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FACULDADE DE LETRAS

UNIVERSIDADE DO PORTO

Helder Renato Lôro Nunes

2º Ciclo de Estudos em Filosofia Contemporânea

Devir e Ser na Origem do Pensamento Filosófico

2013

Orientador: Prof. Doutor Paulo Jorge Delgado Pereira Tunhas

Classificação: Ciclo de estudos:

Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

Versão definitiva
Helder Renato Lôro Nunes

Devir e Ser na Origem do Pensamento


Filosófico

FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO


2013
Dissertação de Mestrado em Filosofia
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Índice
Resumo…………………………………………………………………. 4

Introdução…………………………………………………………….. 5

1 ª P a r t e – A n t e s d e Ta l e s :

Capítulo I – Influência de Homero e Hesíodo na religião e

mitologia grega………………………………………………………. 8

Capítulo II – Na polis……………………………………………………. 15

C a p í t u l o I I I – O To d o e o K o s m o s … … … … … … … … … … … … … . . . 2 3

2ª Parte - Devir e Ser

Capítulo I – Devir…………………………………………………… 28

Physis……………………………………………………………………...... 28

1 - A rc h é e S t o i c h e i o n … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … . . 4 2

1.1 – Água……………………………………………………………. 42

1 . 2 – A p e i ro n … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … 4 3

1.3 – Ar………………………………………………………………... 45

1.4 – Fogo……………………………………………………………… 47

1 . 5 – A r, Á g u a , F o g o , Te r r a … … … … … … … … … … … … … … … … 4 9

1.6 – Sementes………………………………………………………… 53

1.7 – Átomos……………………………………………………....... 58

Capítulo II – Ser…………………………………………………….. 62

Ser e não-ser…………………………………………..................... 64

Ser e aparência………………………………………………………… 69

O ser e o uno…………………………………………………………… 72

Capítulo III - A questão do movimento…………………………… 81

Conclusão………………………………………………………………. 87
Bibliografia……………………………………………………………. 91
Resumo

No retomar da filosofia originária a que se assiste na filosofia


c o n t e m p o r â n e a , s u rg e a t e s e h e i d e g g e r i a n a d o s e r c o m o p h y s i s .
S e g u n d o H e i d e g g e r, f í s i c o s e e l e a t a s d i s s e r a m o m e s m o : f i z e r a m o
q u e s t i o n a m e n t o d o s e r. N ã o e x i s t e a s s i m u m a c o n t r a p o s i ç ã o d e u m a
teoria do Ser a uma teoria do Devir na filosofia pré-socrática.
Heidegger não tem em conta o pensamento dos físicos sobre a
r e l a ç ã o u n o / m ú l t i p l o , a a rc h é e s t o i c h e i o n e a i d e i a h e r a c l i t i a n a d e
fluxismo universal. A tese de Heidegger é revisionista, não apenas
da filosofia pré-socrática, mas da própria História da Filosofia,
conforme demonstra o decurso histórico-filosófico pós-parmenídeo,
até pelo menos Platão e Aristóteles, onde o pensamento dessa
contraposição é fundamental.

P a l a vr a s - c h a v e : Devir; Heidegger; Nietzsche; Physis; Pré-


s o c r á t i c o s ; S e r.

Introdução

4
O s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a , n a G r é c i a d o s é c u l o V I a . C . ,
assinala uma nova forma de o homem estar no mundo. Essa nova
postura vem a ser o fundamento originário de todo o pensamento
filosófico e, consequentemente, do pensamento científico, pois
como se verifica com Platão e Aristóteles, a episteme, a ciência,
está no centro da indagação filosófica. É certo que a ciência
moderna está longe de ser a episteme pensada por Platão e
A r i s t ó t e l e s , c u j a a t e n ç ã o s e v i r a v a p a r a o To d o e p a r a o s e r
e n q u a n t o s e r, e n q u a n t o o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o m o d e r n o f o i
progressivamente se voltando para o ente, tendo em vista o projeto
humano de domínio e transformação da natureza pela técnica. Daí
que a atividade científica tenha fragmentado e multi-espartilhado o
conhecimento, acabando por se tornar na tecnociência atual. Porém,
os princípios epistemológicos por eles fundados – e que fizeram
prevalecer a filosofia sobre a sofística – constituem até à
contemporaneidade o solo intransponível em que assenta toda a
ciência. Pense-se na superação platónica da antítese entre o
eleatismo e a tradição heraclítica, que resulta na síntese entre
experiência e razão na determinação (no conhecimento) daquilo que
é (o ente); e nos princípios lógicos aristotélicos de «não-
contradição» e de «terceiro excluído».

Com os primeiros filósofos inicia-se o esforço de


racionalidade, o apelo ao logos, à razão, e estabelece-se a rutura do
pensamento filosófico com a forma de pensar até então: o
pensamento mitológico que remetia as explicações sobre o mundo
para o muthos, o mito, a lenda, potenciando os cultos e os rituais
de carácter religioso. O interesse pelo saber (a filosofia) dos
primeiros filósofos é dessacralizado, está liberto do pensamento
circular que reduz todos os fenómenos e toda a experiência a
volições de entidades sobrenaturais, os theoi, deuses, que imperam
sobre o mundo, como narravam Homero e Hesíodo. Quando os
Milésios lançam o olhar e o pensamento para a physis, para a

5
natureza, não encontram um conjunto arbitrário de fenómenos
incognoscíveis, como faria sentido que acontecesse se a experiência
do homem no mundo fosse remissível para aquilo que é da ordem do
mito e da fábula. Encontram sim a regularidade de certos
fenómenos, um Kosmos.

Na origem do pensamento filosófico estão duas conceções


distintas sobre o carácter da realidade e que correspondem aos
c o n c e i t o s d e S e r e D e v i r. P a r a o s f í s i c o s j ó n i o s n a d a e x i s t e f o r a d a
p h y s i s , n a t u r e z a , c r e s c i m e n t o . A p h y s i s é o To d o e o To d o é u m
devir: um mundo em que todas as coisas estão sujeitas à geração e à
destruição, ao movimento e à mudança. Para os eleatas só existe
a q u i l o q u e « é » , o s e r. O s e r é c o n c e b i d o e m s e n t i d o a b s o l u t o : é
uno, eterno e imóvel, e esse é, para os eleatas, o verdadeiro
carácter da realidade.

Entre as duas teorias existe, não tanto uma antítese total,


como se afirma em algumas das exposições descritivas da História
d a F i l o s o f i a , m a s s i m u m a c o n t r a p o s i ç ã o e n t r e u m a t e o r i a d o d e v i r,
cuja principal ideia é a de que o Kosmos, o mundo ordenado, está
d e s d e s e m p r e n u m e s t a d o d e p e r p é t u a m u d a n ç a , e u m a t e o r i a d o s e r,
cuja principal ideia é a do eternamente fixo e imutável.
O entendimento dessa contraposição é fundamental para a
compreensão da filosofia pré-socrática e da História da Filosofia. A
filosofia pré-socrática pós-parmenídea é marcada por um esforço de
síntese dessas duas teorias, como se verifica nas filosofias de
Empédocles, Anaxágoras e dos Atomistas. E, o dualismo platónico:
mundo sensível/mundo inteligível é fundado nessa contraposição
que está na origem do pensamento filosófico.
Por isso, a interpretação que Heidegger faz da filosofia pré-
socrática, segundo a qual o pensamento do ser como physis era
comum a Heraclito e Parménides, não havendo dessa forma uma
contraposição entre as duas teorias, não conserva a integridade da
Filosofia Antiga nem da própria História da Filosofia.

6
7
1ª Parte

Antes de Tales
Algumas questões sobre religião, mitologia e sociedade grega que
p r e c e d e r a m o s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a

8
Capítulo I

I nf l u ê n c i a d e H o m e r o e H e s í o d o n a r e l i g i ã o e m i t o l o g i a
grega

Entre os Gregos o termo thambos exprime um sentimento de


carácter religioso, uma mistura de respeito e de temor face aos
fenómenos da natureza. Uma apreensão direta da presença divina,
imposta por impressões da natureza: uma luz ou uma sombra, um
ruído ou um silêncio, a passagem de um animal, o voo de uma ave,
a presença perante uma paisagem ou uma árvore grandiosa, o vento,
o curso de um rio, o calor do meio-dia. Esse sentimento, aliado à
crescente capacidade racional dos Gregos, alimentada pelo gosto
pela discussão e pela vida social, a vida ao ar livre, em virtude do
clima temperado, permite-nos compreender a profusão dos deuses
Gregos e dois dos principais aspetos da religião Grega: o
politeísmo e o antropomorfismo dos deuses Gregos. Os deuses são
numerosos e estão em toda a parte. São indivíduos, "são homens
amplificados e idealizados, quantitativamente superiores a nós, mas
não qualitativamente diferentes” 1 a quem o crente se liga,
solicitando proteção, fazendo oferendas, erigindo altares,
realizando rituais e sacrifícios 2.

É a Homero e Hesíodo que se devem os nomes, os rituais dos


deuses, os pormenores dos seus cultos e os respetivos atributos.
Mas também as próprias figuras com que os artistas representavam
os deuses em esculturas, pinturas e santuários. Essa é também uma
das especificidades da religião Grega: o facto de não existirem
fundadores da religião nem textos religiosos (com exceção do
o r f i s m o ) o u e s c r i t u r a s s a g r a d a s c o m o o Ve d a , o Av e s t a o u a To r a :
1
C f. Gi ovanni R eal e, Hi st óri a da Fi l osof i a Ant i ga , p.21.
2
S obre o pol i t eí sm o da rel i gi ão grega arcai ca conferi r: F rançoi s Cham oux,
A Ci vi l i zação Grega na Época Arcai ca e C l ássi ca C ap. VI, pp. 143-199.

8
“são os poetas quem criam novas canções para cada ocasião das
festividades em honra dos deuses 3. Outros testemunhos religiosos
são os monumentos da arte Grega: templos, estátuas, pinturas.

No que concerne ao estudo da religião Grega, religião que se


apresenta sob a forma dupla do mito e do ritual, os poemas
homéricos e hesiódicos devem ser enquadrados no âmbito de uma
r e l i g i ã o s u rg i d a n a é p o c a h o m é r i c a : a r e l i g i ã o d o s d e u s e s o l í m p i c o s
ou religião pública. Um clã de habitantes celestes, soberanos do
mundo que entre si partilham os elementos do Universo: Zeus – o
c é u , P o s í d o n – o m a r, H a d e s – a s t r e v a s ; a t e r r a e o O l i m p o s ã o
partilhados pelos três. São os deuses mais velhos, três irmãos
f i l h o s d e C r o n o e d e R e a . Ta l c o m o a c o n t e c i a e n t r e o s b a s i l e i s n a
terra, os conflitos são frequentes entre os deuses. Ademais, o
antropomorfismo é evidente, assim como o ar aristocrático com que
os olímpicos são caracterizados: vivem uma vida ociosa e luxuosa
e m p a l á c i o s d e o u ro . O t e r m o p ú b l i c o a d q u i r e a t o t a l i d a d e d o s e u
sentido quando se compara esta religião com os movimentos
religiosos posteriores de caráter mais ou menos secreto, como é o
caso da religião dos Mistérios ou o Orfismo.

De entre as primeiras expressões mitopoéticas Gregas


documentadas destacam-se as obras de Homero e Hesíodo, tidos na
Antiguidade como as mais altas autoridades na formação espiritual
d o s G r e g o s a t é a o s u rg i m e n t o d o e s p í r i t o f i l o s ó f i c o .

A Ilíada e a Odisseia terão sido compostas por Homero entre


o século IX e princípio do século VIII a. C. A epopeia era o
principal média da cultura grega arcaica, primeiramente ainda no
domínio da oralidade4. Os aedos5 “cantavam” os ciclos épicos mais
antigos, como o que versava o destino dos filhos de Édipo e o cerco

3
C f. Wal t er B urkert , Rel i gi ão Grega na Época C l ássi ca e Arcai ca , p. 29.
4
Após a i nvasão dóri ca de 1100 a. C ., a escri t a (o Li near B ) desapare ce e só é
redescobe rt a pel o fi m do sécul o IX, t om ada aos fení ci os.
5
Poet as popul ares.

9
a Te b a s , a s e p o p e i a s d o s A rg o n a u t a s e a d e H é r c u l e s . É p r o v á v e l
que Homero tenha reunido num todo obras folclóricas-epopeias
cantadas durante séculos pelos aedos.

Na Ilíada narram-se acontecimentos e cenas da prosperidade


d e M i c e n a s , c u j a c i v i l i z a ç ã o – C i v i l i z a ç ã o M i c é n i c a , 1 7 0 0 - 11 0 0
a.C. – é considerada o último período da Cultura Egeia e a etapa
inicial da cultura Grega. Os temas principais são o apogeu de
M i c e n a s a q u a n d o d a e x p e d i ç ã o c o n t r a Tr ó i a d o s g r u p o s a q u e u s
coligados sob o comando de Agamémnon, a derrota infligida pelos
a q u e u s a o s d e f e n s o r e s d e Tr ó i a , a s f a ç a n h a s g u e r r e i r a s d e A q u i l e s ,
movido pela cólera, a caracterização da Grécia depois da invasão
dórica até ao princípio do século VIII. A narração homérica do
ciclo troiano completa-se na Odisseia com o regresso dos heróis de
Tr ó i a .

Um dos aspetos essenciais da epopeia grega homérica, e que


se supõe ser pré-homérico, é a ação recíproca entre dois planos: o
divino e o humano. Os deuses são espetadores ativos naquilo que se
passa no palco humano. Intervêm nos acontecimentos terrestres
manipulando as emoções dos homens, levando-os a agir de
determinada forma, consoante os próprios acontecimentos do plano
divino – os conflitos entre os deuses e as influências que
pretendem ter no palco terrestre.

Os poemas de Hesíodo – fins do séc. VIII e princípio do séc.


VII a. C., testemunham a etapa que se seguiu à época homérica. A
o rg a n i z a ç ã o s o c i a l c o n s t i t u í d a e m t o r n o d e c l ã s d e s a g r e g a - s e .
S u rg e m e n t ã o a s p r i m e i r a s p o l i s . E m O s Tr a b a l h o s e o s D i a s
Hesíodo dá conta das crescentes tensões sociais que se faziam
s e n t i r n a é p o c a e n t r e c a m p o n e s e s e a r i s t o c r a t a s . N a Te o g o n i a , Z e u s
inflige um castigo perpétuo a Prometeu por este ter salvo a
humanidade. É provável que no mito de Prometeu, Hesíodo exprima
uma crítica social à classe aristocrata, a qual qualifica de
“devoradores de presentes”.

10
N a Te o g o n i a , H e s í o d o e l a b o r a u m a g e n e a l o g i a d o s d e u s e s ,
o r d e n a d a e m t r ê s g e r a ç õ e s , d a s q u a i s a s e g u n d a a l c a n ç a o p o d e r, e a
terceira, liderada por Zeus, consegue estabelecer o domínio da
o r d e m a p ó s v e n c e r a b a t a l h a c o n t r a o s Ti t ã s . A v i s ã o c o s m o g ó n i c a
d e H e s í o d o a s s e n t a e m t e r m o s c o m o : p h y e i n , e n g e n d r a r, f a z e r
c r e s c e r, p r o d u z i r, génesis, nascimento e origem, a rc h é ,
simultaneamente origem numa série temporal e a primazia na
hierarquia social. Na obra de Hesíodo tem o significado de origem,
temporalidade. Este termo vem a ser fundamental nas cosmologias
dos primeiros filósofos, porém, já desvinculado da dimensão
religiosa e mitológica.

É certo que foram Homero e Hesíodo a criar para os Gregos


u m a g e n e a l o g i a d o s d e u s e s , a a t r i b u i r- l h e s e p í t e t o s , a d i s t r i b u i r-
lhes as suas honras e competências e a forjar as suas imagens,
porém, a ascendência dos cultos, dos mitos e dos rituais ligados aos
deuses olímpicos é muito mais antiga. A origem da palavra Zeus – o
Pai-Céu [Zeùs pater] remete para o Neolítico (e para uma possível
cultura Indo-europeia), para uma raiz etimológica Indo-europeia
que designa os deuses celestes, “luminosos”, da qual derivou dèváh
em Indiano Antigo e theós em Grego6.

De resto, a mitologia Grega, e a cultura Grega arcaica em


geral, remetem (se bem que não exclusivamente) para uma origem
civilizacional egeia: uma civilização pré-helénica da época
eneolítica – Idade do Cobre e da Pedra, em contacto estreito com o
Antigo Egito. O seu território englobava o arquipélago das
C í c l a d e s , a G r é c i a C e n t r a l , o P e l o p o n e s o , a s m a rg e n s O e s t e d a Á s i a
M e n o r, Tr ó i a e C r e t a .

O segundo período da Civilização Egeia – período de


desenvolvimento da Idade do Bronze, 2100-1400 a. C. – teve em
Creta o centro do seu apogeu civilizacional. Particularmente devido
à sua condição geográfica: uma grande ilha situada entre os grandes

6
C f. Wal t er B urkert , op. ci t ., p. 51.

11
p a í s e s d a A n t i g u i d a d e , v e i o a c o n s t i t u i r- s e o m a i s i m p o r t a n t e
centro de produção de bronze e posto intermediário no comércio do
estanho vindo da Península Ibérica e do cobre vindo de Chipre para
todas as civilizações orientais. Cnossos era a capital do império, à
frente do qual se sucediam os reis, eleitos por sacerdotes. A realeza
era representante na terra da Deusa-Mãe- geradora do género
humano, animal e vegetal – e do seu marido, ou filho,
frequentemente representados na figura de um toiro. O nome Minos
p e n s a - s e d e s i g n a r, n ã o u m r e i c r e t e n s e e m p a r t i c u l a r, m a s s i m o
título dos soberanos que se sucediam no trono. Por 2000 a. C. eram
possuidores de uma escrita hieroglífica, a qual foi substituída por
uma escrita silábica, o Linear A, após o tremor de terra de 1730 a.
C. que destruiu os primeiros palácios.

Entretanto, a partir do II milénio, tribos gregas de aqueus e


j ó n i o s v i n d o s d o n o r t e , d a Te s s á l i a , s e g u e m p a r a a G r é c i a C e n t r a l e
para o Peloponeso. Período em que começam a estabelecer
contactos frequentes com os minóicos. Por volta de 1450 os aqueus
chegam a Creta. Dá-se início á Civilização Minóico-Micénica. Após
o domínio da capital expandem-se para os territórios cretenses no
M e d i t e r r â n e o O r i e n t a l , e n t r e o s s é c u l o s X I V- X I I : R o d e s , M i l e t o ,
Tr ó i a , C h i p r e , e c h e g a m a o E g i t o , F e n í c i a e P a l e s t i n a . S u p õ e - s e q u e
terão sido estes acontecimentos a inspirar a lenda da guerra de
Tr ó i a . A d a p t a m o L i n e a r A a o d i a l e t o a q u e u e t r a n s f o r m a m - n o n o
Linear B7. Fazem de Micenas o centro da civilização e instauram
um sistema palaciano no qual o rei, o wanáx, é o detentor absoluto
d a a rc h é . A s u a a u t o r i d a d e e s t a b e l e c i a - s e s o b r e t o d o s o s d o m í n i o s :
r e l i g i ã o , e c o n o m i a e v i d a m i l i t a r. O r d e n a v a o c a l e n d á r i o , v e l a v a
pela observância do ritual e pela celebração das festas em honra
dos deuses, determinava os sacrifícios e as oferendas, atraía e
acumulava toda a riqueza do país e possibilitava as expedições a
países longínquos. A lembrança do wanáx – o Rei-Divino, senhor
do tempo, distribuidor da fertilidade, sobreviveu sob uma forma de
7
Tábuas de Li near B de Cnossos, Mi cenas e P il os, deci frad as por Mi chael Vent ri s e
John Chadwi ck, 1953. C f. Mari e- C l ai re Am ouret t i , O Mundo Grego Anti go , p.55.

12
mito até à época da polis, e poderá ter servido de inspiração ao
"filósofo-rei" platónico.

Da religião minóico-micénica existem referências a uma mãe


dos deuses e a uma família divina: Zeus, Hera e Orímio
(possivelmente Dioniso), filho de Zeus. Nas tábuas de Linear B não
existem referências a Apolo e Afrodite. Os seus cultos remetem
para uma proveniência cipriota e para uma provável origem semita,
Mesopotâmia, Anatólia/Síria.

Outros aspetos do politeísmo grego arcaico são: o


zoomorfismo de certos deuses, algo que remete para os totens dos
tempos primitivos; os cultos ctonianos, da palavra grega cton,
terra, como o culto das serpentes; a adoração do lobo, lukos,
patenteada no fato de os deuses serem chamados de lobo (Zeus
Liceano) e os próprios locais de culto terem o nome Liceu; a
personificação da natureza por seres híbridos: os sátiros - homens
com pernas de bode, os centauros – metade homens metade cavalos,
as ondinas – mulheres com cauda de peixe; o animismo: dríadas –
espíritos dos bosques, os tritões – espíritos dos mares.

Com o advento da polis o politeísmo grego vem a refletir as


novas etapas da vida social. Os deuses olímpicos transformam-se
em protetores dos diversos elementos da vida política e social:
Apolo torna-se protetor dos sacerdotes e adivinhos, Posídon dos
navegadores, Hades dos mercadores, e posteriormente Zeus vem a
ser associado aos filósofos. No entanto, à medida que a Grécia
atinge o período Clássico, caraterizado pelo crescente apelo à
r a c i o n a l i d a d e , q u e v a i c u l m i n a r n o s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a , a v i s ã o
cosmogónica do mundo entra em decadência.

13
Capítulo II

Na Polis

P o r v o l t a d e 11 0 0 a . C . , u m a g r a n d e u n i ã o d e t r i b o s v i n d a s d o
noroeste da Península Balcânica deslocou-se para sul, Grécia
C e n t r a l e P e l o p o n e s o . I n v a d i r a m a A rg ó l i d a , t o m a r a m M i c e n a s e
outros centros. Desse prolongado período de colonização dórica
resulta a formação da nacionalidade Grega. Era constituída por
grupos de tribos de jónios, dórios, aqueus e eólios.

Sobre a origem desses antepassados do homem grego há


conhecimento de migrações de tribos pastoris no curso inferior do

14
D a n ú b i o , n a Tr á c i a e n a G r é c i a d o N o r t e d e s d e o I I I m i l é n i o .
Quanto à sua proveniência geográfica não há certezas. Sabe-se
apenas, a partir da reconstrução de uma protolíngua – o Indo-
europeu, de um antepassado comum, um povo, ou grupos de tribos,
que partilhavam essa língua. Esse povo, ou grupos de indo-
e u r o p e u s , t e r- s e - á c i n d i d o e m m e a d o s d o I I I m i l é n i o , e m g r u p o s q u e
s e d i r i g i r a m p a r a a Í n d i a , Á s i a M e n o r, G r é c i a , I t á l i a , E u r o p a
Ocidental e Europa do Norte.

A invasão dórica implicou grandes transformações na Grécia.


Assiste-se a uma migração durante três séculos de habitantes da
bacia do Mar Egeu, que se dirigiram para as Cíclades e para as
m a rg e n s O c i d e n t a l d a Á s i a M e n o r, e m f u g a d o s d ó r i o s 8 . D á - s e a
passagem da Idade do Bronze à Idade do Ferro. Micenas foi
destruída e perdeu para sempre a sua importância política e
cultural. Com ela desaparece igualmente o sistema palaciano, a
escrita e a figura política do wanáx. O continente Grego rompe os
vínculos com o Oriente próximo: o mar torna-se uma barreira. Há
um retorno à economia puramente agrícola.

O desaparecimento do wanáx é um dos acontecimentos que


mais e maiores consequências teve na passagem de Micenas à época
h o m é r i c a . A a u s ê n c i a d o R e i - D i v i n o , d e t e n t o r a b s o l u t o d a a rc h é ,
“estabelece uma distância insuperável entre os homens e os
d e u s e s ” 9 . A r e l i g i ã o o l í m p i c a e a o b r a d e H o m e r o s u rg e m a p a r t i r
dessa “delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real” 10. A
a rc h é dispersa-se, e com isso despontam os basileis: antigos
senhores, donos de um domínio rural e vassalos do wanáx. No
entanto, o basileus nada tem em comum com a soberania real do
wanáx. O seu papel é sobretudo sacerdotal. Os bens comunitários e
o s k l e ro s , l o t e s d e t e r r a , s ã o t r a n s f o r m a d o s e m p r o p r i e d a d e p r i v a d a
dos genos, clãs familiares, cujos membros descendiam de um
8
C f. F rançoi s Cham oux, op. ci t ., p.29.
9
C f. Jean – Pi erre Vernant , As Ori gens do Pensament o Grego , p. 26.
10
Idem , i bi dem .

15
a n t e p a s s a d o c o m u m , e q u e c u l t i v a v a m u m d e u s p r o t e t o r. A s d u a s
forças sociais até então harmonizadas sobre o comando do wanáx:
as comunidades aldeãs e a aristocracia guerreira entram em
confronto.

É nesse contexto de tensão social, e para fazer face ao


m e s m o , q u e s u rg e m a s p r i m e i r a s r e f l e x õ e s s o b r e c o m o h a r m o n i z a r,
como estabelecer uma ordem sobre o conflito inerente à
m u l t i p l i c i d a d e d o s v á r i o s d o m í n i o s d a a rc h é , a n t e s c o n s a g r a d o s
num só, e agora divididos por grupos rivais: sacerdotes, guerreiros
e agricultores. Essas reflexões são políticas, são relativas à polis, à
cidade.

A palavra polis tem já em Homero três sentidos diferentes,


designa: o aglomerado urbano, a unidade política constituída por
um Estado, o conjunto dos cidadãos considerados como um corpo.
O termo, quando usado para referir a realidade política Grega, visa
designar a unidade política e social Grega por comparação com o
mundo bárbaro. As condições necessárias para definir uma cidade
(polis) eram: um território comum delimitado, um mínimo de
o rg a n i z a ç ã o p o l í t i c a r e c o n h e c i d o p e l a s c i d a d e s v i z i n h a s e p e l o
menos uma lenda de fundação associada a um culto 11.

As primeiras polis conhecidas, séc. VIII, situavam-se: no


litoral – Jónia, Mileto; nas cidades das ilhas costeiras da Ásia –
M i t i l e n e e S a m o s ; d e p o i s s u rg e m A t e n a s , C o r i n t o e M e g a r a . E r a m
elementos de desenvolvimento social da Grécia. Reuniam e
submetiam os campos circundantes num processo denominado de
sinecismo12: agrupamento de aldeias que levava ao estabelecimento
de uma administração comum, cultos comuns e instituições
políticas comuns. As construções urbanas refletiam um novo
centralismo. Já não eram feitas em torno de um palácio, mas sim
em torno da Ágora: espaço público onde eram debatidos assuntos de

11
C f. F rançoi s Cham oux, op. ci t . p. 205.
12
C f. A. B erguer , Hi st óri a da Gréci a Ant i ga, p.82.

16
interesse geral. O poder pertencia aos principais proprietários de
terra – a aristocracia, os únicos que possuíam meios para sustentar
o s c a v a l o s , o s c a r r o s d e g u e r r a e o a r m a m e n t o m i l i t a r.

Dos séculos VIII a VI a. C. dá-se um movimento


expansionista colonizador impulsionado pelos oicistas, chefes de
expedição, futuros fundadores das cidades colonizadas. A
colonização englobava uma vasta área: as costas do Mediterrâneo,
da Propôntida e do Ponto-Euxínio (Mar de Mármara e Mar Negro),
a Lídia (litoral) a oriente, o Danúbio a norte, a ocidente Massília
(Marselha), Sul de França, Espanha, Itália – Grande Grécia
(Sicília, Siracusa, Agrigento). Estas localidades tinham formas de
Estado próprias, mas estavam ligadas às metrópoles pelos deuses e
pelo calendário, e contribuíam para o progresso económico e social
da Grécia. A este período corresponde o desenvolvimento do
comércio e do artesanato, que se iam separando da agricultura.

A j ó n i a , n a Á s i a M e n o r, e r a u m d o s p r i n c i p a i s f o c o s d e
desenvolvimento. Aí retomou-se o intercâmbio económico e
cultural com o Oriente, culturas: egípcia, babilónica e assíria. Os
jónios aperfeiçoaram o alfabeto recebido dos orientais, dos
fenícios, e introduziram-no em todo o mundo Grego. Foi na jónia
que foram compostos os poemas homéricos e onde, no espaço de um
s é c u l o , d e V I a V a . C . n a s c e r a m o s p r i m e i r o s f i l ó s o f o s : Ta l e s ,
Anaximandro e Anaxímenes, e pouco tempo depois Xenófanes e
Heraclito.

O período inicial da polis é marcado pelo espírito agonístico


da aristocracia guerreira que se estabelecia sobre os domínios
político, militar e económico, porém, entre aristocratas, o poder de
eris, conflito, é acompanhado de philia, respeito entre os iguais.
Essa tensão entre os valores da luta, da concorrência e da
rivalidade, e o sentimento de união e pertença a uma comunidade, é
transposta para a vida política e para as discussões na Ágora, na
forma de disputa oratória. A força de persuasão, o poder da palavra,

17
peithó, torna-se o instrumento político por excelência. No entanto,
o ideal de isonomia, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei,
ainda não materializava o espírito democrático, como viria a
acontecer na Atenas de Clístenes, século VI. Nesta primeira fase da
polis, a isonomia e a isocracia, a igual participação de todos os
c i d a d ã o s n o e x e r c í c i o d o p o d e r, e x i s t i a m a p e n a s e n t r e o c í r c u l o
aristocrático, que assim formava um regime oligárquico, podendo
i m p e d i r a f o r m a ç ã o d e r e g i m e s c o m o a m o n a rc h i a e a t y r a n n i s , e m
q u e a a rc h é é d e t i d a p o r u m s ó . A s d i s c u s s õ e s n a Á g o r a s ã o f e i t a s à
luz do dia perante um público que ajuíza de acordo com o poder de
persuasão dos oradores. As decisões são gravadas em tábuas de
pedra e expostas na Ágora à vista de todos e a todos devem ser
impostas. A justiça transita da thémis, conformidade à vontade dos
deuses, o que na prática resultava na arbitrariedade das punições,
que eram conformes aos mais poderosos, para a diké. A
determinação da lei e da justiça passou a ser discutida, escrita,
p u b l i c a d a e d i v u l g a d a , o q u e v e m a t r i b u i r- l h e u m c a r á c t e r d e
universalidade e permanência (podendo ser modificável por
decreto) e acabar com a arbitrariedade das punições. Dessa forma
está já instituída a ideia de que o Estado não é uma causa privada,
mas sim uma questão pública á qual, progressivamente, mais
i n d i v í d u o s t e r ã o d i r e i t o d e p a r t i c i p a r.

Exemplo disso é a Ática dos séculos VIII a VI a. C 13. e a


i n s t i t u i ç ã o d o a rc o n t a d o . A p o p u l a ç ã o l i v r e d i v i d i a - s e e m t r ê s
classes: os eupátridas – aristocratas proprietários de terras e gado,
o s g e o m o re s – p e q u e n o s a g r i c u l t o r e s , o s d e m i u rg o s – a r t e s ã o s . O s
eupátridas concentravam-se em Atenas e na Acrópole. Reinavam
s o b r e t o d a a p o p u l a ç ã o : o d e m o s , o p o v o , c o m p o s t o p e l o s g e o m o re s
e d e m i u rg o s , o s e s c r a v o s e o s m e t e c a s , e s t r a n g e i r o s l i v r e s s e m
direitos cívicos.

O a rc o n t a d o e r a e l e i t o d e e n t r e a a r i s t o c r a c i a . E r a c o m p o s t o
pelo arconte principal que dá o nome ao ano do seu governo,
13
Sobre a poli s arcai ca conferi r Mari e- C l ai re Am ouret t i op. ci t ., Li vro S egundo .

18
fiscaliza os negócios internos e resolve os litígios das famílias. O
segundo arconte é o basilense, que exerce as funções religiosas. O
t e r c e i r o é o p o l e m a rc a , o c h e f e m i l i t a r. O s s e i s r e s t a n t e s s ã o o s
arcontes testometes, legistas, que zelam pela aplicação das leis e
julgam os cidadãos. Em meados do século VIII a. C. a duração do
arcontado é de dez anos e a partir de 683 passa a ser de apenas um
ano.

Em 594 Sólon é eleito arconte. Era considerado um homem do


centro – respeitado pelo demos e pela aristocracia. É encarregado
de proceder a reformas políticas e sociais numa altura de crise e
conflito. Entre as suas reformas estão um conjunto de leis que
proibiam o uso excessivo de luxuosidades em cerimónias, a
interdição de emprestar tomando pessoas por p e n h o r, a
acessibilidade de todos os cidadãos à Assembleia do povo e ao
Tr i b u n a l c r i m i n a l . A s s u a s r e f o r m a s v ã o d e e n c o n t r o a u m e s f o r ç o
de renovação da polis que acontece em vários planos da vida social,
sempre no sentido de restringir a hybris, o descomedimento, dos
genos, harmonizando os diferentes elementos da cidade. Nesse
s e n t i d o s u rg e m a l g u m a s r e f l e x õ e s m o r a i s p r é - f i l o s ó f i c a s 1 4 , c o m o a s
de Cleóbulo: “Ótima é a medida”, “Não faças nada com violência”.
Sólon: “Nada em demasia”, Quílon: “Conhece-te a ti mesmo”,
“Domina o impulso”, “Obedece às leis”. Bias: “Ama a sabedoria”,
Obtém com a persuasão, não com a violência”.

No plano religioso15 assiste-se ao progresso do dionisismo, ao


s u rg i m e n t o de seitas como a dos órficos e de figuras como
Epiménides, magos purificadores. O desenvolvimento deste tipo de
religiosidade está ligado à universalização da condenação do crime,
à diké, especialmente o homicídio. Reflete uma necessidade de
purificação individual e coletiva (da cidade) do mal e do crime. A
purificação da cidade faz-se pela submissão de todos à diké, e no

14
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t . , p. 183-185.
15
Cf. Vernant, op. cit., Cap. IV.

19
plano religioso individual, pela expiação catártica das faltas
cometidas.

A atividade militar 16 democratiza-se: quebra-se o monopólio


d o s h i p p e i s , a r i s t o c r a t a s g u e r r e i r o s . S u rg e m o s h o p l i t a s , s o l d a d o s
cidadãos, todos aqueles que podem fazer as despesas do
e q u i p a m e n t o m i l i t a r. O h o p l i t a v e m t r a n s f o r m a r a a r t e d e c o m b a t e
na guerra. O hippeus procurava o combate individual em função da
eris, o desejo de triunfar sobre o adversário. Combatia movido
p e l a s e n e rg i a s t i m ó t i c a s : a m é n i s , c ó l e r a , a l y s s a , o f u r o r b e l i c o s o ,
o menos, o ardor na luta inspirado por um deus. O hoplita não
procurava a façanha individual, era treinado para marchar em
ordem, combater em linha, em formação cerrada segundo o
princípio de falange, para manter a posição e não deixar o posto
para enfrentar um adversário individual como faziam os prómachoi,
guerreiros avançados que combatiam na dianteira. Em suma, a
aristeia, o valor individual, tinha de se integrar no quadro imposto
pela manobra comum. A própria noção de aréte, a virtude, até então
entendida como virtude aristocrática, ligada à nobreza de
nascimento, ao valor no combate e a uma vida de opulência e
luxuosidade, sofre uma transmutação. Na sociedade, tal como na
guerra, a aréte já não é da ordem do thymos, mas sim de
s o p h ro s y n e , t e m p e r a n ç a , d o m í n i o c o m p l e t o d e s i . O q u e i m p l i c a
uma predominância daquilo que é da ordem do cálculo, da razão
(logos), sobre aquilo que da ordem do thymos: as paixões e as
emoções. Os ideais de s o p h ro s y n e e a m b ro s y n e , austeridade,
q u a n d o t r a n s p o s t o s p a r a a v i d a p o l í t i c a , p a r a a o rg a n i z a ç ã o d a
cidade, vão denunciar a pleonexia, o desejo de ter mais que os
outros, mais que a sua parte, e procurar a isotes, a equidade.

Para aristocratas e democratas o entendimento da isotes


refletia uma conceção exclusiva do termo, antagonista à da força
política oposta. A cidade harmoniosa implica para os aristocratas a
a s s u n ç ã o d e u m a s u p e r i o r i d a d e d e s t e s f a c e a o d e m o s . A o rg a n i z a ç ã o
16
Idem, ibidem.

20
política deve manifestar uma relação hierárquica em que os
melhores ocupam os estratos mais elevados. Para os democratas
todos os cidadãos são iguais, por isso, só o ideal de isonomia é
capaz de estabelecer a justa medida. A equidade é entendida como o
d i r e i t o à i g u a l p a r t i c i p a ç ã o d e t o d o s o s c i d a d ã o s n a a rc h é .

A polis e a vida política dela resultante são reveladoras de


uma liberdade caraterística do povo Grego, liberdade essa que se
t o r n a r á f u n d a m e n t a l p a r a o s u rg i m e n t o d o e s p í r i t o f i l o s ó f i c o , e q u e
se torna percetível quando comparada com os outros povos seus
contemporâneos, nomeadamente os povos das civilizações orientais.
Enquanto “o oriental estava preso a uma cega obediência ao poder
p o l í t i c o e r e l i g i o s o , o c i d a d ã o g r e g o f o i l e v a d o a c o m p r e e n d e r- s e
não acidentalmente, mas essencialmente como cidadão de um
determinado Estado, de determinada polis”17.

17
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., pp. 25-27.

21
Capítulo III

O To d o e o K o s m o s

Na religião grega não existem dogmas, são os poetas quem


criam os rituais e são livres de criticar os deuses. Na política os
Gregos compreendem que não existe antítese entre o indivíduo e o
Estado. O esforço de racionalidade virado para a política visa a
o rg a n i z a ç ã o d a c i d a d e , a h a r m o n i a e n t r e o s v á r i o s e l e m e n t o s q u e a
compõem. A racionalização, o debate e a publicação da lei
r e p r e s e n t a m o e s f o r ç o d e c i v i l i z a ç ã o d a s e n e rg i a s timóticas18.
Como consequência o pensamento moral vai-se laicizando: a atitude
colérica divinizada passa a estar sujeita à diké. No mesmo sentido,
o i d e a l d e s o p h ro s y n e é r e v e l a d o r d o e s t a b e l e c i m e n t o d e u m
primado da razão sobre as paixões, mas também de um espírito
voltado á introspeção e á reflexão.

Tu d o i s s o r e f l e t e o f o r t e a p e l o à r a c i o n a l i d a d e c o m q u e o s
Gregos se dirigiam à vida política e social, mesmo antes do
s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a . A s p r ó p r i a s c o s m o g o n i a s e t e o g o n i a s ,
sobretudo a de Hesíodo, são também reveladoras de um espírito
racional esquemático voltado para a tentativa de explicação da
origem do mundo.

Com o advento da filosofia as explicações sobre o mundo, a


sua origem e atualidade, são já desvinculadas do pensamento mítico
e da sobrenaturalidade das teogonias e cosmogonias antigas. A
18
A expressão é de P et er S l ot erdi j k em Cól era e Tempo , p. 37.

22
reflexão filosófica apresenta uma teoria, um quadro de conjunto
onde os homens, a divindade e o mundo estão no mesmo plano: no
kosmos. Ao mito da criação, que pressupõe noções como origem
temporal, engendramento, um começo, sucede a reflexão acerca da
physis, o que implica a noção de que a natureza não operou de
maneira diferente na origem, da maneira que opera na atualidade,
mas sim que as mesmas forças operam desde sempre da mesma
forma e para as quais existe uma cognoscibilidade humana.

É amplamente consensual que o apelo à racionalidade, desde


o s p r i m e i r o s f i l ó s o f o s , c o n s i s t e e m s e d i r i g i r a o To d o . A i n t u i ç ã o
f i l o s ó f i c a é t a m b é m , d e s d e o i n í c i o , a d e q u e o To d o é u n i c a m e n t e
físico, ou comporta uma realidade supra-sensível, para além da
dimensão física. No entanto, a totalidade que os filósofos procuram
não é a mera soma das partes: não é a soma das entidades físicas
individuais, nem é a soma destas mais a(s) entidade(s) supra-
sensível(eis). Como afirma Geovanni Reale, referenciando
Aristóteles:

“ […] No problema do todo não está em questão a quantidade


da realidade que se quer d o m i n a r, mas a qualidade da
aproximação a essa realidade, ou seja, a angulação em função
da qual se quer dominá-la […] quando se diz que o filósofo
aspira conhecer todas as coisas, enquanto isso é possível, não
se quer dizer que o filósofo aspira a conhecer cada realidade
individual, mas que ele visa conhecer o universal no qual
entram todas as coisas particulares, ou seja, o universal que
dá sentido aos particulares, unificando-os.” 19

Como vimos, o advento da filosofia reflete um apogeu


civilizacional perfeitamente delimitado no tempo, no espaço e
c u l t u r a l m e n t e . Ta m b é m p o r i s s o n ã o f a r á s e n t i d o e s t a b e l e c e r u m a

19
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p.389.

23
descontinuidade absoluta entre a filosofia e o pensamento que a
precede. Nas palavras de Aristóteles, o sentimento de thaumazein
estabelece a continuidade:

“ D e f a t o o s h o m e n s c o m e ç a r a m a f i l o s o f a r, a g o r a c o m o n a
origem, por causa da admiração: enquanto no início ficavam
maravilhados diante de dificuldades mais simples, em seguida,
progredindo pouco a pouco, chegaram a pôr- se problemas
sempre maiores: por exemplo, os problemas relativos aos
fenómenos da lua e os relativos ao sol e aos astros, ou os
problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem
experimenta uma sensação de dúvida e de maravilha reconhece
que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito
é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído
por um conjunto de coisas que despertam admiração” 20.

Porém, é próprio da filosofia pré-socrática o pensamento


racional sistemático em torno da cosmologia, daí a análise dos
p r i m e i r o s f i l ó s o f o s à s q u e s t õ e s s u rg i d a s n o â m b i t o c o s m o g o n i a s e
teogonias anteriores ao advento da filosofia. Esse criticismo visa,
mais do que dar respostas, aprofundar essas mesmas questões.

O termo kosmos é disso mesmo paradigmático. Kosmos


significa ordem, arranjo, mundo. Contrapõe-se assim ao caos 21
(como o caos hesiódico):

a) Espaço, espaço vazio indefinido;


b) Aquilo que é derramado;
c) Desordem, matéria desordenada e sem forma.

Nas palavras de Platão:

“Os sábios […] afirmam que o céu e a terra, os deuses e


os homens estão unidos entre si pela amizade, o respeito da
20
C f. Ari st ót el es, Met af í si ca , A2, 982 b 18 s.
21
Ki rk e R aven, Os Fi l ósof os Pré-socrát i cos , pp.18- 25.

24
ordem, a moderação e a justiça, e é por esta razão que chamam
ao universo a ordem das coisas [ kosmos] e não a desordem
nem o desagregamento [caos] ”22.

22
C f. Pl at ão, Górgi as , 507 e – 508 a.

25
2ª Parte

Devir e Ser

Capítulo I

Devir

26
Physis

Aristóteles, na Metafisica, refere-se aos filósofos pré-


socráticos nos seguintes termos:

“A maior parte dos primeiros filósofos considerou como


princípios de todas as coisas unicamente os que são da
natureza da matéria. E aquilo de que todos os seres são
constituídos, e de que primeiro se geram, e em que por fim se
dissolvem, enquanto a substância subsiste, mudando-se
unicamente as suas determinações, tal é, para eles, o elemento
e o princípio dos seres. Por isso, opinam que nada se gera e
nada se destrói, como se tal natureza subsistisse
indefinidamente, da mesma maneira que não afirmamos que
Sócrates é gerado, em sentido absoluto, quando ele se torna
belo ou músico, nem que ele morre quando perde estas
qualidades, porque o sujeito, o próprio Sócrates, permanece; e
assim quanto às outras coisas, porque deve haver uma natureza
q u a l q u e r, o u m a i s d o q u e u m a , d o n d e a s o u t r a s d e r i v e m , m a s
conservando-se ela inalterada.” 23

Aristóteles denomina a maior parte desses primeiros filósofos


de fisiólogos ou físicos, aqueles que tratam da ciência da física. No
s i s t e m a a r i s t o t é l i c o “ a f í s i c a t r a t a d e u m g é n e r o p a r t i c u l a r d o s e r,
isto é, do género de substância que contém em si mesma o princípio
do movimento e do repouso”24. Ainda segundo Aristóteles: “ […]
existe também outra substância que não está sujeita de modo
nenhum nem ao movimento, nem à geração, nem à corrupção” 25 para
qual existe uma outra ciência: a teologia, ou filosofia primeira.

23
Ari st ót el es, op. ci t . , A 2/ 3, 983 a 19 – b 13.
24
Idem , i bi dem , E 1, 1025 b.
25
Idem , i bi dem , Θ, 5, 1009 a 29 – b 13.

27
A r i s t ó t e l e s d i r i g e - s e a s s i m a o To d o , o q u a l , n e s s a p e r s p e t i v a ,
contempla o supra-sensível. Os filósofos denominados de físicos,
dirigem-se, por sua vez:

“à região do mundo sensível que nos circunda, é a única que


se encontra continuamente sujeita à geração e à corrupção;
t o d a v i a e l a é , p o r a s s i m d i z e r, p a r t e i n s i g n i f i c a n t e d o t o d o
[…] devemos mostrar-lhes que existe uma realidade imóvel e
devemos convencê-los disso” 26.

E s s a p a r t e d o To d o à q u a l o s f í s i c o s s e d i r i g e m é a p h y s i s
( n a t u r a n a t r a d u ç ã o p a r a l a t i m ) , n a t u r e z a , a r e a l i d a d e e m d e v i r.
Destas considerações fica claro que Aristóteles interpreta a
filosofia que lhe é precedente à luz do seu próprio sistema
filosófico. Contudo, isso não o impede de considerar que os físicos
s e d i r i g i a m a o To d o , s i m p l e s m e n t e c o n s i d e r a v a m q u e s ó o s e r f í s i c o
existe, e que pode ser explicado unicamente com princípios físicos.

Entretanto, a referência de Aristóteles à maioria dos que


primeiro filosofaram tem implícita uma exclusão: Parménides e a
escola dos eleatas. A distinção entre estes e os restantes pré-
socráticos era já estabelecida pelo próprio Sócrates, segundo
afirma Xenofonte:

“ […] De entre os que trabalham em torno da natureza do


universo, uns afirmam que o ser é um só [os eleatas], outros,
que é infinito em número [os atomistas]. Uns crêem que tudo
está em contínuo movimento [Heraclito e os seus seguidores],
outros, que nada nunca está em movimento [os eleatas]. Uns

26
Idem , i bi dem , 1010 a 7 – 32, 1010 a 23 – b 20.

28
que tudo se gera e se destrói, outros que nada se gera e nada
se destrói”27.

Esta última afirmação coloca, respetivamente, todos os


físicos de um lado e os restantes, os eleatas, do outro. Mas, como
vimos, Aristóteles afirma que para os físicos também nada se gera e
nada se destrói. No entanto a antítese persiste. Eleatas como
Parménides e Zenão escreveram as suas obras sob o título
t r a d i c i o n a l d e P h y s i s , “ S o b re a N a t u re z a ” , p o r é m , r e v e l a m u m
filosofar muito diferente dos primeiros filósofos que se dirigiam à
physis enquanto realidade em d e v i r. O próprio discípulo de
Parménides, Melisso, abandona o título tradicional e escreve
“ S o b re a N a t u re z a o u S o b re o S e r ” . O s e r é i n g é n i t o e i m p e r e c í v e l .
Num certo sentido – no sentido que Aristóteles dá conta – a physis
d o s f í s i c o s t a m b é m é : a p h y s i s e n q u a n t o a rc h é e s t o i c h e i o n . C o m
efeito, todas as coisas se geram a partir desse “princípio” e
“elemento” e nele se dissolvem (o fogo de Heraclito, por exemplo)
enquanto o “princípio” e “elemento” é ingénito e imperecível.

A teoria eleata do ser é a pura abstração de toda a realidade


s e n s í v e l , o u s e j a , é a a b s t r a ç ã o d a r e a l i d a d e e m d e v i r. É n i s s o e m
que consiste a antítese. Nas palavras de Heidegger:

“ P a r m é n i d e s [ … ] f e z r e a l ç a r, p o e t i c a m e n t e p e n s a n d o , o S e r
do ente na sua contraposição ao devir […] O que devirá ainda
n ã o é . A q u i l o q u e é j á n ã o n e c e s s i t a d e v i r a s e r, d e d e v i r. O
q u e « é » , o e n t e , d e i x o u a t r á s d e s i t o d o o d e v i r, c a s o s e q u e r
alguma vez tenha vindo a sê-lo e podido sê-lo. Aquilo que, no
sentido próprio, «é» resiste mesmo a todo e qualquer impacto
d o d e v i r. ” 2 8

27
C f. Gi o vanni R eal e, op. ci t ., p.255.
28
Mart i n Hei degger, Int rodução à Met af í si ca , p.106.

29
No entanto, Heidegger considera não existir uma antítese
entre uma teoria do Ser e uma teoria do Devir na filosofia pré-
socrática. Rejeita, particularmente, a interpretação histórico-
filosófica tradicional que apresenta Heraclito e Parménides em dois
pólos opostos:

“Nas exposições descritivas do início da filosofia ocidental


ainda hoje se costuma contrapor esta doutrina de Parménides à
de Heraclito. Deste último terão provido as palavras muitas
v e z e s c i t a d a s : p a n t a re i , t u d o f l u i . D e a c o r d o c o m e s t a s
p a l a v r a s , n ã o h á S e r. Tu d o « é » d e v i r. [ … ] H e r a c l i t o , a q u e m s e
a t r i b u i , e m f r a n c a o p o s i ç ã o a P a r m é n i d e s , a d o u t r i n a d o D e v i r,
diz na verdade o mesmo que este último. Certamente, caso
tivesse dito outra coisa, não seria um dos maiores entre os
grandes Gregos. Só que a sua doutrina do Devir não pode ser
interpretada segundo as ideias de um darwinista do século
XIX.”29

É a Nietzsche que Heidegger se refere. Seguindo a


interpretação tradicional sobre a filosofia pré-socrática, Nietzsche
considera Heraclito o filósofo do devir universal e Parménides o do
p u r o s e r. A i n t e r p r e t a ç ã o q u e N i e t z s c h e f a z d o f r a g m e n t o d e
Anaximandro é a de que este estabelece uma dualidade entre um
m u n d o d o s e r e u m m u n d o d o d e v i r, e q u e P a r m é n i d e s e H e r a c l i t o
tomaram, respetivamente, cada uma dessas realidades como
absolutas, e desse forma coloca os dois filósofos em pólos opostos:

“Parménides […] partindo, não provavelmente mas de modo


evidente, da doutrina de Anaximandro; tinha a mesma
desconfiança relativamente à distinção absoluta entre um
mundo do ser puro e um mundo do devir puro – desconfiança
esta que já levara Heraclito à negação do ser em geral. Ambos

29
Idem , i bi dem , pp. 107-108.

30
tentaram escapar a esta simultaneidade e a esta cisão da ordem
universal em duas partes homogéneas.” 30

Segundo a análise que Nietzsche faz a Parménides, o filósofo


eleata terá começado por ser um filósofo naturalista tradicional:

“O primeiro e mais antigo período no próprio filosofar de


Parménides traz ainda a marca de Anaximandro; produziu um
sistema completo de filosofia física como resposta às questões
levantadas por Anaximandro […] O seu método era o seguinte:
pegava num grupo de contrários, por exemplo, o leve e o
pesado, o subtil e o denso, o ativo e o passivo, e comparava-os
com a oposição exemplar do claro e do escuro; o que
correspondia ao claro era a qualidade positiva, o que
correspondia ao escuro era a qualidade negativa […] de tal
m a n e i r a q u e , p e r a n t e o s e u o l h a r, o n o s s o m u n d o e m p í r i c o s e
dividia em duas esferas separadas, a das qualidades positivas
– de carácter claro, ardente, quente, leve, subtil e cheio de
atividade viril – e das propriedades negativas. Estas só
exprimem a carência, a ausência das outras […] ele descreveu,
pois, a realidade em que faltam as qualidades positivas como
obscura, terrestre, fria, pesada, densa e, geralmente,
caraterizada pela passividade feminina. Em vez das palavras
«positivo» e «negativo», empregou os termos rígidos de «ser»
e «não-ser», e assim chegou à fórmula, contraposta à de
A n a x i m a n d r o , d e q u e o n o s s o m u n d o c o n t é m s e r, m a s t a m b é m
n ã o - s e r. N ã o h á q u e p r o c u r a r o s e r f o r a d o m u n d o e , p o r a s s i m
d i z e r, p a r a a l é m d o n o s s o h o r i z o n t e . [ … ] M a s a i n d a l h e
restava a tarefa de responder com maior precisão a esta
pergunta: «O que é o Devir?» […] Parménides, como
Heraclito, contempla o devir universal e a instabilidade e só
p o d e c o m p r e e n d e r a d e s t r u i ç ã o i m p u t a n d o - a a o n ã o - s e r. P o i s
como é que o ser poderia ter a culpa da morte? Mas, então, o
nascimento deve também produzir-se graças à colaboração do
não-ser: pois o ser existe e não poderia nascer de si mesmo,

30
Ni et zsche, A Fi l osof i a na Idade Trági ca dos Gregos , p.58.

31
nem explicar nascimento algum. […] Em resumo, resulta daí a
sentença: «o ser e o não-ser são igualmente necessários para o
devir; da colaboração de ambos resulta um devir». […] Mas
como é que o positivo chega a contactar o negativo? Não
deveriam, pelo contrário, fugir eternamente um do outro, como
contrários, e tornar deste modo impossível o devir? Aqui
Parménides apela para uma qualitas oculta, para uma
propensão mística de os contrários se aproximarem e atraírem
mutuamente, e concretiza essa oposição por meio do nome de
Afrodite e mediante a relação recíproca empiricamente
conhecida do masculino e do feminino.” 31

Da dualidade ser e n ã o - s e r, Parménides deduziu como


c o n s e q u ê n c i a l ó g i c a o c o n c e i t o d o S e r- U n o - I m ó v e l :

“ [Parménides] experimentou os seus dois contrários em ação


c o n j u n t a , c u j o s d e s e j o s e ó d i o c o n s t i t u e m o m u n d o e o d e v i r, o
s e r e o n ã o - s e r, a s p r o p r i e d a d e s p o s i t i v a s e n e g a t i v a s – e , d e
repente, deteve-se, cheio de desconfiança, no conceito de
q u a l i d a d e n e g a t i v a , d e n ã o - s e r. S e r á q u e u m a c o i s a q u e n ã o é
pode ser uma propriedade? Ou, perguntando de um modo mais
principal: será que uma coisa que não é, pode ser? Mas a única
forma de conhecimento que nos inspira imediatamente uma
confiança absoluta e cuja negação equivale a uma aberração
mental, é a tautologia A=A. Mas foi precisamente este
conhecimento tautológico que lhe gritou inexoravelmente: o
que não é, não é! O que é, é! […] Lançou-se então no banho
frio das suas abstrações terríveis. O que é verdadeiramente
deve existir numa eterna presença, dele não se pode dizer
«era» ou «será». O ser não pode ter surgido: pois de onde é
que ele procederia? Do não ser? Mas este não é, nem pode
produzir nada. Do ser? Mas este só poderia gerar- se a si
mesmo. Acontece o mesmo com o que perece; é tão impossível
c o m o o d e v i r, c o m o t o d a a a l t e r a ç ã o , c o m o t o d o o c r e s c i m e n t o ,
como toda a diminuição. Geralmente é válida a máxima: tudo

31
Idem , i bi dem , pp. 59 – 61.

32
aquilo de que se pode dizer: «foi» ou «será», não é; do ser é
que nunca se pode dizer: «não-é».” 32

As considerações que Nietzsche faz sobre a filosofia pré-


s o c r á t i c a n a “ F i l o s o f i a n a I d a d e Tr á g i c a d o s G re g o s ” n ã o s e
prendem com a objetividade científica própria da História da
Filosofia relativa a esse período. E assim Nietzsche denomina de
pré-platónico o conjunto de pensadores tidos como os que primeiro
filosofaram, pois inclui Sócrates no perfil psicológico comum a
esses filósofos. Na verdade, o objetivo dessa obra de Nietzsche
visa abordar esses filósofos “em termos mais antropológicos e
psicológicos, sob o ângulo dos «grandes homens», como
personalidades”.33 No entanto, a interpretação de Nietzsche é
acompanhada do criticismo que os temas filosóficos inerentes à
filosofia pré-socrática têm em outras partes da sua obra. Referimo-
nos em especial aos conceitos d e d e v i r e s e r. N a a n á l i s e a
Parménides, Nietzsche começa por dizer:

“Parménides tocou por um momento, provavelmente só numa


idade muito avançada, na abstração mais pura, inteiramente
exangue e de todo subtraída a qualquer realidade. Esse
momento – o menos grego de todos, nos dois séculos da idade
t r á g i c a – q u e p r o d u z i u a t e o r i a d o s e r, t o r n o u - s e o m a r c o q u e
separa os dois períodos da sua vida; esse momento divide
igualmente o pensamento pré-socrático em duas metades: a
primeira é dominada por Anaximandro, a segunda por
Parménides.”34

Deste excerto retiramos as seguintes observações:


a) Como já demos conta, segundo Nietzsche, Parménides
começa por ser um filósofo naturalista, um físico, e como tal, um

32
Idem , i bi dem , pp. 65 – 66.
33
C f. Art ur Morão na advert ênci a à obra, Idem , i bi dem , p.9.
34
Idem , i bi dem, p. 57.

33
f i l ó s o f o d o d e v i r. P o s t e r i o r m e n t e p r o d u z i u a t e o r i a d o S e r, a q u a l é
completamente subtraída da realidade empírica:

“Assim realizou a primeira crítica ao aparelho do


conhecimento – crítica extremamente importante, embora
insuficiente e nefasta nas suas consequências: ao dissociar
brutalmente os sentidos da capacidade de pensar abstrações,
portanto, da razão, como se fossem duas faculdades
completamente separadas, destruiu o próprio intelecto e
encorajou a cisão inteiramente errónea entre «espírito» e
«corpo», que, sobretudo desde Platão, pesa como uma
maldição sobre a filosofia.”35

b) A teoria eleata do ser divide a filosofia pré-socrática entre


eleatas e físicos, mas também entre os períodos pré-parmenídeo e
pós-parmenídeo. Depois de Parménides a filosofia muda. A
sentença de Parménides: «Do nada nada vem!» obriga a uma outra
j u s t i f i c a ç ã o d a t e o r i a d o D e v i r, d o v i r- a - s e r. A s s i s t e - s e e n t ã o a u m
esforço de síntese do eleatismo e da filosofia dos físicos, que vai
pelo menos até Platão e Aristóteles.
c) A referência à “idade muito avançada” com que Parménides
produziu a teoria do ser não é uma mera curiosidade biográfica.
Tr a t a - s e de uma expressão do pensamento de Nietzsche
relativamente ao conceito do s e r. As seguintes palavras de
Nietzsche sobre o uno-imóvel de Xenófanes vão nesse sentido:

“De onde e quando lhe veio a tendência mística [a Xenófanes]


para o Uno e para o eternamente Imóvel é que ninguém pode
v i r a d e s c o b r i r, t a l v e z s e j a a p e n a s a c o n c e ç ã o d o a n c i ã o q u e ,
finalmente se tornara sedentário e que, após a movimentação
das suas viagens errantes e do esforço incessante para se
i n s t r u i r e e s t u d a r, c o n c e b e o q u e h á d e m a i s s u b l i m e n a v i s ã o

35
Idem , i bi dem , p. 67.

34
de um repouso divino, na fixidez de todas as coisas no interior
de uma paz panteísta original.” 36

A teoria de Nietzsche sobre o conceito do ser é a de que este


é fundado na aspiração do homem a mundo permanente: um mundo
verdadeiro, um mundo da razão e das ideias por oposição ao mundo
captado pelos sentidos, que são enganadores, e por isso atribuise-
lhes a responsabilidade pelas catástrofes. Daí o homem extrapola
que o sofrimento resulta da mudança, da contradição e da ilusão. A
aspiração a um mundo verdadeiro é a aspiração à felicidade, àquilo
q u e n ã o s e p o s s a c o n t r a d i z e r o u m u d a r.
Ainda segundo Nietzsche, na origem do conceito do ser está
um erro perspetivista da consciência, que é para o filósofo: “a
ú l t i m a f a s e d e e v o l u ç ã o d o s i s t e m a o rg â n i c o , p o r c o n s e q u ê n c i a
também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste
sistema”37. Da consciência resulta uma série de crenças erradas:

“ O s e r, a s u b s t â n c i a , o a b s o l u t o , a i d e n t i d a d e , a c o i s a : f o i h á
muito tempo que o pensamento inventou conjuntamente tais
e s q u e m a s , q u e c o n t r a d i z e m f r o n t a l m e n t e o m u n d o d o d e v i r,
mas que, à primeira vista, pareciam corresponder-lhe, tendo
em conta o estado obtuso e indiferenciado da consciência
n a s c e n t e , a i n d a e m s i t u a ç ã o a n i m a l i n f e r i o r. ” 3 8

Em suma, segundo a doutrina de Nietzsche, só existe um


mundo, uma realidade, e esse é o mundo do devir: um eterno e
incessante fluxo universal. Assim não há lugar para nada que seja
p e r m a n e n t e , e s t á v e l o u c o n s i s t e n t e : n ã o h á s e r. E s t a é t a m b é m a
conclusão que Nietzsche retira da leitura de Heraclito: “Heraclito
terá eternamente razão por afirmar que o ser é uma ficção vazia.” 39

36
Idem , i bi dem , pp. 63 – 64.
37
Idem , A Gai a Ci ênci a , p. 47.
38
Idem , A Vont ade de Poder , p. 24.
39
Idem , O Crepúscul o dos Ídol os , p. 30.

35
Em ultima análise, o conceito do ser tem validade na filosofia
de Nietzsche apenas no âmbito da sua conceção do eterno retorno
do mesmo. O devir universal: a perpétua criação e destruição de si
mesmo – conceção nietzschiana de devir dionisíaco – necessita de
u m p r i n c í p i o d e c o n s e r v a ç ã o d e e n e rg i a , d o q u a l r e s u l t a o e t e r n o
retorno do mesmo. Por isso Nietzsche fala em “imprimir ao devir o
caráter do ser”. Em todo o caso o conceito do ser é para o filósofo:
“um dos «conceitos mais altos», isto é, mais gerais, mais vazios, o
último fumo da realidade diluída.” 40
Heidegger pegou nesta última afirmação de Nietzsche sobre o
conceito do ser e fez a seguinte contraposição: “Será o Ser o último
fumo da realidade diluída ou será o destino da civilização
Ocidental?”41
Para o objetivo desta tese, que é defender os conceitos de
Devir e Ser como correspondentes a duas teorias distintas na
filosofia pré-socrática – onde se contrapõem como ideias principais
o fluxismo e o perpetuamente imóvel – importa, relativamente à
d o u t r i n a h e i d e g g e r i a n a d o s e r, r e f l e t i r s o b r e a s u a t e o r i a d o s e r
como physis, segundo a qual a conceção do ser como physis era
comum aos filósofos pré-socráticos, particularmente a Heraclito e
Parménides. Segundo Heidegger:

“ «Ser» significa para os Gregos: a consistência em sentido


duplo:
1- O estar-erguido-em-si-mesmo enquanto o que surge de si
mesmo (Physis).
2- Mas como tal «permanente», i.é, sendo constante, o
permanecer e repousar (Ousia).

A designação do ser como p h y s i s s u rg e d a i n v e s t i g a ç ã o


e t i m o l ó g i c a q u e o f i l ó s o f o f a z à p a l a v r a o n , s e r, e s u g e r e q u e a
revelação do ser como physis aos Gregos resulta de uma

40
Idem , i bi dem , p. 31.
41
Hei degger, op. ci t ., p. 50.

36
experiência poético-pensante. A interpretação da physis como
natureza – resultado da tradução para latim ( natura) revela um
esquecimento do ser: próprio de toda a metafísica, que conduz às
d e t e r m i n a ç õ e s c a t e g o r i a i s ô n t i c a s , d o e n t e , e n ã o à v e r d a d e d o s e r,
à sua essência.
A essência do ser está precisamente na definição deste como
p h y s i s e o u s i a . S i g n i f i c a d e s a b r o c h a r, e m e rg i r d e d e n t r o d e s i
m e s m o , a q u i l o q u e a o a b r i r- s e s e d e s d o b r a e s e m a n i f e s t a e m t a l
desabrochamento, mantendo-se e permanecendo nele. Um vigorar
q u e e m e rg i n d o p e r m a n e c e . E s s e d e s a b r o c h a r e s u s t e n t a r- s e - e m - e -
p a r a - f o r a - d e - s i - m e s m o é o p r ó p r i o s e r, e m v i r t u d e d o q u a l o e n t e s e
t o r n a o b s e r v á v e l e p e r m a n e c e . O e s t a r- a í - e rg u i d o - s o b r e - s i - m e s m o é
aquilo que se expõe, o que se oferece naquilo que apresenta, na sua
aparência. A coisa repousa no aparecimento, que é entendido como
o s u rg i m e n t o d a s u a e s s ê n c i a . O q u e s e s u s t é m e m s i m e s m o e a s s i m
se apresenta, é.

A p h y s i s n o s e n t i d o o r i g i n á r i o s i g n i f i c a o e m e rg e n t e e rg u e r-
s e , o d e s d o b r a r- s e q u e p e r m a n e c e . N e s s e v i g o r a r o r e p o u s o e o
movimento são a partir de uma unidade originária fechados e
abertos, sendo esse vigorar a presença da essência. 42 É pelo
essenciar da essência que acontecem os entes, pois o vigorar é um
desocultamento que se conquista a si mesmo como um mundo e
assim possui forma. Há portanto uma dissensão criadora que
p e r m i t e o e m e rg i r d e t u d o o q u e e s s e n c i a . I s s o é o f a z e r m u n d o , u m
processo que resulta da dissensão, a luta guardiã vigorante de tudo.
Como se trata de um processo originário, na própria dissensão, que
consiste em separar o essenciado da própria dissensão, dá-se a
f o r m a ç ã o d e u m a u n i d a d e , q u e é o p r ó p r i o s e r.

Como referimos anteriormente, Heidegger afirma que


Heraclito e Parménides dizem o mesmo: fazem o questionamento do
s e r. A s s i m , n o f r a g m e n t o d e H e r a c l i t o o n d e s e l ê : « Tu d o f l u i » , n ã o
s e d e v e e n t e n d e r q u e t u d o é u m d e v i r p o r o p o s i ç ã o a o s e r, m a s
42
C f. Mart i n Hei degger, op. ci t . , p. 71.

37
a p e n a s q u e o d e v i r é u m a o u t r a f o r m a d o s e r. N a r e a l i d a d e d e l i m i t a
o ser e dessa forma determina-o, mas essa distinção face ao ser dá-
se na origem, o que para Heidegger significa uma relação de co-
p e r t e n ç a c o m o s e r.

A s u a i n t e r p r e t a ç ã o d o f r a g m e n t o « A n a t u r e z a a m a o c u l t a r-
s e » , é a d e q u e o s e r, e n q u a n t o p h y s i s , s i g n i f i c a o a p a r e c e r q u e
e m e rg e e s e e n c o b r e : c o n c e p ç ã o d o d e v i r c o m o a p a r ê n c i a d o s e r. O
d e v i r, n a m e d i d a e m q u e n ã o é o n a d a e n ã o é o q u e e s t á d e s t i n a d o
a s e r, t a m b é m n ã o é u m d e v i r, m a s a p e n a s s e m p r e u m o u t r o , u m a
inconstância que se mostra de diversos modos. Uma constante
necessidade, uma carência que persiste. Sendo o ser a presença, a
essencialidade que e m e rg i n d o aparece e, o não-ser – a não-
essencialidade, a não-presença, a ausência; o aparecer significa
esse e m e rg i r e s u b m e rg i r do próprio ser (na medida que o
encobrimento também faz parte da essência do ser). Assim, o devir
é e s s a a p a r ê n c i a f u n d a d a n o a p a r e c e r d o s e r : o e m e rg i r, o c h e g a r á
p r e s e n ç a e d e l a s a i r. N o s e n t i d o o r i g i n á r i o e m q u e o a p a r e c e r s e
relaciona com o ser como sendo-lhe co-pertencente é o vigor que
e m e rg i n d o p e r m a n e c e , t r a z à l u z , a p r e s e n t a e p r o p o r c i o n a a s a í d a
para fora do velado.43
O problema com que nos confrontamos relativamente à
filosofia pré-socrática consiste no facto de os escritos que nos
chegaram da época serem fragmentos, os quais são, em grande
número, de natureza sibilina e, como tal, sujeitos a interpretações
subjetivas. O problema da interpretação de Heidegger está em ser a
mais subjetiva de todas, porquanto é excêntrica relativamente à
própria História da Filosofia. Heidegger não tem em conta aspetos
essências da filosofia pré-socrática como são, relativamente aos
físicos, o pensamento da a rc h é e stoicheion, a relação

43
S egundo Hei degger, o sent i do Grego de verdade, a Al êt hei a , é o ser com o physi s .
A verdade pert ence à essênci a do ser na m edi da em que o ent e é o que vi gorando se
m ost ra e se si t ua fora da di m ensão do vel ado O ser ent e i m pli ca vi r à l uz, apresent ar-
se, expor al go. O ent e i nst al a- se e sit ua- se no desvendam ent o: Al êt hei a , enquant o o
não- ser si gni fi ca o afast ar- se do apareci m ent o e da presenç a.

38
uno/múltiplo, as questões da geração e destruição de todas as
coisas sensíveis, o movimento e a mudança, e a teoria heraclítica
do fluxismo universal. Enquanto, por outro lado, Parménides e os
eleatas estavam empenhados em refutar a multiplicidade, o
m o v i m e n t o , o c o n t r a d i t ó r i o , e e m p r o v a r, c o m o ú n i c a r e a l i d a d e
existente e verdadeira, aquilo que é estável, permanente, imóvel e
uno.

A teoria heideggeriana do ser como physis funda-se no


conceito de ousia, substância. O ser como ousia é o essenciar
permanente, através do qual acontecem os entes. É mais uma vez a
i d e i a d e c o n s i s t ê n c i a e p e r m a n ê n c i a q u e p r e s i d e a o c o n c e i t o d o s e r.
A p h y s i s p e n s a d a p e l o s f í s i c o s : p h y s i s c o m o a rc h é e s t o i c h e i o n ,
também exprime a ideia de algo permanente, no sentido em que é
ingénita e imperecível. Mas enquanto os físicos conciliavam esse
pensamento com aquilo que é atestado pelos sentidos: o múltiplo, o
movimento, a mudança; os eleatas rejeitavam o testemunho dos
sentidos, e tomavam por absoluto o pensamento de uma realidade
permanente e imutável.

Parménides, na via da aparência, onde segundo Heidegger fala


d o D e v i r, a f i r m a s e r e s t e “ o c a m i n h o e m q u e v a g u e i a m o s m o r t a i s
que nada sabem. O caminho de gente dicéfala, que julgam que são e
não-são e que são a mesma coisa”. Heraclito por seu turno já havia
afirmado: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não-
somos”. Este fragmento torna claro como o pensamento de
Heraclito não deve ser confundido com o pensamento de
P a r m é n i d e s s o b r e a E s f e r a d o S e r- U n o - I m ó v e l .

Aristóteles, dando conta do que significava a doutrina de


Heraclito na Antiguidade, afirma o seguinte:

“Platão, com efeito, tendo sido desde jovem amigo de Crátilo


e seguidor das doutrinas heraclitianas, segundo as quais todas

39
as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das quais não se
pode fazer ciência.”44

No pensamento do fluxismo universal está explicita uma


crítica à ideia de substância. Um ente, seja ele qual for (homem,
animal, planta, mineral) mais não é do que um fluxo, um
movimento entre contrários. A radicalidade desse pensar é assim
descrita por Aristóteles:

“Ademais, vendo que toda a realidade sensível está em


movimento e que do que muda não se pode dizer nada de
verdadeiro, eles concluíram que não é possível dizer a verdade
sobre o que muda, pelo menos que não é possível dizer a
verdade sobre o que muda em todos os sentidos e de todas as
maneiras. Dessa convicção derivou a mais radical das
doutrinas mencionadas, professada pelos que se dizem
seguidores de Heraclito e aceite também por Crátilo. Este
a c a b o u p o r s e c o n v e n c e r d e q u e n ã o d e v e r i a n e m s e q u e r f a l a r,
e limitava-se a simplesmente mover o dedo, reprovando até
mesmo Heraclito por ter dito que não é possível banhar-se
duas vezes no mesmo rio. Crátilo pensava não ser possível
nem mesmo uma vez.”45

1 . A rc h é e s t o i c h e i o n

O s e n t i d o f i l o s ó f i c o d o t e r m o a rc h é , i n t r o d u z i d o p o r
A n a x i m a n d r o , d i s c í p u l o d e Ta l e s , e s t á n o c e n t r o d a e m e rg ê n c i a d a
filosofia entre os pré-socráticos. Além dos significados
a n t e r i o r m e n t e r e f e r e n c i a d o s , a rc h é s i g n i f i c a p r i n c í p i o . E s s e é o
significado filosófico do termo. Mas, o princípio dos filósofos não

44
Ari st ót el es, op. ci t ., A 5/ 6, 987 a 27 – b 15.
45
Ari st ót el es, op. ci t ., Γ 5, 1010 a 7-32 .

40
designa aquilo que é primeiro numa série temporal, como acontece
n a o b r a d e H e s í o d o : p r i m e i ro q u e t u d o g e ro u - s e o c a o s . A a rc h é d o s
filósofos é princípio imprincipiado. Sendo physis ação de
p h y e s t h a y , b r o t a r, n a s c e r, é , e n q u a n t o a rc h é , c e n t r o d e i r r a d i a ç ã o ,
fonte da geração, princípio originário: aquilo do qual as coisas
provêm e ao qual regressam.

1.1. A Água

A r i s t ó t e l e s r e f e r e Ta l e s c o m o : “ O i n i c i a d o r d a f i l o s o f i a d a
physis, enquanto por primeiro afirmou a existência de um princípio
único, causa de todas as coisas que são, e disse que esse princípio é
a água”46.

Ta l e s n a s c e u e m M i l e t o , n a J ó n i a . C a l c u l a - s e q u e t e n h a s i d o
pelo final do século VII a.C. Essa estimativa tem por base a
p r e d i ç ã o a t r i b u í d a a Ta l e s d e u m e c l i p s e s o l a r q u e o c o r r e u e m 5 8 5 .
Esse mesmo ano é apontado como o ano da sua acme47. Não existem
vestígios de escritos seus, ao contrário do seu discípulo
Anaximandro, que escreveu uma obra sob o título tradicional
” S o b re a N a t u re z a ” . A p a r t i r d o f r a g m e n t o q u e n o s c h e g o u d e s s a
obra, a doxografia estabelece Anaximandro como o introdutor do
t e r m o a rc h é , n o s e u s e n t i d o f i l o s ó f i c o . P o r é m , é c o m u m m e n t e
aceite, desde logo em função da afirmação supracitada de
Aristóteles, que o termo a rc h é é o que melhor exprime o
p e n s a m e n t o d e Ta l e s d e q u e a á g u a é a o r i g e m d e t u d o .

Além de «princípio», a água é stoicheion, «elemento». O termo


stoicheion visa designar as realidades materiais últimas, os corpos
s i m p l e s : a á g u a , o a r, o f o g o , a t e r r a , p o r é m , t r a n s c e n d e e s s e

46
C f. Ari st ót el es, op. ci t . A3, 983 b 6 ss.
47
Fl oresci m ent o. O t erm o vi sa desi gnar o pont o m ai s al t o da vi da de um a pessoa, a
fl or da idade. Era na Ant i gui dade um a refer ênci a m ai s usual que a dat a de
nasci m ent o.

41
sentido corrente e pode designar algo mais abstrato como o
á p e i ro n , o I n d e t e r m i n a d o , I n d e f i n i d o / I l i m i t a d o , d e A n a x i m a n d r o .

1 . 2 . O Á p e i ro n

O fragmento que nos chegou da obra de Anaximandro de Mileto


é u m r e l a t o d e Te o f r a s t o , q u e t e r á t i d o a c e s s o à o b r a c o m p l e t a o u a
parte dela. Desse relato existem três versões 48: a de Simplício, a de
Hipólito e a de Pseudoplutarco. As versões são distintas mas
complementares.

A versão de Simplício:

“Entre os que admitem um só princípio móvel e infinito,


Anaximandro […] disse que o princípio e elemento das coisas
q u e e x i s t e m e r a o á p e i ro n , t e n d o s i d o e l e o p r i m e i r o a u s a r
este nome do princípio material. Diz ele que não é nem água
nem qualquer outro dos chamados elementos, mas uma outra
n a t u r e z a á p e i ro n , d e q u e p r o v ê m t o d o s o s c é u s e o s m u n d o s
neles contidos. E a fonte da geração das coisas que existem é
aquela em que se verifica também a destruição [...].”

A versão de Hipólito é s i m i l a r, mas contém a seguinte


passagem: “ Esta natureza é eterna e não envelhece, e também
circunda todos os mundos.”

Na versão de Pseudoplutarco afirma-se ainda o seguinte: “[…]


segundo ele [Anaximandro], os céus estão separados e, em geral,
t o d o s o s m u n d o s , q u e s ã o a p e i ro u s [ i n u m e r á v e i s ] ” .

Do conjunto das três versões conclui-se que para Anaximandro:

1 - O « p r i n c í p i o » e « e l e m e n t o » d a s c o i s a s é o a p e i ro n ;

48
C f. Ki rk e R aven, op. ci t . pp.101- 103.

42
2 - O a p e i ro n é i n g é n i t o e i m p e r e c í v e l , l o g o é i n f i n i t o n o t e m p o ;
3 - O a p e i ro n c i r c u n d a t o d o s o s m u n d o s , q u e s ã o e m n ú m e r o
infinito, logo é também infinito no espaço;
4 - O a p e i ro n é a q u i l o d e q u e t o d a s a s c o i s a s s ã o c o n s t i t u í d a s e ,
as coisas existem em número infinito, logo é ilimitado;
5 - O a p e i ro n , s e n d o « e l e m e n t o » , m a s n ã o s e n d o d e t e r m i n á v e l ,
c o m o o s o u t r o s e l e m e n t o s ( a á g u a , o a r, o f o g o , a t e r r a ) é o
Indeterminado, o Indefinido.

Indeterminado, indefinido, infinito, ilimitado são termos que


t r a d u z e m a p e i ro n , á - p e i ro n 4 9 – o q u e é p r i v a d o d e p é r a s , l i m i t e s e
determinações: externas (infinitude espacial) e internas
(indeterminação qualitativa).

1.3. O Ar

Para Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, o «princípio» e


« e l e m e n t o » é , c o m o o a p e i ro n , i n f i n i t o , c o m o a f i r m a Te o f r a s t o ,
segundo o relato de Simplício: “Anaxímenes de Mileto […] diz, tal
como este [Anaximandro], que a natureza subjacente é una e
infinita”.50

Não é, no entanto, Indefinido, é o ar: “Anaxímenes e Diogenes


consideram o ar como anterior à água e, entre os corpos simples,
como o princípio por excelência”. 51

Anaxímenes propõe uma explicação “física” sobre como as


coisas se geram do «princípio» e «elemento»: através da
c o n d e n s a ç ã o e d a r a r e f a c ç ã o d o a r. A e x p e r i ê n c i a h u m a n a d á c o n t a
de algumas dessas transformações:

49
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p. 52.
50
Ki rk e R aven, op. ci t ., p. 142.
51
Idem , i bi dem .

43
“ […] o homem exala da boca calor e frio: pois o hálito é
arrefecido ao ser comprimido e condensado pelos lábios, mas,
quando a boca é afrouxada, o hálito escapa-se e torna-se
quente devido à rarefação” 52.

É através do processo de rarefação e condensação que as


coisas se geram:

“Ao tornar-se mais subtil [o ar] transforma-se em fogo, ao


tornar-se mais denso transforma-se em vento, depois em
nuvem, depois em água, depois em terra, depois em pedras; e
as restantes coisas provêm destas” 53.

O ar enquanto «princípio» é assim aquilo de onde todas coisas


provêm e no qual se dissolvem. É enquanto «elemento» aquilo de
que todas as coisas são constituídas. O «elemento» permanece
subsistente, alterando-se apenas as suas propriedades, através das
quais se gera a multiplicidade das coisas existentes. As
propriedades do ar são o quente e o frio, a condensação e a
r a r e f a ç ã o . O a r p e r m a n e c e s e m p r e a r, m a s à m e d i d a q u e a q u e c e o u
arrefece gera outras coisas: primeiro o fogo, a terra e a água,
depois todas as outras coisas, através das combinações dos
elementos.

A cosmologia de Anaxímenes difere da de Anaximandro


também no seguinte: para Anaxímenes as coisas geram-se a partir
das propriedades do «princípio» e «elemento»; para Anaximandro o
«princípio» e «elemento» é o Indefinido, e este não pode gerar as
coisas, pois não tem propriedades definidas, daí que as coisas não
sejam propriamente geradas, as coisas cindem-se do Uno. O que

52
C f. Ki rk e R aven, op. ci t . p.147.
53
Idem , i bi dem , p. 143.

44
constitui uma injustiça: “pois pagam castigo e retribuição uns aos
outros, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo.”

Ao cindirem-se do Uno, as coisas (o múltiplo) entram na


realidade em devir (genesis), isto é, vêm-a-ser e, como tal, a
p e r e c e r, p o i s a p h y s i s e n q u a n t o a rc h é e s t o i c h e i o n , é p r i n c í p i o e
f i m d e t o d a s a s c o i s a s q u e e n t r a m n a r e a l i d a d e e m d e v i r. P o r
“castigo e retribuição de uns aos outros ”, Anaximandro quer referir
esse processo, mas também a oposição dos contrários, como a
condensação e a rarefação de Anaxímenes:

“Dois tipos de explicação são dados pelos físicos. Os que


fizeram do corpo subsistente uma unidade, que é um dos três
e l e m e n t o s [ á g u a , a r, f o g o ] o u u m o u t r o q u e é m a i s d e n s o d o
q u e o f o g o e m a i s s u b t i l d o q u e o a r, g e r a m o r e s t o p o r
condensação e rarefação, fazendo assim a pluralidade dos
seres… mas outros dizem que os contrários se separaram do
Uno, estando presentes nele, como dizem Anaximandro e todos
os que admitem a unidade e a multiplicidade […] separam todo
o resto da mistura”54.

1.4. O Fogo

Q u a n d o o s f í s i c o s s e d i r i g i a m à p h y s i s e p e n s a v a m a a rc h é e o
stoicheion procuravam uma representação da unidade. Essa
concepção da realidade é, segundo Nietzsche “um dogma
metafísico, que tem a sua origem numa intuição mística e que nós
encontramos em todas as filosofias 55”. Independentemente daquilo
q u e p o s t u l a m c o m o s e n d o a u n i d a d e ( a á g u a , o a r, o f o g o e t c . ) o s e u
pensamento é o de que tudo é um.

54
Ari st ót el es, Fí si ca , A4, 187 a 12.
55
C f. Ni et zsche, A Fi l osof i a na Idade Trági ca dos Gregos , p.28.

45
Nas palavras de Heraclito: “Dando ouvidos não a mim mas ao
Logos, é avisado concordar em que todas as coisas são uma”. 56 Para
Heraclito é o fogo:

“Esta ordem [este kosmos, mundo] a mesma de todas as coisas,


não a criou nenhum dos deuses, nem dos homens, mas sempre
foi é e será um fogo sempre vivo, que se acende com medida e
com medida se extingue.”57

Como vimos anteriormente, para os físicos o uno é múltiplo.


Nesse sentido Heraclito afirma:

“As coisas em conjunto são o todo e o não-todo, algo que se


reúne e se separa, que está em consonância e em dissonância;
de todas as coisas provém uma unidade, e de uma unidade,
todas as coisas.”58

Como é facilmente intuível, a unidade é inaparente: a nossa


percepção da realidade mostra-nos o múltiplo. Heraclito dá conta
dessa inabilidade cognitiva humana: “Estão iludidos os homens
quanto ao conhecimento das coisas visíveis, mais ou menos como
Homero, que foi mais sábio que todos os helenos”. 59 No mesmo
sentido Heraclito afirma: “A verdadeira constituição das coisas [a
p h y s i s ] g o s t a d e o c u l t a r- s e . ” 6 0 E s t e f r a g m e n t o d e v e s e r l i d o c o m o
seguinte, onde Heraclito dá conta do porquê da inaparência da

56
Ki rk e R aven, op. ci t . p. 189.
57
Idem , i bi dem . p. 201.
58
Idem , i bi dem , p.193.
59
Idem , i bi dem , p.56.
60
Idem , i bi dem , p.195.

46
unidade: “Uma conexão invisível é mais poderosa que uma
visível.”61 A conexão faz-se pela oposição entre os contrários:
“Eles não compreendem como o que está em desacordo concorda
consigo mesmo, há uma conexão de tensões opostas, como no caso
do arco e da lira." 62 A oposição entre contrários é polemos, guerra,
d a q u a l t o d a s a s c o i s a s e m e rg e m : “ É n e c e s s á r i o s a b e r q u e a g u e r r a
é comum e que a justiça é discórdia, e que tudo acontece mediante
discórdia e necessidade.” 63 No mesmo sentido: “A guerra é a origem
de todas as coisas e de todas ela é soberana, e a uns ela apresenta-os
como deuses, a outros, como homens; de uns ela faz escravos, de outros,
homens livres.”64 Referindo-se à totalidade dos contrários afirma:

“O deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-


fome [todos os contrários]; passa por várias mudanças do
mesmo modo que o fogo, quando misturado com especiarias, é
designado segundo o aroma de cada uma delas.” 65

Na filosofia de Heraclito, deus, Zeus, logos, fogo, designam o


mesmo: a relação uno-múltiplo. É nesse sentido que vai o seguinte
f r a g m e n t o : “ A s a b e d o r i a c o n s i s t e n u m a s ó c o i s a , e m c o n h e c e r, c o m
juízo verdadeiro, como todas as coisas são governadas através de
tudo.”66

1 . 5 . Á g u a , A r, F o g o , Te r r a

61
Idem , i bi dem , p.195.
62
Idem , i bi dem , p.195
63
Idem , i bi dem , p.197.
64
Idem , i bi dem , p.197.
65
Idem , i bi dem , p.193.
66
Idem , i bi dem , p.206.

47
Entre Heraclito e Empédocles s u rg i u Parménides. Como
anteriormente referimos, Parménides e a escola eleata produziram a
t e o r i a d o s e r, t e o r i a q u e s e c o n t r a p õ e c o m g r a n d e e v i d ê n c i a à
filosofia que lhe é precedente, nomeadamente, a produzida pelos
j ó n i o s . E n t r e e s t e s , Ta l e s , A n a x í m e n e s e H e r a c l i t o p o s t u l a m q u e o
u n o é m ú l t i p l o . O « p r i n c í p i o » e « e l e m e n t o » ( á g u a e m Ta l e s , o a r e m
Anaxímenes, o fogo em Heraclito) é aquilo de onde todas as coisas
provêm e no qual por fim se dissolvem, é a nascente e a foz de
todas as coisas, mas é também aquilo de que todas as coisas são
constituídas. Anaximandro afirma igualmente a multiplicidade dos
seres, no entanto separa o uno do múltiplo. Comum a todos os
j ó n i o s é o m o v i m e n t o e a m u d a n ç a . A p h y s i s d e Ta l e s , A n a x í m e n e s
e Heraclito é o mundo do devir: o perpétuo movimento de todas as
coisas desde a sua geração à sua destruição. Anaximandro postula
uma realidade separada da qual as coisas se cindem entrando no
mundo do devir e regressando por fim à unidade. Os eleatas ao
postularem o puro ser negam a multiplicidade, o movimento e a
mudança, contrapondo-se assim aos jónios.

Na filosofia de Empédocles encontra-se pela primeira vez uma


síntese da filosofia que lhe é precedente, algo que se vem a
v e r i f i c a r t a m b é m n a f i l o s o f i a q u e l h e é p o s t e r i o r, a t é p e l o m e n o s
P l a t ã o e A r i s t ó t e l e s . E m p é d o c l e s n o s e u l o n g o p o e m a “ S o b re a
N a t u re z a ” c o m e ç a p o r s i n t e t i z a r a f i l o s o f i a d o s j ó n i o s :

“Ouvi, primeiro, as quatro raízes de todas as coisas: Zeus


[fogo] brilhante, Hera [ar] portadora da vida, Edoneu [terra] e
Néstis [água], que com as suas lágrimas enche de água as
nascentes dos homens mortais.” 67

Empédocles junta assim a terra à água ao ar e ao fogo,


enquanto «princípios» e «elementos». E, aos quatro, acrescenta o
67
C f. Ki rk e R aven, op. ci t . p.335.

48
amor e a discórdia: “E estas coisas nunca cessam de mudar
c o n t i n u a m e n t e , o r a c o n v e r g i n d o n u m t o d o , g r a ç a s a o A m o r, o r a c a d a
uma separada das outras pela Discórdia”. 68

Empédocles dá assim uma nova dimensão à relação uno-


múltiplo. Essa nova perspetiva do problema exprime uma tentativa
de síntese entre o eleatismo e o “pensamento jónio”. Os
« e l e m e n t o s » s ã o o To d o e o To d o o r a é u m o r a é m ú l t i p l o ,
consoante a predominância do Amor ou da Discórdia. Quando os
«elementos» se agregam formam o Uno, o qual é pensado por
Empédocles como o ser dos eleatas:

“Aqui não se distinguem nem os membros rápidos do Sol nem


o poder rude da terra nem o mar; mas antes, igual (a si
mesmo) de todos os lados e completamente sem fim, ele
permanece firme dentro da cobertura próxima da Harmonia,
uma esfera arredondada exultando na sua solidão circular […]
Não lhe brotam dois ramos das costas, não tem pés, não tem
joelhos ligeiros, não tem partes férteis; ele era antes uma
esfera, igual a si mesmo de todos os lados.” 69

No seguinte comentário de Simplício ao poema de Empédocles


dá-se conta de como ao Amor se começa a sobrepor a Discórdia:
“ M a s q u a n d o a D i s c ó r d i a c o m e ç o u , u m a v e z m a i s , a p r e v a l e c e r, e n t ã o h á
de novo movimento na esfera; «pois todos os membros do deus, por sua
vez, começaram a tremer».”70 Dá-se então o múltiplo, gerado a partir
da combinação dos princípios e elementos:

68
Idem , i bi dem , p.335.
69
Idem , i bi dem , p.337.
70
Idem , i bi dem , p.342.

49
“ D e s t a s c o i s a s [ a r, á g u a , f o g o , t e r r a ] b r o t a r a m t o d a s a s c o i s a s
que foram e são e serão, árvores e homens e mulheres, animais
e pássaros e peixes criados na água, e também os deuses de
vida longa, os mais poderosos nas suas prerrogativas. Pois há
somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, assumem
muitas formas: tantas mudanças produz a mistura.” 71

A filosofia de Empédocles é uma síntese da filosofia anterior a


ele e, como síntese, é também uma continuação e um
aprofundamento das questões colocadas pelos filósofos seus
predecessores. Empédocles, ao contrário dos físicos jónios, não
encontrava em nenhum dos «princípios» e «elementos» corpóreos a
possibilidade de por si sós, individualmente ou em conjunto,
gerarem o Kosmos, o mundo ordenado, ao qual é inerente a geração
e a destruição de todas as coisas; isto é, teve a necessidade de
procurar um outro «princípio» que agisse sobre a matéria, de forma
a que desta se gere o Kosmos. Nesse sentido Aristóteles faz a
seguinte observação:

“Com efeito, ainda que toda a geração e toda a corrupção


procedam de um único princípio ou de vários, porque é que
isso acontece e qual a causa? Não é seguramente o sujeito o
autor das suas próprias mudanças: por exemplo, nem a
madeira, nem o bronze são a causa das próprias modificações,
pois não é a madeira que faz a cama, ou o bronze a estátua
[…]“.72

Daí que Aristóteles, à luz do seu sistema filosófico, considere


Empédocles o primeiro dos físicos a admitir outra causa além da
matéria, o princípio do movimento — a causa eficiente.
71
Idem , i bi dem , p.340.
72
Ari st ót el es, op. ci t ., A3, 984 a 7 – b1.

50
1.6. As Sementes

A cosmologia de Anaxágoras vai no mesmo sentido da de


Anaximandro neste ponto: faz derivar o cosmos de um agregado
o r i g i n á r i o . P a r a A n a x i m a n d r o e r a o a p e i ro n d o n d e p o r s e c e s s ã o s e
gerou o múltiplo e o Kosmos. Anaxágoras, e também Empédocles,
fazem derivar o Kosmos de um agregado de matérias originário (se
bem que não por secessão), mas enquanto Empédocles estabelece o
ciclo uno-múltiplo, Anaxágoras estabelece a série. Esse agregado
originário de Anaxágoras é a mistura:

“ To d a s a s c o i s a s e s t a v a m j u n t a s , i n f i n i t a s t a n t o n o q u e d i z
respeito ao número como à pequenez, pois o pequeno também
era infinito. E enquanto todas as coisas estavam juntas,
nenhuma delas era evidente por causa da sua pequenez; porque
o ar e o éter cobriam todas as coisas, tanto em número como
em tamanho […] Mas antes de estas coisas se separarem,
enquanto todas as coisas estavam juntas, nem sequer havia
uma só cor que se reconhecesse; pois a mistura de todas as
coisas impedia-o, a mistura do húmido e do seco, do quente e
do frio, do claro e do escuro, e de muita terra na mistura e de
sementes sem conta, em nada semelhantes umas às outras. Pois
nenhuma das outras coisas se assemelha à outra. E visto que
isto é assim, temos que supor que todas as coisas estão no
todo.”73

A m i s t u r a d e A n a x á g o r a s n ã o é o a p e i ro n d e A n a x i m a n d r o ,
como Nietzsche observa:

73
Idem , i bi dem , p.341.

51
“Mas seria um grande engano pôr em pé de igualdade a
mistura originária de todos esses pontos, das «sementes das
coisas», e o elemento primordial de Anaximandro: este último
elemento, chamado «Indefinido», é uma massa absolutamente
h o m o g é n e a e p e c u l i a r, a o p a s s o q u e o c a o s d e A n a x á g o r a s
constitui um agregado de matérias diversas. Acerca deste
agregado de matérias pode dizer-se, sem dúvida, o que se dizia
do Indefinido de Anaximandro: foi o que fez Aristóteles; o
agregado de matérias não podia ser nem branco, nem cinzento,
n e m p r e t o , n e m d e o u t r a c o r q u a l q u e r, e r a i n s í p i d o , i n o d o r o e ,
no seu todo, não era determinado nem quantitativamente, nem
qualitativamente; é neste aspeto que o Indefinido de
Anaximandro e a mistura primordial de Anaxágoras são
semelhantes. Mas, à parte esta semelhança negativa,
distinguem-se de maneira positiva, na medida em que o
segundo é composto e o primeiro uma unidade.” 74

A mistura de Anaxágoras também não é a unidade dos


elementos de Empédocles. Na mistura está uma infinidade de
elementos, como se lê no fragmento de Simplício. As sementes são
os «princípios» e «elementos» de Anaxágoras, e existem, portanto,
em número infinito, ao contrário da filosofia de Empédocles que
estabelecia apenas os quatro elementos. Além disso, a unidade dos
elementos de Empédocles é pensada ao estilo do uno eleata neste
sentido: é um todo-contínuo, sem partes; enquanto na mistura de
Anaxágoras as sementes, mesmo sendo infinitamente pequenas,
nunca perderam a sua identidade, isto é, nunca se dissolveram
totalmente numa massa indefinida.

Os «princípios» e «elementos» são ingénitos e imperecíveis


(por isso estavam presentes na mistura originária), e são aquilo de
que todas as coisas são constituídas, no caso, pela composição:

74
C f. Ni et zsche, op. C it . p. 95- 96.

52
“Os Gregos estão errados ao admitir o nascimento e a morte;
pois nada nasce ou morre, mas tudo se une e se separa, a partir
das coisas que existem. Por isso, andariam melhor em chamar
ao nascer composição e ao morrer dissolução.” 75

Por outro lado, Anaxágoras segue na esteira de Empédocles no


ponto em que também teve necessidade de pensar um outro
«princípio» para além dos elementos que agisse sobre a matéria de
forma a que dela se gerasse o mundo ordenado.

Aristóteles criticava os físicos em geral de não terem tratado


do problema do movimento, mas concedia que Empédocles e
Anaxágoras o haviam, de certa forma, antecipado na questão do
princípio do movimento, a causa-eficiente, mas através de uma
situação tipo deus ex machina. Ou seja, os princípios/causas do
movimento nas filosofias de Empédocles e Anaxágoras não são,
segundo Aristóteles, conceitos completamente integrados nas suas
filosofias, mas aparecem antes como uma resolução surpreendente
do assunto de que tratavam.

Essa observação é talvez mais justa no caso de Empédocles,


até pelo fato de, como Aristóteles salienta, Empédocles referir
muito esporadicamente as suas duas causas/princípios: o Amor e a
Discórdia. Mas, o nous de Anaxágoras revela um outro tipo de
pensamento sobre o problema do movimento e da geração do
Kosmos, e introduz um problema filosófico fundamental: a
dualidade matéria/espírito, ainda que de forma muito matizada:

“ To d a s a s c o i s a s t ê m u m a p o r ç ã o d e t u d o [ s ã o h o m e o m e r i a s ] ,
mas o Espírito é infinito e autónomo, e não se mistura com
coisa alguma, mas existe só, de per si. Pois, se não existisse
de per si, mas se misturasse com qualquer outra coisa, teria
uma porção de todas as coisas, se se misturasse com alguma;
75
Ki rk e R aven, op. C it ., p. 382.

53
pois em tudo há uma porção de tudo […]; e as coisas com ele
misturadas opor-lhe-iam tal obstáculo, que ele não poderia
controlar nada, como o faz agora, existindo de per si.”76

A natureza do Nous de Anaxágoras é um ponto problemático,


de tal maneira que a dualidade espírito/matéria não é de todo
evidente: o Espírito é simultaneamente a única coisa que existe
separadamente da matéria e é ele mesmo uma substância material.
Segundo a interpretação de Nietzsche, o Nous é “uma matéria muito
d e l i c a d a , r e v e s t i d a d a q u a l i d a d e e s p e c í f i c a d e p e n s a r. ” 7 7 N o m e s m o
sentido segue o fragmento:

“Pois ele é a mais subtil de todas as coisas e a mais pura, tem


todo o conhecimento acerca de tudo e o maior poder; e o
espírito governa todas as coisas que têm vida, tanto as maiores
como as mais pequenas.”78

O Espírito entendido no sentido aristotélico, como princípio


do movimento, causa eficiente, é caracterizado da seguinte forma:

“O espírito governou também toda a rotação de modo que


começou a rodar no princípio [entre a mistura]. E começou a
rodar primeiro a partir de uma pequena área, mas agora roda
numa mais vasta e rodará numa área ainda mais vasta. E as
coisas que estão misturadas e separadas e divididas são todas
c o n h e c i d a s p e l o E s p í r i t o . E t o d a s a s c o i s a s q u e h a v i a m d e s e r,
todas as coisas que foram, mas já não são, todas as coisas que
são agora ou que h ã o - d e - s e r, a todas o Espírito dispôs,

76
Idem , i bi dem , p. 385.
77
C f. Ni et zsche, op. C it . p. 90.
78
Idem , i bi dem , p. 386.

54
i n c l u i n d o e s t a r o t a ç ã o e m q u e a g o r a a s e s t r e l a s e s t ã o a r o d a r,
o Sol e a Lua, o ar e o éter que estão separados. E esta rotação
provocou a separação. E o denso está separado do raro, o
quente do frio, o claro do escuro e o seco do húmido. Mas há
muitas porções de muitas coisas e nada está absolutamente
separado nem dividido da outra, exceto o Espírito. o Espírito é
todo semelhante, tanto as suas quantidades maiores como as
mais pequenas, ao passo que nenhuma outra coisa é igual a
qualquer outra, mas cada coisa é e era mais claramente aquilo
de que contém uma maior quantidade.” 79

Da precedente exposição, o Espírito é facilmente entendível


c o m o i n t e l i g ê n c i a d i v i n a : t e m t o d o o c o n h e c i m e n t o a c e rc a d e t u d o ,
…o maior poder… governa todas as coisas , etc.. Não deve no
entanto ser confundido com a causa final aristotélica, o motor
i m ó v e l q u e t u d o f a z m o v e r, p o i s o E s p í r i t o a p e s a r d e t a m b é m m o v e r
todas as coisas, ele próprio se move:

“E quando o Espírito iniciou o movimento, o Espírito separou-


se de tudo o que era movido, e à medida que o Espírito se
movia, tudo se dividia; e à medida que as coisas se moviam e
se dividiam, a rotação aumentava grandemente o processo da
divisão.”80

1.7. Os Átomos

A nova forma de fazer filosofia, iniciada por Empédocles, a


tentativa de síntese entre o eleatismo e as cosmologias jónias, tem
nos atomistas um exemplo paradigmático. A teoria dos átomos é
atribuída a Leucipo, filósofo de quem muito pouco se sabe. Eleia e
Mileto são referenciados como possíveis lugares do seu nascimento.
79
Idem, ibidem p. 386.
80
Idem , i bi dem , p. 386.

55
O seu discípulo, Demócrito, aponta para 40 anos antes de
Anaxágoras a data de nascimento do seu mestre. A Leucipo
atribuem-se duas obras: “A Grande Cosmologia” e “ S o b re a
Inteligência (ou Espírito)”.

Demócrito foi um dos mais prolíficos autores entre os pré-


socráticos, tendo alcançado uma fama muito grande entre os seus
c o n t e m p o r â n e o s . N a s c e u e m A b d e r a , u m a c o l ó n i a j ó n i a n a Tr á c i a ,
em 460 a. C. Os relatos sobre a sua vida referem grandes viagens:
ao Egito onde aprendeu geometria, à Índia onde contactou com os
filósofos locais, e também à Pérsia e à Etiópia. Atribuem-se-lhe
treze tetralogias, abrangendo cinquenta e duas obras divididas por
títulos como: Ética, Física, Matemática, Música, ou Assuntos
Técnicos.

Os atomistas, enquanto físicos, defendem a geração, a


destruição, o movimento e a multiplicidade das coisas. Por outro
lado identificam os átomos com o ser dos eleatas. Os átomos são
p e n s a d o s o m a i s p r ó x i m o p o s s í v e l c o m a s e g u i n t e i d e i a : o s e r- u n o
e l e a t a f r a g m e n t a d o : “ P o i s s e r, n o v e r d a d e i r o s e n t i d o , é u m p l e n u m
absoluto. Mas [para os atomistas] um tal plenum não é uno, mas há um
número infinito deles [de átomos] […]”. 81

É em virtude dessa pluralidade que, em sentido contrário ao


e l e a t i s m o , o s a t o m i s t a s d e f e n d e m a e x i s t ê n c i a d o n ã o - s e r, n o
sentido em que o não-ser é o vazio - o espaço existente entre os
átomos: “Eles [os átomos] movem-se no vazio (pois o vazio existe),
e a o j u n t a r- s e p r o d u z e m o n a s c i m e n t o , a o s e p a r a r- s e a m o r t e ” . 8 2 P o r
nascimento e morte Aristóteles quer dizer a geração e a corrupção
das coisas, algo que acontece, portanto, pela junção e separação
dos átomos, através da seguinte maneira:

81
Idem , i bi dem , 420.
82
Idem , i bi dem.

56
“À medida que eles [os átomos] se movem, colidem e
emaranham-se de tal maneira que se agarram uns aos outros
num contacto íntimo mas não tanto que na realidade formem
uma substância, seja de que espécie for; pois é muito simplista
supor-se que dois ou mais podiam alguma vez tornar-se um. A
razão que ele [Demócrito] dá para os átomos permanecerem
juntos por um tempo é entrelaçamento e adesão mútua dos
corpos primários; pois alguns deles são angulares, outros
recurvos, outros côncavos, outros convexos, e, na verdade,
com inúmeras outras diferenças; por isso ele pensa que eles se
agarram uns aos outros e ficam juntos até à altura em que
alguma necessidade mais forte vem do ambiente circundante e
os agita e dispersa.”83

Átomo (em grego átomos) significa indivisível. A etimologia


da palavra corresponde exatamente a uma das definições que os
atomistas dão dos átomos. Os átomos dos atomistas são: “ […]
indivisíveis e impassíveis devido à sua densidade, e sem qualquer
v a z i o d e n t r o d e l e s ; a d i v i s i b i l i d a d e s u rg e e m v i r t u d e d o v a z i o e m
corpos compostos”.84

Outra das características dos átomos é a sua pequenez: são


invisíveis a olho nu, e essa é a única semelhança destes com os
átomos da ciência contemporânea. No entanto, os atomistas também
sustentavam que os objetos materiais que percecionamos são
agregados de átomos:

“Ele [Demócrito] pensa que eles [os átomos] são tão pequenos,
que escapam aos nossos sentidos, mas têm toda a espécie de
formas e feitios e diferenças de tamanho. Assim ele pode, a
partir deles, como a partir dos elementos, c r i a r, por

83
Idem , i bi dem , p. 433.
84
Idem , i bi dem , p. 442.

57
agregação, massas que são percetíveis à vista e aos outros
sentidos.”85

Os atomistas identificam os átomos com o ser e o vazio com o


n ã o - s e r. A d e m a i s , s e r e n ã o - s e r s ã o o s « p r i n c í p i o s » e « e l e m e n t o s »
dos atomistas:

“Leucipo e Demócrito sustentam que os elementos são o cheio


e o v a z i o ; e l e s c h a m a m - l h e s e r e n ã o - s e r, r e s p e c t i v a m e n t e . S e r
é c h e i o e s ó l i d o , n ã o - s e r é v a z i o e n ã o - d e n s o . Vi s t o q u e o
vazio existe em não menor grau que o corpo, segue-se que o
n ã o s e r n ã o e x i s t e m e n o s d o q u e o s e r. O s d o i s j u n t o s s ã o a s
causas materiais das coisas existentes.” 86

O ser e o não-ser são, portanto, aquilo de que as coisas são


constituídas, são o stoicheion atomista. Como tal, são também a
a rc h é : s ã o a q u i l o a p a r t i r d o q u a l a s c o i s a s s e g e r a m - p e l a
composição, e aquilo em que se dissolvem - pela separação.

Ao contrário de Empédocles e Anaxágoras, que não faziam dos


seus elementos materiais os sujeitos das suas próprias
modificações, através das quais se geram as coisas, distinguindo-se
dessa forma dos jónios, os atomistas retomam o paradigma jónio,
como Aristóteles dá conta:

“[…] E tal como aqueles [os físicos jónios] que fazem a


substância una subjacente gerar outras coisas pelas suas
modificações, da mesma maneira também estes homens dizem

85
Idem , i bi dem .
86
Idem , i bi dem , pp. 421- 422.

58
que as diferenças dos átomos são as causas das outras
87
coisas.”

Capítulo II

S er

As colónias gregas da Jónia, nomeadamente, Mileto e Éfeso,


foram o berço do primeiro grande movimento filosófico. Esses
primeiros pensadores tinham em comum uma conceção da physis
c o m o s e n d o a r e a l i d a d e e m d e v i r.

O segundo grande movimento filosófico teve o seu berço no


outro extremo da Grécia, na Magna Grécia (atual Itália). Este
segundo conjunto de pensadores, entre os quais se destacam
Parménides, Zenão, Melisso, formam aquilo a que se chama a
E s c o l a d e E l e i a . E s s e s f i l ó s o f o s p r o d u z i r a m a t e o r i a d o s e r, a q u a l
se contrapõe aos pontos fundamentais da filosofia dos jónios.

Segundo algumas fontes, a escola eleática teve, porém, um


jónio, Xenófanes de Cólofon, cerca 570 a. C., como um dos seus
fundadores. Segundo Platão: “Entre nós, o grupo dos Eleatas, que
começa com Xenófanes e até antes, explica nos seus mitos que
aquilo a que chamamos todas as coisas é na verdade uma só” .88

Os fragmentos que nos chegaram de Xenófanes vão de


encontro ao pensamento referido por Platão acerca da questão da
87
Idem , i bi dem , p. 422.
88
Idem , i bi dem , p. 165.

59
unidade. A especificidade do pensamento de Xenófanes está na
conexão que estabelece entre a unidade e o divino. Nesse sentido
Aristóteles afirma:

“Com efeito, Parménides parece aderir ao que é uno segundo a


razão, Melisso, por sua vez, ao que é uno segundo a matéria;
por isso, o primeiro diz que é limitado, o segundo, que é
ilimitado. Mas Xenófanes, o primeiro dentre estes a postular a
unidade (pois diz-se que Parménides foi seu discípulo), nada
esclareceu, e parece não ter tocado na natureza de cada uma
destas; mas com os olhos postos no mundo inteiro, afirma que
o Uno é deus."89

No seguinte conjunto de fragmentos 90, Xenófanes critica o


antropomorfismo dos deuses homéricos e hesiódicos:

“Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo quanto entre os


homens é vergonhoso e censurável, roubos, adultérios e
mentiras recíprocas […] Mas os mortais imaginam que os
deuses foram gerados e que têm vestuário e fala e corpos
iguais aos seus […] Os Etíopes dizem que os seus deuses são
n e g r o s e d e n a r i z a c h a t a d o , o s Tr á c i o s , q u e o s s e u s t ê m o l h o s
azuis e o cabelo ruivo […] Mas se os bois e os cavalos ou os
leões tivessem mãos ou fossem capazes de, com elas, desenhar
e produzir obras, como os homens, os cavalos desenhariam as
formas dos deuses semelhantes à dos cavalos, e os bois à dos
bois, e fariam os seus corpos tal como cada um deles o tem
[…] Existe um só deus, o maior dentre os deuses e os homens,
em nada semelhante aos mortais quer no corpo quer no
p e n s a m e n t o [ … ] P e r m a n e c e s e m p r e n o m e s m o l u g a r, s e m s e
mover; nem é próprio dele ir a diferentes lugares em
89
Idem , i bi dem , pp. 165- 172.
90
Idem , i bi dem , pp.169- 170.

60
diferentes ocasiões, mas antes, sem esforço, ele abala todas as
c o i s a s c o m o p e n s a m e n t o d o s e u e s p í r i t o [ … ] To d o e l e v ê ,
todo ele pensa, e todo ele ouve.”

Platão e Aristóteles incluem Xenófanes entre o conjunto de


filósofos da Escola Eleática, fazendo dele o, ou um dos, seus
fundadores, e Aristóteles faz dele mestre de Parménides. Essas
considerações de Platão e Aristóteles não devem contudo ser
tomadas à letra, sobretudo no que concerne ao estudo histórico-
filosófico. Essa tese historiográfica não é aceite por estudos
recentes91. Com efeito, Xenófanes terá emigrado de Colófon para a
Sicília e para a Itália meridional quando tinha cerca de 25 anos,
mas atendendo à imagem que dele ficou para a posteridade como
sendo um “andarilho sem morada fixa” 92, é improvável que tenha
fundado uma escola em Eleia. Platão e Aristóteles ligam Xenófanes
ao eleatismo, provavelmente, no mesmo sentido que ligam Homero
ao heraclitismo e Hesíodo a Empédocles e Parménides, visto estes
f i l ó s o f o s s e r v i r e m - s e d e E r o s c o m o « p r i n c í p i o » u n i f i c a d o r. O u s e j a ,
estabelecem uma origem para uma linhagem de um certo tipo de
pensamento. Em Homero encontram de alguma forma uma
antecipação do pensamento sobre a fluidez de todas as coisas
presente em Heraclito, visto Homero falar no Oceano e em Tétis
como sendo a origem de todas as coisas; identificam a ideia
heraclitica de fluxismo universal com a fluidez do elemento líquido
originário homérico. Nesse sentido encontram em Xenófanes uma
antecipação do Uno e do eternamente Imóvel parmenídeo.

Ser e não-ser

91
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t , p 97.
92
Idem , i bi dem . p 98.

61
Parménides nasceu entre 515 a 510 a.C. na Grécia Magna,
onde terá sido governante, em Eleia, e fundado a escola eleática.
Segundo o relato de Antifonte, no diálogo platónico “ Parménides”,
este e o seu discípulo Zenão visitaram Atenas por volta de 450-445,
altura em que contactaram com o então jovem Sócrates.

Dos seus escritos chegaram-nos alguns fragmentos do seu


p o e m a i n t i t u l a d o : “ S o b re a N a t u re z a ” , c o m p o s t o p o r u m p r ó l o g o e
d u a s p a r t e s : a v i a d a v e rd a d e e a v i a d a a p a r ê n c i a . O p o e m a é u m a
mensagem filosófica, apresentada como revelação da deusa ao
jovem Parménides:

“E a deusa acolheu-me afavelmente, tomou-me a dextra na sua


e dirigiu-me estas palavras: «Sê bem-vindo, ó jovem, que
vieste à minha morada no carro que te transporta,
acompanhado de ourigas imortais. Não é a sorte mesquinha,
mas o direito e a justiça, quem te enviou a viajar neste
caminho. Pois bem longe ele fica do trilho dos homens.
Encontrá-lo significa que aprenderá todas as coisas, tanto o
ânimo inabalável da verdade bem redonda, como as opiniões
d o s m o r t a i s n a s q u a i s n ã o h á c o n f i a n ç a v e r d a d e i r a . To d a v i a ,
deverás aprender isto também – como as aparências, passando
através de tudo, devem assemelhar-se ao ser».” 93

Parménides, movido pelo direito e pela justiça segue o


c a m i n h o q u e o l e v a a o s a b e r, o n d e s e a p r e n d e t o d a s a s c o i s a s . A í
estabelece-se uma divisão (duas vias) entre a verdade bem redonda
e as opiniões dos mortais. A via da verdade absoluta é a daquilo
q u e é o u d o s e r. A v i a d a s o p i n i õ e s d o s m o r t a i s é a d a f a l s i d a d e , d o
que não é ou do não-ser:

“vamos e dir-te-ei e tu escuta e leva as minhas palavras. Os


únicos caminhos da investigação em que se pode pensar: um, o

93
Ki rk e R aven, op. ci t . p. 274.

62
c a m i n h o q u e é e n ã o p o d e n ã o s e r, é a v i a d a P e r s u a s ã o , p o i s
acompanha a verdade; o outro, o que não é e é forçoso que não
exista, esse, digo-te, é um caminho totalmente impensável.
Pois não poderás conhecer o que não é (isso é impossível),
nem declará-lo, pois a mesma coisa tanto pode ser pensada
94
c o m o p o d e e x i s t i r. ”

Parménides contrapõe assim, em termos absolutos, o que é (o


s e r ) e q u e n ã o p o d e n ã o s e r, a o q u e n ã o é ( o n ã o - s e r ) e q u e n ã o
p o d e s e r. E s s e s s ã o p o r t a n t o o s d o i s c a m i n h o s d a i n v e s t i g a ç ã o , s e
bem que do caminho daquilo que não é se deva afastar:

“Porque nunca isto será demonstrado, que as coisas que não


são existem; mas tu afasta o pensamento desta via da
investigação, não vá o costume, gerado de muita experiência,
forçar-te a deixar vaguear por esta senda o olhar incerto, o
ouvido onde ecoam sons ou a tua língua; mas tu julga com a
razão a prova muito contestada de que falei.” […] “O que se
pode dizer e pensar é forçoso que seja pois lhe é possível
s e r, e n ã o a o q u e n a d a é ; i s t o t e o r d e n o q u e m e d i t e s . E s t e
é o primeiro caminho de investigação do qual te
afasto[…]”95

Acerca do caminho do que é, Parménides postula o ser em


termos absolutos, isto é, pensa o ser completamente abstraído de
toda a realidade sensível. Só o ser existe, ou seja, aquilo que «é»
deve ser agora como era antes e será sempre:

94
Idem , i bi dem . p 275.
95
Idem , i bi dem . P. 277.

63
“De um só caminho nos resta falar: do que é; e neste caminho
há indícios de sobra de que o que é, é incriado e indestrutível,
porque é completo, inabalável e sem fim. não foi no passado
nem será no futuro, uma vez que é agora, ao mesmo tempo,
uno, contínuo; pois que origem lhe poderás encontrar? Como e
d e o n d e s u r g i r ? N e m e u t e p e r m i t i r e i d i z e r o u p e n s a r, « a p a r t i r
daquilo que não é», pois não é para ser dito nem pensado o
q u e n ã o é . E q u e n e c e s s i d a d e o t e r i a i m p e l i d o a s u r g i r, s e
viesse do nada, num momento posterior de preferência a um
anterior? Portanto é forçoso ou que seja inteiramente, ou nada.
Nem a força da verdadeira crença permitirá que, além do que
é, possa algo surgir também do que não é; por isso, a Justiça
n ã o s o l t a a s a l g e m a s d e d e i x a r n a s c e r o u p e r e c e r, a n t e s a s
segura. Acerca disto a decisão reside neste fato: é ou não é.
Decidido está pois, como é de necessidade, deixar um dos
caminhos como impensável e indizível – pois não é o caminho
verdadeiro - e que o outro é real e verdadeiro. Como poderia o
que é perecer depois disso? E como poderia ser gerado?
Porque se foi gerado, não é, nem se o vai ser no futuro. Assim
a geração se extingue ea destruição é impensável.” 96

No fragmento, Parménides diz que o ser é ingénito e


imperecível. O ser é aquilo que «é» em termos absolutos. Isso
significa que o «é» não tem passado nem futuro, é um eterno
presente. Se é eterno, não foi criado, existe desde sempre. No
m e s m o s e n t i d o , P a r m é n i d e s p e rg u n t a d e o n d e p o d e r i a v i r a q u i l o q u e
«é», sendo aquilo que «é» tudo quanto existe? Só poderia vir
daquilo que não-é, do nada. Mas então como é que o nada, o não-
s e r, p o d e t e r g e r a d o o s e r ? P a r a P a r m é n i d e s i s s o é i m p e n s á v e l .
Mais, o não-ser e o nada são impensáveis. Então conclui duas
coisas:

96
Idem , i bi dem . p. 279- 280 .

64
1- O que não se pode pensar e dizer não existe! E daí
e s t a b e l e c e a c o n t r a p o s i ç ã o e m t e r m o s a b s o l u t o s : s e s e p o d e p e n s a r,
existe, ou seja, o mesmo é pensar e ser:

“O que pode ser pensado é apenas o pensamento que é. Pois


não encontrarás pensamento sem o que é, em relação ao qual é
declarado; porque não existe, nem existirá, algo para além do
que é, uma vez que o Destino lhe pôs os grilhões para ser
inteiro e imóvel. Logo, tudo isto são meros nomes que os
mortais puseram, julgando-os verdadeiros: geração e
destruição, ser e não-ser [os dois ao mesmo tempo], mudança
de lugar e alteração da cor brilhante.” 97

2- Do nada nada vem!


3- Há que optar (por um caminho): «é» ou «não-é».

Rejeitado o caminho da falsidade – o do que não-é, segue-se o


caminho da verdade – o do que «é». Aquilo que «é» é
absolutamente: “[…] tudo está cheio do que é. Por isso é todo
contínuo.”98

O s e r é , p o r t a n t o , o To d o , n ã o c o m o s o m a d a s p a r t e s , p o r q u e
n ã o h á p a r t e s , m a s c o m o u m t o d o - c o n t i n u u m e , a o To d o , n a d a f a l t a .
Mais uma razão para que do nada nada venha. Se o ser de nada
necessita, e é ingénito e imperecível, pois é eterno, então
permanece o mesmo desde sempre e para sempre:

“Mas, imobilizado nos limites de cadeias potentes, é sem


princípio ou fim, uma vez que a geração e a destruição foram
afastadas, repelidas pela convicção verdadeira. É o mesmo,
que permanece no mesmo e em si repousa, ficando assim firme

97
Idem , i bi dem . p. 284.
98
Idem , i bi dem . p. 281.

65
n o s e u l u g a r. P o i s a f o r t e N e c e s s i d a d e o r e t é m n o s l i a m e s d o s
limites, que de cada lado o encerram, porque não é lícito ao
que é ser ilimitado; pois de nada necessita – se assim não
fosse, de tudo careceria […] Mas uma vez que tem um limite
extremo, está completo de todos os lados, à maneira da massa
de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio a partir do centro,
em todas as direções; pois não pode ser algo mais aqui e algo
menos ali. Porque nem há o que não é, o qual poderia impedi-
lo de encontrar o seu igual, nem o que é pode ser mais aqui e
menos ali do que aquilo que é, visto ser todo inviolável; pois
sendo igual a si próprio em todos os lados, repousa
99
uniformemente dentro dos seus limites.”

Ser e aparência

No prólogo do poema parmenídeo a deusa diz a Parménides


que o caminho do saber leva a aprender todas as coisas, entre as
quais estão a verdade bem redonda e as opiniões dos mortais que,
como vimos, são duas vias exclusivas: a via daquilo que «é» e que
n ã o p o d e n ã o s e r e a v i a d a q u i l o q u e « n ã o - é » e q u e n ã o p o d e s e r.
Parménides antecipa assim o princípio de não-contradição
aristotélico, ainda que apenas sob a perspetiva ontológica. A
d i m e n s ã o e s t r i t a m e n t e l ó g i c a e g n o s i o l ó g i c a s u rg e a p e n a s c o m
Aristóteles.

Mas, além dessas duas vias exclusivas, a deusa anuncia


também que Parménides deverá ainda “aprender como as
a p a r ê n c i a s , p a s s a n d o a t r a v é s d e t u d o , d e v e m a s s e m e l h a r- s e a o s e r ” .
A s a p a r ê n c i a s n ã o s ã o o s e r, m a s t a m b é m n ã o s ã o o n ã o - s e r - n ã o
são um nada, são pois um caminho intermédio:

99
Idem , i bi dem . p. 282.

66
“[…] no qual vagueiam os mortais que nada sabem, bicéfalos;
pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; eles
são levados, surdos e cegos a um tempo, totalmente
confundidos – multidões sem discernimento, persuadidos de
que ser e não ser são a mesma coisa, apesar de o não serem, e
para quem o caminho de todas as coisas é reversível.” 100

Ta l c o m o o c a m i n h o d o n ã o - s e r, o c a m i n h o d a s a p a r ê n c i a s
d e v e s e r r e j e i t a d o . I s t o p o r q u e o p u r o s e r, t a l c o m o P a r m é n i d e s
postula, é a abstração de toda a realidade sensível, isto é, é tudo
aquilo que a razão pode dizer do mundo sem o recurso aos sentidos.
Ou melhor dizendo, é a negação daquilo que atestam os sentidos, é
a n e g a ç ã o d o d e v i r. O s e r é , p o r t a n t o , a n e g a ç ã o d o m ú l t i p l o , p o i s é
uno, é a negação do movimento, pois é imóvel, é a negação da
geração e da destruição, pois é eterno.

Para o filósofo eleata os sentidos dão apenas conta do


a p a r e n t e , m a s a s a p a r ê n c i a s d e v e m a p e n a s a s s e m e l h a r- s e a o s e r,
como a deusa instrói Parménides. Só o julgamento da razão dá
conta da verdade:

“Porque nunca isto será demonstrado, que as coisas que não


são, existem; mas tu afasta o pensamento desta via de
investigação, não vá o costume, gerado de muita experiência,
forçar-te a deixar vaguear por esta senda o olhar incerto, o
ouvido ecoam sons ou a tua língua; mas tu julga com a razão a
prova muito contestada de que falei.” 101

Mas uma vez admitidas as aparências, Parménides elabora


uma cosmologia semelhante à dos físicos que, no fundo, é uma

100
Idem , i bi dem , p. 277.
101
Idem , i bi dem .

67
crítica, construtiva em todo o caso, a essa forma de fazer filosofia.
Assim, estabelece dois «princípios» e «elementos», segundo os
r e l a t o s d e Te o f r a s t o e A r i s t ó t e l e s :

“[…] Para dar uma explicação da geração das coisas sensíveis,


de acordo com a opinião da maioria, ele faz com que os
primeiros princípios sejam dois […] mas depois de ser
forçado a condescender com as coisas sensíveis, e de admitir a
existência daquilo que é uno por definição, mas múltiplo
segundo as nossas sensações, postula agora duas causas e dois
primeiros princípios.”102

Esses princípios são a luz e a noite (fogo e terra?):

“Entenderam [os que opinam falsamente] que haviam de dar


nome a duas formas, das quais não deviam nomear apenas uma
– nisso eles erraram – e distinguiram-nas como opostas na
aparência e atribuíram-lhe manifestações diferentes – a uma a
chama etérea do fogo, branda e muito leve, idêntica a si
mesma em todas as direções, mas não idêntica à outra; e
também essa outra é em si mesma precisamente o oposto, noite
escura, densa de aspeto e pesada." 103

Ao fazer a transição da verdade para a aparência, Parménides


estabelece dois princípios opostos, a partir dos quais se dá a
geração das coisas sensíveis. A um par de elementos opostos como
o fogo e a terra correspondem inúmeros contrários: quente e frio,
rarefeito e denso, leve e pesado, etc., que vão gerar as coisas pela
combinação e mistura. O que mostra que Parménides estava a par da

102
Idem , i bi dem , p. 286.
103
Idem , i bi dem , p. 285.

68
filosofia jónia. No entanto ressalva que o discurso da aparência é
ilusório:

“Aqui termino o meu discurso digno de fé e o meu pensamento


a respeito da verdade; sobre a opinião dos mortais aprende, a
partir de agora, escutando a ordem ilusória das minhas
104
palavras.”

O Ser e o Uno

É s o b r e a s q u e s t õ e s d o s e r- u n o e d a i m o b i l i d a d e d o s e r
parmenídeo que Zenão, discípulo de Parménides, vai sair em
defesa. Zenão nasceu em Eleia, por fins do século VI ou no início
d o s é c u l o V a . C . 1 0 5 . D a s u a o b r a c h e g a r a m - n o s q u a t r o a rg u m e n t o s
contra o pluralismo (terá produzido cerca de quarenta) e quatro
contra o movimento. É considerado o inventor da dialética,
e n q u a n t o m é t o d o d e a rg u m e n t a ç ã o e r e f u t a ç ã o a t r a v é s d e p e rg u n t a s
e respostas, procurando provar determinada tese reduzindo ao
absurdo a tese oposta. Neste seu estádio inicial a dialética é assim
um método que, mais do que procurar o verdadeiro, como vem a
acontecer na filosofia de Platão, que a considerava uma ciência,
procura desmascarar o falso.

No “Parménides”, onde se discute a natureza do livro de


Zenão, Platão faz de Zenão e Sócrates o seguinte diálogo:

“ – Ve j o b e m , P a r m é n i d e s – d i s s e e n t ã o S ó c r a t e s – q u e n ã o é
só o laço da amizade que te une a Zenão mas também o dos
escritos, pois Zenão expõe, mais ou menos, as mesmas coisas
que tu; emprega apenas palavras diferentes e esforça-se por
n o s c o n v e n c e r d e q u e d i z c o i s a s d i f e r e n t e s . Tu , n o s t e u s
poemas, afirmas que tudo é um, e apresentas belas e

104
Idem , i bi dem , p. 285.
105
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p. 117.

69
excelentes provas; ele afirma que a pluralidade não existe, e
oferece-nos provas abundantes e sólidas. Deste modo, dizendo
tu que tudo é um, e ele que nada é múltiplo, parece que
apresentais pontos de vista diferentes (se bem que, no fundo,
sejam o mesmo) e julgais enganar-nos. – É verdade, Sócrates –
d i s s e Z e n ã o . – To d a v i a , n ã o a p r e n d e s t e o v e r d a d e i r o s e n t i d o
do meu livro, embora, à semelhança dos cães da Lacónia,
saibas seguir admiravelmente o rasto dos pensamentos que se
exprimem. No entanto, deixaste escapar qualquer coisa de
primordial: é que o meu livro não tem pretensões tão altas e,
ao escrevê-lo, não tive o propósito que me atribuis de
dissimulá-lo aos olhos dos leitores como se tivesse realizado
uma grande obra. Porém, houve um ponto em que acertaste: é
perfeitamente certo que que esse escrito obedeceu ao
propósito de apoiar a tese de Parménides, contra aqueles que
procuram escarnecê-la dizendo que, se tudo fosse uno,
resultariam daí inúmeras consequências absurdas e
contraditórias. É uma réplica dirigida aos defensores da
pluralidade. Devolve-lhes os seus argumentos, e com usura. A
sua finalidade consiste em demonstrar que a hipótese da
pluralidade é muito menos consistente que a unidade, para
quem saiba ver bem as coisas. o amor da discussão levou-me,
quando ainda era jovem, a escrever essa obra. e, como a
plagiaram, não pude refletir se deveria ou não deixá-la sair à
luz. Enganas-te, pois, Sócrates, se atribuis esse livro à
ambição dum velho, quando é obra de um moço, amigo da
p o l é m i c a . To d a v i a , r e p i t o , n ã o o i n t e r p r e t a s - t e m a l . ” 1 0 6

A a rg u m e n t a ç ã o d e Z e n ã o c o n t r a a p l u r a l i d a d e a s s e n t a n a
conceção de que a haver multiplicidade esta teria de ser uma
multiplicidade de unidades, mas isso, para ele, é impossível:

“Zenão de Eleia […] tenta demonstrar que é impossível que


realmente exista a multiplicidade. De facto, diz ele, se existe
a multiplicidade, pelo fato de esta ser constituída de uma
106
C f. P l at ão, Parméni des ou das Idei as , pp. 21- 22.

70
multiplicidade de unidades, é necessário que existam aquelas
múltiplas unidades da qual, justamente, a multiplicidade é
constituída. Se, pois, demonstrar-mos ser impossível existir
múltiplas unidades, é evidente que resultará (ser) impossível a
existência da multiplicidade, porque a multiplicidade é
composta de unidades. Se é impossível que exista a
multiplicidade e se, de outro lado, é necessário que exista ou
o Uno ou a multiplicidade, porque não é possível que exista a
multiplicidade, não resta senão admitir que só existe a
107
unidade."

Ou existe o Uno, ou existe uma multiplicidade. Se existe o


Uno, este não tem tamanho, massa ou partes, caso contrário seria
divisível, não seria, portanto, Uno. Se existe uma multiplicidade,
então será uma multiplicidade de unidades. Mas essas unidades são
pensadas como as unidades dos Pitagóricos, pois é destes que
Zenão defende a tese de Parménides. Assim, as unidades possuem
extensão espacial e massa. O que significa que são divisíveis em
partes. Isso levanta duas questões:

1 – Se é divisível em partes, essas partes são infinitamente


divisíveis. O que significa que tem partes infinitamente pequenas.
Ora, o que é infinitamente pequeno não é nada.

2 – Aquilo que possui infinitas partes é infinitamente grande.

Esse paradoxo é assim estabelecido por Zenão:

“Se a pluralidade existe, as coisas serão igualmente grandes e


pequenas; tão grandes que serão infinitas em tamanho, tão
pequenas que não terão qualquer tamanho.

Se o que existe não tivesse tamanho, nem sequer seria. Pois se


fosse acrescentado a qualquer outra coisa, não a faria maior;

107
C f. Gi ovanni R eal e, Op. cit , p. 122.

71
pois não tendo tamanho algum, não podia, ao ser acrescentado,
causar qualquer aumento de tamanho. E assim, o que fosse
acrescentado seria evidentemente nada. E também se, ao ser
tirado, a outra coisa não fica m e n o r, tal como, quando
acrescentada, não aumenta, é óbvio que o que foi juntado ou
tirado era nada.

Mas, se existe, cada coisa deve ter um certo tamanho e


espessura; e uma parte dela tem de estar a certa distância de
outra parte; e o mesmo argumento vale para a parte que está
diante dela - que também terá algum tamanho, e alguma parte
dela estará à frente. E é a mesma coisa dizer isto uma vez e
continuar a dizê-lo indefinidamente; pois nenhuma parte dela
será a última, nem haverá nunca uma parte sem relação com
outra.

Assim, se há uma pluralidade, as coisas têm de ser igualmente


grandes e pequenas; tão pequenas que nem terão tamanho, tão
grandes que serão infinitas. 108

E s t e é o p r i m e i r o a rg u m e n t o d e Z e n ã o c o n t r a a p l u r a l i d a d e . O
segundo vem no seguimento do primeiro neste sentido: a haver uma
multiplicidade, então existe uma infinidade. Havendo uma
infinidade, não existe qualquer tipo de unidade, pois uma
infinidade completa é inconcebível. Daí nada pode existir de
infinito, pois seria uma infinidade completa.

“Se a pluralidade existe, as coisas têm de ser tantas quantas


são, nem mais nem menos. E se são tantas quantas são, têm de
ser limitadas.

Se a pluralidade existe, as coisas que existem são infinitas;


pois haverá sempre outras coisas entre as coisas que existem,

108
Ki rk e R aven, Op. C it ., p. 295.

72
e ainda outras coisas entre essas outras. E assim as coisas que
existem são infinitas.”109

Estes a rg u m e n t o s de Zenão não constituíram entraves


intransponíveis a Anaxágoras e aos Atomistas. Anaxágoras em
resposta a Zenão:

“Nem há a parte mais pequena daquilo que é pequeno, mas há


sempre uma mais pequena (pois é impossível que o que é deixe
de ser). De igual modo, há sempre alguma coisa maior do que
o que é grande. E é igual em número ao que é pequeno, sendo
cada coisa, em relação a si mesma, tanto grande como
pequena.” 110

A consequência lógica de Zenão é: se as coisas que existem


são materiais, então são divisíveis ao infinito, divisíveis a ponto de
se chegar a nada. Anaxágoras passou por cima desse raciocínio: por
mais pequenas que as coisas sejam nunca serão um nada, possuirão
sempre propriedade material, pois é impossível que o que «é» deixe
d e s e r.

A resposta dos Atomistas foi em grande medida adiantada por


um discípulo de Parménides, Melisso de Samos, cujo florescimento
ocorreu por 444-441. Como Zenão, Melisso sai em defesa da tese
parmenídea do Uno e ataca a ideia de pluralismo:

“Pois deixou bem claro que entende que o que existe é


incorpóreo, ao escrever: «Se é, tem de ser Uno, e sendo Uno,

109
Idem , i bi dem , p.296.
110
Idem , i bi dem , p 383.

73
não deve ter corpo algum. Se tivesse grandeza, teria partes e
já não seria Uno.” 111

No entanto, Melisso encontra uma aporia na tese parmenídea.


Parménides dizia do ser:

“[o ser] tem um limite extremo, está completo de todos os


lados, à maneira da massa de uma esfera bem rotunda […]
Porque nem há o que não é, o qual poderia impedi-lo de
encontrar o seu igual, nem o que é pode ser mais aqui e menos
ali do que aquilo que é visto ser todo inviolável; pois sendo
igual a si próprio em todos os lados, repousa uniformemente
dentro dos seus limites”. 112

Ou seja, se o ser possui um limite extremo, se como uma


esfera repousa imóvel dentro dos seus limites, então é finito, não
no tempo, pois é ingénito e imperecível, mas no espaço. Assim,
quando Melisso afirma: “Mas tal como existe para sempre, assim
também tem de ser para sempre infinito em magnitude ” 113, quer
dizer que o ser tem de ser infinito no tempo e no espaço. Pois a não
ser infinito no espaço poderiam ser daí retiradas duas conclusões:

1- Não é apenas um só, ou seja, o ser não é Uno:

“Se não fosse um só, seria limitado por alguma outra coisa
[…] Porque, se fosse (infinito), seria um só; porque, se fosse

111
Idem , i bi dem , p 312.
112
Idem , i bi dem , pp 282-283.
113
Idem , i bi dem , p 308.

74
dois, os dois não podiam ser infinitos, mas seriam limitados
um pelo outro.” 114

2- O vazio (o não-ser) existe: “ [Os Eleatas] Dizem que o


Universo é Uno e imóvel, e alguns [Melisso] acrescentam que é
infinito, pois o seu limite limitá- lo-ia em relação ao vazio.” 115

A aporia que Melisso aponta a Parménides é assim evidente.


O ser é uno e é infinito no tempo, mas é finito no espaço: é uma
esfera perfeitamente delimitada espacialmente . Mas então o que é
que limita espacialmente o ser? Só pode ser o vazio que circunda a
e s f e r a d o s e r. A s s i m , o n ã o - s e r e x i s t e j u n t o a o s e r, o u e x i s t e
outro(s) ser que assim limita-o no espaço. Mas então já não é uno,
existe uma pluralidade.

Daí Melisso tem de concluir que o ser é infinito em


magnitude, ou seja, espacialmente infinito. E assim pode dizer que
o uno existe e que o não-ser não existe. No entanto, adianta uma
possibilidade: pensa que a existir uma multiplicidade as coisas
teriam de ser como o uno 116:

“Se houvesse uma pluralidade, as coisas teriam de ser da


mesma espécie que eu atribuo ao Uno. Pois se há terra e água,
e ar e fogo, e ferro e ouro, e se uma coisa é viva e outra
morta, e se as coisas são pretas e brancas e tudo o que os
homens dizem que elas realmente são - se é assim, e se vemos
e ouvimos bem, cada uma delas tem de ser tal como primeiro
decidimos, não podendo der mudadas nem alteradas, mas cada
uma deve ser sempre precisamente como é.” 117

114
Idem , i bi dem , p 309.
115
Idem , i bi dem .
116
É esse pensam ent o que se encont ra na fi l osofi a dos At omi st as.
117
Idem , i bi dem , p.314.

75
Na sua crítica do pluralismo, Melisso não tem em mente os
Pitagóricos, como acontecia com Zenão, mas sim os físicos,
particularmente Heraclito e a teoria do devir entre contrários,
conforme se induz do seguinte fragmento:

“ […] Mas, sendo assim, dizemos que vemos, ouvimos e


compreendemos bem e, no entanto, acreditamos que o que é
quente arrefece e o que é frio aquece; que o que é duro
amolece, e o que é mole endurece; que o que vive morre, e que
as coisas nascem do que não vive; e que todas essas coisas
mudam, e que o que elas eram e o que agora são, não é de
modo algum semelhante. Pensamos que o ferro, que é duro, se
desgasta pelo contacto com os dedos; do mesmo modo, o ouro
e a pedra e tudo o que imaginamos ser forte, e que a terra e a
pedra são feitas de água; e assim se conclui que nem vemos
118
nem conhecemos as realidades.”

A tradição eleata está bem patente no discurso de Melisso


quando infere que a experiência sensível não dá conta da
verdadeira natureza da realidade. Os sentidos mostram-nos o
múltiplo, a transformação de qualidades e a modificação de
estados. Perante todo esse mundo em permanente mudança, atestado
pela nossa sensibilidade, Melisso p e rg u n t a pela verdadeira
realidade das coisas e conclui que as coisas reais não mudam. Se
assistimos à mudança nas coisas isso deve-se à nossa incapacidade
sensorial:

“ […] Ora, estas coisas não estão de acordo umas com as


outras. Dissemos que havia muitas coisas que eram eternas e
que tinham formas e força próprias, e, contudo, imaginamos
que todas elas sofrem alterações, e que mudam daquilo que

118
Idem , i bi dem , (C ont .).

76
vemos de cada vez. é, pois, evidente que, afinal, não vimos
bem, nem temos razão em acreditar que todas estas coisas são
plurais. elas não mudariam se fossem reais, antes cada coisa
seria precisamente aquilo que acreditávamos que era; pois
nada é mais forte do que a verdadeira realidade. Mas se
acontece que mudou, o que é, pereceu, e o que não é, chegou a
s e r. P o r c o n s e g u i n t e , s e h o u v e s s e u m a p l u r a l i d a d e , a s c o i s a s
teriam que ser precisamente da mesma natureza que o Uno.” 119

Capítulo III

A questão do movimento

Para os filósofos Jónios a questão da Kinesis, o movimento,


e r a i n t r í n s e c a à p h y s i s . O v i r- a - s e r, a p a s s a g e m d o s e r a o n ã o - s e r, a
mudança, produziam naturalmente o movimento. Ademais, tal como
com o “princípio” e o “elemento”, consideravam o movimento
eterno:

“ […] Mas todos os que afirmam que há mundos infinitos, e


que alguns deles são gerados e outros destruídos, afirmam
também que o movimento existe sempre… ao passo que todos
os que dizem que há um só mundo, eterno ou não, formulam
uma hipótese análoga acerca do movimento.” 120

Ta m b é m a t r i b u í a m u m a n a t u r e z a c i n é t i c a a o s e l e m e n t o s : o
curso dos rios e as ondas do mar no caso da água, o vento no caso
d o a r, a n a t u r e z a e x p a n s i v a d o f o g o . E e s s a é t a m b é m u m a d a s
razões porque a terra é o único dos corpos simples que não aparece
119
Idem , i bi dem , p 315.
120
Ari st ót el es, Fí si ca , 1,250b11.

77
como “princípio” e “elemento” entre os físicos. A terra é o
elemento mais pesado, mais denso, menos sujeito a transformações
qualitativas, em suma, é o elemento inerte, quando comparado com
os outros elementos.

Ademais, a forma pela qual se gera a multiplicidade – através


das propriedades e determinações de um “princípio” e “elemento” –
é também, ela mesma, geradora de movimento. Fenómenos como a
rarefação e condensação, a evaporação, a oposição dos contrários,
significam mudança, e a mudança é acompanhada de movimento.
Não obstante, Aristóteles considerava que a questão da kinesis
havia sido negligenciada entre os pré-socráticos: “Negligenciaram a
questão de saber de onde deriva e como existe nos seres o
movimento.”121 Referia-se particularmente aos físicos jónios, os
quais, segundo a filosofia aristotélica, identificavam apenas a
causa material.

Depois de Parménides a questão da kinesis tem outro


tratamento: não basta admitir a existência do movimento, é preciso
explicá-lo. Com exceção dos atomistas, que faziam os átomos
vaguear ao acaso pelo vazio, aglomerando-se e dispersando-se,
constituindo dessa forma o Kosmos; os físicos, e mesmo
Parménides, necessitaram de entrever uma outra causa para além da
causa material que produzisse o movimento. Segundo Aristóteles,
estes filósofos: “ […] entreviram a causa motora; assim, por
exemplo, os que afirmam como princípio a Amizade e a Discórdia
[Empédocles], ou a Inteligência [Anaxágoras], ou até mesmo o
A m o r. ” 1 2 2

A referência ao Amor como causa motora é relativa a


Parménides, mas também a Hesíodo:

121
Ari st ót el es, Met af í si ca , A4/ 5, 985 b 19 – 986 a 10.
122
Idem , i bi dem , de A 6/ 7, 988 a 8 – 33 a A7/ 8, 988 a 34 – b 23.

78
«Este [Parménides], com efeito, ao reconstruir a origem do
universo diz: “Primeiro entre todos os deuses (a deusa)
produziu o Amor”; enquanto Hesíodo diz: “Antes de tudo
existiu o caos, depois foi a terra do amplo ventre e o Amor
que resplandece entre todos os imortais”, como se ambos
reconhecessem que deve existir nos seres uma causa que move
e reúne as coisas”.123

No entanto, Aristóteles, referindo-se à generalidade dos


filósofos pré-socráticos, considera que eles não avançaram o
necessário na questão do movimento: não atribuíram um sentido
teleológico à causa motora, ou seja, não entreviram a causa final:

“Quanto ao fim pelo qual as ações, as mudanças e os


movimentos ocorrem, de certo modo eles o afirmam como
causa, mas não dizem como e nem explicam sua natureza. Os
que afirmam a Inteligência ou a Amizade admitem essas causas
como bem, mas não falam delas como se fossem o fim pelo
qual alguns dos seres são ou se produzem, mas como se delas
derivassem os movimentos”. 124

Sobre a questão do movimento, Parménides coloca o problema


d o s e g u i n t e m o d o : s ó e x i s t e a q u i l o q u e « é » , o s e r, e o s e r é i m ó v e l ,
logo não existe movimento: […] imobilizado nos limites de cadeias
potentes […] É o mesmo, que permanece no mesmo e em si repousa,
ficando assim firme no seu lugar”. 125 No entanto, é limitado
espacialmente, visto ser como uma esfera: “ […] uma vez que tem
um limite extremo, está completo de todos os lados, à maneira da

123
Idem , i bi dem , pp. A ¾, 984 b 1 – 25 a A 4, 984 b 26 – 985 a 22.
124
Idem , i bi dem , p. A 7/ 8, 988 a 34 – b 23.
125
Ki rk e raven, op. C it . p. 282.

79
massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio a partir do centro,
em todas as direcções.” 126

Como Melisso se deu conta, a finitude espacial do ser implica


a e x i s t ê n c i a d o n ã o - s e r, d o v a z i o . A d m i t i n d o - s e a e x i s t ê n c i a d e u m
v a z i o c i r c u n d a n t e a o s e r, c o m o P a r m é n i d e s n ã o o e v i t a , o s e r p o d e
d e s l o c a r- s e : o q u e é q u e i m p e d e q u e a e s f e r a d o s e r s e m o v a n o
vazio circundante? A essa questão Parménides poderia contrapor:
porque é que o ser se moveria no vazio? Com Parménides, e a partir
dele, não basta admitir a existência do movimento, é preciso
explicá-lo.

Ta l c o m o c o m a q u e s t ã o d a p l u r a l i d a d e , a a rg u m e n t a ç ã o d e
Zenão contra o movimento visa defender o ser uno e imóvel
p a r m e n í d e o . O s a rg u m e n t o s q u e n o s c h e g a r a m t ê m e m m i r a o s
Pitagóricos. Dada a confusão que esses filósofos faziam entre
unidades da aritmética com pontos da geometria, atribuíam
dimensão física aos números – massa e extensão espacial. Assim,
todas as coisas, incluindo espaço e tempo, seriam constituídas por
essas unidades (aritmética) - pontos (geometria) – átomos
(constituição material das coisas). Dessa forma caíam na seguinte
contradição: cada uma dessas unidades-pontos-átomos seria,
simultaneamente, indivisível, pois a unidade aritmética seria a
realidade última de todas as coisas, mas teria extensão espacial, e
a s s i m s e r i a i n f i n i t a m e n t e d i v i s í v e l . O s a rg u m e n t o s d e Z e n ã o v i s a m
e s s a s d u a s i d e i a s q u e o s P i t a g ó r i c o s t i n h a m d e a d m i t i r. Te n t a n d o
a s s i m e n c u r r a l a r, r e d u z i n d o a o a b s u r d o , a s t e s e s , s o b r e t u d o a s
pitagóricas, defensoras do movimento.

O a rg u m e n t o d o E s t á d i o :

126
Idem , i bi dem , p 282.

80
“O primeiro argumento afirma a não existência do movimento
com base em que aquilo que está em locomoção deve chegar a
meio do caminho antes de chegar à meta…” 127

E s t e a rg u m e n t o b a s e i a - s e n a d i v i s i b i l i d a d e i n f i n i t a d o e s p a ç o .
Com efeito, a distância compreendida entre o ponto de partida e o
ponto de chegada da pista de corrida tem uma determinada extensão
espacial. Para se cumprir essa extensão terá de se chegar
primeiramente a meio do caminho, e para se atingir essa primeira
metade da pista tem de se cumprir primeiro a primeira metade da
primeira metade… e o raciocínio prossegue assim ad infinitum, de
forma a se concluir pela impossibilidade do movimento.

O a rg u m e n t o d e A q u i l e s e a Ta r t a r u g a :

“ […] Numa corrida, o corredor mais rápido [Aquiles] nunca


pode alcançar o mais lento [a tartaruga], uma vez que o
perseguidor deve primeiro atingir o ponto donde partiu o
perseguido, pelo que o mais lento deve ter sempre a dianteira.
Este argumento é, em princípio, o mesmo que depende da
dicotomia, embora difira dele no facto de os espaços com que
temos sucessivamente de lidar não estarem divididos ao
meio.”128

N e s t e a rg u m e n t o Z e n ã o p a r t e d a o u t r a c o n c e ç ã o c o m q u e o s
Pitagóricos também teriam de concordar: o espaço e o tempo, tal
como todas as coisas, são constituídos por unidades-pontos-átomos
indivisíveis. A tartaruga, partindo de um ponto mais à frente de
Aquiles, terá sempre a dianteira, pois Aquiles, mesmo sendo mais
rápido, terá sempre de alcançar os mesmos pontos por onde a

127
Ari st ót el es, Fí si ca , Z9,239 b11.
128
Ki rk e R aven, op. ci t ., p. 301.

81
tartaruga já passou e não a pode ultrapassar porque não pode
o c u p a r, e m n e n h u m a a l t u r a , o m e s m o p o n t o d a t a r t a r u g a , p o i s o
espaço é indivisível.

O a rg u m e n t o d a “ S e t a v o a d o r a ” v a i n o m e s m o s e n t i d o :

“O terceiro é o já exposto acima, com a finalidade de provar


que a seta voadora está em repouso, consequência que decorre
da hipótese de que o tempo é composto de momentos: se esta
hipótese não for admitida, a conclusão não tem
viabilidade”129.

O tempo e o espaço são compostos por momentos singulares


indivisíveis. Assim, a cada momento dado a seta ocupa um
determinado espaço, mas a seta não se move no espaço, pois neste
caso o espaço não é divisível, a seta ocupa em cada determinado
momento apenas o espaço relativo à sua própria dimensão, ou seja,
a seta preenche todo o espaço que ocupa e assim não tem para onde
s e m o v e r.

129
Ari st ót el es, Fí si ca , z9, 239 b 30.

82
Conclusão

A ausência de dogmas, a não-existência de fundadores da


religião nem de textos sagrados são características singulares da
religião e mitologia Grega. A essas características é inerente o
facto de a formação da identidade Grega resultar de um longo
período de fusões de tribos helénicas, de contactos com as grandes
civilizações do Norte de África e da Ásia, e da osmose cultural dos
micénios com a civilização minóica. O politeísmo, o zoomorfismo e
o antropomorfismo dos deuses Gregos têm origem nesses
acontecimentos. Por outro lado, algo que se presume ser
essencialmente Grego, é o espírito trágico, que teve o seu apogeu
n a Tr a g é d i a Á t i c a , m a s q u e e s t a v a j á p r e s e n t e e m H o m e r o e m e s m o
antes dele – nos poemas cantados pelo aedos: a conceção de que os
homens são joguetes dos deuses.

Homero e Hesíodo são os testemunhos fundamentais da


passagem do mundo arcaico para o mundo clássico. Estão na
e m e rg ê n c i a d a r e l i g i ã o p ú b l i c a e d o r e t o m a r d a e s c r i t a , e a e l e s s e
d e v e o c a t á l o g o d o s d e u s e s . A s s u a s o b r a s v ê m a r e v e l a r- s e d e
grande importância para a filosofia e, segundo Aristóteles, nelas se
revelava o espanto – o sentimento filosófico por excelência. Nelas
s u rg e m a s p r i m e i r a s n a r r a t i v a s c o s m o g ó n i c a s : e x p l i c a ç õ e s s o b r e a
origem do mundo com recurso à mitologia.

O s u rg i m e n t o das cidades-Estado Gregas marca o apogeu


c i v i l i z a c i o n a l G r e g o . A s p o l i s e r a m s i n ó n i m o d e o rg a n i z a ç ã o s o c i a l
e política, centros de comércio e de intercâmbio cultural com
outros países. É nesse contexto de prosperidade económica de uma
cultura que cultiva o gosto pela arte, pelo belo, pelo ócio; e
também pela curiosidade pelos saberes de outras culturas e
civilizações que nasce a amizade pelo saber (filosofia).

83
A filosofia nasce na periferia do mundo Grego. É nos dois
pólos opostos da Grécia: na Jónia a Oriente e na Península Itálica a
O c i d e n t e q u e s u rg e m a s p r i m e i r a s f i l o s o f i a s . P r i m e i r o s e n t r e t o d o s ,
os físicos jónios fundam a filosofia da physis, natureza,
crescimento. Os físicos apresentam uma explicação racional para a
origem do mundo fundada, tanto quanto possível, na observação dos
fenómenos da natureza. Procurando dessa forma fazer a rutura com
as cosmogonias, que remetem as explicações sobre a origem do
mundo para entidades sobrenaturais. A explicação dos físicos jónios
consiste em subsumir a physis a um «princípio» e «elemento»
ingénito e imperecível, eterno, portanto. O pensamento contido na
ideia de eternidade da physis é o de que os fenómenos que atuam
agora na natureza existem desde sempre, são cognoscíveis e não
resultam de uma intervenção sobrenatural.

Mas como conciliar o mundo do devir: a geração e a


destruição, o movimento e a mudança, com a ideia de eternidade?
P e n s e - s e , p o r e x e m p l o , n o « p r i n c í p i o » e « e l e m e n t o » d e Ta l e s , a
água. Enquanto sofre alterações de temperatura passa por diversas
transformações de estados: evapora, liquidifica e solidifica, mas «é
sempre» água. Esse pensamento, comum a todos os físicos, está
e x p r e s s o d e f o r m a s i b i l i n a n o d i t o d e H e r a c l i t o : “ Tr a n s m u t a n d o - s e
repousa”.

Ainda na periferia Grega, mas agora a Ocidente, na Península


I t á l i c a , s u rg e m a i s t a r d e a E s c o l a E l e a t a , f u n d a d a p o r P a r m é n i d e s .
O pensamento destes filósofos é comumente retratado na História
da Filosofia como sendo oposto ao pensamento dos físicos jónios. A
antítese consistiria em contrapor a teoria eleata do ser à filosofia
do devir dos físicos, particularmente a Heraclito.

Na filosofia contemporânea assiste-se a um retomar desta


p r o b l e m á t i c a , p a r t i c u l a r m e n t e c o m N i e t z s c h e e H e i d e g g e r, p a r a o s
quais os conceitos de Devir e Ser são centrais nas suas filosofias.
Nietzsche interpreta a filosofia pré-socrática de acordo com a

84
interpretação tradicional, de forma a colocar Parménides e
Heraclito em dois pólos opostos do pensamento.

Heidegger contrapondo-se à interpretação tradicional e


referindo-se particularmente à posição de Nietzsche sobre o
assunto, afirma, no âmbito da sua tese do ser como physis, que
Parménides e Heraclito disseram o mesmo, isto é, fizeram o
questionamento do s e r. Assim, segundo a interpretação de
H e i d e g g e r, não existe uma contraposição entre uma teoria
h e r a c l í t i c a d o d e v i r e u m a t e o r i a e l e a t a d o s e r.

A tese heideggeriana do ser como physis funda-se no conceito


de ousia, substância. É a ideia de consistência e permanência que
preside ao conceito. Dessa forma a interpretação heideggeriana é
relativamente à História da Filosofia revisionista e não conserva a
integridade de pelo menos uma parte fundamental do pensamento
pré-socrático, porquanto não tem em conta a ideia de fluxismo
universal, que é a principal ideia da filosofia de Heraclito.

No entanto, da mesma forma que a afirmação de Heidegger de


que Parménides e Heraclito disseram o mesmo não preserva a
integridade do pensamento pré-socrático, também não será sensato
concluir o contrário, ou seja, o que um diz é a negação do que o
o u t r o d i s s e . A f i l o s o f i a é d e s d e o i n í c i o a a m i z a d e p e l o s a b e r. E n o
início não se distinguia os saberes particulares epocais do saber
filosófico, tal como se veio a conceber a partir de Platão e
Aristóteles. Por isso os primeiros filósofos eram também
astrónomos, geómetras, matemáticos, engenheiros, políticos… Os
n o m e s d e Ta l e s , A n a x i m a n d r o , A n a x í m e n e s , H e r a c l i t o f o r a m o s q u e
ficaram para a História com mais evidência, mas o tipo de
pensamento característico desses primeiros filósofos, dos físicos,
e r a m a i s c o m u m d o q u e p o s s a p a r e c e r.

A originalidade dos físicos consistiu em, nas suas demandas


por uma explicação para a origem do mundo, terem colocado, junto
da observação empírica e da representação intuitiva a representação

85
abstrata, a razão. Das suas observações do mundo do devir os
físicos extraíram a ideia de eternidade: a physis como «princípio» e
«elemento» é eterna, e a ideia de unidade: o múltiplo é o
desdobramento do «princípio» e «elemento», tal é a representação
abstrata contida no pensamento: o uno é múltiplo.

O s e l e a t a s , q u e e s t a v a m a p a r d e s s a f o r m a d e p e n s a r, c h e g a r a m
aonde os físicos chegaram e a partir desse ponto distinguiram-se
deles. Enquanto na teoria dos físicos estão conciliadas a
representação intuitiva da natureza e a representação abstrata, os
eleatas tomaram por verdadeira e absoluta a realidade do
p e n s a m e n t o q u e c o n c e b e o u n o e o e t e r n o e a t r i b u í r a m - l h e o s e r.
Daí que para Parménides: “O mesmo são o ser e o pensar”. Assim
p r o d u z i r a m a t e o r i a d o S e r- U n o - I m ó v e l .

O decurso histórico-filosófico posterior a Parménides, pelo


menos até Platão e Aristóteles, é marcado pelo esforço de síntese
das duas filosofias. Se bem que com Empédocles, Anaxágoras e os
Atomistas prevaleça a filosofia dos físicos e se retomem as
questões do movimento, do «principio» e «elemento» e a relação
uno/múltiplo. Já com Platão e Aristóteles a questão da episteme vai
o b r i g a r a u m c e n t r a m e n t o d o p r o b l e m a n o l a d o d a t e o r i a d o s e r.
Com efeito, para Platão não pode haver ciência daquilo que está em
perpétua mudança. E para Aristóteles os princípios lógicos de «não-
contradição» e de «terceiro excluído» são inconciliáveis com a
doutrina heraclítica do fluxismo universal, patenteada no
fragmento: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e
não-somos”.

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