como solução do grande problema da vida hindu.
Certamente, é coisa certa, como sabemos pela Bíblia, que o
monoteísmo foi a mais antiga forma de religião entre os homens. E
também é certo, com toda probabilidade, que os Veda, que são coleções
de antigos hinos, contêm alguns que pertencem ao período monoteísta.
Entretanto, a maioria destes que parecem supor a existência de um só
Deus devem ser entendidos em sentido panteísta, e não teísta.
Reconhecem um Ser divino, mas que inclui a todas as outras formas do
ser. A história da religião mostra que quando o monoteísmo deixou de
ser entre os homens, porque «não tiveram a bem o reconhecer a Deus»,
veio em seu lugar o culto à natureza. Este culto à natureza adotou duas
formas. Os diferentes elementos, como fogo, ar e água, foram
personificados, atribuindo-se os atributos pessoais, o que deu origem ao
politeísmo. Ou a natureza como um todo transformou o objeto da
adoração, dando origem ao Panteísmo.
É evidente que entre os muito intelectuais arianos que se assentaram
na Índia, entre mil e dois mil anos antes de Cristo, tinha obtido o
domínio a postura panteísta, não só como teoria filosófica, mas sim
como doutrina religiosa. Transformou, como seguiu sendo até o dia de
hoje, o fundamento da vida religiosa, civil e social do hindu. É isto o que
lhe dá sua importância absoluta. Levanta-se sozinho na história. Em
nenhum outro caso, nem entre nenhuma outra nação, chegou a ser o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 428
Panteísmo uma forma controladora de crença religiosa dentro do povo,
para determinar suas instituições e moldar seu caráter. Por isso, os
hindus têm um interesse para os cristãos e para o filósofo religioso como
aquele que não tem nenhuma outra nação pagã. Exibem, e
indubitavelmente têm estado dispostos a exibir os legítimos efeitos do
Panteísmo. Esta doutrina teve um controle dominante durante milênios
sobre um povo eminentemente cultivado e inteligente, e em seu caráter e
estado vemos seus justos frutos.

Era Panteísta
O fato de a religião dos hindus ser fundamentalmente panteísta é
evidente:
1. Pelo que seus escritos sagrados ensinam a respeito do Ser
Supremo. designa-se por uma palavra em gênero neutro, Brahma. Nunca
é invocado como uma pessoa. Nunca é adorado. Não tem atributos,
senão os que se possam pregar do espaço. Diz-se que é eterno, infinito e
imutável. Diz-se que continuou por eras sem fim em estado de ser
ininteligente e inconsciente. Vem à existência, à consciência e à vida no
mundo. Desenvolve-se a si mesmo ao longo de incontáveis eras em todas
as formas da existência finita; logo, por meio de um processo gradual
semelhante; todas as coisas ficam submersas no ser inconsciente. As
ilustrações da origem do mundo usualmente empregadas são faíscas
surgindo de uma massa ardendo, ou melhor ainda, vapor surgindo do
oceano, condensando-se, e voltando a cair à fonte da qual proveio. O Ser
como tal, ou o Infinito, é, portanto, contemplado em três aspectos: como
vindo à existência, como desenvolvendo-se a si mesmo no mundo, como
recebendo de novo todas as coisas no abismo do simples ser. Estes
diferentes aspectos são expressos pelas palavras Brahma, Vishnu e
Shiva, com os que se correspondem muito imperfeitamente nossos
termos de Criador, Preservador e Destruidor.
Temos aqui a fórmula panteísta constantemente recorrente: Tese,
Análise, Síntese; Ser, Desenvolvimento, Restauração; o Infinito, o Finito,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 429
e sua Identidade. A principal diferença entre o sistema Brahmânico e as
teorias dos panteístas posteriores é que estes últimos fazem o universo
coeterno com Deus. De eternidade a eternidade, o Infinito se desenvolve
no Finito. Enquanto que, segundo o sistema Brahmânico, houve um
período inconcebivelmente longo de repouso anterior ao processo de
desenvolvimento, e que este processo, depois de milhões de milhões de
eras, deve ser seguido por um processo semelhante de inconsciência e
repouso.

Relação do Ser Infinito com o Mundo.


2. A relação de Deus com o mundo, ou antes, do Infinito com o
Finito, é a mesma no sistema Brahmânico que nos outros sistemas
panteístas. A relação já foi indicada. É a de identidade. O mundo é a
forma existencial de Deus. Deus é tudo, bem e mal; e tudo é Deus. Mas
em graus muito diferentes. Há mais de Ser (isto é, de Deus) numa planta
que em matéria não orgânica; mais num animal que numa planta; mais
no homem que nestes últimos; mais num homem que em outros, ou
numa raça de homens que em outra.

Relação do Panteísmo com o Politeísmo.


3. O vasto sistema politeísta dos hindus se baseia no panteísmo e é
sua consequência lógica. Em primeiro lugar, como já se observou,
Brahma, Vishnu e Shiva, usualmente chamados a Trindade Hindu, não
são pessoas, e sim personificações, ou diferentes aspectos sob os quais se
deve considerar o Ser Infinito. Em segundo lugar, como o Ser Infinito se
manifesta em graus diferentes em diferentes pessoas e coisas, qualquer
coisa extraordinária na natureza, qualquer homem notável, é considerado
como uma especial manifestação ou encarnação de Deus. Daí os
frequentes avatares ou encarnações da mitologia hindu. Desta maneira
podem-se multiplicar e se multiplicaram os deuses. Qualquer pessoa ou
coisa, ou qualidade, podem ser deificados como uma manifestação do
Ser infinito. Em terceiro lugar, isto explica os fatos de que os deuses
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 430
hindus são considerados como carentes de excelências morais, e que
inclusive o mal, como sob o nome do Kali, a deusa da crueldade e a
patroa dos assassinos, pode ser objeto especial de reverência. Em quarto
lugar, nenhum deus, nem sequer Brahma nem Vishnu é, segundo o
sistema hindu, imortal. Todos os deuses e deusas devem no final ficar
submersos no abismo do Ser infinito e inconsciente.

O efeito do Panteísmo sobre a religião.


4. O Panteísmo, ao fazer do ser Deus, ao não reconhecer nenhum
atributo mais que o poder nos objetos de adoração, divorcia a moralidade
da religião. Este sistema não tem capacidade, por muito sinceramente
que se abrace, para rebater as leis de nossa natureza. E, por isso, apesar
da prevalência de uma doutrina que nega a possibilidade tanto do pecado
como da virtude, e que faz depender tudo da fatalidade, ou do poder do
ser arbitrário, as pessoas reconhecem em várias formas a obrigação da lei
moral e a excelência da virtude. Mas isto não tem nada que ver com a
religião deles. O grande objeto de todas as observâncias religiosas era a
final absorção em Deus; seu objeto imediato era propiciar algum poder
para que o adorador pudesse ascender um ou mais degraus para aquele
estado em que é possível a absorção. A respeito disto, diz o professor
Wilson:133 «A total dependência na Krisna, ou em qualquer outra
deidade favorita, não só elimina a necessidade da virtude, mas também
santifica o vício. A conduta é totalmente indiferente. Não importa quão
atrozmente pecador possa ser alguém: se pinta sua rosto, seu peito e seus
braços com umas certas marcas sectárias, ou melhor ainda, se marca sua
pele de maneira indelével com um selo de ferro ao vermelho, se cantar
constantemente hinos em honra de Vishnu, ou, o que é igualmente
eficaz, se passar horas na simples reiteração de seu nome ou nomeie; se
morrer com a palavra Hari, ou Ramo, ou Krishna em seus lábios, e com
o pensamento dele em sua mente, pode ser que tenha vivido como um

133
Essays and Lectures chiefly on the Religion of the Hindus, Vol. ii., p. 75; ed. de Londres, 1862.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 431
monstro de iniquidade, mas tem a certeza do céu». «A certeza do ciclo»
é uma forma cristã de expressão, e comunica uma ideia alheia à mente
hindu. O que um adorador assim espera é que quando voltar a nascer no
mundo possa ser num estado superior e muito mais próximo à sua final
absorção. Como o Professor Wilson é não só moderado, mas também
quase um apologista na exposição que faz da religião hindu, a declaração
recém-citada não pode ser suspeita de distorção nem de exagero.

O caráter do culto hindu.


As duas características principais do culto hindu são a crueldade e a
indecência. E ambas as coisas estão suficientemente explicadas pelo
Panteísmo subjacente a todo o sistema. O Panteísmo nega a distinção
entre virtude e vício; não reconhece mais atributos que o poder; deifica o
mal; «santifica o vício»; as paixões, tanto as sensuais como as malignas,
são tanto um modo de manifestação divina como a mais heróica virtude.
Na realidade, não há lugar para a ideia de excelência moral. Por isso, os
mandamentos da religião têm que ver quase exclusivamente com ritos e
cerimônias. O brâmane, quando se levanta, tem que banhar-se de uma
certa maneira, pôr-se de pé numa certa postura, estender seus dedos de
uma maneira prescrita; tem que saudar o sol nascente, sustentando-se
com um pé; tem que repetir certas palavras. Quando come, o prato tem
que ser posto segundo as normas; tem que fazer alguns movimentos
predefinidos com suas mãos, e assim a todo o longo do dia. Cada ato está
prescrito. Tudo é religioso; tudo ou contamina, ou purifica, num sentido
cerimonial; mas nesta religião não parece haver nenhum conceito de
contaminação moral.

A antropologia dos hindus.


5. A antropologia dos hindus demonstra o caráter panteísta de todo
seu sistema. O homem é só uma parte de Deus, um modo de Sua
existência. É comparado com um pouco de água salgada guardada numa
garrafa, que é lançada ao oceano. A água de dentro da garrafa é a mesma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 432
em sua natureza que a de fora. Logo que a garrafa se rompe, a água
dentro dela se perde no oceano ao redor. Outra ilustração do destino da
alma é o de um montinho de sal lançado ao oceano, que imediatamente
desaparece. Sua individualidade perde-se. Esta absorção da alma é a
maior bem-aventurança que o Panteísmo oferece a seus seguidores. Mas
isto, no caso da imensa maioria dos homens, só pode ser alcançado
depois de um longo processo de transmigração que se estende, talvez, ao
longo de milhões de anos. Se alguém for fiel e escrupuloso em suas
observâncias religiosas, volta para mundo depois da morte num estado
mais elevado. Assim, um Sudra pode passar a ser um Brâmane. Mas se
for infiel, nascerá num estágio inferior, talvez na de um réptil. É assim,
por estas alternativas, que se chega finalmente à desejada absorção no
Brahma. Com relação à casta sagrada, a dos brâmanes, o processo pode
ser mais breve. A vida de um brâmane se divide, segundo os Institutos
do Menu, em quatro períodos: infância, vida de estudante, vida
doméstica e finalmente o período ascético. Logo que um brâmane sente
que a ancianidade se aproxima, é instruído a retirar-se do mundo; passa a
viver como um ermitão, e a subsistir só de ervas; nega-se todo negócio e
prazer, para que a continuada negação do eu possa não só destruir o
poder do corpo, e libertar-se da influência das coisas visíveis e
temporais, mas também perder deste modo a consciência de sua
individualidade, e poder finalmente chegar a dizer: «Sou Brahma», e
logo, perde-se no infinito.
A vida hindu está dominada por esta doutrina da absorção em Deus
depois de uma longa série de transmigrações, e pela divisão do povo em
castas, que tem deste modo sua base na teoria que mantêm da relação de
Deus com o mundo, ou, do Infinito com o Finito. Os brâmanes, ou classe
sagrada, é uma manifestação mais alta de Deus que a classe militar; os
militares, que a classe mercantil; os mercadores, que os servos. Esta se
expressa de maneira popular dizendo que a primeira casta procede da
cabeça, a segunda dos braços, a terceira do corpo, e a quarta das pés do
Brahma. O membro de uma das castas inferiores não pode passar a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 433
nenhuma das superiores, exceto por méritos (por observâncias
religiosas), pelo que em seu seguinte nascimento no mundo pode passar
a um grau superior; e um de uma casta superior pode, por seu descuido
da norma prescrita de vida, encontrar-se em seu seguinte nascimento
relegado a uma casta inferior, ou inclusive a ser uma besta ou um réptil.
Daí o horror de perder a casta, a qual põe o homem fora da linha do
progresso, consignando-o a um estado de degradação quase sem fim.

O efeito do panteísmo na vida social dos hindus.


6. Toda a vida religiosa e social dos hindus está controlada pelo
princípio radical de que todas as coisas são Deus, ou modos de Sua
existência, e que todas estão destinadas a voltar de novo a Ele. Para um
hindu, sua existência individual lhe constitui uma carga. É ter caído de
Deus. Por isso a volta, perder-se no infinito, é o grande objeto de desejo
e de esforço. Como este fim não se deve alcançar pela virtude, mas pelo
ascetismo, pela propiciação dos deuses, sua religião é simplesmente um
conjunto de cerimônias carentes de sentido, atos de negação de si
mesmo, ou de torturas autoinfligidas. Sua religião, portanto, tende a
destruir todo interesse na vida presente, que é considerada como uma
carga e uma degradação. Destrói todo propósito de esforço. Não
apresenta incentivo algum à virtude. Promove o vício. Tem todos os
efeitos do fatalismo. A influência do culto a deidades sem excelências
morais, algumas delas monstros de iniquidade; a crença de que a
crueldade e a obscenidade são aceitáveis para estas deidades, e que
asseguram o favor das mesmas, não pode ser mais que degradante. Por
isso, o mundo observa na Índia a apelação prática do Panteísmo. Este
sistema esteve operando sem restrição alguma, não como filosofia, mas
sim como crença religiosa prática, durante milhares de anos, e entre um
povo pertencente à mais favorecida das várias raças humanas, e o
resultado o temos então perante nossos olhos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 434
134
«A Grécia e a Índia», diz Max Müller, «são certamente os dois
polos opostos no desenvolvimento histórico do homem ariano. Para o
grego, a existência está cheia de vida e de realidade; para o hindu é um
sonho, uma ilusão.... O hindu entra neste mundo como um estranho;
todos os seus pensamentos se dirigem a outro mundo; não toma parte
nem sequer quando o impulsionam a agir; e quando sacrifica sua vida, é
tão somente para livrar-se dela. Não é para assombrar-se que uma nação
como a Índia cuidasse tão pouco da história; não é para assombrar-se de
que as virtudes sociais e políticas fossem pouco cultivadas, e que as
ideias do útil e do belo dificilmente fossem conhecidas. Entretanto,
tinham aquilo que os gregos podiam imaginar tão pouco como eles não
podiam tampouco assimilar os elementos da vida grega. Eles fechavam
seus olhos a este mundo de aparência externa e de atividade, para abri-
los de cheio no mundo de pensamento e de repouso. A vida deles era um
anelo pela eternidade; a atividade deles era uma luta por voltar àquela
essência divina da qual esta vida parecia lhes haver separado. Crendo
como criam num Ser divino e eterno realmente existente (τὸ ὄντως ὄν [to
ontos on]), não podiam crer na existência deste mundo passageiro. Se um
existia, o outro só podia parecer existir, se eles viviam em um, não
poderiam viver no outro. A existência deles na terra lhes era um
problema, e sua vida eterna uma certeza. O objeto supremo de sua
religião era restaurar aquele vínculo por aquele que seu próprio eu
(âtman) estava ligado com o Eu eterno (paramâtman); recuperar aquela
unidade que tinha ficado apagada e obscurecida pelas ilusões mágicas da
realidade, pelo chamado Maia da criação».
A fim de mostrar «quão extensamente esta ideia do Atman como o
Espírito Divino tinha penetrado nas primitivas especulações religiosas e
filosóficas dos hindus», citação de um diálogo de um dos Vedas em que,
entre outras coisas, um dos oradores diz: «Todo aquele que busque este

134
A History of Ancient Sanskrit Literature, so far as it illustrates the Primitive Religion of the
Brahmans, pp. 18, 19.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 435
mundo, os deuses, todos os seres, este universo, fora do Espírito Divino,
deveria ser abandonado por todos eles. Este Bramanismo, este poder
kshatra, este mundo, estes deuses, estes seres, este universo, tudo é o
Espírito Divino». 135
As ilustrações empregadas pelo orador para mostrar as relações do
universo fenomênico com Deus se derivam dos sons surtos de um
tambor ou de um alaúde, de fumaça surgindo de um fogo, de vapor do
mar. Acrescenta ele: «Sucede conosco, quando entramos no Espírito
Divino, como se fosse lançado ao mar um punhado de sal; dissolve-se na
água (da qual foi produzida), e não deve voltar a ser tirado dela. Mas
onde se tire água e se prove, é sal. Assim é este grande, infinito e
ilimitado Ser uma só massa de conhecimento. Assim como a água se
torna sal, e o sal volta a converter-se em água, assim o Espírito Divino
apareceu dos elementos, e volta de novo para eles. Quando nos
desvanecemos, já não há mais nenhum nome». 136
Por isso, não pode haver nenhuma dúvida razoável de que o
Panteísmo está na base da religião na Índia. Há, certamente, a mesma
diferença entre o atual complexo e corrompido politeísmo das hindus e
os ensinos dos Vedas que a que há entre o Catolicismo Romano de
nossos dias e a cristandade primitiva. Entretanto, há esta importante
distinção entre os dois casos: O Papado é uma perversão do cristianismo
mediante a introdução de elementos incongruentes derivados de fontes
judaicas e pagãs, enquanto que a religião da Índia moderna é o resultado
legítimo e lógico dos princípios dos mais antigos e mais puros escritos
sagrados hindus.
As fontes mais acessíveis de informação sobre a literatura e a
religião da Índia, são os escritos do Sir William Jones, os escritos de
Colebrooke, o Diário da Sociedade Asiática, as obras do Prof. Wilson, de
Oxford, em especial seus “Essays and Lectures om the Religion of the

135
History of Ancient Sanskrit Literature, pág. 23.
136
Ibid, p. 24.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 436
Hindus”; a obra do Max Müller que acabamos de citar. A “India and
Indian Missions,” do Dr. Duff, e as histórias da Índia, por Macaulay,
Elphinstone, etc.

C. O panteísmo grego.

A observação de Max Müller de que a Grécia e a Índia «são


certamente os dois paus opostos no desenvolvimento histórico do
homem ariano» é notavelmente correta. Os gregos criam em e viviam
para o presente e a visível; o hindu cria em e vivia para o invisível e o
futuro. Entretanto, havia uma tendência nas mentes mais elevadas entre
os gregos a adotar as mesmas ideias especulativas quanto a Deus e o
universo, o Infinito e o Finito, que as que prevaleciam na Índia. Mas para
os gregos tratava-se de umas especulações; para o hindu, era uma crença
religiosa prática.
Falando em termos gerais, as diferentes formas da filosofia grega se
caracterizam pelo esforço de reduzir todas as formas de existência à
unidade; pelo intento de descobrir uma substância, princípio ou poder ao
qual se possam atribuir todos os modos de manifestação do ser. Às vezes
esta substância supunha-se material; às vezes, espiritual; às vezes, a
evidente incompatibilidade entre os fenômenos da mente e os da matéria
forçavam a admissão de dois princípios eternos: um ativo, o outro
passivo; um espiritual, o outro material. Assim, o princípio fundamental
ou ideia da filosofia grega era panteísta, seja fora em sua forma
materialista seja espiritualista ou hilozoísta.

A escola jônica.
A mais antiga escola entre os gregos foi a jônica, representada por
Tais de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes também de Mileto, e
Heráclito de Éfeso. Estes filósofos floresceram por volta de 600 a 500
a.C. Todos eram materialistas em suas teorias. Para Tales, a substância
primária universal era a água; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 437
era o fogo «Foi o intento desta mais antiga das filosofias jônicas, deduzir
a origem de todas as coisas de uma causa radical simples, uma
substância cósmica, em si mesma imutável, mas entrando na mudança
dos fenômenos; e é por isso que estes filósofos não tinham lugar em sua
doutrina para deuses, ou seres transmundanos, fazendo e regendo as
coisas segundo sua vontade; e, de fato, Aristóteles observou também a
respeito dos antigos fisiológicos, que não tinham distinto a causa do
movimento da própria matéria ». Döllinger diz de Heráclito, em sua
erudita obra The Gentile and the Jew in the Courts of the Temple of
Christ, 137 que «por seu "fogo" significava uma substância etérea como
matéria primordial, a alma que impregnava o Universo, e que era sua
alma animadora, uma matéria que ele concebia não como um mero fogo
presente, mas sim calórico, e este ser, ao mesmo tempo o único poder
operando no mundo, omnicriativo e destruidor de maneira alternativa,
era, por falar de maneira geral, a única existência real e verdadeira entre
todas as coisas. Porque tudo tinha sua origem só na constante
modificação deste fogo eterno e primordial: todo mundo era um fogo
morrendo e voltando-se para acender numa sucessão fixa, enquanto que
os outros elementos são só fogo convertido por condensação e rarefação
numa variedade de formas. Assim, a ideia de um ser permanente é um
engano; tudo está em estado de perpétuo fluxo, um eterno indo ser
(Werden), e nesta corrente o espírito é arrastado assim como o corpo,
sorvido, e voltado a nascer renovadamente.... Heráclito, como qualquer
outro Panteísta consistente o faria, chamou Zeus à alma comum do
mundo, ao fogo todo inclusivo; e o fluir da mudança perpétua e a
tendência a ser, na qual isso entra, denominou-o poeticamente como
Zeus brincando consigo mesmo». 138
Cousin diz: “Porque a escola jônica, tanto em seus etapas, não havia
outro Deus que a natureza. O panteísmo é inerente a seu sistema. O que é

137
Döllinger. The Gentile and the Jew, traduzido por Darnell, Londres, 1862 Vol. I pág. 250.
138
Ibid. Vol. I. pág. 252.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 438
o panteísmo? É a concepção do universo, como a única existente, como
autossuficiente, e que tem sua explicação em si mesmo. Toda a filosofia
nascente é uma filosofia da natureza, e portanto se inclina ao panteísmo.
O sensacionalismo dos jônios por necessidade teve essa forma, e, para
falar francamente, o panteísmo não é mais que ateísmo.” 139
Cousin adapta a definição de panteísmo a fim de excluir de seu
sistema. Com ele, o universo material por si só não é Deus. Ele crê em
“Deus, a natureza e a humanidade.” Mas estes três são um. “Se Deus,”
ele diz, “não é tudo, Ele não é nada.” Isto, entretanto, é verdadeiro
panteísmo (embora numa forma mais filosófica), como o materialismo
dos jônicos.

A escola eleática.
A escola eleática ou italiana da que os principais expoentes são
Xenofonte, Parmênides e Zenão, estava inclinada para o outro extremo,
ao de negar a mesma existência da matéria. Destes filósofos diz Cousin,
«Deduziram-no tudo a uma existência absoluta, que se aproximava quase
ao Niilismo, ou a negação de toda existência». 140 De Xenofonte, nascido
em Cólofon em 617 a.C., diz Döllinger: 141 «Com todas as suas asserções
de tipo monoteísta, seguia sendo um Panteísta, além disso, um Panteísta
materialista e os antigos assim o entenderam universalmente. Certamente
que tinha presente em sua mente a ideia de um ser, um e espiritual,
abrangendo todo o complemento da existência e pensamento dentro de si
mesmo; mas este ser era em seu ponto de vista só o poder geral da
natureza; a unidade de Deus era para ele idêntica com a unidade do
mundo, e esta, novamente, só a manifestação do ser invisível, chamado
Deus, e por isso ele o explicava como incriado, eterno e imperecível». É
difícil ver nenhuma distinção entre esta e a moderna doutrina panteísta
de que Deus é a substância da qual o mundo é o fenômeno; ou por que
139
Histoire Generale de la Philosophie, Paris, 1863, vol. I. p. 107.
140
Historie Generale de la Philosophie, Paris, 1867, vol. I. p. 116; edit. 1863, p. 111.
141
The Gentile and the Jew, vol. I. p. 260.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 439
Xenófanes deve ser considerado como mais materialista que Schelling
ou Cousin.
Parmênides de Eleia, em cerca de 500 a.C., era mais idealista. Ele
alcançou a ideia de um ser puro e simples em oposição ao princípio
material da escola jônica. Mas este «ser» não era uma «ideia metafísica
pura, porque». diz Döllinger, «expressou-se de tal maneira que parecia
representá-la num momento como corpórea, e estendida no espaço, e em
outro momento como pensante. Um de seus ditos era: "Pensar, e o objeto
do qual é o pensamento são uma e a mesma coisa".... Para Parmênides
não havia nenhuma ponte que levasse deste puro e simples "ser" ao
mundo dos fenômenos, do múltiplo e do movimento; e por isso negou a
realidade de tudo o que vemos; todo mundo dos sentidos devia sua
existência só às ilusões do sentido e aos vácuos conceitos que os mortais
erigiam em torno a isso». 142 Assim, Parmênides antecipou Schelling ao
ensinar a identidade de sujeito e objeto.

Os Estoicos.
Os Estoicos se originam com Zenão de Cítio, no Chipre (340-260
a.C.). A doutrina dos mesmos já foi tratada sob o cabeçalho do
Hilozoísmo. Döllinger diz deles: «O sistema Estoico está erigido sobre
um absoluto Materialismo, edificado sobre doutrina heraclítica. Adotou
só causa corporais, e só reconhece dois princípios – a matéria e uma
atividade residente na matéria, desde a eternidade, como é a energia, e
lhe dando forma. Todo o real é corpo; não há coisas imateriais,
porquanto nossas abstrações, espaço, tempo, etc., só têm existência em
nossos pensamentos; pelo que tudo o que realmente existe só pode ser
conhecido através dos sentidos».143 Entretanto, esta avaliação fica
modificada pelo que diz em outros lugares. Está muito claro que os
Estoicos posteriores, especialmente entre os latinos, como Sêneca e

142
Ibid. vol. i. p. 261.
143
The Gentile and the Jew, Vol. I., pág. 349.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 440
Marco Aurélio, consideravam o princípio geral que animava a matéria
como possuidor de todos os atributos da mente. A respeito disto diz
Döllinger: «Os dois princípios, matéria e energia, são para os Estoicos só
uma e a mesma coisa considerada em diferentes relações. A matéria
demandava para sua existência um princípio de unidade para lhe dar
forma e mantê-la junta. E este, o elemento ativo, é inconcebível sem
matéria, como sujeito em que e sobre que existe e habita, e em que opera
e se move. Assim, o elemento positivo é matéria; mas concebida sem
propriedades; o elemento ativo, impregnando-o e vivificando o todo, é
Deus na matéria. Mas a verdade é que Deus e a matéria são idênticos; em
outras palavras, a doutrina Estoica é Panteísmo hilozoico». «Assim,
Deus é a alma e mundo, e o próprio mundo, não agregado de elementos
independentes, mas sim um ser organizado, vivente, cujo complemento e
vida é uma só alma, ou fogo primordial, exibindo diferentes graus de
expansão e de calor. ... Deus, assim, em seu aspecto físico, é o fogo
mundano, ou calor vital, que tudo penetra, a só e única causa de toda
vida e movimento, e, ao mesmo tempo, a necessidade que rege o mundo;
mas, por outro lado, como a causa universal só pode ser uma alma cheia
de inteligência e sabedoria, ele é a inteligência do mundo, um ser bem-
aventurado, e o autor da lei moral, que está constantemente ocupado no
governo do mundo, embora seja precisamente este próprio mundo». 144
“A única substância é Deus e a natureza em conjunto, dos quais tudo o
que deve ser, e deixa de ser, toda a geração e a dissolução, são meras
modificações. Sêneca explica Zeus ou o ser de Deus ao mesmo tempo o
mundo e a alma do mundo, apontando o homem, que se sente ser um só
e mais uma vez como um composto por duas substâncias, o corpo e a
alma.” 145
Os Estoicos adotaram a doutrina hindu da dissolução de todas as
coisas e do redesenvolvimento de Deus no mundo após longos períodos

144
Ibid. pp. 349-350.
145
Ibid. p. 350.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 441
sucessivos. «Na grande conflagração que toma lugar quando expira o
período mundano ou ano grande», todos os seres organizados serão
destruídos, toda multiplicidade e diferença será perdida na unidade de
Deus, o que significa que tudo se transformará de novo em éter. Mas ato
seguido, como o fênix surgindo à vida de suas próprias cinzas, começa
de novo a formação do mundo. Deus se transforma mais uma vez por
uma renovação geral num mundo em que os mesmos acontecimentos,
sob circunstâncias similares, devem voltar a ser repetidos sob os mais
estritos detalhes. Muitas destas grandes catástrofes já tiveram lugar, e o
processo de consumição por fogo seguirá de novo após esta regeneração,
e assim ad infinitum. 146
Este sistema, assim como qualquer outra forma de Panteísmo,
exclui toda liberdade moral; tudo fica sob a lei da absoluta necessidade.
Por isso, despreza a ideia de pecado. «Os atos de vício, disse Crisipo, são
movimentos da natureza universal, e são de acordo com a inteligência
divina. Na economia do grande mundo, o mal é como a palha que cai,
igualmente inevitável e tão carente de valor. Também esta escola disse
que o mal fazia o serviço de dar a conhecer o bem, e entretanto que tudo
tem que resolver-se em Deus». 147
Assim, as formas jônica, eleática e estoica de filosofia grega eram
panteístas em seus princípios fundamentais. Mas as duas grandes mentes
filosóficas da Grécia, e do mundo, foram Platão e Aristóteles, um o
filósofo do mundo ideal, o outro, do natural. O último foi discípulo do
primeiro, embora fosse na maioria dos pontos de doutrina, ou ao menos
quanto ao método, seu antagonista. É só com os pontos destes dois
homens, que tanta influência exerceram nas mentes dos homens com
relação à natureza do Ser Supremo e com relação à sua relação com o
mundo fenomênico, que o teólogo como tal tem algo que ver. E este,

146
The Gentile and the Jew, vol. I. p. 351.
147
Ibid., p. 351.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 442
infelizmente, e com relação a ambos, é o ponto com relação ao qual os
ensinos deles são mais escuros.

Platão.
Platão uniu em seu intelecto sintético os elementos das diferentes
doutrinas de seus predecessores no campo da especulação, e tentou
harmonizá-los. «A doutrina socrática do bem e da beleza absolutas, e da
Deidade revelando-se ao homem como uma bondosa Providência,
constituíram a base da qual ele começou. Como canais para a doutrina
heraclítica do perpétuo transformar e do fluir de todas as coisas, junto
com a eleática da eterna imutabilidade do um e único Ser, o dogma de
Anaxágoras de um espírito governante do mundo foi de utilidade, e teve
a destreza de combinar com ele a perspectiva pitagórica do universo
como um todo inteligente animado, numa forma espiritualizada». 148
Estes já são materiais bem incongruentes. Uma deidade inteligente
exercitando um controle providencial sobre o mundo; a doutrina
heraclítica que envolvia a negação de toda a realidade e que resolvia
tudo num perpétuo fluir dos fenômenos; a doutrina eleática de um único
Ser; e a ideia pitagórica do universo como um todo animado e
inteligente. Não era possível impedir que primeiro um elemento, e logo
outro deles, fosse feito mais proeminente, e por conseguinte que o
grande filósofo falasse às vezes como um Teísta e às vezes como um
Panteísta. Tampouco era possível que estes elementos incongruentes
pudessem ser constituídos num sistema coerente. Por isso, não é de
surpreender que Döllinger, um dos maiores admiradores de Platão e um
dos mais capazes expoentes de seus escritos, acrescente imediatamente à
passagem que acabamos de citar: «Platão nunca chegou a um sistema
acabado, arredondado e perfeito em si mesmo; entretanto, há uma
evidência inconfundível em suas obras de um contínuo progresso, um
esforço após uma crescente profundidade dos fundamentos, e uma

148
Ibid. p. 307.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 443
articulação interna mais forte, junto com uma maravilhosa exuberância
de ideias, com frequência excessivamente atrevidas». 149
Platão não era um Teísta, no sentido comum e cristão da palavra.
Ele não reconhecia a existência de um Deus extramundano, o criador,
preservador e governador do mundo, de quem dependemos e perante
quem somos responsáveis. Para ele, Deus não é uma pessoa. Como
Anselmo e os Realistas admitiam geralmente a existência da
«racionalidade» como distinta dos seres racionais, um princípio geral
que se individualizava e personalizava em anjos e homens, assim Platão
admitia a existência de uma inteligência universal, ou νοῦς [nous], que se
torna individualizada nas diferentes ordens de seres inteligentes, deuses,
demônios e homens. Deus, para ele, era uma Ideia; a Ideia do bem, a
qual compreendia e dava unidade a todas as outras ideias.

As Ideias.
O que eram então as ideias no sentido que Platão lhe dá no fim?
Não eram meros pensamentos, mas sim as únicas verdadeiras entidades,
das quais o fenomênico e o sensível são suas representações ou sombras.
Ele ilustrou a natureza das mesmas, supondo um homem numa cova
escura totalmente ignorante do mundo exterior, com uma luz brilhante
resplandecendo atrás dele, enquanto que entre ele e a luz passam
continuamente uma procissão de homens, animais, árvores, etc. As
sombras móveis destas coisas se projetariam sobre a parede da cova, e o
homem suporia necessariamente que as sombras eram as realidades.
Estas ideias são imutáveis e eternas, constituindo a essência ou ser real
de toda a existência fenomênica. «Platão ensina que para todos aqueles
sinais gerais dos conceitos que temos existem outras tantas coisas
verdadeiramente existentes, ou Ideias, que se correspondem no mundo
inteligível: para estes homem são os únicos objetos sólidos e dignos de
reflexão e conhecimento; porque são eternas e imutáveis, existindo só

149
The Gentile and the Jew, p. 307.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 444
em si mesmas, mas separadas de todas as coisas e individuais, enquanto
que suas múltiplas cópias, as coisas percebidas pelos sentidos, são
sempre flutuantes e transitórias. Independentes do tempo e do espaço,
assim como de nosso intelecto e de seus conceitos, as Ideias pertencem a
um mundo próprio, de outra esfera, transcendendo os sentidos. Elas não
são os pensamentos de Deus, mas sim os objetos de seu pensamento; e
Ele criou o mundo na matéria em seguimento delas. Só elas e Deus são
seres realmente existentes; e por isso as coisas terrestres são só a sombra
de uma existência, e isso só em derivação de uma certa participação nas
Ideias, seus tipos». 150

A relação das Ideias com Deus na filosofia de Platão.


Qual é a relação destas ideias com Deus? Esta é a questão decisiva
pelo que respeita à teologia de Platão. Infelizmente, não é uma pergunta
que tenha fácil resposta. Esta é uma questão na qual os comentaristas
diferem; alguns dizem que Platão deixa a questão sem decidir, às vezes
identificando as ideias com Deus, e em outras ocasiões distinguindo
entre Ele e elas; outros dizem que ele identifica claramente às ideias com
Deus, ou que as inclui na divina essência; enquanto que outros, por sua
vez, de novo o entendem como fazendo uma marcada distinção entre
Deus e as ideias segundo as quais o universo foi moldado. Não é fácil
conciliar o que Döllinger diz a respeito desta questão. Na passagem
recém-citada, ele diz que as ideias não são os pensamentos de Deus, mas
sim os objetos de seu pensamento. Mas na mesma página 151 diz: «Estas
ideias não devem ser concebidas como ao lado de e externas a Deus.
Encontram-se em Deus, e Deus é a Ideia totalmente inclusiva,
abrangendo todos os arquétipos parciais numa unidade». Antes havia
dito que para Platão as Ideias e Deus são os únicos «seres realmente
existentes». Se é assim, e se Deus é «a Ideia totalmente inclusiva,

150
The Gentile and the Jew, Vol. I, pp. 308 y 309.
151
Ibid., p. 309.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 445
abrangendo todos os arquétipos parciais numa unidade», então Deus é o
único realmente existente; e temos então um puro Panteísmo. Segundo
Cousin, Platão não só deu às ideias uma existência real e própria, mas
sim, «en derniere analyse il les place dans ia raison divine: c'est la
qu'elles existen substantiellement» [em último termo, situa-as dentro da
razão divina: é ali que existem substancialmente]. 152 Döllinger,
comentando a respeito de uma passagem em Timeu, em que «Deus é
designado como o Pai, que gerou o mundo como um filho, como uma
imagem dos deuses eternos, isto é, das ideias», diz: «Se Platão tivesse
querido realmente explicar aqui a ideia de procriação como uma
comunicação de essência, teria sido um puro Panteísta». 153 Mas Platão,
diz 154 ele, «não é Panteísta; a matéria é, para ele, totalmente distinta de
Deus; contudo, tem uma carga panteísta em seu sistema; porque tudo o
que há de inteligência no mundo, inclusive até o homem, pertence, para
ele, à substância divina». Por isso, Platão escapa ao Panteísmo só
admitindo a eternidade da matéria; mas esta matéria eterna está tão perto
de ser nada como é possível. Não é corpórea. É «algo, mas não
entidade».
Como Platão fez as ideias eternas e imutáveis; como estavam todas
elas incluídas na ideia de Deus, isto é, em Deus, e porquanto constituem
os únicos seres realmente existentes, sendo todo o fenomênico ou que
afete os sentidos meras sombras do real, dificilmente pode negar-se que
seu sistema, em seu caráter essencial, seja realmente panteísta.
Entretanto, trata-se de um Panteísmo ideal. Não admite que a matéria ou
que o mal sejam uma manifestação de Deus nem um modo de Sua
existência. Só o que é bom é Deus; mas tudo o que realmente é, é bom.

152
Historie Generale de la Philosophie, Paris, 1863, p. 122.
153
The Gentile and the Jew, Vol. I, p. 329.
154
Ibid. p. 312.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 446
A cosmogonia de Platão
A cosmogonia e a antropologia de Platão confirmam esta
perspectiva de sua teologia. Nada foi nunca criado. Tudo o que é, é
eterno; não certamente quanto à forma, mas sim quanto à substância. A
matéria, algo maternal, sempre existiu. E a matéria é em si mesma
carente de vida, mas tem «uma alma», uma força ininteligente mediante
a que se produz uma agitação caótica ou desordenada. Esta força
ininteligente a dotou Deus com uma porção de sua própria inteligência
ou νοῦς [nous], e transforma a alma do mundo, isto é, o Demiurgo, o
princípio formador do mundo. Assim, Deus não é, Ele mesmo, o
formador do mundo. Isto é obra do Demiurgo. Esta alma do mundo
impregna o universo visível, e constitui um todo vivente, animado. Esta
«alma do mundo» fica individualizada nos deuses estelares, nos
demônios, e nas almas humanas. Assim, o sistema de Platão dá lugar ao
politeísmo.

A natureza da alma.
A alma, segundo esta teoria, consiste de inteligência que é da
substância de Deus, e de elementos derivados da alma do mundo em
distinção à νοῦς [nous] que não pertencia originalmente a Ele. Todo mal
surge da conexão do elemento divino no homem com a matéria. O objeto
da vida é rebater esta má influência pela contemplação e comunhão com
o mundo ideal. Platão ensinava a preexistência da alma assim como sua
imortalidade. Seu estado na atual etapa de existência presente fica
determinado por seu curso em suas formas prévias de ser. É, entretanto,
com base em seu modo comum de descrição, estritamente imortal. «A
concepção monoteísta que Platão tem de Deus», diz Döllinger», 155 «é
uma das mais refinadas às quais chegou a especulação anticristã; mas
não contribuiu em nada ao conhecimento da perfeita e viva
personalidade de Deus, e a sua liberdade absoluta e incondicional». Seu

155
The Gentile and the Jew, p. 329.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 447
monoteísmo, parece, consistia no reconhecimento de uma inteligência
universal que se manifestava como razão em todos os seres racionais.

Aristóteles.
Aristóteles, embora discípulo de Platão, foi o grande oponente do
mesmo e de sua filosofia. Rejeitou a doutrina de Platão das ideias como
quimérica, como uma hipótese desnecessária e sem evidência. Da mesma
maneira, negou a existência de matéria preexistente da qual o mundo
teria sido plasmado. Cria que o mundo era eterno tanto quanto a matéria
como quanto a forma. É, e não há razão para duvidar de que sempre
tenha sido e sempre vá ser. Admitiu a existência da mente no homem; e
por isso deu por sentado que há uma inteligência infinita, da qual a razão
humana é uma manifestação. Mas esta inteligência infinita, que ele
chamou de Deus, era inteligência pura, carente de poder e de vontade;
não era nem criadora nem conformadora do mundo; mais ainda, é
inconsciente da existência do mundo, porquanto está ocupada
exclusivamente no pensamento do que ela mesma é o objeto. O mundo e
Deus são coeternos; e, entretanto, em certo sentido Deus é a causa do
mundo. Da maneira em que um ímã age sobre a matéria, ou assim como
a mera presença de um amigo põe a mente em atividade, assim Deus
opera inconscientemente sobre a matéria, e desperta seus poderes
adormecidos. Como o universo é um cosmos, um sistema ordenado; e
como existem no mundo inumeráveis seres organizados, vegetais e
animais, Aristóteles supôs que há «formas» inerentes na matéria, que
determinam a natureza de tais organizações. Isto é o mesmo que em
linguagem moderna chama-se “força vital”, “vitalidade”, “vis
formativa”, “Bildungstrieb”, ou “princípio imaterial” de Agassiz, que é
diferente em cada espécie distinta, e que constitui a diferença entre uma
espécie e outra. A alma é a «forma» do homem. «É o princípio que dá
forma, movimento, e desenvolvimento ao corpo, a enteléquia do mesmo;
isto é, aquela substância que só se manifesta no corpo que é formado e
penetrado pela mesma, e que continua energizando-o como princípio de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 448
vida, determinando a matéria e dominando-a. Assim, o corpo nada é por
si mesmo; é o que é só pela alma, cuja natureza e ser expressa, com a
qual sustenta a relação de um meio em que o objeto, a alma, é realizada;
por isso, não pode ser imaginada sem o corpo, nem o corpo sem ela; um
tem que ser produzido contemporaneamente com o outro» 156
Naturalmente, não pode haver imortalidade da alma. Assim como
nenhuma planta é imortal, porquanto o princípio vital não existe de
maneira separada da planta, assim a alma não tem existência além do
corpo. Os dois começam e terminam juntos. «O realmente humano na
alma, aquilo que veio a ser, tem também que desvanecer-se, inclusive o
entendimento; só a razão divina é imortal; mas como a memória pertence
à alma sensível, e o pensamento individual depende só do entendimento
ou νοῦς [nous] passivo, toda consciência do eu tem que cessar com a
morte» 157 «Desta maneira, a doutrina do Aristóteles da alma mostra que
seu defeito, assim como o de Platão e certamente de toda a antiguidade,
era sua imperfeita familiaridade com a ideia de personalidade e, por isso
mesmo, não pode ser absolvido de uma tendência panteísta». 158 «Seu
Deus não é verdadeiramente pessoal, ou é só uma personalidade
imperfeita». 159 A νοῦς [nous], ou razão, permite às almas, com seus
corpos, que se submirjam de volta ao nada, da que cada um saiu.
Ela só segue existindo, sempre a mesma e inalterável, porque não é
outra senão a νοῦς [nous] divina em existência individual, a inteligência
divina iluminando a noite do entendimento humano, e tem que ser
concebida tanto como o primeiro móvel do pensamento discursivo e do
conhecimento humano como de sua vontade». 160
Este breve exame da filosofia grega com relação à teologia mostra
que em todas suas formas era mais ou menos panteísta. Esta observação

156
The Gentile and the Jew, p. 338.
157
Ibid. p. 339.
158
Ibid., p. 340.
159
Ibid., p. 336.
160
Ibid., p. 339.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 449
não será reconhecida como correta da parte de aqueles que, como
Cousin, limitam o uso da palavra Panteísmo para designar a doutrina que
faz com que o universo material seja Deus, ou aquela que nega a
existência de nada fora da matéria e da força física, o que é ateísmo; nem
tampouco da parte daqueles que tomam o termo como denotando a teoria
que admite só uma substância, que é a substância de Deus, e que por
conseguinte faz da matéria tanto um modo da existência de Deus como a
mente. Entretanto, admitirão sua justeza aqueles que por Panteísmo
designam aquela doutrina que faz de toda a inteligência no mundo a
inteligência de Deus, e de toda a atividade intelectual modos da atividade
de Deus, o que necessariamente impede a possibilidade da liberdade e
responsabilidade humanas.
As autoridades neste assunto são, a respeito de Platão e Aristóteles,
é óbvio suas próprias obras; com relação a esses filósofos cujas obras
não são preservadas, nem das quais só existem fragmentos, seus sistemas
são mais ou menos detalhados completamente pelos antigos escritores,
como Plutarco e Cícero. O leitor geral encontrará a informação que
necessita em um ou em mais das numerosas histórias da filosofia; como
de Brucker, Ritter, Tenneman, e Cousin; entre o último e melhor de
Döllinger é “The Gentile and the Jew in the Courts of the Temple of
Christ,” Londres, 1862

D. O Panteísmo medieval.

Os Neoplatonistas.
O panteísmo, tal como apareceu na Idade Média, tomou sua forma e
o caráter do neoplatonismo. Tratava-se de um sistema eclético em que a
doutrina eleática da unidade de todo o ser se combinou com a doutrina
platônica sobre o universo dos fenômenos. Os filósofos reconhecidos
como os representantes desta escola são Plotino (205-270 d.C), Porfírio
(nascido o ano 233 d.C.), Jâmblico no século IV, e Proclo no quinto. O
Neoplatonismo foi monismo. Admitió sólo un Ser universal. Este ser
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 450
considerado en sí mismo era inconcebible e indescriptible. Foi revelado,
ou automanifestado na alma do mundo, e a razão do mundo, o que
constitui uma trindade; uma substância em diferentes aspectos ou modos
de manifestação. O mundo é portanto “a afluência de Deus”, como o
fogo emite calor. A alma do homem é um modo de existência de Deus,
uma parte de sua substância. Seu destino é a absorção no Ser infinito.
Isto de não devia ser alcançado pelo pensamento, nem por meditação,
mas pelo êxtase. Isto constituiu a característica peculiar da escola
Neoplatônica. “A união com Deus” devia ser alcançado por “uma
autodestruição mística da pessoa individual (Ichheit)” em Deus. 161
Schwegler 162 diz: “Da introdução do monismo da cristandade foi o
caráter e a tendência fundamental da filosofia moderna inteira”. Esta
observação, vindo de um partidário dessa teoria, deve ser tomada com
não pequena quantidade de concessão. Entretanto, é verdade que quase
todas as grandes saídas da simplicidade da verdade como está revelado
nas Escrituras Sagradas, assumiram claramente mais ou menos uma
tendência panteísta.

João Escoto Erígena.


O Panteísta mais pronunciado entre os escolásticos foi João Decoto
Erígena. sabe-se pouco de sua origem ou história. Desde seu nome
Decoto e a designação Erígena (filho de Erin), foi assumido geralmente
que foi um irlandês. Sabe-se que desfrutou da proteção e do patrocínio
do Charles o Calvo da França, e que ensinou em Paris e possivelmente
na Inglaterra. Sua principal obra é aquela “De Divisione Naturae”. Por
natureza ele significa todo o ser. As divisões quádruplos que ele faz da
natureza, são só manifestações ou aspectos sob o único Ser é revelado ou
tem que ser contemplado. Essas divisões são: (1). Aquele que cria e não
é criado. (2). Aquele que cria e é criado. (3). Aquele que não cria mas é

161
History of Philosophy. Translated from the German by Julius H. Seelye, p. 157.
162
Ibid. p. 158.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 451
criado. (4). Aquele que nem cria nem é criado. “Esta divisão da
natureza,” diz Ritter, 163 “é feito para mostrar simplesmente que tudo é
Deus, desde que as quatro naturezas são só revelações de Deus”.
Escoto esteve de acordo com a maioria dos filósofos em fazer
idênticas a filosofia e a religião, e na admissão de nenhuma fonte de
conhecimento superior que a razão humana. “Conficitur”, ele diz,
“veram esse philosophiam veram religionem, conversimque veram
religionem esse veram philosophiam.” 164
Os princípios fundamentais de sua filosofia são os seguintes: (1.) A
distinção com ele entre o ser e não ser, não é entre algo e nada, entre a
existência substancial e não-existência, mas sim entre a afirmação e a
negação. O que pode afirmar-se é, tudo o que se negou não é. (2.) Todo
ser consiste no pensamento. Não há nada, senão como existe na mente e
na consciência. (3.) Com Deus, que é, o pensamento e a criação são
idênticas. O ser de Deus consiste em pensar, e Seus pensamentos são
coisas. Em outras palavras, o pensamento de Deus é o ser verdadeiro de
tudo o que é. (4). Consequentemente o mundo é eterno. Deus e o mundo
são idênticos. É o “totum omnium.”
Seu sistema é, portanto, uma forma do Panteísmo idealista. Ritter
dedica o nono livro de sua “Geschichte der Christlichen Philosophie,” 165
à exposição da filosofia de Escoto. As poucas passagens seguintes de seu
“De Divisione Naturae,” são suficientes para mostrar a exatidão da
declaração anterior de seus princípios.
“Intellectus enim omnium in Deo essentia omnium est. Siquidem id
ipsum est Deo cognoscere, priusquam fiunt, quæ facit, et facere, quæ
cognoscit. Cognoscere ergo et facere Dei unum est.” 166 “Maximus ait:
Quodcunque intellectus comprehendere potuerit, id ipsum fit.” 167

163
Geshichte der Christlichen Philosophie, vol. III. p. 224.
164
De Prædest. cap. i. 1, Migne, Patr. vol. cxxii. p. 358, a.
165
Vol. III. pp. 206-296.
166
De Divisione Naturæ, II. 20; edit. Westphalia, 1838, p. 118.
167
Ibid. I. 9, p. 9.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 452
“Intellectus enim rerum veraciter ipsæ res sunt, dicente Sancto Dionysio,
‘Cognitio eorum, quæ sunt, ea, quæ sunt, est.’” 168 “Homo est notio
quædam intellectualis in mente divina æternaliter facta. Verissima et
probatissima definitio hominis est ista: et non solum hominis, verum
etiam omnium quæ in divina sapientia facta sunt.”169 Omnis visibilis et
invisibilis creatura Theophania, i.e., divina apparitio potest appelari. 170
“Num negabis creatorem et creaturam unum esse?” 171
“A Criação [como Erígena vê] não é outra coisa que o Senhor da
criação; Deus de algum modo inefável criado na criação.” 172 Decoto
traduziu as obras do assim chamado São Dionísio, o Areopagita, e ao
fazê-lo, preparou o caminho para essa forma de panteísmo místico que
prevaleceu através da Igreja até a época da Reforma. O pseudo-Dionísio
foi um neoplatônico. Seu objetivo era dar à doutrina de Plotino um
aspecto cristão. Adotou o princípio da unidade de todo ser. Todas as
criaturas são da essência de Deus. Mas em lugar de colocar a
automanifestação de Deus na natureza, na alma do mundo, colocou-a
sobretudo na hierarquia de ser racional, — querubins, serafins, tronos,
principados e potestades, e as almas dos homens. O destino de todas as
criaturas racionais, é a reunião com Deus; e esta reunião, como os
Neoplatonistas ensinaram, devia ser alcançado pelo êxtase e a negação
de si mesmo. Foi este sistema que, em comum com todas as outras
formas do Panteísmo, impediu a ideia de pecado, que foi reproduzido
pelos líderes místicos da Idade Média, e de que, quando se encontrou seu
caminho entre o povo como o fez com os Begardos e dos Irmãos do
Espírito Livre, produzido, como substancialmente o mesmo sistema tem
feito na Índia, seus frutos legítimos do mal. Do panteísmo místico da

168
Ibid. II. 8, p. 95.
169
Ibid. IV. 7, p. 330.
170
Ibid. III. 19, p. 240.
171
Ibid. II. 2, p. 88.
172
Ritter, vol. III, p. 234.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 453
Idade Média, entretanto, já se tem dito o suficiente na Introdução, no
capítulo sobre o Misticismo.

E. O Panteísmo moderno.

Espinoza.
O renascimento do Panteísmo da Reforma deve-se principalmente a
Espinoza; nasceu no Amsterdã em 1634, e morreu em Haia, à idade de
quarenta e quatro anos. Era descendente de uma abastada família judia
portuguesa, e desfrutou da vantagem de uma educação extremamente
terminada. Ele primeiro dedicou-se ao estudo da filosofia, e foi a
princípio um discípulo de Descartes. Leibnitz caracteriza o sistema de
Espinoza como cartesianismo de tendência selvagem. Descartes
desconfiava do testemunho dos sentidos. Seu ponto de partida era a
consciência da existência, “Eu creio.” Nessa proposição a existência de
uma substância pensadora é incluída necessariamente. O mundo exterior
produz impressões nesta substância pensante. Mas, afinal de contas,
estas sensações assim produzidas, são só estados da autoconsciência. O
Eu, portanto, e seus estados diferentes, são todos de que temos
conhecimento direto. Não é tudo, entretanto, que Descarte cria que
realmente existiu. Foi um católico sincero, e morreu em comunhão com
a Igreja. Reconheceu não só a existência da mente, mas também de Deus
e da matéria. Entretanto, nosso conhecimento de Deus e da matéria como
substâncias distintas de nossas mentes chegamos por um processo de
raciocínio. Espinoza negou a validez desse processo. Admitiu a
existência de uma única substância, e deu uma definição da palavra
como excluída a possibilidade de que haja mais substâncias que uma.
Com ele a substância é a que existe de si, forçosamente, e é
absolutamente independente.
Existe, portanto, só uma substância possível. Chegamos, entretanto,
em todas partes em contato com duas classes de fenômenos: os de
pensamento e os de extensão. O pensamento e a extensão, portanto, são
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 454
os dois atributos da única substância infinita. As coisas individuais são
os modos em que a substância infinita é constantemente manifestada. No
sistema de Espinoza não são as três ideias radicais da substância,
atributo, e modo. Destes essa substância tem só qualquer realidade. As
outros duas são meras aparências. Se nos fixamos em algo através de um
vidro de cor vermelha o objeto aparecerá de cor vermelha, se o vidro for
azul, aparecerá o objeto azul, mas a cor não é realmente um atributo do
objeto. Assim a substância (o todo) é-nos apresentado sob um aspecto
como o pensamento e em outros como extensão. A diferença é aparente e
não real. O finito, portanto, não tem existência real. O universo está
afundado no Infinito e o Infinito é uma matéria da qual nada pode
afirmar-se. Do Infinito nada se pode negar, e portanto não pode ser
afirmado por “omnis determinatio est negatio.” O Infinito, portanto, é
praticamente nada.
Uma relato suficiente do panteísmo moderno em suas
características gerais, representado por Fichte, Schelling e Hegel, e seus
sucessores e discípulos, deu-se já no começo deste capítulo. Informação
mais detalhada pode-se encontrar nas numerosas histórias recentes da
filosofia, como as de Morell, Schwegler, Michelet, e Rosenkranz, e na
“History of Pantheism,” de Hunt.

F. Conclusão.

O fato de que o Panteísmo prevaleceu tão extensamente em todas as


idades e em todos os lugares do mundo constitui uma prova de sua
fascinação e poder. Além de uma revelação divina, parece ter sido
considerado como a solução mais provável do grande problema do
universo. Não obstante, é tão insatisfatória, e faz tanta violência às leis
de nossa natureza, que nunca penetrou nos corações das pessoas do povo
em grande extensão. A Índia pode ser considerada como uma exceção a
esta observação. Mas inclusive ali, embora o Panteísmo fosse a base da
religião popular, teve que resolver em politeísmo a fim de suprir às
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 455
necessidades do povo. Os homens necessitam um deus pessoal a quem
poder adorar e a quem poder orar.
A observação mais evidente que se deve fazer a respeito de todo o
sistema é que se trata de uma hipótese. Por seu própria natureza, é
incapaz de prova. É uma mera teoria assumida para dar conta dos
fenômenos do universo. Se os explicasse de maneira satisfatória, e não
contradissesse os ensinos da Bíblia, poderia admitir-se com
tranquilidade. Mas não só é inconsistente com tudo o que as Escrituras
nos ensinam com relação à natureza de Deus e Sua relação com o
mundo, mas também contradiz as leis da crença que Deus marcou sobre
nossa natureza, subvertendo os próprios fundamentos da religião e da
moralidade, e inclusive implica a deificação do pecado.
Se não tivéssemos uma revelação divina a respeito disso, o Teísmo
meramente como teoria não deixaria de obter o assentimento de toda
mente devota em preferência ao Panteísmo. O Teísmo supõe a existência
de um Deus pessoal extramundano, o criador e preservador do universo;
presente em todas partes em Sua sabedoria e poder, dirigindo todos os
acontecimentos para o cumprimento de Seus desígnios imensamente
sábios. Supõe que o universo material é distinto a Deus, dependendo de
Sua vontade, sustentado por um poder, e repleto de forças físicas sempre
ativas sob Seu controle. Supõe que o homem é criatura de Deus, devendo
sua existência à vontade de Deus, criado à Sua imagem, um agente livre,
racional, moral e responsável, capaz de conhecer, amar e adorar a Deus
como Espírito infinito em Seu ser e perfeições. Embora esta teoria possa
apresentar alguns problemas à razão, como o da origem e domínio do
mal, sem uma solução satisfatória, entretanto supre e dá satisfação a
todas as demandas de nossa natureza, e resolve o problema quanto à
origem e natureza do universo, e se recomenda à razão, ao coração e à
consciência com um poder que não pode resistir nenhum sofisma nem
nenhuma especulação.
O Panteísmo, pelo contrário, faz violência à nossa natureza, e
contradiz as convicções intuitivas da consciência.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 456
1. Estamos conscientes de que somos agentes livres. Esta é uma
verdade que ninguém pode negar com relação a si mesmo, e que cada
homem dá por sentado com relação a outros. Esta verdade é negada pelo
Panteísmo. Faz de nossa atividade só uma forma da atividade de Deus, e
supõe que Seus atos estão determinados pela necessidade, tanto como o
desenvolvimento de uma planta ou de um animal.
2. É intuitivamente certo que há uma verdadeira distinção entre o
bem moral e o mal moral: que o homem está obrigado a amoldar-se ao
primeiro, e a aborrecer e evitar o segundo; que o primeiro merece
aprovação, e que o outro merece desaprovação e castigo. Estas são
convicções que pertencem à natureza racional do homem, e não se
podem destruir sem destruir sua racionalidade. Entretanto, o Panteísmo
pronuncia que estas convicções são um engano; que não existe o pecado
no sentido anteriormente enunciado; que o que chamamos pecado é mera
fraqueza; um desenvolvimento imperfeito, tão inevitável como a
fraqueza num recém-nascido. Vai além: pronuncia o mal como algo
bom. Faz atos e estados de Deus tanto das ações e paixões pecaminosas
dos homens como das ações e sentimentos santos. Não há nada bom mas
sim o ser; e os homens poderosos são os que mais são; e por isso, os
mais fortes são os melhores; os fracos devem ser menosprezados;
mereciam ser vencidos e pisoteados. Por isso, quando o Panteísmo deve
ser uma religião, as deidades que representam ao mal são as mais
honradas e adoradas.
3. O Panteísmo não só destrói as bases da moral, mas também torna
impossível toda religião racional. A religião supõe um Ser pessoal
dotado não só de inteligência e poder, mas sim de excelência moral; e
para ser racional, este Ser tem que ser infinito em todas suas perfeições.
Pelo contrário, o Panteísmo nega que o Ser infinito possa ser uma
pessoa; que seja inteligente, consciente de si mesmo, ou que possua
atributos morais. É tão impossível adorar a tal Ser como adorar a
atmosfera, ou a lei da gravidade, ou os axiomas de Euclides.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 457
4. Não está fora de lugar dizer que o Panteísmo é a pior forma de
ateísmo. Porque o mero ateísmo é negativo. Não deifica nem o homem
nem o mal. Mas o Panteísmo ensina que o homem, a alma humana, é a
mais elevada forma da existência de Deus; e que o mal é tanta
manifestação de Deus como o bem; Satanás, como o Redentor sempre
bendito e adorável. É impossível que a insensatez da maldade possa ir
além disso.
5. O homem, segundo este sistema, não é mais imortal que as folhas
de um bosque, ou que as ondas do mar. Somos formas fugazes do Ser
universal.
Nossa natureza é indestrutível; da mesma maneira que é impossível
que não creiamos em nossa própria existência individual, em nossa livre
atividade, em nossas obrigações morais, em nossa dependência e
responsabilidade com relação a um Ser capaz, de ser o que somos e o
que fazemos, e de recompensar e castigar segundo Ele o considere
oportuno, assim é impossível que o Panteísmo chegue a ser mais que
uma especulação filosófica, quando a natureza moral do homem tenha
sido desenvolvida pelo conhecimento do Deus vivo e verdadeiro.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 458
CAPÍTULO IV
O CONHECIMENTO DE DEUS

TENDO considerado os argumentos em favor da doutrina de que


Deus é, e também dos vários sistemas opostos ao Teísmo, passamos
agora a considerar a pergunta: Pode-se conhecer a Deus? E neste caso,
como? Isto é, como procede a mente ao formar sua ideia de Deus, e
como sabemos que Deus realmente é o que cremos que é?

§ 1. Deus pode ser conhecido.

É a clara doutrina das Escrituras que Deus pode ser conhecido.


Nosso Senhor ensina que a vida eterna consiste no conhecimento de
Deus e de Jesus Cristo, a quem Ele enviou. O salmista diz: “Conhecido é
Deus em Judá” (Sl 76:1). Isaías prediz que “a terra se encherá do
conhecimento do SENHOR” (Is 11:9). Paulo incluso diz dos pagãos que
tinham conhecido a Deus, mas que não tiveram por bem reter este
conhecimento (Rm 1:19,20,21,2 ).

A. Estado da questão.

Entretanto, é importante compreender de maneira clara o que se


significa quando diz-se que Deus pode ser conhecido.
1. Com isto não se significa que possamos conhecer tudo o que é
verdadeiro a respeito de Deus. Havia alguns entre os antigos filósofos
que ensinavam que a natureza de Deus pode ser compreendida e
determinada tão plenamente como qualquer outro objeto do
conhecimento. A moderna escola especulativa ensina a mesma doutrina.
Entre as proposições estabelecidas por Espinoza, encontramos o
seguinte: “Cognitio æternæ et infinitæ essentiæ Dei, quam unaquæque
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 459
173
idea involvit, est adæquata et perfecta.” Hegel diz que Deus é, só na
medida em que Ele é conhecido. O pecado contra o Espírito Santo,
segundo Hegel, é negar que Ele pode ser conhecido. 174 Cousin tem a
mesma doutrina. “Deus, de fato,” diz, “existe para nós só na medida em
que Ele é conhecido.” 175
Segundo Schelling, Deus é conhecido em Sua própria natureza por
intuição direta da mais alta razão. Supõe ele que há no homem um poder
que transcende os limites da consciência comum (uma Anschauungs
Vermögen, Capacidade de visualizar as coisas), e que passa a conhecer
de maneira direta o Infinito. Hegel diz que “O homem conhece a Deus só
quanto a Deus é conhecido no homem; este conhecimento é a
autoconsciência de Deus, mas também um conhecimento do mesmo pelo
homem, e este conhecimento de Deus pelo homem é o conhecimento do
homem por Deus.” 176 Cousin encontra este conhecimento na comum
consciência humana. Esta consciência inclui o conhecimento do Infinito
assim como do finito. Conhecemos o um como conhecemos o outro, e
não podemos conhecer o um sem conhecer o outro. Estes filósofos
reconhecem todos que não poderíamos conhecer assim a Deus se nós
mesmos não fôssemos Deus. Para eles, o autoconhecimento é o
conhecimento de Deus. É infinito, impessoal, divino. Nosso
conhecimento de Deus, por isso, é só Deus conhecendo-se a Si mesmo.
Naturalmente não é neste sentido que as Escrituras e a Igreja ensinam
que Deus pode ser conhecido.

Deus é inconcebível.
2. Não se sustenta que, falando corretamente, possamos ter
concepção de Deus; isto é, não podemos formar senão uma imagem

173
Ethices, ii. prop. xlvi. edit. Jena, 1803, vol. II. p. 119.
174
See Mansel’s Limits of Religious Thought, Boston, 1859, p. 301.
175
Sir William Hamilton’s Discussions, p. 16. Princeton Review on Cousin’s Philosophy, 1856.
176
Werke, xii. p. 496, edit. Berlin, 1840.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 460
177
mental de Deus. “Toda concepção”, diz o Sr. Mansel, “implica
imaginação.” Para ter um conceito válido de um cavalo, ele acrescenta,
temos que poder “combinar” os atributos que formam “a definição do
animal” em “uma imagem representativa”. A concepção é definida por
Taylor da mesma maneira, como «formar ou trazer uma imagem à ideia
na mente por um esforço da vontade». Neste sentido do termo, deve-se
admitir que o Infinito não é um objeto de conhecimento. Não podemos
formar senão uma imagem do espaço infinito nem de uma duração
infinita, nem de um todo infinito. Mas o infinito é o que é incapaz de
limitação. Admite-se, portanto, que o Deus infinito é inconcebível. Não
podemos formar mais uma imagem representativa dEle em nossas
mentes. Entretanto, com frequência o termo é empregado, talvez
usualmente, num sentido menos restringido. Conceber é pensar. Por isso,
uma concepção é um pensamento, não necessariamente uma imagem.
Por isso, dizer que Deus é concebível, em linguagem comum, significa
simplesmente que Ele é pensável. Isto é, que o pensamento (ou ideia) de
Deus não envolve nenhuma contradição nem impossibilidade. Não
podemos pensar num quadrado redondo, ou que uma parte seja igual ao
todo. Mas podemos pensar que Deus é infinito e eterno.

Deus é incompreensível.
3. Quando se diz que Deus pode ser conhecido, não se significa que
possa ser compreendido. Compreender é ter um conhecimento completo
e exaustivo de um objeto. É entender Sua natureza e relações. Não
podemos compreender a força, e especialmente ela é certo da força vital.
Vemos seu efeito, mas não podemos entender sua natureza nem o modo
em que age. Seria estranho que conhecêssemos mais de Deus que de nós
mesmos, ou dos objetos mais familiares aos nossos sentidos. Deus é
inescrutável. Não podemos entender a perfeição do Onipotente.
Compreender é (1) Conhecer a essência assim como os atributos de um

177
Prolegomena Logica, edit. Boston, 1860, p. 34.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 461
objeto. (2) É conhecer não só algumas, mas também todos seus atributos.
(3) Conhecer a relação que estes atributos têm entre si e com a
substância a que pertencem. (4) Conhecer a relação que o objeto tem
com relação a todos os outros objetos. Tanto conhecimento é claramente
impossível numa criatura, tanto a respeito de si mesmo como de
qualquer coisa fora dele mesmo. Entretanto, é substancialmente assim
que os transcendentalistas pretendem conhecer a Deus.

Nosso conhecimento de Deus é parcial.


4. No que se disse se inclui que nosso conhecimento de Deus é
parcial e inadequado. Há imensamente mais em Deus que nós possamos
imaginar; e o que conhecemos o conhecemos de maneira imperfeita.
Sabemos que Deus conhece; mas há muita mais em Seu modo de
conhecer e em sua relação com Seus objetos que nós não podemos
entender. Sabemos que Ele age; mas não sabemos como age, nem a
relação que Sua atividade tem com o tempo, nem com coisas fora dEle
mesmo. Sabemos que Ele sente; que Ele ama, que se compadece, que é
misericordioso, cheio de graça; que aborrece o pecado. Mas este
elemento emocional da natureza divina está coberto com uma escuridão
tão grande, mas não maior que a que cobre Seus pensamentos ou
propósitos. Aqui outra vez nossa ignorância aproxima-se da limitação de
nosso conhecimento a respeito de Deus, encontra um paralelo em nossa
ignorância a respeito de nós mesmos. Há potencialidades em nossas
naturezas das quais não temos ideia, em nosso atual estado de existência.
E inclusive quanto ao que somos agora, pouco sabemos. Sabemos que
percebemos, que pensamos e que agimos. Não sabemos como. É-nos
totalmente inescrutável como a mente toma conhecimento da matéria;
como a alma age sobre o corpo, ou o corpo sobre a mente. Mas ninguém
em seu são juízo diria que porque nosso conhecimento de nós mesmos
seja assim parcial e imperfeito, que não tenhamos conhecimento de nós
mesmos.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 462
A doutrina comum sobre este tema está claramente expresso por
Descartes: 178 “Sciri potest, Deum esse infinitum et omnipotentem,
quanquam anima nostra, utpote finita, id nequeat comprehendere sive
concipere; eodem nimirum modo, quo montem manibus tangere
possumus, sed non ut arborem, aut aliam quampiam rem brachiis nostris
non majorem amplecti: comprehendere enim est cogitatione complecti;
ad hoc autem, ut sciamus aliquid, sufficit, ut illud cogitatione
attingamus.”
Até Espinoza 179 diz: “Ad quæstionem tuam, an de Deo tam claram,
quam de triangulo habeam ideam, respondeo affirmando. Non dico, me
Deum omnino cognoscere; sed me quædam ejus attributa, non autem
omnia, neque maximam intelligere partem, et certum est, plurimorum
ignorantiam, quorundam eorum habere notitiam, non impedire. Quum
Euclidis elementa addiscerem, primo tres trianguli angulos duobus rectis
æquari intelligebam; hancque trianguli proprietatem clare percipiebam,
licet multarum aliarum ignarus essem.”
Assim, enquanto que se admite que não só o Deus infinito é
incompreensível, e que nosso conhecimento dEle é, ao mesmo tempo,
parcial e imperfeito; que há muito em Deus que não sabemos
absolutamente, e que conhecemos o que fazemos, conhecemos muito
imperfeitamente; entretanto, nosso conhecimento, até onde chega, é um
conhecimento verdadeiro. Deus é realmente o que cremos que Ele é,
enquanto que nossa ideia dEle é determinada pela revelação que Ele fez
de Si mesmo em Suas obras, na constituição de nossa natureza, em Sua
palavra e na pessoa de Seu Filho. Conhecer é simplesmente ter aquela
informação a respeito de um objeto que seja conforme a que aquele
objeto é realmente. Sabemos o que significam as palavras infinita, eterna
e imutável. E por isso aquela sublime proposição, carregada de mais
verdade que a que jamais se condensou em nenhuma outra sentença.

178
Epistolæ, I., cx., edit. Amsterdam, 1682.
179
Epistola, lx., vol. I. p. 659, edit. Jena, 1802.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 463
«Deus é Espírito, infinito, eterno e imutável», comunica à mente uma
ideia tão distintiva e tão verdadeira (isto é, confiável), como a proposição
«A alma humana é um espírito finito». Neste sentido, Deus é um objeto
do conhecimento. Ele não é o Deus desconhecido, porque Ele é infinito.
O conhecimento nEle não deixa de ser conhecimento, porque é a
onisciência; o poder não deixa de ser poder, porque é a onipotência; mais
do que o espaço deixa de ser espaço porque é infinito.

B. Como conhecemos a Deus?

Como procede a mente para formar sua ideia de Deus? Os teólogos


antigos respondiam a esta pergunta, dizendo que é por via de negação,
por via de eminência e por via de causalidade. Isto é, negamos a Deus
toda limitação; atribuímos a Ele toda excelência no maior grau; e
atribuímos a Ele como a grande Causa Primeira de todos os atributos
manifestados em Suas obras. Somos filhos de Deus, e portanto, somos
semelhantes a Ele. Por isso estamos autorizados a atribuir a Ele todos os
atributos de nossa própria natureza como criaturas racionais, sem
limitação e em grau infinito. Se somos como Deus, Deus é semelhante a
nós. Este é o princípio fundamental de toda religião. Este é o princípio
que Paulo deu por sentado em seu discurso aos atenienses (At 17:29):
«Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é
semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e
imaginação do homem». Pela mesma razão não deveríamos pensar que
Ele seja um Ser simples ou uma mera abstração, um nome para a ordem
moral do universo, ou a causa ignota e incognoscível de todas as coisas,
– uma mera força inescrutável. Se somos Seus filhos, Ele é nosso Pai, de
cuja imagem somos portadores, e de cuja natureza somos partícipes. Isto,
no sentido próprio do termo, é antropomorfismo, uma palavra da qual se
abusou muito, e que com frequência emprega-se em mau sentido para
expressar a ideia de que Deus é absolutamente como nós, um ser de
semelhantes limitações e paixões. Mas no sentido recém-explicado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 464
expressa a doutrina da Igreja e da grande massa da humanidade. Bem diz
Jacobi: 180 «Confessamos, pois, um antropomorfismo inseparável da
convicção de que o homem é portador da imagem de Deus; e mantemos
que à parte disto, o Antropomorfismo, que sempre foi chamado Teísmo,
não é nada senão ateísmo ou fetichismo».

C. Prova de que este método é fidedigno.

Que este método de formar uma ideia de Deus é confiável se


demonstra:
1. Porquanto é uma lei da natureza. Inclusive na forma mais baixa
de fetichismo supõe-se que a vida do adorador pertence ao objeto que
adora. Ao poder temido lhe supõem umas capacidades semelhantes às
nossas. Da mesma maneira, sob todas as formas de politeísmo, os deuses
da gente foram considerados como seres pessoais inteligentes. É só nas
escolas de filosofia que encontramos um método diferente de formar
una-se ideia da Deidade. substituíram τὸ ὃν para ὁ ὢν, τὸ θεῖον para ὁ
Θεός, τὸ ἀγαθόν para ὁ ἀγαθός. É aqui no que respeita ao conhecimento
do mundo exterior. A massa da humanidade crê que as coisas são tal
como as percebemos. E isto o negam os filósofos. Afirmam que não
percebemos as próprias coisas, senão certas ideias, espécies ou imagens
das coisas; que não temos nem podemos ter conhecimento do que são as
próprias coisas. Pelo que dizem que não podemos ter conhecimento do
que Deus é; só sabemos que somos levados a pensar dEle de uma certa
maneira, mas que não só não estamos autorizados a crer que nossa ideia
corresponda com a realidade, mas também, dizem eles, é coisa certa que
Deus não é o que pensamos que é. Assim como o comum das pessoas
estão certo no primeiro, também estão certo no segundo. Em outras
palavras, nossa convicção de que Deus é o que Ele revelou ser repousa
sobre a mesma base que nossa convicção de que o mundo externo é o

180
“Von den göttlichen Dingen,” Werke, III, págs. 422-423, edição do Leipzig, 1816.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 465
que pensamos que é. Este fundamento é a veracidade da consciência, ou
a fiabilidade das leis da crença que Deus imprimiu sobre nossa natureza.
“Invencibilidade da crença”, segundo Sir William Hamilton, “é
conversível com a verdade da fé”, 181 embora, por desgraça, neste tema,
ele não se aderia a seu próprio princípio, “Que o que é, por natureza
necessariamente que se crê ser, realmente é.” 182 Nenhum homem tem
mais nobremente ou mais sinceramente reivindicado esta doutrina, que é
o fundamento de toda ciência e de toda fé. “A consciência”, diz ele,
“uma vez declarada culpada de falsidade, um cepticismo absoluto, no
que respeita ao caráter de nosso ser intelectual, é a melancolia mais que
só o resultado racional. Qualquer conclusão pode agora com a
impunidade ser elaborada contra as esperanças e a dignidade da natureza
humana. Nossa personalidade, nossa imaterialidade, nossa liberdade
moral, deixaram que ser um argumento para sua defesa. ‘O homem é o
sonho de uma sombra.’ Deus é o sonho desse sonho.” 183 A única
questão, portanto, é: Estamos invencivelmente levados a pensar em Deus
como possuindo os atributos de nossa natureza racional? Isto não se pode
negar, porque a universalidade demonstra a fé invencível. E é um fato
histórico que os homens têm universalmente pensado assim de Deus.
Ainda o Sr. Mansel 184 exclama contra os transcendentalistas: “Loucos, a
sonhar que o homem pode escapar de si mesmo, que a razão humana
pode desenhar outra coisa mais que um retrato humano de Deus.” É
verdade que nega a exatidão deste retrato, ou, ao menos, afirma que não
podemos saber se é correto ou não. Mas a questão agora não é isto.
Admite que estamos obrigados pela constituição de nossa natureza,
portanto, a pensar em Deus. E por princípio fundamental de toda
filosofia verdadeira, o que nos vemos forçados a crer deve ser verdade. É
certo, portanto, que Deus realmente é o que tomamos dEle, quando Lhe

181
Philosophy, edit. Wight, New York, 1854, p. 233.
182
Ibid. p. 226.
183
Ibid. p. 234.
184
Limits of Religious Thought, edit. Boston, 1859, pp. 56, 57.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 466
atribuímos as perfeições de nossa própria natureza, sem limitação, e até a
um grau infinito.

Nossa natureza moral demanda esta ideia de Deus.


2. Já se pôs em evidência, ao falar do argumento moral da
existência de Deus, que todos os homens são conscientes de sua
responsabilidade perante um ser superior a eles mesmos, que sabe o que
são e o que fazem, e que tem a vontade e o propósito de recompensar ou
de castigar aos homens segundo suas obras. Por isso, o Deus que nos é
revelado em nossa natureza é um Deus que conhece, que quer e que age;
que premia e castiga. Isto é, Ele é uma pessoa; um agente inteligente,
voluntário, dotado de atributos morais. Esta revelação de Deus tem que
ser verdadeira. Tem que nos dar a conhecer o que Deus é
verdadeiramente, ou nossa natureza é uma mentira. Tudo isto o admite
Mansel, embora sustente que Deus não pode ser conhecido. Admite ele
que a sensação de dependência de um poder superior é «uma realidade
da consciência interna»; que este poder superior «não é uma fatalidade
inexorável nem uma lei imutável, mas sim um Ser que tem ao menos os
atributos da personalidade até o ponto de poder mostrar favor ou
severidade para com os que do dependem, e que pode ser contemplado
por eles com os sentimentos de esperança, de temor, de reverência, e de
gratidão». 185 Mas ninguém tem nem pode ter gratidão para com o sol,
nem para com a atmosfera, nem para com nenhuma força ininteligente.
A gratidão é o tributo de uma pessoa a outra. Novamente, este mesmo
autor admite que «a razão moral, ou a vontade, ou a consciência do
homem, seja como for que o chamemos, não pode ter autoridade alguma
exceto a implantada nele por algum Ser espiritual superior, como uma lei
emanando de um legislador».186 «Vemo-nos assim obrigados», diz ele,
«pela consciência da obrigação moral, a dar por suposta a existência de

185
Limits of Religious Thought, etc., p. 120.
186
Ibid. p. 121.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 467
uma Deidade moral [e, por isso, naturalmente pessoal], e a considerar a
norma absoluta do bem e do mal como constituída pela natureza daquela
Deidade». 187 Nosso argumento com base nestes fatos é que se nossa
natureza moral nos leva a crer que Deus é uma pessoa, tem que ser uma
pessoa, e consequentemente que chegamos a um verdadeiro
conhecimento de Deus atribuindo a Ele as perfeições de nossa própria
natureza.

Nossa natureza religiosa faz a mesma demanda.


3. O argumento com base em nossa natureza religiosa, como
distinta de nossa natureza moral, é essencialmente o mesmo. A
moralidade não é o tudo da religião. Prestar culto, no sentido religioso da
palavra, é atribuir perfeição infinita a seu objeto. É expressar a este
objeto nosso reconhecimento pelas bênçãos que desfrutamos, e buscar
sua continuação; é confessar, louvar, orar e adorar. Não podemos prestar
culto à lei da gravidade, ou a uma força inconsciente, nem à mera ordem
do universo. Nossa natureza religiosa, ao demandar um objeto de
suprema reverência, amor e confiança, demanda um Deus pessoal, um
Deus revestido com os atributos de uma natureza como a nossa; que
pode ouvir nossas confissões, louvores e orações; que pode amar e ser
amado; que pode suprir as nossas necessidades e supre todas as nossas
capacidades para o bem. Assim, volta a fazer-se patente que a não ser
que toda nossa natureza seja uma contradição e uma falsidade, chegamos
a um verdadeiro conhecimento de Deus quando Lhe atribuímos as
perfeições de nossa própria natureza.
Mansel admite que nossa natureza exige uma Deidade pessoal e
moral; mas diz que «o mesmo conceito de uma natureza moral é por si
mesmo o conceito de um limite, porque a moralidade é ajustar-se a uma
lei; e uma lei, imposta de dentro ou de fora, só pode ser concebida em

187
Ibid. p. 122.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 468
188
sua operação limitando a gama de possíveis ações». De maneira
semelhante, diz: «A única concepção humana de personalidade é a de
limitação». Por isso, se Deus for infinito, não pode ser uma pessoa, nem
possuir atributos morais. Este é o argumento do Strauss e de todos outros
panteístas contra a doutrina de um Deus pessoal. Mansel admite a força
deste argumento, e diz que temos que renunciar a toda esperança de
conhecer o que Deus é, e que devemos nos contentar com o
«conhecimento regulador», que nos ensina não o que Deus é, mas sim o
que Ele quer que pensemos que é. Assim, nos proíbe confiar em nossas
crenças necessárias. Não deveríamos considerar como verdadeiro o que
Deus, pela constituição de nossa natureza, força-nos a crer. Isto é
subverter toda filosofia e religião, e destruir a diferença entre a
racionalidade e a irracionalidade. Por que supõe-se esta contradição entre
razão e consciência, entre nossa natureza racional e a moral?
Simplesmente porque os filósofos decidem dar uma tal definição de
moralidade e de personalidade que não se podem pregar nem uma nem a
outra de um Ser infinito. Mas não é verdade que a moralidade ou a
personalidade impliquem uma limitação qualquer com a perfeição
absoluta. Não limitamos a Deus quando dizemos que Ele não pode ser
irracional além de racional, inconsciente além de consciente, mau assim
como bom, A única limitação que admite é a negação de toda
imperfeição. A razão não é limitada quando dizemos que não pode ser
sem razão; nem o espírito, quando dizemos que não é matéria; nem a luz,
quando dizemos que não é trevas; nem o espaço, quando dizemos que
não é tempo. Por isso, não limitamos ao Infinito, quando o exaltamos a
ele em nossas concepções do inconsciente ao consciente, do ininteligente
ao inteligente, de alguma coisa impessoal ao absolutamente perfeito e
pessoal Jeová. Todas estas dificuldades surgem de confundir as ideias de
infinitude e de totalidade.

188
Limits of Religious Thought, etc., p. 127.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 469
4. O quarto argumento a respeito desta questão é que se não
estamos justificados ao referir a Deus os atributos de nossa própria
natureza, então não temos Deus. A única alternativa é antropomorfismo
(neste sentido) ou Ateísmo. Um Deus desconhecido, um Deus de cuja
natureza e de cujas relações conosco nada saibamos carece de
significado. É um fato histórico que os que rejeitam este método de nos
formar nossa Ideia de Deus que negam que devemos lhe atribuir a Elas
perfeições de nossa própria natureza, têm-se voltado ateus. Tomam a
palavra «espírito» e a privam da consciência da inteligência da vontade e
da moralidade; e ao resíduo, que é uma absoluta nada, chamam-no Deus.
Hamilton e Mansel buscam na fé sua refugio diante desta terrível
conclusão. Dizem que a razão proíbe a adscrição destes ou outros
atributos quaisquer ao Infinito e Absoluto, mas que a fé protesta contra
esta conclusão da razão. Entretanto estas protestos de nada servem
exceto quando são racionais. Quando Kant demonstrou que não havia
evidência racional da existência de Deus, e abandonando as razões
especulativas se apoiou na razão prática (isto é abandonando a razão pela
fé), seus seguidores, universalmente. abandonaram toda fé num Deus
pessoal. Ninguém pode crer no impossível. e se a razão pronuncia que é
impossível que o Infinito seja uma pessoa, a fé em Sua personalidade é
uma impossibilidade. Mas isto não o admite Mansel. Porque enquanto
que diz que é uma contradição afirmar que o Infinito é uma pessoa, ou
lhe atribuir a possessão de atributos morais, diz entretanto que «o
antropomorfismo é a condição indispensável de toda teologia
humana»; 189 e cita esta passagem de Kant: 190 «Podemos desafiar de
maneira confiante a teologia natural para que nos dê um só atributo
distintivo da Deidade, que denote inteligência ou vontade, que, além do
antropomorfismo, seja algo mais que uma mera palavra, a que não se
possa atribuir nem o mais ligeiro conceito, que possa servir para estender

189
Limits of Religious Thought, etc., p. 261.
190
“Kritik der Praktischen Vernunft.” Works, edit. Rosenkranz, vol. viii. p. 282.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 470
nosso conhecimento teórico». Deve-se lamentar profundamente que haja
os que ensinem que a única maneira em que podemos formar uma ideia
de Deus não leva a nenhum verdadeiro conhecimento. Não nos ensina o
que Deus é senão o que nos vemos forçados contra a razão a pensar que
Ele é.

Argumento com base na Revelação de Deus na Natureza.


5. Um quinto argumento se baseia no fato de que as obras de Deus
manifestam uma natureza semelhante à nossa. É um princípio são que
devemos atribuir a uma causa os atributos necessários para dar conta de
seus efeitos. Se os efeitos manifestam inteligência, vontade, poder e
excelência moral, estes atributos devem pertencer à causa. Assim, como
as obras de Deus são uma revelação de todos estes atributos numa escala
totalmente assustadora, devem pertencer a Deus num grau infinito. Com
isto só se diz que a revelação feita de Deus no mundo externo concorda
com a revelação que Ele tem feito de Si mesmo na constituição de nossa
própria natureza: Em outras palavras, demonstra que a imagem de Si
mesmo que Ele imprimiu em nossa natureza é uma verdadeira
semelhança.

Argumento com base na Escritura.


6. As Escrituras declaram que Deus é justamente aquilo que somos
levados a pensar que é quando Lhe atribuímos as perfeições de nossa
própria natureza num grau infinito. Somos conscientes de nós mesmos, e
assim o é Deus. Somos espíritos, e Ele também. Somos agentes
voluntários, e assim o é Deus. Temos uma natureza moral,
verdadeiramente desfigurada de uma maneira mísera, enquanto que Deus
tem uma excelência moral em perfeição infinita. Somos pessoas, e assim
o é Deus. E as Escrituras afirmam que isto é verdade. A grande revelação
primordial de Deus é como o «Eu Sou», o Deus pessoal. Todos os nomes
e títulos que se lhe dá, todos os atributos que se lhe atribuem, todas as
obras que se lhe atribuem, são revelações do que Ele realmente é. Ele é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 471
Elohim, o Poderoso, Santo, e Onipresente Espírito; Ele é o criador,
preservador e governante de todas as coisas. Ele é nosso Pai. Ele é quem
atende à oração, o doador de todo bem. Ele alimenta os corvos jovens.
Ele veste as flores do campo. Ele é Amor. Ele ama o mundo de tal
maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nEle
crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Ele é misericordioso,
longânimo, abundante em bondade e verdade. Ele é uma ajuda presente
em cada tempo de necessidade; um refúgio, uma torre alta, um galardão
sobremaneira grande. As relações que, segundo a Escritura, temos com
Deus, são do tipo que só podemos manter com um ser semelhante a nós.
Ele é nosso governante e pai, com quem podemos ter relacionamento.
Seu favor é nossa vida, sua misericórdia melhor que a vida. Esta sublime
revelação de Deus em Sua própria natureza e em Seu relacionamento
conosco não é nenhum engano. Não é uma mera verdade reguladora, ou
seria um engano e uma zombaria. Dá-nos a conhecer a Deus como Ele é
realmente. Por isso conhecemos a Deus, embora nenhuma criatura pode
compreender à perfeição o Onipotente.

Argumento com base na manifestação de Deus em Cristo.


7. Finalmente, Deus se revelou na pessoa de Seu Filho. Ninguém
conhece o Pai, senão o Filho; e aquele a quem o Filho O revelar. Jesus
Cristo é o verdadeiro Deus. A revelação que Ele fez de Si mesmo foi a
manifestação de Deus. Ele e o Pai um são. As palavras de Cristo eram as
palavras de Deus. As obras de Cristo eram as obras de Deus. O amor, a
misericórdia, a ternura, a graça perdoadora, assim como a santidade, a
severidade e o poder manifestados por Cristo, foi tudo manifestação do
que Deus verdadeiramente é. Assim, vemos, como com nossos próprios
olhos, o que Deus é. Sabemos que, embora infinito e absoluto, Ele pode
pensar, agir e querer; que Ele pode amar e aborrecer; que Ele pode
escutar a oração e perdoar o pecado, que podemos ter comunhão com
Ele, como uma pessoa pode comunicar-se com outra. A filosofia tem que
vigiar seu rosto na presença de Jesus Cristo, como Deus manifestado em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 472
carne. Não se pode presumir de dizer, na presença dele, que Deus não é,
nem se sabe que seja, o que Cristo era com toda clareza. Esta doutrina de
que Deus é objeto de um conhecimento certo e verdadeiro está na base
de toda religião, e portanto nunca deve ser abandonado.

§ 2. Deus não pode ser conhecido plenamente.

Os filósofos alemães modernos tomam como base de que toda


ciência, toda filosofia verdadeira, deve fundar-se no conhecimento do
ser, e não dos fenômenos. Rejeitam a autoridade dos sentidos e da
consciência, e ensinam que é só pelo conhecimento imediato do absoluto
que chegamos a um conhecimento verdadeiro ou certo. Deus, ou melhor
dizendo, o Infinito, pode ser completamente conhecido e entendido como
o simples objeto dos sentidos ou da consciência; Ele é, só até certo ponto
como O conhecemos.
Parece impossível que a presunção dos homens devem ser tão
extrema que uma criatura como o homem pretenda entender à perfeição
o Todo-Poderoso, quando na realidade não pode compreender-se a si
mesmo ou os objetos mais simples com os quais está em contato diário.
O suposto é que o ser, como tal, Ser Infinito e Absoluto, pode ser
conhecido, quer dizer, que podemos determinar o que é, e as leis
necessárias por aquele que se desenvolve no mundo dos fenômenos. Este
conhecimento se alcança a priori, não por indução ou dedução de nossa
própria natureza ou os fatos da experiência, mas por um ato imediato da
cognição, que ultrapassa toda percepção. O grande serviço prestado pelo
Sir William Hamilton e Sir Mansel à causa da verdade foi demonstrar a
inutilidade desta filosofia simulada do Infinito, nos princípios de seus
defensores. Para a mente comum, não era necessário refutação, que
intuitivamente viu que é impossível e absurdo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 473
O argumento de Sir William Hamilton.
Hamilton mostra, em primeiro lugar, que a intuição imediata de
Schelling, que Hegel ridicularizou como a mera imaginação, a dialética
de Hegel, que Schelling pronunciou um mero jogo de palavras, e a razão
impessoal de Cousin que entra em nossa consciência, mas não em nossa
personalidade, absolutamente não nos dará um conhecimento do Infinito.
“A Existência”, diz ele, “nos revela só em modificações específicas, e
estas se conhecem só nas condições de nossas faculdades de
conhecimento. As coisas em si mesmas, a matéria, a mente, Deus, tudo
numa palavra que não é finito, relativo e fenomenal, como que não
guardam analogia com nossas faculdades, está para além do limite de
nossos conhecimentos.” 191 Em que sentido Hamilton coloca Deus “para
além do limite de nosso conhecimento” se verá na sequência. É,
entretanto, evidente que nosso conhecimento deve estar limitado por
nossas faculdades de conhecer. Outros animais podem ter sentidos que
não possuímos. É absolutamente impossível que deveríamos ter o tipo de
conhecimento em razão do exercício dos sentidos. É provável que
existam faculdades latentes em nossa natureza que não estão em
atividade em nosso estado atual do ser. Está claro que agora não
podemos alcançar o conhecimento que as faculdades na vida futura nos
permitem alcançar. É tão evidente que não podemos conhecer o Infinito,
no sentido destes filósofos, como que não podemos ver um espírito, ou
nos guiar no espaço, como o pombo-correio ou a migração dos salmões.

Só o Infinito pode conhecer o Infinito.


2. Em segundo lugar, admite-se que ninguém senão o Infinito pode
conhecer o Infinito, e conhecer a Deus neste sentido, admite-se que é
preciso ser Deus. “Schelling afirmou pela mente do homem, o que Kant
tinha demonstrado ser impossível, uma faculdade da intuição intelectual,
que é além de sentido, acima da consciência, e libertado das leis do

191
Discussions, p. 23.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 474
entendimento, e que compreende o absoluto ao converter-se no absoluto,
e portanto, conhece a Deus por ser Deus.” 192 Esta premissa de que o
homem é Deus, choca a razão e o senso comum dos homens, assim como
ultraja a suas convicções religiosas e morais.
3. Em terceiro lugar, Hamilton e Mansel demonstram que, supondo
que as definições do Absoluto e do Infinito dada pelos
transcendentalistas, as conclusões mais contraditórias logicamente se
pode deduzir deles. “Há três termos familiares como as palavras do lar
no vocabulário da filosofia, que deve ser tido em conta em cada sistema
da teologia metafísica. Para conceber a Divindade como Ele é, devemos
concebê-lo como Causa primeira, como absoluto e como infinito. Por
Causa primeira, entende-se que o que produz todas as coisas, e ela
mesma não é produzida por ninguém. Por Absoluto, entende-se que é em
e por si mesmo, não tendo relação necessária com qualquer outro ser.
Por Infinito, entende-se o que está livre de toda possível limitação,
aquele de quem um maior é inconcebível, e que, em consequência, não
pode receber nenhum atributo adicional ou modo de existência que não
tinha desde toda a eternidade.” 193
De acordo com estas definições, no sentido em que se tem previsto
tomar, deduz-se: —
1. Que o Infinito e o Absoluto deve incluir a soma de todo ser. Pelo
que se concebe como absoluto e infinito deve ser concebido como
contendo em si a soma, não só de todo o presente, mas também de todos
os modos possíveis de ser. Porque se qualquer modo real pode-se negar,
relaciona-se com o modo e limitado por ele, e se qualquer modo
possível, pode-se negar disso, é capaz de chegar a ser mais do que agora
é, e essa capacidade é uma limitação”. 194
2. Se o Absoluto e o Infinito é como definido anteriormente, não
pode ser objeto de conhecimento. Conhecer é limitar. É preciso
192
Progress of Philosophy, by S. Taylor. LL.D., p. 200.
193
Mansel, p. 75.
194
Mansel, p. 76.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 475
distinguir o objeto de conhecimento de outros objetos. Não podemos
conceber, diz Hamilton, de uma absoluta totalidade, quer dizer, de um
todo tão grande que não podemos concebê-lo como uma parte de um
todo maior. Não podemos conceber uma linha infinita, ou do espaço
infinito, ou de uma duração infinita. Também podemos pensar sem o
pensamento, como atribuir um limite para além do qual não pode haver
nenhuma extensão, nenhum espaço, nenhuma duração. “A imaginação
de Deus ao máximo, afunda-se paralisada dentro dos limites de
tempo.” 195 Disso se deduz, portanto, pela própria natureza do
conhecimento, segundo Hamilton, que o Infinito e o Absoluto não pode
ser conhecido.

O Infinito não pode Conhecer.


3. Também se desprende destas premissas, que o Infinito não pode
conhecer. Todo conhecimento é limitação e diferença. Supõe uma
distinção entre sujeito e objeto, entre o conhecedor e o conhecido,
incompatível com a ideia do Absoluto.
4. Disso se deduz também que o Absoluto não pode ser consciente,
pois a consciência implica uma distinção entre o eu e o não-eu. É do
conhecimento de nós mesmos como algo distinto do que não somos nós
mesmos. Inclusive se está consciente só de si mesmo, há a mesma
distinção entre sujeito e objeto; o eu como sujeito e um modo de si
mesmo como o objeto da consciência. “A voz quase unânime da
filosofia”, diz Mansel, “ao pronunciar que o Absoluto é ao mesmo tempo
único e deve ser aceito como a voz da razão também, quanto a razão tem
voz no assunto.” “A concepção de uma consciência absoluta e infinita
contradiz-se a si mesma”. 196

195
Hamilton’s Discussions, p. 35.
196
Mansel, pp. 78, 79.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 476
O Absoluto não pode ser a Causa.
5. É igualmente claro que o Absoluto e o Infinito não pode ser a
Causa. A causalidade implica relação, a relação de eficiência para com o
efeito. Também implica uma mudança, a mudança da inação à atividade.
Por outro lado implica a sucessão, e a sucessão implica a existência no
tempo. “Uma coisa que existe absolutamente (quer dizer, não em virtude
de relação)”, diz Hamilton, “e uma coisa que existe absolutamente, como
uma causa, são contraditórios.” Ele cita Schelling 197 como dizendo, “Ele
se apartaria mais amplamente como os polos da ideia do Absoluto, quem
pensaria na definição de sua natureza pela noção de atividade.” “Mas
aquele que definiria o Absoluto pela noção de uma causa,” acrescenta
ele, “apartar-se-ia ainda mais amplamente de sua natureza, visto que a
noção de uma causa implica não só a noção de uma determinação à
atividade, mas também de uma determinação a um tipo de atividade
particular, não dependente.” 198 “Os três conceitos, a Causa, o Absoluto,
o Infinito, todos igualmente indispensáveis, não o fazem,” pergunta-se o
senhor Mansel, 199 “implicam contradição entre si, se se considerar em
conjunto, como atributos de um só e mesmo ser? Uma causa não pode,
como tal, absoluto: o absoluto não pode, como tal, ser a causa.”
6. De acordo com as leis de nossa razão e consciência, não pode
haver vigência sem sucessão, mas a sucessão no sentido de mudança não
pode ser predicado do Absoluto e o Infinito, e entretanto sem sucessão
não pode haver pensamento ou consciência, e, portanto, dizer que Deus é
eterno é negar que Ele tem quer seja o pensamento ou a consciência.
7. Mais uma vez, “A benevolência, a santidade, a justiça, a
sabedoria,” diz Mansel, “podem ser concebidas por nós só como
existente num benévolo e santo e justo e sábio Ser, quem não é idêntico a
qualquer de Seus atributos, mas o tema comum de todos eles, numa
palavra, numa pessoa. Mas a personalidade, tal como a concebemos, é
197
Bruno, p. 171.
198
Discussions, p. 40.
199
Mansel, p. 77.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 477
essencialmente uma limitação e uma relação. — Falar de uma pessoa
absoluta e infinita é simplesmente usar a linguagem para a qual,
entretanto, pode ser certo num sentido sobrenatural, a forma de
pensamento humano, possivelmente, pode unir-se.” 200

A Conclusão a que conduz o argumento de Hamilton.


Qual é então o resultado de todo o assunto? É que, se as definições
do Absoluto e Infinito, adotadas por transcendentalistas são admitidas, as
leis da razão nos levam a um labirinto de contradições. Se a ideia deles a
respeito de um Ser infinito e absoluto é correta, então se deve incluir
todo ser como real e possível; nem se pode saber nem ser o objeto do
conhecimento; não pode ser consciente, ou causa, ou uma pessoa, ou o
objeto de qualquer atributo moral. Hamilton deduz de tudo isto, que uma
filosofia do Absoluto é uma impossibilidade absoluta; que o Absoluto,
por sua natureza e pelos limites necessários do pensamento humano, é
impossível de conhecer, e portanto que os sistemas estupendos do
ateísmo panteísta que tinha sido eretos no suposto contrário, deve cair ao
solo. Esses sistemas de fato já caíram por seu próprio peso. Embora faça
só uns anos, eles afirmaram a homenagem do mundo intelectual e se
jactaram da imutabilidade, que têm na atualidade dificilmente um
advogado da vida.
Infelizmente, entretanto, Hamilton, como Sansão, está envolto na
ruína que ele criou. Ao derrocar o panteísmo ele derroca o teísmo. Tudo
o que ele diz do Absoluto como incognoscível, afirma que é verdade de
Deus. Todas as contradições que estão ligadas à assunção de um
absoluto e infinito como a base da filosofia, ele diz que se conectam à
assunção de um Deus infinito.

200
Mansel, pp. 102, 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 478
§ 3. A Doutrina de Hamilton.

A. Deus é um Objeto da fé, mas não do Conhecimento.

O sentido em que Hamilton e seus seguidores representam a Deus


como incognoscível, foi motivo de controvérsia. Quando diz que
podemos saber que Deus é, mas não o que Ele é, diz ele que só tinha sido
dito cem vezes antes. Platão havia dito que a busca de Deus era difícil, e
que quando é encontrado, é impossível declarar Sua natureza. Filo ainda
mais explicitamente ensina que a essência divina é sem qualidades ou
atributos, e como não sabemos nada de nenhuma essência, mas por seus
atributos distintivos, Deus em Sua própria natureza é totalmente
incognoscível. 201 Isto se repete constantemente pelos Pais gregos e
latinos, aqueles que, entretanto, na maioria dos casos, ao menos, não
significava nada mais que Deus é incompreensível. Outros mais, ao
afirmar a incapacidade do homem para conhecer a Deus, refere-se à sua
cegueira espiritual ocasionada pelo pecado. Portanto, ao passo que
negam que Deus pode ser conhecido pelo não regenerado, afirmam que
Ele é conhecido por aqueles a quem o Filho o revelou. Da mesma
maneira, embora o apóstolo afirme que inclusive os pagãos conhecem a
Deus, em outro lugar fala de um tipo de conhecimento devido à
iluminação salvífica do Espírito Santo. É no sentido de que Deus está
para além de que os devotos o descubram, Pascal diz: 202 “Sabemos que
há um infinito, mas somos ignorantes de sua natureza. . . . . Bem
podemos saber que há um Deus, sem saber o que Ele é.” E até John
Owen diz: «Todas as concepções racionais das mentes dos homens ficam
sorvidas e perdidas se querem exercitar-se de maneira direta sobre o que
é absoluto, imenso, eterno e infinito. Quando dizemos que é assim, não
conhecemos o que dizemos, mas sim só que não é de outra maneira. O

201
Strauss, Dogmatik, i. p. 527.
202
Pensées, partie II. art. III. 5.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 479
que negamos de Deus o conhecemos em certa medida mas não
conhecemos o que afirmamos; só que declaramos o que cremos e
adoramos». 203 O professor Tyler acrescenta, que embora a filosofia de
Hamilton “limita nosso conhecimento ao condicionado [o finito], deixa
livre a fé a respeito do incondicionado [o infinito], de fato nos obriga a
crer nela pela lei suprema de nossa inteligência.”
Embora Hamilton com frequência usa a mesma linguagem quando
se fala de Deus como incognoscível, como o empregado por outros, seu
significado é muito diferente. Ele ensina realmente a ignorância de Deus
como destrutiva de toda religião racional, porque é incompatível com a
possibilidade da fé.

Diferentes classes de ignorância.


Há diferentes tipos de ignorância. Em primeiro lugar, é a ignorância
do idiota, que é a vacuidade em branco. Nele, a declaração de uma
proposição não desperta nenhuma ação mental que seja. Em segundo
lugar, é a ignorância de um homem cego sobre a cor. Ele não sabe de que
cor é, mas ele sabe que é algo que corresponde a essa palavra e que
produz um certo efeito nos olhos daqueles que veem. Inclusive ele pode
entender as leis pelas quais se determina a produção de cor. Um homem
cego escreveu um tratado sobre óptica. Em terceiro lugar, há a
ignorância sob a qual a mente trabalha quando se puder provar
proposições contraditórias com relação ao mesmo objeto, visto que a
mesma figura é ao mesmo tempo quadrado e redondo. E em quarto
lugar, há a ignorância do conhecimento imperfeito. Paulo fala de saber o
que excede a todo conhecimento. Nossa ignorância de Deus, segundo
Hamilton, não é nem a ignorância dos idiotas, nem de conhecimento
imperfeito, mas sim é análoga à ignorância de um cego sobre as cores, e
mais definitivamente, a ignorância que trabalhamos com relação a
qualquer objeto de que podemos demonstrar contradições.

203
Tyler’s Progress of Philosophy, second edit. p. 147.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 480
Prova de que Hamilton nega que podemos conhecer a Deus.
Que esse ponto de vista de sua doutrina é correto prova-se (1.)
Porque ele afirma em termos tão amplos que Deus não pode ser
conhecido, que Ele não só é inconcebível, mas incogitável. (2.) Porque,
diz, que sabemos que Deus não é, e não pode ser, o que pensamos que é.
Não se trata simplesmente de que não podemos determinar com certeza
que nossa ideia de Deus é correta, mas sabemos que não é correta.
“Pensar que Deus é, como podemos pensar que Ele seja”, diz, “é uma
blasfêmia. A última e mais alta consagração de toda religião verdadeira,
deve ser um altar Ἀγνῶστῳ Θεῷ, ‘Para o desconhecido e incognoscível
Deus’.” 204 (3.) Devido ao fato de que tanto ele como Mansel
continuamente afirmam que o Infinito não pode ser uma pessoa, não
pode conhecer, não pode ser causa, não pode ser consciente, não pode
ser objeto de nenhum atributo moral. Pensar em Deus como infinito, e
pensar nEle como pessoa é uma impossibilidade. (4.) As ilustrações, que
estes autores empregam determinam claramente seu significado. Nossa
ignorância de Deus se compara à nossa incapacidade para conceber de
duas linhas retas encerrando uma porção de espaço, ou para pensar “um
paralelogramo circular”. Não se trata simplesmente de que não podemos
entender como uma figura, mas vemos que, na natureza das coisas,
qualquer cifra é impossível. Assim que não só não podemos entender
como Deus pode ser absoluto e, entretanto, uma pessoa, mas vemos que
uma pessoa absoluta é tanto uma contradição como um círculo quadrado.
(5.) De acordo com Herbert Spencer e outros, no cumprimento dos
princípios de Hamilton, chegamos à conclusão de que não só não
podemos conhecer a Deus, mas também é impossível que um Deus
pessoal possa existir. Não pode haver tal ser.

204
Discussions, p. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 481
A Doutrina de Hamilton sobre Deus como um objeto de Fé
Hamilton e Mansel, entretanto, não são teístas, mas sim cristãos.
Eles creem em Deus, e eles creem nas Escrituras como uma revelação
divina. Eles tratam de evitar o que parece ser a consequência inevitável
de sua doutrina, mediante a adoção de dois princípios: primeiro, que o
impensável é possível, e, portanto, pode ser crido. Pela palavra
impensável se entende que as leis da razão nos obriga a considerar como
contraditório em si mesmo. Sobre este tema Mansel diz: “É nosso dever
pensar em Deus como pessoal, e é nosso dever crer que Ele é infinito. É
verdade que não podemos conciliar estas duas representações entre si,
visto que nosso conceito da personalidade implica atributos
aparentemente contraditórios à noção de infinito. Mas não se segue que
esta contradição existe mais que em nossa própria mente: não se segue
que implica uma impossibilidade absoluta na natureza de Deus. . . . . Isto
demonstra que há limites ao poder de pensamento do homem; e isso o
demonstra não mais.” 205 A conclusão é que, como tudo o que seja
possível, é acreditável, pois, como é possível que Deus, embora infinito
pode ser uma pessoa, sua personalidade pode ser racionalmente crida.

O Impensável, ou Impossível, não pode ser um objeto de fé.


A respeito disto se pode observar, —
1. Que existe uma grande diferença entre o irreconciliável e
contraditório em si mesmo. Em um caso a dificuldade surge, ou pode
surgir, fora de nossa ignorância ou fraqueza mental; no outro, surge da
natureza das próprias coisas. Há muitas coisas que são irreconciliáveis a
um menino que não o serão para um homem. Muitas coisas são
irreconciliáveis para um homem e não a outro; aos homens e não aos
anjos. Mas o autocontraditório é impossível, e é visto como tal por todas
as ordens da mente. Que dois e dois devem perfazer vinte, ou que a
mesma figura deve ser um quadrado e um círculo, é tão irreconciliável

205
Limits of Religious Thought, p. 106.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 482
para um anjo como para um menino. O que é contraditório em si mesmo
não pode possivelmente ser verdade. Agora, de acordo com Hamilton e
Mansel, o infinito e a personalidade não só são irreconciliáveis, mas
também contraditórios. Um afirma o que o outro nega. De acordo com
sua doutrina do Infinito não pode ser uma pessoa, e uma pessoa não pode
ser infinita, não mais que o Infinito pode ser finito ou infinito ao finito.
A necessidade de uma exclui a outra. Se você afirmar uma, você nega a
outra. Há uma grande diferença entre não ver como uma coisa é, e ver
claramente que não pode ser. Hamilton e Mansel asseguram
constantemente que uma pessoa absoluta é uma contradição de termos. E
assim é, se sua definição do absoluto é correta, e se uma contradição, é
impossível.
2. Se para a nossa razão a personalidade de um Deus infinito é uma
contradição, então é impossível racionalmente crer que Ele é uma
pessoa. É em vão dizer que a contradição está só em nossa mente. Assim
é a fé em nossa mente. É impossível que uma e a mesma mente veja uma
coisa que é falsa, e creia que é certo. Porque a razão para ver que uma
coisa é uma contradição, é ver que é falsa, e para ver que é falsa, e crer
que é verdadeira, é uma contradição de termos. Inclusive se a outras e
mais altas mentes a contradição não exista, sempre e quando existe na
opinião vista de qualquer mente particular, para essa fé em sua mente a
verdade é impossível.
Pode-se dizer que a razão de um homem pode convencê-lo que o
mundo exterior não existe realmente, enquanto seus sentidos o forçam a
crer em sua realidade. Assim que a razão pode pronunciar a
personalidade de Deus como uma contradição, e a consciência nos
obriga a crer que Ele é uma pessoa. Isto é confundir consecutivos com
estados de mente contemporâneos. É possível que um homem seja um
idealista em seu estudo, e um realista ao ar livre. Mas não pode ser um
idealista e realista ao mesmo tempo. A mente é uma unidade. A razão de
um homem é o próprio homem, de modo que é sua consciência, assim
como todas as suas outras faculdades. O eu é o único substantivo que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 483
pensa e crê. Assumir, portanto, que por necessidade tem que pensar de
uma maneira e crer em outra; que as leis de sua razão o obrigam a
considerar como falso o que sua consciência ou os sentidos o obrigam a
considerar como verdade, é destruir sua racionalidade. É também
impugnar a sabedoria e a bondade de nosso Criador, porque supõe que
Ele pôs uma parte de nossa constituição em conflito com a outra, que nos
pôs sob os guias que, alternativamente, obrigam-nos a mover-se em
direções opostas. Inclusive coloca esta contradição no próprio Deus. Por
que razão, em seu legítimo exercício, diz, Deus diz, e o que a
consciência, em seu legítimo exercício, diz, Deus diz. Se, por
conseguinte, a razão diz que Deus não é uma pessoa, e a consciência diz
que Ele é, pois — com reverência seja dito — Deus Se contradiz a Si
mesmo.

O Conhecimento é essencial à Fé.


É uma das doutrinas distintivas dos protestantes que o
conhecimento é essencial à fé. Esta é claramente a doutrina da Escritura.
Como crerão naquele de quem não ouviram? É a consulta pertinente e
instrutiva do apóstolo. A fé inclui a afirmação da mente que uma coisa é
certa e digna de confiança. Mas é impossível para a mente afirmar algo
daquilo de que não sabe nada. Os romanistas, com efeito, dizem que se
um homem crer que a Igreja ensina a verdade, então ele crê em tudo o
que a Igreja ensina, embora ignorante de suas doutrinas. Poderia assim
dizer-se que porque um menino tem confiança em seu pai, portanto ele
sabe tudo o que seu pai sabe. A verdade deve ser comunicada à mente, e
vista como possível, antes, com base em qualquer prova, pode ser crida.
Se, por conseguinte, não podemos conhecer a Deus, não podemos crer
nEle.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 484
B. Conhecimento regulador.
O segundo princípio que Hamilton e Mansel adotam para salvar do
cepticismo é o do conhecimento regulador. Estamos obrigados a crer que
Deus é o que as Escrituras e nossa natureza moral O declaram ser. Esta
revelação, entretanto, não nos ensina o que Deus realmente é, mas
simplesmente o que Ele quer nos fazer crer com relação a Ele. Nossos
sentidos, eles dizem, conta-nos que as coisas que nos rodeiam são, mas
não o são. Podemos, entretanto, com segurança agir no suposto de que
eles realmente são o que parecem ser. Nossos sentidos, portanto, dão um
conhecimento regulador, quer dizer, os conhecimentos suficientes para
regular nossa vida ativa. Assim que não sabemos e não podemos saber o
que Deus realmente é, mas tudo o que é declarado nas Escrituras são
suficientes para regular nossa vida moral e religiosa. Podemos
certamente agir no suposto de que Ele realmente é o que assim somos
levados a pensar o que Ele é, embora sabemos que tal não é o fato.
Devemos estar “contentes”, diz Mansel, 206 “com as ideias
reguladoras da Deidade, que são suficientes para guiar nossa prática, mas
não para satisfazer nosso intelecto, — que nos dizem não o que Deus é
em si mesmo, mas sim como o que Lhe apraz que devemos pensar dEle.”
“Embora este tipo de conhecimento”, diz Hampden, 207 “é muito
instrutivo para nós no ponto de sentimento e ação; ensina-nos, quer
dizer, tanto à maneira de sentir, e como agir para com Deus, — para o
que é a linguagem que entendemos, a linguagem formada por nossa
própria experiência e prática, — que é totalmente inadequada no ponto
da ciência.” O conhecimento regulador, portanto, é aquele que é
designado para regular nosso caráter e prática. Não deve ser verdade.
Não, pode ser, e é demonstravelmente falso, porque Hamilton diz que é
blasfêmia pensar que Deus é realmente o que nós O tomamos para ser.

206
Limits of Religious Thought, p. 132.
207
Bampton Lectures, 1832, p. 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 485
Objeções à Doutrina do Conhecimento Regulador.
1. A primeira observação sobre esta doutrina do conhecimento
regulador é que é contraditório em si mesmo. A verdade reguladora é a
verdade designada para obter um fim determinado. Desígnio, entretanto,
é a adaptação inteligente e voluntária dos meios para um fim, e a
adaptação inteligente dos meios a seu fim, é um ato pessoal. Portanto, a
menos que Deus seja realmente uma pessoa, não pode haver tal coisa
como o conhecimento regulador. O Sr. Mansel, diz, não podemos saber o
que Deus é em si mesmo, “mas sim só como Lhe apraz que devemos
pensar nEle.” Aqui a “vontade” se atribui a Deus, e os pronomes
pessoais são usados, e devem utilizar-se na própria declaração da
doutrina. Quer dizer, devemos assumir que Deus é na realidade (não só
em nosso temor subjetivo) uma pessoa, com o fim de crer no
conhecimento regulador, cuja forma de conhecimento supõe que Ele não
é, ou pode não ser uma pessoa. Esta é uma contradição.
2. O conhecimento regulador é, pela natureza do caso, impotente, a
menos que seus sujeitos o consideram como bem fundado. Alguns pais
educam a seus filhos no uso de ficções e contos de fadas, mas a crença
na verdade destes é fundamental para seu efeito. Sempre que o mundo
creu em fantasmas e bruxas, a crença teve poder. Logo que os homens se
mostraram satisfeitos de que não havia tais existências reais, seu poder
desapareceu. Se os filósofos tivessem convencido os gregos que seus
deuses não eram pessoas reais, teria sido o fim de sua mitologia. E se
Hamilton e seus discípulos pudessem convencer o mundo que o Infinito
não pode ser uma pessoa, a influência reguladora do teísmo
desapareceria. Os homens não podem ser influídos por representações
que sabem que não são conformadas à verdade.
3. Esta teoria é muito depreciativa quanto a Deus. Supõe-se que Ele
proponha influir em Suas criaturas por representações falsas, revelando-
se como Pai, Governador e Juiz, quando não há verdade objetiva de
responder a estas representações. E pior que isto, como se destacou
anteriormente, supõe que Ele tenha constituída de tal modo nossa
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 486
natureza para nos obrigar a crer o que não é verdade. Estamos limitados
pelas leis de nosso ser moral e racional a pensar que Deus tem uma
natureza como a nossa, e entretanto nos é dito que é blasfêmia tal
consideração sobre Ele.
A teoria supõe um conflito entre a razão e de consciência, — entre
nossa natureza racional e moral. Esta última nos obriga a crer que Deus é
uma pessoa, e a personalidade e a deidade antiga que se declara ser as
ideias contraditórias. Não nos esquecemos de que o Sr. Mansel diz que o
incogitável pode ser real, que a contradição está em nossas próprias
mentes, e não necessariamente na natureza das coisas. Mas isto equivale
a nada, porque ele diz continuamente que o Absoluto não pode ser uma
pessoa, não pode ser uma causa, não pode ser consciente, nem pode
conhecer ou ser conhecido. Ele diz: “Uma coisa — um objeto — um
atributo — uma pessoa — ou qualquer outro termo que significa um dos
muitos possíveis objetos da consciência, é por essa mesma relação
necessariamente declarado ser finito.”208 Quer dizer, se Deus é uma
pessoa, Ele é de necessidade finita. Aqui a personalidade de Deus diz-se
não só que é incogitável, ou inconcebível, mas sim impossível. E esta é a
verdadeira doutrina de seu livro. Tem que ser assim. É intuitivamente
verdade que o todo não pode ser uma parte de si mesmo, e se o Infinito é
“o Tudo”, então não pode ser um fora de muitos. Se os homens adotarem
os princípios dos panteístas, não podem evitar coerentemente suas
conclusões. Hamilton não só ensina que Deus não pode ser o que
pensamos dEle, mas em que Ele não pode ser; porque somos ignorantes
do que Ele é, porque Ele é para nós um Deus desconhecido. Se Deus,
pelas leis de nossa razão, assim nos obriga a negar Sua personalidade, e
pelas leis de nossa natureza moral faz com que seja não só um dever,
mas também uma necessidade crer em Sua personalidade, nossa natureza
é caótica. O homem, nesse caso, não é a nobre criatura que foi formada à
imagem de Deus.

208
Limits of Religious Thought, p. 107.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 487
4. Esta doutrina do conhecimento regulador destrói a autoridade das
Escrituras. Se tudo o que a Bíblia ensina a respeito da natureza de Deus e
sobre Sua relação com o mundo, revela que não há verdade objetiva, não
nos dá conhecimento do que Deus realmente é, então o que ensina sobre
a pessoa, ofícios, e a obra de Cristo, pode ser tudo irreal, e não pode
haver nenhuma destas pessoas e não haver tal Salvador.

C. Objeções à teoria inteira.

1. A primeira e mais óbvia falácia na teoria de Hamilton e Mansel,


como nos parece, radica em sua definição do Absoluto e do Infinito, ou
na linguagem de Hamilton, o Incondicionado. Por Absoluto eles
significam que existe em e por si mesmo, e fora de toda relação. O
Infinito é que, mais que nada pode ser concebido ou é possível, que
inclui todos as formas de ser atuais e possíveis. Mansel assina o juízo de
Hegel que o Absoluto deve incluir todos os modos de ser, bons como
maus. De igual maneira o Infinito deve ser Tudo. Porque se existe
qualquer outro ser, o Infinito deve ser necessariamente limitado, e,
portanto, já não é infinito. Estas definições determinam tudo. Se o
Absoluto é aquele que é incapaz de toda relação, então tem que estar
sozinho, nada mais que o Absoluto pode ser real ou possível. Então não
pode nem conhecer nem ser conhecido. E se o Infinito é tudo, então
outra vez não pode haver finito. Então é igualmente certo que o Absoluto
e Infinito não pode ser causa, nem consciente, nem uma pessoa, como
que um quadrado não pode ser um círculo, nem o total uma parte de si
mesmo.
Quando uma definição conduz a contradições e absurdos, quando
leva a conclusões que são incompatíveis com as leis de nossa natureza, e
quando subverte toda a consciência, o senso comum, e a Bíblia declara
ser verdadeira, a única inferência racional é que a definição é errônea.
Esta inferência temos o direito a cobrar no presente caso. O próprio fato
de que as definições do Absoluto e o Infinito que Hamilton e Mansel
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 488
adotaram dos transcendentalistas, conduzem a todas as consequências
terríveis que se recebem deles, é prova suficiente de que devem estar
errados. Eles se baseiam em pura especulação a priori. Eles não podem
ter autoridade. Pois se, visto que dizem os filósofos, o Absoluto e o
Infinito não pode ser conhecido, como se define? Nem a etimologia nem
o uso das palavras em questão justifica as definições anteriores dadas por
eles. Absoluto (Abe e solvo) significa, livre, irrestrito, independente,
como quando se fala de um monarca absoluto, ou a promessa absoluta,
ou, sem limite, como quando falamos do espaço absoluto. A palavra
também é usada no sentido de acabamento, ou perfeito. Um ser absoluto
é aquele que é gratuito, ilimitado, independente, e perfeito. Deus é
absoluto, porque Ele não depende para Sua existência, natureza,
atributos ou atos, de qualquer outro ser. Ele é ilimitado, por qualquer
coisa fora de Si mesmo ou independentes de Sua vontade. Mas isto não
implica que Ele é o único ser, nem que para ser absoluto deve estar
morto, inconsciente, ou sem o pensamento ou a vontade. Muito menos a
palavra infinito, tal como se aplica a Deus, implica que Ele deve incluir
todas as formas de ser. O espaço pode ser infinito sem ser duração, e a
duração pode ser infinito sem ser espaço. Um espírito infinito não inclui
as formas materiais de existência, não mais que uma linha infinita é uma
superfície infinita ou um sólido infinito. Quando se diz que algo é
infinito, tudo que se significa apropriadamente é que não há limite
atribuível nem possível como tal. Uma linha infinita é aquela a que
nenhum limite pode ser atribuído como uma linha, o espaço infinito é
aquilo ao que não há limite que pode ser atribuído como espaço, um
espírito é um espírito infinito que é ilimitada em todos os atributos de um
espírito. É um grande erro supor que o infinito deve ser tudo. O poder
infinito não é todo o poder, mas simplesmente poder de cuja eficácia não
se pode atribuir limitação e o conhecimento infinito não é todo o
conhecimento, mas simplesmente o conhecimento na medida em que
nenhum limite é possível. Assim também uma substância infinita não é
toda substância, mas uma substância que não está excluído de qualquer
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 489
parte do espaço por outras substâncias, ou limitada na manifestação de
quaisquer de seus atributos ou funções por qualquer coisa fora de si
mesmo. Deus, portanto, pode ser um Espírito infinito, eterno e imutável
em Seu ser e perfeições, sem ser matéria, e pecado, e miséria.
Pode-se dizer que à medida que o espaço infinito deve incluir todo
o espaço, assim que um ser infinito deve inclui necessariamente todos os
modos de ser. Isto, entretanto, é um mero jogo de palavras. Infinito é às
vezes inclusive tudo, não do significado da palavra, mas sim da natureza
do objeto de cuja infinitude se prega. O espaço infinito deve incluir todo
o espaço, porque o espaço está em sua natureza única. Mas, uma linha
infinita não inclui todas as linhas, porque pode haver qualquer número
de linhas, e um ser infinito não é todo ser, porque pode haver qualquer
número de seres. Deve despertar o assombro e a indignação dos homens
comuns ver as verdades fundamentais da religião e a moral em perigo ou
subvertidas por deferência à hipótese de que o Absoluto deve estar
relacionado.

Definição errada de Conhecimento.


2. A segunda falácia em que a teoria de Hamilton participa refere-se
à sua ideia do conhecimento. Quando se diz que Deus é incognoscível,
tudo depende do que se entenda por conhecimento. Para ele [Hamilton]
conhecer é compreender, ter uma concepção definida, ou imagem
mental. Isso é evidente por seu uso indistinto das palavras impensável,
incognoscível e inconcebível. Assim também, numa só página 209 Mansel
emprega as frases «aquilo que não pensamos nem podemos pensar»,
«aquilo que não podemos conceber», «aquilo que somos incapazes de
compreender» como significando uma e a mesma coisa. Isso também se
demonstra na forma na qual se empregam outras palavras e frases; por
exemplo, o Infinito, o Absoluto, um começo absoluto, um todo absoluto,
uma parte absoluta, qualquer aumento ou diminuição do complemento

209
Página 110.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 490
do ser. Entretanto, o único sentido em que estas coisas são impensáveis é
que não podemos formar uma imagem mental das mesmas. Um distinto
professor alemão, quando se dizia algo ao que ele não podia assentir,
tinha o costume de estender as mãos e fechar os olhos, e dizer: «Ich kann
gar keine Anschauung davon machen», Não posso vê-lo com o olho de
minha mente, não posso fazer uma imagem disso. Esta parece ser uma
maneira materialista de considerar as coisas. O mesmo pode dizer de
causa, substância e alma, de nada do qual nos podemos formar uma
imagem mental; entretanto, não são impensáveis. Uma coisa impensável
só quando se vê impossível, ou quando não podemos atribuir significado
algum às palavras ou proposições com as quais se enuncia. Esta
impossibilidade de pensamento inteligente pode surgir de nossa
fraqueza. Os problemas das altas matemática são impensáveis para um
menino, ou a impossibilidade pode surgir da própria natureza da questão.
Que um triângulo tenha quatro lados ou que um círculo seja quadrado
(absolutamente impensável). Mas não é em nenhum destes sentidos que
o Infinito é impensável. Não é impossível, porque tanto Hamilton como
Mansel admitem que Deus é de fato infinito; e não se trata de uma
proposição ininteligível. Quando a mente diz a si mesma que o espaço é
infinito, isto é, que não pode ser limitado, sabe tão bem o que afirma
como quando diz que dois mais dois somam quatro. E tampouco é
impensável um começo absoluto. Se, na verdade, por começo absoluto se
significa um começo processado, a vinda à existência de algo
proveniente do nada, então é impossível e, por isso, impensável. Mas
esta sentença aplica-se à criação ex-nihilo, que é declarada impensável.
Entretanto, isto deve negar-se. Nós queremos mover um membro, e o
movemos. Deus disse: Haja luz, e houve luz. O primeiro acontecimento
é igualmente inteligível como o segundo. Em nenhum destes casos
conhecemos o elo entre o antecedente e o consequente, entre a volição e
o efeito; mas como atos, são igualmente pensáveis e cognoscíveis.
Não é possível dar as provas dispersas nos escritos de Hamilton e
Mansel, que utilizam a palavra "conhecer" no sentido de compreender,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 491
210
ou, formar uma imagem mental do objeto conhecido. Mansel cita a
seguinte frase da obra do Dr. McCosh no método “do Governo Divino”,
ou seja, “A mente busca em vão abraçar o infinito numa imagem
positiva, mas vê-se obrigado a crer, quando seus esforços fracassam, que
há alguma coisa ao que não se podem pôr limites.” Esta frase diz Mansel
pode ser aceita “pelo mais intransigente partidário” da doutrina do Sir
W. Hamilton, que o infinito é impensável e incognoscível. Portanto, de
acordo com Hamilton e Mansel conhecer é formar uma imagem mental,
e como não podemos formar tal imagem de Deus, Deus não pode ser
conhecido. Mansel está disposto a pensar que isto reduz a controvérsia a
uma questão de palavras. E o doutor Tyler, em sua hábil exposição da
filosofia de Hamilton, diz: 211 “Portanto, se se admitir, como deve ser,
que toda nossa inteligência de Deus é, por analogia, importa muito
pouco, praticamente, que a convicção chama-se conhecimento, crença ou
fé. Está, entretanto, muito longe de ser uma disputa a respeito de
palavras. Porque Hamilton afirma constantemente que Deus não é, e não
pode ser, o que cremos que Ele é. Então não temos a Deus. Pelo que é
Deus como infinito, como se Mansel diz: “O Infinito, se tem que ser
concebido em tudo, deve ser concebido como potencialmente tudo e
nada na realidade.” 212

Que se quer dizer por conhecimento.


O conhecimento é a percepção da verdade. Seja o que for que a
mente percebe como verdadeiro, seja intuitiva ou discursivamente, ela o
conhece. Temos um conhecimento imediato de todos os atos da
consciência; e com relação a outras questões, algumas podemos
demonstrar, algumas podemos provar por analogia, e algumas temos que
admitir ou envolvemos em contradições e absurdos. Seja qual for o
processo que a mente institua, se chegar a uma clara percepção de que
210
Page 280.
211
See Progress of Philosophy, by Samuel Tyler, LL.D., p. 207.
212
Limits of Religious Thought, p. 94.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 492
uma coisa é, então aquela coisa é um objeto do conhecimento. É assim
que conhecemos os objetos de que estão repletos o céu e a terra. É assim
que conhecemos nossos semelhantes. Com relação a tudo o que esteja
fora de nós, quando nossas ideias, ou convicções com relação a isso,
correspondem-se com aquilo que a coisa é, nós a conhecemos. Como
sabemos que nosso amigo mais íntimo tem alma, e que esta alma tem
inteligência, excelência moral e poder? Não podemos ver nem sentir
nada disto. Não podemos fazemos uma imagem mental disso. É
misterioso e incompreensível. Mas sabemos que é, e o que é, com a
mesma certeza com que sabemos que nós somos, e o que somos. Da
mesma maneira, sabemos que Deus é, e o que Ele é. Sabemos que Ele é
um espírito, que tem inteligência, excelência moral e poder até um grau
infinito. Sabemos que Ele pode amar, compadecer-se e perdoar; que Ele
pode ouvir a oração e responder a ela. Conhecemos a Deus no mesmo
sentido e com a mesma certeza com que conhecemos nosso pai e mãe. E
ninguém pode tirar este conhecimento de nós, nem nos persuadir de que
não é conhecimento, mas sim uma mera crença irracional.

A Doutrina de Hamilton conduz ao cepticismo.


3. Os princípios em que Hamilton e Mansel têm negado que Deus
pode ser conhecido, logicamente conduzem ao cepticismo. Hamilton
rendeu verdadeiramente o serviço inapreciável à causa da verdade por
sua defesa do que é, possivelmente, inapropriadamente chamado a
“Filosofia do Senso comum.” Os princípios desta filosofia são os
seguintes: (1.) Que o que se dá na consciência é indubitavelmente
verdade. (2.) Que o que as leis de nossa natureza nos obriga a crer, deve
ser aceito como verdadeiro. (3.) Que este principio aplica-se a todos os
elementos de nossa natureza, aos sentidos, à razão e à consciência. Não
podemos racional ou coerentemente com nossa lealdade a Deus, negar o
que nossos sentidos, a razão ou a consciência pronunciam ser verdade.
(4.) Nem o homem individual, nem a causa da verdade, portanto, tem
que deixar-se à mercê do que qualquer um pode optar por dizer o que a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 493
razão ou a consciência ensina. Nada deve ser aceito como o juízo
autoritário da razão ou consciência, que não suportam os critérios da
universalidade e a necessidade.
Hamilton tirou dos armazéns de sua erudição, neste departamento
talvez sem exemplo, a prova de que estes princípios foram reconhecidos
pela mente filosófica de liderança em todas as idades. Ele mesmo as
sustenta com veemência como as proteções da verdade. Afirma
impressionantemente que se a consciência é convencida por uma
mentira, tudo está perdido; não temos então nenhum lugar de descanso,
quer seja para a ciência ou a religião; que o cepticismo absoluto segue,
se se pode negar que a necessidade e a universalidade das crenças não
são uma prova decisiva da verdade do que é assim crido. Ainda Stuart
Mill admite que “o que nos é conhecido pela consciência, é conhecido
além da possibilidade de questão.” 213 O Sr. Mansel nos diz que é da
consciência que temos nossa ideia de substância, da personalidade, da
causa, do bem e do mal, enfim, de tudo o que é a base do conhecimento e
a religião, e portanto se a consciência nos engana não temos nada de que
depender. Mansel assim expõe o famoso aforismo de Descartes, “Cogito
ergo sum”, quer dizer, “Eu, que vejo, e ouço e penso, e sinto, sou o um
ser contínuo, cuja existência dá unidade e conexão ao todo. A
personalidade compreende tudo o que sabemos do que existe; a relação
com a personalidade compreende tudo o que sabemos do que parece
existir.” 214 “A consciência”, diz, “dá-nos o conhecimento da substância.
Somos uma existência substantiva.” 215 “Eu existo como sou consciente
da existência, e consciente de si mesmo é o Ding an sich, a norma pela
qual todas as representações da personalidade devem ser julgadas, e da
qual nossa noção da realidade, diferente da aparência, deriva-se
originalmente.” 216 Hamilton e Mansel portanto ensinam que a veracidade

213
Logic, Introduction, p. 4, edit. N.Y. 1846.
214
Limits of Religious Thought, p. 105.
215
Ibid. p. 288.
216
Ibid. p. 291.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 494
da consciência é o fundamento de todo conhecimento, e que a negação
dessa veracidade leva inevitavelmente ao cepticismo absoluto. Não
obstante, ensinam que nossos sentidos nos enganam, que a razão nos
engana; que a consciência nos engana, quer dizer, que nossa consciência
sensível, racional e moral são da mesma maneira enganosas e pouco
confiáveis.
Nossos sentidos nos dão o conhecimento do mundo exterior. Eles
nos ensinam que as coisas são e o que são. Admite-se que a crença
universal e irresistível dos homens, visto que essa crença está
determinada por seu sentido e consciência, é que as coisas são realmente
o que aos nossos sentidos parecem ser. Os filósofos nos dizem que isto é
uma ilusão. Kant diz que eles certamente não são o que nós tomamos
como são. Mansel, diz que isto vai longe demais. Não podemos saber,
com efeito, o que são, mas é possível que na realidade são o que parecem
ser. Em qualquer caso são para todos nós incógnita, e os sentidos nos
enganam. Assumem ensinar mais do que têm direito a ensinar, e estamos
obrigados a crer neles.
Kant nos ensina que nossa razão, que as leis necessárias do
pensamento que regem nossas operações mentais, conduzem a
contradições absolutas. Nisto Hamilton e Mansel concordam totalmente
com ele. Dizem-nos que a razão ensina que o Absoluto deve ser todas as
coisas reais e possíveis, que não pode haver uma pessoa absoluta ou
infinita, ou causa, que o ser e o não ser são idênticos; que o infinito é
“potencialmente todas as coisas e na realidade nada.” Estas e outras
contradições diz-se que são resultados inevitáveis de todos os intentos de
conhecer a Deus como um Ser Absoluto e o Infinito. “A concepção do
Absoluto e Infinito, de qualquer lado que a vejamos, aparece rodeada de
contradições. Há uma contradição em supor que tal objeto existe, quer
seja só ou em combinação com outros, e existe uma contradição ao supor
que não existe. Há uma contradição em concebê-lo como um, e há uma
contradição em concebê-lo como muitos. Há uma contradição em
concebê-lo como pessoal; e há uma contradição em concebê-lo como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 495
impessoal. Não pode, sem contradição ser representado como ativo, nem
tampouco, sem contradição de igualdade, ser representado como inativo.
Não se pode conceber como a soma de toda a existência, nem mesmo
pode conceber-se como uma única parte dessa soma.” 217 Mas tudo isto
somos instados a crer, porque é nosso dever, ele diz, a crer que Deus é
infinito e absoluto. Quer dizer, estamos obrigados a crer o que nossa
consciência racional pronuncia ser contraditória e impossível.
A consciência, ou nossa consciência moral, não é menos enganosa.
O Sr. Mansel admite que somos conscientes da dependência e da
obrigação moral, que se trata do que ele chama “a consciência de Deus,”
quer dizer, que estamos na relação com Deus de um espírito a outro
espírito, de uma pessoa a outra pessoa; uma pessoa tão superior a nós
quanto a ter autoridade legitimamente sobre nós, e que tem todo o poder
e todas as perfeições morais que entrem em nossa ideia de Deus. Mas
tudo isto é uma ilusão. É um engano, porque o que nossa consciência
moral assim ensina envolve todas as contradições e absurdos
mencionados, porque diz-se que ensinam não o que é Deus, mas sim só o
que é desejável que devemos pensar que Ele é; e porque nos é dito que é
uma blasfêmia pensar que é o que nós O tomamos para ser. Portanto, a
teoria de Hamilton e Mansel quanto ao conhecimento de Deus é suicida.
É incompatível com a veracidade da consciência, que é o princípio
fundamental de sua filosofia. A teoria é uma combinação incongruente
de princípios céticos com a fé ortodoxa, os princípios antiteístas de Kant
com o teísmo. Um ou outro pode-se renunciar. Não podemos crer num
Deus pessoal, se uma pessoa infinita é uma contradição e absurdo.
Deus não constituiu nossa natureza para fazê-la necessariamente
enganosa. Os sentidos, a razão e a consciência, dentro de suas esferas
apropriadas, e em seu exercício normal, são guias dignos de confiança.
Ensinam-nos verdades reais, não meramente aparentes ou reguladoras.
Suas esferas combinadas compreendem todas as relações que mantemos

217
Limits of Religious Thought, p. 85.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 496
nós, como criaturas racionais, com o mundo externo, com nossos
semelhantes, e com Deus. Se não fosse pelo perturbador elemento do
pecado, não é de pensar que o homem, em plena comunhão com seu
Criador, não teria tido necessidade de nenhuma outra guia. Mas o
homem não está em seu estado normal. Ao apostatar de Deus, o homem
caiu num estado de trevas e confusão. A razão e a consciência já não são
guias adaptados quanto «às coisas de Deus». Diz o apóstolo, com relação
aos homens caídos. «Tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram
como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus
próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.
Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do
Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível,
bem como de aves, quadrúpedes e répteis» (Rm 1:21-23); ou, pior ainda,
num ser absoluto e infinito sem consciência, nem inteligência nem
caráter moral, um ser que é potencialmente todas as coisas, e realmente
nada. É certo, portanto, como nos diz isso o mesmo Apóstolo, que o
mundo pela sabedoria não conhece a Deus. É certo ainda num sentido
mais elevado, como diz o próprio Senhor, que ninguém conhece o Pai,
«senão o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revelar» (Mt 11:27).

A necessidade de uma Revelação sobrenatural.


Por isso, necessitamos uma revelação sobrenatural divina. Desta
revelação tem-se que observar, primeiro, que nos dá verdadeiro
conhecimento. Ensina-nos o que Deus verdadeiramente é; o que é o
pecado; o que é a lei; o que é Cristo e o plano de salvação por meio dEle,
e qual tem que ser o estado da alma depois da morte. O conhecimento
assim comunicado é real, no sentido de que as ideias que somos levados
a formar das coisas reveladas se conformam ao que são realmente estas
coisas. Deus e Cristo, a santidade e o pecado, o céu e o inferno, são o
que a Bíblia diz que são. Sir William Hamilton 218 classifica-o os objetos

218
Lectures on Logic, Conferência 32.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 497
do conhecimento em duas classes: os que se derivam do interior da
inteligência, e os que se derivam da experiência. Estes últimos se
dividem em duas classes: o que sabemos por nossa própria experiência, o
que sabemos pela experiência dos outros, que nos é autenticada mediante
um testemunho adequado. No sentido geralmente recebido da palavra,
este é um verdadeiro conhecimento. Ninguém duvida em dizer que
conhece que houve um homem chamado Washington, ou um
acontecimento como a Revolução Americana. Se o testemunho dos
homens nos pode dar um conhecimento claro e certo de alguns fatos fora
de nossa experiência, com toda segurança que o testemunho de Deus é
maior. O que Ele revela é dado a conhecer. Recebemo-lo tal como na
verdade é. A convicção de que o que Deus revela é dado a conhecer em
sua verdadeira natureza, é a própria essência da fé no testemunho divino.
Por isso, temos a segurança de que nossas ideias de Deus,
fundamentadas no testemunho de Sua palavra se correspondem com o
que Ele realmente é, e constituem um verdadeiro conhecimento.
Também deve-se lembrar que enquanto que o testemunho dos homens é
à mente, que o testemunho de Deus não só é à mente mas também dentro
da mente. Ilumina e informa, de maneira que o testemunho de Deus é
chamado a demonstração do Espírito.
A segunda observação a respeito da revelação contida nas Escrituras
é que, enquanto que dá a conhecer verdades muito acima do alcance dos
sentidos ou da razão, não revela nada que contradiga a ambos.
Harmoniza com toda nossa natureza. Suplementa todo nosso
conhecimento, e se autentica a si mesma harmonizando o testemunho da
consciência iluminada com o testemunho de Deus em Sua palavra.
Assim, a conclusão de toda esta questão é que conhecemos a Deus
no mesmo sentido em que nos conhecemos a nós mesmos às coisas fora
de nós mesmos. Temos a mesma convicção de que Deus é, e de que Ele
é, em Si mesmo, e independentemente de nosso pensamento dEle, o que
pensamos que Ele é. Nossa ideia subjetiva se corresponde com a
qualidade objetiva. Este conhecimento de Deus é a base de toda religião,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 498
e, por isso, negar que Deus possa ser conhecido é realmente negar que
seja possível a religião racional. Em outras palavras, é fazer da religião
um mero sentimento, ou um sentimento cego, em lugar de ser o que o
Apóstolo declara que é, um λογικὴ λατρεία [logike latreia] um serviço
racional; a homenagem de nossa razão assim como de nosso coração e
vida. «Nosso conhecimento de Deus», diz Hase, «desenvolvido e
iluminado pelas Escrituras, corresponde-se com o que Deus realmente é,
porque Ele não pode nos enganar quanto à Sua própria natureza». 219

219
Veja sobre este assunto, Sir William Hamilton’s Discussions on Philosophy and Literature,
Hamilton’s Lectures on Metaphysics and Logic.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 499
CAPÍTULO V
A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE DEUS

§ 1. Definições de Deus

A questão quanto a se Deus pode ser definido depende, para sua


resposta, do que é que se significa por definição. Cícero 220 diz: «Est
definitio, earum rerum, quae sunt ejus rei propriae, quam definire
volumus, brevis et circumscripta quaedam explicatio». Neste sentido,
Deus não pode ser definido. Nenhuma criatura, e muito menos o homem,
pode conhecer tudo o que pertence a Deus; e por isso, nenhuma criatura
pode dar uma declaração exaustiva de tudo o que Deus é.
Entretanto, definir é simplesmente limitar, separar ou distinguir, de
modo que a coisa definida possa ser distinguida de todas as demais. Isto
se pode fazer (1) Enunciando suas características. (2) Enunciando seu
gênero e sua diferença específica. (3) Analisando a ideia tal qual se
encontra em nossas mentes. (4) Por uma explicação do termo ou do
nome por aquele que o denota. Todos estes métodos devem ser muito
semelhantes. Quando dizemos que podemos definir a Deus, tudo o que
significamos com isso é que podemos analisar a ideia de Deus tal como
se encontra em nossa mente; ou, que podemos declarar a classe de seres
a que Ele pertence, e os atributos que O distinguem de todos os outros
seres. Assim, na singela definição: Deus é ens perfectissimus, a palavra
ens designa-O como um ser, não como uma ideia, mas sim como aquilo
que tem uma existência real, objetiva; e a perfeição absoluta O distingue
de todos os outros seres. A objeção a esta e outras definições de Deus, é
que não levam a cabo com suficiente abundância o conteúdo da ideia.
Esta objeção se apoia contra as definições como as seguintes: Ens
absolutum, o autoexistente, ser independente, e que por Calovius, “Deus

220
De Oratore, I. 42, 189, edit. Leipzig, 1850, p. 84.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 500
221
est essentia spiritualis infinita;” e de Reinhard “Deus est, Natura
necessaria, a mundo diversa, summas complexa perfectiones et ipsius
mundi causa;” ou de Baumgarten “Spiritus perfectissimus, rationem qui
ipsius rerumque contingentium omnium seu mundi continens;” ou, essa
de Morus, “Spiritus perfectissimus, conditor, conservator, et gubernator
mundi.”
Provavelmente a melhor definição de Deus jamais escrita pelo
homem seja a que aparece no «Catecismo de Westminster»: «Deus é um
Espírito, Infinito, eterno e imutável, em seu ser, sabedoria, poder,
santidade, justiça, bondade e verdade.» Esta é uma definição verdadeira,
porque declara a classe de seres a que Deus deve ser atribuído. Ele é um
Espírito. E é distinto de todos os outros espíritos quanto a que Ele é
infinito, eterno e imutável em Seu Ser e perfeições. É também uma
definição completa, até onde é uma declaração exaustiva do conteúdo de
nossa ideia de Deus.
Entretanto, em que sentido se empregam estes termos? Que se quer
dizer pelas palavras «ser» e «perfeições» ou «atributos» de Deus? Que
relação têm Seus atributos com Sua essência, e uns com os outros? Estas
são questões às quais os teólogos, especialmente durante o período
escolástico, dedicaram muito tempo e trabalho.

O ser de Deus
Pela palavra ser se significa aqui aquilo que tem uma existência
real, substantiva. É equivalente a substância, ou essência. Opõe-se ao
que é meramente pensamento, ou a uma mera força ou poder. Tomamos
esta ideia, em primeiro lugar, da consciência. Estamos conscientes do eu
como o sujeito dos pensamentos, sentimentos e volições, que são seus
vários estados e atividades. Esta consciência de substância está envolta
na da identidade pessoal. Em segundo lugar, uma lei de nossa razão nos
força a crer que há algo que subjaz aos fenômenos da matéria e da

221
Dogmatik, p. 92.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 501
mente, dos quais estes fenômenos são a manifestação. É-nos impossível
pensar a respeito do pensamento e dos sentimentos, a não ser que haja
algo que aja; ou de movimento, a não ser que haja algo que se mova. Por
isso, supor que a mente é só uma série de ações e de estados, e que a
matéria não é nada senão força, é supor que nada (uma não entidade)
possa produzir efeitos.
Por isso, Deus é em Sua natureza uma substância, ou essência, que
é infinita, eterna e imutável; o sujeito comum de todas as perfeições
divinas, e o agente comum de todos os atos divinos. Isto é a tudo o que
podemos chegar, ou precisamos chegar. Não temos uma ideia definida
de substância, seja da matéria ou da mente, em distinção a seus atributos.
Ambas as coisas são inseparáveis. Ao conhecer um conhecemos o outro.
Não podemos conhecer a dureza exceto se conhecemos algo duro. Por
isso, temos o mesmo conhecimento da essência de Deus que aquele que
temos da substância da alma. Tudo o que temos que fazer com referência
à essência divina como Espírito, é negar-lhe a ela, como o fazemos com
nossa própria essência espiritual, o que pertence às substâncias materiais,
e afirmar dela que em si mesma e em seus atributos é infinita, eterna e
imutável. Assim, quando dizemos que há um Deus, não afirmamos
meramente que existe em nossas mentes a ideia de um Espírito infinito,
mas sim este Ser realmente existe com independência total de nossa ideia
dele. Agostinho 222 diz: “Deus est quædam substantia; nam quod nulla
substantia est, nihil omnino est. Substantia ergo aliquid esse est.”
Assim, se existe uma essência divina, infinita, eterna e imutável,
esta essência existia antes e com independência do mundo. Segue disso
também que a essência de Deus é distinta do mundo. A doutrina
Escriturística de Deus opõe-se consequentemente às várias formas de
erro já mencionadas: ao Hilozoísmo, que supõe que Deus, como o
homem, é um ser composto, sendo o mundo para Ele o que o corpo é
para nós; ao Materialismo, que nega a existência de qualquer substância

222
Enarratio in Psalmum, lxvii. I. 5, edit. Benedictines, vol. iv. p. 988 c.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 502
espiritual, e que afirma que todo o material é real; ao Idealismo extremo,
que nega não só a realidade do mundo interno, mas também toda
existência objetiva real, afirmando que só o subjetivo é real; ao
Panteísmo, que ou faz do mundo a forma existencial de Deus, ou que,
negando totalmente a realidade do mundo, faz de Deus a única
verdadeira existência. Isto é, ou faz da natureza Deus, ou, negando a
natureza, faz de Deus o todo.

§ 2. Os Atributos divinos

À essência divina, que é em si mesma infinita, eterna e imutável,


pertencem certas perfeições que nos são reveladas na constituição de
nossa natureza e na palavra de Deus. Estas perfeições divinas são
chamadas atributos como essenciais à natureza de um Ser divino, e
necessariamente envoltas em nossa ideia de Deus. Os antigos teólogos
distinguiam os atributos de Deus: (1) De predicados que se referem a
Deus de modo concreto, indicando Sua relação com Suas criaturas, como
criador, preservador, governante, etc. (2) De propriedades, que são
tecnicamente as características distintivas das várias pessoas da
Trindade. Há certas atividades ou relações peculiares ou próprias do Pai,
outras do Filho, e outras do Espírito. E (3) de acidentes ou qualidades
que podem ou não pertencer a uma substância, que possam ser
adquiridas ou perdidas. Assim, a inocência não era um atributo da
natureza de Adão, mas um acidente, algo que podia perder e continuar
sendo homem; enquanto que a inteligência era um atributo, porquanto a
perda de inteligência envolve a perda de humanidade. Por isso, as
perfeições de Deus são atributos, sem os quais deixaria de ser Deus.

A relação dos atributos com a essência de Deus.


Ao tentar explicar a relação que têm os atributos de Deus com Sua
essência e mutuamente entre si, devem-se evitar dois extremos. Primeiro,
não devemos descrever a Deus como um ser composto, constituído por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 503
diferentes elementos. Segundo, não devemos confundir os atributos,
fazendo com que todos eles signifiquem o mesmo, o que seria
equivalente a negá-los todos. Os Realistas da Idade Média tendiam ao
primeiro destes extremos, e os nominalistas ao outro. Os realistas
mantinham que os termos gerais expressam não só pensamentos ou
conceitos abstratos em nossas mentes, mas existência real ou substantiva.
E por isso, estavam dispostos a representar os atributos divinos como
diferindo de cada outra realiter como uma res ou coisa difere de outra.
Por outro lado, os Nominalistas diziam que os termos gerais são meras
palavras que se correspondem com abstrações feitas pela mente, e,
consequentemente, que quando falamos dos diferentes atributos de Deus,
só estamos empregando palavras diferentes para uma e a mesma coisa.
Occam, Biel e outros nominalistas, portanto, ensinaram que “Attributa
divina nec rei, nec rationis distinctione, inter se aut ab essentia divina
distingui; sed omnem distinctionem esse solum in nominibus.” Os
teólogos luteranos e reformados tendiam muito mais a este último destes
extremos que aos primeiros. Em geral, ensinam, em primeiro lugar, que a
unidade e simplicidade da essência divina não só opõe-se a toda a
composição física dos elementos constitutivos, ou de matéria e forma, ou
de sujeito e acidente, mas também toda distinção metafísica como de ato
e poder, essência e existência, natureza e personalidade, e até da
diferença lógica, como gênero e diferença específica.
Em segundo lugar, os teólogos costumavam dizer que os atributos
de Deus diferem de Sua essência não na coisa em si, mas em nossos
conceitos. Isto se explica dizendo que as coisas diferem ex natura rei,
quando são essencialmente diferentes como a alma e o corpo, enquanto
que uma diferença ex ratione não é mais que uma diferença de nós, quer
dizer, em nossas concepções, quer dizer, “quod distincte solum
concipitur, cum in re ipsa distinctum non sit.” Portanto, os atributos
divinos se definem como “conceptus essentiæ divinæ inadequatæ, ex
parte rei ipsam essentiam involventes, eandemque intrinsice
denominantes.” Aquino diz: “Deus est unus re et plures ratione, quia
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 504
intellectus noster ita multipliciter apprehendit Deum, sicuti res
multipliciter ipsum representant.” A linguagem do teólogo luterano
Quenstedt 223 exibe o modo usual de representar este tema: “Si proprie et
accurate loqui velimus, Deus nullas habet proprietates, sed mera et
simplicissima est essentia quæ nec realem differentiam nec ullam vel
rerum vel modorum admittit compositionem. Quia vero simplicissimam
Dei essentiam uno adequato conceptu adequate concipere non possumus,
ideo inadequatis et distinctis conceptibus, inadequate essentiam divinam
repræsentantibus, eam apprehendimus, quos inadequatos conceptus, qui
a parte rei essentiæ divinæ identificantur, et a nobis per modum
affectionum apprehenduntur, attributa vocamus.” E de novo: “Attributa
divina a parte rei et in se non multa sunt, sed ut ipsa essentia divina, ita
et attributa, quæ cum illa identificantur, simplicissima unitas sunt; multa
vero dicuntur (1.) συγκαταβατικῶς, ad nostrum concipiendi modum, ....
(2.) ἐνεργητικῶς, in ordine ad effecta.” 224 A ilustração favorita para
explicar o que se significava pela unidade dos atributos divinos se tirava
do sol. Seu raio, por um poder idêntico (como se supunha então) ilumina,
esquenta e produz mudanças químicas, não por nenhuma diversidade no
mesmo, mas pela diversidade na natureza dos objetos nos que opera. A
força é a mesma; os efeitos, diferentes. O sentido destes teólogos fica
adicionalmente determinado por sua negação de que a relação dos
atributos com a essência de Deus seja análoga à relação da inteligência e
da vontade com a essência da alma no homem. E também pela
declaração com frequência periódica, tomada dos escolásticos, que Deus
é actus purus. Schleiermacher vai ainda mais longe na mesma direção.
Para ele os atributos divinos são meras Beziehungen, ou as relações de
Deus para nós. Ele usualmente os resolve em mera causalidade. Assim
define ele a santidade de Deus como sendo essa causalidade nEle que
produz a consciência em nós.

223
Theologia, part I. cap. viii. § 2, edit. Leipzig, 1715, p. 426.
224
Ibid. II. cap. viii. § 2, p. 426.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 505
Os Atributos divinos.
Uma terceira forma e menos objetável de representar o assunto foi
adotada por aqueles que dizem com Hollazius: “Attributa divina ab
essentia divina et a se invicem, distinguuntur non nominaliter neque
realiter sed formaliter, secundum nostrum concipiendi modum, non sine
certo distinctionis fundamento.” 225 Isto é muito diferente a dizer que se
diferenciam ratione tantum. Turrettin diz que os atributos se distinguem
não realiter, sino virtualiter; quer dizer, existe uma base real na natureza
divina dos vários atributos que se atribuem a Ele.
É evidente que esta questão da relação dos atributos divinos com a
essência divina tem que ver diretamente com a questão geral entre os
atributos e a substância. É também evidente que este é um tema a
respeito do que um conhece tanto como outro, porque tudo o que pode
ser conhecido a respeito disso dá-se de maneira imediata na consciência.
Este tema já foi abordado. Estamos conscientes de nós mesmos
como substância pensante. Isto é, estamos conscientes de que aquilo que
é tem identidade, continuação e poder. Ademais, estamos conscientes de
que a substância do eu pensa, quer e sente. A inteligência, a vontade e a
sensibilidade são suas funções ou atributos, e são consequentemente os
atributos de um espírito. Estas são as formas nas quais age um espírito.
Tudo aquilo que não aja assim, que não tenha estas funções ou atributos,
não é um espírito. Se de um espírito for tirado sua inteligência, vontade e
sensibilidade, não resta nada; sua substância desapareceu; ao menos
cessa de ser um espírito. A substância e os atributos são inseparáveis.
Um é conhecido no outro. Uma substância sem atributos não é nada, isto
é, não tem existência real. O que é certo das substâncias espirituais é
certo da matéria. A matéria, sem as propriedades essenciais da matéria,
seria uma contradição.
Assim, com base na consciência conhecemos, até onde possa ser
conhecida, a relação entre a substância e seus atributos. E tudo o que se

225
Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, p. 235.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 506
pode fazer, ou que é necessário fazer, é negar ou corrigir os falsos
enunciados que se fazem com tanta frequência a respeito desta questão.

Os atributos divinos não diferem só em nossa concepção.


Dizer, como os escolásticos, e ainda muitos dos teólogos
protestantes, antigos e modernos, estavam acostumados a dizer, que os
atributos divinos se diferenciam só em nome, ou em nossas concepções,
ou em seus efeitos, é destruir todo conhecimento verdadeiro de Deus.
Assim mesmo Agostinho confunde o conhecimento e o poder, quando
diz, 226 “Nos ista, quæ fecisti videmus quia sunt: tu autem quia vides ea,
sunt.” Assim diz Escoto Erígena, 227 “Non aliud est ei videre, aliud
facere; sed visio illius voluntas ejus est, et voluntas operatio.” Tomás de
Aquino 228 diz o mesmo: “Deus per intellectum suum causat res, cum
suum esse sit suum intelligere.” E de novo: “Scientia (Dei) causat res;
nostra vero causatur rebus et dependat ab eis.” Ainda o Sr. Mansel, 229
para agravar nossa ignorância de Deus, fala dele como “uma inteligência
cujo pensamento cria seu próprio objeto.”
É evidente que, de acordo com este ponto de vista, Deus não é mais
que uma força da qual não sabemos nada, mas sim seus efeitos. Se em
Deus a eternidade é idêntica a conhecimento, conhecimento com poder,
poder com ubiquidade, e ubiquidade com santidade, estamos usando
palavras sem sentido quando atribuímos a Deus qualquer perfeição.
Devemos, portanto, ou abandonar o intento de determinar os atributos
divinos por nossa ideia especulativa de uma essência infinita, ou
renunciar a todo conhecimento de Deus, e toda a fé na revelação de Si
mesmo, que Ele tem feito na constituição de nossa natureza, no mundo
exterior, e em Sua palavra. O conhecimento não é mais idêntico ao poder
em Deus que está em nós. O pensamento nEle não é mais criativo que é

226
Confessiones, XIII. 38.53, edit. Benedictines, vol. i. p. 410 b.
227
De Divisione Naturæ, III. 29, edit. Westphalia, 1838, p. 264.
228
Summa, I. xiv. 8, edit. Cologne, 1640, p. 30.
229
Limits, p. 195.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 507
o pensamento em nós. Do contrário a criação é eterna, e Deus o cria tudo
— todos os pensamentos, sentimentos e vontades de Suas criaturas, o
bem e o mal; e Deus é o único agente real, e o único ser real no universo.
Segundo esta doutrina, também, não pode haver nenhuma diferença entre
o real e o possível, porque um como o outro está sempre presente na
mente divina. Seguir-se-ia também que a criação deve ser infinita, ou
Deus finito. Porque se o conhecimento é causal, Deus cria tudo o que Ele
conhece, e se se limita Seu conhecimento se limita Sua criação. Quase
não deve ser observado que esta doutrina é depreciativa a Deus. Não só é
uma ideia muito mais elevada, mas uma ideia essencial à personalidade,
que deveria haver uma distinção real entre os atributos divinos. Aquele
que por sua natureza e por necessidade faz tudo o que pode fazer, é uma
força, e não uma pessoa. Não pode ter vontade. A doutrina em questão,
portanto, é em essência panteísta. “Por muito que”, diz Martensen,
“devemos proteger nossa ideia de Deus de ser degradada por algo que é
somente humano, de todo Antropomorfismo falso, mas podemos
encontrar no Nominalismo só a negação de Deus como Ele Se revela nas
Escrituras. É a negação da própria essência da fé, se for só em nosso
pensamento de que Deus é santo e justo, e não em Sua própria natureza,
se somos nós os que se dirigem a Ele, e não que Ele se revela a Si
mesmo. Ensinamos, portanto, com os Realistas (de uma classe), que os
atributos de Deus são objetivamente verdade como revelado, e portanto
têm seu fundamento na essência divina.” Há uma classe de Realismo,
como Martensen admite, que é tão destrutivo da verdadeira ideia de
Deus como o Nominalismo que faz com que Seus atributos se
diferenciam só no nome. Outorga, de fato, a realidade objetiva a nossas
ideias; mas estas ideias, segundo isso, não têm nenhum sujeito real. “A
ideia de onipotência, justiça, e santidade”, diz ele, “é um pensamento
cego simples, se não há um onipotente, justo e santo”. 230

230
Dogmatik, p. 113.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 508
Os Atributos Divinos não são resolvidos na Causalidade.
Isto equivale a mais da mesma doutrina, para resolver todos os
atributos de Deus na causalidade. Era um princípio com alguns dos
escolásticos, “Affectus in Deo denotat effectum.” Isto se aplicou a fim de
limitar nosso conhecimento de Deus ao fato de que Deus é a causa de
certos efeitos. Assim, quando dizemos que Deus é justo, nós não
significamos nada mais que Ele causa a miséria após o pecado, e quando
dizemos que Ele é santo, só significa que Ele é a causa da consciência
em nós. Como uma árvore não é doce, porque sua fruta é deliciosa,
assim que Deus não é santo, Ele é só a causa da santidade.
Contra esta aplicação do princípio, Tomás de Aquino mesmo
protestou, declarando: “Cum igitur dicitur, Deus est bonus; non est
sensus, Deus est causa bonitatis; vel Deus non est malus. Sed est sensus:
Id, quod bonitatem dicimus in creaturis, præexistit in Deo; et hoc quidem
secundum modum altiorem. Unde ex hoc non sequitur, quod Deo
competat esse bonum, in quantum causat bonitatem; sed potius e
converso, quia est bonus, bonitatem rebus diffundit.” 231 E o teólogo
luterano, Quenstedt, diz: “Dicunt nonnulli, ideo Deum dici justum,
sanctum, misericordem, veracem, etc., non quod revera sit talis, sed quod
duntaxat sanctitatis, justitiæ, misericordiæ, veritatis, etc., causa sit et
auctor in aliis. Sed si Deus non est vere misericors, neque vere perfectus,
vere sanctus, etc., sed causa tantum misericordiæ et sanctitatis in aliis, ita
etiam et nos pariter juberemur esse non vere misericordes, non vere
perfecti, etc., sed sanctitatis saltem et misericordiæ in aliis auctores.” 232

Os atributos divinos diferem virtualmente.


Os teólogos, para evitar a branca ignorância a respeito de Deus que
deve seguir a partir da visão extrema da simplicidade de sua essência,
que nos obriga a supor que os atributos divinos se diferenciam só em

231
Summa, I. xiii. 2, edit. Cologne, 1640, p. 28.
232
Theologia, I. viii. § II. 2, p. 481.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 509
nossas concepções, ou como a expressão dos diversos efeitos da
atividade de Deus, fez uma distinção entre a ratio rationantis e a ratio
rationatæ. Quer dizer, a razão como a determinação, e a razão como
determinada. Os atributos, dizem, não diferem re, mas sim ratione; não
só nossa razão subjetiva, mas não há em Deus uma razão pela qual
pensamos nEle como possuidor destas perfeições diversas. Esta ideia,
como se tem dito, se expressa com frequência dizendo que os atributos
divinos não diferem realiter, nem nominaliter, e sim virtualiter. Se isto
se entende para significar que as perfeições divinas são realmente o que
a Bíblia as declara ser, que Deus na verdade pensa, sente e age; que Ele é
verdadeiramente sábio, justo, e bom, que Ele é verdadeiramente
onipotente, e voluntário, agindo ou não agindo, como Lhe parece
adequado, que Ele pode ouvir e responder a oração, pode ser admitido.
Não devemos abandonar a convicção de que Deus é realmente em
Si mesmo o que Ele revela ser para satisfazer nenhuma especulação
metafísica a respeito da diferença entre essência e atributo num Ser
infinito. Por isso, os atributos de Deus não são simplesmente diferentes
concepções em nossas mentes, mas diferentes modos nos quais Deus Se
comunica a Si mesmo com Suas criaturas (ou Consigo mesmo), da
mesma maneira em que nossas faculdades são diferentes modos nos
quais a inescrutável substância do eu se manifesta em nossa consciência
e em nossas atividades. É um velho dito: “Qualis homo, talis Deus”. E
Clemente de Alexandria 233 diz: “Se alguém se conhece, conhecerá a
Deus.” Leibnitz expressa a mesma grande verdade quando diz: «As
perfeições de Deus são as de nossas próprias almas, mas Ele as possui
sem limites. Ele é um oceano do que nós só recebemos umas poucas
gotas. Há em nós algo de poder, algo de conhecimento, algo de bondade;
mas estes atributos encontram-se em sua integridade nEle». 234 Há
verdadeiramente perigo em ambos os extremos: o de degradar a Deus em

233
Pædagogus, III. i. edit. Cologne, 1688, p. 214 a.
234
“Théodicée” Preface, Works, p. 469, edit. Berlin, 1840.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 510
nossos pensamentos, reduzindo-O à norma de nossa natureza, e perigo
de negá-Lo tal como Ele Se revela. Em nossos dias, e entre as pessoas
instruídas, especialmente entre estudantes de filosofia, o segundo perigo
é muito maior. Deveríamos lembrar que perdemos a Deus quando
perdemos nossa confiança em dizer Tu a Ele, com a certeza de ser
ouvidos e auxiliados.

§ 3. A classificação dos atributos divinos.

O objetivo da classificação é a ordem, e o objetivo da ordem é a


clareza. Até onde se obtenha este fim, é um bem. Mas a grande
diversidade de métodos que se têm proposto dá evidência de que nenhum
método de classificação tem tais vantagens que tenham assegurado sua
geral aceitação.
1. Alguns, como já vimos, passam por alto toda necessidade de
classificação ao reduzi-los todos à unidade, ou considerando-os como
diferentes fases sob as que contemplamos ao Ser Supremo como base de
todas as coisas. Para eles, a discussão dos atributos divinos é uma análise
da ideia do Infinito e do Absoluto.
2. Outros dispõem os atributos segundo o modo mediante o qual
chegamos a seu conhecimento. É dito que formamos uma ideia de Deus:
(1) Por via de causalidade; isto é, atribuindo a Ele como a grande causa
primeira toda virtude manifestada pelos efeitos que Ele produz. (2) Por
via de negação; isto é, negando a Ele as limitações e imperfeições que
pertencem a Suas criaturas. (3) Por via de eminência, exaltando até um
grau de infinitude as perfeições que pertencem a um Ser infinito. Se é
assim, os atributos que se concebem por um destes métodos pertencem a
uma classe, e aqueles concebidos por outro, ou dos que chegamos a
conhecer por outro método, pertencem a outra classe. Este princípio de
classificação é talvez o mais adotado. Entretanto, dá origem realmente só
a duas classes de atributos isto é, os positivos e os negativos, isto é,
aqueles em que algo se afirma e aqueles em que algo se nega a respeito
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 511
de Deus. À classe negativa geralmente se atribuem a simplicidade,
infinitude, eternidade e imutabilidade; à positiva, o poder, o
conhecimento, a santidade, a justiça, a bondade e a verdade. Em lugar de
chamar uma classe negativa ou à outra positiva, são frequentemente
distinguidos como absolutos e relativos. Por atributo absoluto se
significa um que pertence a Deus considerado em Si mesmo, e que não
implica relação com outros seres; por atributo relativo se significa um
atributo que implica relação com um objeto. Também se distinguem
como imanentes e transitivos, como incomunicáveis e comunicáveis.
Estes termos se usam indistintamente. Não expressam diferentes modos
de classificação, mas são modos diferentes de designar a mesma
classificação.
3. Um terceiro princípio de classificação é o derivado da
constituição de nossa própria natureza. No homem há a substância ou
essência da alma, o intelecto e a vontade. Por isso, diz-se que podemos
dispor de uma maneira muito natural os atributos de Deus baixo três
cabeçalhos. Primeiro, os que pertencem a sua essência; segundo, os que
se referem a seu intelecto, e terceiro, os que se referem a sua vontade.
sendo tomada a palavra vontade em seu sentido mais amplo.
4. Outros por sua vez buscam o princípio de classificação na
natureza dos próprios atributos. Alguns incluem a ideia de excelência
moral, e outros não. Por isso, distinguem-se entre naturais e morais. Mas
a palavra natural é ambígua. Tomando-a no sentido do que constitui ou
pertence à natureza, à santidade e à justiça de Deus são tão naturais
como Seu poder ou conhecimento. E por outro lado, Deus é infinito e
eterno em Suas perfeições morais, embora a infinitude e a eternidade não
sejam perfeições distintivamente morais. No senso comum e familiar da
palavra natural, os termos natural e moral expressam uma verdadeira
distinção.
5. O método de Schleiermacher é, certamente, peculiar. Baseia-se
no princípio característico de seu sistema, que toda religião se funda num
sentimento de dependência, e toda teologia consiste no que esse sentido
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 512
de dependência nos ensina. Ele não trata dos atributos divinos num
mesmo lugar, mas aqui e acolá, à medida que surgem de acordo com seu
plano. Nosso sentido de dependência não desperta em nossa consciência
um sentimento de oposição à eternidade de Deus, a onipotência, a
onipresença, ou onisciência. Estes, portanto, trata-se num só lugar. Mas
nós, como criaturas dependentes, somos conscientes da oposição à
santidade de Deus e à justiça. Estes, portanto, pertencem a outro
encabeçamento. E como esta oposição se elimina através de Cristo,
somos trazidos na relação à graça de Deus ou o amor, e a sua sabedoria.
Estes formam uma terceira classe.

O fato de que se tenham adotado tantos princípios diferentes de


classificação, e que cada um destes princípios se desenvolva em tantas
maneiras diferentes, mostra-nos a incerteza e dificuldade que esta
questão suporta. No que segue se propõe aceitar a guia da resposta dada
no «Catecismo de Westminster» à pergunta: Que é Deus? É aceita nesta
resposta que, Deus é um Ser existente em Si mesmo e necessário; e
afirma-se dEle:
I. Que Ele é um Espírito.
II. Que como tal Ele é infinito, eterno e imutável.
III. Que Ele é infinito, eterno e imutável: (1) Em seu ser; (2) em
tudo o que pertence à Sua inteligência, isto é, em Seu conhecimento e
sabedoria; (3) em tudo o que pertence à Sua vontade, isto é, Seu poder,
santidade, justiça, bondade e verdade. Sejam quais forem as objeções
especulativas que se possam fazer a este plano, tem a vantagem de ser
simples e conhecido.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 513
§ 4. A espiritualidade de Deus

A. O significado da palavra «Espírito».

O princípio fundamental da interpretação de todos os escritos,


sejam sagrados ou profanos, é que as palavras devem ser compreendidas
em seu sentido histórico: isto é, no sentido em que se possa demonstrar
historicamente que foram empregados por seus autores e em que deviam
ser entendidos da parte de aqueles aos que se dirigiam. O objetivo da
linguagem é a comunicação do pensamento. A não ser que as palavras
sejam tomadas no sentido em que os que as empregam sabem que vão
ser entendidas, fracassam em seu desígnio. Sendo que as Sagradas
Escrituras são as palavras de Deus ao homem, estamos obrigados a
tomar no sentido como aqueles a quem se dirigiam originalmente devem
tê-las inevitavelmente tomado. Qual é o sentido da palavra «espírito»?
Ou, antes, qual é o uso aceito e as palavras hebraica e grega com a qual
corresponde nossa palavra «espírito»? Ao responder a esta pergunta,
aprendemos o que nosso Senhor queria dizer ao afirmar que Deus é
Espírito. Originalmente, as palavras * ַ‫[ רוּח‬ruach] e πνεῦμα [pneuma]
significavam ar em movimento, especialmente o alento, como na frase
πνεῦμα βίου (pneuma biou) [fôlego de vida]; logo, qualquer poder
invisível; logo, a alma humana. Por isso, ao dizer que Deus é Espírito,
nosso Senhor nos autoriza a crer que aquilo que seja essencial à ideia de
um espírito, tal como o aprendemos de nossa própria consciência, deve
ser aplicado a Deus como determinando Sua natureza. A respeito deste
tema a consciência ensina, e tem ensinado a todos os homens:
1. Que a alma é uma substância; que nossos pensamentos e
sentimentos têm uma base comum, da quais são os variados estados ou
atividades. A substância é aquilo que tem uma existência objetiva, e tem

*
Advirta-se que nas transcrições emprega-se o negrito para o hebraico, e o itálico para o grego [N. do
T.].
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 514
permanência e poder. Inclusive Kant diz: “Wo Handlung, mithin
Thätigkeit und Kraft ist, da ist auch Substanz,” «Onde há operação, e por
conseguinte, atividade e força, há substância». 235 Isto não é só a
convicção comum dos homens, mas sim é admitido pela imensa maioria
dos filósofos. Como já se observou anteriormente, é igualmente
impensável que haja movimento sem algo que se mova.
2. A consciência ensina que a alma é uma subsistência individual.
Isto fica incluído na consciência da unidade, identidade e permanência
da alma. Não se trata só de estarmos conscientes de certos estados da
alma, dos quais infiramos sua substância e subsistência, e sim estes são
os conteúdos do conhecimento que nos são dados na consciência do eu.
O famoso aforismo de Descartes, Cogito, ergo sum [Penso, logo
existo], não é um silogismo. Não significa que a existência se infira com
base na consciência do pensamento; antes, que a consciência do
pensamento envolve a consciência da existência. O próprio Descartes
entendia isto desta maneira, porque diz: “Cum advertimus nos esse res
cogitantes, prima quædam notio est quæ ex nullo syllogismo concluditur;
neque etiam cum quis dicit ‘Ego cogito, ergo sum, sive existo,’
existentiam ex cogitatione per syllogismum deducit, sed tanquam rem
per se notam simplici mentis intuitu agnoscit.” 236 Mansel, diz: “Qualquer
que seja a variedade dos fenômenos da consciência, as sensações por
este ou aquele órgão, vontades, pensamentos, imaginações, de todos
somos imediatamente conscientes como os afetos de um e o mesmo eu.
Não é por qualquer pós-esforço de reflexão que eu combino visão e
audição, pensamento e vontade, numa unidade fictícia ou composta total,
em cada caso sou consciente imediatamente de mim mesmo vendo e
ouvindo, a vontade e o pensamento. Esta autopersonalidade, como todas
as outras apresentações simples e imediatas, é indefinível, mas é assim

235
Werke, edit. Leipzig, 1838, vol. ii. p. 173.
236
Meditationes de Prima Philosophia, Responsio ad Secundas Objectiones, III., edit. Amsterdam,
1685, p. 74.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 515
237
porque é superior à definição”. Esta subsistência individual está assim
envolta na consciência do eu, porque na consciência do eu nos
distinguimos a nós mesmos de tudo aquilo que não é nós mesmos.
3. Como a cada substância pertence um poder de alguma classe, o
poder que pertence ao espírito, à substância do eu, é a do pensamento,
sentimento e vontade. Tudo isto se dá na forma mais simples de
consciência. Não estamos mais certos de que existimos que de que
pensamos, sentimos e queremos. Conhecemo-nos a nós mesmos só como
pensando, sentindo e querendo, e por isso estamos seguros de que estes
poderes ou faculdades são os atributos essenciais de um espírito, e que
devem pertencer a cada espírito.
4. A consciência nos informa deste modo da unidade ou
simplicidade da alma. Não está composta de diferentes elementos. Está
composta de substância e forma. É uma substância simples que possui
certos atributos. É incapaz de separação ou divisão.
5. Ao ser conscientes de nossa subsistência individual, estamos
conscientes da personalidade. Não cada subsistência individual é uma
pessoa. Mas cada subsistência individual que pensa e sente e tem a
capacidade da autodeterminação é uma pessoa; e, portanto, a consciência
de nossa subsistência e dos poderes do pensamento e volição é a
consciência da personalidade.
6. Somos também conscientes de ser agentes morais, suscetíveis de
caráter moral, e sujeitos de obrigação moral.
7. Não será necessário acrescentar que cada espírito deve possuir
consciência do eu. Isto está envolto em todo o anterior. Sem consciência
do eu, seríamos um mero poder da natureza. Esta é a própria base de
nosso ser, e está necessariamente envolta na ideia do eu como uma
existência real. É impossível, portanto, sobrevalorizar a importância da
verdade contida na proposição simples: Deus é um Espírito. Está
comprometido nesta proposição de que Deus é imaterial. Nenhuma das

237
Prolegomena Logica, Boston, 1860, p. 123. See also McCosh’s Intuitions of the Mind, p. 143.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 516
propriedades da matéria pode pregar-se dEle. Ele não é estendido nem
divisível, nem composto, nem visível, nem palpável. Ele não tem nem
volume nem forma. A Bíblia reconhece em todas partes como
verdadeiras as convicções intuitivas dos homens. Uma destas convicções
é que o espírito não é matéria, nem a matéria espírito; que alguns
atributos diferentes e incompatíveis não podem pertencer à mesma
substância. Assim, ao nos revelar que Deus é Espírito, revela-nos que
não se pode pregar nenhum atributo material da essência divina. O
realista dualismo que subjaz no fundo de todas as convicções humanas
subjaz também em todas as revelações da Bíblia.

B. Consequências da Espiritualidade de Deus.

Se Deus é Espírito, segue-se disso necessariamente que Ele é uma


pessoa, um agente consciente de si mesmo, inteligente e voluntário.
Como tudo isto está envolto em nossa consciência de nós mesmos como
espírito, deve ser tudo certo de Deus, ou Deus seria de uma ordem de ser
inferior ao do homem.
Segue-se também que Deus é um Ser simples, não só como não
composto de elementos diferentes, mas também como não admitindo a
distinção entre substância e acidentes. Nada se pode acrescentar nem
tirar de Deus. Nesta perspectiva, a simplicidade, assim como todos os
outros atributos de Deus, é de uma ordem mais elevada que os
correspondentes atributos de nossa natureza espiritual. A alma do
homem é uma substância simples; mas está sujeita a trocas. Pode ganhar
e perder conhecimento, santidade e poder. Assim, estes são acidentes em
nossa substância. Mas em Deus são atributos, essenciais e imutáveis.
Finalmente, segue-se que Deus seja espírito, que Ele é um Ser
moral assim como inteligente. Está envolto na própria natureza de nosso
ser voluntário e racional que se conforme à regra do que é reto, que no
caso de Deus é sua própria infinita razão. Estas são verdades primárias,
que não devem ser sacrificadas perante nenhuma objeção especulativa. É
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 517
em vão que se nos diga que um espírito infinito não pode ser uma
pessoa, porquanto a personalidade implica a distinção entre o eu e o não
eu, e que isto é uma limitação. É igualmente em vão dizer que Deus não
pode ter excelência moral, porque a bondade moral implica
conformidade a uma lei, e que a conformidade com a lei é também
inconsistente com a ideia de um Ser absoluto. Estas são especulações
vazias; e inclusive se fossem capazes de uma solução satisfatória não
ofereceriam nenhuma base racional para rejeitar as verdades intuitivas da
razão e da consciência. Já existem suficientes mistérios em nossa
natureza, e entretanto nenhuma pessoa, em seus cabais, nega sua própria
existência pessoal e responsabilidade moral. E é pior que louco aquele
que é seduzido por estes sofismas a renunciar a sua fé em Deus como
espírito pessoal e Pai amante.

As Escrituras confirmam estas posturas.


Quase não será necessário observar que as Escrituras descrevem a
Deus em todo lugar como possuindo os atributos anteriormente
mencionados de um espírito. Toda a religião repousa sobre este
fundamento; toda a relação com Deus, toda adoração, toda oração, toda
confiança em Deus como preservador, benfeitor e redentor. O Deus da
Bíblia é uma pessoa. Ele falou com Adão. Ele se revelou a Noé. Ele
entrou em aliança com Abraão. Ele conversou com Moisés, como amigo,
face a face. Em todas partes emprega os pronomes pessoais. Ele diz:
«Meu nome é "Eu Sou"». Eu sou o Senhor, seu Deus. Eu sou
misericordioso e cheio de graça. Invoca-Me e Eu te responderei. Como
um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos
que O temem. Ó, Tu, que escutas a oração, a Ti virá toda a carne. Nosso
Senhor pôs em nossos lábios umas palavras que nos revelam que Deus é
espírito, e tudo o que ser espírito implica, ao nos ensinar a dizer: «Pai
Nosso que estás nos céus, santificado seja o Teu nome. Venha o Teu
reino. Seja feita a Tua vontade». Em todas as partes, o Deus da Bíblia é
contrastado com os deuses dos pagãos, como um Deus que vê, que ouve
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 518
e que ama. E estas não são verdades reguladoras, mas sim verdades
reais. Deus não zomba de nós quando nos é apresentado assim como um
Ser pessoal com quem podemos ter relação, e que está presente em todo
lugar, para ajudar e salvar. “À razão humana”, diz Mansel, “a postura
pessoal e o infinito no antagonismo aparentemente irreconciliáveis, e o
reconhecimento do outro num sistema religioso, quase inevitavelmente
implica o sacrifício dos demais.” 238 Isto não pode ser assim. Segundo a
Bíblia, e de acordo com os ditados de nossa própria natureza, da razão,
assim como da consciência, Deus é um espírito, e sendo um espírito é
necessariamente uma pessoa, um ser que pode dizer Eu, e a quem
podemos dizer Tu.

§ 5. Infinitude

Embora Deus se revele como um Ser pessoal capaz de comunicar-


se com o homem, a quem podemos adorar e amar, e a quem podemos
orar com a certeza de ser ouvidos e respondidos, entretanto Ele enche o
céu e a terra; Ele está acima de tudo o que possamos conhecer ou pensar.
Ele é infinito em seu Ser e perfeições. As ideias com as quais estamos
mais familiarizados são, com frequência, aquelas das quais menos
podemos dar uma explicação inteligente. O espaço, o tempo e a
infinitude estão entre os mais difíceis problemas do pensamento humano.
O que é o espaço? Esta é uma pergunta que nunca foi respondida
satisfatoriamente. Alguns dizem que é nada; onde nada é, o espaço não
é; é «uma negação definida por limite»; outros, com Kant e Hamilton,
dizem que é «uma condição do pensamento», «a condição subjetiva da
sensibilidade»; outros que é um atributo ou acidente de Deus; outros que
é aquilo no qual verdadeiras existências podem agir e mover-se. Apesar
destas declarações contraditórias de filósofos, e do verdadeiramente
oculto da questão, toda pessoa sabe de maneira muito clara e definida o

238
Limits, p. 148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 519
que é que significa a palavra «espaço», embora não possa defini-lo de
maneira satisfatória. Algo muito semelhante sucede com a ideia de
infinitude. Se os homens se contentassem, deixando a ideia em sua
integridade, como simplesmente expressando aquilo que não admite
limitações, não haveria perigo em especular a respeito de sua natureza.
Mas em todas as idades as ideias errôneas a respeito do que é o infinito
levaram a erros fatais em filosofia e religião. Sem tratar de detalhar as
especulações dos filósofos a respeito desta questão, tentaremos
simplesmente enunciar o que se significa quando se diz que Deus é
infinito em Seu ser e perfeições.

A ideia de Infinitude não é meramente negativa.


O ser, neste contexto, é aquilo que é ou que existe. O ser de Deus é
sua essência ou substância, da que suas perfeições são os atributos
essenciais ou modos de manifestação. Quando se diz que Deus é infinito
quanto a seu ser, o que se significa é que não se pode atribuir a Ele
limitação alguma à Sua essência. Com frequência diz-se que nossa ideia
do infinito é meramente negativa. Há um sentido em que isso pode ser
certo, mas há outro sentido em que não é certo. É verdade que a forma da
proposição é negativa quando dizemos que não se pode atribuir limite
algum ao espaço, ou a possível duração, ou ao ser de Deus. Mas isso
implica a afirmação de que o objeto do qual se prega a infinitude é
ilimitável. É uma ideia tão positiva a que expressamos quando dizemos
que algo é infinito, como quando dizemos que é finito. Certamente, não
podemos formar uma concepção ou imagem mental de um objeto
infinito, mas a palavra, entretanto, expressa um juízo positivo da mente.
Sir William Hamilton e outros, quando dizem que o infinito é uma mera
negação, significa que implica uma negação de todo pensamento. Quer
dizer, não significamos nada quando dizemos que uma coisa é infinita.
Como não sabemos nada dos habitantes de outros planetas de nosso
sistema, se é que existem, ou do modo em que anjos e espíritos
imateriais tomam conhecimento de objetos materiais, nossas ideias em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 520
tais sujeitos são ignorâncias puramente negativas, ou branca ignorância.
“O infinito”, Mansel diz, “não é um positivo objeto do pensamento
humano.” 239 Todos, entretanto, sabem que as proposições “O espaço é
infinito”, e “O espaço é finito”, expressam diferentes pensamentos e
igualmente definidos. Assim, quando dizemos que Deus é infinito,
significamos algo; expressamos uma grande verdade positiva.

A. O infinito não é o Todo


O infinito, embora ilimitável e incapaz de aumento, não é
necessariamente o todo. Um corpo infinito deve incluir todos os corpos,
o espaço infinito todas as porções de espaço, e a duração infinita todos
os períodos de duração. Por isso, Mansel diz que um ser infinito tem que
incluir necessariamente dentro dele mesmo todas as formas ou modos
reais e possíveis de ser. Assim o disse Espinoza, muitos dos escolásticos,
e inclusive muitos teólogos cristãos. A ideia de que Espinoza e Mansel
fazem esta afirmação é o princípio fundamental do panteísmo. O Sr.
Mansel, como vimos, escapa a esta conclusão apelando à fé, e ensinando
que somos obrigados a crer o que a razão dita que é impossível, que por
sua vez é impossível. O sentido em que os teólogos ensinam que um ser
infinito deve compreender dentro disso todo ser, quer dizer, que no
infinito está a causa ou razão de tudo o que é real ou possível. Assim
Howe 240 diz: “O ser necessário deve incluir todo o ser.” Mas
imediatamente acrescenta, não da mesma maneira: “Compreende todo
ser, além do que é em si mesmo, como tendo tido, ao alcance de sua
força produtiva, que seja realmente nasceu dela, e ter ao alcance o
mesmo poder, tudo continua sendo possível que ele produziu.” Isto,
entretanto, não é o significado correto das palavras, nem é o sentido em
que se utilizam geralmente. O que significam as palavras, e o que
geralmente se destina a significar pelos que as utilizam é que há um só

239
Prolegomena Logica, Boston, 1860, p. 52.
240
“Living Temple,” Works, London, 1724, vol. i. p. 70.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 521
ser no universo; que o finito não é mais que o modus existendi, ou
manifestação do Infinito. Assim, Cousin diz, Deus deve ser “infinito e o
finito juntos,. . . . no cimo de ser e em seu humilde grau. . . . ; ao mesmo
tempo Deus, a natureza e a humanidade.” 241 Inclusive alguns dos
remonstrantes consideram isto como a consequência necessária da
doutrina da infinitude da essência divina. Episcopius 242 diz: “Si essentia
Dei sic immensa est, tum intelligi non potest quomodo et ubi aliqua
creata essentia esse possit. Essentia enim creata non est essentia divina;
ergo aut est extra essentiam divinam, aut, si non est extra eam, est ipsa
essentia illa, et sic omnia sunt Deus et divina essentia.” “Deus é
infinito”, diz Jacó Boehme, “porque Deus é tudo.” Isto, diz Strauss, 243 é
exatamente a doutrina da filosofia moderna.
Já se observou num capítulo anterior, em referência a este modo de
raciocinar, que provém de uma ideia errônea do infinito. Uma coisa pode
ser infinita em sua própria natureza, sem impedir a possibilidade da
existência de coisas de uma natureza diferente. Um espírito infinito não
impede a hipótese da existência da matéria. Pode ser que haja inclusive
muitos infinitos da mesma classe, como podemos imaginar um número
de linhas infinitas. Por isso, o infinito não é o todo. Um espírito infinito é
um espírito a cujos atributos como espírito não se lhe podem pôr limites.
Não impede a existência de outros espíritos, como tampouco a infinita
bondade impede a existência de bondade finita, ou o poder infinito a
existência do poder finito. Deus é infinito em Seu ser porque não se pode
atribuir limite algum a Suas perfeições, e porque está presente em todas
as porções do espaço. Diz-se que um ser está presente onde percebe e
age. Como Deus percebe e age em todas partes, está presente em todas
partes. Entretanto, isso não impede a presença de outros seres. Uma
multidão de homens inclusive pode perceber e agir no mesmo tempo e
lugar. Além disso, temos muito pouco conhecimento da relação que o
241
History of Modern Philosophy, translated by Wight. New York, 1852, vol. I. p. 113.
242
Institutiones Theologicæ, IV. II. 13, edit. Amsterdam, 1550, vol. I. p. 294.
243
Dogmatik, vol. i. p. 556.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 522
espírito tem com o espaço. Sabemos que os corpos ocupam porções do
espaço com exclusão de outros corpos; mas não sabemos que os espíritos
não possam coexistir na mesma porção de espaço. Uma legião de
demônios habitava num homem.

B. A infinitude de Deus com relação ao espaço

A infinitude de Deus, pelo que concerne ao espaço, inclui sua


imensidão e onipresença. Estes não são dois atributos diferentes, mas
sim um e o mesmo considerado sob diferentes aspectos. Sua imensidão é
a infinitude de seu ser, contemplado como pertencente à Sua natureza da
eternidade. Ele enche a imensidão com Sua presença. Sua onipresença é
a infinitude de Seu ser, contemplada com relação a Suas criaturas. Ele
está igualmente presente com todas as Suas criaturas, em todo tempo e
lugar. Ele não está longe de nenhum de nós. «O Senhor está aqui» pode-
se dizer com toda veracidade e confiança, em todas as partes. Os
teólogos costumam distinguir três modos de presença no espaço. Os
corpos estão no espaço de uma maneira circunscrita. Estão limitados por
ele. Os espíritos estão no espaço de uma maneira definida. Não estão em
todas as partes, mas só em alguma. Deus está no espaço de maneira que
o enche tudo. Em outras palavras, as limitações do espaço não têm
referência a Ele. Não está ausente de nenhuma porção do espaço, nem
mais presente numa porção que em outra. Isto, naturalmente, não deve
ser entendido de extensão ou difusão. A extensão é uma propriedade da
matéria, e não se pode pregar de Deus. Se estivesse estendido, poderia
ser dividido e separado; uma parte de Deus estaria aqui, e outra ali.
Tampouco deve entender-se Sua onipresença como uma mera presença
em conhecimento e poder. É uma onipresença da essência divina. Se não
fosse assim, a essência de Deus estaria limitada. Assim, a doutrina
ensinada pelos antigos socinianos de que a essência de Deus está
limitada ao céu (seja onde for que esteja), e que nos demais lugares está
só quanto a seu conhecimento e eficiência, é incongruente com as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 523
perfeições divinas e com a descrição nas Escrituras. Tal como Deus age
em todas partes, está presente em todas partes; porque, como dizem os
teólogos, um ser não pode agir mais onde ele não é que quando ele não é.
Os teólogos anteriores e posteriores concordam nesta postura da
imensidão e onipresença divinas. Agostinho 244 diz que Deus não tem que
ser considerado como todas as partes difundidas, como o ar ou a luz:
“Sed in solo coelo totus, et in sola terra totus, et in coelo et in terra totus,
et nullo contentus loco, sed in seipso ubique totus.” Tomás de Aquino
diz: 245 Deus “est in omnibus per potentiam, in quantum omnia ejus
potestati subduntur; est per præsentiam in omnibus, in quantum omnia
nuda sunt et aperta oculis ejus. Est in omnibus per essentiam in quantum
adest omnibus ut causa essendi sicut dictum est.” Quenstedt diz: 246 “Est
Deus ubique illocaliter, impartibiliter, efficaciter; non definitive ut
spiritus, non circumscriptive ut corpora, sed repletive citra sui
multiplicationem, extensionem, divisionem, inclusionem, aut
commixtionem more modoque divino incomprehensibili.”
A Bíblia ensina a infinitude de Deus, como implicando sua
imensidão e onipresença, nos termos mais claros. Diz-se que Ele enche
tudo em todas as coisas, isto é, o universo em todas suas partes (Ef 1:23).
«Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o SENHOR, e não também de
longe? Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o
veja? — diz o SENHOR; porventura, não encho eu os céus e a terra? —
diz o SENHOR.» (Jr 23:23, 24). «Para onde me ausentarei do teu
Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se
faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo
as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá me
haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá.» (Sl 139:7-12). É
«nele [nós, todas as criaturas] vivemos, nos movemos, e existimos». (At
17:28). Em todas as partes do Antigo e do Novo Testamento, Deus é
244
De Præsentia Dei seu Epistola CLXXXVII. iv. 14, edit. Benedictines, vol. ii. p. 1023, d.
245
Summa, I. viii. 3, edit. Cologne, 1640, p. 16.
246
Theologia, I. VIII. § 1, p. 413.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 524
descrito como um Ser espiritual, sem forma, invisível, a quem ninguém
viu nem pode ver; que habita em luz inacessível, cheio de glória; não só
como o criador e preservador, mas também como governador de todas as
coisas; como presente em todas as partes, e em todas as partes
comunicando vida e assegurando a ordem; presente em cada fibra de
erva, mas conduzindo a Ursa Maior em seu curso, dirigindo as estrelas
como hoste, chamando-as por seus nomes; presente também em cada
alma humana, dando-lhe entendimento, dotando-a de dons, operando
nela o fazer e o querer. O coração humano está em Suas mãos, e Ele o
faz tornar como os rios de águas tornam. Onde no universo haja
evidência da mente nas causas materiais, ali, segundo a Escritura, está
Deus, controlando e conduzindo aquelas causas para o cumprimento de
Seus sábios desígnios. Ele está em todas as coisas e sobre todas elas; mas
essencialmente diferente de todas, sendo sobre todas, independente e
imensamente exaltado sobre todas elas. Assim, esta imensidão e
onipresença de Deus é a ubiquidade da essência divina, e
consequentemente do poder, sabedoria e bondade divinos. Como as aves
no ar e os peixes no mar, assim também nós estamos sempre rodeados e
sustentados por Deus. É assim que Ele é infinito em seu ser, sem
absorver a todos os seres criados em sua própria essência, mas sim
sustentando a todos em suas subsistências individuais, e no exercício de
seus próprios poderes.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 525
§ 6. Eternidade.

A. A doutrina escriturística

A infinitude de Deus com relação ao espaço é Sua imensidão ou


onipresença. Com relação à duração, é Sua eternidade. Assim como Ele
está livre das limitações do espaço, da mesma maneira está exaltado
sobre todas as limitações do tempo. Assim como Ele não está mais num
lugar que em outro, assim não existe mais um período de duração que
em outro. Para Ele não há distinção entre o presente, o passado e o
futuro; todas as coisas estão igualmente e sempre presentes para Ele.
Para Ele a duração é um eterno agora. Esta é a postura popular e a das
Escrituras a respeito da eternidade de Deus. «Antes que os montes
nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade,
tu és Deus» (Sl 90:2). «Desde o princípio lançaste os fundamentos da
terra; E os céus são obra das tuas mãos. Eles hão de perecer, mas tu
permanecerás; Todos eles se envelhecerão como um vestido, Como
roupa os mudarás, e serão mudados: Mas tu és o mesmo, e os teus anos
nunca terão fim» (Sl 102:25-27, TB). Ele é «o Alto e Sublime, aquele
que habita a eternidade» (Is 57:15). «Eu sou o primeiro e eu sou o
último, e além de mim não há Deus» (Is 44:6). «Mil anos, aos teus olhos,
são como o dia de ontem que se foi» (Sl 90:4). «Para Senhor, um dia é
como mil anos, e mil anos, como um dia» (2Pe 3:8). Ele «ontem e hoje, é
o mesmo e o será para sempre» (Hb 13:8). Deus é Aquele «que é [que
sempre é], que era e que há de vir» (Ap 1:4). Ao longo de toda a Bíblia
Ele é chamado o Deus eterno, o único que possui imortalidade. A
revelação primordial dEle ao povo da aliança foi o «Eu Sou».
O que se ensina nesta e passagens semelhantes é, primeiro, que
Deus é sem princípio de anos nem fim de dias. Ele é, e sempre foi, e
sempre será; e, segundo, que para Ele não há nem passado nem futuro;
que o passado e o futuro são sempre e igualmente presentes para Ele.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 526
B. A postura filosófica.

Estes são fatos bíblicos, e seguem necessariamente da natureza de


Deus como existente por Si mesmo, infinito e imutável. Com estas
representações do ensino dos teólogos em sua maior parte está de
acordo. Assim diz Agostinho: “Fuisse et futurum esse non est in ea [scil.
vita divina], sed esse solum, quoniam æterna est: nam fuisse et futurum
esse non est æternum.” 247 “Nec tu tempore tempora præcedis, alioquin
non omnia tempora præcederes sed præcedis omnia præterita celsitudine
simper præsentis æternitatis; et superas omnia futura, quia illa futura sunt
et cum venerint præterita erunt; tu autem idem ipse es, et anni tui non
deficiunt.” 248 Aquino, no mesmo sentido diz: “Æternitas est tota
simul.” 249 Ou, como os escolásticos em geral, costumavam dizer: “In
æternitate est unicum instans semper præsens et persistens;” ou, como
eles o expressaram de outra maneira: “Eternitas est interminabilis vitæ
simul et perfecta possessio.” O mesmo ponto de vista deste atributo é
dada pelos teólogos mais tarde. Assim diz Quenstedt: “Æternitas Dei est
duratio vel permanentia essentiæ divinæ interminabilis, sine principio et
fine carens, et indivisibilis, omnem omnino successionem excludens.” 250
A única coisa questionável nestas declarações é a negação de toda
sucessão na consciência divina. Nossa ideia da eternidade nós a obtemos
de nossa ideia do tempo. Estamos conscientes de existência no espaço, e
estamos conscientes de uma existência prolongada ou continuada. As
ideias de espaço e de duração se dão necessariamente na consciência da
existência continuada. Vemos também que os acontecimentos se
sucedem uns aos outros, que ocorrem com separações de duração mais
ou menos longa, assim como os corpos estão separados por um intervalo
mais ou menos grande de espaço. Por isso, não conhecemos, nem por

247
Confessiones, IX. x. 24, edit. Benedictines, vol. i. p. 283, c.
248
Ibid. XI. xiii. 16, p. 338, a.
249
Summa, I. x. 4, edit. Cologne, 1640, p. 16.
250
Theologia, I. VIII. § I. XVII. p. 413.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 527
nossa consciência nem por experiência, de nenhum tipo de duração que
não seja sucessivo. Em lugar de dizer, como se diz usualmente, que o
tempo é duração medida por sucessão, o que supõe que a duração é
antecedente àquilo por meio do qual é medida e independente dela,
alguns sustentam que é inconcebível e impossível a duração sem
sucessão. Assim como o espaço é definido como «negação entre as
linhas de limite das formas», assim diz-se de tempo que é «a negação
entre os pontos de limite do movimento». Ou, em outras palavras, que o
tempo é «o intervalo que um corpo em movimento marca em seu trânsito
de um ponto do espaço a outro».251 Por isso, se não houvesse corpos com
forma, não há espaço; e se não houver movimento, não há tempo. «Se
todas as coisas fossem aniquiladas, o tempo, assim como o espaço, seria
aniquilado, porque o tempo depende do espaço. Se todas as coisas
fossem aniquiladas, não poderia haver transições, nem sucessões de um
objeto com relação a outro, porque não haveria objeto em ser: tudo seria
perfeita vacuidade, nada, ausência de ser. Numa total aniquilação, não
poderia haver nem espaço nem tempo». 252 O mesmo escritor diz em
outra parte: 253 “A terra, assim como os outros globos do espaço, foram
aniquilados, muito mais tempo de ser aniquilados da mesma maneira.” 254
Tudo isto, entretanto, deve-se entender, segundo se diz, de “tempo
objetivo, quer dizer, de tempo, como depende das condições materiais
criadas.” 255 Como a intemporalidade objetiva segue a aniquilação de
existências materiais, assim que a intemporalidade como se referem a
personalidades o pensamento é concebível só na destruição do
pensamento. “Vimos que não pode haver um estado de intemporalidade
da criação material, só mediante a destruição de seu funcionamento, quer

251
Jamieson, p. 199.
252
Ibid. p. 163.
253
Rev. George Jamieson, M.A., one of the ministers of the parish of Old Machar, Aberdeen, The
Essentials of Philosophy, wherein its constituent Principles are traced throughout the various
Departments of Science with analytical Strictures on the Views of some of our leading Philosophers.
254
Ibid., p. 200.
255
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 528
dizer, seu atributo de movimento: precisamente em virtude desta
analogia, não pode haver um estado de intemporalidade para a criação
intelectual, só mediante a destruição das leis do intelecto, quer dizer, sua
operação de pensar.”256 Se, pois, Deus é uma pessoa ou um Ser pensante,
não poderia ser atemporal: deveria haver uma sucessão; um pensamento
ou estado tem que seguir a outro. Diz-se que negar isto é negar a
personalidade de Deus. Por isso, a sentença dos escolásticos – de que é
um agora persistente e imóvel – fica com isto repudiado.
Entretanto, há dois sentidos nos quais se nega a sucessão em Deus.
O primeiro refere-se a acontecimentos externos. Estes estão sempre
presentes na mente de Deus. Ele os contempla em todas suas relações.
sejam causais ou cronológicas. Ele vê como se sucedem um ao outro no
tempo, como nós vemos uma parada militar, podendo vela toda de uma
só olhada. Nisto talvez não há nada que transcenda de uma maneira
absoluta a nossa compreensão. O segundo aspecto da questão tem que
ver com a relação de sucessão dos pensamentos e atos de Deus. Quando
ignoramos, é sábio calar. Não temos direito a afirmar ou a negar, quando
não podemos saber o que nossa afirmação ou negação possa envolver ou
implicar. Sabemos que Deus está constantemente produzindo novos
efeitos, efeitos que se vão sucedendo uns aos outros no tempo. Mas não
sabemos que estes efeitos se devam a exercícios sucessivos da eficiência
divina. Certamente, é incompreensível para nós como pode ser de outra
maneira. Os milagres de Cristo foram devidos ao exercício imediato da
eficiência divina. Dizemos palavras às quais não podemos atribuir
significado quando dizemos que estes efeitos foram devidos não a um
ato ou volição contemporânea da mente divina, mas sim a um ato eterno,
se é que tal frase não é um solecismo. Da mesma maneira ficamos
confundidos quando nos é dito que nossas orações não são ouvidas e
respondidas no tempo – que Deus é atemporal – que o que Ele faz ao
escutar e responder a nossas orações, e em Sua providência diária, o faz

256
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 529
desde a eternidade. É verdade que Deus está sujeito a todas as limitações
da personalidade, se é que as há. Mas porquanto tais limitações são as
condições de que seja uma pessoa e não uma mera força involuntária,
são as condições de Sua perfeição infinita. Como o constante pensar e
atividade está implicada na própria natureza de um espírito, isto deve
pertencer a Deus; e até onde o pensar e agir envolva sucessão, a sucessão
deve pertencer a Deus. Há mistérios relacionados com a sucessão
cronológica, na natureza, que não podemos explicar. Sabemos que em
sonhos podem-se comprimir meses em alguns momentos, e alguns
momentos podem-se expandir a meses, pelo que respeita a nossa
consciência. Sabemos que com frequência sucede aos que se aproximam
da morte, que todo o passado faz-se instantaneamente presente. Se Deus
nos tivesse constituído de tal maneira que a memória fosse tão vívida
como a atual consciência, não haveria para nós passado, pelo que
concerne à nossa existência pessoal. Não é impossível que no além a
memória se converta na consciência do passado; que tudo o que jamais
pensamos, sentimos ou fizemos, esteja sempre presente na mente; que
todo o escrito nesta tábua seja indelével. As pessoas que, por longa
residência em países estrangeiros, perderam por completo todo o
conhecimento de sua língua nativa, soube-se que o falam com fluidez, e
o entendem perfeitamente, quando chegaram a morrer. Ainda mais
maravilhoso é o fato de que pessoas incultas, ao ouvir ler passagens num
idioma desconhecido (em grego ou hebraico, por exemplo), têm, anos
depois, quando num estado anormal, nervoso, repetido os passos
corretamente, sem entender seu significado. Se somos incapazes de nos
compreender a nós mesmos, não deveríamos pretender poder
compreender a Deus. Tanto se podemos compreender como pode haver
sucessão nos pensamentos dAquele que habita na eternidade ou não, não
devemos negar, para vencer a dificuldade, que Ele Deus é um Ser
inteligente, que Ele realmente pensa e sente. Deus é uma pessoa, e tudo o
que implica a personalidade tem que ser certo dEle.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 530
Posturas filosóficas modernas.
A filosofia moderna ensina que “Die Ewigkeit ist die Einheit in
dem Unterschiede der Zeitmomente — Ewigkeit und Zeit verhalten sich
wie die Substanz und deren Accidentien.” 257 Quer dizer, a eternidade é a
unidade que subjaz nos momentos sucessivos de tempo, como a
substância é a unidade que subjaz nos acidentes que são suas
manifestações. A ilustração de Schleiermacher é tirada de nossa
consciência. Somos conscientes de um permanente e imutável eu, que é
objeto de nossos pensamentos e sentimentos em constante mudança. Pela
eternidade de Deus, portanto, significa-se nada mais que Ele é o
fundamento do bem-estar da qual o universo é o fenômeno em constante
mudança. A eternidade de Deus é só uma fase de sua causalidade
universal. “Unter der Ewigkeit Gottes verstehen wir die mit allem
Zeitlichen auch die Zeit selbst bedingende schlechthin zeitlose
Ursachlichkeit Gottes.” 258 Para alcançar esta visão filosófica da
eternidade, devemos aceitar a postura filosófica da natureza de Deus
sobre a qual se baseia, ou seja, que Deus não é mais que a designação
desse algo desconhecido e incognoscível do qual todas as outras coisas
são as manifestações. Renunciar à vida, do Deus pessoal da Bíblia e do
coração, é um sacrifício terrível à coerência enganosa e lógica. Cremos
no que não podemos entender. Cremos que no que a Bíblia ensina como
fatos, que Deus sempre é, foi e sempre será, imutavelmente o mesmo;
que todas as coisas estão sempre presentes à Sua vista, que para Ele não
passou nem futuro, mas não obstante, que Ele não é um oceano
estagnado, mas a vida eterna, pensando sempre, sempre em qualidade, e
sempre unindo Sua ação às exigências de Suas criaturas, e para a
realização de Seus desígnios imensamente sábios. Quer seja que se pode
harmonizar estes fatos ou não, é um assunto de menor importância.

257
Strauss, Dogmatik, i. p. 561.
258
Christliche Glaube, I. § 52, Werke, edit. Berlin, 1842, Vol. III. p. 268.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 531
Estamos constantemente chamados a crer que as coisas são, sem ser
capazes de dizer como são, ou inclusive a forma em que podem ser.

§ 7. Imutabilidade.

A imutabilidade de Deus está intimamente relacionada com Sua


imensidão e eternidade, e é frequentemente incluída em ambas nas
declarações das Escrituras a respeito de sua natureza. Sim, quando se diz
que Ele é o Primeiro e o Último; o Alfa e o Ômega, o mesmo ontem, e
hoje e pelos séculos; ou quando em contraste com o mundo sempre
cambiante e perecível, diz-se: «Eles serão mudados, mas Tu és o
mesmo», não é Sua eternidade mais que Sua imutabilidade o que se nos
expõe. Como um Ser infinito e absoluto, existente em si mesmo e
totalmente independente, Deus está exaltado sobre todas as causas de
inclusive sobre a possibilidade de mudança. O infinito espaço e a infinita
duração não podem mudar. Devem ser sempre o que são. Assim é Deus
absolutamente imutável em Sua essência e atributos. Ele não pode nem
aumentar nem decrescer. Não está sujeito a nenhum processo de
desenvolvimento, nem evolução do EU. Seu conhecimento e poder
nunca podem ser nem maiores nem menores. Nunca pode ser mais sábio
nem mais santo, nem mais justo nem mais misericordioso do que sempre
foi e sempre tem que ser. E não é menos imutável em Seus planos e
propósitos: Infinito em sabedoria, não pode haver erro em Sua
concepção do mesmos; Infinito em poder, não pode haver sentença no
cumprimento dos mesmos. Ele é o «Pai das luzes, em quem não pode
existir variação ou sombra de mudança» (Tg 1:17). «Deus não é homem,
para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura,
tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?»
(Nm 23:19). «Porque eu, o Senhor, não mudo» (Mal 3:6). «O conselho
do SENHOR dura para sempre; os desígnios do seu coração, por todas as
gerações» (Sl 33:11). “Muitos propósitos há no coração do homem, mas
o desígnio do SENHOR permanecerá.” (Pv. 19:21). “Jurou o SENHOR
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 532
dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e, como
determinei, assim se efetuará.” (Is. 14:24). “Lembrai-vos das coisas
passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e
não há outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há
de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam;
que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha
vontade” (Is 46:9, 10). As passagens da Escritura nas quais se diz que
Deus se arrepende, devem ser interpretadas pelo mesmo princípio que
aquelas nas quais se diz que sobe sobre as asas do vento, ou caminha
através da terra. Estas não criam nenhuma dificuldade.

Declarações Filosóficas.
Teólogos há que em sua intenção de enunciar em linguagem
filosófica a doutrina da Bíblia a respeito da imutabilidade de Deus, são
propensos a confundir a imutabilidade com a imobilidade. Ao negar que
Deus pode mudar, parecem negar que possa agir. Agostinho diz, sobre
este tema: “Non invenies in Deo aliquid mutabilitatis; non aliquid, quod
aliter nunc sit, aliter paulo ante fuerit. Nam ubi invenis aliter et aliter,
facta est ibi quædam mors: mors enim est, non esse quod fuit.” 259
Quenstedt utiliza uma linguagem ainda mais aberta à objeção, quando
diz que a imutabilidade de Deus é “Perpetua essentiæ divinæ et omnium
ejus perfectionum identitas, negans omnem omnino motum cum
physicum, tum ethicum.” 260 Turrettin é mais cauteloso, mas talvez vai
longe demais. Ele diz: “Potestas variandi actus suos, non est principium
mutabilitatis in se, sed tantum in objectis suis; nisi intelligatur de
variatione internorum suorum actuum, quos voluntas perfecta non variat,
sed imperfecta tantum.” 261 A cláusula em itálico na citação anterior
assume um conhecimento da natureza de Deus ao qual o homem não tem
direito legítimo. É em vão que pretendamos compreender a perfeição do
259
In Joannis Evangelium Tractatus, xxiii. 9, edit. Benedictines, vol. iii. p. 1952, b, c.
260
Theologia, I. VIII. § I. XX. p. 414.
261
Locus III. xi. 9, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 186.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 533
Onipotente. Sabemos que Deus é imutável em Seu ser, em Suas
perfeições e em Seus propósitos; e sabemos que Ele é perpetuamente
ativo. E que, por isso, a atividade e a imutabilidade devem ser
compatíveis; e não se deveria admitir nenhuma explicação desta última
que seja inconsequente com a primeira.

Os atributos absolutos de Deus não são inconsistentes com


a Personalidade.
Estes atributos de infinito, eternidade e imutabilidade, são
livremente admitidos pela filosofia moderna de pertencer ao Ser
absoluto. Entretanto, sustenta-se que tal Ser não pode ser uma pessoa.
Personalidade implica a consciência de Si. A autoconsciência implica
necessariamente limitação, uma distinção entre o eu e o não-eu. Ohne Du
kein Ich, — a menos que haja algo objetivo e independente a que se
opõem, como sujeito e objeto, não pode haver consciência de si mesmo.
Mas nada pode ser tanto objetivo e independente com relação ao
Absoluto; e, portanto, o Absoluto não pode ter consciência de Si mesmo,
e consequentemente não pode ser um Ser pessoal. Já vimos (cap. IV) que
esta objeção se baseia numa definição arbitrária do Infinito e Absoluto.
Supõe-se que o infinito deve ser tudo, e que o Absoluto deve estar
sozinho, sem relação com nada fora de si mesmo. É aqui onde só é
necessário assinalar, em referência à objeção:
(1.) Que pode ser admitido como um fato que a consciência
adormecida de si mesma na alma humana desperta e se desenvolve pelo
contato com o que não só é externo a si mesmo, mas também
independente dela. Mas Deus não está sujeito a essa lei. Ele é
eternamente perfeito e imutável, tendo em si mesmo a plenitude da vida.
Não há, portanto, nenhuma analogia entre os casos, e nenhuma razão
para afirmar que neste caso o que é verdadeiro em nós, que começa a
vida como um germe subdesenvolvido, deve ser verdade com relação a
Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 534
(2.) Em segundo lugar, não temos direito a supor que, inclusive com
relação a uma inteligência finita criada na perfeição de seu ser, a
consciência de si mesmo depende do que é independente de si mesmo.
Tal ser seria necessariamente consciente de seus próprios sentimentos,
porque o pensamento é um estado de consciência num ser inteligente. Se
Deus, pois, pode fazer um ser inteligente na perfeição de Sua natureza
limitada, seria consciente de Si mesmo, inclusive se fosse deixado
sozinho no universo.
(3.) Admitindo que é verdade que “sem um tu não há eu,” sabemos
que, de acordo com as Escrituras e a fé da Igreja universal, há na unidade
da Trindade três pessoas distintas, o Pai, o Filho, e o Espírito; de modo
que desde a eternidade o Pai possa dizer Eu, e o Filho, Tu.

Devemos manter-nos dentro dos ensinamentos das Escrituras, e


recusar subordinar a autoridade das mesmas e as convicções intuitivas de
nossa natureza moral e religiosa às definições arbitrárias de qualquer
sistema filosófico. A Bíblia ensina em todo lugar que Deus é um Ser
absoluto, no sentido de ser existente em Si mesmo, necessário,
independente, imutável, eterno, e sem limitação nem relação necessária
com nada fora dEle mesmo. Ensina, ademais, que é infinito: não no
sentido de incluir todo ser, todo poder, todo conhecimento nEle mesmo,
para exclusão de todos os outros agentes inteligentes, mas no sentido de
que não se pode atribuir limite algum a Seu ser ou perfeições à parte do
que provenha de Sua própria perfeição. Ele deixaria de ser infinito se
pudesse ser não sábio ou não veraz. Deve-se lembrar que Deus é infinito
e absoluto como espírito, e um espírito, por sua natureza, é vivo, ativo,
inteligente, autoconsciente e pessoal.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 535
§ 8. Conhecimento.

A. Sua natureza

Por conhecimento se significa a apreensão intelectual da verdade.


Supõe um sujeito e um objeto; um sujeito inteligente que apreende, e
algo verdadeiro que é apreendido.
Pelo que a nós concerne, o conhecimento é ou intuitivo ou
discursivo. Nossos sentidos nos dão conhecimento imediato de seus
objetos apropriados; o entendimento percebe verdades primárias de
maneira intuitiva; nossa natureza moral e estética nos dá um
conhecimento imediato de coisas boas ou más, e belas ou deformadas.
Mas a maior parte de nosso conhecimento é derivado ab extra, por
instrução, observação, comparação, dedução, etc. Em todos os casos têm
a distinção entre a mente que percebe e o objeto que é percebido.
Sendo esta a natureza do conhecimento, pode haver conhecimento
em Deus? Pode haver esta distinção entre sujeito e objeto num Ser
absoluto e infinito? Não só estão dispostos os ímpios e os mundanos a
pensar que Deus não pode conhecer; que ou Ele é muito sublime para
dedicar-se a conhecer as coisas terrenas, ou que é impossível inclusive
para uma mente infinita abranger o universo e todas as suas perpétuas
mudanças em sua visão mental, mas a possibilidade do conhecimento, no
sentido comum e próprio da palavra, é-lhe expressamente negada a Deus
por uma grande classe de filósofos, e virtualmente inclusive por muitos
teólogos de grande projeção na história da Igreja.

A teoria panteísta impede a possibilidade de conhecimento


de Deus
1. Como, segundo a teoria panteísta, o universo é a forma da
existência de Deus, como o infinito chega à consciência e à vida
inteligente só no finito, não há nem pode haver conhecimento no infinito
diferente do finito. Deus não vive mais que na medida em que os seres
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 536
finitos vive, pensa e sabe somente no que pensam e sabem. A onisciência
é só a soma ou agregado da inteligência das formas transitórias dos seres
finitos. Tudo isto, ainda quando Hamilton e Mansel admitem, deriva-se
necessariamente da ideia de um Ser absoluto que se opõe à possibilidade
de tais condições ou relações como estão envoltas na consciência ou
inteligência. Portanto diz Strauss: 262 “Não em Si mesmo, mas nas
inteligências finitas é Deus onisciente, que em conjunto constituem a
plenitude e integridade de todas as possíveis formas ou graus de
conhecimento.” E Espinoza diz: 263 “Intellectus et voluntas, qui Dei
essentiam constituerent, a nostro intellectu et voluntate toto coelo differe
deberent, nec in ulla re, præterquam in nomine, convenire possent; non
aliter scilicet, quam inter se conveniunt canis, signum coeleste, et canis,
animal latrans.” Este tema foi considerado no capítulo sobre o
panteísmo.

Conhecimento e Poder não se devem confundir.


2. A possibilidade de um conhecimento em Deus é praticamente
negado por aqueles que negam toda distinção entre conhecimento e
poder. O conhecimento, que é o poder, deixa de ser conhecimento, e
portanto se a onisciência é só um nome diferente para a onipotência,
deixa de ser um atributo distintivo de Deus. Faz diferença pequena se
negamos expressamente uma dada perfeição a Deus, ou se assim o
determinamos que quanto a fazê-lo significar nada distintivo. É
profundamente lamentável que não só os Pais, mas também os teólogos
luteranos e reformados, depois de renunciar à autoridade dos
escolásticos, quase imediatamente se renderam a suas especulações. Em
lugar de determinar a natureza dos atributos divinos com base nas
representações da Escritura e da constituição do homem como imagem
de Deus, e das necessidades de nossa natureza moral e religiosa,

262
Dogmatik, i. p. 575.
263
Ethices, I. xvii. Scholium, edit. Jena, 1803, vol. ii. p. 53.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 537
deixaram-se ser controlados por especulações a priori quanto à natureza
do infinito e absoluto. Ainda Agostinho, como antes se indicou, diz:
“Nos ista, quæ fecisti videmus, quia sunt: tu autem quia vides ea,
sunt.” 264 E Escoto Erígena diz: 265 “Voluntas illius et visio et essentia
anum est.” 266 . . . . “Visio Dei totius universitatis est conditio. Non enim
aliud est ei videre, aliud facere; sed visio illius voluntas ejus est, et
voluntas operatio.” Tomás de Aquino também diz: 267 “Deus per
intellectum suum causat res, cum suum esse sit suum intelligere. Unde
necesse est, quod sua scientia sit causa rerum.”
Os teólogos luteranos e reformados representam a Deus como
simplicissima simplicitas, que não admite nenhuma distinção entre a
faculdade e o ato, ou entre um e outro atributo. Assim, Gerhard diz:
“Deus est ipsum esse subsistens, omnibus modis indeterminatum.” 268
“Solus Deus summe simplex est, ut nec actus et potentiæ, nec esse et
essentiæ compositio ipsi competat.” 269 “Essentia, bonitas, potentia,
sapientia, justitia, et reliqua attributa omnia sunt in Deo realiter
unum.” 270 Ele também diz: “In Deo idem est esse et intelligere et velle.”
De la misma manera el teólogo reformado Heidegger dice 271 : “Voluntas
ab intellectu non differt, quia intelligendo vult et volendo intelligit.
Intelligere et velle ejus idemque perpetuus indivisus actus.” Isto não
significa simplesmente que num ser inteligente, cada ato da vontade é
um ato inteligente. Ele sabe que enquanto que ele quer, e sabe o que
quer. O significado é que conhecimento e poder em Deus são idênticos.
Conhecer uma coisa, e fazê-la, são o mesmo ato indivisível e perpétuo.
Disto poderia parecer lógico que, como Deus conhece desde a eternidade

264
Confessiones, XIII. xxxviii. 53, edit. Benedictines, vol. I, p. 410, b.
265
De Divisione Naturæ, III, 17, p. 235.
266
Ibid. 29, p. 264.
267
Summa, I. xiv. i, edit. Cologne, 1640, p. 36.
268
Tom. I. loc. III. cap. VI. § 43, p. 106, edit. Tübingen, 1762.
269
Ibid. cap. x. § 80, p. 119.
270
Ibid. chap. vii. § 47, p. 108.
271
Corpus Theologiæ Christiane Tiguri, 1732.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 538
Ele cria desde a eternidade, e que “tudo o que Ele conhece, é.”
Chegamos assim, por estas especulações, na postura panteísta da
natureza de Deus e de Sua relação com o mundo.
Este modo de representação se desenvolve ainda mais pelos
modernos teólogos filosóficos. Com Schleiermacher, todos os atributos
de Deus são praticamente fundidos na ideia de causalidade. Para ele
Deus é ens summum prima causa. 272 Ele diz que pensamento e vontade
de Deus são o mesmo, e que sua onipotência e onisciência são idênticas.
Quando dizemos que Ele é onipotente, só significa que Ele é a causa de
tudo o que é. E quando dizemos que Ele é onisciente, só significa que
Ele é uma causa inteligente. Seu poder e conhecimento se limitam ao
verdadeiro. Ele não é nada, antes, não é o objeto nem de conhecimento
nem de poder. “Gott,” diz Schleiermacher, “weiss Alles was ist; und
Alles ist, was Gott weiss und dieses beides ist nicht zweierlei sondern
einerlei, weil sein Wissen und sein allmächtiges Wollen eines und
dasselbe ist,” quer dizer, Deus conhece tudo o que é, e tudo é o que Deus
conhece. Deus, portanto, limita-se ao mundo, que é o fenômeno do qual
Ele é a substância.
Outro ponto de vista filosófico deste assunto, aprovado inclusive
por aqueles que repudiam o sistema panteísta e sustentam que Deus e o
mundo são distintos, é que como Deus é imanente no mundo, não há nEle
nenhuma diferença entre a autoconsciência e o mundo – consciência,
como eles dizem, quer dizer, entre o conhecimento de Deus de Si mesmo
e Seu conhecimento do mundo. Portanto, definem a onisciência dizendo:
“Insofern Gott gedacht wird als die Welt mit seinem Bewusstseyn
umfassend, nennen wir ihn den Allwissenden.” 273 Quer dizer, “Até onde
imaginamos a Deus como abraçando o mundo em sua consciência,
chamamo-lo onisciente.” Seja qual for o idioma poderia significar para

272
Christliche Glabue, I. § 55. Werke, edit. Berlin, 1842, vol. III. p. 295.
273
Bruch, Die Lehre von den göttlichen Eigenschaften, p. 162.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 539
os que o utilizam, para a mente comum que transmite a ideia repugnante
que todos os pecados dos homens entram na consciência de Deus.

A doutrina da Escritura a respeito deste extremo.


O ensino da Escritura a respeito disto, que distingue os atributos de
Deus como distintos, e assume que o conhecimento nEle, em Sua
natureza essencial, é o que o conhecimento é em nós, não entra em
conflito com a unidade e simplicidade de Deus como ser espiritual. Há
um sentido em que o conhecimento e o poder, o intelecto e a vontade,
podem ser considerados como idênticos no homem. Não são substâncias
diferentes. São diferentes modos nos que se manifestam a vida ou
atividade da alma. Assim em Deus quando O concebemos como espírito,
não pensamos nEle como um ser composto, mas sim como manifestando
Sua infinita vida e atividade, conhecendo, querendo e fazendo. Assim, o
que temos que reter, se queremos reter a Deus, é que o conhecimento em
Deus é conhecimento, e não poder ou eternidade; isto é o que o
conhecimento é em nós, não certamente em seus modos e objetos, mas
em sua natureza essencial. Temos que eliminar de nossas concepções dos
atributos divinos todas as limitações e imperfeições que pertencem aos
atributos correspondentes em nós; mas não devemos destruir sua
natureza. E na determinação do que é e do que não é consistente com a
natureza de Deus como um ser imensamente perfeito, devemos ser
controlados pelos ensinos das Escrituras, e pelas necessidades (ou leis)
de nossa natureza moral e religiosa, e não por nossos conceitos
especulativos do Infinito e do Absoluto. Assim, Deus pode conhecer e
conhece no sentido normal e próprio da palavra. Ele é um olho sempre
presente, perante o qual todas as coisas são perfeitamente manifestas.
«Todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem
temos de prestar contas» (Hb 4:13). «As trevas e a luz são a mesma
coisa» (Sl 139:12). «O que fez o ouvido, acaso, não ouvirá? E o que
formou os olhos será que não enxerga?» (Sl 94:9). «SENHOR, tu me
sondas e me conheces. Sabes quando me assento e quando me levanto;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 540
de longe penetras os meus pensamentos» (Sl 139:1, 2). «Os olhos do
SENHOR estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons» (Pv
15:3). «O além e o abismo estão descobertos perante o SENHOR; quanto
mais o coração dos filhos dos homens!» (Pv 15:11). «Grande é o Senhor
nosso e mui poderoso; o seu entendimento não se pode medir» (Sl
147:5). «Ó casa de Israel, ... quanto às coisas que vos surgem à mente, eu
as conheço» (Ez 11:5). «Diz o Senhor, que faz estas coisas conhecidas
desde séculos» (At 15:18). «Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão
todos contados» (Mt 10:30, RC). Este conhecimento de Deus não só
abrange tudo, mas também é intuitivo e imutável. Ele conhece todas as
coisas como são, o ser como ser, os fenômenos como fenômenos, o
possível como possível, o real como real, o necessário como necessário,
o livre como livre, o passado como passado, o presente como presente, o
futuro como futuro. Embora todas as coisas estão sempre apresente
diante dEle, vê-as entretanto como sucessivas no tempo. A vasta
procissão de acontecimentos, pensamentos, sentimentos e ações se
levanta aberta diante de Sua vista.
Este conhecimento infinito de Deus não é só clara e constantemente
declarado na Escritura, mas também é evidentemente incluído na ideia
de um ser absolutamente perfeito. Tal ser não pode ignorar nada; Seu
conhecimento não pode nem aumentar nem diminuir. A onisciência de
Deus segue também Sua onipresença. Como Deus enche os céus e a
terra, todas as coisas têm lugar em Sua presença. Ele conhece nossos
pensamentos muito melhor que nós mesmos. Esta plenitude do
conhecimento divino dá-se por sentado em todos os atos de culto.
Oramos a um Deus que, cremos nós, conhece nosso estado e
necessidades, que ouve o que dizemos, que pode suprir todas as nossas
necessidades. A não ser que Deus era assim onisciente, Ele não poderia
julgar o mundo com justiça. Assim, a fé neste atributo em sua
integridade é essencial inclusive para a religião natural.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 541
B. Os objetos do conhecimento divino.

São várias as distinções que os teólogos fazem quanto aos objetos


do conhecimento divino.
1. De Deus se prega que se conhece si mesmo e a todas as coisas
extrínsecas a ele mesmo. Este é o fundamento da distinção entre a
scientia necessaria e a scientia libera. Deus se conhece si mesmo pela
necessidade de Sua natureza; mas como todo o extrínseco a si mesmo
depende de sua vontade para sua existência ou acontecimento, seu
conhecimento de cada coisa como um acontecimento real depende de
sua vontade, e neste sentido é livre. Sendo que a criação não era
necessária. dependia da vontade de Deus que o universo, como objeto de
conhecimento, existisse ou não. Esta distinção não é de grande
importância. E é suscetível à objeção de que faz dependente o
conhecimento de Deus. Sendo a causa de todas as coisas, Deus conhece
tudo ao conhecer-se a Si mesmo; todas as coisas possíveis, pelo
conhecimento de Seu poder, e todas as coisas reais, pelo conhecimento
de Seus próprios propósitos.
2. A distinção entre o possível e o real é a base da distinção entre o
conhecimento da simples inteligência e o conhecimento da visão. O
primeiro se baseia no poder de Deus, e o segundo em Sua vontade. Isto
só significa que, em virtude de sua inteligência onisciente, Ele conhece
tudo aquilo que o poder infinito pode levar a cabo; e que pela
consciência de Seus próprios propósitos Ele sabe o que determinou levar
a cabo ou permitir que aconteça. Esta é uma distinção ignorada pelos
modernos teólogos filosóficos. Segundo a filosofia deles nada é possível
senão o real. Tudo o que pode ser ou é, ou será. Isto segue da ideia de
Deus como mera causa. [Neste sistema filosófico] Ele produz tudo o que
pode ser, e não há nEle causalidade para o que não existe.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 542
O Atual e o Possível.
Parece ser uma inconsistência nos teólogos ortodoxos que negam a
distinção em Deus entre conhecimento e poder, a admitir, como todos
fazem, a distinção entre o real e o possível. Porque se Deus cria por
pensar ou saber, se nele, como dizem, intelligere et facere idem est,
então tudo o que Ele sabe deve ser, e deve ser tanto quanto Ele sabe ou
pensa que é, quer dizer, desde a eternidade. Se, não obstante,
conservamos a ideia bíblica de Deus como um espírito, que pode fazer
mais que o faz, se atribuirmos a Ele o que sabemos que é uma perfeição
em nós mesmos, ou seja, que nosso poder excede nossos atos, que uma
faculdade e o exercício dessa faculdade não são idênticos, então
podemos entender como Deus pode conhecer o possível assim como o
atual. Deus não se limita ao universo, que necessariamente é finito. Deus
não se esgotou em Si mesmo em determinar fazer com que a ordem atual
de coisas sejam.

C. Scientia Media. *

Intermediário entre as coisas possíveis e reais, alguns teólogos


assumem uma terceira classe de eventos, ou seja, o futuro condicional.
Eles na realidade não se produzem, mas ocorreriam desde que algo mais
ocorresse. Se Cristo viesse mil anos antes do dia de seu advento real,
toda a história do mundo teria sido diferente. Este é um modo popular de
considerar a concatenação dos acontecimentos. Diz-se constantemente,
que se Cromwell tivesse sido autorizado a sair da Inglaterra, ou, se
Napoleão não tivesse podido escapar da ilha de Elba, o estado da Europa
teria sido muito diferente do que é na atualidade. Deus, supõe-se, sabe o
que teria sido a sequência de eventos em qualquer ou em todas as
hipótese possíveis. Portanto, diz-se que deve haver em Deus, além do
*
Scientia Media (Latim, conhecimento mediato). Um termo cunhado por L. Molina em sua intenção
de reconciliar a presciência de Deus com o livre-arbítrio humano. (N. do T.; traduzido de:
http://www.encyclopedia.com/doc/1O95-scientiamedia.html .
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 543
conhecimento de simples inteligência com que Ele conhece o possível, e
o conhecimento da visão pela qual Ele conhece o real, uma scientia
media, pela qual Ele conhece o futuro condicional.
As ilustrações desta maneira de conhecimento, pensa-se,
encontram-se na Escritura. Em 1 Samuel 23.11, diz-se que Davi
perguntou ao Senhor se os homens de Queila entregá-lo-iam, em caso de
que seguisse sendo um deles, em mãos de Saul, e suas respostas foi que
o fariam. Neste caso, argumenta-se, o evento não era meramente
possível, mas sim condicionalmente certo. Se Davi permanecesse em
Queila, sem dúvida teria sido entregue. Assim disse o Senhor, que se
suas poderosas obras que se tinham feito em Tiro e Sidom, o povo dessas
cidades ter-se-iam arrependido. Também neste caso se declara o que
teria sucedido, se um pouco diferente tivesse passado.

A origem desta distinção.


Esta distinção se introduziu na teologia dos teólogos jesuítas
Fonseca e Molina; por este último em sua obra “De Concordia
Providentiæ et Gratiæ Divinæ cum Libero Arbitrio Hominis.” Seu
objetivo era conciliar a predestinação de Deus com a liberdade do
homem, e explicar a razão pela qual uns e não outros, foram escolhidos
para a vida eterna. Deus previu que se arrependem e creem, se tinham
recebido o conhecimento do Evangelho e o dom do Espírito, e estes Ele
escolheu para a salvação. Esta teoria de uma scientia media foi, para um
propósito similar, adotada por teólogos luteranos e remonstrantes, mas
recebeu energicamente oposição pelos reformados ou agostinianos.
(1.) Devido ao fato de que todos os eventos se incluem nas
categorias do real e o possível, e, portanto, não há lugar para uma classe
como eventos condicionalmente futuros. Só é possível, e não certo, como
os homens agiriam em determinadas condições, se sua conduta não está
predeterminada, quer seja pelo propósito de Deus, ou por sua própria
decisão já formada. Além disso, é o princípio fundamental dos teólogos
que adotam esta teoria, ou ao menos de muitos deles, que um ato livre de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 544
sua própria natureza deve ser incerto quanto a sua ocorrência. Um agente
livre, diz-se, sempre pode agir contra qualquer quantidade de influência
exercida sobre ele, em consonância com sua agencia livre. Mas se os
atos livres devem ser incertos, não se pode prever como certos em
qualquer condição.
(2.) O futuro dos acontecimentos, segundo as Escrituras, depende
da predestinação de Deus, que preordena o que deve passar. Não há
nenhuma certeza, portanto, que não depende do propósito divino. (3.) O
tipo de conhecimento que esta teoria supõe não pode pertencer a Deus,
porque é dedutivo. Deduz-se da consideração das segundas causas e sua
influência, e portanto é inconsistente com a perfeição de Deus, cujo
conhecimento não é discursivo, mas sim independente e intuitivo.
(4.) Esta teoria é incompatível com a doutrina da Escritura do
governo providencial de Deus, visto que supõe que os atos livres dos
homens não estão sob o Seu controle.
(5.) É contrário à doutrina da Escritura, na medida em que supõe
que a eleição para a salvação depende da previsão da fé e do
arrependimento, enquanto que depende da boa vontade de Deus.
(6.) Os exemplos citados da Bíblia não provam que existe uma
scientia media em Deus. A resposta de Deus a Davi, sobre os homens de
Queila, era simplesmente uma revelação do propósito que se tinha
formado já. Nossa declaração do Senhor a respeito de Tiro e Sidom era
mais que um modo figurativo de expor o fato de que os homens de sua
geração eram mais endurecidos que os habitantes daquelas cidades
antigas. Não há dúvida de que Deus conhece todos os eventos em todas
as combinações possíveis e as conexões, mas como nada é seguro, senão
o que ordena levar a cabo ou permitir, não pode haver uma classe de
eventos condicionalmente futuros, e portanto não pode haver nenhuma
scientia media. Por futuro condicionalmente se entende o que está
suspenso numa condição não determinada por Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 545
D. Presciência.

Entre os objetos do conhecimento divino estão as ações livres dos


homens. As Escrituras ensinam abundantemente que tais ações são
conhecidas de antemão. Este conhecimento está envolto na predição de
acontecimentos que ou concernem às livres acione dos homens, ou
dependem delas. Se Deus ignorar como vão agir os agentes livres, Seu
conhecimento deve ser limitado, deve estar aumentando continuamente,
ou que é totalmente inconsistente com a verdadeira ideia da Sua
natureza. Também Seu governo do mundo, neste caso, deve ser precário,
dependendo como dependeria em tal caso da conduta imprevisível dos
homens. Por isso, a Igreja, em obediência às Escrituras, sempre, quase de
maneira unânime, professou fé no prévio conhecimento da parte de Deus
das ações livres de Suas criaturas.
Entretanto, os Socinianos e alguns Remonstrantes, incapazes de
conciliar este prévio conhecimento com a liberdade humana, negam que
os atos livres podem ser conhecidos antecipadamente. Como a
onipotência de Deus é Sua capacidade para fazer todo o possível, assim
Sua onisciência seria Seu conhecimento de todo o cognoscível. Mas
como os atos livres são, por sua natureza, incertos e podem ocorrer ou
não, não podem ser conhecidos antes que ocorram. Este é o argumento
de Socínio. Toda esta dificuldade surge da hipótese de que a
contingência é essencial para a livre agencia. Se um fato pode ser certo
quanto a seu acontecimento, e entretanto livre quanto ao modo de seu
acontecimento, desvanece-se a dificuldade. Que os atos livres podem ser
absolutamente certos é coisa clara, porque em grande multidão de casos
foram preditos. Era certo que os atos de Cristo seriam santos, e contudo
foram livres. A continuada santidade dos santos no céu é certa, mas são
perfeitamente livres. O conhecimento antecipado de Deus é inconsistente
com uma teoria falsa da livre atividade, mas não com a verdadeira
doutrina a respeito do mesmo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 546
Depois de Agostinho, a forma habitual de encontrar a dificuldade
de conciliar a presciência com a liberdade, foi representá-la como
meramente subjetiva. A distinção entre o conhecimento e a presciência
está só em nós. Não há tal diferença em Deus. “Quid est præscientia,”
pergunta Agostinho, “nisi scientia futurorum? Quid autem futurum est
Deo, qui omnia supergreditur tempora? Si enim scientia Dei res ipsas
habet, non sunt ei futuræ, sed præsentes, ac per hoc non jam præscientia,
sed tantum scientia dicipotest.” 274

E. A Sabedoria de Deus.

A sabedoria e o conhecimento estão intimamente relacionados. O


primeiro se manifesta na seleção de fins apropriados e dos meios
apropriados para o cumprimento destes fins. E assim como há abundante
evidência de desígnio nas obras da natureza, assim todas as obras de
Deus declaram Sua sabedoria. Mostram, dos pequenos aos maiores, a
mais maravilhosa adaptação dos meios para o cumprimento da sublime
finalidade do bem de Suas criaturas e a manifestação de Sua própria
glória. Assim também, em todo o curso da história vemos evidência do
poder controlador de Deus, fazendo com que todas as coisas cooperem
para os melhores interesses de Seu povo e a promoção de Seu reino
sobre a terra. Entretanto, é na obra da redenção que este atributo divino
se revela de maneira especial. É pela Igreja que Deus determinou
manifestar aos principados e potestades, por todos os séculos, Sua
multiforme sabedoria.
Naturalmente, os que negam as causas finais negam que exista
algum atributo de sabedoria em Deus. Também se diz que o uso de
meios para alcançar um fim é uma manifestação de fraqueza. Ademais,
insiste-se que é depreciativo para Deus, porquanto supõe que Ele

274
De Diversis Quæstionibus ad Simplicianum, II. ii. 2, edit. Benedictines, vol. vi. p. 195, a. Compare
também que disse ele a respeito deste tema, De Civitate Dei, XI. xxi.: Ibid. vol. vii. p. 461.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 547
necessita ou deseja o que não possui. Não é assim que falam as
Escrituras. Somos chamados a adorar «ao único sábio Deus». «Que
variedade, SENHOR, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste», é
a exclamação do salmista (Sl 104:24). E contemplando a obra da
redenção, o Apóstolo exclama: «Ó profundidade da riqueza, tanto da
sabedoria como do conhecimento de Deus!» (Rm 11:33).

§ 9. A vontade de Deus

A. Significado do termo.

Se Deus é um espírito, Ele tem que possuir todos os atributos


essenciais de um espírito. Estes atributos, segundo a classificação
adotada pelos filósofos e teólogos antigos, caem sob os cabeçalhos de
inteligência e vontade. Ao primeiro referem o conhecimento e a
sabedoria; ao segundo, o poder da autodeterminação, eficiência (no caso
de Deus, onipotência) e todos os atributos morais. Neste sentido amplo
da palavra, a vontade de Deus inclui: (1) A vontade no sentido estrito da
palavra. (2) Seu poder. (3) Seu amor e todas as Suas perfeições morais:
Em nossos dias, geralmente embora nem sempre, a palavra «vontade» se
limita à faculdade da autodeterminação. E inclusive os teólogos antigos,
ao tratar da vontade de Deus, tratam só de Seus decretos ou propósitos. E
inclusive os teólogos antigos no tratamento da vontade de Deus só tratam
de Seus decretos ou propósitos. Em suas definições, entretanto, tomam a
palavra em seu sentido amplo. Assim Calovius 275 diz: “Voluntas Dei est,
qua Deus tendit in bonum ab intellectu cognitum.” E Quenstedt o define
como “ipsa Dei essentia cum, connotatione inclinationis ad bonum
concepta.” 276 Turrettin diz, o objeto do intelecto é o verdadeiro, o objeto
da vontade, o bem. Por isso, diz-se, que Deus quer a Si mesmo

275
Systema Locurum Theologicorum, tom. ii. cap. 9; Wittenburg, 1655, p. 439.
276
Theologia, I. viii. § 1, xxvii. p. 418.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 548
necessariamente, e todas as coisas fora de Si mesmo em liberdade.
Embora a palavra parece ser tomada em sentidos diferentes na mesma
frase, a mesma vontade de Deus significa que toma suficiência em sua
própria excelência infinita: suas disposições fora de Si mesmo, significa
Seu propósito que deveria existir. Embora os teólogos começam com a
definição ampla do termo, contudo, no prosseguimento do assunto, eles
consideram a vontade simplesmente como a faculdade da
autodeterminação, e as próprias determinações. Quer dizer, o poder de
vontade, e volições ou propósitos. É muito melhor confinar a palavra a
seu sentido estrito, e não fazer com que inclua todas as formas de
sentimento envolvendo aprovação ou deleite.
Assim, Deus, como espírito, é um agente voluntário. Estamos
autorizados a atribuir a Ele capacidade de autodeterminação. Isto a
Bíblia o faz a em todas as partes. Do começo ao fim, fala da vontade de
Deus, de Seus decretos, propósitos, conselhos e mandamentos. A
vontade é não só um atributo essencial de nosso ser espiritual, mas
também é uma condição necessária de nossa personalidade. Sem o poder
de autodeterminação racional seríamos tanto uma mera força como a
eletricidade, o magnetismo, ou o princípio da vida vegetal. Por isso, seria
degradar a Deus por debaixo da esfera do ser que nós mesmos
ocupamos, como criaturas racionais, se Lhe negássemos a capacidade de
autodeterminação; de agir ou de não agir, segundo o Seu beneplácito.

B. A liberdade da Vontade Divina.

A vontade de Deus é livre no mais elevado sentido da palavra. Diz-


se de um agente que é livre (1) Quando tem liberdade de agir ou não,
segundo seu beneplácito. Isto é liberdade de ação. (2) É livre quanto a
suas volições, quando estão determinadas por seu próprio sentimento do
que é sábio, reto ou desejável.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 549
A liberdade é mais que espontaneidade. Os afetos são espontâneos
mas não livres. O amor e o ódio, o deleite e o aborrecimento não
dependem da vontade.
Deus é livre em Suas ações, como em criar e em preservar porque
estas ações não surgem da necessidade de Sua natureza. Ele era livre
para criar ou para não criar; para continuar o universo em existência ou
para fazer com que cessasse. Ele é também livre na manutenção de Suas
promessas porque Seu propósito de assim fazê-lo fica determinado por
Sua própria e infinita bondade. É certamente inconcebível que Deus vá
violar Sua palavra. Mas isto só demonstra que a certeza moral pode ser
tão inexorável como a necessidade.

C. A Vontade decretiva e preceptiva de Deus.

A vontade decretiva de Deus refere-se a Seus propósitos e se


relaciona com a futuridade dos acontecimentos. A vontade preceptiva
relaciona-se com a regra do dever para Suas criaturas racionais. Ele
decreta tudo aquilo que Se propõe levar a cabo ou permitir. Ele
prescreve, conforme a sua própria vontade, o que suas criaturas e
poderiam fazer ou abster-se de fazer. A vontade decretiva e preceptiva
de Deus nunca podem entrar em conflito. Deus nunca decreta fazer nem
leva a fazer a outros aquilo que proíbe. Pode, como vimos que faz,
decretar permitir o que proíbe. Permite aos homens que pequem, embora
o pecado está proibido. Isto é expresso de uma maneira mais escolástica
pelos teólogos dizendo: Uma vontade decretiva positiva não pode
consistir com uma vontade preceptiva negativa; isto é, Deus não pode
decretar fazer os homens pecar. Mas uma vontade decretiva negativa
pode consistir numa vontade preceptiva afirmativa; isto é, Deus pode
mandar os homens que se arrependam e que creiam, e entretanto, por
sábias razões, abster-se de lhes dar arrependimento.
A distinção entre voluntas beneplaciti et signi, visto que esses
termos são de uso comum, é a mesma que entre a vontade decretiva e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 550
preceptiva de Deus. Uma refere-se a Seus decretos, baseado em Sua boa
vontade e a outra a Suas ordens, baseada no que Ele aprova ou
desaprova.
Por vontade secreta de Deus se significam Seus propósitos como
ainda ocultos em Sua própria mente; por Sua vontade revelada, Seus
preceitos e propósitos, até onde foram dados a conhecer a Suas criaturas.

D. A Vontade antecedente e consequente.

Estes termos, tal como utilizada pelos agostinianos, fazem


referência à relação dos decretos um ao outro. Na ordem da natureza o
fim precede os meios, e o propósito do anterior é precedente ao propósito
do último. Assim, diz-se, que Deus por uma vontade antecedente,
determinou sobre a manifestação de Sua glória, e por uma vontade
consequente, determinou sobre a criação do mundo como um meio para
esse fim.
Estes termos se utilizam num sentido muito diferente pelos
luteranos e os remonstrantes. De acordo com seus pontos de vista, Deus
por uma vontade antecedente decidiu salvar a todos os homens; mas, em
previsão de que todos não se arrependem e creem, por uma vontade
posterior Ele determinou a salvar àqueles que previa que iam crer. Quer
dizer, Ele se propôs primeiro uma coisa e logo a outra.

E. A Vontade absoluta e condicional.

Estes termos, se forem utilizados pelos agostinianos, não têm


referência tanto aos propósitos de Deus, como quanto aos
acontecimentos que se decretam. O evento, mas não o propósito de
Deus, é condicional. Um homem colhe, se semear. É guardado, se crer.
Seu colher e a salvação são acontecimentos condicionais. Mas o
propósito de Deus é absoluto. Se Ele propuser que um homem colha, Ele
propõe que deve semear, e se Ele propuser que se salve, Ele propõe que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 551
tem que crer. Os anti-agostinianos, pelo contrário, referem-se aos
propósitos de Deus como condicionais. Ele propõe a salvação de um
homem, se ele crê. Mas se crer ou não, deixa-se indeterminável, de modo
que o propósito de Deus se suspende não numa condição sob o Seu
controle, ou, ao menos, indecisa. Um pai pode propor dar uma herança a
seu filho, se ele for obediente, mas se o filho cumprir o requisito é
indeterminável, e portanto o propósito do pai é indeciso. É, entretanto,
claramente inconsistente com a perfeição de Deus, que Ele quiser
primeiro uma coisa e logo outra, nem tampouco Seus propósitos
dependerão da incerteza da conduta ou eventos humanos. Estas são
questões, entretanto, que pertencem à consideração da doutrina dos
decretos. Mencionam-se aqui porque estas distinções produzem-se em
todos os debates relativos à Vontade Divina, com os quais o estudante de
teologia deve estar familiarizado.
Neste lugar, basta observando que a palavra grega θέλω, e o verbo
inglês correspondente, querer, às vezes expressam sentimentos, e às
vezes um propósito. Assim, em Mt. 27:43 [TB], as palavras εἰ θέλει
αὐτόν são traduzidos corretamente, “se lhe quer bem”. Comp. Sl. 22:8. É
neste sentido que se usa a palavra, quando se diz que Deus quer que
todos os homens sejam salvos. Não se pode dizer que tenta ou determina
sobre qualquer acontecimento que não deve suceder. Um juiz pode
querer a felicidade de um homem a quem condena à morte. Pode ser que
ele não queira que sofra, quando ele quer que sofra. A infelicidade destas
formas de expressão é que a palavra “querer” utiliza-se em diferentes
sentidos. Numa parte da frase significa desejo, e na outra propósito. É
perfeitamente coerente, portanto, que Deus, como um Ser benévolo, deve
desejar a felicidade de todos os homens, enquanto que Ele pretende
salvar só a Seu próprio povo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 552
F. A vontade de Deus como base da obrigação moral.

A questão a tratar aqui é se as coisas são boas ou ímpias


simplesmente porque Deus as manda ou as proíbe. Ou as manda ou
proíbe porque são boas ou ímpias por alguma outra razão que seu
vontade? Segundo alguns, a única razão pela que algo é bom, e por isso
obrigatória é que tende a promover a maior felicidade, ou o maior bem
do universo. Segundo outros, algo é bom se tender a promover nossa
sorte pessoal. E só por esta razão é obrigatório. Se o vício nos faz mais
felizes que a virtude, devemos ser obrigados a ser viciosos. É um modo
mais decoroso de expressar substancialmente a mesma teoria, por dizer
que o fundamento da obrigação moral é o que se refere à dignidade de
nossa própria natureza. Não há muita diferença, se nossa própria
dignidade de nossa própria felicidade, que estamos obrigados a
considerar. Em todo caso, é o eu a quem devemos toda nossa adesão.
Outros põem a base da obrigação moral na idoneidade das coisas, que
exaltam acima de Deus. Há, afirmam, uma diferença eterna e necessária
entre o bem e o mal, a que, conforme dizem, Deus está tão obrigado a
conformar-se como Suas criaturas racionais.
A doutrina comum dos cristãos a respeito disto é que a vontade de
Deus é a base última para a obrigação moral de todas as criaturas
racionais. Não se pode atribuir nenhuma razão mais elevada a respeito de
por que algo seja bom que o fato de que Deus o mande. Isto significa: (1)
Que a vontade divina é a única norma para decidir o que é o bem e o que
é o mal. (2) Que é Sua vontade a qual nos obriga, ou aquilo ao que
estamos obrigados a nos conformar. Pela palavra «vontade» não se
denota qualquer propósito arbitrário, de maneira que fosse concebível
que Deus queria tornar bem o mal e mal o bem. A vontade de Deus é a
expressão ou revelação de Sua natureza, ou está determinada por ela; de
maneira que Sua vontade, quanto a ser revelada, dá-nos a conhecer a que
demandam a infinita sabedoria e bondade. Às vezes as coisas são boas
simplesmente porque Deus as mandou; como a circuncisão e outras
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 553
observâncias rituais o eram para os judeus. Outras coisas são boas
devido à presente constituição das coisas que Deus ordenou, como os
deveres atinentes à propriedade, e as relações permanentes da sociedade.
Outras, por sua vez, são boas porque são demandadas pela imutável
excelência de Deus. Em todos os casos, não obstante, pelo que a nós
respeita, é Sua vontade a que nos obriga e que constitui a diferença entre
o bem e o mal; isto é, Sua vontade como a expressão de Sua infinita
perfeição. De maneira que a base última da obrigação moral é a natureza
de Deus.

§ 10. O poder de Deus

A. A natureza do poder, ou, A origem da ideia.

A ideia de poder nós a recebemos de nossa própria consciência. Isto


é, estamos conscientes da capacidade de produzir e efeitos. O poder no
homem está encerrado dentro de limites muito estreitos. Podemos mudar
a corrente de nossos pensamentos, ou fixar a atenção num objeto
particular, e podemos mover à vontade os músculos do corpo. Além
disto não pode ir nosso poder direto. É desta pequena medida de
eficiência que se derivam todas as acumulações de conhecimento
humano e todas as maravilhas de sua arte. São só nossos pensamentos,
volições e propósitos, junto com certos atos do corpo, que estão
imediatamente sujeitos à vontade. Para todos os outros efeitos temos que
nos valer do uso de meios. Não podemos dar existência a um livro pela
vontade, nem a um quadro nem a uma casa. A produção destes efeitos
demanda um trabalho prolongado e o emprego de diferentes meios.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 554
B. Onipotência.

É pela eliminação do poder, como existe em nós, que alcançamos a


ideia da onipotência de Deus. Mas nem por isso perdemos a ideia em si.
O poder onipotente não deixa de ser poder. Nós podemos fazer muito
pouco. Deus pode fazer o que quiser. Nós, dentro de limites muito
estreitos, temos que empregar meios para chegar a nossos fins. Para
Deus, os meios são desnecessários. Ele quer, e é feito. Ele disse: Haja luz
e houve luz. Ele, por uma volição, criou os céus e a terra. À volição de
Cristo os ventos cessaram, e houve grande calma. Por um ato de vontade,
Ele curava os doentes, abria os olhos dos cegos, e ressuscitava os mortos.
Esta simples ideia da onipotência de Deus, o que Ele pode fazer, sem
esforço algum, por uma volição, tudo o que quer, é a mais elevada ideia
de poder que se possa conceber, e é a que se apresenta claramente nas
Escrituras. Em Gn 17:1 diz-se: «Eu sou o Deus Todo-poderoso». O
profeta Jeremias exclama: «Ah, Soberano Senhor, tu fizeste os céus e a
terra pelo teu grande poder e por teu braço estendido. Nada é difícil
demais para ti» (Jr 32:17, NVI). De Deus se declara que criou todas as
coisas com o alento de Sua boca, e que sustenta o universo por Sua
palavra. Nosso Senhor disse: «Para Deus tudo é possível» (Mt 19:26).
Muito antes, o Salmista havia dito: «No céu está o nosso Deus e tudo faz
como lhe agrada» (Sl 115:3). E também: «O Senhor faz tudo o que lhe
agrada, nos céus e na terra, nos mares e em todas as suas profundezas»
(Sl 135:6, NVI). O Senhor Deus Todo-Poderoso reina, e faz Seu
beneplácito entre as hostes dos céus e os moradores da terra: este é o
tributo de adoração que as Escrituras em todo lugar dão a Deus, e a
verdade que em todas as partes apresentam como base da confiança para
o Seu povo. Isto é tudo o que sabemos e tudo o que precisamos saber a
respeito desta questão; e aqui poderíamos ficamos satisfeitos, se não
fosse pelos vários intentos de um número de teólogos para conciliar estas
simples e sublimes verdades da Bíblia com suas especulações filosóficas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 555
C. A negação do poder.

A escola sensorial de filósofos nega que haja alguma eficiência real


ou poder em existência. O princípio da mesma é que todo conhecimento
se deriva dos sentidos, e, por conseguinte, que como não podemos
conhecer nada que os sentidos não detectem, é antifilosófico e irrazoável
admitir a existência de nada mais. Nossos sentidos não captam a
eficiência. Não pode ser sentida, vista, ouvida nem provada. Por isso,
não existe. Uma causa não é aquilo à qual se deve um efeito, mas
simplesmente aquilo que uniformemente o precede. Tudo o que podemos
saber e tudo o que podemos crer racionalmente são os fatos que afetam a
nossos sentidos, e a ordem de sua sequência, ordem que, ao ser uniforme
e necessário, tem o caráter de lei. Esta é a doutrina de causação proposta
por Hume, Kant, Brown, Mill, e virtualmente pelo Sir William
Hamilton; e este é o princípio subjacente à Filosofia Positiva de Comte.
E naturalmente, se não existe o poder, não existe em Deus o atributo da
onipotência.
A respeito desta teoria será suficiente dizer: (1) Que é contrária à
consciência de todas as pessoas. Estamos conscientes do poder, isto é, da
capacidade de produzir efeitos. E a consciência tem a mesma autoridade,
para dizer pouco, quando trata do interior que quando trata do que afeta
os sentidos. Não estamos mais seguros de que nossa mão se move que de
que temos poder para movê-la, ou para não movê-la, à vontade. (2) Esta
teoria contradiz as convicções intuitivas e indestrutíveis da mente
humana. Ninguém crê, nem pode crer de maneira real e permanente, que
nenhuma mudança ou efeito possa ter lugar sem causa eficiente. O fato
de que um evento siga a outro não é a realidade última. É intuitivamente
certo que tem que haver uma razão adequada para esta sequência. Este é
o juízo universal da humanidade. (3) O argumento, se é válido contra a
realidade do poder, é válido contra a existência de substância, de mente e
de Deus. Isto é admitido pelos proponentes consequentes do princípio
sob exame. A substância, a mente e Deus estão tão pouco sujeitos a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 556
detecção que os sentidos como o poder; e por isso, se não se deve admitir
nada mais que com base no testemunho dos sentidos, deve-se negar a
existência de substância, da mente e de Deus. Assim, este princípio não
pode ser admitido sem fazer violência a toda nossa natureza racional,
moral e religiosa. Em outras palavras, não pode ser admitido
absolutamente; porque os homens não podem, de maneira permanente,
nem crer nem agir contrário às leis de sua natureza.

D. Poder absoluto

Por poder absoluto, tal como o entendiam os escolásticos e alguns


dos filósofos posteriores, denota-se um poder livre de todos os freios da
razão e da moralidade. Segundo esta doutrina, ficam dentro do domínio
do poder divino contradições, absurdos e imoralidades. Inclusive chega-
se a dizer que Deus pode aniquilar-se a mesmo. Sobre este assunto
Descarte diz, Deus “non voluit tres angulos trianguli æquales esse
duobus rectis, quia cognovit aliter fieri non posse. Sed contra . . . . quia
voluit tres angulos trianguli necessario æquales esse duobus rectis,
idcirco jam hoc verum est, et fieri aliter non potest, atque ita de
reliquis.” 277 Esta “summa indifferentia,” ele diz, “in Deo, summum est
ejus omnipotentiæ argumentam.” 278
Entretanto, está comprometido na mesma ideia de poder que tem
referência à produção de efeitos possíveis. Não é uma limitação ao poder
que não possa fazer o impossível, como tampouco é limitação da razão
que não possa incluir o absurdo, ou da bondade infinita que não possa
fazer o mal. É contrário a sua natureza. Em lugar de exaltar, degrada a
Deus supor que possa ser distinto do que é, ou que possa agir contra sua
infinita sabedoria e amor. Assim, quando se diz que Deus é onipotente,
porque pode fazer tudo o que Ele quer, deve-se determinar que Sua

277
Meditationes. Responsiones Sextæ, vi. edit. Amsterdam, 1685, p. 160.
278
Ibid. p. 181.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 557
vontade fica determinada por Sua natureza. Certamente, não é uma
limitação da perfeição dizer que não pode ser imperfeito.
Com esta perspectiva da onipotência de Deus concorda o grande
corpo de teólogos, especialmente entre os Reformados. Assim diz
Zuínglio 279 : “Summa potentia non est nisi omnia possit, quantum ad
legitimum posse attinet: nam malum facere aut se ipsum deponere aut in
se converti hostiliter aut sibi ipsi contrarium esse posse impotentia est,
non potentia.” Musculus:280 “Deus omnipotens, quia potest quæ vult,
quæque ejus veritati, justitiæ conveniunt.” Keckermann, 281 “Absolute
possibilia sunt, quæ nec Dei naturæ, nec aliarum rerum extra Deum
essentiæ contradicunt.” Esta doutrina escolástica de poder absoluto
Calvino 282 estigmatiza como profana, “quod . . . . merito detestabile
nobis esse debet.”

“Potentia Absoluta” e “Potentia Ordinata”


Num sentido do termo se reconhece geralmente o poder absoluto
entre os teólogos. Faz-se usualmente uma distinção entre a potentia
absoluta e a potentia ordinata de Deus. Pelo último se significa a
eficiência de Deus, segundo exercitada uniformemente na operação
ordenada de segundas causas. Pelo primeiro, sua eficiência exercida sem
a intervenção de segundas causas. A criação, os milagres, a revelação
imediata a inspiração e a regeneração, devem atribuir-se a potentia
absoluta de Deus; todas as Suas obras de providência a sua potentia
ordinata.
Esta distinção é importante, porquanto estabelece o limite entre o
natural e o sobrenatural, entre o devido à operação das causas naturais,
sustentadas e conduzidas pela eficiência providencial de Deus, e o que se
deve ao exercício imediato de Seu poder. Esta distinção é certamente

279
De Providentia Dei, Epilogus. Opera, edit. Turici, 1841, vol. iv. p. 138.
280
See Loci Communes Theologici, edit. Basle, 1573, pp. 402-408.
281
Systema Theologiæ, lib. I. cap. v. 4; edit. Hanoviæ, 1603, p. 107.
282
Institutio, III. xxiii. 2, edit. Berlin, 1834, part II. p. 148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 558
negada pela moderna filosofia. [Segundo ela] Deus, ao criar e sustentar o
mundo, Ele o faz como um todo. Nada está isolado. Não há nenhum ato
individual, mas antes, só uma eficiência geral da parte de Deus; e
consequentemente não se pode atribuir nenhum acontecimento particular
a Seu poder absoluto ou ação imediata. Tudo é natural. Não pode haver
milagres nem providência especial. 283

E. Não se devem confundir Vontade e Poder.

Outra perversão da doutrina da Escritura sobre este tema, que nega


qualquer distinção em Deus entre a vontade e o poder, ou faculdade e
ação. Diz-se que é antifilosófico dizer que Deus pode fazer qualquer
coisa. Usamos a palavra “pode” só em referência à dificuldade que é
preciso superar. Quando nada se interpõe no caminho, quando toda a
oposição é impedida, então já não dizemos: podemos. É, portanto,
inconsistente com a natureza de um Ser absoluto dizer que Ele pode
fazer isto ou aquilo. 284 Negou-se depois que vontade pode-se atribuir a
Deus, se se assume alguma diferença entre querer e fazer. A definição
comum da onipotência, Potest quod vult, deve ser rejeitada. Admite-se,
que a distinção entre vontade e poder é inevitável, se determinamos a
natureza de Deus da analogia de nossa constituição. Como vontade e
poder são distintos em nós, estamos dispostos a pensar que são diferentes
nEle. Mas este método para determinar os atributos de Deus dirige-se à
destruição da verdadeira ideia de um Ser absoluto. Em tal Ser, tal
distinção não pode ser admitida; e portanto, com relação a Deus não
pode haver distinção entre o real e o possível. Nada é possível, senão o
real, e tudo o que é possível converte-se em real. Strauss diz, 285 depois
de Schleiermacher, 286 que pela onipotência de Deus se entende “não só

283
Strauss, I, pág. 592. Schleiermacher, I. § 54, Werke, edición de Berlín, 1842, vol. III, pág. 285.
284
Bruch, p. 155.
285
Dogmatik, vol. i. p. 587.
286
Glaubenslehre, I. § 54.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 559
que tudo o que é tem sua causalidade em Deus, mas também tudo é e
sucede pelo que qualquer causalidade em Deus existe.” Bruch 287 diz,
que pela onipotência de Deus não se significava nada mais que Ele é a
base natural e a causa de todas as coisas. Ele cita Nitsch 288 como
dizendo que “A ideia da onipotência é a repetição e a aplicação da ideia
de Deus como criador do céu e a terra.” Nitsch, entretanto, não entende o
passo no sentido de pôr sobre ela, porque acrescenta, em sua nota
comentando sobre a declaração do Abelardo, “Deus non potest facere
aliquid præter ea quæ facit,” que, se isto significa que o presente esvazia
os recursos de Deus, tem que ser rejeitado. As palavras do Abelardo,
entretanto, expressam corretamente a doutrina da moderna escola alemã
dos teólogos sobre este tema.
A linguagem de Schleiermacher sobre este ponto é explícita e
completa. “Alles ist ganz durch die göttliche Allmacht und ganz durch
den Naturzusammenhang, nicht aber darf die erstere als Ergänzung der
letztern angesehen werden. Die Gesammtheit des endlichen Seins ist als
vollkommene Darstellung der Allmacht zu denken, so dass alles wirklich
ist und geschieht, wozu eine Productivität in Gott ist. Damit fällt weg die
Differenz des Wirklichen und Möglichen, des absoluten und
hypothetischen Wollens oder Könnens Gottes; denn dies führt auf einen
wirksamen und unwirksamen Willen und letzterer kann bei Gott
unmöglich statt finden; so wenig als Können und Wollen getrennt sein
können.” Quer dizer: “Tudo é completamente através da onipotência
divina, e tudo é através do curso da natureza. O primeiro, entretanto, não
se deve considerar como um complemento do último. O conjunto das
coisas finitas é a revelação completa da onipotência de Deus, de modo
que tudo é e sucede para os quais há uma produtividade em Deus. Assim,
a diferença entre o real e o possível, entre a vontade absoluta e hipotética
e o poder de Deus desaparece, porque isto implica uma vontade

287
Die Lehre von den göttlichen Eigenschaften, p. 154.
288
Christlichen Lehre, p. 160.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 560
operativa e inoperante, mas o último é impossível em Deus, tampouco
como a vontade e o poder podem ser separados.” 289 Esta passagem é
citado por Schweizer, 290 que adota o ponto de vista que apresenta.

Esta doutrina destrói nosso conhecimento de Deus.


Em referência a esta doutrina, pode-se notar, —
1. Que confunde totalmente todas nossas ideias. Faz impossível
todo o conhecimento dEle. Se a vontade e o poder são idênticos, então
essas palavras perdem seu significado para nós. Não podemos saber o
que Deus é, se esta doutrina for verdadeira, e se não sabemos o que Ele
é, não podemos racionalmente adorar, amar, ou confiar nEle.
2. A doutrina efetivamente destrói a personalidade de Deus. Uma
pessoa é um ser autoconsciente, autodeterminado. Mas ao negar a
vontade de Deus, a autodeterminação, e, em consequência, a
personalidade, nega-se a Ele. Esta consequência é admitida pelos
defensores desta doutrina. Strauss diz: “Se em Deus a vontade e o poder
são idênticos, então não pode haver liberdade da vontade em Deus, no
sentido dos teólogos da Igreja, que sustentam que era possível que Deus
não criou o mundo, ou ter criado outra maneira o que é. Se não há
capacidade em Deus para fazer o que Ele não faz, não pode haver
liberdade de vontade ou poder de eleição.” “Mit diesem Können fällt
auch die Freiheit im Sinne eines Wahlvermögens hinweg.” 291 Isto,
entretanto, diz-se, não é a doutrina do destino, porque o destino supõe
uma necessidade ab extra a que Deus está sujeito. Se não ensina o
destino, pelo menos ensina a necessidade inexorável. Espinoza diz: “Ea
res libera dicetur, quæ ex sola suæ naturæ necessitate existit et a se sola
ad agendum determinatur. Necessaria autem, vel potius coacta quæ ab
alio determinatur ad existendum et operandum certa ac determinata

289
Gess, Uebersicht über das System Schleiermacher’s, p. 88.
290
Glaubenslehre, I. p. 263.
291
Dogmatik, vol. I. p. 587.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 561
292 293
ratione.” E outra vez: “Deum nullo modo fato subjicio, sed omnia
inevitabili necessitate ex Dei natura sequi concipio.” Neste sentido, o sol
está livre para brilhar. Brilha pela necessidade de sua natureza. Cremos
de uma necessidade similar, mas podemos pensar em uma coisa ou outra,
a mudança da corrente de nossos pensamentos à vontade. E assim somos
livres no exercício do poder de pensamento. Esta liberdade nega a Deus.
Ele só pode pensar de uma maneira. E todos os Seus pensamentos são
criativos. Ele faz, portanto, o que faz, com base em uma necessidade de
Sua natureza, e Ele faz tudo o que Ele é capaz de fazer. Deus, segundo
esta doutrina, não é um Ser pessoal.
3. As Escrituras representam a Deus constantemente, como capaz
de fazer o que Ele quer. Eles reconhecem a distinção entre o real e o
possível; entre a habilidade e ato, entre o que Deus faz e o que é capaz de
fazer. Com Ele tudo é possível. Ele é capaz de das pedras levantar filhos
a Abraão. Ele me pode enviar, diz nosso Senhor, doze legiões de anjos.
4. Como esta é a doutrina da Bíblia, é o juízo instintivo da mente
humana. Esta é uma perfeição em nós, que podemos fazer muito mais do
que realmente obtemos. Entre nós, o real não é a medida do possível.
5. É, portanto, uma limitação de Deus, uma negação de Sua
onipotência, dizer que Ele pode fazer só o que realmente causa. Há
muito mais em Deus que a causalidade simples do real. Em
consequência, é uma definição errônea da onipotência chamá-lo Todo-
poder, entendendo com isto que toda a eficiência no universo é a
eficiência de Deus; que não é só uma doutrina panteísta, mas torna o
finito a medida do infinito.

292
Ethices, I. def. vii. edit. Jena, 1803, Vol. II. p. 36.
293
Epistola xxiii. Ibid. Vol. I. 513.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 562
§ 11. A santidade de Deus.

Este é um termo geral para denotar a excelência moral de Deus. Em


1Sm. 2:2 afirma-se: «Não há santo como o SENHOR»; nenhum outro
Ser há absolutamente puro, e livre de toda limitação em sua perfeição
moral. «Tu, o Santo de Israel» é a forma de invocação que o Espírito põe
na boca do povo de Deus. «Exaltai ao SENHOR, nosso Deus, e prostrai-
vos ante o seu santo monte, porque santo é o SENHOR, nosso Deus» (Sl
99:9). «Santo e tremendo é o seu nome» (Sl 111:9). «Tu és tão puro de
olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar» (Hc
1:13). «Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor? Pois só
tu és santo» (Ap 15:4). A santidade, por um lado, implica uma total
ausência de mal moral; e, por outro, ausência de absoluta perfeição
moral. A ideia primária é ausência de impureza. Santificar é purificar;
ser santo é ser puro. A infinita pureza, ainda mais que o conhecimento
infinito ou que o poder infinito, é o objeto de reverência. Por isso, a
palavra hebraica ׁ‫( קָדוֹ ש‬qadosh), tal como a emprega a Escritura, é com
frequência equivalente a venerandus. «O Santo de Israel» é Aquele que
deve ser temido e adorado. Os serafim ao redor do trono, clamando de
dia e de noite Santo, Santo, Santo é o SENHOR dos Exércitos,
expressam os sentidos de todas as criaturas racionais não caídas à vista
da infinita pureza de Deus. Eles são os representantes de todo o universo,
no oferecimento desta homenagem perpétua à santidade divina. É devido
a esta santidade que Deus é um fogo consumidor. E foi a contemplação
desta santidade a que levou a profeta a exclamar: «Ai de mim! Estou
perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um
povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos
Exércitos!» (Is 6:5).
É em sua aplicação aos atributos morais de Deus que os dois
métodos de determinar sua natureza entram em conflito mais direto. Se
deixarmos que a Palavra de Deus nos dê resposta à pergunta Que é
Deus?, não podemos ter dúvida alguma de que Ele é santo, justo e bom.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 563
Mas se o conceito filosófico do absoluto e do infinito deve decidir cada
questão a respeito da natureza divina, então teremos que abandonar toda
confiança em nossa compreensão de Deus como objeto de
conhecimento. Strauss, o mais sincero dos teólogos filosóficos recentes,
admite isto francamente. Ele diz: “As ideias do absoluto e do santo são
incompatíveis. Aquele que mantém as anteriores deve renunciar a esta
última, visto que a santidade implica relação; e, por outro lado, aquele
que mantém a ideia de Deus como santo, deve renunciar à ideia de seu
ser absoluto; porque a ideia do absoluto é inconsistente com a mais
mínima possibilidade de ser distinto do que é. A impossibilidade de
referir-se aos atributos morais de Deus tinha sido admitida por alguns
dos pais da Igreja.” 294

Razões alegadas para negar os atributos morais de Deus.


Os motivos pelos que se nega que os atributos morais podem ser
pregados de Deus, são os seguintes: —
1. Assumir que Deus pode deleitar-se no bem, e odiar o mal, dá por
sentado que é suscetível de impressão ab extra, a qual é incompatível
com Sua natureza.
2. Diz-se que a excelência moral implica a sujeição a uma lei moral.
Entretanto, um Ser absoluto e infinito não pode sujeitar-se à lei. É
verdade que Deus não está sujeito a nenhuma lei fora de Si mesmo. Ele é
exlex, absolutamente independente. Ele é uma lei em Si mesmo. A
conformidade de Sua vontade à razão não é submissão. É só a harmonia
de Sua natureza. O Ser santo de Deus, não implica nada mais que Ele
não está em conflito Consigo mesmo. Sobre este ponto, inclusive o
teólogo racionalista Wegscheider diz: “Minime Deus cogitandus est
294
“So wollen also die Begriffe des Absoluten und des Heiligen nicht zusammengehen; sondern wer
das Absolute festhält, der löst die Heiligkeit auf, welche nur an einem in Relation gestellten Wesen
etwas ist; und wer es umgekehrt mit der Heiligkeit ernstlich nimmt, der tritt der Idee der Absolutheit
zu nahe, welche durch den leisesten Schatten der Möglichkeit, anders zu sein als sie ist, verunreinigt
wird. Diese Einsicht in die Unanwendbar keit moralischer Attribute auf Gott hatten schon einzelne
Kirchenväter . . . erkanute.” — Dogmatik, vol. I. p. 595.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 564
tanquam pendens ex lege ethica vel eidem subjectus tanquam potestati
cuidam alienæ, sed Deus sanctus ipsa ea lex est, natura quidam
hypostatica indutus.” 295
3. Diz-se que a excelência moral deve ser livre. Um agente moral,
para ser santo, deve voluntariamente fazer o correto. Mas isto implica
que ele pode fazer o mal. Portanto, deve haver pelo menos uma
possibilidade metafísica de Deus ser mau, do contrário Ele não pode ser
bom. Entretanto, toda possibilidade do Absoluto ser diferente do que é, é
inconsistente com Sua natureza. A isto se pode responder que as ideias
de liberdade e necessidade são realmente antagônicas, mas que a
liberdade e a certeza absoluta são perfeitamente compatíveis. Que um
Ser imensamente sábio não agirá de maneira irracional, é absolutamente
certo como o autocontraditório não pode ser verdade. Um é tão
inconcebível como o outro. É tão impossível que um Ser imensamente
santo seria profanado como a luz deveria ser escuridão. A
impossibilidade, entretanto, é de natureza distinta. O primeiro é o que
Santo Agostinho chama a felix necessitas boni, que é a mais alta ideia da
liberdade.
4. Strauss diz que aqueles que atribuem a Deus as perfeições
morais, esquecem que um ser puramente espiritual não pode ter nada do
que chamamos razão, inteligência, bondade, ira, justiça, etc.
“Estritamente falando,” acrescenta “a adscrição dos atributos morais de
Deus supõe que Ele é material, e as ideias teológicas mais abstratas sobre
o tema são realmente baseadas no materialismo.” Isto se baseia no
suposto de que o espírito é impessoal, uma força genérica, que se
converte em individual e pessoal só pela união com uma organização
material, da mesma forma que os realistas definem o homem como
sendo a humanidade genérica, individualizada e pessoal prestados pela
união com uma dada organização corpórea.

295
Institutiones, p. 273.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 565
É certamente o mais irrazoável sacrificar a religião a tais
especulações, junto com toda confiança aos juízos intuitivos da mente
humana, assim como toda fé em Deus e na Bíblia.
É só menos destrutivo da verdadeira doutrina definir a santidade em
Deus como a causalidade da consciência em nós. Que somos seres
morais não se admite ser uma prova de que Deus tem atributos morais.
Que o sol produz em nós a alegria não é prova de que o sol é alegre. Mas
se não sabemos nada de Deus, senão que Ele é a causa de todas as coisas,
Ele é para nós só uma força inescrutável, e não um Pai, e não um Deus.

§ 12. Justiça

A. Sentido do termo.

A palavra justiça, ou retidão, emprega-se na Escritura às vezes num


sentido mais amplo, às vezes mais restringido. Em teologia, distingue-se
com frequência como justiça interna, ou excelência moral, e justiça
externa ou retidão de conduta. No hebraico, ‫( צַדִ ּיק‬tsadik), significa,
num sentido físico, reto, e também num sentido moral, aquilo que é
como deveria ser. E ‫( צְדָ קָה‬tsadakah) significa retidão, aquilo que
satisfaz as demandas da retidão ou da lei. O termo grego δίκαιος
(dikaios) tem o sentido físico de igual; em sentido moral era equitativo,
conforme o que é reto; e δικαιοσύνη (dikaiosune) é aquilo que divide
igualmente, isto é, equidade em sentido moral, ou o que satisfaz as
demandas do direito. Os termos latinos justus e justitia são empregados
usualmente no sentido amplo para denotar o que é reto, ou o que é como
deve ser. Cícero 296 define justitia como “animi affectio suum cuique
tribuens.” Esta definição se amplia em outros lugares, dizendo: “Justitia
erga Deos religio, erga parentas pietas, creditis in rebus fides, in

296
De Finibus, v. 23, 65, edit. Leipzig, 1850, p. 1042.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 566
moderatione animadvertendi lenitas, amicitia in benevolentia
nominatur.” 297
Quando contemplamos a Deus como o autor de nossa natureza
moral o concebemos como santo; quando o consideramos em Seus
procedimentos com Suas criaturas racionais, concebemo-Lo como justo.
Ele é um governante reto; todas as Suas leis são santas, justas e boas. Em
Seu governo moral, Ele se adere fielmente a estas leis. Ele é imparcial e
uniforme na execução das mesmas. Como juiz, Ele recompensa a cada
um segundo as suas obras. Não condena o inocente, nem absolve ao
culpado; tampouco castiga com uma severidade indevida. Daí que a
justiça de Deus distingue-se como reitora, ou aquela que se ocupa da
imposição de leis retas e de sua execução imparcial; e distributiva, ou a
que se manifesta na reta distribuição de recompensas e castigos. A Bíblia
apresenta constantemente a Deus como governante justo e como juiz
justo. Estas dois aspectos de Seu caráter, ou de nossa relação com Ele,
não são distinguidos de maneira cuidadosa. Temos a certeza que
encontramos por toda a Escritura: «Não fará justiça o Juiz de toda a
terra?» (Gn 18:25). «Deus é justo juiz» (Sl 7:11). «Julgará o mundo com
justiça» (Sl 96:13). «Nuvens e escuridão o rodeiam, justiça e juízo são a
base do seu trono» (Sl 97:2). Apesar de todas as aparentes desigualdades
na distribuição de seus favores, apesar da prosperidade dos ímpios e das
aflições dos justos, em todo lugar expressa-se a convicção de que Deus é
justo; de que de algum modo e em algum lugar Ele vindicará os Seus
procedimentos para com os homens, e mostrará que é pronto para agir
em todos os Seus caminhos, e santo em todas as Suas obras.

297
Partitiones Oratoriæ, 22, 78, edit. ut sup. p. 194.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 567
B. A justiça em sua relação com o pecado.

Assim como o sentimento de culpa é universal entre os homens, e


assim como as manifestações de pecado são tão constantes e prevalentes,
é principalmente com relação ao pecado que se revela a justiça de Deus.
Por isso, muitos teólogos definem a justiça de Deus como aquele atributo
da natureza que se manifesta no castigo do pecado. Diz-se que a bondade
se manifesta na outorga do bem, e a justiça em infligir castigo.
Schleiermacher diz: “A justiça é essa causalidade em Deus que une o
sofrimento com o pecado real.” Schweizer 298 diz: “Conhecemos a Deus
somente através do castigo do pecado.” Hegel diz: “A manifestação do
nada do finito como poder, é justiça.” Esta é a declaração filosófica, do
princípio de que “Poder é Justiça”, um princípio que subjaz à moral e à
religião da filosofia moderna.

C. A reforma do ofensor não é o objeto primário do castigo.

Como a justiça de Deus se manifesta de maneira especial no castigo


do pecado, é de importância primordial determinar por que se castiga o
pecado.
Uma teoria prevalecente a respeito deste tema é que o único fim
legítimo do castigo é a reabilitação do delinquente.
Naturalmente deve-se admitir que o bem do delinquente é com
frequência a base ou razão pela qual se inflige o mal. Um pai castiga a
um filho com amor, e para o seu bem. E Deus, nosso Pai celestial, traz
sofrimentos a Seus filhos para sua educação. Mas o mal infligido para
benefício de quem o sofre é disciplina, não castigo. O castigo, em seu
sentido próprio, é mal infligido para dar satisfação à justiça.
Que o bem do sofredor não é o fim primordial de infligir o castigo
se demonstra: —

298
Christlichen Glaube, § 84, Works, Berlin, 1843, vol. iv. p. 465.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 568
1. Porque o castigo dos ímpios é sempre, nas Escrituras, atribuído à
ira de Deus, e a disciplina de Seu povo a Seu amor. Por isso, não se trata
de casos análogos. Esta diferença de descrição está designada para nos
ensinar que os maus e os bons não têm a mesma relação para com Deus
como objetos de benevolência, mas os primeiros são castigados para dar
testemunho de sua desaprovação E para satisfazer Sua justiça, e aos
segundos os disciplina para atraí-los mais perto de Si.
2. Em muitos casos, a natureza do castigo impede a possibilidade de
que o bem do delinquente seja a base de sua aplicação. O dilúvio, a
destruição das cidades da planície, e a destruição de Jerusalém não foram
certamente castigos infligidos para benefício dos que sofreram estas
desolações. E muito menos pode supor-se que o castigo dos anjos caídos
e dos não arrependidos tenha a intenção de ser reabilitador.
3. A Escritura e a experiência nos ensinam que o sofrimento,
quando tem a natureza de castigo, não tem tendência a reabilitar. Quando
o sofrimento é visto como proveniente da mão de um pai, e como
manifestação de amor, tem um poder santificador. Mas quando vem de
mão de Deus, como juiz vingador, e é a expressão de desagrado e prova
de nossa alienação de Deus, sua tendência é endurecer e exasperar. Por
isso, o Apóstolo diz que enquanto que os homens estão sob condenação,
produzem fruto para pecado; e que só quando são reconciliados a Deus e
têm a segurança de Seu amor, que produzem fruto para Deus. O grande
profeta do Novo Testamento, em sua visão do mundo de dor, representa
os como roendo a língua com a dor e blasfemando a Deus. A denúncia
da pena dirige-se ao medo, mas medo não é o princípio da obediência
genuína.
4. A respeito desta questão pode-se apelar com justiça à consciência
comum dos homens. Tal é nossa letargia moral que são só as grandes
ofensas, que despertam nossa sensibilidade moral, revelando sua
verdadeira natureza. Quando se comete um grande crime, há uma
demanda instintiva e universal de castigo para o criminoso. Ninguém
pode pretender que o motivo desta demanda é o desejo da reabilitação do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 569
criminoso. Nem se pensa nisso. O juízo instintivo da mente é que o tal
deveria sofrer. Não é a benevolência para com ele o que clama por
inflição do castigo.

D. A prevenção do crime não é o objeto primário do castigo.

A doutrina de que o único fim legítimo do castigo é a prevenção do


crime teve grande prevalência na Igreja e no mundo. É a comum
doutrina dos juristas. Naturalmente, deve conceder-se que o bem da
sociedade e do governo moral de Deus é um fim importante do castigo
em todos os governos, humanos e divinos. Entretanto, é mais um efeito
colateral da administração da justiça que não seu desígnio imediato. A
doutrina em questão se funde na justiça benevolente. De acordo com esta
maneira de pensar, é só porquanto Deus tem em vista a felicidade de
Suas criaturas racionais que visita o pecado com castigo.
Esta doutrina foi adotada por alguns dos primeiros pais. Em
resposta à objeção de que a Bíblia representa a Deus como um ser
vingativo, porque fala de Sua ira e de Sua determinação em castigar, que
disse que Ele castiga só por benevolência. Assim, Clemente de
Alexandria 299 diz: “Os homens perguntam como Deus pode ser bom e
amável, se Ele está irado e castiga? Têm que lembrar que o castigo é
para o bem do delinquente e para a prevenção do mal.” E Tertuliano 300
diz: “Omne hoc justitiæ opus procuratio bonitatis est.” Orígenes, 301
também no mesmo sentido, diz: “Ex quibus omnibus constat, unum
eundemque esse justum et bonum legis et evangeliorum Deum, et
benefacere cum justitia et cum bonitate punire.”
Muitos teólogos posteriores tomaram a mesma postura. Leibnitz
define justiça como benevolência guiada por sabedoria. Wolf, que

299
Pædagogus, I. viii; edit. Cologne, 1688, p. 114, c. and p. 115.
300
Adversus Marcionem, II. 10; edit. Basel, 1562, p. 179, seu II. 13; edit. Leipzig, 1841, III. p. 90.
Bibliotheca, Gersdorf, Vol. VI.
301
De Principiis, II. v. 3; edit. Paris, 1733, vol. I. p. 88, a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 570
modificou o sistema de toda a teologia de acordo com a filosofia do
Leibnitz, adotou a mesma opinião. O mesmo fez Stapfer, 302 que diz:
“Quando Deus ejusmodi malum triste ex peccato necessario se quens
creaturæ accidere sinit, . . . . dicitur peccatorem punire, et hoc sensu ipsi
tribuitur justitia vindicativa. In justitia punitiva bonitas cum sapientia
administratur. 303 Notio justititæ resolvitur in notionem sapientiæ et
bonitatis.” Grócio, o jurista, faz desta ideia da justiça o princípio
fundamental de sua grande obra, “De Satisfactione Christi.”

A Teoria Otimista.
Neste país o mesmo ponto de vista foi amplamente adotado e feito,
como deve ser necessariamente, o princípio de controle dos sistemas de
teologia em que se incorpora. Supõe-se que a felicidade é o bem maior, e
portanto, que o propósito e o desejo de promover a felicidade é a soma
de todas as virtudes. Disto se deduz, que este mundo, a obra de um Deus
de infinita benevolência, sabedoria e poder, deve ser o melhor mundo
possível para a produção da felicidade, e, portanto, a permissão de
pecado, e seu castigo, deve ser referido à benevolência de Deus. São os
meios necessários para garantir a maior quantidade de felicidade. Se a
felicidade não é o maior bem, se a santidade é um fim mais alto que a
felicidade, se a conveniência não é o fundamento e a medida da
obrigação moral, é óbvio que esta estrutura inteira desaba.

302
Institutiones, I. 153; edit. Tiguri, 1743, p. 154.
303
Ibid. I. p. 154.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 571
E. Prova da doutrina escriturística.

Admite-se que a felicidade é promovida pela justiça, e por isso que


é contrário a uma sábia benevolência que permita aos homens pecar com
impunidade. Mas a justiça não pode ser mesclada propriamente com a
benevolência. E o fato de que não é a promoção da felicidade mediante a
prevenção do crime o fim primário da inflição do castigo é evidente: —
1. Com base no testemunho da consciência de todas as pessoas.
Cada um sabe que a benevolência e a justiça, tal como se revelam em sua
própria consciência, são sentimentos diferentes. O primeiro leva a
promover a felicidade, o outro envolve o juízo instintivo de que um
criminoso deveria sofrer por seu crime. Não nos detemos a perguntar, ou
a pensar, qual pode ser em outros o efeito colateral da inflição do
castigo. Com antecedência a tal reflexão, e independente da mesma, dá-
se a percepção intuitiva de que o pecado deveria ser castigado, por si
mesmo, ou por causa de seu inerente castigo. Estes juízos morais
instintivos são tão claros e algumas revelações tão confiáveis da natureza
de Deus como podemos ter. Forçam a convicção apesar de todos os
sofismas especulativos. Toda pessoa conhece o justo juízo de Deus, que
os que pecam são dignos de morte. Se a justiça e a benevolência são
coisas distintas em nós, são coisas distintas em Deus. Se nós, em
obediência à natureza que Ele nos deu, percebemos ou julgamos de
maneira intuitiva que o pecado deveria ser castigado por si mesmo, com
indiferença do bom efeito que possa ter o pecado em outros, assim
também é o juízo de Deus. Este é o princípio que subjaz e determina
todas as nossas ideias do Ser Supremo. Se a perfeição moral não é nEle o
que é em nós, então Ele é para nós alguma coisa desconhecida, e
empregamos palavras carentes de significado quando falamos sobre Ele
como santo, justo e bom.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 572
O argumento da experiência religiosa dos crentes.
2. Este sentido de justiça, que é indestrutível na natureza do
homem, e que, em comum com a razão e a consciência, sobreviveu à
queda, não só se revela na experiência comum dos homens, mas também
ainda de maneira mais concreta em sua consciência religiosa. O que se
conhece usualmente como «convicção de pecado» é só uma modificação
e uma forma mais elevada daquelas experiências interiores comuns a
todos os homens. Todos os homens sabem que são pecadores. Todos
sabem que o pecado, com relação à justiça de Deus, é culpa, merecendo
castigo; e que, com relação à Sua santidade, deixa-nos contaminados e
repulsivos diante dEle. Sabem também, intuitivamente, que Deus é justo
além de santo; e por isso que Sua perfeição moral demanda o castigo do
pecado, por aquela mesma necessidade pela qual o desaprova e aborrece.
Sob a pressão destas convicções, e com a consciência de sua total
incapacidade quer para satisfazer a justiça divina, quer para libertar-se da
contaminação e do poder do pecado, os homens ou tremem na constante
espera do juízo, ou olham fora de si mesmos em busca de ajuda. Quando
quer sob as operações comuns ou sob a operação salvadora do Espírito
de Deus se aprofundam estes sentimentos, então a natureza dos mesmos
fica mais claramente revelada. Um homem, quando assim fica
convencido de pecado, vê não só que seria justo que fosse castigado, mas
também a justiça, ou excelência moral de Deus, exige o seu castigo. Não
se trata de que deveria sofrer pelo bem de outros, nem de sustentar o
governo moral de Deus, mas antes, ele, como pecador e por seus
pecados, deveria sofrer. Se ele fosse a única criatura no universo, esta
convicção seria idêntica, tanto em natureza como em grau. Esta é a
experiência dos homens sob convicção de pecado, tal como se registra
nas Escrituras e na história da Igreja. Em muitos casos os criminosos,
sob a pressão destes sentimentos, entregaram-se aos funcionários da
Justiça para ser castigados. Mais frequentemente recorrem a torturas
autoinfligidas para satisfazer os clamores da consciência. Por isso, temos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 573
uma revelação interior, que não pode ser nem suprimida nem pervertida,
de que a justiça não é benevolência.

O sentido da justiça não se deve à cultura cristã.


3. É evidente que este sentimento de justiça não se deve à cultura
cristã, nem à influência de algumas peculiares formas de doutrina, mas
que pertence à consciência comum dos homens. (a) Porque está impresso
em todas as línguas humanas conhecidas até onde se conhece ou se
cultiva. Todos as linguagens têm diferentes palavras para justiça e
benevolência. Não poderia haver esta diferença de palavras se os
próprios sentimentos não fossem diferentes. Todos sabemos que quando
dizemos que um homem é justo, significamos uma coisa; e que quando
dizemos que é benevolente, significamos outra diferente. (b) Toda a
história, em seu registro das operações da natureza humana, revela este
sentimento inato de justiça. Em todas as partes ouvimos os homens
pedindo o castigo dos delinquentes, ou denunciando os que permitem
que escapem impunes. Nenhuma massa de homens poderá ser
testemunha de um ato flagrante de crueldade ou de maldade sem uma
irrepreensível manifestação de indignação. A voz da natureza, que em
tais casos é a voz de Deus, demanda o castigo do malfeitor. (c) Em todas
as religiões que revelam as convicções internas dos homens há ritos de
expiação. Cada sacrifício pelo pecado, a fumaça de cada altar, que foi
subindo por todas as idades e de todas as partes do mundo, são outros
tantos testemunhos da verdade da razão e da Escritura de que em Deus
existe o atributo da justiça, em distinção a Sua benevolência.

Argumento com base na santidade de Deus.


4. A verdade desta doutrina pode inferir-se também da santidade de
Deus. Se Ele é imensamente puro, Sua natureza deve estar oposta a todo
pecado; e, porquanto Seus atos estão determinados por Sua natureza, Sua
desaprovação do pecado deve manifestar-se por Suas ações. Mas o
desagrado de Deus, a manifestação de Sua desaprovação, é a morte,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 574
como Seu favor é Vida. Não pode ser que esta oposição essencial entre
santidade e pecado dependa para sua manifestação da mera consideração
ab extra [externa] ou que o mal derivaria do pecado se fosse deixado
impune. Igualmente se poderia dizer que não deveríamos sentir aversão à
dor, a não ser que estivéssemos conscientes de que debilita nossa
constituição. Não aprovamos a santidade simplesmente porque tenda a
produzir felicidade; nem desaprovamos o pecado simplesmente porque
tenda a produzir miséria. Por isso, é inevitável que a perfeição do Deus
imensamente santo manifeste Sua oposição ao pecado, sem esperar
julgar as consequências da expressão desta repugnância divina.
5. A doutrina de que a prevenção do crime é o único fim legítimo
do castigo, ou que não é atributo em Deus como a justiça, diferente da
benevolência, descansa sobre a hipótese, já antes observada, de que toda
a virtude consiste em benevolência, a qual, por sua vez, repousa sobre a
hipótese de que a felicidade é o bem maior. Isto faz com que a base da
obrigação moral e a regra da conduta moral seja a conveniência. Mas em
tal contexto está fora de lugar empregar o termo moral, porque com base
nesta teoria esta palavra não tem sentido. Uma coisa poderia ser prudente
ou imprudente, conveniente ou não conveniente, mas em nenhum outro
sentido boa ou má. O mal converte-se em bem, e o bem converte-se em
mal, segundo de onde provenha a maior felicidade. Assim como esta
teoria utilitária da moral foi eliminada das escolas filosóficas, deveria sê-
lo também dos sistemas teológicos.

Argumento da conexão entre pecado e miséria.


6. A conexão inseparável entre pecado e miséria é uma revelação da
justiça de Deus. Que a santidade promova a felicidade é uma revelação
da relação que Deus tem com a santidade. E que o pecado produza
miséria é não menos uma revelação da relação em que Ele Se mostra
para com o mal moral. Esta constituição das coisas, ao depender da
natureza e vontade de Deus, demonstra que o pecado é um mal em sua
própria natureza, merecendo castigo por si mesmo. A lei de Deus,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 575
incluindo uma pena assim como preceitos, é em ambas as coisas uma
revelação da natureza de Deus.
Se os preceitos manifestam sua santidade, com igual clareza a pena
manifesta sua justiça. Se uma é imutável, a outra também. O pagamento
do pecado é a morte. A morte é o que em justiça se lhe deve, e não pode
deixar de ser aplicada sem injustiça.
Se a prevenção da delinquência fosse o fim principal da pena,
então, se o castigo dos inocentes, da execução, por exemplo, da esposa e
filhos de um assassino, teria uma influência moderadora maior que o
castigo do assassino culpado, sua execução seria justa. Mas isto ia
surpreender o sentido moral dos homens.

O argumento com base nas doutrinas bíblicas da satisfação


e da justificação.
7. As doutrinas escriturísticas da satisfação e da justificação
repousam sobre o princípio de que Deus é imutavelmente justo, isto é,
que Sua excelência moral, no caso do pecado, demanda castigo, ou
expiação. A Bíblia ensina claramente a necessidade de satisfação da
justiça a fim de obter-se o perdão do pecado. Cristo foi posto como
propiciação, a fim de que Deus seja justo ao justificar o ímpio. Isto
pressupõe que seria injusto – isto é, contrário à retidão moral – perdoar
ao culpado sem tal propiciação. Esta necessidade de uma satisfação
nunca é atribuída à conveniência nem a considerações governamentais.
Se o pecado tivesse podido ser perdoado sem satisfação, diz o Apóstolo,
em vão morreu Cristo (Gl 2:21). Se tivesse podido haver uma lei que
desse vida, a salvação teria sido pela lei (Gl 3:21).
Além disso, se não existe a justiça, em distinção à benevolência,
como atributo de Deus, então não pode existir a justificação. Pode ser
que haja perdão, como o ato de um soberano que remete uma pena e que
restaura um delinquente ao favor; mas não a justificação, como um ato
de um juiz pronunciando-se conforme a lei e pronunciando satisfeitas as
demandas da justiça. Entretanto, as Escrituras, tal como o entende a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 576
Igreja de maneira unânime, pronunciam que a justificação é mais que um
ato de clemência governamental. A consciência não fica satisfeita com o
mero perdão. É essencial para a paz com Deus que a alma veja que a
justiça ficou satisfeita. Esta é a razão de que a morte de Cristo, pela qual
o Seu sangue, seja tão indizivelmente preciosa aos olhos de Seu povo.
Toda a experiência dos santos é um protesto contra o princípio de que a
expiação seja desnecessária, de que o pecado possa ser perdoado sem
uma satisfação da justiça.

O argumento de Paulo.
Todo o argumento do Apóstolo Paulo em sua Epístola aos Romanos
está baseado no princípio de que a justiça é um atributo divino distinto
da benevolência. Seu argumento é: Deus é justo. Todos os homens são
pecadores. Todos, portanto, são culpados, isto é, estão sob condenação.
Por isso, ninguém pode ser justificado, ou seja, pronunciado não
culpado, sobre a base de seu caráter ou conduta. Os pecadores não
podem dar satisfação à justiça. Mas o que eles não poderiam fazer,
Cristo, o Filho Eterno de Deus, revestido de nossa natureza, tem-no feito
por eles. Ele trouxe a justiça eterna, que cumpre todas as demandas da
lei. Deus justifica e salva todos os que renunciam a sua própria justiça, e
confiam na justiça de Cristo. Este é o evangelho pregado por Paulo.
Todo ele repousa sobre a assunção de que Deus é Justo.
A doutrina da justiça vindicatória, que tem esta clara evidência de
sua veracidade, tanto na natureza moral do homem como na experiência
religiosa dos crentes e no ensino e doutrina das Escrituras, foi sempre
considerada como um ponto pivotal da teologia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 577
F. Concepções filosóficas da natureza da justiça.

Os ensinos das Escrituras, e a fé da Igreja, quanto se refere aos


atributos divinos, baseiam-se na hipótese de que Deus é um Ser pessoal.
Está envolto nesse suposto, não só que Ele possui a inteligência e o
caráter moral, mas que pensa, sente, quer e age. Além disso, é
participante na ideia de personalidade, que pensar, sentir, querer, e agir
em Deus, são, em tudo o que é essencial, análogo ao que significam
esses termos em nós. A filosofia moderna, entretanto, ensina que, se
Deus é um Ser absoluto, pensar, sentir, querer, e agir são incompatíveis
com a Sua natureza. Portanto, —
1. Alguns ensinam que Deus só é a base original de seres que não
têm nEle mesmo nenhum atributo distintivo. O que chamamos de os
atributos de Deus são só os atributos das criaturas finitas que têm o
fundamento de seu ser em Deus. O fato de que são inteligentes, agentes
voluntários morais, não é prova de que o mesmo pode dizer-se de Deus.
Que o sol produz a sensação de calor em nós não é prova de que
experimenta a mesma sensação. Os atributos de Deus, portanto, só são
aspectos diferentes da causalidade nEle que produz diferentes efeitos.
Justiça, então, não é um atributo de Deus, é só a causalidade a que a
conexão entre o pecado e o sofrimento faz referência.
2. Outros, embora insistindo em que a personalidade, e tudo o que
isso implica, são incompatíveis com a ideia de um Ser absoluto, seguem
mantendo que nos vemos obrigados, e destinados, a crer na
personalidade de Deus, sob a autoridade da Bíblia e de nossa própria
natureza moral. Mas a Bíblia revela, diz-se, não a verdade absoluta, mas
só a verdade reguladora, não o que Ele é, mas o que é conveniente que
pensemos que Ele é. A justiça de Deus, então, é para nós o que a
generosidade numa fada é para meninos da creche.
3. Outros de novo, enquanto admitem personalidade em Deus,
convertem-no numa personalidade que impede toda vontade, e toda ação,
exceto na forma de lei, ou eficiência geral e uniforme. Justiça de Deus,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 578
portanto, é só o nome de uma forma ou um modo da manifestação do
poder de Deus. Como faz-se referência à sua ordenação, ou por sua
natureza, que o fogo queima e ácidos corroem, assim com referência à
sua eficácia geral que o pecado produz miséria. Não há intervenção
especial de Deus, quando o fogo queima, e não há nenhuma decisão
especial, ou juízo de Sua parte, quando um pecador é castigado. A pena
não é a execução de uma sentença pronunciada por um ser inteligente
sobre os méritos do caso, mas a operação de uma lei geral. Bruch
(Professor de Teologia no Seminário Teológico em Estrasburgo) é um
representante deste modo de pensar. Ele professa teísmo, ou a fé num
Deus pessoal, mas ensina que os atributos de Deus não são outra coisa
(als die Modalitäten seiner ewigen Wirksamkeit) “que os modos de Sua
constante eficiência.” Desde que entre os homens a justiça se exerce
numa sucessão de atos especiais, é um erro deduzir que há uma sucessão
de atos da vontade Deus pelos quais Ele aprova ou condena.
A grande dificuldade, diz ele, surge do juízo de Deus depois da
analogia de nossa própria natureza. Admite que a Bíblia faz isto, que
constantemente fala de Deus como um juiz justo, a administração de
justiça conforme a Sua vontade. Neste caso, entretanto, acrescenta, é
importante separar a verdade real da imperfeição de sua forma
escriturística. As punições não são males causados por um ato especial
da vontade divina, mas sim as consequências naturais do pecado, que
não pode deixar de manifestar-se. Há uma relação orgânica entre o
pecado e o mal. Toda a atividade ou agência de Deus está em forma de
leis que têm seu fundamento em sua natureza. Assim, a justiça é
simplesmente que a lei, ou o modo uniforme da operação divina, pela
que o pecado torna-se o seu próprio castigo.304 Portanto não há distinção
entre inflições naturais e positivas; o dilúvio nem foi nenhum castigo, ou
foi a consequência natural dos pecados dos antediluvianos. Portanto, não

304
Veja a seção sobre a “Gerechtigkeit Gottes” [Justiça de Deus] em Bruch’s Lehre von den
Göttlichen Eigenschaften, pp. 275-296.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 579
há tal coisa como o perdão. A única forma possível de eliminar o
sofrimento é remover o pecado. Mas, como é o pecado de roubo ou do
assassinato para ser eliminados? Podemos compreender como o orgulho
ou a inveja podem ser submetidos e o sofrimento que se escapou em
oferta: mas como pode um ato passado ser eliminado? Um homem
endurecido no pecado sofre pouco ou nada por um delito especial, os
moralmente refinados sofrem indescritivelmente. Assim, segundo esta
teoria, quanto melhor o homem é, mais severamente é castigado por seu
pecado. Strauss é suficientemente compatível ao levar a cabo o princípio,
e descartar por completo as ideias de prêmio e castigo, como
pertencentes a uma forma baixa de pensamento. Cita e adota a
declaração de Espinoza: “Praemium beatitudo virtutis no est, sed ipsa
virtus”.
4. Quase não distinto da doutrina citada anteriormente, é a
apresentado pelo Dr. John Young. 305 sua doutrina é que há certas leis
eternas e imutáveis que surgem da natureza das coisas, independente da
vontade ou da natureza de Deus, a que Ele é tanto sujeito como Suas
criaturas. Uma destas leis é, que a virtude produz felicidade, e o vício a
miséria. Portanto, um é recompensado, e o outro castigado, pela
operação necessária e imutável desta lei, e não pela vontade de Deus.
Portanto, Deus deixa de ser o governante do mundo. Ele mesmo está
subordinado às leis eternas e necessárias. Que esta doutrina é contrária a
todo o teor da Bíblia não se pode pôr em dúvida. Isso não é menos
oposição aos ditados de nossa própria natureza moral e religiosa. Revela-
se nessa natureza a que estamos sujeitos, não às leis necessárias e
automáticas, e sim a Deus inteligente e pessoal, a quem somos
responsáveis para nosso caráter e conduta, e que recompensa e castiga a
Suas criaturas segundo as suas obras. Como teoria filosófica, esta
doutrina é muito inferior à norma dos teólogos alemães. Porque, na
medida em que são teístas, admitem que estas leis imutáveis são

305
Light and Life of Men.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 580
determinadas pela natureza de Deus, e são os modos uniformes de Sua
operação. De fato, como Deus e Suas criaturas esgotam toda a categoria
de ser, a “natureza das coisas”, à parte da natureza de Deus e de Suas
criaturas, parece ser uma frase sem sentido. É equivalente à “natureza da
não-existência.”

§ 13. A bondade de Deus.

A. A doutrina escriturística.

A bondade, no sentido Escriturário do termo, inclui a benevolência,


o amor, a misericórdia e a graça. Por benevolência se significa a
disposição a promover felicidade. Todas as criaturas sensíveis são
objetos da mesma. O amor inclui complacência, desejo e deleite, e tem
como seus objetos seres racionais. A misericórdia é a benignidade
exercida para com os miseráveis, e inclui piedade, compaixão, paciência
e gentileza, coisas que as Escrituras atribuem tão abundantemente a
Deus. A graça é o amor exercido para com os indignos. O amor de um
Deus santo para com os pecadores é o mais misterioso atributo da
natureza divina. A manifestação deste atributo para a admiração de todas
as criaturas inteligentes é declarado como o especial desígnio da
redenção. Deus salva os pecadores, é-nos dito, «para mostrar, nos
séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para
conosco, em Cristo Jesus» (Ef 2:7). Este é o peso dessa Epístola.
Como todas as modificações da bondade acima mencionada
encontram-se inclusive em nossa dilapidada natureza, e por si mesmas se
encomendam à nossa aprovação moral, sabemos que devem existir em
Deus sem medida e sem fim. NEle são infinitas, eternas e imutáveis.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 581
Benevolência.
A bondade de Deus em forma de benevolência é revelada em toda a
constituição da natureza. Assim como o universo está repleto de vida,
assim está repleto de alegria. Não há mecanismos na natureza para a
promoção da dor pela dor, enquanto que as manifestações de desígnio
para a produção de felicidade são literalmente incontáveis. A
manifestação da bondade de Deus em forma de amor, e especialmente de
amor para com os que não o merecem, é, como se acaba de assinalar, o
grande fim da obra da redenção. «Porque Deus amou ao mundo de tal
maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3:16). «Nisto consiste o amor: não
em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou
o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados» (1Jo 4:10). O
apóstolo ora para que os crentes possam compreender a altura e
profundidade, o comprimento e a largura, daquele amor que ultrapassa a
todo entendimento (Ef 3:19).

Amor
Em nós, o amor inclui complacência e deleite em seu objeto, com o
desejo de possessão e de comunhão. Os escolásticos, e com frequência
os teólogos filosóficos, dizem-nos que em Deus não há sentimentos. Isto,
dizem, implicaria a passividade, ou a suscetibilidade da impressão de
fora, que se supõe é incompatível com a natureza de Deus. “É preciso
excluir”, diz Bruch, 306 “passividade da ideia do amor, tal como existe em
Deus. Porque Deus não pode ser objeto da passividade em qualquer
forma. Além disso, se Deus experimentou complacência de seres
inteligentes, Ele seria dependente deles, o que é incompatível com Sua
natureza como um Ser Absoluto.” O amor, portanto, ele define como
atributo de Deus que assegura o desenvolvimento do universo racional,
ou, como Schleiermacher expressa: “É esse atributo em virtude do qual

306
Eigenschaften, page 240.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 582
307
Deus se comunica.” De acordo com os filósofos, o Infinito se
desenvolve no finito; este fato, em linguagem teológica, deve-se ao
amor. O único ponto da analogia entre o amor em nós e o amor no
Absoluto e Infinito, é autocomunicação. O amor em nós conduz à auto-
revelação e à comunhão; na realidade o infinito Se revela e Se
desenvolve no universo, e especialmente na humanidade. Bruch admite
que esta doutrina está em contradição real com as representações de
Deus no Antigo Testamento, e em aparente contradição com as do Novo
Testamento. Se o amor de Deus é só um nome para o que representa o
universo racional, e se Deus é amor, simplesmente porque Ele mesmo Se
desenvolve em pensar e ser consciente, então a palavra não tem para nós
nenhum significado definido, mas que nos revela nada a respeito da
verdadeira natureza de Deus.
Aqui outra vez temos que escolher entre uma mera especulação
filosófica e o claro testemunho da Bíblia, e de nossa própria natureza
moral e religiosa. O amor necessariamente implica sentimento, e se não
há sentimento em Deus, não pode haver amor. Que Ele produza
felicidade não constitui prova de amor. A terra o faz inconscientemente e
sem desígnio. Os homens com frequência fazem felizes uns aos outros
por vaidade, por temor ou por capricho. A não ser que a produção de
felicidade seja atribuída não só a uma intenção consciente, mas também
a um propósito ditado por um sentimento de bondade, não é prova de
benevolência. E a não ser que os filhos de Deus sejam os objetos de Sua
complacência e deleite, não são objetos de Seu amor. Ele pode ser frio,
insensível, indiferente ou inclusive inconsciente; Ele deixa de ser Deus
no sentido da Bíblia, e, no sentido em que necessitamos um Deus, a
menos que Ele possa amar assim como conhecer e agir. A objeção
filosófica contra a sensação de atribuir a Deus, suporta, como vimos,
dentro da mesma força contra a atribuição a Ele de conhecimento ou
vontade. Se isso é uma objeção válida, Ele chega a ser para nós mais que

307
Christlichen Glaube, § 166; Works, Berlin, 1843, vol. iv. p. 513.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 583
uma causa desconhecida, o que os homens de ciência chamam força,
essa a que se refere todos os fenômenos, mas da qual nada sabemos.
Temos que aderir à verdade em sua forma escriturística, ou a perdemos
totalmente. Temos que crer que Deus é amor no sentido em que esta
palavra é compreendida por cada coração humano. As Escrituras não
zombam de nós quando dizem: «Como um pai se compadece de seus
filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem» (Sl 103:13).
Ele significava o que dizia quando se proclamou a Si mesmo como
«SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande
em misericórdia e fidelidade» (Êx 34:6). «Amados, amemo-nos uns aos
outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido
de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus,
pois Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver
Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio
dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus,
mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos
nossos pecados. Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós
também amar uns aos outros» (1Jo 4:7-11). A palavra amor tem o
mesmo sentido através de toda esta passagem. Deus é amor; e o amor
nEle é, em tudo o que é essencial em Sua natureza, o que o amor é em
nós. Nisso nos regozijamos, sim, e nos alegraremos.

B. A existência do mal.

Como pode a existência do mal, físico e moral, reconciliar-se com a


benevolência e santidade de um Deus infinito em sua sabedoria e poder?
Esta é a questão que tem exercitado a razão e posto à prova a fé dos
homens em todas as eras do mundo. Tal é a distância entre Deus e o
homem, tal é a fraqueza de nossos poderes, tão limitado é o campo de
nossa visão, que pareceria razoável deixar esta pergunta para que o
próprio Deus a responda. Se um menino não puder racionalmente julgar
a conduta de seus pais, nem um camponês compreender os assuntos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 584
políticos de um império, certamente que nós não somos competentes
para pedir contas a Deus, nem para perguntar-Lhe a razão de Seus
caminhos. Poderíamos repousar satisfeitos com a certeza de que o Juiz
de toda a terra deve fazer o que é justo. Mas estas considerações não
serviram para impedir as especulações a este respeito. A existência do
mal é constantemente apresentada pelos céticos como um argumento
contra a religião. E se encontra constantemente na mente dos crentes
como uma dificuldade e uma dúvida. Enquanto que é nosso dever
obedecer o mandamento: «Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus», não é
menos nosso dever protestar contra aquelas soluções a este grande
problema que ou destroem a natureza do pecado, ou a natureza de Deus.

Teorias que envolvem a negação do pecado.


A maioria das teorias propostas para dar conta da existência do mal
caem sob uma e outra das três classes que se citam: Primeiro, aquelas
que real ou virtualmente negam a existência do mal no mundo. O que
chamamos mal distingue-se como físico e moral, dor e pecado. Há
alguma plausibilidade no argumento dado para demonstrar que o
sofrimento não é necessariamente um mal. É necessário para a segurança
das criaturas sensíveis. Mas a dor existe muito além dos limites desta
necessidade. Tal é a quantidade e variedade de sofrimento no mundo, de
justos e injustos, de pequenos e de adultos, que nenhuma filosofia pode
apagar a convicção de que a desgraça que gravita tão pesadamente sobre
os filhos dos homens é um mal esmagador. Não há uma prova maior
para nossa fé que ver um pequeninho sofrendo uma dor insuportável.
Entretanto, se o sofrimento pudesse ser eliminado da categoria do mal, o
pecado não é tão facilmente eliminado. O mundo jaz em maldade. A
história do homem é, em sumo grau, a história do pecado. Se Deus é
santo, sábio e onipotente, como podemos explicar esta prevalência tão
estendida e continuadamente persistente do pecado?
Uma solução é a que se busca com a negação de que o pecado seja
um mal. Em outras palavras, nega-se que exista o pecado. O que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 585
consideramos como pecado é, conforme mantêm alguns, tão somente a
limitação do ser. Para estar livres de pecado devemos estar livres de
limitação, isto é, ser infinitos. Não é um mal que uma árvore seja menor,
menos bela ou menos valiosa que outras; ou que uma planta não possua a
vida sensível de um animal; ou que os animais não possuam as
capacidades racionais dos homens. Assim como num bosque vemos
árvores de todas as formas e tamanhos, desenvolvidos perfeita e
imperfeitamente, e esta diversidade é em si mesma boa, da mesma
maneira entre os homens os que estão mais, e outros menos conformados
à norma ideal da razão e do direito, mas isto não é um mal. É só
diversidade de desenvolvimento; a multiforme variedade de uma vida
sem fim.
Outros dizem que o que chamamos pecado é a condição necessária
da virtude. Que não pode haver ação sem reação; nem força sem
obstáculos a vencer; nem prazer sem dor; nem virtude sem vício. A
bondade moral é o domínio sobre o mal moral. Não pode haver o um
sem o outro. Tudo estaria morto e imóvel, um mar estagnado, se não
fosse por este antagonismo.
Outros por sua vez dizem que o pecado é só uma realidade
subjetiva. É análogo à dor. Algumas coisas nos afetam gratamente,
outras ingratamente; algumas suscitam aprovação, outras desaprovação.
Mas isto é simplesmente algo que diz respeito a nós. Deus não participa
mais em nossos juízos que em nossas sensações.
Outros não negam de maneira tão expressa a existência do pecado.
Admitem que não é apenas um mal para nós, mas também envolve culpa
diante de Deus, e que por isso deve ser castigado. Não obstante,
descrevem-no como surgindo necessariamente da constituição de nossa
natureza. Todas as criaturas estão sujeitas a uma lei de desenvolvimento
— a um “Werden.” A perfeição é uma meta que deve ser alcançada por
um processo gradual. Esta lei controla todas as esferas da vida, tanto a
vegetal como a animal, a intelectual e a moral. Cada planta se
desenvolve de uma semente. Nossos corpos começam num germe. A
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 586
infância é fraca e sofredora. Nossas mentes estão sujeitas à mesma lei.
Estão necessariamente abertas ao erro. Nossa vida moral não é uma
exceção a esta norma. Os seres morais, ao menos os constituídos como
nós, não podem evitar pecar. Está comprometido em sua natureza e
condição. É algo do que se deve sobreviver e que deve ser vencido. Se o
mundo está constituído e dirigido de maneira que há um progresso
continuado rumo à perfeição; se todo mal, e especialmente tudo pecado,
fica eliminado por este progresso, ficam com isso vindicadas a
sabedoria, bondade e santidade de Deus. Bruch 308 pergunta: “Por que
Deus (der heilige Urgeist) trouxe os homens ao mundo só com a
potencialidade da liberdade (que inclui a perfeição com ele), e não com a
realidade, mas deixou que a perfeição seja alcançada por um longo
processo de desenvolvimento? A única resposta a essa pergunta”, diz ele,
é “que o desenvolvimento encontra-se na própria natureza do finito.
Deve esforçar-se por alcançar a perfeição por um processo sem fim, sem
alcançá-lo jamais em sua plenitude. Também poderíamos nos perguntar
por que Deus ordenou que a árvore deve ser desenvolvida a partir de um
germe? Ou, por que a própria terra passou por tantos períodos de
mudança, sempre de um estado menor a um superior? Ou, por que o
universo é feito das coisas finitas, e é em si mesmo finito?” Ele
acrescenta a maior consideração, “que Deus, com a possibilidade do
pecado, proporcionou a redenção pela qual é vencido, banido, e
tragado.” “A aniquilação do pecado é o desígnio de toda a obra da
redenção. ‘O Filho do Homem veio para desfazer as obras do diabo.’
(1Jo 3.8). O pecado, entretanto, vai desaparecer só quando não apenas o
indivíduo, mas quando toda a raça humana alcançar a meta de seu
destino, — e quando”, pergunta ele, “isto sucederá?” 309 Esta questão ele
deixa sem resposta. Numa página seguinte, entretanto, cita Klaiber 310

308
Eigenschaften, p. 266.
309
Eigenschaften, p. 269, 270.
310
Von der Sünde und Erlösung, p. 21, Stud. der Ev. Geistl. Würtembergs. vol. II. part 2, Stuttgart,
1835.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 587
como dizendo: “A revelação divina dá a única resposta possível e
satisfatória à pergunta de como a existência do pecado pode-se conciliar
com a santidade de Deus, uma resposta que satisfaça não só nossos
sentimentos piedosos, mas nossas especulações antropológicas e
teológicas, em que se dá a conhecer a verdade de que Deus determinou
na criação dos seres, que, como agentes livres, estavam sujeitos à
possibilidade do pecado, e que foram por sua própria culpa afundado no
mal, com relação à redenção, de modo que o pecado é só um transeunte,
o fenômeno de fuga no desenvolvimento dos seres finitos. Esta é a
grande ideia que impregna a totalidade da revelação, sim, que é sua
essência e seu objetivo”.
É evidente que todas as teorias que fazem do pecado um mal
necessário destroem sua natureza segundo se revelou nas Escrituras, e
em nossa própria consciência.

O pecado considerado como o meio necessário


para o maior bem.
Uma teoria muito mais plausível, que pertence à classe daquelas
que virtualmente, embora não confessadamente, destroem a natureza do
pecado, é a que o considera como o meio necessário para o maior bem.
O pecado, em si mesmo, é um mal; relativamente, é um bem. O universo
está melhor com ele que sem ele. Em si mesmo, é um mal que os animais
menores sejam devorados pelos maiores; mas como isto é necessário
para impedir o indevido desenvolvimento da vida animal, e como dá
serviço às formas mais altas da mesma, deve ser uma disposição
benevolente. A amputação de um membro é um mal; mas se for
necessário para salvar a vida, é um bem. As guerras são males terríveis,
mas o mundo tem uma dívida com as guerras para a preservação da
liberdade civil e religiosa, pelo que são um preço pequeno. Melhor ter
guerra que perder a liberdade com que Cristo nos libertou. Assim, se o
pecado é o meio necessário para o maior bem, deixa de ser um mal,
globalmente, e é perfeitamente coerente com a benevolência de Deus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 588
permitir que ocorra. Este foi um método favorito de resolver o problema
do mal em todas as épocas. Esta é a ideia que Leibnitz elaborou tão
detalhadamente em sua Théodicée. Foi adotada por muitos teólogos que
não a levam até suas legítimas consequências. Assim Twesten 311 diz:
«Se o mundo depende de maneira absoluta do mais perfeito Ser; se é a
obra do mais sublime amor, poder e sabedoria, e se está constantemente
controlado e governado por Deus, tem que ser absolutamente perfeito».
Por isso, inclusive o pecado, embora como a dor é um mal em si mesmo,
tem que ser em conjunto um bem. É um elemento necessário num mundo
perfeito. Twesten, portanto, diz, 312 “Se o mundo, com o pecado e a
miséria que contém, produz uma maior quantidade de bem, e revela o
poder divino e o amor mais plenamente do que poderia ser possível,
então a consistência da existência do mal com a causalidade universal
(ou governo) de Deus é assim justificada.”
A boa palavra a esta conexão, de acordo com a doutrina comum dos
otimistas, não significa o bem moral, mas sim a felicidade. O princípio
sobre o qual se baseia esta teoria foi proposta num tratado póstumo do
Presidente Edwards, em que ele ensina que a virtude consiste no amor do
ser. Este princípio foi adotado e levado a cabo pelos Drs. Hopkins e
Emmons em seus sistemas de teologia, que durante muitos anos teve
grande influência neste país.

Objeções a esta teoria.


Por plausível que seja esta teoria, está aberta a muitas objeções.
1. Em primeiro lugar, não temos direito a limitar o Deus infinito.
Dizer que este é o melhor dos mundos possíveis quer dizer que Deus não
pode fazer nada maior e melhor; o que, a não ser que o mundo seja
infinito, quer dizer que Deus é finito. É-nos suficiente crer que o mundo
com seus resultados finitos é o que Deus, em Sua sabedoria, considerou

311
Dogmatik. II, p. 121.
312
Ibid. p. 130.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 589
oportuno chamar à existência; mas que seja o melhor que Ele pudesse
fazer é uma hipótese gratuita e depreciativa.
2. É antiescriturístico, e contrário à razão moral, fazer da felicidade
o fim da criação. A Bíblia declara que a glória de Deus, um fim
imensamente mais elevado, é a causa final para a qual existem todas as
coisas. O juízo instintivo de todos os homens é que a santidade ou
excelência moral é um bem maior que a felicidade. Mas, com base nesta
teoria, a santidade não tem valor a não ser como meio para a produção de
santidade. Isto não pode ser crido, exceto sob o protesto de nossa
natureza moral. Portanto, a teoria em questão soluciona o problema do
mal negando sua existência. Nada é um mal se tender a maior felicidade.
O pecado é o meio necessário para o maior bem, e por isso não é mal.

A doutrina de que Deus não pode impedir o pecado num


sistema moral
O segundo método geral de conciliar a existência do pecado com a
benevolência e santidade de Deus é não negar que o pecado é um mal,
inclusive quando se consideraram todas as coisas, mas sim afirmar que
Deus não pode impedir o pecado, ou sequer a atual quantidade de
pecado, num sistema moral. Pressupõe que a certeza é inconsequente
com a livre atividade. Qualquer tipo ou grau de influência que faça certo
como vai agir um agente livre destrói sua liberdade de ação. Ele deve ser
sempre capaz de agir contra qualquer grau de influência que se aplique
sobre ele, ou deixa de ser livre. Assim, Deus se limita necessariamente
ao criar agentes livres. Estão além de Seu controle absoluto. Pode arguir
e persuadir, mas não pode governar.
Esta doutrina de que Deus não pode controlar eficazmente as ações
dos agentes livres, sem destruir sua liberdade, é tão contrária às
Escrituras que nunca foi adotada por nenhuma seção organizada da
Igreja Cristã. Alguns teólogos se valem da mesma só para alguma
emergência, quando tratam desta questão, embora esteja em total colisão
com seu esquema geral. Twesten, por exemplo, que, como vimos, num
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 590
só lugar ensina que Deus permite o pecado voluntariamente como os
meios necessários para o maior bem, em outro lugar 313 , diz que Ele não
pode impedi-lo num sistema moral. “Mit der Freiheit,” diz ele, “war die
Möglichkeit des Misbrauchs gegeben; ohne jene zu vernichten, konnte
Gott diesen nicht verhindern.” Quer dizer, sem destruir a liberdade, Deus
não pode impedir seu abuso. Se é assim, então Deus não pode governar
agentes livres. Não pode assegurar o cumprimento de Seus propósitos,
nem o cumprimento de Suas promessas. Não há certeza para o triunfo do
bem no universo. Os anjos e os santos no céu podem todos chegar a
pecar e o mal chegar a ser dominante e universal. Com base nesta teoria,
toda oração de que Deus possa mudar nossos próprios corações, ou os
corações de outros, vem a ser irracional. É uma doutrina tão contrária ao
ensino da Bíblia, que em todas as partes proclama a soberania e a
supremacia de Deus, declarando que os corações dos homens estão em
Sua mão, e que como os distribuições das águas, inclina-os para onde
quer; que faz bem disposto a Seu povo no dia de Seu poder, operando
neles o querer e o fazer, segundo o Seu beneplácito; é tão inconsistente
com a promessa de dar arrependimento e fé, com a declaração de Seu
poder de mudar o coração; é tão incompatível com as esperanças e a
confiança do crente de que Deus pode guardá-lo de cair; e é tão
subversiva da ideia de Deus tal como se apresenta na Bíblia e que se
revela em nossa natureza, que a Igreja, unânime, preferiu deixar sem
explicar o mistério do mal antes que buscar sua solução, em princípio,
que mina os fundamentos de toda religião.

A doutrina escriturística.
O terceiro método de tratar com esta questão é repousar satisfeitos
nas simples declarações da Bíblia. As Escrituras ensinam: (1) que a
glória de Deus é o fim ao que estão subordinados a promoção da
santidade a produção da felicidade e todos os outros fins. (2) Que sendo,

313
Dogmatik, ii. p. 137.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 591
portanto, a própria manifestação de Deus, a revelação de Sua infinita
perfeição, o maior bem concebível ou possível, é ela o fim último de
todas as Suas obras na criação, providência e redenção. (3) Como as
criaturas sensíveis são necessárias para a manifestação da benevolência
de Deus, tampouco poderia haver manifestação de Sua misericórdia sem
miséria, nem de Sua graça e justiça se não houvesse pecado. Assim
como os céus declaram a glória de Deus, assim Ele traçou o plano da
redenção: «Para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se
torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares
celestiais» (Ef 3:10). O conhecimento de Deus é vida eterna. É para as
criaturas o mais alto bem. E a promoção deste conhecimento, a
manifestação das multiformes perfeições do Deus infinito, é o maior fim
de todas as Suas obras. Este, declara o Apóstolo, é o fim contemplado,
tanto no castigo dos pecadores como na salvação dos crentes. É um fim
perante o qual, diz ele, ninguém pode objetar racionalmente. «Que
diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados
para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da
sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de
antemão ...? (Rm 9:22,23). Assim, segundo as Escrituras, o pecado é
permitido para que a justiça de Deus possa ser conhecida em seu castigo,
e Sua graça em Seu perdão. E o universo, sem o conhecimento destes
atributos, seria como a terra sem a luz do sol.
Sendo a glória de Deus o grande fim de todas as coisas, não
estamos obrigados a supor que este seja o melhor dos mundos possíveis
para a produção da felicidade, ou sequer para assegurar o maior grau de
santidade entre as criaturas racionais. Está sabiamente adaptado para o
fim para o qual foi disposto, isto é, a manifestação das multiformes
perfeições de Deus. Que Deus, ao Se revelar a Si mesmo, promove o
maior bem de Suas criaturas consistente com a promoção de Sua própria
glória é coisa que se pode admitir. Mas inverter esta ordem, e fazer do
bem da criatura o maior fim, é perverter e subverter todo o esquema; é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 592
pôr os meios em lugar do fim, subordinar a Deus ao universo, o Infinito
ao finito. Este ato de pôr a criatura em lugar do Criador perturba nossos
sentimentos e convicções tanto no âmbito moral como no religioso,
assim como nossa compreensão intelectual de Deus e sua relação com o
universo.
Os teólogos mais antigos quase em unanimidade fazem a glória de
Deus o último, e o bem da criatura a final subordinação de todas as
coisas. Twesten, de fato, diz que 314 não faz nenhuma diferença se
dissermos que Deus propõe sua própria glória como o fim último, e, para
esse propósito, determinou a produzir o máximo grau de bem, ou que se
tinha proposto o maior bem de Suas criaturas, de onde a manifestação
dos fluxos de Sua glória como consequência. Entretanto, faz toda a
diferença no mundo, se o Criador está subordinado à criatura, ou a
criatura ao Criador; se o fim são os meios ou os meios o fim. Há uma
grande diferença se a terra ou o sol se assume como o centro de nosso
sistema solar. Se fizermos a terra o centro, nossa astronomia estará em
confusão. E se fizermos a criatura, e não Deus, o fim de todas as coisas,
nossa teologia e a religião da mesma maneira se perverte. Em último
termo, pode-se afirmar com certeza que um universo feito com o
propósito de dar a conhecer a Deus é um universo muito melhor que um
designado para a produção de felicidade.

314
Dogmatik, vol. II. p. 89.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 593
§ 14. A verdade de Deus.

A verdade é uma palavra que ocorre frequentemente e que tem


amplo significado na Bíblia. O sentido primário da palavra grega
ἀλήθεια (aletheia [de a y lethe]) é abertura; o que não está escondido.
Mas no hebraico, e por isso na Bíblia, a ideia primária de fato é aquilo
que sustenta, ou que não deixa de sustentar nossas expectativas. Assim, o
verdadeiro é: (1) O real, em oposição ao fictício e imaginário. Jeová é o
verdadeiro Deus, porque Ele é realmente Deus, enquanto que os deuses
dos pagãos são vaidade e nada, meros seres imaginários, que não têm
nem existência nem atributos. (2) O verdadeiro é o que se ajusta
totalmente a sua ideia, ao que afirma ser. Um homem verdadeiro é
aquele em quem cumpre-se realmente a ideia do que dá de ser um
homem. O verdadeiro Deus é Aquele em quem encontra-se tudo o que
significa a Deidade. (3) O verdadeiro é aquilo no que a realidade se
corresponde exatamente com a manifestação. Deus é verdadeiro, porque
O é realmente o que declara ser; porque O é o que manda que criamos
que é; e porquanto todas suas declarações se correspondem com o que
realmente é. (4) O verdadeiro é aquilo em que podemos confiar, que não
falha, nem muda nem frustra. Neste sentido também Deus é verdadeiro,
tal como é imutável e fiel. Sua promessa não pode falhar; sua palavra
nunca frustra. sua palavra permanece para sempre. Quando o Senhor diz:
«Sua palavra é verdade», diz que tudo o que Deus revelou é digno de
confiança como correspondendo-se exatamente com a que realmente é,
ou tem que ser. sua palavra nunca falhará, embora passem o céu e a terra.
Portanto, a verdade de Deus é a base de toda religião. É a base de
nossa certeza de que a que Ele revelou que Si mesmo e de sua vontade,
em suas obras e nas Escrituras, é digno de confiança. Ele certamente é, e
quer, e fará, tudo aquilo que deu assim a conhecer. E não é menos a base
de todo conhecimento. Aquele que nossos sentidos não nos enganem;
aquele que a consciência é fidedigna no que ensina; aquele que tudo é o
que nos parece ser; o fato de que nossa existência não é um sonho
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 594
enganos, não tem outro fundamento que a verdade de Deus. Neste
sentido, todo conhecimento se baseia na fé, isto é, na crença de que Deus
é verdadeiro.
Os teólogos costumam dizer: (1.) “Veritas Dei in essentia, est
convenientia omnium eorum, quæ ad naturam perfectissimi pertinent
eamque totam constituunt; qua ratione Deus verus opponitur fictis et
commentitiis.” (Jr. 10.8, 10, 11; Jn 5.20, 21.) (2.) “Veritas Dei in
intellectu, est convenientia cogitationum cum objecto.” . . . . (Jó 11.7; At
15.18). (3.) “Veritas Dei in voluntate est convenientia decreti ac
propositi efficacis cujusque cum rationibus in intellectu probe cognitis et
judicatis.” (Rm 11.33.) (4.) “Veritas Dei in factis, est convenientia
actionum cum proposito.” (Sl 24.10) (5.) “Veritas Dei in dictis, quæ
singulatim vocari solet veracitas, est convenientia verborum omnium
cum recta cogitatione animique sententia, et efficaci voluntatis
proposito.” (Nm. 23.19; 1Sm. xv. 29; Tt. 1.2; Hb. 6.18.) “Hæc cernitur
(a). in doctrinis (Is 17.17); (b), in prædictionibus, promissionibus, ut et
comminationibus. (Nm 23.19.)” 315
No mesmo sentido o teólogo reformado Endemann, diz: “Veracitas
Deo duplici sensu recte adscribitur, (1.) Quatenus nunquam errat, quia
est omniscius, nunquam errorem aliis significat, quia id repugnat bonitati
ejus. . . . . (2.) Quatenus Deus ea actu sentit, quæ verbis vel factis entibus
intelligentibus significat. Deus actionibus et sermonibus suis eum
intendit finem, ut sibi homines credant, confidant, etc., quem finem
everteret si semel a veritate discederet. Scriptura docet idem scil. quod
Deus . . . . [est] verax, immunis ab omni errore et mendacio. . . . . Fidelis
est Deus, quatenus ingenue aliquid promittit; atque promissum
certissimo complet. . . . . Severitatem Deo tribuimus quatenus
comminationes suas implet.” 316

315
Hollaz, Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, pp. 243, 244.
316
Compendium Theologicum, I. § 33; edit. Hanoviæ, 1777, pp. 97, 99.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 595
Os teólogos filosóficos negam virtualmente que haja em Deus
algum atributo como o da verdade. Dizem que o que se designa com este
termo é só a uniformidade da lei. A eficiência de Deus é exercida de tal
maneira que podemos confiar numa sequência regular de eventos. Neste
sentido pode-se dizer que Deus é verdadeiro. Bruch 317 admite: “Que esta
ideia surge necessariamente fora de nossa consciência religiosa, na
medida em que abraçamos com toda confiança o que consideramos
como uma revelação divina, e somos persuadidos de que Deus em Seu
devido tempo cumprirá tudo o que Se propôs, prometeu, ou ameaçou.
Esta confiança é expressa com frequência, nos termos mais enérgicos,
nos escritos sagrados, e é a fonte da fé firme pela qual o cristão recebe a
revelação feita em Cristo, e da confiança inquebrantável com a qual
antecipa o cumprimento das promessas divinas.”
Entretanto, embora esta ideia da verdade de Deus tem seu
fundamento em nossa própria natureza, e é tão reconhecido claramente
nas Escrituras, e embora entre tão profundamente na experiência
religiosa e as esperanças do crente, é um engano. Não há tal atributo em
Deus. É antifilosófico, e portanto impossível que devia haver a distinção,
que logo deve ser assumido, entre o propósito e ação na mente divina. A
adscrição da verdade ou veracidade de Deus descansa, diz Bruch, “no
suposto de uma distinção nEle entre o pensamento e sua manifestação,
entre Suas promessas e ameaças, e sua realização, que não só destrói a
unidade da essência divina, mas também Ele reduz às limitações e às
mudanças de tempo. . . . . Como a adscrição da veracidade de Deus surge
do que observamos em nós mesmos, suporta a impressão do
antropomorfismo, e não tem direito ao reconhecimento científico.”318
Ademais, ele se opõe à atribuição de fato a Deus, no sentido comum do
termo, porque Deus trabalha de maneira uniforme segundo a lei, e

317
Eigenschaften, p. 250.
318
Eigenschaften, p. 250.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 596
portanto, “propriamente falando, não pode haver com Ele tal coisa como
promessas ou ameaças.” 319
A ideia é que assim como Deus estabeleceu certas leis físicas, e que
se os homens as observam eles estão bem, e se as violam, sofrem por
isso, do mesmo modo há leis que determinam o bem-estar das criaturas
racionais; se observamos estas leis, somos felizes; se as menosprezamos,
somos desgraçados. Deus não tem nada que ver com isso, exceto que
estabeleceu estas leis e as executa. Por isso, a ideia filosófica da verdade
de Deus é a imutabilidade da lei, física e moral. Este ponto de vista é
ainda mais definitivamente apresentado por Schweizer. 320 Deus desde o
princípio até o fim do mundo é uma e a mesma causalidade; isto, em
referência ao mundo moral, é sua verdade, veracitas, fidelitas, na medida
em que ás revelações posteriores, ou ás manifestações desta causalidade,
correspondem ao que as manifestações anteriores nos levam a esperar.
Deus, segundo este ponto de vista, não é tanto uma pessoa, como
um nome para a ordem moral do universo. Naturalmente, há, algo de fato
nesta concepção. As leis de Deus, mediante as que Ele governa a Suas
criaturas, racionais e irracionais, são uniformes. É verdade que um
homem colhe o que semeia; que recebe aqui e no além as consequências
de sua conduta. Se semeia para a carne, recebe corrupção; se semeia para
o espírito, colhe vida eterna. Mas estas leis são administradas por um
Deus pessoal, que, assim como controla as leis físicas para produzir
abundância ou fome, saúde ou pestilência, conforme Lhe parece
apropriado, também controla todas as leis que determinam o bem-estar
das almas dos homens, para levar a cabo os Seus desígnios e obter o
cumprimento de Suas promessas e ameaças. As leis de um governo
humano bem constituído são uniformes e imparciais, mas isso não é
incongruente com Sua administração pessoal.

319
Ibid. p. 252.
320
Glaubenslehre, vol. i. p. 443.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 597
É uma grande misericórdia que, ao menos em alguns casos, aqueles
cuja filosofia proíbe sua crença na personalidade de Deus, creem na
personalidade de Cristo, a quem consideram como um homem investido
de todos os atributos da Divindade, e a quem amam e adoram em
consequência.

§ 15. A soberania de Deus

A soberania não é uma propriedade da natureza divina, mas uma


prerrogativa que surge das perfeições do Ser Supremo. Se Deus é
Espírito, e por isso uma pessoa, infinito, eterno e imutável em Seu ser e
perfeições, o Criador e Preservador do universo, Ele é por direito seu
soberano absoluto. A infinita sabedoria, bondade e poder, com o direito
de posse que pertence a Deus quanto a todas as Suas criaturas, são o
fundamento imutável de Seu domínio. «No céu está o nosso Deus e tudo
faz como lhe agrada» (Sl 115:3). «Todos os moradores da terra são por
ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o
exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a
mão, nem lhe dizer: Que fazes?» (Dn 4:35). «Teu é tudo quanto há nos
céus e na terra» (1Cr 29:11). «Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que
nela se contém, o mundo e os que nele habitam» (Sl 24:1). «Teu,
SENHOR, é o reino, e tu te exaltaste por chefe sobre todos» (1Cr 29:11).
«Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma
do filho é minha» (Ez 18:4). «Ai daquele que contende com o seu
Criador! E não passa de um caco de barro entre outros cacos. Acaso, dirá
o barro ao que lhe dá forma: Que fazes? Ou: A tua obra não tem alça?»
(Is 45:9). «Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?» (Mt 20:15).
Ele «faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade» (Ef 1:11).
«Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois,
a glória eternamente. Amém!» (Rm 11:36).
Com base nesta e em outras passagens similares da Escritura fica
claro: (1) Que a soberania de Deus é universal. Estende-se a todas as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 598
Suas criaturas, da mais excelsa à mais ínfima. (2) Que é absoluta. Não se
podem pôr limites à Sua autoridade. Ele faz Seu beneplácito nas hostes
do céu e entre os moradores da terra. (3) É imutável. Não pode ser nem
ignorada nem rejeitada. Liga a todas as criaturas, tão inexoravelmente
como as leis físicas ligam ao universo material.
Esta soberania é exercida: (1) No estabelecimento de leis, físicas e
morais, pelas quais as criaturas devem reger-se. (2) Na determinação da
natureza e poderes das diferentes ordens dos seres criados, e na
atribuição de cada uma à sua esfera apropriada. (3) Na designação para
cada indivíduo de sua posição e sorte. É o Senhor quem fixa os limites
de nossa morada. Nossos tempos estão em Suas mãos. Ele decide
quando, onde e sob que circunstâncias deve nascer cada indivíduo de
nossa raça, e viver e morrer. Assim, as nações, não menos que os
indivíduos, estão nas mãos de Deus, que lhes atribui sua herança na terra,
e controla o seu destino. (4) Deus não é menos soberano na distribuição
de Seus favores. Ele faz o que quer com o que é Seu. A uns dá riquezas,
a outros honra e a outros saúde, enquanto que outros são pobres,
desconhecidos ou vitima de doenças. A alguns envia a luz do evangelho;
outros são deixados em trevas. Alguns são levados à salvação por meio
da fé; outros perecem na incredulidade. A pergunta Por que assim?, a
única resposta é a dada por nosso Senhor: «Sim, Pai, porque assim te
agradou».
Embora esta soberania é assim universal e absoluta, é a soberania
da sabedoria, da santidade e do amor. A autoridade de Deus não fica
limitada por nada fora dEle mesmo, mas sim é controlada, em todas suas
manifestações, por Suas infinitas perfeições. Se um homem é livre e
exaltado, em proporção a que está governado pela razão iluminada e por
uma consciência ampla, assim é supremamente bendito aquele que se
submete contente de ser governado pela infinita razão e sabedoria de
Deus. Esta soberania de Deus é a base da paz e confiança de todo Seu
povo. Eles se alegram em que o Senhor Deus onipotente reina; que nem
a necessidade, nem o acaso, nem a insensatez humana, nem a malícia de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 599
Satanás controlam a sequência de acontecimentos e todos os seus
resultados. A infinita sabedoria, amor e poder pertencem a Ele, ao nosso
grande Deus e Salvador, nas mãos de quem foi entregue toda potestade
nos céus e na terra.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 600
CAPÍTULO VI
A TRINDADE

§ 1. Observações preliminares.

A doutrina da Trindade é peculiar à religião da Bíblia. A Tríade do


mundo antigo é só uma declaração filosófica da teoria panteísta que
subjaz a todas as religiões da antiguidade. Para os hindus, o simples ser
não desenvolvido, primordial, recebe o nome de Brahma. Este ser,
desenvolvendo-se no mundo real, é Vishnu; como voltando para o
abismo do ser inconsciente, é Shiva. No budismo achamos
essencialmente as mesmas ideias, numa forma mais dualista. O budismo
estabelece uma maior distinção entre Deus, ou o princípio espiritual de
todas as coisas, e a natureza. A alma do homem é uma parte, ou forma
existencial, de sua essência espiritual, cujo destino é que possa ser
libertado da natureza e perder-se no Infinito desconhecido. No
platonismo também achamos uma trindade conceitual. O simples ser (τὸ
ὀν [to on]) tem seu λόγος [logos], o complexo de suas ideias, a realidade
em tudo o que é fenomênico e cambiante. Em todos estes sistemas,
antigos ou modernos, há uma Tese, Antítese e Síntese; o Infinito torna-se
finito, e o finito volta para o Infinito. É evidente, portanto, que estas
fórmulas trinitárias não têm analogia com a doutrina escriturística da
Trindade, e não servem nem para explicá-la nem para confirmá-la.
O desígnio de todas as revelações contidas na Palavra de Deus é a
salvação do homem. A verdade tem como fim a santidade. Deus não dá a
conhecer Seu ser e atributos para ensinar ciência aos homens, senão para
levá-los a um conhecimento salvador de Si mesmo. Assim, as doutrinas
da Bíblia estão intimamente ligadas com a religião, ou com a vida de
Deus na alma. Determinam a experiência religiosa dos crentes, e se
pressupõem nessa experiência. Isto é especialmente certo da magna
doutrina da Trindade. É um grande erro considerar esta doutrina como
uma verdade meramente especulativa ou abstrata, tratando da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 601
constituição da Deidade que não seja de interesse prático para nós, ou
que tenhamos que crer; simplesmente porque é uma verdade revelada.
Ao contrário, subjaz a todo o plano de salvação, e determina o caráter da
religião (no sentido subjetivo do termo) de todos os verdadeiros cristãos.
É a fé inconsciente, ou não estruturada, inclusive daqueles do povo de
Deus que não podem compreender os termos em que se expressa. Eles
todos creem em Deus, o Criador e Preservador contra quem pecaram, e
cuja justiça eles sabem que não podem satisfazer, e cuja imagem não
podem restaurar na apóstata natureza deles. Por isso, de maneira
necessária, creem num Redentor divino e num Santificador divino. Têm,
por assim dizer, os fatores da doutrina da Trindade em suas próprias
convicções religiosas. Nenhuma doutrina meramente especulativa,
especialmente nenhuma doutrina tão misteriosa e tão sem analogia com
todos os objetos do conhecimento humano como a da Trindade, poderia
haver jamais alcançado o controle permanente sobre a fé da Igreja, como
aquele que manteve esta doutrina. Assim, não é por nenhuma decisão
arbitrária, nem por nenhuma adesão fanática a crenças hereditárias, que a
Igreja recusou sempre reconhecer como cristãos aos que rejeitam esta
doutrina. Este juízo é só a expressão da profunda convicção de que os
antitrinitários devem adotar um sistema de religião radical e
praticamente diferente daquele sobre o qual a Igreja edifica suas
esperanças. Não é muito dizer com Meyer 321 que «a Trindade é o ponto
de união de todas as ideias e interesses cristãos ao mesmo tempo o
princípio e o fim de toda percepção a respeito do cristianismo».
Este grande artigo da fé cristã pode ser considerado sob três
aspectos diferentes: (1) A forma bíblica da doutrina. (2) A forma
eclesiástica, ou o modo em que foram explicadas as declarações da
Bíblia nos símbolos da Igreja e nos escritos dos teólogos. (3) Sua forma
filosófica, ou os intentos que se têm feito para ilustrar, ou para
demonstrar a doutrina com base em princípios filosóficos. É só a

321
Lehre von der Trinität, vol. I. p. 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 602
doutrina tal como se apresenta na Bíblia a que compromete a fé e a
consciência do povo de Deus.

§ 2. Forma bíblica da doutrina.

A. Qual é a forma que adota.

A forma em que esta doutrina encontra-se na Bíblia, e em que entra


na fé da Igreja universal, inclui substancialmente os seguintes pontos:
1. Há um só Deus vivo e verdadeiro, ou Ser Divino. A religião da
Bíblia se levanta em oposição não só ao Ateísmo, mas também a todas as
formas de Politeísmo. As Escrituras afirmam em todos os lugares que só
Jeová é Deus. (Dt 6:4). «O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR».
«Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus» (Is
44:6). «Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem» (Tg 2:19). O Decálogo,
que é o fundamento do código moral e religioso do cristianismo, assim
como do judaísmo, tem como seu primeiro e grande mandamento: «Não
terá outros deuses diante de mim». Portanto, nenhuma doutrina pode ser
certa se contradisser esta verdade primária da religião natural assim
como da revelada.
2. Na Bíblia todos os títulos e atributos divinos são adscritos
igualmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito. É-Lhes tributado o mesmo
culto divino. Um é tanto objeto de adoração, amor, confiança e devoção
como o outro. Não é mais evidente que o Pai seja Deus que o Filho seja
Deus; nem a deidade do Pai e do Filho mais claramente revelada que a
do Espírito.
3. Os termos Pai, Filho e Espírito não expressam diferentes relações
de Deus com Suas criaturas. Não são análogos aos termos Criador,
Preservador e Benfeitor, que sim expressam tais relações. Os atos
escriturários são: (a) O pai diz Eu; o Filho diz Eu; o Espírito diz Eu. b) O
Pai diz Tu ao filho, e o Filho diz Tu ao Pai; e de maneira semelhante o
Pai e o Filho usam o pronome Ele com referência ao Espírito. c) O Pai
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 603
ama o Filho; o Filho ama ao Pai; o Espírito testifica a respeito do Filho,
O Pai, Filho e Espírito são variadamente sujeito e objeto. Agem e são
objetos de ações. Nada se acrescenta a estes fatos quando se diz que o
Pai, Filho e Espírito são pessoas distintas; porque uma pessoa é um
sujeito inteligente que pode dizer Eu, a quem se pode-se apelar como Tu,
e que pode agir e ser objeto de ação. A soma dos anteriores fatos se
expressa na proposição, Ele um Ser divino subsiste em três pessoas, Pai,
Filho e Espírito. Esta proposição não acrescenta nada aos próprios fatos,
porquanto os fatos são: (1) Que há um Ser Divino. (2) O Pai, o Filho e o
Espírito são divinos. (3) O Pai, o Filho e o Espírito são, no sentido
recém-expresso, pessoas distintas. (4) Sendo os atributos inseparáveis da
substância, as Escrituras, ao dizer que o Pai, o Filho e o Espírito
possuem os mesmos atributos, dizem que são o mesmo em substância; e
se o mesmo em substância, são iguais em poder e glória.
4. Apesar de que o Pai, o Filho e o Espírito são o mesmo em
substância e iguais em poder e glória, não é menos certo, segundo as
escrituras, (a) Que o Pai é primeiro, o segundo Filho, e o terceiro
Espírito. O Filho é do Pai (ἐκ θεοῦ [ek theou], o λόγος, εἰκὼν,
ἀπαύγασμα, τοῦ θεοῦ [logos, éikon, apaugasma, tou theou]); e o Espírito
é do Pai e do Filho, (c) O Pai envia o Filho, e o Pai e o Filho enviam ao
Espírito. (d) O Pai opera por meio do Filho, e o Pai e o Filho operam por
meio do Espírito. Nunca se encontra o recíproco destas afirmações.
Nunca se diz do Filho que envia o Pai, nem que opere por meio dEle;
nem jamais se diz que o Espírito envia o Pai ou o Filho, ou que opere por
meio dEles. Os fatos contidos neste parágrafo são recapitulados nesta
proposição: Na Santa Trindade há uma subordinação das Pessoas quanto
ao modo de subsistência e operação. Esta proposição, mais uma vez, não
acrescenta nada aos próprios fatos.
5. Segundo as Escrituras, o Pai criou o mundo, o Filho criou o
mundo, e o Espírito criou o mundo. O Pai preserva todas as coisas; o
Filho sustenta todas as coisas; e o Espírito é a fonte de toda vida. Estes
fatos se expressam dizendo que as pessoas da Trindade concorrem em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 604
todas as ações ad extra [em todas as ações externas]. Entretanto, há
alguns atos que são predominantemente referidos ao Pai, outros ao Filho,
e outros ao Espírito. O Pai cria, escolhe, e chama; o Filho redime; e o
Espírito santifica. E, por outro lado, há certas ações, ou condições, que se
pregam de uma pessoa da Trindade, que nunca se prega de nenhuma das
outras. Assim, a geração pertence exclusivamente ao Pai, a filiação ao
Filho, e a procedência ao Espírito. Esta é a forma em que se encontra a
doutrina da Trindade na Bíblia. A anterior afirmação não envolve
nenhum elemento filosófico. Trata-se simplesmente de uma exposição
ordenada dos fatos claramente revelados que têm que ver com esta
questão. Esta é a forma em que esta doutrina sempre entrou na fé da
Igreja, como parte de suas convicções e experiência religiosa.
Dizer que esta doutrina é incompreensível não quer dizer nada mais
que o que se deve admitir de qualquer outra grande verdade, tanto se é de
revelação como se é de ciência. É irrazoável dizer que é impossível que
uma substância divina possa subsistir em três pessoas distintas, quando,
segundo a forma de filosofia que teve mais difusão e persistência, tudo o
que existe é só uma das inumeráveis formas em que subsiste uma e a
mesma substância infinita; e quando, segundo os realistas, que em certo
tempo controlaram o mundo intelectual, todos os homens são as formas
individualizadas da numericamente mesma substância chamada
humanidade genérica.

B. Prova escriturística da doutrina.

Nenhuma doutrina como a da Trindade pode ser demonstrada de


maneira adequada mediante alguma citação de passagens escriturísticas.
Seus elementos constitutivos são expostos, alguns num lugar, outros em
outro. A unidade do Ser Divino; a verdadeira e igual divindade do Pai,
Filho e Espírito; sua distinta personalidade; a relação que têm um com o
outro, e com a Igreja e o mundo, não se apresentam numa fórmula
doutrinal na Palavra de Deus, mas antes, os vários elementos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 605
constitutivos da doutrina são declarados, ou supostos, vez após vez,
desde o começo até o fim da Bíblia. É por isso mediante a prova destes
elementos separadamente que se pode estabelecer a doutrina de uma
maneira totalmente satisfatória. Todo o necessário, aqui, é uma
referência aos ensinos gerais da Escritura a respeito desta questão, e a
algumas passagens nas quais se inclui tudo o que é essencial na doutrina.

Caráter progressivo da Revelação divina.


1. Reconhece-se o caráter progressivo da revelação divina com
relação a todas as grandes doutrinas da Bíblia. Um dos argumentos mais
poderosos da origem divina das Escrituras é a relação orgânica de suas
várias partes. Compreendem mais de sessenta livros escritos por homens
diferentes em idades distintas, e, entretanto, constituem um todo; não por
meras relações históricas externas, nem em virtude da identidade geral
dos temas de que tratam, mas por seu desenvolvimento orgânico interno.
Tudo o que está numa árvore totalmente desenvolvido estava já
potencialmente na semente. Tudo o que encontramos desenvolvido na
plenitude do evangelho encontra-se em forma rudimentar nos primeiros
livros da Bíblia. O que no princípio é insinuado só obscuramente é
desenvolvido gradualmente em partes posteriores do volume sagrado, até
que a verdade se revela em sua plenitude. Isto é certo das doutrinas da
redenção; da pessoa e obra do Messias, a prometida Semente da mulher;
da natureza e do ofício do Espírito Santo; e de um estado futuro para
além do sepulcro. E isto é especialmente certo da doutrina da Trindade.
Inclusive no livro de Gênesis há insinuações da doutrina que recebem
sua verdadeira interpretação em posteriores revelações. O fato de que os
nomes de Deus estão na forma plural; de que os pronomes pessoais
estejam com frequência na primeira pessoa do plural («Façamos o
homem à nossa imagem»); que a forma de bênção seja tríplice, e outros
fatos da própria natureza, podem receber todos eles distintas explicações.
Mas quando se faz claro, com base no progesso da revelação, que há três
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 606
pessoas na Deidade, então dificilmente pode deixar-se de reconhecer que
estas formas de expressão estão baseadas nesta grande verdade.
2. Entretanto, de muita maior importância é o fato de que, não só
em Gênesis, mas também em todos os anteriores livros da Escritura,
achamos uma distinção estabelecida entre Jeová e o Anjo de Jeová, o
próprio Deus, e a quem se atribuem todos os títulos divinos, e a quem se
presta adoração divina. Ao ir-se desenvolvendo a revelação, esta
distinção se vai fazendo cada vez mais manifesta. Este mensageiro de
Deus é chamado a palavra, a sabedoria, o Filho de Deus. Sua
personalidade e divindade são claramente reveladas. Ele é muito tempo
atrás, desde a eternidade, o Deus Forte, o Adonai, o Senhor de Davi,
Jeová nossa justiça, que devia nascer de uma virgem, e carregar os
pecados de muitos.
3. Da mesma maneira, inclusive no primeiro capítulo do Gênesis, o
Espírito de Deus é representado como a fonte de toda a inteligência, a
ordem e a vida no universo criado; e nos seguintes livros do Antigo
Testamento Ele é representado como inspirador dos profetas, dando
sabedoria, força e bondade aos estadistas e guerreiros, e ao povo de
Deus. O Espírito não é uma agência, mas sim um agente, que ensina e
seleciona, contra quem se pode pecar e ofender, e quem, no Novo
Testamento, sem lugar a dúvida, é revelado como uma pessoa distinta.
Quando João Batista apareceu, encontramo-lo falando do Espírito Santo
como de uma pessoa com quem seus compatriotas eram familiares, como
um objeto de culto divino e o doador de bênçãos salvadoras. Nosso
divino Senhor também toma esta verdade por sentado, e prometeu enviar
o Espírito, como um Paracleto, para ocupar seu lugar; para instruir,
confortar, e fortalecê-los, aos que o iam receber e obedecer. Portanto,
sem nenhum tipo de transição violenta, as primeiras revelações deste
mistério foram sendo desdobradas gradualmente, até que o Deus Triúno,
Pai, Filho e Espírito, aparece no Novo Testamento como o
universalmente conhecido Deus de todos os crentes.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 607
A fórmula batismal.
4. Nas fórmulas do batismo, e da Bênção Apostólica, fez-se
provisão para manter esta doutrina constantemente diante da mente do
povo, como artigo cardeal da fé cristã. Cada cristão é batizado em nome
do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. A personalidade, a divindade, e a
conseguinte igualdade destes três sujeitos aqui são dadas por sentado. A
associação do Filho e do Espírito com o Pai, a identidade de relação,
pelo que concerne à dependência e obediência, que sustentamos perante
o Pai, Filho e Espírito respectivamente; a confissão e profissão envoltas
nas ordenanças, tudo isso impede qualquer outra interpretação desta
fórmula que a que sempre recebeu na Igreja. Se a expressão «Em nome
do Pai» implica a personalidade do Pai, a mesma implicação existe
quando se usa com referência ao Filho e ao Espírito. Se reconhecemos
nossa sujeição e adesão ao primeiro, reconhecemos a mesma sujeição e
adesão às outras pessoas divinas aqui nomeadas.

A bênção apostólica.
Na bênção apostólica dirige-se uma oração a Cristo por Sua graça,
ao Pai por Seu amor, e ao Espírito por Sua comunhão. Assim, cada vez
que esta bênção é pronunciada e recebida, a personalidade e divindade
de cada um ficam solenemente reconhecidas.
5. No registro do batismo de nosso Senhor, o Pai Se dirige ao Filho,
e o Espírito desce em forma de pomba. No discurso de Cristo, registrado
nos capítulos 14, 15 e 16 do Evangelho de João, nosso Senhor fala com e
do Pai, e promete enviar o Espírito para ensinar, guiar e confortar a Seus
discípulos. Neste discurso, a personalidade e divindade do Pai, Filho e
Espírito Santo são reconhecidas com idêntica claridade. Em 1Co 12:4-6,
o Apóstolo fala de diversidade de dons, mas o mesmo Espírito; de
diversidade de administrações, mas o próprio Senhor; e de diversidades
de operações, mas o próprio Deus.
Não se deve esquecer, entretanto, que a fé da Igreja na doutrina da
Trindade não repousa exclusiva nem principalmente nos argumentos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 608
recém-expostos. O grande fundamento desta fé é o que se ensina em
todos os lugares na Bíblia a respeito da unidade do Divino Ser; da
personalidade e divindade do Pai, Filho e Espírito; e de suas mútuas
relações.

§ 3. O período de transição.

A. A necessidade de uma declaração mais definida da


doutrina

A forma bíblica da doutrina da Trindade, tal como foi dada até aqui,
inclui tudo o que é essencial para a integridade da doutrina, e tudo o que
é abraçado na fé dos cristãos comuns. Mas não é tudo incluído nos
credos da Igreja. É característico das Escrituras que as verdades
apresentadas nela se exibem numa forma nas que se dirigem à nossa
consciência religiosa. É a esta característica da Palavra de Deus que se
deve atribuir sua adaptação ao uso geral. Uma verdade com frequência
se encontra na mente da Igreja como objeto de fé muito antes de que seja
formulada doutrinalmente; isto é, antes que seja analisada, seu conteúdo
claramente determinado, e seus elementos expostos em suas mútuas
relações. Quando uma doutrina tão complexa como a da Trindade é
apresentada como objeto de fé, a mente vê-se obrigada a refletir sobre
ela, a empreender a determinação do que inclui, e como se devem
anunciar suas várias partes de maneira que se evite a confusão e a
contradição. Além desta necessidade interna de uma declaração definida
da doutrina, esta declaração foi forçada sobre a igreja desde fora.
Inclusive entre aqueles que honestamente tinham a intenção de receber o
que as Escrituras ensinassem a respeito da questão era inevitável que
surgisse diversidade no modo de enunciá-lo, e confusão e contradição no
uso dos termos. Como a Igreja é uma, não meramente na parte exterior,
mas de maneira real e interna, esta diversidade e confusão são tanto um
mal, uma dor e um embaraço, perturbando sua paz interna, como o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 609
seriam uma semelhante consequência e confusão numa mente individual.
Por isso, havia uma necessidade interna e externa, na mesma Igreja, de
uma declaração clara, inclusiva e consistente dos vários elementos desta
complexa doutrina da fé cristã.

B. Conflito com o erro.

Além da necessidade de um enunciado da doutrina que desse


satisfação às mentes dos que a recebiam, havia a necessidade adicional
de guardar a verdade das más influências de exibições falsas ou errôneas
da mesma. A convicção de que Cristo é uma pessoa divina estava
profundamente assentada nas mentes de todos os cristãos. A glória que
Ele exibiu, a autoridade que Ele assumiu, o poder que Ele manifestou, os
benefícios que Ele conferiu, demandavam o reconhecimento dEle como
o Deus verdadeiro. Mas não menos forte era a convicção de que há um
só Deus. A dificuldade residia em conciliar estes dois artigos
fundamentais da fé cristã. O modo de resolver esta dificuldade pelo
rechaço de um destes artigos para manter o outro foi repudiado por
comum consentimento. Havia os que negavam a divindade de Cristo,
tentando dar satisfação às mentes dos crentes apresentando-O como o
melhor dos homens; como cheio do Espírito de Deus; como o Filho de
Deus, por Sua milagrosa concepção; ou como animado e controlado pelo
poder de Deus; mas, não obstante, um mero homem. Esta perspectiva a
respeito da pessoa de Cristo foi tão universalmente rejeitada na Igreja
primitiva que dificilmente originou controvérsia. Os erros contra os que
tiveram que disputar os que defendiam a doutrina da Trindade eram de
ordem superior. Era naturalmente inevitável que ambos os partidos, os
proponentes e os opositores da doutrina, se valessem das filosofias
correntes da época. Consciente ou inconscientemente, todos os homens
estão mais ou menos controlados em sua forma de pensar a respeito das
questões divinas pelas opiniões metafísicas que prevalecem entre eles, e
nas que foram educados. Por isso, encontramos que o gnosticismo e o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 610
platonismo coloriram as perspectivas dos proponentes e dos opositores
da doutrina da Trindade durante o período Ante-Niceno.

Os gnósticos.
Os gnósticos sustentavam que havia uma série de emanações do Ser
primordial, de diferentes ordens ou posições. Era natural que os
afeiçoados a este sistema, e que professassem ser cristãos, apresentassem
a Cristo como uma das mais altas destas emanações, ou éons. Esta visão
de Sua pessoa admitia que fosse considerado como consubstancial com
Deus, como divino, como o criador do mundo, como uma pessoa
distinta, e que tivesse ao menos uma união aparente ou docética com a
humanidade. Por isso, cumpria algumas das condições do complicado
problema a resolver. Entretanto, representava a Cristo como um de uma
série de emanações, e O reduzia à categoria dos seres dependentes,
exaltado acima dos outros da mesma classe e posição, mas não de
natureza. Além disso, envolvia a negação de Sua verdadeira
humanidade, que era essencial para a fé da Igreja, e tão íntimo para o
Seu povo como Sua divindade. Por isso, todas as explicações da
Trindade baseadas na filosofia gnóstica foram rejeitadas como
insatisfatórias e heréticas.

Os platonistas.
O sistema platônico, tal como foi modificado por Filo e aplicado
por ele à explicação filosófica da teologia do Antigo Testamento, teve
muito mais influência nas especulações dos primeiros Pais que o
gnosticismo. Segundo Platão, Deus formou, ou tinha na razão divina, as
ideias, tipos ou modelos de todas as coisas, ideias que deveram ser os
princípios viventes, formativos, de todas as existências reais. A razão
divina, com seus conteúdos, era o Logos. Por isso, Filo, ao explicar a
criação, apresenta o Logos como a soma de todos estes tipos ou ideias,
que constituem o κόσμος νοητός (kósmos noetos), o mundo ideal. Com
base nesta perspectiva, o Logos era designado como ἐνδιάθετος
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 611
(endiathetos [mente conceptus]). Na criação, ou automanifestação de
Deus na natureza, esta razão divina, ou λόγος (Logos), é nascida,
enviada ou projetada, vindo a ser o λόγος προφορικός (logos
prophorikos), dando vida a todas as coisas. Filo chamou a Deus, como
assim manifestado no mundo, não só logos mas também υἰός, εἰκών,
υἱὸς μονογενής, προτόγονος, σκία, παράδειγμα, δόξα, ἐπιστὴμη, θεοῦ, y
δεύτερος Θεός (huiós, éikon, huiós monogenés, protogonos, skia,
paradeigma, doxa, episteme, theou y deuteros Theos). Na aplicação
desta filosofia à doutrina de Cristo, era fácil fazer dele o λόγος
προφορικός (logos prophorichos), assumindo e afirmando sua
personalidade, e apresentando-o como especialmente manifestado ou
encarnado em Jesus de Nazaré. Este intento o fizeram Justino Mártir,
Taciano e Teófilo. Tiveram êxito quanto a que exaltaram a Cristo acima
de todas as criaturas; fazia dele o criador e preservador de todas as
coisas, a luz e a vida do mundo. Mas não satisfez a consciência da Igreja,
porque apresentava a divindade de Cristo como essencialmente
subordinada; fazia sua geração antemundana, mas não eterna; e
especialmente devido ao fato de que a filosofia, da qual tinha sido
tomada esta teoria do Logos, estava totalmente oposta ao sistema cristão.
O logos de Platão e Filo era só um termo coletivo para denotar o mundo
ideal, a ἰδέα τῶν ἰδεῶν (idea tön ideeön); por isso, a verdadeira distinção
entre Deus e o Logos era a que existia entre Deus como oculto e Deus
como revelado. Deus em si mesmo era ὁ θεός (ho theos); Deus na
natureza era o Logos. Esta, afinal de contas, é a velha doutrina pagã
panteísta, que faz do universo a manifestação ou forma existencial de
Deus.

A doutrina de Orígenes.
Orígenes apresentou a doutrina platônica da geração e natureza do
Logos de uma forma mais elevada que aquela em que tinha sido exibida
nas especulações de outros entre os pais. Não apenas insistiu, em
oposição aos Monarquianos ou Unitários, na personalidade distinta do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 612
Filho, mas também em Sua geração eterna, como oposta a antemundana.
Entretanto, atribuiu sua geração à vontade do Pai. EI Filho ficou assim
reduzido à categoria das criaturas, porque segundo Origens a criação é
da eternidade. Outra característica insatisfatória de todas estas
especulações a respeito da teoria do Logos era que não deixava lugar ao
Espírito Santo. O Logos era a Palavra, ou Filho de Deus, gerado antes da
criação a fim de que criasse, ou, segundo Origens, criado da eternidade;
mas, o que do Espírito Santo? Aparece como pessoa distinta no serviço
batismal e na bênção apostólica, mas a teoria do Logos só dava lugar a
uma Díada, não a uma Tríade. Por isso, aparece a maior confusão nas
declarações desta classe de escritores a respeito do Espírito Santo. Às
vezes é identificado com o Logos; às vezes, é representado como a
substância comum ao Pai e ao Filho; às vezes, como o mero poder e
eficiência de Deus; às vezes, como uma pessoa distinta subordinada ao
Logos, e uma criatura.

A teoria sabeliana.
Outro método para resolver este grande problema e para satisfazer
as convicções religiosas da Igreja foi adotada pelos Monarquianos,
Patripassianos, ou Unitários, como eram chamados indistintamente. Eles
admitiam uma trindade modal. Reconheciam a verdadeira divindade de
Cristo, mas negavam toda distinção pessoal na Deidade. A mesma
pessoa seria ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito Santo, expressando
estes termos as diferentes relações nas quais Deus Se revela a Si mesmo
no mundo e na Igreja. Práxeas, da Ásia Menor, que ensinou esta doutrina
em Roma em 200 d.C.; Noetus, de Esmirna, em 230 d.C.; Berilo, bispo
da Bostra, na Arábia, o 250 d.C., e especialmente Sabélio, presbítero de
Ptolemaida, o 250 d.C., por quem esta doutrina recebeu o nome do
Sabelianismo, foram os principais proponentes desta teoria. O único
ponto em que esta doutrina dava satisfação às convicções religiosas dos
cristãos era quanto à verdadeira divindade de nosso Senhor. Mas ao
negar a distintiva personalidade do Pai e do Espírito, com os quais cada
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 613
crente sentia-se ligado por uma relação pessoal, e aos quais lhes dirigiam
adoração e orações, não podia ser recebida pelo povo de Deus. Sua
oposição à Escritura era patente. Na Bíblia, o Pai é constantemente
apresentado dirigindo-Se ao Filho como «Tu», amando-O, enviando-O,
recompensando-O e O exaltando; e o Filho dirige-se constantemente ao
Pai e tudo atribui à Sua vontade, de maneira que a distintiva
personalidade deles é uma das doutrinas mais claramente reveladas da
Palavra de Deus. Portanto, o Sabelianismo foi logo quase universalmente
rejeitado.

Arianismo.
Embora Orígenes tenha insistido na distinta personalidade do Filho,
e em sua geração eterna, e embora o chamava abertamente Deus,
entretanto não queria admitir Sua igualdade com Deus. Só o Pai,
segundo ele, era ὁ θεός (ho theos), e o Filho era simplesmente θεός
(theos). O Filho era θεὸς ἐκ θεοῦ (theos ek theoun) e não ἀυτο-θεός
(auto-theos). E esta subordinação não era meramente quanto ao modo de
subsistência e operação, mas em quanto a natureza; porque Origens
ensinava que o Filho era de diferente essência do Pai, ἕτερος κατ᾽ οὐσίαν
(héteros kat' ousian), e que devia sua existência à vontade do Pai. Seus
discípulos levaram esta doutrina a seu fim lógico, e fizeram abertamente
de Cristo uma criatura. Isto foi feito por Dionísio de Alexandria, um
aluno de Orígenes, que se referia ao Filho como ποίημα y κτίσμα (piema
y ktisma), um modo de descrição, se bem que posteriormente retirou ou
desvirtuou. Mas fica claro que os princípios de Orígenes eram
inconsequentes com a verdadeira divindade de Cristo. Não passou muito
tempo, portanto, antes que Ário, outro presbítero de Alexandria,
mantivera abertamente que o Filho não era eterno, mas sim posterior ao
Pai; que Ele tinha sido criado não da substância de Deus, mas sim ἐκ οὐκ
ὀντῶν (ek ouk onton), e que por isso não era ὁμοούσιος (homoousios)
com o Pai. Admitia ele que o Filho tinha existido antes de qualquer outra
criatura, e que era por Ele que Deus tinha criado o mundo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 614
Deve-se lembrar constantemente que estas especulações eram
questões dos teólogos. Nem expressavam nem pretendiam expressar a
mente da Igreja. Nem grande massa do povo recolhia sua fé, então como
agora, de maneira imediata das Escrituras e dos serviços eclesiásticos.
Eram batizados em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
Dirigiam-se ao Pai como criador dos céus e da terra, e como o Deus e
Pai com o qual tinham sido reconciliados, e a Jesus Cristo como seu
Redentor, e ao Espírito Santo como um santificador e consolador. Eles
amavam, adoravam e confiavam em um como nos outros. Esta era a
crença religiosa da Igreja, que permaneceu sem perturbações devidas às
especulações e controvérsias dos teólogos, em seus intentos de vindicar e
explicar a fé comum. Mas este estado de confusão era um grande mal, e
a fim de levar a Igreja a um acordo quanto à forma em que se devia
enunciar esta doutrina fundamental do cristianismo, o Imperador
Constantino convocou o Primeiro Concílio ecumênico, que devia reunir-
se em Niceia, em Nicomédia, em 325 d.C.

§ 4. A doutrina da Igreja apresentada no Concílio de Niceia

A. Os Motivos pelos quais se convocou o Concílio.

O motivo pelo qual se foi convocado o concílio era triplo: (1)


Remediar a confusão que prevalecia no uso de várias palavras
importantes em discussões a respeito da doutrina da Trindade; (2)
Condenar erros que tinham sido adotados em diferentes partes da Igreja;
(3) Redigir uma declaração da doutrina que incluísse todos os elementos
escriturísticos, e que desse satisfação às convicções religiosas da massa
dos crentes. Esta era uma tarefa grandemente difícil:
1. Devido ao fato de que o usus loquendi de certos termos
importantes não estava determinado naquele tempo. Por exemplo, a
palavra ὑπόστασις (hupostasis) empregava-se em dois sentidos opostos.
Tomava-se com frequência em seu sentido etimológico como substância,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 615
e é empregada pelo Concílio como sinônimo de οὐσία (ousia). Mas já
tinha começado a ser empregado no sentido de pessoa. Porquanto
expressa realidade, em oposição ao que é fenomênico ou aparente, ou
modo de manifestação, veio a ser empregado universalmente na Igreja
grega, no segundo sentido, como salvaguarda contra a ideia de uma
Trindade meramente modal. Admite-se que deveria prevalecer uma
grande confusão se alguém dissesse que há só uma ὑπόστασις
(hupostasis) na Deidade, e outro que há três, quando os dois estivessem
significando a mesma coisa, um usando a palavra em sentido de
substância, e o outro no de pessoa.
Na Igreja Latina se experimentou a mesma dificuldade com o uso
das palavras substantia y subsistentia. Estas palavras eram
frequentemente intercambiadas como equivalentes, e se empregavam as
duas, às vezes no sentido de substância, e às vezes no de suppositum. O
uso finalmente determinou que o primeiro significasse substância ou
essência, e o segundo um modo em que existe a substância, isto é,
suppositum. Assim, segundo o uso estabelecido, na Deidade há uma
substância, e três subsistências.
Para expressar a ideia de uma suppositum intelligens, ou agente
autoconsciente os gregos empregavam o termo πρόσωπον (prosopon).
Mas como este termo significa propriamente o rosto, o aspecto, e era
empregado pelos Sabelianos para expressar sua doutrina do tríplice
aspecto em que se revelava a Deidade, foi rejeitado e se adotou a palavra
ὑπόστασις (hupostasis). A palavra latina pessoa (de per y sono) significa
propriamente uma máscara usada por um ator e através da qual falava, e
logo o papel ou caráter que o ator representava. Por causa disto, esta
palavra teve dificuldades até ser aceita na terminologia da teologia.
O célebre termo ὁμοούσιος (homoousios), que foi tanto tempo tema
de controvérsia, não estava isento de ambiguidades. Expressava bem
claramente a identidade de substância, mas o uso da palavra deixava sem
especificar se a identidade era específica ou numérica. Cita-se Porfírio
no sentido de que as almas dos homens e dos animais irracionais são
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 616
ὁμοούσιοι (homoousioi), e a Aristóteles como dizendo que as estrelas
são ὁμοούσιοι (homoousioi), e se diz dos homens e dos brutos que são
homoousioi, quanto a seus corpos; e do mesmo modo, diz-se dos anjos,
demônios e almas humanas que todos são ὁμοούσιοι (homoousioi).
Neste sentido, Pedro, Tiago e João são ὁμοούσιοι (homoousioi), ao ter a
própria natureza quanto a tipo. Por esta causa, objetou-se esta palavra,
porquanto admitia uma interpretação Triteísta. Entretanto, o Concílio
determinou o sentido em que devia ser compreendida em suas decisões,
dizendo que o Filho tinha sido gerado ἐκ τῆς οὑσίας τοῦ πατρός (ek tes
ousias tou patros [da substância do Pai]), e negando que fora criado.
Assim como Deus é espírito, e como nós somos espíritos, diz-se de nós
na Escritura que somos semelhantes a Ele, sendo Seus filhos, sendo da
própria natureza. Mas com relação ao Filho se declarou que Ele era da
mesma essência numérica com o Pai; Ele é verdadeiramente Deus,
possuindo os mesmos atributos e tendo direito à mesma adoração. Assim
explicada, a palavra veio a ser uma barreira insuperável contra a adoção
do Credo de Niceia da parte de qualquer pessoa que negasse a verdadeira
divindade do Filho de Deus.

Diferença de opinião entre os membros do Concílio.


2. Uma segunda dificuldade que o Concílio teve que enfrentar foi a
diversidade de opinião entre seus próprios membros. Todas as
perspectivas contraditórias que tinham agitado a Igreja estavam ali
representadas. As partes principais eram, primeiro, os Arianos, que
mantinham: (1) Que o Filho devia sua existência à vontade do Pai. (2)
Que não era eterno, mas houve um tempo em que Ele não era. (3) Que
Ele tinha sido criado ἐξ οὐκ ὀντῶν (ex ouk onton), do não ser, e que por
isso era κτίσμα καὶ ποίημα (ktisma kai poiema [criatura e feitura]). (4)
Que Ele não era imutável, mas sim τρεπτὸς φύσει (treptos phusei)
[natureza mutável]) (5) Que Sua preeminência consistia em que Ele tinha
sido criado por Deus sem mediação alguma, enquanto que todas as
outras criaturas tinham sido criadas pelo Filho. (6) Que Ele não era Deus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 617
de Si mesmo, mas sim tinha sido feito Deus, ἐθεοποιήθη (etheopoiethe);
isto é, devido ao exaltado de Sua natureza, e à relação que Ele sustenta
com todas as outras criaturas, como Criador e Governador, Ele tem
direito a culto divino.
Uma das passagens da Escritura em que os Arianos se apoiavam
principalmente era Pv 8:22, que na Septuaginta se traduz: ἔκτισέ με
ἀρχὴν ὁδῶν αὐτοῦ (ektise me archen hodon autou) (Ele me criou no
começo de seus caminhos). Como a Sabedoria, que daqui se fala, era
universalmente compreendida como o Logos, e como a Septuaginta era
considerada como autoritativa, esta passagem parecia demonstrar, sem
discussão, que o Logos tinha sido criado. Os ortodoxos se viram
obrigados a desvirtuar esta passagem dizendo que κτίζειν (ktisein) devia
ser tomado aqui no sentido de γεννᾶν (gennan), a palavra em outros
lugares usada para expressar a relação entre o Pai e o Filho. A
ignorância, ou o descuido da língua hebraica, impediu-os de responder
ao argumento dos Arianos mostrando que a palavra hebraica ‫קָנ ָה‬
(qanah), que aqui traduz a Septuaginta como ἔκτισε (ektise), significa
não só estabelecer, mas também possuir. Por isso, a Vulgata traduz
corretamente esta passagem como «Dominus possidet me», e a versão
em português também traduz: «O SENHOR me possuía». Os Arianos
verdadeiros constituíam uma pequena minoria no Concílio.

Os Semi-Arianos.
O segundo partido incluía os Semi-Arianos e aos discípulos de
Origens. Estes sustentavam junto com os Arianos, (1) Que o Filho devia
sua existência à vontade do Pai. (2) Que Ele não era da mesma essência,
senão ἕτερος κατ᾽ οὐσίαν (heteros kat' ousian) [de uma essência de
distinta espécie]. Pareciam sustentar que havia uma essência
intermediária entre a substância divina e as substâncias criadas. Foi em
referência a esta opinião que Agostinho disse posteriormente: 322 «Unde

322
De Trinitate, I. vi. 9, edit. Benedictines, vol. viii. p. 1161, c.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 618
liquido apparet ipsum factum non esse per quem facta sunt omnia. Et si
factus non est, creatura non est: si autem creatura non est, ejusdem cum
Patre substantiæ est. Omnis enim substantia quae Deus non est, creatura
est; et quae creatura non est, Deus est». [Toda aquela substância que
não é Deus, é criatura; e a que não é criatura, é Deus.]
(3) Por isso, o Filho era subordinado ao Pai, não meramente em
posição ou modo de subsistência, mas em natureza. Pertencia a uma
ordem diferente de seres. Não era αὐτόθεος, ὁ Θεός (autotheos, ho theos
[o próprio Deus, o Deus]), nem ὁ ἀληθινὸς θεός (ho alethinos theos [o
verdadeiro Deus]), mas simplesmente θεός (theos), termo este que,
segundo Origens, só podia aplicar-se às ordens mais elevadas de
criaturas inteligentes.
(4) O Filho, embora assim inferior ao Pai, tendo vida em Si mesmo,
era a fonte de vida, isto é, o Criador.
(5) O Espírito Santo, segundo a maioria dos Arianos e segundo
Orígenes, foi criado pelo Filho – A primeira e mais alta das criaturas
chamadas a ser por Seu poder.

Os Ortodoxos.
O terceiro partido no Concílio era o dos Ortodoxos, que constituía a
grande maioria. Todos os cristãos eram adoradores de Cristo. Ele era
para eles o objeto de supremo amor e a base de sua confiança; a Ele
estavam sujeitos em coração e vida. NEle esperavam para tudo. Ele era
seu Deus no mais estrito sentido da palavra. Além disso, eles O
entendiam como uma pessoa diferente, e não meramente um nome
distinto para o Pai. Mas como não estava menos arraigada nas mentes
dos cristãos a convicção de que só há um Deus ou Ser Divino, o
problema que o Concílio devia resolver era o de harmonizar estas
convicções aparentemente incompatíveis, isto é, que há um só Deus, e
entretanto que o Pai é Deus, e o Filho, como pessoa distinta, é Deus, o
mesmo em substância e igual em poder e glória. A única coisa que se
devia fazer era preservar os elementos essenciais da doutrina, e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 619
entretanto não fazer com que a declaração da mesma incorresse em
contradições internas. Para cumprir estas condições, o Concílio redigiu o
seguinte Credo:
«Cremos num Deus, o Pai todo-poderoso, o criador de todas as
coisas visíveis e invisíveis; e num Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus,
unigênito, gerado do Pai, isto é, da essência do Pai, Deus de Deus, Luz
de Luz, o próprio Deus do próprio Deus, gerado e não feito,
consubstancial com o Pai, por quem foram feitas todas as coisas, seja no
céu ou na terra; quem por nós os homens e para nossa salvação desceu
do céu; e se encarnou e veio a ser homem, padeceu e ressuscitou ao
terceiro dia; subiu ao céu, e virá para julgar os vivos e os mortos. E
cremos no Espírito Santo. Mas aqueles que dizem que houve um tempo
em que Ele (o Filho) não era, que não era antes de ser feito, ou que foi
feito do nada, ou de outra ou diferente essência ou substância, que era
uma criatura, ou mutável, ou suscetível de mudar, a Santa Igreja Católica
os anatematiza»

B. O Concílio de Constantinopla.

O Credo chamado Atanasiano.


A mais evidente deficiência no Credo de Niceia é a omissão de
qualquer declaração concreta a respeito do Espírito Santo. Isto se explica
pelo fato de que a doutrina a respeito do Filho e de Sua relação com o
Pai era então o tema absorvente de controvérsia. Mas Atanásio e outros
expoentes e defensores do Credo de Niceia insistiam na
consubstancialidade do Espírito com o Pai e com o Filho, e que este era
o pensar do Concílio. Mas como isto era disputado, foi declarado de
maneira concreta por vários Concílios provinciais, como o de Alexandria
em 362 d.C., e o de Roma, em 375 d.C. Foi a oposição a esta doutrina o
que motivou a convocatória do Segundo Concílio Ecumênico, que se
reuniu em Constantinopla em 381 d.C. Na modificação do Credo de
Niceia, redigida por este Concílio, acrescentaram-se as seguintes
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 620
palavras à cláusula «Cremos no Espírito Santo,» principalmente: «Que é
o Senhor e doador de vida, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho
juntamente é adorado e glorificado, e que falou pelos profetas». Alguns
dos pais gregos e o grande corpo de pais latinos mantinham que o
Espírito procedia do Filho assim como do Pai, e no Sínodo do Toledo,
em 589 d.C., acrescentaram-se as palavras filioque ao credo. Esta adição
foi uma das causas que conduziram, a separação das Igrejas do Oriente e
do Ocidente.

O Credo Atanasiano.
Depois do Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., as
controvérsias que agitaram a Igreja tiveram referência à constituição da
pessoa de Cristo. Antes que as questões envoltas nestas controvérsias
fossem decididas de maneira autoritativa, foi adotado geralmente o
chamado Credo Atanasiano, uma amplificação dos de Niceia e
Constantinopla, ao menos entre as Igrejas do Ocidente. Este Credo
estava expresso assim: «Quem quer ser salvo tem acima de tudo que
manter a fé católica, visto que, se não a preservar íntegra e inviolada,
sem dúvida perecerá eternamente. Mas esta é a fé católica, que adoramos
a um Deus em trindade, e trindade em unidade. Nem confundindo as
pessoas nem dividindo a substância. Porque a pessoa do Pai é uma; a do
Filho, outra; a do Espírito Santo, outra. Mas a divindade do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo, é uma, igual a glória, igual a majestade.
Assim como é o Pai, assim é o Filho, e assim o Espírito Santo. O Pai é
incriado, o Filho é incriado, e o Espírito Santo é incriado. O Pai é
infinito, o Filho é infinito, o Espírito Santo é infinito. O Pai é eterno, o
Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno. Mas não há três Seres eternos,
mas sim um Ser eterno. E entretanto, não há três Seres incriados, nem
três Seres infinitos, mas sim um Ser criado e infinito. Da mesma
maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, e o Espírito Santo é
onipotente. E entretanto, não há três Seres onipotentes, mas sim um Ser
onipotente. Assim o Pai é Deus, o Filho, Deus, e o Espírito Santo, Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 621
E entretanto não há três Deuses, mas sim um só Deus. O Pai é Senhor, o
Filho é Senhor, e o Espírito Santo é Senhor. Entretanto, não há três
Senhores, mas sim um só Senhor. Porque como somos impulsionados
pela verdade cristã a confessar a cada pessoa de maneira distintiva como
sendo Deus e Senhor, temos proibido pela religião Católica dizer que
haja três Deuses, ou três Senhores. O Pai não é feito por ninguém, nem
criado, nem gerado. O Filho é só do Pai, não feito, não criado, mas sim
gerado. O Espírito Santo é não criado pelo Pai e o Filho, nem gerado,
mas sim procede. Por isso, há um Pai, não três Pais; um Filho, não três
Filhos; um Espírito Santo, não três Espíritos Santos. E nesta Trindade
nada é anterior nem posterior, nada maior ou menor, antes, todas as três
são coeternas e coiguais a elas mesmas. De maneira que em tudo, como
se disse antes, deve-se adorar a unidade em trindade e a trindade em
unidade. Todo aquele que quiser ser salvo, que assim pense a respeito da
Trindade».
Está universalmente aceito que Atanásio não foi o autor deste
credo. Aparece só em latim em sua forma original, e tem modos de
expressão tomados dos escritos de Agostinho e de Vicente de Lerino, em
434 d.C. Como também contém alusões a controvérsias posteriores a
respeito da pessoa de Cristo, é atribuído a algum período em mediados
do quinto séculos e mediados do sexto. Embora não fosse o emitido com
a autoridade de algum Concílio, foi logo universalmente admitido no
Ocidente, e posteriormente no Oriente, e foi em todas as partes
considerado como um símbolo ecumênico.
A Doutrina da Trindade estabelecida nestes três antigos credos – o
Niceno, o Constantinopolitano e o (chamado) Atanasiano – é a Forma
Eclesiástica deste fundamental artigo da fé cristã. Não há diferença,
exceto em amplificação, entre estas várias fórmulas.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 622
§ 5. Pontos decididos pelos Concílios de Niceia e de
Constantinopla

A. Contra o Sabelianismo.

Estes Concílios decidiram que os termos Pai, Filho e Espírito, não


foram expressivas só de relações ad extra, de forma análoga aos termos
Criador, Preservador e Benfeitor. Esta foi a doutrina conhecida como
sabelianismo, que supõe que o Ser Supremo não só é um em essência,
mas também um em pessoa. A doutrina da Igreja afirma que o Pai, o
Filho e o Espírito expressam as relações internas, interiores, e eternas da
Deidade, que se tratam de denominações pessoais, pelas quais o Pai é
uma pessoa, o Filho outra pessoa, e o Espírito outra pessoa. Não diferem
quanto a ἄλλο καὶ ἄλλο, mas sim como ἄλλος καὶ ἄλλος, cada um diz
Eu, e cada um diz Tu, a qualquer dos outros.
A palavra usada na Igreja grega para expressar este fato foi
primeiro πρόσωπον, e depois, e por consentimento geral ὑπόστασις, na
Igreja latina, “pessoa”, e em inglês, person. A ideia expressa pela palavra
em sua aplicação às distinções na Divindade, é tão clara e definida como
em sua aplicação aos homens.

B. Contra os arianos e os semi-arianos.

Os Concílios mantiveram que o Pai, o Filho e o Espírito são o


mesmo em essência, e iguais em poder e glória. Qualquer que seja a
perfeição divina, quer seja eternidade, imutabilidade, infinitude,
onipotência, ou santidade, justiça, bondade e verdade, pode pregar-se de
um, pode no mesmo sentido e medida ser pregado dos demais. Estes
atributos que pertencem à essência divina, e essa essência é comum às
três pessoas, os atributos ou perfeições são da mesma maneira comum a
cada um. Não é o Pai, como tal, nem o Filho como tal, quem é
autoexistente, infinito e eterno, mas sim a Divindade, ou essência divina,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 623
que subsiste nas três pessoas. As palavras gregas utilizadas para
expressar o que era comum às três pessoas da Trindade foram, como
vimos, οὐσία, φύσις, e a princípio, ὑπόστασις, a que correspondem as
palavras latinas substantia, o essentia, y natura, e em inglês, substance,
essence, e nature. A palavra selecionada pelos pais de Niceia para
expressar a ideia de comunidade de substância, era, ὁμοούσιος. Mas esta
palavra, como já vimos, pode expressar quer seja semelhança específica,
ou a identidade numérica. No primeiro sentido, todos os espíritos, se
Deus, anjos, ou homens, são ὁμοούσιοι. São similares em essência, quer
dizer, são inteligências racionais.
Que o Concílio se propunha que a palavra fosse tomada neste
último sentido, como expressão da identidade numérica, é evidente, (1.)
Devido ao fato de que em seu sentido mais amplo ὁμοούσιος não difere
de ὁμοιούσιος, a palavra que o Concílio negou-se a adotar. Os arianos
estavam dispostos a admitir que o Pai, o Filho e o Espírito fossem
ὁμοούσιοι, mas negaram-se a admitir que estavam ὁμοούσιοι. Isto
demonstra que as palavras foram utilizadas em sentidos radicalmente
diferentes. (2.) Devido ao fato de que este Conselho declara que o Filho
era eterno; que Ele não foi criado ou feito, mas sim gerado ἐκ τῆς οὐσίας
τοῦ πατρός, “da própria essência do Pai.” (3.) Isto está implícito na
explicação da “geração eterna” universalmente adotada pelos pais de
Niceia, como “a eterna comunicação da mesma essência numérica toda e
inteira, do Pai ao Filho.” (4.) Se o termo ὁμοούσιος é tomado no sentido
da identidade específica, então o Credo de Niceia ensina o triteísmo. O
Pai, o Filho e o Espírito Santo são três deuses no mesmo sentido que
Abraão, Isaque e Jacó são três homens, para todos os homens nesse
sentido da palavra são ὁμοούσιοι. É a doutrina clara destes Concílios que
a mesma essência numérica, infinita e indivisível subsiste nas três
pessoas da Trindade. Isto é ainda mais evidente nas ilustrações
inadequadas deste grande mistério que os primeiros pais buscaram na
natureza, a partir da luz, do calor e do esplendor do sol, a fonte e seus
arroios, e especialmente da memória, inteligência e vontade no homem.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 624
Em todos estes exemplos, não obstante insuficientes, o ponto da analogia
era a unidade (identidade numérica) de essência com a triplicidade.

C. A relação mútua das Pessoas da Trindade.

Neste sentido a doutrina de Niceia inclui, —


2. As várias pessoas da Trindade se distinguem por uma certa
“propriedade”, como se lhe chama, ou uma característica. Essa
característica se expressa por suas denominações distintivas. A primeira
pessoa que se caracteriza como o pai, em sua relação com a segunda
pessoa, e a segunda se caracteriza como Filho, em relação à primeira
pessoa, e a terceira como Espírito, com relação à primeira e segunda
pessoas. A paternidade, portanto, é a propriedade identificadora ao Pai, a
filiação do Filho, e a processão do Espírito. Se observará que nenhum
intento de explicação destas relações dá-se nestes credos ecumênicos, ou
seja, o de Niceia, o de Constantinopla, e o de Atanásio. Os meros fatos
tal como se revela nas Escrituras são afirmados.
3. O terceiro ponto decidiu a respeito da relação das pessoas da
Trindade, um ao outro, com relação à sua união. Como a essência da
Divindade é comum às várias pessoas, têm em comum a inteligência, a
vontade e o poder. Não há em Deus três inteligências, três vontades, três
eficiências. Os Três são um só Deus, e portanto têm um mesmo
propósito e vontade. Esta união íntima se expressou na Igreja grega pela
palavra περιχώρησις, que as palavras latinas, inexistentia, inhabitatio, e
intercommunio, utilizou-se para explicar. Estes termos têm por objetivo
expressar os fatos das Escrituras de que o Filho está no Pai e o Pai no
Filho, para que onde o Pai esteja, ali o Filho e o Espírito estejam: que o
que um faz os outros fazem (o Pai cria, o Filho cria, o Espírito cria), ou,
como nosso Senhor o expressa, “Tudo o que o Pai faz, também o faz o
Filho igualmente” (Jo 5:19). Assim também o que um sabe, os outros
sabem. “O Espírito tudo esquadrinha, até as coisas profundas de Deus.
Qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 625
que nele está? assim também as coisas de Deus ninguém as conhece,
senão o Espírito de Deus” (1Co. 2:10, 1, TB). O conhecimento comum
implica uma consciência comum. No homem a alma e o corpo são
distintos, mas, ao mesmo tempo unidos, têm uma vida em comum. Nós
distinguimos entre atos do intelecto, e os atos da vontade, e entretanto
em cada ato da vontade não é um exercício da inteligência, como em
cada ato dos afetos não é uma ação conjunta da inteligência e a vontade.
Estas não são ilustrações das relações das pessoas da Trindade, que são
inefáveis, mas pelo fato de que em outras esferas e totalmente diferentes
há esta comunidade de vida em diferentes subsistências, — subsistências
diferentes, ao menos na medida em que se refere ao corpo e à alma. Este
fato — da íntima união, a comunhão e ocupação das pessoas da Trindade
— é a razão por todas as partes na Escritura, e instintivamente por todos
os cristãos, Deus como Deus dirige-se como uma pessoa, em
consistência perfeita com a Tripersonalidade da Deidade. Podemos orar
a cada uma das pessoas separadamente, e rogamos a Deus como Deus,
porque as três pessoas são um só Deus, um não só quanto à substância,
mas em conhecimento, vontade e poder. Esperar que nós, que não
podemos entender nada, nem sequer a nós mesmos, entendamos estes
mistérios da Divindade, é o último grau razoável. Mas como em
qualquer outra esfera devemos crer o que não podemos entender, assim
podemos crer tudo o que Deus revelou em Sua palavra sobre Si mesmo,
embora não podemos entender a perfeição do Todo-poderoso.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 626
§ 6. Exame da Doutrina Nicena.

A. Subordinação.

Uma distinção deve fazer-se entre o Credo de Niceia (na forma


ampliada no de Constantinopla) e a doutrina dos Pais de Niceia. Os
credos não são mais que uma disposição bem ordenada dos fatos da
Escritura que se referem à doutrina da Trindade. Eles afirmam a distinta
personalidade do Pai, do Filho e do Espírito, sua relação mútua conforme
o expresso por estes termos, sua unidade absoluta quanto à substância ou
essência, e sua consequente perfeita igualdade, e a subordinação do Filho
ao Pai, e do Espírito ao Pai e ao Filho, quanto ao modo de subsistência e
funcionamento. Estes são fatos das Escrituras, aos quais os credos em
questão não contribuem nada, e é neste sentido que foram aceitos pela
Igreja universal.
Mas os pais Nicenos se comprometeram, num grau maior ou menor,
a explicar estes fatos. Estas explicações se referem principalmente à
subordinação do Filho e do Espírito ao Pai, e a que se entende por
geração, ou a relação entre o Pai e o Filho. Estes dois pontos estão tão
intimamente relacionados que não podem considerar-se separadamente.
Entretanto, como o anterior é mais amplo que o posterior, pode ser
conveniente falar deles em ordem, embora o que pertence a uma cabeça,
num bom grado pertence também às outras.
A ambiguidade da palavra ὁμοούσιος já foi observado. Como
οὐσία, pode significar um caráter genérico comum a muitos indivíduos,
não unum in numero, mas ens unum in multis, assim ὁμοούσιος
(consubstancial) pode significar nada mais que a uniformidade das
espécies ou em espécie. Portanto, disse, que “o termo homoousion, em
seu sentido gramatical estrito, difere de monoousion ou toutoousion,
assim como de heteroousion, e significa não identidade numérica, e sim
a igualdade de essência ou comunidade da natureza entre os vários
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 627
323
seres.” “O Credo de Niceia,” O Dr. Schaff acrescenta, “não afirma
expressamente a unicidade e a unidade numérica da essência divina (a
menos que seja no primeiro artigo: “cremos em um Deus”), e o ponto
principal com os pais nicenos era insistir contra o arianismo a divindade
e a estrita igualdade essencial do Filho e do Espírito Santo com o Pai. Se
pressionamos a diferença de homoousion do monoousion, e passar por
alto a muitas passagens que afirmam com igual ênfase a monarchia ou a
unidade numérica da Divindade, é preciso acusar os de triteísmo.”
Gieseler vai muito além, e nega que os pais nicenos mantêm a
identidade numérica da essência nas pessoas da Trindade. O Pai, o Filho
e o Espírito são os mesmas em substância como tendo a própria natureza,
ou o mesmo tipo de substância. Isto que ele infere foi sua doutrina não só
do estilo geral de seu ensino, e das declarações especiais, mas sim das
ilustrações que empregaram habitualmente. O Pai e o Filho são o mesmo
em substância, tal como entre os homens, pai e filho têm a própria
natureza, ou como diz Basílio, o pai e o Filho diferem na classificação,
da mesma forma que os anjos, apesar de que são os mesmos na natureza.
Gieseler diz que a igualdade numérica da natureza nas três pessoas
divinas, afirmou-se pela primeira vez por Santo Agostinho. Foi ele,
segundo Gieseler, que primeiro excluiu toda ideia de subordinação na
Trindade. 324 “Atanásio e Hilário entendem a proposição, ‘Há um Deus,’
do Pai. Basílio o Grande e os dois Gregórios entenderam pela palavra
Deus uma ideia genérica (Gattungsbegriff), que pertence igualmente ao
Pai e ao Filho. Basílio na ‘Apologia ad Cæsarienses,’ diz, ἡμεῖς ἕνα
θεὸν, cὐ τῷ ἀριθμῷ, ἀλλὰ τῇ φύσει ὁμολογοῦμεν, e se esforça em
demonstrar que não pode haver uma questão de número em referência a
Deus, visto que a diferença numérica refere-se apenas às coisas
materiais. Agostinho, pelo contrário exclui expressamente a ideia da
unidade genérica, 325 e entende a proposição ‘há um só Deus’ não do Pai
323
Schaff’s History of the Christian Church, vol. iii. p. 672.
324
Kirchengeschichte, vol. vi. § 60, p. 323. Bonn, 1855.
325
De Trinitate, VII. vi. edit. Benedictines, vol. viii. p. 1314, d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 628
326
somente, mas sim de toda a Trindade, e, portanto, ensinou que há um
só Deus em três pessoas.” Isto, entretanto, é a doutrina precisa do Credo
de Niceia em si, que afirma a fé “num só Deus,” e não em três. Basílio
no lugar indicado está refutando a acusação de Triteísmo. Suas palavras
são, πρὸς δὲ τοὺς ἐπηρεάζοντας ἡμῖν τὸ τρίθεον, ἐκεῖνο λεγέσθω ὅτιπερ
ἡμεῖς ἕνα θεὸν, etc. 327 Na página 460 já foram dadas razões para supor
que a identidade da substância ensinada pelos pais nicenos não tratava
simplesmente de substância genérica, mas sim numérica. Sobre este tema
Pearson, um defensor completo do Credo de Niceia, diz: “Como (a
natureza divina) é absolutamente imaterial e incorpórea, também é
indivisível; Cristo não pode ter nenhuma parte dela só comunicada a Ele,
mas sim o conjunto, pelo qual Ele deve ser reconhecido coessencial, da
mesma substância com o Pai, como o Conselho de Nisa determinou, e
ensinaram os antigos pais antes que eles.” 328 Se a essência divina
pertence igualmente às várias pessoas da Trindade, há um fim à questão,
se a identidade é específica ou numérica. De acordo com o Bispo diz: “A
essência Divina que em razão de sua simplicidade não sujeita a divisão, e
com relação à sua infinitude incapaz da multiplicação, é objeto de
comunicação que não se multiplicará, de tal maneira que Ele pelo qual
procede que tem a comunicação não só a própria natureza, mas também
é o próprio Deus. O Deus Pai, e o Verbo Deus; Abraão homem e Isaque
homem: mas Abraão um homem, Isaque outro homem, não pelo que o
Pai é Deus e o Verbo outro, mas sim o Pai e o Verbo ambos o próprio
Deus.” 329
Gieseler diz que Agostinho efetivamente exclui toda ideia de
subordinação na Trindade pelo ensino da igualdade numérica da essência
nas pessoas da Deidade. Isto exclui absolutamente toda a prioridade e
toda superioridade quanto ao ser e perfeição. Mas não se opõe à

326
Epistola, CCXXXVIII. iii. 18, vol. ii. p. 1304, a.
327
Epistola, VIII. edit. Migne, vol. iii. p. 115, e.
328
Pearson, On Creed, seventh edition, 1701, p. 135.
329
Pearson, p. 133.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 629
subordinação quanto ao modo de subsistência e funcionamento. Isto é
claramente reconhecido na Escritura, e foi completamente ensinado por
Agostinho como por qualquer dos Pais gregos, e é ainda mais claramente
afirmado no chamado Credo de Atanásio, representando a escola de
Agostinho, que no Credo do Concílio de Nisa. Não há, portanto, nenhum
motivo de oposição ao Credo de Niceia do que ensina sobre o tema. Não
vai além dos fatos da Escritura. Mas os pais que forjaram esse credo, e
aqueles por quem foi defendido, fizeram além dos fatos. Buscaram
explicar qual era a natureza dessa subordinação. Enquanto nega ao Pai
qualquer prioridade ou superioridade sobre as demais pessoas da
Trindade, quanto a ser ou perfeição, ainda falavam do Pai, como o
Monos, como tendo na ordem de pensamento toda a divindade em Si
mesmo, de modo que só Ele era Deus por Si mesmo (αὐτόθεος, nesse
sentido da palavra), que Ele era a fonte, a causa, a raiz, fons, origo
principium, da divindade como subsistindo no Filho e no Espírito; que
Ele era maior que as outras pessoas divinas. Eles entenderam muitas
passagens que falam da inferioridade do Filho ao Pai, do Logos como
tal, e não do histórico Filho de Deus revestido de nossa natureza. Assim
Waterland 330 diz destes pais, “O título de ὁ Θεὸς, sendo entendido no
mesmo sentido com αὐτόθεος, era, como deve ser, geralmente reservado
ao Pai, como o caráter pessoal distintivo da primeira pessoa da Santa
Trindade. E isto equivale a não mais que o reconhecimento da
prerrogativa do Pai como Pai. Mas também poderia significar qualquer
pessoa que é verdadeira e essencialmente Deus, que poderia aplicar-se
adequadamente ao Filho também: e é aplicada às vezes, embora não com
tanta frequência como o é ao Pai.” Hilário do Poitiers expressa a ideia
geral dos Pais de Niceia neste ponto, quando diz: “Et quis non Patrem
potiorem confitebitur, ut ingenitum a genito, ut patrem a filio, ut eum qui
miserit ab eo qui missus est, ut volentem ab ipso qui obediat? Et ipse
nobis erit testis: Pater major me est. Hæc ita ut sunt, intelligenda sunt,

330
Works, vol. I. p. 315.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 630
sed cavendum est, ne apud imperitos gloriam Filii honor Patris
infirmet.” 331
O Bispo Pearson 332 diz que a preeminência do pai “sem lugar a
dúvida consiste nisto: que Ele não é Deus dos demais, mas sim de Si
mesmo, e que não há outra pessoa que é Deus, se não é Deus de Si
mesmo. Não é uma diminuição ao Filho, ao dizer que Ele é de outro,
porque seu próprio nome importa outro tanto, mas sim foi uma
diminuição ao Pai falar assim dEle, e deve haver alguma preeminência,
onde há lugar para a derrogação. O que o Pai é, Ele é de ninguém, o que
é o Filho, Ele é dEle; o que o primeiro é, Ele dá, o que o segundo é, Ele
recebe. O primeiro é o Pai de fato, em razão de seu Filho, mas Ele não é
Deus por causa dEle, e enquanto que o Filho não é tão somente com
relação ao Pai, mas também a Deus com motivo do mesmo.” Entre as
autoridades patrísticas citadas por Pearson, são as seguintes de
Agostinho: 333 “Pater de nullo patre, Filius de Deo Patre. Pater quod est, a
nullo est: quod autem Pater est, propter Filium est. Filius vero et quod
Filius est, propter Patrem est, et quod est, a Patre est.” “Filius non hoc
tantum habet nascendo, ut Filius sit, sed omnino ut sit. . . . . Filius non
tantum ut sit Filius, quod relative dicitur, sed omnino ut sit, ipsam
substantiam nascendo habet.” 334
Os próprios reformadores foram pouco inclinados a entrar nessas
especulações. Foram especialmente repugnantes a uma mente como a de
Lutero. Insistiram na consideração dos fatos das Escrituras como
estavam, sem nenhum intento de explicação.
Ele diz: “Devemos, como as criancinhas, balbuciar o que as
Escrituras ensinam: que Cristo é verdadeiramente Deus, que o Espírito
Santo é verdadeiramente Deus, e que, entretanto, não há três Deuses, ou
331
De Trinitate, III., Works, Paris, 1631, p. 23, a. See on this point Schaff’s History of the Christian
Church, Vol. III. § 130. Gieseler’s Kirchengeschichte, Vol. VI. § 60. Pearson, On the Creed, and
especially, Bull’s Defence of the Nicene Creed, fourth edition.
332
Page 35.
333
In Joannis Evangelium Tractatus, xix. 13, edit. Benedictines, vol. iii. p. 1903, a.
334
De Trinitate, v. xv. 16, vol. viii. p. 1286, c, d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 631
três seres, visto que há três Homens, três Anjos, três Sóis, ou três
Windows. Não, Deus não é assim dividido em Sua essência, e sim há um
só Ser divino ou substância. Portanto, embora haja três pessoas, Deus
Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, entretanto, o Ser não está dividido
ou distinto, visto que não há senão um só Deus numa só substância
indivisa, divina”. 335
Calvino também se opôs a ir além da simples declaração das
Escrituras. 336 Depois de dizer que Agostinho dedica o quinto livro sobre
a Trindade à explicação da relação entre o Pai e o Filho, acrescenta:
“Longe vero tutius est in ea quam tradit relatione subsistere, quam
subtilius penetrando ad sublime mysterium, per multas evanidas
speculationes evagari. Ergo quibus cordi erit sobrietas et qui fidei
mensura contenti erunt, breviter quod utile est cognitu accipiant: nempe
quum profitemur nos credere in unum Deum, sub Dei nomine intelligi
unicam et simplicem essentiam, in qua comprehendimus tres personas
vel hypostaseis: ideoque quoties Dei nomen indefinite ponitur, non
minus Filium et Spiritum, quam Patrem designari: ubi autem adjungitur
Filius Patri, tunc in medium venit relatio: atque ita distinguimus inter
personas. Quia vero proprietates in personis ordinem secum ferunt, ut in
Patre sit principium et origo: quoties mentio sit Patris et Filii simul, vel
Spiritus, nomen Dei peculiariter Patri tribuitur. Hoc modo retinetur
unitas essentiæ et habetur ratio ordinis, quæ tamen ex Filii et Spiritus
deitate nihil minuit: et certe quum ante visum fuerit Apostolos asserere
Filium Dei illum esse, quem Moses et Prophetæ testati sunt esse
Jehovam, semper ad unitatem essentiæ, venire necesse est.” Temos aqui
os três fatos essenciais implicadas na doutrina da Trindade, ou seja, a
unidade da essência, a distinção de pessoas, e a subordinação sem
qualquer intento de explicação.

335
Die Dritte Predigt a. Tage d. heil. Dreifaltigk, 5; Works, ed. Walch, vol. xiii. p. 1510.
336
Institutio, I. XIII. 19, 20, edit. Berlin, 1834, part I. pp. 100, 101.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 632
Calvino foi acusado por alguns de seus contemporâneos do ensino
das doutrinas incompatíveis de sabelianismo e arianismo. Numa carta a
seu amigo Simon Grynée, reitor da Academia de Basileia, com data de
maio de 1537, diz que o solo sobre o qual a acusação de sabelianismo
descansava, foi o haver dito que Cristo foi “que Jeová, que de Si mesmo
somente era sempre autoexistente, que comanda”, diz ele, “Eu estava
disposto a lembrar.” Sua resposta é: “Se for considerado com atenção a
distinção entre o Pai e o Verbo, vamos dizer que um é do outro. Se,
entretanto, a qualidade essencial da Palavra é considerada, na medida em
que Ele é um Deus com o Pai, tudo o que se possa dizer aproxima-se de
Deus também se pode aplicar a Ele, a Segunda Pessoa da Trindade
gloriosa. Agora, qual é o significado do nome de Jeová? O que é que
essa resposta implica ao que foi dito a Moisés? EU SOU AQUELE QUE
SOU. Paulo faz de Cristo o autor desta frase.” 337 Este argumento é
concludente. Se Cristo é Jeová, e se o nome de Jeová implica
autoexistência, então Cristo é autoexistente. Em outras palavras, a
autoexistência e a existência necessária, assim como a onipotência e
todos os outros atributos divinos, pertencem à essência divina comum a
todas as pessoas da Trindade, e portanto é o Deus Triúno, que é
autoexistente, e não uma pessoa diferente das outras pessoas. Quer dizer,
a autoexistência não se prega da essência divina única, nem do Pai, mas
sim da Trindade, ou da Divindade como subsistindo em três pessoas. E,
portanto, como diz Calvino, quando a palavra Deus é usada por tempo
indefinido, significa o Deus Triúno, e não o Pai em distinção do Filho e
do Espírito.

337
Calvin’s Letters, vol. i. pp. 55, 56, edit. Presbyterian Board, Philadelphia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 633
B. Geração eterna.

Igualmente em referência à subordinação do Filho e do Espírito ao


Pai, tal como se afirmou nos credos antigos, não é o fato de que uma
exceção é tomada, mas sim da explicação deste fato, conforme dado
pelos pais nicenos, o mesmo é certo no que respeita à doutrina da
Geração eterna.
Sem dúvida é um fato bíblico de que a relação entre a Primeira e
Segunda pessoas da Trindade se expressa em termos relativos o Pai e o
Filho. Também é dito que o Filho é gerado pelo Pai, Ele é declarado
como o unigênito Filho de Deus. A relação, portanto, da Segunda Pessoa
para com a primeira é a da filiação. Mas, o que se entende pelo termo,
nem a Bíblia nem os credos antigos explicam. Pode ser a igualdade da
natureza, como um filho é da mesma natureza de seu pai. Pode ser
parecido, e o termo Filho equivalente a εἰκών, ἀπαύγασμα, χαρακτήρ, o
λόγος, ou revelador. Pode ser a derivação da essência, como um filho,
em certo sentido, deriva-se de seu pai. Ou, pode ser algo totalmente
inescrutável e para nós incompreensível.
Os pais de Niceia, em vez de deixar o assunto nas Escrituras provir
dela, tentam explicar o que se entende por filiação, e ensinam que
significa derivação da essência. A Primeira Pessoa da Trindade é Pai,
porque Ele comunica a essência da Divindade à Segunda Pessoa, e a
segunda pessoa é o Filho, porque Ele deriva essa essência da Primeira
Pessoa. Isto é o que querem dizer com a geração eterna. Quanto ao que
se ensinava:
1. Que é a pessoa não a essência do Filho que foi gerado. A
essência é autoexistente e eterna, mas a pessoa do Filho é gerada (quer
dizer, Ele converte-se numa pessoa) pela comunicação a ele da essência
divina. Este ponto segue ser insistido em que através dos últimos
períodos da Igreja. Turrettin 338 assim disse: “Licet Filius sit a Patre, non

338
Locus III. XXVIII. 40, edit. Edinburgh, 1847, vol. I. p. 260.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 634
minus tamen αὐτόθεος dicitur, non ratione Personæ, sed ratione
Essentiæ; non relate qua Filius, sic enim est a Patre, sed absolute qua
Deus, quatenus habet Essentiam divinam a se existentem, et non divisam
vel productam ab alia essentia, non vero qua habens essentiam illam a
seipso. Sic Filius est Deus a seipso, licet non sit a seipso Filius.”
De novo: 339 “Persona bene dicitur generare Personam, quia actiones
sunt suppositorum; sed non Essentia Essentiam, quia quod gignit et
gignitur necessario multiplicatur, et sic via sterneretur ad Tritheismum.
Essentia quidem generando communicatur; sed generatio, ut a Persona
fit originaliter, ita ad Personam terminatur.” Este é o modo comum de
representação.
2. Esta geração diz-se que é eterna. "É um eterno movimento na
essência divina."
3. É pela necessidade da natureza, e não pela vontade do Pai.
4. Não implica nenhuma separação ou divisão, visto que não é
parte, mas sim a essência total e completa do Pai que se comunica do Pai
ao Filho.
5. É sem mudança.
Os principais motivos realçados em apoio desta representação, são a
natureza da filiação entre os homens e a passagem de João 5.26, onde se
diz: “Como o Pai tem vida em si mesmo, assim também deu ao Filho o
ter vida em si mesmo.”
Admite-se que a relação entre a Primeira e Segunda pessoas na
Trindade se expressa pelas palavras Pai e Filho, e portanto enquanto que
tudo nesta relação que existe entre os homens, implicando imperfeição
ou mudança, deve ser eliminado, não obstante, a ideia essencial da
paternidade deve conservar-se.
Esta ideia fundamental supõe-se que é a comunicação da essência
do pai a seu filho, e, portanto, mantém-se que deve haver uma
comunicação da essência da Divindade do Pai ao Filho na Santíssima

339
Ibid. xxix. 6, p. 262.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 635
Trindade. Mas, em primeiro lugar, trata-se de uma hipótese gratuita que,
com relação à alma, há inclusive entre os homens, toda comunicação da
essência do pai ao menino.
O traducianismo nunca foi a doutrina geral da Igreja cristã. Como,
portanto, é, no mínimo, dizer que é duvidosa, se existe alguma
comunicação da essência da alma na paternidade humana, não é razoável
assumir que tal comunicação é essencial para a relação de Pai e Filho na
Trindade.
Em segundo lugar, embora se admita que os termos Pai e Filho se
utilizam para nos dar uma ideia da relação mútua da Primeira e Segunda
pessoas da Trindade, entretanto, não são definitivamente determinados o
que a relação é. Pode ser igualdade e semelhança. Entre os homens Pai e
Filho pertencem à mesma ordem de seres. Um não é inferior na natureza,
apesar de que pode ser de posição, a outros. E o filho é como seu pai. Da
mesma maneira na Santíssima Trindade é a Segunda Pessoa diz que é o
ἀπαύγασμα, o χαρακτήρ, o λόγος, a Palavra ou Revelador do Pai, de
modo que aquele que ouve o Filho ouve o Pai, aquele que tem visto um
tem visto o outro. Ou a relação pode ser a de afeto. O amor recíproco de
pai e filho é peculiar. É, por assim dizer, necessário; é imutável, é
insondável, guia, ou é guiado a cada tipo e grau de auto-sacrifício. Não é
necessário assumir com referência à Trindade que estas relações são tudo
o que os termos relativos Pai e Filho quer revelar. Estes podem incluir,
mas muito mais pode implicar o que não somos capazes de compreender.
Tudo o que se disputava é dizer, que não se fecham à admissão de que a
derivação da essência é essencial para a filiação.
Quanto à passagem de João 5:26, onde se diz que o Pai deu ao Filho
o ter vida em Si mesmo, tudo depende do sentido em que se toma a
palavra Filho. Essa palavra utiliza-se às vezes como uma designação do
λόγος, a Segunda Pessoa da Trindade, para indicar Sua relação eterna à
Primeira Pessoa como o Pai. É, entretanto, com muita frequência usado
como uma designação do λόγος encarnado, o Verbo feito carne. Muitas
coisas estão preditas na Escritura do Deus-homem, que não pode pregar-
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 636
se da Segunda Pessoa da Trindade como tal. Se nesta passagem do Filho
significa o Logos, então ensina que a Primeira Pessoa da Trindade
comunica vida, e portanto a essência que é inerente a essa vida, à
Segunda Pessoa. Mas se Filho aqui designa ao Theanthropos, então a
passagem não ensina tal doutrina. Que é a pessoa histórica, Jesus de
Nazaré de quem aqui se fala, pode afirmar-se não só pelo fato de que Ele
está em outra parte com tanta frequência chamado o Filho de Deus,
como na confissão completa requeria de todo cristão na era apostólica,
“Eu creio que Jesus é o Filho de Deus”; mas também pelo contexto.
Nosso Senhor tinha curado a um homem impotente em no sábado.
Por isso os judeus lhe acusaram da violação do sábado. O mesmo
reivindicou dizendo que Ele tinha o mesmo direito que Deus tinha a
trabalhar em no sábado, porque era o Filho de Deus, e portanto igual a
Deus. Que Ele tinha poder não só para curar senão para dar vida, assim
que o Pai tinha vida em Si mesmo, pelo que tinha dado ao Filho o ter
vida em Si mesmo. Havia também lhe dado autoridade para fazer juízo.
Ele ia ser o juiz dos vivos e os mortos, porque Ele é o Filho do homem,
quer dizer, porque Ele se converteu em homem por nós e por nossa
salvação. Seus acusadores não têm por que surpreender-se do que Ele
disse, porque a hora se aproximava quando todos os que estão no
sepulcro ouvirão sua voz e sairão, os que fizeram o bem, sairão a
ressurreição de vida, e os que fizeram o mal, a ressurreição de
condenação. O tema do discurso, portanto, no contexto, é o personagem
histórico quem tinha curado um homem doente, e quem com igual
propriedade se poderia chamar Deus ou homem, porque Ele era Deus e
homem. O que a passagem ensina, portanto, refere-se à constituição da
pessoa de Cristo como Ele apareceu na terra, e não a natureza da relação
entre o Pai e o Filho na Deidade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 637
C. Filiação eterna.

Existe, portanto, uma distinção entre as especulações dos pais


nicenos, e as decisões do Concílio de Niceia. Estes últimos foram aceitos
pela Igreja universal, mas não o primeiro. O Concílio declarou que o
Senhor é o Filho eterno de Deus, quer dizer, que Ele é desde a eternidade
o Filho de Deus. É óbvio, isto implica a negação de que chegou a ser o
Filho de Deus no tempo e, em consequência, que a razão principal e
essencial para seu ser chamado Filho não é Seu nascimento milagroso,
nem Sua encarnação, nem Sua ressurreição, nem Sua exaltação à destra
de Deus. O Concílio decidiu que a palavra Filho como aplicado a Cristo,
não é um mandato, mas sim da natureza, que expressa a relação que a
Segunda Pessoa da Trindade desde a eternidade tem com a Primeira
Pessoa, e que a relação assim indicada é a igualdade da natureza, pelo
que a filiação, no caso de Cristo, uma igualdade com Deus. Em outras
palavras, Deus era em tal sentido Seu pai que Ele era igual a Deus. E, em
consequência, cada vez que as Escrituras chamam Jesus o Filho de Deus,
afirmam Sua divindade verdadeira e própria. Isto não implica que cada
vez que Cristo é chamado o Filho de Deus, o que se diz dEle deve-se
entender de Sua natureza divina. O fato é patente, e se admite que a
pessoa de nosso Senhor seja designada de qualquer natureza. Ele pode
ser chamado o Filho de Davi e o Filho de Deus. E Sua pessoa pode ser
designada de uma natureza, quando o que se prega dEle é certo só da
outra natureza. Assim, por um lado, o Senhor da Glória foi crucificado,
Deus comprou a igreja com o Seu sangue, e o Filho diz-se que é
ignorante; e, por outro lado, o Filho do Homem diz-se que está no céu
quando Ele estava na terra. Sendo isto admitido, resta a verdade que
Cristo é chamado o Filho de Deus quanto à Sua natureza divina. O
Logos, a Segunda Pessoa da Trindade, como tal, e devido à Sua relação
com a Primeira Pessoa, é o Filho de Deus.
Tal é a doutrina do Concílio de Niceia, e que não o é menos a
doutrina das Escrituras, desprende-se das seguintes considerações:
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 638
1. Os termos Pai, Filho e Espírito, tal como se aplica às pessoas da
Trindade, são termos relativos. As relações que eles expressam são
relações mútuas, quer dizer, relações nas quais as diferentes pessoas se
situam uma à outra. A Primeira Pessoa chama-se Pai, não por Sua
relação com Suas criaturas, mas por Sua relação com a Segunda Pessoa.
A segunda pessoa chama-se Filho, não por nenhum tipo de relação
assumida no tempo, mas sim devido à Sua relação eterna com a Primeira
Pessoa. E a Terceira Pessoa é o Espírito por causa de Sua relação com a
Primeira e a Segunda.
2. Se, como toda a Igreja cristã crê, a doutrina da Trindade é uma
doutrina da Escritura, e se, como também é admitida por todas as partes
nesta discussão, foi o propósito de Deus revelar que o conhecimento e a
fé de Seu povo, há uma necessidade do uso de termos pelos quais as
pessoas da Trindade devem ser designadas e reveladas. Mas se os termos
Pai, o Filho e o Espírito não se aplicam às pessoas da Trindade como tal,
e não expressam suas relações mútuas, não há tais termos distintivos na
Bíblia pelos quais podem ser conhecidos e designados.
3. Há numerosas passagens nas Escrituras que demonstram
claramente que o Senhor é chamado Filho, não meramente porque Ele é
a imagem de Deus, ou porque Ele é o objeto do afeto peculiar, nem por
sua concepção milagrosa somente, nem por causa de Sua exaltação, mas
devido à relação eterna que Ele sustenta com a Primeira Pessoa da
Trindade. Estas passagens são de dois tipos. Em primeiro lugar, aquelas
em que o Logos é chamado Filho, ou em que Cristo quanto à Sua
natureza divina e antes de Sua encarnação Se declara ser o Filho de
Deus; e, em segundo lugar, aquelas em que a aplicação do conceito de
Filho de Cristo implica a adscrição da divindade a Ele.
Ele é declarado como o Filho de Deus em tal sentido como implica
a igualdade com Deus. Para a primeira destas classes pertencem
passagens como as seguintes: Rom. 1:3, 4, onde Cristo Se declara ser
κατὰ σάρκα, o Filho de Davi, e κατὰ πνεῦμα ἁγιοσύνης, o Filho de
Deus. Que πνεῦμα ἁγιοσύνης não significa aqui o Espírito Santo, e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 639
muito menos um estado pneumático, mas a mais elevada ou a natureza
divina de Cristo, é evidente pela antítese. Quanto à Sua natureza
humana, Ele é o Filho de Davi, quanto à Sua natureza divina, Ele é o
Filho de Deus. Quanto à Sua humanidade, Ele é consubstancial com o
homem; quanto à Sua divindade, Ele é consubstancial com Deus. Se seu
ser o Filho de Davi prova que Ele era um homem, seu ser o Filho de
Deus prova que Ele é Deus. Portanto, Cristo foi chamado Filho antes de
Sua encarnação, como em Gl. 4:4: “Deus enviou a seu Filho, nascido de
mulher.” Foi o Logos que foi enviado, e o Logos era o Filho. Assim, em
João 1:1-14, nos ensina que o Logos estava no princípio com Deus, que
Ele era Deus, que Ele fez todas as coisas, que Ele era a luz e a vida dos
homens, e que Ele Se fez carne, e revelou Sua glória como o Filho de
Deus. Aqui está claro que o Logos ou Palavra é declarado ser o Filho. E
no versículo dezoito desse capítulo diz-se, “Ninguém jamais viu a Deus;
o Filho unigênito, que está no seio do Pai (ὀ ὢν ἐις τὸν κόλπον τοῦ
πατρός), ele o deu a conhecer.” Aqui o tempo presente, ὀ ὤν, expressa
ser permanente, Aquele que está, esteve e estará sempre no seio do Pai,
quer dizer, mais intimamente unido a Ele, a fim de conhecer a Ele, como
Ele conhece a Si mesmo, é o Filho. Segundo Crisóstomo, esta linguagem
implica a συγγένεια καὶ ἑνότης τῆς οὐσίας do Pai e do Filho, que não
foram interrompidas por Sua manifestação na carne.
A esta última categoria pertencem as passagens como as seguintes:
João 5:18-25, onde Cristo chama a Deus Seu Pai num sentido que
implica a igualdade com Deus. Se filiação implica igualdade com Deus,
isso implica a participação da essência divina. Foi afirmar ser o Filho de
Deus neste sentido, que os judeus tomaram pedras para O apedrejar.
Nosso Senhor Se defendeu, dizendo que Ele tinha o mesmo poder que
Deus tinha, a mesma autoridade, a mesma energia que dá vida, e
portanto tinha direito à mesma honra. Em João 10:30-38 há uma
passagem similar, em que Cristo diz que Deus é Seu Pai em tal sentido
que Ele e o Pai são um. No primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus,
afirma-se que Cristo não pertence à categoria das criaturas, que todos os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 640
anjos (quer dizer, todas as criaturas inteligentes superiores aos homens)
estão sujeitos a Ele, e estão obrigados a adorá-lo, porque Ele é o Filho de
Deus. Como Filho Ele é o resplendor da glória do Pai, a imagem exata
de Sua pessoa, quem sustenta todas as coisas com a palavra de Seu
poder. Porque Ele é o Filho de Deus, Ele é o Deus que no princípio pôs
os alicerces da terra, e os céus são obra de Suas mãos. Eles são mutáveis,
mas Ele é imutável e eterno. Não pode, portanto, haver nenhuma dúvida
razoável que, segundo as Escrituras, o termo Filho tal como se aplica a
Cristo expressa a relação da Segunda à Primeira Pessoa na Trindade
adorável. Em outras palavras, não é mais que um título oficial, mas
designa o Logos e não exclusivamente o Theanthropos.
4. Outro argumento na prova desta doutrina se deriva do fato de que
Cristo Se declara como “o Filho unigênito de Deus,” “seu próprio Filho,”
quer dizer, Seu Filho num sentido peculiar e próprio. Os anjos e os
homens são chamados filhos de Deus, porque Ele é o Pai de todos os
espíritos. Os santos homens são Seus filhos, porque partícipes de sua
natureza moral, como os homens ímpios são chamados filhos do diabo.
O povo de Deus são os Seus filhos e filhas por regeneração e adoção. É
em oposição a todo este tipo de filiação que Cristo é declarado Filho
único de Deus, a única pessoa no universo a quem a palavra pode ser
aplicada em todo seu sentido como expressão da igualdade da essência.

Objeções à doutrina.
As objeções especulativas a esta doutrina da filiação eterna já foram
examinadas. Se Cristo é o Filho, se Ele é Deus de Deus, diz-se que Ele
não é autoexistente e independente. Mas a autoexistência, a
independência, etc., são atributos da essência divina, e não de uma
pessoa diferente de outros. É o Deus Triúno, que é autoexistente e
independente.
A subordinação quanto ao modo de subsistência e funcionamento, é
um fato das Escrituras, e também o é a divindade perfeita e a igualdade
do Pai e do Filho, e portanto estes fatos devem ser coerentes. Na
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 641
identidade consubstancial da alma humana há uma subordinação de uma
faculdade a outra, e assim, entretanto incompreensível para nós, pode
haver uma subordinação na Trindade consistente com a identidade de
essência da Divindade.

Salmo 2:7.
As mais plausíveis objeções se baseiam em certas passagens das
Escrituras. No Sl. 2:7, diz-se: “Tu és meu filho; eu hoje te gerei.” Disto
se afirma que Cristo ou o Messias se constituiu ou foi feito o Filho de
Deus no tempo, e portanto não era o Filho de Deus da eternidade. A isto
se pode responder:
1. Que o termo Filho, tal como usado nas Escrituras, expressa as
relações diferentes, e portanto pode-se aplicar à mesma pessoa por
distintos motivos, ou têm um significado, ou seja, expressa uma relação
num só lugar, e outra distinta em outro. Pode fazer referência, ou ser
aplicado ao Logos, ou ao Theanthropos. Uma base para a utilização da
denominação não exclui todas as demais. Deus ordenou a Moisés dizer a
Faraó: “Israel é meu filho, meu primogênito.” (Ex. 4:22). E disse de
Salomão, “Eu serei para ele pai e ele será meu filho.” (2Sm. 7:14). A
palavra filho aqui expressa a ideia da adoção, a seleção de um povo ou
de um homem de muitos diante de Deus numa peculiar relação de
intimidade, afeto, honra e dignidade. Se por estas razões o povo
teocrático, ou um rei teocrático, pode ser chamado Filho de Deus, pelas
mesmas razões, e por excelência, o Messias pode ser designado como
tal. Mas isto não é argumento para provar que o Logos não pode, num
sentido muito mais elevado ser chamado Filho de Deus.
2. A passagem em questão, entretanto, não deve ser entendida de
um evento que teve lugar no tempo. Seu sentido essencial é: “Tu és meu
Filho, agora és meu Filho.” A ocasião referida às palavras “este dia” foi
o momento em que o Filho do rei de Sião devia ser plenamente
manifestado. Naquele tempo, como aprendemos de Rom. 1:4, que foi o
dia de Sua ressurreição. Por Sua ressurreição dentre os mortos, Ele Se
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 642
manifestou claramente ser tudo o que pretendia ser — o Filho de Deus e
o Salvador do mundo.
3. Há outra interpretação da passagem que é essencialmente a
mesma que a dada por muitos dos pais, e que assim é apresentada pelo
Dr. Addison Alexander em seu comentário sobre Atos 13.33: “A
expressão do Salmo:«Eu te gerei”, significa, Eu sou aquele que te gerou,
quer dizer, eu sou Teu pai. ‘Hoje’ refere-se à data do próprio decreto
(Jeová disse: Hoje em dia, etc.), mas isto, como um ato divino, era
eterno, e assim deve ser a filiação que afirma”.

Atos 13:32, 38.


Pode-se insistir, entretanto, que em Atos 13.32, 33, esta passagem é
citada como prova da ressurreição de Cristo, o que demonstra que o
Apóstolo entendeu a passagem para ensinar que Cristo foi gerado ou
feito Filho de Deus quando Ele Se levantou dentre os mortos. A
passagem em Atos diz assim em nossa versão: “Nós também vos
anunciamos o evangelho daquela promessa feita aos pais, a qual Deus
cumpriu a nós, seus filhos, levantando Jesus outra vez (ἀναστήσας);
como está escrito também no segundo salmo: ‘Meu filho és, hoje eu te
gerei’.” [Authorized Version]. Aqui não há nenhuma referência à
ressurreição. As boas novas que o Apóstolo anunciou não foi a
ressurreição, mas sim a chegada do Messias. Essa foi a promessa feita
aos pais, que Deus tinha cumprido ao levantar, quer dizer, trazer para o
mundo o Salvador prometido. Compare Atos 2:30; 3:22, 26; 7:31, em
todas as passagens onde se utiliza a mesma palavra, o “levantar” refere-
se à chegada de Cristo, como quando se diz: “O Senhor teu Deus vos
levantará profeta dentre seus irmãos, como a mim.” A palavra nunca
utiliza-se absolutamente em referência à ressurreição, exceto, como em
Atos 2:32, onde se fala da ressurreição no contexto. Nossos tradutores
obscureceram o sentido, ao traduzir ἀναστήσας “tendo levantado de
novo,” em lugar de simplesmente “tendo levantado”, como eles o fazem
em outros lugares.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 643
Que este é o verdadeiro significado da passagem se desprende dos
versos seguintes. Paulo tendo dito que Deus tinha cumprido Sua
promessa aos pais por levantar Cristo, conforme com o Salmo 2:7,
imediatamente acrescenta como um fato adicional: “E, que Deus o
ressuscitou dentre os mortos para que jamais voltasse à corrupção, desta
maneira o disse: E cumprirei a vosso favor as santas e fiéis promessas
feitas a Davi. Por isso, também diz em outro Salmo: Não permitirás que
o teu Santo veja corrupção” (At 13:34, 35). O Apóstolo, portanto, não
ensina que Cristo foi feito o Filho de Deus por Sua ressurreição. Mas
inclusive, como já se destacou, se Ele ensinou que o Theanthropos foi
num sentido feito o Filho de Deus, isso não provaria que o Logos não era
o Filho em outro sentido superior.

Lucas 1:35.
A mesma observação é aplicável a Lucas 1:35: “Descerá sobre ti o
Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra;
por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de
Deus.” O Bispo Pearson, um dos defensores mais enérgicos da “geração
eterna”, e de todas as características da doutrina de Niceia sobre a
Trindade, dá quatro razões pelas quais Theanthropos ou Deus-homem é
chamado o Filho de Deus. (1.) Sua concepção milagrosa. (2.) O alto
cargo para o qual foi designado. (Jo 10:34, 35, 36). (3.) Sua ressurreição,
de acordo com uma interpretação de Atos 13:33. “A tumba,” diz, “é
como o ventre da terra, Cristo, que ressuscitou dali, é como se fosse
gerado a outra vida, e Deus, quem o ressuscitou, é Seu Pai.” 340 (4.)
Porque depois de Sua ressurreição foi feito herdeiro de todas as coisas.
(Hb 1:2-5). Tendo atribuído estes motivos pelos quais o Deus-homem é
chamado Filho, vai mostrar por que o Logos é chamado Filho. Não há
nada, portanto, nas passagens citadas inconsistente com a doutrina da
Igreja da Filiação eterna de nosso Senhor.

340
Pearson on Creed, p. 106.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 644
A linguagem do anjo dirigido à Virgem Maria, pode, entretanto,
significar nada mais que isto, ou seja, que a assunção da humanidade
pelo Filho eterno de Deus foi a razão pela qual deve ser reconhecido
como uma pessoa divina. Não era um menino comum que devia nascer
de Maria, mas sim um que devia, na linguagem dos profetas, ser
Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, o Filho do Altíssimo.
Foi porque o Filho Eterno feito de uma mulher, que essa Coisa Santa
nasceu da virgem ia ser chamado Filho de Deus.
Quase não deve ser observado que nenhuma objeção válida à
doutrina da filiação eterna de Cristo, ou, que Ele é Filho quanto à Sua
natureza divina, pode extrair-se de tais passagens quando falam do Filho
como inferior ao Pai, ou sujeito a Ele estão, ou inclusive ignorante. Se
Cristo pode ser chamado o Senhor da glória, ou Deus, quando se fala de
Sua morte, Ele pode ser chamado Filho, quando as limitações de outros
se atribuem a Ele. Como Ele é Deus e homem, tudo o que é verdade quer
seja de Sua humanidade ou de Sua divindade, pode pregar-se dEle como
pessoa, e Sua pessoa pode ser denominada de uma natureza, quando o
predicado pertence à outra natureza. Ele é chamado o Filho do homem
quando se diz que é onipresente, e Ele é chamado Deus quando se diz
que comprou a Igreja com Seu sangue.

D. Relação do Espírito com as outras Pessoas da Trindade.

Como os concílios de Nisa e Constantinopla foram justificados


plenamente pela Escritura no ensino da Filiação eterna de Cristo, de
modo que o que eles ensinaram da relação do Espírito com o Pai e o
Filho, tem um fundamento bíblico adequado.
Esta relação se expressa pela palavra processão, com relação à que
o doutrina comum da Igreja é: (1.) Que é incompreensível e, portanto,
inexplicável. (2.) Que é eterna (3.) Que é igualmente do Pai e do Filho.
Ao menos tal é a doutrina dos povos latinos e de todas as igrejas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 645
ocidentais. (4.) Que esta processão trata-se da personalidade e as
operações do Espírito, e não Sua essência.

As bases das Escrituras para expressar esta relação pelo termo


processão, são:
(1.) A significação da palavra espírito. Isto significa alento, que
procede de, e essa expressão e efeito a nossos pensamentos. Desde que
Pai e Filho, como se aplica à Primeira e Segunda pessoas da Trindade,
são termos relativos, assume-se que a palavra Espírito como a
designação da Terceira Pessoa, também é relativa. (2.) Isto é indicado
ainda mais pelo uso do caso genitivo nas expressões πνεῦμα τοῦ πατρός,
τοῦ υἱοῦ, que se explica pelo uso da preposição ἐκ, como πνεῦμα ἐκ τοῦ
πατρός. O fato revelado é que o Espírito é do Pai, e a Igreja ao chamar à
relação, assim indicada, uma processão, não tenta explicá-la. (3.) Em
João 15:26, onde o Espírito é prometido por Cristo, diz-se que procede
do Pai.
Que as igrejas latinas e protestantes, em oposição à Igreja grega,
estão autorizadas a ensinar que o Espírito procede não do Pai somente,
mas sim do Pai e do Filho, é evidente, porque tudo o que se diz na
Escritura da relação do Espírito ao Pai, também se diz de Sua relação
com o Filho. Diz-se que é o “Espírito do Pai” e “Espírito do Filho;” Ele é
dado ou enviado pelo Filho, assim como pelo Pai, o Filho diz-se que
opera através do Espírito. Não se diz que o Espírito envia ou opera
através do Filho, como não envia nem opera através do Pai. A relação,
quanto ao revelado, é a mesma num caso como no outro.
Quando consideramos o caráter incompreensível da Divindade, o
caráter misterioso da doutrina da Trindade, a complexidade superior e a
dificuldade do problema que a Igreja devia resolver na apresentação da
doutrina de que há três pessoas e um só Deus, de tal maneira que se
cumpram os requisitos da Escritura e as convicções dos crentes, e
entretanto, evitar toda contradição, não podemos deixar de fazer
referência aos credos da Igreja sobre este tema, que têm pelas idades
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 646
garantido assentimento e consentimento, não à inspiração, estritamente
falando, mas sim à orientação especial do Espírito Santo.

§ 7. Concepções filosóficas da doutrina da Trindade.

As declarações filosóficas da doutrina da Trindade foram a intenção


de seus autores quer seja para prová-lo, ou ilustrá-lo, ou explicá-lo e
substituir uma teoria especulativa quanto à constituição do universo pela
doutrina da Escritura do Deus Triúno. As duas primeiras destas classes,
os designados à prova, e os destinados à ilustração, não tem por que ser
discriminados. Pode ser comentado em referência a todos eles que são de
pouco valor. Não servem para tornar inteligível o inconcebível. O mais
que podem fazer, é mostrar que em outras esferas e com relação a outros
temas, encontramo-nos com uma triplicidade um pouco análogo na
unidade. Na maioria dos casos, entretanto, estas ilustrações procedem no
suposto de que há mistérios na Divindade, que não têm contrapartida na
constituição de nossa natureza, ou em qualquer coisa que nos rodeia no
estado atual de nossa existência.
Já vimos que os pais estavam acostumados a referir-se à união da
luz, calor e resplendor numa substância do sol; a uma fonte e seus
arroios; à raiz, caule e flor de uma planta; à inteligência, vontade e afetos
na alma, como exemplos de pelo menos um certo tipo de triplicidade na
unidade, em outra parte que não na Divindade. A analogia mencionada
em último lugar, sobretudo, apresentou-se com frequência, e isso em
diferentes formas. Agostinho disse que à medida que o homem foi feito à
imagem do Deus Triúno, temos razões para esperar algo na constituição
de nossa natureza para responder à Trindade na Divindade. Ele se refere
à memória, inteligência e vontade, como coexistentes numa mente, de
modo que as operações da uma estão envoltas nas operações dos outros.
Gregório de Nissa refere-se à sua ilustração à alma, razão e o poder de
vida, unidos numa substância espiritual no homem. Tem-se admitido,
entretanto, que estas analogias não se mantiveram quanto ao ponto
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 647
principal, porque estes diferentes poderes no homem não são
subsistências diferentes, mas os diferentes modos de atividade de uma e
a mesma essência pessoal, de modo que estas ilustrações levam, antes,
ao sabelianismo, que à postura das Escrituras sobre a doutrina da
Trindade.
Sem dúvida, o exemplo mais comum foi tomado das operações de
nossa consciência. Nós concebemos a nós mesmos como objeto de nós
mesmos, e somos conscientes da identidade do sujeito e do objeto.
Portanto, temos o Eu subjetivo, o Eu objetivo e a identidade dos dois; a
tese desejada, análise e síntese. De uma forma ou outra, este exemplo
veio dos Pais, através dos escolásticos e dos reformistas, aos teólogos de
nosso tempo. Agostinho 341 diz: “Est quædam imago Trinitatis, ipsa
mens, et notitia ejus, quod est proles ejus ac de seipsa verbum ejus, et
amor tertius, et hæc tria unum atque una substantia.” Outra vez: 342 “Hæc
— tria, memoria, intelligentia, voluntas, quoniam non sunt tres vitæ, sed
una vita; nec tres mentes, sed una mens: consequenter utique nec tres
substantiæ sunt, sed una substantia.” E: 343 “Mens igitur quando
cogitatione se conspicit, intelligit se et recognoscit: gignit ergo hunc
intellectum et cognitionem suam. . . . . Hæc autem duo, gignens et
genitum, dilectione tertia copulantur, quæ nihil est aliud quam voluntas
fruendum aliquid appetens vel tenens.” Anselmo 344 tem a mesma ideia:
“Habet mens rationalis, quum se cogitando intelligit, secum imaginem
suam ex se natam, id est cogitationem sui ad suam similitudinem, quasi
sua impressione formatam, quamvis ipsa se a sua imagine, non nisi
ratione sola, separare possit, quæ imago ejus verbum ejus est. Hoc itaque
modo, quis neget, summam sapientem, quum se dicendo intelligit,
gignere consubstantialem sibi similitudinem suam, id est Verbum suum.”

341
De Trinitate, IX. xii. 18, edit. Benedictines, Paris, 1837, vol. viii. p. 1352, b.
342
Ibid. X. xi. 18, p. 1366, a.
343
Ibid. XIV. vi. 8, pp. 1443. d. 1444, a.
344
Monologium, xxxiii., edit. Migne, p. 188, b. See also Thomas Aquinas, I. xxvii. 3, edit. Cologne,
1640, p. 56.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 648
345
Melâncton adota e leva a cabo a mesma ideia: “Filius dicitur imago et
λόγος: est igitur imago cogitatione Patris genita; quod ut aliquo modo
considerari possit, a nostra mente exempla capiamus. Voluit enim Deus
in homine conspici vestigia sua. . . . . Mens humana cogitando mox
pingit imaginem rei cogitatæ, sed nos non transfundimus nostram
essentiam in illas imagines, suntque cogitationes illæ subitæ et
evanescentes actiones. At Pater æternus sese intuens gignit cogitatonem
sui, quæ est imago ipsius, non evanescens, sed subsistens, communicata
ipsi essentia. Hæc igitur imago est secunda persona. . . . . Ut autem Filius
nascitur cogitatione, ita Spiritus Sanctus procedit a voluntate Patris et
Filii; voluntatis enim est agitare, diligere, sicut et cor humanam non
imagines, sed spiritus seu halitus gignit.” Leibnitz, 346 diz: “Je ne trouve
rien dans les créatures de plus propre à illustrer ce sujet, que la réflexion
des espirits, lorsqu’un même esprit est son propre objet immediat, et agit
sur soi-même en pensant à soi-même et à ce qu’il fait. Car le
redoublement donne une image ou ombre de deux substances respectives
dans une même substance absolue, savoir de celle qui entend, et de celle
qui est entendue; l’un et l’autre de ces êtres est substantiel, l’un et l’autre
est un concret individu, et ils différent par des rélations mutuelles, mais
ils ne sont qu’une seule et même substance individuelle absolue.”
Dos teólogos do século XVII pertencentes à Igreja Reformada,
Keckermann era o mais disposto a apresentar as doutrinas da Bíblia
numa forma filosófica. Encontramos, portanto, com ele um intento
similar para fazer o mistério da Trindade inteligível. Ele se refere à
existência de Deus como consistindo em pensamento autoconsciente.
Como o pensamento é eterno, deve ter um objeto eterno, absoluto e
perfeito. Esse objeto deve, portanto, por si mesmo ser Deus. A unidade

345
Loci Communes, De Filio, edit. Erlangen, 1828, vol. i, pp.19, 21.
346
Remarque sur le Livre d’un Antitrinitaire Anglois, edit. Geneva, 1768, Vol. I. p. 27.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 649
da essência divina exige que este objeto deve estar no próprio Deus, e
portanto, volve-se eternamente a ele. 347
Os modernos teólogos da Alemanha, que seguem as instruções das
Escrituras, tomaram, em muitos casos, a base de que a unidade absoluta
na essência divina é inconsistente com a autoconsciência. Chegamos a
ser autoconscientes, distinguindo a nós mesmos do que não somos nós
mesmos, e sobretudo de outras pessoas da mesma natureza conosco
mesmos. Se, por conseguinte, não houvesse nenhuma pessoa objetiva a
Deus, a quem Ele podia dizer Tu, Ele não podia dizer Eu. Assim
Martensen 348 diz: Embora a criatura não pode ter a compreensão
adequada da natureza divina, temos uma biografia da Trindade em nós
mesmos; como somos formados a imagem de Deus, temos o direito a
conceber a Deus de acordo com a analogia de nossa própria natureza.
Como distinção de pessoas é necessário a autoconsciência em nós, assim
também em Deus. Portanto, se Deus não é uma Trindade, não pode ser
uma pessoa. Como, pergunta-se, pode Deus desde a eternidade ser
consciente de Si mesmo como Pai, sem distinguir a Ele mesmo dEle
mesmo como Filho? Em outras palavras, como pode Deus ser
eternamente autoconsciente, sem ser eternamente objetivo a Si mesmo?
Que conosco o objetivo do Ego não é meramente ideal e não uma pessoa
distinta do Eu subjetivo, surge de nossa natureza como criaturas. Com
Deus, pensar e ser são o mesmo. Ao pensar Ele mesmo seu próprio
pensamento é numa hipóstase distinta. O Dr. Shedd 349 deu uma
exposição similar, “na prova de que as condições necessárias da
autoconsciência no espírito finito, provê um sistema análogo à doutrina
da Trindade, e vai demonstrar que a trindade na unidade é necessária
para a autoconsciência na Divindade.”

347
Opera, edit. Cologne, 1614, Vol. II. Systema Theologiæ (tract at end of vol.), p. 72, the last of three
pages marked 72.
348
Dogmatik, pp. 129, 130.
349
History of Christian Doctrine, Vol. I. p. 366.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 650
Trinitarianismo panteísta.
Em tudo o que precede, fez-se referência aos que tiveram por objeto
reivindicar a doutrina da Trindade, demonstrando que não está fora da
analogia com outros objetos do pensamento humano. Há, entretanto,
muitos sistemas modernos que professam ser trinitários, que na realidade
são meras substituições das fórmulas de especulação para a doutrina da
Bíblia. Os homens falam da Trindade, do Pai, Filho e Espírito, quando
querem dizer com esses termos algo que não tem a menor analogia com
a doutrina da Igreja cristã. Muitos pela Trindade não significam uma
Trindade de pessoas na Divindade, mas por três forças radicais, por
assim dizer, na natureza divina, que se manifestam de diferentes
maneiras, ou de três relações diferentes do mesmo tema, ou três estados
diferentes ou etapas da existência. Assim, para alguns, o poder absoluto
ou a eficiência do Ser Supremo considerado como criando, mantendo, e
governando o mundo, é o Pai; como iluminando às criaturas racionais, é
o Filho; e, como moralmente os educando, é o Espírito.
Segundo Kant, Deus como criador é o Pai; como preservador e
governador dos homens, Ele é o Filho; e como o administrador da lei,
como juiz e remunerador, Ele é o Espírito. Segundo DeWette, Deus em
si mesmo é o Pai, tal como se manifesta no mundo, o Filho; e como
operando na natureza, o Espírito. Schleiermacher diz: Deus em Si
mesmo é o Pai; Deus em Cristo é o Filho; Deus na Igreja, é o Espírito
Santo. Os reconhecidos panteístas também usam a linguagem do
Trinitarianismo. Deus como Ser infinito e absoluto é o Pai; como
chegando à consciência e a existência no mundo, Ele é o Filho; como
voltando a Ele, o Espírito. Weisse tenta unir o teísmo e o panteísmo. Ele
pronuncia a doutrina da Trindade de Niceia como a forma superior de
pensamento filosófico. Ele professa a adoção dessa doutrina ex animo
em seu sentido usualmente admitido. Há uma tríplice personalidade
(Ichheit) em Deus necessárias à constituição de Sua natureza. Quando o
mundo foi criado a segunda destas pessoas fez-se sua vida, fundindo sua
personalidade no mundo e se fez impessoal, com o fim de elevar o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 651
mundo na união e na identidade com Deus. Quando o plano de estudos
do mundo se obtém, o Filho reassume Sua personalidade. 350

350
C. H. Weisse, Idee der Gottheit; Dresden, 1833, pp. 257 ff., 273. A literatura da doutrina da
Trindade iria encher um volume. De Bull Defence of the Nicene Creed, de Pearson On the Creed, de
Waterland On the Trinity, de Meier Geschichte der Lehre von der Trinität, de Baur Geschichte der
Lehre Von der Trinität, de Dorner History of the Person of Christ, em cinco volumes, um da série de
Clark Foreign Theological Library, uma coleção muito valiosa de importantes obras modernas, de
Shedd History of Christian Doctrine, e as outras obras históricas sobre as doutrinas da Igreja, abriu
todo o campo para o estudante de teologia.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 652
CAPÍTULO VII
A DIVINDADE DE CRISTO

§ 1. O testemunho do Antigo Testamento.

A doutrina da redenção é a característica distintiva da Bíblia. Por


isso, a pessoa e a obra do Redentor são o grande tema dos escritores
sagrados. Pela natureza da obra que Ele ia cumprir, era necessário que
Ele fosse ao mesmo tempo Deus e homem. Ele devia participar da
natureza daqueles que Ele devia redimir; e ter poder para submeter todo
mal, e dignidade para dar valor a sua obediência e padecimentos. Por
isso, do principio ao fim do volume sagrado, do Gênesis ao Apocalipse,
apresenta-se um Deus-Homem Redentor como objeto de suprema
reverência, amor e confiança aos perdidos filhos dos homens. É
absolutamente impossível apresentar a décima parte das evidências que
as Escrituras contêm da veracidade desta doutrina. É para a Bíblia o que
é a alma para o corpo – seu princípio vivo e impregnante, sem o qual as
Escrituras são um sistema frio e morto de história e de preceitos morais.
Por isso, parece uma obra de supererrogação demonstrar aos cristãos a
divindade de seu Redentor. É como demonstrar que o sol é a fonte de luz
e calor ao sistema do que é o centro. Entretanto, como há homens que
professam ser cristãos que negam esta doutrina, como foram e seguem
sendo os homens, que fazem do sol um mero satélite da terra, é
necessário que se apresente ao menos uma parte da evidência pela qual
esta grande verdade fica demonstrada, e que esteja à disposição para
resistir aos contraditores.

O Proto-Evangelho.
Imediatamente depois da apostasia de nossos primeiros pais,
anunciou-se que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. O
significado desta promessa e predição deve ser determinado por
revelações posteriores. Quando se interpreta à luz das próprias
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 653
Escrituras, fica patente que a semente da mulher significa o Redentor, e
que o esmagamento da cabeça da serpente significa o triunfo final do
Redentor sobre os poderes das trevas. Neste proto-Evangelho, como foi
chamado, temos o começo da revelação da humanidade e divindade do
grande libertador. Como semente da mulher, fica claramente afirmada
sua humanidade, e a natureza do triunfo que ia obter, subjugando a
Satanás, demonstra que devia ser uma pessoa divina. No grande conflito
entre o bem e o mal, entre o reino da luz e o reino das trevas, entre Cristo
e Belial, entre Deus e Satanás, aquele que triunfa sobre Satanás é, não
pode ser menos que, divino. Nos primeiros livros da Escritura, inclusive
em Gênesis, temos por isso uma clara intimação de duas grandes
verdades: primeiro, que há uma pluralidade de pessoas na Deidade; e
segundo, que uma destas pessoas está especialmente envolta na salvação
dos homens, – em sua condução, governo, instrução e final libertação de
todos os males de sua apostasia. A linguagem empregada no registro da
criação do homem, «Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança», não admite outra explicação satisfatória mais que a
que oferece a doutrina da Trindade.

Jeová e o Anjo de Jeová.


É sobre esta revelação primária e fundamental desta grande verdade
que se baseiam todas as posteriores revelações da Escritura. Como há
mais de uma pessoa na Deidade, encontramos no ato a distinção entre
Jeová como o mensageiro, um mediador, e Jeová como Aquele que
envia, entre o Pai e o Filho, como pessoas coiguais, coeternas, que
aparece pela Bíblia com crescente clareza. E esta não é uma
interpretação arbitrária nem não autoritativa das Escrituras do Antigo
Testamento. Em Lc 24:27 diz-se de nosso Senhor que, «começando por
Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu
respeito constava em todas as Escrituras». Por isso, Moisés testificou de
Cristo; e temos uma base certa sobre a que fundamentar-nos ao
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 654
interpretar as passagens do Antigo Testamento que expõem a pessoa e a
obra do grande libertador, como referentes a Cristo.
Daquele que foi prometido a Adão como a semente da mulher,
declarou-se depois que seria da semente de Abraão. O fato de que esta
não se refere aos seus descendentes coletivamente, mas sim a Cristo
individualmente; sabemo-lo pela declaração direta do Apóstolo (Gl.
3:16), e pelo cumprimento da promessa. Não é por meio dos filhos de
Abraão como nação, mas por meio de Cristo, que são benditas todas as
nações da terra. E as bênçãos a que se faz referência, a promessa dada a
Abraão, que, como diz e Apóstolo, veio-nos, é a promessa da redenção.
Por isso, Abraão viu o dia de Cristo, e se alegrou, e como disse nosso
Senhor, Antes que Abraão fora, eu sou. Isto demonstra que a pessoa
predita como a semente da mulher e como a semente de Abraão, por
meio de quem devia efetuar-se a redenção, devia ser ao mesmo tempo
Deus e homem. Não podia ser a semente de Abraão a não ser que fosse
homem, e não podia ser o Salvador dos homens a não ser que fosse Deus.
Assim, encontramos por todo o Antigo Testamento que se faz
constante menção de uma pessoa, distinta de Jeová, como pessoa, a
quem, entretanto, se atribuem, os títulos, atributos e as obras de Jeová.
Esta pessoa é chamada o Anjo de Elohim, o Anjo de Jeová, o Senhor,
Jeová, Elohim. Ele reivindica autoridade divina, exerce prerrogativas
divinas, e recebe homenagem divina. Se fosse uma questão isolada, se
em um ou dois casos o mensageiro falasse em nome do que lhe tinha
enviado, poderíamos supor que a pessoa assim designada era um anjo ou
servidor comum de Deus. Mas quando esta descrição se repete por toda a
Bíblia; quando encontramos que estes termos se aplicam não primeiro a
um anjo, e logo a outro, de maneira indiscriminada, mas sim a um anjo
em particular; que a pessoa assim designada é também chamada o Filho
de Deus, o Deus Forte; que a obra que se atribui a Ele é em outras partes
atribuída ao próprio Deus; e que no Novo Testamento se declara que este
Jeová manifestado, que conduziu o Seu povo sob a economia do Antigo
Testamento, é o Filho de Deus, o Logos, que foi manifestado em carne,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 655
fica certo que por Anjo de Jeová nos primeiros livros da Escritura temos
que entender uma pessoa divina, distinta do Pai.

A. O livro de Gênesis.

Assim, já logo em Gn 16:7, o Anjo de Jeová aparece a Agar, e lhe


diz: «Multiplicarei sobremodo a tua descendência, de maneira que, por
numerosa, não será contada». E Agar, diz-se, « invocou o nome do
SENHOR, que lhe falava [Attah el Roi]: Tu és Deus que vê» (v. 13). Por
isso, deste Anjo afirma-se que é Jeová, e promete o que só Deus poderia
fazer. Do mesmo modo, em Gn 18:1 diz-se que Jeová apareceu a Abraão
no vale do Manre, prometendo-lhe o nascimento de Isaque. No v. 14, de
novo é chamado Jeová. Jeová disse: « Acaso, para o SENHOR há coisa
demasiadamente difícil? Daqui a um ano, ... voltarei a ti, e Sara terá um
filho». Ao voltarem os anjos para Sodoma, um deles, chamado Jeová,
disse: «Ocultarei a Abraão o que estou para fazer ...?», e «Disse mais o
SENHOR: Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se
multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei»,
etc., e se acrescenta que Abraão estava diante de Jeová. Através de toda
a intercessão de Abraão em favor das cidades da planície, dirige-se ao
anjo como Adonai, um título dado só ao Deus verdadeiro, e este fala
como Jeová, e assume a autoridade de Deus, para perdoar ou castigar
conforme o considere oportuno. Quando se menciona a execução da
sentença pronunciada sobre Sodoma, diz-se: «fez o SENHOR chover
enxofre e fogo, da parte do SENHOR, sobre Sodoma e Gomorra». Com
relação a esta e similares notáveis expressões, a questão não é: o que
poderiam significar?, mas sim: o que significam? Tomadas em si
mesmas, poderiam ser desvirtuadas, mas tomadas à luz das revelações
concatenadas de Deus sobre esta questão, faz-se evidente que Jeová é
distinto como uma pessoa de Jeová, e que por isso na Deidade há mais
de uma pessoa a quem pertence o nome de Jeová. Neste caso, as palavras
«chover enxofre e fogo» podem-se conectar com as palavras «do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 656
SENHOR» no sentido de «fogo de Deus» como expressão figurada
denotando o raio. A passagem poderia então significar simplesmente:
«Jeová fez chover raios sobre Sodoma e Gomorra». Mas não só vai isto
contra a pontuação autorizada da passagem conforme o indicam os
acentos, mas também contra a analogia de Escritura. Isto é, a
mencionada é uma interpretação não natural, e faz com que esta
passagem entre em conflito com aquelas nos quais se indica claramente a
distinção entre o anjo de Jeová e Jeová, isto é, entre as pessoas da
Deidade.
Em Gn 22:2, Deus ordena a Abraão que ofereça a Isaque como
sacrifício. O Anjo de Jeová detém sua mão no momento da imolação, e
lhe diz (v. 12): «Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois
agora sei que temes a Deus, porquanto não me negaste o filho, o teu
único filho». E nos vv. 16 e 17 o Anjo de Jeová disse: «Jurei, por mim
mesmo, diz o SENHOR, ... deveras te abençoarei e certamente
multiplicarei a tua descendência». E Abraão chamou aquele lugar
«Jeová-jireh». Aqui Deus, o Anjo de Jeová e Jeová são nomes dados à
mesma pessoa, que jura por Si mesmo e promete a bênção de uma
numerosa descendência para Abraão. O anjo de Jeová deve, portanto, ser
uma pessoa divina.
Na visão de Jacó, registrada em Gn 28:11-22, ele viu uma escada
que chegava ao céu; «Eu sou o SENHOR, Deus de Abraão, teu pai, e
Deus de Isaque. A terra em que agora estás deitado, eu ta darei, a ti e à
tua descendência. A tua descendência será como o pó da terra». Aqui a
pessoa que em outros lugares é chamada o anjo de Jeová, e que tinha
dado a mesma promessa a Abraão, é chamada Jeová o Deus de Abraão e
o Deus de Isaque. Em Gn 32:24-32, Diz-se que Jacó lutou com um anjo
que logo o abençoou, e que ao vê-lo, Jacó disse: «Vi a Deus face a face».
O profeta Oseias (Os 12:4-5), ao referir-se a este acontecimento, diz:
«lutou com o anjo e prevaleceu; chorou e lhe pediu mercê; em Betel,
achou a Deus, e ali falou Deus conosco. O SENHOR [Jeová], o Deus dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 657
exércitos; o SENHOR [Jeová] é o seu nome» (Os 12:4). O Anjo com
quem lutou Jacó era Jeová Deus dos Exércitos.

B. Os outros livros históricos do Antigo Testamento.

Em Êxodo 3 temos o relato da revelação de Deus a Moisés no


Monte Horebe. Diz-se que lhe apareceu o Anjo de Jeová numa chama de
fogo em meio de uma sarça». E Moisés se voltou para ver esta grande
visão: «Vendo o SENHOR que ele se voltava para ver, Deus, do meio da
sarça, o chamou, ... Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó. Moisés escondeu o rosto,
porque temeu olhar para Deus». Aqui o Anjo de Jeová é idêntico com
Jeová, e é declarado ser o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. A
distinção pessoal entre Jeová e o Anjo de Jeová (isto é, entre o Pai e o
Filho, como estas pessoas são designadas em outras partes, e geralmente
nas Escrituras posteriores), é claramente apresentada em Êx 23:20-21,
onde se diz: «Eis que eu envio um Anjo adiante de ti, para que te guarde
pelo caminho e te leve ao lugar que tenho preparado. Guarda-te diante
dele, e ouve a sua voz, e não te rebeles contra ele, porque não perdoará a
vossa transgressão; pois nele está o meu nome». Esta última frase
equivale a dizer: «Eu estou nele». Pelo nome de Deus se significa
frequentemente o próprio Deus como manifestado. Do templo diz-se, em
1Rs 8:29: «Meu nome estará ali», isto é, «ali habitarei». Como diz-se no
Novo Testamento que o Pai envia ao Filho, e que está nele, assim aqui
diz-se que Jeová envia o Anjo de Jeová, e que está nEle. E como o Filho
do Homem tinha poder na terra para perdoar os pecados, assim o Anjo
de Jeová tinha autoridade para perdoar ou castigar segundo o Seu
beneplácito. Michaelis, em suas notas marginais de sua edição da Bíblia
hebraica, diz com referência a esta passagem (Ex. 23:20): “Bechaí ex
Kabbala docet, hunc angelum non esse ex numero creatorum existentium
extra Dei essentiam, sed ex emanationibus, quæ intra Dei essentiam
subsistunt, sic in Tanchuma explicari, quod sit Metatron, Princeps faciei,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 658
João 6:46.” Que o Anjo de Jeová é uma pessoa divina se manifesta
adicionalmente do relato dado em Êxodo 32 e 33, pelo que Deus disse a
Moisés depois que o povo pecasse ao adorar o bezerro de ouro. Como
castigo daquela ofensa, Deus ameaçou já não acompanhar mais o povo
de maneira pessoal. Como consequência desta manifestação do
desagrado divino, toda a congregação se reuniu diante da porta do
Tabernáculo, e se humilharam diante de Deus. E Jeová desceu e falou
com Moisés face a face como um homem fala com seu amigo. E Moisés
intercedeu pelo povo, dizendo: Se a tua presença não vier conosco, não
nos tires daqui. Jeová lhe disse: Minha presença (isto é, eu mesmo) irá
contigo, e te farei descansar. Isto mostra que uma pessoa divina, Jeová,
havia previamente conduzido o povo, e que diante do seu
arrependimento prometeu prosseguir com eles. Esta pessoa, chamada o
Anjo de Jeová, o próprio Jeová, é chamado, em Is 63:9, «o Anjo da sua
presença», isto é, o anjo ou o mensageiro que é a imagem de Deus. Por
isso, dificilmente se pode duvidar de que este anjo era o Filho de Deus,
enviado por Ele, e por isso chamado o Seu anjo; aquele que em Isaías 63
é designado como o Salvador de Israel e como o Redentor de Jacó; que
deveu revelar a Deus, porquanto Ele era o resplendor de Sua glória e a
expressa imagem de Sua pessoa, em quem estava o Seu nome, ou, como
se expressa no Novo Testamento, a plenitude da Deidade; que na
plenitude do tempo, por nós os homens e para nossa salvação, fez-se
carne, e revelou Sua glória como o Filho Unigênito, cheio de graça e de
fato.
Em períodos posteriores da história do povo de Deus, esta mesma
pessoa divina aparece como o líder e Deus de Israel. Manifestou-se a
Josué (y. 14) como «Príncipe do exército do SENHOR», a Gideão (Jz
6:11) como o Anjo de Jeová, e lhe falou dizendo, isto é, Jeová lhe disse:
Vai com esta sua força, e salvará a Israel da mão dos midianitas. No
versículo 16 [TB] diz-se de novo: «Tornou-lhe Jeová: Certamente serei
contigo, e ferirás aos midianitas como a um só homem». Quando Gideão
fez-se consciente de quem lhe estava falando, exclamou [Vv. 22-23, TB]:
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 659
«Ai de mim, Deus Jeová, porque vi o anjo de Jeová face a face. Disse-
lhe Jeová: Paz seja contigo; não temas: não morrerás». O mesmo Anjo
apareceu a Manoá e lhe prometeu um filho, e Se revelou a ele como o
fez com Gideão, fazendo com que saísse fogo de uma rocha, e
consumisse o sacrifício que tinha sido posto sobre ela. Quando Manoá
viu que era o Anjo de Jeová, disse à sua mulher: «Certamente
morreremos, porque vimos a Deus ».

C. Diferentes modos de explicar estas passagens.

Há só três métodos com os quais se podem explicar estas e outras


passagens similares no Antigo Testamento com uma consideração da
divina autoridade das Escrituras. O primeiro é que o Anjo de Jeová é um
anjo criado, um dos espíritos que atendem de contínuo a Deus e que
fazem Sua vontade. O fato de que assuma os títulos divinos, que afirme
prerrogativas divinas e que aceite a homenagem devido a Deus se
explica com base no princípio de que o representante tem o direito e as
honras do Ser a quem representa. Fala como Deus porque Deus fala por
meio dEle. Esta hipótese, que foi adotada desde cedo e de maneira
extensa, poderia admitir-se, se os casos deste tipo fossem poucos, e se a
pessoa designada como o Anjo de Jeová não afirmasse de maneira tão
evidente ser Ele mesmo Jeová. E a que é uma objeção mais decisiva a
esta maneira de interpretar é a autoridade das partes subsequentes da
Palavra de Deus. Estas passagens não estão sozinhas. A Igreja bem
poderia vacilar com base nestas primeiras revelações a respeito de
admitir a pluralidade de pessoas na Deidade. Se em todas as outras partes
da Escritura Deus fosse revelado como só uma pessoa, poderia admitir-
se quase qualquer extremo de interpretação para harmonizar estas
passagens com tal revelação. Mas porquanto o é verdade o contrário;
como com uma clareza sempre crescente dá-se a conhecer na Escritura a
existência das três pessoas na Deidade, transforma-se em coisa do mais
não natural explicar estas passagens de outro modo que em concordância
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 660
com esta doutrina. Além disto, temos o expresso testemunho dos
escritores inspirados do Novo Testamento, de que o Anjo do Senhor, o
Jeová manifestado que conduziu os israelitas através do deserto, e que
levava no templo, era Cristo; isto é, era o Logos, ou Filho Eterno de
Deus, que se fez carne e cumpriu a obra que se havia predito que o
Messias cumpriria. Os Apóstolos não duvidam em aplicar a Cristo a
linguagem do Antigo Testamento empregado para expressar a majestade,
as obras ou o reino do Jeová das Escrituras Hebraicas. (Jo 12:41; Rm
14:11; 1Co 10:4; Hb 1:10-13, e com frequência em outros lugares.) Por
isso, o Novo Testamento identifica claramente o Logos ou Filho de Deus
com o Anjo de Jeová, ou Mensageiro da Aliança, do Antigo Testamento.
A segunda hipótese com base na qual se explicaram estas passagens
admite que o anjo do Senhor é uma pessoa realmente divina, mas nega
que se distinga pessoalmente de Jeová. Era uma e a mesma pessoa que
falava e era enviada, era aquele que falava e a quem se lhe falava. Mas
esta hipótese faz tal violência a todas as normas corretas de
interpretação, e é tão inconsequente com as posteriores revelações da
Palavra de Deus, que encontrou pouco favor na Igreja. Portanto, vemo-
nos impelidos ao único outro modo de explicar as passagens em questão,
que foi quase universalmente adotado na Igreja, ao menos da Reforma.
Esta outra explicação assume o caráter progressivo da revelação divina, e
interpreta as obscuras indicações das primeiras Escrituras mediante a
mais clara luz das posteriores comunicações. O Anjo que apareceu a
Agar, a Abraão, a Moisés, a Josué, a Gideão, e a Manoá, que era
chamado Jeová e adorado como Adonai, que demandava adoração divina
e que exercia poderes divinos, a quem os salmistas e profetas expõem
como o Filho de Deus, como o Conselheiro, Príncipe da Paz, Deus forte,
e de quem predisseram que nasceria de uma virgem, e perante quem se
dobraria todo joelho e a quem toda língua confessaria, de todos os que
estão nos céus, e na terra e debaixo da terra, não é outro senão Aquele a
quem agora reconhecemos e adoramos como nosso Deus e Salvador
Jesus Cristo. Ele era o Λόγος ἄσαρκος (Logos asarkos [o Verbo não
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 661
encarnado]), a quem os israelitas adoravam e obedeciam; e é o Λόγος
ἔνσαρκος (Logos ensarkos [o Verbo encarnado]) a quem nós
reconhecemos como nosso Senhor e Deus.
Admite-se universalmente que o Antigo Testamento prediz um
Messias, alguém que devia aparecer na plenitude do tempo para levar a
cabo a redenção de Seu povo, e por meio de quem se deveria estender
por todo mundo o conhecimento da verdadeira religião. Enquanto que se
revela claramente que este Redentor devia ser da semente da mulher, a
semente de Abraão, da tribo de Judá, e da casa de Davi, não se revela
menos claramente que devia ser uma pessoa divina. É apresentado sob os
diversos aspectos de um rei triunfante, de um mártir sofredor, e de uma
pessoa divina. Às vezes se combinam todas estas imagens nas descrições
que se dão do Libertador vindouro; às vezes é uma e às vezes a outra
visão de Seu caráter a que é exposta de maneira exclusiva ou mais
proeminente nos escritos proféticos. Entretanto, todos eles são exibidos
nas Escrituras hebraicas, e todos eles se combinam e se harmonizam na
pessoa e obra de nosso Senhor e Salvador.

D. Os Salmos.

No Salmo 2, os pagãos são descritos como conspirando contra o


Messias, vv. 1-3. Deus escarnece destes esforços, vv. 4-5. Declara o Seu
propósito de constituir ao Messias rei em Sião. Que este Messias é uma
pessoa divina fica claro: (1) Porque é chamado o Filho de Deus, que,
como se viu, implica igualdade com Deus. (2) É investido com um
domínio absoluto e universal. (3) Ele é o Jeová a quem o povo deve
adorar, segundo se manda no v. 11. (4) Porquanto a todos se demanda
que reconheçam a Sua autoridade, e que Lhe rendam homenagem. (5)
Porquanto são chamados benditos os que nEle confiam, enquanto que a
Escritura declara malditos os que põem sua confiança em príncipes.
No Salmo 22 descreve-se um sofredor cujas palavras se apropria
para Si nosso Senhor na cruz, vv. 1-19. Ele ora pedindo libertação, vv.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 662
19-21. As consequências desta libertação são tais que demonstram que o
sujeito deste salmo tem que ser uma pessoa divina. Seus sofrimentos
asseguram: (1) Que todos os homens bons temerão e amarão a Deus,
porquanto Ele resgatou este sofredor de seus inimigos. (2) Que se fará
provisão às necessidades de todos os homens. (3) Que todas as nações se
converterão a Deus. (4) Que as bênçãos que Ele conseguir serão
duradouras para sempre.
No Salmo 45 se descreve um rei que tem que ser uma pessoa
divina. (1) Porque sua excelência perfeita é a base do louvor que lhe é
prestado. (2) Porque seu reino é declarado justo e eterno. (3) É invocado
como Deus, «Teu trono, ó Deus, pelos séculos dos séculos», que é citado
em Hb 1:8, e que é aplicado a Cristo com o mesmo propósito de
demonstrar que tem direito a ser adorado por todas as criaturas
inteligentes. (4) A Igreja é declarada Sua esposa, o que implica que Ele é
para Seu povo o objeto de amor e confiança supremos.
O Salmo 72 contém uma descrição de um rei exaltado, e das
bênçãos de Seu reinado. Estas bênçãos são de tal natureza que
demonstram que o sujeito deste salmo tem que ser uma pessoa divina.
(1) Seu reino tem que ser eterno. (2) Universal. (3) Assegura a perfeita
paz com Deus e boa vontade entre os homens. (4) Todos os homens hão
de ser trazidos a submeter-se a Ele por amor. (5) Nele serão benditas
todas as nações da Terra, isto é, tal como nos ensina de maneira concreta
em Gl 3:16, é nEle que todas as bênçãos da redenção virão ao mundo.
Por isso, o sujeito deste salmo é o Redentor do mundo.
O Salmo 110 é citado vez após vez e exposto no Novo Testamento,
e aplicado a Cristo para expor a dignidade de Sua pessoa e a natureza de
Sua obra. (1) Ele é o Senhor de Davi. Mas, se é o Senhor de Davi, como
pode ser filho de Davi? Esta é a pergunta que Cristo faz aos fariseus,
para os convencer de que as ideias que eles abrigavam a respeito do
Messias ficavam muito por debaixo da doutrina de suas próprias
Escrituras. Ele devia certamente ser Filho de Davi, como eles esperavam,
mas ao mesmo tempo devia possuir uma natureza que O fizesse Senhor
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 663
de Davi. (2) Em virtude desta natureza divina Ele devia sentar-se à mão
direita de Deus; isto é, ficar associado com Ele em termos de igualdade
quanto a glória e domínio. Esta é a exposição que faz o Apóstolo desta
passagem em Hb 1:13. A nenhum anjo, isto é, a nenhuma criatura, Deus
disse jamais: «Sente-se à minha mão direita». O sujeito deste salmo não
é uma criatura; e se não é uma criatura, é o Criador. (3) Esta pessoa, que
é ao mesmo tempo Filho de Davi e Senhor de Davi, é eternamente tanto
sacerdote como rei. Isto de novo é mencionado em Heb. 7:17; para
demonstrar que Ele deve ser uma pessoa divina. É só porquanto Ele
possui «uma vida sem fim», ou, como se diz em outro lugar, porquanto
Ele possui vida em Si mesmo, que pode ser Ele um sacerdote e rei
perpétuo. (4) No v. 5 Ele é declarado ser o Senhor supremo, porque é
chamado Adonai, um título jamais dado a ninguém, senão ao Deus
verdadeiro.

E. Os Livros Proféticos.

Em Isaías 4:2 se prediz a aparição do Renovo do SENHOR, a cujo


advento são atribuídos tais efeitos que demonstram que se trata de uma
pessoa divina. Estes efeitos são a purificação, o perdão dos pecados, e a
perfeita segurança.
Isaías 6 contém um relato da visão, por parte do profeta, de Jeová
em Seu santo templo rodeado das hostes de anjos adoradores, que O
adoram de dia e de noite. A pessoa assim declarada como Jeová, o objeto
do culto angélico, diz o Apóstolo João em Jo 12:41, não era outra pessoa
senão Cristo, a quem adoram agora todos os cristãos e todos os anjos.
Em Isaías 7-9 se prediz o nascimento de um menino cuja mãe era
virgem. Que este filho era o eterno Filho de Deus, igual ao Pai, fica
demonstrado: (1) Por seu nome Emanuel, que significa Deus conosco,
isto é, Deus em nossa natureza. (2) Da terra de Israel diz-se que é Sua
terra. (3) É chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai de
Eternidade, e Príncipe da Paz. (4) Seu reino é eterno e universal. (5) As
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 664
consequências de Sua vinda e domínio são de tal maneira que só
emanam do domínio de Deus. No capítulo onze temos outra descrição da
perfeição de Sua pessoa e de Seu reino que é só aplicável à pessoa e
reino de Deus. É só onde Deus reina que se encontram a paz, santidade e
bem-aventurança que acompanham à vinda do predito Libertador. O
mesmo argumento pode tirar-se do relato profético do Messias e de Seu
reino contidos na última parte de Isaías, do capítulo 40 até o 66. Este
Messias devia efetuar a redenção de Seu povo, não meramente do
cativeiro babilônico, mas sim de todo mal; assegurar-lhes o perdão dos
pecados e a reconciliação com Deus; o domínio da verdadeira religião
até o fim da terra; e, finalmente, o completo triunfo do reino da luz sobre
o reino das trevas. Esta é uma obra que não poderia ser realizada por
ninguém mais que por uma pessoa divina.
O profeta Miqueias (Mq 5:1-5) predisse que ia nascer em Belém um
que ia ser: (1) Senhor em Israel, isto é, de todo o povo de Deus. (2)
Embora iria nascer no tempo e seria feito de mulher, «suas origens são
desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade». (3) Ele regerá no
exercício do poder e da majestade de Deus, isto é, manifestará em Seu
governo a posse de atributos e glória divinos. (4) Seu domínio será
universal; e (5) seu efeito paz; isto é, uma perfeita harmonia, ordem e
bem-aventurança.
O profeta Joel não traz aos olhos de uma maneira distintiva a pessoa
do Redentor, a não ser que seja na duvidosa passagem de Jl 2:23. Dá o
ciclo usual de predições messiânicas; prediz a apostasia do povo,
reprova-os por seus pecados, adverte-os dos juízos divinos, e logo
promete a libertação por meio de um «mestre de justiça» (segundo uma
interpretação de Jl 2:23), e logo o derramamento do Espírito Santo sobre
toda carne. O dom do Espírito Santo é descrito em todas as partes como
a bênção característica do período Messiânico, porque se obtém com
base no mérito da morte do Redentor. O fato de que Ele dê o Espírito
Santo assim é a mais grande evidência de que verdadeiramente é Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 665
Em Jeremias 23 se prediz a restauração ou redenção do povo de
Deus. Esta redenção ia ser levada a cabo por alguém que é declarado ser:
(1) Um descendente de Davi. (2) É chamado o Renovo, uma designação
que conecta esta profecia com aquelas de Isaías nas quais o Messias
recebe o mesmo título. (3) Devia ser um rei. (4) Seu reinado devia ser
próspero, Judá e Israel voltariam a ser unidas; isto é, assegurar-se-ia uma
perfeita harmonia e paz. (5) Este libertador é chamado SENHOR
[Jeová], Justiça Nossa. No capítulo 33 se prediz a mesma libertação, e dá
o mesmo nome a Jerusalém aqui que na passagem anterior foi dado ao
Messias. No primeiro caso é simbólico, no outro significativo.
Em Dn 2:44 se prediz que o reino do Messias há de ser eterno, e
está destinado a abolir e absorver todos os outros reinos. Em Dn 7:9-14
diz-se que um semelhante ao Filho do Homem foi levado a Ancião de
Dias; e que lhe foram dados domínio, glória e reino; para que todos os
povos, nações e línguas O sirvam; seu domínio será domínio eterno, que
nunca passará, e seu reino, um reino que não será jamais destruído. Em
Dn 9:24-27 se registra a predição a respeito das setenta semanas, e a
vinda e obra do Messias, uma obra verdadeiramente divina.
Os primeiros seis capítulos das profecias de Zacarias são uma série
de visões, prefigurando a volta dos judeus de Babilônia, a restauração da
cidade, e a reconstrução do templo; a posterior apostasia do povo; a
vinda do Messias, o estabelecimento de Seu reino, e a dispersão dos
judeus. Do nono capítulo até o fim do livro aparecem os mesmos
acontecimentos numa linguagem profética comum. Jerusalém é chamada
a alegrar-se na vinda de seu rei. Ele seria manso e humilde, sem
ostentações e pacífico, e Seu domínio universal. No capítulo 11 é
descrito como um pastor que faz um último intento por reunir o Seu
rebanho. Há de ser rejeitado por aqueles a quem deveu salvar, e vendido
por trinta moedas de prata. Por esta enormidade, o povo há de ser
entregue a uma grande desolação; mas no fim Deus derramará sobre eles
o Espírito de graça e de súplica, e eles olharão para mim, diz o SENHOR
[Jeová], a quem transpassaram, e se lamentarão. Este pastor é declarado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 666
ser o companheiro de Deus, seu associado ou igual. Seu reino triunfará,
deverá ser universal, e a santidade prevalecerá em todas as partes.
Em Malaquias 3:1-4 se prediz: (1) Que aparecerá um mensageiro
para preparar o caminho do Senhor. (2) Que o Senhor, isto é, Jeová, o
mensageiro da aliança, isto é, o Messias, virá a Seu templo. (3) Em Sua
vinda serão destruídos os ímpios, e a igreja será salva. 351

Está claro, inclusive com base neste rápido exame da questão, que o
Antigo Testamento prediz com clareza a vinda de uma pessoa divina
revestida de nossa natureza, que ia ser o Salvador do mundo. Ia ser da
semente da mulher, a semente de Abraão, da tribo de Judá, da casa de
Davi; nascido de uma virgem; varão de dores; e que faria de «sua alma
oferta pelo pecado». Mas é declarado com não menos clareza como
sendo o Anjo de Jeová, Jeová, Elohim, Adonai, o Deus Forte, exercendo
todas as prerrogativas divinas, e com direito à adoração divina de
homens e de anjos. Esta é a doutrina do Antigo Testamento quanto ao
que o Messias ia ser; e esta é a doutrina do Novo Testamento quanto ao
que de fato é Jesus de Nazaré.

351
A respeito desta questão. veja-se Hengstenberg. Christology.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 667
§ 2. As características gerais do ensino do Novo Testamento
a respeito de Cristo.

A. O sentido em que Cristo é chamado Senhor.

O primeiro argumento do Novo Testamento como demonstração da


divindade de Cristo deriva-se do fato de que Ele é, em todos os lugares,
chamado Senhor; o Senhor; nosso Senhor. Admite-se que o termo grego
kurios significa dono, e alguém que tem a autoridade de um dono, seja
sobre homens ou sobre coisas. O Senhor de uma vinha é o proprietário
da vinha, e o Senhor de um escravo é o proprietário de um escravo.
Admite-se, deste modo, que esta palavra é empregada com toda a
latitude do termo latino Dominus, ou como o português Senhor. Aplica-
se como título de respeito não só a magistrados ou a príncipes, mas
também a pessoas não investidas com nenhuma autoridade oficial. Por
isso, não se trata meramente do fato de que Jesus se chame Senhor que
demonstre que Ele é, deste modo, Deus, mas sim que seja chamado
Senhor em tal sentido e de tal maneira que não quadra com nenhuma
outra explicação. Em primeiro lugar, Cristo é chamado Senhor no Novo
Testamento com a mesma constância e com a mesma preeminência com
que se chama Senhor a Jeová no Antigo Testamento. Este era o termo
que todos os leitores das Escrituras, quer em hebraico ou em grego, no
Antigo Testamento, usavam para expressar sua relação com Deus. Eles
O reconheciam como o proprietário deles, como o Supremo Soberano
deles, e como o seu protetor. Neste sentido Ele era o Senhor deles. O
Senhor está do nosso lado. O Senhor seja contigo. O Senhor, Ele é Deus.
Bendita a nação cujo Deus é o Senhor. Bom és Tu, ó Senhor. Tu, Senhor,
és para sempre exaltado sobre tudo. Ninguém há como Tu, ó Senhor.
Louvarei ao Senhor. Tem misericórdia de mim, ó Senhor. Ó Senhor, Tu
és o meu Deus. O ouvido religioso do povo estava educado no uso desta
linguagem desde a sua infância. O Senhor era seu Deus. Eles O
adoravam e louvavam e invocavam sua ajuda ao chamá-Lo Senhor. E os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 668
mesmos sentimentos de reverência, adoração e amor, o mesmo
sentimento de dependência e desejo de proteção se expressam por todo o
Novo Testamento ao chamar Jesus de Senhor. Senhor, se queres, podes
purificar-me. Senhor, salva-me. A alegria do Senhor. Senhor, quando te
vimos faminto? Aquele que me julga é o Senhor. Se o Senhor quiser.
Presente com o Senhor. Os que invocam ao Senhor. Que o Senhor me
dará no dia último. Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor.
Tu, ó Senhor, és digno de receber glória e honra.
Portanto, Jesus Cristo é Senhor para os cristãos no mesmo sentido
em que Jeová era Senhor para os hebreus. O uso mencionado aqui é
totalmente peculiar. Nenhum homem: nem Moisés, nem Abraão, nem
Davi, nem nenhum dos profetas ou Apóstolos, é jamais invocado nem
mencionado como Senhor desta maneira tão prevalecente. Temos um só
Senhor; e Jesus Cristo é Senhor. Este é um argumento que se refere à
experiência interior, mais que ao mero entendimento. Cada crente sabe
em que sentido chama a Jesus Senhor; e sabe que ao reconhecê-Lo assim
como seu proprietário, como seu soberano absoluto, a quem lhe deve não
meramente a adesão de sua vida externa, mas sim a de sua alma; e como
seu protetor e Salvador, está em comunhão com os Apóstolos e mártires.
Sabe que é pelo Novo Testamento que recebeu o ensino de adorar a
Cristo, chamando-o Senhor.
Mas, em segundo lugar, Jesus Cristo não é só assim chamado
Senhor por via de eminência, mas também é declarado ser Senhor dos
senhores; o Senhor da glória; o Senhor de todos; Senhor dos vivos e dos
mortos; o Senhor dos que estão no céu, na terra e debaixo da terra. Todas
as criaturas, das mais altas até as mais baixas, devem dobrar o joelho a
Ele, e reconhecer o Seu domínio absoluto. Ele é Senhor em tal sentido
que ninguém pode verdadeiramente chamá-Lo Senhor, senão pelo
Espírito Santo. Se o Seu Senhorio fosse meramente a supremacia que
uma criatura pode exercer sobre outras criaturas, não haveria
necessidade de iluminação divina para nos capacitar a reconhecer Sua
autoridade. Mas se Ele é Senhor no sentido absoluto em que só Deus é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 669
Senhor; se Ele tem um direito sobre nós e uma autoridade sobre nós que
só pertencem a nosso Criador e Redentor, então é necessário que o
Espírito Santo nos revele de tal maneira a glória de Deus na face de
Jesus Cristo para nos levar a prostrar-nos diante dEle como nosso Senhor
e Deus.
Em terceiro lugar, Cristo é chamado Senhor quando esta palavra é
empregada em lugar dos nomes e títulos incomunicáveis de Jeová e
Adonai. É coisa bem sabida que os judeus, de um período cedo, tinham
uma reverência supersticiosa, que lhes impedia de pronunciar a palavra
Jeová. Por isso eles, em suas Escritura Hebraicas, deram a esta palavra
os pontos vocálicos correspondentes à palavra Adonai, pronunciando-a
assim sempre que leem o sagrado volume. Quando traduziram suas
Escrituras ao grego, substituíram uniformemente Jeová por κύριος
(kurios), que se corresponde com Adon. E da mesma maneira, sob a
influência da LXX, os cristãos latinos empregaram Dominus em sua
versão; e constrangidos por este mesmo costume estendido e duradouro,
os tradutores ingleses estavam, em geral, acostumados a usar o termo
Lorde [Senhor] em maiúsculas pequenas onde no hebraico emprega-se
Jeová. Em muitíssimos casos encontramos passagens aplicadas a Cristo
como o Messias nas quais Ele é chamado Senhor, quando Senhor deveria
ser Jeová ou Adonai. Em Lucas 1:76 diz-se de João Batista, o precursor
de Cristo, que ele iria diante da face do Senhor; mas em Malaquias 3:1,
de que esta passagem declara o cumprimento, a pessoa que fala é Jeová.
O dia de Cristo, no Novo Testamento, é chamado «o dia do Senhor»; no
Antigo Testamento é chamado «o dia de Jeová, o grande dia». ‫יוֹם יְהוָה‬
‫ ָהגָּדוֹל‬. Romanos 10:13 cita a Joel 2:32, que fala de Jeová, e o aplica a
Cristo, dizendo: «Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor,
será salvo». Romanos 14:10, 11 cita Isaías 45:23, «Pois todos
compareceremos perante o tribunal de Deus. Como está escrito: Por
minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho», etc.
Isto é comum ao longo de todo o Novo Testamento, e por isso Cristo é
ali exposto como Senhor no mesmo sentido em que o Supremo Deus é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 670
Senhor. Ficando estabelecido desta maneira o sentido da palavra em sua
aplicação a Cristo, põe em evidência quão constante e familiar é o
reconhecimento de Sua divindade da parte dos escritores sagrados. Eles
O reconhecem como Deus cada vez que lhe chamam Senhor.

B. Cristo é apresentado como o Objeto de nossos afetos


religiosos

Outra característica geral do Novo Testamento, intimamente ligada


com a recém-mencionada, e que segue a ela, é que Cristo é em todo
lugar reconhecido como o objeto apropriado de todos os afetos
religiosos. Como Ele é nosso Senhor, no sentido de ser nosso
proprietário absoluto, nosso Criador, Preservador e Redentor, e nosso
Soberano, possuindo o direito de fazer conosco o que bem lhe parecer,
somos chamados a fazer dEle o supremo objeto de nosso amor, de Sua
vontade a mais elevada norma do dever, e de Sua glória o grande fim de
nosso ser. Devemos exercer a mesma fé e confiança nEle que em Deus;
dar a Ele a mesma obediência, devoção e homenagem. E assim vemos
que este é o caso do princípio ao fim nos escritos do Novo Testamento.
Cristo é o Deus dos Apóstolos e dos cristãos primitivos, no sentido de
que Ele é o objeto de todos os seus afetos religiosos. Eles O
consideravam como aquela pessoa a que pertenciam de uma maneira
especial; diante de quem eram responsáveis por sua conduta moral;
diante de quem deviam prestar conta de seus pecados; diante de quem
responder pelo uso de seu tempo e talentos; que sempre estava presente
com eles, habitando neles, controlando sua vida interior, assim como a
exterior; cujo amor era o princípio animador de seu ser; em quem eles se
alegravam como sua alegria presente e felicidade eterna. Este
reconhecimento de sua relação com Cristo como seu Deus é constante e
sempre presente, de maneira que a evidência do mesmo não pode ser
recolhida e enunciada de uma maneira polêmica ou didática. Mas cada
leitor do Novo Testamento para quem Cristo seja uma mera criatura, por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 671
exaltada que seja, há de sentir-se fora de comunhão com os Apóstolos e
cristãos apostólicos, que se reconheciam a si mesmos e que eram
universalmente reconhecidos pelos demais homens como adoradores de
Cristo. Eles sabiam que deveriam comparecer diante de Seu tribunal; que
cada ação, pensamento e palavra deles, e de cada homem que viva
jamais, ficaria aberto tudo isso perante Seu onisciente olhar; e que o
destino de cada alma humana devia depender de Sua decisão. Por isso,
conhecendo o terror do Senhor, persuadiam os homens. Prescreviam
cada um dos deveres morais não meramente na base da obrigação moral,
mas em considerações tomadas da relação da alma com Cristo. Os filhos
devem obedecer a seus pais, as mulheres a seus maridos, os servos a seus
amos, não para agradar aos homens, mas sim como fazendo a vontade de
Cristo. A verdadeira religião, segundo eles a expõem, não consiste no
amor ou reverência a Deus meramente como o Espírito infinito, o
Criador e Preservador de todas as coisas, mas no conhecimento e amor
de Cristo. Todo aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus, isto é, todo
aquele que crê que Jesus de Nazaré é Deus manifestado em carne, e que
O ama e Lhe obedece como tal, é declarado nascido de Deus. Qualquer
que nega esta verdade é declarado anticristo, negando ao mesmo tempo
ao Pai e ao Filho, porque a negação de um é a negação do outro. A
mesma verdade é expressa por outro Apóstolo, que diz [2Co 4:4-5]:
«Mas, se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se
perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o
entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do
evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus». Os que estão
perdidos, segundo este Apóstolo, são os que não veem, nem creem, que
Jesus seja Deus habitando na carne. E daí que se atribuem tais efeitos ao
conhecimento de Cristo e à fé nEle, e se mantêm tais expectativas da
glória e bem-aventurança de estar com Ele, que seriam impossíveis ou
irracionais se Cristo não fosse o verdadeiro Deus. Ele é nossa vida.
Aquele que tem o Filho tem a vida. Aquele que crê nEle viverá
eternamente. Não somos nós que vivemos, mas sim Cristo que vive em
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 672
nós. Nossa vida está escondida com Cristo em Deus. Estamos completos
nEle, e nada nos falta. Embora não O vimos, crendo nEle nos
regozijamos com uma alegria inefável. É porque Cristo é Deus, porque
Ele possui todas as perfeições divinas, e porque Ele nos, amou e Se
entregou a Si mesmo por nós, e nos redimiu e nos tem feito reis e
sacerdotes para Deus, que o Espírito de Deus diz [2Co 16:22]: «Se
alguém não ama o Senhor, seja anátema. Maranata!». A negação da
divindade do Filho de Deus, o rechaço em receber, amar, confiar, adorar
e O servir como tal, é a base da perdição irremediável de todos os que
ouvem e rejeitam o evangelho. E todas as criaturas racionais, santas e
ímpias, justificadas e condenadas, darão seu amém à justiça desta
condenação. A divindade de Cristo é um fato muito patente, uma
verdade muito transcendente, para ser rejeitada inocentemente. São
salvos os que verdadeiramente creem, e já estão perdidos os que não têm
olhos para vê-la. Aquele que não crê já foi condenado, porque não creu
no nome do unigênito Filho de Deus. Aquele que crê no Filho tem vida
eterna; e aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas ira de Deus
permanece sobre ele. Esta é, portanto, a doutrina do Novo Testamento,
que a apreensão espiritual e o sincero reconhecimento da Deidade do
Redentor constitui a vida da alma. É em sua própria natureza vida eterna;
e a ausência ou carência desta fé e conhecimento é morte espiritual e
eterna. Cristo é nossa vida; portanto, quem não tem o Filho não tem a
vida.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 673
C. As relações que Cristo tem com Seu povo e com o mundo.

Como a relação que os crentes têm conscientemente com Cristo é


aquela que podemos sustentar só com Deus, igualmente a relação que
Ele assume conosco e que demanda como Sua em virtude de Sua
natureza e de Sua obra, é aquela que só Deus pode manter com criaturas
racionais.

Sua autoridade como Mestre.


Isto está claro quanto à autoridade que Ele assume como Mestre
tanto da verdade como do dever. Tudo o que Ele declarou certo, tudo o
que os cristãos sempre se sentiram ligados a crer, sem exame, e tudo o
que Ele lhes mandou fazer ou evitar, consideraram-no sempre como
vinculante para a consciência. Sua autoridade é a base última e mais
elevada da fé e da obrigação moral. Como a razão infinita e absoluta
habitavam nEle corporalmente, Suas palavras eram as palavras de Deus.
Ele declarou ser a Verdade, e por isso questionar o que Ele dizia era
rejeitar a verdade; desobedecer-Lhe era desobedecer a verdade. Ele foi
anunciado como o Logos, a Razão pessoal e manifestada, que era e é a
luz do mundo; a fonte de toda razão e de todo conhecimento para as
criaturas racionais. Por isso, Ele falou como jamais ninguém falou. Ele
ensinava com autoridade. Não fazia como Moisés e os profetas, falar em
nome de Deus, dizendo: “Assim diz o Senhor”, apoiando-se numa
autoridade fora de si mesmos. Ele falava em Seu próprio nome, e os
Apóstolos em nome de Cristo. Ele era a autoridade última. Ele Se põe
uniformemente a Si mesmo na relação de Deus com o Seu povo. Vós
sereis salvos «se fizerdes tudo o que vos mando». Quem me ouve, a
Deus ouve. Eu e o Pai somos um; Ele em mim, e Eu nele. O céu e a terra
passarão, mas as minhas palavras jamais passarão. Moisés vos disse isto
e aquilo, mas eu vos digo a vós. Ele não negava a missão divina de
Moisés, mas Ele assumiu o direito de modificar ou derrogar as leis que
Deus tinha dado a Seu povo sob a antiga economia. O todo da verdade
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 674
revelada no Antigo assim como no Novo Testamento é atribuído a Ele
como sua fonte. Porque os antigos profetas não ensinaram nada mais que
aquilo que «indicava o Espírito de Cristo que estava neles», o que é
equivalente a dizer que falaram «inspirados pelo Espírito Santo», ou que
«toda a Escritura é inspirada por Deus». E os Apóstolos se apresentaram
simplesmente como testemunhas do que Cristo tinha ensinado. Paulo
declarou que recebeu todo seu conhecimento «por revelação de Jesus
Cristo». E em sua Epístola aos Coríntios expressa ele a mesma verdade,
negando que seu conhecimento se derivasse da razão humana (o espírito
que está nos homens), mas sim do Espírito de Deus. Nada é mais
evidente para o leitor do Novo Testamento que esta autoridade divina
como mestre que em todo lugar é demandada da parte de Cristo e para
Ele. Deixar de crer nEle é deixar de crer em Deus; e desobedecer a Ele é
desobedecer a Deus. Isto é totalmente diferente da autoridade
reivindicada pelos profetas e pelos apóstolos. Eles não assumiram nada
por si mesmos. Paulo negou ter autoridade alguma sobre a fé do povo de
Deus, exceto na base da prova que ele dava de que era «Cristo fala» nele.
(2Co 13:3).

Seu controle sobre todas as criaturas.


A autoridade divina de Cristo se manifesta no controle que Ele
afirmava sobre todo seu povo e sobre toda criatura; todo o poder estava e
está em Suas mãos. Seus ministros estão sob Sua direção. Ele envia a um
aqui e a outro lá. Todos os trabalhos e viagens de Paulo foram levados a
cabo sob Sua contínua condução. Esta é tão somente uma ilustração do
controle absoluto e universal que Ele exerce constantemente sobre todo o
universo. Os anjos do céu são, deste modo, Seus mensageiros, e o curso
da história humana, assim como as circunstâncias de cada pessoa
individual, vai determinado por Ele. E também está em Suas mãos o
destino eterno de todos os homens. Eu recompensarei a cada um, diz Ele,
conforme a suas obras. (Mt 16:27; e Ap 22:12.) «Muitos, naquele dia,
hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 675
em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome
não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca
vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade» (Mt
7:22, 23). No último dia, «no tempo da colheita, direi aos ceifeiros:
ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo,
recolhei-o no meu celeiro» (Mt 13:30). E no v. 41, «Mandará o Filho do
Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e
os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá
choro e ranger de dentes». Naquele dia o rei dirá [Mt 25:41-42].
«Sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o
deixastes de fazer» [V. 45]. Assim, é a atitude que os homens mostram
para com Cristo (sempre que tenham ouvido o Seu nome) a que há de
determinar seu destino no último dia. Pecar contra Cristo, negá-Lo ou
rejeitá-Lo, é negar ou rejeitar a Deus. Por isso, nosso Senhor se põe
uniformemente na relação de Deus para com as almas dos homens,
afirmando a mesma autoridade sobre elas, o mesmo direito a decidir o
destino delas, e denunciando qual pecado é cometido contra Ele.
Também por isso diz que seria melhor para um homem que o
pendurassem no pescoço uma pedra de moinho e que fosse arrojado no
mar, que fazer tropeçar a um destes pequenos que creem nEle. «Todo
aquele que me confessar diante dos homens, também o Filho do Homem
o confessará diante dos anjos de Deus; mas o que me negar diante dos
homens será negado diante dos anjos de Deus» (Lc 12:8,9). «Quem ama
seu pai ou sua mãe ... seu filho ou sua filha mais do que a mim não é
digno de mim» (Mt 10:37). Este amor supremo só é devido a Deus, e
Cristo, ao demandar este amor de nós, põe-Se a Si mesmo perante nós
como Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 676
D. A natureza de Suas promessas.

O mesmo fica claro da natureza de Suas promessas. Cristo promete


bênçãos a Seu povo que ninguém senão Deus tem o direito ou o poder
para conceder. Ele promete perdoar os pecados. É intuitivamente certo
que só Deus pode perdoar os pecados; Ele é nosso governador moral; é
contra Ele que se comete todo pecado, e só Ele tem direito a remeter seu
castigo. Por isso, quando Cristo diz à alma: Os teus pecados te são
perdoados, Ele está exercendo uma prerrogativa divina. Inclusive o
homem do pecado, que se senta no templo de Deus e se levanta contra
tudo o que se chama Deus, reivindica não mais que a autoridade judicial
de decidir quando às condições do perdão no juízo de Deus se
cumpriram. Ele assume, em relação à lei divina, a relação que sustenta
um juiz humano à lei da terra. Um juiz não absolve ou condena por sua
própria autoridade. A autoridade está no estado ou no soberano poder. O
juiz se limita a determinar se a base da condenação estão presentes ou
não. Como o soberano contra quem se cometeu o pecado, Cristo tem
direito a perdoar ou a castigar. Outra vez Ele promete o Espírito Santo.
João Batista anunciou seu enfoque como aquele que ia batizar as pessoas
com fogo e com o Espírito Santo. E em consequência fica constância de
que o fez enviar a Seus discípulos, especialmente no dia de Pentecostes,
o poder do alto. Havia-se predito que Deus derramaria Seu Espírito sobre
toda carne; e essa profecia o apóstolo Pedro ensina que se cumpriu
quando Cristo, exaltado à mão direita de Deus, derramou Seus dons
sobre os discípulos que esperam. Em Seu discurso de despedida aos
Apóstolos, Ele disse: Eu vos enviarei outro Consolador, o Espírito da
verdade, que ficará convosco para sempre. Todas as influências
santificadoras, assim como todos os dons de ensino e de milagres que a
Igreja jamais tenha desfrutado, vêm do Senhor Jesus Cristo. Ele dá o
Espírito a cada um conforme a Sua vontade. «A cada um de nós», diz
Paulo, «foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo» (Ef 4:7).
Ele promete escutar e responder as orações de Seu povo em todas as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 677
idades e em todas as partes do mundo. «Tudo o que pedirdes em meu
nome, eu o farei». «Onde estão dois ou três estiverem reunidos em meu
nome, ali estarei no meio deles». «Eis aqui que eu estou convosco todos
os dias, até o fim do mundo». Assim, Ele promete Sua presença
continuada a Seus discípulos, seja onde for que se encontrem. Também
promete a vida eterna a todos os que creem nEle. Ele tem poder para
vivificar ou para dar vida aos que Ele quiser. «As minhas ovelhas ouvem
minha voz, e eu lhes dou vida eterna». «Eu os ressuscitarei no dia
último». «Ao vencedor, dar-lhe-ei de comer da árvore da vida». «Sê fiel
até a morte, e te darei a coroa da vida». «A coroa de justiça, a qual me
dará o Senhor, o juiz justo, naquele dia». «A paz vos deixo, a minha paz
vos dou; eu não vo-la dou como o mundo a dá». «Credes em Deus, crede
também em mim». «Vou preparar-vos lugar». «Virei outra vez, e vos
levarei comigo, para que onde eu estou, estejais vós também». «Vinde a
mim todos os que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei».
É evidente que o próprio Deus Infinito não pode nem prometer nem dar
nada maior ou excelso que o que Cristo dá a Seu povo. São ensinados a
esperar nEle como a fonte de toda bênção, como doador de todo bem e
de todo dom perfeito. Não há oração mais completa no Novo Testamento
que aquela com a qual Paulo fecha sua Epístola aos Gálatas: «A graça de
nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito». Seu favor é nossa
vida, o qual não poderia ser se Ele não fosse nosso Deus.

E. Seu controle sobre a natureza

Uma quarta característica geral do ensino do Novo Testamento a


respeito de Cristo se relaciona com o controle que lhe é atribuído sobre o
mundo exterior. As leis da natureza estão ordenadas por Deus. Podem
ser mudadas ou suspensas unicamente por Ele. Por isso, um milagre ou
qualquer acontecimento que envolva tal mudança ou suspensão é uma
evidência da operação imediata do poder divino. Por isso, o agente
eficiente na obra de um milagre tem que possuir poder divino. Quando
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 678
Moisés, os profetas, ou os Apóstolos, operavam milagres, rejeitavam de
maneira explícita que fosse por sua própria eficiência. Por que nos olham
a nós, diz o Apóstolo Pedro, como se fosse por nosso próprio poder que
curamos a este homem? Quando Moisés dividiu o Mar Vermelho, a
eficiência pela qual foi produzido aquele efeito não estava mais nele que
na vara com a qual feriu as águas. Entretanto, Cristo operou milagres por
Seu próprio poder inerente. E foi à Sua eficiência que os Apóstolos
atribuíram os milagres que eles operavam. Era Seu nome, ou a fé nEle,
como Pedro ensinava ao povo, o que efetuou a instantânea cura do
homem aleijado. Cristo nunca atribuiu Seu poder milagroso a outra fonte
fora dEle mesmo; Ele manteve Sua própria prerrogativa; e Ele conferiu
este poder a outros. Ele disse de Si mesmo que tinha poder para pôr Sua
vida, e poder para voltar a tomá-la; que Ele tinha vida em Si mesmo e
que podia dar vida àquelas que Ele quisesse. Dar-vos-ei, disse a Seus
discípulos, poder para pisar serpentes e escorpiões, e sobre todo o poder
do adversário. Portanto, cada milagre de Cristo era uma manifestação
visível de Sua divindade. Quando Ele curava os doentes, abria os olhos
aos cegos, restaurava os coxos, ressuscitava os mortos, alimentava a
milhares com umas poucas migalhas de pão, e acalmava o tempestuoso
mar, era com uma palavra, com o exercício sem esforço de Sua vontade.
Assim manifestou Sua glória, dando uma demonstração ocular àqueles
que tinham olhos para ver, de que Ele era Deus em forma de homem. Por
isso, apelava diretamente a Suas obras. «Embora não credes em mim,
credes nas obras, para que conheçais e creiais que o Pai está em mim, e
eu no Pai». «Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis» (Jo
10:37,38). «Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, quais nenhum
outro fez, pecado não teriam; mas, agora, não somente têm eles visto,
mas também odiado, tanto a mim como a meu Pai» (Jo 15:24).
É só uma pequena parte da evidência da divindade de nosso Senhor
que se pode recolher desta maneira do ensino geral do Novo Testamento.
É importante manter em mente que a fé nesta doutrina não repousa sobre
este ou aquela passagem nem nesta ou naquela descrição, mas sim sobre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 679
a inteira revelação de Deus a respeito de Seu Filho. A divindade do
Senhor Jesus Cristo é manifestada no tecido das Escrituras. e é em todas
as partes ou afirmada ou dada por suposta. Há, não obstante, muitas
passagens nas quais a doutrina apresenta-se com tanta clareza que não
deveriam ser passados por alto em nenhuma discussão formal deste
tema.

§ 3. Passagens particulares do Novo Testamento que


ensinam a Divindade de Cristo.

A. Os Escritos de São João.

João 1:1-14. A razão de que a natureza mais elevada de Cristo seja


chamada ὁ λόγος (ho Logos) e a razão de que João empregasse esta
designação são questões distintas. Porquanto a palavra λόγος (Logos)
não aparece na Escritura no sentido de razão, deveria tomar-se em seu
sentido comum. A questão de por que o Filho seja chamado «o Verbo»
[ou a Palavra] pode-se responder dizendo que este termo expressa ao
mesmo tempo Sua natureza e Seu ofício. A palavra é o que revela. O
Filho é o εἰκών e ἀπαύγασμα (eikon e apaugasma) de Deus, e por isso
sua palavra. É Seu ofício dar a conhecer Deus a Suas criaturas. Deus
nunca foi visto por ninguém: o Filho unigênito que está no seio do Pai o
fez conhecer. Assim o Filho, como revelador de Deus é a Palavra o
Verbo. A razão pela qual João selecionou esta designação da natureza
divina de Cristo não é tão fácil de determinar. Certamente, pode-se dizer
que há bases para o uso deste termo no uso do Antigo Testamento e dos
judeus que eram contemporâneos com o Apóstolo. Nas Escrituras
Hebraicas o Jeová manifestado é chamado a Palavra de Deus, e a ele lhe
atribuem a subsistência individual e as perfeições divinas (Sl 33:6;
119:89; Is 40:8; Sl 107:20; 147:18). E aparece com mais frequência nos
livros apócrifos e nos Targuns. Por isso, não é um termo incomum ou
desconhecido aquele que o Apóstolo João introduz. Entretanto, como é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 680
ele o único de todos os escritores do Novo Testamento que emprega
assim a palavra, deve ter havido alguma razão especial para isso. Esta
razão pode ter sido a de rebater as perspectivas errôneas a respeito da
natureza de Deus e de Sua palavra que tinham começado a prevalecer, e
que tinham algum apoio nas doutrinas de Filo e de outros judeus
alexandrinos. Entretanto, é menos importante determinar por que João
chama λόγος (Logos) ao Filho que determinar o que é que ensina a
respeito dEle. Ele ensina: (1) Que Ele é eterno. Ele era no princípio; isto
é, Ele era antes de toda criação; antes da fundação do mundo; antes que o
mundo fosse. Comparar Pv 8:23; Jo 17:5, 24; Ef 1:4. Estas são todas as
formas escriturísticas de expressar a ideia da eternidade. O Verbo então
era (en), não começou mas sim já era. O ἦν (en) do v. 1 está em contraste
com ἐγένετο (egéneto) (v. 14). «Ele era o Verbo, e veio a ser carne». (2)
A palavra eterna existia em íntima comunhão com Deus. «O Verbo era
com Deus» (RV); como da Sabedoria diz-se que estava com Ele no
princípio (Pv 8:30; Jo 1:18). (3) Ele era Deus; A palavra θεός (theos) é
claramente o predicado, porquanto carece do artigo (comparar Jo 4:24,
πνεῦμα ὁ θεός (pneuma ho theos [Deus é espírito]), e porquanto λόγος
(Logos) é o sujeito em todo o contexto. O fato de que θεός (theos) não
pode ser tomado como θεῖος (theios) nem traduzido como um Deus, fica
claro pelo que se diz imediatamente do Logos nos versículos seguintes, e
pela analogia da Escritura, que demonstra que o λόγος (Logos) é Deus
no mais alto sentido da palavra. Neste contexto ὁ θεὸς ἦν ὸ λόγος (ho
theos en ho logos seria equivalente a dizer «o Filho é o Pai». * Θεός
(Theos) sem o artigo aparece frequentemente no Novo Testamento

*
Com efeito, se esta fosse a frase usada com o artigo grego em ambos Deus e o Verbo, haveria uma
frase recíproca, em que o sujeito e o predicado seriam intercambiáveis: Literalmente, «o Verbo era o
Deus», ou «o Deus era o Verbo». Esta é uma estrutura conhecida, em que o sujeito é o que se prega de
maneira exclusiva. Se assim fora, não haveria Deus exceto o Verbo; declarar-se-ia a exclusividade da
Deidade do Verbo, e a unipersonalidade de Deus. Pelo contrário, a ausência de artigo nesta oração faz
(1) que o que se pregue do Verbo é que o que Deus é o é o Verbo; o Verbo possui a natureza de Deus.
É Deus em sua substância e natureza. Mas fica aberta a porta a pluripersonalidade no seio da Deidade,
ao não pregar-se exclusivamente do Verbo, mas sim como da mesma essência de seu Ser. [N. do T.]
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 681
quando refere-se ao Deus supremo. (4) O λόγος (Logos) é o Criador de
todas as coisas. Todas as coisas foram feitas por Ele, δι᾽ αὐτοῦ (di’
autou). O termo διὰ (diá) aqui não expressa necessariamente uma
instrumentalidade subordinada. Todas as coisas dizem-se que são διὰ
θεοῦ (diá theou) além de ἐκ θεοῦ (ek theou). O Pai opera por meio do
Filho, e o Filho por meio do Espírito. Tudo o que indica a preposição é
subordinação quanto ao modo de operação, que é em outros lugares
ensinada quanto às pessoas da Trindade. O fato de que todas as criaturas
devem sua existência ao Verbo é feito mais proeminente dizendo: «E
sem ele nada do que foi feito se fez»; πᾶν ὁ γέγονεν (pan ho gegonen) é
por meio dele. Portanto. Ele não pode ser uma criatura. Não só Ele foi
antes de todas as criaturas, mas também tudo o que criado foi levado a
existência por Ele. (5) O Logos é existente por si mesmo. É inderivado.
«Nele estava a vida». Isto é certo só de Deus. Só a Deidade subsistindo
no Pai, no Verbo e no Espírito é existente em si mesma, possuindo vida
em si mesma. (6) A vida do Verbo «é a luz dos homens». Tendo vida em
Si mesmo, o Verbo é a fonte de vida em tudo o que vive, e especialmente
da vida intelectual e espiritual do homem; e por isso diz-se dEle que é a
luz dos homens: isto é, a fonte da vida intelectual e do conhecimento em
todas suas formas. (7) O λόγος (Logos), como a luz verdadeira ou real,
resplandece nas trevas ἐν τῇ σκοτίᾳ = ἐν τοῖς ἐσκοτισμένοις (en te skotia
= en tois eskotismenois) em meio de um mundo alienado de Deus. Os
homens do mundo, os filhos das trevas, não compreendem a luz; não
reconhecem ao Verbo como Deus, o Criador de todas as coisas, e a fonte
de vida e conhecimento. Aos que assim O reconhecem dá-lhes poder
para serem feitos filhos de Deus, isto é, eleva-os à dignidade e bem-
aventurança de ser filhos de Deus. (8) Este Verbo se fez carne, isto é,
transformou-se homem. Este uso da palavra carne é explicado em
passagens como 1Tm 3:16; Rm 2:14; Rm 8:3, o relação com Lc 1:35; Gl
4:4; Fp 2:7. Quanto à glória do λόγος [Logos] encarnado, o Apóstolo diz
de si mesmo e de seus companheiros de discipulado: «E vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai»; uma glória como só podia
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 682
pertencer Àquele que é o eterno Filho de Deus, consubstancial com o
Pai.

Outras passagens no Evangelho de São João.


Esta introdução, que tão inequivocamente expõe a divina natureza
de Cristo, é a nota-chave do Evangelho de João, e de todos os seus
outros escritos. Seu principal objetivo é convencer os homens de que
Jesus é Deus manifestado em carne, e que o reconhecimento dEle como
tal é necessário para a salvação. Por isso foi que este Apóstolo foi
chamado, na Igreja primitiva, o Θεολόγος [Theologos], porque ensinou
com tanta clareza e intensidade que o Logos é Deus. No versículo 18
deste capítulo ele diz que só o Filho tem o conhecimento de Deus, e é a
fonte deste conhecimento para outros.
Mostrou a Natanael que Ele conhecia seu caráter, sendo o
esquadrinhador dos corações. Em sua conversação com Nicodemos,
falou-lhe com autoridade divina, revelando-lhe as coisas do céu, porque
Ele tinha descido do céu, e inclusive então estava no céu. Sua vinda ao
mundo foi a mais excelsa evidência do amor divino, e a salvação de
todos os homens dependia da fé nEle; isto é, e que cressem que Ele é o
que Ele afirmava ser, confiando nEle e, consequentemente, obedecendo
a Ele. Quando os judeus O censuraram por curar um homem no sábado,
defendeu-Se dizendo que Deus operava no sábado; que Ele e o Pai eram
um; que Ele fazia tudo o que Deus fazia; que Ele podia dar vida a quem
Ele quisesse; que todo juízo lhe tinha sido dado a Ele, e que Ele tinha
direito a receber a mesma honra que o Pai. No sexto capítulo Ele Se
apresenta como a fonte de vida, primeiro sob a figura de pão, e logo sob
a de um sacrifício. No oitavo capítulo declara ser a luz do mundo.
«Quem me segue, de modo algum andará em trevas, mas terá a luz da
vida». Só Ele podia dar verdadeira liberdade, liberdade da condenação e
do poder do pecado. Ele tinha sido o único Salvador desde o princípio,
porquanto ele foi o objeto da fé de Abraão, que viu o Seu dia, e se
alegrou, porque diz: «Antes que Abraão existisse, EU SOU». Com isso
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 683
declarava não só Sua preexistência, mas também Sua eternidade, ao
declarar ser o «EU SOU», isto é, o autoexistente e imutável Jeová.
No capítulo 10, sob o caráter de um pastor, Ele Se descreve à
cabeça de todo o povo de Deus, que ouve a Sua voz, que segue Seus
passos, e em cujos cuidados confia. Por eles Ele põe Sua vida e a volta a
reassumir. Ele lhes dá a vida eterna, e a salvação deles é certa, porque
ninguém os pode arrebatar de Suas mãos; e Ele e o Pai são um. O
décimo primeiro capítulo contém a história da ressurreição de Lázaro,
sobre a qual se pode observar: (1) Que Seus discípulos tinham uma plena
confiança de que Ele podia livrar da morte a quem Ele quisesse. (2) Que
Ele afirma ser a ressurreição e a vida. Ele é, para todos os que creem
nEle, a fonte da vida espiritual para a alma, e de uma ressurreição para o
corpo. (3) Como ilustração e prova de Seu divino poder, Ele chamou
Lázaro para fora do sepulcro.

O último discurso de nosso Senhor.


O discurso registrado nos capítulos 14, 15 e 16, e a oração
registrada no capítulo 17, são palavras de Deus aos homens. Nenhum ser
criado poderia falar como Cristo fala aqui. Ele começa exortando a Seus
discípulos a ter a mesma fé nEle que têm em Deus. Ele foi para lhes
preparar o céu, e voltaria e os levaria consigo. Conhecê-lo é conhecer a
Deus. Aquele que O tinha visto tinha visto também o Pai, porque Ele e o
Pai são um. Ele prometeu enviar-lhes o Espírito Santo para que
permanecesse com eles para sempre, e para que Ele lhes manifestasse
como Deus Se manifesta aos santos, revelando-lhes Sua glória e amor, e
os fazendo conscientes de Sua presença. Ele seguiria sendo para Sua
Igreja a fonte da vida; a união com Ele é tão necessária como o é para o
ramo a união com a videira. O Espírito Santo enviado por Ele lhes
revelaria as coisas de Cristo, fazendo os Apóstolos infalíveis como
mestres, e dando iluminação divina a todos os crentes. Era necessário
que Ele os deixasse a fim de enviar o Espírito, que convenceria o mundo
do pecado de não crer que Ele era tudo o que afirmava ser; da justiça de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 684
sua assunção de ser o Filho de Deus e Salvador do mundo, pelo que sua
ida ao Pai (isto é, sua ressurreição) era a prova decisiva; e também da
certeza de um juízo vindouro, porquanto o príncipe deste mundo já
estava julgado. O Espírito glorificaria a Cristo, isto é, O revelaria como
possuidor de todas as perfeições divinas, porque tudo o que o Pai tem
deste modo o Filho tem. Sua oração intercessora não podia proceder de
outros lábios mais que os de uma pessoa divina. Ele fala como possuindo
poder sobre toda carne, e que podia dar vida eterna a todos os que Deus
o Pai lhe tinha dado. A vida eterna consiste no conhecimento de Deus, e
dAquele a quem Deus enviou. Ele ora que Ele, revestido de nossa
natureza, fosse glorificado com a glória que tinha antes da fundação do
mundo; para que Seu povo fosse santificado. Para que eles fossem um ao
Ele habitar neles, e para que eles pudessem ser feitos partícipes da Sua
glória.
Ele foi condenado pelos judeus por afirmar ser o Filho de Deus, e
por Pilatos por afirmar ser rei. Quando foi crucificado, os céus se
escureceram, a terra tremeu, os mortos ressuscitaram, e o véu no templo
foi rasgado. Por Sua ressurreição ficou confirmada Sua declaração de ser
o Filho de Deus e o Salvador dos homens. Tomé, que não tinha estado
presente na primeira entrevista entre Cristo e Seus discípulos, duvidou
do fato de Sua ressurreição; mas quando O viu, ficou plenamente
convencido, e O reconheceu como seu Senhor e Deus (Jo 20:28). O fato
de que ὁ κύριός μου καὶ ὁ θεός μου (ho kurios mou kai ho theos mou) é
uma invocação a Cristo, e não uma exclamação, é evidente: (1) Pelas
palavras ἀπεκρίθη καὶ εἶπεν (apekrite kai eipen), respondeu e lhe disse, o
que estaria fora de lugar numa exclamação. Introduzem uma réplica ao
que Cristo havia dito. Tomé respondeu no sentido de que ficava
totalmente satisfeito e firmemente convencido de que Cristo era Senhor e
Deus. A palavra εἰπεῖν (eipein) nunca significa exclamar. (2) Uma
exclamação assim seria aborrecível para um judeu, que tinha uma
reverência até a superstição pelo nome de Deus, especialmente pelo
nome Jeová, e ὁ κύριος ὁ θεός (ho kurios ho theos) é equivalente a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 685
‫( י ְהוֹ ו ָה אֱלוֹ הִים‬Jeová Elohim) (3) A repetição do pronome μοῦ [mou]
também exige que a passagem seja considerada como uma invocação a
Cristo.

As Epístolas de São João.


Em suas epístolas, o Apóstolo João apresenta a divindade de Cristo
com a mesma proeminência. O grande desígnio destas epístolas era
estabelecer a fé dos crentes em meio aos erros que tinham começado a
prevalecer. O principal destes erros era a negação, em alguma forma, da
encarnação do Filho de Deus. Por isso, o Apóstolo não só insiste
intensamente no reconhecimento de que Jesus Cristo tinha vindo em
carne, mas também faz dela a grande doutrina fundamental do
evangelho. «Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus
permanece nele, e ele, em Deus» [1Jo 4:15]. Começa suas epístolas
lembrando a seus leitores que os Apóstolos tinham obtido a mais clara
evidência possível de que o Λόγος τῆς ζωῆς (Logos tes zoes [aquele que
tem e dá vida]) manifestou-se na carne. Eles lhe tinham visto, observado
e tocado. João dava aos crentes esta certeza a fim de que tivessem
comunhão com Deus e com Seu Filho Jesus Cristo. Muitos já tinham
apostatado e negado a verdade da encarnação. Mas negar esta doutrina
era negar a Deus, porque todo aquele que nega o Filho nega também o
Pai. Assim, exorta-os a permanecer no Filho como o único meio de
permanecer em Deus e de alcançar a vida eterna. As provas mediante as
quais se deviam provar aqueles que professavam ser mestres inspirados
eram: (1) Se reconheciam a doutrina da encarnação, isto é, da verdadeira
divindade e humanidade de Cristo (1Jo 4:2, 3, 15). (2) Conformidade
doutrinal com os ensinamentos dos Apóstolos. (3) Amor para com Deus,
baseado em Seu amor redentor para conosco, e amor para com os
irmãos, brotando deste amor para com Deus. No capítulo 5 diz a Seus
leitores que a grande verdade a crer é que Jesus é o Filho de Deus. Esta é
a fé que vence o mundo. Esta grande verdade fica estabelecida pelo
testemunho de Deus, tanto o externo como o interno porque aquele que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 686
crê no Filho de Deus tem o testemunho em si mesmo; aquele que não
creu neste testemunho faz a Deus mentiroso, porque não creu no
testemunho que Deus deu em seu Filho. NEle está a vida eterna, de
maneira que aquele que tem o Filho, tem a vida. Conclui sua epístola
dizendo: «Sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado
entendimento para reconhecermos o verdadeiro [isto é, para que
conheçamos verdadeiro Deus]; e estamos no verdadeiro [isto é, no
verdadeiro Deus], em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e
a vida eterna» [1Jo 5:20]. Que esta passagem deve ser referida a Cristo é
coisa evidente. (1) Porque Ele é o sujeito do discurso no contexto e ao
longo de toda a epístola. O grande propósito do Apóstolo é dizer-nos
quem e o que é Cristo. (2) Nas cláusulas imediatamente anteriores Ele
foi chamado o verdadeiro, «estamos no verdadeiro», em Jesus Cristo. «O
verdadeiro» e «o verdadeiro Deus» são expressões empregadas
indistintamente. (3) Cristo é repetidas vezes chamado «vida eterna» por
este Apóstolo, e diz-se da «vida eterna» que está nEle, linguagem que
não se emprega de Deus como tal, nem do Pai. (4) Χριστός (Christos) é
o antecedente natural de οὗτος (houtos), não só porque é o mais
próximo, mas também porque é o sujeito destacado. (5) Esta foi a
interpretação recebida na Igreja, ao menos desde a controvérsia ariana, e
as objeções suscitadas contra a mesma são principalmente teológicas, e
não exegéticas. Deve-se observar que Cristo, aqui, não é meramente
chamado θεός (theos) mas sim ὁ θεός (ho theos), como em Jo 20:28.

O Apocalipse.
O Livro de Apocalipse é um hino contínuo de louvor a Cristo,
expondo a glória de Sua pessoa e o triunfo de Seu reino; apresentando-O
como a base da confiança de Seu povo e o objeto da adoração de todos
os moradores do céu. É declarado ser o governante dos reis da terra. Ele
nos tem feito para Deus reis e sacerdotes. Ele é o Primeiro e o Último,
uma linguagem que jamais se emprega exceto de Deus, e que só é certo
dEle. Compare-se Is 44:6. Nas epístolas às sete igrejas, Cristo assume os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 687
títulos e as prerrogativas de Deus. Ele Se designa a Si mesmo como
Aquele que sustenta as sete estrelas em Sua mão direita; o Primeiro e o
Último; Aquele que tem a espada de dois gumes e olhos de fogo, a quem
nada se pode ocultar. Ele tem os sete espíritos. Ele é o Santo e o
Verdadeiro. Ele tem as chaves de Davi; Ele abre e ninguém fecha, e
fecha e ninguém abre; Sua decisão a respeito do destino dos homens é
inapelável. Ele é o árbitro supremo; a testemunha fiel e verdadeira; o
ἀρχὴ τῆς κτίσεως τοῦ θεοῦ [arche tes ktiseos tou theou], o princípio, isto
é, ao mesmo tempo a cabeça e fonte, de toda a criação. Ele repreende as
igrejas por seus pecados, ou as louva por sua fidelidade, como seu
governante moral contra quem se comete o pecado, e a quem se presta
obediência. Ele ameaça com castigos e promete bênçãos que só Deus
pode infligir ou outorgar. No capítulo 5 o Apóstolo exibe a todos os
moradores do céu prostrar-se aos pés de Cristo, atribuindo bênçãos e
honra e glória e poder Àquele que se assenta no trono e ao Cordeiro para
sempre jamais. A Nova Jerusalém é a capital de Seu reino. Ele é a luz
dela, e sua glória e bem-aventurança. Ele Se declara vez após vez o Alfa
e o Ômega, o Primeiro e o Último (isto é, o imutável e eterno), o
Princípio e o Fim, Aquele cuja segunda vinda a Igreja espera ofegante.

B. As Epístolas de São Paulo.


Nas epístolas de Paulo faz-se a mesma exaltada apresentação da
pessoa e obra de Cristo. Na Epístola aos Romanos, Cristo é declarado
Filho de Deus, o objeto da fé, o juiz do mundo, o Deus da providência, o
doador do Espírito Santo, e o que se diz de Jeová no Antigo Testamento
o Apóstolo o aplica a Cristo. No capítulo 9:5 Ele é declarado
expressamente «sobre todos, Deus bendito para todo o sempre». O texto
aqui está fora de toda discussão. A única forma de mudar o significado
da passagem é mudando a pontuação. Erasmo, que foi seguido por
muitos modernos intérpretes, pôs um ponto depois de κατὰ σάρκα (kata
sarka) ou depois de πάντων (panton). No primeiro caso, a passagem
leria: «Das quais, segundo a carne, procede o Cristo. Deus que é sobre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 688
tudo seja bendito para sempre»; no segundo caso, «dos quais, segundo a
carne, procede Cristo, que é sobre todas as coisas», isto é, mais alto que
os patriarcas. Os que advogam por estas interpretações admitem
francamente que a razão para adaptá-las é evitar fazer com que o
Apóstolo afirme que Cristo é Deus sobre todas as coisas. Como eles não
admitem esta doutrina, estão mal dispostos a admitir que o Apóstolo a
ensina. Na Igreja antiga era atribuído universalmente a Cristo, como por
todos os Reformadores, por todos os teólogos antigos, e por quase todos
os intérpretes modernos que creem na divindade de Cristo. Até a
uniformidade de assentimento é em si mesma uma prova decisiva de que
a interpretação comum é a natural. Estamos obrigados a tomar cada
passagem das Escrituras em seu sentido evidente e natural, a não ser que
as mais claras declarações da Palavra de Deus nos mostrem que um
sentido menos óbvio seja o verdadeiro. Que a interpretação comum desta
passagem é a correta fica claro:
1. Porque Cristo é o sujeito do discurso; Deus não é mencionado no
contexto. O Apóstolo está mencionando as bênçãos distintivas da nação
judaica. A eles foram dados a lei, a glória, a aliança, e as promessas, e,
acima de todo, deles «segundo a carne (isto é, pelo que respeita à Sua
humanidade), procede Cristo, o qual é Deus sobre todas as coisas,
bendito pelos séculos». Aqui tudo é natural e dentro de contexto. Mostra
quão preeminente era a distinção dos judeus, que deles nascesse o
Messias, Deus manifestado na carne. Em comparação com esta, todas as
outras prerrogativas desta nação se afundam na insignificância.
2. As palavras κατὰ σάρκα (kata sarka) exigem uma antítese. Não
haveria nenhum motivo para dizer que Cristo, enquanto homem,
descendia dos judeus, se não fosse mais que homem, e se não havia um
sentido em que não descendia deles. Como em Rm 1:3, 4 diz-se que
κατὰ σάρκα (kata sarka) Ele era o Filho de Davi, mas κατὰ πνεῦμα (kata
pneuma) o Filho de Deus; do mesmo modo aqui é dito que κατὰ σάρκα
(kata sarka) Ele descendia dos patriarcas, mas que em Sua mais excelsa
natureza Ele é Deus sobre todas as coisas, bendito para todo o sempre.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 689
3. O uso da linguagem demanda a interpretação comum. Em todas
as exclamações e bênçãos, em distinção à mera narração, o predicado se
situa uniformemente diante do sujeito, se se omitir a cópula εἶναι (einai).
Este uso é estritamente observado na Septuaginta, nos Apócrifos e no
Novo Testamento. Por isso, sempre lemos em tais doxologias εὐλογητὸς
ὁ θεός (eulogetos ho theos), e nunca ὁ θεὸς εὐλογητός (ho theos
eulogetos). Nas Escrituras hebraicas, ְ‫(  בָרוּך‬Baruch) aparece em
quarenta ocasiões em doxologias e fórmulas de louvor diante do sujeito.
É sempre «Bendito seja Deus», e nunca «Deus seja bendito». Na
Septuaginta, Salmo 68:20 (19), κύριος ὁ θεὸς εὐλογητός (kurios ho theos
eulogetos) é a única exceção aparente a esta norma. E nesta o hebraico se
adere à forma comum, e a versão grega é uma paráfrase retórica do
original. No hebraico é simplesmente ‫( בָרוּךְ אֲדֹנ ָי אֲדׁנ ָי‬Baruch
Adonai), para o que na LXX temos Κύριος ὁ θεὸς εὐλογητός, cὐλογητὸς
κύριος (Kurios ho theos eulogetos, eulogetos kurios). Por isso, todas as
considerações estão a favor da interpretação aceita pela Igreja como
dando o verdadeiro sentido desta passagem. Cristo é Deus sobre todas as
coisas, bendito para sempre.

As Epístolas aos Coríntios.


Nas Epístolas aos Coríntios, Cristo é apresentado (1) Como o objeto
apropriado da homenagem religiosa. Todos os crentes são descritos
como Seus adoradores (1Co 1:2). (2) Como a fonte da vida espiritual
(1Co 1:4-9, 30-31). (3) Como o Senhor de todos os cristãos e o Senhor
da glória (1Co 2:8). (4) Como Criador do universo (1Co 8:6), δἰ οὗ τὰ
πάντα (di hou ta panta). (5) Como o Jeová do Antigo Testamento, que
conduziu os israelitas pelo deserto (1Co 10:1-13). (6) Como o doador
dos dons espirituais (1Co 12). (7) Como o Senhor do céu a quem está
sujeito o universo (τὰ πάντα [ta panta]) (1Co 15:25). (8) Como Espírito
vivificador (πνεῦμα ζωοποιοῦν [pneuma zoopoioun]), isto é, um Espírito
que tem vida em Si mesmo, e fonte de vida para outros (1Co 15:45). (9)
Como o apropriado objeto de amor supremo, e ao qual não amar conduz
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 690
a alma com justiça à morte eterna. (1Co 16:22). (10) O objeto da oração
(1Co 16:23), de quem se deve buscar a graça. (11) Ele dá êxito na
pregação do evangelho, dando o triunfo a Seus ministros (2Co 2:14).
(12) A visão de Sua glória transforma a alma à Sua semelhança (2Co
3:17, 18). (13) Em Sua face está a glória de Deus, que não a veem só
aqueles que estão cegados (2Co 4:3-6). (14) Sua presença, ou estar com
Ele, constitui o céu do crente (2Co 5:1-8). (15) Todos os homens hão de
comparecer diante de Seu tribunal (2Co 5:10). (16) Seu amor é o mais
elevado motivo para a ação (2Co 5:14).

Gálatas
(1) Paulo diz que ele era Apóstolo não por vontade de homem, mas
por Jesus Cristo (Gl 1:1). (2) A conversão da alma é levada a cabo pelo
conhecimento de Cristo como o Filho de Deus (Gl 2:16). (3) A vida
espiritual é mantida pela fé da qual Cristo é o objeto (Gl 2:20,21). (4)
Cristo vive em nós, como de, Deus é dito que habita em Seu povo (Gl
2:20). (5) Ele era o objeto da fé de Abraão (Gl 3:16). (7) Pela fé nEle
viemos a ser filhos de Deus (Gl 3:26). (8) O Espírito Santo é o Espírito
de Cristo (Gl 4:6). (9) Sua vontade é nossa lei (Gl 6:2). (10) Sua graça ou
favor é a fonte de todo bem (Gl 6:18).

Efésios.
(1) Em Cristo e sob Ele têm que convergir todos os objetos do amor
redentor de Deus num todo harmônico (Ef 1:10). (2) NEle temos vida
eterna, sendo feitos herdeiros de Deus. (Ef 1:11-14). (3) Ele está
exaltado acima de todo principado e potestade, e poderio, e domínio, isto
é, acima de todas as criaturas racionais (Ef 1:21). (4) NEle somos
vivificados, ou ressuscitados da morte do pecado, feitos partícipes da
vida espiritual, e exaltados ao céu (Ef 2:1-16). (5) Em Ef 3:9 diz-se de
Deus que criou todas as coisas por Jesus Cristo. (entretanto, o texto nesta
passagem é algo duvidoso.) (6) Ele enche o universo (Ef 1:23, e Ef
4:10). (7) Ele é a cabeça da Igreja, da qual deriva sua vida (Ef 4:16). (8)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 691
Ele santifica a Igreja (Ef 5:26). (9) O cumprimento de todos os deveres
sociais fica fortalecido pela consideração da autoridade de Cristo.
Devemos servir aos homens como servindo a Ele (Ef 6:1-9).

Filipenses.
Em Filipenses, além do reconhecimento usual de Cristo como a
fonte e doador de graça e paz, que abrange todas as bênçãos espirituais, e
o conhecimento dEle como o fim de nosso ser (Fp 1:21,22), temos em
Fp 2:6-11 a mais clara declaração da divindade de Cristo. Diz-se: (1) que
Ele sendo Deus, (ou existindo, ὑπάρχων [huparchon]) em forma de
Deus», isto é, sendo Deus tanto em natureza como em manifestação. Não
podia ser um sem ser o outro. A palavra μορφή (morfê) pode bem
significar o modo de manifestação, aquilo que aparece, como quando se
diz «o rei do céu apareceu sobre a terra ἐν μορφῇ ἀνθρώπου (en morphe
anthropou)»; ou a própria natureza ou essência (φύσις [phusis] ou οὐσία
[ousia]). Esta última postura é a que adotam a maioria dos pais. Mas a
primeira concorda mais com o uso comum da palavra, e com o contexto
imediato. Aquele que existia em forma de Deus tomou sobre Si mesmo
forma de servo (μορφήν δούλου [morphen doulou]), isto é, a verdadeira
condição de servo. (2) Ele é declarado igual a Deus. Ele não considerou
ἶσα εἶναι θεῷ - isa einai theo [ser igual a Deus] como um ἁρπαγμόν
(harpagmon), isto é, como um latrocínio, ou uma assunção injusta. Ele
tinha todo direito a reclamar a igualdade com Deus. (3) Esta pessoa
verdadeiramente divina assumiu a forma dos homens, a qual se explica
dizendo que foi «feito semelhante aos homens». Apareceu em forma,
aparência, linguagem, modo de pensar, falar, sentir e agir, como outros
homens. Não foi um mero homem, mas sim «Deus encarnado», Deus
manifestado em carne. (4) Esta pessoa divina, revestida de natureza
humana, humilhou-se até a morte, e morte de cruz. (5) Por isso Ele (não
Deus, nem a natureza divina em Cristo, mas sim o Teantropo), é exaltado
acima de todo nomeie que se nomeia, «para que ao nome de Jesus (isto
é, o nome do Teantropo [ou Theanthropos], porquanto é Ele como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 692
pessoa divina revestida da natureza do homem que é objeto de adoração)
se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da
terra» (Fp 2:10, TB). Esta é uma amplificação exaustiva. Inclui a toda a
criação racional, desde o mais exaltado arcanjo até o mais fraco dos
santos; todos, todos aqueles que têm vida reconhecem a Cristo como
sendo o que só Deus pode ser, seu Senhor absoluto e supremo. É pelo
que Cristo é e por ter feito o descrito, que o Apóstolo diz, no seguinte
capítulo, que Ele contava como nada todas as coisas pelo conhecimento
de Cristo, e que seu único desejo era ser achado nEle e revestido de Sua
justiça. Este Redentor divino há de voltar, e «transformará o nosso corpo
de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia
do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas» (Fp 3:21).

Colossenses
Colossenses 1:15-20 tem o propósito expresso de expor a
verdadeira Deidade de Cristo em oposição aos erros que surgiam da
teoria da emanação, que já tinha começado a estender-se pelas igrejas da
Ásia Menor. Esta passagem estabelece a relação de Cristo primeiro com
Deus, em segundo lugar com o universo, e em terceiro com a Igreja.
Aqui, como em tantas outras passagens da Escritura, os predicados do
Λόγος ἀσαρκος (Logos asarkos) e do Λόγος ἔνσαρκος (Logos ensarkos)
misturam-se. Como em Hb 1:2,3, diz-se que o Filho criou todas as
coisas, e que é o resplendor da glória do Pai, e também que efetuou a
purificação de nossos pecados; assim que aqui parte do que se diz
pertence ao Logos como existente desde toda a eternidade, e parte Lhe
pertence como revestido de nossa natureza. É do Λόγος ἀσαρκος (Logos
asarkos) que se declara que é a imagem do Deus invisível e o Criador de
todas as coisas; e é o Λόγος ἔνσαρκος (Logos ensarkos) que é declarado
ser a cabeça da Igreja. A relação de Cristo com Deus é expresso nesta
passagem: (1) Pelas palavras recém-citadas, Ele «é a imagem do Deus
invisível». Ele está relacionado com Deus de tal maneira que revela o
que Deus é, de maneira que os que O veem, veem a Deus, os que O
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 693
conhecem, conhecem a Deus, e os que O ouvem, ouvem a Deus. Ele é o
resplendor da glória de Deus e Sua expressa imagem. (2) Sua relação
com Deus é também expressa dizendo que Ele é gerado desde a
eternidade, ou que é o Filho unigênito. As palavras πρωτότοκος πάσης
κτίσεως (protótokos pases ktiseos) recebem, certamente, várias
explicações. Os Socinianos as explicam no sentido de que Ele foi a
cabeça de uma nova dispensação; os Arianos, que Ele foi o primeiro em
ser criado de todas as criaturas racionais; muitos intérpretes ortodoxos
tomam πρωτότοκος (protótokos) em seu sentido secundário, como
cabeça ou chefe. Por isso, entendem o Apóstolo como dizendo que
Cristo é o governador ou cabeça sobre toda a criação. Mas todas estas
interpretações são inconsistentes com o sentido próprio das palavras,
com o contexto, e com a analogia das Escrituras. Πρωτότοκος
(Protótokos) significa nascido antes. Aquilo do que se diz que Cristo
nasceu antes é expresso com πάσης κτίσεως (pases ktiseos). Ele nasceu
(ou foi gerado) antes de nenhuma ou quaisquer criaturas, isto é, antes da
criação, ou desde a eternidade. Todos os argumentos aduzidos num
capitulo anterior em prova da eterna geração do Filho são argumentos
em favor desta interpretação. Além disso, a interpretação Ariana é
inconsequente com o sentido das palavras. Esta interpretação dá por
sentado que o genitivo πάσης κτίσεως (pases ktiseos) deve ser tomado
em sentido partitivo, de modo que se diz de Cristo que faz parte da
criação, como o primeiro das criaturas, do mesmo modo que se diz que é
o primeiro dos que ressuscitaram dos mortos, quando é chamado
προτότοκος τῶν νεκρῶν (protótokos ton nekron). Mas πᾶσα κτίσις (pasa
ktísis) não significa toda a criação, como indicativa da classe ou
categoria a que pertence Cristo, mas sim toda criatura, indicando uma
filiação ou comparação; Cristo é o primogênito quanto a toda criatura,
isto é, gerado antes de nenhuma criatura (isto é, eternamente, com base
no constante uso das Escrituras, porque o que é antes da criação é
eterno). Além disso, a conexão demanda esta interpretação. O Apóstolo
demonstra que Cristo é a imagem do Deus invisível, e o προτότοκος
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 694
πάσης κτίσεως (protótokos pases ktiseos) por meio de um argumento que
demonstra que não pode ser uma criatura; e por isso o nascimento
mencionado tem que ser anterior ao tempo. Em segundo lugar, a relação
de Cristo com o universo é expressa nesta passagem dizendo: (1) Que
Ele é o Criador de todas as coisas. Isto é ampliado, porquanto se declara
que todas as coisas incluem todas as que estão nos céus e na terra,
visíveis e invisíveis, racionais e irracionais, por exaltadas que sejam,
incluindo tronos, domínios, principados e potestades, isto é, toda a
hierarquia do mundo espiritual. (2) Ele não é só o autor, mas também o
fim da criação porque todas as coisas foram não só criadas por Ele, mas
também para Ele. (3) Ele sustenta todas as coisas; todas as coisas por Ele
consistem, isto é, são preservadas em ser, vida e ordem. Em terceiro
lugar, Cristo é a cabeça da Igreja, a fonte da vida e graça para todos os
seus membros. Porque nele habita «toda a plenitude» da bênção divina.
Em Colossenses 2:3 diz-se que em Cristo habitam todos os tesouros
de sabedoria e conhecimento (isto é, todo conhecimento, ou onisciência);
e em Cl 2:9 que «nele habita corporalmente toda a plenitude da
Deidade». Isto é muito diferente do πλήρωμα (pleroma) mencionado em
Col 1:19, onde o Apóstolo está falando do que Beza chama
“cumulatissima omnium divinarum rerum copia, ex qua, tanquam
inexhausto fonte, omnes gratiæ in corpus pro cujusque membri modulo
deriventur;” 352 Aqui a referência é ao ser divino, à natureza, ou à mesma
essência, τὸ πλήρωμα τῆς θεότητος (to pleroma tes theotetos). A palavra
θεότης (theotes) é o abstrato de θεός (theos) como θειότης (theiotes) é-o
de θεῖος (theios). O primeiro significa Deidade, aquilo que faz com que
Deus seja Deus; o segundo denota divindade, aquilo que se traduz
divino. A íntegra plenitude da essência divina (e não uma mera
emanação daquela essência, como ensinava a incipiente seita gnóstica)
habita (κατοικεῖ [katoikei], habita permanentemente, não é uma
manifestação temporal) nEle, corporalmente, σωματικῶς (somátikos),

352
In loc. edit. Geneva, 1565, p. 423.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 695
investida com um corpo. A Deidade em Sua plenitude está encarnada em
Cristo. Portanto, Ele não é meramente θεός (theos), sino ὁ θεός (ho
theos) no mais alto sentido. Não se pode dizer mais que o que Paulo diz.

As Epístolas Pastorais
Nas epístolas pastorais de Paulo a Timóteo e Tito, além do
reconhecimento normal da divindade de Cristo que se encontra em quase
cada página do Novo Testamento, há quatro passagens nas quais, ao
menos com base no texto comum e da interpretação mais natural, é
chamado Deus de maneira direta. Inclusive 1Tm 1:1, κατ᾽ ἐπιταγὴν
Θεοῦ σωτῆρος ἡμῶν και Κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ (kat' epitagen Theou
soteros hemon kai Kuriou Iesou Christou), pode-se traduzir com toda
naturalidade como «segundo o mandamento de Deus nosso Salvador,
isto é, nosso Senhor Jesus Cristo». Isto está de acordo com as passagens
paralelas de Tt 1:3, «Por mandato de Deus nosso Salvador»; e Tt 2:13,
«do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo». Nesta última passagem
não há razão alguma, como o reconhecem Winer e De Wette, para pôr
em dúvida que Cristo seja chamado o grande Deus, exceto pelo que eles
consideram que é a Cristologia do Novo Testamento. Eles não admitem
que com base na doutrina de Paulo que Cristo seja chamado o grande
Deus, e por isso não estão dispostos a admitir que esta passagem
contenha tal declaração. Mas se, como já vimos, e como o crê toda a
Igreja, não só Paulo, mas também todos os Apóstolos e os profetas
ensinam abundantemente que o Messias é verdadeiramente Deus assim
como verdadeiramente homem, não há então força alguma em tal
objeção. Devem-se violentar as normas comuns da linguagem se a frase
τοῦ μεγάλου θεοῦ καὶ σωτῆρος (tou megalou theou kai soteros) não é
referida ao mesmo sujeito; porquanto θεοῦ (theou) tem o artigo, e
σωτῆρος (soteros) carece dele. O sentido justo das palavras é «o Grande
Deus, que é nosso Salvador Jesus Cristo». Esta interpretação é deste
modo exigida: (1) Pelo contexto. Jesus Cristo é o tema do discurso. DEle
é dito que Ele é o grande Deus nosso Salvador, que Se entregou a Si
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 696
mesmo por nós. (2) Porquanto a ἐπιφανεία (epiphaneia), manifestação
(que aqui tem referência à segunda vinda), emprega-se repetidas vezes
de Cristo no Novo Testamento, mas nunca de Deus como tal, ou de Deus
Pai. Veja-se 2Tm 1:10; 2Ts 2:8; 1Tm 6:14; 2Tm 4:1,8. (3) A posição das
palavras σωτῆρος ἡμῶν (soteros hemon) diante de Ἰησοῦ Χριστοῦ (Iesou
Christou). Se «Deus» e «Salvador» se referissem a pessoas diferentes, a
ordem natural das palavras seria, «a manifestação do grande Deus e
Jesus Cristo nosso Salvador», e não como aparece: «A manifestação do
grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo». Grande Deus e Salvador
pertencem evidentemente à mesma pessoa em 1Tm 1:1, «o mandamento
de Deus, nosso Salvador», e em Tt 1:3, «Deus, nosso Salvador»; e neste
lugar (Tt 2: 13) declara-se que aquele Deus e Salvador é Jesus Cristo.
Mas a passagem mais importante nestas epístolas pastorais é 1Tm
3:16. Com relação a esta passagem pode-se observar: (1) Que admite
duas interpretações. Segundo a primeira, a Igreja é declarada como a
coluna e o baluarte da verdade, e segundo a outra a coluna e o baluarte
da verdade é o grande mistério da piedade. Esta última deve ser preferida
como igualmente coerente com a estrutura gramatical da linguagem, e
como mais em harmonia com a analogia da Escritura. A coluna e o
baluarte da verdade, a grande doutrina fundamental do Evangelho, é com
frequência declarada em outras passagens como a doutrina da
manifestação de Deus na carne. Sobre esta doutrina repousam todas as
nossas esperanças de salvação. (2) Seja qual for a leitura que se adote,
seja θεός (theos), ὁς (hos), ou ὁ (ho), todas as quais aparecem em
diversos manuscritos, a passagem tem que fazer referência a Cristo. Foi
Ele quem foi manifestado em carne, justificado no Espírito, e recebido
acima na glória. (3) Seja qual for a leitura que se adote, a passagem
assume ou declara a divindade de nosso Senhor. Nos escritores
apostólicos, a doutrina da encarnação se expressa dizendo que o λόγος
(logos) «fez-se carne» (Jo 1:14), ou que «Jesus Cristo veio em carne»
(1Jo 4:2); ou que «Aquele que é o resplendor da glória de Deus»
«participou da carne e do sangue» (Hb 2:14); ou que Aquele que era
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 697
«igual a Deus» foi «achado em forma de homem» (Fp 2:8). Por isso,
expressa a mesma verdade, tanto se dissermos que «Deus foi
manifestado em carne» ou «Aquele que foi manifestado em carne»; ou
que «O mistério da piedade foi manifestado em carne». (4) As
autoridades externas estão tão divididas que os editores e críticos mais
competentes diferem quanto a qual seja o texto original. Em favor de
θεός (theos) temos o grande corpo dos manuscritos cursivos gregos e
quase todos os Pais gregos. A autoridade do Códice Alexandrino é
reivindicada por ambos os lados. A questão ali é se a letra é um Θ
(Theta) ou um Ο (Omicrón); alguns dizem que se podem ver traçados
duros da linha no Theta, outras dizem que não as veem. Para ὁς (hos)
citam-se C, F e G dos manuscritos unciais, só dois dos manuscritos
cursivos, e as versões Copta e Sahídica. A esta deve-se acrescentar o
testemunho do antiquíssimo manuscrito recentemente descoberto por
Tischendorf, * cujo texto foi publicado baixo seus auspícios em São
Petersburgo. Em favor de ὁ (ho) estão o manuscrito uncial D, a Vulgata
Latina, e os Pais latinos. À vista do estado da questão, Wetstein,
Griesbach, Lachman, Tischendorf e Tregelles, entre os editores,
decidem-se por ὁς (hos). Mill, Matthies, assim como os editores mais
antigos, como Erasmo, Beza, a Complutense, e os posteriores como
Knapp e Hahn, retêm θεός (theos). 353 (5) A evidência interna, pelo que
respeita à perspicuidade da passagem e à analogia da Escritura, estão
decididamente em favor do texto comum. Há algo notável na passagem;
é introduzido aparentemente como uma citação de um hino, como alguns
pensam, ou de uma confissão de fé, como outros supõem, ou ao menos
como uma fórmula familiar com a qual se enunciam de maneira concisa
as principais verdades a respeito da manifestação de Cristo. (1) Ele é
Deus. (2) Ele foi manifestado em carne, ou, fez-se homem. (3) Ele foi
justificado, isto é, Suas afirmações de que devia ser considerado como
*
O autor refere-se aqui ao Códice conhecido como Sinaítico. (N. do T.)
353
O doutor Henderson vindicou habilmente a leitura θεός - theos em seu Critical Examination of the
Various Readings in 1 Tim. 3.16.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 698
Deus manifestado em carne foram demonstradas verdadeiras, pelo
Espírito (isto é, ou pelo Espírito Santo, ou pelo πνεῦμα - pneuma ou
natureza divina que se revelou nEle. Cf. Jo 1:14). (4) Foi visto dos anjos.
Eles O reconheceram e serviram. (5) Foi pregado aos gentios, porquanto
veio para ser o Salvador de todos os homens, e não só dos judeus. (6) Foi
crido como Deus e Salvador; e (7) Foi recebido acima em glória, onde
agora vive, reina e intercede.

A Epístola aos Hebreus.


As doutrinas da Bíblia são geralmente enunciadas com autoridade;
anunciadas como fatos que devem ser recebidos com base no testemunho
de Deus. Poucas vezes empreendem os escritores sagrados a tarefa de
demonstrar o que ensinam. O primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus
é uma exceção a esta regra geral. A divindade de Cristo é aqui
demonstrada de maneira formal. Porquanto o desígnio do Apóstolo era
persuadir os cristãos hebreus a que se aderissem ao Evangelho, e a
preservá-los do pecado fatal de apostatar ao judaísmo, expõe perante eles
a incomensurável superioridade do evangelho sobre a economia mosaica.
O primeiro ponto daquela superioridade, do qual dependem todos os
outros, é a dignidade superior de Cristo, como pessoa divina, a Moisés e
a todos os profetas. Para expor esta superioridade, ele anuncia primeiro
que Cristo, o Filho de Deus, é o possuidor de todas as coisas; que por
meio dele Deus fez o mundo; que Ele é o resplendor da glória de Deus, a
expressa imagem de Sua substância, sustentando todas as coisas pela
palavra de Seu poder; e que porquanto Ele tem feito por Si mesmo a
purificação de nossos pecados, Ele está agora, como o Teantropo,
sentado à mão direita da majestade nas alturas. Tendo ficado assim
estabelecida a verdadeira divindade de Cristo, o Apóstolo passa a
demonstrar que esta é a doutrina das Escrituras. (1) Porquanto Ele é na
Bíblia chamado o Filho de Deus, um título que não pode ser dado em seu
verdadeiro sentido a nenhuma criatura. Por isso, Cristo é superior aos
anjos; e porquanto a palavra anjos na Bíblia inclui a todas as criaturas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 699
inteligentes superiores ao homem, Cristo é superior a todas as criaturas,
não podendo por isso ser Ele mesmo uma criatura. Ele pertence a uma
categoria diferente do ser. (2) Todos os anjos (isto é, todas as
inteligências superiores) recebem a ordem de adorá-Lo (isto é, de
prostrar-se diante dEle). (3) Enquanto que os anjos são designados como
meros instrumentos por meio dos quais Deus leva a cabo Seus
propósitos, o Filho é designado como Deus. «O teu trono, ó Deus, é para
todo o sempre». (4) Ele estabeleceu os alicerces da terra, e os céus são
obra de Suas mãos. (5) Tudo isto é mutável, mas Ele é imutável e eterno.
(6) Ele está associado com Deus em glória e domínio. E é sobre esta
grande verdade, assim estabelecida, que o Apóstolo baseia todos os
deveres e doutrinas que Ele apressa sobre a fé e a obediência de seus
leitores. É sobre esta base que não há escapatória para os que rejeitem a
salvação que Ele proveu (Hb 2:15). É também sobre esta base que Ele
tem um domínio jamais concedido aos anjos, tendo sido sujeitas a ele
todas as coisas (Hb 2:5-10). Como foi uma pessoa divina, o Filho Eterno,
quem assumiu nossa natureza, e veio a ser sumo sacerdote por nós, Seu
sacrifício é eficaz, e não é necessária sua repetição; e Ele é um sumo
sacerdote perpétuo, mais alto que os céus, que pode salvar até o fim os
que a Deus se achegam por meio dEle. Este Salvador é o mesmo ontem,
e hoje, e para sempre. A fé nEle nos capacitará a vencer ao mundo, como
a fé nas promessas a respeito de Cristo capacitou os antigos santos para
fazerem a boa confissão sob as maiores provas e sofrimentos.

C. Os outros Escritores Sagrados do Novo Testamento.

Os Apóstolos Tiago e Pedro dão o mesmo testemunho da divindade


de nosso Senhor. O primeiro O chama o Senhor da glória, e o último em
sua Primeira Epístola O representa como o objeto apropriado de nosso
supremo amor. A fé nEle assegura a salvação. Seu espírito habitava nos
antigos profetas. Ele é o fundamento da Igreja (1Pe 2:6). Tendo sofrido
Ele, o Justo pelos injustos, para nos levar a Deus, Ele está agora exaltado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 700
à mão direita de Deus, estando sujeitos a Ele todo o universo de criaturas
inteligentes (1Pe 3:18). Em sua Segunda Epístola fala do conhecimento
de Cristo como a fonte de graça e de paz (2Pe 1:2) e de santidade (v. 8).
Na morte, os crentes entram no reino eterno (v. 11). Pedro foi
testemunha ocular de Sua majestade divina quando esteve com Ele no
monte santo. Senhor e Salvador, equivalente na boca de um judeu a
Jeová Salvador, é sua designação usual para Cristo. A verdadeira
religião, segundo este Apóstolo, consiste no conhecimento de Cristo
como o Filho de Deus, a quem, por isso, atribui glória eterna.
Por imperfeito e insatisfatório que seja o tratamento aqui dado à
questão, é suficiente para demonstrar não só que as Escrituras ensinam a
divindade de Cristo, mas também o cristianismo como religião consiste
no amor, no culto e no serviço do Senhor Jesus, de quem somos
criaturas, e a quem pertencemos pela relação ainda mais íntima daqueles
a quem adquiriu com Seu próprio sangue precioso.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 701
CAPÍTULO VIII
O ESPÍRITO SANTO

§ 1. Sua natureza.

AS palavras ‫( הַו ּר‬ruach) e πνεῦμα (pneuma) empregam-se em


sentidos diferentes, tanto literal como figuradamente, nas Sagradas
Escrituras. Seu sentido próprio é Vento, como quando nosso Senhor diz:
«O vento (πνεῦμα [pneuma]) sopra onde quer» [Jo 3:8]; logo usa-se de
qualquer poder invisível; logo depois de agentes imateriais e invisíveis,
como a alma e os anjos; logo do próprio Deus, que se diz que é Espírito,
para expressar Sua natureza como a de um ser imaterial e inteligente; e,
finalmente, a Terceira Pessoa da Trindade chama-se «O Espírito» por via
de eminência, provavelmente, por duas razões: Primeiro, porque Ele é o
poder ou eficiência de Deus, isto é, a pessoa por meio de quem se exerce
diretamente a eficiência de Deus; e segundo, para expressar a relação
com as outras pessoas da Trindade. Assim como Pai e Filho são termos
que expressam relação, é natural a inferência de que a palavra Espírito
deve ser entendida da mesma maneira. O Filho é chamado a Palavra,
como o revelador ou imagem de Deus, e a Terceira Pessoa é a chamada
Espírito como seu alento ou poder. Ele é também chamado
predominantemente o Espírito Santo para indicar tanto sua natureza
como suas operações. Ele é absolutamente santo em Sua própria
natureza, e a causa da santidade em todas as criaturas. Pela mesma razão
é chamado também o Espírito da verdade, o Espírito de Sabedoria, de
Paz, de Amor e de glória.

A. Sua personalidade.

Os dois pontos a considerar com referência a esta questão são:


primeiro a natureza, e segundo o ofício ou obra do Espírito Santo. Com
relação à Sua natureza, é Ele uma pessoa ou um mero poder? E se é uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 702
pessoa, é Ele criado ou divino, finito ou infinito? A personalidade do
Espírito foi a fé da Igreja desde o começo. Teve poucos oponentes
incluso no período caótico da teologia, e nos tempos modernos não foi
negada por ninguém mais que pelos Socinianos, Arianos e Sabelianos.
Antes de considerar a prova direta da doutrina da Igreja de que o Espírito
Santo é uma pessoa, será bom observar que os termos «O Espírito», «O
Espírito de Deus», «O Espírito Santo», e, quando Deus fala, «Meu
Espírito», ou, quando se fala de Deus, «Seu Espírito», aparecem em
todas as partes das Escrituras, de Gênesis a Apocalipse. Estes e outros
termos equivalentes devem ser compreendidos, evidentemente, no
mesmo sentido através das Escrituras. Se o Espírito de Deus que se
movia sobre a face das águas, que disputou com os antediluvianos, que
veio sobre Moisés, que deu capacidade a artesãos, e que inspirou
profetas, é o poder de Deus, então o Espírito que veio sobre os
Apóstolos, que Cristo prometeu enviar como Consolador e Advogado, e
a quem se atribuem a instrução, santificação e guia do povo de Deus, tem
que ser também o poder de Deus. Mas se o Espírito é claramente
revelado como uma pessoa nas posteriores seções da Escritura, é
evidente que as seções anteriores devem ser compreendidas no mesmo
sentido. Não se deve tomar uma parte da Bíblia por si mesma, e muito
menos uma ou umas poucas passagens, para lhes dar uma interpretação
que aquelas palavras possam receber isoladamente, mas sim a Escritura
deve interpretar a Escritura. Outra observação evidente a respeito deste
tema é que o Espírito de Deus é igualmente proeminente em todas as
passagens da Palavra de Deus. Sua intervenção não aparece em algumas
ocasiões isoladas, como a aparição de anjos, ou as teofanias, das quais se
faz menção aqui e ali no volume sagrado; mas antes, é descrito como
presente em todas as partes; e operando em todas as partes. Do mesmo
modo, poderíamos apagar da Bíblia o nome e a doutrina de Deus que o
nome e o ofício do Espírito. Só no Novo Testamento é mencionado perto
de trezentas vezes. Mas não é meramente a frequência com a que se
menciona o Espírito, nem a proeminência dada à Sua pessoa e obra, o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 703
que faz com que a doutrina do Espírito Santo seja absolutamente
fundamental, mas sim as múltiplas e interessantes relações nas quais Ele
é descrito como tendo com o povo de Deus, a importância e o número de
Seus dons, e a absoluta dependência do crente e da Igreja nEle para a
vida espiritual e eterna. A obra do Espírito na aplicação da redenção de
Cristo é descrita como tão essencial como a própria redenção. Por isso, é
indispensável que saibamos o que é que a Bíblia ensina a respeito do
Espírito Santo, tanto à Sua natureza como quanto ao seu ofício.

Prova de Sua personalidade.


As Escrituras ensinam claramente que Ele é uma pessoa. A
personalidade inclui a inteligência, a vontade e a subsistência individual.
Por isso, se for demonstrado que tudo isto se atribui ao Espírito, com isso
fica demonstrado que Ele é uma pessoa. Não será necessário nem
aconselhável separar as provas destes vários pontos, citando passagens
que Lhe atribuam inteligência, logo outros que Lhe atribuam vontade, e
depois outros que demonstrem Sua subsistência individual, porque todos
estes se incluem frequentemente em uma e a mesma passagem; e os
argumentos que demonstram um demonstram em muitos casos os outros.
1. O primeiro argumento para a personalidade do Espírito Santo se
deriva do uso dos pronomes pessoais com relação a Ele. Uma pessoa é
aquilo que, ao falar, diz Eu; quando se dirigem a Ele diz Tu; e quando se
faz referência, diz-se Ele. Certamente, admite-se que existe a figura
retórica da personificação; que se podem introduzir seres inanimados ou
irracionais, ou sentimentos ou atributos, como falando, ou aos quais se
dirija como pessoas. Mas isto não cria dificuldades. Os casos de
personificação são de tal tipo que não admitem dúvida, exceto em raras
ocasiões. O fato de que os homens às vezes dirigem apóstrofes aos céus
ou aos elementos não dá pretexto para explicar como personificação a
todas as passagens nos quais Deus ou Cristo são introduzidos
pessoalmente. O mesmo com relação ao Espírito Santo. Ele é
introduzido com tanta frequência como pessoa, não meramente num
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 704
discurso poético ou exaltado, mas em simples narrativa e em instruções
didáticas, e Sua personalidade está sustentada por tantas provas
colaterais, que explicar o uso dos pronomes pessoais com relação a Ele
com base no princípio da personificação seria violentar todas as normas
de interpretação. Assim é em At 13:2: «Disse o Espírito Santo: Separai-
me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado». Nosso
Senhor diz (Jo 15:26): «Quando vier ou Consolador (ὁ παράκλητος [ho
parakletos]), a quem eu enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade
(τὸ πνεῦμα τῆς ἀληθείας [to pneuma tes aletheias]), o qual (ὅ [ho])
procede do Pai, ele (ἐκεῖνος [ekeinos]) dará testemunho a respeito de
mim». O uso do pronome masculino ele, em lugar do pronome neutro
grego, mostra que o Espírito é uma pessoa. Certamente, pode-se dizer
que παράκλητος (parakletos) é masculino, e que por isso o pronome que
se refere a Ele tem que ter o mesmo gênero. Mas como estão interpostas
as palavras τὸ πνεῦμα (to pneuma), que se refere o neutro ὅ (ho), o
seguinte pronome estaria de natural em gênero neutro, se o sujeito a que
se fizesse referência, o πνεῦμα - pneuma, não fosse uma pessoa. No
capítulo seguinte (Jo 16:13,14) não há base para tal objeção. Ali se diz:
«Mas quando vier ele (ἐκεῖνος - ekeinos), o Espírito da verdade, ele lhes
guiará a toda a verdade; porque não falará por sua própria conta, mas sim
falará tudo que ouça, e lhes fará saber as coisas que terão que vir. Ele me
glorificará (ἐκεῖνος ἐμὲ δοξάσει [ekeinos eme doxasei]); porque tirará do
que é meu, e vos fará saber». Aqui não há possibilidade de dar conta do
uso do pronome pessoal Ele (ἐκεῖνος [ekeinos]) sobre nenhuma outra
base que a da personalidade do Espírito.
2. Temos relacionamento com o Espírito Santo que só podemos ter
com uma pessoa. Ele é o objeto de nossa fé. Cremos no Espírito Santo.
Esta fé a professamos no batismo. Somos batizados não só no nome do
Pai e do Filho, mas também do Espírito Santo. A mesma associação do
Espírito em tal conexão, com o Pai e o Filho, porquanto se admite que
eles são pessoas distintas, demonstra que o Espírito é também uma
pessoa. Além do uso da palavra εἰς τὸ ὄνομα (eis to onoma) no nome,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 705
não admite outra explicação. Pelo batismo professamos reconhecer o
Espírito como reconhecemos o Pai e o Filho, e nos ligamos a um assim
como aos outros. Se quando o Apóstolo diz aos Coríntios que eles não
foram batizados εἰς τὸ ὄνομα Παῦλου (eis to onoma Paulou) e quando
lhes diz que os hebreus foram batizados em Moisés, significa que os
Coríntios não foram feitos os discípulos de Paulo, enquanto que os
judeus sim o foram de Moisés; então quando somos batizados no nome
do Espírito, o significado é que no batismo professamos ser Seus
discípulos; vinculamo-nos a receber Suas instruções e a submetemos a
Seu controle. Temos a mesma relação com Ele que com o Pai e com o
Filho; reconhecemos que Ele é uma pessoa de maneira tão distintiva
como reconhecemos a personalidade do Filho, ou do Pai. Os cristãos não
só professam crer no Espírito Santo, mas também são também os
receptores de Seus dons. Ele é para eles um objeto de oração. Na bênção
apostólica se impetram solenemente a graça de Cristo, o amor do Pai, e a
comunhão do Espírito Santo. Oramos ao Espírito para a comunicação
dEle mesmo a nós, para que Ele, conforme a promessa do Senhor, habite
em nós, assim como oramos a Cristo para que possamos ser os objetos
de seu imerecido amor. Por isso, exorta a não «pecar contra», a «não
resistir», nem a «entristecer» ao Espírito Santo. Ele é descrito, assim,
como uma pessoa que pode ser objeto de nossas ações; a quem podemos
agradar ou ofender; com quem podemos ter comunhão, isto é, relação
pessoal; que pode amar e ser amado; que pode dizemos «Tu» a nós; e a
quem podemos invocar em todo momento de necessidade.
3. O Espírito também sustenta relacionamento conosco, e leva a
cabo operações que ninguém senão uma pessoa pode sustentar ou levar a
cabo. Ele é nosso mestre, santificador, consolador e guia. Ele governa a
cada crente que é conduzido pelo Espírito, e a toda a Igreja. Ele nos
chama como chamou Barnabé e a Saulo, a obra do ministério, ou a
algum campo de trabalho especial. Os pastores ou bispos são feitos
supervisores pelo Espírito Santo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 706
4. No exercício desta e de outras funções, de contínuo na Bíblia são
atribuídos atos pessoais ao Espírito; isto é, atos tais que implicam
inteligência, vontade e atividade ou poder. O Espírito esquadrinha,
seleciona, revela e reprova. Com frequência lemos que «O Espírito
disse» (At 13:2; 21:11; 1Tm 4:1, etc., etc.) Isto se faz de maneira tão
constante que o Espírito aparece como um agente pessoal do princípio ao
fim das Escrituras, de maneira que Sua personalidade fica fora de toda
dúvida. A única possível questão a elucidar é se Ele é uma pessoa
distinta do Pai. Mas tampouco pode-se duvidar razoavelmente disto,
porquanto é dito que Ele é o Espírito de Deus e o Espírito que é de Deus
(ἐκ θεοῦ - ek theou); como é também distinto do Pai nas fórmulas do
batismo e da bênção; porquanto procede do Pai; e porquanto Ele é
prometido, enviado e dado pelo Pai. De maneira que confundir o Espírito
Santo com Deus faria com que as Escrituras fossem ininteligíveis.
5. Todos os elementos da personalidade, ou seja, a inteligência, a
vontade e a subsistência individual, não só estão envoltos em tudo o que
assim se revela a respeito da relação que o Espírito tem conosco e com
que sustentamos com Ele, mas são atribuídas a Ele de maneira distintiva.
Do Espírito é dito que conhece, que quer, e que age. Ele esquadrinha, ou
conhece todas as coisas, inclusive as profundezas de Deus. Ninguém
conhece as coisas de Deus senão o Espírito de Deus (1Co 2:10, 12). Ele
«realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um,
individualmente» (1Co 12:11). Sua subsistência individual está envolta
no fato de que é um agente, e que é o objeto em que incide a atividade de
outros. Se Ele pode ser amado, reverenciado e obedecido, ou ofendido, e
se pode pecar-se contra Ele, tem que ser uma pessoa.
6. As manifestações pessoais do Espírito, quando Ele desceu sobre
Cristo depois de Seu batismo, e sobre os Apóstolos no dia do
Pentecostes, envolvem necessariamente Sua subsistência pessoal. Não
era nenhum atributo de Deus, nem Sua mera eficiência, mas sim o
próprio Deus que Se manifestou na sarça ardente, no fogo e nas nuvens
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 707
no Monte Sinai, na coluna que guiou os israelitas pelo deserto, e na
glória que habitava no Tabernáculo e no Templo.
7. O povo de Deus sempre considerou o Espírito Santo como
pessoa. Esperaram nEle para receber instrução, santificação, guia e
consolação. Isto faz parte de sua religião. O cristianismo (considerado
objetivamente) não seria o que é sem este sentimento de dependência do
Espírito, e este amor e reverência por Sua pessoa. Todas as liturgias,
orações e louvores da Igreja, estão cheios de recursos e direções do
Espírito Santo. Este é um fato que não admite uma solução racional se as
Escrituras na realidade não ensinam que o Espírito é uma pessoa distinta.
A regra Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus, é sustentada pelos
protestantes, assim como pelos romanistas. Não é à autoridade do
consentimento geral como uma evidência da verdade, que os protestantes
objetam, mas sim às solicitudes apresentadas pela Igreja papal, e ao
princípio em que tal autoridade se apoia. Todos os protestantes admitem
que os verdadeiros crentes de todos os tempos e o país têm uma fé, assim
como um Deus e um só Senhor.

B. A Divindade do Espírito Santo.


A respeito desta questão houve pouca disputa na Igreja. O Espírito
apresentado na Bíblia de maneira tão proeminente como possuidor de
atributos divinos e exercendo prerrogativas divinas, que desde o quarto
século Sua verdadeira divindade nunca foi negada pelos que admitem
Sua personalidade.
1. No Antigo Testamento, tudo o que se diz de Jeová diz-se do
Espírito de Jeová; e por isso, se este último não é uma mera paráfrase do
primeiro, tem necessariamente que ser divino. As expressões Jeová
disse, e, o Espírito disse, são constantemente intercambiáveis; e dos atos
do Espírito diz-se que são os atos de Deus.
2. No Novo Testamento, a linguagem de Jeová é citado como a
linguagem do Espírito. Em Is 6:9 está escrito que Jeová disse: «Vai e
dize a este povo», etc. Esta passagem é citada da seguinte maneira por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 708
Paulo em At 28:25: «Bem falou o Espírito Santo a vossos pais, por
intermédio do profeta Isaías», etc. Em Jeremias 31:31, 33, 34 [TB], diz-
se: «Eis que vêm dias, diz Jeová, em que farei uma nova aliança com a
casa de Israel»; o qual é citado pelo Apóstolo em Hb 10:15, dizendo:
«Disto nos dá testemunho também o Espírito Santo; porquanto, após ter
dito: Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o
Senhor: Porei no seu coração as minhas leis», etc. Assim é como
constantemente a linguagem de Deus é citada como a linguagem do
Espírito Santo. Os profetas eram os mensageiros de Deus; eles
pronunciavam suas palavras, entregavam seus mandamentos,
pronunciavam suas ameaças, e anunciavam suas promessas, porque
falavam impelidos pelo Espírito Santo. Eram os órgãos de Deus, porque
eram órgãos do Espírito. Por isso, o Espírito deve ser Deus.
3. No Novo Testamento se prossegue com o mesmo modo
descritivo. Os crentes são o templo de Deus, porque o Espírito habita
neles. Ef 2:22: «No qual também vós juntamente estais sendo edificados
para habitação de Deus no Espírito». 1Co 6:19: «Acaso, não sabeis que o
vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes
da parte de Deus?» Em Rm 8:9, 10, diz-se que a habitação de Cristo é a
habitação do Espírito de Cristo, e disto é dito que é a habitação do
Espírito de Deus. Em At 5:1-4 diz-se de Ananias que tinha mentido a
Deus, porquanto tinha mentido ao Espírito Santo.
4. Nosso Senhor e Seus Apóstolos falam constantemente do
Espírito Santo como possuidor de todas as perfeições divinas. Cristo diz:
«Tudo pecado e blasfêmia, será perdoado aos homens; mas a blasfêmia
contra o Espírito não lhes será perdoada» (Mt 12:31). Assim, o pecado
imperdoável é falar contra o Espírito Santo. Esta não poderia ser exceto
se o Espírito Santo for Deus. O Apóstolo diz, em 1Co 2:10, 11, que o
Espírito conhece tudo, inclusive as profundezas (os mais secretos
propósitos) de Deus. Este conhecimento é proporcional ao conhecimento
de Deus. Ele conhece as coisas de Deus como o espírito de um homem
conhece as coisas de um homem. A consciência de Deus é a consciência
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 709
do Espírito. O Salmista nos ensina que o Espírito é onipresente e
eficiente em todas as partes. «Para onde me irei do teu espírito? Ou para
onde fugirei da tua presença?», pergunta ele (Sl 139:7, TB). A presença
do Espírito é a presença de Deus. A mesma ideia a expressa o profeta
quando diz: «Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não
o veja? —diz o SENHOR; porventura, não encho eu os céus e a terra?»
(Jr 23:24).
5. As obras do Espírito são as obras de Deus. Ele fez o mundo (Gn
1:2). Ele regenera a alma: nascer do Espírito é nascer de Deus. Ele é a
fonte de todo conhecimento; o doador da inspiração; o mestre, o guia, o
santificador e o consolador da Igreja em todas as idades. Ele dá forma
aos nossos corpos; Ele formou o corpo de Cristo, como morada
apropriada para a plenitude da Deidade. E Ele vivificará nossos corpos
mortais (Rm 8:11).
6. Ele é, portanto, apresentado nas Escrituras como o objeto
apropriado de adoração, não só na fórmula do batismo e na bênção
apostólica, que traz a doutrina da Trindade à constante lembrança como
a verdade fundamental de nossa religião, mas também na constante
demanda de que esperemos nEle e que dependamos dEle para todo bem
espiritual, e que O reverenciemos e Lhe obedeçamos como nosso mestre
e santificador divino.

A relação do Espírito com o Pai e o Filho.


A relação do Espírito com as outras pessoas da Trindade já foi
anunciada anteriormente. (1) É o mesmo em substância e igual em poder
e glória. (2) É subordinado ao Pai e ao Filho, quanto a Seu modo de
subsistência e operação, tal como se diz que é do Pai e do Filho; é
enviado por Eles, e Eles operam por meio dEle. (3) Tem a mesma
relação com o Pai e com o Filho; porquanto é dito que é de um assim
como do outro, e Ele é dado pelo Filho assim como pelo Pai. (4) sua
relação eterna com as outras pessoas da Trindade é indicada pela palavra
Espírito, e pela menção de que Ele é ἐκ τοῖ θεοῦ - ek toi theou,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 710
procedente de Deus, isto é, Deus é a fonte da qual se diz que procede o
Espírito.

§ 2. O ofício do Espírito Santo

A. Em a Natureza

A doutrina geral das Escrituras a respeito disso é que o Espírito é o


agente executivo da Deidade. Tudo o que Deus o faz, Ele o faz pelo
Espírito. Por isso que no credo de Constantinopla, adotado pela Igreja
universal, diz-se que é τὸ Πνεῦμα, τὸ κύριον, τὸ ζωοποιόν (to Pneuma,
to kurion, to zöopoion). Ele é a fonte imediata de toda vida. Inclusive no
mundo externo o Espírito está presente em todas as partes e ativo em
todas as partes. A matéria não é inteligente. Tem suas propriedades
peculiares, que agem cegamente com base em leis estabelecidas. Assim,
a inteligência que se faz patente em estruturas vegetais e animais não
deve ser atribuída à matéria, mas sim ao onipresente Espírito de Deus.
Foi Ele que se moveu sobre as águas, e reduziu o caos a ordem. Foi Ele
quem adornou os céus. É Ele quem faz crescer a erva. Diz o Salmista de
todos os seres viventes: «Se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes
cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito,
eles são criados, e, assim, renovas a face da terra» (Sl 104:29, 30).
Comparar Is 32:14, 15. Jó, falando de sua vida corporal, diz: «O Espírito
de Deus me fez» (Jó 33:4). E o Salmista, depois de descrever a
onipresença do Espírito de Deus, atribui à Sua ação o maravilhoso
mecanismo do corpo humano: «As tuas obras são admiráveis .... os meus
ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e
entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos me viram a
substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus
dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia
ainda » (Sl 139:14-16). Cipriano (ou o autor do Tratado “De Spiritu
Sancto”, incluído em suas obras) diz: “Hic Spiritus Sanctus ab ipso
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 711
mundi initio aquis legitur superfusus; non materialibus aquis quasi
vehiculo egens, quas potius ipse ferebat et complectentibus firmamentum
dabat con gruum motum et limitem præfinitum. . . . [Hic est] spiritus
vitæ cujus vivificus calor animat omnia et fovet et provehit et foecundat.
Hic Spiritus Sanctus omnium viventium anima, ita largitate sua se
omnibus abundanter infundit, ut habeant omnia rationabilia et
irrationabilia secundum genus suum ex eo quod sunt et quod in suo
ordine suæ naturæ competentia agunt. Non quod ipse sit substantialis
anima singulis, sed in se singulariter manens, de plenitudine sua
distributor magnificus proprias efficientias singulis dividit et largitur; et
quasi sol omnia calefaciens, subjecta omnia nutrit, et absque ulla sui
diminutione, integritatem suam de inexhausta abundantia, quod satis est,
et sufficit omnibus, commodat et impartit.” 354

O Espírito, a fonte de toda vida intelectual.


O Espírito é também representado como a fonte de toda vida
intelectual. Quando o homem foi criado diz-se que Deus «soprou nas
narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente» (Gn
2:7). Jó 32:8 diz que a inspiração do Onipotente o faz entender, isto é,
dá-lhe uma natureza racional, o que ele explica dizendo: «Que nos
ensina mais do que aos animais da terra e nos faz mais sábios do que as
aves dos céus» (Jó 35:11). As Escrituras deste modo atribuem a Ele de
maneira especial todos os dons especiais ou extraordinários. Assim diz-
se de Bezalel: «Eis que chamei pelo nome a Bezalel, filho de Uri, filho
de Hur, da tribo de Judá, e o enchi do Espírito de Deus, de habilidade, de
inteligência e de conhecimento, em todo artifício, para elaborar desenhos
e trabalhar em ouro, em prata, em bronze» (Êx 31:2, 3, 4). Por seu
Espírito Deus deu a Moisés a sabedoria necessária para seus altos
deveres, e quando lhe mandou que pusesse parte de sua carga sobre os
setenta anciãos, falou-se: «Tirarei do Espírito que está sobre ti e o porei

354
Works, edit. Bremæ, 1690, on p. 61 of the second set in the Opuscula.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 712
sobre eles» (Nm 11:17). Josué foi designado para suceder a Moisés,
porque o Espírito estava nele (Nm 27:18). De maneira semelhante, os
Juízes que eram suscitados ocasionalmente, quando surgia uma
emergência, eram dotados pelo Espírito para sua peculiar obra, quer
como governantes, quer como guerreiros. De Otniel é dito que «Veio
sobre ele o Espírito do SENHOR, e ele julgou a Israel; saiu à peleja» (Jz
3:10). Do mesmo modo diz-se que o Espírito de Deus veio sobre Gideão,
e sobre Jefté e Sansão. Quando Saul ofendeu a Deus, diz-se que o
Espírito de Deus Se apartou dele (1Sm 16:14). Quando Samuel ungiu a
Davi, «daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de
Davi» (1Sm 16:13). Da mesma maneira, sob a nova dispensação o
Espírito é apresentado não só como o autor de dons milagrosos, mas
também como o doador das qualificações para ensinar e reger na Igreja.
Todas estas operações são independentes das influências santificadoras
do Espírito. Quando o Espírito veio sobre Sansão ou sobre Saul, não foi
para fazê-los santos, senão para dotá-los com um poder físico e
intelectual extraordinário; e quando se diz que Ele Se apartou deles,
significa que aqueles extraordinários dons lhes foram retirados.

B. O ofício do Espírito na obra da Redenção.

Com relação ao ofício do Espírito na obra da redenção, as


Escrituras ensinam: —
1. Que ele formou o corpo e dotou a alma humana de Cristo com
todas as qualificações para sua obra. À Virgem Maria foi dito: «Descerá
sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua
sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado
Filho de Deus» (Lc 1:35). O profeta Isaías predisse que o Messias seria
dotado plenamente de todos os dons espirituais. «Eis aqui o meu servo, a
quem sustenho; o meu escolhido, em quem a minha alma se compraz;
pus sobre ele o meu Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios»
(Is 42:1). «Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 713
renovo. Repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o Espírito de
sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o
Espírito de conhecimento e de temor do SENHOR» (Is 11:1, 2). Quando
nosso Senhor apareceu na terra, diz-se que o Espírito foi dado sem
medida (Jo 3:34). Então deu João testemunho, dizendo: «Vi o Espírito
descer do céu como pomba e pousar sobre ele» (Jo 1:32). Por isso, dEle
é dito que foi cheio do Espírito Santo.
2. Que o Espírito é o revelador de toda verdade divina. As doutrinas
da Bíblia são chamadas as coisas do Espírito. Com relação aos escritores
do Antigo Testamento, diz-se que falaram impelidos pelo Espírito Santo.
A linguagem de Miqueias é aplicável aos profetas: «Eu, porém, estou
cheio do poder do Espírito do SENHOR, cheio de juízo e de força, para
declarar a Jacó a sua transgressão e a Israel, o seu pecado» (Mq 3:8). O
que Davi disse afirma-se que foi o Espírito Santo quem lhe disse. Os
escritores do Novo Testamento foram de maneira semelhante os órgãos
do Espírito. As doutrinas que Paulo ensinava não as recebeu dos homens,
«mas Deus», diz ele, «no-lo revelou pelo Espírito» (1Co 2:10). O
Espírito conduziu também a enunciação destas verdades, porque,
acrescenta, «Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas
espirituais com espirituais» (πνευματικοῖς πνευματικὰ συγκρίνοντες -
pneumatikois pneumatika sunkrinontes). Por isso, toda a Bíblia deve ser
atribuída ao Espírito como seu autor.
3. O Espírito não apenas revela assim a verdade divina, tendo
conduzido Infalivelmente a homens santos na antiguidade em sua
redação, mas também Ele em todo lugar a acompanha com Seu poder.
Toda verdade é aplicada sobre o coração e a consciência com maior ou
menor poder pelo Espírito Santo, sempre que esta verdade é conhecida.
É a esta influência onipresente que devemos o que tem de moralidade e
de ordem no mundo. Mas à parte desta influência geral, que é geralmente
chamada graça comum, o Espírito ilumina de maneira especial as mentes
dos filhos de Deus, para que possam conhecer as coisas que lhes são
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 714
livremente dadas (ou reveladas a eles) por Deus. O homem natural não
as recebe, nem pode conhecê-las, porque se devem discernir
espiritualmente. Por isso, todos os crentes são chamados espirituais
(πνευματικοί - pneumatikoi), porque são assim iluminados e guiados
pelo Espírito.
4. É o ofício especial do Espírito convencer o mundo do pecado;
revelar a Cristo, regenerar a alma, guiar homens ao exercício da fé e do
arrependimento; habitar naqueles a quem assim renova, como um
princípio de uma vida nova e divina. Por esta morada do Espírito os
crentes são unidos a Cristo, e uns com os outros, de maneira que
constituem um corpo. Este é o fundamento da comunhão dos santos,
fazendo deles um em fé, um em amor, um em sua vida interior, e um em
suas esperanças e destino final.
5. O Espírito chama também os homens ao ministério na Igreja, e os
dota com as necessárias qualidades para o exercício eficaz de suas
funções. O ofício da Igreja, neste assunto, é simplesmente o de
determinar e verificar a chamada do Espírito. Assim, o Espírito Santo é o
autor imediato de toda verdade, de toda santidade, de toda consolação,
de toda autoridade, e de toda eficiência nos filhos de Deus
individualmente, e na Igreja coletivamente.

§ 3. História da doutrina a respeito do Espírito Santo.

Durante o período Ante-Niceno, a Igreja cria a respeito do Espírito


Santo o que estava revelado na superfície das Escrituras e o que estava
envolto na experiência religiosa de todos os cristãos. Para eles há um
Deus, o Pai, cujo favor tinham perdido devido ao pecado, e com quem
devem reconciliar-se; um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de
Deus, por meio de quem se efetua a reconciliação; e um Santo Espírito,
por quem eles são feitos próximos a Deus, por meio de Cristo. Isto criam
todos os cristãos, tal como o professavam em seu batismo, e na repetição
e recepção da bênção apostólica. Com esta fé singela subjazendo e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 715
sustentando a vida da Igreja coexistia entre os teólogos uma escuridão,
indefinição e inconsistência argumentativa, especialmente com
referência à natureza e ao ofício do Espírito Santo. Isto não deveria
surpreender-nos, porque nas próprias Escrituras frequentemente se
atribui a mesma obra a Deus e ao Espírito de Deus, o que levou em
algumas ocasiões a supor que estes termos expressavam uma e a mesma
coisa; como o espírito do homem é o próprio homem. Também nas
Escrituras os termos Palavra e Sopro (ou Espírito) são com frequência
intercambiáveis; e o que se diz num lugar que foi feito pela Palavra, diz-
se em outro que é feito pelo Espírito. O Logos é apresentado como a vida
do mundo e a fonte de todo conhecimento, e entretanto diz-se o mesmo
do Espírito. Paulo declara num lugar (Gl 1:12) que ele recebeu as
doutrinas que ensinava por revelação de Jesus Cristo; em outro lugar
(1Co 2:10), que lhe foram ensinadas pelo Espírito. Confundidos por isso,
alguns dos pais identificaram o Filho e o Espírito. Inclusive Tertuliano
diz, numa passagem: «Spiritus substantia est Sermonis, et Sermo
operatio Spiritus, et duo unum sunt.» 355 Finalmente, como está claro
pelas Escrituras que o Espírito é do Filho, como o Filho é do Pai (sendo
a diferença entre geração e processão perfeitamente inescrutável), todos
os arianos e semi-arianos, que ensinavam que o Filho tinha sido criado
pelo Pai, mantinham que o Espírito tinha sido criado pelo Filho. Isto
suscitou tanta controvérsia e agitação que foram convocados primeiro o
Concílio de Niceia, o 325 d.C., e logo o de Constantinopla, o 381 d.C.,
para emitir uma declaração satisfatória da doutrina escriturística a
respeito desta questão. No chamado Credo dos Apóstolos, que é tão
antigo que Rufino e Ambrósio o atribuíam aos próprios apóstolos, diz-se
simplesmente: «Creio no Espírito Santo». As mesmas palavras sem
adições são repetidas no Credo de Niceia, mas no Credo de
Constantinopla se acrescenta: «Creio no Espírito Santo, o divino (τὸ
κύριον - to kurion), o doador da vida, que procede do Pai, que deve ser

355
Adversus Praxean, 15, Works, edit. Basle, 1562, p. 426.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 716
adorado e glorificado com o Pai e o Filho, e que falou por meio dos
profetas». No chamado Credo Atanasiano diz-se que o Espírito é
consubstancial com o Pai e o Filho; que é incriado, eterno e onipotente,
igual em majestade e glória, e que procede do Pai e do Filho. Estes
credos são católicos, adotados por toda a Igreja. Desde que foram
adotados não houve diversidade de fé nesta questão entre os
reconhecidos como cristãos.
Desde o Concílio de Constantinopla os que negaram a comum
doutrina da Igreja, sejam Socinianos, Arianos ou Sabelianos, consideram
o Espírito Santo não como uma criatura, mas sim como o poder de Deus:
isto é, a eficiência divina manifestada. Os modernos teólogos filosóficos
da Alemanha não diferem essencialmente deste ponto de vista. De
Wette, por exemplo, diz que o Espírito é Deus como revelado e operando
na Natureza; Schleiermacher diz que o termo designa a Deus como
operando na Igreja, isto é, «Der Gemeingeist der Kirche». Mas isto é só
um nome. Para Schleiermacher, Deus é só a unidade da causalidade
manifestada no mundo. Esta causalidade contemplada em Cristo
podemos chamá-la Filho, e vista na Igreja podemos chamá-la Espírito.
Deus é meramente causa, e o homem um efeito fugaz. Felizmente, a
teologia de Schleiermacher e a religião de Schleiermacher eram tão
diferentes como o são as especulações e a fé diária do idealista.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 717
CAPÍTULO IX
OS DECRETOS DE DEUS

§ 1. A natureza dos decretos divinos.

DEVE-SE lembrar que teologia não é filosofia. Não pretende


descobrir a verdade nem conciliar o que ensina como verdadeiro com
todas as outras verdades. Seu lugar é simplesmente declarar o que Deus
revelou em Sua palavra, e vindicar estas declarações até onde seja
possível diante de equívocos e objeções. E é especialmente para ter em
conta este limitado e humilde ofício da teologia quando passamos a falar
dos atos e propósitos de Deus. «Ninguém conhece as coisas de Deus,
senão o Espírito de Deus» (1Co 2:11). Por isso, ao tratar dos decretos de
Deus, tudo o que se propõe é simplesmente enunciar o que o Espírito
considerou oportuno declarar a respeito desta questão.
«Os decretos de Deus são Seu propósito eterno, segundo o conselho
de Sua vontade, pelos quais, para sua própria glória, Ele ordenou
previamente tudo o que chega a acontecer». 356 Conforme esta
declaração: (1) O fim ou causa última contemplada em todos os decretos
de Deus é Sua própria glória. (2) Todos são reduzíveis a um propósito
eterno. (3) São livres e soberanos, determinados pelo conselho de Sua
própria vontade. (4) Abrangem todos os acontecimentos.

A. A glória de Deus é a causa final de todos os Seus decretos.

A causa final de todos os propósitos de Deus é Sua própria glória.


Esta é frequentemente declarada como o fim de todas as coisas. «Tu és
digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder,
porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a
existir e foram criadas» (Ap 4:11). De todas as coisas diz-se que são não

356
Westminster Shorter Catechism, 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 718
apenas de e por meio de Deus, mas também para Ele. Ele é o princípio e
o fim. Os céus declaram Sua glória; este é o propósito pelo qual foram
feitos. Deus anuncia com frequência Sua determinação de dar a conhecer
Sua glória. «Porém, tão certo como eu vivo, e como toda a terra se
encherá da glória do SENHOR» (Nm 14:21). Isto é mencionado como o
objetivo último de todas as dispensações de Sua providência, seja
benfeitora, seja punitiva. «Por amor de mim, por amor de mim, é que
faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória,
não a dou a outrem» (Is 48:11). «Por amor do meu nome, para que não
fosse profanado diante das nações» (Ez 20:9). De maneira semelhante,
afirma-se que todo o plano de redenção e a dispensação de sua graça é
designado para revelar a glória de Deus (1Co 1:26-31; Ef 2:8-10). Este é
o fim que nosso Senhor Se propôs a Si mesmo. Ele fez tudo para a glória
de Deus; e é para este fim que se pede a Seus seguidores que vivam e
ajam. Como Deus é infinito, e todas as criaturas são nada em
comparação com Ele, está claro que a revelação de Sua natureza e
perfeições tem que ser o fim supremo concebível de todas as coisas, e a
mais condizente a alcançar todos os outros bons fins subordinados. Mas
a ordem e a verdade dependem de pôr todas as coisas em suas corretas
relações. Se fizermos do bem da criatura o fim supremo de todas as
obras de Deus, então subordinamos Deus à criatura, e a consequência é
uma confusão sem fim e um errar inevitável. É característico da Bíblia
pôr a Deus em primeiro lugar, e o bem da criação em segundo. Este é
também o rasgo característico do Agostinismo em distinção de todas as
outras formas de doutrina. E quando os Protestantes se dividiram na
época da Reforma, foi principalmente neste ponto. As igrejas Luteranas
e Reformadas se distinguem em tudo o que caracteriza os seus sistemas
teológicos pelo fato de que as últimas admitem a supremacia e soberania
de Deus nas operações de Sua providência e graça para determinar tudo
para Sua própria glória, enquanto que as primeiras tendem mais ou
menos ao errar em restringir a liberdade de ação de Deus pelos presuntos
poderes e prerrogativas do homem. A Bíblia, Agostinho e os Reformados
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 719
dão uma resposta a todas as perguntas como a que segue: Por que criou
Deus o mundo? Por que permitiu Deus que tivesse lugar o pecado? Por
que se proveu salvação para os homens, mas não para os anjos? Por que
o conhecimento desta salvação esteve durante tanto tempo limitado a um
só povo? Por que entre os que ouvem o evangelho, alguns o recebem e
outros o rejeitam? A estas e outras perguntas similares a resposta é: Não
devido ao fato de que a felicidade das criaturas pudesse ser assegurada
em maior grau mediante a admissão do pecado e da miséria que por sua
total exclusão. Alguns homens são salvos e outros perecem, não devido
ao fato de que alguns por sua própria vontade creem, e outros não creem,
mas simplesmente devido ao fato de que: Assim pareceu bem diante de
Deus. Seja o que for que Ele faça ou permita que se faça, é feito ou
permitido para a mais perfeita revelação de Sua natureza e perfeições.
Como o conhecimento de Deus é a base e soma de todo bem, segue-se
como natural que quanto mais perfeitamente seja Deus conhecido, tanto
mais plenamente se promove o mais alto bem (não meramente nem
necessariamente a maior felicidade) do universo inteligente. Mas este é
um efeito subordinado, não o fim principal. Por isso, está de acordo com
todo o espírito e os ensinos da Bíblia, e com o caráter essencial do
Agostinismo, que nossas normas façam da glória de Deus o fim de todos
os Seus decretos.

B. Os Decretos são reduzíveis a um propósito.

O segundo ponto incluído nesta doutrina é que os decretos de Deus


são todos eles reduzíveis a um propósito. Por isto se significa que com
base no indefinido número de sistemas ou séries de eventos possíveis
presentes perante a mente divina, Deus determinou sobre o futuro ou
acontecimento real da ordem existente de coisas, com todas as suas
mudanças, tanto os diminutos como os grandes, desde o começo do
tempo até toda a eternidade. Por isso, a razão pela qual acontece
qualquer coisa, ou que passa da categoria do possível ao existente, é que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 720
Deus assim o decretou. Por isso, os decretos de Deus não são muitos,
senão um propósito. Não se vão formando sucessivamente conforme
aparecem emergências, e sim todos formam parte de um plano que tudo
abrange. Esta postura a respeito desta questão é necessária pela natureza
de um Ser imensamente perfeito. É inconsequente com a ideia de uma
perfeição absoluta que os propósitos de Deus sejam sucessivos, ou que
Ele se proponha algo que não tivesse já originalmente intenção de fazer;
ou que uma parte de Seu plano seja independente de outras partes; é um
plano, e por isso, um propósito. Entretanto, como este único propósito
inclui um número indefinido dos acontecimentos, e como estes
acontecimentos estão mutuamente relacionados, falamos dos decretos de
Deus como muitos, e como tendo uma certa ordem. Consequentemente,
a Escritura fala dos juízos, conselhos ou propósitos de Deus, no plural, e
também de que Ele determina um acontecimento por causa de outro.
Quando nós contemplamos um grande edifício ou uma máquina
complicada, percebemos no ato a multiplicidade de suas partes, e suas
relações mútuas. Nossa concepção do edifício ou da máquina é uma, e
entretanto inclui muitas distintas percepções, e a apreensão de suas
relações mútuas. Assim também na mente do arquiteto ou do engenheiro
o todo é uma ideia, embora se propõe muitas coisas, e uma com
referência a outra. Podemos, portanto, em certa medida, compreender
como o imenso esquema da criação, providência e redenção encontra-se
na mente divina como um só propósito, embora incluindo uma infinita
multiplicidade de causas e efeitos.

C. Os Decretos de Deus são eternos.

O fato de que os decretos de Deus são eternos segue-se


necessariamente da perfeição do divino Ser. Não se pode supor que
tenha num momento determinado planos ou propósitos que não tivesse
em outro. Vê o fim desde o começo; as distinções temporais não têm
referência Àquele que habita na eternidade. Por isso, as Escrituras
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 721
sempre falam dos acontecimentos no tempo como revelações de um
propósito formado na eternidade. A salvação dos homens, por exemplo,
diz-se que é «segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo
Jesus» (Ef 3:11). O que se revela no tempo esteve escondido durante
épocas, isto é, desde a eternidade, na mente de Deus (Ef 3:9). Os crentes
foram escolhidos em Cristo antes da fundação do mundo (Ef 1:4).
«Quem nos salvou e chamou com chamada santa, não conforme a nossas
obras, mas sim segundo o propósito dele e a graça que foi dada em
Cristo Jesus πρὸ χρόνων αἰωνίων - pro chronon aionion, antes dos
tempos eternos» (2Tm 1:9). Como sacrifício Cristo foi «conhecido, com
efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos
tempos, por amor de vós que, por meio dele, tendes fé em Deus» (1Pe
1:20, 21; Rm 11:33-36; At 2:23). Assim é como as Escrituras o
apresentam constantemente. A história, em todos os seus detalhes,
inclusive nos mais minuciosos, é simplesmente o desenvolvimento dos
eternos propósitos de Deus. Não constitui objeção a esta doutrina que as
Escrituras frequentemente apresentem um propósito de Deus como
conseguinte a outro, ou que falem de Seus propósitos como
determinados pela conduta dos homens. A linguagem das Escrituras está
baseada nas verdades aparentes; falam, como os homens sempre o
fazem, de como as coisas se manifestam, não como eles mesmos sabem
ou creem que são. Falamos dos céus côncavos, ou dos sólidos
fundamentos dos céus, embora sabemos que não é côncavo, e que não se
baseia em nenhum fundamento. Assim, a Bíblia fala dos decretos de
Deus como aparecem perante nós em sua revelação sucessiva e em suas
mútuas relações, e não como existem desde a eternidade na mente
divina. Tampouco existe alguma força na objeção de que o agente deve
ser antes de seus atos. O sol não é antes de seu brilho, nem a mente antes
do pensamento, nem a vida antes da consciência, nem Deus antes de
Seus propósitos. Estas objeções se baseiam na hipótese de que Deus está
sujeito às limitações de tempo. Para Ele não passou nem futuro, nem
antes nem depois.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 722
D. Os Decretos de Deus são imutáveis.

A mudança de propósito surge da carência de sabedoria ou da


carência de poder. Como Deus é infinito em sabedoria e poder, não pode
haver para Ele emergências imprevistas nem meios inadequados, e nada
pode resistir à execução de Sua intenção original. Por isso, para Ele não
existem causas de mudança. Para Deus, como a Escritura ensina, «não
pode existir variação ou sombra de mudança» (Tg 1:17). «O conselho do
SENHOR dura para sempre; os desígnios do seu coração, por todas as
gerações» (Sl 33:11). «Jurou o SENHOR dos Exércitos, dizendo: Como
pensei, assim sucederá, e, como determinei, assim se efetuará» (Is
14:24). «Eu sou Deus ... que desde o princípio anuncio o que há de
acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que
digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade» (Is
46:9, 10). A uniformidade das leis da natureza é uma constante revelação
da imutabilidade de Deus. São agora o que eram no princípio do tempo,
e são as mesmas em todas as partes do universo. E não menos estáveis
são as leis de regulam as operações da razão e da consciência. Todo o
governo de Deus, como Deus da natureza e como governador moral,
repousa na imutabilidade de Seus conselhos.

E. Os Decretos de Deus são livres.

Isto inclui três ideias: —


1. São decisões racionais, baseadas em razões suficientes. Isto se
opõe à doutrina da necessidade, que supõe que Deus age por uma mera
necessidade natural, e que tudo o que acontece deve-se à lei do
desenvolvimento ou da manifestação própria do divino ser. Isto reduz
Deus a uma mera natura naturans ou vis formativa, agindo sem
desígnio. A verdadeira doutrina opõe-se deste modo à ideia de que a
única causa dos acontecimentos é uma força intelectual análoga ao
instinto de animais irracionais. Os atos executados sob a condução dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 723
instintos não são atos livres, porque a liberdade é uma libentia
racionalis, isto é, uma espontaneidade determinada pela razão. Por isso,
envolve-se na ideia de Deus como ser racional e pessoal que Seus
decretos sejam livres. Ele era livre para criar ou para não criar; para criar
um mundo como o presente, ou outro meramente diferente. Ele é livre
para agir ou para não agir, e quando o propõe não se deve a uma
necessidade cega, mas segundo o conselho de Sua própria vontade.
2. Nossos propósitos são livres, inclusive quando são formados sob
a influência de outras mentes. Pode persuadir-nos, ou levar mediante
raciocínios, a tomar certos cursos de ação, ou nos pode induzir a formar
nossos desígnios em consideração aos desejos ou interesses de outros.
Deus está imensamente exaltado acima de qualquer influência externa.
«Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu
conselheiro?» (Rm 11:34). «Eis que Deus se mostra grande em seu
poder! Quem é mestre como ele? Quem lhe prescreveu o seu caminho?»
(Jó 36:22, 23). «Quem guiou o Espírito do SENHOR? Ou, como seu
conselheiro, o ensinou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe
desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do juízo, e lhe ensinou
sabedoria, e lhe mostrou o caminho de entendimento?» (Is 40:13, 14).
«Quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir?» (1Co 2:16).
Deus adotou o plano do universo sobre a base de Seu beneplácito, para
Sua própria gloria, e cada parte subordinada do mesmo com referência
ao todo. Seus decretos são livres, por isso, num sentido muito mais
elevado que aquele em que os propósitos comuns dos homens são livres.
Foram formados puramente no conselho de Sua própria vontade. Ele Se
propõe e faz o que Lhe parece bem aos Seus olhos.
3. Os decretos de Deus são livres no sentido de ser absolutos ou
soberanos. O significado desta proposição é expresso negativamente
dizendo que os decretos de Deus em nenhum caso são condicionais. O
acontecimento decretado é suspenso sob uma condição, mas o propósito
de Deus não o é. É inconsequente com a natureza de Deus assumir
expectativa ou indecisão por sua vez. Se Ele não determinou de maneira
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 724
absoluta o que deve ocorrer, mas espera até que se cumpra ou não uma
condição indeterminável, então Seus decretos não podem ser nem
eternos nem imutáveis. Ele propõe uma coisa se a condição se cumpriu e
outra se não se cumprir, e assim tudo deve ser incerto, não só na mente
divina, mas também no evento. A Escritura, portanto, ensina que Ele faz
tudo o que Lhe agrada (Sl 115:3). Ele faz Seu beneplácito na hoste
celestial e entre os moradores da terra (Dn 4:35; Sl 135:6). Todas as
coisas são dEle, por meio dEle e para Ele (Rm 11:36). Ensina-se de
maneira expressa que os propósitos de Deus, inclusive quanto ao destino
futuro dos homens, está baseado em Seu beneplácito. Porquanto todos
pecaram, e ficaram destituídos da glória de Deus, Ele tem misericórdia
de quem tem misericórdia. Não é segundo nossas obras, mas por Sua
graça que nos salva. É dele que estamos em Cristo Jesus, para que aquele
que se gloria, glorie-se no Senhor (Mt 11:26; Rm 8:29,30; 9:15-18; Ef
1:5, etc., etc.)

F. Os decretos de Deus são certamente eficazes.

Os decretos de Deus são certamente eficazes, isto é, asseguram o


cumprimento do que Ele decreta. Tudo o que Deus ordene previamente
deve certamente suceder. A distinção entre os decretos de Deus como
eficientes (ou eficazes) e como permissivos não tem relação com a
certeza dos acontecimentos. Todos os acontecimentos abrangidos no
propósito de Deus são igualmente certos, seja que Ele tenha determinado
levá-los a cabo por Seu próprio poder, ou simplesmente que permita que
sucedam por ação de Suas criaturas. Não era coisa menos certa desde a
eternidade que Satanás tentaria os nossos primeiros pais, e que cairiam,
que o fato de que Deus enviaria o Seu Filho para morrer pelos pecadores.
A distinção em questão tem referência só à relação que os
acontecimentos têm com a eficiência de Deus. Algumas coisas se propõe
levá-las a cabo; outras, decreta permitir que sejam levadas a cabo. Ele
faz o bem; Ele permite o mal. Ele é o autor do primeiro, mas não do
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 725
segundo. Com esta explicação, a proposição de que os decretos de Deus
são certamente eficazes, ou que faz seguros os acontecimentos a que se
referem, mantém-se. Isto se demonstra: —
1. Pela perfeição de Deus, que proíbe que se atribuam a Ele
propósitos incertos quanto a seu cumprimento. Nenhum homem deixa de
levar a cabo o que se propõe, exceto pela falta de sabedoria ou de poder
para alcançar o fim proposto, ou por alguma vacilação de sua própria
mente. Supor que o que Deus decreta deixa de cumprir-se implicaria
reduzir a Deus ao nível de Suas criaturas.
2. Pela unidade do plano de Deus. Se este plano exclui todos os
acontecimentos, todos os acontecimentos têm uma mútua relação e
dependência. Se uma parte fracassar, o todo pode fracassar ou ver-se
imerso em confusão.
3. Pela evidente concatenação de acontecimentos no progresso da
história, que demonstra que todas as coisas estão intimamente
relacionadas, com frequência dependendo os acontecimentos mais
importantes dos mais corriqueiros, o que mostra que o todo deve estar
incluído no plano de Deus.
4. Do governo providencial e moral de Deus. Não poderia haver
certeza em nenhuma de ambas as coisas se os decretos de Deus não
fossem eficazes. Não poderia haver certeza de que se cumprisse
nenhuma profecia, promessa ou ameaça divinas. Desta maneira se
perderia toda a base para a confiança em Deus, e o acaso e não Deus
deveria ser o árbitro de todos os acontecimentos. As Escrituras ensinam
esta doutrina de uma maneira diversa e constante: (a) Mediante todas
aquelas passagens que enunciam a imutabilidade e soberania dos
decretos divinos. (b) Pelas que afirmam que Ele determina os limites de
nossa morada, que nossos dias estão todos contados, e que nem ainda um
só cabelo de nossas cabeças pode cair sem que Ele o saiba. (c) Por
aquelas que declaram que nada pode rebater Seus desígnios. «Porque o
SENHOR dos Exércitos o determinou; quem, pois, o invalidará? A sua
mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?» (Is 14:27). «Agindo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 726
eu, quem o impedirá?» (Is 43:13) (d) Pelas que ensinam doutrinas que
necessariamente supõem a certeza de todos os decretos de Deus. A
totalidade do plano da redenção repousa sobre este fundamento. É
inconcebível que Deus dispusesse um plano assim, e que não assegurasse
sua execução, e que Ele enviasse o Seu Filho ao mundo e deixasse
indetermináveis as consequências daquela infinita condescendência. Por
isso, é doutrina da razão, assim como das Escrituras, que Deus tem um
plano ou fim para o qual o universo foi criado, que a execução deste
plano não está deixado ao acaso de contingências, e que tudo o que está
incluído nos decretos de Deus deve certamente acontecer.

G. Os decretos de Deus se relacionam com todos os


acontecimentos.

Deus ordena antecipadamente tudo o que vem a acontecer. Alguns


acontecimentos são necessários, isto é, são provocados pela ação de
causas necessárias; outros são contingentes ou livres, ou são ações de
agentes livres; alguns são moralmente bons, outros são pecaminosos. A
doutrina da Bíblia é que todos os acontecimentos, sejam necessários ou
contingentes, bons ou pecaminosos, estão incluídos no propósito de
Deus, e que seu futuro ou acontecimento real resulta absolutamente
certo. Isto é evidente: —
1. Pela unidade dos propósitos divinos. Esta unidade supõe que todo
o esquema da criação, providência e redenção tinha ficado fixado pelo
decreto divino. Estava já formado desde os séculos na mente divina, e se
vai desenvolvendo gradualmente no curso dos acontecimentos. Por isso,
é inconsequente com esta sublime e escriturística descrição supor que
alguma classe de acontecimentos reais, e especialmente aquela classe
que é mais influente e importante, fique omitida do propósito divino.
Aquele que desenha uma máquina, desenha todas as suas partes. O
general que planeja uma campanha, inclui todos os movimentos de cada
corpo de exército, de cada divisão e brigada em seu exército, e sua
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 727
previsão fosse perfeita e seu controle dos acontecimentos fosse absoluto,
sua prévia ordem incluiria cada ação de cada soldado. Tudo o que está
ausente em sua previsão deve-se à limitação da capacidade humana.
Como Deus é infinito em conhecimento e recursos, Seu propósito tem
que incluir todos os acontecimentos.
2. Por isso, é inconsistente com a perfeição de Deus supor que Ele
não poderia traçar um plano compreendendo todos os acontecimentos,
ou que não poderia levá-lo a bom fim, sem fazer violência à natureza de
Suas criaturas.
3. A universalidade do decreto segue-se do domínio universal de
Deus. Faça o que fizer, certamente Se propôs fazê-lo. Seja o que for que
Ele permita que ocorra, certamente Se propôs permiti-lo. Nada pode
acontecer que não tenha sido previsto, e se foi previsto, deve ter sido
disposto assim. Como as Escrituras ensinam que o controle providencial
de Deus se estende a todos os acontecimentos, inclusive os menores,
ensinam com isso mesmo que Seus decretos são igualmente inclusivos.
4. Outro argumento se deriva da certeza do governo divino. Como
todos os acontecimentos estão mais ou menos conectados, e como Deus
trabalha através de meios, se Deus não determinar os meios assim como
o acontecimento, toda certeza a respeito do próprio acontecimento ficaria
destruída. Ao determinar a redenção do homem, determinou com isso
mesmo a missão, encarnação, padecimentos, morte e ressurreição de Seu
Filho, o dom do Espírito, a fé, arrependimento e perseverança de todo
Seu povo. A predição dos acontecimentos futuros, que com frequência
dependem dos acontecimentos mais fortuitos, ou que incluem aqueles
que nos parecem imponderáveis, demonstra que a certeza da
administração divina repousa sobre a prévia ordenação de Deus que se
estende a todos os acontecimentos, tanto grandes como pequenos.

As Escrituras ensinam de várias maneiras que Deus ordena


antecipadamente tudo o que sucede.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 728
1. Ensinam que Deus opera todas as coisas segundo o conselho de
Sua vontade. Nada há que limite as palavras «todas as coisas», e por isso
devem ser tomadas em sua mais plena extensão.
2. Declara-se de maneira expressa que os acontecimentos fortuitos,
isto é, os acontecimentos que dependem de causas tão sutis e tão rápidas
na operação para evitar nossa observação, estão predeterminados; como
a queda de uma sorte, o voo de uma flecha, a queda de um passarinho, e
o número dos cabelos de nossa cabeça.

As ações livres estão predeterminadas


3. A Bíblia declara de maneira especial que as ações livres dos
homens estão determinadas de antemão. Isto está comprometido na
doutrina da profecia, que pressupõe que os acontecimentos que
envolvem as ações livres de uma multidão de homens estão previstas e
predeterminadas. Deus promete dar fé, um novo coração, escrever Sua
lei sobre as mentes de Seu povo, operar neles o querer e o fazer,
converter os gentios, encher o mundo com os verdadeiros adoradores de
Cristo, diante de quem se dobrará todo joelho. Se Deus prometeu estas
coisas, tem naturalmente que as haver proposto, mas todas elas implicam
os atos livres de homens.
4. As Escrituras ensinam que os atos pecaminosos, assim como os
santos, estão predeterminados. Em At 2:23, diz-se: «sendo este entregue
pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes,
crucificando-o por mãos de iníquos»; em At 4:27-28, «Porque
verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo
Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de
Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito
predeterminaram». «Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo
o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está
sendo traído!» (Lc 22:22). Estava predeterminado que fosse traído, mas,
ai daquele que cumprisse este decreto! Aqui nosso Senhor declara a
coexistência e a consistência da predeterminação e da responsabilidade.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 729
Em Ap 17:17 diz-se: «Porque em seu coração incutiu Deus que realizem
o seu pensamento, o executem à uma e dêem à besta o reino que
possuem, até que se cumpram as palavras de Deus». A crucificação de
Cristo foi, além de toda dúvida, predeterminada por Deus. Foi,
entretanto, o maior crime jamais cometido. Por isso, está além de toda
dúvida que a doutrina da Bíblia é que o pecado está predeterminado.
5. Além disto, predisseram-se as conquistas de Nabucodonosor, a
destruição de Jerusalém e muitos acontecimentos similares, e por isso
mesmo se predeterminaram; mas tudo isso incluía a comissão de
inumeráveis pecados, sem os quais não se tivessem podido cumprir as
predições, por isso nem os propósitos revelados de Deus.
6. Todo o curso da história é apresentado como o desenvolvimento
do plano e dos propósitos de Deus; e entretanto, toda a história humana é
pouca coisa mais que a história do pecado. Ninguém pode ler a singela
narração a respeito de José, tal como é dada no livro de Gênesis, sem ver
que tudo em sua história teve lugar para o cumprimento de um propósito
preconcebido de Deus. A inveja de seus irmãos, sua venda ao Egito, e
seu injusto encarceramento, formava todo parte do plano de Deus.
«Deus», como o próprio José disse a seus irmãos, «me enviou adiante de
vós, para conservar vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida
por um grande livramento. Assim, não fostes vós que me enviastes para
cá, e sim Deus» (Gn 45:7, 8). Esta é só uma ilustração. O que é certo da
história de José é certo de toda a história. É o desenvolvimento do plano
de Deus. Deus está na história, e embora não possamos seguir os Seus
rastros passo a passo, entretanto está claro na cena geral, ao longo de
longos períodos, que estão ordenados por Deus para o cumprimento dos
Seus propósitos divinos. Isto está bem evidente na história da nação
judaica, tal como se registra nas Escrituras, mas não é menos certo com
relação a toda a história. Os atos dos ímpios em sua perseguição da
Igreja primitiva foram ordenados por Deus como meio para uma mais
extensa e rápida proclamação do Evangelho. Os sofrimentos dos mártires
foram o meio não só de estender a Igreja, mas também de purificá-la. Ao
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 730
predizer a apostasia do homem de pecado, ficou com isso
predeterminada. A destruição dos Huguenotes na França, e a perseguição
dos Puritanos na Inglaterra, puseram as bases para o arraigo na América
do Norte de uma raça de homens piedosos e enérgicos, que iam fazer
desta terra o refúgio para as nações, o lar da liberdade civil e religiosa.
Seria para destruição da confiança do povo de Deus se fosse possível
persuadi-los de que Deus não predetermina tudo o que acontece. É
porque o Senhor reina, e faz Sua vontade tanto no céu como na terra, que
repousam em perfeita segurança sob Sua guia e proteção.

§ 2. Objeções à doutrina dos decretos divinos.

A. A preordenação, inconsequente com o livre-arbítrio.

Insiste-se que a preordenação de todos os acontecimentos é


inconsistente com o livre-arbítrio humano. A força desta objeção
depende do que se signifique por um ato livre. Para decidir se duas
coisas são consistentes é preciso determinar a natureza de cada uma
delas. Pelos decretos de Deus deve entender-se o propósito de Deus que
faz certo o acontecimento de acontecimentos futuros. Por um ato livre se
entende um ato de autodeterminação racional da parte de uma pessoa
inteligente. Se tal ato for por sua própria natureza contingente ou incerto,
então está claro que a preordenação é inconsistente com a livre agencia.
Esta teoria da liberdade foi adotada por um grande corpo de filósofos e
teólogos, e é para eles uma objeção insuperável à doutrina dos decretos
divinos. Como resposta à objeção, deve observar-se: (1) Que tem a
mesma força contra a presciência. O que se conhece de antemão tem que
ser certo, tanto como o que está ordenado antecipadamente. Se um é
inconsequente com a liberdade, então, também o é o outro. Esta é às
vezes admitido com franqueza. Socínio argumenta que o conhecimento
de Deus abrange todo a cognoscível. Ao ser incertas as ações futuras,
não são objeto de conhecimento, e por isso não é um ataque à divina
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 731
onisciência dizer que não se podem conhecer. Mas então não se podem
predizer. Pelo contrário, achamos que as Escrituras estão repletas de tais
predições. Por isso, é evidente que os escritores sagrados creem
plenamente que os atos livres são previamente conhecidos pela mente
divina, e por isso são certos quanto a seu acontecimento. Além disso, se
Deus não pode conhecer antecipadamente como vão agir alguns agentes
livres, Ele tem que ignorar o futuro, e estar constantemente crescendo em
conhecimento. Isto é tão incompatível com todas as ideias inapropriadas
a respeito da mente infinita que foi rejeitado quase universalmente, tanto
pelos filósofos como pelos teólogos cristãos. Uma evasão ainda mais
fraca é a proposta por alguns escritores arminianos, que admitem que o
conhecimento de Deus não está limitado fora dEle mesmo, mas que
mantém que pode ser limitado por Sua própria vontade. Ao criar agentes
livres, Ele dispôs não conhecer antecipadamente como agiriam, a fim de
deixar incólume a liberdade deles. Mas isto é supor que Deus dispõe não
ser Deus; que o Infinito disponha ser finito. O conhecimento, em Deus,
não se baseia em Sua vontade, exceto no que possa respeitar ao
conhecimento de visão, isto é, Seu conhecimento de seus próprios
propósitos, ou do que Ele decretou que vai suceder. Se não se baseia em
Sua vontade, não pode estar limitado por ela. O conhecimento infinito
deve conhecer todas as coisas, as reais e as possíveis. Entretanto, pode-se
dizer que há uma diferença entre presciência e preordenação, no sentido
de que o primeiro meramente supõe a certeza de acontecimentos futuros,
enquanto que o último causa seu futuro. Mas porquanto a certeza quanto
ao acontecimento é a mesma em ambos os casos, não faz diferença
alguma quanto à questão de que se trata aqui. O decreto só torna certo o
acontecimento; e por isso se a certeza não é inconsistente com a
liberdade, então a preordenação não o é. O fato de que um
acontecimento possa ser livre, e entretanto certo, pode ser demonstrado
facilmente. (1) É uma questão de consciência. Com frequência estamos
totalmente seguros de como vamos agir, até onde somos plenamente
livres para agir absolutamente, e conscientes de que agimos com
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 732
liberdade. Um pai pode estar seguro que vai socorrer um menino em
perigo, e ser consciente de que sua agência livre não é assim afetada.
Quanto mais seguros, em muitos casos, mais somos perfeitamente
autocontrolados. (2) Têm sido predito atos livres, e por isso era seguro
que aconteceriam. (3) Nada era mais certo que o fato de que nosso
Senhor se manteria santo, inocente e sem mancha, e entretanto todos os
Seus atos foram livres. (4) É seguro que o povo de Deus se arrependerá,
crerá e perseverará em santidade para sempre no céu, e entretanto não
cessam de ser agentes livres. Por isso, os decretos de Deus, que só
asseguram a certeza dos acontecimentos, não são inconsistentes com a
liberdade quanto ao modo de seu acontecimento. Embora seu propósito
compreenda todas as coisas, e é imutável, entretanto nem por isso «se
violenta a vontade das criaturas, nem é elimina a liberdade nem a
contingência das segundas causas, mas antes, fica tudo isso
estabelecido».

B. A preordenação do pecado, inconsequente com a


santidade

Também se objeta que é inconsequente com a santidade de Deus


que Ele preordene o pecado. Há dois métodos de fazer frente a esta e
todas as objeções similares. Um pode ser chamado o método das
Escrituras, visto que é o adotado com frequência pelos escritores
sagrados. Consiste em mostrar que a objeção se apoia contra as
declarações simples das Escrituras, ou contra os fatos da experiência. Em
qualquer caso, isto fica suficientemente respondido para nós. É em vão
arguir que um Deus santo e benevolente não pode permitir o pecado e a
desgraça, se o pecado e a desgraça realmente existem. É vão dizer que
Sua imparcialidade proíbe que em caso contrário a diversidade nos dons,
as vantagens, ou a felicidade de Suas criaturas racionais. É inútil insistir
em que um Deus santo não pode permitir que os meninos sofram pelos
pecados de seus pais, quando vemos constantemente que eles assim
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 733
sofrem. E assim é absolutamente irracional disputar que Deus não pode
preordenar o pecado, se Ele preordenou [como não o duvida nenhum
cristão] a crucificação de Cristo. A presença do pecado no plano adotado
por Deus é um fato palpável; por isso, não se pode negar racionalmente a
consistência da preordenação [do pecado] com a santidade de Deus. O
segundo método de fazer frente a essas objeções é mostrar que o
princípio sobre o qual se baseiam não são fundadas. O princípio sobre o
qual se baseia a objeção que examinamos é que um agente é responsável
por todas as consequências necessárias ou seguras de seus atos. A
objeção é que um Deus santo não pode decretar o acontecimento do
pecado, porque Seu decreto faz com que tal acontecimento seja certo.
Isto é, um agente é responsável por tudo aquilo que sua ação assegure.
Mas este princípio é totalmente insustentável. Um juiz justo, ao
pronunciar sua sentença sobre um criminoso, pode estar seguro de que
causará pensamentos ímpios e amargos na mente do criminoso, ou nos
corações dos amigos do mesmo, e entretanto o juiz não tem culpa disso.
Um pai, ao expulsar um filho réprobo da família, pode ver que a
consequência inevitável de tal exclusão será uma maldade ainda maior, e
entretanto o pai pode estar fazendo o certo. É a consequência certa de
que Deus abandone a si mesmos os anjos caídos e os finalmente
impenitentes que continuarão no pecado, e entretanto a santidade de
Deus permanece incólume. A Bíblia ensina claramente que Deus
abandona judicialmente os homens a seus pecados, entregando-os a uma
mente reprovada, e que com isso é grandemente justo e santo. Por isso,
não é verdade que um agente seja responsável por todas as
consequências certas de seus atos. Pode ser, e indubitavelmente é,
imensamente sábio e justo da parte de Deus que permita que tenha lugar
o pecado, e adotar um plano em que o pecado é uma consequência ou
elemento certo; mas porquanto Ele nem causa o pecado nem tenta os
homens a que o cometam, não é nem o autor do mesmo nem aprovador.
Ele vê e sabe que se alcançarão fins mais altos com sua admissão que
com sua exclusão, que se obterá uma exibição perfeita de Suas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 734
perfeições infinitas, e por isso que pela mais elevada razão decreta que
tenha lugar por meio da eleição livre de agentes responsáveis. Mas nossa
grande base de confiança é a certeza de que o juiz de toda a terra fará o
que é justo. O pecado existe, e Deus existe; por isso, a existência do
pecado deve ser consistente com sua natureza; e porquanto seu
acontecimento não pode ter sido imprevisto nem acidental, o propósito
ou decreto de Deus de que devia acontecer tem que ser consistente com
Sua santidade.

C. A doutrina dos decretos destrói todo motivo para o


esforço

Uma terceira objeção é que a doutrina da preordenação, que supõe a


certeza de todos os acontecimentos, tende ao descuido de todo emprego
de meios. Se tudo suceder tal como Deus o predeterminou, não temos
por que nos inquietar, nem temos por que esforçar-nos. (1) Esta objeção
supõe que Deus determinou o fim sem referência aos meios. Entretanto,
a verdade é ao reverso. O acontecimento fica determinado em conexão
com o meio. Se o última fracassa, igualmente sucederá com o primeiro.
Deus decretou que os homens vivam mediante alimentos. Se alguém se
recusa comer, morrerá. Ele ordenou que os homens se salvem por meio
da fé. Se alguém recusa crer, perecerá. Se Deus Se propôs que o homem
viva, também Se propôs preservá-lo da insensatez suicida de recusar
comer. (2) Há outra falácia incluída nesta objeção. Supõe que a certeza
de que um acontecimento vá acontecer age como motivo para descuidar
os meios de sua consecução. Isto não é segundo a razão nem a
experiência. Quanto maior a esperança de êxito, tanto maior o motivo
para o esforço. Se se está seguro do êxito com o uso dos meios
apropriados, o incentivo para esforçar-se faz-se tão forte como possa ser
possível. Por outro lado, quanto menos esperança, tanto menos
disposição haverá para esforçar-nos; e onde não há esperança, não
haverá esforço. O fundamento racional e escriturístico para o uso de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 735
meios, e os motivos apropriados para nos valer deles, são: (1) O
mandamento de Deus. (2) Sua adaptação a produzir o efeito. (3) A
ordenação divina que faz os meios necessários para produzir o efeito. E
(4) A promessa de Deus de dar Sua bênção àqueles que, em obediência,
se valem dos meios que Ele assinalou.

D. É fatalismo.

O quarto lugar, objeta-se que a doutrina dos decretos equivale à


doutrina pagã da fatalidade. Há só um ponto em comum entre estas
doutrinas. Ambas supõem uma total certeza na sequência de todos os
acontecimentos. Mas diferem não só quanto à base desta certeza, à
natureza da influência por meio da que é assegurada, e aos fins nela
contemplados, mas também em seus efeitos naturais sobre a razão e a
consciência dos homens.
A palavra Fatalismo foi aplicada a diferentes sistemas, alguns dos
quais admitem, enquanto que outros negam ou ignoram, a existência de
uma inteligência suprema. Mas no uso comum designa a doutrina de que
todos os acontecimentos devem ter lugar sob a operação de uma
necessidade cega. Este sistema difere da doutrina escriturística da
preordenação (1) Em que exclui a ideia de causas finais. Não há um fim
ao qual tendam as coisas, e para cujo cumprimento existam. Segundo a
doutrina escriturística, todas as coisas estão ordenadas e controladas para
o cumprimento do bem mais alto ou possível concebível (2) Em que
segundo o Fatalismo a sequência de acontecimentos é determinada por
uma concatenação ininteligente de causas e efeitos. Segundo a doutrina
dos decretos, aquela sequência está determinada por uma sabedoria e
bondade infinitas. (3) O fatalismo não admite distinção alguma entre
causas necessárias e livres. As ações dos agentes racionais estão tão
determinadas por uma necessidade fora de si mesmos como as operações
da natureza. Pelo contrário, segundo as Escrituras a liberdade e
responsabilidade do homem ficam plenamente preservadas. Por isso, os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 736
dois sistemas diferem tanto quanto uma máquina difere do homem; ou
como as ações da inteligência; do poder e do amor infinitos diferem da
lei da gravidade. (4) Assim, o sistema fatalista conduz à negação de
todas as distinções morais, e a uma impossível insensibilidade ou
desesperança. A doutrina da Escritura, a uma solícita consideração à
vontade de governante imensamente sábio e bom, todos cujos atos estão
determinados por uma razão suficiente; e a uma confiança e submissão
filiais.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 737
CAPÍTULO X
A CRIAÇÃO

§ 1. Diferentes teorias sobre a origem do universo.

A questão a respeito da origem do universo se impôs nas mentes


dos homens em todas as idades. Que o mutável não pode ser eterno
parece evidente por si mesmo. Como tudo o que existe na esfera da
observação humana está mudando constantemente, os homens se viram
obrigados a crer que o mundo, tal como é agora, teve um princípio. Mas,
se começou, de onde veio? Sem a luz de uma revelação divina, esta é
uma pergunta sem resposta. Os dados para a solução do problema não se
encontram dentro da esfera nem da experiência nem da razão. Todas as
teorias humanas a respeito disso não são nada mais que conjeturas mais
ou menos engenhosas.
À parte da doutrina panteísta que faz do universo a forma
existencial de Deus, ou, como o chama Goethe, «das lebendige Kleid» (a
vestimenta vivente) de Deus, as posturas mais prevalecentes a respeito
desta questão são: Primeiro, aquelas que excluem a mente da origem
causativa do mundo; segundo, aquelas que admitem uma mente, mas só
enquanto que conectada com a matéria; e terceiro, a doutrina da
Escritura que assume a existência de uma mente infinita extramundana a
cujo poder e vontade a existência de todas as coisas de Deus refere-se.
É uma verdade evidente que a existência não pode surgir
espontaneamente da não-existência. Neste sentido, ex nihilo nihil fit é
um axioma universalmente admitido. Aqueles, portanto, que negam a
existência de uma mente extramundana, veem-se obrigados a admitir que
como o universo agora é, deve ter sido sempre. Mas como está num
estado de perpétua mudança não foi sempre como o é hoje. Havia um
estado primordial fora da atual ordem de coisas que se produziu. A
pergunta é, como?
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 738
A teoria puramente física.
Segundo a primeira hipótese que acabamos de mencionar, a
condição primordial do universo era o da matéria universalmente
difundida num estado altamente atenuado. Esta matéria tinha as
propriedades, ou forças, que se exibe agora em todas as partes, e sob a
operação destas forças e de conformidade com as leis do calor,
movimento, etc., não só os grandes corpos cósmicos foram formados e
resolvidos por si mesmos em suas relações presentes harmoniosas, mas
também todos os organismos, vegetais e animais, neste globo e em
outros lugares, foram formados e sustentados. Todo homem sabe o
suficiente das leis físicas para ser capaz de predizer com certeza que num
dia frio, ao ar livre a umidade de seu alento se condensa; assim, segundo
o professor Huxley, nesta hipótese, com um conhecimento adequado das
leis, teria sido fácil desde o começo predizer, não só o mecanismo dos
céus, mas sim a fauna e a flora de nosso planeta em todos os estados e
etapas de sua existência.
A hipótese nebular, como a primeira proposta de La Place, foi a
aplicação desta teoria para a explicação da origem e a ordem dos corpos
celestes. Esta hipótese pode ser assim explicada: “Suponhamos que a
matéria que compõe todo o sistema solar uma vez existiu no estado de
uma massa nebulosa única, que se estende para além da órbita do planeta
mais remoto. Suponhamos que esta nebulosa tem uma rotação lenta
sobre um eixo, e que pela radiação se esfria gradualmente, de tal modo a
contrair em suas dimensões. Como se contraída em suas dimensões, sua
velocidade de rotação, segundo os princípios da Mecânica, deve
necessariamente aumentar, e a força centrífuga gerada na parte exterior
da nebulosa que enfim será igual à atração da massa central. Esta parte
exterior se converteria assim em individual, e giraria em forma
independente como uma imensa zona ou um anel. Como a massa central
a esfriar-se e contrair-se em suas dimensões, outras zonas da mesma
maneira se desprendem, enquanto que a massa central diminui
continuamente em tamanho e aumento da densidade. As zonas assim
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 739
sucessivamente separadas se rompem geralmente em massas separadas
girando de maneira independente ao redor do Sol; e se suas velocidades
são ligeiramente desiguais, a matéria de cada zona em última instância,
acumula-se num único planeta, mas ainda refrigerante, a massa, com
forma esferoidal, e também um movimento de rotação sobre um eixo.
Como cada uma destas massas planetárias fez-se ainda esfriadas, passar-
se-ia através de uma sucessão de mudanças similares aos da nebulosa
solar primeira; anéis de matéria que se formariam ao redor do núcleo
planetário e esses anéis, se se romperam em massas separadas, em última
instância, formam satélites girando ao redor de seus primários.” 357
Temos assim um universo ordenado, sem a intervenção da mente. Todo
mundo sabe, entretanto, que há uma forma em que se mantém a hipótese
nebular por muitos teístas cristãos.

As teorias que assumem Inteligência na própria natureza.


A evidente impossibilidade de causas cegas agir com inteligência,
ou, por causas necessárias ser eletivas em seu funcionamento, levou a
muitos que negam a existência de uma Mente extramundana a celebrar,
que a vida e a inteligência se referem à matéria mesma em ao menos
algumas de seus combinações. Uma planta vive. Há algo na semente que
assegura seu desenvolvimento, cada um segundo sua espécie. Existe,
portanto, algo na planta, que segundo esta teoria não é alheia à própria
planta, que faz o trabalho da mente. Quer dizer, seleciona ou escolhe
dentre a terra e o ar os elementos necessários para seu suporte e
crescimento. Molda estes elementos em formas orgânicas, planejada para
responder a um propósito, e adaptada com maravilhosa habilidade para
levar a cabo um dado desígnio. Com relação a este principio da vida, esta
força vital, é de notar que está na planta; que nunca se manifesta, nunca
age, exceto na união com a matéria de que se compõe a planta; quando a

357
Loomis, Treatise on Astronomy, New York, 1865, p. 314.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 740
planta morre, sua vitalidade se extingue. Deixa de existir no mesmo
sentido em que a luz se extingue quando a escuridão toma seu lugar.
O que é certo dos vegetais, não é menos certo no mundo animal.
Cada animal inicia-se num germe quase imperceptível. Mas esse germe
tem algo nele que determina com certeza o gênero, espécie e variedade
do animal. Forma todos os seus órgãos; prepara o olho pela luz ainda não
vista; o ouvido para os sons ainda por ser ouvidos e os pulmões para o ar
ainda para ser respirado. Nada mais maravilhoso que isto foi
proporcionado pelo universo em qualquer de seus fenômenos.
Se, por conseguinte, a vida vegetal e animal operam todas estas
maravilhas, que necessidade temos de assumir uma atitude
extramundana para perceber qualquer dos fenômenos do universo? Tudo
o que é preciso é que a natureza, natura naturans, a vis in rebus insita,
deva agir do mesmo modo que vemos que o princípio vital age nas
plantas e nos animais. Isto é hilozoísmo; a doutrina de que a matéria está
impregnada de um princípio de vida.
Outra forma desta teoria é mais dualista. Admite a existência da
mente e da matéria como substâncias distintas, mas sempre em
combinação existente, como a alma e o corpo no homem em nossa fase
atual do ser. Os defensores desta doutrina, pois, em vez de falar da
natureza como a força organizadora, falam da alma do mundo, a anima
mundi, etc.
Será suficiente observar a respeito destas teorias: (1) Que deixam a
origem das coisas sem explicação. De onde proveio a matéria, que dá por
sentada a teoria numa de suas formas? De onde provêm suas
propriedades físicas, a que se atribui toda organização? E quanto à
segunda doutrina, pode-se perguntar: De onde provieram os germes
vivos de plantas e animais? A hipótese de que a matéria em estado de
caos é eterna, ou de que houve uma sucessão sem fim de germes de vida,
ou de que houve uma eterna sucessão de ciclos na história do universo,
desenvolvendo o caos a cosmos, durante idades sem fim, são todas elas
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 741
hipóteses que se chocam contra a razão, e que necessariamente carecem
de prova.
(2) Estas teorias são ateias. Negam a existência de um Ser pessoal
com quem temos a relação de criaturas e filhos. A existência de tal Ser é
uma verdade inata, intuitiva. Não pode ser permanentemente rejeitada. E
por isso toda teoria que negue a existência de Deus deve ser não só falsa,
mas também efêmera.

A doutrina escriturística.
A doutrina escriturística a respeito deste tema se expressa nas
primeiras palavras da Bíblia: «No princípio criou Deus os céus e a terra».
Os céus e a terra incluem todas as coisas, exceto Deus. E as Escrituras
ensinam que estas coisas devem sua existência à vontade e ao poder de
Deus. Por isso, a doutrina escriturística é: (1) Que o universo não é
eterno. Começou a ser. (2) Não foi formado de nenhuma substância
preexistente, mas sim foi criado ex-nihilo [do nada]. (3) Que a criação
não era necessária. Deus tinha a liberdade para criar ou para não criar,
para criar o universo tal qual é ou qualquer outra ordem e sistema de
coisas, segundo o Seu beneplácito.
A doutrina de uma criação eterna foi sustentada em diversas
formas. Orígenes, embora se referisse à existência do universo pela
vontade de Deus, ainda sustentou que era eterno. Falamos dos decretos
divinos como livres e não obstante, como desde a eternidade. Assim
Orígenes sustentou que este não foi o primeiro mundo que Deus fez; que
nunca houve um primeiro, e nunca haverá um último. “Quid ante
faciebat Deus,” ele pergunta, “quam mundus inciperet? Otiosam enim et
immobilem dicere naturam Dei, impium est simul et absurdum, vel
putare, quod bonitas aliquando bene non fecerit, et omnipotentia
aliquando non egerit potentatum. Hoc nobis objicere solent dicentibus
mundum hunc ex certo tempore coepisse, et secundum scripturæ fidem
annos quoque ætatis ipsius numerantibus. . . . . Nos vero consequenter
respondimus observantes regulam pietatis, quoniam non tunc primum
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 742
cum visibilem istum mundum fecit Deus, coepit operari, sed sicut post
corruptionem hujus erit alius mundus, ita et antequam hic esset, fuisse
alios credimus.” 358
É óbvio, os escolásticos que fizeram os pensamentos de Deus
criador, ou identificaram o propósito com ato, ou os que disseram com
Escoto Erígena, “Non aliud Deo esse et velle et facere,” devem
considerar o universo como coeterno com Deus. Isto foi feito por Decoto
num sentido panteísta, mas outros que consideravam o universo como
algo distinto de Deus e dependente dele, ainda sustentavam que o mundo
é eterno. A influência da filosofia monista moderna, inclusive sobre
teólogos que creem num Deus extramundano pessoal, foi tal que leva
muitos deles a assumir que a relação entre Deus e o mundo é tal que
deve ter existido sempre. A doutrina comum da Igreja foi sempre de
conformidade com o simples ensino da Bíblia, que o mundo começou a
ser.
O segundo ponto incluído na doutrina bíblica da criação é, que o
universo não se formou a partir de qualquer matéria preexistente, nem da
substância de Deus. A hipótese de que algo existe fora de Deus e
independente de Sua vontade, foi rejeitada por ser incompatível com a
perfeição e a supremacia absoluta de Deus. A outra ideia, entretanto, ou
seja, que Deus formou o mundo a partir de Sua própria substância,
encontrou partidários, mais ou menos numerosos, em cada época da
Igreja. Agostinho, referindo-se a esta opinião, diz: “Fecisti coelum et
terram; non de te: nam esset æquale unigenito tuo, ac per hoc et tibi, . . . .
et aliud præter te non erat, unde faceres ea; . . . . et ideo de nihilo fecisti
coelum et terram.” 359
Não só aqueles dos escolásticos e dos teólogos modernos que se
inclinam pela teoria monista, fizeram todas as coisas ser modificações da
substância de Deus, mas sim muitos teístas e inclusive escritores

358
De Principiis, III. 3. Works, edit. Paris, 1733, vol. i. p. 149, c, d.
359
Confessiones, XII. 7. Works, edit. Benedictines, Paris, 1836, Vol. I. p. 356, c, d.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 743
360
evangélicos de nossos dias têm a mesma doutrina. Sir William
Hamilton também afirmou que é impossível conceber o complemento da
existência sendo aumentado ou diminuído. Quando algo novo aparece,
vemo-nos obrigados a considerá-lo como algo que tinha existido
anteriormente em outra forma. “Não podemos, por um lado, conceber
nada convertendo-se em algo, ou, por outro lado, algo convertendo-se
em nada. Quando se diz que Deus cria do nada, construímos este
pensamento mediante a hipótese de que Ele desenvolve a existência de
Si mesmo; vemos o Criador como a causa do Universo. ‘Ex nihilo nihil,
in nihilum nil posse reverti,’ expressa, em sua forma mais pura, todo o
fenômeno intelectual da causalidade.” 361 Para isto, em outra parte
acrescenta ele: “Da mesma maneira, concebemos a aniquilação, só por
conceber o Criador retrair-se de Sua criação a partir da realidade no
poder. . . . A mente é, pois, obrigada a reconhecer uma identidade
absoluta da existência no efeito e no complemento de suas causas —
entre o causatum e a causa,” 362 e portanto, “uma identidade absoluta da
existência” entre Deus e o mundo. Esta doutrina os pais, e a Igreja em
geral, resistiram energicamente por considerá-la inconsistente com a
natureza de Deus. Supõe que a substância de Deus admite partição ou
divisão; que os atributos de Deus podem ser separados de sua substância,
e que a substância divina pode chegar a ser degradada e contaminada.
O terceiro ponto incluído na doutrina bíblica da criação é, que foi
um ato de livre vontade de Deus. Ele era livre para criar ou não criar.
Isto se opõe à doutrina da criação necessária, que se expôs em diferentes
formas. Alguns consideram o universo dos fenômenos como uma
simples evolução do Ser absoluto por um processo necessário, como uma
planta se desenvolveu a partir de uma semente. Outros, com relação a

360
O escritor estava jantando um dia com Tholuck e cinco ou seis de seus alunos, quando tomou uma
faca da mesa e lhe perguntou: “É esta faca da substância de Deus?” E todos responderam: “Sim.”
361
Lectures on Metaphysics. Boston, edit. 1859, lecture xxxix. p. 533.
362
Discussions on Philosophy and Literature, etc. By Sir William Hamilton. New York, edit. 1853, p.
575.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 744
Deus como um espírito, fazem a vida e o pensamento essencial como
coeternos com Ele, e esta vida e o poder são de necessidade criativa. “A
essência de Deus”, diz Cousin, “consiste precisamente em Seu poder
criador.” 363 Mais uma vez, diz: 364 “Ele não pode senão produzir, de
modo que a criação deixa de ser ininteligível, e Deus não é mais sem um
mundo que um mundo sem Deus.” Como, entretanto, o pensamento é
espontâneo, Cousin, quando chamado à dar conta por estas declarações,
sustentou que ele não negou que a criação fosse livre.
Alguns dos que não admitem que Deus está submetido a qualquer
necessidade física ou metafísica para dar existência ao universo, ainda
afirma uma necessidade moral para a criação de criaturas sensíveis e
racionais. Deus, diz-se, é amor, mas é a natureza do amor a tempo para
comunicar-se, e para manter comunhão com outros que a Si mesmo.
Portanto, a natureza de Deus O impulsiona a pôr nas criaturas a
existência na qual e sobre a qual Ele pode alegrar-se. Outros dizem que
Deus é a benevolência, e portanto está numa necessidade moral de criar
os seres que Ele pode fazer feliz. Assim, Leibnitz diz: “Dieu n’est point
nécessité, métaphysiquement parlant, à la création de ce monde. . . . .
Cependant Dieu est obligé, par une nécessité morale, à faire les choses
en sorte qu’il ne se puisse rien de mieux.” 365
Segundo as Escrituras, Deus é autossuficiente. Ele não necessita
nada fora de Si mesmo para Seu bem-estar ou felicidade. Ele é em todos
os respeitos independente de Suas criaturas; e a criação do universo foi o
ato da livre vontade daquele Deus de quem o Apóstolo diz em Rm 11:36:
«Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas».
A fé comum da Igreja sobre este tema é claro e belamente expressos
por Melâncton: 366 “Quod autem res ex nihilo conditæ sint, docet hæc
sententia: ipse dixit et facta sunt; ipse mandavit, et creata sunt, id est

363
Cousin’s Psychology, New York, edit. 1856, p. 443.
364
Ibid. p. 447.
365
Théodicée, II. 201; Works, Berlin, 1840, p. 566.
366
Loci Communes de Creatione, edit. Erlanger, 1828, p. 48.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 745
dicente seu jubente Deo, res exortæ sunt: non igitur ex materia priore
exstructæ sunt, sed Deo dicente, cum res non essent, esse coeperunt; et
cum Joannes in quit: Omnia per ipsum facta esse, refutat Stoicam
imaginationem, quæ fingit materiam non esse factam.”

§ 2. Criação mediata e imediata.

Mas enquanto que foi sempre a doutrina da Igreja que Deus criou o
universo do nada pela palavra do Seu poder, criação que foi instantânea e
imediata, isto é, sem a intervenção de segundas causas, entretanto se
admitiu geralmente que isto se deve entender somente da original
chamada da matéria à existência. Os teólogos, portanto, distinguiram
entre uma criação primeira e uma segunda criação; a primeira imediata, e
a segunda mediata. A primeira foi instantânea; a segunda gradual; a
primeira impede a ideia de qualquer matéria preexistente e qualquer
cooperação; a segunda admite e implica ambas as coisas. Há uma
evidente base para esta distinção no relato mosaico da criação. É-nos que
«No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem
forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas» [Gn 1:1-2]. Aqui se indica com clareza que o
universo, ao ser primeiro criado, estava em estado de caos, e que foi
gradualmente moldado pelo poder doador de vida e organizador do
Espírito de Deus, até chegar a ser o maravilhoso cosmos que hoje
contemplamos. A totalidade do primeiro capítulo de Gênesis, depois do
primeiro versículo, é um relato do progresso da criação; a produção da
luz; a formação da atmosfera; a separação da terra e da água, os produtos
vegetais da terra; os animais do mar e do ar; logo, os seres viventes da
terra; e, no final de tudo, o homem. Em Gn 1:27 diz-se que Deus criou o
homem – homem e mulher; em Gn 2:7 diz-se que «formou o SENHOR
Deus ao homem do pó da terra». Assim é evidente que a formação com
base em materiais preexistentes entra dentro da ideia escriturística de
criar. Todos reconhecemos a Deus como o autor de nosso ser, como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 746
nosso Criador, assim como nosso Preservador. Ele é nosso Criador, não
meramente porque Ele é o Criador dos céus e da terra, e porque tudo o
que eles contenham deva sua origem a Sua vontade e poder, mas também
porque, como ensina o Salmista, Ele conforma nosso corpo em segredo.
«Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram
escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando
nem um deles havia ainda» (Sl 139:16). E a Bíblia fala constantemente
de Deus como fazendo crescer a erva, e como sendo o verdadeiro autor
ou criador de tudo o que produz a terra, o ar ou a água. Por isso, segundo
as Escrituras há não apenas uma criação imediata, instantânea, ex-nihilo
pela simples palavra de Deus, mas também uma criação mediata,
progressiva; o poder de Deus operando em união com segundas causas.
Agostinho reconhece claramente esta ideia. “Sicut in ipso grano
invisibiliter erant omnia simul quæ per tempora in arborem surgerent; ita
ipse mundus cogitandus est, cum Deus simul omnia creavit, habuisse
simul omnia quæ in illo et cum illo facta sunt quando factus est dies: non
solum coelum cum sole et luna et sideribus, quorum species manet motu
rotabili, et terram et abyssos, quæ velut inconstantes motus patiuntur,
atque inferius adjuncta partem alteram mundo conferunt; sed etiam illa
quæ aqua et terra produxit potentialiter atque causaliter, priusquam per
temporum moras ita exorirentur, quomodo nobis jam nota sunt in eis
operibus, quæ Deus usque nunc operatur.” 367
Até o momento há pouco espaço para a diversidade de opinião. Mas
quando se faz a pergunta: Até quando esteve o universo na passagem de
seu estado caótico a seu estado organizado? Tal diversidade é
manifestada imediatamente. Segundo a interpretação mais óbvia do
primeiro capítulo do Gênesis, esta obra foi realizada em seis dias. Esta,
portanto, foi a crença comum dos cristãos. É uma crença baseada numa
interpretação do registro mosaico, que a interpretação, entretanto, deve-
se controlar não só pelas leis da linguagem, mas por fatos. Na atualidade

367
De Genesi ad Literam, v. 45; Works, edit. Benedictines, Paris, 1836, vol. iii. p. 321, d. 422 a.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 747
isto é uma questão aberta. Os fatos necessários para sua decisão ainda
não foram devidamente autenticados. O crente pode esperar com calma o
resultado.
Os defensores teístas da hipótese nebular assumem que o universo
era um período indefinidamente longo ao chegar a seu estado atual.
Deus, com a intenção de produzir tal universo como o vemos ao nosso
redor, em lugar de uma superfície chamando o sol, a lua e as estrelas,
com todos os seus exércitos mobilizados, à existência, criou a matéria
nebulosa difusa, simplesmente através do espaço; investido com certas
propriedades ou forças, mas sim deu um movimento de rotação, e logo
permitiu que estas leis físicas sob sua guia elaborar o sistema harmônico
dos céus. Como Ele é o verdadeiro criador do carvalho desenvolvido da
bolota, de acordo com as leis da vida vegetal, como se Ele tinha
chamado à existência em sua maturidade por uma palavra, de modo que,
sustenta-se, Ele é o verdadeiro criador dos céus e a terra, na hipótese
nebular, como no suposto de criação instantânea. Entretanto, isto não é
mais que uma hipótese que nunca demandou assentimento geral entre os
cientistas. É, portanto, de nenhuma autoridade como uma norma para a
interpretação da Escritura.
A mesma teoria de criação gradual ou mediata, aplicou-se para
explicar todos os fenômenos dos reinos vegetal e animal. Isto se tem
feito de diferentes formas. Segundo todas estas teorias deve haver algo
para começar. Deve existir a matéria e suas forças. Deve ainda haver a
vida, e os organismos vivos. Para justificá-los somos obrigados a aceitar
a doutrina bíblica de uma criação imediata ex-nihilo pelo poder de Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 748
§ 3. Prova da doutrina.

A prova da doutrina de uma criação ex-nihilo não descansa no uso


das palavras ‫( בָרָ א‬bara) ou κτίζειν (ktizein), que são intercambiáveis
com ָ‫( עָשׂה‬asah) e ποιεῖν (poiein). Diz-se que Deus criou o mundo, e
também que Ele é o Criador dos Céus e da terra. Das plantas e dos
animais diz-se que foram criados, embora foram formados do pó da
terra. Mas fica claro que as Escrituras ensinam esta grande doutrina da
religião natural e revelada:
1. Pelo fato de que jamais se faz menção de nenhuma substância
preexistente com base na qual se fez o mundo. Nunca se descreve a
reação original como dotando à matéria de forma e lhe dando vida.
Tampouco as Escrituras mostram jamais o mundo como uma emanação
de Deus, procedendo dEle por uma necessidade de sua natureza. E muito
menos ainda a Bíblia identifica Deus com o mundo. Assim, ao desprezar
todas as outras doutrinas, as Escrituras nos guiam à necessidade de crer
que Deus criou o mundo do nada.
2. A descrição da obra de criação que se dá na Bíblia fecha a
passagem à ideia de formação ou de mera emanação. Deus. Disse: «Haja
a luz e houve luz». No Sl 33:9: «Pois ele falou, e tudo se fez; ele
ordenou, e tudo passou a existir». Portanto, em palavras de Melâncton, já
citado, Dicente seu jubente Deo, que o universo foi chamado à
existência. “Nam quid est aliud tota creatura,” Lutero pergunta: “quam
verbum Dei a Deo prolatum, seu productum foras? . . . . Mundum et
omnia creavit facillimo opere, dicendo scilicet, ut non plus negotii Deo
sit in creatione, quam nobis in appellatione.” 368
3. A mesma doutrina está envolta na absoluta dependência de todas
as coisas de Deus, e em Sua absoluta soberania sobre elas. «Pois, nele,
foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as
invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer

368
Genesis, 1.5; Works, Wittenberg edit. 1555 (Latin), vol. vi. leaf 5, p. 2.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 749
potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas
as coisas. Nele, tudo subsiste » (Col 1:16, 17). «todas as coisas tu criaste,
sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas» (Ap
4:11). Todas as coisas de que se fala nesta passagem incluem todas as
coisas fora de Deus. Por isso, não pode haver matéria preexistente,
existindo independentemente de Sua vontade. Tudo o que está fora de
Deus é descrito como devendo sua existência à Sua vontade.
4. A mesma doutrina está incluída na doutrina da Escritura de que o
universo (τὰ πάντα) é de Deus (ἐκ θεοῦ), que Ele é sua fonte, não no
sentido gnóstico, mas no sentido consistente com outras representações
da Bíblia, que se referem à existência de todas as coisas ao mandato de
Deus. O universo, portanto, é “dEle” como sua causa eficiente.
5. O Apóstolo em Hb. 11:3, começa sua ilustração da natureza e o
poder da fé fazendo referência à criação como a grande verdade
fundamental de toda religião. se não houver criação, não há Deus. Se o
universo foi chamado à existência do nada, então deve haver um Ser
extramundano a quem deve sua existência. A criação é um fato que
conhecemos só pela revelação. O que o escritor sagrado afirma aqui é,
primeiro, que os mundos (αἰῶνες, tudo contido em tempo e espaço)
foram criados, posto ordem, e estabelecido, pela simples palavra ou
mandamento de Deus. Compare Sl 74.(73).16, na Septuaginta, σὺ
κατηρτίσω ἥλιον καὶ σελήνην. Em segundo lugar, sendo este o caso,
deduz-se que o universo não se formou a partir de qualquer substância
preexistente. Em terceiro lugar, Deus não é um mero anterior, mas sim o
Criador do universo organizado. A diferença entre os comentaristas na
interpretação desta passagem não afeta seu sentido geral. As palavras são
εἰς τὸ μὴ ἐκ φαινομένων τὰ βλεπόμενα γεγονέναι. A primeira pergunta é
se εἰς τὸ expressa o desenho, ou simplesmente a consequência. No
primeiro caso, o significado é que Deus criou o mundo com uma palavra
com o fim de que, quer dizer, com o fim de que os homens saibam que as
coisas que veem não foi feito do que já existia. Neste último caso,
limitaram-se a indicar como um fato, que à medida que a criação foi por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 750
uma palavra, não estava fora de qualquer substância preexistente. O
outro ponto duvidoso na passagem é a construção da partícula negativa
μή. Puede ser conectado con φαινομένων. Esta passagem é paralelo com
2Mac. 7.28, ἐξ οὐκ ὄντων ἐποίησεν αὐτὰ ὁ θεός; em latim: “Peto, nate,
ut aspicias ad coelum, et terram, et ad omnia, quæ in eis sunt; et
intelligas, quia ex nihilo fecit illa Deus, et hominum genus.”
Delitzsch, em seu comentário sobre esta epístola, mostra que nem a
posição da negativa antes da preposição, nem o uso de μή, em lugar de
οὐ é alguma objeção válida a esta interpretação. Outros, entretanto,
preferem conectar μή com γεγονέναι, quer dizer, “o mundo não foi feito
fora do extraordinário.” A sensação em ambos os casos é
substancialmente a mesma. Mas surge a pergunta: Qual é a antítese
implícita ao extraordinário? Alguns dizem o pensamento de Deus real,
ideal. Delitzsch diz devemos suprir a μὴ ἐκ φαινομένων, ἀλλ᾽ ἐκ νοητῶν,
“y estos νοητά son los tipos invisibles eternos, de los cuales, como su
base y fuente ideal, las cosas visibles por el fiat de Dios han procedido.”
Esto es platonismo, y extraño al modo escriturístico de pensar y enseñar.
O que é real é fenomenal, quer dizer, todas as substâncias, tudo o que
realmente existe se manifesta em alguma parte e de algum modo. A
antítese adequada, portanto, é a φαινομένων is οὐκ ὄντων. “Los mundos
no fueran hechos de cualquier cosa que se revela como existentes aún a
los ojos de Dios, sino de la nada.”
Em Rom. 4.17, descreve-se a Deus como Ele “chama as coisas que
não são como se fossem.” Chamar neste caso pode aqui ser tomado no
sentido de mandar, de controlar por uma palavra. A passagem então
expressa a mais alta ideia da onipotência. O real e o possível são
igualmente sujeitos a sua vontade; o não-existente, o meramente
possível, é tão obediente a Ele como a atual realidade. Ou Chamar como
em outros lugares pode significar, como o explica Wette, chamar à
existência. “Der das Nichtseiende als Seiendes hervorruft.” “Quem
chama as coisas que não existem à existência;” o ὡς ὄντα para ὡς
ἐσόμενα ou para εἰς τὸ εἶναι ὡς ὄντα. Neste texto Bengel diz: “Cogita
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 751
frequens illud ‫ ייה‬Gên. 1. exprimitur transitus a non esse ad esse, qui sit
vocante Deo. Conf. Ez. 36.29.” 369
6. A doutrina da Escritura sobre este tema vê-se confirmada por
todas as passagens que atribuem um começo para o mundo. Por mundo
não se entende o κόσμος como diferente do caos, a forma como diferente
de substância, mas ambos juntos. Segundo a Bíblia não há nada eterno,
senão Deus. Ele e só Ele é o eterno. Este é seu título distintivo, —
Aquele que é, que era e sempre será. Quando o mundo, portanto,
começou a ser, e como o mundo inclui todas as coisas criadas por Deus,
não havia nada do que o mundo poderia ser feito. Foi, portanto, criado ex
nihilo. Isto se ensina no primeiro capítulo do Gênesis, “No princípio
(antes de haver alguma coisa) Deus criou o céu e a terra.” Em muitas
outras partes da Escritura um princípio se atribui ao mundo, como no Sl.
90:2, “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o
mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus.” Sl. 102:25 [TB], “Desde
o princípio lançaste os fundamentos da terra.” Em João 17:5, nosso
Senhor fala da glória que tinha com o Pai antes que o mundo existisse. A
criação do mundo é uma época. Então começou o tempo. O que foi antes
da fundação do mundo é eterno. O mundo, portanto, não é eterno, e se
não é eterno deve ter tido um princípio, e se todas as coisas tinham um
princípio, então deve ter havido uma criação ex-nihilo.
7. A doutrina da criação flui da infinita perfeição de Deus. Não
pode haver senão um Ser infinito. Se algo existe independentemente de
sua vontade, Deus é assim limitado. A ideia da dependência absoluta de
todas as coisas a partir de Deus impregna a Escritura e participa de nossa
consciência religiosa. O Deus da Bíblia é um Deus extramundano,
existindo fora de e antes do mundo, absolutamente independente dele,
sendo seu Criador, Preservador e Governador. Pelo que a doutrina da
criação é uma consequência necessária do Teísmo. Se negarmos que o
mundo deva sua existência à vontade de Deus, então a consequência

369
Gnomon, edit. Tübingen, 1759, p. 614.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 752
lógica pareceria ser o ateísmo, o hilozoísmo ou o panteísmo. Por isso,
por um lado, a Escritura faz esta doutrina tão proeminente, apresentando-
a na primeira página da Bíblia como o fundamento de todas as
posteriores revelações a respeito da natureza de Deus e Sua relação com
o mundo, e designando um dia de cada sete para que seja uma
comemoração perpétua do fato de que Deus criou os céus e a terra. E,
por outro lado, os defensores do Ateísmo ou do Panteísmo enfrentam a
doutrina da criação como o erro fundamental de toda falsa filosofia e
religião. “Die Annahme einer Schöpfung ist der Grund-Irrthum aller
falschen Metaphysik und Religionslehre, und insbesondere das Ur-
Princip des Juden- und Heidenthums.” 370

§ 4. Objeções à doutrina.

Tem-se insistido em todas as idades, como objeção à doutrina da


criação que não é consequente com o axioma ex nihilo nihil fit. Mas este
aforismo pode ter dois sentidos. Pode significar que não pode haver
algum efeito sem uma causa; que nada não pode produzir nada. Neste
sentido expressa uma verdade evidente por si mesma, com a qual a
doutrina da criação é perfeitamente consequente. Esta doutrina não
supõe que o mundo exista sem uma causa, ou que provenha do nada.
Atribui uma causa perfeitamente adequada para sua existência na
vontade de um inteligente Ser Onipotente. No outro sentido da frase
afirma-se que é impossível uma criação ex-nihilo, que Deus não pode
causar a origem da matéria, nem de nenhuma outra coisa. Neste sentido
não se trata de uma verdade evidente por si mesma, mas antes, trata-se
de uma postura arbitrária, e consequentemente carece de força ou
autoridade; É certamente inconcebível, mas também são inconcebíveis as
operações comuns da vontade humana. Ninguém pode compreender
como a mente age sobre a matéria. Porque o mundo existe na realidade,

370
Fichte, v. sel. Leben, p. 160.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 753
temos que admitir ou que começou a ser, ou que é eterno. Mas as
dificuldades envoltas com esta última hipótese são, como vimos quando
argumentávamos a existência de Deus, muito maiores que as implicadas
na admissão de uma criação ex-nihilo. Foi em parte a dificuldade de
conceber a não-existente passagem à existência, e em parte a necessidade
de uma solução da questão sobre a origem do mal, que levou a Platão e
outros filósofos gregos a adotar a teoria da eternidade da matéria, que
eles consideravam como a fonte do mal; uma teoria que passou a Filo e
aos pais platonistas. A teoria das Escrituras, ou antes, a doutrina da
origem do mal, refere-se à agência livre das criaturas racionais, e
prescinde da preexistência de algo independente de Deus.
2. Uma objeção mais temível, pelo menos uma que teve muito mais
poder, é que a doutrina de uma criação no tempo é inconsistente com a
verdadeira ideia de Deus. Esta objeção apresenta-se em duas formas. Em
primeiro lugar, diz-se, que a doutrina da criação supõe uma distinção
entre vontade e poder, ou eficiência e propósito na mente divina. Escoto
Erígena 371 diz: “Non aliud est Deo esse et facere, sed ei esse id ipsum
est et facere. Coæternum igitur est Deo suum facere et coessentiale.”
Esta era a doutrina comum da teologia escolástica, que definiu Deus
como sendo actus purus, e negou qualquer distinção nEle entre essência
e atributos, poder e ação. Se esta postura da natureza de Deus é correta,
então a doutrina que supõe que o propósito eterno de Deus não entrou
em vigência desde a eternidade, deve ser falsa. Se Deus cria pelo
pensamento, formou o mundo, quando Ele o propôs. Em segundo lugar,
diz-se que a doutrina da criação é inconsistente com a natureza de Deus,
assim que assume uma mudança nEle da inação à atividade. O que
estava fazendo Deus, pergunta-se, desde a eternidade antes de criar o
mundo? Se Ele é o Criador e Senhor, Ele sempre deve ter sido tal, e
portanto, sempre deve ter sido um universo sobre o qual Ele governou.
Estas dificuldades levaram a diferentes teorias designadas a evitá-las.

371
De Divisione Naturæ, I. 74.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 754
Orígenes, como antes se mencionou, ensina que houve uma
sucessão eterna de mundos. Outros dizem que a criação é eterna, embora
devido à vontade de Deus. Ele a fez desde o princípio o que as Escrituras
dizem que o fez no princípio. Uma base desde a eternidade se situa no
pó, ou um selo da eternidade impresso em cera, seria a causa da
impressão, embora a impressão que seria coeterna com a base ou o selo.
Os panteístas fazem com que o mundo seja essencial para Deus. Ele
existe só no mundo. “Das gottgleiche All ist nicht allein das
ausgesprochene Wort Gottes (natura naturata) sondern selbst das
sprechende (natura naturans): nicht das erschaffene, sondern das selbst
schaffende und sich selbst offenbarende auf unendliche Weise.” 372 Quer
dizer: “O universo não é somente a aberta palavra de Deus, mas também
isso que fala, não o criado, mas sim a autocriação e a revelação de si
mesmo em formas sem fim.”

Resposta às objeções anteriores.


No que respeita às acusações antes mencionadas, pode-se notar:
1. Que provêm de uma região que está totalmente fora de nossa
compreensão. Eles assumem que podemos entender o Todo-poderoso
rumo à perfeição e buscar todos os Seus caminhos, e que é óbvio que
com relação a um Ser que é eterno e não sujeito às limitações de tempo,
estamos usando palavras sem sentido, quando falamos de sucessiva
duração com referência a Ele. Se para Deus não passou nem futuro, é
vão perguntar o que estava fazendo antes da criação. Tem-se falado que,
quando se trata dos atributos de Deus, há dois métodos para determinar
nossas concepções da natureza divina e operações. Um é começar com a
ideia do Absoluto e Infinito e fazer dessa ideia o critério; afirmar ou
negar o que se assume que é consistente ou inconsistente com ela. Os
que adotam este método, negam-se a submeter-se aos ensinos de sua
natureza moral ou às revelações da Palavra de Deus, e fazer dele quer

372
Schelling, by Strauss, Dogmatik, Vol. I. p. 658.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 755
seja uma causa absolutamente desconhecida, ou negar a Ele todos os
atributos de uma pessoa. O outro método é começar com a revelação que
Deus tem feito de Si mesmo na constituição de nossa própria natureza e
em Sua palavra santa. Este método conduz à conclusão de que Deus
pode pensar e agir, que nEle essência e atributos não são idênticos, que
poder e sabedoria, vontade e obra nEle, não são um e o mesmo, e que a
distinção entre potentia (poder inerente ) e o ato aplica-se a Ele como a
nós. Em outras palavras, que Deus é imensamente mais que a pura
atividade, e portanto que não é inconsistente com Sua natureza que Ele
deve fazer num momento o que não faz em outro.
2. Uma segunda observação que se fez nestas objeções é que
demonstram muito. Se válidos contra uma criação no tempo, são válidos
contra todo o exercício do poder de Deus no tempo. Então não há tal
coisa como o governo providencial, ou graciosas operações do Espírito,
ou resposta à oração. Se o que Deus faz Ele o faz desde a eternidade,
então, no que concerne a nós, Ele não faz nada. Se exaltamos as ideias
especulativas da compreensão acima de nossa natureza moral e religiosa,
e acima da autoridade das Escrituras, nós abandonamos toda base de fé e
conhecimento, e não temos diante de nós nada senão o cepticismo
absoluto ou o ateísmo. Estas objeções, portanto, são simplesmente de
nossa própria invenção. Formamos uma ideia do Ser Absoluto de nossa
própria cabeça, e logo rejeitamos tudo o que não está de acordo com ela.
Não têm, portanto, nenhuma força, salvo para o homem que as faz.
3. Os teólogos escolásticos, que se encontravam nas travas de tais
especulações filosóficas, estavam acostumados a responder a estas
reflexões por sutilezas contrárias. Inclusive Agostinho diz que Deus não
criou o mundo no tempo, porque antes da criação não havia o tempo. “Si
literæ sacræ maximeque veraces ita dicunt, in principio fecisse Deum
coelum et terram, ut nihil antea fecisse intelligatur, quia hoc potius in
principio fecisse diceretur, si quid fecisset ante coetera cuncta quæ fecit;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 756
procul dubio non est mundus factus in tempore, sed cum tempore.” 373
Isto é muito certo. Se o tempo se mede pela duração do movimento ou
sucessão, é evidente que antes da sucessão não pode haver tempo. É
difícil, entretanto, ver como isso alivia o assunto. O fato permanece que
o mundo não é eterno, e portanto, em nosso modo de concepção, há
infinitas idades durante as quais o mundo não era. Ainda a dificuldade é
puramente subjetiva, derivadas das limitações de nossa natureza, que
proíbem nossa compreensão de Deus, ou nossa compreensão da relação
de Sua atividade aos efeitos produzidos no tempo. Tudo o que sabemos é
que Deus opera e age, e que os efeitos de Sua atividade têm lugar
sucessivamente no tempo.
4. Quanto à objeção de que a doutrina da criação supõe uma
mudança em Deus, os teólogos respondem que não supõe mudança em
Sua vontade ou propósito, porque Ele Se propôs criar desde a eternidade.
A respeito disso Agostinho diz: 374 “Una eademque sempiterna et
immutabili voluntate res quas condidit et ut prius non essent egit,
quamdiu non fuerunt, et ut posterius essent, quando esse coeperunt.” Em
outras palavras, Deus não Se propôs criar desde a eternidade, antes,
desde a eternidade Ele tinha o propósito de criar. Como não há mudança
de propósito envolto na criação, assim não há mudança da inação à
atividade envolta na doutrina. Deus é essencialmente ativo. Mas não se
deduz que Sua atividade é sempre a mesma, quer dizer, que sempre deve
produzir os mesmos efeitos. O propósito eterno entra em vigor tal como
estava previsto desde o princípio. Estas objeções, entretanto, são meras
teias de aranha, mas são teias de aranha no olho, o olho de nosso
entendimento fraco. São melhor desfeitos que fechando os olhos, e a
abertura do que as Escrituras chamam “os olhos do coração.” Quer dizer,
em lugar de nos submeter à guia da inteligência especulativa, deveríamos

373
De Civitate Dei, XI. 6, edit. Benedictines, vol. vii. p. 444, c, d.
374
De Civitate Dei, XII. 17, edit. Benedictines, vol. v"ii. p. 508, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 757
consentir em a ser guiados pelo Espírito como Ele revela as coisas de
Deus em Sua palavra, e em nossa própria natureza moral e religiosa.

§ 5. O propósito da Criação.

Os homens sempre se esforçaram para encontrar uma resposta


satisfatória à pergunta: Por que Deus criou o mundo? Que fim Se propôs
levar a cabo? As respostas a esta pergunta se buscaram das seguintes
fontes: — (1.) A natureza do próprio Deus. (2.) Da natureza de Suas
obras e o curso da história. (3.) A partir das declarações das Escrituras.
Quanto à primeira fonte, deve notar-se que os sistemas que se opõem à
admissão das causas finais, como o materialismo e o panteísmo em todas
as suas formas, é óbvio, opõem-se a qualquer pergunta quanto ao
desígnio da criação. O mundo é a evolução de uma força inconsciente,
força ininteligente, que não tem desígnio fora de si mesma. Perguntar
qual é o desígnio do mundo é, nestes sistemas, equivalente a perguntar o
que é o desígnio do ser de Deus, porque Deus é o mundo e o mundo é
Deus. Aqueles que admitem a existência de um Deus inteligente
extramundano, e que se esforçam por sua natureza para determinar a
finalidade para a qual Ele criou o mundo, seguiram distintos cursos e
chegam a conclusões diferentes. Da absoluta autossuficiência de Deus
segue-se que a criação não foi desenhada para cumprir ou satisfazer
qualquer necessidade de Sua parte. Ele não é nem mais perfeito nem
mais feliz por causa da criação. Mais uma vez se desprende da natureza
de um Ser infinito que a base (quer dizer, tanto o motivo e o fim) da
criação deve estar em Si mesmo. Como todas as coisas são dEle e por
Ele, assim também são para Ele. Alguns deduzem de Sua santidade que
o propósito de criar surgiu, por assim dizer, do desejo de ter um campo
para o desenvolvimento da excelência moral nas criaturas racionais. Sem
dúvida, a opinião mais comum desde o princípio foi que a criação se
referia às bonitas, à bondade, à benevolência, ou, como os alemães
modernos ao menos em geral o expressa, ao amor de Deus. Como Deus é
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 758
amor, e a natureza do amor é comunicar-se, visto que deve ter um objeto
em que desfrutar e prestar bênçãos, assim que Deus criou o mundo para
que Ele possa desfrutar dele e fazê-lo bendito.
Desde a época do Leibnitz, quem fez esta ideia da fundação de sua
“Théodicée”, esta teoria assumiu uma forma mais contraída. Reduziu o
amor a simples benevolência, ou o desejo de promover a felicidade. Daí
o fim da criação, supõe-se, é a produção da felicidade. E como Deus é
infinito, não só na benevolência, mas também em sabedoria e poder, este
mundo é necessariamente o melhor mundo possível para a produção da
felicidade. Esta teoria é muito fecunda de consequências. (1.) Como toda
virtude consiste em benevolência, a felicidade deve ser o bem supremo.
A santidade é boa só porque tende à felicidade. Não tem virtude própria.
(2.) O que tende a promover a felicidade é o correto. Não há tal coisa
como pecado. O que chamamos pecado, se significa um meio necessário
para o maior bem, converte-se em virtude. É o mal só na medida em que
tem uma tendência contrária. E como sob o governo de Deus todos os
pecados, passados ou presentes, assim curam uma maior quantidade de
felicidade que de outro modo seria possível, realmente não há no
universo. (3.) Isto é generalizado no princípio de que é correto fazer o
mal para que venha o bem. Este é o princípio em que Deus age, de
acordo com esta teoria, e é o princípio em que os homens têm direito e
obrigação de agir, e em que de fato agem. A pergunta que em cada
ocasião sua doutrina apresenta para a tomada de decisão é
necessariamente: Qual será a consequência de um determinado ato ou
conduta? Vai promover a felicidade ou o reverso? e a resposta decide o
curso a seguir. Os jesuítas elaboraram esta teoria numa ciência, e estão
em condições de determinar de antemão quando o assassinato, o perjúrio
e a blasfêmia se convertem em virtudes. Como esta doutrina revolta o
sentido moral, sua adoção é necessariamente degradante. Poucos
princípios, portanto, foram tão produtivos de doutrina falsa e imoralidade
como o princípio de que toda virtude consiste na benevolência, que a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 759
felicidade é o bem supremo, e que tudo o que promove a felicidade é o
correto.

A doutrina escriturística quanto ao propósito da Criação.


Evidentemente, é vão para o homem tentar determinar o propósito
da criação com base na natureza das obras de Deus e do curso de sua
providência. Isso demanda um conhecimento de todo o universo, e de
sua história até sua consumação. O único método satisfatório de decidir a
questão é apelando às Escrituras. Nelas se ensina de maneira explícita
que a glória de Deus, a manifestação de Suas perfeições, é o fim último
de todas as Suas obras. Este é: (1) O mais alto bem possível. O
conhecimento de Deus é vida eterna. É a fonte de toda santidade de toda
bem-aventurança para as criaturas racionais. (2) Na Bíblia afirma-se que
este é o fim do universo como um todo; do mundo externo ou das obras
da natureza; do plano da redenção; de todo o curso da história; do modo
em que Deus administra Sua providência e dispensa Sua graça; e de
acontecimentos particulares, como a eleição dos israelitas e todos os
procedimentos de Deus com eles como nação. É o fim ao qual todas as
criaturas racionais têm ordenado que devem prestar contínua menção; e
compreende e assegura todos os outros fins corretos. A objeção comum
de que isto mostra a Deus como egocêntrico já foi respondida. Deus,
como imensamente sábio e bom, busca o fim mais elevado; e como todas
as criaturas são como o pó da balança em comparação com Ele, segue
disso que sua glória é um fim imensamente mais elevado que nada que
concirna a elas exclusivamente. Que uma criatura busque sua própria
glória ou felicidade de preferência a Deus é insensatez e pecado, porque
é totalmente insignificante. Prefere com isso uma minúcia ao que é
imensamente importante. Sacrifica, ou trata de sacrificar, um fim que
envolve a mais alta excelência de todas as criaturas, à sua própria
vantagem. Serve à criatura antes que ao Criador. Prefere-se a si mesma
antes que a Deus. Muitos teólogos buscam combinar estas diferentes
perspectivas quanto ao desígnio da criação. Dizem que o mais elevado
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 760
fim é a glória de Deus, e o fim subordinado o bem de Suas criaturas. Ou
dizem que ambas as coisas são o mesmo. Deus Se propõe glorificar-se a
Si mesmo na felicidade de Suas criaturas; ou promover a felicidade de
Suas criaturas como maneira de manifestar Sua glória. Mas isto é
somente confundir a questão. O fim é uma coisa; as consequências,
outra. O fim é a glória de Deus; as consequências de alcançar este fim
são indubitavelmente o maior bem (não necessariamente a maior
quantidade de felicidade), e este maior bem pode incluir muito pecado e
muita miséria pelo que aos indivíduos respeita. Mas o mais alto bem é
que Deus seja conhecido.

§ 6. O relato mosaico da Criação.

Há três métodos de interpretar esta porção da Bíblia. (1) O


histórico. (2) O alegórico. (3) O mítico. O primeiro dá por sentado que se
trata de uma verdadeira história. O segundo adota duas formas. Muitos
dos Pais que alegorizavam a totalidade do Antigo Testamento sem negar
sua veracidade histórica, alegorizaram da mesma maneira a história da
criação. Isto é buscavam um sentido moral ou espiritual oculto debaixo
de todos os fatos históricos. Outros a consideravam como puramente
uma alegoria sem nenhuma base histórica, de maneira semelhante às
parábolas de nosso Senhor. A teoria mítica, como seu nome indica,
considera o registro da criação como uma mera fábula, ou cosmogonia
fabulosa, designada para expressar uma teoria quanto à origem do
universo, do homem e do mal, sem mais valor que as similares
cosmogonias que se encontram na anterior literatura de todas as nações.
Em favor do caráter histórico do registro temos as seguintes
considerações: (1) Apresenta-se como uma verdadeira história. (2) É a
introdução apropriada e necessária de uma história reconhecida. (3) É
usada e citada em outras partes da Bíblia como um verdadeiro relato da
criação do mundo, especialmente no quarto mandamento, onde, como
em outras partes da Escritura, é feita a base da instituição do Sábado. (4)
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 761
Os fatos que aqui se registram, incluindo como incluem a criação e a
prova do homem, encontram-se na base de todo o plano revelado de
redenção. Por isso, toda a Bíblia repousa sobre o registro aqui dado da
obra da criação, e consequentemente toda a evidência que vai sustentar a
autoridade divina da Bíblia tende a sustentar a veracidade histórica deste
registro.

Objeções ao relato mosaico da Criação.


As principais objeções ao relato mosaico da criação são ou críticos
ou astronômicos ou geológicos. Sob o primeiro cabeçalho objeta-se que
o relato é inconsequente consigo mesmo, especialmente no que se diz da
criação do homem, e que está evidentemente composto por documentos
independentes, em um dos quais Deus é chamado ‫( אֱלוֹ הִים‬Elohim) e
no outro ‫( י ְהוֹ ו ָה‬Yehowah). A primeira destas objeções é rebatida
mostrando que os dois relatos da criação não são inconsistentes; o
primeiro é uma concisa declaração do fato, e o outro um relato mais
pleno de seu desenvolvimento. Quanto à segunda objeção, é suficiente
dizer que, admitindo o fato em que se baseia, não cria dificuldade
alguma quanto a reconhecer o caráter histórico do registro. Não é
importante de onde Moisés derivou sua informação, fosse de um ou mais
documentos históricos, da tradição, ou de uma revelação direta.
Recebemos o relato com base em sua autoridade e com base na
autoridade do Livro do qual é uma parte reconhecida idêntica.
As objeções astronômicas são: (1) Que todo o relato evidentemente
supõe que nossa terra é o centro do universo, e que o sol, a lua e as
estrelas são seus satélites. (2) Que se diz que a luz foi criada, e a
alternância entre dia e noite estabelecida, antes da criação do sol; e (3)
Que os céus visíveis são representados como uma expansão sólida. A
primeira destas objeções milita com a mesma intensidade contra todas as
descrições da Bíblia e contra a linguagem da vida diária. Os homens
formam sua linguagem de maneira instintiva com base nas verdades
aparentes, e não da verdade absoluta ou científica. Falam do sol como
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 762
nascendo e pondo-se; de correr seu curso pelos céus, embora saibam que
isto é só na aparência e não verdade. A linguagem da Bíblia a respeito
desta questão, assim como em todas as outras, está constituída conforme
o uso comum dos homens. A segunda objeção se baseia na hipótese de
que o versículo 14 fala da criação do sol e dos outros corpos celestes.
Este não é o seu necessário sentido. O sentido poderia ser que Deus
dispôs então o sol e a lua para a função de medir e regular os tempos e as
estações. Mas inclusive se se adota a outra interpretação, não tem por
que haver conflito entre o registro e a realidade astronômica de que o sol
é agora a fonte de luz para o mundo. A narração faz uma distinção entre
a luz cósmica mencionada na primeira parte do capítulo, e a luz que
emana do sol, especialmente disposta para nosso globo. A terceira
objeção se responde com a observação já feita.
Se falarmos dos céus côncavos, por que não poderiam os hebreus
falar dos céus sólidos? A palavra firmamento se aplicou aos céus visíveis
que é tão familiar para nós como o foi para eles. Calvino bem observa:
“Moses vulgi ruditati se accommodans, non alia Dei opera commemorat
in historia creationis, nisi quæ oculis nostris occurrunt.” 375
A Geologia e a Bíblia.
As objeções geológicas ao registro geológico mosaico são
aparentemente as mais graves. Segundo a cronologia usualmente
recebida, nosso planeta existiu só uns poucos milhares de anos. Segundo
os geólogos, deve ter existido durante idades incontáveis. E de novo,
segundo a interpretação geral recebida do primeiro capítulo do Gênesis,
o processo de criação se completou em seis dias, enquanto que a
geologia nos ensina que deve ter estado em progresso através de
períodos de tempo que não se pode computar.
Admitir que os fatos são como os geólogos nos levariam a crer, dois
métodos de conciliação do relato mosaico com estes fatos se adotaram.
Em primeiro lugar, alguns entendem o primeiro verso para referir-se à
375
Institutio, I. xiv. 3, edit. Berlin, 1834, p. 112.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 763
criação original da matéria do universo no passado indefinido, e o que
segue para fazer referência à reorganização da última modificação no
estado de nossa terra para encaixar na morada do homem. Em segundo
lugar, a palavra dia tal como se utiliza em todo o capítulo se entende
como períodos geológicos de duração indefinida.
A favor desta última postura se insiste que a palavra dia utiliza-se
na Escritura em muitos sentidos diferentes, às vezes, no momento em
que o sol está sobre o horizonte, às vezes durante um período de vinte e
quatro horas, às vezes durante um ano, como em Lv 25:29, Jz 17:10, e
com frequência em outros lugares, às vezes por um período indefinido,
como nas frases, “o dia de sua calamidade”, “o dia da salvação”, “o dia
do Senhor”, “o dia do juízo.” E neste relato da criação utiliza-se para o
período da luz em antítese de noite, porque os distintos períodos no
progresso da criação; e, então, em Gn 2:4 [RC] para todo o período: “No
dia em que o SENHOR Deus fez a terra e os céus.”
É óbvio, admitiu-se que, tomando este relato por si mesmo, seria
mais natural entender a palavra em seu sentido comum, mas se esse
sentido leva o relato mosaico em conflito com os fatos, e outro sentido
evita tal conflito, então é obrigatório que nós adotemos esse outro. Agora
se insiste que se a palavra “dia” se toma no sentido de “um período
indefinido de tempo”, um sentimento que, sem dúvida, há em outras
partes da Escritura, não só existe nenhuma discrepância entre o relato
mosaico da criação e os fatos assumidos pela geologia, mas há uma
coincidência mais maravilhosa entre eles.
A cosmogonia da ciência moderna nos ensina que o universo, “o
céu e a terra”, esteve primeiro num estado caótico ou gasoso. O processo
de seu desenvolvimento incluiu as seguintes etapas: (1.) “A atividade
começou, — iluminou um resultado imediato. (2.) A terra fez uma esfera
independente. (3.) Esquema da terra e a água, determinando a
configuração geral da terra. (4.) A ideia da vida nas plantas mais baixas,
e depois, se não de forma simultânea, no mais baixo ou animais sem
sistema ou protozoários. (5.) A luz energizante do sol brilhando sobre a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 764
terra — um preliminar essencial para a visualização dos sistemas de
vida. (6.) Introdução dos sistemas de vida. (7.) Introdução dos mamíferos
— a mais alta ordem dos vertebrados, — a classe depois de ser digna
mediante a inclusão de um ser de natureza moral e intelectual. (8.)
Introdução do homem”. 376

O professor Dana diz além disso: “A ordem dos acontecimentos na


cosmogonia da Escritura corresponde essencialmente com o que se deu.
Houve primeiro um vazio sem forma e da terra: isto era literalmente
certo do “céu e a terra, se estivessem na condição de um fluido gasoso.

A sucessão é a seguinte: —
“1. Luz.
“2. A divisão das águas debaixo das águas sobre a terra (a palavra
traduzida águas pode significar fluido).
“3. A divisão da terra e a água na terra.
“4. Vegetação; que Moisés, apreciando as características filosóficas
da nova criação diferenciando-a de anteriores substâncias inorgânicas,
que define como “a semente que havia em si mesmo.”
“5. O sol, a lua e as estrelas.
“6. Os animais inferiores, os que pululam nas águas, e os que se
arrastam e espécies voadoras da terra.
“7. Animais de rapina (“réptil” aqui significa rondar).
“8. O homem.

“Nesta sucessão, observamos não só uma ordem de eventos,


igualmente se deduz da ciência, há um sistema no arranjo, e uma
profecia de longo alcance, a que a filosofia não pode ter alcançado,
embora indicada.

376
Manual of Geology. By James D. Dana, M. A., LL. D., Silliman Professor of Geology and Natural
History in Yale College, p. 743.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 765
“O relato reconhece na criação duas grandes épocas de três dias
cada uma, — uma Inorgânica e uma Orgânica. Cada uma destas épocas
abertas com a aparição da luz; a primeira, a luz cósmica, a segunda, luz
do sol para os usos especiais da terra.
“Cada época termina em ‘um dia’ de duas grandes obras — as duas
que se mostram distintas por ser solidariamente pronunciado ‘bom’. No
terceiro dia, esse fechar da Era Inorgânica, houve primeiro a divisão da
terra das águas, e depois a criação da vegetação, ou a instituição de um
reino da vida — uma obra muito diferente de todas as que a precedeu na
época. Assim que no sexto dia, terminando a era Orgânica, houve
primeiro, a criação dos mamíferos e, então uma segunda obra muito
maior, totalmente nova em seu elemento maior, a criação do Homem.

“O arranjo é, então, como segue: —

“I. A Era Inorgânica.

“1er Dia. — Luz cósmica.


“2do Dia. — A terra dividida pelo líquido ao redor dele, ou
individualizado.
“3er Dia. — “1. Separação da terra e a água.

2. Criação da vegetação.

“II. A Era Orgânica.

“4to Dia. — LUZ do sol.


“5to Dia. — Criação dos animais de ordem inferior.
“6to Dia. — 1. Criação dos mamíferos.
2. Criação do homem.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 766
377
“O registro na Bíblia”, acrescenta o professor Dana, “é portanto,
profundamente filosófico no esquema da criação que se apresenta. É, ao
mesmo tempo, verdadeira e divina. É uma declaração de autoria, tanto da
criação e da Bíblia, na primeira página do livro sagrado.” 378
No mesmo sentido ele diz em outro lugar: “O primeiro pensamento
que golpeia o leitor científico [do relato mosaico da criação] é a
evidência da divindade, não só no primeiro verso do registro, e os
sucessivos fiats, mas em toda a ordem da criação. Não é tanto que as
leituras mais recentes da ciência, pela primeira vez, explicaram que a
ideia do homem como o autor converte-se totalmente incompreensível.
Para provar o verdadeiro recorde, a ciência o pronuncia divino, pois
quem poderia ter narrado corretamente os segredos da eternidade, senão
o próprio Deus?” 379
As opiniões que figuram em seu “Manual de Geologia” são mais
completamente elaboradas pelo professor Dana em dois artigos
admiráveis na “Bibliotheca Sacra” (janeiro e julho de 1856). Ele diz, no
primeiro desses artigos, “As melhores posições que reunimos sobre a
harmonia entre a ciência e a Bíblia, são as do professor Arnold Guyot,
um filósofo da ampla compreensão da natureza e um espírito
verdadeiramente cristão; e as seguintes interpretações da história sagrada
são, em geral, como as que se reuniram de relações pessoais com ele.” 380
O professor Dana de Yale e o professor Guyot de Princeton,
pertencem à primeira linha de cientistas naturalistas, e os amigos da
Bíblia devemos a eles uma dívida de gratidão por sua hábil reivindicação
do registro sagrado.

377
Página 745.
378
Página 746.
379
Bibliotheca Sacra for January, 1856, p. 110.
380
Os pontos de vista do professor Guyot são apresentados com certo detalhe pelo Rev. Rev. J.O.
Means, nos números da Bibliotheca Sacra de janeiro e abril de 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 767
Como a Bíblia é de Deus, a verdade é que não pode haver conflito
entre os ensinos das Escrituras e os fatos da ciência. Não é com os fatos,
mas com as teorias, que os crentes devem lutar. Muitas teorias de vez em
quando foram apresentadas, aparentemente ou realmente inconsistentes
com a Bíblia. Mas, estas teorias ou provaram ser falsas, ou se
harmonizaram com a Palavra de Deus, adequadamente interpretada. A
Igreja se viu obrigada mais de uma vez a modificar sua interpretação da
Bíblia para acomodar-se às descobertas da ciência. Mas isto se tem feito
sem fazer qualquer violência às Escrituras ou em qualquer grau
menosprezar sua autoridade. Esta mudança, entretanto, não pode efetuar-
se sem uma luta. É impossível que nosso modo de entender a Bíblia não
deva ser determinada por nossos pontos de vista dos temas de que trata.
Enquanto os homens criam que a Terra era o centro de nosso sistema, o
sol seu satélite, e as estrelas sua ornamentação, eles entenderam
necessariamente a Bíblia de acordo com essa hipótese. Mas quando se
descobriu que a Terra era só um dos satélites menores do sol, e que as
estrelas eram mundos, então a fé, embora a princípio cambaleou, logo
cresceu suficientemente forte para aceitar tudo, e se alegra ao ver que a
Bíblia e a Bíblia só de todos os livros antigos, estava em completo
acordo com estas revelações estupendas da ciência. E então devia
provar-se que a criação é um processo continuado através de incontáveis
anos, e que só a Bíblia de todos os livros da antiguidade reconheceram
esse fato, pois, como diz o professor Dana, a ideia de ela ser de origem
humana chegaria a ser “totalmente incompreensível.”
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 768
CAPÍTULO XI
PROVIDÊNCIA

§ 1. Preservação.

As obras da providência de Deus são Sua preservação e governo


muito sapientes de todas Suas criaturas e todas Suas ações. Por isso, a
providência inclui preservação e governo. Por preservação se significa
que todas as coisas fora de Deus devem a continuação de sua existência,
com todas suas propriedades e poderes, à vontade de Deus. Esta é
claramente a doutrina das Escrituras. As passagens relacionadas com
este tema são muito numerosas. São de diferentes classes:
Primeiro, alguns declaram em termos gerais que Deus sustenta
todas as coisas pela palavra do seu poder, como Hb 1:3; Col 1:17, onde
se diz que «Nele, tudo subsiste» ou continua a existir. Em Ne 9:6: «Só tu
és SENHOR, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a
terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os
preservas a todos com vida».
Segundo, aquelas que se referem às operações regulares ou poderes
da natureza, das quais se diz que são preservadas em sua eficácia pelo
poder de Deus. Vejam-se os Salmos 104 e 148, inteiros, e muitas
passagens similares.
Terceiro, as que se relacionam com animais irracionais. E quarto, as
que se relacionam com criaturas racionais, das quais se dizem que
vivem, movem-se e têm seu ser em Deus.
Estas passagens ensinam com clareza:
(1) Que o universo como um todo não continua sendo por si
mesmo. Deixaria de existir se não estivesse sustentado pelo Seu poder.
(2) Que todas as criaturas, tanto se se trata de plantas como de animais,
em seus várias gêneros, espécies e indivíduos, prosseguem existindo não
por nenhum princípio vital inerente, mas pela vontade de Deus. (3) Que
esta preservação se estende não só à substância mas também à forma;
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 769
não só à essência, mas também às qualidades, propriedades e poderes de
todas as coisas criadas.

A natureza da preservação.
Esta doutrina, ensinada assim claramente nas Escrituras, é tão
consoante com a razão e com a natureza religiosa do homem, que não é
negada entre os cristãos. A única questão reside na natureza da eficiência
divina a que se tem que atribuir a existência continuada de todas as
coisas. A respeito desta questão há três opiniões gerais.
Primeiro, a dos que pressupõem que tudo deve atribuir-se ao
propósito original de Deus. Ele criou todas as coisas e determinou que
deveriam seguir sendo conforme as leis que Ele impôs sobre elas no
princípio. Não há necessidade, diz-se, de supor Sua contínua intervenção
para a preservação das mesmas. É suficiente que Ele não queira que
deixem de ser. Esta é a teoria adotada pelos Remonstrantes e geralmente
pelos Deístas dos tempos modernos. Segundo esta postura, Deus está
sentado em Seu trono nos céus, como mero espectador do mundo e de
suas operações, sem exercer uma influência direta na sustentação das
coisas que tem feito. Assim Limborch 381 descreve a preservação, como
sustentam muitos, que se limita a um “actus negativus . . . . [quo Deus]
essentias, vires ac facultates rerum creatarum non vult destruere; sed eas
vigori suo per creationem indito, quoad usque ille perdurare potest
relinquere.”
A este punto de vista se ha objetado, —
1. Que é, obviamente, oposto às representações da Bíblia. De
acordo com o ensino uniforme e que impregna as Escrituras, Deus não é
mais que um Deus de longe. Ele não é um mero espectador do universo
que Ele tem feito, mas sim está presente em qualquer parte em Sua
essência, conhecimento e poder. Para sustentar Sua mão a continuidade
de todas as coisas se referem continuamente, e se Ele retira Sua presença

381
Theologia Christiana, II. xxv. 7, edit. Amsterdam, 1700, p. 134.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 770
deixam de ser. Isto é tão claramente a doutrina da Bíblia que assim é
reconhecida por muitas posturas filosóficas que os obrigam a rejeitar a
doutrina por si mesmos.
2. É inconsistente com a dependência absoluta de todas as coisas de
Deus. Supõe-se que as criaturas têm em si mesmos um princípio de vida,
procedentes originariamente, com efeito, de Deus, mas capaz de seguir
sendo e o poder sem Sua ajuda. O Deus da Bíblia está em todas as partes
declarado ser a base todo-mantenedora de tudo o que é, de maneira que
se não se restabelecessem pela palavra de Seu poder, deixariam de ser.
As Escrituras expressamente distinguem o poder pelo qual as coisas
foram criadas a partir daquilo pelo que continuam. Todas as coisas não
só foram criados por ele, diz o Apóstolo, mas por Ele todas as coisas
subsistem. (Col. 1:17). Esta linguagem claramente ensina que o poder
onipotente de Deus preocupa-se tanto pela existência continuada, como
na criação original de todas as coisas.
3. Esta doutrina faz violência às convicções religiosas instintivas de
todos os homens. Inclusive os menos ilustrados vivem e agem sob a
convicção de dependência absoluta. Eles reconhecem a Deus como
presente e ativo em todas as partes. Se não o amam e confiam nEle, pelo
menos O temem e por instinto desprezam Sua ira. Não podem, sem
violentar a constituição de sua natureza, buscar a Deus como um Ser que
é um mero espectador das criaturas que devem sua existência à Sua
vontade.

A preservação não é uma criação contínua.


Uma segunda postura a respeito da natureza da preservação vai ao
extremo oposto de confundir criação com preservação.
Esta opinião foi levada a cabo em diferentes formas: —
1. Diz-se às vezes que a preservação e a criação devem ser
atribuídas a um mesmo ato divino. Por isso, pelo que a Deus concerne,
as duas coisas são idênticas. Essa perspectiva a adotam muitos que
admitem a realidade do mundo e a eficiência das segundas causas. Com
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 771
este modo de formulação tentam negar qualquer sucessão nos atos de
Deus. Ele não pode ser considerado como agindo no tempo, ou como
fazendo no tempo o que não tem feito desde a eternidade.
2. Outros que formulam a preservação como uma criação contínua
só significam por isso que a eficiência divina é tão realmente ativa num
caso como no outro. Desejam negar que nada fora de Deus tem a causa
da continuação de sua existência em si mesmo, e negar também que suas
propriedades ou poderes sejam inerentes quanto a que preservem sua
eficiência esta contínua ação de Deus. É neste sentido que devem ser
compreendidos a maior parte dos teólogos Reformados quando falam da
preservação como uma criação contínua.
Assim Heidegger 382 dice: “Conservatio continuata creation Dei
activa est. Si enim creatio et conservatio duæ actiones distinctæ forent,
creatio primo cessaret, ac tum conservatio vel eodem, quo creatio
cessavit, vel sequenti momento inciperet.” Isto só significa que o mundo
deve sua existência ao exercício ininterrupto do poder divino. Portanto,
em outra parte diz: “Conservationi annihilatio opponitur. Cessante
actione conservante res in nihilum collabitur.” Da mesma maneira
Alsted 383 diz: “Conservatio est quædam continuatio. Quemadmodum
creatio est prima productio rei ex nihilo, ita est conservatio rei
continuatio, ne in nihilum recidat. Deus mundum sustinet.” Ryssenius
(cuja obra é principalmente de Turrettin), 384 diz: “Providentia bene altera
creatio, dicitur. Nam eadem voluntate, qua Deus omnia creavit, omnia
conservat, et creatio a conservatione in eo tantum differt, quod quando
voluntatem Dei sequitur rerum existentia, dicitur creatio; quando res
eadem per eandem voluntatem durat, dicitur conservatio.” Isto equivale
só a dizer que como Deus criou todas as coisas com a palavra de Seu
poder, assim também Ele sustenta todas as coisas com a palavra de Seu
poder.
382
Heidegger, Corpus Theologiæ, loc. vii. 22, Tiguri, 1732, p. 251.
383
Alsted, Theol. Didaot. Hanoviæ, 1627, p. 283.
384
Summa Theologiæ, I. 209; Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 772
3. Mas há uma terceira forma na qual se mantém esta doutrina. Por
criação contínua se significa que toda a eficiência está em Deus; que
todos os efeitos devem ser referidos à Sua atividade. Assim como não
houve cooperação ao chamar o mundo do nada, assim não há cooperação
de segundas causas em sua continuação e operações. Deus, por assim
dizer, cria o Universo de novo em cada instante, como naquele momento
realmente é.

Objeções à doutrina de uma criação contínua.


Mas todas estas formulações são suscetíveis a objeções. A criação,
a preservação e o governo são de fato diferentes, e sua identificação
conduz não só à confusão mas também ao erro. A criação e a
preservação diferem, em primeiro lugar, em que o primeiro é chamar à
existência o que antes não existia; e o segundo é causar a continuação do
que já tem ser; e em segundo lugar, na criação não há nem pode haver
cooperação, mas na preservação há um concursus do primeiro, com
segundas causas. Na Bíblia, portanto, ambas as coisas nunca são
confundidas. Deus criou todas as coisas, e todas as coisas têm
consistência nEle. Quanto à primeira das três formas mencionadas de
uma criação contínua, é suficiente observar que se baseia na ideia a
priori de um Ser absoluto. Não é só uma pressuposição gratuita, mas sim
antiescriturística, que nega toda diferença entre vontade e eficiência, ou
entre o poder e o ato em Deus. Quanto à ideia de que os atos de Deus
não são sucessivos, que Ele nunca faz no tempo o que não faz desde a
eternidade, é evidente que esta linguagem não tem significado para nós.
Não podemos compreender a relação que a eficiência de Deus tem com
os efeitos produzidos sucessivamente. Mas sabemos que Deus age, e que
Ele produz efeitos sucessivos; e que, pelo que a nós respeita, e pelo que
respeita às descrições da Escritura, nossa relação com Deus e a relação
do mundo com Ele são precisamente o que seriam se Seus atos fossem
realmente sucessivos. É o cúmulo da presunção por parte do homem,
sobre a base de nossas ideias especulativas, separar-se das claras
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 773
descrições das Escrituras, e conceber de tal maneira a relação de Deus
com o mundo como pura fazer dEle na prática um Ser desconhecido,
unindo todas Suas perfeições na ideia geral de causa.
A objeção à segunda forma da doutrina não o é à ideia que se quer
expressar. É verdade que a preservação do mundo deve-se tanto ao poder
imediato de Deus como Sua criação; mas isto não demonstra que a
preservação seja criação. A criação é a produção de algo do nada. A
preservação é a sustentação de algo que já existe. Esta forma da doutrina
implica portanto um uso falso de termos. Mas uma objeção mais séria é
que este modo de objeção tende ao erro. O sentido natural das palavras é
o que os que as usam admitem ser falso, e não só é falso, mas também
perigoso.
Para a doutrina real de uma criação contínua, as objeções são mais
sérias:
1. Destrói toda continuidade de existência. Se Deus criar qualquer
coisa dada em cada momento do nada, deixa de ser a mesma coisa.
Trata-se de algo novo, por similar que seja ao que existisse antes. É tão
desligado do que o precederam como o próprio mundo quando surgiu do
nada, desconecta-se do nada anterior.
2. Esta doutrina destrói na realidade toda evidência da existência de
um mundo externo. O que nós consideramos assim, as impressões sobre
nossos sentidos com as que nos relacionamos com as coisas fora de nós
mesmos, são meramente estados interiores de consciência produzidos
momentaneamente pela energia criadora de Deus. Por isso, o Idealismo é
a consequência lógica, como o foi a histórica da teoria em questão. Se se
elimina toda necessidade para a existência de um mundo exterior, esta
existência deve ser descartada como uma hipótese antifilosófica.
3. Esta teoria, naturalmente, nega a existência das segundas causas.
Deus deve ser o único agente e a única causa no universo. Os céus e a
terra, com todos as suas mudanças e com tudo o que contêm, são tão
somente os palpites da vida universal de Deus. Se a preservação é uma
produção contínua do nada, de tudo o que existe, então toda existência
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 774
material, todas as propriedades da matéria assim chamada, cada alma
humana, e cada pensamento e sentimento humano, é tanto o produto
direto da onipotência divina como a criação original. Não pode, portanto,
nenhuma causalidade de Deus, ou qualquer forma de cooperação de
nenhum tipo mais que quando disse: Haja luz, e houve luz. Do mesmo
modo Ele constantemente agora diz, que os homens existam com todos
os pensamentos, propósitos e sentimentos, que constituem sua natureza e
caráter, no momento, e o são.
4. Com base nesta teoria não pode haver responsabilidade, nem
pecado, nem santidade. Se existe o pecado, tem que ser atribuído a Deus
tanto como a santidade, porque tudo se deve à Sua energia criadora.
5. Entre este sistema e o Panteísmo dificilmente há uma linha de
demarcação. O Panteísmo une o universo com Deus, mas não mais
eficazmente que a doutrina de uma criação contínua. Deus, num caso tão
realmente como no outro, é tudo o que vive. Não há poder, nem causa,
nem verdadeira existência mais que a eficiência e causalidade de Deus.
Isto é evidente, e é geralmente admitido. Hagenbach 385 diz: «A criação
do nada repousa no Teísmo. Transforma-se em deísta se a criação e a
preservação se separam violentamente e ficam em direta oposição entre
si; e panteísta se a criação faz-se um mero momento em preservação».
“Na criação”, diz Strauss, “Deus opera tudo, a criatura que assim
produzida pela primeira vez, nada.” Se, por conseguinte, a preservação é
só a continuação da mesma relação entre Deus e a criatura, segue-se que
tudo o que Deus ainda efetua todas as coisas e a criatura, nada;
consequentemente, fora de Deus, ou que não seja Deus, não há causas,
nem sequer casuais. Leibnitz, 386 cita Bayle como dizendo, “Il me
semble, qu’il en faut conclure, que Dieu fait tout, et qu’il n’y a point
dans toutes les créatures de causes premières, ni secondes, ni même
occasionelles.” E outra vez, “On ne peut dire que Dieu me crée

385
Dogmengeschichle, II. Zweite Hälfte, pág. 288. edic. Leipzig, 1841.
386
Théodicée, II. 386; Opera, edit. Berlin, 1840, p. 615.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 775
premièrement, et qu’ étant crée, il produise avec moi mes mouvemens et
mes déterminations. Cela est insoutenable pour deux raisons: la première
est, que quand Dieu me crée on me conserve à cet instant, il ne me
conserve pas comme un être sans forme, comme une espèce ou quelque
autre des universaux de logique. Je suis un individu; il me crée et
conserve comme tel, étant tout ce que je suis dans cet instant avec toutes
mes dépendances.”
Fazer preservação, portanto, uma criação contínua, leva a
conclusões diante das verdades essenciais da religião, e em contradição
com nossas crenças necessárias. Estamos obrigados pela constituição de
nossa natureza a crer no mundo externo e na realidade das segundas
causas. Sabemos pela consciência de que somos os autores responsáveis
por nossos próprios atos, e que seguimos de forma idêntica à mesma
substância, pelo que não se criam do nada de momento a momento. Este
tema vai se expor mais uma vez ao tratar-se da teoria do Presidente
Edwards, e sua aplicação à relação entre Adão e sua raça.

A doutrina escriturística a respeito desta questão.


Entre os dois extremos de enunciar a preservação como um mero
ato negativo, uma vontade de não destruir, que nega qualquer eficiência
contínua de Deus no mundo, e uma teoria que resolve tudo na agência
imediata de Deus, negando a realidade de todas as segundas causas,
temos a clara doutrina da Escritura, que ensina que a continuidade do
mundo em sua existência, a preservação de sua substância, propriedades
e formas; deve ser atribuída ao poder onipresente de Deus. Ele sustenta
assim como Ele cria todas as coisas, mediante a palavra de Seu poder. É
em vão indagar como o faz. Enquanto que não saibamos como movemos
nossos lábios, ou como a mente pode influir sobre a matéria, ou como a
alma está presente e operando em todo o corpo, precisa-se de pouca
humildade para suprimir a ofegante curiosidade por conhecer como Deus
sustenta o universo com todas as suas hostes em ser e atividade. Os
teólogos do século XVII, trataram de explicar isto por um concursus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 776
geral, ou, como eles o chamavam, o influxo de Deus em todas as Suas
criaturas. Diz-se ser um “Actus positivus et directus, quo Deus in genere
in causas efficientes rerum conservandas influxu vero et reali influit, ut
in natura, proprietatibus et viribus suis persistant ac permaneant.” 387 Mas
o que ganhamos dizer que a alma por “um influxo real e verdadeiro”
funciona em todas as partes do corpo. O fato se revela claramente que a
agência de Deus é sempre e em todas as partes exercido na preservação
de Suas criaturas, mas o modo em que Sua eficiência se exerce, além do
que é coerente com a natureza das próprias criaturas e com a santidade e
a bondade de Deus, é oculto e inescrutável. O melhor, portanto, é ficar
satisfeito com a singela declaração de que a preservação é aquela
onipotente energia de Deus por meio da qual todas as coisas criadas,
animadas e inanimadas, são sustentadas em existência, com todas as
propriedades e poderes de que Ele as dotou.

§ 2. Governo.

Enunciado da doutrina.
A providência inclui não só a preservação, mas também o governo.
Este último inclui as ideias de desígnio e de controle. Supõe um fim a
alcançar, e a disposição e direção dos meios para sua realização. Se Deus
governa o universo, Ele tem algum grande fim, incluindo um número
infinito de fins subordinados, para com os quais é dirigido, e Ele tem que
controlar a sequência de todos os acontecimentos de maneira que
assegure o logro de todos os Seus propósitos. A respeito deste governo
providencial a Escritura ensina: (1) Que é universal, incluindo todas as
criaturas de Deus, e todas suas ações. O mundo externo, as criaturas
racionais e as irracionais, grandes e pequenas, comuns e extraordinárias,
estão igualmente e sempre sob o controle de Deus. A doutrina da
providência exclui do universo tanto a necessidade como o acaso, pondo

387
Hollaz, Examen Theologicum, edit. Leipzig, 1763, p. 441.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 777
em seu lugar o controle universal e inteligente de um Deus infinito e
onipresente. (2) As escrituras ensinam deste modo que este governo de
Deus é poderoso. É o domínio universal da Onipotência que assegura o
cumprimento de Seus desígnios, que abrangem em sua esfera a tudo o
que ocorre. (3) Que é sábio; o que significa não só que os fins que Deus
tem em vista são consequentes com Sua infinita sabedoria, e que os
meios empregados estão sabiamente adaptados a seus respectivos
objetos, mas também que Seu controle é ajustado à natureza das criaturas
sobre as quais é exercido. Ele governa o mundo material de acordo com
leis fixas que Ele mesmo estabeleceu, os animais irracionais por seus
instintos, e as criaturas racionais segundo sua natureza. (3) A
providência de Deus é santa. Isto é, nada nos fins propostos, nem nos
meios adotados nem na agência empregada é inconsequente com Sua
infinita santidade, ou que não seja demandado pela mais sublime
excelência moral. Isto é tudo o que as Escrituras revelam a respeito deste
tema assaz importante e difícil. E aqui se poderia muito bem o tema ser
permitido descansar.
É suficiente para nós saber que Deus governa todas as Suas
criaturas e todas as suas ações, e que seu governo enquanto
absolutamente eficaz, é imensamente sábio e bom, dirigido a assegurar o
mais alto fim, e perfeitamente consistente com Sua própria perfeição e
com a natureza de Suas criaturas. Mas os homens insistiram em
responder as perguntas: Como Deus governa o mundo? Qual é a relação
entre Sua agência e a eficiência das segundas causas? E sobre tudo:
Como pode o controle absoluto de Deus ser reconciliado com a liberdade
dos agentes racionais? Estas são perguntas que nunca se pode resolver.
Mas como os filósofos insistem em responder a elas, faz-se necessário
que os teólogos examinem essas respostas, e mostrem sua falácia quando
entram em conflito com os fatos provados da revelação e da experiência.
Antes de considerar a mais importante das teorias que se têm proposto
para explicar a natureza do governo providencial de Deus, e sua relação
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 778
com o mundo, será adequado apresentar um breve esboço do argumento,
em apoio da verdade da doutrina como se assinalou anteriormente.

A. Prova da doutrina.

Esta doutrina brota necessariamente da ideia escriturística de Deus.


Ele é declarado um ser pessoal, infinito em sabedoria, bondade e poder;
que é o Pai dos espíritos. Desta segue não só que age inteligentemente,
isto é, com vistas a um fim, e com razões suficientes, mas sim deve estar
interessado no bem das criaturas, racionais ou irracionais, grandes e
pequenas. A ideia de que Deus ia criar este imenso universo cheio de
vida em todas as suas formas, e não exercitar controle algum sobre o
mesmo, para preservá-lo de destruição ou de que não operasse outra
coisa mais que o mal, é totalmente inconsequente com a natureza de
Deus. E supor que qualquer coisa seja grande demais para ser incluída
em Seu controle, ou que nada seja muito pequeno para que escape à Sua
observação, ou que a infinitude dos particulares possa distrair Sua
atenção, é esquecer que Deus é infinito. Não pode demandar nenhum
esforço da parte dEle, a inteligência onipresente e infinita, poder
compreender e dirigir todas as coisas, por complexas, numerosas ou
diminutas que sejam. O sol difunde sua luz por todo o espaço tão
facilmente como sobre um ponto qualquer. Deus está igualmente
presente em todas as partes, e com todas as coisas, como se só estivesse
num único lugar e tivesse um só objeto de atenção. A objeção comum à
doutrina de uma providência universal, baseada na ideia de que é
incompatível com a dignidade e majestade do Ser divino supor que Ele
se ocupe de pequenezes, supõe que Deus é um ser limitado; que devido
ao fato de que nós só podemos prestar atenção a uma coisa ao mesmo
tempo, que assim deve ser com Deus. Quanto mais exaltados sejam
nossos conceitos do Ser divino tão menos nos turvaremos por
dificuldades deste tipo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 779
1. Prova com base na evidência da operação
da Mente em todos os lugares.
Todo o universo, até onde possa ficar submetido à nossa
observação, exibe evidência da inteligência onipresente e controle de
Deus. A mente está em todas as partes em atividade. Em todas as partes
se manifesta a inteligente adaptação de meios para um fim; tanto na
organização dos microorganismos, onde se precisa de um microscópio
para revelá-la, como na ordem dos corpos celestes. A mente não está na
matéria. Não se trata de uma cega vis naturae [energia natural]. É e tem
que ser a inteligência de um Ser infinito e onipresente. Está tão longe do
poder de uma criatura o dar origem a um inseto como criar o universo. E
é tão irrazoável supor que as formas organizadas da vida vegetal e
animal devem-se às leis da natureza como o seria supor que uma
imprensa pudesse ser utilizada para compor um poema. Não há
adaptação nem relação entre os meios empregados e o fim. Onde há a
inteligente adaptação de meios para um fim há evidência da presença da
mente. E como esta evidência de atividade mental encontra-se em todas
as partes do universo, vemos a Deus sempre ativo e sempre presente em
todas as Suas obras.

2. Argumento com base em nossa natureza religiosa.

A doutrina escriturística de uma providência universal está


demandada pela natureza religiosa do homem. Por isso, trata-se de uma
crença instintiva necessária. Só é expulsa da mente ou dominada por
meio de um esforço persistente. Em primeiro lugar, não podemos mais
que considerar como uma limitação imposta a Deus supô-Lo ausente,
seja quanto ao conhecimento, seja quanto ao poder, de nenhuma parte de
Sua criação. Em segundo lugar, nosso sentimento de dependência
envolve a convicção não só de que devemos nossa existência à Sua
vontade, mas também é nEle que nós e todas as Suas criaturas vivemos,
nos movemos, e temos nosso ser. Em terceiro lugar, nosso sentimento de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 780
responsabilidade implica que Deus é conhecedor de todos os nossos
pensamentos, de todas as nossas palavras e de todas as nossas ações, e
que Ele controla todas as nossas circunstâncias e o nosso destino, tanto
nesta vida como na vida vindoura. Esta convicção é instintiva e
universal. Encontra-se em homens de todas as idades, e sob todas as
formas de religião, e em todos os estados de civilização. Os homens
creem universalmente no governo moral de Deus; e universalmente
creem que o governo moral é administrado, ao menos em parte, neste
mundo. Eles veem que Deus com frequência reprime ou castiga aos
ímpios. Quem pecou, este ou seus pais, que nascesse cego? foi o
pronunciamento de um sentimento natural; a expressão, embora errônea
quanto à forma, da convicção irreprimível de que tudo está ordenado por
Deus. Em quarto lugar, nossa natureza religiosa demanda a relação com
Deus. Ele tem que ser para nós o objeto da oração e a base da confiança.
Temos que olhar a ele na angústia e no perigo; não podemos nos refrear
de lhe invocar por sua ajuda, nem de lhe dar as graças por nossas
misericórdias. A não ser que a doutrina de uma providência universal a
certa, tudo isto resulta um engano. Mas esta é a relação em que as
Escrituras e a constituição de nossa natureza supõem que estamos com
Deus, e que Ele tem com o mundo. Ele está sempre presente,
controlando-o tudo, ouvindo e respondendo cada oração, nos dando
nossas misericórdias diárias, e nos conduzindo em todos nossos
caminhos. Esta doutrina da providência, portanto, é o fundamento de
toda religião prática, e sua negação é praticamente ateísmo, porque então
ficamos sem Deus no mundo. Pode-se dizer que estes sentimentos
religiosos devem-se a nossa educação; que os homens educados na
crença das bruxas e as fadas, ou de agentes sobrenaturais de qualquer
tipo, referem-se na realidade devido aos acontecimentos das operações
da natureza à intervenção de seres espirituais. A isto pode responder-se,
em primeiro lugar, que o sentido de dependência, de responsabilidade, de
obrigação por misericórdias recebidas e do controle dos acontecimentos
exteriores pelo poder de Deus, é muito universal relatar-se por qualquer
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 781
forma peculiar da educação. Estes são convicções genéricas ou
fundamentais da mente humana, que se manifestam em formas mais ou
menos adequadas, de acordo com o grau de conhecimento que os
homens diferentes possuem. E em segundo lugar, considera-se que o
argumento se baseia na verdade e a justiça destes sentimentos, e não em
sua origem. É neste caso como o é com nossas convicções morais. O fato
de que nosso conhecimento do que é bom ou mau e de que as opiniões
humanas a respeito de este ponto se possam modificar mediante a
educação e as circunstâncias não demonstra que nossa natureza moral se
deva à educação; nem tampouco sacode as convicções que temos do
correto de nossos juízos morais. Pode ser, e indubitavelmente é certo,
que devemos às Escrituras a maior parte de nosso conhecimento da lei
moral, mas isto não danifica nossa confiança na autoridade e veracidade
de nossas perspectivas a respeito do dever e da obrigação moral. Estes
sentimentos religiosos têm uma luz auto-autenticadora assim como
informadora. Sabemos que são certos, e sabemos que a doutrina que
quadra com eles e que os produz tem que ser certa. Por isso, é um
argumento válido em favor da doutrina de uma providência universal o
fato de que cumpre as demandas de nossa natureza religiosa e moral.

3. Argumento com base nas predições e promessas.

Um quarto argumento geral a respeito deste tema se deriva das


predições, promessas e ameaças registradas na Palavra de Deus. Estas
predições não são meras declarações gerais das consequências prováveis
ou naturais de certos cursos de ação, mas sim revelações específicas do
acontecimento de eventos futuros, cuja futuridade não pode ser
assegurada exceto no exercício de um controle totalmente certo sobre as
causas dos agentes, tanto naturais como morais. Deus promete dar saúde,
longa vida e estações de prosperidade; ou ameaça infligir severos juízos,
as desolações da guerra, da fome, da seca e da pestilência. Estas
promessas e ameaças supõem uma providência universal, um controle
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 782
sobre todas as criaturas de Deus, e sobre todas as suas ações. Como tais
promessas e ameaças abundam na Palavra de Deus; como Seu povo e
todas as nações reconhecem tais benefícios ou calamidades como
dispensações divinas, é evidente que a doutrina da Providência subjaz a
toda religião, seja natural, seja revelada.

4. Argumento com base na experiência.

A respeito desta questão podemos remeter-nos a todas as


experiências. Cada homem pode ver que sua vida foi ordenada por uma
inteligência e uma vontade que não são as suas. Toda sua história foi
determinada por acontecimentos sobre os quais não tem controle,
acontecimentos que em si mesmos são, com frequência, aparentemente
fortuitos, de maneira que deve supor ou que os acontecimentos mais
importantes são determinados pela casualidade, ou que a providência de
Deus se estende a todos os acontecimentos, incluindo os mais pequenos.
O que é certo dos indivíduos é certo das nações. O Antigo Testamento é
o registro dos procedimentos providenciais de Deus com o povo hebreu.
A chamada de Abraão, a história dos patriarcas, de José, da peregrinação
dos Israelitas no Egito, de sua libertação e peregrinação pelo deserto, de
sua conquista da terra de Canaã, e toda sua história posterior, é um
registro contínuo do controle de Deus sobre todas as suas circunstâncias,
um controle que se descreve como estendendo-se a todos os
acontecimentos. De uma maneira semelhante, a história do mundo
revela, ao olho inteligente, a providência sempre presente de Deus, tão
claramente como os céus declaram Sua majestade e poder.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 783
B. As Escrituras ensinam a providência de Deus sobre a
natureza.

Encontramos que a Bíblia afirma que a agência providencial de


Deus é exercida sobre todas as operações da natureza. Isto se afirma com
relação às operações comuns das leis físicas: o movimento dos corpos
celestes, a sucessão das estações, o crescimento e a diminuição da
produção da terra, e a queda da chuva, do pedrisco e da neve. É Ele
quem conduz a Ursa Maior em seu curso, que faz com que o sol se
levante e que a erva cresça. Estes acontecimentos são descritos, como
devidos à onipresente atividade de Deus, e são determinados não por
acaso nem por necessidade, mas por Sua vontade. Paulo diz (At 14:17)
que Deus «não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo» nem entre
os pagãos, «fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações
frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria». Nosso
Senhor diz (Mt 5:45) que Deus «faz nascer o seu sol sobre maus e bons e
vir chuvas sobre justos e injustos». Ele veste «assim a erva do campo,
que hoje existe e amanhã é lançada no forno» (Mt 6:30). De maneira
semelhante diz-se que as operações mais insólitas e destacáveis das leis
naturais, terremotos, tempestades e pestilências, são enviadas,
governadas e determinadas por Ele, de maneira que os efeitos que
produzem são atribuídos a Seu propósito. Ele faz dos ventos Seus
mensageiros, e os raios são Seus espíritos ministradores. Inclusive os
acontecimentos aparentemente fortuitos, como aqueles que estão
determinados por causas tão rápidas ou tão inapreciáveis para evitar
nossa detecção, como a queda do destino, o voo de uma flecha, o número
dos cabelos de nossa cabeça, tudo isso está controlado por um Deus
onipresente. «Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles
cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai» (Mt 10:29).
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 784
A providência se estende sobre o mundo animal.
A Escritura ensina que os animais irracionais são objeto do cuidado
providencial de Deus. Ele forma seus corpos, chama-os ao mundo,
sustenta-os em seu ser, e supre as suas necessidades. Em Sua mão está a
vida de todo ser vivente (Jó 12:10). O Salmista diz (Sl 104:21): «Os
leõezinhos rugem pela presa e buscam de Deus o sustento». Vv. 27, 28:
“Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás,
eles o recolhem; se abres a mão, eles se fartam de bens.” Mt 6:26:
«Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em
celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta». At 17:25: “Ele mesmo é
quem a todos dá vida, respiração e tudo mais.” Tais descrições não
devem ser desvirtuadas como modos poéticos de expressão da ideia de
que as leis da natureza, ordenadas por Deus, estão dispostas de tal
maneira que suprem as necessidades da criação animal, sem nenhuma
intervenção especial de Sua providência. Não é simplesmente o fato de
que o mundo, tal como foi criado por Deus, está adaptado para satisfazer
as necessidades de Suas criaturas, como se afirma nas Escrituras, mas
antes, Suas criaturas dependem do exercício constante de Seu cuidado.
Ele dá ou nega o que necessitam de acordo com Sua boa vontade.
Quando nosso Senhor pôs na boca de Seus discípulos a petição: «o pão
nosso de cada dia, dá-nos hoje», reconheceu o fato de que todos os seres
viventes dependem da constante intervenção de Deus para a provisão de
suas necessidades diárias.

Sobre as nações.
A Bíblia ensina que o governo providencial de Deus se estende
sobre as nações e comunidades humanas. Sl 66:7, «Ele, em seu poder,
governa eternamente; os seus olhos vigiam as nações; não se exaltem os
rebeldes». Dn 4:35: «Todos os moradores da terra são por ele reputados
em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra». Dn 2:21: «É ele quem muda o tempo e as estações,
remove reis e estabelece reis». Dn 4:25: «O Altíssimo tem domínio sobre
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 785
o reino dos homens e o dá a quem quer». Is 10:5, 6. «Ai da Assíria, cetro
da minha ira! A vara em sua mão é o instrumento do meu furor. Envio-a
contra uma nação ímpia ». Versículo 7: «Ela, porém, assim não pensa, o
seu coração não entende assim». Versículo 15: «Porventura, gloriar-se-á
o machado contra o que corta com ele? Ou presumirá a serra contra o
que a maneja? Seria isso como se a vara brandisse os que a levantam ou
o bastão levantasse a quem não é pau!» As Escrituras estão repletas desta
doutrina. Deus usa às nações com o controle absoluto com que um
homem emprega uma vara ou um cajado. Estão em suas mãos, e as
emprega para cumprir seus propósitos. As quebra a partes como a
vasilha de um oleiro ou as exalta à grandeza, segundo sua boa vontade.

Sobre os indivíduos.
A providência de Deus se estende não só sobre as nações mas
também sobre os indivíduos. As circunstâncias do nascimento de cada
homem, de sua vida e morte, estão ordenadas por Deus. Quer nasçamos
numa terra pagã ou cristã, na Igreja ou fora dela; quer sejamos fracos ou
fortes; com poucos ou muitos talentos; quer sejamos prósperos ou que
estejamos afligidos; quer vivamos mais ou menos tempo, isto não são
questões determinadas pelo acaso, nem por uma sequência cega de
acontecimentos, mas pela vontade de Deus. 1Sm 2:6, 7: «O SENHOR é
o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir. O SENHOR
empobrece e enriquece; abaixa e também exalta». Is 45:5: «Eu sou o
SENHOR [o soberano absoluto], e não há outro; além de mim não há
Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até
ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou
o SENHOR, e não há outro». Pv 16:9: «O coração do homem traça o seu
caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos». Sl 75:6, 7: «Porque não
é do Oriente, não é do Ocidente, nem do deserto que vem o auxílio. Deus
é o juiz [governante]; a um abate, a outro exalta». Sl. 31:15: «Nas tuas
mãos, estão os meus dias [as vicissitudes de minha vida]». At 17:26:
Deus «de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 786
terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos [isto é, os
pontos de inflexão da história] e os limites da sua habitação».

A providência de Deus com relação às ações livres.


A Bíblia ensina com não menos clareza que Deus exerce um poder
controlador sobre as ações livres dos homens, assim como suas
circunstâncias externas. Isto é certo de todas as suas ações, boas e
ímpias. Declara-se em termos gerais que Seu domínio se estende sobre
toda a vida interior deles, e especialmente sobre suas boas ações. Pv
16:1: «O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos
lábios vem do SENHOR». Pv 21:1: «Como ribeiros de águas assim é o
coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o
inclina». Ed 7:27 «Bendito seja o SENHOR, Deus de nossos pais, que
deste modo moveu o coração do rei para ornar a Casa do SENHOR». Êx
3:21: «Eu darei mercê a este povo aos olhos dos egípcios». Sl 119:36:
«Inclina-me o coração aos teus testemunhos». Sl 141:4: «Não permitas
que meu coração se incline para o mal». Uma grande parte das
predições, promessas e ameaças da palavra de Deus se baseiam sobre a
pressuposição deste controle absoluto sobre os atos livres de Suas
criaturas. Sem isto não pode haver governo do mundo nem certeza
quanto ao resultado. A Bíblia está cheia de orações baseadas nesta
mesma pressuposição. Todos os cristãos creem que os corações dos
homens estão na mão de Deus, que Ele opera neles tanto o querer como
o fazer, segundo a Sua boa vontade.

A relação da providência de Deus com o pecado.


Com relação aos atos pecaminosos dos homens, as Escrituras
ensinam:
(1) Que estão de tal maneira sob o controle de Deus que podem
acontecer só por permissão dEle e em execução de Seus propósitos. Ele
os conduz de tal maneira no exercício de sua maldade que as formas
particulares de sua manifestação são determinadas pela vontade de Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 787
Em 1Cr 10:4-14 diz-se que Saul se matou a si mesmo, mas em outra
passagem afirma-se que Deus o matou e deu o reino a Davi. Também
diz-se que Ele endureceu o coração de Faraó; que Ele endureceu o
coração de Seom rei de Hesbom; que Ele levou os corações dos gentios a
aborrecerem a seu povo; que Ele cega os olhos dos homens e os envia
uma operação de erro para que creiam na mentira; que Ele agita as
nações à guerra. Em Ap 17:17, é dito: «Em seu coração incutiu Deus que
realizem o seu pensamento, o executem à uma e deem à besta o reino
que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus».
(2) As Escrituras ensinam que a maldade dos homens fica reprimida
dentro de limites prescritos. Sl 76:10 [RC]: «A cólera do homem
redundará em teu louvor, e o restante da cólera, tu o restringirás». 2Rs
19:28. «Por causa do teu furor contra mim e porque a tua arrogância
subiu até aos meus ouvidos, eis que porei o meu anzol no teu nariz e o
meu freio na tua boca e te farei voltar pelo caminho por onde vieste».
(3) As ações ímpias podem ser direcionadas para o bem. A ímpia
conduta dos irmãos de José, a teimosia e desobediência de Faraó, o anelo
de conquista e cobiça rapinante que conduzia os governantes gentios em
suas invasões da Terra Santa; sobretudo, a crucificação de Cristo, as
perseguições da Igreja, as revoluções e guerras entre as nações foram
dirigidas de tal maneira por Aquele que se assenta como governante nos
céus?, que levaram ao cumprimento de seus sábios e misericordiosos
desígnios.
(4) As Escrituras ensinam que a providência de Deus com relação
aos pecados dos homens é tal que a pecaminosidade dos mesmos
procede só da criatura e não de Deus, que nem é nem pode ser o autor
nem aprovador do pecado. 1 Jo 2:16: «Porque tudo que há no mundo, a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida,
não procede do Pai [não dEle como fonte ou autor], mas procede do
mundo». Tg 1:13. «Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus;
porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém
tenta». Jr 7:9: «Furtais e matais, cometeis adultério e jurais falsamente,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 788
queimais incenso a Baal e andais após outros deuses que não conheceis,
e depois vindes, e vos pondes diante de mim nesta casa que se chama
pelo meu nome, e dizeis: Estamos salvos; sim, só para continuardes a
praticar estas abominações!»
Assim, o fato de que Deus governa a todas as Suas criaturas e todas
as suas ações está claramente ensinado nas Escrituras. E este fato é o
fundamento de toda religião. É a base da consolação de Seu povo em
todas as épocas; e se pode dizer que é a convicção intuitiva de todos os
homens, por inconsequente que seja com suas teorias filosóficas ou com
seus profissões. O fato desta providência universal de Deus é tudo o que
a Bíblia ensina. Em nenhuma parte busca informar-nos de como faz
Deus para governar todas as coisas, nem como o Seu controle efetivo
deve reconciliar-se com a eficiência das segundas causas. Todos os
intentos dos filósofos e teólogos para explicar este ponto podem ser
declarados como fracassos, e pior que fracassos, porque não só suscitam
mais dificuldades que as que resolvem, mas também em quase todos os
casos incluem princípios ou conduzem a conclusões incongruentes com
os claros ensinos da palavra de Deus. Estas teorias se baseiam todas em
algum princípio a priori que é aceito sobre uma base não mais elevada
que a da razão humana.

§ 3. Teorias diferentes a respeito do governo divino.

A. A teoria deísta da relação de Deus com o mundo.

A primeira das posturas gerais da relação de Deus com o mundo é a


que foi adotada amplamente pelos racionalistas, deístas, e os homens do
mundo. Baseia-se no suposto de que o Ser Supremo é muito exaltado
para ocupar-se com as preocupações insignificantes de Suas criaturas
aqui na terra. Ele fez o mundo e lhe imprimiu certas leis, dotando a
matéria com suas propriedades e seres racionais com os poderes da
agência livre, e tendo feito isto, deixa o mundo à orientação destas leis
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 789
gerais. Segundo esta opinião, a relação que Deus tem com o universo é o
de um mecânico com uma máquina. Quando um artista fez um relógio,
ele anda por si mesmo, sem sua intervenção. Ele nunca é chamado para
interferir com seu funcionamento, exceto para remediar algum defeito.
Mas como nenhum defeito desse tipo pode ser admitido nas obras de
Deus, não há nenhuma convocatória de Sua intervenção, e Ele não
interfere. Todas as coisas devem passar em virtude da execução de
causas que Ele criou e pôs em marcha no princípio. De acordo com este
ponto de vista, Deus de maneira nenhuma determina os efeitos de causas
naturais, nem controla os atos de agentes livres. A razão de que uma
época é propícia e a terra produz seus frutos em abundância, e que outra
é à inversa; que um ano varre a peste sobre a terra, e outro ano está
isento de tanta desolação; que de dois navios que navegam desde o
mesmo porto, um é destruído e o outro tem uma viagem feliz; que a
Armada Espanhola foi dispersada por uma tormenta e a Inglaterra
protestante foi salva da dominação papal; que Cromwell e seus
companheiros foram presos e impedidos de navegar para os Estados
Unidos, que decidiram o destino da liberdade religiosa em Grã-Bretanha
— de que todos estes acontecimentos sejam como são, segundo esta
teoria, são devidos à casualidade, ou o funcionamento cego por causas
naturais. Deus não tem nada que ver com eles. Ele abandonou o mundo
ao governo das leis físicas e os assuntos dos homens a seu próprio
controle.
Esta postura da relação de Deus com o mundo é tão completamente
antibíblica e irreligiosa que nunca foi, e nunca será adotada por qualquer
igreja cristã. Enquanto que inclusive as singelas palavras de nosso
Senhor são lembradas e cridas, sempre que esta doutrina é rejeitada com
indignação. “Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem
ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura,
não valeis vós muito mais do que as aves?” “vosso Pai celeste sabe que
necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a
sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” [Mt 6:26, 32-
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 790
33]. Nosso Senhor, portanto, ensina-nos a confiar na providência
universal de Deus que abastece as necessidades e controla o destino de
Suas criaturas, de modo que um cabelo não cai de nossa cabeça sem que
Ele perceba.

B. A teoria da completa dependência.

Outra teoria, justamente o contrário da que acabamos de mencionar,


baseia-se no princípio de que a dependência absoluta inclui a ideia de
que Deus é a única causa. Este princípio foi amplamente adotado,
inclusive na Igreja. Foi energicamente defendido por muitos teístas, não
só entre os escolásticos, mas por alguns dos reformadores, e por uma
grande classe dos teólogos modernos. Houve uma classe dos teólogos
escolásticos que eram praticamente panteístas em seus pontos de vista
filosófico. João Escoto Erígena tinha ensinado, no século IX, 388 que,
“omnis visibilis et invisibilis creatura theophania, i.e., divina apparitio
recte potest appellari.” Teve seus seguidores, inclusive no século 13. 389
Os que não foram à longitude de afirmar que “Deus est omnium et
essentia creaturarum esse omnium”, seguiam afirmando que Ele tanto
operava em todos como é a única causa eficiente. Segundo Tomás de
Aquino, argumentavam: “Nulla insufficientia est Deo attribuenda. Si
igitur Deus operatur in omni operante, sufficienter in quolibet operatur.
Superfluum igitur esset quod agens creatum, aliquid operaretur.” Outra
vez: “Quod Deum operari in quolibet operante, aliqui sic intellexerunt,
quod nulla virtus creata aliquid operaretur in rebus, sed solus Deus
immediate omnia operaretur: puta quod ignis non calefaceret, sed Deus
in igne. Et similiter de omnibus aliis.” 390 De todos os reformadores,
Zuínglio foi o mais propenso a esta visão extrema da dependência da

388
De Divisione Naturæ, lib. iii. 19, edit. Monast. Guestphal. 1838, p. 240.
389
See Rixner’s Geschichte der Philosophie, vol. ii. § 40, p. 72.
390
Summa Theologiæ, part I., quest. cv., art. 5, edit. Cologne, 1640, pp. 192, 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 791
391
criatura de Deus. “Omnis virtus,” ele diz, “numinis virtus est, nec
enim quicquam est quod non ex illo, in illo et per illud sit, imo illud
ipsum sit — creata inquam virtus dicitur, eo quod in novo subiecto et
nova specie, universalis aut generalis ista virtus exhibetur. Deus est
causa rerum universarum, reliqua omnia non sunt vere causæ. 392 Constat
causas secundas non rite causas vocari. . . . . Essentiam, virtutem, et
operationem habent non suam sed numinis. Instrumenta igitur sunt. 393
Viciniora ista, quibus causarum nomen damus, non jure causas esse sed
manus et organa, quibus æterna mens operatur.” 394 Calvino não foi tão
longe, embora utilize uma linguagem como a seguinte, ao falar das
coisas inanimadas: “Sunt nihil aliud quam instrumuenta, quibus Deus
assidue instillat quantum vult efficaciæ et pro suo arbitrio ad hanc vel
illam actionem flectit et convertit.” 395 Admite, entretanto, que a matéria
tem suas próprias propriedades, e segundo causa uma eficácia real. A
tendência geral da filosofia cartesiana, que entrou em voga no século
XVII, ia fundir as segundas causas na primeira causa, e portanto dirigiu-
se rumo ao idealismo e ao panteísmo. Malebranche admitiu, no
testemunho da Escritura, que declara que Deus criou o céu e a terra, que
o mundo exterior tem uma existência real. Mas negou que se poderia
produzir algum efeito, ou que a alma pode de algum modo operar sobre a
matéria. Vemos todas as coisas em Deus. Quer dizer, quando
percebemos algo fora de nós mesmos, a percepção não se deve à
impressão causada pelo objeto externo, mas sim à agência imediata de
Deus. E a atividade de nossa mente é só uma forma da atividade de
Deus. O primeiro fruto deste sistema foi declarado idealismo, como
todas as provas da existência de um mundo exterior foi destruído, e o

391
De Providentia Dei; Works, edit. Turici, 1832, vol. iv. p. 85.
392
Ibid. Page 95.
393
Ibid. Page 96.
394
Zwingle, IV. 97.
395
Institutio, I. xvi. 2, edit. Berlin, 1834, vol. i. p. 135.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 792
segundo é o panteísmo de Espinoza, que Leibnitz chama cartesianismo
en outre.
É preciso reconhecer que o desejo dos devotos dos teólogos
reformados para vindicar a soberania e a supremacia de Deus, em
oposição a todas as formas da doutrina pelagiana e semipelagiana, levou
a muitos deles a ir a um extremo em depreciar a eficiência das segundas
causas, e na exaltação indevida da onipresença de Deus. Schweizer 396
representa a grande massa dos teólogos reformados como ensinando que
a dependência das criaturas do Criador substitui toda a eficácia das
segundas causas. “Die schlechthinige Abhängigkeit des Bestehens und
Verlaufes der Welt gestattet keinerlei andere Ursächlichkeiten als nur die
göttliche, so dass Zwischenursachen nur seine Instrumente und Organe
sind, er die durch ihre Gesammtheit wie durch alle einzelnen
Zwischenursachen allein hindurchwirkende Causalität. Dieses ist er
vermöge der præsentia essentialis numinis oder doch divinæ virtutis,
welche das Sein alles Seins, die Bewegung aller Bewegungen ist.” Esta é
a doutrina do próprio Schweizer, como é a de toda a escola de
Schleiermacher, a que pertence; mas que não é a doutrina dos teólogos
reformados se desprende de todas seus ensino da doutrina de concursus,
que Schweizer reconhece ser incompatível com a hipótese de que Deus é
a única causa de todas as coisas. Foi esta falsa hipótese de que nenhuma
criatura pode agir; que a dependência de Deus é absoluta; e que todo o
poder por mais que se manifeste é o poder de Deus, o que levou a
doutrina de uma criação contínua, como se falou ao falar da eficácia de
Deus na preservação do mundo. Isso levou também à doutrina das causas
ocasionais, quer dizer, a teoria de que o que chamamos segundas causas
não têm nenhuma eficácia real, mas sim só são as ocasiões em que Deus
manifesta o Seu poder numa maneira particular. O mundo da matéria e a
mente existe na verdade, mas é perfeitamente inerte. É só o instrumento
ou meio pelo qual o coletor e a eficiência presente em todas as partes de

396
Glaubenslehre der Reformirten Kirche, p. 318.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 793
Deus se manifesta. “Consideremus,” diz Leibnitz, “eorum sententiam,
qui rebus creatis veram, et propriam actionem adimunt, . . . . qui putant
non res agere, sed Deum ad rerum præsentiam, et secundum rerum
aptitudem; adeoque res occasiones esse, non causas, et recipere, non
efficere aut elicere.” 397
Os mesmos pontos de vista da dependência das criaturas de Deus é
o fundamento de todo o sistema do Dr. Emmons. Ele sustentou que se
qualquer criatura fosse dotada com a atividade ou poder de agir, seria
independente de Deus. “Não podemos conceber”, diz, “que até a própria
onipotência é capaz de formar agentes independentes, porque isto seria
dotá-los da divindade. E visto que todos os homens são agentes
dependentes, todos os seus movimentos, exercícios ou ações devem ser
originários de uma eficácia divina.” Isto não deve entender-se como uma
simples afirmação da necessidade de um concursus divino para a
operação das segundas causas, porque Emmons expressamente ensina
que Deus cria todas as vontades da alma, e efetua por Seu poder
onipotente todas as mudanças no mundo material.
Objeções a esta doutrina da dependência.
A toda esta doutrina, que assim nega a existência de segundas
causas, e se refere a toda ação tanto no mundo material e espiritual a
Deus, é que foi objetada: (1.) Que se baseia numa hipótese arbitrária.
Inicia-se com a ideia a priori de um absoluto e infinito, e rechaça tudo o
que é inconsistente com esta ideia. Não se pode provar que é
inconsistente com a natureza de Deus que Ele deve pôr em existência
criaturas capazes de efetuar a ação. É suficiente que tais criaturas devem
derivar todos os seus poderes de Deus, e ser sujeita ao Seu controle em
todas as suas tarefas. (2.) Esta doutrina contradiz a consciência de cada
homem. Sabemos, tão certo como sabemos de qualquer maneira, que
somos agentes livres, e que a agência livre é o poder de
autodeterminação, ou de originar nossos próprios atos. Contradiz não só
397
De ipsa Natura, 10; Works, edit. Berlin, 1840, p. 157.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 794
nossa autoconsciência do eu, mas também as leis da crença que Deus
imprimiu em nossa natureza. É uma dessas leis que devemos crer na
realidade dos objetos de nossos sentidos, e que a crença consiste na
convicção de que não só são na realidade, mas também são as causas das
impressões que fazem a nossa sensibilidade. É pôr a filosofia em conflito
com o senso comum, e com a convicção universal dos homens, ensinar
que tudo isto é um engano, para que quando vemos uma árvore estamos
errados, que Deus cria imediatamente essa impressão em nossa mente;
ou que quando vamos mover o poder não está em nós, que não somos
nós os que se movem, mas sim Deus que nos move, ou quando
pensamos, que é Deus que cria o pensamento. (3.) Como se assinalou
antes, este sistema leva naturalmente, e deu lugar ao idealismo e ao
panteísmo, e portanto é totalmente inconsistente com toda liberdade e
responsabilidade, e destrói a possibilidade das distinções morais.

C. A doutrina de que não há eficiência exceto na mente.

De acordo com este ponto de vista, não existem coisas tais como as
forças físicas. A mente do homem está dotada da faculdade de produzir
efeitos, mas à parte da mente, divina ou criada, não há eficiência no
universo. Esta doutrina encontra seu caminho em muitas investigações
teológicas como filosóficas. Assim o Reitor Tulloch diz, uma causa é
“coincidente com um agente.” Isso “portanto implica a mente. Mais
definitivamente, e, em sua concepção completa, implica uma vontade
racional.” 398 As causas físicas, portanto, referem a sempre operante
vontade de Deus. “A ideia da causalidade”, diz ele, “achamos que se
resolvem na operação de uma mente racional ou vontade na natureza.” 399

398
Theism; The Witness of Reason and Nature to an All-Wise and Beneficent Creator, by the Rev.
John Tulloch, D. D., Principal and Primarius Professor Theology, St. Mary’s College, St. Andrews,
edit. New York, 1855, p. 43.
399
Ibid. p. 47.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 795
A providência não é nada mais que uma “continuação adiantada dessa
[originalmente criativa] eficiência.”400
O Dr. Tulloch muito corretamente assume que uma causa é a que
tem o poder de produzir efeitos; e que temos nossa ideia de poder, e
portanto da natureza da causalidade, de nossa própria consciência de
eficiência. Portanto, ele infere que como a mente é a única causa da qual
temos conhecimento imediato, pelo que é a única existe. Mas isto é um
non-sequitur. Essa mente é uma causa, há provas de que a eletricidade
não pode ser uma causa. Os atos, tal como os entende a massa dos
homens são, em primeiro lugar, de que somos conscientes da eficiência,
ou do poder de produzir efeitos. Em segundo lugar, o exercício deste
poder desperta, ou dá ocasião à intuição da verdade universal e
necessária que todo efeito deve ter uma causa adequada. Em terceiro
lugar, como vemos ao nosso redor os efeitos de diferentes tipos, é uma
lei da razão que devem ser remetidos às causas de diferentes tipos. A
evidência de que esta é uma lei da razão, é o fato de que todos os homens
assumem causas físicas para dar conta dos efeitos físicos, o mais
uniformemente quanto assumem a mente dos efeitos inteligentes. A
teoria, entretanto, que resolve todas as forças em todas as partes a
vontade dispositiva de Deus tem grandes atrativos. Tem uma forma de
escapar de muitas das dificuldades que afetam a questão da relação de
Deus com o mundo. Inclusive os homens dedicados ao estudo da
natureza se sentem tão desconcertado por tais questões, como: O que é a
matéria? ou O que é a força? que se dispõem, em muitos casos, de fundir
todas as coisas em Deus. O duque do Argyle diz: “A ciência, na doutrina
moderna da Conservação da Energia e a Convertibilidade das Forças, já
se está tornando algo como um firme controle da ideia de que todas as
forças não são senão formas ou manifestações de uma Central da Força
de alguma uma Fonte principal de Poder. Sir John Herschel não hesitou
em dizer que “não é mais que razoável considerar a Força da Gravidade

400
Ibid. p. 93.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 796
como consequência direta ou indireta, de uma consciência ou uma
vontade existente em alguma parte.” E certamente, embora não
possamos identificar a força em todas as suas formas com as energias
diretas de uma vontade onipresente e onipresente, é pelo menos no mais
alto grau antifilosófico assumir o contrário, — de falar ou de pensar que
se as Forças da Natureza eram independentes de ou até separadas de do
Poder do Criador.” 401
Observou-se numa página anterior que Wallace ainda mais
decididamente adota a mesma opinião. Em seu livro sobre “Seleção
Natural”, depois de ter defendido a teoria de Darwin sobre a origem das
espécies (exceto em sua aplicação ao homem), vem no final a iniciar a
pergunta: O que é a matéria? Esta pergunta ele responde dizendo: “A
matéria é essencialmente a força, e nada mais que força. A matéria,
como popularmente se entende, não existe, e é, de fato, filosoficamente
inconcebível.” 402 A pergunta seguinte é, O que é a força? A resposta
definitiva a isto é, que é a vontade de Deus. “Se”, diz Wallace, “traçamos
uma força, por minuto, a uma origem em nossa própria vontade,
enquanto que não temos conhecimento de nenhuma outra causa primária
da força, não parece uma improvável conclusão que de toda força pode
ser a força de vontade, e assim todo o universo não é só dependente de,
mas em realidade, a VONTADE de inteligências superiores ou de uma
Inteligência Suprema.” 403
Esta teoria é substancialmente a mesma que se mencionou
anteriormente. Só diferem quanto ao alcance de sua aplicação. De acordo
com a doutrina da “Dependência Absoluta”, Deus é o único agente no
universo, de acordo com a doutrina que se expôs, Ele é o único agente,
ou Sua vontade é a única energia no mundo material. A matéria não é
nada. “Não existe.” não é mais que a força, e força é Deus; por isso o
mundo externo é Deus. Em outras palavras, todas as impressões e
401
Reign of Law, 5th ed. London, 1867, p. 123.
402
Natural Selection, pp. 365, 366.
403
Contribution to the Theory of Natural Selection, by Alfred Russel Wallace. London, 1870, p. 368.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 797
sensações feitas sobre nós, como supomos, pelas coisas fora de nós, são
de fato realizados pelo poder imediato de Deus: não há terra, não há
estrelas, não há homens ou mulheres, não há pais ou mães. Os homens
não podem crer nisso. Mediante a constituição de nossa natureza, que
ninguém pode alterar, vemo-nos forçados a crer na realidade do mundo
externo; que a matéria é, e essa é a causa imediata dos efeitos que
atribuímos à sua agência.

D. Teoria da harmonia preestabelecida.

Outra hipótese feita pelos filósofos, é que uma substância não pode
agir sobre outra substância de natureza distinta; o que se estende não
pode agir sobre o que não se estende; a matéria não pode agir na mente,
nem a mente sobre a matéria. É, entretanto, um fato de consciência e da
observação diária, que, ao menos aparentemente, os objetos materiais
pelos quais estamos rodeados são as causas de certas sensações e
percepções, quer dizer, agem em nossas mentes, e não é menos uma
questão de consciência de que nossas mentes agem, ao menos isso
parece, sobre nossos corpos. Podemos nos mover, podemos controlar a
ação de todos os nossos músculos voluntários. Isto, entretanto, deve ser
uma ilusão se a matéria não pode agir na mente nem a mente sobre a
matéria. Para dar conta da relação em que a mente e a matéria estão entre
si neste mundo, e pela aparente ação do um sobre o outro, Leibnitz
adotou a teoria de uma harmonia preestabelecida. Deus criou dois
mundos independentes, um da matéria, o outro da mente, cada um tem
sua própria natureza e seu próprio princípio de atividade. Todas as
mudanças na matéria, todas as ações de nossos corpos, determina-se a
partir de uma fonte dentro da matéria e dentro de nossos corpos, e se
produziria na mesma ordem em que efetivamente se levam a cabo se a
mente não criada veio à existência. Da mesma maneira, todos os estados
diferentes da mente humana, todas as suas sensações, as percepções e
volições são determinados do interior, e seriam o que são quando o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 798
mundo exterior não existia. Deveríamos ver as mesmas cenas, escutar os
mesmos sons, ter as mesmas vontades para mover tal ou qual músculo,
se não houvesse nada que ver, ouvir ou mover. Estes dois mundos, assim
automaticamente movidos, coexistem e estão feitos para agir em
harmonia por um arranjo prévio divinamente ordenado. Daí a sensação
de queimação surge na mente, não porque o fogo age no corpo e o corpo
sobre a mente, mas sim porque, por esta harmonia preestabelecida, estes
eventos fazem-se coincidir no tempo e no espaço. Desde a eternidade,
determinou-se que eu deveria ter uma vontade para mover o braço num
momento determinado, e desde a eternidade, determinou-se que o braço
deveria mover-se nesse momento. Os dois eventos, portanto, concorrem
como antecedente imediato e consequente, mas a vontade não se situa
em relação causal com a moção. A vontade não se teria formado se não
tivesse existido braço para mover-se, e o braço se moveu, apesar da
vontade nunca se ter formado. A mão de Leibnitz teria escrito todos os
seus livros maravilhosos de matemática e de filosofia, e realizado todas
as suas controvérsias com Bayle, Clarke e Newton, apesar de que sua
alma nunca teria sido criada. 404

E. A doutrina de Concursus.

Uma medida mais extensa adotada e princípio permanentemente


influente é que nenhuma segunda causa age até que aja em
consequência. Nada criado pode originar ação. Este princípio, levado a
uma maior ou menor medida, foi adotado por Agostinho, pelos
escolásticos, pelos tomistas e pelos dominicanos na Igreja latina, e pelos
protestantes, quer sejam luteranos, reformados, ou remonstrantes.
Assumiu-se como um axioma filosófico, a que todas as doutrinas
teológicas devem ser conformadas. “Ad gubernationem concursus
pertinet, quo Deus non solum dat vim agendi causis secundis et eam

404
See his Systeme Nouveau de la Nature; Works, edit. Berlin, 1840, p. 124.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 799
conservat, sed et easdem movet et applicat ad agendum. Præcursus etiam
dicitur, nam causæ secundm non movent nisi motæ.” 405 “Prima causa,”
diz Turrettin, “est primum movens in omni actione, ideo causa secunda
non potest movere, nisi moveatur, nec agere, nisi acta a prima; alioqui
erit principium sui motus, et sic non amplius esset causa secunda, sed
prima.” 406 Na produção de cada efeito, portanto, não é a eficiência de
duas causas, a primeira e segunda. Mas isto não deve ser considerado
como envolvendo duas operações, como quando dois cavalos são unidos
a um mesmo veículo, que se puxou em parte por um e em parte pelo
outro. A eficiência da primeira causa está na segunda, e não só com ela.
Deus “immediate influit in actionem et effectum creaturæ, ita ut idem
effectus non a solo Deo, nec a sola creatura, nec partim a Deo, partim a
creatura, sed una eademque efficientia totali simul a Deo et creatura
producatur, a Deo videlicet ut causa universali et prima, a creatura ut
particulari et secunda.” 407 “Non est re ipsa alia actio influxus Dei, alia
operatio creaturæ, sed uma et indivsibilis actio, utrumque respiciens et
ab utroque pendens, a Deo ut causa universali, a creatura ut
particulari.” 408
Este concursus está representado, em primeiro lugar, como geral;
uma influência do poder onipresente de Deus, não só mantendo as
criaturas e suas propriedades e poderes, mas emocionando cada um para
agir de acordo com sua natureza. É análogo à influência geral do sol que
afeta a diferentes objetos de diferentes maneiras. O mesmo raio solar
abranda a cera e endurece a argila. Chama a força germinativa de todas
as sementes em ação, mas não determina a natureza dessa ação. Todas as
sementes são assim estimuladas, mas uma se desenvolve como trigo, a
outra como cevada, não pela força solar, mas devido ao seu caráter
peculiar. Isto é tudo o que os franciscanos e os jesuítas entre os

405
Mares, Collegium Theologicum, loc. iv. 29; Gröningen, 1659, p. 42, b.
406
Locus VI. quæstio, v. 7, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 455.
407
Quenstedt, Theologia, cap. XIII. 1.15, edit. Leipzig, 1715, Vol. I. p. 760.
408
Ibid. cap. XIII. ii. 3, vol. i. p. 782.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 800
romanistas e os remonstrantes entre os protestantes permitem. Os
tomistas e os dominicanos no primeiro caso, e os teólogos agostinianos
em geral, insistem em que, além deste concursus geral, também há uma
anterior, simultânea, e a determinação de concurso da primeira, e em
todas as causas em segundo lugar, tanto na causa como no efeito, quer
dizer, não só estimulando à ação, mas também mantendo, guiando e
determinando o ato, de modo que seu ser como é, e não de outra, refere-
se à primeira, e não à segunda causa em cada caso. Neste ponto,
entretanto, os teólogos Reformados não estão de acordo, como Turrettin
admite. Ele diz: “Ex nostris quidam concursum tantum prævium volunt
quoad bona opera gratiæ, sed in aliis omnibus simultaneum sufficere
existimant.” 409
Por concursus anterior entende-se, diz ele: “Actio Dei, qua in
causas earumque principia influendo, creaturas excitat, et agendum
præmovet, et ad hoc potius quam ad illud agendum applicat. Simultaneus
vero est per quam Deus actionem creaturæ, quoad suam entitatem, vel
substantiam producit; quo una cum creaturis in earum actiones et
effectus influere ponitur, non vero in creaturas ipsas.” 410 Admite-se que
estes não diferem realmente, “quia concursus simultaneus, nihil aliud est,
quam concursus prævius continuatus.” Este concursus anterior também
se chama predeterminação. “Id ipsum etiam nomine Prædeterminationis,
seu Præmotionis solet designari, qua Deus ciet et applicat causam
secundam ad agendum, adeoque antecedenter ad omnem operationem
creaturæ, seu prius natura et ratione quam creatura operetur, eam realiter
et efficaciter movet ad agendum in singulis actionibus, adeo ut sine hac
præmotione causa secunda operari non possit, ea vero posita impossibile
sit in sensu composito causam secundam non illud idem agere ad quod a
prima causa præmovetur.” 411

409
Locus VI. quæst. v. 6.
410
Locus VI. quæst. v. 5.
411
Turrettin, locus VI. quæst. v. 6.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 801
Concursus, portanto, assume, (1.) Que Deus dá à segunda potência
o poder de agir. (2.) Que Ele lhes mantém no ser e no vigor. (3.) Que Ele
estimula e determina as segundas causas para que aja. (4.) Que Ele lhes
dirige e governa até o fim predeterminado. Tudo isto, entretanto,
entendeu-se de maneira que:
1. O efeito produzido ou o ato realizado refere-se à segunda, e não à
primeira causa. Quando o fogo queima, que é o fogo, e não a Deus que
se deve atribuir o efeito. Quando um homem fala, é o homem e não
Deus, quem pronuncia as palavras. Quando a lua levanta a onda da maré,
e a onda se precipita um casco de navio na costa, o efeito deve-se
atribuir, não à lua, mas sim ao impulso da onda. A força da gravidade
age de maneira uniforme sobre toda a matéria ponderável, e ainda, que a
força pode ser indefinidamente variada nos efeitos que se produzem por
causas que intervêm, quer sejam necessárias ou livres.
2. A doutrina do concursus não nega a eficiência das segundas
causas. Elas são as verdadeiras causas, com uma principium agendi em
si mesmos.
3. A agência de Deus nem substitui, nem interfere de maneira
nenhuma com a eficácia das segundas causas. “Ad providentiam divinam
non pertinet, naturam rerum corrumpere, sed servare: unde omnia movet
secundum eorum conditionem: ita quod ex causis necessariis per
motionem divinam consequuntur effectus ex necessitate; ex causis autem
contingentibus sequuntur effectus contingentes. Quia igitur voluntas est
activum principium non determinatum ad unum, sed indifferenter se
habens ad multa, sic Deus ipsam movet, quod non ex necessitate ad
unum determinat, sed remanet motus ejus contingens et non necessarius,
nisi in his ad quæ naturaliter movetur.” 412 “Concurrit Deus cum
naturalibus ad modum causæ naturalis, cum causis liberis per modum
causæ liberæ.” 413 “Duo sunt causarum genera, aliæ definitæ et generales,

412
Aquinas, Summa, part II. i. quæst. x. art. 4, edit. Cologne, 1640, p. 22 of second set.
413
Quenstedt, cap. XIII. i. 15, vol. I. p. 761.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 802
quæ eodem modo semper agunt, ut ignis qui urit, sol qui lucet; aliæ
indefinitæ et liberæ, quæ possunt agere vel non agere, hoc vel illo modo
agere: ita Deus naturam earum conservat, et cum illis juxta eam in
agendo concurrit; cum definitis, ut ipse eas determinet sine
determinatione propria; cum indefinitis vero et liberis, ut ipsæ quoque se
determinent proprio rationis judicio, et libera voluntatis dispositione,
quam Deus non aufert homini, quia sic opus suum destrueret, sed
relinquit et confirmat.” 414 No mesmo sentido a “Confissão de
Westminster,” 415 diz: Deus dispõe eventos “para cair, segundo a natureza
das segundas causas, tão necessária, livre ou contingentemente.”
4. Disto se deduz que a eficiência ou agência de Deus não é a
mesma com relação a todo tipo de eventos. Uma coisa é cooperar com as
causas materiais, outra cooperar com os agentes livres. É uma coisa com
relação aos atos bons, e outra com relação às más ações; uma coisa na
natureza, e outra na graça.
5. O concursus divino não é inconsistente com a liberdade dos
agentes livres. “Moveri voluntarie est moveri ex se, id est, a principio
intrinseco. Sed illud principium intrinsecum potest esse ab alio principio
extrinseco. Et sic moveri ex se, non repugnat ei, quod movetur ab alio.
— Illud quod movetur ab altero, dicitur cogi, si moveatur contra
inclinationem propriam: sed si moveatur ab alio quod sibi dat propriam
inclinationem, non dicitur cogi. Sic igitur Deus movendo voluntatem,
non cogit ipsam: quia dat ei ejus propriam inclinationem.” 416
Isto é indubitavelmente verdade. Nada é mais certo segundo as
Escrituras que Deus é o autor da fé e do arrependimento. Eles são Seus
dons. Eles são bênçãos pelos quais oramos, e que Ele promete.
Entretanto, nada é mais certo segundo a consciência, de que a fé e o
arrependimento são nossos atos por própria vontade. Portanto moveri ab

414
Turrettin, locus VI. quæst. vi. 6, edit. Edinburgh, 1847, vol. I. p. 460.
415
Cap. V. sect. 2.
416
Aquino, Summa, part I. quæst. CV, art. 4. edit. Cologne, 1640, p. 193.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 803
417
alio não é incompatível com moveri ex se. Neste ponto Turrettin diz:
“Cum providentia non concurrat cum voluntate humana, vel per
coactionem, cogendo voluntatem invitam, vel determinando physice, ut
rem brutan et cæcam absque ullo judicio, sed rationaliter, flectendo
voluntatem modo ipsi convenienti, ut seipsam determinet, ut causa
proxima actionum suarum proprio rationis judicio, et spontanea
voluntatis electione; eam libertati nostræ nullam vim inferre, sed illam
potius amice fovere.”
6. Todos os defensores da doutrina do concursus admitem que a
grande dificuldade que está presente é em referência ao pecado. A
dificuldade não está tanto com relação à responsabilidade do pecador. Se
o pecado for seu próprio ato, e se o concursus divino não interfere com
sua liberdade, não interfere com sua responsabilidade. Quando Deus por
Sua graça determina a vontade de Seu povo aos atos santos, a santidade é
deles. Isso constitui o seu caráter. Quando Deus dá beleza a um homem,
ele é belo. E se Sua cooperação nos pecados dos homens deixa sua
liberdade no pecado irreprochável, são tão pecaminosos como se
realmente não existisse essa cooperação. Esta não é a dificuldade. A
verdadeira pergunta é, como pode a cooperação de Deus no pecado
reconciliar-se com sua própria santidade? Podemos ver facilmente como
Deus pode cooperar nas boas ações, e alegrar-se na bondade que é Seu
dom; mas como pode Ele assim concorrer em atos pecaminosos como
não só para preservar o pecador no exercício de sua capacidade de agir,
mas também para estimular à ação, e determinar seu ato de ser o que é, e
não de outra maneira? Esta dificuldade foi, como se assinalou,
reconhecida livremente. Conheceu-se mediante a definição de pecado
como mero defeito. É uma falta de conformidade com a lei moral. Como
tal, não requer uma causa eficiente, mas sim, só uma causa deficiente.
Deus é a fonte imediata ou remotamente a eficiência de todos, mas não é
a origem da simples deficiência.

417
Locus VI. quæstio v. 7.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 804
Em cada ato pecaminoso, portanto, distinguia-se o ato como um ato
que requer uma causa eficiente, e a qualidade moral desse ato, ou sua
falta de conformidade com a lei, uma mera relação, que não é uma ens, e
portanto não está de maneira nenhuma maneira com referência a Deus.
Esta é a resposta a esta objeção dada por Agostinho e repetidas desde seu
tempo a hoje. Aquino 418 diz: “Quicquid est entitatis et actionis in actione
mala, reducitur in Deum sicut in causam: sed quod est ibi defectus non
causatur a Deo, sed ex causa secunda deficiente.” Quenstedt 419 diz:
“Distinguendum inter effectum et defectum, inter actionem et actionis
ἀταξίαν. Effectus et actio est a Deo, non vero defectus et ἀταξία sive
inordinatio et exorbitatio actionis. Ad effectum Deus concurrit, vitium
non causat, non enim in agendo deficit aut errat, sed causa secunda.”
Bucan 420 diz: “Malorum opera quoque decernit et regit. Tamen non est
autor mali, quia mali sic aguntur a Deo, ut sponte, libere et sine
coactione et impulsu violento agant. Deinde non infundit malitiam sicut
bonitatem, nec impellit aut allicit ad peccandum.” Para o mesmo efeito
que Turrettin 421 diz: “Cum actus qua talis semper bonus sit quoad
entitatem suam, Deus ad illum concurrit effective, et physice. . . . .
(quoad malitiam) Deus nec causa physica potest ejus dici, quia nec illam
inspirat aut infundit, nec facit; nec ethica, qui nec imperat, aut approbat
et suadet, sed severissime prohibet et punit.”
Como a mesma influência solar acelera na vida todo tipo de plantas,
quer seja nutritivo ou venenoso; como a mesma correnteza pode ser
guiada a um canal ou outro; como a mesma força vital anima as
extremidades do homem são e do aleijado; como a mesma mão pode
varrer as teclas de um instrumento quando em sintonia e quando fora de
tom: pelo que se insistiu a que a mesma eficácia divina sustenta e anima
a todos os agentes livres. Que eles ajam em tudo deve-se à eficiência

418
Summa, part I. quest. xlix. art. 2, edit. Cologne, 1640, p. 95.
419
Theologia, cap. XIII. i. 15, Vol. I. p. 761.
420
Bucan, Institutiones Theologici, edit. Geneva, 1625, p. 142.
421
Locus VI. quæstio vii. 3, 4, edit. Edinburgh, 1847, vol. i. p. 462.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 805
divina, mas a natureza particular de seus atos (pelo menos quando maus)
refere-se, não a essa eficiência onipresente de Deus, mas sim à natureza
ou o caráter particular de cada agente. Que Deus controla e governa os
ímpios, determina sua maldade a tomar uma forma, e não outra, e a
conduz às manifestações que fomentarão o bem do mal, não é
inconsistente com a santidade de Deus. Ele não infundiu inveja e ódio
nos corações dos irmãos de José, mas guiou o exercício de tais paixões,
de modo que se garanta a preservação de Jacó e a semente escolhida da
destruição.

Observações a respeito da doutrina do Concursus.


A declaração anterior da doutrina do concursus trata simplesmente
de dar as opiniões em geral entretidas pelos agostinianos, quanto à
natureza do governo providencial de Deus. Quer seja que essas opiniões
são corretas ou não, é importante que elas devam ser entendidas. É muito
evidente que há uma ampla distinção entre esta teoria do concursus e a
teoria que resolve todos os eventos, quer seja necessária ou livre, na
agência imediata de Deus.
Os pontos de diferença entre as duas teorias são: (1.) Que uma
admite e a outra nega a realidade e a eficiência das segundas causas. (2.)
Uma não faz distinção entre eventos livres e necessários, e lhes atribui
igualmente à energia todo-poderosa e criativa de Deus, e a outra admite a
validez e importância desta distinção indescritível.
(3.) Uma afirma e a outra nega que a agência de Deus é a mesma
em atos pecaminosos que é em boas ações. (4.) Uma admite que Deus é
o autor do pecado, a outra repudia essa doutrina com aborrecimento. Os
teólogos reformados protestaram contra a aspersão feita livremente pelos
romanistas, e depois pelos remonstrantes, que a doutrina agostiniana
conduz a qualquer processo justo de raciocínio à conclusão de que Deus
é a causa do pecado. Citam de suas admissões de opositores que
implicam a todos os que eles mesmos ensinam com referência à
intervenção de Deus nos atos ímpios dos homens. Assim, Belarmino, que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 806
422
livremente traz esta reclamação contra os protestantes, diz: “Deus non
solum permittit impios agere multa mala, nec solum deserit pios ut
cogantur pati quæ ab impiis inferuntur; sed etiam præsidet ipsis
voluntatibus malis, easque regit et gubernat, torquet ac flectit in eis
invisibiliter operando, ut licet vitio proprio malæ sint, tamen a divina
providentia ad unum potius malum, quam ad aliud, non positive sed
permissive ordinentur.” Quanto a esta passagem, Turrettin diz: “Quibus
verbis nihil durius apud nostros occurrit.” Belarmino também cita 423 e
adota a linguagem de Aquino quando diz: “Deum non solum inclinare
voluntates malas ad unum potius, quam ad aliud permittendo, ut ferantur
in unum, et non permittendo, ut ferantur in aliud, ut Hugo recte docuit,
sed etiam positive inclinando in unum et avertendo ab alio.” É de suma
importância, não só como uma questão de verdade histórica, mas
também por sua influência moral, que o fato deve ser conhecido
claramente e reconhecido que os teólogos reformados, com todos os
agostinianos antes e depois da Reforma, sinceramente rejeitaram a
doutrina de que Deus é o autor ou a causa eficiente do pecado. A objeção
à doutrina do concursus não é que intencionalmente ou realmente destrói
a agência livre do homem, ou que faz a Deus autor do pecado, mas sim
(1.) que se baseia numa hipótese arbitrária e falsa. Nega que qualquer
criatura possa originar a ação. Isto não admite a prova. É uma inferência
da natureza assumida da dependência da criatura ao Criador, ou pela
suposta necessidade do princípio em questão, a fim de assegurar o
controle absoluto de Deus sobre os seres criados. Isto, não obstante,
contradiz a consciência dos homens. Que somos agentes livres significa
que temos o poder de agir livremente; e para agir livremente implica que
originamos nossos próprios atos. Isto não quer dizer que é inconsequente
com nossa liberdade que nos deve mover e induzir a exercer nossa
capacidade de agir por considerações dirigidas à nossa razão ou

422
De Amissione Gratiæ et Statu Peccati, II. xiii. edit. Paris, 1608, p. 132.
423
Ibid.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 807
inclinações, ou pela graça de Deus, mas sim significa que temos o poder
de agir. O poder da ação espontânea é essencial à natureza de um espírito
e Deus, ao nos criar à Sua própria natureza como espíritos, dotou-nos da
faculdade de promover nossos próprios atos.
(2.) Uma segunda objeção à doutrina é que é um intento de explicar
o inexplicável. Não contente com a simples e certa declaração da Bíblia,
que Deus rege todas as Suas criaturas e todas as suas ações,
compromete-se a explicar como isso é feito. Pela natureza do caso isto é
impossível. Vemos que as causas materiais agem, mas não podemos
dizer como agem. Somos conscientes da faculdade de guiar nossos
próprios pensamentos, e determinar nossa própria vontade; mas como
exercitamos esta eficiência, ultrapassa a nossa compreensão. Sabemos
que a vontade tem poder sobre certos músculos do corpo, mas o ponto de
conexão, o elo entre a vontade e a ação muscular, é totalmente
inescrutável. Por que então devemos tentar explicar como é que a
eficiência de Deus controla a eficiência das segundas causas? O fato é
simples, e o feito em si é importante; mas o modo de ação da ação de
Deus nós não podemos entender.
(3.) Uma terceira objeção é que esta doutrina multiplica as
dificuldades. Ao tratar de ensinar como Deus governa os agentes livres,
que Ele primeiro os estimula a agir, sustenta-os na ação, determina-os a
agir assim, e não de outra maneira; que Ele efetivamente concorre na
entidade, mas não necessariamente na qualidade moral do ato, levantam-
se cada passo as questões metafísicas mais sutis e desconcertantes, que
nenhum homem é capaz de resolver. E até admitindo a teoria do
concursus, tal como exposta pelos escolásticos e pelos teólogos
escolásticos, para ser verdade, qual o valor? Que conhecimento
verdadeiro comunica? Tudo o que sabemos, e tudo o que precisamos
saber, é (1.) que Deus governa todas as Suas criaturas, e (2.) que Seu
controle sobre eles é coerente com Sua natureza, e com Sua própria
pureza infinita e excelência.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 808
Como esta doutrina da Providência consiste na questão da relação
de Deus com o mundo, é reconhecidamente o mais completo e difícil na
bússola quer da teologia ou da filosofia. Como o mundo, o que significa
o universo dos seres criados, inclui o mundo da matéria e o mundo da
mente, a doutrina da Providência refere-se, em primeiro lugar, à relação
de Deus com o universo externo ou material, e em segundo lugar, Sua
relação com o mundo da mente, ou com Suas criaturas racionais.

§ 4. Os princípios envoltos na doutrina escriturística da


Providência.

A. A Providência de Deus sobre o universo material.

Com respeito à relação de Deus com o mundo externo, os seguintes


fatos parecem ser dados por sentados ou claramente ensinados na Bíblia:
1. Há um mundo externo, ou universo material. O que chamamos o
mundo não é um fantasma nem uma exibição enganosa. Não se trata de
nós, de nossos diversos estados, seja como for que se produzam. A
matéria existe realmente. É uma substância, que existe, e continua, e tem
identidade em todos os seus vários estados. Isto naturalmente, opõe-se ao
panteísmo, que faz do mundo externo uma forma existencial de Deus; ao
idealismo; e à teoria dinâmica que ensina que a matéria é meramente
força. Esta última doutrina é inteligível se por força se entende a vontade
de Deus constantemente em ação, porque esta é a energia da substância
divina. Mas na forma em que a doutrina usualmente se apresenta, toma a
força como a realidade última. A matéria [segundo esta doutrina] é força,
não é uma substância, mas simplesmente atividade, poder. Mas é
evidente que o nada não pode agir, ou não pode produzir movimento, o
que faz a força. É igualmente claro que não pode haver ação sem algo
que aja, como tampouco pode haver movimento sem algo que se mova,
como tão frequentemente se tem dito. Por isso, a força não existe por si
mesma. Necessariamente implica uma substância da qual seja uma
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 809
manifestação ou propriedade. A verdadeira existência do mundo real é
uma daquelas realidades do senso comum e das Escrituras, sustentada
pela mesma constituição de nossa natureza, e que é inútil negar.

A matéria é ativa.
2. O segundo fato ou princípio reconhecido pelas Escrituras é que a
matéria é ativa. Tem propriedades ou força que são as causas próximas
das mudanças físicas que constantemente vemos e experimentamos. Isto
é considerado pelos homens de ciência quase uma verdade axiomática.
“Não há força sem matéria, e não há matéria sem força.” Esta é também
a convicção geral dos homens. Quando tomam um corpo pesado na mão,
atribuem seu peso à natureza do corpo e sua relação com a terra. Quando
uma substância produz a sensação de doçura, e a outra sensação de
acidez, de modo instintivo, a diferença refere-se às próprias substâncias.
Assim que de todos os outros efeitos físicos, eles são sempre e em todas
as partes devidos a causas físicas. A teoria que nega a existência de
causas físicas, e que atribui todos os efeitos naturais ou mudanças à
operação imediata da vontade divina, contradiz nossa natureza, e não
pode ser certa. Além disso, como já vimos, esta teoria conduz
logicamente ao idealismo e ao panteísmo. Confunde o universo com
Deus.
Estas forças físicas agem por necessidade, cega e uniformemente.
Estão em todas as partes e sempre são iguais. A lei da gravidade é nas
mais remotas regiões do espaço o que é aqui em nossa terra. Age sempre,
e sempre da mesma maneira. O mesmo sucede com todas as outras
forças físicas. A luz, o calor, a eletricidade e as afinidades químicas são
em todas as partes idênticas em seu modo de operar.

As leis da Natureza.
A ambiguidade das palavras lei e natureza já foi observada.
Entretanto, a frase «Leis da Natureza» emprega-se geralmente em um ou
outro de dois sentidos. Ou significa uma sequência regular observada de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 810
acontecimentos, sem referência à causa que determina esta regularidade
de sequência; ou significa uma força natural de ação uniforme. Neste
último sentido falamos das leis da gravidade, da luz, do calor, da
eletricidade, etc. O fato da existência de tais leis, ou de tais forças físicas,
que agem uniformemente, e que não devem ser resolvidas em «modos
uniformes de operação divina» é, como vimos, uma importante verdade
escriturística.
A principal questão é: Que relação tem Deus com estas leis? A
resposta a esta pergunta, tomada da Bíblia, é primeiro, que Ele é o autor
das mesmas. Ele dotou, à matéria destas forças, e ordenou que fossem
uniformes. Segundo, Ele é independente delas. Ele pode mudá-las,
aniquilá-las ou suspendê-las conforme quiser. Ele pode operar com ou
sem elas. Não se pode fazer com que o «Reino da Lei» domine sobre
Aquele que fez as leis. Em terceiro lugar, como a estabilidade do
universo e o bem-estar e inclusive a existência das criaturas organizadas
depende da uniformidade das leis da natureza, Deus nunca as descuida
exceto para o cumprimento de algum alto propósito. Ele, nas operações
comuns da Providência, opera com e por meio das leis que Ele ordenou.
Ele governa o mundo material, assim como o moral, mediante lei.
Por isso, a relação que Deus tem com as leis da natureza é, num
aspecto importante, análoga à que nós temos com elas. Empregamo-las.
O homem não pode fazer nada fora dele mesmo sem elas; e entretanto,
que maravilhas de engenho, de beleza e de utilidade que pôde fazer! O
doutor Beale, como vimos, ilustra a relação de Deus com as forças
físicas com uma analogia de um químico em seu laboratório. Os
componentes químicos não se põem a si mesmos nas retortas nas devidas
proporções, nem se submetem a si mesmos primeiro a uma operação e
logo a outra. Como meras forças físicas, cegas, não podem fazer nada; ao
menos nada que implique propósito ou desígnio. As propriedades
químicas dos materiais empregados têm suas funções, e o químico tem
as suas, evidentemente não só diferentes, mas também diversas, isto é, de
uma ordem diferente. A ilustração do professor Henry foi tomada da
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 811
relação do engenheiro com a máquina. A complicada estrutura da
máquina, a composição e a combustão do combustível; a evaporação da
água; tudo isso é externo ao engenheiro, e ele a isso. A locomotiva,
embora dotada de potência, encontra-se perfeitamente quieta.
Respondendo à ação do engenheiro desperta à vida, e entretanto com
toda sua tremenda energia é perfeitamente obediente à sua vontade.
Estas ilustrações, e outras possíveis, são necessariamente muito
adequadas. Os poderes da natureza dos quais o homem se vale não
dependem dele, e estão sob o seu controle só de uma maneira muito
limitada. Ele é totalmente externo a suas obras. Entretanto Deus enche os
céus e a terra. Ele é imanente no mundo; intimamente e sempre presente
com cada partícula de matéria. E esta presença não o é só quanto ao ser,
mas também quanto ao conhecimento e ao poder. É manifestamente
inconsequente com a ideia de um Deus infinito que qualquer parte de
Suas obras esteja ausente dEle, fora de Sua vista, ou independente de
Seu controle. Embora estando assim em todas as partes eficientemente
presente, Sua eficiência não anula a de Suas criaturas. É por uma lei
natural, ou força física, que o vapor levanta da superfície dos oceanos,
que se acumula em nuvens, e que se condensa e cai em forma de chuva
sobre a terra, mas Deus controla de tal maneira a operação das leis que
produzem estes efeitos que Ele envia a chuva quando e onde Lhe agrada.
O mesmo sucede com todas as operações da natureza e com todos os
acontecimentos do mundo externo. Devem-se à eficiência das forças
físicas; mas estas forças, que estão combinadas, ajustadas, e obrigadas a
cooperar ou para opor-se entre si, na maior complexidade, estão todas
sob a constante guia de Deus, e são levadas ao cumprimento de seu
propósito. Por isso, é perfeitamente racional, num mundo onde as forças
cegas e naturais são a causa próxima de tudo o que acontece, orar por
saúde, por proteção, por êxito, por estações produtivas, e pela paz e a
prosperidade das nações, porquanto todos estes acontecimentos estão
determinados pela agência inteligente de Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 812
Assim, vê-se que a providência de Deus é universal e que se
estende a todas as Suas criaturas e a todas as suas ações. A distinção
usual e apropriadamente feita entre a providência geral, especial e
extraordinária de Deus refere-se aos efeitos produzidos, e não à sua
agência na produção dos mesmos; porquanto é a mesma em todos os
casos. Mas se o objeto a cumprir-se é geral, como o movimento
ordenado dos corpos celestes ou a sustentação e operação regular das leis
da natureza, então a providência de Deus é designada como geral. Muitas
pessoas estão dispostas a admitir esta superintendência geral do mundo
da parte de Deus, mas negam Sua intervenção na produção de efeitos
concretos. Mas a Bíblia ensina com clareza uma providência especial, e
todos os homens creem de maneira instintiva. Isto é, Deus emprega Seu
controle sobre as leis da natureza para obter efeitos especiais. Pessoas
doentes, em perigo, ou em qualquer angústia oram a Deus pedindo ajuda.
Isto não é irracional. Supõe que a relação de Deus com o mundo é
precisamente a que se declara na Bíblia. Não supõe que Deus deixe de
lado nem Se oponha às leis da natureza, mas simplesmente que Ele as
controla e faz com que produzam qualquer efeito que Lhe agrade. As
Escrituras e a história do mundo, e a experiência de quase todas as
pessoas, dão abundante evidência de tais interposições divinas. Seríamos
como órfãos sem ajuda se não fosse por esta constante supervisão e
proteção de nosso Pai celestial. Algumas vezes, as circunstâncias que
acompanham estas intervenções divinas são tão insólitas, e as evidências
que dão do controle divino são tão claras, que os homens não podem
recusar ver a mão de Deus. Entretanto, nada tem de extraordinário na
ação de Deus. Trata-se só de que em tais ocasiões somos testemunhas de
manifestações mais impressionantes do controle absoluto que Ele exerce
constantemente sobre as leis que Ele ordenou.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 813
A uniformidade das leis da Natureza, congruente com a
doutrina da Providência.
É evidente que a doutrina escriturística da providência não é
inconsequente com o «Reino da Lei» em nenhum sentido próprio das
palavras. As Escrituras reconhecem o fato de que as leis da natureza são
imutáveis; que são ordens de Deus; que são uniformes em sua operação;
e que não podem ser passadas por alto impunemente. Mas assim como o
homem dentro de sua esfera pode empregar estas leis fixas para cumprir
os mais diversos propósitos, assim Deus em Sua esfera ilimitada as tem
sempre e em todas as partes sob Seu absoluto controle, de maneira que,
sem as suspender nem as violar, estão sempre sujeitas à Sua vontade.
Alguns filósofos não admitem isto. Para eles, o controle da mente e o
reino da lei são incompatíveis; um ou o outro deve ser negado.
“O caráter fundamental de toda filosofia teológica,” diz Lewes, “é a
concepção dos fenômenos como submetidos à vontade sobrenatural, e
portanto como eminente e irregularmente variável. Agora, estas
concepções teológicas só podem ser subvertidas, finalmente, por meio
destes dois processos gerais, cujo êxito popular é infalível a longo prazo.
(1.) A previsão exata e racional dos fenômenos, e (2.) A possibilidade de
modificá-los, a fim de promover nossos próprios fins e vantagens. O
anterior dissipa imediatamente toda a ideia de qualquer ‘direção volitiva’
e o segundo conduz ao mesmo resultado, sob outro ponto de vista, nos
fazendo-nos no que se refere a este poder como subordinado a nós.” 424
Se o fato de que os homens possam empregar as leis da natureza
para «seus próprios fins e vantagens» é compatível com a uniformidade
destas leis, o controle de Deus sobre as mesmas para o cumprimento de
Seus propósitos não pode ser inconsequente com sua estabilidade como
leis. Deus governa a criação de acordo com as leis que Ele mesmo
ordenou.

424
Comte’s Philosophy of the Sciences, Lewes, London, 1853, pp. 102, 103.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 814
A providência de Deus com relação aos processos vitais.
A vida foi sempre considerada como um dos mais inescrutáveis
mistérios. Por mais difícil que seja responder a pergunta: O que é a vida?
ou a maneira diversa e insatisfatória que possa ser a resposta dada a esta
questão, ou as explicações propostas de seus fenômenos, há pouca
diferença quanto aos fatos do caso. (1.) Admite-se que há uma grande
diferença entre a vida e a morte — entre os vivos e os mortos. Ninguém
que tenha olhado alguma vez um cadáver não tenha podido ser
impressionado com a mudança temerosa comprometida na passagem da
vida à morte. (2.) É muito evidente que a diferença não consiste em tudo
aquilo que se pode pesar ou medir, ou detectar pelo microscópio ou por
análise química. (3.) Certos processos saem onde a vida está presente, e
nunca são vistos quando está ausente. Estes processos são a organização,
o crescimento e a reprodução. (4.) Estes processos implicam a percepção
de um fim, um propósito ou vontade de realizar esse fim, e a opção
inteligente e aplicação de meios para sua consecução.
Esta é a obra da mente. Se a força física cega pode adaptar o olho
ou o ouvido, e edificar o corpo animal inteiro, com todas as suas
maravilhosas interdependências e relações das partes e órgãos, e suas
adaptações desenhadas para o que é externo e futuro, então não há
evidência da mente no céu ou a terra; logo todas as obras de arte e do
gênio de que está cheio o mundo, pode ser as produções de matéria
morta, ou das forças físicas.
Mas se a vida é mente, ou, melhor dizendo, se a força vital é a força
mental, como o indica o modo em que age, onde reside a mente? No
germe infinitesimal da planta ou animal? ou em algo exterior a esse
germe? Estas são perguntas que sempre estiveram exigindo uma
resposta, visto que as respostas foram diferentes. Em primeiro lugar,
alguns dizem que a própria natureza é inteligente. Por natureza não me
refiro ao mundo material, mas no vis in rebus insita. As forças que agem
no mundo, concebem-se como pertencentes a uma substância ou
princípio animador ou anima mundi. Alguns que creem num Deus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 815
extramundano pessoal, creem que Ele criou e transmitiu imanente no
mundo esta natura naturans, que mantêm ser a sede de toda a
inteligência que se manifesta nas obras da natureza. Este é o único Deus
que alguns homens de ciência estão dispostos a admitir. A natureza
material, diz-se, não dá evidência da existência de um Ser pessoal.
Vemos na natureza uma mente, uma mente universal, mas uma mente
que só opera e se expressa pela lei. “A natureza só faz e só nos pode
informar a respeito da mente em a natureza, o parceiro e correlativo da
matéria organizada.” 425 Baden Powell, em sua “Order of Nature,” diz,
que as opiniões elevadas de uma Deidade como um Deus pessoal e
Criador Onipotente, etc., são conceitos que “podem originar-se só de
alguma outra fonte que a filosofia física”. 426
Em segundo lugar, alguns assumem que há no germe de cada planta
ou animal o que Agassiz chama “um princípio imaterial”, quanto se
refere ao seu poder de organização. Alguns conectam isto com a doutrina
platônica das ideias, como entidades espirituais, que são a vida e a
realidade de todos os organismos materiais.
Em terceiro lugar, outros referem que a inteligência se manifesta
nos processos vitais a Deus, não imediatamente, mas sim de forma
remota. Os homens podem construir máquinas para fazer o trabalho
intelectual, sem ser eles mesmos as máquinas inteligentes. Temos
planetários, e cálculos e composições tipográficas de máquinas, que,
aparentemente pelo menos, fazem o trabalho da mente. Se o homem
pode fazer um relógio ou um motor de locomotiva, por que não pode
Deus fazer relógios e motores com a capacidade de reprodução? A
analogia, entretanto, entre os produtos do engenho humano e o
organismo vivo é imperfeita. Nenhum produto da arte humana pode
pensar ou escolher. Uma máquina de programação, quando a chave
apropriada é acionada, pode fazer mover um braço na direção correta e

425
Veja esta doutrina discutida no Bampton Lectures for 1865, by Rev. J. B. Moxley, p. 96.
426
Edit. London, 1859, p. 249.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 816
com a distância adequada para chegar à letra que quer; mas não se pode
por si mesma selecionar de uma massa confusa de tipos as cartas uma
após outra, e ordená-las para formar palavras e orações. Em outras
palavras, a matéria não pode ser feita para fazer o trabalho da mente.
Admite-se que tudo é possível com Deus, mas o contraditório não é um
objeto de poder. É uma contradição que o ampliado deva ser não
ampliado, que o irracional deva ser racional. Portanto, é inconcebível
que a matéria com suas forças físicas cegas deveriam realizar o trabalho
mental exibidos nos processos de organização e crescimento.
Em quarto lugar, a inteligência necessária para dar conta dos
processos de vida vegetal e animal supõe-se que está presente em todas
as partes e em todas as partes ativa a mente do próprio Deus. Isto não
implica que as causas físicas ou segundas não têm a eficiência, ou que
essas causas se combinam na eficiência de Deus. Significa simplesmente
que Deus usa a química, elétrica, fótica, e outras forças da natureza, para
o exercício de organização e outros processos vitais no mundo vegetal e
animal. Nestes processos há uma combinação de duas forças
especialmente diferentes, físicas e mentais. As físicas estão na matéria,
as mentais em Deus, que utiliza a matéria e suas forças. Exemplos desta
combinação de força física e mental são familiares. Todos os
movimentos voluntários, da parte dos animais, todas as obras dos
homens, devem-se a tal combinação. Caminhar, falar, e escrever só são
possíveis na medida em que a mente controla nossa organização
material. Na escritura, por exemplo, as funções vitais estão trabalhando
na mão, em que sua mobilidade e sensibilidade de impressão dependem
dos nervos voluntários, e os numerosos músculos voluntários são
chamados à ação, mas o poder dirigente está na mente. É a mente a que
determina que palavras e frases os dedos formarão, e que ideias
expressarão. Da mesma maneira, é a mente sempre presente de Deus que
guia a ação das causas físicas nos processos da vida animal e vegetal. E
como não seria razoável fazer referência às forças físicas postas em
atividade, quando falamos ou escrevemos, a inteligência indicada no que
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 817
é pronunciado ou escrito, pelo que é razoável referir-se às forças da
matéria que a inteligência indicou nos processos de vida.
É porque não podemos levantar nossas mentes a qualquer
compreensão correta da infinitude de Deus, que nos é tão difícil pensar
nEle como presente em todas as partes e em todas as partes ativas de
forma inteligente.
Isto, entretanto, deixa de ser inacreditável, quando pensamos na
cooperação maravilhosa da mente e o corpo que tem lugar em falar
rápido, ou, ainda mais maravilhosamente, num menino diante de um
piano, tendo numa só olhada toda a partitura, percebendo o recurso e
posição de cada nota, tocando as oito teclas do instrumento ao mesmo
tempo, e movendo os cinquenta ou sessenta músculos voluntários com a
rapidez do raio, e cada um no momento adequado, e com a força correta.
Se a simples faísca da inteligência no menino pode fazer tais maravilhas,
por que se pensaria incrível que a Mente Infinita deveria impregnar e
governar o universo?
Em apoio da ideia exposta aqui, que a inteligência representada em
todos os processos vitais é a inteligência de mente de Deus presente em
todas as partes e ativa em todas as partes, pode-se responder, em
primeiro lugar, que o princípio envolto nesta doutrina é assumido em
tempo mais simples que verdades da religião natural. Se Deus, portanto,
não está presente em todas as partes e ativo em todas as partes no
controle das segundas causas, não há nenhuma propriedade ou uso na
oração, e não é base de confiança na proteção divina. Em segundo lugar,
parece ser a única maneira de explicar os fatos do caso. Que os processos
da vida nos vegetais e nos animais manifestam inteligência não se pode
negar. Manifestam a previsão, propósito, eleição e poder controlador.
Esta inteligência não se pode fazer referência à matéria, ou às forças
físicas. O materialismo científico mais avançado não faz da mente um
atributo, ou função, ou o produto de toda a matéria, mas apenas da
matéria altamente organizada do cérebro. Mas não há cérebro no vegetal
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 818
ou no germe dos animais. O cérebro é tanto um produto da vida (e
portanto da mente) como tendões ou ossos.
Em terceiro lugar, pode-se apelar à autoridade da Escritura para
sustentar a doutrina em questão. A Bíblia ensina a onipresença de Deus;
isto é, a onipresença da mente. A frase «Deus enche os céus e a terra»
significa que a mente impregna os céus e a terra, e que não há porção do
espaço em que não esteja a mente presente e ativa. As Escrituras
ensinam deste modo que todas as coisas, inclusive as mais diminutas,
como o número dos cabelos de nossa cabeça, a queda de um pardal, o
voo de uma flecha, tudo isso está sob o controle de Deus. Também se diz
que é Ele quem faz crescer a erva, o que significa não só que Ele ordena
de tal forma as causas físicas de maneira que o resultado é a vegetação,
mas também, como aparece em outras descrições, que a organização e o
crescimento da planta são determinados por sua ação. Isto parece estar
claramente ensinado com respeito aos corpos dos homens no Sl
119:15,16: «Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto
fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos
me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos
os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um
deles havia ainda». Por duvidosa que seja a interpretação do versículo 16
no original, não pode haver dúvida a respeito do sentido geral da
passagem. Ensina com clareza que o corpo humano é conformado no
ventre pela inteligência de Deus, e não por causas físicas não dirigidas,
agindo cegamente.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 819
B. A providência de Deus sobre as criaturas racionais

Entretanto, a providência de Deus se estende sobre o mundo da


mente, isto é, sobre agentes racionais livres, assim como sobre o
universo material. Os princípios envoltos na doutrina escriturística a
respeito do governo providencial de Deus das criaturas racionais são:
1. Que a mente é essencialmente ativa. Origina seus próprios atos.
Isto é uma questão de consciência. É essencial para a liberdade e a
responsabilidade. É claramente a doutrina da Bíblia que chama os
homens a agir, e que os considera como autores de seus próprios atos.
Este princípio, como vimos, levanta-se em oposição: (a) À doutrina de
uma criação contínua. (b) À doutrina que nega a eficiência das segundas
causas, e que confunde todo poder no imediato poder de Deus; e (c) À
doutrina de que os agentes livres são tão dependentes que não podem
agir a não ser que se aja sobre eles, ou que não podem mover-se até que
sejam movidos ab extra [desde fora].
2. Mas embora os agentes livres têm poder de agir, e originam seus
próprios atos, são sustentados não só no ser e na eficiência pelo poder de
Deus, mas também Ele controla o uso que eles fazem de sua capacidade.
(a) Ele pode estorvar, e com frequência estorva suas ações. (b) Ele
determina que sua ação seja num sentido, e não em outro; pelo que é
racional orar que Deus incline os corações dos homens para que nos
mostrem favor; que Ele mude as disposições e os propósitos dos homens
ímpios; e que Ele opere em nós o querer como o fazer. Por isso,
nenhuma criatura é independente de Deus no exercício dos poderes com
que Ele nos dotou. Os corações dos homens estão em Suas mãos, e Ele
controla a ação deles com tanta efetividade como controla as operações
da natureza. Mas sua ação no mundo dos espíritos não interfere nas leis
da mente, como tampouco sua ação no mundo externo interfere com a
eficiência das causas materiais.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 820
Distinção entre a eficiência providencial de Deus, e as
influências do Espírito Santo.
3. A ação providencial de Deus no governo dos agentes livres não
deve ser confundida com as operações de Sua graça. Estas duas coisas
são constantemente apresentadas na Bíblia como distintas. A primeira é
natural, a outra é sobrenatural. Na primeira Deus age conforme a leis
uniformes, ou por sua potentia ordinata, na outra, segundo o beneplácito
de Sua vontade, ou por sua potentia absoluta. O controle que Deus
exerce sobre os atos comuns dos homens, e especialmente sobre os
ímpios, é análogo ao que Ele exerce na condução das causas materiais,
enquanto que Sua ação nas operações de Sua graça é mais análoga ao
Seu modo de ação em profecia, inspiração e milagres. No primeiro, Sua
ação providencial sobre as mentes, não é levado a cabo nada que
transcenda à eficiência de segundas causas. No segundo, os efeitos são
de tal classe que as segundas causas são incapazes de efetuá-los. Os
pontos mais evidentes de diferença entre os dois casos são: (1) Nas
operações ou atos comuns dos agentes livres, a capacidade de executá-
los pertence ao agente e surge de sua natureza como criatura racional, e é
inseparável dela, enquanto que os atos de fé, arrependimento e outros
afetos santos não brotam da capacidade dos homens na presente
condição de sua natureza, mas sim de um novo princípio de vida
comunicado e mantido sobrenaturalmente. (2) Os atos comuns dos
homens, e especialmente seus atos ímpios, são determinados por suas
próprias inclinações e sentimentos naturais. Deus não desperta nem
infunde estes sentimentos nem disposições com o fim de determinar que
os pecadores ajam impiamente. Por outro lado, todos os afetos de graça
ou santidade sim são assim infundidos ou estimulados pelo Espírito de
Deus. (3) O governo providencial de Deus sobre agentes livres é
exercido conforme as leis da mente, da mesma maneira que seu governo
providencial sobre o mundo material é conforme as leis estabelecidas da
matéria. Ambas as coisas pertencem à potentia ordinata, ou eficiência
ordenada de Deus. Este não é o caso com as operações de Sua graça. Os
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 821
afetos e exercícios santos não são devidos ao mero poder moral da
verdade, ou a seu controle sobre nossos afetos naturais, mas sim à
morada do Espírito de Deus. De maneira que não somos nós os que
vivemos, mas Cristo que vive em nós. É verdadeiramente nossa vida,
mas é uma vida de origem divina, e sustentada e conduzida em todos os
seus exercícios por uma influência maior que as leis da mente, ou uma
influência que opera meramente por meio delas e conforme a suas
operações naturais. Esta distinção entre a natureza e a graça, entre a
eficiência providencial de Deus e as operações de Seu Espírito nos
corações de Seu povo é uma das mais importantes em toda a teologia.
Constitui toda a diferença entre o Agostinismo e o Pelagianismo, entre o
racionalismo e a religião sobrenatural, evangélica.

Conclusão.
Assim são os princípios gerais envoltos nesta dificilíssima doutrina
da Providência Divina. Deveríamos estar igualmente em guarda contra o
extremo que confunde toda eficiência em Deus, e que, ao negar todas as
segundas causas, destrói a liberdade e responsabilidade humana, e que
faz de Deus não só o autor do pecado, mas em realidade o único Ser do
universo; e o extremo oposto que exclui a Deus do mundo que Ele tem
feito, e que, ao negar que Ele governa todas as Suas criaturas e todas as
suas ações, destrói o fundamento de toda religião, e seca as fontes da
piedade. Se esta última perspectiva fosse certa, não haveria Deus a quem
olhar para a subministração de nossas necessidades, ou para ser
protegidos do mal, cujo favor buscar, ou cujo desagrado temer. Nós, e
todas as outras coisas, estaríamos nas mãos de causas operando
cegamente. Entre estes dois extremos igualmente fatais, encontra-se a
doutrina escriturística de que Deus governa todas as Suas criaturas e
todas as suas ações. Esta doutrina admite a realidade e eficiência das
segundas causas, tanto materiais como mentais, mas nega que sejam
independentes do Criador e Preservador do universo. Ensina que um
Deus imensamente sábio, bom e poderoso está presente em todas as
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 822
partes, controlando todos os acontecimentos, grandes e pequenos,
necessários e livres, de uma maneira perfeitamente consequente com a
natureza de Suas criaturas e com Sua própria infinita excelência, de
maneira que tudo está ordenado por Seus sábios e benevolentes
desígnios.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 823
CAPÍTULO XII
MILAGRES

§ 1. Sua natureza. Significado e uso da palavra.

A palavra milagre se deriva de miror, maravilhar-se, e por isso


denota aquilo que excita a maravilha. Neste sentido etimológico da
palavra pode-se empregar para denotar qualquer acontecimento
extraordinário adaptado para estimular a surpresa e chamar a atenção. As
palavras empregadas na Bíblia com referência aos acontecimentos
milagrosos não nos informam sobre sua natureza. As mais comuns são:
(1) ‫( פֶלֶא‬peleh), algo separado ou singular. (2) ‫( אוֹ ת‬oth), sinal,
portanto, algo designado para servir de confirmação. (3) ‫מוֹ פֵת‬
(mopheth), (de derivação incerta), empregado no sentido de tipos, de
pessoas e coisas expostas como advertência, e para acontecimentos
notáveis confirmando a autoridade de profetas. (4) ‫( ג ְבוּרָ ה‬g'vurah),
poder, empregado de qualquer manifestação extraordinária do poder
divino. (5) «Obras do Senhor». Na maioria dos casos estes termos
expressam o desígnio mais que a natureza dos acontecimentos aos quais
se aplicam.
Sendo tal o sentido indefinido destes termos escriturísticos, não é
surpreendente que a palavra milagre fosse empregado na Igreja num
sentido muito amplo. Qualquer coisa maravilhosa, qualquer coisa cuja
causa próxima não pudesse ser descoberta, e qualquer coisa em que a
ação divina estivesse especialmente indicada era chamada um milagre.
Assim, Lutero diz: «A conversão é o maior dos milagres». «Cada dia»,
diz ele, «vê-se milagre após milagre; que qualquer povo se apega ao
Evangelho quando há cem mil demônios unidos contra isso, ou que a
verdade se mantenha neste mundo de maldade, é um milagre continuado,
perante o qual a cura dos doentes ou a ressurreição dos mortos é uma
mera bagatela». Como nem a etimologia nem o uso da palavra conduz a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 824
uma ideia concreta da natureza de um milagre, podemos captar esta ideia
só mediante o exame de algum acontecimento claramente milagroso.

Definição de Milagre.
Segundo a «Confissão de Westminster»: «Deus, fazendo uso de
meios na providência comum, entretanto é livre para operar à vontade
sem, acima de, ou contra eles». Em primeiro lugar, há acontecimentos
portanto, devidos às operações comuns de segundas causas, sustentados
e guiados por Deus. A esta classe pertencem os processos comuns da
natureza; o crescimento de plantas e animais, os movimentos ordenados
dos corpos celestes, e os acontecimentos menos usuais, como terremotos,
erupções vulcânicas e convulsões e revoluções violentas nas sociedades
humanas. Em segundo lugar, há acontecimentos devidos às influências
do Espírito Santo sobre os corações dos homens, como a regeneração,
santificação, iluminação espiritual, etc. Terceiro, há acontecimentos que
não pertencem a nenhuma destas classes, e cujas características
distintivas são: primeiro, que têm lugar no mundo externo, isto é, na
esfera da observação dos sentidos; e segundo, que são produzidos ou
causados pela simples vontade de Deus, sem intervenção de nenhuma
causa subordinada. A esta classe pertence o ato original da criação, em
que era impossível toda cooperação de segundas causas. À mesma classe
pertencem todos os acontecimentos verdadeiramente milagrosos. Por
isso, um milagre pode ser definido como um acontecimento no mundo
exterior produzido pela eficiência imediata ou simples volição de Deus.
Um exame de algum dos grandes milagres registrado nas Escrituras
estabelecerá o rigor desta definição. Pode-se tomar como exemplo a
ressurreição de Lázaro dentre os mortos. Este foi um acontecimento que
teve lugar no mundo exterior; um que podia ser visto e verificado pelo
testemunho dos sentidos. Não foi produzido nem no todo nem em parte
pela eficiência das causas naturais. Foi devido à simples palavra, ou
volição, ou agência imediata de Deus. O mesmo se pode dizer da
restauração à vida da filha do principal da sinagoga, ao pronunciar Cristo
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 825
as palavras Talita cumi; e de sua cura dos leprosos mediante uma
palavra. O mesmo quando Cristo andou sobre o mar, quando multiplicou
os pães e os peixes, quando acalmou os ventos e as ondas com uma
ordem; não só se ignora qualquer cooperação de causas físicas, mas
também que se nega pela mais clara implicação.

Objeções a esta definição de Milagre.


Objeta-se a esta definição de milagre que supõe que as leis da
natureza podem ser violadas ou postas de lado. A isto objetam muitos
teólogos e cientistas, declarando que é impossível. Se a lei da natureza é
a vontade de Deus, esta não pode ser posta de lado, e muito menos
violada de maneira direta. Esta é a objeção de Agostinho, que pergunta:
“Quomodo est contra naturam, quod Dei fit voluntate cum voluntas tanti
utique conditoris conditæ rei cujusque natura sit? Portentum ergo fit, non
contra naturam, sed contra quam est nota natura.” 427 Baden Powell, em
nome dos cientistas, protesta contra o querer fazer algo que «que divirja
da natureza e da lei». «O amplo estudo crítico e indutivo do mundo
natural», diz ele, «não pode mais que tender poderosamente a evidenciar
o inconcebível de imaginadas interrupções da ordem natural, ou das
supostas suspensões das leis da matéria, e daquela imensa série de
causação dependente que constitui o legítimo campo para a investigação
científica, cuja consistência é a única justificação para sua generalização,
enquanto que forma a base substancial para as magnas conclusões da
teologia natural». 428 A questão dos milagres, diz ele, 429 não é tal «que
possa ser decidida mediante uns quantas generalidades tópicas e gastas
quanto ao governo moral do mundo e a ciência na Onipotência Divina,
ou quanto à validez do testemunho humano ou os limites da experiência
humana. Envolve, e está inicialmente erigido sobre aquelas maiores

427
De Civitate Dei, xxi. 8, edit. Benedictines, vol. vii. p. 1006, a.
428
Recent Enquiries in Theology, or Essays and Reviews. Por eminentes clérigos. Boston, 1860, p.
124.
429
Ibid., pág. 150.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 826
concepções da ordem da natureza, aqueles inclusivos elementos
primitivos de todo o conhecimento físico, aquelas ideias últimas de
causação universal, que podem ser familiares só para os versados em
filosofia cósmica em seu sentido mais amplo». «É principalmente
arriscado para qualquer arrazoador moral geral que discuta questões de
evidência que essencialmente envolvem aquela mais elevada apreciação
da verdade física que pode ser obtida só mediante uma exata e ampla
familiaridade com a série conectada das ciências física e matemática.
Assim, por exemplo, a simples mas magna verdade da lei da
conservação, e a estabilidade dos movimentos celestiais, agora
compreendido por todos os sãos filósofos cósmicos, é só um tipo dos
poderes universais, auto-sustentáveis e auto-evolutivos que impregnam
toda a natureza». 430 A conclusão do professor Powell é: «Se os milagres
estiveram, na estimativa de uma era anterior, entre os principais apoios
do cristianismo, estão na atualidade entre as principais dificuldades e
estorvos para sua aceitação». 431 Todo o seu argumento é este: Os
milagres, tal como são usualmente definidos, envolvem uma suspensão,
ou alteração, ou violação das leis da natureza; mas estas leis são
absolutamente imutáveis, e por isso esta definição tem que ser incorreta,
ou, em outras palavras, os milagres, neste sentido, devem ser
impossíveis.

Resposta à objeção anterior.


A forma em que a objeção é apresentada da parte daqueles que
fazem da natureza a vontade de Deus recebe resposta, dizendo que a
natureza não é um vontade de Deus em nenhum outro sentido que o de
que Ele ordenou a sequência dos acontecimentos naturais, e estabeleceu
as leis ou causas físicas mediante as quais se obtém esta sequência. Esta
relação entre Deus e o mundo dá por sentado que a natureza e suas leis

430
Ibid., pág. 151.
431
Ibid, pág. 153.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 827
lhe estão sujeitas, e por isso são suscetíveis em qualquer momento de ser
suspensas ou contrariadas, segundo o Seu querer.
Quanto à outra forma da objeção, que supõe que as leis da natureza
são em si mesmas imutáveis, e por isso que não podem ser suspensas, é
suficiente dizer: (1) Que esta absoluta imutabilidade das leis naturais é
uma hipótese gratuita. Que uma coisa tenha sido não é prova de que
tenha que ser sempre. não há certeza absoluta, porque não é necessário,
que o sol saia amanhã. Supomos confiantes que assim o fará, mas, sobre
que base? Que impossibilidade há para que este noite a voz do anjo se
ouça dizendo: «O tempo não será mais»? Se o tempo começou, o tempo
pode acabar. Se a natureza começou a ser, pode deixar de ser, e tudo nela
tem que ser suscetível de mudança. Os cientistas não têm direito a dar
por sentado que porquanto as leis físicas são e sempre foram, dentro dos
limites de nossa experiência, regulares em sua operação, que sejam,
como diz o professor Powell, «auto-sustentáveis e autoevolutivas». É um
grande erro supor que a uniformidade é inconsequente com o controle
voluntário; que, devido ao fato de que a lei reina, Deus não reine. As leis
da natureza são uniformes só porque Ele assim o quer, e sua
uniformidade continua só até onde Ele quer.
(2) É totalmente depreciativo do caráter de Deus supor que Ele
esteja sujeito à lei, e especialmente às leis da matéria. Se tão somente se
admite o Teísmo, então se deve admitir também que todo o Universo,
incluindo tudo o que contém e as leis pelas quais está controlado, deve
estar sujeito à vontade de Deus. O professor Powell diz, certamente, que
muitos teístas negam a possibilidade da suspensão ou violação das leis
da natureza, mas também diz que há muitos graus do Teísmo, e sob este
termo inclui ele teorias que outros consideram inconsistentes com a
doutrina de um Deus pessoal. A verdade é que a validez da objeção à
definição de milagre que foi dada no princípio, e que agora
consideramos, depende da hipótese de que Deus esteja sujeito à natureza,
e que não pode controlar as leis da mesma. J. Müller diz assim: “Etiamsi
nullus alius miraculorum esset usus, nisi ut absolutam illam divinæ
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 828
voluntatis libertatem demonstrent, humanamque arrogantiam, immodicæ
legis naturalis admirationi junctam, compescant, miracula haud temere
essent edita.” 432
(3) Para esta questão, a autoridade da Escritura é decisiva para os
cristãos. A Bíblia, em todo lugar, não só afirma a absoluta independência
de Deus de todas as Suas obras, e Seu controle absoluto sobre as
mesmas, mas também está repleta de exemplos do efetivo exercício deste
controle. Cada milagre registrado nas Escrituras é um exemplo assim.
Quando Cristo chamou Lázaro da tumba, as forças químicas que estavam
operando a dissolução de seu corpo deixaram de fazê-lo. Quando disse à
tempestade: «Cala, emudece!», as forças físicas que produziam a
tormenta foram detidas; quando andou sobre o mar, a lei da gravidade
ficou rebatida por uma força superior, a da vontade divina. É-nos dito em
2Rs 6:5, 6 que «o machado caiu na água», e que o homem de Deus
lançou na água um pau, «e fez flutuar o ferro». Aqui se produziu um
efeito que todas as leis conhecidas da física tenderiam a impedir. Por
isso, as Escrituras ensinam, por palavra e fato, que Deus pode agir, não
só com causas físicas, mas também sem e contra elas.
(4) Afinal de contas, a suspensão ou violação das leis da natureza
que se envolve nos milagres não é mais que o que está tendo lugar de
maneira constante ao nosso redor. Uma força neutraliza outra; a força
vital mantém em suspensão as leis químicas da matéria; e a força
muscular pode controlar a ação da força física. Quando alguém levanta
um peso do solo, nem se suspende nem se viola a lei da gravidade, mas
sim é oposta por uma força mais poderosa. O mesmo sucede com relação
ao andar de Cristo sobre a água ou à flutuação do ferro do machado por
mandato do profeta. A simples e grande verdade é que o universo não
está sob o controle exclusivo das forças físicas, mas em todo lugar e
tempo sempre há, acima e à parte de tudo, uma vontade pessoal infinita,
não anulando, mas sim dirigindo e controlando todas as causas físicas,

432
De Miracul. J. C. Nat. et Necess. Marburg, 1839, par. 1. pp. 41, 42.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 829
agindo com ou sem elas. A verdade desta questão é belamente expressa
por Sir Isaque Newton, quando disse: “Deum esse ens summe perfectum
concedunt omnes. Entis autem summe perfecti Idea est ut sit substantia
una, simplex, indivisibilis, viva et vivifica, ubique semper necessario
existens, summe intelligens omnia, libere volens bona, voluntate
efficiens possibilia, effectibus nobilioribus similitudinem propriam
quantum fieri potest, communicans, omnia in se continens, tanquam
eorum principium et locus, omnia per præsentiam substantialem cernens
et regens, et cum rebus omnibus, secundum leges accuratas ut naturæ
totius fundamentum et causa constanter coöperans, nisi ubi aliter agere
bonum est.” 433 Deus é o autor da natureza: Ele ordenou as suas leis; Ele
está em todo lugar presente em Suas obras; Ele governa todas as coisas
cooperando com e empregando as leis que Ele ordenou, NISI UBI
ALITER AGERE BONUM EST. Ele Se reservou Sua própria liberdade.

Leis mais elevadas


Uma segunda objeção à definição usual de milagres é que devem
ser atribuídos a alguma lei superior oculta da natureza, e não à ação
imediata de Deus. Esta objeção é enfatizada por duas classes de
escritores muito diferentes. Primeiro, as que adotam a teoria mecânica do
universo supõem que Deus a entregou ao governo das leis naturais, e que
não interfere mais em suas operações naturais que um construtor de
navios com a navegação dos navios que construiu. Este é o ponto de
vista apresentado por Babbage em seu «Ninth Bridgewater Treatise»
(Nono Tratado do Bridgewater). Ele supõe um homem diante da
máquina calculadora construída por ele, que produz milhões e milhões
de vezes números quadrados; logo, uma vez, produz um número cubo; e
logo só quadrados até que a máquina se desgasta. Há duas maneiras de
explicar este extraordinário número cubo. A primeira é que o criador da
máquina interferiu diretamente para sua produção. A outra maneira é que

433
Sir David Brewster’s Life of Newton, vol. ii, p. 154, edit. Edimburgo, 1855.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 830
proveu para sua aparição ao construir a máquina no princípio. Esta
última explicação dá uma ideia muito mais elevada da destreza e
sabedoria do engenheiro; e por isso, argui Babbage, é mais consequente
com os atributos da Deidade considerar os milagres não como
separações das leis atribuídas pelo Onipotente para o governo da matéria
e da mente, e sim como o exato cumprimento de umas leis muito mais
inclusivas que as que nós supomos que existem». 434 De maneira
semelhante, o professor Baden Powell mantém que cada efeito físico
deve ter uma causa física, e por isso que os milagres, considerados como
eventos físicos, devem ser «atribuídos a causas físicas, possivelmente a
causas conhecidas, mas, em todo caso, a alguma causa ou lei mais
elevada, se é que atualmente se desconhece». 435
Em segundo lugar, esta mesma postura é tomada por muitos que
não excluem assim a Deus de suas obras. Admitem que Ele está presente
em todas as partes, e agindo em todo lugar, controlando as leis físicas
para levar a cabo Seus propósitos. Mas eles insistem que Ele nunca opera
de maneira imediata, mas sempre por meio das leis estabelecidas da
natureza. Assim, o Duque de Argyle, cuja excelente obra a respeito do
«Reinado da Lei» é totalmente religiosa, diz: 436 «Nada há em religião
incompatível com a crença de que todos os exercícios do poder de Deus,
sejam comuns ou extraordinários, tenham lugar pela instrumentalidade
de alguns meios – isto é, pela instrumentalidade de leis naturais
dispostas, por assim dizer, e empregadas para um propósito divino».
Começa seu livro com citações da obra de M. Guizot, L' Eglise et la
Société Chrétienne en 1861, no sentido de que a crença no sobrenatural é
especialmente difícil para nossos tempos; de que a negação disso é a
forma que assumem todos os assaltos modernos contra a fé cristã; e que
seu aceitação encontra-se na raiz não apenas do cristianismo, mas sim de
toda religião positiva, seja qual for. Por sobrenatural, ele entendeu que
434
The Ninth Bridgewater Treatise. By Charles Babbage, Esq. London, 1838, p. 92.
435
Essays and Reviews; or Recent Inquiries in Theology, p. 160. Boston, 1860.
436
Reign of Law. Pelo Duque de Argyle. Quinta edição, Londres, pág. 22.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 831
Guizot significava o que a palavra quer dizer própria e usualmente, isto
é, aquilo que transcende à natureza; e por natureza se significam todas as
coisas fora de Deus. Assim, um acontecimento natural neste sentido, que
é aquele que Guizot lhe dá no fim, é um acontecimento que transcende
ao poder da natureza, e que se deve à ação imediata de Deus. M. Guizot
tem indubitavelmente razão ao dizer que a crença no sobrenatural, assim
explicada, é a grande dificuldade de nosso tempo. A tendência, não
apenas da ciência, mas também da especulação em todos os campos, é,
ao menos hoje em dia, a confundir tudo na natureza e a não admitir
nenhum outro tipo de causas.
Embora o Duque de Argyle seja teísta e admite a constante
operação da vontade de Deus na natureza, contudo é premente em sua
insistência de que o poder de Deus na natureza é sempre exercido
conforme a lei, e com relação a causas físicas. Por isso, os milagres
diferem dos acontecimentos comuns só até onde se desconhecem a lei
segundo a qual chegam a acontecer, ou as forças físicas que agem em
sua produção. Cita com aprovação a muito insatisfatória definição de
Locke: «Assim, considero um milagre a operação sensível que, estando
além da compreensão do espectador, e, em sua opinião, contrária ao
curso estabelecido na natureza, é considerada por ele como divina». 437
Esta é precisamente a postura que mantém Baden Powell, que no ensaio
ao que fizemos repetidas referências considera que um milagre é uma
mera questão de opinião. Não se trataria de um assunto factual que possa
ser determinado por testemunho, mas sim um assunto de opinião a
respeito da causa do fato. O fato pode ser admitido, e se pode pensar que
é devido a uma causa natural, conhecida ou desconhecida; então não se
trata de um milagre. Outro homem diz que se deve ao poder imediato de
Deus. Em tal caso trata-se de um milagre. E não é por nenhum
testemunho que se pode decidir qual das duas posturas seja a correta. É
preciso decidir pelas concepções gerais da natureza e da relação de Deus

437
Reign of Law, pp. 24, 25.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 832
com o mundo que os homens mantêm. A doutrina de que Deus opera no
mundo externo só por meio de uma força física, e inclusive que somente
pode agir desta maneira, conduz necessariamente à conclusão de que os
milagres são acontecimentos no mundo exterior produzidos por causas
físicas desconhecidas. Só demonstram «a presença de um conhecimento
sobre-humano e a operação de um poder sobre-humano».438

Objeções à doutrina de uma lei superior.


(1) Com relação a esta teoria, pode-se observar, em primeiro lugar,
que é uma hipótese totalmente gratuita. Supõe sem necessidade alguma
nem evidência de nenhuma espécie a existência de leis naturais
desconhecidas. Mas por leis, em tal contexto, significa-se ou a sequência
ordenada de acontecimentos, ou o poder mediante o qual se obtém a
sequência. Em qualquer caso existe tal sequência ordenada. Mas, onde
temos a evidência em algum lugar do universo de que os vivos e os
mortos, a recuperação dos doentes, o acalmar da tempestade e a
flutuação do ferro sigam como resultado normal de um mandato? A
doutrina da Igreja a respeito dos milagres dá uma explicação singela,
racional e satisfatória de que tenham lugar, tornando desnecessárias e
injustificáveis todas as hipóteses de leis desconhecidas. É absolutamente
impossível demonstrar, como o supõe esta teoria, que todo
acontecimento físico tenha que ter uma causa física. Nossas próprias
vontades são causas na esfera da natureza. E a vontade onipotente de
Deus não está atada a nenhum modo de operação.
(2) Esta hipótese não é só desnecessária, mas sim é insatisfatória.
Há milagres que transcendem não só a todas as leis conhecidas da
natureza, mas também a todas as possíveis. A natureza não pode criar.
Não pode originar vida. Em outro caso seria Deus, e não se precisaria de
nada fora da natureza para dar conta do universo e de tudo o que contém.
Portanto, como não há milagres que não possam ser explicados por «uma

438
Reign of Law, p. 16, note.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 833
lei mais elevada da natureza», é evidente que devem ser atribuídos ao
poder imediato de Deus, e não a alguma força física desconhecida.
Todos os teístas estão obrigados a reconhecer esta ação imediata de Deus
no ato original da criação. Então não havia leis nem forças por meio dos
que se possa exercer esta eficiência. Por isso, deve-se admitir o fato
sobre o qual descansa a doutrina da Igreja a respeito desta questão.
(3) As Escrituras não só estão caladas a respeito de qualquer lei
superior como causa de acontecimentos milagrosos, antes, sempre os
atribuem ao poder imediato de Deus. Cristo disse que Ele expulsava
demônios pelo dedo de Deus. Nunca se referiu a nada senão à Sua
própria vontade como o antecedente eficiente do efeito produzido:
«Quero, sê limpo». Ele curava com um toque, com uma palavra. Quando
deu poderes milagrosos aos Apóstolos, não fez deles alquimistas. Eles
não pretenderam o conhecimento de leis ocultas. Pedro, quando foi
chamado a dar conta da cura do aleijado no templo, disse que era em
nome de Cristo, que a fé em Seu nome tinha curado integralmente aquele
homem. Ademais, está claro que, com base nesta teoria, os milagres
devem perder seu valor como prova de uma comissão divina. Se os
Apóstolos faziam as maravilhas que faziam por meio do conhecimento
da natureza, ou por meio de sua eficiência, então estão no mesmo nível
que o experimentador que faz com que a água se congele numa colher ao
vermelho vivo. Se Deus não é o autor do milagre, isso não prova uma
mensagem divina.
(4) Também é válido o que diz o Rev. J. B. Mozley: «Dizer que o
fato material que tem lugar num milagre admite sua atribuição a uma
causa natural desconhecida não quer dizer que o próprio milagre possa
ser atribuído a ela. Um milagre é o fato material como coincidente com o
anúncio expresso ou com as pretensões sobrenaturais no agente. É esta
correspondência de dois fatos que constitui um milagre. Se uma pessoa
diz a um cego: “Vê”, e ele vê, não é só a repentina restauração da vista o
que temos que explicar, mas sim sua restauração naquele momento
particular. Porque é moralmente impossível que este exato acordo de um
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 834
acontecimento com um mandamento ou notificação possa dever-se à
mera casualidade, ou, como nós diríamos, que se trate de uma
coincidência extraordinária, especialmente se se repete em outros
casos». 439 É coisa bem certa que ninguém que via a Lázaro sair do
sepulcro, quando Jesus disse: «Lázaro, vem para fora!», pensou jamais
em alguma lei física como a causa daquele acontecimento.

Os milagres e as providências extraordinárias.


Uma terceira objeção feita contra a definição dada anteriormente é
que não é suficientemente abrangente. Não cobre uma numerosa classe
de milagres registrados nas Escrituras. Na repentina caída de uma névoa
que esconde um exército e que o salva assim da destruição; numa
tempestade que destrói uma frota hostil, e que assim salva uma nação,
em qualquer destas intervenções providenciais, diz-se, temos todos os
elementos incluídos em muitos dos milagres registrados na Bíblia. Os
acontecimentos têm lugar no mundo externo; não se devem a umas
meras causas físicas, mas sim a causas conduzidas pela ação imediata de
Deus, e dirigidas ao cumprimento de um fim particular. Isto é tudo o que
se pode dizer de muitas das pragas que açoitaram os egípcios; do voo das
codornas para dar satisfação ao desejo dos hebreus no deserto; e da pesca
milagrosa registrada nos Evangelhos.
A verdade é que uma definição estrita de milagre não inclui os
acontecimentos do tipo mencionado. Por isso, tais acontecimentos são
chamados «providenciais» por Trench, em distinção a «milagres
absolutos». Entretanto, esta falta de abrangência não parece uma razão
suficiente para rejeitar a definição comum de milagre. Porque há uma
classe de acontecimentos, certamente, aos quais se aplica esta definição
de maneira estrita; e é importante que estes acontecimentos, que tanto
destaca a Escritura, tenham uma designação peculiar para eles mesmos, e

439
Eight Lectures on Miracles; by J. B. Mozley, B. D. Bampton Lectures for 1865, London, 1865, p.
148.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 835
que expresse sua verdadeira natureza. Eles seguem sendo uma clara
evidência da intervenção divina. Como diz Mozley, o valor da evidência
não depende exclusivamente da natureza do acontecimento, mas sim das
circunstâncias que o acompanham. O enxame de gafanhotos, ou o bando
de codornas, não teriam sido, por si mesmos, prova de alguma
intervenção divina especial; mas tomadas com relação à ameaça de
Moisés no primeiro caso, e com a promessa no outro, aqueles
acontecimentos provavam de maneira tão concludente como o teria
podido fazer o milagre mais absoluto que ele era o mensageiro dAquele
que podia controlar as leis da natureza e obrigá-las a cumprir a Sua
vontade.

§ 2. A possibilidade dos milagres.

Naturalmente, a possibilidade dos milagres é negada pelos que não


fazem distinção alguma entre Deus e a natureza. Assim sucede com
Espinoza e todos os seus modernos discípulos. Espinoza diz:
“Existimant Deum tamdiu nihil agere, quamdiu natura solito ordine agit;
et contra, potentiam naturæ et causas naturales tamdiu esse oticsas, quam
diu Deus agit; duas itaque potentias numero ab invicem distinctas
imaginantur, scilicet, potentiam Dei et potentiam rerum naturalium, a
Deo tamen certo modo determinatam.” 440 Como ele nega que haja
qualquer distinção entre o poder de Deus e o poder da natureza, nega
naturalmente que haja alguma base para qualquer distinção entre
acontecimentos naturais e sobrenaturais. Diz ele: “Leges naturæ
universales mera esse decreta Dei, quæ ex necessitate et perfectione
naturæ divinæ sequuntur. Si quid igitur in natura contingeret, quod ejus
universalibus legibus repugnaret, id decreto et intellectui et naturæ
divinæ necessario etiam repugnaret; aut si quis statueret, Deum aliquid
contra leges naturæ agere, is simul etiam cogeretur statuere, Deum

440
De Miraculis, Tractatus Theologico-politicus, cap. iv.; Opera, edit. Jena, 1802, Vol. I. p. 233.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 836
441
contra suam naturam agere, quo nihil absurdius. . . . . Ex his —
sequitur, nomen miraculi non nisi respective ad hominum opiniones
posse intelligi, et nihil aliud significare quam opus, cujus causam
naturalem exemplo alterius rei solitæ explicare non possumus. 442 . . . .
Per Dei directionem intelligo fixum illum et immutabilem naturæ
ordinem, sive rerum naturalium concatenationem. — Sive igitur
dicamus, omnia secundum leges naturæ fieri, sive ex Dei decreto et
directione ordinari, idem dicimus.” 443 A teoria Panteísta, que ensina «que
o governo do mundo não é a determinação de acontecimentos da parte de
uma inteligência extramundana, mas pela razão como imanente nas
forças próprias cósmicas e em suas relações», 444 impede a possibilidade
de um milagre.
É uma mera modificação da mesma perspectiva geral a que diz que
embora os mundos material e mental têm uma existência real, não há
causalidade fora de Deus. As segundas causas são só as ocasiões ou os
modos em que se exerce a eficiência divina. Esta doutrina exclui
efetivamente qualquer distinção entre o natural e o sobrenatural, entre o
que se deve ao poder imediato de Deus e ao que se deve à eficiência das
segundas causas. As operações de Deus, quando são uniformes, diz
Bretschneider, nós as chamamos leis; quando são raras ou isoladas nós
as milagres. A única diferença é nossa maneira das contemplar. Uma
terceira objeção do mesmo caráter geral é que os milagres supõem ações
separadas e individuais da vontade divina, o que é inconsequente com a
natureza de um Ser absoluto. «Está bem claro que um Deus que leva a
cabo atos individuais pode ser uma pessoa, mas não pode ser absoluto.
Ao Ele passar de um a outro ato, ou ao exercer uma certa classe de
eficiência (a extraordinária) e logo repousar outra vez, Ele faz e é num
momento o que Ele não faz e não é em outro, e assim passa à categoria

441
Ibid. p. 235.
442
Ibid. p. 236.
443
Tractatus Theologico-politicus, cap. iii. ut supra, p. 192.
444
Strauss, Dogmatik, vol. II, pág. 384.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 837
do mutável, o temporal e o finito. Se continuamos considerando-O como
absoluto, sua obra deve ser considerada como um ato eterno, singelo e
uniforme em sua natureza porquanto procede de Deus, e só no mundo do
fenomênico revelando sua plenitude numa série de várias e cambiantes
operações divinas». 445
Esta é uma objeção que foi já considerada em várias ocasiões. Tudo
o que se tem que dizer em resposta a ela por agora é que demonstra
muito. Se é válida contra os milagres é também válida contra a doutrina
de uma criação ex-nihilo, contra a providência, contra a revelação, contra
as profecias, contra escutar a oração, e contra todas as operações da
graça. Em todos estes casos, tanto como nos milagres, Deus empreende
uma ação direta. E se tal ação direta supõe atos separados da vontade
divina em um dos casos, deve supô-lo nos restantes. De maneira que se é
válida a objeção contra os milagres, é válida contra a doutrina de um
Deus pessoal e contra todo o sistema de religião natural e revelada. Por
isso, seja qual for a evidência que tenhamos do Ser de Deus e da
realidade da religião, temos também que demonstrar que esta objeção é
um sofisma, baseada em nossa ignorância sobre o modo em que o Ser
infinito Se revela e Se manifesta no finito. Nada é mais certo que Deus
age em todas as partes e sempre, e nada é mais inescrutável que o modo
de Sua atividade.
Uma quarta objeção aos milagres se baseia na teoria deísta de que a
relação de Deus com o mundo é análoga à de um engenheiro com uma
máquina. Um engenheiro não tem razões para interferir no
funcionamento de uma máquina que tenha feito, exceto para corrigir suas
irregularidades; de modo que se Deus interfere na ordem natural de
acontecimentos produzidos pelas segundas causas que Ele ordenou, só
pode dever-se à imperfeição de Sua obra. Como isto não se pode admitir
racionalmente, tampouco se pode admitir a doutrina dos milagres, que
supõe tal interferência especial. Esta objeção recebe sua resposta

445
Strauss, Dogmatik, Vol. I, pág. 59.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 838
mostrando que a relação de Deus com o mundo não é a de um
engenheiro com uma máquina, não a de uma vontade onipresente,
constantemente controladora e inteligente. Por isso, a doutrina dos
milagres está baseada na doutrina do teísmo, isto é, de um Deus
extramundano e pessoal, que, sendo distinto do mundo, sustenta-o e
governa segundo Sua própria vontade. Além disso, esta doutrina dá por
sentado que as segundas causas têm uma eficiência real às quais se
devem imediatamente os acontecimentos comuns; que a ação divina não
passa por alto estas causas, mas que as sustenta e conduz em suas
operações. Mas ao mesmo tempo este Ser onipotente e onipresente é
livre para agir com ou sem ou contra estas causas, conforme Lhe pareça
conveniente; de modo que é igualmente consistente com Sua natureza e
com Sua relação com o mundo que os efeitos de Seu poder sejam
imediatos, isto é, sem a intervenção de causas naturais, como por meio
de sua instrumentalidade. Não se pode discutir que esta é a verdadeira
doutrina escriturística a respeito de Deus e de sua relação com o mundo.
Isto o admitem inclusive os que negam a veracidade desta doutrina. “Die
ganze christliche Anschauung von dem Verhältniss Gottes zur Welt, von
Schöpfung, Vorseh ung und Wunder bezeugt diess (namely, that the
Absolute is a person). Der Persönlichkeit ist freier Wille wesentlich; die
Freiheit verwirklicht sich in einzelnen beliebigen Willensacten: durch
einen solchen hat Gott die Welt geschaffen, durch eine Reihe von
solchen regiert er sie, durch solche Acte greift er auch ausser der
Ordnung seiner continuirlichen weltlenkenden Thätigkeit in die
Weltordnung ein.” 446

446
Strauss, Dogmatik, vol. I. p. 58.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 839
§ 3. Pode um milagre ser conhecido como tal?

Isto é negado por diversas razões.


1. Diz-se que se um milagre é um acontecimento que transcende a
eficiência das segundas causas, temos que ter um conhecimento perfeito
do poder de tais causas antes de poder decidir que um acontecimento
determinado seja milagroso. Mas como tal conhecimento perfeito é
impossível, tem que ser impossível para nós decidir se se trata ou não de
um milagre. Deve-se que admitir que em muitos casos a mera natureza
de um acontecimento não nos dá um critério certo de seu caráter como
natural ou sobrenatural. Aos selvagens parecem milagrosos muitos
efeitos que para nós são facilmente explicáveis como produto de causas
naturais. Um adepto à arte da prestidigitação, ou um cientista, podem
fazer muitas coisas totalmente inexplicáveis para os não iniciados, que
por isso não podem distingui-las dos milagres por nada na própria
natureza dos próprios efeitos. Mas esta objeção aplica-se só a uma certa
classe de milagres. Há alguns acontecimentos que transcendem tão
evidentemente ao poder da natureza que não pode haver dúvida racional
alguma a respeito de sua origem sobrenatural. Nenhuma criatura pode
criar nem originar vida, nem operar sem a intervenção de meios. Uma
grande classe de milagres registrados na Escritura implicam o exercício
de um poder que pode pertencer somente a Deus. A multiplicação de uns
poucos pães e peixes para dar satisfação à fome de milhares de homens,
a ressurreição dos mortos, e a restauração da vista aos cegos e do ouvido
aos surdos, não pela aplicação de uma arte, mas por um mandato, são
claramente efeitos que implicam o exercício de um poder onipotente.
Além disso, deve considerar-se que a natureza do acontecimento não é o
único critério pelo qual devemos determinar seu caráter. Para demonstrar
que um acontecimento no mundo externo seja milagroso, temos só que
demonstrar que não é efeito de nenhuma causa natural, e que deve ser
atribuído à imediata ação de Deus. Para produzir esta convicção, a
evidência moral é tão eficaz como qualquer outra. Tal acontecimento
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 840
pode ser, pelo que nós possamos ver, sobrenatural bem em sua natureza
ou no modo de seu acontecimento, mas isto só não nos justificaria para
atribuí-lo a Deus. Muito depende do caráter do agente e do desígnio pelo
qual a maravilha é levada a cabo. Se estes são evidentemente maus, não
nos podemos convencer de que foi Deus quem operou um milagre. Mas
se tanto o caráter do agente como o desígnio de sua obra são bons, então
ficamos fácil e racionalmente convencidos de que a maravilha é
realmente um milagre.

Prodígios mentirosos.
2. Esta observação aplica-se igualmente à outra base sobre a qual se
nega que podemos determinar que qualquer evento seja milagroso.
Qualquer efeito pode transcender a todas as capacidades de todas as
causas materiais e ao poder do homem, e entretanto pode estar dentro do
âmbito da capacidade de inteligências sobre-humanas. Há criaturas
racionais superiores ao homem, dotadas de capacidades extremamente
mais elevadas. Estas exaltadas inteligências têm acesso ao nosso mundo;
exercem seus poderes na produção de efeitos no reino da natureza; e,
portanto, diz-se, não podemos dizer se um acontecimento, admitido
como sobrenatural (no sentido limitado deste termo), deve ser atribuído a
Deus ou a estes seres espirituais. Tal é a latitude com a que as palavras
«sinais e milagres» se empregam nas Escrituras que se aplicam não só às
obras devidas à ação imediata de Deus, mas também às levadas a cabo
pelo poder de maus espíritos. Por isso, muitos teólogos consideram estas
últimas como verdadeiros milagres. São chamados «prodígios
mentirosos», diz Gerhard, 447 não quanto à sua forma (ou natureza), mas
quanto ao seu fim, isto é, porquanto sua intenção é impulsionar o erro.
Trench adota a mesma postura; diz ele que não põe em dúvida que as
Escrituras atribuem verdadeiras maravilhas a Satanás. A questão não é se
as obras dos magos egípcios e as profetizadas maravilhas do Anticristo

447
Loci Theologici, loc. xxiii. cap. II. § 274, edit. Tübingen, 1774, vol. xii. p. 102.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 841
devem ser consideradas como truques e prestidigitações. Pode-se admitir
que fossem, ou que sejam as obras de Satanás ou de seus anjos. Mas a
pergunta é: Devem ser considerados como verdadeiros milagres? A
resposta a esta pergunta depende do significado da palavra. Se por
milagre entendemos qualquer evento que transcenda a eficiência das
causas físicas e o poder do homem, são milagres. Mas se nos aderimos à
definição dada com interioridade, que demanda que o acontecimento seja
produzido pelo poder imediato de Deus, naturalmente que não são
milagres. São «prodígios mentirosos», não só porque tenham a intenção
de sustentar o reino das mentiras, mas sim porque professam falsamente
ser o que não são. Assim Tomás de Aquino diz: 448 “Demones possunt
facere miracula: quæ scilicet homines mirantur, in quantum eorum
facultatem et cognitionem excedunt.” Sólo son maravillas ante los ojos
de los hombres.
A dificuldade para discriminar entre os milagres e estes prodígios
mentirosos, isto é, entre as obras de Deus e as obras de Satanás, foi
antecipada e prevista pelos próprios escritores sagrados. Em Dt 13:1-3
Moisés diz: «Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te
anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te
houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste
... não ouvirás as palavras desse profeta». Em Mt 7:22, 23 nosso Senhor
diz: «Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura,
não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos
demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi
explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais
a iniquidade». Mt 24:24: «Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas
operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os
próprios eleitos». Em 2Ts 2:9 o Apóstolo nos ensina que a vinda do
homem de pecado é «com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira».
Estas passagens ensinam que pode haver acontecimentos sobrenaturais,

448
Summa, part 1, quest. cxlv. art. 4. edit. Cologne, 1640, p. 208.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 842
isto é, acontecimentos que transcendem o poder das causas materiais e a
capacidade do homem, pela ação de inteligências superiores; e que não
se lhes deve outorgar autoridade alguma a nenhum desses
acontecimentos sobrenaturais se são produzidos por agentes ímpios ou
para propósitos ímpios. Foi sobre esta base que nosso Senhor replicou
aos fariseus que O acusavam de expulsar demônios por Belzebu, o
príncipe dos demônios. Ele apelou ao desígnio que tinham os Seus
milagres para demonstrar que não podiam ser atribuídos a uma
influência satânica. Satanás não cooperará para confirmar a verdade nem
para promover o bem. Deus não pode cooperar para confirmar o que é
falso nem para promover o mal. De maneira que o caráter do agente e o
desígnio para o qual é produzido o evento sobrenatural determinam se é
verdadeiramente um milagre, ou se é um dos prodígios mentirosos do
diabo. A igreja adotou este critério a respeito dos milagres com base nas
Escrituras. Diz Lutero: «Não devem admitir-se destaque nem
maravilhas, por grandes e numerosas que sejam, contra doutrinas
autenticadas; porque temos o mandamento de Deus, que disse do céu: “A
ele ouvi”, que ouçamos só a Cristo». Chemnitz 449 diz: “Miracula non
debent præferri doctrinæ. . . . neque enim contra doctrinam a Deo
revelatam ulla miracula valere debent.” Gerhard 450 diz: “Miracula, si non
habeant doctrinæ veritatem conjunctam nihil probant.” Brochmann
também diz: 451 “Ut opus aliquod sit verum miraculum duo requiruntur.
Unum, est veritas rei; alterum, veritas finis.”
A isto se pode objetar que é raciocinar em círculos querer
demonstrar a verdade da doutrina com base no milagre, e logo a verdade
do milagre com base na doutrina. Mas nós respondemos: (1) Que este
critério moral é necessário só na classe duvidosa de milagres. Há certos
acontecimentos que por sua natureza não podem ter outro autor senão
Deus. Transcendem não só aos poderes da matéria e do homem, mas
449
Loci Theologici, III. edit. Frankfort and Wittenburg, 1653, p. 121.
450
Ibid. loc. xxiii. cap. 11. § 276, edit. Tübingen, 1774, vol. ii. p. 107.
451
Theol. System. de Eccles. II. vii. dub. 12, Ulm and Frankf., 1658, vol. ii. p. 276, b.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 843
também a todo poder criado. A eficiência das criaturas tem limites
conhecidos, determinados, se não pela razão, ao menos pela Palavra de
Deus. (2) Não é insólito nem irrazoável que dois tipos de evidência
sejam dependentes e entretanto mutuamente confirmativas. No caso de
um historiador, podemos crer que suas autoridades sejam o que diz que
são, com base no caráter do mesmo; e podemos crer em suas declarações
com base em suas autoridades. Assim que podemos crer em um homem
bom quando nos diz que as maravilhas que leva a cabo não são truques,
nem efeitos produzidos pela cooperação de maus espíritos, mas pelo
poder de Deus, e podemos crer que seus ensinos são divinos devido aos
prodígios. A Bíblia dá por sentado que os homens têm uma percepção
intuitiva do bem; e dá por sentado que Deus está do lado da bondade, e
Satanás do lado do mal. Por isso, se é realizado um prodígio em apoio do
que é bom, é de Deus; se é em apoio do que é mau, é de Satanás. Esta é
uma das bases pela quais os Protestantes se preocupam tão pouco dos
pretendidos milagres da Igreja de Roma. Não sentem a necessidade de
refutá-los mediante um exame crítico de sua natureza, nem das
circunstâncias sob as quais foram levados a cabo, nem da evidência que
os sustenta. Nenhum num milhar deles poderia resistir a prova de tal
exame; a maioria deles, certamente, são imposturas descaradas
abertamente justificadas pelas autoridades sobre a base da fraude
piedosa. É já razão suficiente para repudiar todos estes pretendidos
milagres, antes de qualquer exame, o fato de que sejam operados em
apoio de um sistema anticristão, que formem parte de um complicado
matagal de engano e maldade.

A insuficiência do testemunho humano.


Há ainda outra base sobre a qual se negou a possibilidade de que
um milagre seja conhecido ou demonstrado. Diz-se que não há nenhuma
evidência adequada para estabelecer o acontecimento de um
acontecimento milagroso. Nossa fé nos milagres deve repousar no
testemunho histórico. O testemunho histórico é só o testemunho de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 844
homens suscetíveis de ser enganados. Toda confiança em tal testemunho
está baseada na experiência. Entretanto, a experiência nos ensina que o
testemunho humano não é sempre confiável, enquanto que nossa
experiência a respeito do curso uniforme da natureza não conhece
exceção alguma. Por isso, sempre será mais provável que as testemunhas
errassem e não que o curso da natureza tenha sido violado. Este é o
famoso argumento de Hume, do qual diz Babbage que, «privado de seus
menos importantes concomitantes, nunca foi refutado, nem nunca o
será». 452 Evidentemente, refere-se a que não pode ser refutado exceto
matematicamente, por meio da doutrina das probabilidades. Porque
numa página posterior diz que os que sustentam o preconceito contra a
investigação matemática «devem agora ver-se obrigados a admitir que
trataram de desacreditar a única ciência que pode dar uma refutação
precisa de um dos mais célebres argumentos contra a revelação». 453
Logo depois tenta demonstrar o inverso à proposição de Hume; isto é,
que com base na doutrina das probabilidades é grandemente muito mais
provável que se dê uma violação das leis da natureza (p.ex., que um
morto volte à vida) e não que seis testemunhas independentes concorram
em testificar a respeito da mesma falsidade. O argumento pode ser válido
para os matemáticos, mas para a gente comum parece uma aplicação
errônea dos princípios desta venerável ciência. Assim como não
podemos determinar pela lei de probabilidades uma questão de estética
ou moral, tampouco pode-se determinar desta maneira a relação de Deus
com o mundo, e o uso de Seu poder, tal como está envolto na doutrina
dos milagres. Não depende da validez do testemunho humano. Por
incerto ou inviável que possa ser este testemunho, acontecimentos como
os milagres podem ter lugar, se são consistentes com a natureza de Deus,
e podem ser cridos racionalmente. Podem dar-se provas de sua realidade
que ninguém possa negar. Entretanto, como se observou, é falsa a

452
Babbage, Ninth Bridgewater Treatise, pág. 121.
453
Ibid., pág. 132.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 845
pressuposição de que o testemunho humano não é adequado para
produzir uma certeza absoluta. Os homens não duvidam em sentenciar à
morte a um semelhante, embora seja só com base no testemunho de dois
homens. A fim de que o testemunho humano leve a assentimento, deve
(1) Ser dado como prova de um acontecimento possível. O impossível
não pode ser demonstrado mediante nenhum tipo de evidência. O
professor Powell pergunta: Quanto testemunho seria necessário para
demonstrar que numa ocasião determinada dois mais dois tinham
somado cinco? Como nenhuma quantidade de testemunho pode
demonstrar tal impossibilidade, o argumento conclui no sentido de que
nenhuma quantidade de evidência pode demonstrar um milagre. Se os
milagres são impossíveis, este é o fim da questão. Ninguém é tão
insensato para pretender que se possa demonstrar o impossível. (2) A
segunda condição da credibilidade do testemunho é que o acontecimento
admita uma fácil verificação. Se alguém testifica de que viu um
fantasma, pode ser certo que via algo que ele considerou um fantasma;
mas o fato não pode ser verificado. A ressurreição de Cristo, por
exemplo, o milagre de cuja veracidade depende nossa salvação, foi um
acontecimento que podia ser autenticado. A identidade entre o Jesus
morto e vivo pôde ser estabelecido para além de toda dúvida razoável.
(3) As testemunhas devem ter um conhecimento ou evidência
satisfatórios da verdade dos fatos a respeito dos quais testificam. Se os
Apóstolos tivessem visto Cristo depois de Sua ressurreição só numa
ocasião, à grande distância, numa luz incerta, e só por um momento, o
valor de seu testemunho teria ficado grandemente prejudicado. Mas
porquanto o viram repetidamente durante quarenta dias, conversando
com Ele, comendo com Ele, e havendo-o tocado, está fora de questão
que pudessem estar errados. (4) As próprias testemunhas devem ser
homens sóbrios e inteligentes: (5) Devem ser homens bons. O
testemunho de outros homens, sob estas condições, pode ser tão
convincente como o de nossos próprios sentidos. E pode ficar
confirmado de tal maneira por evidência colateral, natural e sobrenatural,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 846
pela natureza dos efeitos produzidos, e por sinais e prodígios e dons do
Espírito Santo, para fazer com que a incredulidade seja um milagre de
insensatez e de maldade.
A falácia do argumento de Hume foi frequentemente assinalada.
Em primeiro lugar, descansa sobre a falsa pressuposição de que a
confiança no testemunho humano está baseada na experiência, enquanto
que está baseada numa lei de nossa natureza. Não podemos evitar confiar
em homens bons. Sabemos que o engano é inconsistente com a bondade;
e por isso sabemos e nos vemos forçados a crer, que homens bons não
enganarão de maneira intencionada; e por isso, por uma lei de nossa
natureza nos vemos forçados a receber seu testemunho quanto aos fatos
na esfera do conhecimento pessoal deles. A experiência, em lugar de ser
a base da crença no testemunho, corrige nossa credulidade nos ensinando
as condições únicas sob as quais podemos confiar no testemunho
humano. Em segundo lugar, Hume dá por sentado que há uma violenta
improbabilidade antecedente contra o acontecimento de um milagre, que
só uma quantidade «milagrosa» de evidência poderia contrapesar.
Certamente, não é só incrível, mas sim inconcebível, que se operasse um
milagre sem uma razão adequada. Mas pode-se esperar de maneira
confiante que Deus, em grandes ocasiões e para os mais altos fins,
intervenha com o exercício imediato de Seu poder no curso dos
acontecimentos. Sendo aceito o teísmo, desaparece a dificuldade a
respeito dos milagres, mas por teísmo não se significa a mera admissão
de que algo seja Deus, quer a natureza, a força, o movimento ou a ordem
moral; mas sim a doutrina de um Ser extramundano pessoal, o Criador e
Governador de todas as coisas, que opera segundo a Sua própria vontade
na hoste dos céus e entre os moradores da terra; um Deus que não está
limitado por influências nem leis cósmicas.
Em terceiro lugar, o argumento de Hume dá por sentado que nossa
fé nos milagres descansa exclusivamente no testemunho humano. Não é
assim. Os milagres registrados na Escritura são uma parte competente do
grande sistema de fato nela revelado. O todo se mantém ou cai junto. Por
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 847
isso, nossa fé nos milagres fica sustentada por toda a evidência que
autentica o evangelho de Cristo. E esta evidência não pode ser nem
sequer tocada por um balanço de probabilidades.

§ 4. O valor dos milagres como prova da Revelação divina

A respeito desta questão se sustentaram opiniões extremas. Por um


lado, manteve-se que os milagres são a única evidência satisfatória de
uma revelação divina; por outra, que não são nem necessários nem
possíveis. Alguns argumentam que, porquanto a fé deve estar baseada na
apreensão da verdade como verdade, é impossível que nenhuma
quantidade de evidência externa possa produzir fé, nem capacitar-nos
para ver a veracidade daquilo que não poderíamos apreender sem ela.
Como pode um milagre capacitar-nos para ver a veracidade de uma
proposição de Euclides, ou que uma paisagem seja bela? Este tipo de
raciocínio é falacioso. Passa por alto a natureza da fé como a convicção
de coisas que não se veem, com base em um testemunho adequado. O
que a Bíblia ensina a respeito desta questão é (1) Que a evidência dos
milagres é importante e decisiva; (2) Que, entretanto, está subordinada e
é inferior à da própria verdade. Ambos os pontos são abundantemente
evidentes com base na linguagem da Bíblia e com base nos fatos nela
contidos: (a) Que Deus confirmou Suas revelações, bem feitas por
profetas ou apóstolos, mediante estas manifestações de Seu poder, é em
si mesmo uma prova suficiente de sua validez e importância como selos
de uma missão divina. (b) Os escritores sagrados, sob ambas as
dispensações, apelaram a estas maravilhas como provas de que eles eram
os mensageiros de Deus. No Novo Testamento diz-se que Deus
confirmou o testemunho de Seus Apóstolos mediante sinais, prodígios e
diversos milagres e dons do Espírito Santo. Inclusive nosso próprio
Senhor, em quem habitava corporalmente a plenitude da Deidade, foi
aprovado mediante milagres, sinais e maravilhas que Deus efetuou por
meio dEle (At 2:22). (c) Cristo apelou constantemente a Seus milagres
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 848
como uma prova decisiva de sua missão divina. «As obras que o Pai me
confiou para que eu as realizasse,» diz o Senhor, «essas que eu faço
testemunham a meu respeito de que o Pai me enviou» (Jo 5:20,36). E em
Jo 10:25, «As obras que eu faço em nome de meu Pai testificam a meu
respeito»; e no versículo 38 [TB]: «Embora não me creiais, crede nas
obras». Jo 7:17: «Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a
respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo».
Indubitavelmente, a mais alta evidência da verdade é a própria verdade;
como a mais alta evidência do bem é o próprio bem. Cristo é sua própria
testemunha. Sua glória O revela como o Filho de Deus, a todos aqueles
cujos olhos não foram cegados pelo deus deste mundo. O ponto que os
milagres estão destinados a demonstrar não é tanto a verdade das
doutrinas ensinadas como a missão divina do mestre. Este último,
certamente, a fim do primeiro. O que um homem ensina pode ser certo,
embora não seja divino em sua origem. Mas quando um homem
apresenta-se como mensageiro de Deus, que seja recebido como tal ou
não depende em primeiro lugar das doutrinas que ensina, e em segundo,
das obras que leva a cabo. Se não só ensina doutrinas conformadas à
natureza de Deus e consistente com as leis de nossa própria constituição,
mas também executa obras que dão evidência de poder divino, então
sabemos não só que suas doutrinas são verdadeiras, mas também que o
mestre foi enviado por Deus.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 849
CAPÍTULO XIII
OS ANJOS

Introdução

TANTO é o que se diz nas Escrituras de anjos bons e maus, e se


atribuem a eles funções de tanta importância a ambas as classes na
providência de Deus sobre o mundo, e especialmente na experiência de
Seu povo e de Sua Igreja, que a doutrina da Bíblia a respeito deles não
deveria ser passada por alto. Tem sido geral a crença de que há criaturas
inteligentes mais elevadas que o homem. Isso é tão consoante com a
analogia da natureza para ser extremamente provável inclusive em
ausência de qualquer revelação direta a respeito do tema. Em todos os
departamentos da natureza há uma gradação regular das formas
inferiores às superiores de vida; dos cogumelos vegetais quase invisíveis,
nas plantas, até o cedro do Líbano; do micróbio mais diminuto até o
gigantesco mamute. No homem nos encontramos com a primeira, e com
toda aparência com a mais inferior, das criaturas racionais. Que ele seja a
única criatura de sua ordem é, a priori, tão improvável como os insetos
serem a única classe de animais irracionais.

Há multidão de razões para a presunção de que a escala de ser entre


as criaturas racionais é tão extensa como a do mundo animal. A moderna
filosofia que deifica o homem não deixa lugar para nenhuma ordem de
seres acima dele. Mas se a distância entre Deus e o homem é infinita,
toda a analogia demonstraria que os ordens de criaturas racionais entre
nós e Deus devem ser inconcebivelmente numerosas. Assim como isto é
provável por si mesmo, também está claramente revelado na Bíblia como
certo.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 850
§ 1. Sua natureza.

Quanto à natureza dos anjos, são descritos: (1) Como espíritos


puros, isto é, seres imateriais e incorpóreos. As Escrituras não lhes
atribuem nenhuma classe de corpo. Supondo que o espírito não
conectado com matéria não pode agir por si mesmo, que tampouco pode
comunicar-se com outros espíritos nem operar no mundo externo, foi
mantido por muitos, e assim decidido no concílio celebrado em Nisa em
784 d.C., que os anjos deviam estar formados por éter ou luz, opinião
esta que se considerava apoiada por passagens como Mt 28:3; Lc 2:9 e
outras passagens nas quais se fala de sua aparência luminosa e da glória
que os acompanha. O Concílio Laterano do 1215 d.C. decidiu que eram
incorpóreos, e esta foi a opinião comum na Igreja. declaram-se ser
“substantiæ spirituales, omnis corporeæ molis expertes.” Por isso, como
tais, são invisíveis, incorruptíveis e imortais. Sua relação com o espaço é
descrita como uma illocalitas; não ubiquidade ou onipresença, porquanto
estão sempre em algum lugar, e não em todas as partes em algum
momento determinado, mas não estão confirmados ao espaço de uma
maneira limitante como o estão os corpos, e podem passar de uma
porção de espaço a outra. Como espíritos, possuem inteligência, vontade
e poder. Com relação ao seu conhecimento, seja com relação a seus
modos ou objetos, não se revela nada em especial. Tudo o que está claro
é que em suas faculdades intelectuais e na extensão de seu conhecimento
são muito superiores aos homens. Também seu poder é muito grande, e
se estende sobre a mente e a matéria. Têm poder para comunicar-se entre
si e com outras mentes, e para produzir efeitos no mundo natural. A
grandeza de seu poder se manifesta: (a) Pelos nomes e títulos que
recebem, como principados, potestades, domínios e governadores do
mundo. (b) Pela asserção direta da Escritura, porquanto se diz que são
«poderosos em fortaleza»; e (c) Pelos efeitos atribuídos à sua ação. Por
grande que possa ser o seu poder, está entretanto sujeito a todas as
limitações que pertencem às criaturas. Os anjos, portanto, não podem
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 851
criar, não podem mudar substâncias, não podem alterar as leis da
natureza, não podem executar milagres, não podem agir sem meios, e
não podem esquadrinhar o coração, porquanto estas prerrogativas,
segundo a Escritura, são peculiares de Deus. Por isso, o poder dos anjos
é: (1) Dependente e derivado. (2) Deve ser exercido conforme as leis do
mundo material e espiritual. (3) Sua intervenção não é optativa, mas
permitida ou ordenada por Deus, e segundo a Sua vontade, e, pelo que ao
mundo externo concerne, parece que é só ocasional e excepcional. Estas
limitações são da maior importância prática. Não devemos considerar os
anjos como interpostos entre nós e Deus, nem lhes atribuir os efeitos que
a Bíblia em todo lugar atribui à ação providencial de Deus.

Erros a respeito desta questão.


Esta doutrina escriturística, universalmente recebida na Igreja,
opõe-se: (1) À teoria de que eram emanações efêmeras da Deidade. (2) À
teoria gnóstica de que eram emanações permanentes ou éons; e (3) À
postura racionalista, que lhes nega alguma existência real, e que atribui
as declarações Escriturísticas quer a superstições populares adotadas
pelos escritores sagrados em sua acomodação às opiniões da época, ou a
personificações poéticas dos poderes da natureza. As bases sobre as
quais a moderna filosofia nega a existência dos anjos não tem força
alguma em oposição às explícitas declarações da Bíblia, que não se
podem rejeitar sem rejeitar totalmente a autoridade das Escrituras, ou
sem adotar uns princípios de interpretação destruidores de seu valor
como norma de fé.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 852
§ 2. Seu Estado.

Quanto ao estado dos anjos, ensina-se claramente que todos eram


originalmente santos. Também se deve inferir sinceramente com base
nas declarações da Bíblia que foram submetidos a um período de prova,
e que alguns guardaram seu primeiro estado, e que outros não. Os que
mantiveram sua integridade são descritos como confirmados num estado
de santidade e glória. Esta condição, embora de uma segurança
completa, é de perfeita liberdade; porque a mais absoluta liberdade de
ação é, segundo a Bíblia, coerente com uma absoluta certeza quanto ao
caráter de tal ação. Estes santos anjos, evidentemente, não são todos da
mesma posição. Isto se evidencia pelos termos com que são designados;
termos que implicam diversidade de ordem e autoridade. Uns são
príncipes, outros são potentados, outros governadores do mundo. Além
disto, as Escrituras nada revelam, e as especulações dos escolásticos e
teólogos a respeito da hierarquia das hostes angélicas não têm nem
autoridade nem valor.

§ 3. Suas missões.

As Escrituras ensinam que os santos anjos são empregados: (1) No


culto de Deus. (2) Na execução da vontade de Deus. (3) E especialmente
na ministração aos herdeiros de salvação. Estão descritos como rodeando
a Cristo, e como sempre dispostos a desempenhar qualquer serviço que
lhes possa ser atribuído no avanço de seu reino. Sob o Antigo
Testamento apareceram em repetidas ocasiões aos servos de Deus, para
lhes revelar Sua vontade. Eles feriram os egípcios; foram empregados na
promulgação da lei no Monte Sinai; ajudaram os israelitas durante sua
peregrinação; destruíram os seus inimigos; e acamparam ao redor do
povo de Deus como defesa em horas de perigo. Predisseram e
celebraram o nascimento de Cristo (Mt 1:20; Lc 1:11); eles O serviram
em Sua tentação e padecimentos (Mt 4:11; Lc 22:43); eles anunciaram a
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 853
Sua ressurreição e ascensão (Mt 28:2; Jo 20:12). Seguem sendo espíritos
ministradores para os crentes (Hb 1:14); eles tiraram Pedro do cárcere;
eles vigiam sobre os meninos (Mt 18:10); eles conduzem as almas dos
que morrem ao seio de Abraão (Lc 16:22); eles acompanharão a Cristo
em Sua segunda vinda, e recolherão a seu povo em seu reino (Mt 13:39;
16:27; 24:31). Tais são as declarações gerais das Escrituras a respeito
desta questão, e com elas deveríamos contentar-nos. Sabemos que são os
mensageiros de Deus; que eles são agora, como sempre o foram,
empregados na execução de Seus mandatos, mas além disso não se
revela positivamente. Que cada crente individual tenha um anjo da
guarda não é algo que se declare com alguma clareza na Bíblia. A
expressão empregada em Mt 18:10, com referência aos meninos
pequenos, «cujos anjos» diz-se que veem o rosto de Deus no céu, é
entendida por muitos como favorecedora desta hipótese. O mesmo
sucede com a passagem em At 12:7, onde se menciona o anjo de Pedro
(v. 15). Mas esta última passagem não demonstra que Pedro tivesse um
anjo da guarda como tampouco se a criada tivesse dito que era o
fantasma de Pedro demonstraria a superstição popular a respeito desta
questão. A linguagem registrada não é o de uma pessoa inspirada, mas
sim o de uma serva não instruída, e não pode ser tomado como de
autoridade didática. Só demonstra que os judeus daqueles tempos criam
em aparições espirituais. A passagem em Mateus tem mais relevância,
ensinando que os meninos têm anjos guardiões; isto é, que há anjos
encomendados a cuidar de seu bem-estar. Mas não demonstra que cada
menino, nem que cada crente, tenha seu próprio anjo da guarda. Em
Daniel 10 faz-se menção do Príncipe da Pérsia, do Príncipe da Grécia, e,
falando com os hebreus, de Miguel seu Príncipe, em tal sentido que
levou a grande maioria dos comentaristas e teólogos de todas as eras da
Igreja a adotar a opinião de que se encomendou a certos anjos a especial
supervisão de alguns reinos em particular. Porquanto Miguel, que é
chamado Príncipe dos Hebreus, não era o incriado Anjo da Aliança, nem
um príncipe humano, mas sim um arcanjo, parece natural a inferência de
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 854
que o Príncipe da Pérsia e o Príncipe da Grécia eram também anjos. Mas
esta opinião foi controvertida por várias razões. (1) Pelo silêncio da
Escritura a respeito desta questão em outras passagens. Nem no Antigo
nem no Novo Testamento encontramos indicação alguma de que as
nações pagãs tenham ou tivessem um anjo da guarda ou um mau espírito
posto sobre elas. (2) Em Daniel 10:13 os poderes enfrentados contra o
anjo Miguel que apareceu ao profeta são chamados «os reis da Pérsia»,
ao menos segundo uma interpretação daquela passagem. (3) No capítulo
seguinte se introduzem soberanos terrestres de tal maneira que se faz
patente que são eles, e não os anjos, bons ou maus, os poderes opositores
indicados pelo profeta. 454 É certamente desaconselhável adotar, com
base na autoridade de uma passagem duvidosa num só livro da Escritura,
uma doutrina não sustentada por outras partes da Palavra de Deus.
Enquanto que tudo isto deve ser admitido, é entretanto certo que a
interpretação comum da linguagem do profeta é a mais natural, e que
nada há na doutrina assim ensinada que fique fora de analogia com os
claros ensinos das Escrituras. Está claro, pelo que se ensina em outros
lugares, que existem seres espirituais mais excelsos que o homem, bons
como maus; que são extremamente numerosos; que são muito poderosos;
que têm acesso a nosso mundo e que estão ocupados em seus assuntos;
que têm diferentes posições e ordens; e que seus nomes e títulos indicam
que exercem domínio e que agem como governantes. Isto é certo dos
anjos maus assim como dos bons; e, sendo certo, nada há na opinião de
que um anjo em particular tenha o controle especial sobre uma nação, e
outro sobre outra nação, que entre em conflito com a analogia da
Escritura.
Mas pelo que respeita aos anjos bons, está claro: 1. Que podem
produzir e produzem efeitos no mundo natural ou externo. As Escrituras
pressupõem em todo lugar que a matéria e a mente são duas substâncias
distintas, e que uma pode agir sobre a outra. Sabemos que nossas mentes

454
Veja-se Hävenick a respeito de Daniel 10:13.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 855
agem sobre nossos corpos, e que nossas mentes recebem a ação de
causas materiais. Por isso, nada há contra, inclusive além do ensino da
experiência, na doutrina de que os espíritos possam agir sobre o mundo
material. A extensão de sua ação fica limitada pelos princípios
anteriormente enunciados; e entretanto, com base em sua natureza
exaltada os efeitos que podem produzir podem exceder muito nossa
compreensão. Um anjo deu morte a todos os primogênitos dos egípcios
numa só noite; os trovões e raios que acompanharam à promulgação da
lei no Monte Sinai foram produzidos por ação angélica. Os antigos
teólogos, em numerosas ocasiões, chegaram, pelo fato admitido de que
os anjos agem desta maneira no mundo externo, à conclusão de que
todos os efeitos naturais são produzidos por ação deles, e que as estrelas
eram levadas em seus órbitas pelo poder dos anjos. Mas isto viola dois
evidentes e importantes princípios: Primeiro, que não se deveria assumir
uma causa por um efeito sem uma evidência; e segundo, que não se
deveriam supor mais causas que as necessárias para dar explicação aos
efeitos. Por isso, não estamos autorizados para atribuir nenhum
acontecimento à interferência angélica exceto sob a autoridade das
Escrituras, nem quando outras causas sejam adequadas para explicá-lo.
2. Os anjos não só executam a vontade de Deus no mundo natural,
mas também agem sobre as mentes dos homens. Têm acesso a nossas
mentes, e podem influenciá-las ao bem conforme as leis de nossa
natureza e no emprego de meios apropriados. Não agem mediante aquela
operação direta que é a peculiar prerrogativa de Deus e Seu Espírito, mas
pela sugestão da verdade e a guia do pensamento e do sentimento, de
uma maneira muito similar a como um homem pode agir sobre outro. Se
os anjos podem comunicar-se entre si, não há razão alguma pela qual não
possam, de maneira similar, comunicar-se com nossos espíritos. Assim,
nas Escrituras se apresentam os anjos não só como provendo uma guia e
proteção gerais, mas também como dando força e consolação interiores.
Se um anjo fortaleceu a nosso próprio Senhor após Sua agonia no jardim,
Seu povo pode também experimentar o apoio de anjos; e se anjos maus
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 856
tentam ao pecado, bons anjos podem atrair à santidade. É coisa certa que
lhes é atribuído nas Escrituras uma ampla influência e operação em
promover o bem-estar dos filhos de Deus, e na proteção dos mesmos do
mal e na defesa deles de seus inimigos. O uso que nosso Senhor faz da
promessa: «Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te
guardem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos,
para não tropeçares nalguma pedra» (Sl 91:11,12), mostra que não se
deve tomar como uma mera forma poética de promessa de proteção
divina. Eles vigiam sobre os pequenos (Mt 18:10); ajudam os de idade
amadurecida (Sl 34:7), e estão presentes junto aos moribundos (Lc
16:22).
3. Também lhes é atribuída uma ação especial como servos de
Cristo no avanço de Sua Igreja. Como a lei foi dada por meio do
ministério deles, como estiveram encarregados do povo sob a antiga
economia, também são tratados como presentes na assembleia dos santos
(1Co 11:10), e como constantemente guerreando contra o dragão e seus
anjos.
Esta doutrina escriturística do ministério dos anjos está cheia de
consolação para o povo de Deus. Os membros deste povo podem
alegrar-se na certeza de que estes santos seres acampam junto a eles;
defendendo-os de dia e de noite de inimigos invisíveis e de perigos
inopinados. Ao mesmo tempo não devem interpor-se entre nós e Deus.
Não devemos esperar neles nem invocar a ajuda deles. Eles estão nas
mãos de Deus e cumprem Sua vontade. Ele os usa como usa os ventos e
os raios (Hb 1:7), e não devemos olhar aos instrumentos no primeiro
caso mais que no outro.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 857
§ 4. Os anjos maus.

A Escritura nos informa que certos anjos não guardaram seu


primeiro estado. São designados como os anjos que pecaram. São
chamados espíritos ímpios, ou imundos; principados, potestades;
governadores deste mundo; e maldades espirituais (isto é, espíritos
ímpios) nos lugares celestiais. A designação mais comum que lhes é
dada dá é δαιμονες (daimones), ou mais usualmente δαιμόνια
(daimonia), que por desgraça nossos tradutores rendem como demônios.
As Escrituras fazem uma distinção entre διάβολος (diabolos) y δαίμων
(daimon), que não se observa na versão em Inglês. No mundo espiritual
há só um διάβολος (diabolos, diabo), mas há muitos δαιμόνια (daimonia,
demônios). Estes maus espíritos são descritos como pertencentes à
mesma ordem de ser que os anjos bons. Todos os nomes e títulos
descritivos de sua natureza e poder que se dão os uns se dão também aos
outros. A condição original dos mesmos era de santidade. Quando
caíram ou qual fosse a natureza de seu pecado não se revela. A opinião
geral é que foi por soberba, com base em 1Tm 3:6. Um bispo, diz o
Apóstolo, não deve ser «neófito, para não suceder que se ensoberbeça e
incorra na condenação do diabo», o que é geralmente entendido como
significando a condenação em que incorreu o diabo pelo mesmo pecado.
Alguns conjeturaram que Satanás foi levado a rebelar-se contra Deus e a
seduzir a nossa raça a Lhe negar o acatamento devido, pelo desejo de
reger sobre nosso globo e sobre a raça dos homens. Mas disto não há
indicações na Escritura. Sua primeira aparição na história sagrada é no
caráter de um anjo apóstata. O fato de que haja um anjo caído exaltado
em posição e poder sobre todos os seus associados é algo que se ensina
claramente na Bíblia. É chamado Satanás (o adversário), διάβολος
(diabolos), o acusador, ὁ πονηρός (ho poneros), o maligno; o príncipe da
potestade do ar; o príncipe das trevas; o deus deste mundo; Belzebu;
Belial; o tentador; a antiga serpente, e o Dragão. Estes e outros títulos
similares o designam como o grande inimigo de Deus e do homem, o
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 858
opositor de todo o bem, e o propulsor de todo o mal. É tão
constantemente apresentado como um ser pessoal que o conceito
racionalista de que se trata só de uma personificação do mal é
irreconciliável com a autoridade das Escrituras e inconsistente com a fé
da Igreja. A opinião de que a doutrina de Satanás fonte introduzida entre
os hebreus depois do Exílio, e procedente de uma fonte pagã, não é
menos contrária aos claros ensinos da Bíblia. É designado como o
tentador de nossos primeiros pais, e é claramente mencionado no livro de
Jó, escrito muito antes do cativeiro babilônico. Além desta descrição em
termos gerais de Satanás como inimigo de Deus, é especialmente
descrito nas Escrituras como a cabeça do reino das trevas, que abrange a
todos os seres ímpios. O homem, por sua apostasia, caiu sob o domínio
de Satanás, e sua salvação consiste em ser trasladado do reino de Satanás
ao reino do amado Filho de Deus. Está claro o fato de que os daimonia,
apresentados como sujeitos a Satanás, não são os espíritos dos que
deixaram esta vida, apesar do que alguns têm sustentado: (1) Porque são
distinguidos dos anjos escolhidos. (2) Porque diz-se que não guardaram
seu primeiro estado (Jd 6). (3) Pela linguagem de 2Pe 2:4, onde se diz
que Deus não poupou os anjos que pecaram. (4) Pela aplicação a eles dos
títulos «principados» e «potestades», que são apropriados só a seres que
pertencem à ordem dos anjos.

O poder e a atividade dos maus espíritos.


Quanto ao poder e à atividade destes maus espíritos, são descritos
como muito numerosos, como em todas as partes eficientes, como tendo
acesso a nosso mundo, e como operando na natureza e nas mentes dos
homens. Naturalmente, pertencem-lhes as mesmas limitações quanto à
sua atividade que a dos santos anjos. (1) Dependem de Deus, e só podem
agir sob Seu controle e permissão. (2) Suas operações devem ter lugar
com base nas leis da natureza, e (3) Não podem interferir com a
liberdade e responsabilidade dos homens. Agostinho diz a respeito de
Satã: “Consentientes tenet, non invitos cogit.” Não obstante, o poder dos
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 859
mesmos é muito grande. Diz-se dos homens que são levados cativos por
ele, e dos mau espíritos diz-se que operam nos corações dos
desobedientes. Os cristãos são advertidos contra suas maquinações, e são
chamados a resisti-los, não em sua própria força, mas no poder do
Senhor, e armados com toda a armadura de Deus.
Grandes males, entretanto, surgiram de opiniões exageradas da
agência dos espíritos malignos. Tem-se atribuído a eles, não só todas as
calamidades naturais, como tormentas, incêndios, pestes, etc., mas o que
é muito mais lamentável, que foram considerados como entrando em
aliança com os homens. Pensava-se que qualquer pessoa pode entrar
num contrato com Satanás e se realizaram investimentos por uma
temporada com poderes sobrenaturais a condição de que a pessoa assim
dotada deu sua alma à perdição. Sobre esta base repousou nos numerosos
processamento de bruxaria e feitiçaria que desonrou os anais de todas as
nações cristãs durante os séculos XVII e XVIII. Os homens mais
ilustrados da Europa se entregaram a este engano, segundo o qual
milhares de homens e mulheres, e inclusive de meninos, foram postos à
morte mais cruel. Não é necessário ir ao extremo oposto e negar todas as
agências dos maus espíritos na natureza ou sobre os corpos e as mentes
dos homens, a fim de nos libertar de tais males. É suficiente cumprir o
claro ensino da Bíblia. Estes espíritos só podem agir, como se disse, de
conformidade com as leis da natureza e a agência livre do homem; e sua
influência e operações não podem mais ser detectado e provado
judicialmente que a influência e o funcionamento dos santos anjos para o
bem. Ambas as classes são eficientes; devemos estar agradecidos a Deus
pelo invisível e desconhecido ministério dos anjos de luz, e estar em
guarda e buscar a proteção divina diante das maquinações dos espíritos
do mal. Mas de nenhuma de ambas as classes estamos conscientes de
maneira direta, e não podemos atribuir à ação de nenhum de ambos com
certeza, se seu acontecimento admite qualquer outra explicação.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 860
Possessões demoníacas.
A exposição mais notável do poder dos espíritos malignos sobre os
corpos e as mentes dos homens, é oferecida pelos endemoninhados,
tantas vezes na história evangélica. Estas possessões demoníacas eram
de duas classes. Primeiro, aquelas nas quais só a alma era objeto da
influência diabólica, como no caso da «jovem possessa de espírito
adivinhador», que se menciona em At 16:16. Talvez em alguns casos os
falsos profetas e magos foram exemplo do mesmo tipo de possessão. Em
segundo lugar, aquelas nas quais só o corpo, ou, mais frequentemente
tanto o corpo como a mente, estavam submetidos a esta influência
espiritual. Por possessão se significa a residência de um espírito mau em
tal relação com o corpo e a alma para exercer uma influência
controladora, produzindo violentas agitações e intensos sofrimentos,
tanto mentais como físicos. Está claro que os endemoninhados
mencionados no Novo Testamento não eram meros lunáticos ou
epiléticos ou outras doenças análogas, mas casos de verdadeira
possessão: primeiro, porque esta era a crença prevalente dos judeus
naquele tempo; e segundo, porque Cristo e Seus Apóstolos
evidentemente adotaram e sancionaram esta crença.
Não só chamaram endemoninhados aos assim afetados, mas
também se dirigiam aos espíritos como pessoas, dando-lhes ordens,
expulsando-os, e falaram e agiram em todo momento como tivessem
feito se a crença popular tivesse estado bem fundamentada. É coisa certa
que todos os que ouviram Cristo falar desta maneira chegariam à
conclusão de que Ele considerava os endemoninhados como realmente
possessos por espíritos malignos. Esta conclusão não a contradiz Ele em
nenhum lugar, mas pelo contrário, em Suas conversações mais
particulares com os discípulos a confirmou abundantemente. Ele
prometeu dar-lhes poder para expulsar demônios; e se referiu à
possessão que Ele tinha deste poder, e a Sua capacidade para delegar seu
exercício a Seus discípulos, como uma das mais convincentes provas de
seu messianismo e divindade. Ele veio para destruir as obras do diabo; e
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 861
o fato de que Ele triunfou assim sobre ele e seus anjos demonstrava que
Ele era quem afirmava ser, o prometido onipotente rei e vencedor, que
devia fundar aquele reino de Deus que não terá fim. Explicar tudo isto
com base no principio da acomodação destruiria a autoridade das
Escrituras. Com base neste mesmo princípio se desvirtuaram as
doutrinas da expiação, da inspiração, da influência divina, e todas as
outras doutrinas distintivas da Escritura. Temos que tomar as Escrituras
em seu sentido histórico evidente – naquele sentido em que estava
disposto que fossem entendidas por aqueles a quem se dirigiam – ou em
caso contrário as rejeitamos como forma de fé.
Não há nenhuma improbabilidade especial na doutrina das
possessões demoníacas. Os espíritos malignos existem. Têm acesso às
mentes e aos corpos dos homens. Por que deveríamos recusar crer, com
base na autoridade de Cristo, que lhes era permitido ter um poder
especial sobre alguns homens? O mundo, desde a apostasia, pertence ao
reino de Satanás; e o objeto especial da missão do Filho de Deus foi
redimi-lo de seu domínio. Por isso, não é surpreendente que o tempo de
Sua vinda foi a hora de Satanás, o tempo em que, num maior grau que
nunca antes ou depois, manifestou o Seu poder, fazendo com isso mais
patente e glorioso o fato de sua derrota.

As objeções à doutrina comum a respeito deste tema são:


1. Que chamar certas pessoas endemoninhadas não demonstra que
estivessem possessas por espíritos malignos mais que o fato de chamá-
las lunáticas demonstra que estivessem sob a influência da lua. Isto é
verdade; e se o argumento repousasse somente sobre o uso da palavra
endemoninhado, seria totalmente insuficiente para estabelecer a doutrina.
Mas este é só um argumento colateral e subordinado, sem força por si
mesmo, mas derivando sua força de outras fontes. Se os escritores
sagrados, além de designar os loucos como lunáticos, tivessem falado da
lua como a fonte de sua loucura, e se tivessem referido a suas diferentes
fases como aumentando ou diminuindo a força de sua desordem mental,
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 862
haveria alguma analogia entre ambos os casos. Admite-se abertamente
que o uso de uma palavra é, com frequência, muito diferente de seu
sentido primário, e por isso que seu significado nem sempre pode ser
determinado por sua etimologia. Mas quando seu significado é o mesmo
que o uso que lhe é dado; quando se diz dos chamados endemoninhados
que estão possessos por espíritos maligno; quando estes espíritos são
interpelados como pessoas, e lhes é mandado que saiam; e quando este
poder sobre eles é apresentado como prova do poder de Cristo sobre
Satanás, o príncipe destes anjos caídos, então é irrazoável negar que a
palavra deve ser entendida em seu sentido literal e próprio.
2. Uma segunda objeção é que os fenômenos exibidos por estes
chamados endemoninhados são os de doenças corporais ou mentais
conhecidas, e por isso que não se pode assumir racionalmente nenhuma
outra causa para atribuir a elas. Entretanto, não é verdade que todos os
fenômenos em questão possam ser explicados assim. Alguns dos
sintomas são os de insânia lunática e de epilepsia, mas outros são de
caráter diferente. Estes endemoninhados exibiam com frequência um
poder ou conhecimento sobrenaturais. Além disto, a Escritura ensina que
os espíritos malignos têm poder para produzir doenças corporais. E por
isso a presença de tais doenças não é prova de que não estivesse em ação
a atividade de espíritos malignos em sua produção e em suas
consequências.
3. Objeta-se também que tais casos não têm lugar hoje em dia. Isto
não é absolutamente certo. Os espíritos malignos operam hoje em dia
nos filhos de desobediência, e pelo que sabemos podem agora operar em
algumas pessoas com tanta eficácia como nos antigos endemoninhados.
Mas admitindo que o fato seja como se supõe, não demonstram nada
com relação a este ponto. Pode ser que tenham existido razões especiais
para permitir aquela exibição de poder satânico quando Cristo estava na
terra que já não exista. O fato de que não se deem milagres na Igreja na
atualidade não é prova de que não tivessem lugar durante a era
apostólica.
Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 863
Não devemos negar o que se registra sinceramente nas Escrituras
como fatos nesta questão; não temos direito a afirmar que Satanás e seus
anjos não produzem agora em nenhum caso efeitos similares; mas
deveríamos abster-nos de afirmar o fato de influência ou possessão
satânica em qualquer caso em que os fenômenos possam receber outra
explicação. A diferença entre crer todo o possível e crer só o que é certo
fica notavelmente ilustrada no caso de Lutero e Calvino. O primeiro
estava disposto a atribuir todo mal aos espíritos das trevas; o segundo
não atribuía nada à ação dos mesmos que não pudesse demonstrar-se que
fosse realmente obra deles.
Lutero diz: 1 «Os pagãos não sabem de onde vem o mal tão
repentinamente. Mas nós o sabemos. É a pura obra do diabo; que tem
dardos acesos, balas, tochas, lanças e espadas, com as quais dispara,
arroja ou transpassa, quando Deus o permite. Por isso, que ninguém
duvide, quando se desencadeia um fogo que consome um povo ou uma
casa, que há um diabo ali sentado soprando o fogo para fazê-lo maior». E
também: «Que o cristão saiba que se senta entre demônios; que o diabo
está mais perto dele que sua capa ou camisa, ou inclusive que sua pele;
que ele está totalmente ao nosso redor, e que nós sempre temos que
enfrentar e disputar contra ele». 2
A postura de Calvino a respeito desta questão é: 3 «Tudo que a
Escritura nos ensina dos diabos [isto é, demônios] deve chegar a isto:
que tomemos cuidado para guardar-nos de suas astúcias e maquinações,
e para que nos armemos com armas tais que bastem para fazer fugir
inimigos tão poderosos». E pergunta: 4 «E do que nos serviria saber mais
sobre os diabos?»

1
Werke. edit. Walch, vol. xiii. p. 2850. (?)
2
Edit. Walch, vol. x. p. 1234, edit. Erlangen, 1823, vol. xvii. p. 178.
3
Institutio, I. xii. 13.
4
Ibid. 16.

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