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EDITORIAL: • EditoriAL:
REFLEXÕES SOBRE OS CRIMES TRIBUTÁRIOS: REFLEXÕES SOBRE OS
CRIMES TRIBUTÁRIOS:
PROTESTO PELA COERÊNCIA PROTESTO PELA COERÊNCIA .......................1
• REQUERIMENTO N. 756, DE 2011,
DO SENADO FEDERAL
Na década de noventa, o sistema jurídico penal Se a postura utilitarista e arrecadatória do Estado Renato Stanziola Vieira..........................................2
brasileiro começou a revelar uma postura utilitaris- deixa claro que a ameaça de sanção penal nos crimes • REVOLUÇÃO NEUROCIENTÍFICA
ta no que tange aos crimes tributários, trilhando o tributários é utilizada apenas para atingir o objetivo E DIREITO PENAL
caminho da sobreposição do interesse arrecatatório de pagamento do tributo, há meios menos gravosos Paulo Queiroz...............................................................4
ao punitivo. Iniciou a jornada pela previsão de ex- e mais eficazes para proporcionar a devida proteção • A urgência das penas alternativas
à prisão efectivas no Brasil
tinção de punibilidade pelo pagamento do tributo à arrecadação, em consonância com os princípios da Nuno Caiado.................................................................6
em momento anterior ao recebimento da denúncia, proporcionalidade e da subsidiariedade, já que não • DESCRUMPRIMENTO DE MEDIDA
passou pela previsão de suspensão da pretensão possui status de bem jurídico. CAUTELAR E A DECRETAÇÃO DA
punitiva em virtude da adesão ao parcelamento e Nesse sentido, as sanções administrativas pa- PRISÃO PREVENTIVA: ANÁLISE À
LUZ DA HOMOGENEIDADE
atingiu a possibilidade de extinção da punibilidade recem atingir o fim arrecadatório e promover o Clovis Alberto Volpe Filho e
pelo pagamento integral do tributo independente- pagamento dos tributos com a mesma (ou até Diego da Mota Borges............................................8
mente do momento em que fosse realizado. maior) eficácia do que a ameaça penal o faz, já que • O STATUS DA LIBERDADE E DA
Recentemente, por meio do artigo 6º da Lei n. a taxa de sonegação é alta e a sanção penal não vem DIGNIDADE NO ÂMBITO DO DIREITO
REFLEXÕES SOBRE OS CRIMES TRIBUTÁRIOS: PROTESTO PELA COERÊNCIA
pessoa humana como valor central do sistema própria? A tal proteção coletiva da coletivi- ataque, aos direitos fundamentais.
jurídico”, daí ter-se ponderado uma “maior dade deve dar-se por meio de que tipo de E, mais que isso, como nem tudo que
proteção da sociedade a partir de dois vetores atualização normativa, isto é, pressupõe-se reluz é ouro, nem todas as normas cons-
básicos: a proibição de excesso e a proibição da a tutela penal? titucionais, por serem tais, justificam a
proteção deficiente.” Parece precipitado, já nas justificativas incidência penal. O Direito Penal, na
Seguindo a mesma linha de raciocínio, da ideia da composição da Comissão de linguagem de Janaína Paschoal, não é um
a chamada “escalada global do crime organi- Juristas, discutir, ante uma aparente atuali- espelho da Constituição, mas tem justifica-
zado” decorreria do “progressivo fomento do zação do direito brasileiro à luz do que há ção só na medida em que proteja aquelas
pensamento economicista e a impossibilidade em sistemas alienígenas, o que pode ser a normas que ostentem características de
de atendimento das inúmeras demandas e intenção de se dar uma nova feição do corpo direitos fundamentais.(7) Há que se cogitar,
desejos alimentados por essa lógica”. Via de máximo do Direito Penal. Ao que se lê dali, portanto, do que seriam, na linguagem
consequência, o sempre atrasado legislador o risco é de, com o rótulo da proteção da próxima ao direito constitucional e ao
ter-se-ia visto na contingência de mais e dignidade humana (que historicamente, e direito penal brasileiros, “preceitos funda-
mais esparsamente legislar (que o digam no Brasil também, a tantos vieses ideoló- mentais penais”. Se não se tem conceito
as Leis ns. 7.492/86, 8.072/90, 8.137/90, gicos se prestou),(5) propiciar expansão do firme do que seja isso, ainda é arriscado
9.613/98 e tantas outras). Diminuir ou poder estatal de reprimir e punir. E com isso se socorrer da porosa linguagem consti-
evitar a defasagem da legislação penal em não se pode concordar. tucional e da específica tábua valorativa
face das cada vez mais velozes (e voláteis) Seja por critérios de combate vistos para, a partir dali, e sem mais, imaginar
atividades interessantes à esfera penal aos excessos economicistas ou mesmo em a tal “atualização dos preceitos normativos”
tornou-se (se não fora um dia, é caso a virtude de combate ao que se toma por penais. É preciso cuidar para que não se
se pensar) uma ilusão. Não se conseguiu, exacerbado individualismo, não parece patrocine interpretação constitucional que
como se diagnosticou no requerimento, ser, em primeiras impressões, legítima a venha a privilegiar, inclusive, suas normas
atender às tais “necessidades prementes”. abrangência que se quer dar ao novo Código de direitos fundamentais não como de
Ao contrário: à caoticidade do direito Penal. A intervenção – está-se a falar, aqui, eficácia ótima para a proteção dos direitos,
positivo, somaram-se o “prejuízo total da de vigiar e punir ou, noutro giro, de delitos e mas como justificadoras de sua restrição,
sistematização e organização dos tipos penais penas – não é constitucionalmente justificá- em sentido contrário à proclamação liber-
e da proporcionalidade das penas, o que gera vel, mesmo que se pretenda caminhar para tária do constitucionalismo ocidental de
grande insegurança jurídica, ocasionada por um propalado Estado Social e Democrático todo o pós-Segunda Guerra.
interpretações desencontradas, jurisprudên- de Direito. A trilha a uma sociedade mais A problemática, ainda, das proibições (do
Boletim IBCCrim
CONGRESSO BRASILEIRO SOBRE DROGAS, LEI, SAÚDE, CULTURA E SOCIEDADE - ISSN 1676-3661 -
Data: 21 a 24 de março de 2012 COORDENADORa-CHEFE:
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II Congresso de Ciências Criminais de Vitória Tiragem: 11.000 exemplares
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O Brasil deverá ser o quarto país do também podem gerar crime social – uma miragem! Pelo
mundo com mais presos (meio milhão), e processos judiciais: a mo-
pressupostos da contrário, ao acolher sem
o que traduz uma taxa de encarceramento bilidade vertical ascendente reacção penal e especial distinção ou crité-
de 253/100.000 habitantes, acima do pon- pode gerar fenómenos de as- diferenciando rio os presos, tende a criar
to ótimo de equilíbrio recomendado de piração económica ilegítima, condições para integrá-los
100/100.000. Acrescem mais umas cente- conduzindo a práticas crimi- as penas. ou consolidá-los no mundo
nas de milhares de mandados por cumprir, nais. Ou podem fomentar do crime.
uma sobrelotação que tende para os 100% a consciência sobre crimes habitualmente Pensar diferente, condição de mudan-
e um grande esforço da Federação e dos escondidos, como os de violência doméstica. ça: introduzir a probation Como inverter
Estados para enfrentar o problema. Fácil é Por outro lado, observa-se uma desvalo- este quadro? A frase Não se pode resolver um
compreender que a actual situação prisional rização histórica na execução das penas. O problema a um nível de pensamento igual ao
é irresolúvel, porque nunca haveria recursos subfinanciamento do sector penitenciário que permitiu criá-lo, atribuída a Einstein,
suficientes para aumentar o parque prisional é recorrente em todo o mundo pelo que as resume exemplarmente a extrema necessi-
ao ponto de ultrapassar a pressão actual. estruturas e serviços são muitas vezes subdi- dade de olhar para o gigantesco problema
Mas, segundo as estatísticas publicadas mensionadas e desqualificadas. A acumula- em que se converteu o sistema prisional
pelo DEPEN, existe um dado pior: o agra- ção de dificuldades gera mais dificuldades. brasileiro e, a partir do diagnóstico, pensar
vamento deste quadro devido à tendência Mas o mais importante dos factores é soluções numa lógica inovadora e desco-
de crescimentos da população prisional, imaterial e de natureza ideológica e política: lada dos paradigmas actuais. Se a política
desconhecendo-se sinais, com a mesma trata-se da política criminal, o modo como o criminal conduziu o sistema prisional a esta
densidade significativa, que a invertam, Estado concebe e organiza as suas respostas situação, o que deve ser mudado: a primeira
ou sequer, a parem. Quer isto dizer que penais. Enquanto ela estiver amarrada à ou a segunda?
o sistema prisional, já hoje insustentável, produção de presos, isto é, estiver focada A resposta a estas perguntas terá que ser
explodirá a curto ou médio prazo, com no encarceramento e encerrada num pensa- elaborada debaixo de um enorme esforço de
graves implicações sociais e de segurança, e mento baseado no senso comum e não em imaginação e de descentramento da lógica
degradando a imagem do Brasil no exterior critérios de ciência, o problema do sistema que presidiu à constituição do problema. Há
quanto à sua política criminal. prisional não se resolverá, nem que o Brasil que pensar diferente, entrando no tal outro
Um diagnóstico Como se chegou a aumentasse cinquenta vezes os meios finan- nível de pensamento. Para esse esforço de
este ponto? Como sempre sucede com um ceiros para o efeito. Aliás, uma desmesurada reconcetualização, o Brasil conta com três
problema muito complexo, a sua explica- afectação de meios às prisões produziria grandes vantagens:
ção é algo imprecisa e multi-factorial. Sem uma espiral perversa em que a melhoria de possui um enorme capital intelectual
exaustividade, faça-se um esforço, saindo condições e o aumento da oferta de vagas e massa crítica capaz de gerar conheci-
do senso comum. levaria aos tribunais à tentação de aumentar mento;
Alguns desses factores são tradicio- as decisões de emprisionamento. um pujante ciclo económico que gera
nalmente menos nítidos ou esquecidos, Não se trata, evidentemente, de sindicar recursos financeiros antes indisponíveis,
tornando os seus efeitos surpreendentes as decisões judiciais mas de as compreen- imprescindíveis para o lançamento de
para os desatentos, como por exemplo o der num contexto que lhes é desfavorável. novas politicas;
crescimento demográfico que no Brasil tem Exemplificando: quando um tribunal a ambição residente nas altas esferas do
sido importante. Mau grado alguma retra- condena alguém por furto qualificado, tem poder e da Administração de transformar
ção recente que torna imperfeita a pirâmide apenas duas opções (em Portugal elencam-se o sistema penitenciário.
Marta Saad
Presidente
com a inserção de medidas cautelares (art. 319, o autor for reincidente em crime doloso e gerar sanção mais grave do que a própria
CPP) distintas da prisão provisória, acabando, quando for crime praticado com violência condenação pela infração penal, ofendendo
finalmente, com a bipolaridade (prisão e liber- ou grave ameaça doméstica e familiar contra o princípio da homogeneidade (proporcio-
dade) do sistema cautelar até então existente. mulher, criança, adolescente, idoso, enfer- nalidade).
Com a novel reforma, advieram muitos mo ou pessoa com deficiência. Em outras Dentro de uma visão Constitucional, “a
pontos polêmicos, sendo que um merece es- palavras, primeiro é necessário verificar se medida cautelar a ser adotada deve ser propor-
pecial destaque, o qual pode ser assim descrito: há alguma das hipóteses do art. 313, depois, cional a eventual resultado favorável ao pedido
na sistemática adotada pela Lei n. 12.403/11, é num segundo momento, o magistrado passa do autor, não sendo admissível que a restrição à
possível ser decretada a prisão preventiva para a verificar a presença dos requisitos do art. liberdade, durante o curso do processo, seja mais
qualquer delito, tendo em vista o descum- 312 do mesmo Código. severa que a sanção que será aplicada caso o pe-
primento de medida cautelar anteriormente Este artigo, além dos requisitos básicos dido seja julgado procedente. A homogeneidade
imposta? (§ 4º, art. 282). estampados nas figuras do fumus comissi da medida é exatamente a proporcionalidade
Inicialmente há duas possíveis respostas, delicti (indícios de cometimento do delito) e que deve existir entre o que está sendo dado e o
quais sejam: a) independentemente do des- do periculum libertatis (perigo de liberdade), que será concedido. Exemplo: admite-se prisão
cumprimento de alguma medida cautelar, a trouxe outro requisito em seu parágrafo único, preventiva em um crime de furto simples? A
prisão preventiva somente poderá ser decreta- a saber: “A prisão preventiva também poderá ser resposta é negativa. Tal crime, primeiro, permite
da nas hipóteses taxativas do art. 313 do CPP; decretada em caso de descumprimento de qual- a suspensão condicional do processo. Segundo, se
b) havendo descumprimento das medidas quer das obrigações impostas por força de outras houver condenação, não haverá pena privativa
cautelares, independente da espécie do delito e medidas cautelares (art. 282, § 4o)”. de liberdade face à possibilidade de substitui-
das hipóteses do art. 313 do CPP, será possível Pela sistemática da novel reforma, não se ção da pena privativa de liberdade pela pena
decretar a prisão preventiva. pode negar que o parágrafo único do art. 312 restritiva de direitos. Nesse caso, não haveria
Diferentemente de Guilherme de Souza do CPP também esteja condicionado às hi- homogeneidade entre a prisão preventiva a ser
Nucci, que comunga do entendimento segun- póteses do art. 313, sendo impossível decretar decretada e eventual condenação a ser proferida.
do o qual “não sendo cumpridas as obrigações a prisão preventiva apenas pelo descumpri- O mal causado durante o curso do processo é
fixadas, nos termos estabelecidos no art. 282, mento das medidas cautelares anteriormente bem maior do que aquele que, possivelmente,
§ 4º, parte final, do CPP, pode-se decretar a impostas, se não houver o enquadramento do poderia ser infligido ao acusado quando de seu
prisão preventiva, como última opção”,(1) não fato em uma das hipóteses do art. 313 do CPP. término”.(4)
temos dúvida de que a primeira posição é a Como se vê, uma interpretação sistemática De forma concisa, concluímos com o
mais correta. demonstra que o art. 313 é pressuposto para seguinte quadro: o descumprimento de uma
Isto porque, pelo texto do art. 313, caput, aplicação da prisão preventiva, sendo que esta medida cautelar aplicada ao acusado, primário,
do CPP, infere-se que apenas quando presen- somente será lícita quando, nas hipóteses do da prática de furto simples (pena de 01 a 04
te alguma das hipóteses elencadas é que se art. 313, restar configurado os requisitos do anos), jamais pode culminar na prisão pre-
perscrutará da análise do art. 312 do mesmo art. 312, caput ou parágrafo único, do CPP. ventiva, ficando o Juiz incumbido de aplicar
Codex. Assim, denota-se que os requisitos Do contrário, havendo, por parte do acu- adequadamente as medidas cautelares, pois,
compreendidos no art. 312, quais sejam, fu- sado, o descumprimento da cautelar, sem que assim, evitará que continue a se adotar a cul-
mus comissi delicti e periculum libertatis, estão exista qualquer uma das hipóteses do art. 313 tura do cárcere, cuja solução sempre deságua
vinculados às hipóteses elencadas no art. 313, do CPP, restarão duas opões ao Juiz: 1 - aplicar na prisão de um inocente.
conquanto que, apenas após a presença de uma medida cautelar diversa; ou 2 - cumular outras
destas hipóteses, passa-se a verificar a presença medidas cautelares. NOTAS
dos dois requisitos necessários para aplicação Essa solução é mais acertada, não mere-
da preventiva. Hipótese é o conjunto de condi- cendo acolhimento a doutrina de Nucci, que (1) NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade, As
reformas processuais penais introduzidas pela Lei
ções que se toma como ponto de partida para entende caber a prisão preventiva indepen- 12.403, de 04 de maio de 2011. Editora RT, 2011,
desenvolver o raciocínio; já requisito significa dente das hipóteses do art. 313, quando aduz p. 69
“o que se requer ou que se exige a fim de que a que “se tal possibilidade for afastada, as medidas (2) PLÁCIDO, De. Vocabulário Jurídico. 28ª ed. Editora
coisa se mostre perfeita para que se obtenha o cautelares alternativas tornam-se ineficientes e Forense, 2009, p. 1203.
(3) NUCCI, op. cit., p. 69.
fim desejado”.(2) inúteis”.(3) (4) RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 9ª ed. Rio
Por essas duas premissas, podemos inferir Dois motivos autorizam pensamento di- de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 596.
o seguinte: as hipóteses do art. 313 do CPP verso do mencionado doutrinador. Primeiro
são premissas nucleares (pontos de partidas), porque o art. 312 (caput e parágrafo único) Clovis Alberto Volpe Filho
sem as quais o aplicador da lei está impossi- está condicionado às hipóteses do art. 313, Advogado criminalista.
bilitado de prosseguir com a análise do cabi- não se esgotando em si mesmo. Segundo, Mestre em Direito Constitucional.
mento da prisão preventiva. E os requisitos pois, com decretação da prisão preventiva Pós-Graduando em Ciências Criminais.
do art. 312 são condições auferidas após a sem que haja alguma das hipóteses taxativas, Professor universitário.
existência da hipótese para que somente fatalmente o acusado, ainda que condenado,
assim a prisão preventiva se torne possível será posto em liberdade em face da flagrante Diego da Mota Borges
no universo jurídico. incidência do art. 44 do Código Penal (ou Acadêmico de Direito pela Fafram-SP.
“Vendo que nem a Constituição da Monar- velmente punida com o perdimento do emprego, tar os meios de justa defesa”, não representaria
chia Portugueza, em suas disposições expressas e inhabilidade perpetua para qualquer outro, em isso adequada providência também para obstar
na Ordenação do Reino, nem mesmo a Lei da que haja exercicio de jusrisdicção. O Conde dos os atualíssimos e corriqueiros abusos acusa-
Reformação da Justiça de 1582, com todos os Arcos, do Conselho de sua Magestade, Ministro tórios relativos às provas em regime sigiloso?
outros Alvarás, Cartas Régias, e Decretos de Meus e Secretario de Estado dos Negocios do Reino do Se o quase bicentenário Decreto reconhecia,
augustos avós tem podido affirmar de um modo Brazil e Estrangeiros, o tenha assim entendido ainda, que “a prisão deve só servir para guardar
inalteravel, como é de Direito Natural, a segu- e faça executar com os despachos necessarios”. as pessoas, e nunca para adoecer e flagellar”, não
rança das pessoas; e Constando-Me que alguns Passados já quase dois séculos desde que o seria isso uma mensagem também adequada
Governadores, Juizes Criminaes e Magistrados, então Príncipe Regente D. Pedro I rubricou o aos magistrados e acusadores que insistem na
violando o Sagrado Deposito da Jurisdicção Decreto de 23 de maio de 1821, diploma que prisão preventiva de acusados pelo cometi-
que se lhes confiou, mandam prender por mero se propunha a dar “providências para garantia mento de crimes bagatelares no atual contexto
arbitrio, e antes de culpa formada, pretextando da liberdade individual”, as palavras acima de degenerescência – para dizer o mínimo – do
denuncias em segredo, suspeitas vehementes, e transcritas ostentam enorme atualidade. Não sistema prisional brasileiro? Por fim, passados
outros motivos horrorosos à humanidade para fosse a grafia e o estilo de outrora, poder-se-ia cerca de cento e oitenta e sete anos desde que o
ipunimente conservar em masmorras, vergados afirmar, inclusive, que as mesmas encontram Decreto de 1821 determinou a abolição, para
com o peso de ferros, homens que se congrega- inspiração no atual cenário jurídico-penal sempre, do uso de correntes e algemas, ainda
ram convidados por os bens, que lhes offerecera brasileiro. assim teve o Supremo Tribunal Federal que
a Instituição das Sociedades Civis, o primeiro Em realidade, o Decreto de 23 de maio de editar uma súmula vinculante para, hoje, pro-
dos quaes é sem duvida a segurança individual; 1821 possui a inescondível marca do Iluminis- fessar o óbvio: nosso sistema constitucional,
(...) por este Decreto Ordeno, que desde a sua mo. E à luz daquele contexto, é mais do que que prestigia incondicionalmente a dignidade
data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil compreensível a tentativa de coibir os então humana, não admite o uso de algemas sem
possa jamais ser presa sem ordem por escripto corriqueiros abusos interventivos estatais. O fundado receio de fuga ou de perigo à integri-
do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, que causa surpresa, pois, não é tanto o teor dade física do preso ou de terceiros.
excepto sómente o caso de flagrante delicto (...) daquele decreto – a denotar uma significativa É lamentável constatar que alguns dos pro-
Ordeno em segundo logar, que nenhum Juiz ou valorização do status jurídico não só da liber- blemas já verificados em 1821 ainda se man-
Magistrado Criminal possa expedir ordem de dade, mas também da dignidade da pessoa têm. O que não quer significar, em absoluto,
prisão sem preceder culpa formada por inqui- – quanto a sua atualidade. E o que assusta, que as coisas estejam estagnadas e não tenham
rição summaria de tres testemunhas, duas das causa desconforto e até indigna são as razões evoluído. Há diversas e importantes mudanças
quaes jurem contestes assim o facto, que em Lei que teimam em fazer da ideia de valorização da no cenário do Direito Penal. Brevitatis causae,
expressa seja declarado culposo, como a designa- liberdade e da dignidade humana um assunto chamamos a atenção especialmente para a per-
ção individual do culpado; escrevendo sempre contemporâneo, quando a mesma deveria ser cepção que o chamado Estado das prestações
sentença interlocutoria que o obrigues a prisão um patrimônio já adquirido, inquestionável, sociais acaba por inaugurar.
e livramento (...) Determino em terceiro logar ponto de não retorno dos escritos em Direito O Estado Social, sabe-se, chama para si uma
que, quando se acharem presos os que assim forem Penal e uma sua premissa tácita, isto é, de diversidade de tarefas. A norma jurídica assume
indicados criminosos se lhes faça immediata, e prescindível menção. conteúdos valorativos, transformando-se, na
successivamente o processo, que deve findar den- Não é esse, lamentavelmente, o cenário expressão de Cabral de Moncada, em uma
tro de 48 horas peremptorias, improrrogaveis, e nem do Direito Penal, nem do Processo Penal espécie de “programa de realizações”.(1) Fala-se
contadas do momento da prisão, principiando- atuais. É dizer, por outras palavras: semelhante em intervenção estatal no âmbito econômico
-se, sempre que possa ser, por a confrontação nível de desenvolvimento não foi ainda atin- e social. Passa-se a falar, com Alexy e Canaris,
dos réos com as testemunhas que os culparam, e gido. E o número de escritos, nesses espaços em “direito a prestações”(2) e em “imperativos
ficando alertas, e publicas todas as provas, que de juridicidade, que se propõem a sublinhar de tutela”.(3) Em última análise, a intervenção
houverem, para assim facilitar os meios de justa a necessidade de uma valorização da ideia de penal deixa de ser vista apenas como um ins-
defesa, que a ninguem se devem difficultar, ou liberdade individual e de dignidade humana só trumento restritivo de liberdade, passando a
tolher (...) Ordeno em quarto logar que, em caso é menor do que o número de decisões judiciais ser vista – e bem – como um instrumento que
nenhum possa alguem ser lançado em segredo, ou e de dispositivos de lei que menoscabam tais visa a assegurá-la.
masmorra estreita, ou infecta, pois que a prisão valores. Pode-se dizer, assim, sem qualquer Tudo isso é certo. E tudo isso representa
deve só servir para guardar as pessoas, e nunca receio, que o background se mantém ainda uma inequívoca evolução na maneira de en-
para adoecer e flagellar; ficando implicitamente muito semelhante. xergar as coisas do Direito Penal. O problema,
abolido para sempre o uso de correntes, algemas, Se o Decreto do Príncipe Regente falava, contudo, é o que a isso sucede.
grilhões, e outros quesquer ferros inventados para em tom claramente crítico, nas prisões arbitrá- A pretensa busca da liberdade a partir de
martyrisar homens ainda não julgados a soffrer rias, sem formação de culpa, em que diferirá um viés sociodefensivista passa a tudo legiti-
qualquer pena afflictiva por sentença final; isso das prisões preventivas, hoje decretadas mar: de incriminações desprovidas de um mí-
entendendo-se todavia que os Juizes, e Magis- em razão do “clamor público”, distantes das nimo de dignidade penal a prisões preventivas
trados Criminaes poderão conservar por algum hipóteses autorizadoras do art. 312 do Código decretadas em razão do “clamor público”. O
tempo, em casos gravissimos, incomunicaveis os de Processo Penal? Se o mesmo Decreto dava Ministério Público acusa e o Judiciário pro-
delinquentes, contanto que seja e casa arejadas providências para o termo do processo, não cessa “crimes” que causam menos prejuízo pela
e commodas, e nunca manietados, ou soffrendo estaria ele próximo da hoje doutrinariamente sua prática do que pelo seu processamento. Os
qualquer especie de tormento. Determino final- em voga “duração razoável do processo”? Se o presídios ficam superlotados, em condições de
mente que a contravenção, legalmente provada, Decreto de 1821 determinava a divulgação de assustadora, de gritante indignidade. Nem o
das disposições do presente Decreto, seja irremissi- todas as provas da acusação, “para assim facili- Judiciário, nem o Ministério Público e muito
Nascimento”, herói da atualidade. necessidade de valorização da liberdade e da direito privado. Coimbra: Almedina, 2003, p. 58 e ss.
dignidade humana, defendendo, para tal, as e, de forma correlata, p. 123.
E exatamente aqui as coisas mudam de
lugar. As outrora valorizadas ideias de liber- mesmas ideias que D. Pedro I, a seu tempo e
Stephan Doering Darcie
dade e de dignidade humana, aclamadas no à sua maneira, já endossava.
Mestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.
Iluminismo e em inequívoca ascensão jurídica, NOTAS Pós-Graduando em Direito Penal Econômico e
acabam por esmorecer. Possivelmente a sua Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal.
evolução tenha determinado, em interessante (1) CABRAL DE MONCADA, Luís S. Direito económico. Advogado criminalista.
adolescente, proteção e prevenção de seus O Depoimento sem Dano, tal qual previsto internacional indica que a oitiva das crianças
direitos, bem como a garantia ao respeito de no PL 156/09, aparenta estar inserido no e adolescentes em processo judicial deve ser
sua condição de pessoa em desenvolvimento.(1) procedimento ordinário adotado pela proposta oportunizada em estrita observância ao devido
A partir de 2006, o Governo Federal, de alteração processual penal, e existe a pos- processo legal de cada país signatário.
por meio da Secretaria Especial de Direitos sibilidade de que, em determinados casos, tal No Brasil, entretanto, ainda não se encon-
Humanos, passou a apoiar o projeto e a medida se dê mediante a produção antecipada tra em vigor nenhum procedimento específico
disseminar esta prática por outros Estados de provas, conforme disposição do art. 195 em seu Código de Processo Penal, ou até
da Federação. Junto ao Congresso Nacional do PL 156/09. O deferimento dessa forma de mesmo no ECA, que considere as condições
existe um Projeto de Lei (PL n. 7.524/06), oitiva ainda em fase de investigação fica por peculiares para a oitiva, em audiência, de
de autoria da então Deputada Federal Maria conta da observância, pelo juiz de garantias, crianças ou adolescentes vítimas de delitos.
do Rosário (PT-RS), que tem por objetivo lhe de comprovação de “risco de redução de capa- Para tentar fazer valer o tratado internacional,
conferir legitimidade como um mecanismo cidade de reprodução dos fatos pelo depoente”, o buscaram-se alternativas que impõem, a fór-
jurídico que garanta proteção à criança e ao que deverá ser decidido fundamentadamente ceps, a “sistemática” do Depoimento sem Dano
adolescente, tudo através de uma proposta que e com base nos elementos até então colhidos por intermédio do incidente de produção
almeja a alteração do ECA, do Código Penal na investigação preliminar. antecipada de provas, adotado como uma
e do Código de Processo Penal. Da mesma Em nossa sistemática jurídico-processual forma de subverter o sistema processual pe-
forma, o PL 156/09, que propõe a substituição atual, a aplicação do Depoimento sem Dano nal, além de ferir mortalmente o princípio da
integral do texto do Código de Processo Pe- ocorre, de forma travestida, exclusivamente legalidade e o direito fundamental do acusado
nal, também inova sob esse aspecto e destina, através de utilização das denominadas medidas ao procedimento.
dentro do Título que regulamenta a produção cautelares de produção antecipada de provas, Conforme bem observam Morais da Rosa
probatória no processo, uma Seção especial as quais, nesses casos específicos, de cautelar e Silveira Filho, “a legitimidade na imposição
relativa à inquirição de crianças e adolescentes. não têm nada. Em geral, tais medidas podem de atos cogentes, decorrentes do poder de império,
O projeto reformista prevê – para salva- ser empregadas sempre que haja fundado – e com consequências no âmbito dos jurisdiciona-
guardar a integridade física, psíquica e emo- fundamentado – risco de perecimento e perda dos e, no caso do Processo Penal, dos acusados,
cional do depoente (criança ou adolescente irreparável de elementos colhidos na investi- precisa atender aos princípios e regras previstos
vítima de delitos) e para evitar sua revitimi- gação, e tal artifício está sendo utilizado (e ba- no ordenamento jurídico de forma taxativa”.(3)
zação, ocasionada por sucessivas inquirições nalizado) nos processos penais que envolvem Nesta mesma esteira de raciocínio, Scarance
sobre o mesmo fato, nos âmbitos penal, cível vítimas crianças ou adolescentes, de regra, ao Fernandes esclarece que o estabelecimento
e administrativo – a realização de um proce- arrepio da lei. Um incidente desta natureza só de incidentes que ocasionem pequenos ou
dimento especial de inquirição para crianças pode ser admitido em casos verdadeiramente grandes desvios na rota preestabelecida nos
dades mercantis mais remotas da humanidade. grupos mais suscetíveis a tornarem-se vítimas: O UNODC(1) publicou recentemente in-
Inicialmente, estava conexo a guerras, nas as mulheres e as crianças. formações relevantes inseridas nesta temática,
quais povos vencidos tornavam-se escravos e Hodiernamente, de maneira mais orga- que oportunamente são trazidas à baila: a)
transformavam-se em peças comercializáveis. nizada e velada, sendo praticado através de é uma das formas de tráfico de pessoas que
Posteriormente, veio relacionado à época da novos métodos por organizações criminosas, segue o padrão semelhante a outras moda-
escravidão negra. o tráfico de seres humanos revela-se como lidades de tráfico de seres humanos, como,
No entanto, a história não é algo linear. O uma das formas de escravidão contemporânea, por exemplo, o aproveitamento de grupos
tráfico de pessoas assumiu mutações conforme possuindo as seguintes finalidades: tráfico de vulneráveis, mas, intrinsecamente, contém al-
o contexto histórico do país em que existiu, pessoas com a finalidade de exploração sexual gumas diferenças significativas; b) alguns dos
apresentando vários ares, estando presente e o seu consequente comércio; para fins de sujeitos ativos do crime e o modus operandi
em maior ou menor grau, de acordo com a adoções ilegais; para fins de exploração de do tráfico de órgãos são distintos das outras
sociedade ou época, subsistindo com nova trabalho escravo; e para fins de extração de modalidades de tráfico de seres humanos, na
roupagem até os dias atuais. órgãos humanos. medida em que exigem médicos, a compati-
A submissão ou exploração de outrem com A Declaração de Istambul, que versa sobre bilidade do receptor, o tempo de duração da
o intuito de obter vantagem econômica ou Tráfico de Órgãos e Turismo de Transplante, exploração e da posterior liberação da vítima,
patrimonial é, ainda, presente em larga escala define o tráfico de seres humanos com o ob- se houver; c) os órgãos mais procurados
atualmente. As condutas de exploração advêm jetivo de extração de órgãos, tecidos e células no mercado negro do tráfico são: os rins,
da vulnerabilidade, das altíssimas taxas de como: o recrutamento, transporte, transferência, seguidos pelo fígado, com a finalidade de
desemprego, da miséria, da discriminação, da refúgio ou recepção de pessoas vivas ou mortas dos transplantes. Estas práticas têm aumentado
feminização da pobreza e dos conflitos políti- respectivos órgãos por intermédio de ameaça ou exponencialmente com a crescente demanda
cos e militares. Tal vulneração social, presente utilização da força ou outra forma de coação, por transplantes de doador vivo, em razão
especialmente nos países em desenvolvimento, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de de um aumento significativo entre as taxas
causa assimetrias endêmicas entre as nações uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou de pacientes com doença renal crônica e de
desenvolvidas e as desprovidas, provocando recepção por terceiros de pagamentos ou benefícios doação de órgãos de doadores falecidos; d)
problemas de imigração, explorações laboral no sentido de conseguir a transferência de controle 46% dos rins transplantados e 14,6% dos
e sexual, incluindo o tráfico de seres humanos sobre o potencial doador, para fins de exploração fígados vêm de doadores vivos; e) estima-se
ACOmPANHe O IBCCRIM
consuetudinário, o consentimento presumido tante legal, se justificada por iminente perigo de específicas do Direito Penal médico, consti-
é uma categoria jurídico-penal autônoma que vida”. De acordo com o Conselho Federal de tuindo-se em categoria dogmática útil e de
está situada entre o consentimento real e o Medicina (Resolução 1.451/95, art. 1º, §§ 1º aplicação prática no Direito Penal brasileiro.
estado de necessidade (justificante),(9) “figuras e 2º, respectivamente), define-se por urgência
com que mantém importantes momentos de co- “a ocorrência imprevista de agravo à saúde com NOTAS
municabilidade, mas com que, de modo algum, ou sem risco potencial de vida, cujo portador
se confunde ou identifica”.(10) necessita de assistência médica imediata”; e por (1) Cf. ESER. Medizin und Strafrecht: Eine schutzguto-
O consentimento presumido encontra emergência “a constatação médica de condições rientierte Problemübersicht, ZStW 97 (1985), p. 1,
nota 1, com referências a respeito.
nas intervenções médicas e cirúrgicas um dos de agravo à saúde que impliquem em risco imi- (2) Em Portugal, FIGUEIREDO DIAS/SINDE MONTEIRO.
campos privilegiados de aplicação, não sendo nente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, Responsabilidade médica em Portugal (1984);
arriscado dizer que a “trajetória e a evolução portanto, tratamento médico”. Aliás, no Código BRITO. Responsabilidade penal dos médicos: análise
do instituto estão intimamente associadas à ex- de Ética Médica (Resolução 1.931/09, art. 7º), dos principais tipos incriminadores, RPCC 12 (2002);
periência jurídico-penal dos tratamentos médico- é vedado ao médico “deixar de atender em FIGUEIREDO DIAS. Na era da tecnologia genética:
que caminhos para o direito penal médico?, RPCC
-cirúrgicos”.(11) Embora sejam consideradas setores de urgência e emergência, quando for de 14 (2004); COSTA ANDRADE. Direito penal médico:
tradicionalmente como exercício regular de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de SIDA: testes arbitrários, confidencialidade e segredo
direito (art. 23, III, do CP), as intervenções pacientes, mesmo respaldado por decisão majori- (2008). Na Espanha, ROMEO CASABONA. El médico
médico-cirúrgicas, para serem plenamente tária da categoria”. Vale frisar, ainda, que a Lei y el derecho penal. La actividad curativa (licitud y
legítimas, devem estar em consonância com os 9.656/98 também diferencia conceitualmente responsabilidad penal) (1981); MIR PUIG (ed.).
Avances de la medicina y derecho penal (1988).
interesses dos pacientes, traduzidos a partir do as situações de emergência e urgência médicas. (3) LACAVA FILHO. Responsabilidade penal do médico
consentimento(12) (real ou presumido). De acordo com esta lei, atendimentos de emer- (2008); COUTINHO. Responsabilidade penal do
Assim, ao lado do consentimento real, gência são “os que implicarem risco imediato de médico (2008); SPORLEDER DE SOUZA. Direito
o chamado consentimento presumido tem vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, ca- penal médico (2009).
(4) Sobre a natureza jurídico-penal do consentimento
um papel dogmático importante como fun- racterizado em declaração do médico assistente”; (real), SANTOS/ALMEIDA NETO/SPORLEDER DE
damento complementar de justificação das e atendimentos de urgência são “os resultantes SOUZA. Capacidade etária mínima para consentir no
intervenções medicamente indicadas em casos de acidentes pessoais ou de complicações no pro- direito penal médico, RBCCRIM 88 (2011), p. 25-27.
de urgência quando o paciente estiver (mo- cesso gestacional” (art. 35-C). Entretanto, mais (5) COSTA ANDRADE. Consentimento em direito penal
mentaneamente) inconsciente, portanto, sem recentemente e “devido ao grande número de médico – O consentimento presumido, RPCC 14
(2004), p. 118.
condições de manifestar o consentimento real, julgamentos e dúvidas que esta ambivalência de (6) Entre os poucos autores que tratam do consentimento
havendo um perigo sério e iminente para a sua terminologia suscita no meio médico e no sistema presumido, v. PIERANGELI. O consentimento do
vida ou saúde, se o atendimento médico não de saúde, optou-se por não mais fazer este tipo ofendido na teoria do delito (2001), p. 161-164;
Princípios básicos de direito penal (2001), p. 215, op. cit., p. 25. obter para esse alargamento o consentimento
sendo que este é contra a admissão da figura do (13) MINISTÉRIO DA SAÚDE. Regulação médica das [real] do paciente”, informando, aliás, que o Tribunal
consentimento presumido no direito brasileiro. urgências. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, Federal alemão já decidiu sobre isso em dois casos
(7) MEZGER, apud ROXIN. Derecho penal. Parte general. 2006, p. 147-148. (BGHSt 11 e 45).
Madrid: Civitas, 1997, p. 766. (14) FRISCH (Consentimento e consentimento presumido
(8) ROXIN, op. cit., p. 769; COSTA ANDRADE. Consen- nas intervenções médico-cirúrgicas, RPCC 14 2004,
timento em direito penal médico – O consentimento p. 110) refere que neste contexto ainda se inserem
Paulo Vinicius Sporleder De Souza
presumido, RPCC 14 (2004), p. 136. os casos de “alargamento da intervenção médico- Professor titular de Direito Penal da PUC-RS.
(9) ROXIN, op. cit., p.768, 765; COSTA ANDRADE, op. -cirúrgica”, nos quais o paciente está inconsciente Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela
cit., p. 117 e 133. sob o efeito da anestesia e durante a intervenção Universidade de Coimbra/Portugal.
brasileiro, aprovada em 1984, adotou franca- art. 61, II, e, do Código Penal, sendo o erro o querido e o realizado”(2) pelo agente. No caso
mente a doutrina finalista da ação em muitos quanto à pessoa irrelevante neste caso. O que de atingir também a pessoa inicialmente visada
de seus dispositivos. Por essa teoria, o injusto não se esclarece com facilidade, porém, é a que (aberratio ictus plurilesiva ou com resultado
penal tem uma conotação pessoal, isto é, leva título deverá responder o autor pelo crime: dolo duplo), o Código dispõe, corretamente, que o
em conta os elementos pessoais relativos ao ou culpa? É dizer: se o agente acerta pessoa agente responderá pelo concurso formal (art. 70)
autor do crime: o desvalor da ação do agente é diversa da que originalmente queria atingir, entre ambos os homicídios, sendo, a nosso ver, o
pessoal e manifesta-se pelo dolo de tipo e pela responderá pelas circunstâncias do homicídio primeiro deles culposo, e o segundo, doloso. Tanto
culpa; e ao desvalor da ação corresponde sempre que inicialmente queria praticar como se fosse é assim que, caso atinja exclusivamente a vítima
um desvalor do resultado (lesão ou perigo de este crime um homicídio doloso, com todas as que queria lesionar, o agente jamais responderá
lesão ao bem jurídico). A adoção dessa postura circunstâncias abarcadas pelo dolo inicial? Ou, pela tentativa de homicídio dos transeuntes que
manifesta-se, por exemplo, pela disciplina do ao contrário, deverá responder por homicídio circulavam em torno dela, mas nada impede
erro de tipo (art. 20), do erro de proibição culposo, já que, por erro na execução do crime, que, ao matar pessoa diferente da pretendida
(art. 21) e das excludentes de culpabilidade mata pessoa que não queria nem contra quem (por culpa, repita-se), responda também, em
(art. 22), que situam corretamente o dolo no assumiu o risco de tirar a vida? A nosso ver, de concurso formal de crimes, pelo homicídio
tipo, transferindo a questão da consciência forma consentânea com a nova Parte Geral do culposo da vítima equivocada e o homicídio
da ilicitude à culpabilidade, que passa a ser Código Penal, que agasalha a doutrina finalista doloso consumado ou tentado da vítima inicial.
puramente normativa.(1) Todavia, uma análise da ação, o erro na execução do crime que leva Para os autores que pensam diversamente, a
mais apurada das normas que compõem a o autor a atingir bem jurídico pertencente a punição a título de dolo se justificaria porque,
Parte Geral do nosso diploma punitivo deixa pessoa diferente da que queria inicialmente como salientam alguns, “não é o momento psi-
entrever algumas dúvidas a respeito da adoção lesionar ou matar deve ser tratado como um cológico da ação que vai ser viciado, mas a fase
da teoria finalista em determinadas situações, erro de tipo (art. 20), que acarreta a exclusão do executiva que não vai se corresponder exatamente
dando margem, no mínimo, a uma interessante dolo, mas permite a punição a título de culpa, com o querido pelo autor”.(3) Tal entendimento
(porém, maltratada e muitas vezes ignorada) se prevista em lei. E o fato é que o art. 20, § 3º, não tem razão de ser após a reforma de 1984,
discussão a respeito da possível persistência de ao qual remete expressamente o art. 73, dispõe pois a acolhida de uma concepção pessoal do
vestígios de responsabilidade penal objetiva no que o erro quanto à pessoa contra a qual o crime injusto, conforme salientado anteriormente,
Código Penal brasileiro, mesmo após a reforma é cometido não isenta o autor de pena, o que, leva à adoção de um desvalor da ação que abar-
de 1984. A norma em questão concerne à disci- desde logo, parece significar que sua punição ca mais do que o elemento subjetivo do tipo,
plina legal do erro na execução (o denominado poderá ocorrer tanto por dolo quanto por culpa. estendendo-se, também, a elementos do tipo
aberratio ictus). De acordo com o art. 73 do A punição a título de dolo aparece como a mais objetivo (p.ex., modo de execução).(4) Assim,
Código Penal, “quando, por acidente ou erro correta quando, intencionalmente, o agente o desvalor da ação (dolo ou culpa) refere-se,
no uso dos meios de execução, o agente, ao invés atinge pessoa com a consciência e vontade de também, à forma de praticar o delito, que é
de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge matá-la, porém descobre, a posteriori, não se desvirtuada em relação à concepção inicial do
pessoa diversa, responde como se tivesse praticado tratar da pessoa que a princípio queria atingir; autor no caso de aberratio ictus.
o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto contudo, aqui não se trata de erro na execução, Idêntico raciocínio deve ser aplicado às hipó-
no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser mas exclusivamente de erro quanto à pessoa. Já teses de resultado diverso do pretendido (aber-
atingida também a pessoa que o agente pretendia a punição a título de culpa se afigura como a ratio delicti), que são aquelas situações em que
ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”. mais correta nas hipóteses de erro na execução, o agente lesiona bem jurídico diferente do que
Pois bem, da leitura do artigo, pode-se deduzir, se não se quer admitir um claro vestígio da queria inicialmente atingir. De acordo com o
em um primeiro momento, que o agente que presença de responsabilidade penal puramente art. 74 do Código Penal, “fora dos casos do artigo
lesiona pessoa diferente daquela que pretendia objetiva em nosso Código Penal, pois o agente, anterior [isto é, de ‘aberratio ictus’], quando, por
atingir deve responder exatamente pelo crime desde o princípio, não quer, nem assume o risco acidente ou erro na execução do crime, sobrevém
que praticaria inicialmente, com todas as suas de matar pessoa diversa de sua vítima, errando resultado diverso do pretendido, o agente responde
circunstâncias. Assim, p.ex., reitera a doutrina, na forma como executa a ação criminosa e por culpa, se o fato é previsto como crime culposo;
em diversas ocasiões, que, caso o agente preten- atingindo, por imprudência, negligência ou se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se
da atingir ascendente e acaba matando pessoa imperícia, alguém a quem não queria lesionar. a regra do art. 70 deste Código”. Aqui, ao con-
desconhecida, deverá responder pelo crime de Como bem destaca Alberto Silva Franco, em trário do que se discute no art. 73, o legislador
ligação ordenando “toque de recolher”. Assim, que tiveram parentes próximos mortos por operandi empregado, que envolve, inevitavel-
Mateus e seu amigo Ricardo foram dispensa- agentes do Estado ou por grupos de extermínio mente, um “toque de recolher” prévio, a escolha
dos das aulas sem qualquer explicação, tendo ligados a esses agentes. Sua criação deu-se pela de “alvos” (pessoas com antecedentes criminais
se dirigido a uma pizzaria próxima. Lá, os mobilização das mães de jovens mortos pela ou com tatuagens) e o ataque de executores
dois foram alvejados e mortos por indivíduos polícia em maio de 2006, e sua luta consiste no encapuzados, normalmente sobre motocicletas.
encapuzados sobre motocicletas: milicianos combate à letalidade policial e à conivência das Em todos esses casos, assim que ocorreram os
ligados à Polícia Militar. A morte de Mateus é autoridades do sistema de justiça.(3) assassinatos, viaturas oficiais da PM surgiram
contada por Vera, sua mãe, na publicação Do A morte de Mateus, conforme dados do imediatamente, fazendo desaparecerem os ves-
luto à luta, produzida de forma independente Conselho Regional de Medicina de São Paulo, tígios da execução e alterando a cena do crime,
pelas Mães de Maio da Democracia Brasileira insere-se nas 493 mortes por arma de fogo que sob o pretexto de prestar socorro às vítimas.(8)
por ocasião dos cinco anos dos massacres per- ocorreram no Estado entre 12 e 20 de maio de O dado mais alarmante trazido pelo re-
petrados por policiais e milicianos em maio de 2006.(4) De todas essas mortes, há denúncias latório, contudo, aponta para o fato de que
2006 no Estado de São Paulo.(1) da participação de agentes policiais em, pelo as instituições pretensamente democráticas
Os “crimes de maio” foram assassinatos menos, 388 casos, conforme dados divulgados responsáveis pelo controle externo da atividade
e desaparecimentos forçados praticados por pelo Observatório de Violência Policial.(5) A policial e pela salvaguarda dos direitos huma-
grupos ligados à polícia como resposta aos publicação da lavra das Mães de Maio, de certa nos são lenientes, quando não coniventes, com
ataques atribuídos à facção Primeiro Comando forma, tenta impedir que esses assassinatos se o massacre das classes indesejadas.
da Capital no Estado de São Paulo, ocorridos tornem mera estatística esquecida. Todos os inquéritos relativos aos casos
em 2006. Os atentados atribuídos à facção in- O relatório “São Paulo sob achaque”, ela- em que o relatório constatou a presença da
cluíram disparos de arma de fogo e arremesso borado pela Clínica Internacional de Direitos atividade de grupos de extermínio ocorri-
de explosivos contra estações policiais, agên- Humanos da Universidade de Harvard em dos em maio de 2006 foram arquivados, a
cias bancárias e edifícios públicos, queima de parceria com a ONG Justiça Global, identifi- pedido do Ministério Público, sem maiores
ônibus e assassinatos de agentes de segurança.(2) cou, por meio de entrevistas com autoridades investigações. O relatório de Harvard aponta
Em represália, grupos de extermínio ligados à e análise de inquéritos de maio de 2006, um o Judiciário, por ter concordado com todos os
polícia promoveram a maior chacina de que se universo de 122 mortes em relação às quais há arquivamentos, e o Ministério Público como
tem notícia na história brasileira, consistente indícios da participação de agentes policiais, autores de falhas cruciais. Sobre o papel do
na execução sumária de centenas de pessoas em concentrados na capital paulista e na baixada Ministério Público, consta do relatório: “O
zonas periféricas, sendo que a grande maioria santista.(6) O relatório chegou à conclusão de Ministério Público Estadual também falhou em:
das vítimas sequer possuía qualquer relação haver provas concretas da ação de grupos de 1) não investigar os Crimes de Maio de forma
com a facção responsável pelos ataques. extermínio ligados à polícia em 71 desses casos. sistemática e rigorosa, 2) não exigir melhores
relatório é referência, principalmente, a um Os crimes de maio e a postura das auto- e dos arquivamentos que escancararam a real
ofício assinado por dezenas de promotores ridades perante a grave violação de direitos funcionalidade do sistema de justiça criminal.
atuantes na área criminal, enviado, em 25 de humanos afloram como uma prova inequívoca
maio de 2006, ao Comando Geral da PM. de que ainda não existe democracia no Bra- NOTAS
Neste ofício, os subscritores reconhecem “a sil, ao menos do ponto de vista dos direitos
eficiência da resposta da Polícia Militar, que civis, estando os próprios órgãos responsáveis (1) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do
luto à luta. Publicação independente. São Paulo:
se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pela defesa dos direitos humanos embebidos 2011, p. 28.
pública violada, defendendo intransigentemente das práticas institucionais típicas do estado (2) ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade
a população de nosso Estado”. Acrescentam que ditatorial. A esta democracia meramente organizada nas prisões e os ataques do PCC. In:
estão certos de que “eventuais excessos praticados nominal, que se instituiu sem a promoção de Estudos Avançados, n. 61, 2007, p. 8-9.
individualmente serão objeto de apuração devida (3) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do
uma cultura de defesa dos direitos individuais, luto à luta. Publicação independente. São Paulo:
pelos órgãos responsáveis”.(10) O relatório conclui Caldeira dá o nome de “democracia disjunti- 2011, p. 12-13.
que atos como esse ofício parecem “chancelar va”. Segundo a autora, a democracia brasileira (4) Idem, p. 32.
a ação violadora do Estado”,(11) na medida em é disjuntiva porque, “embora o Brasil seja uma (5) Idem, p. 36.
que os subscritores recusam-se, de antemão, democracia política e embora os direitos sociais (6) INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS CLINIC E JUSTIÇA
GLOBAL. São Paulo sob achaque: corrupção, crime
a aceitar a possibilidade de um problema es- sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis organizado e violência institucional em maio de 2006.
trutural, que extrapole os “excessos praticados da cidadania são continuamente violados”.(13). 2011, p. 5.
individualmente”, no que foi a maior chacina O Brasil é formalmente uma democracia, (7) Idem, p. 100.
de que se tem notícia na história do Brasil. mas habitada por instituições ditatoriais, (8) Idem, p. 102.
Com base neste contexto, as Mães de Maio (9) Idem, p. 181.
com valores antidemocráticos. Essa ideia de (10) Idem, p. 239.
– enxergando que o assassinato de seus filhos democracia incompleta parece ter sido captada (11) Idem, p. 181.
desarmados foi entendido como ato de hero- com excelência por Débora, uma das Mães de (12) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do
ísmo pelos órgãos responsáveis pela persecução Maio, que teve seu filho Edson assassinado no luto à luta. Publicação independente. São Paulo:
penal – têm como objetivo imediato o desar- massacre de maio de 2006. Em palestra pro- 2011, p. 21.
(13) CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros:
quivamento e a federalização dos crimes de ferida em maio 2011 na Defensoria Pública crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª ed.
maio.(12) Com efeito, o relatório reconheceu, do Estado de São Paulo, Débora questionou, São Paulo: Edusp, 2008, p. 343.
com base em dados documentados, a postura enquanto sustentava estarmos sob um Estado
tendenciosa dos órgãos estaduais. Tendo havi- fascistóide, e referindo-se aos desaparecimen- Bruno Shimizu
do grave violação de direitos humanos, o art. tos forçados de maio de 2006: “Se estão ‘escavo- Defensor Público do Estado de São Paulo.
109, § 5º, da Constituição Federal, acrescenta- cando’ os mortos da ditadura, porque não podem Mestre em Criminologia pela USP.
qualquer circunstância, prova suficiente de tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento
Considerando que: (i) a Lei n. 9.430/96, materialidade delituosa, consequentemente do tributo pendente de decisão definitiva do
em seu artigo 83, e (ii) a Súmula Vinculante apta à instauração de um processo penal. processo administrativo: falta de justa causa
n. 24 – oriunda do Habeas Corpus (HC) para a ação penal, suspenso, porém, o curso da
81.611/DF – alteraram significativamente o II. Breve histórico prescrição enquanto obstada a sua propositura
panorama persecutório penal das imputações O artigo 83, da Lei n. 9.430/96, ao pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora
referentes aos delitos previstos junto à Lei n. exigir uma determinada vinculação entre a não condicionada a denúncia à representação
8.137/90; que (iii) o artigo 158, do Código esfera administrativa de análise tributária da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta
de Processo Penal (CPP), exige o exame de e a persecução penal de possível ilícito de justa causa para a ação penal pela prática do
corpo de delito para as infrações que deixam mesma natureza, gerou inconformidade no crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que
vestígios; que, (iv) no caso da infração tri- seio do Ministério Público. Referido órgão é material ou de resultado -, enquanto não haja
butária, tal vestígio é facilmente apreensível; propôs contra tal comando normativo uma decisão definitiva do processo administrativo de
e, por fim, considerando (v) a equivocada ADIN que, julgada improcedente pelo STF, lançamento, quer se considere o lançamento
valoração que as agências do mundo jurídico deixou claro que o esgotamento da esfera definitivo uma condição objetiva de punibi-
(Ministério Público e Poder Judiciário) têm administrativa se fazia necessário para início lidade ou um elemento normativo de tipo.(...)
dado à constituição do crédito tributário em de um processo criminal. Em verdade, estava 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do
esfera administrativa, o presente texto restará a decidir matéria que, na mesma data, havia contribuinte, o processo administrativo suspende
limitado ao debate sobre a possibilidade de sido enfrentada pelo HC 81.611/DF, assim o curso da prescrição da ação penal por crime
se considerar o lançamento tributário, em ementado: “Crime material contra a ordem contra a ordem tributária que dependa do lan-
Antes da vitória dos rebeldes na Líbia, (EUA, Grã-Bretanha e França), que, em feverei- vez, tornaram realidade a doutrina, até então
éramos testemunhas de um espetáculo único ro – ativamente apoiados pela Alemanha – com existente somente no papel, da responsabilidade
de duplicidade diplomática, característico de a histórica Resolução n.º 1970 do Conselho da proteção, agora – em face do lento avanço
tempos anteriores ao Direito Penal interna- de Segurança, remeteram a situação da Líbia dos rebeldes líbios sobre Trípoli – levam adian-
cional. Os mesmos membros permanentes do ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e, mais te negociações aparentemente secretas com
Conselho de Segurança das Nações Unidas tarde, com a Resolução n.º 1973, pela primeira o ditador. A ele tem sido possibilitada uma
saída decorosa e atribuída imunidade frente à e o processo perante o TPI seria inadmissível. líbias. O bloqueio, nesse caso, vinha muito
persecução penal. Os fatos representativos de As negociações de imunidade também são, mais de membros permanentes do Conselho
tais negociações fragilizam a autoridade do TPI em princípio, problemáticas. Se elas preva- de Segurança, principalmente China e Rússia.
– inclusive a de toda justiça penal internacional lecerem, os poderosos criminosos de Estado Em todo caso, o tratamento diverso confe-
– e converte este Tribunal Internacional em serão privilegiados em face de autores de nível rido aos casos da Líbia e da Síria mostra que
um joguete a serviço dos interesses das grandes hierárquico menor, contra os quais, atualmente, não se pode construir um sólido sistema de
potências (ocidentais). Assim, parecem ter razão o processo segue regularmente perante o TPI. justiça penal internacional com base nos frágeis
aqueles que, desde sempre, consideravam a Também seriam privilegiados aqueles que em- fundamentos do Capítulo VII das Resoluções
clara separação normativa entre direito (TPI) pregaram todo o aparato de poder estatal para do Conselho de Segurança. O TPI representa
e política (Conselho de Segurança da ONU) cometer crimes internacionais, assegurando-se, um avanço em relação aos Tribunais ad hoc da
tão só uma simples elucubração. com isso, o apoio dos membros permanentes ONU, tal como o Tribunal para a Iugoslávia,
A remissão por parte do Conselho de do Conselho de Segurança. porque se apoia em um tratado e, por isso, é,
Segurança é uma das três vias para ativar a Se voltarmos os olhos à Síria, este privilégio em princípio, independente do Conselho de
jurisdição do TPI. Além disso, esta ativação parece confirmar-se de maneira cínica. Isso Segurança da ONU. No entanto, sua prática
pode ocorrer por meio da remissão de um porque, se mensurarmos a situação desse país mais recente é questionável em vista da possível
Estado-Parte ou por investigações realizadas de a partir do precedente obtido com as resolu- manipulação política da atividade do TPI.
ofício. É comum a estes mecanismos que todas ções relativas à Líbia, veremos que, há tempo, Já no caso de remissão dos crimes cometi-
as decisões sucessivas sobre o mesmo assunto são necessárias, em relação à Síria, resoluções dos na região de crise de Darfur (Sudão) e da
caiam, em princípio, dentro da competência do semelhantes às da Líbia. O regime sírio pro- consequente ordem de prisão decretada contra
TPI. Dessa forma, incumbia exclusivamente ao cede com brutalidade ainda maior contra a o Presidente do Sudão, Baschir, mostrou-se
Ministério Público pedir uma ordem de prisão oposição e tem causado, em um período de quão pequeno é o valor de uma remissão do
contra Gaddafi; e foi uma Câmara, composta tempo consideravelmente menor, um número Conselho de Segurança, se este, no entanto,
por três julgadores, que decretou essa ordem manifestamente maior de vítimas civis do que o não cuida do seu cumprimento, isto é, da
de prisão. Só excepcionalmente, o Conselho de regime de Gaddafi. Além disso, a oposição Líbia efetivação da prisão e da respectiva entrega dos
Segurança da ONU pode provocar a suspensão organizou-se militarmente em um período de suspeitos. Embora Baschir tenha sofrido uma
de um processo perante o TPI e, com isso, fa- tempo relativamente curto e, o mais tardar restrição, por exemplo, em sua possibilidade de
zer respeitar um possível pacto de imunidade. com a intervenção militar da OTAN, passou viajar, alguns Estados-Partes do Estatuto do TPI
Porém, tal suspensão está limitada temporal- da situação originária consistente na atuação de (africanos) permitem o seu ingresso no país sem
mente ao período de um ano e, em face do seu Gaddafi sob o direito dos tempos de paz a um ser molestado. Sua entrega a Haia, portanto,
vencimento, deve ser novamente solicitada. Na conflito segundo as regras do direito interna- parece estar muito distante.
essência, ela pressupõe uma decisão do Conse- cional de guerra, que permite a prática do ho- Em vista disso, não é de estranhar que um
lho de Segurança, baseada no Capítulo VII da micídio de combatentes (de facto) ou de pessoas número crescente de especialistas exija um
Carta das Nações Unidas, ou seja, a suspensão que participam ativamente das hostilidades, maior distanciamento entre o TPI e o Conselho
deve servir também à proteção da paz mundial inclusive de forças da OTAN. Portanto, tendo de Segurança. A perda de autoridade do TPI
e da segurança internacional. por base o precedente da Líbia, são obrigatórias adquire, sem dúvida, uma nova qualidade com
Porém, como se pode fundamentar de ma- resoluções semelhantes em relação à Síria. No essa tentativa do Conselho de Segurança de blo-
neira convincente a suspensão da persecução entanto, em vez disso, há alguns dias, somente quear faticamente a remissão da Líbia, circuns-
penal contra Gaddafi pelo mesmo órgão e se chegou a um acordo sobre uma declaração tância que deve ser combatida de forma decisiva
com os mesmos argumentos, com base nos presidencial que se apresentava como compro- pelos Estados que valorizam a credibilidade da
quais antes havia sido autorizada a persecução misso político. Nela, condenavaam-se, por um justiça penal internacional permanente. Do
penal? E, aliás, a suspensão do processo contra lado, as violações dos direitos humanos e, por contrário, é de temer-se que o projeto do TPI
Gaddafi deve ser anualmente prorrogada com outro, os ataques aos prédios governamentais, sofra novos prejuízos e que nós experimentemos
base nesses mesmos argumentos? A experiência afirmava-se a integridade territorial do país e um renascimento da persecução penal nacional
anterior com tal tipo de decisão permite supor destacava-se que a “crise” atual somente poderia por estados terceiros com base na jurisdição
que dificilmente se poderia encontrar uma ser solucionada “sob condução síria”. universal, que se esperava que fosse afastada
maioria entre os Estados-Partes do Estatuto do Apesar de tudo, tal declaração não tem justamente com a criação do TPI.
TPI. A admissibilidade da persecução penal por nenhum tipo de efeito coercitivo. Por isso, não
parte de um novo governo líbio, também em surpreende que o regime de Assad não tenha Kai Ambos
discussão, ao contrário, não tem nada a ver com se mostrado afetado por ela. Evidentemente, a Catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal,
um pacto de imunidade, pois, com isso, somen- inatividade do Conselho de Segurança, no caso Direito Comparado e Direito Penal Internacional na
te se transferiria a persecução penal – no sentido da Síria, não permite reprovar os Estados que Georg-August-Universität Göttingen
da complementariedade – à justiça nacional, eram a força impulsionadora das resoluções Juiz do Tribunal Estadual (Landgericht) de Göttingen
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