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Travessia e Melancolia
Travessia e Melancolia
Aprovada por:
________________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins
________________________________________________________
Profa. Doutora Ana Luiza Martins Costa – Pesquisadora independente
________________________________________________________
Profa. Doutora Marília Rothier Cardoso – PUCRio
________________________________________________________
Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ
________________________________________________________
Profa. Doutora Flávia Trôcoli – UFRJ
________________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ (suplente)
_________________________________________________________
Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ (suplente)
Rio de Janeiro
Março de 2011
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia
Rio de Janeiro
Março de 2011
RESUMÉ
Rio de Janeiro
Março de 2011
Carmello, Patricia da Silva.
xi, 232f
Introdução........................................................................................................................15
- Os Nomes da Memória.......................................................................................174
- As terceiras memórias ou Uma História do Coração........................................184
- Imagens do esquecimento..................................................................................197
- Montagem, jogo, dansa......................................................................................202
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................220
INTRODUÇÃO
Sertão é, de fato, palavra gasta em nossos estudos literários atuais; faz lembrar a
poeta e ensaísta compara as palavras ao dinheiro, esse papel sujo, passado de mão em
mão, essa palavra que passou por tantos olhos, “tantas bocas e tantas frases, tantos usos
2
e abusos...” – É o que parece apontar o imenso volume de teses, dissertações e
publicações sobre Grande Sertão: veredas3 (1956), de João Guimarães Rosa, numa
intensa produção que persiste, apesar de passados mais de 50 anos de sua publicação,
Pois, ao circular assim, na mão de tantos, o sertão arrisca-se, tal como este
papel, dinheiro gasto pelo valor de troca, a provocar o esquecimento de sua dimensão
poética, aquela que nos faz recordar, aquela que provoca simultaneamente o sonho e o
despertar, que nos faz retomar as origens da palavra e buscar renovados sentidos da
significados estabelecidos. Bastou uma espera, uma respiração, para que o silêncio se
apresentasse – e foi o que ocorreu com esta pesquisa sobre o sertão, que acabou se
1
VALÉRY, P. (1999) p.195.
2
Idem.
3
ROSA, J.G. (2001). A partir de agora, será citado com as iniciais ou como Grande Sertão, a fim de
evitar excesso de notas.
4
Cf. SCRIPTA (1998).
tornando uma viagem em busca de sentidos, senão novos, talvez menos pensados e
comunicados, tal como uma procura pelos restos desta palavra e de todas as outras que a
com uma linguagem tão plástica, onde as imagens e as palavras se (re)combinam tão
livremente? É como nos versos de Octavio Paz, “Tudo é porta / tudo é ponte”6; seria
preciso “traduzi-la” em matéria acadêmica? O risco de aplicar uma teoria ao texto era
imediato, era colocar-me entre o escritor e sua amante, a língua, de acordo com a
citação já tornada referência, da mesma entrevista de Rosa ao tradutor alemão7. Por isso,
a primeira imagem que me ocorreu, ao pensar a relação entre teoria e texto literário, foi
a da caixa de ferramentas de Michel Foucault. Sim, “é preciso que sirva, é preciso que
funcione”8; mas, servir para quê? Logo percebo que, tratando-se da relação com o texto
Assim, uma segunda imagem, atribuída por Foucault a Proust, na qual o filósofo
diz ter-se inspirado – ao fazer alusão ao texto como lentes voltadas para fora, – me faz
pensar numa terceira, que consiste na idéia da teoria como chave de leitura; uma
imagem banal, mas que pode produzir um movimento interessante, não de encaixe com
o texto, mas de abrir portas, passagens entre o dentro e o fora, desde o ponto de partida
seja o “teste” das chaves da teoria no texto, e não o oposto, tentando perceber até onde é
possível entrar com cada uma, e de antemão sabendo que nenhuma é capaz de nem de
5
LORENZ. G. (1983).
6
PAZ, O. (1997).
7
Idem.
8
“Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que
sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo
próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não
chegou. (...) É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito
tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam
outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento...” Cf. FOUCAULT, M. (1979) p.71.
abrir, decifrar definitivamente, tampouco de fechar, de trancar o texto dentro, ou atrás,
de si.
articulações não apenas no interior do texto, mas entre os diferentes campos de saber,
com a(s) história(s) de fora. E, por que não afirmar, ao invés de um lugar de puro ciúme
(ou inveja) da relação amorosa entre autor e língua; produzir ou assumir o lugar da
crítica como amante do texto literário (a gente só critica aquilo que ama, diria Freud),
um lugar em que a crítica seja capaz de buscar relações fecundas entre o texto e a teoria:
gerar pensamento, apontar novas e pouco pensadas relações, outras histórias e palavras,
já que a sua leitura nos deixa “fecundados por esta fala e suas sementes”9, como quer
Márcio Seligmann-Silva, num dos estudos mais recentes sobre o Grande Sertão.
Mas, ao percorrer assim estas imagens, já nos inserimos nos temas da memória e
texto, que trazem, por sua vez, outras imagens para ilustrar as relações entre texto e
Deixemos um pouco estas duas últimas metáforas – sem dúvida melhores que a da
chave – em suspenso, para iniciar este percurso apenas com a perspectiva de encontrar
uma paisagem fértil, pois como o próprio autor quis: “A língua e eu somos um casal de
Considerando a idéia das lentes voltadas para fora, o sertão que me interessa
sertão, entre a lei da bala e a lei do governo. Testemunho que traz, ainda, a melancolia e
9
SELIGMANN - SILVA, M. (2009) p.145.
10
LORENZ, G. (1983) p.83.
o lamento relacionado a outro choque, de um amor perdido no passado, que parece não
passar; e que constitui o texto como trabalho de luto, travessia. Desta forma, o objetivo
mais amplo desta tese consiste em seguir a rememoração, através da fala do narrador
ligada à narrativa épica. Ou seja: como analisar, no GSV, o duplo aspecto de uma
questão dos referentes históricos, da presença de uma memória do sertão e do país, mas,
através da memória do narrador. Paisagem subjetiva, que se abre, por sua vez, ao
vencidos da história.
No conflito entre o avanço do progresso, o projeto modernizador dos anos 50, e
o universo rural trazido pelos personagens de Rosa, os esquecidos pela história oficial;
cabe pensar o narrador como testemunha desta tensão entre as memórias do sertão e o
esquecimento trazido pela cidade, num processo que avança, impondo-se, não apenas
com violência, mas como violência recalcada, na forma do apagamento dos rastros do
próprio embate. Trata-se, enfim, de procurar respostas para uma afirmação colocada por
quando afirma e ao mesmo tempo indaga: “cidade acaba com o sertão. Acaba?”12
como algo que faz referência a uma dimensão não-instrumental da linguagem; e como
limite que pode ser pensado como ponto de origem enigmático, também apontado nos
diversos fundos, ocos e ermos do sertão: “Será que tem um ponto certo, dele a gente
não podendo mais voltar pra trás?”13 Por outro lado, até onde é possível esquecer o
trauma? Dupla questão que se repete, a seu modo, em cada processo de análise, em cada
travessia discursiva. Questão, ainda, política, central nos debates em torno das
memórias históricas, surgidos a partir das catástrofes do século XX, das diferentes
11
FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142.
12
Idem, p.183.
13
ROSA, J.G. (2001) p.305.
guerras entre memórias em diferentes partes do mundo; pois a discussão sobre o
apaziguadas, que colocam em xeque o lema: para que não se esqueça jamais – o tema
as memórias oprimidas.
lançar luzes ao texto literário – mas, também, num sentido inverso – seguindo o
pensamento do historiador da arte Didi-Huberman, até onde a obra de arte pode dizer
sobre a memória e o esquecimento, o que tem a nos ensinar ou, em que medida, as
estudos nos quais as contribuições teóricas não surgem de antemão, como pressupostos
saber articulado à forma do texto, a partir de um aspecto ainda pouco pensado da obra
literária.
14
ROSENFIELD, K. (1993) p.84.
Além da crítica escolhida ser plural, ou seja, proceder de vários campos de
todos os caminhos”15, como apontou Michel Löwy sobre Walter Benjamin, numa
Freud, Lacan, e Rosa não se recusaram a pensar a memória pela via do esquecimento,
Uma última observação, sobre a redação deste trabalho, é que utilizo a primeira
Ricoeur16 em seu livro. Ou seja, quando acredito afirmar algo já desenvolvido por outro
autor, utilizo o plural, e quando suponho formular algo não explicitado em outro autor
15
Cf. LÖWY, M. (1989). Segundo Benjamin: “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis
precisamente por que vê caminhos por toda a parte. (...) Já que vê caminhos por toda parte, está sempre
na encruzilhada.” Cf.BENJAMIN, B. (1989) p.237.
16
RICOEUR, P. (2007).
I. MEMÓRIA E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS MEMÓRIAS...
São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado.
JOÃO GUIMARÃES ROSA
primeiro fio de análise se dá no eixo entre o que, a princípio, se pode situar entre uma
memória individual e uma memória coletiva. A primeira seria formada, sobretudo, pelas
composto por uma infinidade de pequenos casos ou estórias sobre a vida no sertão que,
tradicional, e que pode ser considerado como uma memória coletiva. O texto do Grande
Sertão é constituído do início ao fim pelo relato das memórias de Riobaldo – narrador-
Se, por um lado, estas definições se encontram plausíveis no texto; por outro,
não servem para serem lidas como verdades estabelecidas e estáticas, mas oferecem
Pois, como se verá mais adiante, na poética de Rosa: “Tudo é e não é”18, fórmula
17
ROSA, J.G. (2001).
18 Idem,
ibidem, p.27.
síntese de uma escritura que ao concentrar ao máximo a contradição19, desloca as
bem como seus questionamentos subjetivos sobre a vida, a morte, a justiça, a verdade, a
nos moldes de uma tradição oral e arcaica, que, por sua vez, surge em diferentes e
mostrar em estudo anterior20, a escrita de Rosa possui pouca afinidade com a concepção
e atravessada por uma voz coletiva que participa efetivamente em sua configuração. E,
como se verá no GSV, mesmo quando se trata de uma memória de si, Riobaldo não é
velhice...
tratar do termo memória coletiva, nos anos 2022 – poderão adquirir um sentido bem
específico neste estudo, e mesmo no atual debate sobre a memória, que seria o de
cena o questionamento sempre político sobre o papel das memórias coletivas nas
parte ainda de quadros de pensamento um tanto estáticos, que nos levariam a reproduzir
19
Refiro-me à noção de imagem na acepção dada por Walter Benjamin, de uma imagem como colagem
dos restos da história, que contém em si em grau máximo a contradição entre os opostos, capaz de liberar
o movimento, e que pode, por sua vez comparar-se com a noção de imagem poética em Octávio Paz. Cf.
capítulo 4 desta tese; PAZ, O. (1972).
20 Cf. CARMELLO, P. (2004).
21
HALBWACHS, M. (1990).
22
Cf. WEINRICH, H. (2001), p.168.
antigas oposições entre coletivo e individual, real e ficção, interior e exterior, imagem e
lembrança, etc. Sob este aspecto, o conceito pouco acrescentaria aos estudos literários;
coletiva pode representar uma contribuição bastante interessante aos estudos sobre
memória e literatura.
a partir da análise do Grande Sertão feita por Arrigucci23, que diz respeito a uma
O autor não usa o termo memória, mas está abordando o tema quando propõe que uma
considerado pelo crítico como um tema central dentro também da esfera semântica do
texto.
Este campo épico indiferenciado, na forma mais antiga da epopéia, consistiria na origem
porém, apenas como um caminho para pensar como esta duplicidade da memória se
apresenta no texto de Rosa; pois, conforme veremos mais adiante, outros autores farão
outras distinções entre os termos memória e rememoração, com diferentes sentidos, que
servirão muito mais para pensar o tema do que estabelecer definições rígidas.
Quanto ao mundo misturado, esta seria uma noção central no GSV, e estaria
presentes na formação da cultura brasileira, às quais o texto faz referência, embora seja
uma construção que não se estabelece de maneira nenhuma sob a forma de registro ou
retrato da realidade:
Mas o que seria, antes de tudo, este mundo misturado? E como esta idéia se
como uma constatação e uma queixa. Riobaldo, ex-jagunço, fazendeiro, conta sua(s)
história(s) a um visitante e, num primeiro momento, parece esperar que a narração (ou o
ouvinte) ordene uma complexidade que não compreende, que consiste principalmente
na presença de um Mal que perpassa tudo o que há, e que impede a distinção em relação
a um agir ético:
25 Idem, ibidem.
...Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de
que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do
outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria
longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que
posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtaz
a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo
é muito misturado... (ROSA, J.G., 2001, p.237).
O que é importante frisar, aqui, é que tal mistura consiste numa percepção e
justamente outra indagação a ser considerada. Antes disso, será preciso situar melhor a
noção de mistura no texto, pois dela partem muitas considerações relevantes sobre a
obra rosiana.
formal, numa linguagem misturada, uma profusão de línguas utilizadas por Guimarães
trabalho de reinvenção realizado pelo escritor, que teria entre seus principais efeitos
uma densidade, uma opacidade que se opõe aos significados mais usuais da palavra,
levando o leitor a participar da busca por novos e inusitados sentidos, num processo de
outras misturas a que se refere o romance, entre as quais uma mescla própria da cultura,
com a qual de algum modo se relaciona o universo de Rosa, um universo rural, arcaico,
que testemunha o choque com o projeto de modernização do país próprio dos anos 50,
expressa entre uma narrativa épica e o romance; a primeira sendo ligada ao mundo
mítico e heróico das batalhas e das histórias dos chefes dos bandos de jagunços,
composta por muitas estórias breves, um mar de estórias difusas sobre diversos
A este mundo épico – chamado por Arrigucci de romanesco por referir-se aos
professor a chefe do bando de jagunços, seu amor por Diadorim, suas reflexões e
indagações sobre a vida e a morte; e que consistiria na forma do romance moderno
propriamente dito:
O que importa ser pensado a respeito desta dialética entre a forma épica e o
das formas épicas tradicionais, com as quais aparentemente nada tem a ver”26, pois a
constitui ou se desenreda, diria Rosa, a partir da vertente épica, ou das estórias menores
que interessa nesta proposição, por ora, é a constatação de uma duplicidade narrativa
Visto assim, como imagem dialética, o Grande Sertão: veredas31 faz pensar se,
no que concerne ao tema da memória, o mesmo estaria em jogo, quer dizer: de que
forma se conjugam a dimensão de memória mais ampla, ligada a uma vida coletiva do
coletivas podem ser pensadas como contrapontos críticos da recordação individual? Até
que ponto elas seriam responsáveis por rupturas no contar seguido do narrador? Estas
seriam algumas indagações sobre esta encruzilhada de tempos e memórias que é o texto
em relação ao norte apontado pela ficção, pois se trata de algo incontornável que se
anteriores. O que aparece nos dois trechos como motivação – tanto para a recordação ou
igualmente misturada, desde sua aparência em relação ao sexo, ambíguo entre homem e
mulher; até seu desejo, dividido entre o amor por Riobaldo ou a vingança da guerra, o
Riobaldo ou como marco inicial de sua trajetória. Por ora, é o que precisa ser
remarcado, pois será retomado com maior cuidado no decorrer desta análise.
30 Idem, p.85.
31 ROSA, J.G. (2001). evitar excesso de cit ções da mesma obra, utilizarei as siglas GSV
Afim de a , ou simplesmente Grande Sertão para me referir ao
romance de Rosa.
narrativa de memórias deste narrador, “um texto escrito que encena uma situação de
fala”32, constituindo-se numa “fala escrita”33, como bem apontou Susana Lages, no
formas narrativas épicas que o antecederam. Esta noção só pode ser compreendida,
tempo não é universal e a-histórica, mas relaciona-se, embora de maneira não linear ou
32
LAGES, S. (2002) p.74.
33
Idem, ibidem.
34
LUKÁCS, G. (n/c) p.87-93.
35
Conferir, por exemplo, FOUCAULT, M. (1975), BENJAMIN, W. (1986), e PAZ, O. (1984).
36
PAZ, O. (1984) p.27.
perpetuada através do ritual e repassada de geração a geração; para a Modernidade, o
traço que se impõe é a busca pela ruptura e pela novidade de um futuro distinto do que
passou.
De acordo com Paz, para os antigos, o modelo tanto do presente como do futuro
seria um passado referido ao mito, e a própria vida se constituiria no encontro com este
“embora seja tempo, é também a negação do tempo”37, pois permanece como princípio
através dos ritos coletivos. Trata-se de uma visão do tempo imóvel ou cíclica, análoga
ao curso das estações da natureza e ao modo de produção rural e artesanal, pois tanto o
passado deve retornar, como o futuro pode ser entrevisto no presente por meio de
profecias ou da própria noção de ritual, que reapresenta o futuro. O que importa é que o
futuro não é facilmente alterado pelo homem; e ele se relaciona com este porvir como
ao passado e ao presente.
transformações ocorridas em sua maioria por volta do século XVIII, como o surgimento
37
PAZ, O. (1984) p.26.
38
Idem, (1993) p.34-35.
39
Idem, (1974) p.189.
imagens complementares do tempo, uma concepção linear e uma idéia de
transformação.
pela razão ocidental, que parecem fornecer esta coesão linear ao tempo, a partir da
palavras e as coisas:
... Mas, assim como os sinais naturais estão ligados ao que indicam
pela profunda relação de semelhança, assim também o discurso dos
antigos é feito à imagem do que ele enuncia; se tem para nós o valor
de um signo precioso, é porque, do fundo de seu ser, e pela luz que
não cessou de atravessá-lo desde seu nascimento, está ajustado às
próprias coisas, forma seu espelho e sua emulação; ele é, para a
verdade eterna, o que os sinais são para os segredos da natureza (desta
palavra, ele é o sinal a decifrar); tem, com as coisas que desvela, uma
afinidade sem idade. (FOUCAULT, M., 1999, p.50).
outrora a um oráculo, capaz de lhe dizer quem ele foi, quem ele é e como deve proceder.
construir a partir dele a sua história individual e seus projetos de vida particulares.
seu tempo.
Somente para o sujeito moderno o tempo faz diferença, pois está relacionado à noção de
um sujeito capaz de construir projetos futuros, à idéia de que o futuro não é mais uma
coletiva, outrora constituída pelo conjunto de crenças e tradições sociais das sociedades
sujeito. A noção de arquivo não será entendida aqui, portanto, como registro objetivo de
40
PROUST, M. (2002).
41
BEZERRA JÚNIOR, B. (1982) p.115.
arte, este trabalho seria a antítese da noção de arquivo, pois difere da noção tradicional
de documento (a não ser que se pense o documento como rascunho, esboço, ensaio que
transmitida de uma geração a outra, através de uma subjetivação desta experiência, dos
características comuns, na obra destes autores, a falta de um elo entre uma recordação e
com que o sentido da recordação se pulverize e escape sempre, bem como a concepção
de que o próprio registro se desloca no tempo, sendo desde o princípio formado a partir
identifica(ria) como portador de uma história singular e pode(ria) traçar planos futuros:
forma como o sujeito concebe o seu estar no mundo. Neste contexto, é que Lukács
Cisão do sentido que provoca uma luta contra o tempo, outrora reconciliado
isso a memória adquire este valor, ao mesmo tempo ampliado ao infinito, e desde
recordação num valor de verdade que explique ou apreenda a vida como um todo.
42
LUKÁCS, G. (n/c) p.143.
43 Idem, p.149.
É no romance, ainda, segundo Lukács44, que o sujeito ganha estatuto de
configura um mundo subjetivo para alguém. É então que o passado toma vulto de algo a
Walter Benjamin refere-se a este texto de Lukács, dando-lhe nova luz quando
como sinal de uma articulação entre os tempos, pois diz respeito a um espaço de criação
romance:
que interliga passado, presente, e futuro – pois se articula com a apreensão do sentido da
44
Idem, p.77-93.
romance. No que diz respeito à subjetividade, a reminiscência se estabelece como um
terceiro termo entre a exterioridade e o interior do sujeito, numa perspectiva que busca
épica, pela questão do sentido da vida45, e faz com que cada narrador de romance, desde
o seu surgimento, empreenda, à sua maneira, uma viagem em busca do tempo perdido.
dúvida também o indivíduo problemático lukacsiano, este ser deslocado em seu meio,
professor que se torna jagunço, inadaptado à realidade que o cerca: “O senhor saiba: eu
toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.
45
Cf. BENJAMIN, W. 1986 p. 212.
Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita
coisa.”46 Diferente dos demais, liberto para filosofar sobre uma vida sem sentido
aparente, ou desgarrado da tradição expressa na crença dos outros jagunços das quais
desconfia, desprovido de quase todo recurso, Riobaldo é este sujeito com pouco caroço,
presente:
rumozinho forte das coisas, ou a “lei, escondida vivível, mas não achável”47 que ordene
o mundo misturado e demarque os pastos, isto é, separe o bem e o mal; pois, como ele
mesmo afirma, precisa que “o bom seja bom e o rúim ruim”48: “Mas esse norteado,
tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doidera
que é.”49 Encontrar uma norma transcendente que explique o sentido da vida e aponte
personagem. Para a psicanálise, coincide com o seu sentido manifesto, aquele que o
sujeito pode enunciar desde o início, e é anterior a outros sentidos revelados por um
46
ROSA, J.G. (2001) p. 31.
47 ROSA, J.G. (2001) p.500.
48
Idem, p.237.
49
Idem, p.500.
50
Idem, p. 110.
51
O par conteúdo manifesto - conteúdo latente não será tomado aqui no sentido de um desvelamento de
conteúdo Inconsciente que estaria por trás do discurso aparente, mas antes na acepção de algo que não foi
ainda objeto de análise, quer pelo próprio narrador, quer por uma leitura mais atenta, e é comunicado num
primeiro momento, ao qual se sucedem outros significados, ditos somente a partir do trabalho de
rememoração ou de interpretação. Cf. Freud, S. (1987a), p. 170 e 336-337.
narrativa de Riobaldo, a partir de seu próprio trabalho de rememoração, de elaboração
A recordação de sua vida Riobaldo conta para o único personagem que não
quem o ex-jagunço se dirige como o senhor, e com quem insiste durante toda a
narrativa para que, além de escutá-lo, ora concorde com ele, ora lhe explique a “norma
demônio. Será não? Será?”53 Ou então: “Somenos, não ache que religião afraca.
importante destacar que esta rememoração da vida do personagem, que surge desde o
... Eu sei que isso que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado.
Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu
queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é
uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.
(ROSA, J.G. 2001 p. 116).
o que talvez leve a crítica de Rosa, Kathrin Rosenfield, numa definição muito próxima à
52
ROSA, J.G. (2001) p. 500.
53
ROSA, J.G. (2001) p. 26.
54
Idem, p. 39.
já exposta distinção entre memória e rememoração de Benjamin55, possivelmente
inspirada na fala de Riobaldo acima, afirmar que a fala do narrador rosiano trataria de
... ele não visa rememorar sua vida como sendo delimitada pelas
determinações geográficas (do sertanejo) e sociais (do jagunço). O que
está em jogo é a memória – busca de uma verdade universalmente
válida que transcenda os fatos particulares da vivência singular.
(ROSENFIELD, K., 1993, p.12).
criadora contempla este alcance universal e transcendente ao indivíduo; daí a opção por,
ao invés de uma fixar os termos em questão, dar preferência à idéia que eles produzem
que a criação de sentido para a existência possa ocorrer apenas no plano individual, ou
coletividade. Segundo Kehl: “É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção
termo utilizado, portanto, o que importa demonstrar é que o narrador rosiano recusa-se a
entretanto, mostra-se mal-sucedida: esta relação será marcada por diversos impasses e
fracassos, se comparada à relação com tempo mítico para as sociedades arcaicas. Seja
55
Cf. p.22 deste trabalho.
56
KEHL, M.R. (2002) p.10.
porque o passado lhe escapa: “Tempos foram!”57, exclama Riobaldo, numa idéia
imagem do passado nos escapa veloz”58. Seja porque esta busca se sujeita a falhas,
erros, ao desejo do que lembrar e como lembrar, bem como à impossibilidade, ou limite
pulsão de morte e de real presentes em Freud e Lacan. Em todas elas, está presente a
marca Modernidade através da ruptura, separação entre sujeito e tempo, palavra e coisa,
texto rosiano: a recordação do narrador, que coincide com o texto, “apóia-se numa
única corrente de vida”59, o que se aqui se traduz por tomar o tempo de uma vida.
Vila Alegres, entre a Serra das Maravilhas e a Serra dos Alegres – até a juventude,
encontro com Diadorim, na travessia do São Francisco; e a morte de sua mãe, a Bigrí,
que ele diz ter mudado a sua vida “para uma segunda parte”61.
fuga, ao ouvir dizer ser o padrinho, seu pai, quando se torna professor e conhece Zé
Bebelo, que o leva para os “tempos loucos”63 de jagunço. Do abandono dos planos de
Zé Bebelo à outra fuga para o grupo de Joca Ramiro, onde se dá o reencontro com
Diadorim. E, de jagunço, chefe do bando, até a velhice como fazendeiro, herdeiro das
57
ROSA, J.G. Op. Cit., p.41.
58
BENJAMIN, W. (1986e) p. 224.
59
LUKÁCS, Op. Cit., p.146.
60
ROSA, J.G. Op. Cit. p.57.
61
Idem, p.127.
62
Idem, p.130.
63
ROSA, J.G. (2001) p.36.
terras de Selorico Mendes e marido de Otalícia: em poucas palavras, o tempo da
narração é o intervalo que compreende a vida de Riobaldo, ele narra o que viu ou viveu,
embora, como veremos adiante, tampouco a vida não encerra completamente a narrativa
recebe a visita de um forasteiro para quem conta suas histórias. Mais uma vez, há aqui a
que mesmo atravessada por muitas outras histórias, consiste num espaço bem
por Lukács como exemplo mais conhecido de narrativa épica64, onde, como se disse,
todas presentes nas páginas do GSV. Entretanto, como já foi dito, a figura do narrador
enreda, além desta, outras estórias, que fazem com que o livro não se encaixe
saberes que, juntos, podem, neste contexto, ser considerados como memória coletiva, e
necessária, no entanto, para nos situarmos em relação a uma certa divisão da crítica
64
Cf. LUKÁCS, G. Op. cit., p.141.
atual de Rosa, entre, de um lado, os adeptos de uma leitura mítica, arcaica; e, do outro,
os que vêem no texto de Rosa apenas uma evocação do mito, do oral, do arcaico, da
coletivos65. Se concordamos, por um lado, com Susana Lages, quando afirma que o
autor está efetivamente inserido na Modernidade, pois não se trata de uma fala pura,
mas de um texto escrito que “mimetiza um discurso oral”66, uma situação de fala, e que
o regresso a um tempo mítico ou “a oralidade é uma marca do texto, não sua causa,
elementos nos textos de Rosa, cujo interesse maior, neste momento, seria o eixo entre a
Riobaldo.
outro alcance, quando propõe para o GSV o termo Obra-Mundo, uma definição de
Franco Moretti para certos textos que não se enquadram muito bem em qualquer
termos faz com que o conceito contenha uma “definição que não define”69, mas indica,
expõe, deixa em aberto, e mais do que isto, ressalta o conflito inerente à própria obra.
De qualquer modo, não se pode negar que os traços de uma memória coletiva e um
passado arcaico estão lá, no texto, fulgurando, como diria Foucault70, e que a narração
65
LAGES, S. (2002) p.73-79.
66
Idem, p.73.
67
Idem, ibidem.
68
Idem, ibidem, p.74.
69
FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.32.
70
FOUCAULT, M. (1999).
ou recordação que o texto encerra envolve os dois aspectos misturados, que de alguma
preciso tentar pensar, nisso que vai se desenhando como um “giro da memória”71,
do contador de causos, caipira; e que outros narradores podem ser considerados ali, o
O contador de estórias
falar ao visitante, nesta fala que toma o livro todo; o que primeiro ele conta é a estória
do bezerro com feições humanas e demoníacas ao mesmo tempo, cuja forma híbrida já
71
ROSA, J.G. (2001), p. 138.
˗ Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem
não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do
córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em
minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um
bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara
de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por
defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito
pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo
prascóvio. Mataram. Dono dele não sei quem for. Vieram emprestar
minhas armas, cedi... (ROSA, J.G., 2001, p.23).
sobre o sertão, que evocam uma sabedoria e uma memória coletiva e fazem alusão às
narrativas de tradição oral; mas, sobretudo, cujo conteúdo diz respeito à presença de um
Mal aparentemente sem limites, gratuito, que escapa à lógica da razão72. Iniciam-se com
dois casos bem menores, do Aristides, que escutava a voz do “capiroto”73, e do Jisé
diabo, que Riobaldo lamenta não poder esquecer76; enumeração que termina com a
seguida, colocar a pergunta que é sustentada até o final: “o Diabo existe e não
existe?”78
virar azangada”79, e esta por sua vez, pode-se reverter na boa, ou a definição da
72
Cf. ROSENFIELD, K. (1993) e (2006). Ver também cap. 4 deste trabalho.
73
ROSA, J.G. (2001), p.24.
74
Idem, ibidem.
75
ROSA, J.G. (2001) p.25.
76
Idem, p.26.
77
Idem, ibidem.
78 Idem, ibidem
.
79
Idem, p.27.
80
Idem, p.26.
determinadas pedras81, apontam a existência do demo “misturado em tudo”82, numa
onipresença da qual nem Deus escapa, já que, “por mais auxiliar, Deus espalha, no
demo:
O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe
mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para
haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de
tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. (ROSA, J.G.,
2001, p.76).
essencial, pois dela decorre saber se o pacto foi real ou imaginário e, de acordo com o
jagunço, disso dependeria sua salvação ou culpa. E questão subjetiva, pois Riobaldo se
apropria dela, tornando-a coisa sua: “Este caso” (o da consistência do demo), diz ele,
narrador, através de primeiras memórias que são basicamente coletivas. O que começa
81
Idem, p.27.
82
Idem, ibidem.
83
Idem, p.33.
84
Idem, p.76.
85
Idem, p.50.
86
Idem, p. 26.
87
Idem, ibidem.
compondo as “horas de todos”88, vai se revelando ao longo do texto como “as horas da
gente”89, como aquilo que, para o narrador, merece – ou precisa – ser lembrado.
Outras estórias têm lugar neste mesmo início do livro, um pouco maiores,
que, após matar alguém, “só por graça rústica”91, teve os filhos cegos, e tornou-se
bom; mas Riobaldo se pergunta a razão de tamanho castigo divino se voltar sobre as
crianças. E o do Pedro Pindó e seu filho Valtêi, “gostoso de ruim de dentro do fundo
das espécies de sua natureza”92 – onde cabe perguntar, antes de tudo, quem, além de
a primeira lembrança de Riobaldo sobre sua própria vida (não a que depois mencionará
como sendo a sua mais antiga recordação, sobre o ódio a um homem, na fazenda onde
vivia com sua mãe), mas a que primeiro surge no texto, e esta é surpreendentemente
uma das poucas a que ele se refere como saudosa e boa; e remonta a seus estudos,
durante a juventude:
88
Idem, p.154.
89
Idem, ibidem.
90
Idem, p.28.
91
Idem, ibidem.
92
Idem, p.29.
93
ROSENFIELD, K. (2006) p.221.
merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam.
Tempo saudoso! (ROSA, J.G., 2001, p. 30).
Nas páginas iniciais do livro, pode-se afirmar, então, que este conjunto de
filosófico e subjetivo do narrador. Pois, como foi dito, a questão do demo e do pacto só
opiniões sobre os casos ou, como na lembrança dos tempos escolares, o de uma
iniciada, desenredada igualmente a partir de outro causo, o último desta série inicial, o
94
Idem, p.37.
passagem, pode-se falar numa entrada na recordação da vida do narrador, realizada
numa sucessão desordenada de fatos de sua trajetória, que começa com uma descrição
da paisagem do sertão que lhe foi mostrada por Diadorim, segue pela tentativa frustrada
de travessia do Liso do Sussuarão, pela escolha da vida jagunça, etc. História que vai
Como o caso Maria Mutema, no qual se nota a ordem inversa do caso do menino
Valtêi, pois é a estória menor que surge da narrativa predominante; que, aqui, quase na
amigo e, aturdido com a morte de dois jagunços a quem tinha escolhido para lutar na
linha de frente, indaga a si próprio sobre sua possível culpa. Tatarana, apelido que
recebera neste bando, espera um possível ataque do bando dos bebelos e, no meio da
É então que Jõe conta o caso de Maria Mutema, a mulher que, tendo confessado,
arrependida, assassinar o marido “sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum,
atribuir-lhe a responsabilidade pelo falso amor, é presa e, não só perdoada pelo povo do
95
Idem, p.236.
96
ROSA, J.G. (2001) p. 241.
lugarejo, mas adquire fama de santa, divulgada pela mesma população que a perdoou.
Maria Mutema configura mais uma versão do Mal; mas, diferentemente dos casos das
Desta forma, vê-se como a questão do Mal se inicia nas memórias coletivas,
adentra a recordação da vida do narrador e retorna sempre, como uma lacuna, espaço
vazio, entre o coletivo e o individual. Desde o princípio, a lembrança mais antiga que o
narrador afirma possuir, é uma lembrança de ódio: “a coisa mais alonjada de minha
primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem
retorna sob a forma da dúvida sobre o pacto e outras estórias, que vão se interpondo (e
compondo) à principal, configurando uma recordação que não cessa de ser evocada, e se
mantém não respondida até a última página, na última referência ao diabo: “O diabo
não há! É o que eu digo, se for... (grifo nosso) Existe é homem humano. Travessia.”99
97
A noção de perdão inclusa nesta pequena história não se confunde com a questão jurídica da
imputabilidade criminal, o texto não menciona a absolvição da personagem. O filósofo Paul Ricoeur fala
em “perdão difícil: nem fácil, nem impossível”, afirmando que o perdão se situa “na margem de
instituições encarregadas da punição”, não se colocando de maneira nenhuma como substituto à lei, ao
contrário, só se apresentando como horizonte diante daquilo que pode ser também julgado. No entanto,
numa referência a Jacques Derrida, Ricoeur afirma que “o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é”,
consistindo num desafio lógico que não pode estar a serviço de nenhuma finalidade. A questão se torna
controversa e relevante sobretudo quando se trata dos chamados crimes contra a humanidade e
genocídios do último século que, por sua vez, colocam uma outra desproporção, entre a culpa e a punição.
Cf. RICOEUR, P.(2007) p.465-466; 474.
98
Idem, p.58.
99
Idem, p.624.
Em “O Narrador”100, Benjamin opõe uma narrativa proveniente da cultura oral e
romance tudo seria fornecido, não restando nenhum trabalho para a imaginação,
Novamente, é preciso ponderar que, ao falar neste narrador épico, arcaico, tal
como o descreveu Walter Benjamin; estamos nos referindo, como o próprio filósofo
chamou a atenção, a traços de uma figura “que não está de fato presente entre nós, em
sua atualidade viva”101. Assim, este narrador rosiano se assemelha àquele que transmite
uma experiência advinda de outras pessoas e outras gerações; seja através de uma
linguagem que mimetiza a linguagem oral dos velhos contadores de estórias, seja pelo
tom conciso, exemplar, pouco explicativo, de uma narrativa que “não se entrega (...)
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver-se”102. Esta
é a forma assumida pela linguagem nos incontáveis casos, estórias ou provérbios do ex-
jagunço: “Couro ruim é que chama ferrão de ponta. (...) O senhor sabe: o perigo que é
viver...”103
uma história já sabida e contada que, ao ser recontada pelo narrador, busca despertar
forte, com as astúcias.”104 Ou então: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das
benjaminiana como condição para a desejada distensão da escuta daquele que possui o
suas estórias ao forasteiro, e, no sertão, junto com o tédio encontra-se a imagem de outra
fazendo com que, desde o princípio do texto, a memória seja vinculada à imaginação e à
fantasia. Mesma rede onde se deita um tempo estendido, contraposto ao áspero tempo
104
Idem, p.35.
105
Idem, p.72.
106 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.
Quanto ao caráter de ensinamento ou conselho prático próprio da narrativa
épica, o que se lê no GSV seria muito mais a forma da sabedoria do que o conteúdo,
pois os provérbios e causos são em sua maior parte contraditórios ou vagos, indefinidos
demais para configurar algo da ordem de um conselho, o que também leva a pensar na
ambígua interrogação: “existe e não existe?”108, e depois não existe por si, mas “vige
aberto, como um passado ainda presente, mas nem um pouco reconciliado como o
tempo das memórias ou narrativas mais tradicionais. Que conselho ou moral se pode
Deste modo, para a noção de experiência fazer sentido na atualidade, deveria ver
contemplada a relação que estabelece com o passado e com o futuro, através de uma
passado não está disponível, mas nos escapa a todo instante, só se deixando apreender
passado, uma nova relação com o presente e com o futuro; nas palavras de Benjamin,
112
Cf. BENJAMIN, W. (1989) p.109.
113 BENJAMIN, W. (1987) p. 222.
114 Idem,
p.222-224.
(Erfahrung)115 formada por uma fusão entre uma memória individual e outra forma
efetuada pelo narrador de Guimarães Rosa. Pois, em primeiro lugar, em boa parte dos
do que não se pode comunicar... De fato, a escrita de Rosa não parece pretender
recuperar esta figura do narrador, ausente da sociedade moderna, mas faz alusão a ela,
uma experiência incomunicável e, talvez por isto ele se revele tantas vezes incapaz de
perdido, do passado, viriam as várias expressões que se referem a uma falsa ou mal
contada narrativa, ou o mentir e desmentir que se insere na busca pelo passado: “Ah,
mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso.”117
memória coletiva, de tradição oral, nem sempre as pequenas estórias de Riobaldo são
contadas no tempo passado. Dos casos iniciais, quase todos, à exceção do Aleixo “que
tanto um era ruim, como o outro ruim era”120, são narrados no tempo presente do
verbo: “Ainda o senhor estude. Agora mesmo, nestes dias, tem (grifo nosso) gente
passado sempre presente do tempo mítico, o passado que não passa do poeta Octávio
traumático freudiano, que não passa por não ter sido esquecido. Num outro sentido, o
para convencer seu interlocutor (ou, pelo escritor em relação ao leitor), como no caso do
Aristides, que escuta a voz do diabo lhe chamando: “Do demo? Não gloso. Senhor
pergunte aos moradores. (...) Sentença num Aristides – o que existe (grifo nosso) no
destas memórias coletivas, no GSV, foi, até o momento, pouco comentado pela crítica:
tendo sido indicado pelo amigo Zé Bebelo, como alguém “diverso de todo o mundo”124,
capaz de acolher sua dor: “Compadre meu Quelemén me hospedou, deixou meu contar
119
Idem, p.28.
120
Idem, p.34.
121
Idem, p.24.
122
Cf. capítulo 2 desta tese.
123
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 24.
124
Idem, p.623.
minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência –
calma que minha dôr passasse; e que podia esperar muito longo tempo.”125
crítica; ele reprova, por exemplo, as incertezas de Riobaldo no caso do Aleixo, quando
este questiona a justiça no fato das crianças terem-se tornado cegas: “Que, por certo,
noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados”126. A figura é
mencionada, desde o início, como o homem mais experiente, cuja opinião tradicional
sobre os casos é tratada por Riobaldo como algo de muita relevância, mas
exorcismo:
Riobaldo reconhece esta sabedoria, mas não a aceita de todo: “Compadre meu
Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente
nunca deve aceitar inteiro o alheio”127 Apelo e recusa à tradição dos quais novamente
temos notícia através das teses sobre a história de Benjamin128, onde se encontra
em que o índice secreto do passado traz um chamado ao qual é preciso saber escutar, a
idéia de um desencontro com a tradição é colocada não somente nas noções já descritas
125
Idem, ibidem.
126
Idem, p.29.
127
Idem, p.39.
128
BENJAMIN, W. (1986e).
129
BENJAMIN, W. (1986) p. 224.
Benjamin enxerga na história oficial, à qual se vincula a tradição, sempre a história dos
vencedores:
esperança e buscar uma história dos vencidos, ou uma história esquecida, à qual ainda
desta formulação. Por ora, o que é preciso assinalar nas obras de Benjamin e Rosa é a
difícil relação com este passado tradicional, e a idéia do esforço necessário empreendido
na busca e reconstrução desta história. É como se Riobaldo trouxesse esta memória, mas
não desejasse nem recordá-la inteira, nem perpetuá-la, mas reescrevê-la em outras
bases. Riobaldo relembra130, eis uma leitura possível para a freqüência com que o
130
Idem, p.56.
131
Idem, p.56.
132
Idem, p.77.
133
Idem.
sentido de uma outra memória ou outra verdade sobre o passado, que vem se interpor à
Logo após avançar, o narrador retorna para o dito, ao que se situa no registro das
senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo
aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.”134 Entretanto, o que vai sendo
narrado aponta gradualmente para a necessidade deste dito constituir-se como um saber
procura aproximar o que é possível nomear deste saber Inconsciente, que se associa ao
esforço de nomear, rememorar (e elaborar) algo que, para o narrador, se impõe como
necessário: “Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.”135
Percebe-se, portanto, o quanto a escrita de Rosa não elimina a tensão entre estas
diferentes faces da memória; elas estão todas ali, expressas no texto. Entretanto, como
afirmo no início deste capítulo, o texto coloca todas estas contradições em movimento,
134
Idem, p.214.
135
Idem, p.189.
A respeito da memória coletiva, cabe ainda indagar, com maior detalhe, o que
estaria em jogo na origem deste conceito, e qual a sua pertinência atual nos estudos
sobre a memória?
os vestígios, embora não tão marcada no texto de Halbwachs, está presente sob o item
contato entre os dois autores. Pois, enquanto Benjamin parece procurar um termo
daí advém a impressão de que suas lembranças são puramente pessoais, mas elas se
devem sempre a algum grupo; o que faz com que, quanto maior a complexidade social,
como individuais:
136
HALBWACHS, H. (1990) p.126.
137
Idem, p.46.
condições necessárias para que sejam lembradas; mas isto é apenas
uma diferença de grau. (HALBWACHS, M., 1990, p.48).
uma preocupação crescente com a memória nos cenários políticos e culturais, nos
a aceleração do tempo e a fugacidade das relações com os grupos sociais fazem com
memória coletiva na esfera dos estudos literários é destacada por Danziger; mas, quanto
à assertiva de Weinrich, esta validade também pode estar referida ao debate sobre uma
Ao formular sua teoria, Halbwachs não está tratando, ele mesmo afirma, da
138
DANZIGER, L. (2004).
139
Cf. HUYSSEN, A. (2000) p.9. Cabe notar ainda, sobre este estudo que, apesar de enfatizar o que
chama uma obssessão pela memória, por tudo lembrar, contida na idéia de uma cultura da memória, o
autor destaca a importância das lutas políticas em defesa das memórias ligadas às ditaduras da América
Latina, contrárias às políticas do esquecimento, e ao possível apagamento das memórias locais trazido
pela globalização; e destaca a importância de trabalhos que comparem os traumas históricos à
recuperação das memórias nacionais.
140
Idem, p.19.
141
WEINRICH, H. (2001) p.168.
142
Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.37.
abarcam o desejo ou a fantasia na construção da memória, a não ser enquanto falhas a
serem corrigidas. A mudança no tempo é admitida, mas desde que se mantenha uma
relação com algum grupo, não restando muito espaço para a criação subjetiva, pois
todas as memórias seriam memórias de algum grupo. Sob este aspecto, sua teoria torna-
se, em certa medida, tributária da noção clássica de arquivo já mencionada (sua versão
memória uma pura positividade, e tem como preocupação central “a memória feliz”144,
expressão de Ricoeur para se referir a uma tradição que remonta às teorias platônicas
como já foi dito. Pois a definição de memória coletiva apresenta várias aproximações
do sujeito, contido na síntese de que nossas lembranças “nos são lembradas pelos
lado a lado numa lembrança149, fazendo da imagem mnemônica sempre uma “imagem
143
Idem, p.51.
144
RICOEUR, P. (2007) p.46.
145
RICOUER, P. (2007).
146
HALBWACHS, M. Op. Cit., p.26
147
Idem, p.67.
148
Idem, p.86.
149
Idem, p.127.
da imagem”150. Traços e imagens nos quais, sem dúvida, o autor se aproxima bastante
A fim de conceber melhor seu alcance, a teoria de Halbwachs deve ser lida tendo
em vista o contexto em que nasce, no qual, o próprio autor, assim como Benjamin,
não apenas pelo progresso, mas pela tentativa concreta de extermínio da cultura judaica;
que tem como desfecho o fato de que Halbwachs, de forma semelhante à morte de
Benjamin, vem a sucumbir, morto num dos campos nazistas em 1945151. E, apesar das
Há também uma associação entre o subjetivo, aquilo que não pertence a nenhum
150
Embora separe os domínios da imagem e da lembrança em territórios distintos, creio que o autor, neste
trecho, não está enfatizando esta distinção, tratando das imagens mnêmicas que compõem a lembrança.
Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.73.
151
Cf. DANZIGER, L. (2004) p.14.
152
HALBWACHS, M. Op. Cit., p.77.
153
HALBWACHS, M. Op. Cit., p.45.
é sobre tais caminhos, sobre tais sendas ocultas (grifo nosso), que
reencontramos as lembranças que nos dizem respeito...
(HALBWACHS, M., 1990, p.50).
identifica, num texto que a observação acurada de Ricouer aponta ser narrado em boa
parte na primeira pessoa154; o que, por sua vez, nos leva a questionar se o subjetivo não
seria de todo negado ali, mas apenas não seria o foco de seu questionamento. Cabe,
ainda, assinalar que o texto é elaborado nos anos 20, sendo mais ou menos
contemporâneo da filosofia de Benjamin, mas publicado somente nos anos 50, levando
europeu para os anos dourados no Brasil, tanto Halbwachs como Benjamin assinalam
com suas obras teóricas, algo que Guimarães Rosa parece realizar na ficção. Pois
extinção, alguém que tenta narrar em meio a um cenário de choque entre um conjunto
brasileiro.
escolha do sujeito em relação à sua inserção nos grupos, não respondam à pergunta
sobre a motivação para terem entrado para o bando de jagunços – “eu não tinha nascido
para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se
memórias dos jagunços a respeito dos grandes chefes de bandos do sertão, como a
154
RICOEUR, P. (2007) p.406.
155
Cf. Cap. 2 desta tese.
156
ROSA, J.G. (2001) p.83.
história da vida de Medeiro Vaz, ex-dono de terras, que largou tudo o que possuía para
tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante
fama”158.
lugares, de plantas, de animais, por exemplo, transmitidos pela linguagem oral, e todo o
com o qual Riobaldo tem contato através do projeto de Zé Bebelo de guerra contra a
jagunçagem: “nesse nosso norte não vai se mais ter um qualquer chefe encomendar
das classes médias das cidades, que leva o Professor a tomar gosto pelas altas
idéias”160, todos estes seriam apenas alguns exemplos de grupos sociais em jogo no
Desta forma, se estas outras estórias, numa primeira leitura, poderiam ser
memória individual, apontam para um vazio – a mesma lacuna, por pouco, não de todo
157
Idem, p.60.
158
Idem, p.146.
159
Idem, ibidem.
160
Idem, p.30.
GSV retorna sempre, como o demo, do qual Riobaldo não glosa161, ou o fundo
originário infernal, misturado em tudo e com seus vários nomes: “ocos”162, “fundos
faz questão de reafirmar é a sua não-adequação a todos aqueles grupos sociais: “Sempre
numa individualidade estrita, que ele recusa: “De tudo não falo. Não tenciono relatar
ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que?”166, e menos ainda se
refere à ordem coletiva das determinações sociais objetivas, factuais. O que o texto
revela sobre este desejo de recontar o passado é que, na proporção em que a lembrança
escapa, esse obscuro objeto da recordação vai sendo deslocado – ora é a matéria
vertente, ora são as coisas importantes que se situam em outro lugar – e redefinido num
faz dele um mote, num movimento que se alterna entre a multiplicidade e a recriação de
forma que busca conhecer o mundo, pelo seu avesso, pelas suas entranhas, o escritor
contradiz as suposições de base da maior parte das teorias tradicionais sobre a memória,
que afirmam que esta só existe a partir da narração, assim como a história necessita de
uma escrita da história, e a imagem, da palavra para se fazer linguagem. Por todo o
161
Entre outros sinônimos para o termo glosar, Houaiss lista: criticar, suprimir, eliminar, rejeitar, mas
também “desenvolver (um mote) em versos”. Cf. HOUAISS, A. (2009).
162
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 400.
163
Idem, p. 398.
164
Idem, p.50.
165
Idem, p.163.
166
Idem, p.232.
muito peculiar do rememorar, o que coloca em jogo não uma relação de simples
subordinação, mas uma tensão entre a narrativa e a memória. É o que se nota justamente
numa passagem que fala também da importância dos velhos, e por extensão, da
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por
disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor
quase tudo. Não crio receio. (...) E meus feitos já revogaram,
prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta
empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deo-
gratias; e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem
andava falando: – “A pátria não pode nada contra a velhice...”
Discordo. A pátria é dos velhos, mais. (...) Não. Eu estou contando
assim porque é o meu jeito de contar. (...) O que vale, são outras
coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,
cada um com seu signo e sentimento... (ROSA, J.G., 2001, p.114-
115).
Mais uma vez, há aqui a associação entre uma memória do sujeito, do jeito
próprio de cada um contar, e a herança dos velhos, que define então a memória
subjetiva como indissociável das memórias coletivas de outras gerações. No que tange à
(lembrança) aproxima o autor da outra lógica da poesia, a mesma que Foucault afirma
acompanharam, quando, diante da cisão entre a ordem das palavras e a das coisas,
separação, que serão o louco e o poeta: ambos tratarão a palavra na sua opacidade de
coisa. Porém, enquanto o louco, “para quem todos os signos se assemelham e todas as
167
Cf. FOUCAULT, M. (1999).
semelhanças valem como signos”168 se verá enredado e perdido numa trama de
dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra
posição marginal, o poeta será chamado a recriar o mundo segundo uma nova ordem
Grande Sertão, constitui uma escritura poética que – ao mesmo tempo – assinala e
168
FOUCAULT, M. Op. Cit., p.65.
169
Idem, p.66.
170
Idem, ibidem.
II. DESENHO, DESGRAÇA: SERTÃO EM RUÍNAS
rememoração pelo seu negativo. Ou seja, através de determinado conteúdo que não
presente nas lembranças de guerra do ex-jagunço: “Que isso merece que se conte?(...)
Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não
seja.”172 Ou, ainda, por serem coisas sem nome, demasiado fragmentadas: “Daí, os
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar
narração”173. Ou, por fim, as recordações são recusadas simplesmente porque Riobaldo
nega o desejo de contar: “Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual”174.
quando associadas somente às horas de todos – mas legíveis no texto desde que
171
As questões a respeito da violência e do que pode ser nomeado ou não no processo de rememoração
serão discutidas respectivamente mais adiante e no último capítulo desta tese. Por ora, é importante
apenas frisar que as lembranças de guerra não são somente evitadas por ligarem-se ao recalcado e ao
traumático para o personagem, mas também menosprezadas em favor de uma certa ética ou política da
narração e da memória.
172
ROSA, J.G. (2001) p. 245.
173
Idem, p.221.
174
Idem, p.125.
caracterizadas como herdadas de outras gerações, como memórias vivas, reconstruídas
da história do Brasil podem ser identificadas na obra do escritor, cujo principal efeito
(re)pensar das relações entre ficção e memória, memória e história, e ficção e realidade.
É interessante ver como isto se dá no texto, em que tipo de referência se pode falar e
que relações elas colocam em questão, a começar pela paisagem, este sertão
Abro a paisagem.
A palavra sertão é, de fato, repetida incontáveis vezes por todo o texto, e assume
respeito do significado deste sertão de Rosa. Algumas tentativas, inclusive, são mais
seria o sertão. Sobre a árdua tarefa da crítica, o pensador italiano Giorgio Agamben tem
algo a acrescentar quando a situa entre a razão e a poesia, entre o “gozo do que não
pode ser possuído e a possessão do que não pode gozar”175, afirmando que sua
tentativa deve ser procurar não reencontrar seu objeto, mas “assegurar as condições de
seu bem mais precioso. Torna-se fundamental, portanto, resguardar que o sertão assume
175
“(...la critique oppose) la jouissance de ce qui ne peut être possédé et la possession de ce dont on ne
peut jouir.” Tradução minha, todas as traduções não mencionadas são de minha autoria. Cf. AGAMBEN,
G. (1994) p.11.
176
“...assurer les conditions de son inaccessibilité.” Idem, p.9.
inúmeros sentidos, distintos e inacabados, em diferentes passagens do texto. A dúvida
se abre desde a primeira menção à palavra, situada nas páginas iniciais do romance:
Nordeste corresponde a uma área que se estende do norte de Minas Gerais ao Piauí177;
no dicionário, que revela seu uso mais corrente, os sinônimos para o termo sertão,
“região agreste”, “terreno coberto de mato, afastado do litoral”, “toda região pouco
povoada do interior” e “zona mais seca que a caatinga”178, não fornecem uma
localização espacial precisa. E – embora o texto do GSV faça várias alusões a lugares
como o rio São Francisco, a cidades como Januária, e aos estados de Minas Gerais, à
fronteira com Goiás e Bahia – o sertão de Rosa está muito além de um espaço objetivo,
pois ele se insere no diálogo onde Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e
transmitir o que é o sertão para o senhor que escuta. Diz respeito, portanto, a uma
daquele que narra, à qual Willi Bolle chamou de mapa mental, ou geografia ficcional
177
A última definição data de 2005. Cf. IBGE, página eletrônica da internet (s/d).
178
HOUAISS, A. (2009).
e lembranças encobridoras, de pedaços de sonhos e fantasias, medos e
desejos. (BOLLE, W., 2004, p.71).
da vida”179, seria o registro não apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se
pelo sertão, de acordo ainda com a indagação de Willi Bolle (em clara alusão às
um texto onde Benjamin fala basicamente sobre a memória): “qual é o mapa geográfico
Cabe notar como a escrita vai além da subjetividade do narrador e faz um apelo
propõe Wolfgang Iser184, e insere vazios de significação, aos quais o leitor é chamado –
sendo o mais freqüente o uso do sertão no lugar de um saber que pode ser extraído a
partir da memória coletiva, como por exemplo: “sertão é onde manda quem é forte,
com as astúcias”186. Sentido que pode, ainda, atrelar-se mais ao modo de ser ou à
“forma de pensamento”187, como quer Willi Bolle, do que à localização física, abolida
dificuldade de nomeação deste lugar, ele aparece como pura indefinição, um isto que
que o autor considera uma demanda ou apelo dos confins na obra de Rosa190, no qual
mundo”191. O espaço assume uma extensão infinita que atinge, no limite, a absoluta
para descrevê-lo, que se torna uma pura indicação: “o sertão: o senhor sabe”193.
185
ROSA, J.G. (2001) p.23.
186 Idem, p.35.
187
BOLLE, W. (2004) p.82.
188
ROSA, J.G. (2001) p. 325.
189 ROSA, J.G.
(2001) p.23.
190
FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).
191
ROSA, J.G. (2001) p.89.
192
Idem, p.370.
193
Idem, p.406.
natureza194, referindo-se tanto a uma certa imagem do mundo, desde o início concebida
de país, e o sufixo age acrescenta a idéia de uma apreensão ou forma que permite tomá-
lo como um conjunto.
paisagem não diz respeito ao retrato objetivo, mas, conforme Collot, a “um ponto de
vista”197, a um certo olhar que inclui não apenas a visão como sentido (lembremos do
aroma e sabor da madeleine, ligada a uma imagem do passado que, uma vez
194
O jardim inglês estará também na origem do termo romântico e, segundo Antonio Candido, Rousseau,
no séc.XVIII, pode ser considerado um precursor do Romantismo ao vincular a idéia de um “sentimento
da natureza, a meditação e o movimento do corpo nos Devaneios do Passeante Solitário”. Cf.
CANDIDO, A.(1993) p.261. A noção de uma paisagem subjetiva em movimento, como tento mostrar,
estará no cerne do romance de Rosa.
195
COLLOT, M. (1997) p.7.
196
“Le paysage est un carrefour où se rencontrent des éléments venus de la nature et la culture, de la
géographie et de l’historie, de l’intérieur et l’extérieur, de l’individu et de la collectivité, du réel et du
symbolique.” Cf. COLLOT, M. (1997) p.5, tradução minha.
197
Cf. COLLOT, M. (1997) p.13.
198
“Procurar? Não apenas: criar.(...) Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim deve ser
a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim.” Cf. PROUST, M.
(2002) p.49.
uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos que se dá através do corpo como
mundo sensível e sua apreensão, na bela expressão do teórico alemão Erwin Strauss,
“um sentido dos sentidos”200. Isto significa que a paisagem apreendida pelos sentidos
as Coisas, a Paul Valéry e Octavio Paz, que expõe a tensão não somente em seu
trabalho crítico, mas em sua poética, como se lê em “Carta a Léon Felipe”, de 1967:
199
MERLEAU - PONTY, M. Apud. COLLOT, M. (1997) p.199.
200
“un sens des sens” Apud COLLOT, M. (1997) p.200.
201
“Cette intuition d’une continuité entre l’espace verbal et espace extra-linguistique me semble une
contance de la refléxion poétique contemporaine.” Cf. COLLOT, M. (1987) p.99.
202
Cf. FOUCAULT, M. (1999), VALÉRY, P. (1999) e PAZ, O. (1972). Os autores diferem quanto ao
maior ou menor teor de aproximação e de ruptura entre a linguagem e o mundo que a poesia inscreve na
Modernidade, sendo que, enquanto o primeiro, diferentemente de Collot, parece privilegiar o aspecto da
cisão em suas análises; os dois últimos, poetas-críticos, tendem a considerar a questão como um conflito
exposto pela própria poesia, como no poema citado acima. Ver também cap. 4 deste trabalho.
Representar a comédia sem desenlace
(...) O poeta
Tu o dizes em tua carta
é o que pergunta
aquele que desenha a pergunta
sobre o fosso
e ao desenhá-la
a apaga
A poesia
É a ruptura instantânea
Instantaneamente cicatrizada
Aberta de novo
(...)Alguns querem mudar o mundo
outros lê-lo
Nós queremos falar com ele...
demonstrar este solo comum entre o mundo percebido e o simbólico: no poema de Paz,
mas não fecha, e o poema é estruturado numa disposição visual onde cada verso,
203
“...La escritura poética/ es borrar lo escrito/ Escribir/ sobre lo escrito/ lo no escrito/ Representar la
comedia sin desenlace/ (...)/ La escritura poética es/ aprender a leer/ el hueco de la escritura/ em la
escritura/ (...)/ El poeta/ lo dices em tu carta/ es el pregunton/ el que dibuja la pregunta/ sobre el hoyo/ y
al dibujarla/ la borra/ La poesia/ es la ruptura instantânea/ instantáneamente cicatrizada/ abierta de
novo/ (...)/ Algunos quieren cambiar el mundo/ otros leerlo/ nosotros queremos hablar com él... Cf. PAZ,
O. (1997) p.387-388. Tradução de Cláudio Willer. Cf. WILLER, C. (2001), página eletrônica.
204
Cf. COLLOT, M. (1989) p.5-6. O autor menciona na introdução do livro assumir um distanciamento
dos estudos literários da década de 70, que segundo ele censuravam qualquer alusão a elementos extra-
textuais, por considerá-los suspeitos de reconduzir a uma ilusão referencial ou lírica.
iniciado à margem do anterior, cria um ritmo que acompanha este movimento, numa
uma fala com o mundo realizada pela poesia e pelos poetas. Neste sentido, pode-se
dito, que a define igualmente como uma experiência simbólica, já contida (mas não
determinada) numa simples apreensão de qualquer cena, diz Collot, na qual desde
sempre haveria uma série de relações entre os objetos que são igualmente percebidas e
fazem parte deste mundo simbólico, da linguagem208. E, de outro lado, uma ausência,
concebida por Lacan como própria ao registro do real, do que se apresenta como um
ela não é a seus olhos (dos poetas) um limite provisório que se permite
cruzar para descobrir o que segue à paisagem, mas sim a fronteira de
um outro mundo destinado a permanecer desconhecido. (COLLOT,
M., 1989, p.104). 211
205
COLLOT, M. (1997) p. 201.
206
Idem, (1987) p.99.
207
Idem, ibidem.
208
Idem, p.100-101.
209
Cf. LACAN, J. (2008b) p.60.
210
COLLOT, M. (1989) p.103.
211
“elle n’est pas a leurs yeux une limite provisoire que l’on peut franchir pour découvrir la suite du
paysage, mais bien la frontière d’un outre monde destiné à demeurer inconnu.” Idem, p.104.
quais se destaca a da profundidade do passado212, que tanto para a fenomenologia como
...Husserl mostrou como cada momento que vem modificar aquele que
o precedeu: o fenômeno da retenção não significa a conservação pura
e simples da imagem do passado mas, ao contrário, a sua contínua
transformação. (COLLOT, M., 1989, p.56). 213
tal como a busca riobaldiana pelo passado e a redefinição de memória que a acompanha
do passado”214.
horizonte e Inconsciente, pois o autor nos lembra duas idéias freudianas que
212
“C’est porquoi l’horizont peut servirde métaphore à tous ces seuils d’invisibilité absolue auxquels se
heurte la conscience dans les divers domains de l’experience: tache aveugle du corps, mystère insondable
de L’Être, profondeur du passé, indetermination de l’avenir, transcendance d’autrui”. Cf. COLLOT, M.
(1989) p.104.
213
“Husserl a montré comment chaque moment qui vient modifie ceux qui l’ont précédé: le phénomène
de la rétention ne signifie pas la conservation pure et simple de l’image du passe, mais au contraire sa
continuelle transformation.” Cf. COLLOT, M. (1989) p.56.
214
Idem, p.59.
215
Citado por COLLOT, M., (1989) p.113.
A primeira seria a concepção de inconsciente como formado fundamentalmente
do mundo pelos sentidos à memória, redefinindo, vale dizer, a experiência dos sentidos
paisagem como uma experiência relacionada à memória, situada sempre entre estes dois
como excludentes.
Nesta perspectiva, a paisagem do sertão vai sendo construída como este lugar
leva a outro; formada subjetivamente por fragmentos, desejos, lembranças, mas também
por uma ausência, pelos vazios e lacunas que permanecem abertos: “Lugar sertão se
divulga: é onde os pastos carecem de fechos”218. Sob a mesma ótica, este Grande
Sertão se associa, ainda, à paisagem de “Os Cimos”219 que marca o desmedido momento
216
(Respectivamente Dingvorstellung e Wortvorstellung). Utilizo a tradução de Luiz Alfredo Garcia-
Roza, que suprime a preposição “de” para evitar confusões entre os representantes psíquicos e a noção
tradicional de representação. Cf. GARCIA-ROZA, L. (1991).
217
Cf. Capítulo 3 desta tese.
218
ROSA, J.G. (2001) p.24.
219
ROSA, J.G. (1988).
Alegria”220: aparecimento, morte – reaparecimento de outro peru, feroz – surgimento
ausência da mãe doente, idas e vindas de outro pássaro, o tucano, volta para a mãe,
sarada, perda do macaquinho jogado fora, perdido “no sem-fundo escuro do mundo”221
sobre o fort-da freudiano222, nesse jogo de ausência e presença que reencena o trauma e
por Freud – que é suposto passear lá, “na outra parte, aonde as pessoas e coisas
original:
fora das molduras”225. A beleza da escrita de Rosa é justamente conseguir falar deste
descabimento através da sua poética, produzir este efeito de apontar o intangível através
220
Idem.
221
Idem, p.159.
222
FREUD, S. (1976).
223
ROSA, J.G. (1988) p.159.
224
Idem, ibidem.
225
ROSA, J.G. (1988) p.159.
das palavras226. O caráter desmedido, de resto e de origem ao mesmo tempo, fica mais
o lá de “Lá, nas Campinas”227, dois contos de Rosa nos quais o espaço já foi apontado
Ambos falam deste local como origem. No primeiro conto, trata-se do local de
exílio do pai, que parte numa canoa, rio afora, num terceiro espaço, intermediário entre
as duas margens: “naqueles espaços do rio, de meio a meio”228. “Ele não tinha ido a
nenhuma parte”229. O adjetivo nenhum figura como expressão deste impossível lugar
paterno ao qual o filho, inconformado com a perda, tenta, em vão, ocupar, substituir o
último íntimo, o mim de fundo”231 e da qual resta a frase: “Frase única, ficara-lhe, de
lugar convém tanto quanto o de nenhum lugar”234, e que consistem em lugares apenas
226
Neste aspecto, vale a transcrição de Leyla Perrone-Moisés, quando afirma que “enquanto os
psicanalistas sabem muito, os poetas sabem tudo”. PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.279.
227
Respectivamente em ROSA, J.G. (1988), (1985).
228
Idem, ibidem.
229 ROSA, J.G. (1985)
p.33.
230
Para uma análise de ambos os contos sob a perspectiva das relações entre esta topologia do
inconsciente e a melancolia, ver o capítulo 3 deste trabalho.
231
ROSA, J.G. (1985) p.97.
232
Idem, ibidem.
233
PERRONE-MOISÉS, L. (2002) p.210.
234
LACAN, J. Apud. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.111.
no sentido de uma representação metafórica do Inconsciente, nunca em termos de
localização cerebral235.
que era comum quando vêm esses pobres”236, repete a vida toda esse resíduo de sua
obscura origem como um refrão, este lá é comparado pela mesma autora ao “Wo Es
War” de Freud, relido por Lacan como “Lá onde era”, o lugar a partir de onde um
lugares: “Largo rasgado de um quintal, o chão amarelo de oca, olhos d’água jorrando
sobretudo, evoca um local de origem que não se confunde com o passado cronológico.
concerne não apenas à história familiar e edipiana de uma vida e, sim, ao impossível
lugar de origem a que todos tentamos alcançar: “à origem ontológica de que todos os
homens são órfãos, não por terem perdido uma completude anterior, mas por serem
mesma forma que o sertão: é isto de Rosa, esbarra na impossibilidade de definição, pois
235
Idem, p.211.
236
Idem, p.98.
237
ROSA, J.G. (1985) p.97.
238
PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.273.
não consiste objetivamente numa positividade, sendo apenas possível apontá-lo, isso, ou
lá, de onde eu vim... – pôde dar lugar a um sujeito, e que pressupõe, conforme já
Uma vez considerados alguns aspectos da topologia deste cenário rosiano, resta
cena. Enfim, tendo em vista a marcante proximidade que o texto estabelece entre estes
inomináveis e a memória, cabe perguntar que outras concepções podem lançar luzes
Retrato negativo
Europa, mas a idéia de construção de uma paisagem nacional somente chegará ao Brasil
com os viajantes do início do século XIX, acolhida por uma classe dominante ávida em
paisagem.240
239
Cf. BOLLE, W. (2004) p. 49.
240
SUSSEKIND, F. Apud. BOLLE, W. (2004) p.49-54.
Willi Bolle considera o Grande Sertão como parte da série retratos do Brasil,
um gênero derivado do livro homônimo de Paulo Prado, de 1928241, que teria início
cujos autores são todos considerados legítimos pensadores do Brasil, e suas obras
bastante reveladoras da cultura brasileira. No que concerne ao GSV, este retrato não
pode ser tomado como registro objetivo; e sim, como nos induz a pensar Bolle, em
pretende uma visão geral, do alto, exterior aos acontecimentos, representado por
visto como o negativo ou contraponto de sua época, a partir do olhar crítico do escritor
aleatória): a idéia do mundo misturado, que como se verá, guarda ressonâncias com
aspectos históricos. Mas, num primeiro momento, é preciso observar como esta noção
uma imagem do paraíso, construída pelo universo do sonho, onde o amor deixou seus
rastros numa natureza exuberante, para que o sujeito possa emergir como intérprete. É o
241
Apud. BOLLE, W. (2004) p.23-24.
242 Idem, p.35.
243 Apud BOLLE W. (2004) p.24.
244
HOLANDA, S.B. (1995).
245
BOLLE, W. (1994-1995) p.85.
246
Idem, ibidem.
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num
afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre
preta na Serra do Tatú – já ouviu o senhor gargaragem de onça? (...)
Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi
Diadorim...(...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de
campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a
escova, amarelinhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).
paisagem idílica só se torna visível através do amor por Diadorim, que o faz sonhar um
sertão, para além da lógica tradicional, insuficiente para compreender aquela realidade:
Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não
sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje
fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas
quisquilhas da natureza. (ROSA, J.G., 2001, p. 45).
Junto a esta, outra linha do desenho deste sertão se move entre a ruína, a miséria
absoluta dos catrumanos, a violência extrema que esculpe os corpos à faca, presente na
cultura do país.
reversão do nada em tudo248, cujo lema: “tudo é e não é”249 insere-se também no
espaço através da sentença: “sertão: tudo certo, tudo incerto”250. Aqui, o primeiro
tempo, é que a paisagem, construída a partir da memória, vai sendo descrita de acordo
247
Idem, p.147.
248
ROSENFIELD,K. (1993); (2006).
249
ROSA, J.G. Op. Cit., p.27.
250
Idem, p.172.
com o deslocamento do narrador e, em boa parte do texto, esse movimento coincide
com a errância, entre ataques e fugas, do bando de jagunços: é neste “desfile” que os
lugares e personagens encontrados pelo caminho vão descrevendo o sertão, por isso
Trata-se, ainda, de uma geografia onde não apenas os lugares, por fazerem parte
para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.”252 Mas, de uma
dimensão na qual a mobilidade dos sentidos do sertão, das infinitas descrições que não
Freud, que guarda outra semelhança com este curioso espaço do sertão: os
Entretanto, esse não-espaço se inscreve como uma falta da própria origem, que
não é apenas referida a uma vida, mas à origem do país; a partir da leitura da história
como fracasso e ruína, e de sua inserção nesta paisagem, o escritor inverte a tentativa da
251
Idem, p.407. Para uma associação entre a paisagem da memória e as anotações de viagem do escritor,
cf. capítulo 4 desta tese.
252
Idem, p.302.
253
Cf. p.42 desta tese.
254
FREUD, S. (1988a) p.191.
255
Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.77-79.
mesmo a pretensão de definir uma origem da nossa história, pois o que mais se
subjetivo da memória, o que significa o mesmo que apontar que o que falta é a própria
Ao começar sua história literalmente pela morte, que não é apenas de Diadorim,
progresso, a cidade que vem acabar com o sertão; Guimarães Rosa também ultrapassa a
Mas, começar a história pela morte revela uma outra afinidade com a concepção
trágica, de catástrofe e ruína, onde a história conhecida é a história dos vencedores: “os
que num momento dado dominam são os herdeiros dos que venceram antes.”256 A
imagem benjaminiana para esta vitória não poupa materialismo: “Todos os que até hoje
corpos dos que estão prostrados no chão.”257 A história que se constrói a partir da
morte dos vencidos é movida pelo progresso, é o que mostra a imagem do anjo da
história, o Angelus Novus, inspirado no quadro de Paul Klee, que, segundo Benjamin,
256
BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.
257
Idem, ibidem.
ao ser atingido pela tempestade chamada progresso, é impelido para o futuro, mas volta
... Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés... (BENJAMIN, W., 1986e, p.226).
Este olhar voltado para o passado pressupõe certa desconsideração com o tempo
cronológico, mas significa algo bem mais complexo do que uma suposta ausência de
uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por
uma origem”262.
258
Ver também “Le Maintenant de la Possibilité de la Connaissance”, in: BENJAMIN, W. (2003) p.451-
452.
259
BENJAMIN, W. (1986e).
260
LÖWY, M. (2005) p.119.
261
BENJAMIN, W. (1986e) p.120.
262
Trata-se do conto “O Mau Humor de Wotan”, publicado em 1948, onde encontram-se vestígios
autobiográficos da estadia de Rosa como cônsul-adjunto na Alemanha durante a Segunda Guerra. Aqui, a
idéia da possível origem a cada instante relaciona-se com os fatos que culminaram na morte do amigo do
narrador no conto, “o menos belicoso dos homens”, o alemão Hans-Helmut Heubel, amigo de Rosa em
Hamburgo, enviado para a guerra sem treinamento algum. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.5. Sobre os aspectos
biográficos, conferir o artigo da antropóloga e crítica Ana Luisa Martins Costa e o ensaio e documentário
ainda inédito de Adriana Jacobsen. COSTA, A. L. M. “Veredas de Viator”. In: GALVÃO, W.N.;
COSTA, A.L.M. (2006). JACOBSEN, A.; VILELA, S. “Outro Sertão”. Idem.
Considerando-se esta outra dimensão do tempo, oposta ao tempo cronológico, é
preciso ver um pouco mais detalhadamente como se caracteriza este olhar para o
passado no romance de Rosa; em outras palavras, como a história pode ser pensada na
texto: a de guerras antigas, passadas nas eras de 1879263; e a menção, situada no tempo
da vida jagunça, à passagem da Coluna Prestes pela região264 que, conforme se sabe,
cruzou o interior do país entre os anos de 1925 e 1927. O que leva a crer que, se a
pode situar-se em torno dos anos cinqüenta, coincidindo também com a época em que o
era Juscelino Kubitscheck, pelo lema cinqüenta anos em cinco, que encontrou seu
clímax na construção de Brasília, pelo intenso crescimento das cidades – é curioso como
o olhar do artista se volta para os esquecidos da história; e quem seriam eles? Toda a
sua obra é construída por personagens rurais, de um Brasil interior e arcaico, habitantes
loucos, como em “Sorôco, sua mãe, sua filha”265, estranhos, como em “A Menina de
Lá”266, e mais uma série de peões, mestiços, jagunços, bandidos, prostitutas; em poucas
palavras, são figuras do desterro e do desamparo, como Miguilim267, que termina a saga
de infeliz infância sendo levado pelo moço, para morar na cidade... São representantes
dos que ficaram mantidos à margem da história, e que o GSV reúne num universo
único, como restos, resíduos a quem o Brasil modernizado não concedeu lugar
263
ROSA, J. G. (2001) p. 128.
264
Idem, p.114.
265
ROSA, J.G. (1988).
266
Idem, ibidem.
267
Idem, (2001b).
apropriado268; transformados, agora, na ficção, em protagonistas principais da outra
estória.
de misérias e enfermidades”269, não apenas da vida jagunça, mas dos sertanejos tão
sofridos que vão sendo encontrados pelo caminho do bando, como a fila de doentes que
vinham pedir milagre: “lázaros de lepra, aleijados, por horríveis formas, feridentos, os
cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:
pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se
via que não tinham esperança nenhuma decente.”272 Uma condição em que à
entretanto, não reenvia a nenhuma idéia de memória como registro fiel dos fatos: “Pois
o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua
diz Benjamin275, mas tampouco esta rememoração se esgota na lembrança. Pois lá, na
esquecimento, e não apenas da noite que desfaz o dia, como pondera Benjamin sobre o
memória e é mencionado a partir da obra de Proust: “Ou seria melhor falar no trabalho
268
STARLING, H. (1999) p.16.
269
ROSA, J.G. (2001) p. 75.
270
Idem, ibidem.
271
Idem, p.88.
272
Idem, p.150.
273
Idem, p.67.
274
BENJAMIN, W. (1986) p. 37.
275
Idem, p.37.
do esquecimento?”276 Mas o esquecimento como suposto ponto de origem de toda
memória, como o mesmo autor leva a pensar quando situa a imagem involuntária no
mundo das correspondências, numa “camada especial, a mais profunda (...) na qual os
momentos da reminiscência (...) não mais isoladamente, com imagens, mas informes,
à história do país; não como fatos isolados, mas como fragmentos, sempre atrelados à
conta o que dele pode restar: “Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,
encontra balas cravadas”278. Aqui, o que prevalece não está na ordem de uma pretensa
objetividade do fato em si, mas sim neste olhar crítico diante de um contexto específico,
que surge na ficção através das recordações do narrador e de outros personagens, como
Cabe pensar de que forma estes fragmentos funcionam como índices de uma
tentativa de reescrever nossa história e origem numa linguagem que, como se verá,
aponta o tempo inteiro para o seu mais além, para uma ausência ou esquecimento. A
visão do escritor sobre seu tempo traz o questionamento benjaminiano sobre o passado,
276
Idem, ibidem.
277
Idem, p.49.
278
ROSA, J.G. (2001) p. 66.
279
Idem, p.221.
280
BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.
na história uma cadeia linear de fatos), pois evita estabelecer uma relação de empatia
emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu
apelo por um futuro diferente”282. A tarefa do historiador envolve, deste modo, uma
temporalidade que conjuga os três tempos, onde o passado traz uma ligação com o
presente e o futuro, visto pela mesma autora como o futuro do passado, daquilo que
teria podido acontecer, ou que requer retirar do esquecimento: “aquilo que teria podido
fazer da nossa história uma outra história”283. Ao revolver a fundo a história do país,
trazendo de volta nossos conflitos esquecidos entre o campo e a cidade, a lei urbana e o
costume do sertão, Guimarães Rosa compartilha da visão apontada pela mesma autora
como sendo comum a Benjamin, Freud e Proust (embora cada um a desenvolva a seu
além disso, que aguardam uma vida posterior, e que somos nós os encarregados de
fazê-los reviver”284.
que avançam sobre o sertão: “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade
acaba com o sertão. Acaba?”285 Conflito que o escritor reformula através desta
interrogação não respondida, e que produz como efeito um corte ou uma suspensão no
inerente ao processo de choque entre a cidade e o campo, ao conflito armado entre a lei
Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em
máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o
pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonçável na
capital do Estado? (ROSA, J.G., 2001, p. 319).
com a cidadania de uma cidade mais justa que o sertão: “eu tinha raiva surda das
grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva – porque eu não era delas,
produzido”287. São imagens de uma promessa que não chegará ao sertão, de trens que
não virão e do contraste entre a falta de pontes e a cidade na qual o senhor vive: “no
carro de bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe
não resolve, mas seria até “bom, se fosse verdade”291. Se cada época guarda um
por Rosa como enigma – podem ser revelados: a violência nos embates entre o campo e
286
Leyla Perrone-Moisés fala na suspensão do discurso do narrador no sentido do corte lacaniano, que
aponta para a ausência de sentido, a possibilidade de criação novos sentidos, no final do conto “Lá, nas
Campinas”, citando Rosa: “...Mas não acho as palavras.” Cf: PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.278.
287
ROSA, J.G. (2001) p. 533.
288
Idem, p. 118.
289
Idem, p.140.
290
Idem, ibidem.
291
Idem, ibidem.
292
BENJAMIN, W. (1986a) p. 40.
a cidade, entre o arcaico e o moderno, a marcha de um crescimento desigual, e a
guerra, diversas vezes repetida ao longo de sua fala. Afinal, trata-se do recalcado, que
ele não deseja rememorar, ou de algo que, comparado com outros acontecimentos de
sua vida, não é digno de ser narrado? A princípio, pode-se dizer que toda a memória
tudo que se refere a ela não passa de “tontos movimentos”293? Além disso, como
momento em que confessa, durante uma inexplicada viagem de Diadorim, sua angústia
293
ROSA, J.G. (2001) p. 245.
294
STARLING, H. (1999).
295
ROSA, J.G. (2001) p.245.
àquele, é o “sofrimento legal padecido”296, que Riobaldo atribui, na mesma passagem,
A autora se vale aqui da distinção feita por Lacan entre a memória consciente, e
Diferença que, no romance, lança luzes sobre o que pode permanecer na ordem
“isso de guerra é mesmice, mesmagem”299; ou porque, mesmo tendo sido marcadas sob
296
Idem, ibidem.
297
Idem, p.43.
298
Pois, como ainda veremos, este lá refere-se a um (des)encontro com o real do trauma, e o retorno diz
respeito ao inconsciente como repetição.
299
ROSA, J.G. (2001) p.319.
também o que permite que se passe de uma recordação a outra, que se produza um
rememoração, onde a arte da memória se aproxima da arte de poder esquecer. Por ora,
demarcar esta diferença é o que basta para deixar, por um momento, a melancolia de
lado, e voltar à violência, já que, certamente, ambas ainda retornarão como subtítulos na
detalhes das guerras, equiparadas por ele à dimensão objetiva da vida: “Vida e guerra, é
seu relato: “o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o
tampante, e o que for – de trinta combates. Tenho lembrança”302. E ele não poupa nem
a si mesmo quando se trata de admitir os próprios crimes, incluindo os dois estupros que
saquear na sebaça.”304
Sobre este ponto, é preciso frisar que, retomando a questão do olhar do escritor
sobre estes personagens, ao inserir na história o ponto de vista dos jagunços, o texto não
incorre numa visão ingênua; tampouco caracterizar o olhar do escritor como sensível
300
WEINRICH, H. (2001) p.191.
301
Idem, p. 245.
302
Idem, ibidem.
303
Idem, p. 189.
304
Idem, p.146.
Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda
abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, (...).
Comprou-se para ele, então, uma boa perna de pau. Mas, assim, talvez
por se ter sacolejado um pouco do juízo, ele nunca mais quer sair de
casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ái,
quem tem dois tem um, que tem um não tem nenhum...” Todo o
mundo ri. E isso é remorso? (ROSA, J.G., 2001, p.233).
onde Tatarana, nessa que parece ser sua primeira batalha, entra numa espécie de transe e
atira automaticamente: “Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele
estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava
ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue!”306 Os textos seguintes: “Narrei
miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.”307 E:
“porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era”308, deixam “no ar”
importantes; ela parece insinuar, além de uma crítica ao que merece ser contado, uma
diferença, que mais uma vez desvincula a memória da noção de realidade factual, pois o
que fica na memória como trauma pode estar, ou não, relacionado à guerra. É inegável,
também como trauma, relacionado a algo que se produz como um excesso309, que
305
Idem, p.230.
306
Idem, ibidem.
307
Idem, p.232.
308
Idem, p.234.
309
Em “Além do Princípio do Prazer”, encontra-se tanto a idéia do excesso como a de uma fixação do
sujeito no trauma, na proposição retomada por Freud, de que: “os histéricos sofrem principalmente de
reminiscências.” Cf. FREUD, S. (1976) p.24.
escapole da memória”310, levando o ex-jagunço a duvidar da possibilidade de
... Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a
alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido
e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas medonhas demais, tem.
Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor
e raiva de ódio... (ROSA, J.G., 2001, p. 37).
pelo não só pelo dever de matar: “Eu ia matar gente humana”311, como por ter como
alvo o amigo Zé Bebelo: “Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu
nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo...”312
morrer por minha mão?”313 E a ausência de culpa: “Eu não tinha nada com aquilo,
frase repetida – muitas vezes – durante a mesma passagem: “Ah, digo ao senhor: dessa
noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim.
Matar, matar, quê que importava? Dessa noite esquecer não posso”315.
temática da violência, que atravessa o texto por inteiro, podemos nos acercar melhor do
310
ROSA, J.G. (2001) p. 418.
311
Idem, p.223.
312
Idem, ibidem.
313
Idem, p.224.
314
Idem, ibidem.
315
Idem, p.225.
lugar que ocupa, entre o traumático e o banal, a ficção e a história, e ainda entre o que
deve ser lembrado ou esquecido. O crítico José Miguel Wisnik aponta, na raiz da
circunscrita em torno de uma dupla ou (dobra) da ausência da lei, e que se refere, não
somente ao acaso e à insuficiência na origem de toda lei; mas à ausência de uma lei que
316
“não faz sentido na formação ancestral brasileira” e que merece ser pensada,
No rastro das formulações das idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz317, e das
tentativa de instauração de uma lei comum, capaz de impor limites à força bruta,
convive lado a lado com a lei do mais forte do sertão: “Sertão. O senhor sabe: sertão é
homem da cidade, um sentido que lhe esclareça uma palavra ou uma experiência. O
sertão à lei que falta da cidade brasileira, através dos (des)entendimentos em torno do
316
WISNIK, J.G. (2002) p.184.
317
SCHWARZ, R. (1977).
318
HOLANDA, S. B. (1995).
319
WISNIK, J.G. (2002) p.184.
320
ROSA, J.G. (2001) p. 35.
321
ROSA, J.G. (1988).
famigerado, dirigida ao jagunço por um insensato moço do governo, se assinalam, com
e a da bala está suspenso pelo fio sutilíssimo de uma palavra, podendo no entanto, e a
das idéias em nossa história, entre o poder da bala e o poder político, lugar que poderia
ser de mediação de um acordo comum, que fornecesse o solo simbólico de uma lei, por
por Rosa se inverte, e o personagem principal, o Menino, viaja para o: “lugar onde se
1960, dois anos antes da publicação dos contos. Desta forma, o diálogo se inscreve num
persiste no GSV e, para Wisnik, consiste numa melancolia relacionada a uma passagem
322
WISNIK, J.M. (2002) p.177.
323
Idem, p.181.
324
ROSA, J.G. (1988).
325
Idem.
326
Idem, p. 7.
327
GRYNZPAN, M. (2002) p. 154.
traumática do arcaico ao moderno em nossa história, a algo de não-simbolizado aí, que
palavra, presente na origem de toda significação, tal como formulada por Freud329.
A solução encontrada pelo homem culto é ignorar o contexto em que o termo foi
328
WISNIK, J.M. (1997) p.179. Cf. Capítulo 4 desta tese, sobre a felicidade do texto.
329
Freud investiga a relação do Inconsciente com a linguagem, através do princípio da não-contradição e
do estudo de palavras ambíguas da língua egípcia, e analisa como o uso de uma palavra pode derivar no
sentido oposto ao original, o que Rosa percebe ocorrer com famigerado, em português. Mais tarde, Freud
irá propor o mesmo em relação ao termo Unheimlich (o Estranho). Cf. FREUD, S. (1970) e (1988b).
330
ROSA, J.G. (1988) p. 15.
Ao passar, porém, da neutralidade ao elogio, “–Famigerado? Bem. É:
331
‘importante’, que merece louvor, respeito...” , o homem culto reitera esse (literal)
estado de coisas, no qual a palavra passa a valer como ornamento: destituída de sentido
inteligência em nosso passado histórico que, a fim de conciliar duas exigências opostas
(aqui, sair com vida do episódio e esclarecer o homem simples, dizer a verdade),
331
Idem, p. 16.
332
Trata-se da importação das idéias européias iluministas aplicadas a uma realidade incongruente com
sua origem, como a idéia de liberdade à sociedade escravista e rural da época. Cf. SCHWARZ, R. (1977).
333
HOLANDA, S.B. (1995) p.84.
334
Implícita nesta formulação está também o conceito elaborado por Lacan de Foraclusão do Nome-do-
Pai, da instância da lei, própria da estrutura psicótica, e que (simplificadamente) faz com que a palavra, ao
não se inscrever simbolicamente, retorne do real na forma de delírios e alucinações, etc., levando, para a
psicose, a que a palavra seja tratada como coisa, o que se verifica, por exemplo, na certeza irredutível,
opaca, das construções delirantes. Cf. LACAN, J. (2008). Algo próximo do que estes estudos
sociológicos apontam: na formação da cultura brasileira, o valor da palavra é deslocado para o ornamento,
o enfeite; o que o pensamento hesitante de Damázio, parece indicar, como mostra Wisnik, ao final do
conto, cogitando numa extradição da autoridade, encarnada no moço do Governo: “Sei lá, às vezes o
melhor mesmo, pra esse moço do Governo era ir-se embora, sei não...” Cf. ROSA, J.G. (1988) p.17.
E, ainda, a respeito da formação de compromisso efetuada pelas idéias em nossa cultura, Sérgio
Buarque de Holanda mostra como a cordialidade irá se desenvolver como traço de caráter nacional desde
os engenhos de açúcar... Tendo, na origem, o caldo onde se misturaram a herança ibérica e africana,
diante da escravidão. Nesta ótica, a cordialidade admite a violência para não sucumbir a ela, ocultando-a.
Cf. HOLANDA, S.B. (1995) p.61.
335
ROSA, J.G. (1988) p.9.
336
Idem, ibidem.
337
Idem, p.10.
338
Idem, ibidem.
Haveria, portanto, na origem da formação social brasileira, em nossa história,
operasse uma distinção na experiência, e que, ao não se efetivar, retorna como violência
em ato, não simbolizada, o que nos levaria a confundir a lei e o crime, a polícia e o
bandido, o público e o privado, que passam a ser vivenciados como o mesmo, fazendo
com que, ainda hoje, a lei da cidade se aproxime, mais do que nunca, da lei da selva...
coletivo, irá ser vivida subjetivamente pelo Menino (como pontua Wisnik), como “o
excesso, em que o fator surpresa é preponderante e que envolve uma ruptura341, uma
No GSV, a ausência da lei é ressentida por Riobaldo como algo que, passando
por uma autoridade política, poderia demarcar uma divisão, um limite capaz de
339
Idem, ibidem.
340
Idem, p.11.
341
A noção de trauma envolve outros aspectos, principalmente a partir de Lacan, mas, por ora, estes são
os aspectos necessários a destacar. Cf. FREUD, S. (1976) p.47.
A lei do mais forte do sertão aparece resumida na acusação de Ricardão durante
uma boa bala”343. O “costume velho de lei”344, ditado pelo coronelismo, fruto de um
O que o fazendeiro ensina é que, neste mundo à revelia, onde a norma já nasce
lei que não há, ajudando a prender e dando julgamento segundo uma autoridade
essencialmente pessoal. Por exemplo, o caso dos irmãos que se unem para matar o pai,
que, antes, havia mandado um matar o outro. Presos pelos jagunços, os dois têm o
perdão como veredicto do então chefe Zé Bebelo, com a condição de terem a boiada
fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a
342
ROSA, J.G. Op. Cit., p.284.
343
Idem, ibidem.
344
Idem, p.276.
345
Idem, p.128.
346
Idem, p.92. Há, nem tanto neste julgamento menor, mas sim no de Zé Bebelo – onde se esboça um
fórum coletivo, no qual vários chefes dão acusação, e o réu é ouvido antes da sentença – toda uma
discussão em torno da lei do sertão, a lei da cidade e do governo, e a justiça; que aponta para a construção
de uma lei realmente intermediária entre os envolvidos, que escapa ao objetivo deste trabalho, mas que
não deixo de ressaltar, a fim de apontar possíveis linhas posteriores de pesquisa.
347
Idem, p.146.
guerra, do extermínio dos jagunços com o apoio do governo – à semelhança da Guerra
de Canudos – se nota no grito de Bebelo após cada vitória num combate: “Viva a lei!
Viva a lei...!”348
uma conversa – onde o jagunço fala e o senhor escuta – Guimarães Rosa traz de volta
não apenas o diálogo que faltou em Canudos349, mas o simbólico como mediação
ausente na origem de nossa cultura, numa imagem alegórica que coloca estes opostos
em movimento, em interlocução:
Neste diálogo, é interessante observar que o termo doutor (ou Seu), comumente
utilizado no Brasil pelas populações menos instruídas como forma de tratamento a uma
pessoa culta, numa situação formal, não aparece no diálogo com o visitante. Além disso,
o tratamento senhor, empregado do início ao fim do romance, não seria usual em nossa
praticamente restrita, no país, a situações formais, utilizada por populações com nível
considerável de instrução.
Wisnik – que ao final aponta justamente para a escravidão como a nossa violência mais
348
Idem, p.93.
349
“Só faltou uma conversa.” É com a frase do morador João de Régis sobre a falta de diálogo entre as
autoridades e a população do Arraial de Canudos, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897 – que culminou
no massacre dos sertanejos e na destruição das 5.200 casas por parte do exército brasileiro, após três
expedições derrotadas – que Willi Bolle inicia o seu estudo sobre o Grande Sertão. Cf. BOLLE, W.
(2004) p.17.
350
GALVÃO, W. N. Op. Cit.
íntima e recalcada, nosso passado esquecido – este senhor também pode ser pensado
engenho e posses, patriarca desta lavoura arcaica, na dupla conotação do termo, tanto
mítica como rudimentar351. Veja-se a forma como, lá pelas tantas, Riobaldo assume o
se dirige ao senhor, como se verá adiante, na estranha língua falada por eles: “Tudo
idéia de um país do futuro. Neste sentido, é que se pode afirmar que o GSV promove
uma lembrança dos “sonhos coletivos”353 do país, através destes resíduos da história.
Mas, também, inclui o despertar, como algo que torna possível “recordar aquilo que é
mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance”354 rearticulando o passado em sua
Portanto, se, por um lado, a crítica atual a uma cultura da memória nos leva a
personagem de Jorge Luis Borges – o texto crítico de Rosa se faz presente na discussão
América Latina, onde uma política do esquecimento das ditaduras ainda se exerce num
351
Sobre os métodos rústicos utilizados na lavoura brasileira desde a colonização, cf. HOLANDA, S. B.
(1994) p.49. E a respeito da dialética senhor-escravo no GSV à luz de Casa-Grande & Senzala, cf.
BOLLE, W. (2004) p.281-306.
352
ROSA, J.G. (2001) p. 546.
353
BOLLE, W. (1994-1995) p.92.
354
BENJAMIN, W. (2007) p. 434. Ainda no texto das “Passagens”, Benjamin propõe o despertar como
um processo: “que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações”, associando-o à
rememoração. Cf. BENJAMIN, W. (2007) p.433.
355
Cf. BORGES, J.L. (2007).
próprio, contrário ao apagamento dos rastros, ou o retirar do esquecimento, ainda em
adormecidas, por banais que nos pareçam, como: “quem controla o passado, controla o
futuro”357. E outras, na verdade nem um pouco fáceis, mas que nos parecem igualmente
íntimas – como a idéia de Marx de que a história se repete: “a primeira vez como
tragédia (na violência da ausência de lei do sertão), e a segunda como farsa”358 (na lei
da selva, hoje, nas cidades, onde caberia perguntar, se as aparentes antinomias entre a
lei do governo e a lei da bala, por exemplo, não se estabelecem mais do que nunca,
como inseparáveis...).
356
ROSA, J.G. (2001) p. 60.
357
Frase de Orwell em 1984, constante como epígrafe do livro O que Resta da Ditadura, de Edson Teles
e Vladimir Saflate. Cf. TELES, E.; SAFATLE, V. (2010).
358
MARX, K. (s/d).
Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha359
origem coletiva que visa transmitir ao visitante – o que já contém certa ironia, pois é o
jagunço que ensina o senhor sobre sua experiência no sertão: “O senhor sabe? Já
recordação do que restou do sertão361, a frase que Riobaldo repete inúmeras vezes é o
senhor vá: “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá: Alguma coisa ainda encontra.”362
testemunho, surgida das narrativas dos sobreviventes sobre as catástrofes do século XX,
359
O termo, sugerido por Susana Kampff Lages a partir do texto apresentado na qualificação desta tese,
em agosto de 2009, é conceituado originalmente pelo crítico e teórico norte-americano Norman Friedman
(1955) em “O Ponto de Vista da Ficção”, como uma categoria de narrador, levando-se em conta quem
narra, como narra, o lugar do narrador, a distância em relação ao texto e ao leitor. Ali, o narrador-
testemunha (I as witness): “é um personagem em seu próprio direito dentro da história, mais ou menos
envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na
primeira pessoa (...). Podemos notar aqui que as cenas são apresentadas de modo direto, como a
testemunha os vê.” Isto quer dizer que o narrador insere o leitor diretamente dentro da cena. Cf.
FRIEDMAN, N. (2002) p. 175-176. Note-se, contudo, que, como sempre, o narrador rosiano não se
encaixa muito bem numa única categoria, sobrepondo outras tipologias do próprio Friedman, como a de
narrador-protagonista. Em segundo lugar, esta categoria literária de testemunha não envolve o caráter do
testemunho como intrinsecamente relacionado às catástrofes históricas, que vem a articulá-lo à chamada
literatura de testemunho, e constitui exatamente o centro da presente abordagem de Riobaldo como
narrador-testemunha.
360
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 43.
361
Neste sentido, Márcio Seligmann-Silva concebe o testemunho como uma modalidade de memória. Cf.
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.73.
362
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 47.
363
Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2003a) p.388.
narrador, ou o narrador como testemunha, tratando-se, portanto, também, de uma
construção fictícia.364
aos dois termos em latim para designar o testemunho: testis e superstes365. De acordo
com o termo superstes, aquele que sobreviveu a uma catástrofe, o narrador é testemunha
pego pelos soldados do governo: “Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o
senhor.”366 Neste sentido, o testemunho traz uma lacuna, como diz Agamben367, ou
“uma tentativa de apresentar uma experiência que resiste a essa apresentação”368, que
experiência pela linguagem, a algo que sempre resta, e que articula o testemunho à
364
O objetivo de traçar associações entre o testemunho de Riobaldo e elementos da discussão atual sobre
o tema seria mais o de apontar linhas de pesquisa futuras do que aprofundar uma teoria em torno de uma
questão tão complexa que, por si, já configuraria tema único para uma tese. Abordagens da noção de
testemunho na obra de Rosa vêm sendo realizadas recentemente pela crítica, aparecendo nos seguintes
artigos: SELIGMANN-SILVA (2009); CARDOSO, M. R. (2008).
365
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.
366
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 317.
367
AGAMBEN, G. (2008) p.42.
368
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.
369
ROSA, J.G., (2001) p. 66.
370
A noção de catástrofe é marcada em Benjamin pela noção de trauma freudiano. Cf. BENJAMIN, W.
(1989). Ambas situam-se na ordem do que não pode ser lembrado nem totalmente esquecido, mas
permanece como um excesso, retornando como sintoma; e desde as teses benjaminianas sobre a história,
há também uma outra leitura do excesso na catástrofe, que se refere à perpetuação da barbárie, do
“inimigo que não tem cessado de vencer”. Cf. BENJAMIN, W. (1986e) p.225.
selvagem desgraça”371 que se encontra mais claramente a dimensão do testemunho
visto que a fala de Riobaldo, sempre endereçada a um outro, este senhor que o escuta,
vereda por onde o mal pode fluir”373, onde o lembrar busca paradoxalmente o
pedaços. Isto porque: “Só no branco do esquecimento a imagem pode ser deitada”374,
sua história, mas inversamente, como ainda veremos, porque a narrativa testemunhal de
testemunha como terceiro, aquele que pode restabelecer a verdade objetiva ou jurídica,
que, no romance, se mostra em fatos que Riobaldo menciona, como o de uma forca
371
ROSA, J.G. Op. Cit., p.173.
372
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.196.
373
Idem, ibidem.
374
Idem, p.137.
375
Cf. caps. 3 e 4 desta tese. Ainda sobre a existência de uma lacuna ou vazio próprio do testemunho,
Agamben baseia-se no estruturalismo do lingüista Benveniste para explicá-lo do ponto de vista da perda
ou dessubjetivação inerente a todo ato de fala. Resumidamente, o ato de fala comportaria ao mesmo
tempo uma apropriação e uma desapropriação ou perda do sujeito na língua (onde o testemunho torna-se
o lugar por excelência de um estranhamento, de uma não-coincidência, entre o ser vivo e o ser falante),
postulando haver no lugar de um sujeito do testemunho, antes: “um processo ou um campo de forças
percorrido sem cessar por correntes de subjetivação de dessubjetivação”. Em outras palavras, o
testemunho seria também o resto deste encontro mal-sucedido, se estabelecendo num não-lugar
intermediário: “o resto de Auschwitz – as testemunhas – não são nem os mortos, nem os sobreviventes,
nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p. 124; 162.
376
ROSA, J.G. Op. Cit., p.90.
não se separam das coisas que vivi 377, pois quando testemunha: “vi a morte com muitas
Bebelo, o sentido da morte se abisma nas muitas mortes que presenciou, proporcionou,
natureza – mais ou menos aprazíveis – como a cor do céu, “esse é céu azul-vivoso, igual
retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode até ser que chore, de medo mau em ilusão,
como quando foi menino.”380 Mas a natureza, como já se disse, foi marcada na
subjetivo do relato; como, no nível histórico, a invasão da cidade sobre o campo, que só
Carinhanha e Piratinga: “Dali, para cá, o senhor vem (...) Por lá, sucuri geme. Cada
surucuiú do grosso (...) Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de
377
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.
378
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 374.
379
Idem, p.42.
380
Idem, p.43.
381
Idem, p. 42.
382
Idem, p.47.
coletiva, incluindo hábitos, crenças, estórias dos sertanejos – resta o compadre
trecho anterior sobre o cochicho dos cavalos, que prossegue numa passagem em que o
narrador começa alertando o visitante (e, com ele, o leitor) sobre a mentira dos outros.
Mas, então, é o seu próprio discurso que se reveste de ambigüidade; fazendo com que,
desbravar este espaço se reverte no seu contrário não vá, e é por acreditar que não
383
O teórico aproxima neste artigo o testemunho da ficção, citando Derrida, para afirmar que o
testemunho só existe diante da possibilidade, ao menos, da mentira e da ficção. Cf. SELIGMAN-SILVA,
M. (2009) p.144.
Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de
territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus
motivos. Agora – digo por mim – O senhor vem, veio tarde. (...)
Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.
(ROSA, J.G., 2001, p.41-42).
Dentre o que foi destruído pela história e restou apenas como fragmento no
discurso, narrativa testemunhal, está a grandeza de chefes como Medeiro Vaz: “raça de
homem que o senhor mais não vê, eu ainda vi”384. Além dela, o jaguncismo é extinto;
alguns costumes dos vaqueiros cedem lugar a outros, como as roupas de couro; e até o
... Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi
jagunço, por aí, pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam
de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje
de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando
menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de
curraleiro e de crioulo... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).
memória através dos nomes de seus lugares da infância, que são alterados pelo mesmo
processo:
384
Idem, p.60-61.
Note-se que, no mesmo testemunho do sobrevivente à morte que lhe rondou por
todo lado, que aponta para o inenarrável de sua experiência, podemos ler, no sentido
daquele que viu o mundo querer ficar sem sertão, o depoimento de Riobaldo que atesta
horrores que Riobaldo testemunha, onde a pobreza atinge a dimensão de catástrofe, que
ele assinala após deixar para trás o povoado do Sucruí, e a visão dos catrumanos:
“Porque está chegando a hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas”386.
Currais-do-Padre, deve pegar munição no local chamado Virgem-Mãe mas, por irônico
cotovelos”387, onde não há sinal de ninguém durante três dias de viagem: “nós
estávamos em fundos fundos”388. Então, são interceptados pelos catrumanos, que tentam
385
Idem, p.408.
386
Idem, p.397.
387
Idem, ibidem.
388
Idem, 398.
Descritos como um povo reperdido: “Do fundo do sertão”389, na mesma fala
que antecede sua aparição, são equiparados ao próprio sertão: “De repente, por si,
quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o
próprio, mesmo”390. São vistos, portanto, como produzidos por um sertão sujo,
estranho, repugnante:
Bebelo – em nova referência aos que são mantidos à margem da história do país:
– “O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido
de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”
– “Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça...”
(ROSA, J.G., 2001, p. 403).
dos jagunços, através da voz de Riobaldo, é questionada, da mesma forma como seus
vizinhos, o povo do Sucruiú, doentes e identificados a seres humanos apenas por suas
Embora o caráter documental estrito não constitua o foco desta análise, devido
389
Idem, p.406.
390
Idem, p.397.
391
Idem, p.408.
Rosa de coletar e reutilizar palavras pouco conhecidas, como nomes de plantas, animais,
descrição física de lugares, etc., cabe conjeturar sobre esta sombria inspiração para o
parte em alemão, parte em português, entre 1938 e 1942, quando o escritor esteve como
(“Vê-los, vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rouco, raivoso.”394); no qual lhe
ainda mais vil e abjeta que a dos sertanejos e jagunços já tão sofridos na mesma
392
Os outros contos, todos publicados em Ave Palavra, seriam: “o Mau Humor de Wotan”, “A Senhora
dos Segredos”, e “Homem, Intentada Viagem”, e trazem como cenário a Alemanha durante a Segunda
Guerra. Cf. ROSA, J.G. (1970). Conforme destacou a pesquisadora Eneida Maria de Souza, uma das
organizadoras da edição do diário, em todos eles há material do Diário de Hamburgo. Cf. SOUZA, E.
(2008). Segundo Reinaldo Marques, outro dos organizadores da edição ainda não publicada do diário, no
excelente ensaio “Grafias de Coisas, Grafias de Vidas”, uma espécie de genealogia da trajetória do
documento, o diário contém uma diversidade de registros, entre os quais registros de palavras em várias
línguas, listas de livros na estante, de temperos da cozinha alemã, roteiros de viagem, relatos de visita ao
zoológico, descrições de paisagens, do clima, e colagens, onde têm destaque notícias da guerra, em
recortes do jornal do Partido Nazista. Cf. MARQUES, R. (2009).
393
ROSA, J.G. (1970) p.110.
394
Idem, p.108.
395
Idem, ibidem.
proporção em que os muçulmanos, os prisioneiros judeus que não resistiram aos campos
dos sobreviventes, dentre os quais tem destaque o de Primo Levi, o termo designava
tanto um quadro clínico de desnutrição intensa, quanto uma condição, para uns,
o que importa é que, nos campos, eles eram facilmente identificáveis como a imensa
se sucedia uma morte rápida. Sobrevivência na qual o limite entre a vida e a morte,
pior, por isso mesmo ambos desencadeiam reações de repulsa, tanto por parte dos
jagunços, como dos prisioneiros dos campos. Da íntima semelhança com este alter, que
a qualquer momento pode passar a ser o mesmo, da indesejada e a todo tempo recalcada
396
Cf. AGAMBEN, G. (2008).
397
Em “A Velha”. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.109.
398
AGAMBEN, G. Op. Cit., p.70.
399
FREUD, S. (1988b). Ainda sobre as tentativas de encobrir esta condição, em Agamben: “Por isso, a
preocupação mais insistente do deportado consistia em esconder as suas enfermidades e as suas
prostrações, em ocultar incessantemente o muçulmano que ele sentia aflorar em si mesmo por todos os
lados.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p.59.
candidato certo para as câmaras de gás ou para qualquer outro tipo de
morte. (LANGBEIN, H. Apud. AGAMBEN, G., 2008, p.59).
jagunços, mas Riobaldo expressa por eles, além da estranheza que perpassa todo o
400
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 401.
401
Idem, ibidem.
402
AGAMBEN, G. Op. Cit., p.61.
403
Idem, ibidem.
404
Idem, p.67.
405
PENNA, J. C. (2005) p.46.
Um outro cortejo
O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
WALTER BENJAMIN
Quando eu morrer
cansado de guerra
morro de bem com a minha terra:
cana, caqui:
inhame abóbora
onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora.
CHICO BUARQUE DE HOLANDA, Assentamento.
reescrita têm lugar os esquecidos da história. Contudo, além do cortejo triunfal dos
cortejo dos justos, definidos como figuras ligadas ao mundo arcaico, à redenção, e ao
esta pode ressurgir, como resíduo, fragmento, em nova composição narrativa. Mesmo
como aquele que comparece como ausente, em extinção: pois é deste outro lado – deste
406
BENJAMIN, W. (1986d) p. 216.
O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se
desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na
qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo, ou como
retardatária miserável. (BENJAMIN, W., 1986d, p.210).
em Diadorim, que, apesar de movido pelo ódio e pela vingança, demonstra compaixão
pelos oprimidos, como na travessia de volta do Liso do Sussuarão, onde protege a mãe
do menino morto e assado pelos jagunços. As figuras femininas são, por todo o texto,
comparáveis à mãe de Riobaldo que, tendo criado seu filho solteira, é lembrada por ele
como alguém que concentrou uma dupla função, de um amor maternal compreensivo e
de uma autoridade que lhe colocou limites407: “A bondade especial de minha mãe tinha
sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no
para Riobaldo, ora uma mediação ao desmedido da guerra sem fim dos homens do
sertão, ora uma saída ou diferença em relação ao universo do ódio, que ele enxerga no
puta e bela”409.
cartomante Ana Duzuza, que oscila entre a figura do justo, “naquele sertão essa dispôs
de muita virtude”410; e a mais abjeta das criaturas: “Raspava a rapadura com a quicé,
ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco,
407
ROSENFIELD, K. (2006) p.264-273.
408
ROSA, J.G. (2001) p.57.
409
Idem, p. 327.
410
Idem, p. 49.
411
Idem, p.53.
por Riobaldo precisamente quando ele alega ser seu filho, contrapondo-se ao desejo de
matar de Diadorim412.
figura do justo não consiste num personagem propriamente dito, mas pode deslizar
numa cadeia que vai do justo “até os abismos do inanimado”413. Pois, “como ninguém
está à altura desse papel, ele passa de uns para outros.”414 Sendo assim, se no “topo”
Riobaldo, que termina a história como o pacificador do sertão, assume sua face de justo
nos momentos em que, apesar de jagunço, demonstra sua empatia pelos oprimidos: “E
eu tinha receio que me achassem de coração mole, (...) que tinha pena de toda cria de
sonhando em sair dali levando todos consigo (todos, menos o Hermógenes, remarque-
vizinho417.
alemã Trauerspiel (traduzida por drama barroco) traz em si o conflito entre luto
412
Uma coincidência biográfica não pode deixar de ser mencionada: no período em que Guimarães Rosa
e sua esposa Aracy trabalharam juntos no consulado brasileiro em Hamburgo, expediram centenas de
vistos a judeus que fugiam da perseguição alemã. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa teve, inclusive, seu
nome gravado no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, obtendo o título dos “Justos
entre as Nações”, que homenageia os não-judeus que ajudaram a salvar judeus durante o holocausto.
413
BENJAMIN, W. (1986d) p. 217.
414
Idem, p.218.
415
Idem, p.219.
416
Idem, p.186.
417
Benjamin associa a idéia do justo a um princípio religioso grego, a apocatastasis, que designa a
salvação de todas as almas ao Paraíso, embora em seu texto se acrescente uma conotação política, onde a
salvação é pensada através da narrativa, da figura mesmo do narrador: “Salvos, como nos contos de
fadas”. Cf. BENJAMIN, W. (1986d) p.216.
418
Cf. BENJAMIN, W. (1984).
(Trauer) e jogo (Spiel)419, consistindo na arte de dizer uma coisa através de outra, revela
que o sentido está perdido, mas engendra a possibilidade de novos sentidos a partir da
morte e da perda. Assim é composto o texto do GSV: com os restos de tudo que sobrou
movimento. Por tratar-se de uma substituição, pode ser pensada como uma metáfora ou
imagem perpassada de ruína e morte, pois o que está desde sempre perdido é o referente
colagem ou mosaico.
tornando claro, também, que a imagem alegórica mais próxima deste cortejo dos justos,
errância sem fim pelo sertão, em busca de justiça, deparando-se pelo caminho com os
cortejo e ao lado do chefe Urutú Branco são postos um cego (Borromeu) e uma criança
(o pretinho Guirigó). Imagem dialética e poética que une, na figura do jagunço de uma
terra-sem-lei, o justo e o justiceiro, o pedido por justiça e o ato, quase sempre violento,
do fazer justiça com as próprias mãos, reunindo também no mesmo bando os jagunços e
O cortejo tem lugar num sertão onde, como afirmou Heloísa Starling421, desde
Medeiro Vaz, o rei dos gerais – que se despojou de todos os bens, família, casa, tudo
419
GAGNEBIN, J.M. (1994) p.45.
420
Cf. BENJAMIN, W. (1986g).
421
STARLING, H. (1999).
que o prendia a uma identidade particular – todos os chefes repetem, em vão, a mesma
tentativa de refundar uma lei a partir do nada, (como em Canudos, fundar uma outra
num sertão destituído de tudo, compondo uma alegoria, pais-agem onde desfilam, lado-
jagunços, quando cada um dos envolvidos toma a palavra para refletir sobre o crime, a
culpa e a justiça, e cuja sentença final se define pelo seu exílio do sertão, destoando do
costume local de simplesmente matar os inimigos. Ali, tem lugar um dos momentos
intermediários entre a lei da bala e a lei do governo, onde ambas se deslocam, e o que
conflito originário.
potencial da narrativa, da linguagem; que pode advir da morte e retornar a ela, mas
resíduos, uma outra vida possível. Aqui, uma palavra se destaca, novamente seguindo
constrói como o que tece o rememorar através da trama da narrativa, a eternidade a que
se refere à memória involuntária de Proust, localiza-se numa camada mais profunda que
a memória, que, para Benjamin, não é a do tempo infinito, idealista e mítico, mas a do
422
Idem, p.63.
423
Cf. BENJAMIN, W. (1986a) p.40; cap.4 desta tese.
Cimos”424 – é também demonstrado como capaz de ser entrevisto na pintura, é o que
Benjamin afirma numa aparentemente singela nota de rodapé sobre a presença do olhar
tigre em direção ao passado, como aquilo que pode apontar algo simples na origem,
revela também o seu caráter imemorial, que igualmente não será o da origem
constituem algo que passa por, mas também ultrapassa a melancolia. Retomando o
alegria às margens (melancolia das coisas, mas alegria da vontade, diz Wisnik427), em
de repetir e Guimarães Rosa não se detém em realizar, chegando até a falar sobre isso
424
ROSA, J.G. (1988).
425
O que parece se inscrever em primeiro plano no texto “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” é a
experiência de choque diante da multidão emergente das cidades européias no séc. XIX, como um dos
temas que fundam sua poesia como eminentemente moderna. Contudo, nesta nota, Benjamin nos brinda
com nada menos do que este exemplo de como a obra de arte pode expressar imagens visuais não
exatamente sobre estas distintas sobreposições do tempo, mas do olhar sobre elas, um olhar que
materializa o novo tempo das cidades e que se superpõe à experiência pré-industrial anterior a ela. Pois o
filosofo “lê” o tumulto das manchas de tinta da pintura como “reflexo das experiências tornadas
familiares aos olhos dos habitantes das grandes cidades. Um quadro como a Catedral de Chartres, de
Monet, que parece um formigueiro de pedras, poderia ilustrar esta suposição”. Cf. BENJAMIN, W.
(1989) p.123.
426
ROSA, J.G. (1988).
427
WISNIK, J.M. (2002) p.181.
428
BENJAMIN, W. (1986a) p.38-39.
solidão que equivale ao infinito”429, infinito da felicidade), e que podemos situar nesta
imagem da travessia, que também pode ser a travessia do fantasma, pensada tanto na
429
LORENZ, G. (1983) p.73.
Escute meu coração, pegue no meu pulso.
JOÃO GUIMARÃES ROSA
III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E ESQUECIMENTO
humorado guia de cegos – mas poderia perfeitamente ser uma frase de Riobaldo, tal o
volume e a intensidade de sua fala quando decide contar suas memórias a seu hóspede,
na fazenda São Gregório, herdada por ele do padrinho Selorico Mendes. Na visita que
era para durar, no mínimo três dias, conforme ele pede ao senhor, não se sabe ao certo
O que chama a atenção nas mais de seiscentas páginas escritas sem uma única
pausa, em parágrafos sucessivos, sem nenhum capítulo ou qualquer outra divisão formal
que interrompa o texto, é este efeito de um jorro da memória, comparável ao furor com
que Benjamin descreve a obra de Proust em seu ensaio sobre o escritor, sobretudo
engendra a vida como aquilo faz falar e que gera a narrativa; pulsão nomeada por
430
ROSA, J.G. (1985) p.19.
431
BENJAMIN, W. (1986a) p. 49.
432
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.70.
irredutibilidade do trauma433. Em “Sobre a Escova e a Dúvida”, um dos quatro prefácios
de Tutaméia, Guimarães Rosa dá testemunho sobre a origem da obra como uma força
memórias é, a princípio, a sua forma de um diálogo, onde só um fala. Mas, o que vem a
ser uma fala? “O que distingue uma fala de uma gravação de linguagem?”434, pergunta
e emenda Lacan: “Falar é antes de mais nada falar a outros”. A estrutura do texto,
ele é o único personagem sem nome da história, a quem Riobaldo chama de senhor, o
que já proporcionou interpretações desta figura como sendo a do próprio escritor, por
sua estampa culta e viajante, e até mesmo o próprio leitor, devido às incessantes
incitações do narrador para que ele participe na produção dos sentidos da narração,
433
(Sobre a narrativa): “Conquistar essa nova dimensão equivale a sair da posição do sobrevivente para
voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral...” Cf.
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.69.
434
LACAN, J. (2008) p.48.
respondendo às suas indagações e aos vazios de sentido textuais: “O senhor pense, o
estranheza parece advir muito mais da sua continuidade com uma condição de
inquietante familiaridade, como corrige João Camillo Penna437, é o que faz desta fala
secreto e oculto mas veio à luz”438. De fato, a narrativa de Riobaldo reenvia a todo
tempo ao campo do inconsciente, à procura por narrar uma memória não-sabida: “Me
saber a este Outro, reafirmada o texto inteiro na forma de: o senhor sabe. Ao contar sua
história, o narrador endereça, transfere a seu ouvinte-leitor esta sua verdade não-sabida:
“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do eu, a minha
verdade.”440 Sua fala faz apelo a este saber inconsciente – de acordo com Lacan, a esse
algo “que fala no sujeito, além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não sabe, e diz
sobre isso mais do que crê”441 – como se estivesse numa situação de análise: “Conto ao
435
ROSA, J.G. (2001) p.325.
436
O argumento de Freud é o de que o significado da palavra heimlich “se desenvolve na direção da
ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich”. Das várias matizes de sentido
de heimlich: familiar, doméstico, íntimo, secreto, oculto, inquietante, estranho (pouco usado); haveria
um ponto em que o íntimo, secreto e oculto deriva para levemente assustador, inquietante, e se torna
unheimlich. FREUD, S. (1988b) p.244. De acordo com Luiz Hanns, entretanto, o termo estranho em
português possui um sentido de exterioridade, alteridade (sinônimo de forasteiro), inexistente em alemão,
o que não nos impede de constatá-lo como um dos sentidos presentes no texto, o que o aproxima da
figura do psicanalista. Cf. HANNS, L. (1996) p.234.
437
PENNA, J.C. (2003) p.96.
438
FREUD, S. (1988b) p. 243.
439
ROSA, J.G. (2001) p.303.
440
Idem, p.616.
441
LACAN, J. (2008) p.54.
senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não
carência de que o bom seja apartado do ruim como situada no plano do discurso
memória em direção às coisas obscuras, o que o próprio narrador também percebe com
o tempo: “Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver
essas águas, o lume da lua...”443 Vê-se, então, que a recordação se move menos no
soluções, também formula um desejo em aberto, dos pastos que carecem de fechos;
Riobaldo, parafraseando o título de Vladimir Safatle444, tem paixão pelo negativo, gosta
do que não compreende: o sertão está além do seu entendimento, ele tenta aprender com
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos
dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até
que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me
adoecido, tão impossível. (ROSA, J.G., 2001, p. 62).
endereçado ao senhor através das várias perguntas: “Mas não diga que o senhor,
442
ROSA, J.G. (2001) p.245.
443
Idem, p. 325.
444
SAFATLE, V. (2006).
445
ROSA, J.G. (2001) p.237.
assiado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço!”446, há o apelo
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma
só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que
sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho
certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem –
mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; (...) Mas, esse
norteado tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo
sempre o confuso dessa doidera que é... (ROSA, J.G., 2001, p.500).
silêncio. Eu vou contar”447, pedido de escuta do que não está no dito, da palavra como
instrumento, mas no sobredito, pulsão, busca pelas outras palavras: “Escute meu
coração”, pegue no meu pulso”448 – pedido que comove uma outra busca, relacionada
com o desejo, ainda presente, por Diadorim; mas fundamentalmente com a questão da
ausência, do Mal ou da negatividade sob todas as suas formas, com as lacunas e vazios
deixados para que sejam tecidos, conforme ele provoca: “O senhor fia?(...). O senhor
tece?”449 “O senhor sente?”450. Ou, simplesmente, para que sejam deixados em aberto,
para que se admita o nada, o silêncio como fim, retorno e origem da rememoração e da
criação, da narrativa.
Quanto a saber se houve pacto ou não, se o diabo existe e não existe, a questão é
formulada de início numa dimensão filosófica, relacionada ao gosto por especular idéia,
do Mal que verte e reverte no bem: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem,
morte de Diadorim: “E o diabo não há! Nenhum. É o que eu tanto digo. Eu não vendi
questão do pacto (levando-nos a pensar em novas dessubjetivações), o que faz com que
distinção entre a saudade da idéia e a saudade do coração, pois esta saudade não é
somente a nostalgia consciente do que passou, mas algo que concerne ao inconsciente (à
toda parte que coincide com a nenhuma) que move o desejo de rememorar e contar sua
história, como a tristeza sem razão de motivo, pois determinada pelo não-sabido:
dizer que a rememoração é movida pelo desejo ou pelo amor de Riobaldo em relação a
caráter de proibição deste amor não funcionaria como motor de um desejo louco para
451
Idem, p.26.
452
Idem, p.500.
453
ROSA, J.G. (2001) p.304.
alguém tão atraído pelo lume da lua como Riobaldo454: “às loucas, gostasse de
Diadorim”455.
A despeito disso, o amor por Diadorim mantém-se como aquilo que não passa,
Reinaldo, na juventude: “Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como
aos jagunços de Medeiro Vaz, e o reconhece como “o que atravessou o rio comigo,
como ele sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo”458. Deste modo, o
relembrar e amar: “Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não
me ouça.”459
Por outro lado, na dimensão em que representa o grande mistério para Riobaldo,
em sua esquisitice, em seu gosto pelo silêncio, em seu enigma não revelado, no conflito
que o faz sentir e que ele busca compreender: “Acho que eu tinha de aprender a estar
alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no menino pensava, eu acho
amor por outro homem ao demo: “... o amor assim pode vir do demo? (...) Peço não ter
454
Ao diferenciar o objeto do desejo do objeto da pulsão, Lacan fala, deste último exatamente como os
desejos loucos, vazios, como os decorrentes de uma simples proibição. Cf. LACAN, J. (2008b).
455
ROSA, J.G. (2001) p. 55.
456
Idem, p. 120.
457
Idem, p.154.
458
Idem, ibidem.
459
Idem, p.56.
460
Idem, p.126.
resposta; que, senão, minha confusão aumenta”461. Ou, por não ter se antecipado ao
não assimilável do trauma464, como a do real que retorna sempre ao mesmo lugar465,
... Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o
tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-encarado,
aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que
minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras
pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa
Senhora da Abadia!... (ROSA, J.G., 2001, p. 317-318).
A morte de Diadorim constitui para Riobaldo uma dupla perda: a morte do amor
Revelação num tempo posterior, que traz em si a perda do que teria sido
461
Idem, p.155.
462
Idem, p.207.
463
FREUD, S. (1976) p.29.
464
LACAN, J. (2008b) p.60.
465
Idem, p.55.
466
Idem, (2008b).
467
Idem, p.55.
468
Idem, p. 614.
permanecia, só permanecia, tão impossivelmente”469. Talvez, nesta dupla perspectiva,
um resíduo da saudade de Riobaldo por Diadorim, da saudade que não passa e que
pulsão que o religa à vida, com a narração ao visitante que dá forma ao texto. Note-se,
ameaçando não escrevê-la: “Os olhos dele ficados para a gente ver. (...) Os cabelos
com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é,
469
Idem.
470
Idem, p.614.
Aqui, a duplicidade da perda é assinalada novamente através de uma construção
formal que acompanha um tema semântico. A mesma idéia de um duplo trauma, e mais
ainda do trauma que retorna como repetição, atingindo o presente, se nota na forma e no
repetem:
...Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. (...). O
senhor mesmo, o senhor pode imaginar um corpo claro e virgem de
moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios
da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio
abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era
um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E
tantos anos já se passaram. (ROSA, J.G., 2001, p. 207).
associada à narrativa épica471: pois é a nele que a questão do Mal, difusa em suas
múltiplas histórias, é tomada como coisa sua para Riobaldo. Isto é, confrontado com o
Mal em sua forma mais aguda, por assim dizer, o jagunço se volta ao passado, tentando
sujeito que perde seu amor à dimensão da catástrofe, na medida em que a revelação da
jagunços choram, e ele se abraça com a mulher que a preparava para o enterro, mas esta
feminino e toda a diferença a que ela pode remeter: “Recaí no marcar do sofrer. Em
real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos
471
Cf. Cap.1 desta tese.
meus jagunços decididos choravam”472. A imagem seguinte traz a dor diante da perda
presente melhorado, pela diferença que o feminino poderia fazer não só na vida de
Riobaldo, mas numa vida onde efetivamente pudesse manifestar-se, ainda viva, como
Dor em aberto
E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta
ferida.
CHICO BUARQUE, Leite Derramado.
recordação ligada a Diadorim, seu “amor de ouro”473; o que não significa, entretanto,
sequer pensá-la como traço definitivo estabelecido nestes laços de amor. Pois, aqui,
desta dor e deste luto, o que leva Riobaldo, mesmo sem esquecer Diadorim, a seguir em
de amor, “de um amor que não pode ser renunciado”476 – também perpassa a
buritizais levados de verdes”477. Esta sensação da perda do objeto como uma parte de si
caracterizado por uma elaboração da perda que possibilita a escolha de outros objetos de
amor.
objeto, numa condição especial, tal como a perda descrita por Freud na melancolia: “a
mesmo da morte de Diadorim: “da dôr que me nublou”479. Identificação na qual o que
tempo e do amor irrecuperável, nas variantes da fórmula: “Ah, naqueles tempos eu não
sabia, hoje é que sei...”481. E a culpa, mais um traço apontado como próprio à
laço com o objeto, que se acirra diante da perda, na qual uma parte do sujeito sofre,
474
Idem, ibidem.
475
Idem, p.611.
476 FREUD, S. (1988 ) p.256.
c
477
ROSA, J.G. (2001) p. 614.
478 FREUD, S. (1988c) p.
254.
479
ROSA, J.G. (2001) p. 613.
480 Idem, p.40.
481 Idem, p.62.
culpada: “Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter”482.“Agora,
no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir”483. E a outra, goza, sadicamente
longo de sua produção. Assim, a melancolia de Riobaldo pode ser pensada face ao já
pais, para uma dimensão inconsciente, não apenas como cenário dos desejos edipianos,
da tragédia familiar de cada um, mas também como fundo originário, enigma
constitutivo do sujeito487.
desamparo com o recolhimento do pai a uma canoa, rio afora: “Nosso pai era homem
cumpridor, ordeiro, positivo; (...). Nossa mãe era quem regia”488, “Nosso pai não
482
Idem, p. 304.
483
Idem, p. 329.
484
Um aspecto pouco pensado pela crítica parece justamente a ambivalência amor-ódio de Riobaldo em
relação à escolha de Diadorim pela guerra (e não pelo amor), sendo o ódio de Diadorim, ao mesmo
tempo, o que atrái e repele Riobaldo, divisão que aumenta diante da revelação de que ela era mulher
somente na morte. Cf. o artigo de Ana Luiza Martins Costa, intitulado “Diadorim, delicado e terrível”,
em: SCRIPTA (1998). Como sugere Freud, na melancolia, as auto-recriminações são recriminações ao
objeto amado... Cf. FREUD, S. (1988c) p.254.
485 ROSA, J.G. (1985) p.97-100.
486 Idem, (1988) p.32-37.
487
Cf. PERRONE-MOISÉS (2000) p.264-279.
488 ROSA, J.G. (1988) p.32
.
489
Idem, p.33.
490 Idem
.
utilizada do início ao fim do texto, dá à experiência o tom – ou o ritmo, repetição que
A forte ligação afetiva com o pai fica igualmente evidente desde o início, no
pedido do filho para ir junto: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?”491 E a
esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.”492, “A gente teve de se
verdade”493.
encontrar objetos substitutos deste amor: “Tiro por mim, que, no que queria e no que
não queria, só com nosso pai me achava”494. Dificuldades que a família parece tentar
superar; mas ele, não. A irmã se casa, a família se muda para longe; só ele, o filho,
permanece. E o sentimento de culpa: “Sou homem de tristes palavras. De que era que
eu tinha tanta, tanta culpa? (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto...”495
Culpa cujo ápice se dá com a tentativa de se substituir, tomar o lugar do pai na canoa;
tentativa fracassada, pois identificar-se completamente com o pai seria a morte, com o
impasse:
margem do rio: “Mas então que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem
também, numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e eu rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”496 Faz pensar, também, na universalidade da
qual nosso pai e nossa mãe nos tornam irmãos de uma mesma orfandade, de uma
ambos terminam com a morte – objetiva, de Drijimiro, num caso; e o apelo de morte do
filho, no outro – indicando a morte como único retorno possível a esta origem. No
Grande Sertão, talvez pela forma com que é endereçado ao Outro, talvez por tratar-se
de uma elaboração posterior do autor para um tema ensaiado nos contos; a narrativa se
põe num movimento, num ir e vir, onde o real: “não está na saída nem na chegada: ele
dispõe para a gente é no meio da travessia”497, onde a “mãe morte”498 se espalha por
toda a história; mas a travessia pode, sim, deslocar aquele impossível, a dor em aberto,
Mais uma vez, estamos diante da imagem poética que, se na dimensão coletiva
situava-se no cortejo dos justos em direção a uma outra justiça; aqui, encontra-se em
alegria: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais,
tristeza...”501.
alegria”502. De acordo com o dicionário, vau significa tanto o local raso de um rio que
pode ser atravessado a pé ou a cavalo, por onde os peões passam com o gado durante
canoa o rio imenso, ao lado do menino Reinaldo, “... o que até hoje, minha vida, avistei,
de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia”504, é associado pelo jovem Riobaldo ao
499
Idem, p.334.
500
Idem, p. 323.
501
Idem, p.168-169.
502
Idem, p. 321.
503
Cf. Houaiss, A. (2009).
504
Idem, p. 122.
505
Idem, p.116.
descobre o “amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”506, onde ele menciona
requer um confronto com a solidão, com a qual Riobaldo se depara nos vários
momentos em que tenta convencer o amigo a trocar a guerra por uma vida juntos, e o
encontra irrevogável, revendo-se diante da escolha pela vida jagunça – “eu achava que
não tinha nascido para aquilo”508 – ao lado de um amor muitas vezes visto como
retomar cada lembrança, cada fragmento de memória que promove um reencontro com
o objeto perdido, ter de rever para ressignificar, dar novos sentidos no sentido do
reencontrar, sabendo que foi perdido, como afirma o psicanalista Juan David Nasio:
506
Idem.
507
Idem, p.305.
508
Idem, p.82.
509
Idem, p.200.
510
Em “Nenhum, Nenhuma”. Cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.
511
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 235.
que há um superinvestimento da representação do objeto amado e
atualmente perdido. O que dói no trabalho de luto não é tanto a
ausência do ente querido, mas o encontro, o investimento e o
superinvestimento da representação psíquica que temos do ser amado
e perdido. Em seu texto, Freud fala em ligação e desligamento das
representações do objeto perdido; creio, exatamente que a dor se
produz quando localizamos e delimitamos mais de perto (...) o objeto
perdido...(NASIO, J.D., 1991, p.101).
Tão mixas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e do reperdido”512.
Neste trabalho de elaboração513, onde o tempo não é linear, mas narrado conforme a
rememoração, aos saltos, sobretempos, falhas, lacunas, num processo movido entre a
angústia”514: “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica
seu pensamento516 que, aqui, interessa na acepção da fantasia construída pelo sujeito
512
ROSA, J.G. (2001) p. 546.
513
Segundo Luiz Hanns, o termo utilizado por Freud, durcharbeitein (verbo) ou durcharbeitung
(substantivo), expressa a idéia de “trabalhar-se através (durch) de alguma tarefa” ou “percorrer uma
tarefa do início ao fim”, sem pretensão de triunfar ou conquistar, o que difere um pouco da tradução em
português elaboração, que pode dar a idéia de um processo de aperfeiçoamento, digestão ou assimilação,
que se distancia do uso em Freud e Lacan, e que destacamos, aqui, em Rosa como travessia, pois o luto
seria muito mais atravessado, do que digerido ou eliminado. A noção, encontrada por toda a obra
freudiana, possui esta conotação no texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, como elaboração das chamadas
resistências, daquilo que se repete num processo de análise, como constituinte do próprio processo e,
numa primeira acepção, algo cujo enfrentamento permite que o processo de análise prossiga: “Esta
elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma
prova de resistência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores
mudanças...” Cf. FREUD, S. (1987c), p. 171; HANNS, L. (1996) p.198-204.
514
Em “Nenhum, Nenhuma”, cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.
515
ROSA, J.G. (2001) p. 329.
516
A noção de fantasia como fator determinante na memória é percebida por Freud a partir da clínica, e
pode ser situada teoricamente, na medida em que ele abandona a concepção de sedução como origem da
histeria, declarando a Fliess (Carta 69 - 1897): “não acredito mais em minha ‘neurótica’”. Cf. FREUD,
S. (1988d) p.309. A constatação de que não era de uma realidade objetiva que falavam suas pacientes a
respeito da sedução paterna, e sim da fantasia inconsciente, marca uma reviravolta em sua teoria e
como um trauma ligado à sua origem, que faz fronteira com o real, pois o fantasma
encerra uma opacidade própria ao real, uma “entrada para o real”517, na medida em
que o fantasma é o que pode “fornecer ao sujeito uma experiência da ordem da não-
lá, pra lá, nos ermos”519 (note-se novamente o lá), um vazio, um oco cheio de nada,
traz todas as marcas de seu fantasma pessoal e inconsciente: “que o Liso do Sussuarão
não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, um escampo dos
infernos”(...) “Não era possível!”520. Atravessar o Liso, desta forma, constitui metáfora
Não cabe tentar desvendar a travessia do Liso nem o pacto, pontos cegos,
pacto, como fundo imemorial: “aquele chão gostaria de comer o senhor; e ele cheira a
clínica. A partir deste momento, a fantasia adquire lugar preponderante na constituição da lembrança,
dando lugar a uma concepção de memória ligada à lembrança como construção do sujeito, diferenciada
de uma realidade objetiva. Cf. FREUD, S. (1975).
A visão de Lacan, por sua vez, interessa por partir do fantasma como aquilo que não apenas se repete
numa análise durante seu percurso, sentido já exposto no texto acima, mas no desenvolvimento dado por
Freud posteriormente, quando Freud o percebe como algo que resta, um irredutível, mesmo ao final de
qualquer processo de análise, o que Lacan atesta como ligado ao trauma: “Nossa experiência nos põe
então um problema, que se atém a que (...) vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a
nós. O trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto desvelado”. Cf. LACAN, J. (2008b)
p.60.
517
LACAN, J., Apud SAFATLE, V. (2006) p.206. A idéia, aqui, é do fantasma como cena criada a partir
dos primeiros objetos perdidos (ou cedidos, como lembra Safatle em seu livro, assim chamados por
Lacan), que dizem respeito portanto a este encontro não-idêntico e não totalmente assimilável com o
real, o que pressupõe, por sua vez, que o fantasma não seja totalmente submetido à estrutura
fantasmática, que ele comporta algo da não-identidade do real exposta acima, que se relaciona à pulsão
e à repetição.
518
SAFATLE, V. (2006) p.206.
519
ROSA, J.G. (2001) p. 50.
520
Idem, p. 50.
521
Idem, p.499.
522
Idem, p. 579.
outroras... Uma encruzilhada, e pois!”523 Por outro lado, vale, sim, destacar alguns
questão do pacto e da travessia, com o amor por Diadorim e a questão do medo que, por
encontra-se desvalido, destituído, pedindo esmola a mando de sua mãe. Após a travessia
coragem que herdou do pai, (que mais tarde será reconhecida por Riobaldo como um
“mandado de ódio”524): “Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente”525. É então que Riobaldo (que então não conhecia o próprio pai), não sem
enfrentamento de seu medo como marco inicial de sua travessia: “E eu não tinha medo
Apesar disto, o medo é uma constante pelo sertão e pelo discurso de Riobaldo,
fazendo-se medo do demo. Se, pouco antes do pacto, o medo retorna, e ele se diz
permanecer jagunço, sem ter realizado o amor por Diadorim: “Eu queria minha vida
própria, por meu querer governada. A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal,
por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho”527. Após o
pacto, ao passar de jagunço a chefe do bando, ele se refere àquele sofrimento como
queixas antigas, demarcando uma mudança de posição não apenas de estatuto social,
mas subjetivo.
523
Idem, p. 417.
524
Idem, p.444.
525
Idem, p.125.
526
Idem, ibidem.
527
Idem, p.370.
Outro marco importante: anterior ao pacto com o demo, houve o pacto sempre
reafirmado com Diadorim, de lutarem juntos, e de vingança pela morte de seu pai, Joca
pelo contexto acima, que Riobaldo tenta o pacto com o demo. Mas a questão da vida
desgovernada permanece, pois agora quem ameaça mandar é o demo. Como chefe,
Riobaldo se vê leve, voltado para a ação, mas vulnerável ao Mal, perdendo o controle
no encontro com o fazendeiro seo Ornelas e o lázaro. Diante desta conjuntura, outro
que o caso do delegado Hilário, contado pelo seo Ornelas, cuja moral da história era –
“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém”528 –
mesmo. Não por acaso, voltado para o tempo de jagunço anterior ao pacto e à travessia,
ele indaga: “Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda
esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia”529.
sertão tem medo de tudo. Mas hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que ele
528
ROSA, J.G. (2001) p. 476.
529
Idem, p. 407.
é bondade adiante.”530 “O que ela [a vida] quer da gente é coragem”531. Coragem,
... Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes!
Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por
estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire
veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um
destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim,
mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era
que era o realce meu – ? – eu carecendo de derrubar a dobradura dele,
para remedir minha grandeza façanha!...” (ROSA, J.G., 2001, p. 556).
passo adiante, pode tornar o que parece impossível em possível, conforme as falas do
Urutú Branco antes da travessia: “O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se
sentia no poder de fazer”533. E após o suposto pacto: “Eu caminhei para diante. Em, ô
gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível”534. Evoca, portanto, uma
outra experiência, experiência de encontro com o real, que – se não torna tudo, como
imagina Riobaldo, possível – faz com que algo se desloque (como a percepção de um
deserto nem tão terrível assim, mais adiante) juntamente com a própria travessia,
530
Idem, p. 329.
531
Idem, p. 334.
532
O que é importante apontar nesta noção, para esta análise, é, segundo Lacan, a correlação entre aquilo
que se repete como trauma, com a fantasia, que funciona como uma espécie de tela, cena, para o real: “O
lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela
que dissimula algo de absolutamente primeiro”. Cf. LACAN, J. (2008) p.64. Outra observação
importante diz respeito ao aspecto imaginário de Diadorim, como um dos aspectos, não o único, pois já
associei este amor como objeto da pulsão, do estranho em Diadorim. Diadorim pode ser considerado
ligado ao fantasma de Riobaldo, pois o mesmo objeto pode aparecer ao sujeito ligado à dimensão da
pulsão, do real, à dimensão simbólica ou ainda imaginária. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.
533
Idem, p. 61.
534
Idem, p. 451.
fazendo lembrar a afirmação de Collot535, de um encontro com o real que a poesia e os
poetas não cessam de evocar, e que esta abordagem do fantasma como atravessável
também acentua536.
redimensione a impossibilidade em atravessá-lo: “O que era – que o raso não era tão
terrível?”537 Dali, ele pode ver “um feio mundo, por si, exagerado”538, e surpreender-se
com a existência de vida naquele estranho local; com os insetos, aranhas, abelhas: “No
que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas”539. Uma jornada
demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que
fim à sua fala para o senhor que o escuta, na forma da inconclusa resposta à questão do
demo, como travessia do homem humano, à qual se segue o símbolo (∞), imagem
existente desde gravuras rupestres, utilizada no tarô como equilíbrio entre os opostos,
Moebius, na forma comparável a de um anel torcido, onde o seu lado direito coincide
com o avesso, e que constitui justamente um dos modelos topológicos utilizados por
535
Cf. Cap.2.
536
Esta perspectiva se opõe à leitura exclusivamente estruturalista do real como impossível, para pensá-
lo como experiência do real, experiência de confronto com a não-identidade, o descentramento, o
desconhecido, o inominável, distinta do imaginário e da apreensão simbólica. Encontro esta ênfase na
leitura de Lacan de Vladimir Safatle e em algumas formulações de M.D. Magno, por exemplo, que
considero, por este motivo, bastante próximas da literatura de Rosa.
537
ROSA, J.G. (2001) p. 524.
538
Idem, ibidem.
539
Idem, ibidem.
540
Idem, p. 325.
541
Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.29.
Lacan para falar da memória e da subjetividade542, intrinsecamente relacionado à noção
posteriori diz respeito aos efeitos da significação, construídos só-depois, a esta volta ou
dobra do tempo sobre si mesma, presente na forma do romance, cujo fim está inserido
desde o início, na dupla face onde o sujeito simultaneamente narra e é narrado, e a volta
atrás coincide com o passo adiante543, dobra do tempo que Riobaldo associa inúmeras
frisar. Entretanto, de acordo com a psicanálise, nos pontos em que a memória falha,
542
Lacan usa o termo transfinito (do matemático Georg Cantor) para distanciar-se do caráter totalizante
do infinito, ao referir-se ao que ultrapassa o finito. Cf. LACAN, J. (2003); (2008). Entretanto, conforme
já mencionamos, o tema do infinito era uma idéia cara a Rosa, sem que, a nosso ver, em sua obra, isso
constitua objetivamente uma definição, surgindo muito mais como abertura, como também parece propor
a análise de Finazzi-Agrò. Mas o infinito pode ser lido também, numa acepção literal e diversa, como o
não-finito da finalidade sem fim do objeto poético, cujo excesso de sentidos se opõe ao fechamento ou
finitude da lógica do mercado. Cf. LINS, V. (2005) p.7.
543
“... a verdade, implícita na fala do narrador, é alcançada graças a uma volta atrás”.543 Cf. FINAZZI-
AGRÒ, E. (2001) p.43. Cabe ressaltar de que a verdade será tomada nesta abordagem como verdade
parcial, subjetiva, construída nesta fala endereçada do narrador ao senhor-leitor.
544
Em “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, de 1898, um dos seus textos iniciais, Freud busca
compreender os processos psíquicos em jogo nos lapsos de memória, utilizando-se de exemplos
autobiográficos a respeito do esquecimento de nomes, e de como estes “equívocos” podem ser
determinados pelo inconsciente. No texto freudiano, lado a lado com a proposta de uma psicanálise que
visa corrigir os recalques, resgatar as lembranças perdidas através da recordação, como lembra Coimbra,
aparecem expressões como: um “inacessível à memória” e “lacunas da memória”, além da expressão
referida ao fracasso, que acenam para uma outra visada sobre o tema. Cf. FREUD, S. (1994a);
COIMBRA, J.C. (1997) p.120.
erra, desvia, é que se insinua a noção de algo que resta não-totalmente recoberto pela
aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés
Desta forma, a memória não se apresenta de uma só vez, nem segue uma única
direção do tempo. De acordo com Freud, “ela se desdobra em vários tempos”546. Isto
significa que não há uma seqüência ou seta única do tempo, na direção passado-
tempo, e o passado é determinado pelo presente, nas voltas que o texto dá, rompendo
com a cronologia, em mais uma analogia com o inconsciente freudiano, cujos processos
referência ao tempo seria dada posteriormente, pelo consciente, o que faz com que a
“Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?”548 O relato de
história.
545
ROSA, J.G. (2001) p.260-261.
546
FREUD, S. (1988e), p. 281.
547
Idem, (1988a) p.214.
548
ROSA, J.G. (2001) p.198.
549
FREUD, S. (1994b). O que é importante frisar em torno do conceito é a distinção entre memória e
experiência, ou o abandono da concepção de memória ligada aos fatos verídicos, à realidade objetiva, em
prol de uma memória ligada à verdade do sujeito, em outras palavras uma memória determinada pelo
inconsciente. Novamente, há a afirmação de que a memória é constituída pela fantasia através de resíduos
do passado.
No linguajar de Riobaldo, os lapsos e as lembranças encobridoras seriam as peças que a
memória nos prega, os descaminhos por onde os labirintos da memória nos fazem errar.
É assim que o narrador confunde nomes, como o da encruzilhada onde ocorre o suposto
demonstrando, além disso, uma associação dos nomes dos lugares de acordo com o
que tanto o passado lhe escapa – permanecendo como enigma ou mistério – bem como a
de que ele não se esgota nesta tentativa de recuperação, produzindo sempre um resíduo.
dos nomes, dos equívocos, num redemoinho (cuja imagem de uma espiral do tempo é
que deste retorna como resto não-recuperado, incide novamente sobre o presente e o
futuro, numa volta adiante...), e cujo excesso nos leva a subverter a noção de fracasso,
para a concepção de que a memória toda ela é constituída por estas peças, pela
Pois, só depois, vários anos depois, quando o passado volta uma segunda vez, e
ele reconta sua história ao visitante silencioso, Riobaldo assinala o caráter fantasmático,
550
Cf. capítulo 4.
551
Como se vê no decorrer da trajetória freudiana, por exemplo em “Construções em Análise”, de 1920,
e principalmente em toda a obra lacaniana. cf. FREUD, S. (1975).
552
Cf. FREUD, S. (1975).
553
ROSA, J.G. (2001) p.39.
recuperação do tempo perdido, pois a lembrança se torna deslembrança: “lembro,
deslembro”554.
diz incapaz “de dar narração”555: “o que sinto, e esforço em dizer não consigo...”556
apenas frisar que este esquecimento como ponto de enigma da origem seria também o
“Aqui eu podia pôr ponto”558: a frase é dita por Riobaldo no meio do livro. Ali,
tem lugar uma espécie de balanço da história contada, na qual ressurge a idéia de que
tudo já teria sido dito na primeira metade. E é com frases curtas, numa alteração
554
Idem, ibidem, p.42.
555
ROSA, J.G. (2001) p.221.
556
Idem, p. 305.
557
Cf. FREUD, S. (1994a); DERRIDA, J. (2001); BIRMAN, J. (2008); BENJAMIN, W. (1986a).
Para uma aproximação com uma discussão mais sistemática sobre a questão do arquivo, que
escapa ao projeto desta tese, deixo apenas algumas indicações que, a meu ver, distanciam a teoria
freudiana da memória da noção de arquivo clássica: a primeira, já comentada no primeiro capítulo seria
a noção de resíduo, pois difere da idéia de memória como registro fiel da realidade, armazenamento. A
ela, acrescento a perspectiva deste esquecimento constituinte da memória, ligado ao inominável ao
imponderável da origem, e não apenas como apagamento da memória necessário à capacidade de novos
armazenamentos, como também ressalta Birman sobre a crítica de Derrida à teoria freudiana. A estes
dois aspectos somem-se, entre outras, a comparação freudiana do trabalho de análise à escavações,
ruínas, das camadas do tempo; a idéia da memória como fantasia, construção, no processo de análise,
que Freud expressa como se o analista pudesse emprestar um passado ao analisando, e finalmente a
idéia de que a beleza das coisas é que elas passam, em “Sobre a Transitoriedade” ; que, somados,
constituem fortes argumentos para uma diferenciação entre a teoria freudiana e a concepção positivista
de arquivo como registro de lembranças estável, centrado, organizado e linear. Cf. FREUD, S. (1975);
(1988f); BIRMAN, J. (2008); DERRIDA, J. (2001).
558
ROSA, J.G. (2001) p. 324.
sensível do ritmo anterior, em ritmo de dansa (como ele escreve), que o narrador abre
... Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (...) Tenho saquinho
de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser...
... Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus
gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... (...) O São
Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha mãe, fez
uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar
arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou,
depois de queimar sua casa-de-fazenda. (...) Zé Bebelo me alumiou.
Zé Bebelo ia e voltava... Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir,
toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso assim, é na paridade.
O diabo na rua... (ROSA, J.G., 2001, p. 325-326-328).
Condensada num único parágrafo que toma quase quatro destas cinco páginas,
sua vida, sem obedecer a nenhuma cronologia, onde o que se destaca é este anúncio do
fim ainda no meio, sinalizando que os tempos da história estariam todos contidos no
vai e volta do passado, nesta curva do tempo. Não por acaso, a imagem do redemoinho
é insinuada aqui (o diabo na rua...), na forma de uma espiral que nos reenvia a esta
significação.
pois, ao supor uma significação dada ao trauma num tempo posterior ao evento
559
É difícil estabelecer uma data exata para os conceitos, numa obra que foi permanentemente revisada
pelo seu autor, mas pode-se pensar na “Carta 69” de Freud a seu amigo Fliess, como um marco, uma
reviravolta no pensamento que, ao deslocar a noção de sedução para a idéia de um trauma psíquico,
situa na lembrança, e portanto só-depois, no presente da rememoração, o sentido traumático da
recordação. Cf. FREUD, S. (1988d); COIMBRA, J. C. (1997).
memória e a realidade objetiva – já que não é o evento em si que se torna motivo do
trauma, mas sim a forma como ele é lembrado por alguém: “Eu me lembro das coisas,
só-depois é uma fala do jagunço), nos oferece através de outra expressão desdobrada,
igualmente ligada ao trauma:“Bem que eu conheci Otalícia foi tempos depois; depois se
deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após.”(Grifo
nosso)562.
sujeito que leva o narrador a uma incessante interrogação sobre si mesmo diante da
dobra do tempo: “Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só
obedecendo? Pois, não era?”564 Como tentei mostrar, esta divisão se acompanha de
uma construção formal específica: “Ah, digo ao senhor: dessa noite não esqueço.
560
ROSA, J.G. (2001) p. 47. A frase é retomada por Chico Buarque em seu último romance, Leite
Derramado, que desenvolve, através das memórias de um narrador centenário e senil, idéias bastantes
próximas sobre o tempo e a memória. Cf. BUARQUE, C. (2009).
561
O estudo de Magno sobre Rosa veio a constituir sua tese de doutorado no curso de Letras pela UFRJ.
Cf. MAGNO, M.D. (1985).
562
Idem, p. 173.
563
Sobre estes dois aspectos do a posteriori, ver o capítulo da dissertação de mestrado em Teoria
Psicanalítica da UFRJ, intitulado “O Só-Depois e o Jamais”, em FLANZER, S.N. (1998).
564
Idem, p.223.
Posso?”565 Onde a reiteração das perguntas desfazem, desafiam a afirmação anterior,
sendo dirigidas tanto ao um passado esquecido da história, “cidade acaba com o sertão.
Acaba?”566; como à sua experiência particular: “dessa noite não esqueço. Posso?”567.
Ambas dizem respeito a uma suspensão do tempo, a um passado que não passa,
seja na forma do sertão que permanece, seja na lembrança traumática da primeira noite
de guerra. Cisão do sujeito que se interroga, e divisão do tempo; pois, nesta indagação,
outro, algo não coincide, algo de refratário que se produz como resto não-integrado à
história, resíduo que vem a ser uma das definições de real em Lacan, e que persiste
impulsionando o próprio rememorar569, o mesmo real que roda e põe diante, e que se
articula como repetição, movendo o rememorar em nova volta (daí a forma da espiral do
tolere e releve estas minhas palavras de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia,
sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais”570.
... E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era traição. Era? Hoje eu
sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros.
Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era.
Agora, depois mais do tudo que houve, não foi? (ROSA, J.G., 2001, p.
215).
A divisão ou dobra do tempo coloca em questão uma idéia de memória que não
se resume na ressignificação do passado, mas aponta para algo que insiste como um
565
Idem, p.225.
566
Idem, p.183.
567
Idem, p.225.
568
Para uma análise específica sobre este duplo aspecto do trauma na obra de Ruth Klüger, cf.
TRÔCOLI, F. (2010).
569
Cf. LACAN, J. (2008b). E: “Que no intervalo deste passado que ele já é no que se projeta, um buraco
se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui o que basta, para suspendê-lo
da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno.” Cf. LACAN, J. (1996) p.57.
570
Idem, p. 204.
vazio; que, a cada vez, resta como não-realizado, não-recuperado, que impulsiona a
sucedida:
das diversas formulações que apontam, todas, para o inconsciente: o umbigo do sonho,
suposto, só depois, como ponto de origem, enigma que em última instância se confunde
com o próprio sujeito. Sujeito que se constitui não apenas dividido e descentrado, mas
se lembra da Guararavacã do Guacuí, o lugar onde seu amor se revela: “Será que tem
um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar pra trás?”573 E ponto
enigmático – ao qual a cena do pacto alude (lembre-se do registro das Veredas Mortas,
local do pacto: “Ali eu tive limite certo”574) – levando-o a afirmá-lo também, quando se
571
LACAN, J.(2008) p.59.
572
ROSA, J.G. (2001) p. 546.
573
ROSA, J.G. (2001) p.305
574
Idem, p.418.
questiona por que não matou o Hermógenes antes, quando esteve comandado por ele,
tendo-o a seu lado: “Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para
trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para
diante...”575
determinada pelo desejo presente, um retorno que não é ao passado cronológico, mas ao
“que é mais inicial e autêntico em mim”576; também acena para o futuro, para Lacan, o
do presente composto, o tempo do que terá sido. Pois lá seria simultaneamente o local
mas, insisto, um retorno adiante, uma entrada mais adiante no país natal, em suma, o
retorno do recalcado”578.
Riobaldo tem sua versão sobre a pulsão como força constante579, que faz com
que o passado retorne num passo à frente: “Os dias que são passados vão indo em fila
caminhe novamente: “Mas o senhor vá avante (...) eu queria decifrar as coisas que são
realização do pacto: “Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras
do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios”582.
575
Idem, p.229-230.
576
NASIO, J.D. (1991) p.105.
577
“Isto poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade
que tem no seu presente o futuro anterior”. Cf. LACAN, J. (1996) p.57.
578
Idem, (1988) p.28.
579
“A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem
noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante.” Cf.
LACAN, J. (2008) p.163.
580
ROSA, J.G. (2001), p.327.
581
Idem, p.116.
582
Idem, p.419.
Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado
O espelho, são muitos (...)
Mas que espelho?
J.G.ROSA
experiência do descentramento: pois, ao afirmar: “No passado, eu, digo e sei, sou
assim”583, já não sabe mais quem é, dividido entre o que lembra e o que é levado pela
que faz com que, a determinada altura, ele tenha se reconhecido num “eu senhor de
que quer saber e o senhor que sabe, mas imediatamente, não sabe mais...
cujo percurso é a produção de uma outra cena, onde o narrador pode olhar de fora para
Diadorim, Maria Deodorina) entre dois reflexos, e produzir um texto, imagem, obra,
que ocupa o lugar do espelho, lugar de enigma que nos olha desde um ponto abissal, nos
interroga, nos abre “a um vazio que nos olha, que nos concerne e, em certo sentido, nos
constitui”588.
constante em Guimarães Rosa, e novamente parece que, a partir dos motivos presentes
583
Idem, p.156.
584
Idem, p.57.
585
Idem, p.585.
586
Idem, p.370.
587
De acordo com Magno, numa referência a Lewis Carrol, atravessar o liso é atravessar o liso do
espelho. O chiste refere-se à mudança na relação especular, bidimensional com o outro, para situar-se
num lugar terceiro, mais aberto à dessemelhança. Cf. MAGNO, M.D. (1985) p.55.
588
Sobre o espelho: Idem, p.190; sobre o que nos olha na imagem: DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.31.
nas interrogações de contos, como em “O Espelho”: “Você chegou a existir?”589, à já
indo e vindo com suas identificações, deixando-se atravessar pela incerteza, sem
Desta forma, se o narrador confirma a divisão do sujeito que pensa onde não
mas não idêntico a Hamlet – nossas contradições em aberto; pois, como ainda se verá, a
pergunta se o diabo existe e não existe? resta sem resposta até o fim, permanecendo
como a nossa questão: to be or not to be, versão brasileira; onde a inconclusão consiste
muito mais numa “escolha poética”593 (em decidir ser ‘e’ não ser, ao invés de paralisar
na dúvida entre ser ‘ou’ não ser) do que numa suposta “‘natureza ‘duvidosa’ da
identidade brasileira”594:
589
Não me estenderei no comentário sobre este conto já exaustivamente analisado à luz da psicanálise,
apenas observo o mesmo endereçamento da questão, nele formulada através da identidade, a um senhor
culto, apontando uma noção de sujeito que vem necessariamente do Outro, presente no primeiro
parágrafo do texto: “O senhor, por exemplo, que estuda e lê, suponho nem tenha idéia do que seja na
verdade – um espelho?” – O conto termina com a pergunta direta ao leitor, através de nova provocação:
“Você chegou a existir? Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de que vivemos
em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora,
sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto.” ROSA, J.G. (1988) p.65; 72.
590
Idem, p.54.
591
ROSA, J.G. (2001) p.601.
592
No item “Do sujeito da certeza”, Lacan destaca a oposição entre o sujeito freudiano e o cógito
cartesiano, definindo o inconsciente como “nem ser, nem não ser”, mas como não-realizado, como o
representante de algo que não está lá, constituindo um sujeito que pensa onde não é, e também menciona
Hamlet, sujeito imerso na dúvida entre ser ou não ser. Cf. LACAN, J. (2008) p.36-41.
593
Todas as vezes em que me refiro à escolha poética em deixar as perguntas em aberto, trata-se da fala
de Didi-Huberman, segundo a qual “a suspensão da conclusão é uma questão de ritmo”, “não reponder é
uma decisão poética” do artista que assim decidiu (“il a bien décidé”), que acena também para a ética e a
responsabilidade de toda escolha. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009/2010). Em outras palavras, o
indecidível não está dado de antemão, não constitui uma ‘natureza em si’; diferença que, pensada no
contexto do olhar crítico do escritor sobre a nossa história, talvez se traduza na escolha entre um elogio
de uma indecisão perpétua, ou da suspensão que nos reapresenta a contradição, de uma dialética que se
abre para uma terceira possibilidade.
594
Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.143. Tomo emprestada a expressão utilizada pelo pesquisador,
embora saiba que sua perspectiva é histórica, para ilustrar uma abordagem existente da ambigüidade
brasileira enquanto identidade, natureza a-histórica; numa palavra, um destino, ao qual a decisão de ser
e não ser se contrapõe.
...A suspeita prévia, mais uma vez, é que a solução do dilema nacional
– assim como a questão da existência ou inexistência do Diabo –
esteja dobrada na pergunta, ou seja, que a verdade de uma nação que
não é “una” (...) consiste justamente na sua inconsistência e
indefinição, ou melhor, no seu conter de modo problemático e
interrogativo, tudo aquilo que a pode abolir: “O Brasil existe e não
existe?” (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p. 102).
como algo de originário, mas, noutro de seus muitos paradoxos, “a língua de algo
diabo, o que só vem reforçar a leitura da questão, aqui, como pergunta que nos devolve,
vida do jagunço unifica a história, conferindo-lhe uma identidade íntegra – pois vida,
diz ele, “a vida não é entendível”597: “Vida” é noção que a gente completa seguida
assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia”598. E Diadorim ensina que:
595
LORENZ, G. (1983) p.92.
596
Ver também a noção de imagem poética em Octavio Paz, justamente como o que condensa os opostos
em uma única unidade, rompendo com a lógica pré-socrática de Parmênides o ser é – o não ser não é.
Em: PAZ, O. (1972) p.37.
597
ROSA, J.G. (2001) p.156.
598
Idem, p.414.
“A vida nem é da gente...”599, insinuando a impossibilidade de dissociar inteiramente
esta destituição da vida de seus enlaces sociais, já que há um confronto explícito entre o
restringe à esfera social, pois, em que pese a fronteira fluída entre os termos eu e outro
(fluidez acentuada por toda a obra de Rosa e para a qual o próprio conceito de
Cansado da violência, deste imundo de loucura; num único gesto, Medeiro Vaz
de todos os vestígios de sua vida anterior, instituindo um nada, um marco inicial que,
por sua vez, dará origem à nova subjetivação, relacionada à era dos medeiros-vazes.
599
Idem, p.171.
600
Idem, p. 429.
601
Idem, ibidem.
Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio
Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das
beiradas mal nem vejo...
JOÃO GUIMARÃES ROSA
memórias puramente individual. Mas também, porque, ao falar de si, tampouco se trata
Do ranger de sua rede, ele conta as suas memórias entrecruzadas pelas memórias
dos outros, os casos de caipira, sem que nenhuma delas – assim como nenhuma de suas
... De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada
vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa.
Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto...
(ROSA, J.G., 2001, p.115).
ou limites Riobaldo fala, quando assinala determinados pontos que parecem marcar a
passagem de uma identidade a outra, com termos como: uma transformação pesável, ou
o primeiro dia da travessia do São Francisco603? Ou: “Tudo agora reluzia com
602
Cf. AGAMBEN, G. (2008).
603
“Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.” Cf. ROSA, J.G. (2001) p. 116.
clareza”604, e “de meus íntimos esvaziado”605 após o pacto. Ou, ainda: “Desmim de
Duas noções lacanianas bastante úteis para pensar a questão são as de retificação
escapa”607 (cf. o caso de Medeiro Vaz), opacidade relacionada à uma queda do sujeito
suposto saber e à noção de algo que resta, não mais vinculado ao imaginário, mas com o
real.
registro do real, pode atravessar o seu fantasma, o que provoca uma “queda” deste
real faz, ainda, com que ele se represente como algo de “informe, de impessoal, de
opaco”609, de desumano.
604
ROSA, J.G. (2001) p. 440.
605
Idem, p.439.
606
Idem, p. 610.
607
SAFATLE, V. (2006) p.216.
608
LACAN, J. (s/d) p.36.
609
SAFATLE,V. (2006) p.219.
Neste sentido, é interessante comparar a destituição de Riobaldo na imagem do
rio, seu desejo de pensar como o rio anda, com a transmutação em onça do narrador de
silencioso com um visitante, o leitor é lançado desde o início numa espécie de vertigem,
de ameaça, que termina com uma alusão à morte – seja do ‘eu – onça’ pelo moço de
fora, antecipado na fala do selvagem: “Eu vou. Um dia volto mais não”611; seja do
moço, devorado por este âmago, coração selvagem das trevas612. Por outro lado, no
que não se dá apenas no fim; não custa lembrar que o real se apresenta para a gente é no
meio da travessia. Mas, além disso, para Riobaldo, a corrente é tomada ao pé da letra:
“Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não
quer ir a nenhuma parte, ele só quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo”614.
No GSV, a imagem do rio, do tornar-se o rio, surge como efeito das sucessivas
passagens, que pode ser visto, em retrospecto, nas múltiplas subjetivações, por toda a
travessia como um passado que está lá só-depois. Porém, diversamente da saída para o
afoga. Em contraste com o um dia volto mais não do onceiro, como veremos adiante, as
fim do tempo, como condição para descer rio abaixo, para tornar-se o próprio tempo.
610
ROSA, J.G. (1969).
611
Idem, p.142.
612
Conferir a comparação entre o conto, o GSV e o romance de Joseph Conrad. Cf. FINNAZI –AGRÒ,
E. (2001) e cap. 4 deste trabalho.
613
Cf. Cap. 2 desta tese.
614
ROSA, J.G. (2001) p.450. É interessante perceber o paralelo entre questões que Rosa desenvolve em
sua obra, formuladas através da teoria e da clínica psicanalítica: “...como atravessar o fantasma a fim de
disponibilizar ao sujeito a experiência de um real capaz de produzir o descentramento? E, principalmente,
como atravessar o fantasma sem jogar o sujeito, de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?”
Em: SAFATLE, V. (2006) p.205.
615
ROSA, J.G. (2001) p.365.
616
Idem, (1988).
Pois o rio reúne a metáfora de Lete, o rio do esquecimento, mas também a do correr do
tempo, do vir a ser, de Heráclito, no qual um homem não se banha duas vezes:
dividido pelo tempo, pelo São Francisco, que partiu sua vida em duas partes; ao tornar-
se rio, também é capaz de abrir-se a este tempo e à sua dimensão criadora, visível na
imagem da travessia no final do texto, que evoca este tempo no tempo, do tornar-se
tempo aqui-agora, do rio como aquilo que só-depois, inserido no princípio, acena para
Como ensina Lacan, a destituição tem a ver com a já comentada noção de algo
clausura de uma experiência, eis o que tem a ver com a natureza do ‘aprés-coup’ na
Diabo, fantasma que constitui Riobaldo como sujeito desta busca, que o fascina e
617
LACAN, J. (s.d.) p. 39.
618
Cf. p.135 deste trabalho.
suma, se esta questão-fantasma não é destituída no final do romance, ou seja, de algum
Na travessia precedida, no fim, como no início do texto, por não e nada620, vai
situado neste limite instável entre um e outro, o que narra e é narrado, pois quando
dessubjetivação”621, é preciso ler o que ele diz em seguida, que vem a ser a já citada
testemunho de Riobaldo, que atravessa o deserto, mas não o habita o tempo todo (como
supõe-se do pai, na terceira margem do rio): Riobaldo traz o rio em seu nome, mas vai
que, além de ser possível somente em retrospectiva perceber como toda a narrativa traz
esta marca624; há uma provável escolha poética do escritor – tão atento aos jogos
formais com a simetria e a dissimetria, à disposição das palavras no texto e à ordem dos
619
Na leitura de Safatle sobre a destituição subjetiva, o objeto não seria abandonado, dando lugar a um
puro deslizamento significante, mas trata-se de um “deslocamento no interior da significação do objeto”,
que possibilita o “desvelamento do descentramento”, ou experiência do real, que ele nomeia como carne,
termo inspirado em J.P. Sartre, que revelaria a opacidade do objeto, pois Safatle está tratando questão
da destituição do sujeito através do amor. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.
620
Nonada vem a ser a contração de não e nada, sinônimo ainda de tutaméia, ninharia, pouca coisa, e
aparece abrindo e fechando o texto, como sua primeira palavra e uma das últimas, no parágrafo final.
621
AGAMBEN, G. (2008) p.124.
622
ROSA, J.G. (1988).
623
Utilizo a idéia de passagem e travessia também presente em FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).
624
Magno destaca o caráter da letra (∞) como simultaneamente resíduo e fundamento da narrativa do
GSV, que vem em lugar do que a palavra não alcança: “É com esta letra, com este ícone, que Rosa
marca a anca do seu bezerro erroso chamado Grande Sertão: veredas.” Cf. MAGNO, M.D. (1985) p.56.
contos nos livros – ao inscrever nonada como a primeira, mas não a sua última palavra,
esta, sim, a travessia, que indica um retorno ao início do livro, à estória contada e escrita
do (re)memorar.
desenreda da coletiva, pois revela a constituição deste sujeito não apenas a partir destes
“virar coisas”627.
qual ambas respondem pela (im)possibilidade de narrar uma história. Em sua fala para,
Riobaldo pode passar – com a intervenção silenciosa deste senhor que soube escutar o
seu pedido por um silêncio – da repetitiva suposição o senhor sabe, para outras
posições, onde a reserva de saber do senhor insere uma lacuna, na qual o senhor não
sabe – “o senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e
acusa buracões profundos”628 – “Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luiz-e-silva.
O senhor não sabe, o senhor não vê”629 – permitindo, assim, a introdução de uma
625
MAGNO, M.D. (1985) p. 14.
626
ROSA, J.G. (2001) p. 538.
627
Idem, 296.
628
Idem, p. 357.
629
Idem, p.608.
então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as coisas que
formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe
falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém
ainda não sabe (grifo nosso). Só umas raríssimas pessoas – e só essas
poucas veredas, veredazinhas... (ROSA, J.G. Op. Cit., p. 116).
A passagem de o senhor não sabe para ninguém não sabe630 somente pode ser
realizada graças ao silêncio, ao não saber responder às suas demandas, por parte deste
com que, quando Riobaldo lhe proponha: “Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio,
põe no colo”631 – o silêncio se espraie pela obra e por todos nós, senhores-leitores. Pois
ao pedido por um silêncio se junta o pedido por uma intervenção que ponha ponto final
... E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.
Conto. Reinaldo – ele se chamava...
(ROSA, J.G., 2001, p.155).
E pode, então, ocupar uma outra posição, chamada por Lacan de discurso do
lugar onde se reconhece como tendo sido capaz de atravessar e deixar-se atravessar pela
linguagem, pelo ser narrado e pelo vazio, de onde não e nada, ninguém não sabe
(retificação, nova subjetivação): o senhor saiba; é como ele se refere algumas vezes ao
630
Creio ter encontrado a mesma diferença entre estes dois registros na já mencionada distinção de Iser
entre a lacuna e a negatividade radical (cf. Cap.2), na formulação do vazio que é destinado a
permanecer desconhecido, de Collot (cap. 2); ou na formulação lógica pensada por Lacan, que distingue
entre o zero e o nada, entre o que pode ser preenchido e o que já é, em linguagem rosiana, cheio de nada,
centro opaco, que não pode ser preenchido, mas funciona como centro insondável de sustentação da
subjetividade ou de origem da narrativa. Cf. LACAN, J. (s/d).
631
ROSA, J.G. (2001) p. 306.
632
Idem, p. 546.
não por acaso, com maior freqüência após o pacto: “Saiba o senhor – lá como se diz –
em padastro de todos”634.
possível tornar, torcer, o exílio, o desterro, a perda; em viagem, dansa, criação – sujeito
sempre outro – no dizer de Riobaldo: “acho que eu não era capaz de ser um só o tempo
todo...”637
Por tudo isto, é possível concluir que, quando o crítico Finazzi-Agrò afirma que
a travessia não apaga a melancolia, está se referindo à marcha do progresso, e não a esta
travessia do rememorar:
633
Idem, p.366.
634
Idem, p.602.
635
LACAN, J. (2008b).
636
Trata-se da canção chamada Vaca Profana, do compositor Caetano Veloso.
637
Ibidem, p.485.
e ao esquecimento, das lembranças que vão em fila para o sertão; mas retornam, desde
crítico, cabe tentar reinscrever a questão, parafraseando Riobaldo, na forma das suas
E, por ser poética e sempre outra a travessia, é possível revertê-la numa imagem que
tensiona e reúne os dois opostos: a travessia da melancolia. Talvez, assim, ela recoloque
o problema do que Rosa realiza de forma única neste livro, considerando a melancolia
...Tudo é porta
tudo é ponte
OCTAVIO PAZ
Findo o sólido. Findo o contínuo e o calmo. Uma certa dança está em toda
parte.
HENRI MICHAUX
Os Nomes da Memória
apontam para a idéia de um passado tecido de linguagem, onde diversos índices opacos
dimensão da linguagem, além do significante, que nos traz de volta às discussões sobre
a criação poética.639
638
De acordo com o artigo de Ana Luiza Martins Costa, este seria um dos títulos encontrados por Paulo
Ronái numa lista do escritor, junto a outros possíveis títulos para a coletânea Ave, Palavra. Em
GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M. (2006) p.211.
639
Apenas para indicar alguns pontos de discussão, alguns elementos reiteram o quanto estas leituras do
nome estão mais próximas do que parecem com as formulações psicanalíticas apresentadas anteriormente,
vejam-se as afirmações de Lacan em 1972, no momento em que está tentando estabelecer sua teoria numa
linguagem matemática, através da topologia (por ex. a Banda de Moebius); e faz uma espécie de revisão
de seu ensino: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse pela”. E acrescenta: “a
referência pela qual eu situo o inconsciente é justamente aquela que escapa à lingüística (...) eu o disse
em quê: no que a condensação e o deslocamento antecederam a descoberta, com a ajuda de Jakobson, do
efeito de sentido da metáfora e da metomínia.” Cf. LACAN, J. (2003) p.490-491. O que se vê nesta nova
visada lacaniana, portanto, é um privilégio da linguagem sobre a concepção de cadeia significante dada
pela lingüística, no que a linguagem aponta para um além do signo, ou seja, a própria definição de
inconsciente.
O debate, apresentado desde Platão, é reavivado com o surgimento da
origem das línguas e a natureza da linguagem, dividida entre uma teoria baseada na
... o conflito entre uma visão cratilista e uma visão que poderíamos
chamar de hermogênea da linguagem, assim como é apresentada por
Platão no Crátilo. O problema da adequação entre nome e coisa
conduzido por Sócrates nesse diálogo constitui o fundamento de
qualquer discussão moderna sobre a linguagem e dá origem a duas
vertentes, nomeadas segundo os interlocutores de Sócrates no diálogo
– Hermógenes e Crátilo. A primeira, ligada ao que hoje chamamos, a
partir de Saussure, arbitrariedade do signo ou da linguagem, ou depois
de Benveniste, de convencionalidade do signo, contraposta a uma
linhagem cratilista, cujo cerne é a idéia de algo que hoje se
convencionou chamar caráter não-arbitrário ou motivado do signo...
(LAGES, S.K., 2002, p. 122-123).
romantismo alemão (de F.Schlegel e Novalis) uma concepção mágica, ligada a uma
queda, que equivale à ruptura com as similitudes, à origem das diferentes línguas, à
640
LAGES, S.K. (2002) p.123.
641
Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (1999).
642
Idem, p.23.
643
Apud. SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.24.
fragmentação desta relação, que resulta numa fragmentação da linguagem e da
idéia do mundo como livro a ser lido, decifrado e reescrito, numa escrita que se
encarregue da colagem dos cacos, da restituição do poder mágico que ligava as palavras
seja através de um deslizamento das imagens do passado, como vimos, entre as diversas
tomados em sua opacidade. Riobaldo vê nos olhos de Diadorim os olhos de sua mãe, e
se diz transportado pela lembrança a esta similitude originária com o mundo: “Então,
Do mesmo modo, diante da perda dos nomes dos lugares marcados nas
recordações de infância, que são, com o tempo, substituídos por outros, o personagem
todo) deciframento da senha, que revela e esconde seu sentido, na mesma fala em que,
ao ressaltar o caráter sagrado do nome, ele não diz que os nomes se sucedem em
séries...
A importância dos nomes próprios já foi destacada por Ana Maria Machado em
obra de Rosa, marcada pela presença de uma dimensão significante, cujo conteúdo se
associa a outro significante no texto (ex: Diadorim, Diá, o diabo); indissociável de uma
644
Idem, p. 164.
645
ROSA, J.G. (2001) p. 58.
646
MACHADO, A.M. (2003).
647
Idem, a citação acima, do texto de Rosa, constitui o título do capítulo 4 do livro de A.M. Machado.
a partir da leitura do “Recado do Morro”648, onde o nome se transmite através de um
recado que, como pontuou Wisnik649, é diferente de mensagem, pois a idéia do recado é
de que o nome porta uma significação não-comunicacional a ser decifrada, algo que se
perpetual”650.
linguagem, e que, por sua vez, como ressalta Seligmann-Silva, encerra “nada – ou
palavra divina é dada como perdida. É a esta linguagem que a poesia tentaria restituir,
A importância dada por Guimarães Rosa não apenas aos nomes próprios, mas às
visível no gosto do escritor por coletar palavras, confeccionar listas, nos diários e
cadernetas amplamente utilizados em seu processo criativo. Método que revela uma
648
ROSA, J.G. (2001b).
649
WISNIK, J.M. (1998).
650
ROSA, J.G. (2001) p. 387.
651
SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.26.
652
Idem, p.32.
procura intensa pela palavra precisa; e articula, também, a memória pessoal do escritor a
1952, pelo sertão, junto com os vaqueiros; ou em suas anotações de viagem como
...Quando saio montado num cavalo pela minha Minas Gerais, vou
tomando nota das coisas. O caderno fica impregnado de sangue de
boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada
espécie, tem um vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o
vôo de cada pássaro, a cada momento. Eu não escrevo difícil. EU SEI
O NOME DAS COISAS. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.,
2006, p.196).
casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente”654. Amor pela ida ao sentido
originário das palavras, em uma “utilização de cada palavra como se ela tivesse
seu sentido original”655. Na mesma entrevista, a procura pela palavra revela-se como
um método de escrita: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra
memória, que podem parecer neologismos, mas são em sua maior parte termos antigos,
pouco usados, como olvidar (termo antigo, sinônimo de esquecer) e alembrar (antigo,
653
A este respeito, ver também o estudo da pesquisadora Marília Rothier Cardoso, onde associa as
anotações de viagem feitas pelo escritor à construção da paisagem no conto inédito e inacabado “O
Imperador”. CARDOSO, M. R. (2008).
654
LORENZ, G. (1983) p.83.
655
Idem, p.81.
656
Idem, p.79.
lembrança: “Alembrado de que no hotel e nas casas de família se usa toalha pequena
Ou então, os nomes são usados numa função incomum, como a flexão do verbo
recordação (do latim re, de novo; e cordis, coração, voltar ‘com’ ou ‘no’ coração) são
aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada”659, referindo-se
GSV, mas é digno de nota pela dupla sinonímia entre o uso antigo, no sentido de
relembrar, e o atual tornar a unir o que estava separado, que parecem ambos
que chega ou está fora do tempo661; mas a palavra alude, num sentido mais amplo, no
Nesta análise, o que a discussão sobre a linguagem traz como questões para a
memória seria algo em torno do seguinte: como o texto de Rosa articula, ou vai além de
uma mera articulação, recriando, fazendo novas perguntas, a partir de uma visão de um
passado que não apenas não responde às questões colocadas pelo narrador, mas de um
657
ROSA, J.G. (2001) p. 354.
658
Idem, p.120.
659
Idem, p.137.
660
Idem, (1988).
661
Idem, p. 144. E, para todos os sinônimos supracitados, cf. HOUAISS (2009).
rememorar que só faz produzir maiores questões: “Vivendo, se aprende; mas o que se
imagem do passado só existe articulada pelo presente num futuro anterior (o tempo do
que terá sido, do a posteriori), com esta idéia de uma dimensão originária e densa da
somente travada contra um neutro esquecimento, mas uma guerra entre memórias663,
entre as memórias da cidade e do sertão, dos velhos e dos jovens, entre a história oficial
e a estória. Trata-se de dar nome aos anônimos: retirar do esquecimento o nome dos
lugares da infância; dos companheiros vivos e dos mortos nas guerras (enumerados, um
662
Idem, p. 429.
663
Cf. PORTELLA, E. (2003) p.7.
664
ROSENFIELD, K. (2006), cap.1.
representante da mistura, do próprio demo. Mas, paradoxalmente, percebemos que o
angústia de Riobaldo, na sua demanda por uma ordem superior ou anterior às coisas,
parece modificar-se, até o momento em que ele decide confrontar-se com o Mal – e,
num mesmo gesto – pactuando com o demo (o acaso), mas eliminando o Hermógenes (a
consiste numa objetividade, isto é, se existe demo sozinho; ou, se o Mal é apenas a
diversas alusões aos fundos sem fundos; no Liso do Sussuarão, como miolo Mal do
sertão, seja na figura do jagunço como habitante originário do sertão; Rosa parece (sem
mimética com a natureza, invertendo a crença numa harmonia originária, ao inserir, lá,
665
ROSA, J.G. (2001) p. 38. Neste sentido, como não ler, na questão de Riobaldo sobre o demo, além da
já afirmada versão brasileira do to be or not to be (cap.3 desta tese), uma reescrita do tupy or not tupy, do
Manifesto Antropofágico de 1922? Novamente, é a análise de Finazzi-Agrò quem dá as coordenadas
desta leitura, ao ler no canibalismo do “Meu Tio, o Iauaretê”, uma releitura – ainda menos mistificante e
A imagem da constelação, em Benjamin, à qual a linguagem é comparada,
ilustra bem a duplicidade da linguagem, pois permite uma dupla leitura: numa dimensão
mágica, as estrelas podem significar o destino dos homens; porém, esta leitura é
Com isto, lança novas luzes à questão, na medida em que os nomes não surgem como
que constitui a função nomeadora. Pois o nome não reenvia à coisa em si, mas a esta
capacidade de nomear: “no nome, a linguagem fala. Pode-se definir o nome como
mas, no instante em que o ocorrido se encontra com o agora (imagem dialética), ela se
revela num lampejo, despertando ou salvando o que ficou esquecido pela história670. Em
mais radical – da antropofagia de Oswald de Andrade, mas que possui em comum com este a inversão da
tese do indianismo romântico, que localizava no indígena a idéia de pureza vinculada à identidade
nacional. A distância de Rosa da antropofagia seria relativa ao caráter ainda idealizador desta última, ao
“colocar o autóctone na posição de quem, a partir da sua condição radical e liminar, assimila o Outro
europeu comendo seu corpo e corrompendo sua alma,(...) disfarçando o índio de improvável precursor
do comunismo e do surrealismo”; enquanto neste eu-onça não sobraria espaço para uma idealização
identitária fechada, justamente por situar-se nesta zona-limite do representável, da pura destituição. Cf.
FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p. 146.
666
ROSA, J.G. (2001) p. 64.
667
BENJAMIN, W. (1986f).
668
“Le nom résume en lui cette totalité intensive du langage comme essence spirituel de l’homme.”
BENJAMIN, W. (2000) p.148.
669
“... dans le nom, le langage parle. On peut définir le nom comme le langage du langage.” Idem,
ibidem.
670
Como esclarece M. Seligmann, em seu livro sobre Benjamin, as idéias, como mônadas, os fenômenos
originários e a imagem dialética pertencem a uma mesma constelação de conceitos que aproximam a
teoria da linguagem da temporalidade histórica. Há uma semelhança entre o sentido que só é conferido
pelo texto, pela linguagem, com a verdade que só pode ser conhecida no instante, no agora. Cf.
SELIGMANN-SILVA, M.(1999) p.147; BENJAMIN, W. (1984).
inconsciente, como exatamente aquilo que nega à representação-coisa, vinda do
coisa em si não tem nenhum verbo, diz Benjamin672, ela é conhecida pelo verbo
que o sentido está perdido desde sempre, mas da significação (admitindo-se que o signo
nomeação”673.
mostrando-nos como uma não existe sem a outra. Assim, no aspecto significante dos
cruzamento deste registro com a dimensão nomeadora que Ana Maria Machado referiu-
retorno à origem para redimir as palavras esquecidas, e recuperar o ato criador, que lhe
confere o estatuto de sagrado não por uma natureza intrínseca, mas, simplesmente,
671
Cf. FREUD, S. (1988a) p.206.
672
“...parce que la chose en elle-même n’a aucun verbe; crée à partir du verbe de Dieu, elle est connue
dans son nom selon le verbe humain.” Cf. BENJAMIN, W. (2000) p.156.
673
LINS, V. (2005) p.145.
674
MACHADO, A.M. (2003) p.182.
porque, neste ato, o homem se compara a Deus, nomeando aquilo que não tem nome – o
Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, nos livros
arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo
salvar. (...) Para determinadas passagens, entretanto, não existem
palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons
que a correspondam. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M.,
2006, p.82).
Talvez, esta citação forneça chaves de leitura para a criação do termo não-
uma memória que a lembrança não alcança, feita de esquecimento, e que tem, como
esquecimento não significa que não haja produções de sentido em relação ao conteúdo
do que merece ser lembrado, e à própria concepção do rememorar. Pois a memória não
foge à regra rosiana da tensão entre os opostos, do tudo é e não é de Riobaldo, que
engendra sempre uma terceira possibilidade. Assim, cabe ver um pouco mais no detalhe
esta sucessiva busca pelo passado que se desdobra na interrogação filosófica sobre a
caracterizadas como tontos movimentos, o que está em jogo para o narrador é uma
lembrança que pode ser relatada, mas não possui valor. Em outras palavras, trata-se de
675
ROSA, J.G. (1970).
um questionamento ético do que vale a pena ser lembrado, do estatuto ético da
memória:
... Que isso merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor
quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que
é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja.
(ROSA, J.G., 2001, p. 245).
tentativa frustrada em atravessar o Liso do Sussuarão: “Mas para que contar ao senhor,
senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?”677 –
“De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso
de guerra é mesmice...”678.
negativa da linguagem, que aponta para a impossibilidade de dizer tudo, surge como
mediação para a escolha subjetiva de não narrar, não rememorar o Mal indefinidamente,
tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia
para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho”679.
Aqui, dois aspectos chamam a atenção: a associação das memórias de guerra à narração
de uma vida como seqüência linear de fatos objetivos; e a contraposição a estas, de uma
outra instância da memória, das outras coisas que valem a pena serem buscadas, e que
676
ROSA, J.G. (2001) p. 70.
677
Idem, p. 227.
678
Idem, p. 319.
679
ROSA, J.G. (2001) p. 232.
pensamento e o sentimento, indicando, mais uma vez, que os sentidos da memória se
... Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte (...).
O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda
em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com
outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só
sendo as coisas de rasa importância...
(ROSA, J.G., 2001, p.114).
Se esta recusa incessante revela um plano sempre deslocado para mais além,
horas de todos, o armar o ponto dum fato em oposição à narração da vida em dobrados
sentido que podem produzir, vemos que seu sentido se constrói não apenas em oposição
aos primeiros, mas num eixo: horas da gente – armação do ponto dum fato – signos e
se ligam numa constelação que produzem sentidos; porém, sentidos mais opacos,
obscuros, e por serem parciais, não-todos, o que eles mais produzem são as novas
da memória propagam-se numa terceira possibilidade – esta imagem tão cara a Rosa –
como primeiras, nem segundas, mas como terceiras estórias, por serem projetadas
numa terceira margem da significação. Lá, onde era – nos ocos cheios de nada, onde as
coisas podem vir a ser – ou, o terceiro pensamento, entre a paz e angústia – a imagem
surge como o terceiro elemento benjaminiano de uma memória comparada aos sonhos,
reino em que as imagens, sobredeterminadas pela condensação e pelo deslocamento,
guardam a capacidade de se assemelhar entre si; onde, conforme o verso de Paz, tudo é
Dizendo de outro modo, na rememoração, que inclui a busca das “razões de não
afirmação, mas sobretudo de algo que não está lá. Esta construção fica ainda mais clara
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? (...) Mesmo
o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e
verdadeiramente entendido – porque enquanto coisa assim se ata, a
gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo.
(...) “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as
horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. (ROSA,
J.G., 2001, p.154).
Pois a memória do coração tem a ver – ao mesmo tempo – com o amor por
Diadorim, com as vísceras, com o que pulsa no real do corpo; mas também com o que é
... Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração
copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que
o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado...
(ROSA, J.G., 2001, p. 481).
680
ROSA, J.G. (2001) p. 201.
A imagem do coração reúne todas as coisas: “Coração cresce de todo lado.
Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.
Coração mistura amores. Tudo cabe”681. Por isto mesmo, define-se como o menos
conhecido, a parte mais central ou profunda de algo, o âmago e a parte mais íntima de
um ser682. “Coração da gente – o escuro, escuros”683. Obscuridade que apela para ser
distinto da luta política engajada, como um “credo, uma poética”686 que equipara
liberar a imagem do passado, cuja apreensão “dá-se num relampejar. Ela perpassa
veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada”689. Na mesma
entrevista, Guimarães Rosa articula a busca pelo sentido original das palavras à crença
mundo”690; definindo-se como um reacionário da língua: “pois quero voltar cada dia à
origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder dar
681
Idem, p. 204.
682
HOUAISS, A. (2009).
683
ROSA, J.G. (2001) p. p.52.
684
Idem, p.601. Pensando na força poética desta imagem de Rosa, que parte de um exame médico para
abri-la em mil e uma imagens da memória, cabe a pergunta, parafraseando Didi-Huberman, a respeito de
Walter Benjamin: “E como não segui-lo, como não fazer nosso este desejo?” Cf. DIDI-HUBERMAN, G.
(1998) p.178.
685
LORENZ, G. (1983) p.84.
686
Idem, p.74.
687
Idem.
688
BENJAMIN, W. (1986f) p.112.
689
Idem, 110.
690
Idem, p.88.
luz segundo a minha imagem”691. Novamente, a ressalva segundo a minha imagem o
memória.
coração da história: ao encontro daquilo que volta no corpo, no coração, daquilo que faz
com que o pensamento pare, uma mônada, um centro saturado de tensões, para extrair,
conto “Meu tio, o Iauaretê” juntamente com o GSV, comparando-os com o Heart of
selvagem e abominável que exerce seu fascínio imaginário sobre uma civilização que
aniquilação, da morte, se impõe por todos os lados. Em “Meu Tio, o Iauaretê”, este
centro se faz notar em diversos níveis, desde o deserto indefinido habitado pelo
protagonista: “Sou fazendeiro não, sou morador... Eh, também sou morador não. Eu –
tôda a parte”694. Sujeito indefinido pelo espaço: “Eu – longe”695; bem como pela
origem, filho de índia com branco; ele se revela um misto de homem e animal: “Eu –
691
LORENZ, G (1983) p.84.
692
“Emancipar: do latim manceps/pis, termo jurídico que significa tomar, pegar pela mão, duplo gesto
de reivindicar autoridade e libertar de uma autoridade. As imagens se vendem e se compram, mas a
‘imago’ é inestimável, não se vende, é sua história, sua genealogia (...) emancipar significa assumir a
possibilidade de remontagem do tempo”. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
693
CONRAD, J. (2010).
694
ROSA, J.G. (1969) p. 126.
695
Idem, p.129.
696
Idem, p.135.
697
Idem, p.137.
Ele, caçador, pago pelo fazendeiro para desonçar o mundo, narra uma
brasileiro. Sim, segundo o próprio, ele: caça, mata, come a carne e o coração, bebe o
sangue, come a caça, cheira a, fala, entende, trepa (?) com onça; até descobrir-se: “Eu
viro onça. Então eu viro onça mesmo”698. Originário deste local inconsciente, de onde
brota a linguagem; ele, mais perto do fundo do que Riobaldo, possui, não somente
vários nomes, mas todos: “Ah, eu tenho todo nome”699; condição que o equipara ao
sem-nome, o Diabo: “ Diabo? Capaz que eu seja...”700 – “Agora, tenho nome nenhum,
não careço”701.
Impossível não ler, também aqui, a perda do nome como destituição, em seus
pelo fazendeiro Nhô Nhuão Guede, o homem ruim e rico, de quem ele se queixa
repetidamente: “me botou aqui. Falou: – ‘Mata as onças, tôdas!’ Me deixou aqui
sòzinho, eu nhum, sòzinho de não poder falar nem escutar...”702 E a solução final,
deixada em suspensão, como mistério, como um segredo do qual não saberemos nunca,
quem mata quem, lá, em nossa origem: o índio, que come o preto e o branco? Ou o
branco, que assassina a tiros aquele que é visto como selvagem? Esta me parece ser a
698
Idem, p.146.
699
Idem, p.144.
700
Idem.
701
Idem.
702
Idem, p.149.
703
Devo a uma conversa com a professora Marília Rothier Cardoso esta leitura da inconclusão, que difere
da interpretação de Finazzi-Agrò sobre o final da estória, para quem o selvagem é morto a tiros pelo
visitante. Entretanto, o crítico é quem coloca com maior precisão a questão da inconclusão na obra de
Rosa, que suscitou todo este debate.
Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra
outra banda... Mexo não, tô quieto, quieto... Oi: cê quer me matar, ui?
Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me
prender? Oi: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à toa... Ói o
frio... Mecê tá dôido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora!
Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem,
Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa de
prêto? Matei prêto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui,
mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Macuncôzo...
Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...
Hé... Aar-rrã... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci...
Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...
(ROSA, J.G., 1969, p.159).
voz narrativa, é como se já estivesse lá e, deste centro obscuro partisse sua narrativa e
conta sua vida a um interlocutor, mas numa voz que partiria do próprio abismo:
Há, no conto rosiano, porém, algo não apontado diretamente pelo crítico, que,
por outro lado, o aproxima de minha leitura do GSV, e que consiste no humor inserido
pelo escritor mineiro nesta ameaça insidiosa, onde o discurso do narrador também oscila
movimentos que os felinos fazem com suas presas, parecendo brincar com elas... É que
o texto parece jogar com todas as nossas idealizações, promovendo uma dança dos
das repetidas menções do índio ao preto – o ser ausente no diálogo (não fala nem escuta,
mas é falado o tempo todo) entre o índio e o branco, e de quem, aparentemente, não
ruídos e palavras indígenas, nos quais o sentido se dissolve no som, confirma a posição
Sertão. Neste, o narrador não se situa o tempo todo no deserto absoluto, sua
mór infernal a gente media – e o deixar-se atravessar por esta corrente que tudo leva,
tornando-se parte dela, não alude à morte como saída, pois Riobaldo pensa, rememora –
dizer que há traços deste fundo imemorial de que parte o conto, no romance; ou talvez
passagem, viagem permanente, que atravessa e evoca este mesmo abismo. Apropriando-
704
Toda esta analogia vai ao encontro das pesquisas de Ana Luisa Martins Costa, segundo as quais o GSV
e Corpo de Baile, escritos quase na mesma época, fariam parte de um mesmo projeto de Guimarães Rosa,
tendo o GSV crescido demais, e se desenvolvido de uma das novelas não publicadas do Corpo de Baile,
possivelmente o “Meu Tio, o Iauaretê”. Cf. GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. (Orgs.) (2006).
me da fala de Didi-Huberman sobre a imagem dialética, é preciso reconhecer que o
“Evanira”705, texto de difícil classificação, cuja abertura por um narrador que nomeia a
análise, que enfatizou a figura do anjo como mediador entre os tempos e entre os
relação amorosa que deve, (...) necessariamente passar por alguma vivência da morte
infância,
o texto fala deste anjo como a necessária saudade, pensada a partir da história de
dois seres “que imemorialmente se amam”708, uma saudade como anterior ao próprio
amor:
705
ROSA, J.G. (1970).
706
ROSA, J.G. (1970) p. 36.
707
LAGES, S. (2002) p.148.
708
ROSA, J.G. (1970) p.36.
...quem não ama e tem saudades
está à espera de alguém, como o não nascido quer o ar, ainda não
respirado. Como a pedra, de asas inùtilmente ansiosa. Como os cães
elevam os ouvidos. Como o temer, sòzinho, ver. Como o não saber.
(ROSA, J.G., 1970, p. 37).
reúne, “Amo-te (...) Uno-me. Eu, enfim era eu, indispersado”710 – resta uma saudade,
saudade funda uma ausência que se constitui como deserto a atravessar “(ou atravesso-
narrador se diz ameaçado pelo evanescer da saudade e do tempo, que põe em risco a
perda do Amor. Aqui, tem lugar esta memória que não a alcança, que traz de novo o não
saber da origem, junto a uma possível releitura do tempo originário romântico; pois,
NÃO-MEMÓRIA
NÃO-LEMBRANÇA:
(...) A AUSÊNCIA DOS PÁSSAROS QUE ANTES
VISITAVAM NOSSAS MASMORRAS EMPAREDADAS DE
SILÊNCIO.
709
Idem, p.37.
710
Idem, p. 37.
711
Idem, p.38.
712
Idem.
713
Idem.
714
Idem, p.39.
(ROSA, J.G., 1970, p. 40).
715
O narrador tem, então, “SAUDADE da saudade” , e fala da importância de
lembrar”716, de não ter saudade. Mas é a saudade da saudade que o confronta com a
sabe-se transformado novamente e que passou por uma espécie de morte, propiciatória
que move o retorno ao coração da história – que, se envolve uma ida à origem, da
reproduzir, produzindo sempre um sentido a mais, além, que inclui o necessário silêncio
– do mesmo modo que a ida ao passado caracteriza-se como capaz de liberar a imagem,
na miragem da origem, não para fixá-la como registro; mas, ao compará-la, movê-la,
715
Idem, p.40.
716
Idem.
717
Idem, p.42.
718
Cf. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.14.
Trata-se, portanto, de um texto revelador em muitos aspectos, entre eles, o da
constatação de que este lá, (onde era) é fundamentalmente ritmo, nota musical, o que é
com aquele do meio do romance, que apontei anteriormente, quando Riobaldo faz
perceber que é em compasso de dança, onde o ritmo do luto se aproxima do jogo, que
esta imagem, que o nome “não-memória” evoca, é elaborada, do mesmo modo como as
que se seguem.
Imagens do esquecimento
comparece como ausente, cujos exemplos vão desde o espaço físico, até algumas
formais. No espaço, já foi apontada a presença dos inúmeros “fundos fundos”720, ocos e
ermos, cujo maior exemplo seria o deserto do Liso do Sussuarão, o miôlo Mal do
Sertão; mas que se estendem aos pântanos movediços, como o “brejão engolidor”721;
ou abismos como:
719
Devo esta afirmação aos textos e ao curso de Didi-Huberman, à sua formulação de que o que nos olha
na obra provém do ritmo e dos restos, bem como à obra crítica e teórica de José Miguel Wisnik, cujos
textos consultados encontram-se na bibliografia final deste trabalho.
720
ROSA, J.G. (2001) p. 398.
721
Idem, p. 83.
O Diabo representa a figura máxima desta escala, cujo excesso de nomes já
aponta para algo que se manifesta sem, necessariamente, consistir numa identidade:
Riobaldo invoca o demônio, e obtém como resposta o silêncio. A noite do pacto, repleta
passível de dissolução:
lembrar que ele é vencido por outro personagem que escolhe a guerra ao amor, mas que
se caracteriza, acima de tudo, mais pela ambigüidade do que pelo Mal, que vem a ser
Diadorim: “Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que
722
Idem, p. 318.
723
DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.99.
724
Idem, p.77.
silêncios”725. Diversos aspectos, já mencionados, apontam para o enigma em torno de
Diadorim.
que não vê, Borromeu é indagado por Riobaldo, que o toma como a personificação do
senhor, que não fala, presença sem nome e silenciosa por todo o romance, que confirma
negatividade destacada, aqui, vai muito além do Mal como valor moral, e tampouco
define uma posição niilista, pois o Mal, talvez situado para além da maldade, é visto
como parte de tudo que há, da qual podemos ver somente a manifestação, os efeitos.
com a noção de pulsão, como algo além da representação, exterior ao psíquico, que se
um princípio ou função, “isto é, (...) algo que está presente a cada momento regendo
cada começo”727. Além disso, como princípio disjuntivo, a pulsão de morte tampouco
que está em jogo é uma “vontade de destruição, vontade de recomeçar com novos
custos, vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa” 728;
potência criadora.
725
Idem, p. 51.
726
Idem, p. 607.
727
GARCIA-ROSA, L.F. (1990) p.155.
728
LACAN, J. (1988c) p.260.
729
Idem.
criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é
mais forte que todo ódio.”730 Veja-se, na recordação de Riobaldo, a percepção sobre o
momento do pacto: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorozamente, esta
nada:“desde por aí, tudo o que vinha por suceder era engraçado e novo, servia para
maiores movimentos”732.
lado do humor, da anedota; ele menciona um nada residual, distinto da morte absoluta,
definido como um resto da linguagem, que aponta para algo que não se submete
totalmente a ela mesma: “O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo”734.
Em seguida, acrescenta: “Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo”735, como
esta ida ao âmago da própria linguagem, já se falou num lance de dês (entre Deus,
e ao sem-fim (“oferecer fim, oferecer faca”), que constituem formas pelas quais a
730
BENJAMIN, W. (1989) p.236.
731
ROSA, J.G. (2001) p. 438.
732
ROSA, J.G. (2001) p. 445.
733
ROSA, J.G. (1985).
734
Idem, p.10.
735
Idem, p.17.
736
Idem, (2001) p. 220.
737
CAMPOS, A. (1978).
... O fato é que a reflexão sobre o ser da maldade e o fim maligno do
prazer de fazer sofrer e de sofrer desdobram-se de modo sonoro numa
proliferação de “s” e “f” que aparecem maciçamente nas cenas que
descrevem o movimento dilacerante, triturante, moedor e destruidor
da “matéria vertente” – das massas aquáticas, animais ou humanas.
(...) As saudades repetidamente mencionadas pelos jagunços de uma
“boa esfola, com faca cega” aparecem assim como a versão humana
do movimento “surdo e cego” da ondulação aquática (...) ou do Liso
do Sussuarão, “inferno sem fim” que “se emenda com si mesmo”.
(ROSENFIELD, K., 2006, p.229).
de criação dos múltiplos sentidos, e não pura ausência, note-se o exemplo dos
significante:
“reveladora por ser dialética (...) mostrando o objeto como perda, mas ultrapassando
paradoxos, que produzem uma exaustão do sentido; das pausas e interrupções rítmicas
da narração; das interrogações sem resposta; e das negações desdobradas, que evocam
738
DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.102.
uma dimensão mais primordial da negativa, um além da representação, além (ou aquém)
nunca não encontra. (grifo nosso)”740. Ora, ao Liso do Sussuarão:“Nas lagoas aonde
nem um de asas não pousa” (grifo nosso)741. “Não tem excrementos. Não tem
... De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno
dele, e em sonho nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era
a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter
sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada
de Copacabana.
(BUARQUE, CHICO. LEITE DERRAMADO).
na afirmação do nome como sagrado, não penso ser forçado compreendê-la mais como
um efeito do que uma crença, pois, como ensina Didi-Huberman, a partir de Freud, a
iminente, ou entre duas mortes, daquilo que não existiu e um dia deixará de existir; a
739
Em “A Negativa”, Freud associa, primeiro, a negação ao recalque daquilo que não se admite recordar,
chegando a afirmar que “o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula
negativa.” Mas, ao longo do texto, faz supor um outro nível de negatividade, não necessariamente
submisso ao recalque, pois se apresenta também na psicose; ligado à pulsão de morte, definida, ali, como
uma função, algo destrutivo, disjuntivo, oposto à união estabelecida por Eros, que me parece próximo do
que vemos nas negações desdobradas de Guimarães Rosa. Cf. FREUD, S. (1988g) p.269.
740
ROSA, J.G. (2001) p. 317.
741
ROSA, J.G. (2001) p. 47.
742
ROSA, J.G. (2001) p. 50.
743
ROSA, J.G. (2001) p. 67.
744
Nas palavras de Pierre Fédida, baseado no termo criado pelo poeta Francis Ponge: “Objeu [objeto-
jogo] é acontecer da palavra num gargalhar de coisa. É júbilo de encontro, exatamente entre coisa e
palavra.” Apud. DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.81.
745
ROSA, J.G. (1988).
746
DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.79-85.
Em O que Vemos, o que nos Olha, o historiador da arte afirma que – diante da
imagem, que porta em si uma suspensão, uma tensão dialética entre o visível e o
invisível (ou entre a aura, a distância; e o vestígio, ruína, proximidade), que exige uma
experiência de confronto com o nada, com o vazio que nos olha – duas formas de
qualquer sentido além do visível, expresso na fórmula: você vê o que você vê, que
Vale a pena ler mais uma vez parte do texto de Rosa para mostrar o momento
guerra:
noção do fort da freudiano para ilustrar a criação da imagem artística, está equiparando
das imagens psíquicas, à entrada do sujeito na linguagem, na qual a imagem surge como
também o sujeito, ao brincar, ao jogar com isso, se constitui entre o ser deixado e o
747
DIDI-HUBERMAN, G. (1998).
748
“... não é de saída que a criança vigia a porta por onde saiu sua mãe, indicando assim que espera re
vê-la ali, mas, anteriormente, é o ponto mesmo em que ela o deixou, o ponto em que ela o abandonou
perto dele, que ele vigia (...) Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe
teoria da construção da memória (do sujeito como montagem surrealista da pulsão),
ambas elaboradas como o jogo do luto ao qual se junta o jogo do prazer – e, aqui,
“Escritores Criativos e Devaneios”, texto de 1908, no qual ele começa assinalando que a
aproximação entre o poeta e o homem comum, entre a poesia e a vida, é feita em geral
pelos próprios escritores. Comum ao brincar e à criação poética estaria a noção de jogo;
relação cuja similitude teria deixado vestígios na língua alemã, nos termos jogo do luto
e jogo do prazer:
importante é que, ao dar forma estética, através das imagens artísticas, às imagens da
nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos
veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele
nada mais tem a fazer senão o jogo do salto”. Cf. LACAN, J. (2008b) p.66.
demais.”749 Mas, Freud vai além da analogia, insinuando o apelo da obra de arte ao
sua reivindicação de expressão: “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à
possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos
da imagem, foi repensado – especificamente em relação à poesia – por Paul Valéry, três
a imagem poética não se esgota na comunicação, pois “quer viver ainda, mas uma vida
recordação dos nossos sonhos, uma libertação da imagem, que possui o caráter de
749
FREUD, S. (1988h) p.142.
750
Ibidem, p.143.
751
VALÉRY, P. (1999) p.200.
A imagem do pêndulo, oscilando “entre a forma e o conteúdo, entre o som e o
qual a poesia se faz, entre a voz, o ritmo, a pura forma; de outro lado, o sentido, o
reclamariam, de volta, essa forma, esse ritmo, criando o movimento; que é outra forma
de dizer que a poesia provoca em mim as minhas lembranças. Também neste sentido é
que podemos pensar que a escrita poética rosiana evocaria nossas lembranças subjetivas
e coletivas. Seguindo Valèry, a palavra não é apenas dança, puro movimento, pois
sempre produz algum sentido, mas é possível fazer as palavras dansarem, como Rosa
faz, dançando sobre as pranchas, parando sobre as pontes até que as palavras se
como criadora.
752
Ibidem, p.205.
753
“As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que são as ruínas no reino das coisas”. Cf.
BENJAMIN, W. (1984) p. 200. “Pois a alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e ambas são
por natureza antagonísticas”. Cf. BENJAMIN, W. (1984) p.197.
754
BENJAMIN, W. (1986c) p.186.
comunicação, por um lado, e a da interrupção da cesura, do silêncio,
por outro. (LAGES, S.K., 2002, p.102).
gerações e os sujeitos estabelecem de maneira geral com a história e com a memória dos
algo relativo à criação, à memória inventada756, que se manifesta como ausência: não-
rememoração do narrador rosiano que, ao voltar seu olhar ao passado, se depara com os
coleção de relíquias como uma colagem, coleção de cacos, do lixo que sobrou da
755
Cf. BENJAMIN, W. (1986b) p.
756
“Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar
sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua
beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura realmente
inventada da memória.” DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.114.
757
ROSA, J.G. (2001) p. 173.
proximidade e a distância; o que leva as coisas passadas a se remexerem nos lugares,
para a reinvenção.
construída nas andanças, por sua vez, é constitutiva do processo mesmo de escrita de
Guimarães Rosa, indo desde o valor das anotações, dos registros colhidos durante as
viagens pelo sertão e pela Europa, que constituem sua matéria prima; ao estranho ritual
de escrita do GSV, revelado a Benedito Nunes, onde o rolar pelo chão se articula como
reescrever o texto:
Ando muito, canto, rolo no chão. Depois escrevo e repasso tudo até
oito, nove vezes. Se consigo descobrir coisas novas no escrito, nele já
deparo com as situações antes não pensadas, então começa a segunda
fase do trabalho. A estória terá se produzido como se outro a houvesse
escrito. Daí por diante posso trabalhar noutras direções. (In:
GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. [Orgs.]).
dança do pensamento, mas pensar num ritmo, numa coreografia; dança, sobretudo,
coreográfico”758. Dansa escrita, no romance, sempre com ‘s’, talvez por reenviar ao
dansa?759” À festa: “Mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-
758
Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
759
ROSA, J.G. (2001) p. 190.
gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado dos pés dansando”760. E
ritual, capaz de reunir o bem, o mal, o caos e o diabolismo do acaso: “Você quer
conforma como o que permite ir lá e voltar, dando novos passos em direção ao desejo:
retorna, no embalo dos versos da canção de Siruiz que, em sua primeira versão, coloca
A segunda cantiga, composta pelos jagunços, não por acaso, após a morte de
popularmente conhecido como ginga, e que põe em jogo uma certa dialética da
malandragem764, de uma ida iniciada mas não totalizada, que, contudo, não evita nem se
contrapõe ao mergulho no reprofundo nem o atravessar até o fim. Mas, como, no sertão,
760
Ibidem, p.540.
761
Ibid. p.484.
762
Ibid., p.618.
763
Idem, p. 325.
764
Cf. CANDIDO, A. (1993). Creio estar utilizando o termo mais em seu valor imagético do que
conceitual, pois a dialética da ordem e da desordem, para Candido, na qual insere a comicidade, é vista
como sistema, estrutura que explica tanto o texto como os fatos sociais: “...dialética da ordem e da
desordem, é um princípio válido de generalização, que organiza tanto AB como A’B’, dando-lhes
inteligibilidade.” Cf. p.46. Enquanto, aqui, a dialética da malandragem me parece, é concebida como
forma de pensamento, numa certa linhagem de imagens às quais Candido faz referência quando cita
Macunaíma, por exemplo.
é o próprio corpo que é tornado carretel, lembre-se dos entraves com a mediação
ponto de onde se é capaz de retornar vivo; o que também nos reenvia à discussão sobre
Olerereêe, bai-
Ana...
Eu ia e não vou mais:
Eu fa-
ço que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio p’ra trás...
(ROSA, J.G., 2001, p.193).
Sabe-se que a ginga provém da arte de enganar o inimigo na capoeira, esse misto
de dança e luta dos escravos no Brasil; portanto, uma certa encenação da dança se
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
conceito, pois as imagens pedem para serem lidas, traduzidas; mas, por outro lado,
765
ROSA, J.G. (1969). E como não mencionar – já que grande parte desta formulação parece ter origem
na concepção benjaminiana de montagem e direito de escolha das imagens no cinema, em “A Obra de
Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” – um filme que ilustra bem estas idéias, que consiste numa
montagem de imagens já existentes, portanto restos de imagens, do século XX, onde não há diálogos,
apenas nomes e pequenas frases escritas; que vem a ser “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, de
Marcelo Masagão, no qual há uma seqüência impressionante de imagens dos dribles do jogador de
futebol Garrincha, demonstrando seu talento na arte do “faço que vou... e volto”, intercaladas,
comparadas, em ritmo de samba, com uma coreografia de Fred Astaire.
766
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 334.
767
No livro “A Origem do Drama Barroco Alemão”, estou considerando a “idéia” como imagem, nos
itens “A idéia como Configuração” (constelação) e “A Palavra como Idéia”, onde Benjamin trata da
questão nos termos da idéia e da palavra, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet, BENJAMIN, W. (1984)
p. 59. A aproximação foi feita a partir da leitura de Seligmann-Silva, e da concepção de que a imagem
reivindicando novamente seu direito à palavra ou à representação. Embora a linguagem
que verte e reverte, cuja mudança na ordem apela, criticamente, por uma reconfiguração
do mundo:
depende de uma configuração dos pedaços, de acordo com o ponto de vista, com o
... Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-
dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – mesmo eu não
acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados
guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do
Hermógenes, por causa. (ROSA, J.G., 2001, p.359).
imagem exemplar do olhar do artista e da obra de arte. Mais uma vez, a imagem do
“não se deixa fixar”, sendo percebida num lampejo; ambas já mencionadas. Cf. SELIGMANN-SILVA,
M. (1999); BENJAMIN, W. (1986f).
768
ROSENFIELD, K. (2006) p.205.
espelho, porém multifacetado, fragmentado, cuja forma se move, compondo e se
ao sujeito em análise, girando seu ponto de vista em relação à sua história, como o
instância, o que se produz é um espelho do próprio tempo – sem que, ali, os conflitos
sejam resolvidos, pois “uma imagem não tem nunca uma palavra final”770. Talvez por
isto, sua última palavra, travessia; e sua última imagem, a Banda de Moebius,
convidem, façam esta invocação ao tempo. É que, desta oficina da memória, da porta
assim escolhida para permanecer aberta – lá, desde aquele vão, ainda aqui, agora, o
Grande Sertão nos olha, grande espelho das desigualdades – e nos desinquieta, nos
instiga a atravessá-lo, a rever e reescrever nossa história, talvez com outras linhas e
769
“... un mirroir aussi immense que cette foule; à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de
ses mouvements, représente la vie multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est un
moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et l’exprime em images plus vivantes que la vie
elle-même, toujours instable et fugitive”. Cf. BAUDELAIRE, C. (1976) p.352. Ver também a dança do
cristal em Didi- Huberman, cf. DIDI-HUBERMAN (1998), p.118.
770
DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
CONCLUSÃO: RESTOS – DO SERTÃO – A CONCLUIR
Eis, portanto, minha vez de fazer balanço do próprio trabalho, relendo, uma vez
mais, buscando, nas idéias desenvolvidas, nos resíduos que insistem a nos inquietar, o
entre uma memória própria da narrativa épica, e uma rememoração típica do romance.
Porém, ao ser confrontada com a busca e o desejo de Riobaldo das coisas sempre
uma certa insuficiência destas categorias de memória, na medida em que possibilita uma
outro, a coletiva.
com a concepção de Walter Benjamin, numa tensão constante entre os tempos, entre a
a memória coletiva permite tanto uma leitura mais fechada, se contraposta à memória
individual; como traz importantes ressonâncias com o texto de Rosa, a partir das noções
filosofia sobre o tempo e a memória. Trouxe, com a recorrência, por todo o texto, dos
tendo em vista seu movimento desdobrado e dividido entre o narrar e ser narrado, entre
seu caráter de obra de arte e de escritura, mostrando a montagem desta memória através
analítico.
ficção.
uma primeira indagação, apresentada na introdução, que ainda pode restar, seria a
que dele não se pode mais voltar para trás...”771 Teoricamente, poderia, ainda, ser visto
como o ponto de torsão da Banda de Moebius que, como Lacan demonstra, ao girarmos
771
Idem, p.229-230.
imemorial, onde a memória encontra o esquecimento, que se constitui simultaneamente
mesma; situada entre a morte, a melancolia, a travessia e o humor. Dito de outro modo,
nas formas da falta da lei, da violência, da miséria. Neste caso, movimento que consiste
no modo como o texto remexe, desloca nossas memórias recalcadas sobre a violência e
a escravidão.
humor; veja-se como Riobaldo, diante da ausência, brinca, ironiza com o nó entre a
772
ROSA, J.G. (1985).
destituição subjetiva e a destituição da condição social de menos-valia; questionando,
– “Pois é Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada, não sou
nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a
coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma
nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada.
De nada... De nada...” (ROSA, J.G., 2001, p. 366).
melancolia, é como se o texto do GSV, sem contradizê-la, também nos levasse a afirmar
o texto mostra – feliz e dolorosamente – como é possível, não apenas ser atravessado,
mas atravessá-lo até o fim, e aceitar, paradoxalmente, que algo de irredutível sempre
pode restar.
Outra pergunta elaborada no princípio diz respeito ao modo como a obra de arte
tempo. A obra, memória inventada, afeta nossa memória... Já foi dito como a arte pode
ser lida à luz da psicanálise, mas eu proporia também o inverso como questão: como ler
a psicanálise a partir da obra de arte e da teoria da arte? Algumas indicações creio que
foram dadas no sentido de um encontro com o real, através de autores que trabalham
nesta fronteira entre a arte e a psicanálise, pois todos falam da arte como propiciadora
outra forma de pensar a teoria, que não exclui a lógica, mas inclui as imagens. Pois,
movimento, que não exclui a lógica, mas não nega o vazio; nas palavras de Guimarães
Rosa, põe no colo o silêncio. Esta imagem fala desta travessia que se move, deixando-se
embalar pelo silêncio, mas que é também capaz de embalá-lo, de acolher o silêncio, de
uma dialética ou ida e vinda em direção ao silêncio; ou ainda, de uma inserção do vazio
através do movimento, que produz mais movimento, como o pêndulo poético de Valéry.
Findo o trabalho, em que pese o mergulho em todos os ocos e fundos sem fim
deste sertão, seja através das raízes do Brasil profundo, inconsciente; seja através das
apesar das várias faces da memória e do esquecimento, dos diferentes jogos e modos do
como faz Riobaldo: sertão: é por ali, – jamais colocar um ponto final nesta indicação.
773
DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
774
Idem.
encontro com o diabolismo da palavra. Pois o sertão, após nos engolir, nos cuspir do
1) ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6 ed., 1985.
3) ______. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19 ed., 2001.
6) _______“Meu Tio, o Iauaretê”. In: Estas Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José
7) ______. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1970.
11) ______. Grande Sertão: cidades. Revista USP. São Paulo, n.24, p.80-93, 1994-
95.
12) ______.Representação do Povo e Invenção de Linguagem em Grande Sertão:
brasileiros da Puc Minas. Belo Horizonte, v.5, n.10, p.352-366, 1ºsemestre de 2002.
14) CAMPOS, A. “Um Lance de Dês no Grande Sertão.” In: Poesia, Antipoesia,
17) CANDIDO, Antonio. “O Homem dos Avessos.” In: Tese e Antítese. São Paulo:
1972.
23) LAGES, Susana Kampff. João Guimarães Rosa e a Saudade. São Paulo:
24) LORENZ, Günter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Eduardo.
25) MACHADO, Ana Maria. Recado do Nome. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2003.
26) MAGNO, MD. Rosa Rosae. Rio de Janeiro: Aoutra editora, 1985.
27) MARQUES, Reinaldo. “Grafias de Coisas, Grafias de Vidas”. In: SOUZA, E.;
29) ______. “Nenhures 2: ‘Lá, nas campinas’ ”. In: Inútil Poesia e Outros Ensaios
30) ______. Flores da Escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP, 1993.
34) SOUZA, Eneida Maria. A Biografia: um bem de arquivo. Alea. Rio de Janeiro,
v.1,n.10, jun.2008.Em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
1998, p.138-145.
Estudos Luso-afro-brasileiros da Puc Minas. Belo Horizonte, v.2, n.3, 1998, p.160-
170.
39) ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2003.
Boitempo, 2008.
42) BAUDELAIRE, Charles. Critique d’art suivi de critique musicale. Paris,
Gallimard, 1976.
44) ______. “Experiência e pobreza”. In: Magia e técnica, arte e política. Obras
45) ______. “A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade técnica”. In: Magia e
técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 2ed, 1986c, p.165-
196.
46) ______. “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nilolai Leskov”. In: Magia
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