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Grupo de Estudos e Pesquisa

II Seminário Nacional de Alfabetização e Letramento Alfabetização, Discurso e Aprendizagens


Oralidade e Escrita na Prática Escolar
ISSN: 2177-4072

A Língua Portuguesa nas Malhas da Mídia:


a busca da perfeição ortográfica no programa soletrando

Agnaldo Almeida de Jesus1

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo averiguar a construção de imagens da Língua
Portuguesa elaborada na/pela mídia, especificamente no programa Soletrando,
transmitido pela Rede Globo de Televisão. Para tanto, a base teórica norteadora de tal
investigação está circunscrita à Análise do Discurso de linha francesa - ADF, tendo
como principais pressupostos teóricos as contribuições de Maingueneau (2008,
2008a) e Amossy (2008, 2008a), no que diz respeito à construção do ethos discursivo.
Ainda segundo Maingueneau (2008, 2010), exploramos o conceito de discurso
constituinte. De acordo com Michel Foucault (2009), observamos o jogo de poder
instaurado em nossa sociedade e verificamos a vontade de verdade evocada pela
mídia para corroborar uma imagem íntegra e confiável. Por fim, verificamos que os
recortes feitos pela mídia legitimam o tradicionalismo visto em sala de aula, pois se
constitui de forma normativa. Colaboram, desse modo, para a instauração do discurso
da Gramática Normativa como um discurso constituinte, isto é, um discurso superior,
se comparado aos demais. Vale ressaltar, que o referido trabalho é parte integrante da
monografia apresentada ao Departamento de Letras de Itabaiana – DLI, cujo título é:
A construção de Imagens da Língua Portuguesa na mídia: uma análise discursiva, sob
orientação da Profa. Dra. Maria Emília de Rodat de Aguiar Barreto Barros.

Palavras-chave: Língua Portuguesa; mídia; ethos discursivo; discurso constituinte

1
Contato do(a) autor(a): agnaldoal@hotmail.com. Graduado em Letras – Português,
UFS. .
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INTRODUÇÃO

Atualmente, a mídia em geral possui grande importância, visto que é


através dela que nos mantemos informados sobre as diversas facetas sociais,
como: política, economia, entretenimento, etc. Em relação ao ensino de
Língua Portuguesa, a mídia instaura e perpetua um único ponto de vista, ou
seja, traz aos seus telespectadores uma análise estritamente gramatical. Deste
modo, buscamos averiguar, no presente trabalho, a construção de imagens da
Língua Portuguesa elaborada pela mídia, verificando as consequências de tal
construção para o ideal (ou não) de língua pura e o poder do discurso da
Gramática Normativa, o qual consideramos um discurso constituinte. Para
tanto, temos como corpus o programa Soletrando (Rede Globo).

A priori, temos como base teórica as inferências de autores como


Possenti (2003, 2009, 2009a), Baronas (2003, 2002), Gregolin (2003), os
quais são unânimes ao afirmarem que a mídia efetua exames puramente
normativos que visam ao uso “correto” da Língua Portuguesa. Para Possenti
(2009b, p. 9), as discussões sobre língua que a mídia apresenta são “[...]
pequenas análises, sem pretensão de exaustividade e mesmo de grande
precisão [...] as colunas sobre língua que circulam em nosso meio nunca
ultrapassam a repetição das mesmas receitas simplificadas e resumidas”.
Logo, deduzimos que a imprensa não discute a língua como fenômeno
social e histórico, só repete o que postulam as Gramáticas Normativas e os
dicionários. A seguir, iniciamos a nossa discussão verificando a importância
dos procedimentos de controle do discurso na mídia e em nossa sociedade em
geral.

1 Mídia e poder: os procedimentos de controle do discurso

Segundo Foucault (2009), há em toda sociedade ocidental


procedimentos de controle do discurso (sistemas de exclusão), tanto externos
quanto internos. Fazem parte do primeiro tipo: a interdição, a separação ou
rejeição e vontade de verdade. O comentário, autoria e a disciplina, por sua
vez, fazem parte do segundo tipo. Além destes delimitadores, temos um
terceiro grupo de princípios de controle, caracterizado pela rarefação dos
sujeitos que falam, fazem parte de tal grupo: as sociedades do discurso, a
doutrina e o sistema de apropriação.

No que diz repeito aos procedimentos externos, de acordo com


Foucault (2009), a interdição é o principio de exclusão mais evidente, uma
vez que sabemos que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode
falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2009, p. 9). Ou seja, o nosso discurso
depende da Formação Discursiva, do local institucional em que nos
encontramos, como, por exemplo: família, escola, religião etc.

A separação ou rejeição, por seu turno, é exemplificada pela oposição


entre razão e loucura. O louco é aquele cujo discurso é impedido de circular
como o dos outros, pois ora é visto sem valor algum de verdade, ora é
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definido como dotado por poderes sobrenaturais. Já o terceiro princípio de


exclusão está centrado na oposição verdadeiro versus falso. Nesse sentido,
Foucault (2009) infere que desde a Idade Média perpetua-se o discurso
verdadeiro, pronunciado por quem tem direito, segundo um ritual requerido.

Quanto aos procedimentos internos, estes funcionam segundo os


critérios de classificação, de ordenação e de distribuição dos discursos, visto
que eles exercem seu próprio controle. Com efeito, o comentário diz respeito
ao conjunto ritualizado de discursos que existe em nossa sociedade, os quais
são retomados e transformados. O princípio de autoria, por sua vez, é
apreendido não como o sujeito que profere ou escreve um texto, mas como
um “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações, como foco de coerência” (FOUCAULT, 2009, p. 26). Já a
disciplina opõe-se aos dois acima: ao do autor, pois a disciplina requer
métodos, regras e um corpus considerado verdadeiro. Por conseguinte, a
disciplina é um sistema autônomo válido a todos que queiram utilizá-la,
independente do seu inventor. Opõe-se ao comentário, uma vez que a
disciplina sugere a construção de novos enunciados, e não uma identidade a
ser repetida.

O terceiro grupo de princípios de controle dos discursos, como já


mencionado, determina quem pode ou não ter acesso aos discursos. Nessa
perspectiva, este conjunto de princípios é caracterizado pela rarefação dos
sujeitos que falam, já que nem todas as regiões do discurso são abertas e
penetráveis. Uma das formas mais visíveis de restrição é o ritual, o qual
define os sujeitos que possuem autoridade para proferir determinados
discursos, como o judiciário e religioso, ou seja, indivíduos que
desempenham papéis previamente estabelecidos. Por conseguinte, temos as
sociedades de discurso, cuja função é produzir e conservar discursos num
espaço fechado, obedecendo a regras rigorosas.

Partindo dessa premissa, é constatado que a mídia perpetua socialmente


o controle dos discursos e instaura ideologias determinantes para a
construção da imagem que fazemos da nossa língua materna, como também
de seu ensino. Nesse sentido, Charaudeau (2007) observa que acreditamos
que a mídia tem o papel primordial de informar, trazer a público o que ocorre
no espaço social, sendo comprometida com a verdade e a transparência. No
entanto, ela exerce um papel (auto)manipulador e deformador, por operar
através da

[...] ideologia do mostrar a qualquer preço, do tornar visível o


invisível e do selecionar o que é o mais surpreendente (as notícias
ruins) faz com que se construa uma imagem fragmentada do espaço
público, uma visão adequada aos objetivos das mídias, mas bem
afastada de um reflexo fiel (CHARAUDEAU, 2007, p.20).

Nessa perspectiva, é necessário que conheçamos as fontes para verificar


a validade da informação fornecida, já que a mídia faz uma seleção, um
recorte do que lhe interessa, levando em consideração o não saber do
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receptor. No entanto, muitas vezes temos somente a versão midiática, sem


termos um verdadeiro contato com as fontes. Há de se observar ainda o fato
de que o sentido não é dado antecipadamente, mas construído pela interação.
Nesse contexto, observamos a mecânica de construção de sentido, que é a
transformação e a transação: a primeira consiste na descrição, o contar, o
explicar; já a segunda, na significação psicossocial proposta por quem fala e
o efeito que se pretende produzir no outro.

Portanto, a mídia utiliza-se de diversos procedimentos para propagar as


informações que lhes são necessárias para a manutenção da máquina
midiática, assim como para difundir uma ideologia dominante, qual seja: a
existência de uma língua pura, cujo discurso está diretamente relacionado à
Gramática Normativa. Sendo assim, a mídia modela seu discurso a depender
do ethos (imagem) que possui de seus telespectadores, os quais aderem ou
não a tal discurso. Nessa perspectiva, discutimos a seguir as noções de ethos
discursivo e discurso constituinte.

2 A cena enunciativa: discurso constituinte, ethos


discursivo

Dominique Maingueneau (2008, 2008a, 2010), ao estudar a Cena de


enunciação, verifica que esta não é um quadro empírico, e sim um processo
ligado diretamente ao momento em que emerge um enunciado. Assim, ele
postula que tal cena é constituída pela: cena englobante – correspondente ao
tipo de discurso em que o enunciado está inserido (discurso religioso,
publicitário etc); cena genérica – equivalente ao gênero do discurso, o qual
requer um contexto específico (papéis, circunstâncias, finalidade do discurso
religioso, por exemplo); e a cenografia – instituída pelo próprio discurso, e
não pelo seu tipo ou gênero. Ou seja, “O discurso impõe sua cenografia de
algum modo desde o início; mas, de outro lado, é por intermédio de sua
própria enunciação que ele poderá legitimar a cenografia que ele impõe”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 117).

A partir daí, o autor nos apresenta diversos conceitos ligados


diretamente à cenografia. Dentre tais noções, destacamos aqui, como
mencionado anteriormente, discurso constituinte e ethos discursivo. Em
relação aos discursos constituintes, Maingueneau (2008, 2010) nos orienta
que estes não reconhecem uma autoridade maior que a deles próprios, isto é,
não há discursos superiores a eles. Nessa conjuntura, temos como exemplos
de discursos constituintes: o discurso religioso, literário, filosófico, científico.
O discurso político, por sua vez, encontra-se em confluência entre os
discursos constituintes, nos quais se apoia, já que há interação entre os
próprios discursos constituintes e os discursos não-constituintes. Porém,
aqueles negam essa interação ou a reduzem aos seus princípios.

Socialmente, os discursos constituintes possuem uma função simbólica


– archeion, pois estão ligados à sede de verdade, como bem define
Maingueneau (2008, p. 38): “O archeion associa assim intimamente o
trabalho de fundação no e pelo discurso, a determinação de um lugar
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associado a um corpo de enunciadores consagrados e uma gestão da


memória.” Nesse caminho, tais discursos dão sentido aos atos da
coletividade, pois são fiadores de diversos gêneros do discurso, delimitando,
assim, lugares-comuns da coletividade.

Para não se autorizarem por si mesmos, os discursos constituintes são


oriundos de uma Fonte Legitimadora, ou seja, são ancorados a um Absoluto.
No entanto, “esse Absoluto que se supõe como exterior ao discurso para lhe
conferir sua autoridade deve, de fato, ser construído por esse mesmo discurso
para poder fundá-lo" (MAINGUENEAU, 2010, p. 159). Logo, eles se
encontram numa localidade paradoxal que é a chamada paratopia. Nesse
contexto, formam-se as comunidades discursivas, as quais compartilham um
conjunto de normas e ritos. Sendo assim,

[...] não é ao conjunto dos membros da sociedade que cabe avaliar,


produzir e gerir os textos constituintes, mas a comunidade restrita. [...]
os produtores desses textos se põem de acordo com as normas internas
de um grupo, não diretamente com uma doxa universamente
partilhada. Os lugares institucionais de onde emergem os textos não se
ocultam por trás de sua produção, eles moldam através de uma
maneira de viver. (MAINGUENEAU, 2008, p. 44)

Podemos relacionar, dessa forma, os discursos constituintes às


sociedades de discursos, visto que Foucault (2009) afirma que cabe aos
partícipes de tais sociedades produzirem e fazerem circular os discursos sob
seus critérios. Temos ainda a distinção entre os discursos paratópicos
(discursos constituintes) e discursos tópicos (o restante da produção
discursiva de uma sociedade). Quanto a este verificamos que o sujeito de um
discurso cotidiano não pode modificar o quadro preestabelecido em que seu
enunciado está inserido. No discurso constituinte, por sua vez, “o locutor
deve dizer construindo o quadro desse dizer, elaborar dispositivos pelos quais
o discurso encena seu próprio processo de comunicação [...]”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 51).

O estudo do ethos discursivo, por seu turno, é originado na Antiguidade


Clássica, por Aristóteles em sua obra A Retórica. Para este filósofo, além de
sabermos nos expressar perante o público, temos que mostrar confiabilidade
e honestidade (através de tom de voz, gestos, postura, olhar, escolha lexical
etc.), pois nosso discurso só será aderido enquanto tal e será instaurador de
sentidos se obtivermos a confiança do auditório.

Maingueneau, por sua vez, retoma esta noção na Análise do Discurso de


linha francesa a partir dos anos de 1980. Ao trazer o conceito de ethos para a
ADF, este teórico leva em consideração a construção do ethos em textos
escritos, utilizando, dessa forma, o termo tom, pois verifica que há uma fonte
enunciativa tanto em discursos orais como em discursos escritos. Amossy
(2008, p. 9), por sua vez, afirma que todo ato de tomar a palavra e utilizá-la
em um ato conversacional implica na construção de uma imagem de si, a qual
revela nossas intenções e preceitos acerca do que estamos nos referindo no
discurso.
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Nesse contexto, o ethos não se constitui em um discurso que é dito


claramente, mas no que é mostrado, como bem observa Maingueneau (2008,
p.59), “[...] o ethos se mostra no ato de enunciação, ele não é dito no
enunciado. Ele permanece, por natureza, no segundo plano da enunciação:
ele deve ser percebido, não deve ser objeto do discurso.” Com efeito, vemos
que alguém, diante de um auditório, pode enumerar diversas qualidades,
porém deve transparecer portador de tais virtudes para que seu discurso seja
considerado legítimo.

Por isso, enfatizamos que o ethos está ligado à enunciação, momento


este em que levamos em consideração fatores como: a imagem que se faz do
Outro, a imagem que Outro faz do Eu, a imagem que o Eu e o Outro fazem
do referente etc. Esse Outro, por seu turno, constrói um ethos pré-discursivo,
ou seja, antes mesmo que o orador tome a palavra, o Outro idealiza uma
imagem pré-construída, já que “mesmo que o destinatário não saiba nada
antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto
pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico
induz expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU, 2008, p. 60). E
essa imagem tanto pode ser desfeita quanto intensificada ao se tomar a
palavra, pois sabemos que o ethos está fundamentado nas representações
valorizadas e desvalorizadas, ou seja, nos estereótipos, como verificaremos
nas análises a seguir.

3 Análise do Corpus

Desde 2007, a grade televisiva brasileira conta com mais um programa


que trata da Língua Portuguesa: o Soletrando. Centrado especificamente na
ortografia, o referido programa acolhe alunos de instituições públicas entre
11 a 17 anos. Atualmente, o Soletrando encontra-se na quinta edição,
demonstrando, desse modo, que a sua proposta foi bem aceita pela população
em geral. O sucesso obtido fez com que o programa virasse um jogo, em
moldes semelhantes ao que é transmitido na televisão. Como já mencionado,
nossa análise está pautada no último episódio do Soletrando 2010, sendo que
os sujeitos participantes de tal episódio são caracterizados da seguinte
maneira:

L1: Luciano Huck – apresentador titular do programa Caldeirão do


Huck e do Soletrando; responsável por enunciar as palavras a serem
soletradas.

L2: Sérgio Nogueira – professor de Língua Portuguesa; integrante do


júri: responsável para a confirmação das palavras soletradas entre “certas” e
“erradas”.

L3: Participante da cabine 1 – representante do Estado do Piauí.

L4: Participante da cabine 2 – representante do Estado de Minas Gerais.


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L5: participante da cabine 3 – representante do Estado de São Paulo.

L6: Talita Rebouças – personalidade convidada para integrar o júri.

Inicialmente, é importante verificar que cada participante não está


representando somente a si próprio, mas um Estado, ou seja, é transmitida
uma ideia de pertencimento. Dessa maneira, o programa perpassa uma
proposta de integração social: ao representar um determinado Estado, os
participantes estão mostrando que são capazes de dominar as normas que
regem o “bom uso” da Língua Portuguesa. Mais ainda estão representando
uma comunidade discursiva que, às vezes, é discriminada pelo seu modo de
falar.

Vale lembrar que a mídia trabalha, em grande escala, com estereótipos.


Isto é, a construção do ethos discursivo se apoia em representações
partilhadas pelo locutor e seu auditório. Destarte, acredita-se que os Estados
do eixo sul/sudeste possuam mais chances de obter o prêmio, visto que os
sujeitos da comunidade norte/nordeste há um longo tempo sofrem com o
título de analfabetos, caipiras etc. Porém, das cinco edições realizadas, duas
foram vencidas por representantes nordestinos, contrariando, assim, os
estereótipos construídos em torno dessas comunidades linguísticas.

Como já mencionado, o Soletrando é parte integrante de um programa


maior, Caldeirão do Huck, cujo apresentador é Luciano Huck. No entanto, os
responsáveis por afirmar se as palavras foram soletradas corretamente são:
um professor de Língua Portuguesa, representado por Sérgio Nogueira, e uma
personalidade do meio artístico. Notamos, dessa maneira, o poder
argumentativo da formação discursiva de professor. Segue um exemplo:

Exemplo 1: L1: [...] Da obra de Rachel de Queiroz, soletre


corretamente a palavra: HEBDOMADÁRIO.

L4: Significado, por favor.

L6: Semanal, que se faz, sucede ou aparece de semana em semana.

L4: Aplicação numa frase.

L2: Da obra “As três Marias”: “hebdomadário, satírico e


independente.”

L4: hebdomadário: H-E-B-D-O-M-A-D-Á-R-I-O.

L1: Professor Sérgio, a palavra está...

L2: Correta.

Tomando como base o contexto em que estamos inseridos, a palavra


hebdomadário não é utilizada em grande escala pelos falantes. Dessa forma,
há a predominância de palavras dicionarizadas, isto é, o importante na
seleção dos termos a serem soletrados não é o conhecimento e uso destas
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pelos participantes, o que importa é que seja dicionarizada. Vejamos mais um


exemplo:

Exemplo 2: L1: Professor Sérgio, primeiro, onde tava o erro de kirsch,


qual a história dessa palavra?

L2: É, primeiro lembrar que desde as fases anteriores que essas


palavras estrangeiras que estão dicionarizadas estão valendo na edição
deste ano, como aconteceu com byroniano, e tudo mais, shakespeariano, e
outras que já caíram aqui. No caso do kirsch, palavra de origem alemã, que
significa cereja, faltou o C, S-C-H no fim. É uma pena, só o alemão mesmo
para derrubar nossos candidatos.

Neste exemplo, o professor Sérgio Nogueira ressalta que todas as


palavras dicionarizadas, sendo elas de origem portuguesa ou não, são
utilizadas para avaliar os participantes. Tal explicação foi dada logo após um
dos concorrentes soletrar “erroneamente” a palavra kirsch. Voltando ao
exemplo 1, observamos ainda que a exemplificação dada é totalmente
descontextualizada: possui um sentido vazio, corroborando as práticas
pautadas em atividades metalinguísticas, voltadas para a reprodução de
conhecimento, concebendo os alunos e telespectadores como sujeitos dóceis
e moldáveis (FOUCAULT, 2009a) em prol da sociedade moderna.

Com efeito, o programa supõe que todos os brasileiros precisam


dominar as normas inscritas na Gramática Normativa para exercerem sua
cidadania e conseguirem um posto no mercado de trabalho. Isto é, a escola e
mídia não visam à formação de sujeitos críticos que saibam utilizar a língua
em sua diversidade, e sim sujeitos que internalizem o proposto pela ideologia
dominante: saber falar e escrever “corretamente” para ser útil ao sistema,
corroborando os ideais neoliberais.

Remetendo-nos aos postulados de Foucault (2009), entendemos que, na


medida em que a mídia busca uma forma legítima para o uso oral e escrito do
português, ela instaura uma vontade de verdade, pois se torna
ideologicamente comum a suposição da transparência da linguagem: a
Língua Portuguesa é pura – há uma forma verdadeira/legítima e diversas
formas “erradas”. Nesse sentido, o programa Soletrando está encoberto por
uma falsa ideologia: mostra-se como uma forma de amplificador dos
conhecimentos dos participantes e telespectadores porque trabalha com
palavras distintas, evidencia seus significados e ainda demonstra como
utilizá-las. Destarte, retornamos à discussão acima explicitada, pois algumas
das palavras apresentadas não possuem uso corrente. Vejamos abaixo os
termos selecionados para o episódio final do Soletrando 2010:

Exemplo 3: insígnia, hebdomadário, convalescença. ânsia, desígnio,


anti-horário, desidratação, expatriação, indissolúvel, preexistência,
ignifugar, geognosia, xexelento, kirsch, xanteína, iâmbico.

Dentre as palavras consideradas mais difíceis de soletrar podemos


destacar: hebdomadário, ignifugar, geognosia, iâmbico e kirsch, estas são
dicionarizadas, mas não possuem uso corrente. Por isso, Possenti (2009, p.
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29) alega que os “Professores, gramáticos e demais puristas têm diante de si


formas velhas, caídas e podres.” Ademais, podemos inferir que muitas das
palavras selecionadas são do “tipo pegadinha”, pois possibilitam a
emergência de dúvidas pelos participantes e expectadores sobre a forma de
sua escrita, como: a troca de letras, o uso de sinais de pontuação, o uso do
hífen, entre outros. Tais sujeitos podem questionar-se da seguinte forma, por
exemplo: a palavra xanteína é escrita com x ou ch? Na palavra expatriação o
“correto” é usar s ou x? Devo usar hífen nas palavras preexistência e anti-
horário? A palavra iâmbico possui h? Consecutivamente, todos os tipos de
variação linguística existentes são encarados como “locais de erros”.

Ao passo de não considerar a variação linguística, os responsáveis por


tal programa só utilizam como significado as descrições canônicas
encontradas nos dicionários e exemplos descontextualizados, como vimos no
exemplo 2, e podemos visualizar no seguinte exemplo:

Exemplo 4: L1: Certa a palavra para o Piauí [...] Vamos a Minas


Gerais [...] soletre corretamente a palavra: ignifugar.

L4: Significado?

L2: Tornar ininflamável.

L4: Aplicação numa frase.

L6: Podemos ignifugar materiais como papel, tecido, cartões etc.

L4: ignifugar: I-G-N-I-F-U-G-A-R.

L1: Talita Rebouças, a palavra está...

L6: Correta.

No excerto acima, depreendemos, mais uma vez, que a mídia, assim


como a escola, ensina a Língua Portuguesa não a partir dos usos, do contexto
sócio-histórico do alunado, mas pautado em descrições rígidas estabelecidas
pela Gramática Normativa e dicionários. Estes, por sua vez, trazem em seu
bojo algumas palavras que não utilizamos mais, explicações herméticas e
exemplos canônicos. Não asseguram, desse modo, a diversidade de
significados que as palavras adquirem a depender do contexto de uso e as
mudanças sofridas durante a sucessão de gerações. No referido programa, é
difundido que o significado dado para o termo ignifugar é “tornar
ininflamável”, mas será que todos os participantes e expectadores sabem o
que é tornar algo ininflamável? O exemplo dado: Podemos ignifugar
materiais como papel, tecido, cartões etc., pode ser utilizado e fazer sentido
em quais contextos? E qual a importância de saber soletrar uma palavra que
não é usada constantemente?

Em síntese, percebemos que a proposta do Soletrando não leva em


consideração o saber dos alunos/participantes. O programa possui uma
preocupação formal e, pelo seu poder de amplitude, difunde o como escrever
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“corretamente”, define o significado legítimo ou verdadeiro e demonstra


como utilizar as palavras soletradas de forma “correta”. Por conseguinte,
constrói um ethos discursivo pautado no ideal de língua pura, defendendo o
apagamento de qualquer variante que destoe da norma padrão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises efetuadas acima, verificamos a defesa da existência


de uma única forma de falar/escrever “corretamente”, sendo as demais
variantes consideradas “erros”, as quais empobrecem a Língua Portuguesa.
Constatamos ainda que essa postura não é somente de um só gramático, mas
de um discurso originado e que vem se perpetuando desde a Antiguidade.
Além disso, observamos o caráter superficial pelo qual a língua é discutida na
mídia. As explicações encontradas são simplificadas ao máximo, como temos
nos cursinhos pré-vestibulares e similares.

Por conseguinte, na medida em que os sujeitos responsáveis por tais


discursos propagam um ethos de língua pura e simples, eles colaboram para
os ideais da sociedade capitalista. É perpassada, dessa maneira, a ideologia
do bom sujeito, pois devemos estar aptos a atender as exigências das
sociedades neoliberais para efetivarmos a nossa cidadania e não ficarmos à
margem social. Ressalvamos ainda que o domínio da norma padrão está
diretamente relacionado à possibilidade de ascensão social, pois há uma
perpetuação da ideia de que o uso “correto” do português determina se o
sujeito está apto ou não para assumir um dado cargo na esfera social.

Destarte, acreditamos que o discurso da Gramática Normativa é um


discurso constituinte: ao passo que a mídia constrói uma imagem de língua
pura e transparente, colabora para que o discurso da Gramática Normativa
seja um discurso constituinte, pois é nesta que encontramos o modo legítimo
e “correto” de falar e escrever. Desse modo, os postulados da Gramática são
o referencial mais elevado que temos para as discussões linguísticas, sendo
requisitados em todos os momentos pelos gramáticos e puristas. Além destes,
a população em geral colabora para essa perpetuação, uma vez que é senso
comum a ideia de que temos que dominar as normas gramaticais para
possuirmos um bom status e não sermos colocados à margem da sociedade,
como pessoas incapazes de dominarmos nosso próprio idioma. Portanto,
concordamos com Baronas (2003, p. 88), ao afirmar que é “justamente essa
extrema valorização da língua padrão como algo positivo que possibilita que
os sujeitos se tornem cúmplices de sua própria submissão linguística”.

REFERÊNCIAS
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