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e o paradoxo
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 454 - Ano XIV - 15/09/2014
ISSN 1981-8769 (impresso)
da felicidade
ISSN 1981-8793 (online)
da felicidade
A
colonização do econômico, John Ralston Saul, ensaísta e filó- Três entrevistas completam a edi-
e neste do setor financeiro, sofo canadense, afirma que precisamos ção. Ivan Izquierdo, professor de Medici-
sobre todas as dimensões da dar atenção a uma distribuição mais na e coordenador do Centro de Memória
vida humana é que faz emer- interessante dos bens e a uma passa- da Pontifícia Universidade Católica –
gir a pergunta pela felicidade. O Para- gem gradativa da produção em massa PUCRS, descreve a importância da me-
doxo da Felicidade evidencia que não para a produção com qualidade, capaz mória para a vida humana e os modos
há uma relação direta entre o enrique- de gerar mais empregos e com melhor como esta é impactada pela tecnologia.
cimento de um País e a felicidade de seu qualificação. Nísia Martins do Rosário, profes-
povo. Ou seja, erigir o Produto Interno Cláudio Oliveira da Silva, profes- sora do Programa de Pós-Graduação em
Bruto – PIB – como categoria e critério sor do Departamento de Filosofia da Comunicação e Informação da Univer-
de uma política econômica é um enga- Universidade Federal Fluminense – UFF, sidade Federal do Rio Grande do Sul –
no. Uma economia que está a serviço da propõe, a partir de Agamben, que a UFRGS, reflete sobre as representações
sociedade e da pessoa humana, e não o ideia de estado mínimo e da mão invi- do corpo nas audiovisualidades. Para
contrário, exige outras categorias e cri- sível do mercado estariam relacionadas ela, o imaginário do corpo na contem-
térios que levem em conta a felicidade com a decadência da dimensão política
poraneidade é dirigido pelo capitalismo
dos seres humanos. – que se torna subjugada à economia.
tardio, que aplica a regra da liberação do
Na discussão do tema central da Isso leva a uma animalização do huma-
fluxo do desejo para atingir o consumo.
revista IHU On-Line desta semana, par- no, implicando no que o filósofo chama
José Roque Junges, professor e pes-
ticipam professores e pesquisadores de de zoopolítica.
quisador do Programa de Pós-Gradua-
diferentes áreas do conhecimento. Richard Easterlin, criador do Pa-
Castor Bartolomé Ruiz, professor ção em Saúde Coletiva, comenta o livro
radoxo da Felicidade, argumenta que o
nos cursos de graduação e pós-gradu- Produto Interno Bruto de um País men- A Política da própria Vida: Biomedicina,
ação em Filosofia da Unisinos, reflete sura somente bens ou mercadorias, sem Poder e Subjetividade no Século XXI de
sobre a lógica sacrifical em Agamben e, levar em conta critérios “não materiais” Nikolas Rose. O livro será apresentado
especialmente, em Benjamin para pro- como família, vida e saúde. e comentado pelo professor da Unisinos
por a dívida e a culpa como dispositivos Por fim, o artigo de Stefano Za- no dia 23 de setembro. Nikolas Rose é
biopolíticos de governo da vida pelo magni, professor da Universidade de um dos conferencistas que participará
Capital. Bolonha, Itália, e vice-diretor da sede do XIV Simpósio Internacional IHU: Re-
Hervé Kempf, jornalista e ensaísta italiana da Johns Hopkins University, de- voluções tecnocientíficas, culturas, indi-
francês, alega que mais do que em uma fende as bases para uma Economia Civil víduos e sociedades. A modelagem da
democracia ou mesmo uma ditadura, fundamentada não mais na “dicotomia vida, do conhecimento e dos processos
vivemos atualmente em uma oligarquia público-privado” (Estado e mercado), produtivos na tecnociência contemporâ-
bancária, cuja defesa das potências fi- mas na “tricotomia público, privado e nea, nos dias 21 a 23 de outubro.
nanceiras tende a nos encaminhar à civil” – organizações e corpos sociais A todas e a todos uma boa leitura e
própria destruição. intermediários. uma excelente semana!
www.ihu.unisinos.br
IHU
Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos
André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio do Centro de Pesquisa e Apoio
Neutzling (inacio@unisinos.br). aos Trabalhadores – CEPAT, de
Endereço: Av. IHU On-Line é a revista Redação: Inácio Neutzling, Curitiba-PR.
Unisinos, 950, semanal do Instituto
São Leopoldo/RS. Andriolli Costa MTB 896/MS Projeto gráfico: Agência
Humanitas Unisinos – IHU Experimental de Comunicação
CEP: 93022-000 (andriollibc@unisinos.br),
ISSN 1981-8769. da Unisinos – Agexcom.
Márcia Junges MTB 9447
Telefone: 51 3591 1122 – ramal 4128. Editoração: Rafael Tarcísio
IHU On-Line pode ser (mjunges@unisinos.br),
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acessada às segundas-feiras, Patrícia Fachin MTB 13.062
Atualização diária do sítio:
no sítio www.ihu.unisinos.br. (prfachin@unisinos.br) e Inácio Neutzling, Patrícia Fachin,
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Sua versão impressa circula às
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Schneider (jacintos@unisinos.br).
na Unisinos. Revisão: Carla Bigliardi Machado e Larissa Tassinari
2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Hervé Kempf – O sistema oligárquico que leva à destruição
8 John Ralston Saul – A superação da globalização e do crescimento
12 Richard Easterlin – O aumento dos bens ou mercadorias e o crescimento das
“necessidades”
14 Stefano Zamagni – O desenvolvimento da economia civil. Por um estado social
subsidiário
18 Castor Bartolomé Ruiz – A dívida como dispositivo biopolítico de governo da vida
humana
25 Cláudio Oliveira – O domínio avassalador da economia sobre a política
29 Baú da IHU On-Line
DESTAQUES DA SEMANA
31 Destaques On-Line
33 Entrevista da Semana – Ivan Izquierdo – “A vida é uma sequência de memórias”
36 Entrevista da Semana – Nísia Martins do Rosário – Corpo audiovisual – As implicações
do capitalismo tardio na reconfiguração do humano
IHU EM REVISTA
43 José Roque Junges – A vida nas interfaces das mutações tecnocientíficas e suas
repercussões sobre a subjetividade
46 Publicação em Destaque – Cadernos IHU ideias: Foucault e a Universidade: entre o
governo dos outros e o governo de si mesmo
47 Retrovisor
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3
Tema
de
Capa
Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
O sistema oligárquico que leva à
Tema de Capa
destruição
“O que está em jogo é a existência de uma sociedade humana estável e pacífica, que
garanta a cada ser humano uma existência digna. Este estado tem sua existência
gravemente afetada pela crise ecológica, que ameaça a biosfera, e pela amplitude
das desigualdades, que geram uma guerra civil mundial”, aponta Hervé Kempf
“N
ão estamos nem na ditadura, nem seja uma potência, não deixa de estar em fase
na democracia. O sistema em que de decrepitude. Por quê? Porque, hoje, ele só
vivemos tem um nome: oligarquia. pode se perpetuar pela especulação financeira
Uma casta defende os interesses das potências (que levou justamente ao abalo de 2007-2008),
financeiras, que exercem uma influência des- isto é, segundo uma lógica perversa que privile-
medida na vida política, notadamente graças gia o rendimento dos ativos financeiros em de-
às mídias de massa e aos lobbies. No sistema trimento do funcionamento da economia real
oligárquico, a casta dos dirigentes reúne os po- da produção e da comercialização dos bens”,
deres econômico, político e midiático. Este sis- complementa.
tema visa manter os privilégios dos ricos, des- Hervé Kempf é jornalista e ensaísta francês.
prezando as urgências sociais e econômicas”, É editor do sítio Reporterre – http://www.repor-
constata Hervé Kempf na entrevista que segue, terre.net. Entre suas obras, podem ser citadas
concedida por e-mail à IHU On-Line. Como os Ricos Destroem o Planeta (Comment
“No que se refere ao capitalismo, o abalo les riches détruisent la planète – São Paulo: Edi-
financeiro que ocorreu a partir de 2007-2008 tora Globo, 2010), Para Salvar o Planeta, Liber-
deu início a uma fase de profunda mutação do te-se do Capitalismo (Pour sauver la planète,
sistema econômico mundial. Concretamente, sortez du capitalisme – Campinas: Saberes Edi-
isso significa que estamos saindo do capitalis- tora, 2012), O Fim do Ocidente e o Nascimen-
mo, da mesma maneira que a Europa saiu do to do Mundo (Fin de l’Occident, naissance du
Império Romano a partir do século III, ou saiu monde – Barcarena: Editorial Presença, 2013),
da Idade Média pelo Renascimento. Devemos, L’oligarchie ça suffit, vive la démocratie (“Basta
pois, considerar o capitalismo como um mo- de oligarquia, viva a democracia” – Paris: édi-
mento histórico que teve sua juventude e sua tions du Seuil, 2013) e Notre-Dame-des-Landes
expansão (séculos XVIII e XIX), alcançando seu (Paris: éditions du Seuil, 2014).
apogeu no fim do século XX. Mesmo que ainda Confira a entrevista.
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IHU On-Line – O senhor afirma lítica, notadamente graças às mídias viciada, porque as mídias de massa são
que nossa democracia caminha para de massa e aos lobbies. No sistema amplamente controladas pela oligar-
o fim e que uma oligarquia assumirá oligárquico, a casta dos dirigentes re- quia. A escolha majoritária está viciada
o seu lugar. O Ocidente conheceu, no úne os poderes econômico, político e pelo peso dos lobbies ou, às vezes, pela
passado, alguma democracia autênti- midiático. Este sistema visa manter os negação pura e simples da escolha po-
ca, ou isso é uma ficção? privilégios dos ricos, desprezando as pular, como vimos na Europa por oca-
Hervé Kempf – Não falo do futu- urgências sociais e econômicas. sião do referendo de 2005, quando a
ro, mas, sim, do presente. O que digo No Ocidente, a democracia nunca vontade popular (que recusou o proje-
é que não estamos nem na ditadura, alcançou uma forma perfeita. Porém, to do tratado constitucional) foi traída
nem na democracia. O sistema em que sua vitalidade foi bem maior entre os (o tratado acabou sendo imposto). O
vivemos tem um nome: oligarquia. anos de 1945 e 1980 do que é hoje. Sua reconhecimento das minorias se per-
Uma casta defende os interesses das saúde, se assim podemos dizer, degra- de sob o efeito da repressão cada vez
potências financeiras, que exercem dou-se progressivamente desde a dé- mais aberta dos rebeldes, enquanto
uma influência desmedida na vida po- cada de 1980: a deliberação livre está o respeito aos direitos humanos e às
te afetada pela crise ecológica, que ção individual das riquezas com o ob- cracia e a ecologia são inseparáveis?
ameaça a estabilidade indispensável jetivo de aumentar indefinidamente o Hervé Kempf – A crise ecológica
da biosfera, e pela amplitude das de- lucro, que leva à destruição do meio gera uma restrição histórica totalmen-
sigualdades, que geram uma guerra ambiente. Num momento histórico te nova e nos impõe uma verdadeira
civil mundial mais ou menos latente. em que esta destruição não é mais transformação das sociedades oci-
No que se refere ao capitalismo, aceitável devido ao perigo que repre- dentais, de seus modos de vida, de
o abalo financeiro que ocorreu a par- senta para a salvação da humanidade, seus hábitos culturais de consumo.
tir de 2007-2008 deu início a uma fase o capitalismo deve desaparecer ou Nossa economia repousa num cresci-
de profunda mutação do sistema eco- transformar-se em outra forma eco- mento contínuo do consumo, ao mes-
nômico mundial. Concretamente, isso nômica de relação com o meio am- mo tempo que sabemos pertinente-
significa que estamos saindo do capi- biente. A menos, é claro – hipótese mente que não poderemos prosseguir
talismo, da mesma maneira que a Eu- sempre possível –, que ele consiga nessa corrida para o enriquecimento
ropa saiu do Império Romano a partir manter-se, mergulhando então a bio- material. Seja em termos de extração
do século III, ou saiu da Idade Média sfera num caos que arrastará a estabi- de matérias-primas ou em termos de
pelo Renascimento. Devemos, pois, lidade da sociedade mundial. reciclagem, atingimos os limites da
Tema de Capa
ponto de vista histórico, rumo a uma ferência absoluta de toda e qualquer mídias.
convergência do nível de vida de to- atividade humana, para integrar ple-
dos os países do planeta, porque há namente os valores de respeito ao IHU On-Line – É a partir do âmbi-
uma reivindicação legítima dos países meio ambiente e de justiça social. to de autorreferencialidade do mer-
emergentes, que desejam ser trata- cado que podemos compreender a
dos em pé de igualdade com os países IHU On-Line – Seria possível ruptura entre a economia e a ética?
ocidentais em termos de acesso aos “humanizar” o mercado, fazendo Hervé Kempf – Parece-me que
recursos e ao consumo. Ora, a situa- com que ele adquira sentido para as não. Repito mais uma vez, a economia
ção ecológica não permite que essa pessoas? não é o capitalismo, que não é senão
convergência ocorra por um alinha- Hervé Kempf – Não devemos um sistema econômico específico. Em
mento ao nível de vida ocidental. Por- confundir economia de mercado e ca- sua forma atual decadente, o capita-
tanto, este deve mudar, o que significa pitalismo. O capitalismo é um sistema lismo divergiu da ética, ou seja, de um
reduzir o nível de vida material. Este no qual se quer que o mecanismo do enquadramento moral que visa à re-
é o principal desafio que se apresenta mercado reja todas as atividades hu- alização da humanidade. No entanto,
às sociedades ocidentais. A oligarquia manas. Mas o passado teve muitas nada impede que se conceba e se dê
não é capaz de enfrentá-lo. sociedades em que existia um mer- vida a uma economia ética, isto é, uma
cado que ocupava apenas uma parte economia que satisfaça as necessida-
Redução das desigualdades das relações sociais, e estas se desen- des dos seres humanos sem destruir
Na verdade, para a oligarquia, é volviam em muitos outros campos as condições biosféricas necessárias
vital que o crescimento econômico simbólicos. Sair do capitalismo não à perenidade da humanidade e que
e a promessa de aumento do consu- significa abandonar a economia de garanta, ao mesmo tempo, relações
mo material sejam considerados um mercado, mas, sim, colocá-la no seu justas entre todos.
absoluto indispensável. É a condição devido lugar, restringindo-a ao comér- Essa economia ética rompe com
para que a desigualdade atual seja cio de bens e serviços. A chave para o capitalismo: ela põe as finanças no
aceitável, porque o crescimento eco- recolocá-la no seu devido lugar está passo certo, ou seja, faz com que es-
nômico supostamente permitirá a em postular muito claramente que tas voltem a exercer sua função pri-
elevação do nível de vida de todos. A muitos bens comuns (refiro-me ob- mordial que é a de facilitar as trocas
questão ecológica, portanto, é sempre viamente aos recursos naturais, mas de bens. E desenvolve ao máximo, por
diminuída, e a crítica ao crescimento, também a atividades essenciais como toda parte, as capacidades de produ-
considerada absurda. a educação e a saúde) não devem ser ção local, reduzindo o comércio inter-
De fato, é essencial que a deli- regidos pelo mercado. nacional aos bens verdadeiramente
beração coletiva se interesse por es- úteis e indisponíveis localmente. A
sas questões, que constituem a chave IHU On-Line – Quais são os prin- globalização prosseguirá, mas não
para um futuro pacífico. E a delibe- cipais desafios dessa tarefa? tanto pela economia quanto pelas tro-
ração coletiva livre e informada é o Hervé Kempf – Em primeiro lu- cas culturais, inspiradas na ética mun-
cerne da democracia. Por esta razão, gar, a resistência virulenta do sistema dial comum em formação: esta aspira
a democracia é o único meio de al- oligárquico: ele não tem mais ideias, a uma humanidade em paz consigo
cançar essa transição, que deve ser mas tem o poder, principalmente o mesma e com a biosfera, a fim de en-
refletida e escolhida coletivamente e de formar a consciência coletiva pelas contrar um novo impulso para a etapa
dentro de uma lógica de redução das mídias, ou seja, submetê-la às suas fi- seguinte de seu magnífico destino.
desigualdades. nalidades. Em seguida, conseguir reu-
nir todos os movimentos de resistên-
IHU On-Line – Em que medida cia que buscam caminhos para sair do Leia mais...
economia e felicidade poderiam ca- capitalismo e transmitir sua mensa-
www.ihu.unisinos.br
minhar juntas? gem ao maior público, isto é, ao povo. • “A autoridade pública está nas mãos
Hervé Kempf – O próprio fato de do sistema financeiro”, afirma Hervé
a questão ser abordada dessa manei- IHU On-Line – O mercado reina Kempf. Entrevista publicada no sítio
ra mostra que a economia – e aqui, sobre a política nestes tempos de do Instituto Humanitas Unisinos –
convém especificar, a economia capi- economia financeirizada. Quais são
IHU em 18-02-2013, disponível em
talista, pois outra economia é possível as perspectivas de mudança?
http://bit.ly/1rXRJxa;
– e a felicidade não andam juntas. Na Hervé Kempf – O objetivo priori-
tário é colocar as finanças e os bancos • “Pela primeira vez, a humanidade
verdade, a economia capitalista fun-
ciona atualmente pela manutenção, no passo certo. Em outras palavras, a se encontra com o limite dos recur-
ou mesmo pelo aumento, de enormes política deve retomar o poder sobre sos naturais”. Entrevista com Hervé
desigualdades e pela destruição do o dinheiro. A democracia, que é o re- Kempf publicada no sítio do Insti-
meio ambiente, o qual, no entanto, é gime em que o interesse coletivo se tuto Humanitas Unisinos – IHU em
a base essencial do bem-estar coleti- impõe a todos após uma deliberação 12-01-2010, disponível em http://
vo. É claro que economia e felicidade livre e informada, deve suplantar a bit.ly/1qmz7FJ.
deveriam andar juntas. Para isso, a oligarquia, que fusiona justamente na
do crescimento
“A realidade é que não estamos mais num período de globalização. Os países e as
regiões estão tratando de levantar muros de várias espécies ao seu redor, e estão
tratando de reconstruir sistemas bancários pré-globalistas”, avalia John Ralston Saul
“O
modelo de crescimento implan- pagar-lhes [os trabalhadores] por empregos
tado no final do século XVIII per- de tempo integral ou empregos que tenham
deu, mais ou menos, sua força. benefícios vinculados a eles. Esta é a razão
Atualmente nós produzimos mais bens do pela qual se vê, em toda a Organização para
que necessitamos no mundo. O que neces- a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
sitamos, portanto, não é de mais crescimen- – OCDE, que um número cada vez maior de
to. Precisamos, em vez disso, dar atenção a pessoas está trabalhando em tempo parcial,
uma distribuição mais interessante dos bens ou sem seguridade ou benefícios. Tudo isso
e a uma passagem gradativa da produção em cria lentamente o tipo de atmosfera social
massa para a produção com qualidade. Por que leva ao populismo e a sentimentos an-
quê? Porque a produção com qualidade pro- tidemocráticos. O que estamos vivenciando
duz mais empregos num nível salarial mais hoje é uma versão mais extrema do tipo de
alto e, por conseguinte, torna possível vender privação econômica e de abismo entre ricos e
bens a um preço mais alto. A estratégia glo- pobres que levou a fenômenos como o pero-
balista tem sido exatamente o contrário disso nismo”, pontua ele.
– reduzir os preços continuamente, tornando, John Ralston Saul é escritor, ensaísta e
com isso, não só possível, mas essencial pa- filósofo canadense. É presidente da PEN In-
gar cada vez menos às pessoas”, afirma John ternational, associação de escritores fundada
Ralston Saul. em 1921 e que luta pela liberdade de expres-
Conforme enfatiza Ralston, a manutenção são. É autor de vários livros, entre os quais
de uma economia de excedentes, inevitavel- O colapso da globalização e a reinvenção do
mente, levará a uma baixa dos preços e, con- mundo (El colapso de la globalización y la
sequentemente, a uma redução dos salários reinvención del mundo – RBA, 2012).
pagos. “Na verdade, não há condições de Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br
IHU On-Line – O dinheiro não to real, ou então fica simplesmente excedente de bens manufaturados, de
passa de uma convenção, mas toda a muito fácil para um grupo pequeno modo que não conseguiram manter o
humanidade parece não se dar conta ganhar dinheiro a partir do dinheiro. crescimento em curva ascendente.
disso. Por quê? E neste ponto entramos num daque- Em vez de se fazer algumas perguntas
John Ralston Saul – Esse é um les períodos ilusórios de empolgação sérias sobre o que fariam em seguida,
problema cíclico. Todo o mundo sabe excessiva com a possibilidade de tra- elas entraram em pânico e recaíram
que o dinheiro não é real, que ele é tar o dinheiro como algo real. A causa no antigo erro de tratar o dinheiro
meramente o lubrificante para as en- provável disso ao longo dos últimos como um substituto de bens reais.
grenagens da economia, como se dizia 40 anos tem sido que as economias Nesse ponto, o problema realmente
no século XVIII. Mas periodicamente industrializadas do Ocidente produzi- passa a ser a ilusão. E quanto mais nos
ou se torna difícil criar crescimen- ram uma situação em que havia um tornamos dependentes da ilusão, tan-
Tema de Capa
não é real. ideia da mão invisível, que de alguma
gerir os sistemas bancários e financei- suflado pelo capitalismo? mosfera social que leva ao populismo
ros. Os governos estão começando a John Ralston Saul – É difícil di- e a sentimentos antidemocráticos. O
entender isso agora, e é isso que está zer isso em países onde a industriali- que estamos vivenciando hoje é uma
começando a acontecer. zação só agora está levando a certos versão mais extrema do tipo de pri-
níveis de prosperidade para aqueles vação econômica e de abismo entre
IHU On-Line – Em que aspectos que foram muito pobres. Entretanto, ricos e pobres que levou a fenômenos
a globalização representa retroces- o modelo de crescimento implanta- como o peronismo.
sos em termos de economia e justiça do no final do século XVIII perdeu,
social? mais ou menos, sua força. Perdeu IHU On-Line – De certa forma,
John Ralston Saul – Veja bem, sua força porque, como eu disse an- seu livro O colapso da globalização
não há nada de errado com o co- tes, atingimos um estado de produ- e a reinvenção do mundo previu a
mércio internacional. As economias ção de excedentes. Certamente não
2 OCDE: sigla em inglês para Organização
sempre precisaram ter um aspecto os estamos distribuindo de maneira de cooperação Econômica e desenvolvi-
internacional importante. Entretan- justa. Mas continua sendo verdade mento. (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
possível apontar as possíveis rotas a da sociedade. A ideia butanesa da Fe-
serem tomadas pela economia daqui
para frente?
vez, há tecnologia licidade Interna Bruta se situa na tra-
dição do bem-estar do povo existente
John Ralston Saul – Isso é intei-
ramente uma questão de opção. Se
que liga todos no século XVIII, e nesse sentido ela é
extremamente realista.
continuarmos a agir como se o di-
nheiro fosse real e, por isso, enten-
os mercados do IHU On-Line – É possível que
der que as dívidas impagáveis devem
ser pagas, mesmo que isso destrua o
mundo e funciona felicidade e economia andem lado a
lado?
bem-estar dos cidadãos, então a eco- 24 horas por dia. John Ralston Saul – Disso se se-
gue que a ciência econômica vai fun-
nomia simplesmente vai continuar a
piorar. E quaisquer recuperações se- Por isso, jamais foi cionar melhor se formos honestos em
rão obtidas disfarçando os problemas relação ao que ela é. A ciência econô-
fundamentais. Creio firmemente que tão fácil regular e mica deve servir à sociedade. Sempre
precisamos eliminar grande parte das houve alguma forma de setor privado,
dívidas que atualmente bloqueiam o gerir os sistemas capitalista ou não. Sempre haverá al-
crescimento dos países. Precisamos guma forma de setor privado. Isso não
recomeçar da estaca zero. Se per- bancários e é uma coisa ruim. Mas ele não signifi-
dermos alguns bancos ao longo do ca substituir o bem público ou o inte-
caminho, isso realmente não impor- financeiros” resse público ou o poder de governos
ta. Há mais bancos atualmente do escolhidos pelo povo. As sociedades
que jamais houve, e a quantidade de funcionam melhor quando admitem
dinheiro que está se esparramando pelo ex-rei do Butão3 para fazer troça alguma forma de equilíbrio entre os
não tem precedentes. Na verdade é das medições erradas e falhas do PIB. diferentes elementos. Acho que de-
bem engraçado que os neoconserva- O que ele realmente estava dizendo veríamos parar de nos preocupar com
dores, que defenderam o monetaris- é que precisamos adotar uma abor- a globalização. Ela já passou. Já fra-
mo a partir da década de 1970, es- dagem inclusiva se quisermos enten- cassou. A dificuldade agora é que, na
tejam agora se esforçando tanto para der como as economias funcionam média, o mundo está em crise, e, se
proteger uma situação monetária dentro das sociedades. Poder-se-ia não tomarmos cuidado, entraremos
completamente inflacionária. A his- dizer que ele estava dando a respos- numa era de protecionismo, violência
tória é muito clara nesse sentido. Os ta última às pessoas que creem que e formas repulsivas de nacionalismo à
países inteligentes suprimem as dívi- a ciência econômica deveria dirigir a moda antiga. Tudo isso pode ser evita-
das quando elas se tornam inviáveis. sociedade. do se formos simplesmente sensatos
Lembrem-se de que a palavra em relação ao papel da ciência eco-
IHU On-Line – Em que medida o “felicidade” realmente significa “o nômica e ao papel de liderança bem
conceito de Felicidade Interna Bruta bem público” ou “o bem-estar das mais fundamental que tem de ser as-
(FIB) é mais realista do que o de Pro- pessoas”. Ela era muito usada nos sé- sumido pelos cidadãos. Temos de cair
duto Interno Bruto (PIB)? culos XVIII, XIX e no início do século fora do romantismo do globalismo à
John Ralston Saul – O PIB não XX, e seu significado, em todos esses moda antiga, ao estilo do século XIX,
tem sido uma medição acurada da casos, é “o bem-estar do povo”. Na e agir sensatamente, usando o poder www.ihu.unisinos.br
realidade há muito tempo. Ele sem- verdade, é só com o advento de coi- que têm os cidadãos.
pre implicou uma medição muito sas como a televisão, que instituem
mínima do que está acontecendo.
Sempre se baseou na separação de
uma visão muito romântica da felici-
dade, que a palavra muda de sentido
Leia mais...
elementos financeiros, em vez de
para se tornar uma representação da
juntá-los. Foi o tipo de abordagem • “Não há razão para salvar os ban-
do PIB que nos levou a crer que se 3 Jigme Singye Wangchuck (1955): rei cos”, afirma filósofo canadense.
poderia, por exemplo, comer uma do Butão entre 24 de julho de 1972 e 14
maçã proveniente da Nova Zelândia de dezembro de 2006. Cunhou o termo Entrevista com John Ralston Saul
Felicidade Interna Bruta (FIB) no início
a um preço barato na América do Sul de seu governo, em resposta às críticas publicada no sítio do Instituto Hu-
ou na Europa. Isso só era possível que afirmavam que a economia de seu
país crescia a passos muito lentos. O con- manitas Unisinos – IHU em 06-
porque ninguém estava medindo os ceito de FIB ilustrava o compromisso do
custos totais daquela maçã. A Feli- líder político de construir uma economia 02-2013, disponível em http://bit.
adaptada à cultura do seu país, baseada
cidade Interna Bruta é um conceito nos valores espirituais budistas. (Nota da ly/1stpW5Q
maravilhosamente irônico inventado IHU On-Line)
mercadorias e o crescimento
das “necessidades”
Richard Easterlin, criador do Paradoxo da Felicidade, argumenta que o PIB mensura
somente bens ou mercadorias, sem levar em conta critérios “não materiais” como
família, vida e saúde
E
m 2013 foi lançada a segunda edição do Nesta entrevista, concedida por e-mail à
Relatório Mundial da Felicidade. Produ- IHU On-Line, ele comenta sobre o tema e ale-
zido pela ONU, ele leva em conta seis ga que o PIB mensura somente bens ou mer-
fatores para mensurar a sensação de felici- cadorias, sem levar em conta critérios “não
dade em países do mundo todo: PIB real per materiais” como família, vida e saúde.
capita, suporte social, generosidade, expecta- Richard A. Easterlin é graduado em
tiva de vida saudável, liberdade e percepção Engenharia pelo Stevens Institute of Te-
de corrupção. O relatório mostra mudanças chnology, com mestrado e doutorado em
significativas na felicidade dos países ao lon-
Economia pela University of Pennsylvania.
go do tempo, e propõe chamar atenção para
Membro da National Academy of Sciences e
fatores que vão além dos econômicos para
da American Academy of Arts and Sciences,
mensurar o bem-estar da população.
atualmente é professor de Economia da
Um dos precursores nesta linha de pensa-
University of Southern California. É autor,
mento foi o economista Richard A. Easterlin,
que criou em 1974 o conceito do Paradoxo da entre outros livros, de Happiness, Growth,
Felicidade. O paradoxo é composto por três and the Life Cycle (Oxford: University Press,
assertivas: 2011), The Reluctant Economist: Perspec-
1) Em uma sociedade, os ricos tendem a tives on Economics, Economic History, and
ser mais felizes do que os pobres. Demography (Cambridge: University Press,
2) Sociedades ricas não tendem a ser (mui- 2006) e de Birth and Fortune: The Impact
to) mais felizes do que sociedades pobres. of Numbers on Personal Welfare (Chicago:
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IHU On-Line – Diante do colap- Richard Easterlin – As pessoas põe que suas “necessidades” ficarão
so ocasionado pela crise econômica não se dão conta de que, quando ob- inalteradas.
mundial e da situação das nações ri- têm mais bens ou mercadorias, sua
cas, seu “paradoxo da felicidade” de- concepção de “necessidades” aumen- IHU On-Line – Nesse sentido,
monstra ser mais atual do que nunca. ta na mesma proporção. Em consequ- qual é a pertinência do conceito de
Nossa sociedade continua confundin- ência disso, elas acham que mais di- Felicidade Interna Bruta (FIB), em
do dinheiro como sinônimo inequí- nheiro as fará mais felizes, porque sua contraposição ao Produto Interno
voco de felicidade? Por quê? projeção da felicidade futura pressu- Bruto (PIB)?
Tema de Capa
a ver com bens ou mercadorias. A feli- esse sentimento?
cidade leva em conta coisas não mate-
riais, como família, vida e saúde.
as evidências Richard Easterlin – Se olharmos
o Relatório da Felicidade Global2 de
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N
este artigo o economista Stefano Za- in Veritate, publicada em 2009, acerca do “de-
magni defende as bases para uma senvolvimento humano integral”. Desde 2007
Economia Civil, cujas raízes remetem é presidente da Agência para as Organizações
ao Humanismo civil e com estrutura social Não Lucrativas de Utilidade Social – Onlus, en-
baseada na Doutrina Social da Igreja. Nesta tidade do governo italiano responsável pelas
perspectiva, a ordem social não se basearia associações sem fins lucrativos. Desde 1991,
mais na “dicotomia público-privado” (Estado é consultor do Conselho Pontifício “Justiça e
e mercado), mas na “tricotomia público, pri- Paz”, do Vaticano. De 1999 a 2007, foi tam-
vado e civil” – este último representado pelas bém presidente da Comissão Católica Inter-
organizações e corpos sociais intermediários. nacional para as Migrações – ICMC. Em 2010,
De acordo com ele, propor a perspectiva da recebeu o título de doutor honoris causa em
economia civil significa visar a dois objetivos economia da Universidade Francisco de Vito-
fundamentais: resolver a escassez do forneci- ria, de Madri, Espanha. É autor de inúmeros
mento de bens comuns e de bens públicos e livros, dentre os quais destacamos Microeco-
acelerar os tempos da passagem do welfare nomia (Ed. II Mulino, 1997), Per una Nuova
state à welfare society. Teoria Economica della Cooperazione (Ed. Il
Stefano Zamagni é professor da Universi- Mulino, 2005) e L’Economia del Bene Comu-
dade de Bolonha, na Itália, e vice-diretor da ne (Ed. Città Nuova, 2007). Em português,
sede italiana da Johns Hopkins University. Za- publicou em 2010 Economia Civil: Eficiência,
magni ganhou destaque mundial por ter sido Equidade e Felicidade (Ed. Cidade Nova), com
um dos principais consultores e assessores do coautoria de Luigino Bruni.
Papa Bento XVI na redação da encíclica Caritas Confira o artigo.
Uma pluralidade de índices assi- bem, de uma vez por todas). A ideia ordem social, portanto, não se baseia
nala uma retomada de interesse em central de tal linha de pensamento mais na dicotomia público-privado
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relação à proposta da economia civil, é a de fundamentar a arquitetura da (ou seja, sobre Estado e mercado),
uma proposta que tem as suas raízes sociedade não sobre dois, mas sobre mas na tricotomia público, privado,
no Humanismo civil e cuja estrutura três pilares: público (Estado e Enti- civil. Nisso, é a essência do princípio
conceitual se baseia nos princípios dades públicas); privado (mundo das de subsidiariedade circular, que é a
centrais da Doutrina Social da Igreja empresas); civil (organizações da so- versão da subsidiariedade hoje mais
(como a Caritas in veritate1 esclareceu ciedade civil, isto é, os corpos sociais avançada em comparação tanto com
intermediários de que fala a constitui- a vertical quanto com a horizontal.
1 Caritas in Veritate: Terceira encíclica ção [italiana]). Cada um deles tem os 1. Uma boa política pelo bem
do Papa Bento XVI, publicada no dia 7 de
julho de 2009, “sobre o desenvolvimento seus próprios princípios reguladores comum, então, deve reconhecer e
humano integral na caridade e na verda- e é caracterizado por modos específi- assumir tal articulação da sociedade,
de”. Foi a primeira encíclica de Bento XVI
que versa sobre vários temas socioeconô- cos de ação, mas todos os três devem porque só dela pode derivar a solução
micos, após a profunda crise económica interagir entre si de maneira orgânica de problemas de urgência prioritária
e financeira das últimas décadas, dispo-
nível em http://migre.me/4mY6b. (Nota
(isto é, não esporádica) segundo os para o nosso país [Itália]. De fato, en-
da IHU On-Line) cânones do método deliberativo. A tre as urgências político-culturais mais
Tema de Capa
ca está certamente a de ir além das nosso país: os mercados de qualidade
duas concepções de mercado hoje
dominantes. Por um lado, a visão do
urgentemente social. Trata-se de mercados sui gene-
ris, certamente, mas, mesmo assim,
mercado como “mal necessário”, ou
seja, de uma instituição da qual não
de um Estado mercados. Neles, os recursos que o
Estado decide destinar ao welfare são
se pode prescindir, por ser garantia
de progresso e sucesso econômico,
facilitador da utilizados não para financiar os sujei-
tos de oferta, mas para intervenções
mas, mesmo assim, um “mal” do qual sociedade civil de promoção e sustento da demanda
é preciso se guardar e que, portan- dos serviços sociais, transformando,
to, deve-se manter sob controle com organizada: essa assim, em efetiva uma demanda que,
a fixação de vínculos rigorosos. Essa caso contrário, permaneceria apenas
é a posição adotada pelos teóricos é a ideia de um virtual, ou seja, não pagante. Por ou-
da chamada “terceira via”, segundo tro lado, o Estado intervém no lado
a qual é preciso manter separada a estado social da oferta com medidas, tanto legis-
esfera da economia do resto da so- lativas quanto administrativas, para
ciedade e servir-se da primeira como subsidiário” assegurar a pluralidade dos sujeitos
instrumento para alcançar os fins que de oferta das várias tipologias de ser-
a segunda se estabelece. Por outro viços, e isso com o objetivo de evitar
outro; e, em segundo lugar, a econo-
lado, encontramos a concepção do os riscos da formação de rent-seeking,
mia em que se permite ao consumi-
mercado como meio para resolver o e para permitir uma real capacida-
dor não somente escolher dentro de
problema político. Trata-se de uma de de escolha dos cidadãos. Nisso, é
um dado menu, mas também lhe per-
concepção plenamente em sintonia uma ideia de um welfare subsidiário
mite poder “ter voz” sobre a composi-
com o espírito – mesmo que nem que se serve de mecanismos de mer-
ção do próprio menu (esse é o sentido
sempre com a práxis – do liberalismo cado como instrumento para reforçar
do chamado “voto com a carteira”).
clássico, que, justamente, pode ser o vínculo social – e em que o Estado
2. Propor a perspectiva da econo-
definido como a solução do problema se torna promotor da sociedade ci-
mia civil significa visar a dois objetivos
político por uma via essencialmente vil organizada, incentivando todas
fundamentais. O primeiro é o de che-
econômica. gar a resolver uma escassez típica das aquelas formas de ação coletiva que
O destino ao qual se deve tender nossas sociedades avançadas, que se geram benefícios públicos. Em outros
é mais o de realizar as condições para encontram, todas, acertando as con- termos, precisamos urgentemente
uma economia de mercado pluralis- tas com um problema de inadequado de um Estado facilitador da socieda-
ta, em que possam operar, de modo fornecimento de bens comuns e de de civil organizada: essa é a ideia de
autônomo e independente, ao lado bens públicos. Como eles são bens um estado social subsidiário. O mode-
de empresas com fins lucrativos, tam- essenciais, a sociedade que não fosse lo do Estado-gestor podia funcionar
bém sujeitos econômicos que, embo- capaz de assegurar níveis adequados bem no pós-guerra imediato, quando
ra não buscando o fim do lucro, sejam de ofertas deles seria uma sociedade eram prevalecentes as condições da
igualmente capazes de gerar valor de nível mais baixo de bem-estar (e sociedade fordista e, em particular, as
agregado e, portanto, riqueza. São isso independentemente do volume e necessidades das pessoas eram abs-
esses os sujeitos que compõem a va- da qualidade de bens individuais que tratas, isto é, indiferenciadas. Tornar a
riada galáxia do Terceiro Setor (coope- ela fosse capaz de assegurar). Hoje, propô-lo agora, mesmo que na forma
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rativas, cooperativas sociais, empre- diante de uma sobreprodução de do welfare mix, só poderia produzir
sas sociais, fundações comunitárias). bens privados, registramos uma subs- efeitos perversos e financeiramente
Lembre-se que a defesa das razões da tancial escassez de bens públicos e desastrosos.
liberdade exige que o pluralismo seja uma escassez ainda mais preocupante 3. Em que âmbitos hoje é maxi-
defendido não só na esfera do políti- de bens comuns. A noção de desen- mamente urgente intervir? A Itália é o
co – o que é óbvio –, mas também na volvimento humano integral capta primeiro país europeu em número de
do econômico. Pluralista e democrá- essa necessidade de equilíbrio entre regiões (entre as primeiras 25 em nível
tica, portanto, é a economia em que as três categorias diferentes de bens. continental) que empregaram nos se-
encontram espaço, em primeiro lugar, O segundo objetivo é acelerar os tores culturais e criativos: nada menos
mais princípios de organização econô- tempos da passagem do welfare sta- do que 20%, cinco em cada 25, contra
mica – desde o da busca do lucro ao te à welfare society. Já é aceito que a os três da Alemanha e da Holanda, os
de reciprocidade – sem que a organi- superação do modelo estatalista de dois do Reino Unido e um da região da
zação institucional vigente privilegie, welfare [bem-estar] pressupõe que se França. No entanto, a Itália é um dos
mais ou menos abertamente, um ou disponha de uma tipologia específica poucos dos 27 países da Europa a não
porâneo, esse tema é expresso como propostos e às vezes postos em práti- dos outros países do Ocidente avança-
work-life balance, isto é, equilíbrio, ca (licença parental; trabalho a tempo do possui (tais países podem competir
conciliação entre família e trabalho. parcial; creches; bancos de horas; fle- com a Itália no Terceiro Setor redistri-
Trata-se de uma expressão infeliz, que xibilidade dos horários; programas de butivo; certamente não no produti-
trai uma certa configuração cultural “bom retorno” à empresa; mentoring, vo). Trata-se, então, de finalmente
que não podemos compartilhar. O etc.) devem ser pensados unicamen- soltar aquele Prometeu acorrentado
próprio termo de conciliação, de fato, te para permitir especialmente que a que é o nosso Terceiro Setor produti-
postula a existência de um conflito, ao mulher que tem família se adapte me- vo. Como? Reformando radicalmente
menos potencial, entre esses dois âm- lhor às exigências da empresa, e tudo o Livro I, Título II do Código Civil – que
bitos fundamentais de vida, cada um isso com o fim último de aumentar a ainda é o de 1942! –; atualizando as
dos quais é dotado de uma especifi- taxa de participação feminina no mer- leis de setor (sobretudo aquelas sobre
cidade própria e de um sentido pró- cado de trabalho – taxa que, como o voluntariado e sobre as cooperati-
prio. Ao contrário, consideramos que veremos, é particularmente baixa no vas sociais, ambas de 1991), também
não existem razões de princípio que nosso país [Itália]. Consideramos, ao para eliminar as muitas incongruên-
Tema de Capa
o nó dos financiamentos. Não é mais suspeita em relação àqueles que têm
tolerável que empresas que buscam
fins de utilidade social sejam racio-
enfrentar empresas. Por isso, é urgente chegar a
um “estatuto das empresas”, em ana-
nadas no crédito e não possam ter
acesso a esses instrumentos finan-
urgentemente logia ao que se faz com o “estatuto
dos trabalhadores”.
ceiros (por exemplo: obrigações de
solidariedade, obrigações de impacto
a questão da Uma terceira frente é a da es-
candalosa desigualdade, seja pessoal,
social, fundos de investimento sociais)
que permitiriam encontrar os recur-
relação entre vida seja territorial, da renda. Sabemos
que o aumento das desigualdades,
sos necessários para o seu desenvol- familiar e vida de além de um certo limite, desencoraja
vimento. Isto é, não é concebível que a inovação da empresa, porque reduz
as finanças que, historicamente, nas- trabalho” a perspectiva de crescimento da eco-
ceram para favorecer a busca do bem nomia. Mas, acima de tudo, reduz o
comum devam continuar a serviço capital social (ou seja, a confiança ge-
exclusivamente daqueles que perse- falta de talento individual. Ao contrá- neralizada) e coloca uma séria amea-
guem fins especulativos. rio, é a falta de “capital conectivo” o ça à paz social.
A criação de um mercado de ca- verdadeiro gargalo. Depois da longa
pitais paralelo ao especulativo para
financiar o Terceiro Setor produtivo
temporada dos distritos industriais, o
nosso capital conectivo foi decrescen-
Leia mais...
também serviria para eliminar a grave do progressivamente. • A identidade e a missão de uma
anomalia italiana que faz com que a Uma frente imediata para se in- universidade católica na atualida-
subsidiariedade dependa da tributa- tervir é a da reforma fiscal. O siste- de. Edição 185 do Cadernos IHU
ção geral, o que é uma patente con- ma fiscal italiano defende, de modo Ideias, disponível em http://bit.ly/
tradição pragmática. A ideia de dar ignóbil, a renda (financeira; imobili- ihuid185;
à luz a uma Bolsa Social é conhecida ária; burocrática), enquanto penaliza • A ética católica e o espírito do ca-
e foi elaborada pela primeira vez na o salário e o lucro. Com uma cota da pitalismo. Edição 159 do Cadernos
Itália, mas não consegue deslanchar. renda sobre o PIB de cerca de 33%, IHU Ideias, disponível em http://bit.
Agora, no entanto, a recente diretriz não poderá haver um crescimento ly/ihuid159;
da Comissão Europeia fala explicita- sustentado e duradouro. A luta contra • Globalização e o pensamento eco-
mente da exigência de criar uma “Bol- a evasão fiscal – em parte favorecida nômico franciscano: orientação do
sa Social Europeia” (estranho destino, pelo atual regime fiscal – nunca pode- pensamento econômico franciscano
o dos italianos!). rá servir para compensar tal distorção e Caritas in Veritate. Edição 153 do
Não podemos continuar repe- com o objetivo do relançamento do Cadernos IHU Ideias, disponível em
tindo que o país precisa crescer e, empreendedorismo. http://bit.ly/ihuid153;
depois, mortificar, como há tempo Uma segunda frente de ataque é • “Eficiência e justiça não bastam pa-
está acontecendo, o espírito empre- a que diz respeito à responsabilidade ra assegurar a felicidade”: o valor
endedor. A empresa é o motor do social da empresa, ainda tímida de-
do dom na economia. Entrevista
crescimento. A taxa de empreende- mais no nosso país. É urgente instituir
especial com Stefano Zamagni, pu-
dorismo diminuiu de modo preocu- prêmios para os comportamentos vir-
blicada nas Notícias do Dia, de 08-
pante ao longo do último quarto de tuosos, tendo em mente que a virtude
05-2011, disponível em http://bit.
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século, especialmente entre os jovens é mais contagiosa do que o vício! Por-
ly/1nX9zJH.
e no Sul do país. O problema não é a tanto, deve ser mudada a infraestru-
biopolítico de governo da
vida humana
O filósofo Castor Bartolomé Ruiz aproxima os conceitos de Culpa e
Dívida, para evidenciar os modos como a lógica sacrifical nos submete
ao Capitalismo
E
m alemão, a palavra schuld é utilizada que, a princípio, não seria nada mais que
para significar “dívida” ou “débito”. uma forma de organizar a produção, a co-
Curiosamente, o mesmo termo pode mercialização e as relações econômicas en-
ser utilizado, em outro contexto, no senti- tre pessoas e sociedades, mas que passa a
do de “culpa”. A ambiguidade não passa dominar e objetificar o homem. “O mercado
despercebida para Walter Benjamin, que foi ressignificado como se fosse uma entida-
chama atenção para o fato em Capitalismo de com natureza própria (...), cuja natureza
como Religião (São Paulo: Boitempo, 2013). se rege pelo interesse próprio dos indiví-
A partir desta reflexão, o filósofo Castor Bar- duos”, explica. Ruiz expõe ainda o egoísmo
tolomé Ruiz discorre sobre os modos como como estruturante do mercado, e afirma:
o sacrifício foi incorporado secularmente no “o egoísmo foi instituído como categoria
capitalismo na categoria de dívida. “A dívida antropológica da natureza humana que por
se tornou, para o capitalismo, o meio de cul- sua vez estrutura o modo natural do merca-
par a vida humana de modo a exigir dela o do de se comportar”.
sacrifício necessário para compensar o que Castor Bartolomé Ruiz é graduado em
deve”, afirma ele. Filosofia pela Universidade de Comillas, na
“O dispositivo teológico do sacrifício foi Espanha, com mestrado em história pela
interiorizado como técnica econômica de Universidade Federal do Rio Grande do
governo. O capitalismo financeiro só pode Sul – UFRGS e doutorado em Filosofia pela
subsistir produzindo dívidas. Na hipótese de Universidade de Deusto, Espanha. É pós-
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que não houvesse ninguém com dívidas, o -doutor pelo Conselho Superior de Investi-
capitalismo financeiro entraria em um co- gações Científicas. Atualmente é professor
lapso total. É a dívida que gera o lucro.” A nos cursos de graduação e pós-graduação
culpa no Capitalismo, no entanto, não é ex- em Filosofia da Unisinos. Entre outros, des-
piante, mas é mais e mais culpabilizante, e tacamos os seguintes livros de sua autoria:
seu único modo de remissão é o sacrifício Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo:
através de um trabalho maior, mais exte- Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O
nuante ou mais explorador. Desta forma, poder (do) simbólico e os modos de subjeti-
alerta, “temos aqui sinalizado um dispositi- vação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As en-
vo biopolítico de governo da vida humana”. cruzilhadas do humanismo. A subjetividade
Nesta entrevista concedida por e-mail à e alteridade ante os dilemas do poder ético
IHU On-Line, o filósofo retoma também a (Petrópolis: Vozes, 2006).
discussão sobre a entificação do Mercado Confira a entrevista.
Tema de Capa
reino e a glória (São Paulo: Boitempo, com a divindade. Através da dívida a
2011), de Agamben1, em que medida
pode-se dizer que a lógica sacrificial endividada está vida humana se torna culpada, e por
sua vez se vê obrigada a pagar com
da religião “entrou” no capitalismo?
Castor Bartolomé Ruiz – A obra condenada ao sacrifício. A culpa gerada pela dívida
justifica a necessidade do sacrifício
de Agamben O Reino e a Glória é como dispositivo compensador. A vida
uma pesquisa sobre a arqueologia sacrifício” endividada é uma vida culpada que
das formas de governo nas socieda- deve sacrificar-se para pagar a dívida.
des ocidentais e sua matriz teológi- blemática da filosofia estoica2 sobre A vida endividada está condenada ao
ca. Nela há referências ao sacrifício, a providência do mundo, porém de- sacrifício.
porém sua tese principal é que o senvolve a tensão que há entre a so- O capitalismo, analisa Benjamin,
aparato conceitual do governo da berania imutável da natureza divina fez da dívida um de seus principais
vida, implementado nas modernas e o governo providente da liberdade mecanismos de sustentação. A dívida
técnicas de governo e administra- humana. Segundo Agamben, essa se tornou, para o capitalismo, o meio
ção (como o contrato e o mercado, fissura entre soberania e governo, de culpar a vida humana de modo a
entre outras), foi desenvolvido nos que foi detectada pela teologia, se exigir dela o sacrifício necessário para
debates teológicos sobre o governo mantém como fissura da política compensar o que deve. O dispositivo
providencial do mundo por Deus. A ocidental tal e como a conhecemos teológico do sacrifício foi interioriza-
matriz teológica cristã retoma a pro- na modernidade. Ela é a chave her- do como técnica econômica de gover-
menêutica para compreendermos no. O capitalismo financeiro só pode
criticamente nossos dispositivos de subsistir produzindo dívidas. A dívida
governo e soberania. dos outros gera o lucro dos credores.
1 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita-
liano. É professor da Facolta di Design Nesta obra, Agamben não desen- Na hipótese de que não houvesse
e arti della IUAV (Veneza), onde ensina volve o que poderíamos chamar uma ninguém com dívidas, o capitalismo
Estética, e do College International de arqueologia política do sacrifício. Esta financeiro entraria em um colapso to-
Philosophie de Paris. Formado em Direi-
to, foi professor da Universitá di Mace- é uma pesquisa que talvez esteja por tal. É a dívida que gera o lucro. Este
rata, Universitá di Verona e da New York ser feita em toda sua profundidade e dispositivo induz o capital a oferecer
University, cargo ao qual renunciou em dimensão. Contudo, há reflexões que créditos fáceis para estimular o endi-
protesto à política do governo estaduni-
dense. Sua produção centra-se nas rela- já esboçaram esta problemática. Des- vidamento amplo. Quanto mais pes-
ções entre filosofia, literatura, poesia e, taco, entre outros, o fragmento de soas se endividarem, maior é o lucro
fundamentalmente, política. Entre suas artigo de Walter Benjamin3: O capita- que se obterá delas.
principais obras, estão Homo Sacer: o
poder soberano e a vida nua (Belo Ho- lismo como religião (São Paulo: Boi-
rizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem tempo, 2013). Neste ensaio, Benjamin Dispositivo sacrificial da dívida
e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, explora a dimensão religiosa do capi- O dispositivo da dívida é cons-
2005), Infância e história: destruição da
experiência e origem da história (Belo talismo, em especial através de seu tantemente ativado pelo capitalismo
Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de componente sacrificial. O sacrifício foi como meio de manter funcionando
exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, incorporado secularmente no capita- o sistema. A conjuntura em que vive-
2007), Estâncias – A palavra e o fantas-
ma na cultura ocidental (Belo Horizon- lismo na categoria de dívida (Schuld, mos de uma ampla oferta de crédito
te: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São que também significa culpa). tem por objetivo manter e ampliar o
Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em dispositivo sacrificial da dívida como
04-09-2007, o sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU publicou a entrevista Endividamento meio econômico de governar lucrati-
Estado de exceção e biopolítica segundo Teologicamente, a genealogia do vamente a vida dos outros. As pessoas
Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson sacrifício se justifica como pagamento endividadas terão que dedicar longos
da Silva Martins, disponível em http://
períodos de sua vida a trabalhar sacri-
www.ihu.unisinos.br
bit.ly/jasson040907. A edição 236 da
IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou 2 Filosofia Estóica: Escola de filosofia ficadamente para compensar a dívida
a entrevista Agamben e Heidegger: o helenística fundada em Atenas por Zenão adquirida. O trabalho para pagar a dí-
âmbito originário de uma nova experi- de Cítio no início do século III a.C. Os
ência, ética, política e direito, com o estoicos ensinavam que as emoções
vida representa a oferta do sacrifício
filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível destrutivas resultam de erros de desse tempo de vida para compensar
em http://bit.ly/ihuon236. A edição julgamento, e que um sábio, ou pessoa a culpa inerente ao crédito. Quem se
81 da publicação, de 27-10-2003, teve com “perfeição moral e intelectual”, não
como tema de capa O Estado de exce- sofreria dessas emoções (Nota da IHU
endivida terá que sacrificar-se. Para
ção e a vida nua: a lei política moderna, On-Line) que o sistema de acumulação do lucro
disponível para acesso em http://bit.ly/ 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo funcione, haverá que estimular o en-
ihuon81. Além disso, de 16 de abril a 23 alemão. Foi refugiado judeu e, diante da
de outubro de 2013, o IHU organizou o perspectiva de ser capturado pelos nazis-
dividamento através do crédito relati-
ciclo de estudos O pensamento de Gior- tas, preferiu o suicídio. Um dos principais vamente fácil, embora com garantias.
gio Agamben: técnicas biopolíticas de pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre O sacrifício, através da dívida,
governo, soberania e exceção, cujas ati- Benjamin, confira a entrevista Walter
vidades integraram o I e o II seminários Benjamin e o império do instante, con-
tornou-se um dispositivo gerador de
preparatórios ao XIV Simpósio Interna- cedida pelo filósofo espanhol José Anto- lucro, mas também uma técnica de
cional IHU – Revoluções tecnocientíficas, nio Zamora à IHU On-Line nº 313, dispo- governo da vida humana. As vidas en-
culturas, indivíduos e sociedades. (Nota nível em http://bit.ly/zamora313. (Nota
da IHU On-Line) da IHU On-Line)
dividadas são vidas governadas pela
Universidade Gregoriana (PUG), Itália. É obras, destacamos La Violence et le Sacré mista, historiador e revolucionário ale-
gaúcho, foi professor de teologia no Se- (A violência e o sagrado), Des Choses Ca- mão, um dos pensadores que exerceram
minário de Viamão na década de 1960. chées depuis la Fondation du Monde (Das maior influência sobre o pensamento
Exilado, foi um dos pioneiros da teologia coisas escondidas desde a fundação do social e sobre os destinos da humanida-
da libertação. Uma vez radicado na Costa mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode ex- de no século XX. A edição número 41 dos
Rica, iniciou uma importante pesquisa, piatório), 1982. Todos esses livros foram Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda
juntamente com Franz Kinkelammert so- publicados pela Editora Bernard Grasset, Maria Paulani, tem como título A (anti)
bre Economia e Teologia. Já de volta para de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Fi- filosofia de Karl Marx, disponível em
o Brasil, dedica-se aos temas da educa- losofia da Academia Francesa, em 1996, http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o
ção. (Nota da IHU On-Line) e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro autor, confira a edição número 278 da
6 Jung Mo Sung: é professor do Programa mais conhecido em português é A violên- IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada
de Pós-graduação em Ciências da Religião cia e o sagrado (São Paulo: Perspectiva, A financeirização do mundo e sua crise.
da PUC-SP e da UMESP. É também pes- 1973). Sobre o tema desejo e violência, Uma leitura a partir de Marx, disponível
quisador do IFAN-USF. Autor de diversos confira a edição 298 da revista IHU On-Li- em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igual-
livros, entre eles, Competência e sensibi- ne, de 22-06-2009, disponível em http:// mente, a entrevista Marx: os homens
lidade solidária: educar para esperança, bit.ly/ihuon298. Leia, também, a edição não são o que pensam e desejam, mas
2ª. ed., 2001, Vozes (em coautoria com especial 393 da IHU On-Line, de 21-05- o que fazem, concedida por Pedro de
Hugo Assmann); Desejo, mercado e re- 2012, sobre o pensamento de Girard, Alcântara Figueira à edição 327 da IHU
ligião, 3ª. ed., 1998, Vozes; Teologia e intitulada O bode expiatório, o desejo e On-Line, de 03-05-2010, disponível em
Economia, 2ª. ed., 1995, Vozes. (Nota da a violência, disponível em http://bit.ly/ http://bit.ly/ihuon327. (Nota da IHU On-
IHU On-Line) ihuon393. (Nota da IHU On-Line) -Line)
Tema de Capa
mercadoria. ção privada de capital, assim como
A mercadoria toma o lugar dos
valores e ideais humanos, os absorve, humano, o uma nova classe social dominante, a
burguesia, desconstruiu o paradigma
oferecendo uma felicidade material
concreta na sua posse e desfrute ma- capitalismo, clássico do bem comum que legitima-
va os mercados medievais. Recuou
terial. Ela é o novo fetiche que oferece os princípios do bem comum para as
a ilusão de uma alienação sob aparên- como o ídolo, declarações formais do direito cons-
cia de felicidade irrestrita. O fetiche titucional e liberou a economia dessa
da mercadoria criou a promessa de desapareceria” “intrusão”. O mercado, que era uma
redenção no novo paraíso do con- instituição periférica nas sociedades
sumo. O Éden bíblico foi substituído medievais, foi consolidado como um
pelo hedonismo mercantil. em linhas gerais poderia se dizer que dispositivo central da nova política.
A humanização fetichista de o funcionamento do mercado medie- Nascia a economia política.
mercadoria é proporcional à objeti- val que se praticava nas urbes estava O mercado foi ressignificado
vação mercantil da vida humana. Este organizado em torno do princípio do como se fosse uma entidade com na-
processo fetichista desemboca no bem comum. tureza própria similar ao conceito de
inevitável sacrifício da vida humana Embora no marco de economias natureza humana criado nesse século.
em prol da mercadoria. Esse sacrifício e sociedades muito menos complexas Assim, foi estruturado como uma en-
também se faz num duplo aspecto. que as nossas, o mercado durante tidade cuja natureza se rege pelo inte-
1) O processo produtivo adquire toda a Idade Média tinha o princípio resse próprio dos indivíduos. Ou seja,
uma matriz biopolítica em que a vida do intercâmbio justo das mercado- o egoísmo foi instituído como catego-
humana é sacrificada para atingir as rias. O conceito de justiça era central ria antropológica da natureza humana
metas. ao mercado e ao intercâmbio. O mer- que por sua vez estrutura o modo na-
2) Na dinâmica de consumo, a cado era um espaço em que se visava tural do mercado de se comportar.
vida humana é sujeitada por dispo- estabelecer relações justas através O modelo antropológico do in-
sitivos de produção de desejos que, teresse próprio se mostrou muito efi-
das trocas equitativas. Por exemplo,
numa outra dimensão da matriz bio- ciente na legitimação dos novos dis-
se impedia a especulação pela escas-
política, a tornam um meio útil para positivos reguladores da economia.
sez. Havia uma regulação e um con-
um fim eficiente. O mercado tornou-se um dispositivo
trole baseado no bem comum sob o
regulador das relações sociais e po-
critério da troca justa e do lucro justo.
IHU On-Line – Qual é a diferença líticas, tendo como eixo legitimador
Este modelo de mercado seguia os
entre o mercado medieval e o merca- a naturalidade do interesse próprio.
princípios clássicos da filosofia políti-
do hoje? Como se deu essa mudança Sua eficiência consiste em haver
ca clássica do bem comum, mantidos
de significados? conseguido legitimar a desigualdade
pelo ideal cristão dominante de que
Castor Bartolomé Ruiz – Em pri- social como algo natural. Os mecanis-
todo governo deve visar ao bem cole-
meiro lugar é conveniente firmar o mos de concentração de riqueza e do
tivo e evitar ao máximo a especulação
princípio de que o mercado não é uma poder através da acumulação privada
dos interesses privados. Por isso, os
entidade natural com leis próprias. É do capital é concomitante ao despoja-
uma instituição histórica criada a par- filósofos e teólogos medievais conde-
mento de acesso ao poder e à riqueza
tir dos interesses em jogo. As chama- navam a usura no mercado e proibiam das grandes maiorias sociais.
das leis do mercado são regulamentos os juros por serem um mecanismo ex- A desigualdade é produzida pe-
e normatizações históricas criadas propriatório injusto de riqueza alheia. los mecanismos do mercado como
para seu funcionamento concreto. Da Esta concepção de mercado foi algo normal. Naturalizam-se, por um
mesma forma que foram criadas, po- possível porque o mercado medieval lado, os dispositivos de concentração
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dem ser mudadas. Quanto mais com- era uma instituição periférica do sis- de poder em cartéis e oligopólios e,
plexas, mais difícil sua transformação. tema político daquelas sociedades. A por outro, normaliza-se a necessidade
O mercado não é culpado de nada, injustiça estrutural que eivava as so- das políticas sociais de sacrifícios ine-
nem é o salvador de ninguém. Ele é ciedades estamentais na Idade Média vitáveis, tudo referido a supostos dis-
uma forma de organizar a produção, não utilizava o mercado como disposi- positivos naturais de funcionamento
comercialização e relações econômi- tivo e tecnologia, algo que irá mudar a do mercado.
cas entre pessoas e sociedades. partir do século XVII.
O mercado medieval não era Criadores e criatura
uma instituição-chave da estrutura O egoísmo como estruturante Este modelo de mercado tem-se
estamental daquelas sociedades, nem do mercado complexificado enormemente a pon-
um dispositivo central da organização Atualmente, a noção de merca- to de não mais conseguirmos per-
da sua estrutura de poder. Embora do em voga foi construída a partir das ceber onde começa a criatura que
devêssemos fazer algumas distinções mudanças conceituais e estruturais fizemos e até onde estamos sendo
pertinentes sobre o mercado das ligas acontecidas no século XVII na Euro- criados à sua imagem e semelhança.
comerciais e os mercados das urbes, pa. A emergência dos novos modos A criatura parece devorar seus cria-
respeitadas. Ele foi simbolizado com o processo moderno de secularização. permanecem na condição de inaces-
um naturalismo próprio que deve ser A modernidade pretendeu libertar o sibilidade para ação social direta. Para
acatado pelas políticas dos Estados ser humano de determinações exter- tanto, propõe a categoria da profana-
e as decisões sociais para que possa nas, como a religião, porém, sob apa- ção. Aquilo que se profana é retirado
funcionar corretamente. rência de secularização, em muitas de de sua condição de inacessibilidade
Apresenta-se o mercado como suas instituições e discursos imanen- sacral para voltar ao domínio do uso
onipresente, pois está em todas as tizou os dispositivos da sacralidade. A comum das pessoas.
partes. Ele se mostra onipotente, pois sacralidade se caracteriza por separar
consegue regular todas as relações a realidade do uso comum das pesso- Profanação como categoria
econômicas, sociais, políticas, até afe- as colocando-a num outro patamar, filosófica
tivas. Ele é justiceiro porque premia sagrado, em que se tornam inatingí- As categorias teológicas ofere-
os bons investidores e castiga os maus veis para a vontade humana. Quando cem a possibilidade de pensar uma
ou ineficientes. Estes são atributos algo ou alguém é declarado sagrado, filosofia crítica inovadora além da
divinos que se imanentizaram nesta se retira imediatamente do uso co- mera categorização conceitual ha-
instituição. mum e fica consagrado ao uso espe- bitualmente desenvolvida pelo pen-
Tema de Capa
filosófica foi apontada agudamente jogo nestes discursos é a instrumen-
por Benjamin nas suas teses sobre fi-
losofia da história. Na tese I apresenta de niilismo talização da vida humana como meio
útil para um fim outro: o lucro. A vida
a teologia como se fosse um anão feio
e escondido na penumbra da história pragmático, a humana é objetiva como recurso na-
tural do qual se podem extrair benefí-
porque os pensadores modernos não cios, lucros, eficiência, produtividade.
a valorizam. Porém, mesmo relegada mercadoria brilha O dispositivo biopolítico da economia
à penumbra, a teologia continua a es- coloca a questão de como governar
tar presente na trama dos fios da ação como o novo de forma útil a vida humana, não para
histórica. Agamben, com suas diferen- benefício da vida, senão para consecu-
ças, também reflete esta perspectiva horizonte utópico ção de lucros. Essa lógica foi derivan-
filosófica que retoma da teologia su- do numa crescente sujeição da vida
gestões instigantes para pensar criti- das aspirações humana ao conceito de recurso bio-
camente nossa realidade. lógico com potencialidades inesgotá-
O uso político do conceito de pro-
fanação que Agamben propõe, ainda
sociais” veis. Evidentemente que esse proces-
so acontece num campo de tensões,
que seja uma contribuição inovadora, resistências, cessões e ajustes de to-
nos permite encontrar rastros cla- Castor Bartolomé Ruiz – Fou- das as partes implicadas. Mas o dispo-
ros de uma genealogia clássica desse cault dedicou uma parte significativa sitivo biopolítico almeja o máximo de
conflito. Se tomamos como referência de suas últimas pesquisas a perfazer a lucratividade com o mínimo de custo.
duas grandes figuras históricas como genealogia dos dispositivos de gover- Nessa equação a vida humana é cap-
Sócrates e Jesus Cristo, perceber-se-á no da modernidade, que ele caracteri- turada como recurso útil, e o nível de
que, em ambos os personagens, a zou como sendo dispositivos biopolíti- exploração será inversamente propor-
sentença oficial que os condenava à cos. Entre os dispositivos biopolíticos, cional à sua resistência. Neste marco,
morte argumentava que foram pro- Foucault destaca a segurança e tam- o poder soberano, próprio das socie-
fanadores. Sócrates profanou a lei da bém a economia. No curso minis- dades autoritárias pré-modernas, não
cidade corrompendo a juventude com trado entre 1978-1979, intitulado mais era eficiente para governar capi-
novas ideias. Jesus profanou perma- Nascimento da biopolítica, Foucault larmente a vida humana. Fazia-se ne-
nentemente as principais instituições desenvolveu a genealogia da econo- cessário desenvolver outras técnicas e
de sua sociedade. Afirmou que a lei é mia política moderna e contemporâ- dispositivos de governo que não fos-
para o homem, e não o homem para nea, chegando a analisar a genealogia sem mais percebidos como autoritá-
a lei; profanou o sábado, curando do modelo neoliberal de economia. rios, no sentido clássico do termo. Era
quando estava proibido; profanou o A tese de Foucault é que os mé- prioritário criar dispositivos e técnicas
templo, expulsando os vendilhões; todos modernos de governo, espe- que governassem a liberdade huma-
profanou deixando-se tocar por mu- cialmente a economia, provocaram na. Esta aparente aporia, governar a
lheres impuras, etc. A profanação foi uma virada conceitual e prática em liberdade, constitui-se no âmago das
uma estratégia utilizada, entre outros, relação com a vida humana. Nas so- técnicas de administração modernas,
por Sócrates9 e Jesus, em sociedades ciedades antigas, a vida humana natu- que são técnicas de governo da liber-
donde a sacralidade operava como ral, denominada pelos gregos de zoé, dade. Elas são eficientes quando con-
dispositivo altamente eficiente para não era objeto de governo porque seguem que os sujeitos se sujeitem
evitar que as pessoas comuns tives- se considerava que era regida pelas “livremente” às necessidades institu-
sem o poder de aceder ou transfor- leis ontológicas da natureza sobre cionais ou estruturais.
mar a realidade. as quais a vontade humana não tem Foucault alcunhou uma expres-
são para indicar a diferença entre o
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poder. A modernidade, em especial
IHU On-Line – Tomando os es- os discursos econômicos, percebeu poder soberano e o biopoder, que se
critos de Foucault em consideração, que o governo dessa vida humana tornou muito conhecida: O poder so-
é correto afirmar que atualmente a natural, a vida biológica, era muito berano faz morrer e deixa viver, o bio-
economia funciona como normaliza- importante para a produção. Os no- poder faz viver e deixa morrer.
dora dos sujeitos? Por quê? vos conhecimentos de anatomia, es-
tatística, organização espacial, etc.,
Sujeição ou exclusão
foram se deslocando paulatinamente Para conseguir este complexo
9 Sócrates (470 a.C.–399 a.C.): filósofo
para a produção de discursos sobre o objetivo, governar a liberdade, utili-
ateniense e um dos mais importantes
ícones da tradição filosófica ocidental. aprimoramento do governo da vida zou-se, entre outras, a técnica da nor-
Sócrates não valorizava os prazeres dos humana no processo produtivo, nas ma. A norma, diferentemente da lei,
sentidos, todavia escalava o belo entre
instituições, pelo Estado. tende a regular capilarmente os com-
as maiores virtudes, junto ao bom e ao
justo. Dedicava-se ao parto das ideias Por exemplo, as modernas linhas portamentos. A norma estabelece os
(Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O de produção das fábricas surgem a procedimentos corretos para que um
julgamento e a execução de Sócrates são
partir de estudos sobre anatomia hu- sujeito seja aceito numa instituição
eventos centrais da obra de Platão (Apo-
logia e Críton). (Nota da IHU On-Line) mana, o espaço e sua relação com a ou processo. Ela regula, no mínimo
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24 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454
O domínio avassalador da
Tema de Capa
economia sobre a política
“A animalização do humano é uma característica fundamental da política moderna e
contemporânea, o que justificaria ainda mais que falássemos em zoopolítica, e não
em biopolítica”, pondera Cláudio Oliveira
Por Márcia Junges e Luciano Gallas1
“D
1
entro da perspectiva de Agamben, nomia, mas um domínio avassalador da primeira
poderíamos dizer que a ideia de pela segunda, a ponto de reduzir a primeira, a
estado mínimo e da mão invisível política, a quase nada, ou, para usar um termo
do mercado estariam relacionadas com a de- muito na moda, a um problema de gestão. Creio
cadência da dimensão política enquanto tal, na que o modo como se deu esse processo foi ex-
medida em que, no capitalismo, as coisas pa- plicado do modo mais radical até hoje por Marx,
recem se resolver apenas desde uma perspec- quando nos mostrou que, a partir do capitalis-
tiva econômica. A oposição entre econômico e mo, os homens deixam de se encontrar no mer-
político já está dada desde o livro I da Política cado, na medida em que são as mercadorias, e
de Aristóteles. O que Agamben nos ensina, des- não os homens, que passam a se encontrar no
de o livro I de Homo Sacer, é que, ao contrário mercado. Algo que Marx chamou de o fetichis-
do que acreditava Aristóteles, que julgava que mo da mercadoria”, enfatiza.
o econômico deveria estar submetido ao polí- Cláudio Oliveira da Silva é graduado, mestre e
tico, na modernidade temos a total submissão doutor em Filosofia pela Universidade Federal do
da política ao econômico, quando não simples- Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, é professor do
mente uma eliminação do primeiro pelo segun- Departamento de Filosofia da Universidade Fe-
do. É de algum modo o sentido de toda a refle- deral Fluminense – UFF. É membro, desde a sua
xão de Marx, sobretudo em O Capital”, afirma fundação, do grupo de trabalho Filosofia e Psica-
o filósofo Cláudio Oliveira. nálise da Associação Nacional de Pós-Graduação
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU em Filosofia – ANPOF e da International Society
On-Line, o pesquisador analisa a obra de Giorgio of Psychoanalysis and Philosophy. Integra o Con-
Agamben e sua relação com o trabalho de pen- selho Editorial da Coleção Filô, da editora Autênti-
sadores dos mais variados ramos do conheci- ca, na qual dirige a série Agamben – é o tradutor
mento, debatendo as interações entre economia para o português usado no Brasil do livro A comu-
e política no atual sistema de produção hegemô- nidade que vem (“La Comunità che viene” – Belo
nico. “O que aconteceu no mundo moderno não Horizonte: Autêntica Editora, 2013).
foi propriamente uma cisão entre política e eco- Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir das ideias teologica dell’economia e del gover- pode ser compreendido como uma
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de Agamben1 em O Reino e a glória (Il no – São Paulo: Boitempo Editorial, zoopolítica?
Regno e la Gloria. Per una genealogia 2011), em que medida o capitalismo
____________ Infância e história: destruição da experi- política e direito, com o filósofo Fabrício
1 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia- ência e origem da história (Belo Horizonte: Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/
no. É professor da Facolta di Design e arti Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São ihuon236. A edição 81 da publicação, de
della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias 27-10-2003, teve como tema de capa O
e do College International de Philosophie – A palavra e o fantasma na cultura oci- Estado de exceção e a vida nua: a lei po-
de Paris. Formado em Direito, foi profes- dental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) lítica moderna, disponível para acesso em
sor da Universitá di Macerata, Universitá di e Profanações (São Paulo: Boitempo Edito- http://bit.ly/ihuon81. Além disso, de 16
Verona e da New York University, cargo ao rial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Ins- de abril a 23 de outubro de 2013, o IHU
qual renunciou em protesto à política do tituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a organizou o ciclo de estudos O pensamento
governo estadunidense. Sua produção cen- entrevista Estado de exceção e biopolítica de Giorgio Agamben: técnicas biopolíticas
tra-se nas relações entre filosofia, literatu- segundo Giorgio Agamben, com o filóso- de governo, soberania e exceção, cujas
ra, poesia e, fundamentalmente, política. fo Jasson da Silva Martins, disponível em atividades integraram o I e o II seminários
Entre suas principais obras, estão Homo http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 preparatórios ao XIV Simpósio Internacio-
Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a nal IHU – Revoluções tecnocientíficas, cul-
Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito turas, indivíduos e sociedades. (Nota da
a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), originário de uma nova experiência, ética, IHU On-Line)
a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Esta- ‘História da loucura’ e o discurso racio- disponível em http://bit.ly/ihuon206.
gira. Suas reflexões filosóficas – por um nal em debate, disponível em http:// (Nota da IHU On-Line)
lado, originais; por outro, reformula- bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des) 4 Peter Sloterdijk (1947): filósofo ale-
doras da tradição grega – acabaram por governo biopolítico da vida humana, de mão. Desde a publicação de Crítica da ra-
configurar um modo de pensar que se 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ zão cínica, é considerado um dos maiores
estenderia por séculos. Prestou signifi- ihuon343, e edição 344, Biopolitica, es- renovadores da filosofia atual. Em 2004,
cativas contribuições para o pensamento tado de exceção e vida nua. Um debate, encerrou sua trilogia Esferas (Sphären),
humano, destacando-se nos campos da disponível em http://bit.ly/ihuon344. cujos primeiros volumes foram publica-
ética, política, física, metafísica, lógica, Confira ainda a edição nº 13 dos Cader- dos em 1998 e 1999. Interessado na mí-
psicologia, poesia, retórica, zoologia, nos IHU em formação, disponível em dia, dirige Quarteto filosófico, programa
biologia e história natural. É considerado http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. cultural da cadeia de televisão estatal
por muitos o filósofo que mais influenciou Sua contribuição para a educação, a po- alemã ZDF. Tem inúmeras obras traduzi-
o pensamento ocidental. (Nota da IHU lítica e a ética. (Nota da IHU On-Line) das para o português, como Regras para
On-Line) 3 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e o parque humano – uma resposta à carta
2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo socióloga alemã de origem judaica. Foi de Heidegger sobre o humanismo (São
francês. Suas obras, desde a História da influenciada por Husserl, Heidegger e Paulo: Estação Liberdade, 2000). No sítio
Loucura até a História da sexualidade (a Karl Jaspers. Em consequência das per- do IHU On-Line, foram publicadas várias
qual não pôde completar devido a sua seguições nazistas, em 1941, partiu para traduções de entrevistas concedidas pelo
morte), situam-se dentro de uma filoso- os Estados Unidos, onde escreveu gran- filósofo. Elas podem ser acessadas pela
fia do conhecimento. Suas teorias sobre de parte das suas obras. Lecionou nas busca em www.ihu.unisinos.br. (Nota da
o saber, o poder e o sujeito romperam principais universidades deste país. Sua IHU On-Line)
Tema de Capa
metido ao político, na modernidade nha desenvolvido a fundo. Mas ele e História. O texto apresentado no co-
temos a total submissão da política nos mostra que uma biopolítica é lóquio, no entanto, jamais foi publica-
ao econômico, quando não simples- condição fundamental para a ins- do. Tenho tentado, nos últimos anos,
mente uma eliminação do primeiro tauração do capitalismo. A obra de convencer Agamben a publicá-lo,
pelo segundo. É de algum modo o Agamben é uma oportunidade para mas até agora meus esforços foram
sentido de toda a reflexão de Marx5, nos aprofundarmos nessa questão. em vão. Acho que é um texto que
sobretudo em “O Capital”. Eu diria que o capitalismo é uma bio- permitiria esclarecer alguns pontos
política (ou uma zoopolítica, se qui- obscuros da relação entre Lacan e
IHU On-Line – Há uma cisão en- sermos ser mais precisos), na medida Agamben.
tre ética e economia? Como se deu em que o indivíduo e o cidadão se O pensamento de Agamben, seu
esse processo? tornam para o governo um problema trabalho e obra são tão próximos de
Cláudio Oliveira – Na verdade econômico. Lacan que exatamente essa proxi-
não se trata, a meu ver, de uma ci- midade tem que nos deixar atentos.
são, nem de uma cisão entre ética IHU On-Line – Que conexões Existe um conhecimento – depois de
e economia. A relação fundamen- podem ser percebidas entre Lacan6 e muitos anos de certo convívio com
tal seria entre política e economia, Agamben? Agamben, tenho noção disso – por
a ética fazendo parte de um domí- Cláudio Oliveira – Na obra de parte de Agamben da literatura psica-
nio dentro da política. O que acon- Agamben, elas começam a aparecer já nalítica. Um conhecimento por parte
teceu no mundo moderno não foi em seu segundo livro, Estâncias (Belo dele de certo Freud7, de certo Lacan,
propriamente uma cisão entre po- Horizonte: Editora UFMG, 2007), no mas esse conhecimento não vai até
lítica e economia, mas um domínio terceiro ensaio do livro, que é dedica- o nível que imaginamos, pelo fato de
avassalador da primeira pela segun- do, dentre outros, a Jacques Lacan, e vermos grandes coincidências. A meu
da, a ponto de reduzir a primeira, a onde Agamben se utiliza da teoria psi- ver, essas coincidências se devem
política, a quase nada, ou, para usar canalítica, sobretudo lacaniana, para menos a um conhecimento profun-
um termo muito na moda, a um pro- construir sua própria teoria do fan- do da obra de Lacan ou de Freud por
blema de gestão. Creio que o modo tasma ou da fantasia. Essa referência parte de Agamben, e mais a um certo
como se deu esse processo foi expli- permanecerá em livros posteriores, conjunto de referências intelectuais
cado do modo mais radical até hoje como “Infância e História”, mas tende compartilhadas no século XX: a an-
por Marx, quando nos mostrou que, a desaparecer depois, pelo menos de tropologia estrutural de Lévi-Strauss8,
a partir do capitalismo, os homens modo explícito. Em 1990, Agamben
deixam de se encontrar no mercado, participou do Colóquio “Lacan avec les
7 Sigmund Freud (1856-1939): neuro-
na medida em que são as mercado- philosophes”, promovido pelo Collège logista, fundador da psicanálise. Inte-
rias, e não os homens, que passam a International de Philosophie, do qual ressou-se, inicialmente, pela histeria e,
se encontrar no mercado. Algo que Agamben era um dos diretores de Pro- tendo como método a hipnose, estudou
pessoas que apresentavam esse quadro.
Marx chamou de o fetichismo da grama. Apresentou, na ocasião, um Mais tarde, interessado pelo inconscien-
mercadoria. texto intitulado “Experimentum lin- te e pelas pulsões, foi influenciado por
guae”, mesmo título que viria a dar ao Charcot e Leibniz, abandonando a hip-
nose em favor da associação livre. Estes
IHU On-Line – Quais são os nexos elementos tornaram-se bases da psica-
que unem a biopolítica à economia? nálise. Freud nos trouxe a ideia de que
Cláudio Oliveira – Esses nexos 6 Jacques Lacan (1901-1981): psica- somos movidos pelo inconsciente. Freud,
nalista francês. Realizou uma releitura suas teorias e o tratamento com seus pa-
são muitos, e o próprio Foucault se do trabalho de Freud, mas acabou por cientes foram controversos na Viena do
eliminar vários elementos deste autor século XIX, e continuam ainda muito de-
(descartando os impulsos sexuais e de batidos hoje. A edição 179 da IHU On-Li-
5 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818- agressividade, por exemplo). Para Lacan, ne, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema www.ihu.unisinos.br
1883): filósofo, cientista social, econo- o inconsciente determina a consciência, de capa sob o título Sigmund Freud. Mes-
mista, historiador e revolucionário ale- mas ainda assim constitui apenas uma tre da suspeita, disponível em http://
mão, um dos pensadores que exerceram estrutura vazia e sem conteúdo. Confira bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12-
maior influência sobre o pensamento a edição 267 da revista IHU On-Line, de 2006, tem como tema de capa Freud e
social e sobre os destinos da humanida- 04-08-2008, intitulada A função do pai, a religião, disponível em http://bit.ly/
de no século XX. A edição número 41 dos hoje. Uma leitura de Lacan, disponível ihuon207. A edição 16 dos Cadernos IHU
Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, em formação tem como título Quer en-
Maria Paulani, tem como título A (anti) confira, ainda, as seguintes edições da tender a modernidade? Freud explica,
filosofia de Karl Marx, disponível em revista IHU On-Line, produzidas tendo disponível em http://bit.ly/ihuem16.
http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o em vista o Colóquio Internacional A ética (Nota da IHU On-Line)
autor, confira a edição número 278 da da psicanálise: Lacan estaria justifica- 8 Claude Lévi-Strauss (1908-2009):
IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada do em dizer “não cedas de teu desejo”? antropólogo belga que dedicou a vida
A financeirização do mundo e sua crise. [ne cède pas sur ton désir?], realizado à elaboração de modelos baseados na
Uma leitura a partir de Marx, disponível em 14 e 15 de agosto de 2009: edição linguística estrutural, na teoria da infor-
em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igual- 298, de 22-06-2009, intitulada Desejo e mação e na cibernética para interpretar
mente, a entrevista Marx: os homens não violência, disponível em http://bit.ly/ as culturas, que considerava como siste-
são o que pensam e desejam, mas o que ihuon298, e edição 303, de 10-08-2009, mas de comunicação, dando contribui-
fazem, concedida por Pedro de Alcântara intitulada A ética da psicanálise. Lacan ções fundamentais para a antropologia
Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de estaria justificado em dizer “não cedas social. Sua obra teve grande repercus-
03-05-2010, disponível em http://bit.ly/ de teu desejo”?, disponível em http:// são e transformou, de maneira radical,
ihuon327. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/ihuon303. (Nota da IHU On-Line) o estudo das ciências sociais, mesmo
Tema de Capa
Confira outras edições da IHU On-Line cujo tema de capa aborda autores e temas ligados à
economia.
• Dívida pública. Quem ganha? Quem perde? Edição 440, de 07-04-2014, disponível em http://bit.ly/1wndxDn;
• A economia internacional e o Brasil. A crise financeira e seus (possíveis) impactos. Edição 372, de 05-09-2011, disponí-
vel em http://bit.ly/1h7LG2b;
• A política econômica do governo Dilma. Continuidade ou mudança? Edição 356, de 04-04-2011, disponível em
http://bit.ly/OrwMrC;
• Economia de baixo carbono. Desafios e oportunidades. Edição 351, de 22-11-2010, disponível em http://bit.ly/1g0BW5x;
• Economia brasileira. Desafios e perspectivas. Edição 338, de 09-08-2010, disponível em http://bit.ly/1mUcztP;
• Renda Básica de Cidadania, universal e incondicional. Um direito. Edição 333, de 14-06-2010, disponível em
http://bit.ly/1hxb2Sq;
• A crise da zona do euro e o retorno do Estado regulador em debate. Edição 330, de 24-05-2010, disponível em
http://bit.ly/1lFFsqA;
• A reestruturação do capitalismo brasileiro. Edição 322, de 22-03-2010, disponível em http://bit.ly/1e51hjs;
• Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil. Edição 317, de 30-11-2009, disponível em http://bit.ly/1e51qmV;
• O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes. Edição 301, de 20-07-2009, disponível em
http://bit.ly/1elNBv6;
• Ecoeconomia. Uma resposta à crise ambiental? Edição 295, de 01-06-2009, disponível em http://bit.ly/1jnILSG;
• A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Edição 278, de 21-10-2008, disponível em
http://bit.ly/1ss1otA; www.ihu.unisinos.br
• A crise financeira internacional. O retorno de Keynes. Edição 276, de 06-10-2008, disponível em http://bit.ly/ihuon276;
• Uma nova classe média brasileira? Edição 270, de 25-08-2008, disponível em http://bit.ly/1fWlVko.
Destaques
da Semana
www.ihu.unisinos.br
IHU em
Revista
30 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 09-09-2014 a 12-09-2014, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).
Destaques da Semana
“A vida é uma sequência de
memórias”
O médico Ivan Izquierdo reflete sobre a importância da memória para a vida humana
e os modos como esta é impactada pela tecnologia
D
o ponto de vista biológico, a memória é fende: “O computador não pode me mudar, mas
elemento fundamental para a vida huma- o uso que eu faço dele, sim. O que meu cérebro
na, e ocupasse do ato de caminhar até o faz com os dados fornecidos pelo computador
reconhecimento do perigo. Conforme o profes- pode modificar sinapses – e a memória se guarda
sor e médico Ivan Izquierdo, a importância da justamente modificando sinapses”.
memória está intimamente ligada ainda ao fun- Ivan Izquierdo é graduado em Medicina, com
cionamento do corpo. “Todos os processos meta- doutorado em Farmacologia pela Universidad
bólicos de qualquer organismo são sequências de de Buenos Aires – UBA. Seu pós-doutorado, em
processos bioquímicos bem estabelecidos onde }Neuropsicofarmacologia, foi pela University of
cada um depende do anterior. Cada um deve se California – UCLA. Professor Titular de Medicina, é
lembrar do anterior”. E afirma: “Sem memória coordenador do Centro de Memória da Pontifícia
não há vida. É possível, inclusive, dizer que a vida Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
é uma sequência de memórias”. e coordenador científico de seu Instituto do Cére-
Mas de que forma as revoluções tecnológicas bro. Membro de 21 sociedades científicas do país
afetaram nossa memória? De que modo os peri- e do exterior, é autor, entre diversas obras, de Me-
féricos digitais colaboram para expandir as fron- mória (Porto Alegre: ArtMed, 2011), Releituras do
teiras entre lembrança e esquecimento? Nesta óbvio (São Leopoldo: Unisinos, 2006) e A arte de
entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, esquecer (Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004).
Izquierdo reflete sobre estas problemáticas, e de- Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira a hoje se tornou fartamente conhecida. completamente incompreensíveis para
revolução tecnológica que estamos Conhecemos os mecanismos bioquími- um sujeito de 100 anos atrás.
vivendo, da nanobiotecnologia, im- cos que fazem a memória, os lugares
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pacta em nosso modo de compreen- onde elas são feitas. IHU On-Line – Qual a impor-
der o conceito de memória tradicio- Quantitativamente é impossível tância da memória para a nossa
nalmente concebido pela medicina, dizer, pois estas coisas não têm medi- sobrevivência?
por exemplo? da, mas é como ouvir uma música de Ivan Izquierdo – Se não nos lem-
Ivan Izquierdo – O conceito de longe pela primeira vez e conhecer a brássemos de que certas coisas são
memória talvez não tenha mudado, perigosas, morreríamos no instante
partitura completa para dirigir a or-
mas graças à revolução tecnológica seguinte. Por exemplo, quando tenho
questra. Meus alunos de graduação,
conseguimos compreender muito mais que atravessar a rua, preciso lembrar
os mecanismos da memória. Avança- quando leem o que profissionais des- que o carro pode me atropelar, que
mos mais neste sentido do que nos tacados escreviam sobre o cérebro 15 ele vem em uma direção, se a veloci-
últimos 200 anos, sem dúvida. Mais do ou 20 anos atrás, riem. Quando veem dade que ele está vindo é compatível
que um avanço dos aparelhos eletrô- o que se escrevia há 50 anos, às vezes com a que eu preciso empreender para
nicos, a grande evolução veio dos pro- se interessam pelo valor histórico, mas atravessar na frente dele, enfim. Tudo
cessos químicos do funcionamento ce- é como ler um conto cômico. As coisas isso devo me lembrar à perfeição, por-
rebral. Esta era uma área praticamente que fazemos hoje em qualquer labora- que envolve risco de vida. Precisamos
desconhecida duas décadas atrás e tório onde se trabalha a memória são aprender (e lembrar) como se usa uma
Corpo audiovisual – As
implicações do capitalismo tardio
na reconfiguração do humano
Para a pesquisadora Nísia Martins do Rosário, as revoluções tecnológicas são
potencialmente positivas, entretanto a inclinação meramente mercadológica
deve ser posta em causa
“O
paradigma da felicidade embasa- Para a pesquisadora, os filmes trazem à tona
da no progresso perdeu credibili- desafios éticos e “questionam as possibilidades
dade na modernidade e, por isso de as tecnologias serem nocivas ao humano.
mesmo, contemporaneamente instituiu-se um Não há mais, como outrora houve no cinema, a
novo questionamento acerca das verdades, da ideia da tecnologia como algo à parte do corpo
felicidade e das metas sociais. Os mecanismos humano, sendo objeto facilmente identificável
da ordem da produção, entretanto, não estão pela distinção. A tecnologia, agora, está dentro
esquecidos, a sociedade do capitalismo tardio do próprio homem, invisível, mas onipresente,
aplica a regra da liberação do fluxo do dese- já que a principal forma de domínio do homem
jo para atingir o consumo. Essa abertura, por sobre o artificial é a conexão mental”. Por fim,
certo, estimula a aquisição de bens materiais, argumenta que os avanços tecnológicos permi-
provocando, necessariamente, a atenção re- tiram avanços e melhorias na vida cotidiana,
dobrada ao corpo, à saúde, ao prazer e à se- mas coloca em causa uma inclinação merca-
xualidade”, argumenta a professora doutora e dológica que, avalia, deve ser questionada. “A
pesquisadora Nísia Martins do Rosário, em en- quem pertence o domínio técnico? Se os inte-
trevista por e-mail à IHU On-Line. resses técnicos e financeiros se sobrepõem aos
Ao debater sobre as reconfigurações do cor- progressos genéticos e cibernéticos, qual o pre-
po na tecnocultura, a entrevistada sustenta que ço a ser pago para ser parte da hegemonia? E o
a vontade do ser humano de recriar a si próprio que é, afinal, ser humano?”, provoca.
encaminhou as buscas pelo tecnológico, mas Nísia Martins do Rosário é professora e pes-
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reconhece as limitações desse processo. “Nes- quisadora da Universidade Federal do Rio Gran-
sa mesma via a medicina altera aparências em de do Sul – UFRGS, no curso de Comunicação
prol da estética com cirurgias plásticas, implan- Social e no Programa de Pós-Graduação em
tes, entre outros. Contudo, é preciso lembrar Comunicação e Informação. Possui graduação
que essas inovações tecnológicas não estão em Comunicação Social – Habilitação Jornalis-
disponíveis a todos os corpos que delas neces- mo e mestrado em Comunicação pela Unisinos.
sitam ou pensam necessitar. Entram aí variáveis Realizou doutorado em Comunicação Social na
econômicas que se cruzam com a tecnologia”, Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. A ên-
argumenta. “Na esteira da industrialização, há fase de suas investigações é em Comunicação
um atrelamento cada vez maior do ser humano Visual e integra o Grupo de pesquisa semiótica
à técnica e à tecnologia. Os meios de comunica- e cultura da comunicação – Gpesc e o grupo de
ção pegam carona com os avanços tecnológicos pesquisa Processos comunicacionais: episte-
e, ao mesmo tempo que se aperfeiçoam, fun- mologia, midiatização, mediações e recepção
cionam como propulsores da reprodutibilidade – Processocom.
técnica do corpo”, destaca. Confira a entrevista.
Destaques da Semana
e transformações as tecnologias con- nologias de Informação e Comuni- culação dual, o corpo operaria apenas
temporâneas trouxeram àquilo que cação – TICs permitem que pessoas como um mediador da mente ou da
entendemos como corpo? possam interagir não presencialmen- alma para com o mundo.
Nísia Martins do Rosário – São te, numa ambiência de velocidade Mesmo se na Antiguidade já se
muitas as implicações e transforma- e instantaneidade. Os corpos, nesse pensava o ser humano como consti-
ções do corpo no mundo contempo- caso, se conectam pela mediação da tuído por um corpo físico e uma outra
râneo, mas é importante entendê-las internet e, se agora é possível intera- parte subjetiva, a partir de Descar-
como movimento contínuo, como gir com pessoas que não víamos há tes3 (Iluminismo) essa divisão dual
processo complexo, articulado por muito tempo, que estão distantes ge- foi consolidada e, consequentemen-
diferentes variáveis, entre as quais as ograficamente, e até mesmo fazer ci- te, o físico passou a estar a serviço
inovações tecnológicas. Ao longo da bersexo, alguns defendem que as pes- da razão, a rex cogitans. A sociedade
história da civilização o corpo sempre soas não mais se comunicam, ficam ocidental, paulatinamente, parece
foi afetado por tecnologias das mais presas em suas casas e às suas máqui- ter incorporado esses sentidos, am-
variadas, mas não com tanta veloci- nas, um corpo que não age, um corpo pliando essa dualidade para outros
dade e impacto como hoje em dia. preguiçoso do contato “real”. Enfim, preceitos como: espírito/matéria;
Tentando responder de forma direta há controvérsias sobre as implicações masculino/feminino; branco/preto;
à pergunta, entendo que o corpo con- das tecnologias no corpo, mas enten- dominante/dominado; civilizado/pri-
temporâneo está mais potente por- do que isso seja muito positivo e faz mitivo; culto/inculto; letrado/analfa-
que aparatado pelas tecnologias que o parte do processo humano. beto; desenvolvido/subdesenvolvido.
tornam, de certa forma, um ciborgue. Na esteira da industrialização, há
Se entendermos ciborgue na sua for- IHU On-Line – Que corpo é esse um atrelamento cada vez maior do
ma mais básica, veremos que o termo que emerge na tecnocultura? Como ser humano à técnica e à tecnologia.
vem da junção dos prefixos cyberne- se difere do conceito moderno e até Os meios de comunicação pegam ca-
tic + organism e que, portanto, serve mesmo medieval de corpo? rona com os avanços tecnológicos e,
para representar a simbiose entre o Nísia Martins do Rosário – De ao mesmo tempo que se aperfeiço-
orgânico e o inorgânico, e é justamen- acordo com Braunstein1 e Pépin2 (O am, funcionam como propulsores da
te nesse último que o corpo se apoia lugar do corpo na cultura ocidental. reprodutibilidade técnica do corpo.
para melhorar sua performance. De São Paulo: Piaget, 2003), é possível A reprodução do corpo não fica mais
certa maneira, somos todos ciborgues afirmar que, ao longo dos séculos somente no âmbito da pintura, do de-
se a tecnologia estiver ligada a nós, predominam no mínimo três formas senho e da escultura, ela, agora, pode
por exemplo, com o uso de óculos. diferentes de reflexão sobre o corpo: atingir uma diversidade maior de indi-
Considerando a abrangência da no- a ênfase na matéria e no seu contro- víduos e apresentar um grande núme-
ção de prótese, a classe dos ciborgues le e disciplina; a ênfase no espírito/ ro de cópias, de poses, de formatos. O
pode agrupar um número significativo razão e a busca da transcendência; e Instagram é um exemplo disso. Assim,
de exemplares. O avanço tecnológico por fim, a harmonia entre a matéria o corpo pode ser mostrado, exibido,
e a vontade do ser humano de recriar e a parte abstrata. Entendo que essa copiado, clonado, multiplicado, coloca-
a si mesmo encaminharam as buscas última forma é a mais adequada para do em movimento sempre como signo.
pelo tecnológico. De certa forma, no pensar o corpo, mas todas elas foram Deve-se levar em conta tam-
início do século XXI a maioria dos se- se tensionando ao longo da história. bém que o paradigma da felicidade
res humanos é um pouco prótese, um O ponto de vista que enfatiza o embasada no progresso perdeu cre-
pouco reinvenção ou recriação. espírito e a razão em detrimento do fí- dibilidade na modernidade e, por
Num contexto mais cotidiano, sico tem parte de sua episteme ligada isso mesmo, contemporaneamente
pode-se pensar, por exemplo, em a um conceito de corporificação vin- instituiu-se um novo questionamento
como os avanços na área da medici-
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culado ao entendimento modernista, acerca das verdades, da felicidade e
na permitiram o prolongamento de à organização dual da sociedade, ca-
vidas, a solução de problemas de saú- paz de criar classificações de forma bi- 3 René Descartes (1596-1650): filósofo,
de e a facilitação nos cuidados com o nária, assimétrica e polarizada (mente físico e matemático francês. Notabilizou-
físico, inclusive com próteses diversas, -se sobretudo pelo seu trabalho revolu-
cionário da Filosofia, tendo também sido
implantes de chips, microcâmeras que 1 Florence Braunstein: é doutora em li- famoso por ser o inventor do sistema de
percorrem os órgãos internos. Nessa teratura, professora, escritora e diretora coordenadas cartesiano, que influenciou
mesma via a medicina altera aparên- da coleção chamda Le corps, da editora o desenvolvimento do cálculo moderno.
L’Harmattan, que aborda o problema Descartes, por vezes chamado o fundador
cias em prol da estética com cirurgias do corpo nas ciências humanas, quer do da filosofia e matemática modernas, ins-
plásticas, implantes, entre outros. ponto de vista da filosofia, literatura, pirou os seus contemporâneos e gerações
Contudo, é preciso lembrar que essas sociologia e antropologia. (Nota da IHU de filósofos. Na opinião de alguns comen-
On-Line) tadores, ele iniciou a formação daquilo
inovações tecnológicas não estão dis- 2 Jean-François Pépin: é doutor em fi- a que hoje se chama de racionalismo
poníveis a todos os corpos que delas lologia, professor de história e geografia continental (supostamente em oposição
necessitam ou pensam necessitar. En- e dá aulas preparatórias de Relações In- à escola que predominava nas ilhas bri-
ternacionais para alunos em escolas de tânicas, o empirismo), posição filosófica
tram aí variáveis econômicas que se negócios internacionais. (Nota da IHU dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota
cruzam com a tecnologia. On-Line) da IHU On-Line)
Destaques da Semana
deus máquina. no pensamento clássico por alma e produtos da internet em forma de
Percebe-se que os avanços tec- matéria e no marxismo por subjetivo imagens e que, portanto, são sempre
nológicos que resultaram, também, e produção – forma dois polos que signos, buscando dar significado às
no aperfeiçoamento das técnicas de tendem a apagar-se na contempora- formas de expressão, ao imaginário,
comunicação, permitiram uma efi- neidade devido aos novos rumos que ao cotidiano, aos contextos culturais
ciência maior na representação do assume o pensamento, sobretudo em que vivemos. Nesse sentido, o
corpo no imaginário cinematográfico. no que diz respeito às tecnologias do corpo eletrônico é produto da tecno-
Unindo som, imagens em movimento imaginário, à subjetividade e, logica- logia e da possibilidade de reproduti-
e efeitos especiais, o audiovisual reve- mente, à relação homem/máquina. O bilidade do humano. Como produto,
la-se capaz de simular uma “realida- atravessamento da vida pela tecnolo- ele fica cada vez mais sofisticado em
de” muito semelhante à realidade co- gia causa muitas inquietações acerca termos daquilo que pode representar
tidiana e estimular a crença na ficção, da subjetividade humana incorporada e fazer em função do aparato técnico,
colocando em ação os sentidos pro- à máquina e que, do meu ponto de ou seja, efeitos especiais, produções
duzidos em torno das imagens sociais. vista, estão bem expressas em um tre- de maquiagem e figurino, etc. Ele nem
Tais características posicionam o au- cho do filme Eu, robô (2004). precisa mais ter um referente mate-
diovisual entre as chamadas “tecno- rializado, precisa apenas das referên-
Sempre existiram ‘fantasmas na
logias do imaginário”, que são os ins- cias em linguagem algorítmica para se
máquina’. Trechos de códigos ran-
trumentos de ficcionalização de que o construir no ambiente digital.
dômicos que se uniram para formar
homem dispõe para criar, interpretar Se, como afirma Bystrina5, o
protocolos inesperados. De forma
ou traduzir textos que se originam medo é a teleonomia mais forte da
não antecipada, esses radicais livres
num processo de significação estru- espécie humana, é relevante enfatizar
elaboram perguntas sobre livre-
turado sobre um conjunto de códigos que o cinema não o exclui, revela o
-arbítrio, criatividade e até mesmo a
partilhados social e midiaticamente. que é comum desde o Iluminismo: o
natureza daquilo que chamamos de
Vale ressaltar que, ao mesmo medo da ciência e das consequências
alma. Por que será que, ao ficarem
tempo em que as tecnologias possibi- que ela pode trazer. Mas, talvez, esteja
no escuro, eles procuram a luz? Por
litam que o imaginário seja atualizado, implícito aí um receio mais essencial:
que será que, quando armazenado
elas também induzem à construção o das ações humanas sobre a técnica.
num lugar vazio eles se agrupam ao
do imaginário tecnológico. Logo, o au- De qualquer forma, o cinema assume
invés de ficarem sós? Como expli-
diovisual – e mais propriamente o ci- um papel de mediador da cultura, ao
car tal comportamento? Segmentos
nema – não apenas materializa o que oferecer caminhos para dissipar es-
randômicos de códigos? Ou é algo a
já está presente no imaginário acerca ses temores através das histórias que
mais? Quando um esquema de per-
da relação do homem com a tecnolo- conta, seja por meio de catarse ou de
cepção se torna uma consciência?
gia, como também constrói significa- projeção. Assim, os discursos fílmicos,
Quando calcular probabilidades co-
ções a partir do que representa. ao falarem do futuro e de todas as
meça a busca de verdade? Quando
É preciso considerar também que, ansiedades relacionadas a ele, apre-
é que uma simulação de personali-
a partir do cinema e da literatura, as sentam soluções, propiciam sentidos
dade se torna o doloroso átomo de
expressões da subjetividade humana à vida e às vivências do próprio espec-
uma alma?
se mostram de diversas formas, e com tador no momento presente.
as questões da tecnocultura não seria O que parece certo na contem- Nessa perspectiva, é possível en-
diferente. Nesse contexto aparecem poraneidade é que a tecnocultura e tender que os contextos das épocas em
muitas criaturas que, de alguma forma, suas máquinas infocomunicacionais que os filmes são criados e produzidos,
representam o humano e que muitas articulam transformações considerá- bem como as bases tecnológicas exis-
das vezes estão também atravessadas veis no cotidiano humano, seja pelos tentes naqueles momentos, têm re-
pelo maquínico, pelo digital. Tornam- dispositivos de produção de bens e de
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percussão sobre a forma como o corpo
-se tão interessantes, provavelmente, conteúdos, seja pelos dispositivos de e o imaginário sobre ele é construído e
pelo elemento artificial que trazem, produção de subjetividade. inserido na narrativa. Por isso, Metró-
se contrapondo ao elemento humano polis (1927) parte de visão crítica ao ca-
– corresponde à carne, ao pensamen- IHU On-Line – De que forma as pitalismo e ao mecanicismo, em meio
to, à subjetividade. Assim, seres como imagens do corpo eletrônico evo- ao expressionismo alemão, e Transcen-
robôs, androides, mutantes, avatares luíram no cinema? De que maneira dence – A Revolução (2014) aborda o
são a representação da alteridade hu- as tecnologias foram se interconec- poder da onipresença online e a des-
mana, uma outra forma de significar os tando ao homem, migrando de uma
monstros, os freaks, o estranho. perspectiva bem dualista em Metró- 5 Ivan Bystrina (1924 – 2004): foi um se-
Por outro lado, a modernida- polis (1927) para as obras contem- mioticista tcheco formado em Direito, Fi-
losofia e Ciências Políticas e Doutor pela
de, ao estabelecer dualidades para o porâneas como Transcendence – A Universidade de Praga. Leciounou tam-
pensamento, acabou por colocar em Revolução (2014)? bém na Universidade de Moscou, Acade-
polos opostos conceitos e concepções Nísia Martins do Rosário – En- mia das Ciências da Tchecoslováquia, das
Universidades de Heildelberg, Manhein,
que não podem ser pensadas sepa- tendo como corpos eletrônicos, de Bochun e da Universidade Livre de Ber-
radamente. Assim, a dualidade hu- maneira sintética, os corpos apresen- lim. (Nota da IHU On-Line)
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da Semana
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IHU em
Revista
42 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Entrevista de Eventos
IHU em Revista
A vida nas interfaces das
mutações tecnocientíficas e
suas repercussões sobre a
subjetividade
O professor doutor e pesquisador José Roque Junges debate o livro de
Nikolas Rose The Politics of Life Itself: Biomedicine,
Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century
Por Suélen Farias
IHU em Revista
cinco grandes mutações científico- biopolítica é muito pertinente para
culturais implicam no ponto de vista
social?
seu mistério, entender o atual contexto das biotec-
nologias. Por isso sua obra foi tradu-
José Roque Junges – É possível
imaginar as suas consequências sobre
explicando-se zida ao português pela editora Paulus
em 2013 com o título A Política da
a concepção e o cuidado da saúde e por mecanismos própria Vida: Biomedicina, Poder e
sobre a organização do próprio siste- Subjetividade no Século XXI.
ma de saúde. No momento em que a moleculares de
biologia define a cidadania e a própria
existência somática o que isso signifi- base genética” Leia mais...
cará para a saúde? A cultura somática
da optimização e subjetivação da vida • O Concílio Vaticano II e a ética cristã
são base para a gradativa medicaliza- cas que exigirá uma ética e expertise na atualidade. Entrevista com Ro-
ção da saúde que faz crescer continu- para orientar as boas condutas de que Junges publicada na IHU On-Li-
amente, nos manuais de diagnóstico, uma existência somática, inauguran- ne 401, de 03-09-2012, disponível
o rol das patologias pela inclusão de do uma bioeconomia na qual a vida em http://bit.ly/1tWdSME;
diferenças somáticas consideradas torna-se um bem de troca de merca- • “Se o aborto é um problema, a sua
como não normais ou de pequenas do não apenas um valor de uso.
solução não é o próprio aborto”.
disfunções biológicas ou psíquicas que
Entrevista com Roque Junges pu-
não impossibilitam uma vida normal. IHU On-Line – Qual foi a reper-
blicada na IHU On-Line 219, de 14-
Para cada uma dessas formas conside- cussão do livro?
05-2007, disponível em http://bit.
radas somática ou psiquicamente des- José Roque Junges – Nikolas Rose,
ly/1qQLRU5;
viantes sempre existirá uma solução como um especialista e seguidor de
• Agenciamentos imunitários e biopo-
medicamentosa ou procedimental Foucault no contexto anglo-saxão (ele
líticos do direito à saúde. Entrevista
interventiva. Essa tendência alimen- é professor da London School of Eco-
ta a biologização e medicalização da com Roque Junges publicada na IHU
nomics and Political Science), assume
saúde. O cuidado da saúde perde em On-Line 344, de 21-09-2010, dispo-
uma perspectiva própria desse contex-
autonomia, porque ela está sempre to em suas explicitações da biopolítica, nível em http://bit.ly/1BG0Lju;
mais entregue aos experts responsá- diferente de autores do âmbito francês • Transformações recentes e prospec-
veis por uma existência somática opti- e italiano. Assume um enfoque analíti- tivas de futuro para a ética teológi-
mizada e pretensamente subjetivada. co-pragmático da biopolítica. Por isso ca. Cadernos de Teologia Pública,
Contudo Rose não chega a essa visão sua repercussão é maior no âmbito da edição 7, disponível em http://bit.
crítica da medicalização da vida. cultura anglo-saxã. ly/1m5JBbK.
Alguns podem não estar de
IHU On-Line – Como o tema acordo com essa perspectiva, prefe-
abordado por Nikolas Rose se insere rindo um enfoque mais genealógico
na discussão do XIV Simpósio Inter- típico, por exemplo, de Agamben3 e Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-
2007, o sítio do Instituto Humanitas Uni-
nacional IHU e como pode contribuir sinos – IHU publicou a entrevista Estado
para o debate da temática? 3 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita- de exceção e biopolítica segundo Giorgio
José Roque Junges – A análise liano. É professor da Facolta di Design Agamben, com o filósofo Jasson da Silva www.ihu.unisinos.br
e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Martins, disponível em http://bit.ly/jas-
de Nikolas Rose insere-se plenamente Estética, e do College International de son040907. A edição 236 da IHU On-Line,
na discussão, tomando apenas os ter- Philosophie de Paris. Formado em Direi- de 17-09-2007, publicou a entrevista
to, foi professor da Universitá di Mace- Agamben e Heidegger: o âmbito originá-
mos, usados para explicitar, no título, rata, Universitá di Verona e da New York rio de uma nova experiência, ética, po-
a temática do simpósio. A resposta à University, cargo ao qual renunciou em lítica e direito, com o filósofo Fabrício
protesto à política do governo estaduni- Carlos Zanin, disponível em http://bit.
pergunta anterior demonstra isso. A dense. Sua produção centra-se nas rela- ly/ihuon236. A edição 81 da publicação,
obra de Rose explicita as mutações ções entre filosofia, literatura, poesia e, de 27-10-2003, teve como tema de capa
fundamentalmente, política. Entre suas O Estado de exceção e a vida nua: a lei
que foram ocasionadas pela revo- principais obras, estão Homo Sacer: o política moderna, disponível para acesso
lução biotecnocientífica, quais são poder soberano e a vida nua (Belo Ho- em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU
rizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem On-Line)
as consequências dessas mutações e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 4 Roberto Esposito: filósofo italiano,
para cultura ao tratar da optimização 2005), Infância e história: destruição da especialista em filosofia moral e política. De
experiência e origem da história (Belo sua vasta produção bibliográfica, citamos
e subjetivação da vida e como essa Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de Pensiero vivente. Origine e attualità della
cultura somática afeta os indivíduos exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, filosofia italiana (2010), Bios. Biopolitica
2007), Estâncias – A palavra e o fantasma e filosofia (2008), L’origine della politica.
e as sociedades ao instaurar uma ci- na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. Hannah Arendt o Simone Weil? (1996).
dadania com características biológi- UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: (Nota da IHU On-Line)
IHU em Revista
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.
A intenção desta edição é contribuir para uma análise das características pe-
culiares da crise financeira do período, identificada como uma crise da globalização
tal como a conhecemos, a partir e sob a perspectiva das mudanças do mundo do
trabalho. O número foi inspirado pelo livro Crise da economia global. Mercados
financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos, em tradução livre (Verona: Om-
bre Corte/Uninomade, 2009), organizado por Andrea Fumagalli e Sando Mezzadra.
Contribuem para a discussão Carlo Vercellone, Christian Marazzi, Federico Chicchi e
Stefano Lucarelli, além da própria Andrea Fumagalli.
Abrindo o Livro
A política da própria vida. Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI
Prof. Dr. José Roque Junges – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Data: 23/09/2014 | Horário: das 17h às 19h |Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
twitter.com/_ihu bit.ly/ihuon
youtube.com/ihucomunica