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do
Aglomerado da Serra
Projeto Circuito SERRA: transitando na quebrada
Novembro de 2018
Instagram: @projetocircuitoserra
Facebook: https://www.facebook.com/circuitoserra/
E-mail: projetocircuitoserra@gmail.com
Youtube: Projeto Circuito Serra
Realização:
Observatório da Juventude da UFMG
Balaio Vermelho
Apoio:
Cáritas Brasileira
Ministério Público de Minas Gerais
Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG
Programa Diálogos Comunitários
Promotoras Populares de Defesa Comunitária
Tiragem: 100 exemplares
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO..................................................................................4
2. OS GRUPOS ENVOLVIDOS..............................................................11
.
3. ONDE VOCÊ MORA: NA SERRA OU NO SERRA?......................23
Boa leitura!
Construíram
esse
Projeto
Equipe
CAPOEIRA ORIGEM
https://www.facebook.com/CapoeiraOri-
gemBH/
Morar na Serra, por sua vez, está ligado à favela, à quebrada. Com-
preendemos ser esta uma construção social que muitos demoram
para aceitar, uma vez que carrega consigo uma série de estereótipos,
infelizmente ainda muito naturalizados em nosso país. Entende-
mos que estamos nesse constante movimento de leitura e aceitação
de nossos territórios. Neste sentido, não podemos perder de vista
como eles surgiram, como são socialmente representados e o que
as instituições públicas tem feito para diminuir as desigualdades no
acesso a serviços básicos, como saúde, educação, transporte públi-
co e lazer, entre tantos outros aspectos, ligados aos nossos direitos
como cidadãs/os.
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Morar no Serra e morar na Serra, portanto, envolve diferentes for-
mas de sermos e estarmos no e como os diferentes territórios. En-
volve o fato de nos conhecermos e nos reconhecermos, aqui ou aco-
lá, nos entremeios de diferentes identidades. Afinal, e você, onde
mora? No Serra ou na Serra?
,
AFINAL, O QUE É AGLOMERADO DA SERRA? ?
O Aglomerado da Serra é o maior conjunto de vilas da capital mi-
neira e o 2° maior conjunto de favelas da América Latina. Encontra-
-se localizado nas encostas da Serra do Curral, região Centro-Sul de
Belo Horizonte e faz limite com bairros como: Mangabeiras, Paraí-
so, Santa Efigênia e São Lucas.
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Não se sabe ao certo a população real do Aglomerado, mas, segundo
dados da Prefeitura de Belo Horizonte, estima-se que há aproxima-
damente 50 mil moradores/as na região. Também não se sabe muito
bem sobre o início da ocupação do terreno, mas o bairro Serra foi
planejado desde a construção de Belo Horizonte com o nome de
“Chácaras da Serra” e teve certo crescimento nos anos de 1910. As-
sim, acreditamos que o Aglomerado da Serra existe há mais de 100
anos!
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Para alguns, isso quer dizer que não temos cultura, que não gosta-
mos de ir aos eventos culturais, mas nunca pensam que “não gostar”
de ocupar certos espaços também nos é ensinado. Que tal refletir
e se perguntar: “Por que essas pessoas não acessam esses espaços?
Por que elas parecem não gostar disso?” ou “O que eu tenho feito
na minha prática no Aglomerado para possibilitar que essas pessoas
usem tais equipamentos?” ou “Eu realmente conheço o Aglomerado
a ponto de inferir certas respostas?” Meu trabalho funciona em rede
e envolve a participação de outras pessoas, principalmente aquelas
que vivem esta realidade?” “Será que esses espaços estão falando as
linguagens do morro? Eles pensaram essas políticas junto conosco?”
“Em que medida estamos fazendo PARA e não COM estas pessoas?
Por que não construir junto com eles e elas as regras para o uso do
espaço?”
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COMO ESTÁ ORGANIZADA ESTA PUBLICAÇÃO? ?
Este guia está organizado em três partes. Na primeira parte, con-
vidamos moradoras e moradores para escrever algumas de suas
memórias sobre o Aglomerado, não no sentido de esgotá-las, nem
delimitá-las, mas de trazê-las à luz para que possam inspirar a plu-
ralização das histórias que circulam sobre nossa quebrada. A partir
deste material, pretendemos contribuir para uma cartografia afetiva
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do Aglomerado da Serra. As pessoas, nesta edição, escrevem so-
bre becos, ruas, eventos, espaços públicos e, principalmente, sobre
as transformações ocorridas nesses espaços ao longo dos anos. São
mães, pais, tios, tias, avós, avôs, primos e primas, alunos de escolas
públicas, funcionários públicos, educadora/es sociais, professora/
es, estagiárias/os, que construíram suas singularidades a partir da
diversidade presente no Aglomerado.
1 Essas cartografias buscam as questões mais afetivas que não vão fazer
parte de mapas oficiais. São outras possibilidades de olhar o mundo. Para nós,
assim como para Marie Bordas, “estamos falando de uma questão de identida-
de!” Ver mais em: https://goo.gl/jGyPvV
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“Aglomerô - Histórias Afetivas
do
Aglomerado da Serra”
Ver o beco, ver as pessoas no beco, ver a vida no beco! O convite que
Manuel Bandeira nos faz é o de observar e compreender o mundo
a partir das pessoas, a partir de indivíduos num determinado espa-
ço. Nossa intenção, aqui, é contar um fato de tal forma que vocês,
que não estiveram neste lugar e não presenciaram a cena, possam
se aproximar, de alguma maneira, do significado daquilo que está
sendo narrado. Parte das histórias foram escritas por seus autores
e suas autoras. Outra parte foi narrada e gravada por moradores
da Serra, sendo posteriormente transcrita e transcriada, de forma
cuidadosa, por membros do projeto Circuito Serra, fazendo a pas-
sagem da oralidade à escrita a fim de adequar o texto aos objetivos
do material aqui apresentado.
Ao ler cada uma das histórias, se achar necessário, volte. Veja no-
vamente e se permita lançar um novo olhar sobre essas realidades,
construindo outras cartografias a partir de pessoas que aqui moram
e/ou trabalham.
Izolina Gomes
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Comunidade Rap Serra (A Posse)
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Na minha opinião, o primeiro dançarino de break dance, que trou-
xe a dança pra esse espaço,é um Mestre dessa Arte até nos dias de
hoje: Rodrigo DiFa, que na época era apelidado de “Difunto”. Já
quase apanhamos da mãe dele por causa disso, porque ela odiava
que chamassem ele de Difunto. Esse dançarino de extremo talento,
junto com MC Cadillac, levou a dança até nós e assim nos tornamos
BBoys (Dançarinos de Break Dance).
Como a Cultura Hip Hop é constituída por quatro elementos – Rap,
Break, Grafite e DJ - ,ainda faltavam os dois últimos elementos para
formarmos o grupo. Primeiramente, conseguimos um DJ pra se
juntar a nós, o DJ Ratinho, que alguns anos depois se tornou DJ do
meu primeiro Grupo de rap, chamado Cultura Rap, formado atra-
vés desses encontros.
O grafite era o último elemento que faltava. Ele chegou até nós atra-
vés do Projeto Guernica, no qual conheci a Fernanda, uma das pes-
soas mais iluminadas que já tive contato até hoje. Ela é uma Arte
educadora que, com certeza, mudou as nossas vidas.
Anos depois,nosso espaço de encontro, que era uma creche comu-
nitária,foi demolida para a construção da avenida. Mas o sonho ain-
da não acabou... Ainda somos resistência e acredito que a cultura
tem um poder transformador.
A Comunidade Rap Serra ainda vive e permanecerá viva em minha
memória, assim como todas aquelas pessoas que fizeram parte do
grupo. Hoje, algumas dessas pessoas não estão mais entre nós, mas
deixaram a missão de continuação desse ideal. A cultura Hip Hop
resiste. Comunidade Rap Serra: presente!
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Beco Estrela Dalva
Maria Clara
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As meninas do beco e eu sempre fomos muito amigas. Temos, até
hoje, um grupo no WhatsApp, no qual ficamos lembrando de his-
tórias e momentos que compartilhamos. Lembro também de ficar
pulando elástico até altas horas da noite ou quando juntava todo
mundo e ia assistir novela na casa da Dona Maria.
Sem dúvidas, a melhor parte da vida aconteceu ali no beco, junto às
ESTRELAS DO DALVA.
Cria do beco e da rua
Sou cria do beco Nossa Senhora das Graças, da Rua da Água e das
vielas onde deixei os meus maiores segredos e os meus maiores
tombos. Nessa minha casa de tijolo e piso de cimento, foi passada
a maior educação do mundo: fui criada por duas mulheres pretas,
minha mãe e minha avó, que estudaram até a quarta série. Ninguém
pode roubar os ensinamentos que elas me deram: o banho de er-
vas, a lata d’água na cabeça e a comida feita no fogão à lenha.
Nessa rua, deixei vários tampões dos meus dedões, brinquei de bo-
linha de gude, queimada, pega-pega e esconde-esconde. Também
não posso me esquecer de outras mulheres que fizeram parte da
minha trajetória: amamentei na minha mãe de leite, “Liane”; ia até
o Bar da “Zinha” para ganhar banana, ocupava o pé de manga da
“Duzangela” e chupei muitos “chup-chup” da dona “Maria”, além de
ouvir os conselhos e os xingos da “Elizete”, sentada no meio fio.
Lá, que não tinha asfalto e nem saneamento básico, tinha as brin-
cadeiras, as amizades e os vizinhos, que quando passávamos mal ou
não tínhamos nada para “rangar” em casa, nos ajudavam e dividiam
a comida, a casa e os remédios. Nesse Aglomerado, fui criada e rece-
bi uma herança cultural que hoje respeito e valorizo. Valorizo quem
ali esteve, está e estará construindo e fortalecendo essa história. Daí
veio meu reconhecimento por diversas fontes de saberes, das diver-
sidades das palavras, das gírias e da quebrada.
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Aprendi na rua da água, e no beco, a maior lição que não esqueço
de forma alguma: a simplicidade de aprender com o próximo, com
as trocas de ideias, com o ato de admirar um pôr-do-sol, com as
parcerias e o sentar no passeio num fim de tarde. Mas nem sempre
a vida é romântica. Nossa sociedade, cada vez mais egoísta, exige
de nós uma reflexão cada vez maior. Contudo, acredito que, com
sensibilidade e simplicidade para trocar e sentir as coisas consegui-
ríamos, talvez, mudar nosso mundo.
Marquim D’Morais
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Neste mesmo lugar, porém no andar de cima – com a mesma turma
da capoeira –, rolavam os ensaios da banda Kayajahma (que ainda
está na ativa) e eu, já um pouco mais de casa e já praticante de ca-
poeira, próximo da galera, acompanhava esse movimento também,
que me instigou muito para esse lance com a música. Inclusive, che-
guei a integrar a banda nos anos de 2001/2002/2003. Foi minha pri-
meira experiência atuando na música.
Posso dizer que este lugar e este ambiente foram de suma impor-
tância pra minha formação artística/cidadã/social. Foi na capoeira
que criei minhas primeiras composições, foi no Kayajahma minha
primeira experiência como músico e foi a “Tia Nadir” a primeira
pessoa no Aglomerado da Serra que vi realizando ações sociais, an-
tes mesmo de toda essa história toda começar. A vó Rita, mãe da tia
Nadir, era do congado – movimento do qual também participei um
pouco na minha infância.
Acho que tenho uma relação tão forte com essa família porque,
além de serem responsáveis por minha raiz cravada na capoeira, es-
tiveram presentes em quase todos os ambientes que frequentei por
muitos anos, seja na infância, na adolescência e até mesmo na fase
adulta. Na igreja católica, no congado, na música, na capoeira, no
campinho, eles estavam lá. Eles acabaram passando a fazer parte da
minha vida e posso dizer até que da família – já que família não diz
sobre conta sanguínea.
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“Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim, ensinamen-
to da favela foi muito bom pra mim!”
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Não sei com que idade, mas bem criança, antes dos 5 anos, minha
mãe conseguiu uma vaga para mim em uma creche então localizada
rua Bandoneon. Tenho poucas lembranças dessa escola. Lembro do
pátio central e de que, no meu último dia de aula, a diretora ficou no
meio do pátio nos entregando os diplomas, um modelo vendido à
época, com desenhos nas bordas, uma mensagem padrão no centro
e um espaço para colocar nosso nome de formanda, com uma letra
toda bordada. Imagina só o que eu, Floricena Estevam Carneiro da
Silva, fiz na hora em que ela me chamou na mesa e perguntou o meu
nome. Só estávamos nós duas naquele espaço e eu, tendo com um
nome desses e considerando que ela não me conhecia, não pensei
duas vezes e respondi prontamente: Floricena Jerônimo Gregório!
Este era o sobrenome dos meus vizinhos, que eu achava lindo, in-
clusive quando eles ficavam atrás de mim, me chamando de car-
neirinha e fazendo béééééé. Saí de lá muito feliz com a primeira
de muitas das traquinagens que me lembro em minha vida escolar.
Estava chovendo na ocasião e me lembrei que não poderia chegar
em casa com aquele diploma ou teria muito que explicar. Rasguei,
joguei na enxurrada e segui feliz e contente para minha casa.
Fiquei nessa creche até os seis anos, quando fui estudar na Esco-
la Municipal Senador Levindo Coelho, onde fiz do pré-primário à
quarta série.
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. Que período de estudos maravilhoso! Tenho muitas lembranças
boas dessa época: dos amigos, da escola, do frio que fazia, já que
a escola é ao lado do Parque Mangabeiras, da diretora parada na
portaria e barrando quem não estivesse com o uniforme completo –
geralmente com camisa sem escudo da escola ou de conga, porém,
sem a meia branca. Sobre esta época, minha maior lembrança, a
melhor de todas, é a de que todo ano minha mãe fazia minha festa
de aniversário na minha sala. Tinha bolo com glacê de clara de ovo,
Ki-Suco e pastel frito. Lembro de ter reclamado com minha mãe
que minha única tristeza era ter nascido em outubro. Eu pergunta-
va: porque não me fez nascer antes, em abril como minha irmã, ou
em junho como meus irmãos? Assim, não teria que esperar um ano
inteiro para fazer aniversário...
Aos onze anos, fui para a Escola Estadual Professor Pedro Aleixo,
onde estudei da quinta série até a conclusão do ensino médio. Que
horror e que delícia essa época da vida e dos estudos! Primeiro, o
horror de uma escola muito distante de casa, com um monte de
gente que eu não conhecia e de uma outra estrutura e organização
de trabalho, com um tanto de professoras/es entrando e saindo da
sala toda hora, de ficar esperando e não aparecer professor/a, de
uma agitação sem fim. Tomei bomba na quinta e na sexta séries.
Achei ruim, mas não muito. Lembro que minha mãe só me dizia: -
“perdeu um ano”. Lembro que uma dessas bombas foi em Ciências.
O professor me disse que eu só passaria na recuperação. Não fui
fazer a prova por pirraça!
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De lá, tenho lembranças de discussões, problemas e inúmeras si-
tuações que vivi. Foi lá que me apaixonei pela matemática, graças
à professora Suzaninha; lá entendi, com a professora de Educação
Física, que não havia bondade nenhuma na doação proposta para a
escola por um vizinho, que queria um pedaço da nossa quadra para
aumentar seu jardim. Nesta escola, também entendi que nós, fave-
lados que estudávamos em uma escola no bairro Mangabeiras, um
dos mais valorizados da cidade, éramos a parte fraca dessa relação e
que, se ficássemos calados e omissos, seriamos facilmente expulsos
de lá. Lá conheci e me apaixonei por Drummond, com seu José, sua
quadrilha e seu homem de ferro. Foi lá que fiz amigos e amigas com
quem compartilho até hoje momentos de vida. São companheiras
de trabalho, comadres, afilhados. É sempre um déjà vu quando lá
vou, a cada dois anos, para votar. Sempre vejo uma outra escola,
com outras salas, outros acessos, outra organização, mas também
vejo a minha escola, onde passei uma década de minha vida escolar.
Após terminar o ensino médio, fiquei 5 anos sem estudar, traba-
lhando, pois não tinha opção. No entanto, queria muito voltar a es-
tudar, porque sempre fui apaixonada por escola e sentia muita falta
dos amigos, do ambiente, das professoras. Voltei. Fiz vestibular para
pedagogia e passei. Fui estudar na Faculdade de Educação da Uni-
versidade do Estado de Minas Gerais (FaE/UEMG). Foi uma época
difícil: pouco dinheiro, sem trabalhar, mãe da Izabella, que ainda
era bebê. No entanto, eu sabia o que queria e onde queria chegar.
Tinha que dar certo.
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Lá, conversei com autoras/es e professoras/es que me deram espe-
rança, mas também tive contato com outras pessoas, que me con-
taram que muito do que estava posto para nós era assim há muito
tempo e que a mudança demorava, quando acontecia. No entanto, o
que me manteve firme foi compreender que, em sua maioria, aque-
las pessoas concordavam que a educação é um dos mais importan-
tes caminhos, se não o mais importante, como considero hoje, para
que haja transformações na nossa vida em sociedade.
Lá, refleti sobre uma das grandes maldades que vivemos na Educa-
ção brasileira, na condição de estudantes de escolas públicas: sequer
nos deixam tentar. Sofremos amiúde e paulatinamente pressões
para nem tentarmos uma vaga nas Universidades, principalmente
as públicas. Desde a educação primária, tudo que dizem e fazem é
no sentido de desqualificar a escola pública, as professoras, os es-
tudantes. Tudo que fazem é nos levarem a acreditar que não temos
boa formação, que temos os piores professores, que somos os pio-
res estudantes. Que a educação pública, principalmente da e para a
favela, é um quase nada oferecido a um quase ninguém. Penso que
devo um pedido de desculpas a esse sistema, por não ter acreditado
nele, por ter acreditado em mim, em minhas professoras e profes-
sores, nas escolas onde estudei, por ter feito e passado no primeiro
vestibular no qual me inscrevi. Não satisfeita, fui fazer mestrado,
também na FaE/UEMG, na área da Educação. Pesquisei o traba-
lho das mulheres aqui da Comunidade, nas obras do Programa Vila
Viva. Mais um grande aprendizado que essa Comunidade me pro-
porcionou.
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Conheci e refleti sobre o trabalho e a exploração a que muitas mu-
lheres estão expostas. Quanto menor a formação escolar, maior a
exploração. O caminho, então, qual é? Educação! Durante o mes-
trado, fiz concurso para professora da Rede Municipal de Belo Ho-
rizonte. Fui chamada e assumi ainda com o mestrado em curso.
Escolhi trabalhar na Escola Municipal Professor Edson Pisani, que
fica aqui na rua Nossa Senhora de Fátima, literalmente no meu
quintal. Em meu terceiro ano na escola, entrei para a direção e estou
até hoje, há seis anos. Desse lugar de diretora, pude confirmar mi-
nhas suspeitas. Vivo na prática o compromisso das professoras com
seu trabalho, sua dedicação, o quanto querem o melhor para nossos
estudantes. É muito interessante como a educação é contagiante e
como os funcionários das escolas também se tornam comprometi-
dos com esse trabalho de educar. É interessante perceber que, para
as crianças, todas e todos na escola são educadores. Isto é expli-
citado quando, muitas vezes, se referem a funcionários da escola
como professores. Nessa lida com os estudantes, estou me forjando
diariamente professora, enquanto também me forjam diariamente
uma pessoa melhor.
Ser professora e diretora de uma escola aqui no Aglomerado só me
fez confirmar a importância da educação escolar para nossa Comu-
nidade. Isto me faz querer, cada vez mais, que nosso povo venha
para a educação, serem professoras e professores das escolas daqui.
Queria escrever sobre muitas coisas mais, afinal, sou declaradamen-
te apaixonada pela educação. Sinto que não cumpri minha missão,
afinal, queria contar todos os casos dessas quatro décadas de educa-
ção que vivi por aqui.
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Poderia fazer-lhes rir e chorar com algumas histórias mais recen-
tes, como: a reclamação da estudante de 80 anos que queria passar
de ano, mas não aceitava trocar de professora, nem de sala, nem se
formar; as cartinhas; a fuga; o remédio para pescoço quebrado; o
dia dos pintos; o menino que queria ir para a direção; o menino que
só queria brincar de tubarão…Contudo, vou ficando por aqui, nes-
tas pouco mais de duas páginas repletas das dores e delícias de ser
quem já fui e quem eu sou: Serráquea, Floricena Estevam Carneiro
da Silva, Floricena Jerônimo Gregório, Professora, Cena, Flor!
Aglomerado Serra
Rogério Rego
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Assim, mais uma vez, o poder público deixou de cumprir o seu pa-
pel. Neste processo, apenas realizou as etapas de interesse econô-
mico, deixando de lado o interesse social dos moradores do Aglo-
merado Serra. A falta de uma diretriz para solucionar os problemas
que atingem prioritariamente os excluídos financeiramente ou até
mesmo dificuldades na operacionalização e na colocação em práti-
ca das políticas públicas definidas anteriormente são, muitas vezes,
indicadas como justificativas para estampar as capas ou os cantos de
jornais. E nós, como ficamos?
Júnia Morais
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Uma vez, quando inaugurado o Espaço Criança Esperança, o Le-
one - SpectroBione, que é artista do Aglomerado –, foi me dar um
recado em casa sobre a matrícula no Criança Esperança, e, quando
achou o beco, disse: “Nossa! Perguntei todo mundo onde era o beco
Semifusa e o último falou: ‘Cê quer que te fusa?’”, numa brincadeira
pelo nome tão estranho.
No dicionário, encontrei o seguinte: substantivo feminino MÚSICA
- 1. figura de ritmo que tem a metade do valor de tempo de uma
fusa ou a sexagésima quarta parte de uma semibreve. Bom, só en-
tendi que tinha a ver com música (risos)!
A partir daí, notei que todas as ruas no meu entorno tem a ver com
música: Ritmo, Acorde, Serenata, Musical, Bandolim, Guitarra, To-
nalidade, Regência, entre outras. Percebi que a Vila Santana do Ca-
fezal tem musicalidade em suas entranhas. Uma vez, me disseram
que um músico deu o nome para as ruas. Nunca soube ao certo a
origem dos nomes. Se você souber, me diga! Pode me procurar no
Beco Semifusa. No Cafezal, temos um território extenso, diverso e
cheio de gente linda. Há anos, quando era adolescente, frequentava
os bailes funk que aconteciam principalmente perto do Beco Semi-
fusa, na praça da Lira. O Faverock, na Rua Dr. Alípio Goulart, ia
pra ver principalmente um grupo do aglomerado chamado Pêlos
de Cachorro, atualmente, Pelos. Passava os fins de semana na praça
de Esportes do Cafezal, que estava recém inaugurada. Circulava por
todo o território em busca de algo legal para fazer. Atualmente, sou
Assistente Social. Continuo procurando algo legal pra fazer. Ainda
frequento bailes funk, pagode, samba e tudo que puder aproveitar,
na “quebrada”.
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Boas opções para se divertir e comer uma comida gostosa são o
Barrankus Petisco, Betinho Bar e Restaurante (Antigo Zé Pretinho),
Espeto Bar, Bar da Laje, Bar da Madrinha, Massas Dias, Pizzaria
Farol da Serra, Bar do Queixada, dentre outros.
Às vezes, vivemos conflitos que poderiam ser evitados. Se o poder
público tratasse a periferia com a mesma atenção que trata dos bair-
ros nobres... Somos sobreviventes! Somos sementes! E seremos nós
por nós, sempre!
Hérlen Romão
Quem poderia imaginar que foi em baile funk que descobri o que é
ser militante? Foi lá que descobri que as letras, que agitavam o salão,
também nos fazem refletir e agir...
Quem poderia dizer que, naquele momento, tão jovem, só preocu-
pada em estar com a beca esperta para agitar a noite, aprenderia nas
madrugadas quais eram meus sofrimentos sociais...
Era mágico descer a Pouso Alto com várias amigas, retocar o batom,
pois o baile era entrada franca para as meninas, e então brilhar. Era
só estar em dia com a maquiagem, cabelinho molhado e o pé quente
para riscar todo o salão e, lógico, estar com olho esperto, pois o boy
poderia estar naquele cantinho, beeem escondidinho...
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Não sabíamos o que significava DCE... Também não interessava. Na
verdade, a informação que não podia faltar era se, para a mulhera-
da, na semana que vem seria entrada franca. Também era importan-
te ficar ligada para a hora da lenta, pois era a oportunidade de ficar
bem próximo do bofe sensação, jogando aquele charme para não ter
jeito e ele te chamar para a lentona. Mas, atenção! Não podia dei-
xar ele, na hora deste momento agarradinho, descer a mão. Ah, isso
não! No mais, era muito importante checar se ele sabia chegar, pois
boy magia no DCE era o cara que nos fazia viajar com palavras...
Aaaah! Como era bom sentir-se única, a mais bela, saber que, du-
rante aquela semana inteira, aquelas palavras foram ensaiadas para
nos encantar.
Muito maneiro era ver o baile inteiro fazendo a mesma coreogra-
fia. Uma alegria que contagiava, arrepiava! Os gritos de guerra não
eram para saldar time de futebol, mas sim, sua quebrada. E a guerra
era quem sabia meter um melhor passinho de improviso. Quem o
fazia, esse sim, tornava-se ídolo!
Muito massa, também, era não ter medo de subir para casa, pois era
uma geral subindo os morros, cantando e dançando. O baile saía do
salão e nos acompanhava pelas ruas da favela.
As cores das roupas eram vibrantes: amarelas, vermelhas, rosa cho-
que... Os cabelos eram ouriçados ou molhados, com muito creme e/
ou colado nas costas. Ombreiras para aumentar a elegância e tênis
All Star para se firmar “pé de valsa”. Mas não tinha nada mais valio-
so que sábado à noite, pois sábado à noite TUDO PODIA MUDAR,
como diz a música! Eu, por exemplo, foi levando um passinho que
ouvi a seguinte proposta: “posso dar um beijo na sua covinha?” Dei-
xei. Segunda proposta: “posso dar um beijo na sua outra covinha?”
Hummm... Gatinho, então deixei. Por fim: “posso dar um beijo en-
tre as duas covinhas?” E foi assim que entrei no baile solteira e saí
casada...
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Raízes mutáveis
#PoesiaEmLinhasTortas
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Rua Serenata /Praça da Lira/Beco do Amor
Patrícia Prudencini
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Lembranças muito boas da Rua Falcão!*
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Ainda sobre a rua Falção, tenho boas lembranças, mas também te-
nho lembranças ruins. Mas a maioria é coisa boa! Graças a Deus!
Essa Falcão. Quem sai daqui acaba voltando pra cá de novo. Não
tem como não voltar! Uma história boa daqui são os meus vizinhos,
são todos bons. O que precisar aqui eles me ajudam. A minha in-
fância aqui nessa Falcão, graças a Deus, foi de verdade. Eu tive in-
fância de verdade! Brinquei muito! Se eu falar que eu não brinquei,
estou mentindo. Aqui nessa Falcão, a gente brincava de rouba-ban-
deira, Pegador de esconder. Ô coisa maravilhosa! A gente começava
a brincar às seis horas da tarde e só terminava duas horas da manhã
e, mesmo assim, a mãe já estava com o chicote no braço pra pegar
a gente de coro. Melhor ainda era cair no poço. Que maravilha! Na
hora em que eu falava assim: “Pera”, eu já falava com as meninas
com os olhos meio abertos pra eu ver o meu pegue, pra eu dar um
beijinho. Naquilo ali a gente ia lá e lascava um beijão. A gente brin-
cava disso atrás da casa da Dona Izolina e do falecido Nado, da dona
Tina. Agora, ali no campo bola de ouro, eu já era mais moça e a
gente ia ali pros Miamis, aquelas músicas dos Miamis, “Sping love”.
Bom demais! Ô época boa! Estamos tentando manter essa cultura
do morro, mas está difícil de manter. Foi uma época muito satisfa-
tória pra mim!
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Ôh, Serra!
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Muitas são minhas alegrias ao rememorar estas histórias, mas o que
me orgulho de verdade é de ter feito parte da primeira geração de
alunos da E.E. Efigênio Sales. Eu amava cuidar da horta escolar do
Seu João!
Além disto, nessa época, as brincadeiras de rua rolavam sempre.
Rouba-Bandeira, Pique-Esconde, Queimada, Bolinha de Gude, en-
tre outras que quase não se vê mais. O que eu mais gostava era da
casinha de madeira que eu mesmo fiz no pé de abacate do quintal
da minha avó/mainha Lindaura. Isso mesmo! Quase todas as casas
tinham quintais com várias plantações e meu avô gostava muito de
plantar. Tinha bananeira, pé de cana, abacateiro, mangueira, limo-
eiro, até pé de café e corante (urucum), ceis acreditam? E por falar
no meu avô, quer dizer, painho, né?, que era como ele gostava de ser
chamado, o Seu Tião era um dos puxadores da Folia de Reis da Igre-
ja Católica do Cafezal. Ele era muito dedicado às tradições católicas.
Eita nós! É história pra mais de metro, sô! E se achava que era só
isso, tem muito mais, viu!? Quem não se lembra de como a antena
da Del Rey iluminava, coloria e encantava toda a cidade com as lu-
zes que a decoravam no Natal? Era uma variação de cores e projeção
que arrancavam sorrisos de tão bonito que era.
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Cafezal!
Heberte Almeida
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Tenho um carinho imenso pelo Cafezal, embora não more lá. Suas
ruas e becos com nomes de instrumentos e elementos musicais é
muito, muito maravilhoso mesmo. Imagina morar no beco Cava-
quinho esquina com os becos Banjo e Tamborim!? Que coisa in-
crível não seria o entroncamento Guitarra, Baixo e Bateria, não é?
Sair correndo pela Ritmo, subir o Sustenido, cantar umas músicas
na janela da preta mais linda da Serenata, pegar o amarelinho para
descer na Regência e curtir um rap no Centro Cultural Lá da Fave-
linha, e depois tomar uma cerveja na Dinâmica e, ao fim da noite,
descansar na Harmonia. Isto é totalmente possível no Cafezal!
Realmente esta vila ocupa bastante meu imaginário. Tem
pessoas e histórias incríveis neste lugar. Essa é a terra dos famige-
rados irmãos “Graúdo e Miúdo”. De acordo com o instituto de pes-
quisas inexatas e estórias Data Tambor, a maioria dos estudantes
de violão que participou de uma oficina de música que coordenei
durante uma década no Aglomerado da Serra é dessa região. Nesse
lugar, já fui muitas vezes ao encontro de pessoas queridas e a várias
festas sensacionais ao som de pagode, de Amado Batista e Michael
Jackson, saboreando o mais distinto churrasco de linguiça (sempre
que eu chegava na casa de um casal de amigos só sobrava essa igua-
ria pra mim). Foram tantas vezes que até já perdi a conta!
Para mim, o nome de rua mais bonito do Serrão é “Flor de
Maio”, entretanto, ela não se localiza no Cafezal. O Centro Cultural
mais lindo da comunidade e da cidade, também não está no Cafezal.
O campo de futebol mais emblemático e lendário da nossa quebra-
da está numa vila, que não é o Cafezal. Ou seja, o Aglomerado da
Serra não é o Cafezal. Contudo, no glorioso “Café” estão presentes
muitos afetos e memórias minhas, compondo um mosaico de pes-
soas, casas, histórias e lutas que representam o meu lugar.
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Pedra Verde
Simone Moura
Pedra Verde é o nome da rua onde moro desde que nasci. Esta rua
foi palco de inúmeras das minhas histórias e também cenário para
minhas vagas memórias dos tempos de criança. Dela tenho a lem-
brança de quando menina, entre os meus cinco e oito anos, carregar
na cabeça uma lata redonda, daquela antiga de doce de leite Itambé.
No entanto, seu conteúdo não era o doce, era a água que carregava
por quilômetros entre a Bica da Terceira Água, na Vila Fazendinha
e minha casa, na Vila Fátima, onde enchia junto com a minha mãe:
caixa, tambores e bacias. Eram várias viagens. Isso quando eu não
resolvia escorregar no meio do caminho e deixar a pequena lata cair,
pois a trilha era de terra enlameada, que se tornava uma verdadei-
ra esparrela para as desavisadas. Daí, quando isso acontecia, não
adiantava chorar. Voltava para fila formada principalmente por mu-
lheres e aguardava, quietinha, por pelo menos uma hora até encher
novamente a lata.
Bom, eu disse quietinha pois normalmente quem deixava a lata cair
era alvo da gozação das demais por dias e mais dias. Ninguém que-
ria ser a próxima vítima, né? Então, na subida dos barrancos lama-
centos, firmava as canelas e o tronco, e se preciso fosse, gemia para
me munir de uma força que vinha deste som. “Só pode”, eu pensa-
va. Na verdade, só fui aprender sobre isso com o tempo: sobre essa
força que é interior, mas é também anterior. Essa força é a que vem
de nossas ancestrais, que abriram, no fio da enxada ou mesmo no
caminhar, as trilhas pelas quais passaríamos e fincaríamos nossos
pés para não deslizarmos ladeira abaixo.
Pedra Verde é uma dessas ruas abertas por mulheres. Antes beco,
depois viela e hoje rua. Um caminho que foi se alargando para que
outras passassem.
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O último ou o único terreiro do Aglomerado da Serra?
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Lá no Cafezal, Serra
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Favela!
Rafael Freire
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O PROJETO
OBJETIVOS DO PROJETO:
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- Contribuir para a efetivação do direito à cultura e ao lazer dos/as
moradores/as
e fortalecer a identidade dos grupos culturais por meio do estímulo
às atividades culturais nas vilas que compõem o aglomerado.
COMO SURGIU?
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OS ENCONTROS FORMATIVOS
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DOS ENCONTROS, ALGUMAS INFORMAÇÕES...
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8) Questões de gênero no Aglomerado da Serra
Convidadas: Luciana Cezário e Grupo de Teatro Morro Encena
(Hérlen Romão, Andresa Romão, Beatriz Alvarenga, Erica Lucas,
Thamara Selva, Sandra Sawilza)
8 de setembro, na UMEI Capivari
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Sendo assim, destacamos que esse projeto não se encerra aqui.
Estamos apenas no começo dessas tessituras, em um processo de
descoberta coletiva dos laços que nos unem. Sou porque somos
Aglomerado da Serra! Continuamos transitando por aqui, na nossa
quebrada, pois, como canta Marquim D’Morais, “o alto do Morro é
o melhor lugar para estar, porque aqui é o mais perto do céu que eu
consigo chegar, pisando em terra firme”. Gratidão!
PARA NÃO ACABAR...